Os 500 Anos de Língua Portuguesa No Brasil
Os 500 Anos de Língua Portuguesa No Brasil
Os 500 Anos de Língua Portuguesa No Brasil
HISTÓRIA
Estudar a língua portuguesa é muito mais do que apenas relacionar o que é certo e o que
é errado: é conhecer seu funcionamento, não só hoje como ontem. Se o primeiro
gramático da língua portuguesa, Fernão de Oliveira (1507-1580/90), viajasse quinhentos
anos no tempo e pudesse testemunhar as comemorações do Descobrimento do Brasil,
ficaria surpreso com as semelhanças entre o português falado nesse país e suas
observações sobre a linguagem do século XVI. Caso ouvisse uma conversa entre um
natural de Lisboa e um do Rio de Janeiro a propósito, por exemplo, do final de uma
novela de televisão brasileira, talvez o que mais o intrigasse fosse a dúvida sobre qual
linguagem seria mais semelhante à de sua época: a do português ou a do brasileiro?
É fácil perceber a realidade imediata das diferenças criadas, entre outras razões, por
mudanças e manutenções ao longo desses quinhentos anos, tanto no Brasil, quanto em
Portugal, mas não tem havido a mesma facilidade em entender nem a natureza dessa
variação, nem os aspectos ideológicos que o uso de uma língua envolve. Todas as
línguas do mundo apresentam variação de região para região, de segmento social para
segmento social, de situações formais para informais, de uma geração para outra. As
diferenças lingüísticas entre um nordestino e um gaúcho não são maiores ou menores
que as entre um alentejano e um transmontano. As gírias da juventude e dos presidiários
não são mais ou menos efêmeras de um lado ou do outro do Atlântico.
Quando se discute o que é "certo" e o que é "errado", deve-se entender que há dois
níveis distintos, ainda que relacionados: o do português "correto" indicado pelas
gramáticas escolares e o do português que está de acordo com o padrão usual da
comunidade de que fazemos parte. O primeiro remete a convenções subjetivas,
enquanto o segundo está associado à realidade histórico-social. Note-se que a força do
uso social é o elemento que acaba por prevalecer e governar as atualizações feitas nos
livros de tempos em tempos. Não adianta a gramática escolar insistir em que a
pronúncia correta é "lêrdos" e não "lérdos", como todos falam, ou condenar a colocação
dos pronomes oblíquos no início de sentença ("Me faz um favor.") ou ainda desabonar o
"ele/ela" como pronome objeto ("Encontrei ele em casa."), se a maior parte da
comunidade brasileira traz esses usos incorporados historicamente.
Como já dizia o nosso primeiro gramático, nosso viajante no tempo, em 1536, "a
linguagem é figura do entendimento: e assim é verdade que a boca diz quanto lhe
manda o coração e não outra coisa; antes não devia a natureza criar outro mais disforme
monstro do que são aqueles que falam o que não têm vontade". O ponto-chave é
perceber que os parâmetros da gramática escolar não estão no português falado no
Brasil, a despeito de esse não ser melhor ou pior que aquele de Portugal.
Esse uso, tão discutido na literatura modernista no Brasil, é, sem dúvida, um caso, entre
outros, em que fica patente a polarização entre as modalidades brasileira e portuguesa,
por conta não de uma mudança originada na oralidade do lado de cá do Atlântico:
"Muitos dos nossos brasileirismos, e muito da nossa gramática, não passam de
arcaísmos preservados na América", dizia já em 1933 o gramático brasileiro João
Ribeiro (1860-1934).
Como se pode ver, o português falado no Brasil apresenta, no século XX, um percentual
de uso do pronome antes do verbo mais próximo do percentual encontrado em textos
não-literários do século XVI - época do início da colonização portuguesa no Brasil - que
o próprio português europeu. O uso do pronome objeto antes do verbo, naquele século
(99%), é ainda maior que o observado hoje no Brasil (85%), mas em Portugal nota-se,
atualmente, uma redução drástica (45%). O ponto de divergência torna-se mais nítido a
partir da segunda metade do século XVIII, quando esse e outros aspectos da língua
(como o uso do gerúndio) revelam um processo geral de mudança no português
europeu, consolidado no século XIX.
In: Ciência Hoje, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. 28 nº 166, nov. 2000.