Carol Disserta
Carol Disserta
Carol Disserta
PUC/SP
São Paulo
2005
Carolina Marra Simões Coelho
PUC/SP
São Paulo
2005
Carolina Marra Simões Coelho
Cidadania em políticas públicas voltadas para mulheres em situação de violência de
gênero
_________________________________
_________________________________
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Para Iracema.
Para Lúcia.
AGRADECIMENTOS
À Profa. Lúcia Afonso. Não existem palavras para agradecer sua solidariedade e
amizade irrestritas.
Aos Prof. Antonio Ciampa e Profa. Cristina Vicentin pelas contribuições que deram
na qualificação, permitindo que esse projeto amadurecesse.
À Cássia Batista, Geisa Ferreira, Prof. José Newton Garcia, Renato Diniz e Telma
Gonçalves, pela atenção na difícil tarefa de encontrar o caminho por onde começar a
trabalhar. Ao Prof. Mário Lúcio Vieira pela disponibilidade com que sempre acolheu
minhas preocupações.
Ao André, meu irmão, por ter sido um grande companheiro em todas as mudanças
que vivemos nos últimos anos.
Ao Luish, que apoiou todas as minhas escolhas e tornou os meus dias mais felizes,
por ter estado sempre a meu lado.
1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................8
5 TORNAR-SE FEMINISTA......................................................................................73
ANEXO 1.................................................................................................................164
ANEXO 2.................................................................................................................166
8
1 INTRODUÇÃO
1
O estágio foi coordenado pela profa. Dra. Sandra Azeredo.
9
2
Este trabalho foi realizado em caráter voluntário por mim e por Aline Ottoni de Moura. Contamos
com a supervisão da profa. Dra. Maria Emília Torres Lima.
10
3
Os dados apresentados a seguir foram retirados do panfleto Violência contra as Mulheres: uma
Violação aos Direitos Humanos – Dez anos após Viena (1993-2003), realizado pela AGENDE (Ações
em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento), CLADEM (Comitê Latino Americano e do Caribe para a
Defesa dos direitos da Mulher), Bancada Feminina do Congresso Nacional e UNIFEM (Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher).
12
4
O termo “burguesia” surgiu para indicar as pessoas que trabalhavam na administração ou no
comércio não feudal (SENNETT, 1988).
5
Na seção 2 deste capítulo, discutiremos a concepção de T.H. Marshall (1967), que trabalha
justamente o desenvolvimento da noção de cidadania nesses três seculos.
6
As idéias liberais surgiram no século XVII, mas o termo liberalismo só começa a ser usado na
segunda metade do século XIX.
15
principal era o de restaurar uma situação anterior, na qual não havia interferência
inglesa nas colônias.
A Declaração da Independência Americana é um documento fundamental na
história da cidadania. Segundo seus termos, os homens são iguais e têm
direitos inalienáveis como vida, liberdade, busca da felicidade.
No entanto, o sistema americano, que passou a ser admirado pelo mundo,
excluía a grande maioria da população e garantia a propriedade pessoal de um
homem sobre outro (escravidão). A Revolução Americana, fundamentalmente,
buscava defender o cidadão contra a interferência do Estado em sua vida e obter
igualdade política para o grupo que liderava o movimento de Independência:
Essa idéia responsabiliza inteiramente o sujeito por seu fracasso, mas não
por seu sucesso, que seria possível graças ao sistema político-econômico norte-
americano. Trata-se, portanto, de uma cidadania de cunho liberal, que em última
instância seria um modo de garantir os privilégios de uma minoria privilegiada. A
cidadania norte-americana inclui alguns e exclui muitos: mulheres, escravos,
crianças, pobres. “Assim, a democracia que garante a cidadania nos EUA torna-se
um sistema autoconfirmatório. O problema nunca está no sistema em si, mas na
incapacidade de alguns de se adaptarem a ele” (KARNAL, 2003, p. 152).
Cabe ao presidente da nação, em pessoa, garantir a liberdade da cidadania.
Essa questão será melhor debatida a seguir, primeiro com Marshall e sua
preocupação com o impacto da cidadania sobre a desigualdade social e, depois, na
relação específica entre cidadania e gênero.
Segundo Karnal (2003), a questão central da cidadania na época da
revolução era garantir a liberdade individual dos americanos contra uma potência
externa. Tratava-se, “(…) antes de mais nada, de garantir a esfera do privado como
espaço do cidadão, em detrimento da tirania externa” (KARNAL, 2003, p. 142).
Diante disso, fica mais fácil compreender porque, na cidadania norte-americana, os
cidadãos estrangeiros sempre tiveram dificuldades em ter os mesmos direitos que os
cidadãos naturais daquele país.
Em 1789, dois anos após a criação do Estado americano unificado, aconteceu
17
7
O livro de Marshall foi originalmente publicado em 1949, na Inglaterra.
20
8
Marshall (1967, p.76) entendia que “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros
integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos
direitos obrigações pertinentes ao status”.
21
A Poor Law tratava as reivindicações dos pobres não como uma parte
integrante de seus direitos de cidadãos, mas como uma alternativa deles –
como reivindicações que poderiam ser atendidas se deixassem inteiramente
de ser cidadãos. Pois os indigentes abriam mão, na prática, do direito civil
da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram
obrigados por lei a abrir mão de quaisquer direitos políticos que
possuíssem”. (MARSHALL, 1967, p. 72)
9
A concepção marshaliana de cidadania teve e tem vários opositores. Vieira (1999) aponta Cranston,
M. Roche e Turner como seus principais críticos.
10
Note-se que essa é a oitava constituição brasileira: 1824 / 1891 / 1934 / 1937 / 1946 / 1967 / 1969 /
1988.
23
outros. A cidadania no Brasil tem uma história onde, nas palavras de Caldeira (2000,
p. 374), “(...) os direitos sociais são bastante desenvolvidos mas os direitos civis não
são protegidos, ou onde os direitos políticos têm uma história de idas e vindas, em
que são garantidos num momento apenas para serem desprezados no regime
seguinte”.
Para Carvalho (2001), isso tem uma conseqüência importante: uma excessiva
valorização do poder executivo, o que leva à busca por um messias, um salvador da
pátria. E, portanto, relega o legislativo a um segundo plano: “(...) e, com ele, o direito
dos cidadãos de manifestar, através da ação de seus representantes, seus
interesses e aspirações” (QUIRINO e MONTES, 1987, p. 29).
Outro fator que trouxe, mais recentemente, mudanças na construção da
cidadania foi a modificação do cenário internacional. Carvalho (2001) argumenta que
acontecimentos como a globalização acelerada da economia provocam mudanças
nas relações entre Estado, sociedade e nação, afetando os direitos civis, políticos e
sociais. O Estado tem reduzida sua importância como fonte de direitos e como arena
de participação. Ou seja, a globalização, na medida em que significa uma
transnacionalização das relações sociais, políticas e culturais no mundo, reduz os
espaços do Estado-nação. A reformulação dos projetos nacionais implica mudanças
sociais e na reestruturação da ordem mundial (VIEIRA, 1999).
A idéia de uma cidadania restrita ao conceito de nação é agora uma
perspectiva conservadora, embora o Estado nacional (e sua Constituição) seja
importante na garantia dos direitos. Atualmente, as concepções mais democráticas
ligam a cidadania a uma proteção transnacional, com ênfase nas dimensões jurídica
e política, e têm nos direitos humanos uma de suas maiores expressões (VIEIRA,
1999).
Devemos lembrar que a globalização é dominada hoje pela economia
capitalista e neoliberal e que o renascimento do liberalismo favorece a cultura do
consumo, dificultando
(...) começa com indivíduos racionais e iguais e demonstra que estes devem
se submeter integralmente a um poder exterior a eles mesmos (...). As
decisões de todos determinam o mercado, e as decisões de cada um são
determinadas pelo mercado. (MACPHERSON, 1979, p. 115).
não crêem que o homem e a mulher tenham o dever nem o direito de fazer as
mesmas coisas, mas mostram uma mesma estima pelo papel de cada um deles, e
os consideram como seres cujo valor é igual, embora diferente o destino”
(TOCQUEVILLE, 1962, p. 460).
Na vida social, persiste, entretanto, a inferioridade da mulher. Tocqueville é
afiado em sua explicação sobre o porquê da permanência de diferenças e de
relações de poder em sociedades democráticas:
Para ele, a democracia deve se instalar não apenas nas leis, mas também
nas idéias, nos desejos, nos hábitos e nos costumes. Apesar das críticas que temos
a Tocqueville (1962), acreditamos na possibilidade de transformação social e de
emancipação não como uma conquista estática, mas como um processo no qual os
cidadãos tenham coragem para lutar por uma nova forma de organização social.
Sennett (1988) também contribuiu para a questão dos direitos, uma vez que
considerou o elemento psicológico fundamental para a compreensão do
desenvolvimento de direitos. Ele partiu de uma minuciosa análise dos costumes, do
modo de vida e do comportamento público da burguesia londrina e parisiense do
séc. XVIII, a fim de compreender as dimensões sociais, políticas e psicológicas do
problema público. Segundo Sennett (1988, p. 30), as instâncias pública e privada da
vida tal como a entendemos hoje, “são resultantes de uma mudança que começou
com a queda do Antigo Regime e com a formação de uma nova cultura urbana,
secular e capitalista.”11
A distinção entre público e privado, no século XVIII, está ligada à distinção
entre cultura e natureza. O cultural é identificado com o público, e o natural, com o
privado, lembrando que a família era vista como um fenômeno natural. A oposição
entre público/cultural e privado/natural é uma tensão que envolve controle e
equilíbrio, não apenas hostilidade. A importância dessa distinção está presente na
própria noção de direitos humanos, já que é justamente nesse sentido que se
11
Sennett (1988, p. 67) busca em Tocqueville (1835) a definição de Antigo Regime, que “(…) se
refere ao século XVIII, especificamente ao período no qual a burocracia comercial e administrativa se
desenvolve nas nações, paralelamente à persistência de privilégios feudais”.
29
12
Sennett (1988, p. 50) define crença como uma ideologia conscientemente envolvida no
comportamento; “(…) o quanto e em que termos as pessoas levam a sério o seu próprio
comportamento, o comportamento dos outros e as situações nas quais estão envolvidas”.
30
(…) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por
lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de
modo gradual, não todos de uma vez, e nem de uma vez por todas.
(BOBBIO, 1992, p. 05).
Simone, a meu ver, iniciou os estudos de gênero e ela disse, ela escreveu
uma frase: ‘ninguém nasce mulher, mas se torna mulher’. Essa frase, na
verdade, reúne o único consenso que existe entre as feministas a respeito
de gênero. Todo mundo diz: gênero é uma construção social.
(SAFFIOTI, 2000, p. 22)
A proposta de Mouffe (s/d) é mais radical. Para a autora, que não acredita em
nenhuma forma de essencialismo, devemos construir uma nova cidadania na qual
“(…) a diferença sexual se torne algo realmente não pertinente” (s/d, 39). Não que as
diferenças de gênero não sejam fundamentais em várias relações sociais, mas que
não deveria sê-lo na esfera política nem na concepção de cidadania. Para tanto,
seria necessária uma profunda transformação na noção de cidadania e na atuação
dos cidadãos na comunidade política: “A visão de uma democracia radical e plural
que quero propor entende a cidadania como uma forma de identidade política que
consiste na identificação com os princípios políticos da democracia moderna
pluralista, ou seja, na afirmação da liberdade e da igualdade para todos” (MOUFFE,
s/d, p. 41).
Por esse ângulo, seria possível a articulação de grupos distintos na luta
contra a opressão e a transformação de todas as práticas, discursos e relações
sociais onde “mulher” corresponda à subordinação para, aí sim, falarmos em
igualdade das mulheres.
Concordamos que não se trata de “generificar” a cidadania, mas de redefini-la
levando em consideração as diferenças e as relações entre as pessoas: “Assim,
uma concepção de cidadania, mais ampla e pluralista, não poderia prescindir da
capacidade de agenciamento político que as interpelações múltiplas que as práticas
das mulheres introduzem no espaço público em busca de revitalizá-lo” (SILVEIRA,
1999, p. 180).
38
13
VENTURI; RECAMAN; OLIVEIRA (org.). A mulher brasileira nos espaços público e Privado.
São Paulo: Ed. acima de 15 anos e residentes em áreas urbanas e rurais de todas as regiões do
país. Esta amostra dá à pesquisa uma margem de erro de 2 pontos percentuais, visto que a
população é de 61,5 milhões (Censo IBGE 2000).
14
Em 96% dos domicílios em que residem mulheres, elas são as responsáveis pelo trabalho
doméstico (dedicando em média 39 horas e 45 minutos semanais para as tarefas domésticas, além
de 33 horas e 41 minutos semanais para o trabalho remunerado, caracterizando a dupla jornada).
15
A partir dos dados da pesquisa, estima-se que 43% das brasileiras sofrem ou já sofreram algum
tipo de violência (física, sexual, psicológica) por parte de algum homem (na maioria das vezes o
companheiro ou o ex-companheiro).
39
(...) somente 5% das investigadas se dão conta de que sobre elas pesam
numerosas e agudas discriminações e a elas é reservado um lugar inferior
ao dos homens na sociedade. Que lástima que, em pleno século XXI, tantas
mulheres ainda sejam portadoras de “consciências dominadas” . (SAFFIOTI,
2004, p. 46).
16
Neste trabalho, trataremos “Movimento Feminista” e “Movimento de Mulheres” como sinônimos e
usaremos ambos os termos alternadamente, assim como fazem muitos dos autores com os quais
trabalhamos. Gostaríamos, entretanto, de salientar que algumas autoras apontam diferenças entre
eles. Para Souza-Lobo (1991, p.241), por exemplo, “Os movimentos de mulheres remeteriam às
reivindicações sócio-econômicas; os feministas remeteriam às questões sócio-culturais que são
clássicas nos movimentos feministas: sexualidade, aborto, violência”. O movimento feminista se
diferenciaria do movimento de mulheres por ter a perspectiva de gênero e a desigualdade entre os
gêneros como elementos fundamentais.
41
ativas17. Como vimos, a presença das mulheres foi significativa nas revoluções
burguesas, em especial da Revolução Francesa, onde tiveram participação bastante
efetiva e da qual foram esquecidas quando os revolucionários chegaram ao poder.
Filósofos iluministas, entre eles o próprio Rousseau, afirmavam que a igualdade era
associada à razão e que as mulheres eram inferiores aos homens nessa faculdade
e, portanto, deveriam ser subordinadas a eles.
A herança deixada para as mulheres por outra revolução, a Americana, não
foram direitos de cidadania. No decorrer dessa revolução, ficaram evidentes as
capacidades das mulheres, mas elas foram rotuladas como “mães” que têm como
principal função educar e formar os filhos da nação, estes sim considerados
cidadãos.
No inicio do século XIX, as imagens polarizadas entre homens e mulheres
ganharam força, a incapacidade feminina era vista como natural, assim como a
autoridade masculina, justificando discriminações (PINSKY e PEDRO, 2003). As leis
trabalhistas, por exemplo, tinham caráter protecionista e favoreciam aqueles que não
eram considerados cidadãos, ou seja, mulheres e crianças. No final do século, as
mulheres passaram a lutar, numa campanha que ficou conhecida como movimento
sufragista, por direitos políticos: queriam votar e ser votadas.
No Brasil, o movimento sufragista também foi importante e, ao lado de uma
outra vertente, preocupada com a dominação das mulheres pelos homens,
caracterizava o feminismo no início do século XX. Até então, as mulheres não eram
consideradas sujeitos portadores de direitos e, portanto, não eram vistas como
cidadãs nem pelo Estado, nem pela sociedade civil. De acordo com Pinto (2003) –
que conta uma história do movimento feminista no Brasil com o objetivo de tentar
compreender como as mulheres vêm se organizando em defesa de sua cidadania –
a exclusão das mulheres era tão natural que não precisava sequer ser mencionada,
por isso não há referência a elas nas constituições da época18.
Uma das grandes defensoras do direito ao voto e dos direitos civis para as
mulheres foi Bertha Lutz. Em 1932, o novo código eleitoral incluiu a mulher como
detentora dos direitos de votar e ser votada. A luta pelos direitos políticos das
17
No final do século XVIII eram considerados cidadãos ativos aqueles que tinham direito à
participação no poder público e na Guarda Nacional, o que era possível apenas àqueles que tinham
propriedades.
18
A primeira constituição brasileira que faz referência a igualdade entre homens e mulheres e aos
direitos específicos das mulheres é a de 1988.
42
mulheres foi, no Brasil e no mundo, a porta de entrada delas no terreno da luta por
direitos mais amplos: “Na verdade, essa primeira luta era pela cidadania em seu
nível mais básico” (PINTO, 2003, p.38).
A outra corrente do feminismo era representada por operárias19 e intelectuais
de esquerda. Essas feministas, ao contrário de outros movimentos sociais da época,
colocavam em evidência as diferenças, até mesmo entre aqueles que viviam
situações de opressão. Acreditavam que os oprimidos não eram oprimidos da
mesma forma. Elas identificavam claramente a relação de dominação dos homens
sobre as mulheres e defendiam a idéia de que o poder deles tinha como alicerce a
exploração delas:
19
As operárias participavam ativamente do movimento contra a opressão masculina, pois o gênero já
era percebido como estruturante das desigualdades presentes nas relações de trabalho (PINTO,
2003).
43
bastante diferente. Em 1964, houve o golpe militar que instaurou uma ditadura que
cassou os direitos políticos e civis dos cidadãos. O Ato Institucional nº5 (AI-5), em
1968, coibiu ainda mais qualquer atuação política no país. Apesar disso, o
movimento feminista ganhou força e desenvolveu-se na década de 1970, sendo que
muitas vezes as feministas estavam envolvidas com a luta contra a ditadura:
20
2o Encontro Nacional de militantes petistas no Movimento de Mulheres (1988) – Arquivo da
Fundação Perseu Abramo.
46
21
A sociedade civil é reduzida precisamente as ONGs: “O resultado tem sido uma crescente
identificação entre ‘sociedade civil’ e ONG, onde o significado da expressão ‘sociedade civil’ se
restringe cada vez mais a designar apenas essas organizações, quando não em mero sinônimo de
‘Terceiro Setor’ (DAGNINO, 2004, p. 100).
22
Este conflito entre feministas autônomas e partidárias ficará mais claro a seguir, quando
analisarmos o movimento feminista em Belo Horizonte (MG).
49
que ficou conhecida como "Convenção de Belém do Pará". Antes de Belém do Pará,
outra convenção internacional tratou da discriminação e da violência contra as
mulheres – foi em 1979, quando aconteceu a “Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher” (CEDAW, ONU). Na
Convenção de Belém do Pará, que definiu como violência contra a mulher “(...)
qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no
privado” (capítulo 1, artigo 1 o ), os Estados-pares concordaram em adotar
progressivamente medidas específicas para atender mulheres em situação de
violência e para prevenir e erradicar a violência contra a mulher.
Foi também nesse cenário que as mulheres brasileiras se mobilizaram para a
preparação para a “IV Conferência Mundial da Mulher”23, que se realizou em 1995,
na cidade de Beijing, capital da China. Esse foi um momento propício para realizar o
desejo de reerguer o movimento de mulheres. Nos anos de 1994 e 1995, muitos
trabalhos preparatórios (como fóruns, seminários, debates) foram organizados,
dentre os quais destacam-se “Fórum de Mar del Plata” (setembro, 1994), no qual
houve articulação do Brasil com os outros países da América Latina, e a
“Conferência nacional – rumo à Beijing” (junho 1995), onde foram estipulados
compromissos políticos e medidas de ação. O papel do movimento de mulheres foi
decisivo, principalmente porque pressionou e contribuiu “(...) para a formulação da
posição do governo brasileiro nesses encontros internacionais” (COLETIVO
FEMININO PLURAL/RS, 2004).
Compareceram à Conferência de Beijing, mais de 40 mil pessoas,
representando governos, movimentos sociais e ONGs de 189 países. Beijing foi
muito importante no sentido de consolidar o avanço da consciência mundial sobre
igualdade, justiça e direitos humanos, à luz da perspectiva de gênero e do
reconhecimento da desigualdade entre os sexos (COLETIVO FEMININO
PLURAL/RS, 2004; ARTICULAÇÃO DE MULHERES Brasileiras-Beijing 95,1995).
Assim, essa conferência deu origem a dois documentos: a Declaração de Beijing,
na qual os países signatários reconheceram a luta das mulheres e firmaram o
compromisso com a igualdade de direitos entre homens e mulheres; e a Plataforma
23
Antes da Conferência de Beijing (1995), foram realizadas “Conferências Mundiais da Mulher” no
México (1975), Copenhague (1980) e Nairobi (1985).
50
(...) garantia social, que tem como objetivo forçar uma redistribuição de
poder em determinado campo. Pode ajudar no processo forçoso de reforma
social e do aparelho estatal, mas apenas como elemento mediador das
transformações almejadas. (AQUINO, 2000, p. 285).
24
Resultado da pesquisa A mulher brasileira nos espaços público e privado (IN:VENTURI;
RECAMÁN; OLIVEIRA, 2004).
25
No trecho citado acima, Batista (2003) está discutindo as idéias de Adaíza de Oliveira Sposati et
alli: A constituição de 1988 e o percurso das políticas sociais públicas no Brasil. In: ______. O
52
pois a ameaça ao poder ou sua diminuição são um convite à violência. Não basta,
entretanto, diferenciarmos poder de violência. É preciso entender que eles se opõem
e que a violência não irá jamais gerar poder. Arendt (1985, p. 29) analisa esta
questão da perspectiva psicológica e da política:
Arendt (1985) alerta para o perigo de teorias orgânicas, nas quais o poder e a
violência são interpretados em termos biológicos. O exemplo da autora refere-se ao
racismo, mas também pode ser pensado a respeito do gênero:
28
A violência de gênero pode também ter como objeto “(...) homens que fazem sexo com outros
homens, homens de classes subalternas, ‘de cor’ e homens que não exercem dominação sobre as
mulheres”(SMIGAY, 2000, p. 222).
29
A autora define “corpo incircunscrito” como corpo permeável, aberto à intervenção, no qual as
manipulações do outro não são consideradas problemáticas. O “corpo incircunscrito” não é protegido
pelos direitos individuais.
57
30
O marido ou parceiro é o principal agressor (53% nos casos de ameaça a integridade física e 70%
nos de quebradeira), seguido pelo ex-marido ou ex-companheiro. Dados da pesquisa A mulher
brasileira nos espaços público e privado – Fundação Perseu Abramo.
58
31
Smigay (2000) assinala que a importância do trabalho de Gregori está no fato de que ela tentou
introduzir o subjetivo como um dos elementos fundamentais na análise da violência de gênero,
enfrentando as limitações da perspectiva macro-social vigente na época.
32
A autora distingue assistencialismo de política. O assistencialismo é relacionada à noção de
caridade e impede a mobilização dos demandantes. A política, por outro lado, pode ser pensada
como denúncia e autonomia.
33
As formas da violência de gênero são muitas. A violência sexual é quando a mulher é forçada,
mesmo por seu marido, a ter relações sexuais quando não deseja ou a praticar atos sexuais que não
lhe agradam, quando é criticada pelo seu desempenho sexual, quando é obrigada a presenciar outras
pessoas tendo relações sexuais ou a ouvir relatos de relações sexuais de seu companheiro com
outras pessoas. Ato destrutivo é quando o companheiro quebra móveis, joga os pertences da mulher
na rua, destrói ou esconde os documentos da mulher, destrói suas roupas ou quaisquer objetos
pessoais ou quando mata seu animais de estimação. A violência física configure-se se o companheiro
a agride com tapas, mordidas, socos ou fogo ou quando tranca a mulher contra sua vontade, a coloca
59
Desde meados dos anos 80, as feministas reivindicam com muita ênfase
uma política social preocupada com a segurança das mulheres nas ruas e
em seus próprios lares, punições mais severas para o estupro e a violência
doméstica, programas de proteção às vítimas e campanhas de
conscientização nas escolas e nos meios de comunicação. (PINKY e
PEDRO, 2003:304).
em risco ou a ameaça com uma arma mortal. A violência emocional é quando o homem xinga,
ofende, ameaça espancar a mulher ou seus filhos, a impede de trabalhar, sair ou ter amizade.
34
Uma análise da história dos SOS Mulher pode ser encontrada em Gregori (1993).
35
Esses dados estão nos relatórios feitos por mim dos “Encontros de Mulheres no Resgate da
Cidadania” (2001 e 2003).
60
36
Sobre a influência do aspecto custo-benefício na participação política, ver também a teoria de
Shubit “O dilema do prisioneiro”, em Sandoval (1989).
64
2) Sujeitos sociais ativos: que irão definir o que consideram ser seus direitos e
lutar por seu reconhecimento. Nesse sentido, “é uma estratégia dos não-cidadãos,
dos excluídos, uma cidadania de ‘baixo para cima’” (DAGNINO, 1994, p. 108). É um
processo de tornar-se cidadão.
37
Utilizamos aqui o termo organiza com o propósito de frisar que estes pontos também foram
debatidos por outros autores, nos quais Dagnino (1994) se baseou para desenvolver seu argumento.
66
Assim sendo, para nova cidadania existir é imprescindível que haja um sujeito
social ativo, e esse sujeito-cidadão não pode ser divorciado de sua subjetividade.
Essa subjetividade da qual estamos falando só pode ser construída dentro de uma
esfera relacional. Corroborando com essa questão, Afonso (2000, p. 01) nos aponta
67
(...) a subjetividade chama atenção para o fato de que nós somos ‘os
outros’, isto é, nos constituímos de relações, de experiências que
estabelecemos e vamos estabelecendo a cada dia. Estamos, assim, em
constante mudança.
Desse modo, a subjetividade38 não se restringe ao eu, pois a cada vez que
encarnamos uma diferença nos tornamos outro, ou seja, o encontro/desencontro
com o outro abre em nós a possibilidade de vir a ser (ROLNIK, 1994).
É na relação com o outro e com a cultura que o sujeito se constitui. A
diferença é fundadora do sujeito: “(...) a pessoa constrói-se adiantando uma
diferença (...), descobre assim recursos simbólicos que lhe permitem inverter um
estigma que a negava como sujeito, ou a proibia de se exprimir enquanto tal”
(WIEVIORKA, 2002, p. 173). A subjetividade é, por outro lado, componente
essencial da diferença. Wieviorka (2002) analisa a diferença a partir de um triângulo
formado pela identidade coletiva39, pelo indivíduo moderno40 e pelo sujeito.
A definição de cada um desses conceitos é polêmica na psicologia. Como
aqui não pretendemos entrar nesse debate, escolhemos nos apoiar na noção de
sujeito por entendermos que ela nos auxilia na compreensão de nosso problema de
38
Rolnik (1194, p. 163) define subjetividade como tendo duas dimensões, uma consciente – que nos
dá a possibilidade de caminharmos no mundo – e uma inconsciente, “(…) que é a dimensão da
subjetividade mergulhada no invisível da alteridade, como caos, como devir-outro”.
39
“(...) conjunto das referências culturais em que se funda o sentimento de pertença a um grupo ou a
uma comunidade, seja esta real ou ‘imaginada’” (WIEVIORKA, 2002, p. 168).
40
Todos os indivíduos são teoricamente livres e iguais em direitos. “O indivíduo define-se aqui em
virtude da sua participação social e política na vida da cidade, e não pelas suas pertenças culturais”
(WIEVIORKA, 2002, p. 170).
68
Segundo Afonso (2001, p. 91): “(…) o discurso implica não apenas (ou
necessariamente) uma transmissão de informação entre dois sujeitos, mas de modo
geral, um ‘efeito de sentidos’ entre eles”. O discurso é produzido na relação, é um
jogo estratégico de ação e reação, de dominação e esquiva, de luta, é o espaço no
qual emergem os sentidos. O sentido é produzido na relação entre a fala da pessoa
e as condições de produção do discurso. Chamamos a isto de “interdiscurso”.
Brandão (2002, p. 12) entende o discurso como “o ponto de articulação dos
processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos”, que, portanto, não serve
apenas para comunicação:
social; ela não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa
intencionalidade) e nem natural, por isso é o lugar privilegiado de
manifestação da ideologia”.(BRANDAO, 2002, p. 12).
41
“Espaços discursivos: são recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo
discursivo tendo em vista propósitos específicos de análise” (BRANDÃO, 2002, p. 73).
71
42
Roteiro para análise do discurso anexo.
43
Nessa passagem Maingueneau faz referência a PECHEUX, Michel. Sur les contextes
épistémologiques de l’analyse du discours. Mots. Presses de la Fondation Nationale de Sciences
Politiques 9/10/1984.
72
5 TORNAR-SE FEMINISTA
44
Os resultados da pesquisa serão repassados, numa apresentação pública, para a comunidade e
para as pessoas que trabalham nessas instituições.
45
Roteiro de entrevista em anexo.
74
sentidos de cidadania produzidos por elas são conseqüências dessas histórias e têm
impactos no cotidiano das políticas públicas nas quais elas trabalham.
Analisamos as entrevistas através da análise do discurso, apresentada no
quarto capítulo desta dissertação. Iniciamos a análise com leituras flutuantes das
entrevistas transcritas46, a partir daí, levantamos as principais categorias e
subcategorias. O procedimento de análise passa pela análise de cada caso, pela
comparação intragrupos e, finalmente, pela análise transversal do material.
Passaremos, agora, à análise das entrevistas, iniciando pela história contada
pelas entrevistadas sobre a trajetória do movimento de mulheres em Belo Horizonte.
46
Roteiro de análise em anexo.
47
CÓSER (1989) analisou, em sua dissertação de mestrado em educação, a participação política de
mulheres mineiras em partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, nos anos de 1975-85.
GREGORI (1992) conta as origens e práticas dos SOS-Mulher no Brasil e menciona o caso de Belo
Horizonte (MG). MOREIRA; RIBEIRO; COSTA (1992) retomaram brevemente, em seu texto sobre
violência conjugal, a história do SOS-Mulher e da Delegacia de Crimes Contra a Mulher em Belo
Horizonte. LANNA (1996) fez uma pesquisa no mestrado em história sobre o Movimento Feminino
pela anistia em Minas Gerais. AMORIM et alli (2000) relataram a história das políticas públicas para
mulheres na cidade de Belo Horizonte. Esse texto foi elaborado pela executiva do Conselho Municipal
dos Direitos da Mulher.
48
Não pretendemos, no espaço desta dissertação, fazer uma pesquisa historiográfica do movimento
de mulheres no município, mas simplesmente retomar dimensões desta história relatadas por
mulheres que trabalham com a questão da violência de gênero.
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M: (...) a gente sabia, desde oitenta a gente sabia que tinha que ter políticas
pra mulheres vítimas de violência, então a gente não, não, não esconde
essa discussão e publiciza, mas o ..., o ... o número de pessoas que se
apropriam disso é muito pequeno, né. Porque a gente não tem interlocução,
né, com a mídia, né, por mais que a rádio Itatiaia fala, né, as rádios de
grande audiência, né, também, na época, né, acompanharam, porque foi
também um momento no qual a matança de mulheres em Belo Horizonte
era uma coisa, né, estrondosa, então isso publicizou, né, quer dizer, a
própria, a própria questão da violência, ela se imprim... ela se colocou como
uma de-man-da importante naquele momento, quer dizer, a gente queria
dar um basta naquela situação, aí foi a partir, né, da criação da Delegacia,
da criação da... da... da discussão dos abrigos, que isso, né, foi se, foi...
foi... foi cristalizando como uma ação, né. (grifos nossos).
49
Na entrevista foi solicitado que contassem sua trajetória no trabalho com a questão do gênero; a
partir daí elas retomam a história do movimento, indicando uma identificação entre a trajetória coletiva
e pessoal.
77
O citado grupo, que era uma ONG, permaneceu trabalhando até 1992-93,
quando se dispersou. Teve, segundo Karin, a trajetória de muitos outros grupos:
“bom, o grupo na verdade funcionou, cresceu, se esvai e faz a trajetória de muitos
grupos”. E Karin acrescenta: “E o espólio [do SOS] acaba dividido entre pessoas e
grupos, é..., parte do material que a gente tinha a gente doou pra... depois... e bom”.
O grupo foi disperso e o SOS extinto, no entanto existiu alguma continuidade
do trabalho: havia um telefone para atender às mulheres na casa da militante:
C: Ah é?
A criação do Conselho Estadual não foi consensual, assim como ocorreu com
o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), indicando proximidade entre
os percursos nacional e estadual. Vejamos, por exemplo, duas posições:
M: Então a gente no... na década de oitenta, então a gente discutia porque
que o Franco Montoro criou o Conselho Estadual da Mulher em São Paulo,
porque que o Itamar Fran... o... tsc... Tancredo Neves criou, né, o... o... o...
Conselho da Mulher aqui, que também a Luzia participou, desse dessa
discussão, né, da criação do Conselho Estadual da Mulher. Aqui em Bel..., e
a gente era contra a criação de Conselho, porque a gente queria um órgão
que tivesse um poder de execução maior (grifo nosso).
50
Sobre a relação entre o movimento de mulheres e o PMDB ver: ARAÚJO, Lourdes Maria Silva.
79
L: Então eu fiz parte deste primeiro Conselho, né, é..., integrando a sua
secretaria executiva e a partir daí iniciamos também, então, pela primeira
vez, dentro das políticas públicas do Estado, uma perspectiva diferenciada.
é..., no Conselho, né, que envolvi, né, uma atuação integrada, mas unindo
também com... com representantes da do movimento de mulheres, nós
começamos, ele foi muito importante na....
Por um lado, Luzia relata ter feito parte do Conselho desde o inicio, por outro,
de acordo com Márcia e Karin, é apenas em um segundo momento que alguns
grupos de mulheres do movimento feminista – principalmente aqueles ligados a
partidos políticos – foram, com muita pressão, incorporados nos Conselhos. O
processo de elaboração e implementação dos Conselhos foi conflituoso e gerou
muita frustração e debate entre as feministas. Como nos diz Karin, a proposta de
implementação do Conselho “veio pronta de Brasília”. Márcia também afirma se
M: (...) a Neuzinha que cria a lei que cria o Conselho sem conversar com a
gente do PT, que nós éramos contra, ela vai conversar com o pessoal do
PC do B, com a Jô Moraes na época. Então depois, né, nós falamos, então
já é lei, né, foi aprovado, então o Conselho existe muito porque na época
não se tinha essa conversa, né, mais foi uma onda de criar Conselhos, o
Conselho Nacional, é, reivindicava e orientava a criação de um Conselhos
Municipais e Conselho Estadual. Então estourou conselho pra tod... muitos
lugares, né, no Brasil foi assim, pela orientação da do Nacional.”
52
Textos preparatórios para o 2o Encontro Estadual de Mulheres do PT-MG (Comissão de
Mulheres do PT em Belo Horizonte, abril e maio de 1988) – arquivo da Fundação Perseu Abramo.
53
Relatório das discussões dos temas preparatórios para o 2o Encontro Nacional de Mulheres
do PT – arquivo da Fundação Perseu Abramo.
81
K: Surto, porque era uma questão de mulheres que não interessava e surto
porque era surto pra com muita coisa. Ce percebia, porque a gente ficava
em ante-sala, né, e tal. Que era muito difícil e porque tem, e é um estilo de
polícia trabalhar e tal que se escuta muito pouco, né. Faz-se muito barulho,
fala-se muito alto, movimenta-se muito, mexe-se muito pra lá, entra em
porta sai de porta, fecha isso e tá... tá... tá... Muita gente se locupleta nesse
lugar mais na prática mesmo, trabalho, resultados é sempre muito... muito
pouco, né. Estilo, vamo dizer, corporativo de trabalhar. É... bom, mas enfim
ele já tava começando a ser pressionado também pela imprensa, a
imprensa já tava começando a ir na secretaria, e ai como é que ce vai
formular, vai num vai ter, São Paulo já tem, imagina não podemo ficar atrás.
Aquela coisa provinciana também. Aí então, teve uma hora que ele, a gente,
nós já tínhamos ido lá umas duas três vezes aí ele, teve uma hora que ele
falou: chama lá aquelas mulher chata lá pra gente vê o que... que elas
querem, pra num dize que a gente crio alguma coisa separada. Eu lembro
dele fala assim: fala, manda fala com aquela alemã briguenta lá, que tudo
que eu falo ela fala que não. Era eu! (risos) alemã briguenta. Era assim que
ele me chamava (risos). Manda chama aquela alemã briguenta, eu não sei o
nome dela (risos). Entre as pautas a gente pedia a possibilidade tanto
de trabalhar nas no delineamento da, da delegacia, quanto no
treinamento das equipes (grifo nosso).
K: Que que é que vocês tão chamando de treinamento? É tiro ao alvo? Que
que cês tão precisando aprender que cês num sabem? Né. Botou uma
delegada lá pra ensinar pra gente, ela se ofereceu pra dá um curso de tiro
ao alvo e de segurança pessoal. Né. Então assim, era, cê tinha que segurar
pra poder dá conta daquelas reuniões e tal. Era muito trágico... é aquela
54
outra coisa. Um dia ele chega: tô com o problema solucionado! Vocês vão
adoram a delegada! Ela é muuito bonita! Né, assim era (risos) tripudiava em
cima da gente né, eu acho que nós também né. Também por outro lado,
nós também éramos chatas, íamos pra imprensa, contávamos como que
tava sendo as decisões lá dentro, como eles eram insensíveis, como eles
eram incapazes. Eu acho que era de parte a parte. Fomos insuportáveis
(risos) uns pros outros. Foi muito difícil mesmo, esse momento. É... constrói-
se parcialmente alguma coisa com Elaine Matozinhos porque era a mulher
bonita que ele tinha designado, né. E... de cara nós babando a inveja de
São Paulo, porque em São Paulo o movimento de mulheres tinha
conseguido delinear as coisas como... lá a Rosemary tinha conseguido
impor a idéia do treinamento... Não, num conseguimos delinear, fizemos as
várias propostas e tal, com muito custo parte do projeto passou por
discussão dessa comissão junto com Elaine, é..., e algumas coisas ela já foi
não e dizendo não aqui... muito instruída pela secretaria, né. é... num
podemo perder, esse espaço é nosso, a instituição é nossa, o poder é
nosso, a decisão é nossa, a palavra final é nossa. Entendo que esses, né,
esses, vamo dizer assim, esse jogo aí de poder, de enfrentamento, de parte
a parte. Mais... tem hora que cê tem ganhos e mil perdas, é isso mesmo, um
processo. É... teve coisas que ela nunca abriu mão, por exemplo, ficou
claríssimo que foi uma incorporação da delegacia de costumes tal e qual.
Com todos os seus encargos e suas questões, né, é..., tanto que as batidas,
por exemplo, em clinicas de aborto, que mais tarde continuaram a ser feitas,
herança da do..., né, do da delegacia de costumes... né. muito pouca coisa
se foi deixando de fazer. O fichamento das... das prostitutas, né, os
enclausuramentos temporários delas e dos... e dos... dos caras michê, que
eles sempre faziam, ainda se fez algumas vezes, né. é... foi reduzindo, né,
mais, né, ainda se considerava como atributo, né, como competência e
vanta..., né, e como, vantagem mesmo da delegacia fazer...
54
Ela está falando de Bias Fortes, então secretário da justiça.
84
K: (...) ainda no inicio dos anos 80, os esforços para pelo menos tentar
começar a mudar as representações que a polícia tinha. Isso a gente
consegue fazer o... quer dizer, consegue fazer não! A gente faz um trabalho
junto à Secretaria de Segurança e às delegacias, né, É com a cúpula da
polícia a gente trabalhou muitas vezes, muitas vezes mesmo, é... e
mantinha a articulação com os grupos nacionais, isso, isso, esse período
dos anos 80 tem muita, é tudo muito articulado nacionalmente, né.
Parcialmente internacionalmente, nas nacionalmente é muito articulado.
55
As usuárias da Delegacia também criticam os serviços prestados pela instituição. Um trabalho (Os
dados sobre este trabalho podem ser encontrados em COELHO, Carolina Marra S. e MARQUES,
Caroline Pereira. Relatório do 1o Encontro de Mulheres no resgate da cidadania, 2002, mimeo.)
que realizamos em 25 de dezembro de 2001 com as usuárias das políticas de gênero no município
aponta que a Delegacia é avaliada por elas de modo negativo. As mulheres queixam-se do
atendimento recebido nessa instituição e sentem-se alvo de preconceito de gênero: a polícia “apóia
os homens”, eles acham que “a gente é vagabunda”. Algumas mulheres contaram que na Delegacia
foram aconselhadas a matar o companheiro ou a voltar para casa: “falou assim pra mim: volta pra
casa, você tem que pensar nos seus filhos. Para de frescura. Você tem que voltar pra casa e
obedecer”. Segundo elas, esse tratamento preconceituoso, a lentidão da justiça e a impunidade dos
agressores diminuem a vontade de denunciar. Podemos perceber que a Delegacia é vista, por essas
mulheres, como um lugar mais de conflitos do que de soluções e que precisa melhorar a qualidade de
seus serviços para prestar um atendimento mais eficiente. É preciso lembrar que eficiência neste
caso não diz respeito apenas a rapidez e qualidade do serviço, mas também à compreensão de que
na maioria das vezes que uma mulher procura a Delegacia, ela está passando por um momento de
extremo sofrimento físico e psíquico e está buscando justiça, compreensão e apoio.
85
K: Eu acho que o lobby do batom, por exemplo, foi talvez um belo, uma bela
discussão, uma bela discussão sim. É... porque nesse momento tava se
dis..., eu acho que com certeza, com certeza. Foi um grupo articulado, né,
o... o..., foi um movimento articulado e... e conseguiu fazer dois caminhos,
ele conseguiu entrar na câmara, no senado e se fazer ouvir, eh, e
conseguiu se fazer ouvir junto à mídia. Aí encontrou um aliado importante,
né, encontrou um aliado muito parceiro, vamos dizer assim, tá, pra... pra
falar disso, pra discutir e tal. Porque eu acho que hoje a mídia é melhor, é...
é um dos caminhos importantes para se discutir coisas em público. Ao
mesmo tempo tem que pensar que o lobby do batom, ele coincide, né, com,
sei lá, com todo o grupo do Ulisses Guimarães, sabe, eh, com um
Constituinte dis..., com parceiros dispostos a repensar, né, a questão da
cidadania, né, tem interlocutores interessantes em Brasília. Cê tem Paulo
Delgado que era um cara legal, né, comprometido, tem o Genoíno na sua
primeira fase que era um parceiro interessante.
Nesse ponto, fica uma pergunta: por que elas não mencionam a questão da
violência quando se referem à nova Constituição? E por que a questão feminista
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L: Aí eu lembro que a cada eleição, desde 1985, que foi a primeira vez que
se elegeu prefeito aqui, após 64, né, diretamente, eram indicados, o
movimento de mulheres junto com... as mulheres dos partidos políticos,
apresentava uma campanha, né, para todos os postulantes a cargo de
prefeito, a todos os candidatos a prefeito, apresentava em mo..., em atos
públicos, em momentos de campanha, que normalmente era um encontro
com..., de... de que o candidato era chamado a... a se manifestar, entregava
uma plataforma, né, de... de luta feminista pra cada, pra ter dele um
compromisso, então esse movimento, as mulheres fizeram desde 85 com...
quando começou a ter eleição direta aqui em Belo Horizonte.
A atuação política das mulheres junto aos partidos serviu como pressão para
que suas demandas específicas estivessem presentes nas propostas de governo
dos candidatos à presidência da república:
M: Então, é..., todo... todas... os... as candidaturas, então Lula em 89, né,
todas as... as campanhas tanto nacional, estadual e municipal a gente
participa da elaboração. Da... da... das dos eixos temáticos das campanhas
em relação à questão da mulher. Então as bandeiras, né, criação, é, de m...,
de... de restaurantes populares, criação de lavanderias populares pra, né,
pra que essa mulher tenha mais condições, né, de... da sobrecarga do
trabalho doméstico.
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M: (...) mas também pela questão da legalização do aborto, então isso são
temas muito polêmicos, principalmente a questão do aborto, muito
polêmicos, num é? eu lembro que em 89 a gente, é, na... foi proibido colocar
isso no plano, né, de governo federal, por causa da igreja e o próprio Lula
também, então são coisas que a gente sempre fazia a discussão, né.
E em outro momento:
K: Eu acho que aqui tem a ver com uma chegada do PT no poder em que
ele, né, num quer dizer que suas práticas e ta... ta... ta... sejam assim,
né, necessariamente... é... as identidades de um movimento social. Mas
ele emerge no movimento social (grifos nosso). Tá. Ele se articula com o
movimento social de uma maneira talvez diferente.
56
Os dados relativos aos encontros feministas do PT foram retirados da documentação armazenada
pelo Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e Memória Política da Fundação Perseu
Abramo.
89
G:(...) eu entendia que teria que ser um projeto de baixo pra cima, que
fosse construído pelas lideranças, pelas mulheres e tudo e que não fosse
uma coisa vinda do prefeito, mas que a gente construísse isso daqui pra lá e
não de lá pra cá, né. E aí nós construímos, eu lembro que a gente fez
algumas... algumas reuniões nas comunidades, né, definimo no 8 de março
então que a gente ia ta trabalhando, né, assim, em cada comunidade e tal,
levantando os problemas e o que... que a gente queria nessa cidade, e a
gente fez isso e aí escrevemos o projeto e a partir daí a gente teve a... a
resposta que foi a construção do centro de apoio a mulher (grifo nosso).
E mais adiante:
57
Os dados relativos aos equipamentos foram retirados de documentos gentilmente concedidos a nós
por Márcia de Cássia, Graça Sabóia e Ermelinda, a quem expressamos aqui nosso agradecimento.
91
G: (...) pra mim o Benvinda não é meu, ele num é da equipe, ele é da cidade
e se ele é da cidade, eu a, eu entendo desse jeito, sabe, se ele é da cidade
a sociedade civil tem que participar do processo. Sabe, se ela participou do
processo de criação, ela tem que participar do processo de fortalecimento.
G: Lembro também que o Benvinda, a gente não, nós não determinamos vai
ser, o nome é “o Benvinda”, né. Mas nós discutimos com as pessoas,
algumas lideranças e tal, qual era o nome melhor praquele centro de apoio.
E o Benvinda significava muito isso, né, é... garantir que essas mulheres
fossem bem vindas e bem atendidas, com uma escuta diferente de tudo
aquilo que ela tinha na vida dela.
G: Por que nós não queremos fazer nada pra elas, mas nós queremos
construir com elas uma nova sociedade. Eu acredito nisso. Num sei se é
porque eu sou militante, né, então eu... eu acredito nessa coisa, né, da
construção com as pessoas, não para as pessoas.
K: Boa pergunta. Putz grila!, minha memória tá ruim. Teve sim (sem
firmeza). Eu acho que tem. Tem no sentido que quando você abre
seminários, leva pra discutir o projeto, é claro que isso é consulta, tá? Não,
teve sim, teve sim. Foi um processo é... não foi um processo definido por
um grupinho de portas fechadas de forma nenhuma. De forma nenhuma,
abriu-se muita discussão, com certeza. Algumas eu participei, outras eu
ficava sabendo que tinha tido, né. Teve muito.
M: (...) olha, nós fizemos vários seminários, é..., debates muito li...
vinculados à comissão paritária, quem era da comissão? Eu, Karin e... e...
Embora elas reconheçam que houve alguma consulta à sociedade civil, não
sabem contar como isso foi feito, quem foi envolvido e quais as suas conseqüências.
Graça, ao contrário, parece valorizar esse processo na construção do
programa e em sua trajetória pessoal, identificando-se como representante legítima
das comunidades e lideranças.
O Benvinda foi inaugurado em agosto de 1996. Graça relata como foi o
evento:
58
Em São Paulo, foi criada a Casa Abrigo Helenira Rezende de Souza Nazareth em 1991. A Casa foi
fechada em 1992 e reaberta no dia 8 de março de 2001. Em Porto Alegre, a Casa de Apoio Viva
Maria está em funcionamento desde 1992. Atualmente, muitos municípios brasileiros têm abrigos
para mulheres em situação de violência de gênero.
93
G: A Casa Abrigo foi mais assim uma discussão mais... mais mesmo com
...com ãh... com algumas pessoas, não foi um negócio muito aberto, num foi
assim... mesmo porque era um projeto (pigarro) que ele era, era diferente do
Benvinda, né, era um projeto sigiloso, uma casa sigilosa, um lugar sigiloso e
tudo mais.
A Casa Abrigo Sempre Viva abriga mulheres em situação de alto risco de vida
devido à violência de gênero. Seu principal objetivo é acolher essas mulheres, em
caráter emergencial e provisório (média 90 dias), bem como seus filhos menores de
16 anos. Sua capacidade é para atender até 12 mulheres e 30 crianças por vez,
sendo que há mulheres simultaneamente em diversas fases do processo de
abrigamento. Durante o abrigamento, as mulheres têm acesso a serviços
psicológico, jurídico, social e terapêutico. Devemos lembrar, no entanto, que a oferta
desses serviços é relativa aos recursos humanos da CASV no momento. Para serem
abrigadas, as mulheres precisam formular queixa na Delegacia Especializada em
Crimes contra a Mulher e passar por uma triagem no Benvinda. Por motivo de
segurança, sua localização é sigilosa e apenas os funcionários têm acesso a seu
endereço.
Em 1998, foi criada a Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher
(COMDIM). Situada na Secretária Municipal dos Direitos de Cidadania, a COMDIM
teve sua criação publicada no Diário Oficial do Município de Belo Horizonte em 17 de
julho de 1998. Segundo Márcia, a proposta de criação da Coordenadoria nasce das
“Mulheres do PT”:
M: (...) dentro do... do... do..., né, de Belo Horizonte, por mais que a gente
tem (sic) onze anos de governo, a gente tá engatinhando ainda, né. Assim,
por mais que a gente construiu, muita coisa a gente tem fazer ainda, né. A
gente ta começando, somos muito poucas, né, é..., é..., isso, isso faz com
que a gente repense, né, que tipo de política que a gente tá fazendo, pra
não formar novos quadros, pra não formar novas lideranças, então isso pra
gente também é... é um desafio, né, e que tem que ter resposta. O que que
a gente tem que... quais as outras pos... possa nos fortalecer. Então. Tem
hora que a gente fica num... num... samba do crioulo doido assim, numa
loucura, numa, né, coisa insana de correr atrás de tudo, né, de pensar o 8
de março, de pensar o 25 de novembro. Então, assim, cê fica muito na... no
fazer, né, de aparecer, e não de ter uma ação, né, que concreta, né, que dê
frutos, né, a um, a médio e a longo prazo, né, cê pensa muito a curto prazo,
né.
G: Oh, aliás, Carol, acho porque a... eu costumo dizer que a gente num
ganha nada, a gente conquista e a conquista só vem com a luta, num é.
Com certeza, se não fosse os movimentos sociais, né, a discussão das
mulheres e tal, com certeza as políticas públicas, num tinha Benvinda em
Belo Horizonte, se ocê quer saber. Não tinha casa-abrigo em Belo
Horizonte. Não teria Coordenadoria em Belo Horizonte. Eu acho que toda a
discussão do movimento social, ela tem grande importância pras coisas que
59
Ambos os encontros tiveram como objetivos propiciar o reencontro de mulheres que já haviam sido
atingidas pelos programas, avaliar os serviços prestados junto com as usuárias (1o encontro) e
avaliar o impacto dos programas na vida das mulheres (2o encontro).
95
L: Então eu acho que foram decisivos, né, esse esse formato que a gente
tem de... de espaços institucionais, ele veio de... de fora pra dentro do poder
de Estado. Né. Ele foi mesmo arrombando portas, se tem uma coisa que a
gente pode dizer, né, que surgiu de fora pra dentro eu acho que que é essa
conquista das mulheres, é..., entrou arrombando porta, com pressão, com
movimentos, e que foi tendo também, obviamente, né, como é, como é que
começou a conquistar também, quando começaram a eleger re...
governantes mais comprometidos com a democracia, com com a cidadania,
claro que nós tivemos essa acolhida, mas foi basicamente isso, de fora pra
dentro.
No entanto, Karin, que se autodefine como uma militante autônoma, tem uma
visão crítica desse processo:
K: (...) por isso que tô te falando, eu acho que na experiência mineira foi em
parte, em parte... (grifo nosso). Mas não é esse discurso que ocê vai
escutar. Eu, isso eu queria até te chamar atenção, provavelmente o discurso
aqui é meio ufanista, tá? Assim: nós fizemos, nós (muda de tom). Eu, eu
boto minhas barbas de molho, acho que a gente fez uns pedacinhos, alguns
fragmentos, algumas coisas.
(....)
Agora, eu tenho sempre a sensação de que gosta de, eu não sei como é
que são os outros Estados, como se assim aqui a gente tivesse feito,
delineado, marcado, o movimento de mulheres aqui conseguiu isso,
consegui aquilo. Ponho minhas barbas de molho, sabe. (pequena pausa)
Acho que é super valorizado. Tá?
E: (...) porque na verdade a gente sente que hoje existe um pouco uma
inoperância desses movimentos, uma crise aí dos movimentos de mulheres,
dos movimentos feministas que... e a gente, não temos resposta de porque
que isso acontece.
G: E a partir daí eu... eu... comecei a... a prestar mais atenção nisso, né,
assim, prestar atenção no papel dessas mulheres, inclusive porque a
associação de mulheres... ela era importante, mas ela não discutia a
questão das mulheres, a problemática das mulheres, a organização das
mulheres, era uma associação de mulheres como outra qualquer, que não
tinha o objetivo claro dessa proposta, né.
G: Ah, discutia tudo. Cesta básica, discutia creche, discutia tudo. Né, é,
asfalto no beco e num sei que, orçamento participativo. Menos o papel
dessa mulher na sociedade, ou papel dessa mulher na família, ou o papel
dessa mulher enquanto pessoa capaz de construir um mundo melhor, né. E
e, assim, eu fui percebendo isso.
M: (...) o contato maior mês... foi feito através ...é, da minha inserção na
universidade e com algumas outras mulheres que eram militantes, ...é, do
movimento estudantil onde a gente começou a questionar a postura, né,
de alguns companheiros nossos em relação ...a, à liderança então muitas
vezes nas reuniões o que a gente falava era o que os homens falava... nas
assembléias, né? Ou então era o que era acordado, então nós começamos
a... a montar um grupo, né? (grifo nosso)
M: Então eu fiz, então acho que a minha a minha sorte de... de ter, é,
também entrado pra essa área do feminismo, foi porque a essa... essa
101
Durante o tempo em que fez sua formação feminista, Márcia já era filiada ao
PT. Participava dos encontros de mulheres do partido, onde questões feministas
eram debatidas. Ser membro do PT aparece como fundamental em sua trajetória.
Em sua entrevista, ela fala a partir do lugar de membro do partido e de sua posição
hoje no governo local, uma vez que a cidade é gerida pelo PT. Graça, que também é
filiada ao mesmo partido, enuncia seu discurso a partir muito mais de sua
identificação com os movimentos sociais de base do que com sua identidade
partidária. Apesar dos diferentes percursos e identificações, Graça e Márcia são
exemplos de pessoas que atribuem sua entrada no movimento feminista à
consciência política da situação das mulheres na sociedade brasileira e à
necessidade de se trabalharem as questões específicas das mulheres.
Luzia, hoje filiada ao PPS, também mantém estreitas relações com os
partidos políticos e é a partir de sua identificação partidária que ela enuncia seu
discurso. Ela iniciou sua trajetória política ainda na universidade, onde participou de
movimentos estudantis e entrou para partidos políticos. Ela conta que seu
engajamento no movimento de mulheres a partir da participação no “Movimento
Feminino pela Anistia” (MFPA)60:
L: É... então a minha vida, é..., depois entrei no Movimento Feminino pela
Anistia, foi daí que depois surgiu essa vinculação com a luta das mulheres.
L: (...) mas, mesmo dentro dos partidos que eu participei, né, sempre
também estive ligada, né, com essa, porque cada partido também tem
essa... essa forma de organizar, pelo menos partidos de esquerda,
defendendo essas bandeiras, de ter sempre uma comissão de mulheres ou
60
O “Movimento Feminino pela Anistia” em Minas Gerais foi fundado por D. Helena Greco em 1977.
102
programas. Ela nos conta que participa dessas políticas desde que elas começaram
a ser preparadas: “(...) a gente tá desde o início, eu, Margareth, desde a comissão
paritária e outras coisas.”
Márcia foi gerente da Casa Abrigo até o final de 1999, quando assumiu a
coordenação da Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher.
Enquanto Márcia apresenta-se como membro do movimento de
mulheres que reivindicava ações do Estado, Luzia identifica-se como representante
do governo, que recebia as demandas dos movimentos sociais. Segundo ela, é
deste lugar que ela participa da elaboração das políticas públicas: “(...) participei
muito diretamente da... da... construção desses dois equipamentos porque a época
eu trabalhava na secretaria de governo, um órgão que também recebia essas
demandas, é. “
Luzia nunca assumiu nenhum cargo de chefia nos programas de atendimento
a mulheres. Sua atuação política no município foi significativa em outros setores; ela
ocupou várias posições de prestígio na administração local. No momento em que
realizamos a entrevista, ela estava se candidatando a vereadora; antes disto era
secretária municipal da Regional Nordeste
Outra militante que participou da elaboração dessas políticas públicas para
mulheres foi Karin. Ela identifica-se como representante da UFMG. Essa condição a
manteria, segundo ela, como participante autônoma ou, até mesmo, neutra. Vejamos
suas palavras:
lugares e ta... ta... tá... essa era uma questão que num... pra mim num tinha
ressonância, né, pra mim isso não era um debate feminista. Então, eu não
punha em risco. É... quando o... se delineou o projeto da casa-abrigo, então
eu vou como representante da UFMG, né, e tal. Teve um momento que me
perguntaram: você vai querer coordenação? Eu falei ‘de jeito nenhum’.
Acho que isso aliviou também. Sabe? Eu falei ‘de jeito nenhum’. O meu
lugar, é, pra mim é muito claro como é que a gente da universidade chega
num lugar desse,e esse é um lugar onde você onde você veio trazer um
certo olhar, um certo debate, uma certa, né, uma certa... questionamento
das... de coisas, é..., enquanto representante da universidade.
Karin afirmou que nunca teve a intenção de ocupar espaços de poder, pois
seu lugar nos debates sobre a criação de políticas públicas, como dito acima, era de
representante da universidade. Sua participação depois da implementação dos
programas foi como consultora externa, como acadêmica. Segundo ela, várias
outras pessoas da universidade foram chamadas para prestar consultorias. No seu
caso, ela atribui os convites para prestar consultorias à sua participação como
militante feminista desde a criação da Delegacia e, também, à boa relação que ela
mantém com a Márcia e com “as outras meninas”:
Como consultora, portanto, Karin participa dos programas sem perder sua
autonomia política.
Ermelinda e Daniele, por sua vez, entraram nos programas quando eles já
estavam em funcionamento, nos anos de 2000 e 2004, respectivamente. Hoje
ocupam os cargos de gerente do Benvinda e da CASV. Ermelinda era funcionária da
prefeitura da cidade de Sete Lagoas (MG) e participava dos encontros feministas
como sindicalista. Ela conta que, desde que soube do trabalho realizado na Casa
Abrigo, na Conferência da Saúde da Mulher em Belo Horizonte, teve vontade de
trabalhar no programa: “Eu me lembro que eu achava o programa fantástico. Eu me
lembro que eu comentava com algumas pessoas, gente eu ainda quero trabalhar
nesse projeto”.
107
C: E a entrada da Daniele?
M: (Breve pausa) É. Pois é... (tom grave) eu... precisava de uma pessoa, né,
que tivesse pelo menos alguma... alguma... entrada nessa discussão de
gênero, ou pelo menos já tivesse participado, a gente... A idéia era trazer a
Ângela pra trabalhar com a gente aqui, ela é do programa de família, ela
sempre vinha pra discutir casos aqui com a gente dentro do abrigo, e ela...
ela sempre teve muito a fim de trabalhar com a gente e ela tem muito o
perfil de gerente, porque ela é gerente, sempre foi, né, é uma... e que a
Assistência não abre mão dela.
C: Hum?
M: Não abriu mão. Então eu falei: ó, Ângela, mas comé que eu vou fazer, eu
preciso de alguém, uma pessoa, né, gerente. A gente foi perguntado pra
algumas pessoas, né, o que... que, se elas conheciam alguém. Aí que a
Ângela falou: é... eu posso te indicar uma pessoa? Que aí aparece a
Daniele.
D: (...) Na verdade, uma amiga, ela foi chamada, né, pela Marcinha pra vir
pra gerenciar a Casa, né. Que... a Ermelinda tava saindo, então. E essa
pessoa não se interessou e tal e me indicou pra Marcinha, falou que tinha
uma pessoa e tal e... do SOSF e tal, deu algumas indicações, e eu
conversei com a Marcinha, né, e acabamos acertando de vir pra cá.”
61
Margareth também tem uma trajetória de militância no movimento de mulheres e trabalha na
COMDIM. Durante a licença-maternidade de Márcia, ela a substituiu na Coordenadoria.
109
dormindo aqui e fui lá, pra conversar com ela. Eu falei: olha, né, não se sinta
amedrontada, eu acho que é um desafio, é um trabalho novo, mais, né,
imprima o seu jeito. Que é uma coisa também, Carol, que eu faço com as
pessoas. Eu dô muita autonomia, porque as pessoas têm que buscar... se
elas acreditam naquilo, se é um trabalho, se elas tão responsáveis, que elas
façam, né, é... pr’aquilo ali, é..., desenvolver.
Em pelo menos duas falas de Daniela, podemos perceber como ela se sentia
em seu primeiro mês de trabalho num equipamento que ela não conhecia:
modo. Karin falou dos rachas dentro dos grupos e da posterior migração de
militantes para a estrutura governamental:
Não é raro que movimentos sociais, após uma fase de ampla mobilização
em torno de questões concretas, ganhem algum acesso às estruturas
políticas estabelecidas. Em nome de uma eficácia maior, as lideranças
engajam-se nessas estruturas – e o movimento entra em decadência, pelo
menos enquanto manifestação autêntica de interesses sociais determinados
e uma experiência de vida social intensa.
62
Ainda neste capítulo discutiremos o papel das agências financiadoras nos movimentos sociais.
111
L: (...) eu sempre foi uma pessoa que... que vim do movimento, ocupei
cargos importantes no executivo, né, de... de, como gestora, né, de políticas
públicas, que aí a gente tem que, a gente é absorvida pela demanda, pela
rotina.
Apesar de afirmar que sempre tem como princípio trabalhar com uma
perspectiva de gênero em qualquer lugar que esteja, ela admite que esta é uma
tarefa difícil, pois sua rotina de trabalho envolve outras questões, e ela acaba sendo
“absorvida” por elas. Seu trabalho hoje não envolve diretamente o gênero ou a
violência contra a mulher.
Ermelinda e Márcia, por outro lado, percebem o processo de migrar para as
instituições do Estado como confuso e carregado de ambigüidades. Ermelinda falou
da dificuldade em articular os interesses do movimento social com os do poder
público: “A gente tem essa dificuldade, quando a gente é do movimento e vem pro
poder público, né. E são instâncias diferenciadas, uma coisa é cê ta no movimento,
outra coisa é você virar poder público. Né.”
Mais adiante, ela argumenta que estar no movimento social ou no Estado
exige atitudes diferentes e difíceis de conciliar:
E: (...) É esse acerto de passo que... às vezes ele é difícil de fazer, né, é...,
de você entender que você tá num outro lugar, né, é, e que é diferenciado,
num adianta você querer vir com cara de movimento pro poder público. Ou,
por exemplo, o poder público querer massificar o movimento, querer que o
movimento, é..., seja o poder público. Eu acho que de ambos os lados, né,
que há muitas vezes confusão desse lugar.
Para Márcia, essa parece ser uma questão fundamental, pois ela retoma esse
ponto no decorrer de toda a entrevista. Ela se posiciona como fazendo parte tanto
do movimento de mulheres, quanto da estrutura governamental, o que parece gerar
ansiedade nela. Márcia entende que o conflito entre essas duas posições é inerente.
Vejamos exemplos de falas nas quais essa duplicidade aparece:
M: Hoje cê vê, vê outros valores, outros conceitos, mas naquela época foi muito
importante. Então essa, essa questão de... de você ter, né, uma diferença do
movimento, a gente sabe que tem. Que tem o movimento, nós fazemos parte do
movimento, mas é, até que ponto cê (grifo nosso), a gente é governo e é movimento,
ao mesmo tempo, e há e há isso também, né, é essa confusão e essa coisa bem, é...,
bem tênue, ou seja, tem hora que cê passa ser movimento e cobra do governo e tem
hora que cê é governo e cobra do movimento, então a estratégia da gente, é,
perceber que...
112
C: Hã, hã!
M: É, né, tem hora que a gente é movimento, tem hora que a gente é
governo. Então há essa confusão, ainda, né. E a gente não tem um
movimento forte, né, assim. Eu não sei se vai existir, né, esse movimento
forte ainda, mas assim, a gente ainda, nós temos ainda um grau de
inserção muito pouco, num é (grifo nosso).
Para Ermelinda, essa migração pode ter levado a uma crise do movimento de
mulheres:
E: Então, vai pro.. pro espaço..., é... é institucional. Né. Como que isso lida
com o movimento? Então, tem... tá pensando porque aí a gente ta..., dizia,
113
ONG, e fechando, né, os acordos com, contratos, porque como aquilo era
financiamento da FORD a fundo perdido, esse era um acordo que a gente
tinha.
K: Nessa hora deixaram muito claro que, a FORD deixou, Peter Spin... Peter
Frye deixou muito claro, olha eu, nós definimos que, né, que nos vamos
investir, agora é a década AIDS, depois terá outra coisa e tal e vocês agora
têm pernas porque o Estado entrou na cena, então agora vocês vão ter que
se haver com eles, né, tem que dar continuidade... foi uma decisão
interessante também, em termos de de delinear onde é que eles iam botar
esforços, recursos e investimentos. É... e... também na medida em que a
AIDS foi incorporada no Estado, eles saem pra ir pro movimento negro...
M: (...) autonomistas, feministas, tanto é que a Karin hoje, né, ela tem essa
postura muito de uma feminista autônoma, ela não tem vínculo nenhum,
né, como eu e outras pessoas que têm, né, a gente sempre fala em nome
do PT, né, porque foi a escola que a gente teve, né. É, tanto que... que a
gente vai pro... pro governo numa, num... num governo, é..., da marca do
PT e traz essa discussão dentro do viés do PT, então, por mais que a gente
tem contribuições do PCdoB, de outros partidos que tão na frente junto, né,
na campanha do... do Patrus, mas é... é... a... a..., quem dá a linha é o PT.
63
O impacto da onguinização dos movimentos sociais foi discutido no terceiro capítulo desta
dissertação.
116
M: Agora, cê vê que uma das coisas que a gente, é, pelo menos propõe, é
que exista movimento autônomo, né, ele que vai dar condições pra que
qualquer política pública seja garantida, em qualquer governo que seja, num
é só do PT, né. Então, por isso que assim, a gente, é, acredita na
construção de fórum, na construção de grupos de mulheres, nas
comunidades, isso eu... eu acredito que mesmo que não sejam
movimentos autônomos, mas são mulheres que se organizam e... e...
117
com objetivos diferentes, com perspectivas diferentes, mas que elas podem,
né, a... acrescentar na sua ação, algumas questões da mulher, algumas
questões que partem da suas, é, experiências próprias, né.
M: Porque é uma... uma questão muito cruel, né, quer dizer, você é
ignorada, você, pra você fazer qualquer tipo de atividade junto com o
118
prefeito é um deus nos acuda. Até pro prefeito, né, até que num, ele tem
uma relação com você, até que é importante pra ele, ele vai num sei o
quê (grifo nosso). Mas até você convencer os outros que é importante a sua
atuação, ah! É um deus nos acuda, né. Então, nós temos ainda muita coisa
pra caminhar e talvez eu não, eu não sei se resolveria ter uma mulher
prefeita, sabe, não é isso. Sabe, a questão não é... não basta ser mulher,
né.
G: (...) Eu entendo que a questão de gênero... ela tem que ser... ela tem que
ser uma política de todas as pessoas, num é, num tem que ser só das
mulheres, mas ela tem que ser de homens e mulheres, tem que ser uma
responsabilidade da sociedade, acho que a questão de raça tem que ser
também uma responsabilidade da sociedade (grifo nosso).
119
K: Não não, não, não, não. Aqui que tá. Um pouq..., os programas de
reprodução, sim. Os programas de sexualidade e reprodução, é, sim. Mas,
é... mas assim mesmo se ocê pega pessoas do tipo o quê? Um Ramon, né,
que teve a frente dos programas de sexualidade, hospitais, na rede e ta...
tá... tá. Ele sempre falava, nossa, que sensação de que dez anos depois,
quinze anos depois eu tô sozinha falando com mais duas três pessoas que
coisa impressionante, não ter interlocução.
Luzia contou que ela própria, que trabalha com outras políticas públicas,
busca priorizar uma perspectiva de gênero em sua atuação, mas que nem sempre é
fácil manter esta postura:
públicas pudesse ter incorporado essa dimensão do gênero, seja na... na....
na..., né, na prática educacional, né, ge... ge... gerindo as políticas públicas,
chamando atenção pra que tivesse incorporado essa... essa dimensão de
gênero, né, seja no... no... no... na montagem da equipe com o qual eu
estava trabalhando, seja no apoio aos movimentos e... e as lutas. Quer
dizer, eu sempre incorporei essa... essa dimensão. Mas a gente quando vai
pr’um espaço que ocê tenha que é... é... gerir. Toda a complexidade da...
da... de... de uma política pública pra uma cidade desse tamanho, isso
também te absorv... A... a a essa preocupação ela fica mais secundária.
Eu vejo assim, né, já foi na minha vida uma... uma preocupação
principal, hoje ela fica mediada pelas outras também (grifo nosso). Mas
onde eu estou, seja no partido, seja coisa, eu sempre estou lá junto também
pra preservar e... e garantir, né, essa... essa... que essa concepção
prevaleça.
Em sua fala, podemos notar que a atenção dada ao gênero nestes programas
é encaminhar as mulheres para a delegacia. A própria Daniele, que está iniciando
agora seu trabalho com mulheres, mostrou-se confusa a respeito dos significados de
gênero em sua entrevista, indicando a fragilidade da abordagem dada ao tema
dentro da prefeitura.
Os dados apresentados neste capítulo apontaram para o fato de que os
discursos produzidos pelas entrevistadas são marcados por diversos interesses e
identificações. Procuramos analisar os lugares a partir dos quais as entrevistadas
emitem seus discursos. Para tanto, voltamos nossa atenção para os modos de
engajamento dessas mulheres nos movimentos sociais, para sua participação nas
políticas públicas municipais de atendimento a mulheres e para a relação do
movimento de mulheres com o Estado. Todas essas questões são relevantes para
compreendermos os sentidos de cidadania, gênero e violência construídos por elas.
No discurso de nossas entrevistadas, pudemos perceber que elas se
posicionam como sujeitos sociais ativos, que têm direito a ter direitos. Elas se
engajaram no movimento de mulheres, onde definiram suas demandas de direitos e
lutaram por seu reconhecimento. Obviamente, nem todas as reivindicações foram
atendidas, mas nesse processo estas mulheres foram se tornando cidadãs, dentro
de uma concepção proposta pela nova cidadania.
Além disso, neste capítulo também apareceram reivindicações das
entrevistadas pelo direito de participar da própria definição do sistema. A relação
delas com o Estado parece ser vista desde uma perspectiva onde a participação
efetiva dos cidadãos nos governos locais é fundamental para a construção da
cidadania. Nesse sentido, seria possível manter um relacionamento crítico e
democrático com o governo.
122
que nós estamos muito desiguais, porque a gente poderia, então, ser
cinqüenta por cento, se fosse isso (grifo nosso).
A análise das falas das entrevistadas nos mostra que os sentidos produzidos
no discurso estão mais próximos daqueles que constituem a concepção de nova
cidadania. Nesta concepção, a cidadania tem como base o direito a ter direitos, o
direito à igualdade e à diferença e o reconhecimento do outro como portador de
direitos. Sendo, assim, mais ampla do que a aquisição de direitos formais e o
cumprimento de deveres.
No entanto, noções burguesas e liberais fazem parte das falas das
entrevistadas sobre cidadania. Daniele apresenta, em certo momento da entrevista,
uma concepção liberal de cidadania. Ela fala em “usufruir dos direitos” já existentes
e “cumprir os deveres”: “Cidadania? (suspiro) ué, eu acho que é quando a... a... as
pessoas consegue... está, é, usufruindo, né, dos seus diretos, né, mas também,
é, cumprindo com os deveres que elas têm, né.”
A igualdade, não a homogeneização, está na base dos direitos. Nas
entrevistas, direitos como o de ir e vir aparecem de forma recorrente. Como as
entrevistadas trabalham com o tema da violência de gênero, isso pode se dever ao
fato de que as mulheres que vivem situações de violência são, muitas vezes,
proibidas por seus companheiros de trabalhar, encontrar com amigos e parentes ou,
até mesmo, sair de casa. Além deste, outros direitos estão sendo violados quando
uma pessoa sofre uma violência, conforme discutiremos ainda neste capítulo.
A noção de direitos é essencial em qualquer compreensão de cidadania,
embora possa ser vista de várias perspectivas. Dentro de uma concepção liberal de
cidadania, os direitos são vistos como uma questão de acesso e inclusão. Os
125
cidadãos são aqueles que têm acesso a direitos previamente definidos. Já a nova
cidadania inclui a possibilidade de criação de novos direitos, que são resultado de
necessidades trazidas pelas lutas específicas e concretas dos sujeitos. O direito é
concebido como direito a ter direitos e a lutar para que eles sejam reconhecidos.
Conforme viemos discutindo no decorrer desta dissertação, muitos dos
direitos das mulheres foram criados e reivindicados pelos movimentos feministas a
partir do reconhecimento das necessidades específicas e da opressão sofrida pelas
mulheres. Ou seja, as mulheres reivindicaram não apenas sua inclusão nos direitos
dos homens, mas também que novos direitos fossem criados para atender suas
demandas. A incorporação destas demandas na Constituição de 1988 é o maior
exemplo de que estes direitos foram reconhecidos legalmente e são legítimos.
Com o reconhecimento legal dos direitos das mulheres e o enfraquecimento
do movimento feminista, a preocupação que mais aparece na fala das entrevistadas
é relativa à incorporação deles na cultura e no cotidiano. Vejamos suas respostas à
seguinte pergunta feita pela pesquisadora: “Em relação à cidadania, você acha que
há direitos que ainda precisam ser reconhecidos?”
A resposta de Karin expressa a possibilidade de criação de novos direitos a
partir de necessidades contextualizadas e específicas:
K: Reconhecidos? Quer dizer que ainda não se falou deles, que ainda
não se pensou neles? (breve silêncio). Provavelmente sim. Como a gente
vai ficando mais... né, a gente vai apurando sensibilidades, a gente vai, é,
passando a olhar pra coisas que a gente não olhou há dez quinze vinte
trinta anos atrás, com certeza, com certeza... Um dos campos pra repensar
a questão de direitos tem sido os debates em torno em relações
internacionais (grifo nosso).
L: (...) acho que nós precisamos ainda, é... é... melhorar muito na... na... no
combate à violência de fato, né, que aí é a questão da impunidade, que é
uma questão que muitas vezes alimenta, porque há ainda uma cultura, né,
de... de... eu acho que, que prevalece muitas vezes, né, que isso não é um
crime grave, né, quando a mulher às vezes fica, inclusive, muitas vezes até
incapacitada por violência ou toda é é dilacerada. Tudo isso tem... é tão
126
grave, porque foi praticado ali nas relações familiares e... e... e isso a gente
tem hoje já vários equipamentos que acolhe a denúncia, que acolhe
naquele momento a mulher, mas eu acho que a gente tem ainda... eu acho
que a questão da punição ainda é pequena no país, de chegar de fato a...
a... a ... ponto da linha e aquele crime não ficar impune. Rntão eu acho que
essa... um entrave também, que é importante, que precisa melhorar para
que a mulher possa, que aquele ciclo, né, de violência possa também ser
coibido.
Conquistas legais são fundamentais para a cidadania, mas elas precisam ser
acompanhadas de mudanças práticas. Esse ponto foi tratado como fundamental
pelas demais entrevistadas. Graça associa o não reconhecimento dos direitos das
mulheres na sociedade à violência sofrida por elas. Ela não menciona a criação de
novos direitos, mas sim a importância de eles serem socialmente assegurados:
Frente ao que foi narrado até agora, os dados indicam que as mulheres
conquistaram acesso a muitos direitos que já eram garantidos para os homens,
como, para ficarmos no exemplo mais simples, o direito ao voto. Além disso, elas
lutaram, através do movimento de mulheres, pelo direito a ter direitos e a formular
novos direitos para atender a suas demandas específicas. No entanto, notamos
também que ainda existem direitos que precisam ser elaborados, e um dos
exemplos mais polêmicos é a questão do aborto. O que mais preocupa nossas
entrevistadas, contudo, é que o reconhecimento legal desses direitos não assegurou
que eles fossem colocados em prática e incorporados na cultura.
Assegurar o cumprimento dos direitos das mulheres é um dos principais
objetivos dos programas municipais de atendimento às mulheres64. De fato, o
Estado é a única instância capaz de garantir, através de políticas públicas, os
direitos dos cidadãos e cidadãs. Outras políticas sociais não estatais correm sérios
riscos de transformarem os sujeitos em beneficiários, não em cidadãos65, pois
64
Segundo o Decreto de Regulamentação da Estrutura Organizacional da Prefeitura, seção IV,
art.132, compete a Coordenadoria dos Direitos da Mulher: I- “propor medidas e atividades que visem
a garantia dos direitos da mulher” e VIII- “fiscalizar e exigir o cumprimento da legislação que assegura
os direitos da mulher”. BELO HORIZONTE, Diário Oficial do Município (DOM), Edição Especial, 16 de
março de 2001.
65
Esta perspectiva é fruto das discussões realizadas nas aulas de Cultura e Política (2004)
ministradas na UNICAMP pela Profa. Dra. Evelina Dagnino.
128
Graça fala da dificuldade para evitar uma postura assistencialista uma vez
que os direitos não são garantidos pelo Estado:
G: Então, eu não sei, não existe, não dá pra você não fazer essa... , né,
esse encaminhamento assim (risos), que é um encaminhamento
assistencialista, né, na verdade, ou seja, é..., eu penso até que é um
encaminhamento de direitos, mais como esse direito não é garan-ti-do,
então ele é assistencialista, né (grifo nosso).
Nós temos que trabalhar essas mulheres pra entender, é, que por mais que
elas conseguiram aquilo ali, é uma coisa que é de direito delas, isso nós
temos que trabalhar.
E: E aí tem programas que pegam essa mulher e viram pra ela e falam
assim: ‘olha, cê tem que separar, cê tem ir pra delegacia agora’, nem
pergunta pra ela assim, ‘cê dá conta de ir pra delegacia agora e registrar
uma ocorrência desse companheiro?’ (muda de tom, com mais ternura).
Sequer passa pela cabeça das pessoas de perguntar pra essa pessoa o
que que ela num dá conta, o que que ela num dá conta. E aí sai tomando
atitudes pra, pra uma vida daquela pessoa que ela não vai dar conta de
sustentar. E chega num determinado momento que essa mulher tá pirada,
porque ela vai sendo levada num roldão da situação pra ela tomar decisão e
não era aquilo nem que ela dava conta nem que ela quer.”
E: Ô, Carol, eu vou ser muito sincera, eu acho que com certeza. E não tô
falando isso com o aspecto de falar assim: ‘ó, mas que mediocridade desse
povo de fazer isso ou que inocência das pessoas de fazer isso ou que
sacanagem das pessoas de fazer isso’. Nem tô falando nessa noção. Mas
de imaginar, primeiro que dá uma grande impotência. Né. De você tá
lidando com aquela situação e você cai no parecismo. Do emergencial, cê
ta... cê tá imaginando que aquela pessoa tá aqui e você tem que dar a
resposta naquele momento pra pessoa. Você - e essa é a palavra
mesmo - esquece de colocar aquela pessoa enquanto sujeito. Então, a
todo momento se a gente não tomar cuidado e não não... não... não..., é...,
pensar ‘pera aí, o que eu tô fazendo?, é aquilo que eu dô conta, que me
agrada, ou aquilo que o outro dá conta ou que...’, nem sei se pode dizer
essa coisa do agradar, mas principalmente daquilo que dá conta. Sabe.
Então eu acho que a gente tem que ter muito essa preocupação, a gente
129
M: (...) Eu sou, eu... eu... eu sou muito romântica, eu sou da linha, né, que
acredito que a gente vai construir um mundo diferente, pra homens e
mulheres (grifo nosso). Principalmente pras mulheres, as mulheres vão ter
mais autonomia, mais independência, no seu ser sujeito, e muitas ainda se
sujeitam e não se consideram, né, pessoas.
G: Porque nós não queremos fazer nada pra elas, mas nós queremos
construir com elas uma nova sociedade. Eu acredito nisso (grifo nosso).
Num sei se é porque eu sou militante, né, então eu... eu acredito nessa
coisa, né, da construção com as pessoas, não para as pessoas.
M: Eu num, eu num, eu vou ficar [isto é, afirmar] que é não incorporada. Não
são incorporadas mesmo assim, são muito pontuais, as políticas são... são
ações pontuais, ainda, quando a gente fala, né, que nós queremos construir
políticas públicas, políticas públicas, é pra, é pra ser incorporada mesmo,
pelo governo e pela sociedade.
M: E... e a gente tem uma sociedade que o tempo todo usa a mídia pra
reforçar essa disputa, né, de sexo, uma disputa, é, e... e... e pra, ainda...
colocar a imagem da mulher muito vinc... veicular e vincular a imagem da
mulher como aquela frágil, aquela coitadinha que precisa sempre do
outro, principalmente de um homem pra ser feliz, ter prazer (grifo
nosso). Então isso ainda é muito embutido em nós.
C: Hum...
pra esses caras. (...) Nessa cultura que a gente hoje ainda está impregnado.
Se cê imaginar uma classe mais empobrecida, cê fica imaginando, parece
que cê tá no século passado ainda, aonde as feministas, né, começam a
discutir questões de igualdade, cê, a mulherada não incorporou isso
mesmo não (grifo nossos).
L: (...) Então foi, todo esse processo eu acho que que culminou também,
que foi importante, de um movimento que no início era visto com muita
desconfiança, até pelas mulheres, né? é... (pigarro) e estigmatizado,
inclusive muitas vezes pelos meios de comunicação e pela sociedade de
modo geral, né, as bandeiras feministas, a luta das mulheres. Hoje é uma
coisa que já é absorvida, eu acho também que a gente ganha assim,
fazendo novas consciências, novas culturas, né, e que a, quando a
sociedade absorve, eu acho que significa também que nós já
avançamos, não é mais um grupo isolado, né, que fica ali, sempre ali
defendendo, mas que tem já uma, ele ta mais largamente implantado em
todos os segmentos sociais. Então eu acho que essa é a grande vitória das
mulheres, conseguir que as suas bandeiras, que as suas idéias, que, é..., é,
essa questão da igualdade, da não discriminação, seja hoje largamente
reconhecida, apesar de que existe. Mas que há, também, hoje, de certa
forma, um repúdio a isso, quando tá uma violência explícita contra a mulher,
né, uma violência doméstica ou violência sexual, há de certa forma na
sociedade em diferentes segmentos um um repúdio a e... a essa prática. O
que antes era mais aceito socialmente como uma questão natural, eu
acho que hoje já não é. Então eu acho que essa é uma grande vitória, né,
da luta das mulheres e que hoje a gente tem também mais parceiros pra
defender essas bandeiras, inclusive nos homens (grifos nossos).
Ela defende que as mulheres têm hoje uma grande consciência de seu papel
na sociedade:
L: Né, é... eu sinto que há uma..., que as mulheres têm hoje uma noção
grande de... de... do seu papel na sociedade, de não se colocar mais como,
secundariamente, como cidadã de segunda categoria, eu acho que a
mulher hoje absorveu muito essa questão, de que ela pode ser protagonista
da sua vida e aj- participar ativamente das ações também da sua cidade.
A julgar pelo que foi narrado até agora, entendemos que houve, nas últimas
décadas, transformações culturais e subjetivas fundamentais em relação às
132
mulheres. Alguns exemplos dessas mudanças são: acesso das mulheres a lugares e
posições antes restritas aos homens; as mudanças na legislação; a desnaturalização
da subordinação das mulheres e as modificações na autopercepção das mulheres.
No entanto, muitas mulheres ainda vivem situações de opressão e violência; ainda
recebem menos que os homens pelos mesmos serviços; a maioria trabalha em
dupla jornada66, ou seja, além de trabalhar em média quarenta horas semanais fora
de casa, ainda dedica outras quarenta horas ao trabalho doméstico; no âmbito
político, percebemos que as mulheres raramente ocupam altos cargos nos poderes
executivo, legislativo e judiciário. Ou seja, temos que ter claro tanto as conquistas
quanto os limites das mudanças sociais relativas às mulheres para analisarmos os
sentidos de cidadania, violência e gênero produzidos pelas entrevistadas.
Neste momento, é interessante analisarmos o que as próprias entrevistadas
entendem por gênero. Um fator que nos chamou a atenção foi a dificuldade
apresentada por elas de conceituar gênero, visto que elas trabalham cotidianamente
com questões relativas às mulheres e são feministas militantes.
Graça, em muitos momentos da entrevista, principalmente aqueles referentes
a seu processo de conscientização política, pareceu entender gênero enquanto
papéis sociais das mulheres. Para ela, é preciso que as mulheres entendam seu
papel para construírem uma nova sociedade. Um exemplo de falas nesse sentido é
o seguinte:
G: (...) trabalhar essa nossa pessoa, né, as mulheres, e não só o beco da
casa dela, e não só a cesta básica, e não só os filhos, mas que elas
descobrissem o seu papel enquanto mulher, antes de descobrir o seu
papel enquanto mãe (grifo nosso).
No entanto, quando foi dar uma definição do que é gênero, ela não falou em
papéis ou lugares sociais, mas propôs definição política do conceito:
66
Em 96% dos domicílios em que residem mulheres, elas são as responsáveis pelo trabalho
doméstico, para o qual dedicam em média 39 horas e 45 minutos semanais,. Outras 33 horas e 41
minutos semanais são dedicadas ao trabalho remunerado. (Fundação Perseu Abramo, 2001.
133
M: Foi uma discussão até que a gente fez muito, quer dizer, porque que a
gente se apropriou desse termo gênero, né, pra falar da mulher, já que
você fala de gêneros, né, cê num fala de um gênero só, cê fala de gêneros,
né, e uma... uma... uma discussão que a gente tem que é muito absorvida
por nós, nós mulheres, quando a gente fala de relações de gênero, a
gente sempre pensa na mulher, né, como, como gênero feminino e não de
se apropriar do gênero masculino, né, e eu sei que de alguma forma
gênero, essa palavra, esse termo, ele foi, ele contribuiu muito pra que essa
discussão do feminismo ampliasse dentro da sociedade, né, é..., porque
pra, pras mulheres, né, feministas, era muito difícil você falar só enquanto
feminista, enquanto, né, divisão sexual da mulher, a questão da mulher,
sem pensar numa rela- numa visão relacional, entre homens e mulheres,
então o ... eu acho que, importante você perceber que dentro da questão
de gênero há diferenciação, né, do que que você fala enquanto papéis,
né, construídos socialmente de mulher e homem, mas também de que
lugar que você constrói essa política, é, se hoje a gente trabalha, né, na
perspectiva de resgate da mulher, né, num é, num é, por mais que a gente
busca, é, você ter políticas voltadas pra homens, num é a nossa ação, né,
ela não é, então por isso que eu falo, por isso que a gente fala, que gênero,
ela é importante enquanto análise, enquanto perspectiva de você
construir uma visão mais global de uma situação, é..., é..., entre
homens e mulheres, entre meninos e meninas, etc etc que aí vai dá
subsidio para você identificar a educação diferenciada na educação, a
questão da saúde, por que que as mulheres freqüentam mais o centro de
saúde, mas são, é..., a maioria das vezes elas não vão tratar de problemas
seus, né, individuais. Então isso tudo , gênero da conta de discutir, então
enquanto, enquanto, é..., visão, discussão, teórica, eu acho que é
importante, essa, essa discussão do gênero, né, é..., então pra mim, pra
mim, gênero é isso, é você, é, perceber que há, é..., construções
diferenciadas entre seu papel de ser mulher, então muitas vezes cê
pode uma mulher que tenha uma visão muito masculina de vida, de,
né, de objetivos, né, por mais que você se diz feminista, por mais que
você se diz, né, mulher, com todas as letras, né. Então é uma relação
de poder (grifo nosso).
Na fala acima, percebemos que Márcia define gênero como uma estratégia
política e, apenas no final de seu argumento, ela conceitua gênero como uma
construção social dos papéis de mulheres e homens e como uma relação de poder.
Daniele diz que nunca trabalhou com gênero e seu contato com o conceito
limita-se ao tempo que era estudante universitária. Ela afirma que o conceito de
gênero não está claro para ela e, portanto, não o define:
D: (Breve pausa) Por gênero? (riso) Eu até, é..., interessante, né, Carolina,
essa pergunta, porque assim, é, cê tem o conceito de gênero, né, e a partir
do momento que cê entra pr’uma política, né, de gênero, começa a ser um
bodar-, um bombardeio de outras informações e cê pensar um pouco... a
questão por um lado que ce ainda não tinha pensado, né. Cê vem com
aquela visão de faculdade, uma visão de de fora, né. Então essa é uma
pergunta que ainda num me pega um pouco, que ainda ta confuso porque...
134
D: (...) a gente tá passando por um momento aqui que eu até brinco, que eu
não sei se é positivo ou negativo para mim, porque a gente ta recebendo
muito caso de abuso sexual das filhas, então, é..., a as mães não tão
denunciando por causa da violência de gênero, tão denunciando por
causa do abuso sexual, então isso muda também, é o que eu tava
conversando com elas, eu cheguei num momento que, por um lado é bom,
porque eu sempre trabalhei com criança e adolescente (grifo nosso).
Luzia, que tem uma trajetória de militância feminista, iniciou vários raciocínios
para conceituar gênero, mas mostrou dificuldade em completá-los, como podemos
ver na seguinte fala:
L: Eu entendo por gênero um, eu acho que é um conceito, né, que pra além
da definição de... de... de homem e mulher, eu acho que é um um conceito
de de um exercício de... duma existência plena, né, não possa significar
discriminação, porque a ou b, né, ser de a ou de b, ser do gênero masculino
ou do feminino. Então eu acho que ele tem que carregar também essa
dimensão do exercício da cidadania.
G: Porque eu entendo que você não consegue trabalha nada, sem trabalhar
a questão racial e gênero. Sem trabalhar com gênero e raça não consegue,
porque, é..., porque senão a gente só consegue trabalhar o movimento
machista e racista. Né. Se você não tiver dentro de todas as questões essa
discussão de raça e gênero.
G: Porque as mulheres negras, além de ser mulher, num é, elas são negras,
então elas sofre a violência de gênero e sofre a violência racial. Num é?
Porque a população negra, as mulheres negras ainda num descobriram que
elas são tão lindas quanto às mulheres brancas, num é? Que elas tem tanto
poder quanto as mulheres brancas.
E mais adiante:
Graça relaciona gênero com raça e classe social. Ela identifica as mulheres
negras como configurando as camadas mais pobres do país:
G: Aí você vê, é..., nas vilas e favelas quem é a maioria que mora lá, que
136
são os, o po-, o povo negro mesmo. E a gente sabe que, é..., as mulheres
negras são as mulheres mais pobres do país. É a escala mais pobre da
população brasileira.
Além disso, ela faz uma crítica aos programas voltados para mulheres. Neles
a questão da raça parece não ser trabalhada. Na opinião dela, isso deveria ser feito,
senão por outras razões, porque a grande maioria das mulheres atendidas é negra.
Vejamos as palavras de Graça:
Por isto, ela acredita ser necessário que nos atendimentos prestados haja
uma atenção para a questão da classe social, pois assim o trabalho poderia atender
de modo mais completo as mulheres:
E: (...) porque cê vai ter que fazer um recorte de classe, como que essa
mulher da classe empobrecida ela se vê nesse contexto aí? Diferenciada
mesmo. Que muitas vezes não vai mercad..., não sai do doméstico por uma
opção de trabalhar fora, de de construir sua autonomia, mas sai porque tem
que sobreviver. Não abre uma outra perspectiva. Né, eu acho que tem que
fazer esse recorte porque senão, eu acho que o trabalho fica um grande
buraco, um, fica extremamente manco, e a frustração vai ser muito grande.
num tem classe. Num é. Todas as mulheres a gente sabe que vive violência.”
Apesar de algumas das entrevistadas reconhecerem a importância das
relações entre classe social, raça e gênero nos atendimentos às mulheres que
procuram estes programas, essa questão parece ser um pouco negligenciada pelas
feministas. Uma fala de Márcia nos dá indícios de um dos motivos que podem ter
levado a isso:
M: (...) porque o próprio Marx, Engels, a gente estudou isso, né, porque eles
não dão conta de discutir essa questão, né, porque que algumas feministas
saíram dos partidos socialistas né, europeus, porque na, o partido não dava
conta de discutir, e que a questão maior era classe e não a questão, né, das
especificidades da luta então achava que resolver a questão de classe ia
resolver a... as questões, né, outras, né, das mino..., chamadas minorias.
Daniele afirma que as políticas públicas têm que trabalhar a cidadania, mas
não fala como isso é feito no cotidiano dos programas sociais. Márcia e Ermelinda
também falam que para elas a articulação entre gênero e cidadania é imprescindível,
principalmente em relação às políticas públicas, mas elas não se detêm nesse ponto
e não explicam como seria a relação entre os dois termos.
Se o leitor retomar o segundo capítulo desta dissertação, verá que as
relações entre cidadania e gênero não podem prescindir de uma discussão sobre a
diferença, pois quando as diferenças são apagadas, as desigualdades e
139
G: (...) ela é uma política realmente de diferença. Cê tem que trata, cê,
porque política social trata todo mundo igual. Não. Nós temos que ter
dentro da política social a questão diferente, a questão da diferença.
Que as meninas, do projeto Miguilim, do projeto do num sei o que, elas têm
que ter uma concepção diferente de vida, que os meninos têm que ter uma
concepção diferente, entender que a vida, ela tem que ser de igualdade.
Num é. Aí eu vejo. Aí eu acho que é isso. Né (grifo nosso).
C: Como?
E: Por exemplo, eu num dô, eu num posso querer acreditar, é..., que
homens e mulheres, vamo colocar, se não for de gênero, mas que, por
exemplo, de geração, né. Que crianças e pessoas na sua vida produtiva ela
ló-, ou mesmo, quer dizer, você num tem, cê tem uma diferença e uma
diferença que precisa ser respeitada e ser vista. Eu acho que quando
você vê a igualdade como eliminação, como se coloca diferentes como
iguais, cê pode ser igual na questão do respeito, na questão é é enquanto
ser humano. Não sei se eu usaria essa palavra enquanto, enquanto... o que
eu to querendo colocar é num pode massificar, colocar tudo num roldão
como se todos fossem iguais. E que se fossem iguais mesmo (grifo nosso).
M: (...) tem hora que eu acho também que são instituições que violentam as
mulheres, né, que violentam as mulheres na sua dignidade, porque não
respeita as diferenças, sabe, num tô falando isso de uma pessoa, tô falando
da instituição, mesmo, né. Essas instituições elas são muito cristalizadas
mesmo nessa visão de que vão resolver o problema das mulheres, não é
isso, né.
Luzia afirma que uma sociedade democrática e igualitária tem que incluir as
diferenças:
L: Então eu creio que essa a a igualdade que a gente pensa ela também
tem que ir incorporando essas diferenças valores, diferenças de
comportamento em cada segmento que a gente vai, né. E... e... e isso é...
é... é talvez a... a... a – um um, eu diria assim, um termômetro de vê
também que a sociedade ta sendo mais tolerante, mais democrática quando
ela absorve essas diferenças de manifestação, inclusive a de gênero. Eu
acho que há diversidade, há diferença de... de... de de opiniões, de valores,
que eu acho que a gente também tem que trabalhar pra respeitar.
Contudo, em algumas falas podemos notar que ainda há uma confusão entre
os conceitos de diferença e de desigualdade. Luzia, por exemplo, fala em diferença
141
M: E... e... e assim, uma coisa que a gente, né, aprendeu com a Karin,
aprendeu, né, no dia a dia é não torná-las mais vítimas, né, ou seja, não
fazer da Coordenadoria um pronto socorro que vai, né, é..., garantir o o o
remédio, remendo pras mulheres. Não é isso.
A mulher não é vítima da violência que vive. Segundo Karin von Smigay
(2000), a violência, junto com a intimidade e o erotismo, estrutura a relação do casal
e marca o corpo e a subjetividade de cada um. Daniele, que também é psicóloga, se
interessa pelas marcas psíquicas deixadas pela violência: “Como que afeta a
subjetividade das pessoas e tal. E..., mais aí eu vinha pensando violência nessa
linha assim sabe, de como que ela afeta a subjetividade das pessoas, como que...”
Esses programas dedicam-se quase exclusivamente ao atendimento de
mulheres que estão vivendo situações de violência. Apenas Graça fala da
importância da prevenção da violência:
E: Que aí vamos imaginar de onde que vem essa violência, né, que aí é do
masculino sobre o feminino. Né. Que onde esse masculino não aceita
que o outro seja sujeito (grifo nosso).
Ela define violência como uma violação de direitos. Esse sentido de violência
está presente na fala de outras entrevistadas, como Karin: “[violência é] o não
respeito, o atropelamento de alguns pressupostos que tão na base das... dos
direitos.”
Ermelinda, numa concepção mais objetiva, afirma que a violência é uma
violação dos direitos básicos, do direito a ter direitos:
E: Acho, tem, na verdade se ocê for discutir cidadania como uma questão
[pausa] se tem direito a se, direito a ter direito, direito a ser gente. A
violência é tirar esse direito. Então ela tá tirando esse direito de ser
cidadã (grifo nosso).
E: (...) Eu acho que violência, ela vai ter em todos os níveis, né. Um dos
tópicos que a gente lida é a violência de gênero. Mas violência a partir do
momento que você é... eu fico imaginando que é coisificar o outro. Ou
você encher, você retira do outro algum direito. Né. Então você vai ter
vários níveis de violências, seja ela uma violência urbana, seja ela uma
violência [pequena pausa] nas relações. Né. Mais eu acredito que
violência é você tirar do outro um direito (grifo nosso).
Ela define violência como coisificar o outro, mostrando uma identificação com
o trabalho de Chauí (1985), e afirma que a retirada de um direito do outro é um ato
de violência, associando, assim, violência e cidadania. A retirada de direitos é um
ato de violência com o sujeito. Nos casos atendidos pelo Benvinda e pela Casa
Abrigo Sempre Viva, os direitos das mulheres estão sendo violados. Alguns
exemplos de direitos violados são os de ir e vir; de integridade física, moral e
psicológica; de propriedade; de convivência familiar e comunitária; de ter
144
A violência é definida por ela como uma violação, como o não respeito ao
outro em suas diferenças e limites. O reconhecimento do outro como um sujeito de
direitos é um dos pressupostos fundamentais da nova cidadania, portanto a violência
poderia retirar do sujeito sua condição de cidadão. Diante disso, perguntamos às
entrevistadas se elas achavam que uma mulher em situação de violência pode ser
considerada cidadã. Essa pergunta levantou questionamentos sobre suas definições
anteriores de cidadania e violência. Elas buscaram conciliar a idéia de que todas as
pessoas de uma sociedade são por direito cidadãos, com o fato de a violência
infringir este direito.
Karin diz da dificuldade de articular esses conceitos, pois em tese todas as
pessoas são cidadãs, mesmo que estejam com algum direito violado:
K: É... tentando né, tentando. (risos) ai que diabo de conceito! Não sei te
responder, Carol! Se é, quer dizer, em tese sim. Agora evidentemente com
ela, né. Em tese ela é uma cidadã, na medida em que em tese toda e
qualquer ser humano, tem, né, deveria, tem direitos. Agora se a
situação tá retirando dela, né, sua cidadania, ta (grifo nosso). Mas ocê
num pode dizer que não está ou tá. Eu num sei se ocê tem essa categoria
isolada, entendeu? Eu acho que ela é, né, alguma, né, se ela existe
potencialmente, né, ou ela é ela é em princípio um ser humano, agora no
seu exercício, ele é um exercício que tá eh... empobrecido, né. É isso? Sei
lá.
D: (Breve pausa) Eu acho... que... ela, é uma cidadã, mas que num tá
sabendo usar dos seus direitos, né, e que tá tendo esses direitos
violados, né, por isso a questão da violência e tal. Isso é é complicado
(risos), porque, a pessoa a princípio ela seria cidadã, num é, mais ela num
tá exercendo essa cidadania que ela teria direito por falta de
145
Graça afirma que uma pessoa em situação de violência não está “se
considerando” ou “se permitindo” ser cidadã.
G: Ela pode ser considerada cidadã. Num é. Ela só não... eu acho que ela
só não... é... se permite ser essa cidadã. Porque eu posso considerar ela
enquanto cidadã, lógico, naturalmente, todos nós somos cidadãs,
cidadãos ou cidadãs, né. Agora, nós temos que entender se essa pessoa
realmente está se considerando ou se tá se permitindo ser cidadão
(grifo nosso).
Márcia corrobora com o argumento de Luzia: ”Eu acho que até, se ela busca,
é..., seja no Benvinda ou qualquer outro tipo, na comunidade, outro tipo de
apoio, ela tá se reconhecendo enquanto cidadã, né (grifo nosso).
Assim, uma mulher que procura sair do ciclo de violência no qual vive e
denuncia seu agressor está tornando-se cidadã num sentido mais amplo, pois ela se
vê como um sujeito social que demanda do Estado a garantia de seu direito a ter
direitos, tais como o direito à integridade física e psíquica e o direito à vida67.
A partir do que foi narrado neste capítulo, podemos ver como diferentes
concepções de cidadania se atravessam e configuram os sentidos de cidadania
produzidos pelas entrevistadas. Todos somos livres e iguais perante a lei, mas a
violência infringe direitos básicos, violando o próprio direito a ter direitos. Partindo de
uma perspectiva liberal de cidadania, todas as pessoas nascem cidadãos e têm seus
direitos garantidos pela Constituição Federal. Desde a perspectiva da nova
cidadania, a cidadania não é simplesmente uma questão de acesso a direitos
preestabelecidos, mas é um processo de tornar-se cidadão, na medida em que os
sujeitos sociais reconhecem que tem direito a ter direitos e a lutar para conquista-los.
Retomaremos estas questões nas considerações finais desta pesquisa.
67
O direito à vida é o um direito inviolável, garantido pela Constituição Federal de 1988 (Título II,
Cap.I, Art. 5º).
147
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
cidadania de cunho liberal. Foi ele quem teorizou sobre as dimensões civil, política e
social da cidadania, que influenciam fortemente as concepções contemporâneas do
termo, como pudemos ver em alguns momentos das falas de nossas entrevistadas.
Pelo menos duas características liberais estiveram presentes nos discursos. A
primeira refere-se à concepção de direitos. Em algumas falas estes foram definidos
de acordo com pressupostos liberais, como acesso e gozo de direitos formais
preestabelecidos e, em contrapartida, cumprimento dos deveres legais. A segunda
foi a definição da cidadania baseada na igualdade e liberdade, que constituem os
ideais burgueses de cidadania. É interessante notar que não houve nenhuma
referência à fraternidade, que também é um elemento-chave na cidadania liberal.
Esses ideais foram sendo tensionados ao longo da história, devido a
mudanças sociais, econômicas e políticas. Surgiram então três novos conceitos que
podem complementar aqueles na compreensão da cidadania: eqüidade, autonomia
e solidariedade. Nas entrevistas houve referências à eqüidade e à autonomia, que
precisariam ser trabalhados com as usuárias dos programas. A solidariedade não foi
mencionada. Vejamos brevemente o significado de cada um desses termos.
Eqüidade é um conceito normativo, referente à justiça social e à superação das
desigualdades:
68
A cidadania liberal foi discutida no segundo capítulo desta dissertação.
149
69
Discutimos a concepção de nova cidadania nos capítulos III e IV desta dissertação.
150
e cidadãs têm que participar dos governos locais e definir o sistema do qual fazem
parte. Estas características não aparecem somente nas entrevistas citadas acima;
estão presentes em todas, mas ocupam, em cada uma, posições diferentes.
Nas últimas três décadas ocorreram mudanças relevantes na cidadania das
mulheres, mas nem todas as transformações culturais e sociais se concretizaram
como o movimento feminista desejava. As mulheres ainda são subordinadas, sofrem
violências de gênero e, muitas vezes, nem percebem que são alvo de
discriminações (SAFFIOTI, 2004). No entanto, não podemos negar a importância do
feminismo na cultura, na política e na subjetividade de mulheres e homens.
Transformações concretas ocorreram, principalmente em relação ao modo como as
mulheres são vistas pelo Estado, pela sociedade civil e por si mesmas.
Usando o referencial gramsciano, podemos dizer que hoje qualquer
construção hegemônica70 tem que incorporar as demandas e interesses das
mulheres. Com isso, muitas feministas migraram dos movimentos sociais para o
aparelho do Estado, onde reivindicaram “(...) a sua inclusão entre os ‘atores’ que
participam da formulação, da implementação e do controle das políticas públicas”
(FARAH, 2004, p. 54). A migração de militantes feministas para o aparelho do
Estado foi permeada por conflitos e até hoje representa um dilema para estas
mulheres, conforme o leitor poderá ver se retomar a seção 5.4 desta dissertação.
Os dados apontam que o Estado brasileiro incorporou, de certa forma, a
necessidade de trabalhar com as demandas específicas das mulheres, mas não
incorporou uma perspectiva de gênero em suas ações políticas. Da mesma forma,
os programas estudados dedicam-se ao trabalho com mulheres e para mulheres,
tendo dificuldade de incorporar uma perspectiva de gênero e mantendo, em certos
momentos, atendimentos assistencialistas. O Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social das Nações Unidas considera como incorporação de uma
perspectiva de gênero:
70
Para Gramsci hegemonia é um modo específico de exercício/construção do poder, que tem como
principal recurso o consentimento ativo, exigindo renovação perpetua do consenso, pois é submetido
ao conflito de interesses. (Esta definição é resultado de discussões realizadas na disciplina Cultura e
Política, ministrada pela profa. Evelina Dagnino, UNICAMP, 2004).
151
cidadania das mulheres. Mesmo na área da saúde, que foi um foco de lutas do
movimento feminista, o gênero não foi incorporado. Segundo as entrevistadas, a
questão do gênero é trabalhada apenas nos locais onde há pessoas sensíveis a ela.
Assim, consideramos relevante a realização de pesquisas que avaliem como é a
adoção de uma perspectiva de gênero nas políticas públicas que não trabalham
especificamente com mulheres.
O segundo tema, as relações entre mulher e política, foi levantado durante as
entrevistas de Graça Sabóia e Luzia Ferreira. Como ambas eram candidatas ao
cargo de vereadoras quando realizamos as entrevistas, essa questão lhes
interessava diretamente. O primeiro problema a esse respeito para a qual Graça
chamou nossa atenção foi o número de vereadoras na Câmara Municipal: “nós
temos hoje (...) na Câmara dos Vereadores, 37 vereadores, 5 mulheres. Aí cê vê (...)
quem tá no poder”71. No mandato iniciado no ano de 2005, a Câmara de Vereadores
passou a ser composta por 41 membros, sendo 07 (sete) mulheres e 34 (trinta e
quatro) homens. Assim, a Câmara Municipal atingiu ao marca de 17% de mulheres
entre seus membros, mantendo-se um pouco acima da média histórica (10%), como,
aliás, fora prevista por uma de nossas entrevistas, a Luzia, que afirmara ter a
impressão de que “esse ano nós vamos romper algumas barreiras no país nas
eleições municipais, que é ter um número de mulheres eleitas bem superior ao que a
gente tem na nossa média histórica” (grifo nosso).
Não apenas o número de mulheres que ocupam cargos legislativos e
executivos é menor do que o número de homens; existem também diferenças
qualitativas nos cargos ocupados pelas mulheres. Assim como nunca houve uma
mulher presidente do Brasil nem uma governadora do Estado de Minas Gerais, ou
uma prefeita do município de Belo Horizonte, nenhuma mulher jamais foi presidente
da Assembléia Legislativa de Minas Gerais ou da Câmara de Vereadores da
cidadania, situação que, aliás, chega a indignar nossa entrevistada Graça, como ela
demonstrou em uma de suas falas.
Para ambas, Luzia e Graça, as conquistas das mulheres quanto à
participação nas decisões políticas e ocupação de cargos de poder estão aquém dos
avanços em outras áreas. O resultado disso seria o pequeno comprometimento dos
legisladores e executores com as questões relativas ao gênero. Segundo Graça, a
71
Esta fala refere-se ao mandato de 2000 a 2004.
154
solução para esse problema seria “ter muito mais mulheres comprometidas” e não
“qualquer mulher”.
Podemos nos perguntar os motivos das mulheres não terem conquistado
lugares mais consistentes na política. Segundo Luzia, uma das causas é o próprio
modo de organização da disputa política, que prejudicaria a própria entrada das
mulheres no cenário político. Em suas palavras, ”a mulher tem muita dificuldade de
entrar porque é um jogo muito bruto (...), porque (...) o modelo que prevalece o poder
econômico, eu acho que é muito difícil a mulher romper essa [barreira]”. Ainda
segundo Luzia, a situação torna-se mais complicada em razão da necessidade de a
mulher ter que conciliar um mandato com as atividades tradicionais associados ao
feminino, como a maternidade e o cuidado da casa, o que seria, no seu entender,
“uma escolha muito penosa, porque de fato, muitas vezes é incompatível mesmo”.
Desse modo, a participação política da mulher envolveria questões como, por
exemplo, seus papéis sociais, sua identidade e as discriminações decorrentes dele.
Portanto, esse assunto constitui objeto de interesse para a psicologia social, que tem
poucos estudos a respeito, e deixa um campo aberto para pesquisas que possam
contribuir para a compreensão do problema. Atualmente, esse tema vem sendo
pesquisado principalmente nas áreas da história e das ciências políticas e um dos
focos de interesses são as cotas para mulheres nas eleições e dentro dos partidos
políticos.
Um terceiro ponto que merece ser mais trabalhado, conforme dissemos, é a
avaliação das políticas públicas voltadas para mulheres pelas usuárias dos
programas implementados. O presente estudo foi delimitado pela análise dos
discursos produzidos por militantes do movimento feminista e pelas coordenadoras
dos programas da prefeitura de Belo Horizonte que atendem mulheres em situação
de violência de gênero. Não analisamos os sentidos de “cidadania, gênero e
violência” para as mulheres que são atendidas por esses programas, nem
acompanhamos como essas questões são trabalhadas com as usuárias. Uma
avaliação rigorosa de políticas públicas exige a análise dos modos de pensar, de
agir e suas conseqüências para os usuários dos serviços. Sugerimos, portanto, que
como desdobramento desta dissertação, sejam realizadas pesquisas sobre os
modos como as políticas públicas estão desenvolvendo estratégias de construção
da cidadania e sobre os impactos, objetivos e subjetivos, dos atendimentos para as
usuárias dos programas.
155
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164
ANEXO 1
Roteiro de Entrevista
6) Você acha as relações de gênero fizeram aparecer algum aspecto bem específico
da cidadania? Você acha que isso foi incorporado? (ex: licença-maternidade)
8) Que relação você acha que existe entre cidadania e violência ou (não violência)?
11) Você falou sobre as suas concepções de cidadania, gênero e violência. Suas
concepções sempre foram essas ou mudaram ao longo da sua trajetória? Que
mudanças foram essas? Por que você acha que elas ocorreram?
12) Você é cargo do programa X. Você acha que as suas concepções de cidadania,
gênero e violência coincidem com as do programa. Se não, quais são as diferenças?
(igualdade, alteridade, participação, direitos)
14) Como a questão de gênero está presente nas demais políticas do município?
Você pode me falar alguma coisa sobre isso? Você acha que deveria ser diferente?
Por quê?
15) Você acha que as políticas de gênero no município deveriam se limitar à questão
da violência? O que mais deveriam abranger? Como isso deveria ser feito?
16) Voltando à história dos movimentos sociais de mulheres em BH, você acha
queeles tiveram importância na forma e no conteúdo das políticas de gênero no
município? Em que? Como foi essa história? Como foi a relação desses movimentos
com outros movimentos sociais?
165
17) Você acha que esses movimentos tiveram impacto tanto na noção quanto na
forma de se trabalhar a cidadania?
18) E as políticas de gênero, você acha que estão tendo impacto na noção e na
prática da cidadania?
21) Quando o programa X foi criado houve uma consulta à sociedade civil? Como foi
feita? Ou por que não?
24) Desde que você assumiu o cargo X, você acha mais fácil ou mais difícil lidar com
as demandas dos movimentos sociais?
166
ANEXO 2
Roteiro para análise
Pré-análise:
• reconhecimento do tipo ou estilo do texto: documento público / entrevista /
registro de pesquisa etc.
• autoria: quem enuncia? Autoria institucional / informante / pesquisador etc.
• forma de divulgação : diário oficial / mídia / livro etc.
• receptor: a quem o texto se dirige?
• linguagem:
A escolha do material (documentos e corpus) devem buscar responder à
pergunta inicial da pesquisa.
Buscar no texto elementos que ajudem a compreender seu contexto sócio-
histórico, principalmente na análise de documentos de domínio público.
Caso o texto esteja contido em outro maior (artigo em jornal; capítulo em
livro), é necessário localizá-lo em termos de posição, tamanho e importância.
• Leitura flutuante: ler e reler o texto procurando apreender suas idéias centrais,
sua linha argumentativa e as categorias de análise pré-estabelecidas, bem
como ficar atento a emergência de novas categorias.
• Levantamento das principais categorias e subcategorias de análise. Na
análise do discurso, elementos como ironia, silêncios, repetições etc. também
farão parte análise.
Análise:
• análise vertical: cada caso.
• análise comparativa ou horizontal: comparação intragrupos (sendo que nem
todas as categorias estarão presentes em todo o material).
• análise transversal: comparação intergrupos ou com uma norma social.
• Conclusões a partir das questões e objetivos básicos da pesquisa e outros
levantados no decorrer desta.