Reconhecimento e Inclusão Das Pessoas Com Deficiência

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RECONHECIMENTO E INCLUSÃO DAS

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA


RECOGNITION AND INCLUSION OF DISABLED PEOPLE

Heloisa Helena Barboza


Professora Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Doutora em Direito pela UERJ. Doutora em Ciências pela ENSP/FIOCRUZ.
Advogada. Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
(aposentada). Parecerista e Árbitra em Direito Privado.

Vitor de Azevedo Almeida Junior


Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Professor Assistente do Curso de Direito da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ). Professor dos cursos de
especialização
do CEPED-UERJ, PUC-Rio e EMERJ. Advogado.

Resumo: A Constituição da República refere-se em poucos dispositivos às pessoas com


deficiência, os quais procuram garantir sua integração à vida comunitária. A partir de 2008
instaurou-se inovador tratamento constitucional da questão, que não só passa a incluir-se dentre os
direitos humanos, como a ter como foco a plena e efetiva participação e inclusão dessas pessoas
na sociedade, como decorrência da adoção do modelo social de deficiência. O Estatuto da Pessoa
com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) estabeleceu diversos instrumentos para implementação do
processo de inclusão constitucionalmente determinado. Constata-se, porém, que o
reconhecimento, como necessidade hu
mana vital, constitui elemento essencial para que se efetive a exigida inclusão social. Cabe ao
Direito promover a efetivação desse elemento de inclusão. O presente artigo analisa o
reconhecimento sob essa ótica e os desafios jurídicos daí resultantes.
Palavras-chave: Pessoas com deficiência; Reconhecimento; Inclusão; Modelo social.
Sumário: Introdução – 1 Da integração à inclusão da pessoa com deficiência – 2 Efeitos da adoção
do modelo social de deficiência – 3 O reconhecimento como fator indispensável à inclusão – 4
Desafios jurídicos à efetividade da inclusão – 5 Conclusão
Abstract: The Brazilian Federal Constitution refers to people with disabilities in only a few Articles,
who seek to ensure their integration in the community life. As of 2008, a new constitutional treatment
of the issue was introduced, which not only made entire issue formally part of human rights, but also
focused specifically on the full and effective participation and inclusion of such group of people in
society, as a result of the adoption of the social model of disability. The Statute of the Person with
Disabilities (Law n. 13.146/2015) established several norms implementing the constitutionally
determined process of social inclusion. Recognition, however, as a vital human need, is an essential
element to ensure the required social inclusion. It is due by the competent authorities to promote the
effectiveness of this element of inclusion. This article analyzes the recognition from this point of view
and the resulting legal challenges.

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Heloisa Helena Barboza, Vitor de Azevedo Almeida Junior
Keywords: Disabled people; Recognition; Inclusion; Social model.
Summary: Introduction – 1 From integration to the inclusion of the person with disabilities – 2
Effects of adopting the social model of disabilities – 3 Recognition as an indispensable factor for
inclusion – 4 Legal challenges to the effectiveness of inclusion – 5 Conclusion

Introdução
A questão da deficiência humana não recebeu atenção maior do legislador
constituinte de 1988, não obstante tenha este contemplado algumas situações
de vulneração, como as da infância, adolescência e envelhecimento, conferindo
lhes proteção especial. Os dispositivos dedicados às pessoas com deficiência
procuram dar-lhes proteção no trabalho e tem feição assistencialista, voltada à
habilitação e reabilitação para fins de sua integração à vida comunitária.
Contudo, a incorporação à ordem constitucional brasileira da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, por força do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009,
revolucionou o tratamento da questão, ao colocá-la no patamar dos direitos
humanos e ao adotar o denominado modelo social de deficiência.
Os fortes impactos da Convenção de 2008 no ordenamento jurídico só
foram sentidos efetivamente após a edição da Lei nº 13.146, de 06 de julho de
2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência –
também de nominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). Destinado
expressamen te a assegurar e promover, em condições de igualdade, o
exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com
deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania, o EPD cria os
instrumentos necessários à efetivação dos di tames constitucionais, dentre os
quais se inclui profunda alteração do regime de capacidade jurídica, previsto no
Código Civil, cujas consequências se alastram praticamente por todo
ordenamento jurídico.1
Embora tenha o EPD largo alcance, atingindo a um só tempo diversas norma
tivas infraconstitucionais, constata-se que sua efetividade está vinculada ao
reco nhecimento, como concebido por teóricos contemporâneos, como Charles
Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. Na verdade, o reconhecimento, nessa
perspectiva

1
Sobre o assunto permita-se remeter a BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo.
A capacidade civil à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de
(Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas – Convenção
sobre os di reitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016,
p. 249-274. Cf., ainda, BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. A
(in)capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual e o regime das invalidades: primeiras
reflexões. In: EHRHARDT JR., Marcos (Org.). Impactos do novo CPC e do EPD no direito civil brasileiro.
Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 205-228.
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filosófica, constitui elemento integrante e necessário do processo de inclusão da


pessoa com deficiência. Sem o reconhecimento social, as determinações cons
titucionais e sua regulamentação legal correm o risco de se tornarem normas
programáticas, o que perverteria o objetivo central do modelo social. Assim
sendo, a interpretação do EPD e, principalmente, sua aplicação devem, sempre
que possível, ter função promocional do reconhecimento social. Sob essa
perspectiva, muitos são, sem dúvida, os desafios jurídicos a serem enfrentados.
A proposta deste trabalho é analisar, ainda que brevemente, o conceito filosófico
do reconhecimento em face da trajetória da questão da deficiência no Brasil,
para demonstrar sua importância no processo de inclusão social da pessoa
com defici ência, como forma de contribuir para identificação e enfrentamento
dos desafios jurídicos que já estão postos pela Lei de Inclusão da Pessoa com
Deficiência.

1 Da integração à inclusão da pessoa com deficiência


Merece sempre releitura e reflexão o constante do Preâmbulo da Constituição
da República,2 no qual resta expresso ser o Brasil um Estado Democrático, des
tinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. O
mesmo deve ser dito em relação à cidadania e à dignidade da pessoa humana,
dois dos fundamentos da República, a teor do seu art.1º, incisos II e III,
respectivamente.
Como já assinalou o STF, o Preâmbulo contém a explicitação dos valores que
dominam a obra constitucional, devendo a sociedade se organizar com obser
vância dos mesmos, para consecução dos fins ali preconizados. De acordo com
a doutrina, deve o Estado garantir tais valores, não apenas de modo abstrato,
mas através de ações em favor de sua efetiva realização, de seu “exercício”,
em

2
Desde 1988, indaga-se: o Preâmbulo faz parte da Constituição da República? Conforme Celso Ribeiro
Bastos e Ives Gandra Martins, o conjunto de afirmações ali contidas são palavras do constituinte que
externam os valores e princípios fundamentais que serão tratados no texto constitucional. Não
obstante, de acordo com os mencionados autores, há quem o considere juridicamente irrelevante. O
Preâmbulo constitui “o título de legitimidade da Constituição, quer quanto a sua origem, quer quanto
ao seu conteú
do (legitimidade constitucional material)”, segundo José Joaquim Gomes Canotilho, citado pelos
autores. Parece inegável sua função de auxiliar na interpretação dos dispositivos constitucionais,
embora não pre valeça sobre os mesmos, os quais como assinalado, retomam e discorrem sobre o ali
contido (BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, v. 1.
São Paulo: Saraiva, 1988, pp. 408-409). Doutrina mais recente igualmente nega força normativa
autônoma ao Preâmbulo, mas igualmente reconhece a possibilidade de ser “empregado como reforço
argumentativo ou diretriz her menêutica” (SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel.
Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 363).

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direção dos destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores
conteúdo específico.3
Em uma sociedade pluralista, contudo, a probabilidade de
desconhecimento, invisibilidade ou mesmo de desrespeito às diferenças e
vulnerabilidades, é fato que não escapou da atenção do legislador constituinte,
que contemplou desde logo alguns grupos com normas próprias. Nesse
sentido, o elenco dos direitos fundamentais constantes da Lei Maior reafirma
serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo
vedada qualquer forma de tratamento desumano ou degradante, mas proíbe
particularmente qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de
admissão do trabalhador portador de deficiência (art. 5º, III e 6º, XXXI).
As pessoas com deficiência, além dos incisos já citados, receberam trata
mento na Constituição de 1988, no que respeita: à reserva de percentual dos
cargos e empregos públicos (art. 37, VIII); à adoção de requisitos e critérios di
ferenciados para a concessão de aposentadoria (art. 40, §4º, I e 201, §1º); à
assistência social com o objetivo de habilitação, reabilitação e promoção de sua
integração à vida comunitária (art. 203, IV); à garantia de um salário mínimo de
benefício mensal, desde que comprovem não possuir meios de prover a própria
ma nutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (art.
203, V); à garantia de atendimento educacional especializado,
preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208, III); à garantia de acesso
adequado a logradouros e edifícios de uso público e a veículos de transporte
coletivo, a depender de dispo sições legais infraconstitucionais (art. 227, §2º e
244).
Não obstante sua inegável importância, tais disposições têm feição assis
tencial e se encontram voltadas para a integração das pessoas com deficiência
à vida comunitária. O exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança e o bem-estar dessas pessoas careciam, porém, de outras medidas
mais efetivas para seu pleno desenvolvimento individual.
Mais do que integrar é preciso incluir as pessoas com deficiência na so
ciedade. Essa constatação foi feita desde a década de 1990, especialmente no
campo da Educação, no qual as pessoas com deficiência eram designadas
como “pessoas com necessidades especiais” (PNE), expressão que traduz a
ideia de integração que orientava à época o tratamento da questão.
Como esclarecem José Francisco Chicon e Jane Alves Soares, em
meados do século XX (1950), houve um movimento que tendia a aceitar as
pessoas, então

3
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, julg. em 8 mai.2008,
publ. 17 out. 2008. Disponível: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp>. Acesso em:
16 jan. 2017.

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denominadas “portadoras de deficiência”, para integrá-las o “tanto quanto possí


vel” à sociedade. Sob essa ótica, era necessário criar condições de vida para
que a pessoa com deficiência se adequasse às condições normais da
sociedade em que vivia. Pensada inicialmente para as pessoas com deficiência
intelectual ou men tal, a ideia se expandiu para todas as pessoas com
“necessidades especiais”, consagrando-se assim o princípio da normalização,
o qual tornaria “acessíveis às pessoas socialmente desvalorizadas condições e
modelos de vida análogos aos que são disponíveis de um modo geral ao
conjunto de pessoas de um dado meio ou sociedade”.4
Por meio da integração buscava-se o fim da prática de exclusão social que
atingiu durante séculos as pessoas com deficiência. A exclusão significava o ba
nimento total dessas pessoas de qualquer atividade social, por serem considera
das inválidas, incapazes de trabalhar, portanto sem utilidade para a sociedade.
O processo de integração objetivava incorporar física e socialmente as pessoas
com deficiência e oferecer-lhes os instrumentos existentes para o exercício da
cidadania. Sem embargo desse objetivo, o qual tinha sem dúvida propósitos
bem intencionados, verifica-se que a integração dependia da capacidade de
adaptar-se ao meio, de superar as barreiras físicas, programáticas e atitudinais
presentes na sociedade que permanecia inerte.5 Nesta perspectiva, as pessoas
com deficiência seriam especiais e deveriam se “normalizar” o quanto possível,
vale dizer, se adaptar à “normalidade”. Essa noção transparece do disposto no
art. 203, IV, da Constituição da República, acima citado.
Em 1994 houve mudança de perspectiva em matéria de Educação voltada para
a inclusão em lugar da integração, assumindo-se que “as diferenças huma nas
são normais e que, em consonância com a aprendizagem de ser adaptada às
necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança às assunções pré
concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem”.6
A inclusão, embora não seja incompatível com a integração, dela se distin
gue por chamar a sociedade à ação, isto é, por exigir que a sociedade se
adapte
4
CHICON, José Francisco; SOARES, Jane Alves. Compreendendo os Conceitos de Integração e Inclusão.
Disponível:
<http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/textos/compreendendo-
os conceitos-de-integracao-e-inclusao/>. Acesso em: 10 jan. 2017.
5
CHICON, José Francisco; SOARES, Jane Alves. Compreendendo os Conceitos de Integração e Inclusão.
Disponível:
<http://www.todosnos.unicamp.br:8080/lab/links-uteis/acessibilidade-e-inclusao/textos/compreendendo-
os conceitos-de-integracao-e-inclusao/>. Acesso em: 10 jan. 2017.
6
Em 1990, aconteceu a Conferência Mundial sobre Educação para Todos e, em junho de 1994, na
Espanha, ocorreu a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais: Acesso e
Qualidade. Nesta conferência reuniram-se mais de 300 representantes de 92 governos e 25
organizações internacionais, sendo firmada a Declaração de Salamanca, sobre Princípios, Políticas e
Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, sendo assumida nova perspectiva,
conforme item 4 da Declaração. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2017.

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para acolher as pessoas com deficiência. De acordo com Romeu Kazumi


Sassaki, a inclusão pode ser conceituada como:

(...) o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir,


em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades es
peciais e, simultaneamente estas se preparam para assumir seus
papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um
processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a
sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir
sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para
todos.7

Diferentemente da integração, a inclusão institui a inserção de uma forma


mais radical, completa e sistemática, cuja meta primordial é a de não deixar nin
guém no exterior do ensino regular, desde o começo. As necessidades de todos
os alunos devem ser atendidas por um sistema educacional que é estruturado
em virtude dessas necessidades. “A inclusão causa uma mudança de
perspectiva educacional, pois não se limita a ajudar somente os alunos que
apresentam difi culdades na escola, mas apoia a todos: professores, alunos,
pessoal administra tivo, para que obtenham sucesso na corrente educativa
geral”.8
Segundo Romeu Kazumi Sassaki, “o pano de fundo do processo de
inclusão é o Modelo Social da Deficiência”, que requer se entenda a questão
da deficiência por outra ótica. De acordo com o autor, “para incluir todas as
pessoas, a socie dade deve ser modificada a partir do entendimento de que ela
é que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros”.9
Destaca o autor, em fins do século XX, que durante o período de transição
entre a integração e a inclusão é inevitável a utilização de ambos os termos,
ainda que com sentidos distintos, ou seja, para indicar as diferentes situações
por eles designadas.10
A trajetória da integração para a inclusão é bem identificada na área da
Educação e muito auxilia a compreensão da mudança de perspectiva no
tratamen to da deficiência. Contudo, o “ponto de mutação” na matéria pode ser
identificado na adoção pela Assembleia Geral da ONU, em 13 de dezembro de
2006, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD).11

7
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997,
p. 41. 8 MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ser ou estar, eis a questão: explicando o déficit intelectual. Rio de
Janeiro: WVA, 1997, p. 145.
9
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos, cit., p. 41. 10 SASSAKI,
Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos, cit., p. 43. 11 A Convenção foi adotada
em 13.12.2006 (A/RES/61/106) e aberta para assinatura em 30.03.2007. Entrou
em vigor em 03.05.2008. Sobre a Convenção ver: <https://www.un.org/development/desa/disabilities/
convention-on-the-rights-of-persons-with-disabilities/the-10th-anniversary-of-the-adoption-of-conventio
n-on-the rights-of-persons-with-disabilities-crpd-crpd-10.html#background>. Acesso em: 12 jan. 2017.

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Trata-se da primeira convenção do século XXI sobre direitos humanos e a


oitava da ONU. De início, há três destaques que devem ser feitos em relação à
Convenção: a) sua elaboração contou com significativa participação da
sociedade civil, no tadamente de Organizações Não Governamentais (ONGs), e
representações de pessoas com deficiência; b) seu propósito é proteger e
assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o
respeito pela sua dignidade inerente, portanto, inscrever a questão da
deficiência na pauta dos direitos humanos; c) a franca adoção do “modelo
social” de deficiência, o que altera total e profundamen te o entendimento e o
tratamento legislativo da matéria.
Um dos primeiros reflexos da nova perspectiva adotada se encontra no Manual
elaborado em 2007 pelo Ministério do Trabalho e Emprego, anterior à ratificação
da Convenção pelo Brasil. Embora tivesse como objetivo facilitar o
cumprimento das normas relativas a cotas obrigatórias de trabalhadores com de
ficiência, o Manual visava expressamente à inclusão de pessoas com
deficiência no mercado de trabalho. Em sua apresentação se reconhece
expressamente que o processo de exclusão, historicamente imposto às
pessoas com deficiência, deve ria ser superado por intermédio da
implementação de políticas afirmativas e “pela conscientização da sociedade
acerca das potencialidades desses indivíduos”.12 O Manual, mesmo tendo sido
criado na fase de transição e orientado pelo processo de integração, já
considerava a sociedade como parte do processo de inclusão.
Indispensável destacar que deficiência não deve ser tratada como uma
ques tão de minorias. De acordo com o relatório mundial sobre deficiência, 15%
da po pulação mundial, cerca de um bilhão de pessoas, tem algum tipo de
deficiência.13 Em 2010, no Brasil cerca de 24% da população, algo em torno de
46 milhões de
pessoas,14 se enquadravam nessa categoria. Sobre o assunto, bastante
significa tivo o que afirma a Organização Mundial de Saúde (OMS):

A deficiência é parte da condição humana – quase todos nós


estaremos temporária ou permanentemente incapacitados em
algum momento da vida, e aqueles que alcançarem uma idade
mais avançada experimen tarão crescentes dificuldades em sua
funcionalidade. A deficiência é

12
A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. 2. ed., Brasília: MTE, SIT, 2007. 13
Dados que tomam como base as estimativas da população mundial de 2010. Informações extraídas do
Relatório da Organização Mundial de Saúde (WHO) sobre pessoas com deficiência. Tradução disponível
em:
<http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/RELATORIO_MUNDIAL_COMPLETO.
pdf>. Acesso em: 23 ago. 2015.
14
Disponível: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-06-29/pessoas-com-deficiencia-repre
sentam-24-da-populacao-brasileira-mostra-censo>. Acesso em: 10 jan. 2017.

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complexa, e as intervenções para superar as desvantagens associa


das a deficiência são múltiplas e sistêmicas – variando de acordo
com o contexto.15

2 Efeitos da adoção do modelo social de deficiência


O Brasil aderiu à Convenção em 2007, a qual foi ratificada pelo Congresso
Nacional em 09 de julho de 2008, conforme Decreto Legislativo nº 186, e pro
mulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Já se encontra desde
então formalmente incorporada, com força, hierarquia e eficácia constitucionais,
ao plano do ordenamento positivo interno do Estado brasileiro, nos termos do
art. 5º, §3º, da Constituição Federal.
Como já salientado, a Convenção deve ser considerada um marco histó
rico na evolução do entendimento destinado à deficiência, ao configurá-la sob
perspectiva inédita. Convém lembrar que o entendimento da deficiência16 adotou
através dos séculos, pelo menos, três modelos distintos. O primeiro, designado
“modelo moral”, vigente na antiguidade, foi cunhado sob o viés bíblico,
designado por Agustina Palacios de “modelo da prescindibilidade”, o qual se
caracteriza por uma justificação religiosa da deficiência e pela percepção de
que a pessoa com deficiência nada tem a contribuir para a comunidade, é um
indivíduo improdutivo, verdadeira carga a ser arrastada pela família ou pela
sociedade. Nessa visão, as causas da deficiência são um castigo dos deuses
por uma falha a moral, um pe
cado cometido pelos pais da pessoa com deficiência ou uma advertência
quanto à proximidade de uma catástrofe.17

15
Dados que tomam como base as estimativas da população mundial de 2010. Informações extraídas do
Relatório da Organização Mundial de Saúde (WHO) sobre pessoas com deficiência. Tradução
disponível em:
<http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/RELATORIO_MUNDIAL_COMPLET
O. pdf>. Acesso em: 2 dez. 2016.
16
Adota-se aqui o entendimento de SASSAKI, Romeu Kazumi. Deficiência Mental ou Intelectual? Doença
ou Transtorno Mental? Atualizações semânticas na inclusão de pessoas. Revista Nacional de
Reabilitação, São Paulo, ano IX, n. 43, mar./abr. 2005, p. 9-10. Segundo o autor: “Consideremos, em
primeiro lugar, a questão do vocábulo deficiência. Sem dúvida alguma, a tradução correta das palavras
(respectivamente, em inglês e espanhol) “disability” e “discapacidad” para o português falado e escrito
no Brasil deve ser
deficiência. Esta palavra permanece no universo vocabular tanto do movimento das pessoas com
deficiência como dos campos da reabilitação e da educação. Trata-se de uma realidade terminológica
histórica. Ela denota uma condição da pessoa resultante de um impedimento (“impairment”, em
inglês). Exemplos de impedimento: lesão no aparelho visual ou auditivo, falta de uma parte do corpo,
déficit intelectual”. Disponível:
<http://www.planetaeducacao.com.br/portal/impressao.asp?artigo=1321>. Acesso em: 15 jan. 2017.
17
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la
Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Cermi. Madrid:
Cinca, 2008, p. 37.

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O segundo, que decorre dos padrões científicos da modernidade,


designado “modelo médico”, encara a deficiência como condição patológica, de
natureza individual. Desse modo, a pessoa deveria ser tratada através de
intervenções médicas, ser “reparada”, para tornar-se o quanto possível
“normal”. Esse modelo, denominado “modelo reabilitador”, tem como
características principais a substi
tuição da divindade pela ciência e a admissão da possibilidade de algum aporte
para a sociedade por parte da pessoa com deficiência, na medida em que
sejam “reabilitadas” ou “normalizadas”. A pessoa com deficiência poderia
tornar-se “ren tável” socialmente desde que conseguisse assemelhar-se às
demais pessoas vá lidas e capazes, o máximo possível. As deficiências, à luz
da ciência, decorrem de causas naturais e biológicas e são situações
modificáveis, havendo possibilidade de melhoramento da qualidade de vida das
pessoas afetadas. Nessa perspectiva, desenvolveram-se os meios de
prevenção, tratamento e reabilitação, que acaba ram vinculados à compreensão
de integração,18 como, aliás, se vê do art. 203, IV, da Constituição brasileira,
acima citado.
Se, por um lado, os tratamentos médicos permitiram melhor qualidade de
vida e maior sobrevivência principalmente para as crianças, por outro o foco se
voltava para as funções que as pessoas com deficiência não podem realizar,
sen do muito subestimadas suas aptidões. Se isso não ocorresse, muitas
pessoas com deficiência estariam plenamente aptas a trabalhar. A
subestimação gera uma atitude paternalista, centrada nos déficits dessas
pessoas (e não em suas poten cialidades), consideradas com menos valor do
que as demais (válidas e capazes). Em consequência, sua sobrevivência
depende da seguridade social e do emprego protegido, que seriam em muitos
casos dispensáveis se não houvesse essa dis criminação pela sociedade. Não
obstante a assistência social, as vicissitudes do modelo anterior perduram e
muitas pessoas com deficiência se tornam objeto de diversão, como única
opção para sobreviver.19
Esse modelo reabilitador, a despeito dos benefícios que pode
proporcionar, foi alvo de críticas especialmente na década de 1960, em razão
da “obstinação” em realizar intervenções para tornar o indivíduo “normal”. A
discriminação, contu do, na maioria das vezes se mantinha e, principalmente, o
ambiente que o cercava permanecia intacto: o problema continuava sendo da
pessoa com deficiência e a sociedade se mantinha inerte e imutável.
Este o cenário ainda existente quando da aprovação do EPD em 2015, lei
elaborada sob os ditames da CDPD, vale dizer das normas constitucionais
sobre os direitos das pessoas com deficiência, e à luz do modelo social
estampado em seu Preâmbulo, segundo o qual:

18
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 67.
19
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 68.

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e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e


que a deficiência resulta da interação entre pessoas com
deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que
impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas.

Nestes expressos termos se inicia a implementação do modelo social no


Brasil. Como relata Agustina Palacios, o novo modelo surge em fins da década
de 1970, nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde existia ampla tradição de
campanhas políticas por direitos civis, como resultado do ativismo das próprias
pessoas com deficiência, principalmente as que se encontravam em instituições
residenciais, que não mais admitiam serem consideradas como “cidadãos de se
gunda classe”. As atividades dessas pessoas impulsionaram mudanças
políticas que reorientaram a atenção para o impacto das barreiras sociais e
ambientais, como o transporte, a falta de acesso a prédios, as atitudes
discriminatórias e os estereótipos culturais negativos que as tornavam
inválidas. A participação política das pessoas com deficiência e suas
organizações abriu um novo caminho na área dos direitos civis e de leis
antidiscriminação.20
O emergente “movimento de direitos das pessoas com deficiência” ganhou
força ao conjugar-se com a luta por direitos civis das pessoas negras e com as
ações políticas de massas. Além disso, reproduziu as “pedras angulares” da so
ciedade americana – capitalismo de mercado, independência e liberdade
política e econômica – com foco no movimento de “vida independente”.
Acentuaram-se, em consequência, o apoio mútuo, a “desmedicalização” e a
“desinstitucionali zação”, que se opunham ao domínio profissional e à provisão
burocrática dos serviços sociais e sua escassez, quando se demandavam
oportunidades para que as pessoas com deficiência desenvolvessem seus
próprios serviços no mercado, que incluíam a reabilitação orientada para e por
seus próprios objetivos, métodos e direção. O controle passaria para o
consumidor desses serviços, em claro con traste com os métodos tradicionais
dominantes. Paralelamente, no Reino Unido, o movimento se concentrou em
mudanças na política social e na legislação de direitos humanos,
mobilizando-se inicialmente contra a categorização tradicional como um grupo
vulnerável necessitado de proteção.21 O movimento reivindicava, ainda, o direito
de definir suas próprias necessidades e serviços prioritários e se proclamava
contrário à dominação tradicional dos provedores de serviços. Como assinala
Agustina Palacios, a despeito das diferenças relativas à sua origem e

20
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., pp. 106-107.
21
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., pp. 107-108.

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Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência

justificação, os modelos inglês e norte-americano apresentavam semelhanças e


muito influíram no âmbito internacional, podendo o movimento de vida indepen
dente ser considerado o antecedente imediato do modelo social, que seguiu seu
próprio rumo.22
O dispositivo do Preâmbulo da CDPD acima transcrito contém os
elementos que configuram o novo modelo. Conforme Romeu Kazumi Sassaki,
os problemas das pessoas com deficiência não estão nelas tanto quanto estão
na sociedade, que é chamada em razão dos problemas que cria para essas
pessoas, “causando
lhes incapacidade (ou desvantagem) no desempenho de papéis sociais” em
virtu de das barreiras que impedem o acesso a serviços, lugares, informações e
bens necessários ao desenvolvimento de suas potencialidades.23 Em outras
palavras, a deficiência é um problema social, que exige intervenções na
sociedade; as causas da deficiência não são religiosas, nem somente médicas
– são predominantemen te sociais. As raízes dos problemas não são as
restrições ou faltas (diferenças) individuais, mas as limitações ou impedimentos
impostos pela sociedade que não tem os meios/serviços/instrumentos
adequados para que essas pessoas sejam consideradas incluídas na
sociedade.
O primeiro, se não o mais importante, efeito da adoção do modelo social
consiste em promover a inversão da perspectiva na apreciação da deficiência,
que deixa de ser uma questão unilateral, do indivíduo, para ser pensada,
desenvolvida e trabalhada como relação bilateral, na qual a sociedade torna-se
efetivamente protagonista, com deveres jurídicos a cumprir. Na linha da CDPD,
fica claro ser a deficiência resultante da interação entre um impedimento
pessoal e uma barreira existente na sociedade, como se constata do art. 2º, da
Lei 13.146/2015:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem


impedi mento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual
ou sen
sorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em
igualdade de condi ções com as demais pessoas.

O segundo, e não menos importante efeito, verifica-se na configuração da


citada relação bilateral de interação como se vê ao longo do texto legal, de que
são exemplos os arts. 1º e 3º. O EPD tem o objetivo expresso de assegurar e
promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades

22
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 108.
23
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos, cit., pp. 44-45.

Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017
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fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidada nia. Constitui, portanto, o instrumento principal de efetivação do modelo
social, ao convocar instituições públicas e privadas para o processo de
inclusão.
Do mesmo modo são chamados todos os setores da sociedade, de modo
coletivo ou individual. É o que se constata das definições ali estabelecidas para
fins de aplicação do EPD, que delineiam os contornos da interação exigida,
espe cialmente considerando como barreiras qualquer entrave, obstáculo,
atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da
pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à
acessibilidade, à liberdade de mo vimento e de expressão, à comunicação, ao
acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança (art. 3º, IV).
A relação é meramente exemplificativa, cabendo destacar, dentre a
classificação constante do referido dispositivo legal, a referência a “barreiras
atitudinais”, entendidas como atitudes ou comportamentos que impeçam ou
prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de
condições e oportunidades com as demais pessoas (art. 3º, IV, e).
Como decorrência necessária do primeiro efeito acima mencionado,
merece destaque a afirmação da capacidade civil das pessoas com deficiência
para o exercício de direitos existenciais, como casar, ter filhos, como prevê o
art. 6º, pre servando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à
privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, mesmo em caso de
curatela, que passa a constituir medida extraordinária, a exigir explicitação das
razões e motivações na sua definição por sentença (art. 85, §1º).

3 O reconhecimento como fator indispensável à inclusão


O modelo social implica a necessidade de reconhecimento, como
concebido por Charles Taylor,24 para quem o “reconhecimento não é somente
uma cortesia que devemos às pessoas, ele é uma necessidade humana vital”.
Para Taylor, “a negação do reconhecimento não corresponde somente a uma
demonstração de desrespeito, pois ela tem uma consequência grave que é a
de diminuir a capaci
dade que a pessoa, ou grupo de pessoas, que é objeto dessa negação, tem de
construir sua autoestima”.25

24
“O reconhecimento entrou no discurso filosófico na obra de Hegel, mas acabou preterido. Atribui-se a
Charles Taylor o resgate do conceito em sua obra The politics of recognition” (ASSY, Bethânia; FERES
JUNIOR, João. Reconhecimento. In: BARRETO, Vicente de Paulo (Coord.). Dicionário de Filosofia do
Direito. São Leopoldo, RS: Unisinos, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 705-710).
25
TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: Multiculturalism: examining the politics of recognition.
New Jersey: Princeton, 1994, p. 25. Disponível em:
<http://elplandehiram.org/documentos/JoustingNYC/ Politics_of_Recognition.pdf>. Acesso em: 30 nov.
2016.

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Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência

De acordo com Charles Taylor, a demanda por reconhecimento em alguns


casos é urgente, visto que:

(...) as presumíveis ligações entre o reconhecimento e identidade,


designando este último termo algo como o entendimento que as
pessoas tem de quem são, de suas características definidoras fun
damentais como um ser humano. A tese é que nossa identidade é
parcialmente definida pelo reconhecimento ou sua ausência,
frequen temente pelo falso reconhecimento (misrecognition) dos
outros, e as sim a pessoa ou grupo de pessoas pode sofrer dano
real, deturpação (distortion) efetiva, se as pessoas ou a sociedade
que os circunda lhes reflete uma imagem limitada, humilhante ou
desprezível deles próprios. O não reconhecimento ou o falso
reconhecimento pode in fligir dano, pode ser uma forma de
opressão, encarcerando alguém num falso, distorcido e reduzido
modo de ser.26

Como esclarecem Bethânia Assy e João Feres Junior, o termo “reconheci


mento”, em sua concepção filosófica é de origem alemã e tem na linguagem
atual “sentido estritamente cognitivo: identificação de pessoa, coisa ou
característica por saber prévio, seja ele produto de experiência direta ou não”.
Destacam os autores que todos os significados de reconhecimento extrapolam
o plano mera mente cognitivo. Assim, reconhecer pode significar desde notar a
presença de outra pessoa por sinais corporais, como também quer dizer
“honrar alguém por seu valor”, como ocorre com o reconhecimento público de
um grande cientista. O conceito filosófico de reconhecer carrega esses
significados e não se refere apenas à simples identificação cognitiva de uma
pessoa, pois tem como premissa desse ato a “atribuição de um valor positivo a
essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito”.27 Efetivamente,
como sintetiza Daniel Sarmento: “o olhar do outro nos constitui”.28
Nessa linha, é cabível afirmar que o “reconhecimento jurídico funciona como
proteção social para a dignidade humana”, na medida em que “a dignidade é jus
tamente a concessão efetiva de direitos no qual o sujeito se vê reconhecido
como membro de uma sociedade”.29 Desse modo, “nossa auto-realização
prática se concebe a partir de um reconhecimento recíproco normativo de
nossos parceiros de interação”. Nesse processo, atualmente, o “prestígio
social” ou “reputação
26
TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition, cit., p. 25. Tradução livre.
27
ASSY, Bethânia; FERES JUNIOR, João. Reconhecimento, cit., pp.705-710.
28
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana. Belo Horizonte: Fórum, 2016, pp. 241-278.
29
MEAD, George Herbert, apud ASSY, Bethânia; FERES JUNIOR, João. Reconhecimento, cit., p.
709.

Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017
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Heloisa Helena Barboza, Vitor de Azevedo Almeida Junior

social” torna-se a medida do reconhecimento público,30 e acaba por influenciar


decisivamente na formação do autorrespeito.
O reconhecimento apoia-se numa visão de sociedade “amigável às diferen
ças”, na qual a “assimilação às normas da maioria ou da cultura dominante não
é mais o preço do respeito igualitário”. Nancy Fraser expõe a tensão atualmente
existente entre os defensores da linhagem filosófica da redistribuição e do re
conhecimento, ressaltando a polarização em razão da dissociação, em alguns
casos, entre as lutas reivindicatórias de ambos os lados. A aparente antítese
entre os proponentes da redistribuição e do reconhecimento, amparados em
argu mentos binários como política de classe versus política de identidade e
multicultu ralismo versus igualdade social, são refutados pela autora, para quem
a “justiça, hoje, requer tanto redistribuição quanto reconhecimento”. A
complementariedade entre igualdade social e reconhecimento da diferença
impõe a construção de um conceito amplo de justiça.31
Nancy Fraser propõe, ainda, o rompimento com o modelo padrão de reco
nhecimento, que o identifica com a identidade cultural específica de um grupo.
Sustenta, portanto, tratar o “reconhecimento como uma questão de status so
cial”, eis que “o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um
grupo, mas a condição dos membros do grupo como parceiros integrais na in
teração social”. Nesse sentido e por via de consequência, entende que o não
reconhecimento “não significa depreciação e deformação da identidade de
grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no sentido de ser privado
de par ticipar como um igual na vida social”.32 O objetivo desse novo modelo de
status preconizado se assenta na premissa de “desinstitucionalizar padrões de
valora ção cultural que impedem a paridade de participação e substituí-los por
padrões que a promovam”. A ideia central é superar a subordinação do sujeito
vulnerado, tornando-o um “parceiro integral na vida social, capaz de interagir
com os outros como um par”.33
Charles Taylor e Axel Honneth compreendem o reconhecimento como um
problema relacionado ao campo da ética, ou seja, a negação do
reconhecimento induziria a uma “subjetividade prejudicada e a uma
auto-identidade danificada”. Nesse ponto, Nancy Fraser diverge dos dois
teóricos acima mencionados, pois
30
Axel Honneth identifica a mudança histórica do conceito de honra, que baseava a noção de “estima so
cial”, considerada uma etapa do reconhecimento, para sua variação moderna: o “prestígio social”. A
honra passa, desse modo, à esfera privada (Apud ASSY, Bethânia; FERES JUNIOR, João.
Reconhecimento, cit., p. 709).
31
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, São Paulo, 70, 2007, p.
101-103. 32 FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 107.
33
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 109.

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Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência

concebe o reconhecimento como uma questão de justiça. Para a autora, “é


injusto que, a alguns indivíduos e grupos, seja negada a condição de parceiros
integrais na interação social, simplesmente em virtude de padrões
institucionalizados de valoração cultural”. Desse modo, a subordinação
institucionalizada de status constitui uma “séria violação de justiça”.34
Nessa linha, defende Nancy Fraser que o “não reconhecimento é uma
ques tão de impedimentos, externamente manifestados e publicamente
verificáveis, a que certos indivíduos sejam membros integrais da sociedade”.35
A partir disso, adota-se um modelo abrangente e inclusivo de justiça que
abarca as dimensões da redistribuição e do reconhecimento, não em um
sentido de contrariedade, mas sim de complementariedade, como dito.
Segundo a autora, a paridade de partici pação é o núcleo central do seu modelo
formulado, sendo que a “justiça requer arranjos sociais que permitam a todos
os membros (adultos) da sociedade intera gir uns com os outros como
parceiros”.36
Nesses termos, a paridade de participação somente deve satisfazer duas
condições, denominadas, por Nancy Fraser, de condição objetiva e condição
inter subjetiva. Em primeiro lugar, a “distribuição dos recursos materiais deve
dar-se de modo que assegure a independência e voz dos participantes” –
condição objetiva. Em seguida, a paridade participativa requer que “os padrões
institucionalizados de valoração cultural expressem igual respeito a todos os
participantes e assegurem igual oportunidade para alcançar estima social”.37
Indispensável notar que ambas as condições mencionadas são necessárias
para o efetivo alcance da paridade de participação. Por isso, afirma-se que
“uma concepção ampla de justiça, orientada pela norma de paridade
participativa, inclui tanto redistribuição quanto reconheci
mento, sem reduzir um ao outro”.38
As breves considerações acima permitem constatar que, nesses termos, além
de constituir mais uma das fontes de legitimação, o reconhecimento é um fator
indispensável, se não determinante, a ser considerado no processo de inclu são
social das pessoas com deficiência. Nesse sentido, o reconhecimento assu me
papel indeclinável no combate à discriminação, entendida no EPD como toda
forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o pro
pósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o
exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com
deficiência, incluindo a

34
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., pp. 111-112.
35
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 114.
36
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 118.
37
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 119.
38
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?, cit., p. 120.

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recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas


(art. 4º, §1º). Conforme já visto, o objetivo primordial do EPD é exatamente
assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e
das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua
inclusão social e cida
dania. O art. 1º do diploma protetivo já declina que é a paridade participativa
que permite a inclusão social e pleno exercício da cidadania.

4 Desafios jurídicos à efetividade da inclusão


Na trajetória das desigualdades no mundo social, observa-se que as múlti
plas assimetrias contemplam um fenômeno muito mais complexo do que
apenas sua dimensão monetária. A compreensão das desigualdades – termo
aqui enten dido no plural – requer um exame de suas múltiplas dimensões,
derivadas em razão da origem, raça, sexo, cor, idade ou algum “impedimento
de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em
interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art.
2º, EPD), entre outras for mas constatadas. Emerge, desse modo, a especial
vulnerabilidade das pessoas com deficiência, que vivenciam situações de
descaso, discriminação e exclusão de toda sorte ao longo da história, como já
visto.
Sem embargo, as pessoas com deficiência formam um dos grupos social e
economicamente mais excluídos39 e vulneráveis, o que se conclui a partir de sua
sobrerrepresentação entre as camadas mais pobres da população.40 Aponta-se
que a relação entre deficiência e pobreza é biunívoca, “o que revela um círculo
vicioso de reprodução entre a pobreza e as deficiências”.41 A associação entre
deficiência e mobilidade social descendente e de empobrecimento é recorrente,
“sobretudo devido ao preconceito e à discriminação que geram exclusão social”.

39
V., por todos, na literatura internacional: BERESFORD, Peter. Poverty and Disabled People: Challenging
Dominant Debates and Policies. In: Disability & Society, v. 11, n. 4, 1996, pp. 553 -567. 40 Durante a 9ª
sessão da Conferência dos Estados Partes da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência
(CDPD), realizada em 14 de junho de 2016, foi divulgado que alguns “estudos apontam que pessoas com
deficiência são mais propensas a experimentar a pobreza e essa condição social também aumenta a
incidência de problemas de saúde. Em todo o mundo, 20% das pessoas mais pobres têm algum tipo de
deficiência e 80% das pessoas com deficiência vivem em países em desenvolvimento” (Informação
disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-inclusao-de-pessoas-com-deficiencia-e-funda
mental-para-a-implementacao-da-agenda-2030/>. Acesso em: 13 dez. 2016).
41
Mais Qualidade de Vida para as Pessoas com Deficiências e Incapacidades – Uma Estratégia para
Portugal. Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) e Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empre sa (ISCTE), 2007, p. 23. Disponível em:
<http://www.crpg.pt/estudosProjectos/Projectos/modelizacao/
Documents/Mais_qualidade_de_vida.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2016.

32 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017
Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência

Afirma-se, por outro lado, que a pobreza, por si só, é um fator de “produção de
deficiências e incapacidades”, em razão das características como o meio onde
as pessoas convivem, o déficit informacional, as condições insalubres de
habitação, estilos de vida e padrões de consumo que envolva comportamento
de risco, incipi
ência de práticas de prevenção e fraca incidência de cuidados de saúde.42 A
promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, expressão legal da
Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência acolhida como emenda
consti tucional em nosso ordenamento, desafia uma cultura ainda vigente no
país que é a invisibilidade, na medida em que essas pessoas têm seus direitos
sistematica mente desrespeitados, inclusive pelo próprio Poder Público, que
num círculo vicio so de omissão, mantém esse grupo vulnerado à margem da
proteção legalmente estabelecida. Insta consignar que antes da aprovação da
Lei Brasileira de Inclusão já vigoravam leis voltadas à tutela dos direitos das
pessoas com deficiência, de que são exemplos as Leis nº 7.853, de 24 de
outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de
deficiência e sua integração social, e nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que trata
da proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Observa-se que apesar do
manto protetivo das leis citadas, entre outras, ainda em vigor, o que se verifica
é o contínuo desrespeito ao disposto nessas normas.
Depreende-se, portanto, que o desafio na tutela integral das pessoas com
deficiência reside na ineficácia social das normas que decorre em boa medida
de sua invisibilidade e não reconhecimento, eis que desde a década de 1980 já
existe legislação específica, mas a situação pouco avançou na defesa dos
direitos desse grupo vulnerável. De início, convém ressaltar que a promulgação
do EPD possui forte valor simbólico e pedagógico, eis que substitui o modelo
da integra
ção pelo paradigma da inclusão social, que visa concretizar a igualdade
material, a fim de assegurar, com paridade de oportunidade, o direito à saúde,
educação, lazer, transporte, moradia, trabalho, entre outros. Há que se
ressaltar ainda que a adoção do modelo social de deficiência, deixando no
passado o entendimento patologizante, é um importante passo rumo à
efetividade da tutela da pessoa com deficiência, além de colaborar para a
mudança de percepção da sociedade em relação a esse grupo populacional.
Apesar dessas considerações, é forçoso reconhecer que a Convenção e o
Estatuto apresentam feição repetitiva, por vezes insistente em certos aspectos.

42
Mais Qualidade de Vida para as Pessoas com Deficiências e Incapacidades – Uma Estratégia para
Portugal. Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) e Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empre sa (ISCTE), 2007, p. 23 (Disponível em:
<http://www.crpg.pt/estudosProjectos/Projectos/modelizacao/
Documents/Mais_qualidade_de_vida.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2016).

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Diversos dos princípios e disposições neles estampados já se encontram incluí


dos, de modo expresso ou implícito na Constituição da República e na
legislação infraconstitucional, conforme visto. Esta situação de “indiferença”
diante de práti cas que afrontam mandamentos legais, infelizmente muito
frequentes no campo da saúde mental, foi bem percebida por Michael L.
Perlin,43 no que denominou sanism, que consiste num “preconceito irracional”,
da mesma qualidade e caráter de outros preconceitos irracionais que “causam
(e estão refletidos em) atitudes sociais predominantes de racismo, sexismo,
homofobia, e intolerância étnica”, baseados predominantemente em
estereótipos, mitos, superstições, que se sus tentam e perpetuam pelo uso da
alegação do “senso comum”, numa “reação
inconsciente a eventos tanto na vida cotidiana como nos processos legais”.
Serve de exemplo desse tipo de conduta social “indiferente” (e seus efei tos) o
ocorrido durante mais da metade do século passado no manicômio de
Barbacena, onde se encontravam em condições subumanas, só comparáveis
às dos campos de concentração, crianças, mulheres e homens, com problemas
men tais ou não, submetidos ao abandono, maus-tratos e até tortura.44 Não há
qual quer explicação aceitável para tal fato, salvo a indiferença e invisibilidade
em geral mantida pela sociedade em relação às pessoas com deficiência,
especialmente os que apresentam deficiência mental.
Situações mais sutis de indiferença e invisibilidade podem ser sentidas,
por exemplo, no mercado de trabalho e mesmo na área esportiva. A Lei n.
8.213, de 24 de junho de 1991, denominada de Lei da Previdência Social,
estabelece em seu art. 93 o percentual de vagas que devem ser garantidas
pelas empresas a beneficiários reabilitados e pessoas com deficiência,
habilitadas, chegando a um máximo de 5% caso haja mais de 1.001
funcionários. O dispositivo mencionado ficou conhecido como Lei de Cotas.
Apesar do comando legal, observa-se na rea
lidade o seu reiterado descumprimento.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social
(MTPS) divulgados em 2016, caso as empresas cumprissem a Lei de Cotas,
pelo menos, 827 mil postos de trabalho estariam disponíveis. Entretanto, pouco
mais de 381 mil vagas foram criadas. Observa-se ainda que é bastante comum
que as empre
sas somente contratem após a imposição de multas pelos órgãos responsáveis.
A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Ministério da Saúde, demonstra que as
pessoas com pelo menos uma deficiência recebem 11,4% a menos do que as
sem deficiência.45

43
PERLIN, Michael L. International human rights mental disability law. Oxford: Oxford Univ. Press, 2012, p.
34. 44 V. ARBEX, Daniela. Holocausto brasileiro, São Paulo: Geração Editorial, 2013.
45
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/07/lei-de-cotas-para-pessoas-com
deficiencia-completa-25-anos>. Acesso em: 14 fev. 2017.

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Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência

Além disso, estudos ainda comprovam que “as pessoas com deficiência estão
sendo subaproveitadas”,46 demonstrando uma realidade repleta de obstáculos
para o pleno acesso de pessoa com deficiência ao mercado de trabalho em pari
dade de oportunidades.
A realização de dois grandes eventos esportivos na cidade do Rio de
Janeiro no ano de 2016 demonstrou, mais uma vez, a indiferença em relação
às pessoas com deficiência. Nos Jogos Paralímpicos, diferente das
Olimpíadas, foi grande a dificuldade para a venda de bilhetes – apesar de mais
baratos – e a obtenção de patrocínios.47
Diante desse quadro, realça-se a função promocional48 do EPD e da Con
venção, na medida em que a promulgação de uma lei geral sobre os direitos da
pessoa com deficiência, que reflete normas constitucionais incorporadas após a
internalização do CPDP, desafia intérpretes e operadores do direito, bem como
as instituições competentes, a transformarem a atual “cultura de indiferença”
causada pela invisibilidade e exclusão das pessoas com deficiência em nossa
sociedade. Para tanto, é preciso celebrar as diferenças e valorizar a diversidade
humana, de modo a beneficiar toda a sociedade que passa a conviver com dife
rentes visões de mundo.
Nesse sentido, indispensável promover a autonomia da pessoa com defi ciência
para decidir sobre sua própria vida e para isso se centrar na elimina ção de
qualquer tipo de barreira, para que haja uma adequada equiparação de
oportunidades. Isso provoca o empoderamento da pessoa com deficiência que
passa a tomar suas próprias decisões e assumir o controle do seu projeto de
vida. Entretanto, para que essa independência seja viável e real, é
imprescindível a implementação de políticas públicas, programas sociais e
serviços adaptados que permitam a superação das barreiras, mas que, em
muitos casos, encontrará limite na reserva do possível em razão da
necessidade do aporte de recursos financeiros para a efetiva e plena fruição
dos direitos assegurados às pessoas com deficiência, como a adaptação
arquitetônica de imóveis, adaptação de veícu los utilizados no transporte
coletivo, adaptação de material didático nas escolas, contratação de intérpretes
de Libras (Língua Brasileira de Sinais), entre outros.

46
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria de Estado dos Direitos das Pessoas com
Deficiência. Pessoas com deficiência no trabalho – Criando Valor pela Inclusão. Disponível em:
<http://www.pessoacom
deficiencia.sp.gov.br/Content/uploads/20131210182610_CartilhaPessoascomdeficiencianotrabalho.pdf>
. Acesso em: 14 fev. 2017.
47
Disponível em: <http://esporte.ig.com.br/olimpiadas/2016-08-31/jogos-paralimpicos-patrocinio-conta.
html>. Acesso em: 14 fev. 2017.
48
Cf. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Barueri: Manole, 2007,
passim.

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Heloisa Helena Barboza, Vitor de Azevedo Almeida Junior

Tal cenário, contudo, não pode ser, mais uma vez, fator para a perpetuação da
indiferença e inobservância dos direitos conquistados.
Considerado o modelo social, o maior desafio, no entanto, a ser
enfrentado reside no reconhecimento das pessoas com deficiência como parte
da diversida de humana e principalmente na conscientização do muito que
podem acrescer à sociedade, pois como destacou Agustina Palacios:

(...) partiendo de la premisa de que toda vida humana es


igualmente digna, desde el modelo social se sostiene que lo que
puedan aportar a la sociedad las personas con discapacidad se
encuentra íntima mente relacionado con la inclusión y la aceptación
de la diferencia.49
Nesse sentido, indispensável que a sociedade reconheça as pessoas com
deficiência como iguais em respeito e consideração, sujeitos independentes e
com voz para interação com outros parceiros na sociedade, em simetria de opor
tunidade, para alcançar a estima social desejada e desenvolverem livremente
sua personalidade de acordo com seu projeto pessoal de plena realização
existencial.

5 Conclusão
A adoção do modelo social para compreender o fenômeno da deficiência é
uma das grandes conquistas promovidas pela Convenção e pelo EPD, que têm
como premissas a inclusão plena da pessoa com deficiência e o dever do Poder
Público e da sociedade de tornar o meio em que vivemos um lugar viável para a
convivência entre todas as pessoas – com ou sem deficiência – e em condições
de exercerem seus direitos, satisfazerem suas necessidades e desenvolverem
suas potencialidades. Deve-se, de uma vez por todas, abandonar o
comportamento social que nem considera ter como presentes as pessoas com
deficiência, de modo a romper com a indiferença e invisibilidade que rotulam há
tempos esse grupo vulnerado.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, na linha da Convenção dos
Direitos da Pessoa com deficiência, de envergadura constitucional, substituiu o
paradigma da integração social pelo modelo social, que se traduz na inclusão
radical e plena, que exige efetiva participação da sociedade nesse processo e
que essa se mo
difique, para atender às necessidades de todos seus integrantes. Para alcançar
o objetivo central do EPD, é essencial que as pessoas com deficiência sejam

49
PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad, cit., p. 104.

36 Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017
Reconhecimento e inclusão das pessoas com deficiência

reconhecidas como pessoas humanas de igual valor e competência para


contribuir para o desenvolvimento social, com independência e voz para atuar
em igualdade de condições na vida de relações.
Revela-se, por conseguinte, de fundamental importância a função promo
cional do atual marco normativo voltado à tutela dos direitos da pessoa com
deficiência, na medida em que, além de assegurar o exercício dos direitos e das
liberdades fundamentais, promove radicalmente a mudança da cultura de indife
rença e invisibilidade, estabelecendo comportamentos socialmente desejáveis e
exigíveis que podem resultar no reconhecimento das pessoas com deficiência.
Este talvez seja o maior desafio posto à Lei de Inclusão.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo. Reconhecimento e


inclusão das pessoas com deficiência. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil,
Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017.

Recebido em: 03.03.2017


Artigo publicado a convite

Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, vol. 13, p. 17-37, jul./set. 2017
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