Arantes, Antonio. Patrimônio Cultural e Cidade

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CAR LOS FORTUNA

ROGER IO PROENÇA LEITE (Orgs.)

Plural de Cidade:
Novos Léxicos Urbanos
PLURAL DE CIDADE:
NOVOS LÉXICOS URBANOS

ORGA NI ZADORES
CARLOS FORTUNA
ROGERIO PROENÇA LEITE

EDITOR
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Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

Plural de cidade : léxicos e culturas urba-


nas / org. Carlos Fortuna, Rogério Proença
Leite. - (CES)
ISBN 978-972-40-3924-4

I – FORTUNA, Carlos
II – LEITE, Rogério Proença

CDU 316
711
SUMÁRIO

Apresentação 7

SECÇÃO I – Artes de fazer a cidade 9

1. Patrimônio cultural e cidade 11


Antonio A. Arantes

2. Enobrecimento urbano 25
Silvana Rubino

3. Requalificação urbana 41
Paulo Peixoto

4. A cidade no diálogo entre disciplinas 53


Heitor Frúgoli Jr.

5. Culturas populares na cidade 69


Sérgio Ivan Gil Braga

6. Cidade e urbanidade 83
Carlos Fortuna

SECÇÃO II – Artes de usar a cidade 99

7. Etnografia urbana 101


José Guilherme Cantor Magnani

8. Segregações urbanas 115


Lucia Maria Machado Bógus

9. Espaços e vazios urbanos 127


Cristina Meneguello

10. Sonoridades e cidade 139


Luciana Mendonça
6 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

11. Usos da rua 151


Fraya Frehse

12. Políticas culturais urbanas 171


João Teixeira Lopes

13. Espaços públicos na pós-modernidade 187


Rogerio Proença Leite

SECÇÃO III – Artes de consumir a cidade 205

14. Narrativa de Lisboa 207


Irlys Barreira

15. Economia do Património 225


Eva Vicente

16. Turismo e cidade 245


Clarissa M. R. Gagliardi

17. Ambiente, sustentabilidade e cidade 265


Maria Eugénia Rodrigues

18. Cidades e migrações 283


Ulisses Neves Rafael

19. Consumo cultural na cidade 299


Ana Rosas Mantecón

20. Intermediários culturais e cidade 319


Claudino Ferreira

Sobre os autores 337


1. PATRIMÔNIO CULTUR AL E CIDADE

Antonio A. Arantes

Convém reafirmar desde logo que a expressão patrimônio cultural não faz
parte do instrumental teórico desenvolvido para interpretar ou explicar o
social. Ela designa de fato construções ideológicas – ou representações – que
requerem, elas mesmas, explicação. Assim, estas reflexões focalizam o cará-
ter sui generis das realidades patrimoniais no contexto da dinâmica cultural,
iluminando questões de natureza antropológica próprias a esta temática, e
explorando aspectos da participação do patrimônio na construção da expe-
riência urbana contemporânea.

Os grupos humanos atribuem valor diferenciado a estruturas edificadas e


a elementos da natureza que balizam seus territórios, ancoram suas visões
de mundo, materializam crenças ou testemunham episódios marcantes da
memória coletiva. Cultivam atividades, conhecimentos e modos de saber-
-fazer que, ao mesmo tempo, servem a fins práticos e identificam, diferenciam
e hierarquizam categorias e estratos sociais, participando da estruturação da
vida em sociedade, da formação das identidades e da alimentação do senti-
mento de pertença.
Essas realidades são inseparáveis dos meios sociais que as produzem, pois
deles recebem sua seiva, vitalidade e razão de ser. Mas assim como são criadas,
nutridas e aprimoradas, elas podem ser modificadas ou abandonadas no cons-
tante fluxo da vida coletiva, onde preservação e destruição são faces da mesma
dinâmica pela qual as estruturas sociais se reproduzem e se transformam.
Entretanto, o que se denomina “patrimônio cultural”, para efeitos de polí-
ticas de preservação e promoção desenvolvidas pelo Estado – que é o tema do
presente ensaio – não se confunde com esse conjunto de atividades, artefatos
e conhecimentos integrados à vida social. Tampouco a idéia de “preservação”
faria sentido, se aplicada à totalidade das referências culturais compartilha-
das; ela seria uma ficção conservadora, necessariamente antagônica à emer-
gência do futuro no presente.
12 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

Diversamente de outras representações coletivas, o patrimônio cultural


strito sensu é instituído por um complexo processo de atribuição de valor que
ocorre na esfera pública, aqui entendida como o conjunto de instituições de
representação e de participação da sociedade civil no espaço político-admi-
nistrativo do Estado. Eis o universo mais amplo a que pertencem as realidades
culturais ditas patrimoniais, ou seja, o contexto em que o objeto específico
destas reflexões adquire a condição sui generis de integrar representações sim-
bólicas de identidade e, como tal, de participar de processos culturais, políti-
cos e da economia.

II

Patrimônio não se confunde com o que usualmente se denomina costume.


Essa distinção é crucial para se compreender o sentido da preservação
enquanto prática social e suas conseqüências para a dinâmica cultural e para
a gestão do patrimônio nas cidades.
Acordos e convenções internacionais têm balizado a formação de uma
esfera pública mundial para questões de patrimônio, assim como o desen-
volvimento de políticas de preservação em diversos países, principalmente a
partir da década de 1930. Os documentos fundadores desse processo são as
Cartas de Atenas, em suas edições de 1931, assinada pelo Escritório Interna-
cional dos Museus da Sociedade das Nações, e de 1933, que tem a chancela
da assembléia do CIAM – Congresso Internacional de Arquitetura Moderna.
A Carta de 1931 focaliza, entre outros assuntos, legislações nacionais para pro-
teção dos “monumentos de interesse histórico, artístico ou científico” (Cury:
2000,14). Entre os temas abordados por esse documento merece destaque,
do ponto de vista destas reflexões, a referência às dificuldades enfrentadas
pelos países participantes “de conciliar o direito público com o particular”
nessa matéria, e à tendência geral consagrada em suas legislações no sentido
de se reconhecer o “direito da coletividade em relação à propriedade privada”
(idem, ibidem). Em vista disso, a reunião aprovou unanimemente as bases do
princípio de precedência da função social da propriedade sobre os interesses
privados, constituindo o que é, sem dúvida, o principal fundamento jurídico
da preservação.
A Carta de 1933 põe em destaque, por sua vez, o patrimônio no contexto
da cidade e das condições de vida no meio urbano, especialmente em zonas
históricas. No capítulo dedicado ao patrimônio lê-se que
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 13

a vida de uma cidade [...] se manifesta [...] por obras materiais, traçados ou cons-
truções que lhe conferem sua personalidade própria e dos quais emana pouco a
pouco a sua alma. São testemunhos preciosos do passado que serão respeitados, a
princípio por seu valor histórico ou sentimental, depois porque alguns trazem uma
virtude plástica [...]
(idem, 52).

O documento estabelece, além disso, dois parâmetros importantes para a


preservação ao afirmar que (1) “nem tudo que é passado tem, por definição,
direito à perenidade” e, em conseqüência, “convém escolher com sabedoria o
que deve ser respeitado”, e que (2) “copiar servilmente o passado é condenar-
se à mentira, é erigir o falso como princípio” (idem, 54).
As políticas modernas de patrimônio formam-se, assim, na Europa com o
objetivo de preservar monumentos de pedra e cal, de valor histórico, artístico
ou científico excepcional; a autenticidade figura nesses escritos como impor-
tante marco das práticas de conservação e restauro.
Não cabe passar em revista nestas páginas todo o processo de mudança
dos parâmetros teóricos e práticos da preservação até nossos dias. Mas, para
delimitar convenientemente o objeto deste ensaio, deve-se mencionar ainda
a Carta Internacional sobre Conservação e Restauração de Monumentos e
Sítios, aprovada no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos
Monumentos Históricos, em 1964. Este documento, conhecido como Carta
de Veneza, amplia o conceito de patrimônio até então vigente ao formular em
seu Artº 1º que

[a] noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada,


bem como o sitio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular,
de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não
só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com
o tempo, uma significação cultural
(Idem, 92).

Ela afirma, também, no Artigo 3º, retomando a Carta de Atenas, que o obje-
tivo da conservação e da restauração é salvaguardar “tanto a obra de arte,
quanto o testemunho histórico” e estabelece ainda que: Art.5º “A conservação
dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil
à sociedade” [...]; Art.6º “A conservação de um monumento implica a preser-
vação de uma ambiência em sua escala” [...], e Art.7º “O monumento é insepa-
14 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

rável da história de que é testemunho e do meio em que se situa” [...]. (idem,


p.92-93)
Assim, embora mantendo no foco da preservação exclusivamente bens de
natureza material, a Carta de Veneza opera significativa ruptura com as conce-
pções até então estabelecidas. Primeiramente por incluir a arquitetura verná-
cula numa prática até então exclusivamente voltada a bens monumentais; e,
além disso, por ampliar o enquadramento do tema, considerando relevantes
para o equacionamento das intervenções de preservação não apenas as edifi-
cações, mas também seus usos e aspectos contextuais – tanto arquitetônicos,
quanto históricos e sociais – do patrimônio. Essa mudança de enfoque abre
caminho para integrar à problemática do patrimônio as ações desenvolvidas
pelos sujeitos com quem, ou para quem, se preserva; assim como os senti-
dos por eles atribuídos aos bens patrimoniais, ou sua significação cultural.
A UNESCO, a partir de sua criação em 1945, tornou-se o centro mundial
de referência para o desenvolvimento das bases técnicas e conceituais da
preservação, assim como o fórum onde se tem celebrado importantes acor-
dos multilaterais sobre o assunto. Duas Convenções devem ser também aqui
mencionadas: a de 1972, que trata da Proteção do Patrimônio Mundial, Cul-
tural e Natural, e a que dispõe sobre a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Intangível, de 2003.
A primeira estende a preservação aos bens naturais, e institui a universali-
dade como sendo mais um critério de atribuição de valor patrimonial. Ainda
no espírito das Cartas de Atenas e de Veneza, ela define em seu Artigo 1º que
são considerados “patrimônio cultural” mundial – por contraste a “patrimô-
nio natural” – os monumentos que tenham um valor universal excepcional
do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; os conjuntos a que se atri-
buam os mesmos valores, e os sítios, ou seja, “obras do homem ou obras con-
jugadas do homem e da natureza [....] de valor excepcional do ponto de vista
histórico, estético, etnológico ou antropológico.”
A segunda, retomando e refinando questões abordadas pela Recomen-
dação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore, aprovada em
1989, e pela Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, em 2001,
estabelece uma ruptura conceitual radical dos paradigmas da preservação.
Ela não só considera bens intangíveis como objeto deste campo, mas legitima
seu valor referencial para os mais diversos grupos sociais, sua natureza dinâ-
mica e inclui suas condições de produção como parte do objeto a ser preser-
vado. O conceito de base adotado por esta nova perspectiva é formulado nos
seguintes termos:
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 15

Art. 2º, §1. Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, represen-
tações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, obje-
tos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os
grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu
patrimônio cultural. Este patrimônio [..] é constantemente recriado pelas comuni-
dades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de
sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
(Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. www.unesco.org.br)

A ampliação da proteção oficial aos bens intangíveis criou a necessidade de se


desenvolverem instrumentos jurídicos e administrativos que venham a com-
plementar os preceitos e procedimentos institucionais vigentes. Ela instigou,
ainda que de forma indireta, a reflexão e as práticas de preservação a buscarem
superar a dicotomia conceitualmente falaciosa entre bens tangíveis e intan-
gíveis. Além disso, a frase aparentemente tautológica do texto citado onde se
afirma que é patrimônio o que “as comunidades, os grupos e, em alguns casos,
os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultu-
ral”, ao conferir legitimidade à auto-definição pelos sujeitos sociais, implicita-
mente articula a preservação a modos de vida e à dinâmica cultural.
Essa mudança de enfoque abre o campo do patrimônio para questões de
natureza ética, jurídica, política e humanitária, sobretudo em relação aos
direitos e aos modos de vida das populações indígenas e tradicionais. Esse é,
por certo, o principal desafio a ser enfrentado pelas políticas de patrimônio
(tangível ou intangível) em todo o mundo.
A ampliação do espaço de participação dos povos indígenas, das popu-
lações tradicionais e das camadas populares nas políticas de preservação vem
sendo acompanhada pela crescente percepção da importância da sustentabi-
lidade como fator determinante da eficácia das políticas de patrimônio, par-
ticularmente no caso do imaterial. Como se sabe, as culturas são realidades
vivas e mutáveis, e sua produção, continuidade e mudança dependem de con-
dições históricas e socioambientais específicas. Nesse contexto, sustentabi-
lidade refere-se aos aspectos práticos da vida social, ou seja, disponibilidade
de recursos naturais necessários à reprodução de práticas, saberes e formas
de expressão, e diz respeito, também, à prática e transmissão de habilidades
e conhecimentos, assim como à expressão dos valores a eles associados. Mas
sustentabilidade não diz respeito exclusivamente ao patrimônio imaterial,
uma vez que a integração entre o planejamento e a conservação do patri-
16 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

mônio ambiental urbano depende do reconhecimento da singularidade das


áreas preservadas, assim como das condições de vida nas cidades e centros
históricos. Em ambos os casos, a pergunta que se coloca é: de que forma os
programas implementados pelas agências de preservação afetam as condições
de reprodução social do patrimônio imaterial e a integração do patrimônio
ambiental urbano à dinâmica das cidades?

III

O caráter a um só tempo abstrato e abrangente dos símbolos nacionais – con-


traposto ao caráter territorial e localizado da experiência social efetiva – leva a
indagar se, até que ponto e para quem, as representações patrimoniais consti-
tuiriam de fato referências de pertencimento à nação enquanto “comunidade
imaginada”, para usar a sugestiva expressão cunhada por Benedict Anderson
(1983).
É fato que a preservação tem privilegiado historicamente bens representa-
tivos dos valores políticos e estéticos das classes dominantes, mesmo em paí-
ses em que a democracia se encontra consolidada; diferenças e desigualdades
sociais (tanto no âmbito interno das nações, quanto entre povos e regiões)
têm estado praticamente ausentes dos acervos de bens oficialmente protegi-
dos. Mas nem sempre é esse o caso. O rápido sobrevôo das mudanças imple-
mentadas nos parâmetros conceituais da preservação ao longo dos últimos
70 anos feito anteriormente mostrou que essas normas têm sido modifica-
das, ainda que a contrapelo de opiniões majoritárias (Velho, 2006). Sendo
dependentes dos valores que orientam os campos profissionais envolvidos e
as ações do Estado em determinada conjuntura, elas mesmas são produtos da
história e, portanto, realidades dinâmicas.
Para bem entender a eficácia simbólica do patrimônio é preciso matizar a
compreensão de seus efeitos sobre a formação da nação e da cidadania, e lem-
brar que embora a preservação legitime, por definição, os marcos e símbolos
de que se apropria, ela não o faz automaticamente. A produção do patrimô-
nio é, no fundamental, uma questão de atribuição de valores e construção de
sentidos. Portanto, diferença, diversidade e conflito lhes são absolutamente
inescapáveis (Arantes, 2007). Quando mais próximas e sensíveis as políticas
patrimoniais estiverem da diversidade e diferença efetivamente presentes nas
assim chamadas comunidades culturais, mais os instrumentos jurídicos des-
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 17

sas políticas deverão operar a mediação entre universos culturais distintos e


não raramente conflitantes.
O patrimônio pode ser integrado às culturas locais ou recusado por elas;
tudo depende dos usos sociais a que vier a servir. Inúmeros exemplos corro-
boram esta afirmação. Entre eles, é bastante esclarecedor o conflito ocorrido
em São Paulo, em torno da revitalização da Capela de São Miguel, construída
em 1622, e que envolveu artistas populares, órgãos de preservação e represen-
tantes da Cúria Metropolitana (Arantes, 1984: 149-74). Apesar dos reiterados
esforços das autoridades responsáveis por seu uso e conservação, essa capela
histórica localizada em um bairro popular e industrial da cidade de São Paulo
mantinha-se por muito tempo vazia e à margem da vida religiosa e cultural
do bairro.
Em 1978, quando se iniciava o processo de redemocratização no Brasil, a
instituição municipal de preservação decidiu estimular sua re-incorporação
à vida do bairro e região por meio de um programa elaborado com a parti-
cipação dos produtores culturais locais. O programa experimental foi bem
sucedido, uma vez que obteve resposta entusiástica da população e compro-
vou a compatibilidade entre o uso da capela como lugar de disseminação de
expressões culturais populares e as normas de conservação da edificação tom-
bada. Contudo, ao longo do processo de ocupação, configuraram-se interesses
conflituantes entre a população e os gestores e, em conseqüência, o programa
não foi implementado. Em relação à edificação, prevaleceu o uso orientado
pela função estético-religiosa do monumento. Do ponto de vista dos ocupan-
tes e simpatizantes, o conflito gerou um resultado positivo inesperado, uma
vez que levou à formação de uma organização política, o Movimento Popular
de Arte, que foi uma das entidades pioneiras entre os movimentos sociais do
período.
Em suma, tendo em vista que a dialética de afirmação e contestação de
hegemonias constantemente modifica, refaz e desloca as identidades, e que
a criatividade humana reinventa incessantemente o social, entende-se que o
patrimônio possa ser esquecido, re-encontrado, refeito, reinventado, ou des-
encadeie a construção de sentidos simbólicos inesperados. A proteção oficial
não lhe garante um lugar seguro no panteão institucional da cultura. Este é
um desafio perene e estrutural que se coloca às instituições responsáveis pela
proteção, conservação e uso desses tesouros oficialmente protegidos.
18 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

IV

Uma das entradas para o tema da inserção do patrimônio nas cidades con-
temporâneas é oferecida pelo conceito de “patrimônio ambiental urbano”.
Esse conceito (Bezerra de Meneses, 2006: 36-9) abarca, como se sabe, três
aspectos da realidade urbana: sua condição de artefato, de campo de forças
sociais e de agregado de representações simbólicas.
É bastante oportuna a retomada, na conjuntura atual, de uma compreen-
são totalizante da cidade, tal como propõe esse conceito e como pratica a
abordagem designada “conservação integrada” de centros históricos. Asso-
ciando a noção de ambiente à de patrimônio urbano, esse enfoque induz a
reflexão e a prática patrimoniais a integrarem aos aspectos arquitetônicos,
urbanísticos, históricos e estéticos usualmente considerados, aspectos intan-
gíveis dos bens formadores da paisagem urbana, tais como técnicas e conhe-
cimentos tradicionais utilizados em sua construção, usos efetivos e formas de
apropriação desenvolvidas pela população, entre outros. Ele permite incor-
porar, também, os sentidos e significados atuais atribuídos a esses bens, aos
valores pelos quais os habitantes das cidades reconhecem nas edificações e
espaços preservados mais do que amontoados de sobras do passado, ou pano
de fundo em relação ao qual a experiência social e pessoal poderiam ser indi-
ferentes. Dito de outro modo, essa perspectiva permite ressaltar os sentidos
de lugar que nutrem a experiência de habitar as cidades e o constante refazer
das identidades no espaço urbano (Arantes, 2003: 255-60).
Lugares são espaços apropriados pela ação humana. São realidades a um
só tempo tangíveis e intangíveis, concretas e simbólicas, artefatos e senti-
dos resultantes da articulação entre sujeitos (identidades pessoais e sociais),
práticas (atividades cotidianas ou rituais) e referências espaços-temporais
(memória e história). São realidades que desafiam a dicotomia estruturante
das práticas patrimoniais e que indicam claramente a necessidade de sua
superação, pois como afirma Yai (2007: 75-6) em sua reflexão sobre o patri-
mônio com base nas tradições africanas “tudo está em tudo, o imaterial está
no material [...] e os mortos nunca estão realmente mortos.”
Para compreender a dimensão social do patrimônio nas cidades, é fun-
damental considerar o papel dos bens preservados – enquanto agregados
de marcos territoriais, culturais e históricos – na formação e transformação
dos sentidos de localização e de pertencimento, assim como na formação
da experiência social e da consciência de si. Como argumentei em outro tra-
balho (Arantes, 2000b) com base em escritos de Ecléia Bosi (1979, 1992),
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 19

a memória social, assim como a pessoal, apresenta “pontos de amarração“,


experiências em que várias gerações ancoram as lembranças da sua cidade e
que se referem a velhos lugares que são inseparáveis do que neles ocorreu.
“Se o espaço é capaz de exprimir a condição do ser no mundo”, afirma ela, “a
memória escolhe lugares privilegiados de onde retira a sua seiva.” (Bosi, 1979:
366-67) Os sentidos psicossociais do patrimônio que fazem parte da expe-
riência de habitar uma cidade são constantemente refeitos e, reflexivamente,
acumulados nos marcos tangíveis que identificam e estruturam a paisagem
urbana (Ribeiro, 2007).
Enfatizando os processos políticos e econômicos que estruturam os con-
juntos de pontos focais identificáveis no espaço urbano, a socióloga S. Zukin,
inspirada em J. Jackson (1984), afirma, sinteticamente,
quer tomemos um ponto de vista histórico, quer tomemos um ponto de vista estru-
tural, a paisagem é claramente uma ordem espacial imposta ao ambiente – cons-
truído ou natural. Portanto, ela é sempre socialmente construída: é edificada em
torno de instituições sociais dominantes (a igreja, o latifúndio, a fábrica, a franquia
corporativa) e ordenada pelo poder dessas instituições
(Zukin, 2000: 84).

Considerando que a experiência social tem sido profundamente marcada por


migrações e deslocamentos forçados, assim como pela interação social que
ocorre à distância e em tempo real, torna-se evidente que o sentimento de
pertencer a coletividades nacionais, regionais ou locais, ocupando posições
reconhecíveis em mapas sociais territorializados, ganha nova significação e
importância. Essas são motivações e necessidades que se manifestam atual-
mente na inclusão de demandas de natureza patrimonial na construção de
sentidos de lugar no espaço urbano.
Em outros termos, a economia investe hoje pesadamente na re-invenção
da diversidade cultural, assim como na re-qualificação dos fragmentos de his-
tória sobrepostos e amalgamados na paisagem urbana. Iniciativas de reabili-
tação de núcleos históricos e de edificações preservadas são praticadas por
um número crescente de atores e grupos sociais e, ao mesmo tempo, tornam-
se alvos da atenção de agentes de publicidade e marketing, com vistas à criação
de negócios e mercadorias de inflexão cultural, ou com valor cultural agre-
gado. Esses investimentos têm crescido significativamente nas últimas déca-
das, colocando novas questões ao que se poderia designar como a agenda
contemporânea do patrimônio (Zukin, 1991, 2000; Smith, 1996; Fortuna,
1997; Motta, 2000; Rubino, nesta colectânea).
20 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

Na re-qualificação de centros históricos têm prevalecido critérios de inter-


venção que reforçam a dimensão estética monumental (mega-projetos de
valorização de fachadas e de iluminação) e os sentidos alegóricos dos bens
patrimoniais. Esses critérios contribuem para que se considerem substituí-
veis – ou descartáveis – edificações protegidas em razão de sua singularidade.
Além disso, respondendo em primeiro lugar, e muitas vezes unicamente, a
novas oportunidades de negócio, essa hiper-valorização do aspecto estético
do patrimônio sobrepõe-se ainda frequentemente aos interesses e necessida-
des das populações que vêm ocupando tradicionalmente áreas que se torna-
ram protegidas (Arantes, 2000a; Leite, 2004).
É preciso enfatizar que o patrimônio enquanto recurso econômico não se
encontra necessariamente vinculado à especulação. É certo que mega-empre-
endimentos urbanísticos e turísticos se valem dessa tendência e a estimulam
por vezes com consequências desastrosas. Mas é também verdade que progra-
mas de geração de renda, de consolidação da cultura pública e da cidadania
nutrem-se e buscam eficácia no fortalecimento de tudo aquilo que a popu-
lação pode fazer, com os recursos materiais e imateriais de que dispõe e acu-
mulou nos lugares onde vive. O patrimônio urbano é bom para o desenvolvi-
mento sustentável das cidades, ele contribui para consolidar a cultura pública
e também, porque não, é bom para os negócios. Por todas essas razões, ele
deve ser valorizado. O desafio que se apresenta é encontrar o ponto de equi-
líbrio entre essas forças, ou seja, construir a sustentabilidade da preservação,
atentando para os seus aspectos simbólicos, econômicos e sócio-ambientais.
A noção de sustentabilidade foi incorporada ao discurso e à prática dos
ambientalistas pelo menos desde 1987. A referência clássica é o relatório
de Brundland que a derivou de um princípio ético claro e simples: desen-
volvimento sustentável é aquele que satisfaz necessidades básicas humanas
presentes, sem causar prejuízo para as gerações futuras. A exigência de sus-
tentabilidade implica na responsabilidade social dos agentes (indivíduos e
instituições) da preservação e deve, com urgência, ser convidada à mesa de
discussão sobre o patrimônio cultural. Como afirmou Hans-Jacob Road

[desenvolvimento sustentável e preservação do patrimônio] encontram-se na


cidade, e devem ser integrados. A cidade representa a escala menor na qual se iden-
tificam grandes mudanças ambientais. Ela é, também, a escala menor em que esses
problemas básicos podem ser resolvidos
(Road 1999:110).
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 21

Como argumentei em outro trabalho (Arantes, 1999: 131-2), para ser efe-
tivamente sustentável a conservação integrada deve evitar pelo menos três
males: (i) a neutralização dos sentidos de lugar efetivamente construídos pela
re-apropriação do patrimônio por parte da população; (ii) a construção de
sucedâneos de espaços públicos e (iii) o uso de dispositivos de segurança que
segreguem a população local em benefício dos ocupantes ocasionais.
Torna-se oportuno fortalecer – no caso específico do patrimônio ambiental
urbano – a perspectiva da integração entre a conservação e o planejamento, a
partir do reconhecimento e valorização da singularidade das áreas preserva-
das (enquanto conjuntos de artefatos, práticas e significações simbólicas) no
contexto mais amplo da cidade. Um instrumento útil para tal fim é a deno-
minada “gestão compartilhada” (www.iphan.gov.br), que valoriza a inserção
do patrimônio na vida cotidiana e procura equacionar, em termos práticos e
de forma efetiva, o preceito de responsabilidades concorrentes entre a socie-
dade civil e as esferas federal, estadual e municipal do poder público.
É o modo de gestão do patrimônio que torna ou não viável habitar e reali-
zar empreendimentos comerciais nos sítios históricos preservados. Em ques-
tões de cultura o “como” em geral é muito mais importante do que o “que” se
faz. Portanto, o principal objetivo das políticas urbanas de patrimônio deve
ser o desenvolvimento de modos sustentados de apropriação de estruturas
urbanas e arquitetônicas nas cidades e, para tanto, melhorar as condições de
moradia e de vida dos habitantes de núcleos protegidos.
Estes são temas de grande relevância prática, que devem passar a merecer
mais atenção de gestores e pesquisadores uma vez que se torna parte da visão
dos especialistas em políticas sociais, a ideia de que a proteção, valorização e
promoção do patrimônio cultural podem contribuir para o desenvolvimento
social e econômico. Resta verificar empiricamente, e caso a caso, que limites
e desafios são trazidos por essas novas oportunidades. Em especial, coloca-se
o desafio de construir indicadores culturais, sociais e econômicos que permi-
tam avaliar as transformações induzidas pelos gestores do patrimônio sobre a
qualidade de vida, assim como sobre os modos de apropriação prática e sim-
bólica do espaço urbano.
Eis, em breves linhas, o campo recoberto pelo presente tópico: a atribuição
de valor patrimonial, na esfera pública, a artefatos e práticas sociais correntes;
alguns parâmetros conceituais dessa prática; e sua inserção na dinâmica cul-
tural e no mercado, com ênfase espacial nas realidades urbanas. Dos pontos
de vista da antropologia e do direito, diversos e complexos são os aspectos do
problema. Do ponto de vista político, imenso é o desafio de tornar efetivo o
22 PLURAL DE CIDADE: NOVOS LÉXICOS URBANOS

papel de protagonista que as convenções internacionais e a opinião pública


atribuem aos diferentes grupos sociais. Caminhamos muito desde a década
de 1930, mas há ainda um enorme espaço a ser preenchido pela reflexão e
pela prática profissional.
PATRIMÔNIO CULTURAL E CIDADE 23

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