Arantes, Antonio. Patrimônio Cultural e Cidade
Arantes, Antonio. Patrimônio Cultural e Cidade
Arantes, Antonio. Patrimônio Cultural e Cidade
Plural de Cidade:
Novos Léxicos Urbanos
PLURAL DE CIDADE:
NOVOS LÉXICOS URBANOS
ORGA NI ZADORES
CARLOS FORTUNA
ROGERIO PROENÇA LEITE
EDITOR
EDIÇÕES ALMEDINA. SA
Av. Fernão Magalhães, nº 584, 5º Andar
3000-174 Coimbra
Tel.: 239 851 904
Fax: 239 851 901
www.almedina.net
[email protected]
Setembro, 2009
DEPÓSITO LEGAL
297901/09
I – FORTUNA, Carlos
II – LEITE, Rogério Proença
CDU 316
711
SUMÁRIO
Apresentação 7
2. Enobrecimento urbano 25
Silvana Rubino
3. Requalificação urbana 41
Paulo Peixoto
6. Cidade e urbanidade 83
Carlos Fortuna
Antonio A. Arantes
Convém reafirmar desde logo que a expressão patrimônio cultural não faz
parte do instrumental teórico desenvolvido para interpretar ou explicar o
social. Ela designa de fato construções ideológicas – ou representações – que
requerem, elas mesmas, explicação. Assim, estas reflexões focalizam o cará-
ter sui generis das realidades patrimoniais no contexto da dinâmica cultural,
iluminando questões de natureza antropológica próprias a esta temática, e
explorando aspectos da participação do patrimônio na construção da expe-
riência urbana contemporânea.
II
a vida de uma cidade [...] se manifesta [...] por obras materiais, traçados ou cons-
truções que lhe conferem sua personalidade própria e dos quais emana pouco a
pouco a sua alma. São testemunhos preciosos do passado que serão respeitados, a
princípio por seu valor histórico ou sentimental, depois porque alguns trazem uma
virtude plástica [...]
(idem, 52).
Ela afirma, também, no Artigo 3º, retomando a Carta de Atenas, que o obje-
tivo da conservação e da restauração é salvaguardar “tanto a obra de arte,
quanto o testemunho histórico” e estabelece ainda que: Art.5º “A conservação
dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil
à sociedade” [...]; Art.6º “A conservação de um monumento implica a preser-
vação de uma ambiência em sua escala” [...], e Art.7º “O monumento é insepa-
14 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS
Art. 2º, §1. Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, represen-
tações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, obje-
tos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os
grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu
patrimônio cultural. Este patrimônio [..] é constantemente recriado pelas comuni-
dades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de
sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
(Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. www.unesco.org.br)
III
IV
Uma das entradas para o tema da inserção do patrimônio nas cidades con-
temporâneas é oferecida pelo conceito de “patrimônio ambiental urbano”.
Esse conceito (Bezerra de Meneses, 2006: 36-9) abarca, como se sabe, três
aspectos da realidade urbana: sua condição de artefato, de campo de forças
sociais e de agregado de representações simbólicas.
É bastante oportuna a retomada, na conjuntura atual, de uma compreen-
são totalizante da cidade, tal como propõe esse conceito e como pratica a
abordagem designada “conservação integrada” de centros históricos. Asso-
ciando a noção de ambiente à de patrimônio urbano, esse enfoque induz a
reflexão e a prática patrimoniais a integrarem aos aspectos arquitetônicos,
urbanísticos, históricos e estéticos usualmente considerados, aspectos intan-
gíveis dos bens formadores da paisagem urbana, tais como técnicas e conhe-
cimentos tradicionais utilizados em sua construção, usos efetivos e formas de
apropriação desenvolvidas pela população, entre outros. Ele permite incor-
porar, também, os sentidos e significados atuais atribuídos a esses bens, aos
valores pelos quais os habitantes das cidades reconhecem nas edificações e
espaços preservados mais do que amontoados de sobras do passado, ou pano
de fundo em relação ao qual a experiência social e pessoal poderiam ser indi-
ferentes. Dito de outro modo, essa perspectiva permite ressaltar os sentidos
de lugar que nutrem a experiência de habitar as cidades e o constante refazer
das identidades no espaço urbano (Arantes, 2003: 255-60).
Lugares são espaços apropriados pela ação humana. São realidades a um
só tempo tangíveis e intangíveis, concretas e simbólicas, artefatos e senti-
dos resultantes da articulação entre sujeitos (identidades pessoais e sociais),
práticas (atividades cotidianas ou rituais) e referências espaços-temporais
(memória e história). São realidades que desafiam a dicotomia estruturante
das práticas patrimoniais e que indicam claramente a necessidade de sua
superação, pois como afirma Yai (2007: 75-6) em sua reflexão sobre o patri-
mônio com base nas tradições africanas “tudo está em tudo, o imaterial está
no material [...] e os mortos nunca estão realmente mortos.”
Para compreender a dimensão social do patrimônio nas cidades, é fun-
damental considerar o papel dos bens preservados – enquanto agregados
de marcos territoriais, culturais e históricos – na formação e transformação
dos sentidos de localização e de pertencimento, assim como na formação
da experiência social e da consciência de si. Como argumentei em outro tra-
balho (Arantes, 2000b) com base em escritos de Ecléia Bosi (1979, 1992),
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 19
Como argumentei em outro trabalho (Arantes, 1999: 131-2), para ser efe-
tivamente sustentável a conservação integrada deve evitar pelo menos três
males: (i) a neutralização dos sentidos de lugar efetivamente construídos pela
re-apropriação do patrimônio por parte da população; (ii) a construção de
sucedâneos de espaços públicos e (iii) o uso de dispositivos de segurança que
segreguem a população local em benefício dos ocupantes ocasionais.
Torna-se oportuno fortalecer – no caso específico do patrimônio ambiental
urbano – a perspectiva da integração entre a conservação e o planejamento, a
partir do reconhecimento e valorização da singularidade das áreas preserva-
das (enquanto conjuntos de artefatos, práticas e significações simbólicas) no
contexto mais amplo da cidade. Um instrumento útil para tal fim é a deno-
minada “gestão compartilhada” (www.iphan.gov.br), que valoriza a inserção
do patrimônio na vida cotidiana e procura equacionar, em termos práticos e
de forma efetiva, o preceito de responsabilidades concorrentes entre a socie-
dade civil e as esferas federal, estadual e municipal do poder público.
É o modo de gestão do patrimônio que torna ou não viável habitar e reali-
zar empreendimentos comerciais nos sítios históricos preservados. Em ques-
tões de cultura o “como” em geral é muito mais importante do que o “que” se
faz. Portanto, o principal objetivo das políticas urbanas de patrimônio deve
ser o desenvolvimento de modos sustentados de apropriação de estruturas
urbanas e arquitetônicas nas cidades e, para tanto, melhorar as condições de
moradia e de vida dos habitantes de núcleos protegidos.
Estes são temas de grande relevância prática, que devem passar a merecer
mais atenção de gestores e pesquisadores uma vez que se torna parte da visão
dos especialistas em políticas sociais, a ideia de que a proteção, valorização e
promoção do patrimônio cultural podem contribuir para o desenvolvimento
social e econômico. Resta verificar empiricamente, e caso a caso, que limites
e desafios são trazidos por essas novas oportunidades. Em especial, coloca-se
o desafio de construir indicadores culturais, sociais e econômicos que permi-
tam avaliar as transformações induzidas pelos gestores do patrimônio sobre a
qualidade de vida, assim como sobre os modos de apropriação prática e sim-
bólica do espaço urbano.
Eis, em breves linhas, o campo recoberto pelo presente tópico: a atribuição
de valor patrimonial, na esfera pública, a artefatos e práticas sociais correntes;
alguns parâmetros conceituais dessa prática; e sua inserção na dinâmica cul-
tural e no mercado, com ênfase espacial nas realidades urbanas. Dos pontos
de vista da antropologia e do direito, diversos e complexos são os aspectos do
problema. Do ponto de vista político, imenso é o desafio de tornar efetivo o
22 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, B. (1983), Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationa-
lism. London: Verso.
ARANTES, A. A. (1984), “Revitalização da Capela de São Miguel Paulista” in Arantes, A.
(org.). Produzindo o passad: estratégias de construção do patrimônio cultural. São Paulo:
Brasiliense; Secretaria do Estado da Cultura de São Paulo,149-74.
ARANTES, A. A. (1999), “Repensando os aspectos sociais da sustentabilidade: a con-
servação integrada do patrimônio ambiental urbano. Projeto História: espaço e
cultura”. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Departamento
de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 18,
121-34.
ARANTES, A. A. (2000a), “Paisagem de história: a devoração dos 500 anos. Projeto His-
tória: sentidos da comemoração”. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 20, p. 63-96.
ARANTES, A. A. (2000b), Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas:
Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial.
ARANTES, A. A. (2003), “O sentido das coisas: sobre a construção social dos lugares”
in Schicchi, M. C.; Benfatti, D. (orgs.), Urbanismo: dossiê São Paulo – Rio de Janeiro.
Campinas: PUCCAMP/PROURBP, 255-60. Edição especial de: Oculum Ensaios:
Revista de Arquitetura e Urbanismo.
ARANTES, A. A. (2007), “Diversity, heritage and cultural politics.” Theory Culture &
Society: annual review, London, v. 24, n. 78, 290-6.
BEZERRA DE MENESES, U. (2006), “A cidade como bem cultural: áreas envoltórias,
outros dilemas equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental
urbano” in Mori, V. H. et. al. (orgs.), Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9
ª SR/ IPHAN.
BOSI, E. (1979), Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A.Queiroz.
BOSI, E., (1992), “Memória da cidade: lembranças paulistanas” in DPH/SMC, O direito
à memória. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura.
CURY, I. (org) (2000), Cartas patrimoniais. Brasília: IPHAN.
FORTUNA, C. (1997), “Destradicionalização e imagem da cidade” in idem (org.), Cidade,
cultura e globalização. Oeiras: Celta, 231-57.
JACKSON, J. (1984), Discovering the vernacular landscape. New Haven: Yale University
Press.
LEITE, R. P. (2004), Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana con-
temporânea. Campinas/Aracaju: UNICAMP/UFS.
24 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS