Os 500 Anos de Língua Portuguesa No Brasil

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Os 500 anos de língua portuguesa no Brasil

Dinah Maria Isensee Callou e Afrânio Gonçalves Barbosa

HISTÓRIA

São evidentes as diferenças entre o português falado no Brasil e o falado em Portugal.


Isso acontece com todas as línguas do mundo. Mas não significa, como muitos
apontam, que uma forma seja mais correta que a outra. No caso do português, o festival
do "certo ou errado" lançado na mídia por muitos defensores de um modelo
pretensamente culto da língua esbarra, por exemplo, na constatação, em pesquisas
rigorosas, de que algumas construções tidas como mudanças ocorridas no Brasil são na
verdade resquícios do português europeu do tempo da colonização.

Estudar a língua portuguesa é muito mais do que apenas relacionar o que é certo e o que
é errado: é conhecer seu funcionamento, não só hoje como ontem. Se o primeiro
gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira (1507-1580/90), viajasse quinhentos
anos no tempo e pudesse testemunhar as comemorações do Descobrimento do Brasil,
ficaria surpreso com as semelhanças entre o português falado nesse país e suas
observações sobre a linguagem do século XVI. Caso ouvisse uma conversa entre um
natural de Lisboa e um do Rio de Janeiro a propósito, por exemplo, do final de uma
novela de televisão brasileira, talvez o que mais o intrigasse fosse a dúvida sobre qual
linguagem seria mais semelhante à de sua época: a do português ou a do brasileiro?

Fernão de Oliveira ficaria, provavelmente, mais perplexo ainda com as perseguições


"gramatiqueiras" promovidas por um número crescente de profissionais da área de letras
que, afastados da produção científica, vêm inventando um português supostamente culto
em seus "consultórios gramaticais" multimídia, um festival de "certo e errado" bem ao
gosto das exigências do mercado.

Qualquer pessoa é capaz de notar as diferenças entre o português falado no Brasil e o


falado em Portugal. Quando um lusitano diz que "está a ler" certo texto, um brasileiro
afirma que "está lendo". Se um brasileiro prefere iniciar uma fase com um pronome
objeto - "Me dá a mão"- , um português põe quase sempre, nesse contexto, o pronome
após o verbo: "Dá-me a mão". Se os estrangeiros que decidem aprender a língua
portuguesa notam haver maior proximidade entre o que lêem e o que escutam no Brasil
é porque, entre outras coisas, a linguagem corrente em Portugal suprime vogais aqui e
ali durante as conversas, tornado o ritmo da fala mais rápido.

Em outras palavras, os brasileiros escrevem "telefone" e variam a pronúncia, de acordo


com a região do país, entre vogais fechadas ou abertas ("têlêfoni" ou "téléfoni"), ao
passo que os portuguêses pronunciam "t" fon (e)". Observada em exemplos isolados,
essa ausência não parece significativa, mas, em alguns casos, leva a mal entendidos. É o
caso do vocábulo "diferente", que no uso corriqueiro de um falante do português
europeu passa a "dif'rente", que pode ser confundido com o "de frente". Relate-se o fato
pitoresco de um brasileiro que, ao se registrar em um hotel de Lisboa, manifestou sua
preferência por um quarto "de frente" e foi surpreendido com a resposta: "Mas são todos
iguais". O recepcionista do hotel pensou que o hóspede desejasse um quarto "diferente"
.
Se buscarmos diferenças no vocabulário, as listas serão intermináveis, desde seus
"achamentos" pelos nossos "descobrimentos" até os casos de humor explícito, como os
das "cuecas" femininas e o das "camisolas" masculinas. O que talvez não se saiba, é que
tanto o uso do gerúndio quanto a tendência à colocação do pronome antes do verbo e a
"presença" das vogais à moda brasileira são fatos lingüísticos para cá trazidos e
conservados desde o tempo do gramático Fernão de Oliveira e do poeta Luís de Camões
(1524-1580).

É fácil perceber a realidade imediata das diferenças criadas, entre outras razões, por
mudanças e manutenções ao longo desses quinhentos anos, tanto no Brasil, quanto em
Portugal, mas não tem havido a mesma facilidade em entender nem a natureza dessa
variação, nem os aspectos ideológicos que o uso de uma língua envolve. Todas as
línguas do mundo apresentam variação de região para região, de segmento social para
segmento social, de situações formais para informais, de uma geração para outra. As
diferenças lingüísticas entre um nordestino e um gaúcho não são maiores ou menores
que as entre um alentejano e um transmontano. As gírias da juventude e dos presidiários
não são mais ou menos efêmeras de um lado ou do outro do Atlântico.

É assim no Brasil, em Portugal, na Suécia, na Romênia ou na Coréia, pois a


heterogeneidade é característica intrínseca da linguagem humana. Não há portanto, nada
de extraordinário nas diferenças entre norte-americanos e ingleses argentinos e
espanhóis, brasileiros e portugueses. O que pode surpreender é a correlação
habitualmente feita entre a origem geográfica das línguas oficiais das ex-colônias e a
propriedade do falar "correto", como se os colonos que migraram e as gerações já aqui
nascidas perdessem a legitimidade de sua língua.

Quando se discute o que é "certo" e o que é "errado", deve-se entender que há dois
níveis distintos, ainda que relacionados: o do português "correto" indicado pelas
gramáticas escolares e o do português que está de acordo com o padrão usual da
comunidade de que fazemos parte. O primeiro remete a convenções subjetivas,
enquanto o segundo está associado à realidade histórico-social. Note-se que a força do
uso social é o elemento que acaba por prevalecer e governar as atualizações feitas nos
livros de tempos em tempos. Não adianta a gramática escolar insistir em que a
pronúncia correta é "lêrdos" e não "lérdos", como todos falam, ou condenar a colocação
dos pronomes oblíquos no início de sentença ("Me faz um favor.") ou ainda desabonar o
"ele/ela" como pronome objeto ("Encontrei ele em casa."), se a maior parte da
comunidade brasileira traz esses usos incorporados historicamente.

Como já dizia o nosso primeiro gramático, nosso viajante no tempo, em 1536, "a
linguagem é figura do entendimento: e assim é verdade que a boca diz quanto lhe
manda o coração e não outra coisa; antes não devia a natureza criar outro mais disforme
monstro do que são aqueles que falam o que não têm vontade". O ponto-chave é
perceber que os parâmetros da gramática escolar não estão no português falado no
Brasil, a despeito de esse não ser melhor ou pior que aquele de Portugal.

Em linhas gerais, os referenciais da gramática tradicional da língua portuguesa estão


vinculados à literatura portuguesa da passagem do século XIX para o XX, ou aos
autores brasileiros quando espelhados no português de Portugal. Essa diferença no
tempo, no espaço e na modalidade escrita determina uma distância maior entre o que é
usual no Brasil e o modelo gramatical, mas não apenas aqui. Para os lusitanos, a força
do uso promove conflitos com o padrão escolar, pois também lá, os professores se
perguntam porque ninguém sabe mais português.

A existência de uma norma padrão convencional, em oposição a uma norma popular, é


uma realidade. O perigo é haver uma política de ensino de idioma que reduza a prática
escolar ao domínio de uma nomenclatura gramatical, deixando de lado o trabalho com a
compreensão e produção de textos os mais variados. Perigo maior vem a ser considerar
uma corruptela, praticada pelos brasileiros nos últimos quinhentos anos, tudo aquilo que
se afasta dessa suposta "língua legítima". Vejamos, por exemplo, o caso dos pronomes-
objeto, que os gramáticos tradicionais insistem em fazer corresponder ao uso vigente em
Portugal, muitas vezes até por desconhecimento da própria história da língua.

Esse uso, tão discutido na literatura modernista no Brasil, é, sem dúvida, um caso, entre
outros, em que fica patente a polarização entre as modalidades brasileira e portuguesa,
por conta não de uma mudança originada na oralidade do lado de cá do Atlântico:
"Muitos dos nossos brasileirismos, e muito da nossa gramática, não passam de
arcaísmos preservados na América", dizia já em 1933 o gramático brasileiro João
Ribeiro (1860-1934).

No trabalho de recuperação do percurso histórico dessas "preservações" é preciso evitar


a artificialidade da linguagem literária. Ao contrário, deve-se dar preferência a
manuscritos não-literários, que deixam transparecer melhor certos hábitos da linguagem
do dia-a-dia ao longo dos séculos. No caso do posicionamento do pronome objeto antes
do verbo já se pode traçar uma linha de mudança histórica.

Como se pode ver, o português falado no Brasil apresenta, no século XX, um percentual
de uso do pronome antes do verbo mais próximo do percentual encontrado em textos
não-literários do século XVI - época do início da colonização portuguesa no Brasil - que
o próprio português europeu. O uso do pronome objeto antes do verbo, naquele século
(99%), é ainda maior que o observado hoje no Brasil (85%), mas em Portugal nota-se,
atualmente, uma redução drástica (45%). O ponto de divergência torna-se mais nítido a
partir da segunda metade do século XVIII, quando esse e outros aspectos da língua
(como o uso do gerúndio) revelam um processo geral de mudança no português
europeu, consolidado no século XIX.

De todo modo, o português brasileiro - tanto culto quanto popular - generaliza a


colocação pré-verbal em quase todas as situações, enquanto o português europeu
contemporâneo conserva um sistema em que a colocação do pronome objeto depois do
verbo é favorecida. Há, é claro, certos contextos sintáticos mais "abertos" a uma ou a
outra possibilidade, bem como outros (a presença de um "que" ou um "não", por
exemplo) em que a próclise seria categórica. Vale lembrar que, mesmo em Portugal,
existem falares regionais marcados pela mesma variedade conservadora do Brasil. Não
se pode negar, no entanto, que haja inovações também do lado brasileiro, como, por
exemplo, o uso de "ter" no lugar de "haver" com valor existencial ("tem muitos livros na
estante", em vez de "há muitos livros na estante").

É relativamente recente a preocupação com a elucidação desses e de outros aspectos


históricos da língua portuguesa do Brasil. Em um esforço paralelo ao trabalho dos
historiadores, desenvolve-se, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, uma pesquisa
integrada ao projeto nacional "Para uma história do português brasileiro", com o
objetivo de descobrir novas fontes diretas (cartas, diários de viagem, relatórios de
ordens religiosas, produção escrita da máquina burocrática, anúncios, textos
jornalísticos, gravações dos anos 1970 e 1990), com a intenção de descrever a realidade
lingüística brasileira nesses quinhentos anos de percurso.

A investigação de documentos antigos não-editados requer um conhecimento prévio,


por parte do analista, não só da língua mas também da realidade social da época.
Felizmente, vivemos hoje um momento especial de descoberta e revisão do Brasil-
colônia, pela catalogação e microfilmagem de acervos até agora intocados. Mas o
trabalho do historiador não pode ser desvinculado do trabalho do lingüista, pois este
poderá tornar mais transparentes contextos à primeira vista opacos para pesquisadores
não familiarizados com a disposição e a ordem dos vocábulos na frase. A ausência de
espaço em branco, por exemplo, entre o pronome objeto "a" (de referência a uma
escrava) e o advérbio de negação "não" (em posição não usual no português do Brasil),
em uma carta de 1782, na seqüência "e certamente anão mandaria izenta do filho...",
acaba por dificultar sua interpretação.

Trabalhar com o passado envolve o desafio de dispor apenas de informações indiretas


e/ou documentos que resistiram ao tempo. Mais que isso, trabalhar com o passado é,
como se costuma dizer, a arte de fazer o melhor uso de maus dados. Bom mesmo seria
multiplicar esses dados e torná-los acessíveis a todos quantos se interessem. Afinal, eles
revelam o grande charme da língua: gente.

In: Ciência Hoje, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. 28 nº 166, nov. 2000.

Dinah Maria Isensee Callou e Afrânio Gonçalves Barbosa, Departamento de Letras


Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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