Lucchesi
Lucchesi
Lucchesi
Dante LUCCHESI
(Universidade Federal da Bahia)
Introdução
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A forte influência do contato lingüístico circunscrita às variedades populares do português do
Brasil é quase um truísmo e é admitida por todos os grandes estudiosos que se dedicaram ao tema,
tanto os que defenderam, quanto os que negaram as origens crioulas da língua no Brasil. É o que
se pode ver na referência de Jacques Raimundo (1933: 75) à língua dos escravos no Brasil, uma
linguagem própria, mesclada do idioma natal e do português, a que se juntou a contribuição
vocabular do indígena, e que determinou as alterações ainda hoje notadas no foneticismo, no ritmo
e na sintaxe de nossa fala popular; ou no próprio Gladstone Chaves de Melo (1946), que admite
a influência das línguas africanas na morfologia, na simplificação e redução das flexões de plural e
das formas verbais na fala popular, chegando a afirmar que a nossa língua popular, falando-se de
um modo geral, é substancialmente o português arcaico, deformado, ou se quiserem, transforma-
do em certo aspecto da morfologia e em alguns da fonética pela atuação dos índios e dos negros
(ibid.: 90-91); ou mesmo em Serafim da Silva Neto (1963), que afirma: não somos daqueles que
vêem influências lingüísticas a todo preço e a todo risco, mas em ambientes lingüísticos e sociais
como no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII é preciso não perder de vista esta possibilidade, ao
menos para exame, como hipótese de trabalho. Essa também é a posição de Câmara Jr. (1976: 30-
31), que, apesar de afirmar que as discrepâncias de língua padrão entre Brasil e Portugal não
devam ser explicadas por um suposto substrato tupi ou por uma suposta profunda influência
africana, admite que, em relação ao português popular, podem ter atuado substratos indígenas
[...] e os falares africanos, na estrutura fonológica e gramatical.
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A grande mortandade da população indígena, devido às doenças e à violência dos colonizadores
europeus, associada à resistência cultural do índio ao trabalho forçado e à oposição da igreja à
escravidão indígena, leva-nos a crer que o papel desempenhado pelo elemento nativo tenha sido
muito menos significativo do que o desempenhado pelos segmentos afro-brasileiros.
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Para uma caracterização mais detalhada desses processos de transmissão lingüística irregular,
que marcaram a formação das variedades populares do português brasileiro, veja-se Baxter &
Lucchesi (1997).
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O Brasil foi, no decurso de mais de três séculos, um vasto país rural. Suas cidades e
vilas, quase todas costeiras, de pequena densidade demográfica e desprovidas de
centros culturais importantes, nenhuma influência exerciam nas longínquas e
espacejadas povoações no interior. (Cunha, 1985: 17)
Dos princípios da colonização até 1808, e daí por diante com intensidade cada vez
maior, se notava a dualidade lingüística entre a nata social, viveiro de brancos e
mestiços que ascenderam, e a plebe, descendente dos índios, negros e mestiços da
colônia. (1963: 88-9)
(...) falam [as nações asiáticas] a língua portuguesa, mas cada uma a seu modo, como
no Brasil os de Angola, e os da terra (...) A língua portuguesa tem avesso e direito: o
direito é como nós a falamos, e o avesso como a falam os naturais (...) Eram línguas
partidas, não só porque eram muitas línguas, senão porque eram línguas e meias
línguas: meias línguas, porque eram meio portuguesas e meio de todas as outras
nações que as pronunciavam e as mastigavam a seu modo.
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Vale lembrar que o Maranhão abrigou uma grande população de índios tupinambás que para lá
afluíram nos finais do século XVI e início do XVII, expulsos pelos colonizadores brancos de outras
regiões do litoral brasileiro, sobretudo Rio de Janeiro e Bahia. Essa província também recebeu
largos contingentes de escravos africanos importados para o trabalho nas lavouras de algodão,
entre os séculos XVII e XIX.
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Cf. Ribeiro (1997: 98): A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primeiro século.
Só no século XVII a escravidão negra viria a sobrepujá-la.
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As estimativas do número do contingente de africanos introduzidos no Brasil pelo tráfico de
escravos variam enormemente consoante as fontes consultadas e vai desde a pouco mais de três
milhões (Simonsen, 1937) até cerca de 13,5 milhões (Calógeras, 1927). Ribeiro (1997), cotejando
várias fontes, faz uma estimativa de algo em torno de seis a sete milhões. De qualquer forma, o
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peso demográfico dos africanos e seus descendentes foi bastante significativo nos primeiros quatro
séculos da história do Brasil; sendo que, na virada da primeira metade do seculo XIX, se estima
que os segmentos africanos e de seus descendentes (em larga proporção mestiços) representavam
cerca de 65% do total da população do país (cf. Chiavenato, 1980: 237).
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Cf. Ribeiro (1997: 116): Concentrando-se em grandes massas nas áreas de atividade mercantil
mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o negro exerceria um papel decisivo na forma-
ção da sociedade local. Seria, por excelência, o agente da europeização que difundiria a língua do
colonizador.
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Situação um pouco distinta seria à dos escravos domésticos e urbanos, que teriam um melhor
acesso a modelos mais completos de português. Contudo, a ausência de escolaridade (que, no caso
das mulheres, se estendia também às brancas e mestiças livres) e a falta de meios institucionais de
difusão do padrão lingüístico dominante, poderia fazer com que, nesse íntimo contato dos escravos
nativos e mestiços com os brancos na casa grande (particularmente no caso das amas escravas,
que amamentavam e criavam as crianças brancas filhas dos senhores coloniais) e nos centros urba-
nos, certos padrões lingüísticos desviantes da fala negra e mestiça tenham penetrado na fala das
classes mais altas da população branca.
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Há que se registrar também a supervivência de línguas francas africanas, como o iorubá, o
chamado dialeto nagô, que, segundo Nina Rodrigues (1935), era corrente entre a população
pobre de Salvador até o início deste século. Registre-se também vestígios dessas línguas francas
africanas, nas línguas secretas de base lexical quimbundo recentemente descobertas nas localidades
de Tabatinga (MG) e do Cafundó (SP), das quais falaremos adiante.
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Veja-se sobre isso, entre outros, Cunha (1970: 11-27).
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Nesse aspecto, o crescimento da cidade de São Paulo constitui o exemplo mais eloqüente de
todos. A sua população cresceu quase dez vezes em apenas 30 anos, passando de 65.000 habitantes
em 1890 a 579.000, em 1920; e, em mais de duas vezes, nos 20 anos seguintes, atingindo a cifra
de 1.308.000 habitantes, em 1940; taxa de crescimento que se manteve nos 20 anos subseqüentes,
já que, em 1960, a população da cidade já correspondia a 3.825.000 habitantes. E, fato impressi-
onante, a população da cidade de São Paulo hoje é 200 vezes maior do que era há cem anos (cf.
Burns, apud Guy 1981: 50).
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Para se ter uma idéia das proporções desse processo de urbanização da sociedade brasileira,
basta que se diga que, em 1940, quase setenta por cento dos 41.236.315 habitantes do Brasil
viviam no campo; já em 1970, cerca de 56% da população vivia nas cidades, contra 44% da
população rural; e, em 1996, a população urbana corresponde a quase 80% dos 157 milhoes de
habitantes do Brasil (FONTES: Estatísticas Históricas do Brasil. Volume 3. Rio de Janeiro: IBGE,
1987; Anuário Estatístico do Brasil. Volume 56. Rio de Janeiro: IBGE, 1996; Contagem da População
1996. Volume 1. Rio de Janeiro: IBGE, 1997).
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Pode-se pensar aí numa sorte de seleção operada pela reação dos falantes nativos cultos, que
seriam mais refratários às estruturas populares mais estigmatizadas e mais tolerantes com as estru-
turas que colidissem menos com as estruturas mais normais do seu falar. Porém, como os julga-
mentos lingüísticos não operam no plano abstrato da estrutura lingüística, mas nas relações sociais
e ideológicas que efetivamente se travam entre os falantes (Lucchesi, 1998b: 56-7), pode-se pensar
que os falantes nativos das classes médias e alta seriam muito menos refratários aos desvios lingüísticos
de um emergente empresário de origem européia do que diante dos padrões de fala dos trabalha-
dores braçais negros e mulatos.
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Para uma visão de conjunto desses trabalhos, veja-se, especialmente, Roberts & Kato 1993.
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Note-se que, para Silva Neto (1963: 72) é o dialeto caipira sem dúvida um dos remanescentes
do primitivo crioulo. Assim também o definira Chaves de Melo (1946: 62): sou levado a supor
que se constituiu no planalto central paulistano um dialeto crioulo de tipo tupi-quimbundo, o qual
intensamente lusitanizado posteriormente, deu o dialeto caipira.
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Grifo meu.
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(2) a. Esses bebida assim manso eu até que bebo, mas cachaça não.
b. Isso tudo era ainda no tempo do firma do Cunha.
(extraído de Baxter, Lucchesi & Guimarães, 1997)
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No crioulo de Cabo Verde, algumas marcas de gênero aparecem de forma marginal, em varie-
dades acroletais, evidentemente, devido ao processo de descrioulização (cf. Baxter, Lucchesi &
Guimarães 1997: 6-7).
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Como se pode observar, as ocorrências a. e b. exemplificam a ausência da preposição, enquanto
que a ocorrência c. mostra a presença da preposição.
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Conclusão
Do que foi dito até então pode-se concluir, em primeiro lugar, que,
diferentemente do que afirma Tarallo (1993a), estudos de processos de
mudanças que indicam um afastamento do português culto do padrão
normativo de matiz europeu não constituem evidência contra a hipótese
da ocorrência de mudanças de caráter crioulizante na formação do portu-
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guês popular, desde que esses processos sejam integrados na visão aqui
proposta da realidade lingüística brasileira como bipolarizada, na qual a
norma culta e a norma popular apresentam tendências específicas de mu-
dança. Desse modo, os processos de mudança que indicam esse afastamen-
to do português brasileiro culto do padrão normativo podem, sim, refletir
influências de baixo para cima, resultantes da crescente interação dessa
variedade lingüística com os dialetos populares que se observa desde o
início desse século.
No que tange ao português popular, considero que os processos de
transmissão lingüística irregular que marcaram a aquisição massiva do
português pelas populações indígenas e de origem africana devem ser le-
vados em linha de conta para a compreensão de sua configuração atual.
Contudo, se, como argumenta Guy (1981 e 1989), há dados sócio-históri-
cos que corroboram a hipótese da crioulização prévia do português popu-
lar, há certos aspectos da história sociocultural do Brasil que fazem crer
que não ocorreu a estabilização de uma língua crioula no país, como acon-
teceu, por exemplo, no Haiti, ou em São Tomé, na África. Dentre esses
aspectos sócio-históricos, poderia destacar: a grande mortandade de
aloglotas; o uso de línguas africanas como línguas francas entre as popula-
ções de escravos (cf. Castro, 1990); o fenômeno da mestiçagem; e os meca-
nismos de cooptação social dos mulatos e dos escravos ladinos, que fomen-
tavam um melhor desempenho desses indivíduos no manejo do português
(cf. Lucchesi, 2000). Portanto, acho mais razoável supor a existência de
processos de pidginização/crioulização de tipo leve, dentro da visão mais
ampla expressa através do conceito de transmissão lingüística irregular; sen-
do mais apropriado falar, no âmbito da história do português popular
brasileiro, em termos de sistemas com características crioulizantes, ou de
semi-crioulos19 (cf. Holm, 1991), e não propriamente em pidgins e criou-
los típicos.
O quadro da pidginização/crioulização leve não se caracteriza por uma
restruturação profunda e independente da gramática, como ocorre nos
processos mais característicos da crioulização, deve-se pensar antes em ter-
mos de uma redução drástica dos paradigmas gramaticais e uma conse-
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Foi Serafim da Silva Neto (1963 [1951]) o primeiro a utilizar o termo semi-crioulo para designar
as variedades lingüísticas geradas pela aquisição precária do português entre os segmentos afro-
brasileiros, no período da colonização do Brasil.
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Quadro 11:
(i) redução dos processos sintáticos de concordância verbal e nominal, de-
corrente da drástica redução dos mecanismos de flexão verbal e nominal,
que podem levar à eliminação gramatical de certos tempos verbais;
(ii) redução da flexão de caso dos pronomes;
(iii) redução/eliminação do movimento em construções interrogativas;
(iv) substituição dos processos de relativização com movimento por pro-
cessos com um nexo tipo complementizador acompanhado por uma cópia
pronominal (com a possibilidade de apagamento desta);
(v) redução, ou eliminação, de mecanismos sintáticos de subordinação e da
voz passiva;
(vi) reforço do processo de negação, com construções de dupla negação;
(vii) redução do uso do artigo definido, com o incremento de estruturas
dêiticas (com o uso de demonstrativos e advérbios locativos) para marcar
definitude;
(viii) redução do elenco e do uso de preposições;
(xix) o uso variável do verbo copulativo.
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O conceito de ponto impróprio ou ponto no infinito da reta é tomado de empréstimo ao instrumental
teórico da Geometria e designa o ponto projetado no infinito para representar o contato entre duas
retas paralelas, situadas no espaço euclidiano. Ou seja, é a formalização que a Geometria apresenta
para a idéia intuitiva de que duas retas paralelas se encontram em um ponto no infinito. A escolha
da imagem do ponto impróprio se justifica, na medida em que a postulação de que as normas culta
e popular apresentam, neste século, tendências de mudança, em certo sentido convergentes, após
terem se mantido em direções paralelas, ou mesmo divergentes, nos séculos anteriores, não signi-
fica que se esteja encaminhando para uma fusão dos dois pólos constituintes da realidade lingüís-
tica brasileira. Uma possível tendência à aproximação, decorrente das mudanças para cima obser-
vadas na norma popular e das mudanças para baixo na norma culta, se implementa numa rede
extremamente complexa de relações sociais e ideológicas, que engendram uma série de mecanis-
mos de refração a essas ondas de mudança. Como um exemplo disso, poderíamos citar o sentimen-
to de distinção de classe das camadas médias e altas, que refreiam , ou impõem limites às tendên-
cias de simplificação dos mecanismos de concordância que se observam nos seus padrões de fala.
Desse modo, a manutenção de um paradigma flexional mais rico ou uma maior freqüência na
aplicação da regra de concordância sobretudo nos registros mais formais funcionaria como um
indicador da divisão sócio-cultural entre as camadas altas e médias, de um lado, e as camadas
baixas, de outro. Portanto, a identificação de certas tendências de mudança convergentes não
significa necessariamente que esteja em perspectiva uma aproximação das duas normas. O aumen-
to da concentração de renda juntamente com o empobrecimento e a marginalização das classes
populares constituem um efetivo obstáculo à implementação dessa aproximação.
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