A Capacidade Jurídica Das Pessoas Com Deficiência
A Capacidade Jurídica Das Pessoas Com Deficiência
A Capacidade Jurídica Das Pessoas Com Deficiência
The legal capacity of persons with disabilities: a necessary reframing in the light of human
rights and the social model of disability
Resumo
Objetivos: analisar o novo paradigma da capacidade jurídica das pessoas com deficiência,
instaurado pelo artigo 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e reiterado pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Lei nº
13.146/2015 –, bem como identificar possíveis obstáculos ao reconhecimento da
capacidade, em igualdade de condições com as demais pessoas. Metodologia: a pesquisa
é qualitativa, documental e bibliográfica, tendo sido baseada em normas constitucionais e
legais, em documentos oficiais da Organização das Nações Unidas e em livros e artigos
científicos sobre o tema. Resultados: o mapeamento dos óbices que têm desencadeado
oposição em relação ao tema permitiu a definição de estratégias para seu enfrentamento,
que somente se afigurarão viáveis por meio do empreendimento de esforços amplos para a
materialização do direito das pessoas com deficiência ao exercício da sua capacidade, sem
discriminação. Conclusão: a superação da resistência às inovações trazidas pela
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e repetidas na Lei
nº 13.146/2015 pressupõe uma ressignificação do direito à capacidade, à luz dos direitos
humanos e do modelo social de deficiência. Pressupõe, ainda, o engajamento de toda a
sociedade em um processo crítico, combativo e emancipador, destinado ao rompimento das
amarras desencadeadas pelas opressões e usurpações que sempre aprisionaram e
alienaram – da sociedade e da História – essas pessoas.
Palavras-chave
Capacidade jurídica. Pessoas com deficiência. Direitos Humanos. Dignidade humana.
Abstract
Objectives: to analyze the new paradigm of the legal capacity, established by the article 12
of the Convention on the Rights of Persons with Disabilities and reaffirmed by the Brazilian
Law of Inclusion of Persons with Disabilities – Law nº 13.146/2015 –, as well as to identify
possible obstacles of recognizing the capacity on equal terms with others. Methods: this
study is qualitative, documental and bibliographic and is based on constitutional and legal
norms, official documentation of the United Nations and books and articles on the subject.
Results: the mapping of the obstacles that have triggered opposition in relation to the theme
allowed the definition of strategies for their confrontation, which will only appear viable
through the undertaking of ample efforts for the materialization of the right of persons with
disabilities to exercise their capacity with no discrimination. Conclusion: the overcoming of
1
Advogada; coordenadora do Comitê Jurídico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD);
conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Conade); idealizadora da Rede Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In) Brasília, Distrito Federal, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-9522-0967. E-
mail: [email protected]
Resumen
Objetivos: análisis del nuevo paradigma de la capacidad jurídica, establecido por el artículo
12 de la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad y
reiterado por la Ley Brasileña de Inclusión de la Persona con Discapacidad – Ley nº
13.146/2015 –, bien como identificar posibles obstáculos al reconocimiento de la capacidad,
en igualdad de condiciones con las demás personas. Metodología: la investigación es
cualitativa, documental y bibliográfica, habiendo sido basada en normas constitucionales y
legales, en documentos oficiales de la Organización de las Naciones Unidas y en libros y
artículos científicos acerca del tema. Resultados: el mapeo de los obstáculos que vienen
desencadenando oposición en relación al tema permitió que se definieran estrategias para
su enfrentamiento, que solo resultarán viables por medio de la realización de esfuerzos
amplios para la materialización del derecho de las personas con discapacidad al ejercicio de
su capacidad, sin discriminación. Conclusión: la superación de la resistencia a las
innovaciones que trajo la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con
Discapacidad y que se repiten en la Ley nº13.146/2015 presupone una resignificación del
derecho a la luz de los derechos humanos y del modelo social de deficiencia. También
presupone el envolvimiento de toda la sociedad en un proceso crítico, combativo y
emancipador, destinado a romper las cadenas de las opresiones y usurpaciones que
siempre encarcelaron y promovieron enajenación de esas personas, tanto de la sociedad
cuanto de la Historia.
Palabras clave
Capacidad jurídica. Personas con discapacidad. Derechos Humanos. Dignidad humana.
Introdução
Até bem pouco tempo ser pessoa com deficiência 2 , em muitos casos, significava
automaticamente não ter capacidade jurídica para praticar atos passíveis de serem
praticados pela maioria da população (1), como casar, testemunhar em juízo ou assinar a
quitação das verbas rescisórias do seu contrato de trabalho.
Após a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(CDPD) (2), os Estados Partes se viram obrigados, ante o disposto no artigo 12 desse
documento, a rever a compreensão arraigada em seus ordenamentos jurídicos, de
incapacidade civil das pessoas com deficiência, e a reconhecer que essas pessoas gozam
2
Consoante o artigo 1 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, “Pessoas com
deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais,
em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de
condições com as demais pessoas” (2).
3
O Comitê realiza, no âmbito da ONU, o monitoramento internacional das obrigações contraídas pelos Estados partes da
CDPD.
Metodologia
Trata-se de pesquisa teórica e documental sobre um tema cuja bibliografia ainda não
é extensa no Brasil, a saber, as repercussões do artigo 12 da Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (CDPD) e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (LBI) em relação à capacidade jurídica dessa população.
A investigação foi empreendida com o intuito de i) analisar o novo paradigma da
capacidade jurídica, de reconhecimento da capacidade jurídica das pessoas com deficiência,
em igualdade de condições com as demais pessoas, e ii) identificar alguns dos obstáculos à
concretização desse direito humano.
Para o atingimento de tais objetivos, foram adotados procedimentos de cunho
documental e bibliográfico. No plano internacional, os documentos analisados foram a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2), especialmente os seus
artigos 3º e 12, o Comentário Geral nº 1 sobre o artigo 12 (13) e as Observações Finais
sobre o informe inicial do Brasil (12). No plano nacional, foram examinados principalmente
os reflexos das modificações determinadas pelos artigos 114 (4) – que alterou os artigos 3º
e 4º do Código Civil (14) – e 116 da LBI (4), que introduziu o instituto da tomada de decisão
apoiada no Código Civil (artigo 1783-A).
A pesquisa contemplou livros e artigos científicos sobre capacidade jurídica, direitos
das pessoas com deficiência e direitos humanos, publicados em português, inglês e
espanhol. Os artigos científicos, assim como alguns livros, foram obtidos em bancos de
dados abertos do governo federal, das Nações Unidas, de universidades, do Comité Español
de Representantes de Personas com Discapacidad, da Scielo, entre outros. Foram utilizadas
como indexadores as expressões capacidade jurídica, capacidade civil e pessoa com
4
Outros possíveis motivos encontram-se listados no capítulo “A capacidade jurídica das pessoas com deficiência: um novo
paradigma construído sob a égide dos direitos humanos” (3).
5
Expressões adotadas nas Leis nºs 8.112/90 (18) e 8.213/1991 (19).
6
O parágrafo 8º do artigo 222 da Lei nº 8.112/90 foi incluído pela Lei nº 13.846/2019.
Considerações finais
A concretização do sistema de apoio inaugurado pela Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (CDPD) pressupõe o engajamento de toda a sociedade em
um processo crítico, combativo e emancipador, destinado ao rompimento das amarras das
opressões e usurpações que sempre aprisionaram e alienaram, da sociedade e da História,
as pessoas com deficiência. Somente assim será possível torná-las protagonistas das suas
trajetórias e capazes de modificar os respectivos destinos e conduzir as próprias vidas.
O empenho de todos em um pensar dignificante em relação a esses sujeitos de
direitos propiciará que mais rapidamente seja materializado o direito dessa população ao
exercício da sua capacidade jurídica, expressão da sua dignidade.
A implementação do atual paradigma da capacidade jurídica das pessoas com
deficiência, especialmente intelectual e psicossocial, é tarefa imprescindível à concretização
dos direitos humanos dessas pessoas e à realização, na dimensão vital de cada uma, da
sua autonomia – hábil a gerar nelas a percepção de pertencimento ao mundo – e do
protagonismo capaz de humanizar a existência e dar sentido à vida.
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7
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estende-se a “adultos com vulnerabilidade acrescida” (20), como é o caso, não raramente, de pessoas idosas (11).
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