Encontro Com Rama

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Sumário

1 - Spaceguard

2 - Intruso

3 - Rama e Sita

4 - Encontro

5 - Primeira AEV

6 - Comitê

7 - Duas Esposas

8 - Através do Eixo

9 - Reconhecimento

10 - Descida na Escuridão

11 - Homens, Mulheres e Macacos

12 - A Escadaria dos Deuses

13 - A Planície de Rama

14 - Sinal de Tempestade

15 - A Beira do Mar

16 - Kealakekua

17 - Primavera

18 - Aurora
19 - Um Alerta de Mercúrio

20 - Apocalipse

21 - Depois da Tempestade

22 - Singrar o Mar Cilíndrico

23 - Nova York, Rama

24 - Libélula

25 - Voo Inaugural

26 - A Voz se Rama

27 - Vento Elétrico

28 - Ícaro

29 - Primeiro Contato

30 - A Flor

31 - Velocidade Terminal

32 - A Onda

33 - Aranha

34 - Sua Excelência Lamenta...

35 - Entrega Especial

36 - Observador se Biômatos

37 - Míssil

38 - Assembleia Geral

39 - Decisão de Comando
40 - Sabotador

41 - Herói

42 - Templo de Vidro

43 - Retirada

44 - Propulsão Espacial

45 - Fênix

46 - Interlúdio

Nota de rodapé

Créditos e copyright
Para o Sri Lanka,
onde subi a Escadaria dos Deuses
1
SPACEGUARD

Mais cedo ou mais tarde, iria acontecer. Em 30 de junho de 1908,


Moscou escapou da destruição por três horas e quatro mil
quilômetros – margem mínima pelos padrões do universo.
Novamente, em 12 de fevereiro de 1947, outra cidade russa
escapou por ainda menos, quando o segundo grande meteorito do
século 20 detonou a menos de quatrocentos quilômetros de
Vladivostok, com uma explosão equivalente à da recém-inventada
bomba de urânio.
Naquela época, não havia nada que o homem pudesse fazer
para se proteger contra os disparos aleatórios do bombardeio
cósmico que já tinha esburacado a superfície da Lua. Os meteoritos
de 1908 e 1947 atingiram áreas desabitadas; mas, no final do
século 21, não sobrara nenhuma região na Terra que pudesse ser
utilizada, com segurança, para a prática do tiro ao alvo celeste. A
raça humana se espalhara de um polo a outro. E, assim,
inevitavelmente...
Às 9h46, horário de Greenwich, manhã de 11 de setembro,
durante o verão excepcionalmente belo do ano de 2077, a maioria
dos habitantes da Europa viu surgir uma resplandecente bola de
fogo no céu oriental. Em segundos, tornou-se mais brilhante que o
Sol e, enquanto riscava os céus – a princípio em completo silêncio
–, deixava atrás de si um rastro encrespado de poeira e fumaça.
Em algum ponto acima da Áustria, o meteorito começou a se
desintegrar, produzindo uma série de abalos tão violentos que mais
de um milhão de pessoas sofreram danos de audição permanentes.
Foram as que tiveram sorte.
Movendo-se a cinquenta quilômetros por segundo, mil toneladas
de rocha e metal chocaram-se contra as planícies do norte da Itália,
destruindo, em poucos e flamejantes instantes, o trabalho de
séculos. As cidades de Pádua e Verona foram varridas da face da
Terra; e os últimos esplendores de Veneza afundaram para sempre
sob o mar, quando as águas do Adriático trovejaram em direção a
terra firme, após a martelada do espaço.
Seiscentas mil pessoas morreram, e os danos totais somaram
mais de um trilhão de dólares. Mas a perda para a arte, a história, a
ciência – para toda a humanidade, até o fim dos tempos – foi
incalculável. Foi como se uma grande guerra tivesse sido travada e
perdida numa única manhã; e poucos puderam apreciar o fato de
que, à medida que a poeira da destruição baixava lentamente, por
meses o mundo todo testemunhou as alvoradas e os crepúsculos
mais esplêndidos desde Krakatoa.
Após o choque inicial, a humanidade reagiu com uma
determinação e uma unidade que teriam sido impossíveis em
qualquer época anterior. Percebeu-se que um desastre como aquele
talvez não se repetisse nos próximos mil anos – mas talvez se
repetisse no dia seguinte. E, da próxima vez, as consequências
poderiam ser ainda piores.
Pois muito bem; não haveria uma próxima vez.
Cem anos antes, um mundo muito mais pobre, com recursos
muito mais parcos, desperdiçara sua riqueza na tentativa de destruir
armas que a humanidade, de maneira suicida, lançava contra si
mesma. O esforço nunca fora bem-sucedido, mas as habilidades
adquiridas na ocasião não tinham sido esquecidas. Agora, poderiam
ser usadas para um objetivo muito mais nobre, e num cenário
infinitamente mais vasto. Nenhum meteorito grande o suficiente para
provocar uma catástrofe poderia jamais romper de novo as defesas
da Terra.
Assim começou o Projeto SPACEGUARD, guarda espacial.
Cinquenta anos depois – e de um modo que nenhum de seus
idealizadores jamais imaginara –, o projeto justificou sua existência.
2
INTRUSO

No ano de 2130, os radares situados em Marte descobriam novos


asteroides à razão de uma dúzia por dia. Os computadores do
SPACEGUARD calculavam as órbitas dos asteroides automaticamente,

armazenando as informações em suas imensas memórias, para


que, no intervalo de poucos meses, qualquer astrônomo interessado
pudesse consultar as estatísticas acumuladas. Estatísticas que,
hoje, eram impressionantes.
Levara mais de cento e vinte anos para a coleta dos primeiros mil
asteroides, desde a descoberta de Ceres, o maior desses pequenos
mundos, no primeiro dia do século 19. Centenas tinham sido
encontrados, perdidos e reencontrados; existiam em tal abundância
que um astrônomo exasperado os batizara de “praga dos céus”. Ele
teria ficado horrorizado ao saber que, hoje, o SPACEGUARD seguia o
rastro de meio milhão desses corpos celestes.
Apenas os cinco gigantes – Ceres, Palas, Juno, Eunomia e Vesta
– tinham mais de duzentos quilômetros de diâmetro; a grande
maioria eram apenas rochas grandes que caberiam num pequeno
parque. Quase todos se moviam em órbitas além de Marte; apenas
os poucos que se aproximavam do Sol o suficiente para se constituir
em ameaça eram monitorados pelo SPACEGUARD. E, a cada mil
destes, nenhum, durante toda a história futura do Sistema Solar,
passaria a menos de um milhão de quilômetros de distância da
Terra.
O objeto, de início catalogado como 31/439, segundo o ano e a
ordem da descoberta, foi detectado quando ainda estava fora da
órbita de Júpiter. Não havia nada incomum em sua localização;
muitos asteroides iam além de Saturno antes de retornarem mais
uma vez para seu longínquo senhor, o Sol. E Thule ii, o asteroide
que mais se distanciava, viajava tão próximo a Urano que poderia
bem ser uma lua perdida daquele planeta.
Mas um primeiro contato por radar a tal distância era inédito; o
31/439, evidentemente, devia ter um tamanho excepcional. Pela
força do eco, os computadores deduziram um diâmetro de pelo
menos quarenta quilômetros; esse gigante não havia sido
descoberto em cem anos. Parecia incrível que tivesse sido
negligenciado por tanto tempo.
Calculou-se, então, a órbita e resolveu-se o mistério – substituído
por outro ainda maior. O 31/439 não percorria a órbita normal, em
elipse, de um asteroide, retraçada com a precisão de um relógio no
intervalo de alguns anos. O objeto era um errante solitário entre as
estrelas, fazendo sua primeira e última visita ao Sistema Solar –
pois movia-se tão depressa que o campo gravitacional do Sol jamais
poderia capturá-lo. Iria passar como um raio pelas órbitas de Marte,
Terra, Vênus e Mercúrio, ganhando velocidade no caminho, até
contornar o Sol e partir novamente rumo ao desconhecido.
Foi nesse ponto que os computadores começaram a piscar o
sinal “Oi, gente! Temos algo interessante!”, e, pela primeira vez, o
31/439 chamou a atenção dos seres humanos. Houve um breve
acesso de entusiasmo no centro de operações do SPACEGUARD, e o
vagabundo interestelar foi rapidamente dignificado com um nome,
em vez de um número. Muito tempo atrás, os astrônomos tinham
esgotado a mitologia greco-romana; agora, exploravam o panteão
hindu. Assim, o 31/439 foi batizado de Rama.
Por alguns dias, o noticiário fez um alvoroço em torno do
visitante, mas sua tarefa estava seriamente limitada pela escassez
de informações. Dois fatos, apenas, eram conhecidos sobre Rama –
a órbita incomum e o tamanho aproximado. Mesmo isso era apenas
uma conjectura, baseada na força do eco do radar. Pelo telescópio,
Rama ainda aparecia como uma estrela obscura, de décima quinta
magnitude – pequena demais para apresentar um disco visível.
Mas, à medida que mergulhasse em direção ao centro do Sistema
Solar, iria se tornar maior e mais brilhante, mês após mês; antes de
desaparecer para sempre, os observatórios em órbita seriam
capazes de colher informações mais precisas sobre sua forma e
tamanho. Havia tempo de sobra e, nos anos seguintes, talvez uma
espaçonave no exercício de suas funções de rotina pudesse se
aproximar o bastante para obter boas fotografias. Um encontro real
era altamente improvável; o custo em energia seria grande demais
para permitir contato físico com um objeto que cruzava as órbitas
dos planetas a mais de 100.000 km/h.
Assim, o mundo logo se esqueceu de Rama; mas os astrônomos,
não. Seu entusiasmo aumentava com o passar dos meses, à
medida que o novo asteroide lhes apresentava mais e mais
enigmas.
Em primeiro lugar, havia o problema da curva de luz de Rama.
Ele não tinha curva de luz.
Todos os asteroides conhecidos, sem exceção, apresentavam
uma lenta variação na luminosidade, que aumentava e diminuía no
curso de poucas horas. Reconhecera-se, por mais de dois séculos,
que isso era um resultado inevitável de sua rotação e de sua forma
irregular. Como tombavam de uma extremidade a outra ao longo de
suas órbitas, as superfícies refletidas pelo Sol mudavam
continuamente, e o brilho variava de acordo.
Rama não apresentava tais alterações. Ou não estava girando,
ou era perfeitamente simétrico. Ambas as explicações pareciam
igualmente improváveis.
A questão parou aí por vários meses, pois nenhum dos grandes
telescópios em órbita podia ser desviado de sua tarefa regular de
perscrutar as profundezas remotas do universo. A astronomia
espacial era um passatempo caro, e tempo num instrumento grande
poderia facilmente custar mil dólares o minuto. O dr. William Stenton
jamais teria conseguido pôr as mãos, por longos quinze minutos, no
refletor de duzentos metros no Lado Escuro da Lua, se um
programa mais importante não tivesse sido temporariamente
suspenso pela falha de um capacitor de cinquenta centavos de
dólar. O azar de outro astrônomo foi sua sorte.
Bill Stenton só soube o que havia descoberto no dia seguinte,
quando conseguiu tempo no computador para processar os
resultados. Mesmo quando estes finalmente surgiram na tela, ele
levou vários minutos para compreender o que significavam.
A luz solar refletida por Rama não era, afinal, absolutamente
constante em intensidade. Havia uma variação muito pequena –
difícil de detectar, mas indiscutível, e extremamente regular. Como
todos os outros asteroides, Rama de fato girava. Mas enquanto um
“dia” normal de um asteroide durava várias horas, o de Rama era de
apenas quatro minutos.
O dr. Stenton fez alguns cálculos rápidos e mal pôde acreditar
nos resultados. Em seu equador, esse pequeno mundo girava a
mais de 1.000 km/h; seria bem arriscado tentar um pouso em
qualquer parte, exceto os polos. A força centrífuga no equador de
Rama decerto era forte o bastante para expulsar qualquer objeto
solto, numa aceleração de quase 1 g. Rama era uma pedra rolando
que jamais acumularia limo cósmico; era surpreendente que um
corpo assim tivesse conseguido manter-se coeso, e não se
despedaçado, há muito tempo, em milhões de fragmentos.
Um objeto de quarenta quilômetros de comprimento, com um
período de rotação de quatro minutos – onde isso se encaixava na
ordem das coisas astronômicas? O dr. Stenton era um homem
dotado de certa imaginação, um pouco propenso demais a tirar
conclusões precipitadas. A conclusão a que chegara agora de fato o
deixou desconfortável por alguns minutos.
O único espécime do zoológico celeste que se encaixava na
descrição era uma estrela implodida. Talvez Rama fosse um sol
morto – uma esfera de neutrônio girando loucamente, cada
centímetro cúbico pesando bilhões de toneladas...
Nesse momento, lampejou na mente horrorizada do dr. Stenton a
lembrança de um eterno clássico de H. G. Wells, A Estrela. Era
ainda criança quando o lera pela primeira vez, e isso ajudara a
despertar seu interesse por astronomia. Mesmo depois de dois
séculos, o conto não perdera nada em magia e terror. Nunca
esqueceria as imagens de furacões e maremotos, de cidades
deslizando para o mar, quando o outro visitante das estrelas se
chocou contra Netuno e depois caiu em direção ao Sol, passando
pela Terra. É verdade que a estrela descrita pelo velho Wells não
era fria, mas incandescente, e causou a maior parte da destruição
pelo calor. Isso não importava; mesmo se Rama fosse um corpo frio,
refletindo apenas a luz solar, poderia matar por gravidade tão
facilmente quanto por fogo.
Qualquer massa estelar que invadisse o Sistema Solar alteraria
completamente as órbitas dos planetas. Bastava a Terra se mover
alguns milhões de quilômetros em direção ao Sol – ou às estrelas –
para destruir o delicado equilíbrio climático. A calota polar da
Antártica derreteria e inundaria as terras baixas; ou os oceanos
poderiam congelar, e o mundo inteiro ficaria preso num inverno
eterno. Apenas uma cotovelada para qualquer um dos lados
bastaria...
Então, o dr. Stenton relaxou e deixou escapar um suspiro de
alívio. Isso tudo era bobagem; ele deveria se envergonhar.
Rama jamais poderia ser feito de matéria tão condensada.
Nenhuma massa de dimensão estelar poderia penetrar tão fundo no
Sistema Solar sem causar distúrbios que a teriam denunciado há
muito tempo. As órbitas de todos os planetas teriam sido afetadas;
foi assim, afinal de contas, que Netuno, Plutão e Perséfone tinham
sido descobertos. Não, era absolutamente impossível um objeto
com a massa de um sol morto passar despercebido.
De certo modo, era uma pena. Um encontro com uma estrela
escura teria sido bem emocionante.
Enquanto durasse...
3
RAMA E SITA

A reunião extraordinária do Conselho Consultivo Espacial foi breve e


tempestuosa. Mesmo no século 22, ainda não haviam descoberto
um modo de evitar que cientistas idosos e conservadores
ocupassem cargos administrativos cruciais. Na verdade, duvidava-
se que esse problema um dia seria resolvido.
Para piorar a situação, o atual presidente do CCE era o professor
(emérito) Olaf Davidson, o célebre astrofísico. O professor Davidson
não se interessava muito por objetos menores que galáxias e nunca
se dava ao trabalho de esconder seus preconceitos. E, embora
tivesse de admitir que noventa por cento de sua ciência era agora
baseada em observações de instrumentos transportados por
veículos espaciais, não estava nem um pouco feliz com isso. Nada
menos que três vezes, durante sua ilustre carreira, satélites
lançados especialmente para provar uma de suas teorias favoritas
tinham feito exatamente o contrário.
A questão posta ao Conselho era bastante direta. Não havia
dúvida de que Rama era um objeto incomum – mas era um objeto
importante? Em alguns meses, desapareceria para sempre, então
havia pouco tempo para agir. Oportunidades perdidas agora jamais
retornariam.
A um custo horripilante, uma sonda espacial a ser lançada em
breve de Marte para além de Netuno poderia ser modificada e
enviada, numa trajetória em alta velocidade, para se encontrar com
Rama. Não havia esperança de um verdadeiro encontro; seria a
mais rápida passagem por um corpo celeste já registrada, pois os
dois objetos se cruzariam a 200.000 km/h. Rama seria observado
intensamente por apenas alguns minutos – e, realmente de perto,
por menos de um segundo. Mas, com a instrumentação correta, isso
seria suficiente para responder a várias perguntas.
Embora o professor Davidson tivesse encarado a sonda de
Netuno com muito pessimismo, ela já tinha sido aprovada, e ele não
via sentido em investir mais dinheiro bom numa causa ruim. Falou
com eloquência sobre as loucuras das caçadas a asteroides e sobre
a necessidade urgente de um novo interferômetro de alta resolução
na Lua para provar, de uma vez por todas, a recém-revisada teoria
da criação do Big Bang.
Foi um grave erro tático, pois os três defensores mais veementes
da Teoria do Estado Estacionário Modificado também eram
membros do Conselho. Secretamente, concordavam com o
professor Davidson de que caçar asteroides era um desperdício de
dinheiro; mesmo assim...
Ele perdeu por um voto.

Três meses mais tarde, a sonda espacial, rebatizada de Sita, foi


lançada de Fobos, a lua interior de Marte. O tempo de voo foi de
sete semanas, e o instrumento foi acionado em força total apenas
cinco minutos antes da interceptação. Simultaneamente, liberou-se
um conjunto de porta-câmeras, para que a passagem por Rama
pudesse ser fotografada de todos os ângulos.
As primeiras imagens, a dez mil quilômetros de distância,
paralisaram as atividades de toda a humanidade. Em um bilhão de
telas de televisão, eis que aparece um cilindro pequeno e uniforme,
aumentando rapidamente a cada segundo. Quando dobrou de
tamanho, ninguém mais pôde fingir que Rama era um objeto natural.
Seu corpo era tão geometricamente perfeito que poderia ter sido
moldado num torno mecânico – um torno com cinquenta quilômetros
de comprimento. As duas extremidades eram completamente
planas, exceto por algumas pequenas estruturas no centro de uma
das faces, e tinham vinte quilômetros de um lado a outro; a
distância, quando não havia nenhuma percepção de escala, Rama
parecia, quase comicamente, uma caldeira doméstica comum.
Rama aumentou até preencher a tela. A superfície era de um
cinza opaco e monótono, tão sem graça quanto a Lua, e totalmente
destituído de marcas, exceto em um ponto. Na metade do cilindro,
havia uma mancha ou um borrão de um quilômetro de largura, como
se algo tivesse batido ali e respingado, milênios atrás.
Não havia nenhum sinal de que o impacto tivesse causado o
menor dano às paredes rodopiantes de Rama; mas a marca
causara a ligeira flutuação em luminosidade que levara à descoberta
de Stenton.
As imagens das outras câmeras não acrescentaram nada de
novo. Entretanto, as trajetórias traçadas pelos porta-câmeras
através do campo gravitacional de Rama forneceram uma
informação crucial: a massa do cilindro.
Era leve demais para ser um corpo sólido. Para surpresa de
ninguém, era óbvio que Rama devia ser oco.
O encontro, tão esperado e tão temido, finalmente ocorrera. A
humanidade estava prestes a receber seu primeiro visitante das
estrelas.
4
ENCONTRO

O comandante Norton lembrou-se daquelas primeiras transmissões


da TV, que ele revira tantas vezes, durante os minutos finais do
encontro. Mas havia uma coisa que nenhuma imagem eletrônica
poderia comunicar: o espantoso tamanho de Rama.
Ele nunca se impressionara assim ao pousar num corpo natural,
como a Lua ou Marte. Estes eram mundos, e era de se esperar que
fossem grandes. No entanto, também pousara em Júpiter VIII, que
era ligeiramente maior que Rama – e lhe parecera um objeto bem
pequeno.
Era simples resolver o paradoxo. Seu julgamento foi totalmente
alterado pelo fato de que aquilo era um artefato milhões de vezes
mais pesado do que qualquer coisa que o homem já colocara no
espaço. A massa de Rama era de pelo menos dez trilhões de
toneladas; para qualquer astronauta, esse pensamento não era
apenas inspirador e espantoso, mas assustador. Não admirava que
ele às vezes se sentisse insignificante, até mesmo deprimido, à
medida que aquele antiquíssimo e esculpido cilindro metálico
preenchia uma porção cada vez maior do céu.
Havia também a sensação de perigo, totalmente inédita em sua
experiência. Em todos os pousos anteriores, ela soubera o que
esperar; sempre havia a possibilidade de acidente, mas nunca de
surpresa. Com Rama, surpresa era a única certeza.
Agora, a Endeavour pairava a menos de mil metros acima do
Polo Norte do cilindro, bem no centro do disco que girava
lentamente. Essa extremidade tinha sido escolhida porque era a que
recebia a luz solar; à medida que Rama girava, as sombras das
estruturas curtas e enigmáticas próximo ao seu eixo varriam a
extensão da planície metálica. A superfície norte de Rama era um
gigantesco relógio de sol, medindo a rápida passagem de seu dia de
quatro minutos.
Pousar uma espaçonave de cinco mil toneladas no centro de um
disco giratório era a menor das preocupações do comandante
Norton. Era o mesmo que atracar no eixo de uma grande estação
espacial; os jatos laterais da Endeavour já tinham fornecido à nave
um giro compatível, e ele podia confiar no tenente Joe Calvert para
baixá-la com a mesma delicadeza de um floco de neve, com ou sem
a ajuda do computador de navegação.
– Em três minutos – disse Joe, sem tirar os olhos do painel –,
saberemos se essa coisa é feita de antimatéria.
Norton deu um sorriso malicioso, quando se lembrou das teorias
assustadoras sobre a origem de Rama. Se essa especulação
improvável fosse verdadeira, em alguns segundos haveria a maior
explosão desde a formação do Sistema Solar. A aniquilação total de
dez mil toneladas proporcionaria aos planetas, por um breve
momento, a visão de um segundo sol.
No entanto, o perfil da missão tinha considerado até essa remota
contingência; a Endeavour esguichara Rama com um dos jatos, a
uma distância segura de mil quilômetros. Absolutamente nada
acontecera quando a nuvem crescente de vapor atingiu o alvo – e
uma reação matéria-antimatéria, mesmo envolvendo apenas alguns
miligramas, teria provocado um espantoso espetáculo pirotécnico.
Norton, como todos os comandantes espaciais, era um homem
cauteloso. Examinara atentamente a superfície norte de Rama,
escolhendo o ponto de aterrissagem. Depois de refletir muito,
decidira evitar o local mais óbvio – o centro exato, no eixo em si.
Marcado claramente no centro do polo, havia um disco circular com
cem metros de diâmetro, que Norton desconfiava ser uma enorme
câmara pressurizada. As criaturas que haviam construído esse
mundo oco devem ter arranjado algum modo de levar suas naves
para dentro. Aquele era o lugar lógico para a entrada principal, e
Norton imaginou que seria imprudente bloquear a porta da frente
com sua própria nave.
Mas essa decisão gerou outros problemas. Se a Endeavour
pousasse mesmo que poucos metros fora do eixo, o rápido giro de
Rama faria a nave deslizar para fora do polo. A princípio, a força
centrífuga seria muito fraca, mas contínua e inexorável. O
comandante Norton não apreciava a ideia de sua nave
escorregando pela planície polar, ganhando velocidade minuto a
minuto, até ser lançada para o espaço a 1.000 km/h, quando
alcançasse a borda do disco.
Era possível que o diminuto campo gravitacional de Rama –
cerca de um milésimo do da Terra – evitasse tal acontecimento. Ele
seguraria a Endeavour na planície com a força de várias toneladas
e, se a superfície fosse suficientemente áspera, a nave talvez
permanecesse perto do polo. Mas o comandante Norton não
cogitava comparar uma força de atrito desconhecida com uma força
centrífuga absolutamente certa.
Felizmente, os projetistas de Rama tinham encontrado uma
resposta. Em torno do eixo polar, igualmente espaçadas, havia três
estruturas baixas, no formato de casamatas, com cerca de dez
metros de diâmetro. Se a Endeavour pousasse entre duas
quaisquer dessas estruturas, o movimento centrífugo a impeliria
contra elas, e a nave ficaria presa firmemente no lugar, como um
navio colado a um cais pelo avanço das ondas.
– Contato em quinze segundos – disse Joe. Ao curvar-se, tenso,
sobre os controles duplicados, que esperava não ter de usar, o
comandante Norton estava intensamente ciente de tudo o que
aquele instante significava. Sem dúvida, essa era a aterrissagem
mais grandiosa desde o pouso na Lua, um século e meio antes.
As casamatas cinza moveram-se lentamente para cima, do lado
de fora da vigia de controle. Houve um último sibilo de um dos jatos
de reação e um solavanco quase imperceptível.
Durante as últimas semanas, o comandante Norton muitas vezes
imaginou o que diria nesse momento. Mas agora que o momento
chegara, a História escolheu as palavras, e ele falou quase
automaticamente, mal se lembrando do eco do passado:
– Base Rama. A Endeavour pousou.

Há apenas um mês, ele não acreditaria ser possível. A nave


estivera numa missão de rotina, verificando e instalando sinais de
alerta de asteroides, quando veio a ordem. A Endeavour era a única
nave no Sistema Solar que poderia encontrar o intruso antes que ele
rapidamente contornasse o Sol e se lançasse de volta às estrelas.
Ainda assim, foi preciso roubar combustível de três outras naves do
projeto Observação Solar, que agora vagavam à deriva, aguardando
naves-tanque para reabastecê-las. Norton receava que os capitães
da Calypso, da Beagle e da Challenger não voltariam a falar com ele
tão cedo.
Mesmo com todos esses propulsores extras, tinha sido uma
caçada longa e difícil; Rama já estava na órbita de Vênus quando a
Endeavour o alcançou. Nenhuma outra nave poderia jamais ter feito
isso; o privilégio era único, e não se poderia desperdiçar sequer um
instante nas semanas seguintes. Mil cientistas na Terra teriam
vendido a alma por essa oportunidade; agora, tudo o que podiam
fazer era assistir a tudo pelos circuitos de tv, mordendo os lábios e
pensando como eles executariam a tarefa muito melhor.
Provavelmente estavam certos, mas não havia alternativa. As leis
inexoráveis da mecânica celeste tinham decretado que a Endeavour
seria a primeira e última das naves construídas pelo homem a fazer
contato com Rama.
Os conselhos que Norton recebia continuamente da Terra pouco
serviram para aliviar sua responsabilidade. Se fosse necessário
tomar decisões em milésimos de segundo, ninguém poderia ajudá-
lo; o lapso de tempo do rádio até o Controle da Missão já era de dez
minutos, e estava aumentando. Quase invejou os grandes
navegadores do passado, antes da época da comunicação
eletrônica, que podiam interpretar suas ordens lacradas sem o
monitoramento contínuo do quartel-general. Quando eles cometiam
erros, ninguém jamais ficava sabendo.
No entanto, ao mesmo tempo, estava contente por algumas
decisões poderem ser delegadas à Terra. Agora que a órbita da
Endeavour se unira à de Rama, os dois dirigiam-se ao Sol como um
só corpo; em quarenta dias, alcançariam o periélio e passariam a
vinte milhões de quilômetros do Sol. Era perto demais para ser
confortável; muito antes disso, a Endeavour teria de usar o
combustível restante para atingir uma órbita mais segura. Teriam,
talvez, três semanas para exploração, antes de se separarem de
Rama para sempre.
Depois disso, o problema seria da Terra. A Endeavour ficaria
praticamente à deriva, girando numa órbita que a tornaria a primeira
nave a alcançar as estrelas – dentro de cinquenta mil anos,
aproximadamente. Não havia motivo para preocupação, prometera
o Controle da Missão. De algum modo, apesar do custo, a
Endeavour seria reabastecida – mesmo se fosse necessário enviar
naves-tanque atrás dela e abandoná-las no espaço depois que
transferissem cada grama de combustível. Rama era um prêmio que
valia qualquer risco, exceto uma missão suicida.
E isso, claro, até poderia acontecer. O comandante Norton não
tinha ilusões. Pela primeira vez em cem anos, um elemento de total
incerteza surgira nos assuntos humanos. Incerteza era algo que
nem cientistas nem políticos podiam tolerar. Se esse fosse o preço
para resolver a questão, a Endeavour e sua tripulação seriam
descartáveis.
5
PRIMEIRA AEV

Rama estava silencioso como uma tumba – e talvez o fosse.


Nenhum sinal de rádio, em nenhuma frequência; nenhuma vibração
que os sismógrafos pudessem captar, exceto os microtremores sem
dúvida causados pelo calor crescente do Sol; nenhuma corrente
elétrica; nenhuma radioatividade. O silêncio era quase ameaçador;
até de um asteroide esperava-se mais barulho.
E nós, o que esperávamos?, perguntou-se Norton. Um comitê de
recepção? Não sabia se ficava decepcionado ou aliviado. A
iniciativa, de qualquer modo, parecia estar ao seu encargo.
As ordens eram esperar vinte e quatro horas e então sair para
explorar. Ninguém dormiu muito no primeiro dia; mesmo os
tripulantes que não estavam de serviço passaram o tempo
monitorando os inúteis instrumentos de sondagem, ou simplesmente
olhando, através das vigias de observação, a paisagem
perfeitamente geométrica do lado de fora. Este mundo estaria vivo?,
perguntavam-se, incessantemente. Estaria morto? Ou simplesmente
dormindo?
Na primeira AEV, Atividade Extraveicular, Norton levou apenas um
acompanhante – o tenente-comandante Karl Mercer, seu robusto e
expedito oficial de suporte de vida. Norton não tinha nenhuma
intenção de perder a nave de vista e, se houvesse qualquer
problema, era improvável que um grupo maior fosse mais seguro.
Como precaução, entretanto, havia mais dois tripulantes, já vestidos
com traje espacial, aguardando na câmara pressurizada.
Os poucos gramas de peso fornecidos pela combinação do
campo gravitacional e centrífugo de Rama não ajudaram nem
atrapalharam; os dois homens tiveram de confiar inteiramente em
seus jatos. Assim que possível, pensou Norton, esticaria uma cama-
de-gato com cordas-guias entre a nave e as casamatas, para que
eles pudessem explorar o local sem desperdiçar propulsores.
A casamata mais próxima estava a apenas dez metros da
câmara pressurizada, e a primeira preocupação de Norton foi
verificar se o contato havia causado algum dano à nave. O casco da
Endeavour repousava contra a parede curva com uma pressão de
várias toneladas, mas distribuída uniformemente. Mais tranquilo, ele
começou a flutuar em torno da estrutura circular, tentando
determinar sua finalidade.
Norton tinha percorrido apenas alguns metros quando deparou
com uma interrupção na parede lisa e aparentemente metálica. De
início, julgou tratar-se de alguma decoração peculiar, pois não
parecia ter alguma função útil. Havia seis ranhuras radiais, ou
fendas, num recesso profundo do metal e, em seu interior, seis
barras cruzadas, como os raios de uma roda sem aro, com um
pequeno eixo no centro. Mas não havia como girar a roda, pois
estava embutida na parede.
Percebeu, então, com excitação crescente, que havia recessos
mais profundos nas extremidades dos raios, feitos de forma a
receber o aperto de uma mão (garra? tentáculo?). Se alguém
ficasse em pé assim, firmando-se contra a parede, e puxasse o raio
assim...
Suave como a seda, a roda deslizou para fora da parede. Para
seu absoluto espanto – pois tinha quase certeza de que qualquer
parte móvel teria sido soldada pelo vácuo há milênios –, Norton viu-
se segurando uma roda raiada. Era como se fosse o capitão de um
antigo veleiro, manejando o leme do barco.
Felizmente, o protetor do capacete não permitia que Mercer visse
sua expressão.
Ficou surpreso, e também com raiva de si mesmo; talvez já
tivesse cometido o primeiro erro. Será que alarmes estariam soando
agora no interior de Rama, e sua ação impensada já desencadeara
algum mecanismo implacável?
Mas a Endeavour não comunicou nenhuma mudança; os
sensores ainda não detectavam nada, exceto leves crepitações
térmicas e os movimentos do próprio comandante.
– E então, capitão, vai girar a roda?
Norton pensou mais uma vez nas instruções recebidas. “Use seu
próprio arbítrio, mas proceda com cautela.” Se consultasse o
Controle da Missão a cada passo, nunca chegaria a parte alguma.
– Qual seu diagnóstico, Karl? – perguntou a Mercer.
– Obviamente, trata-se do controle manual de uma câmara
pressurizada, provavelmente um sistema auxiliar de segurança,
caso falte energia. Não consigo imaginar nenhuma tecnologia, por
mais avançada que seja, sem esse tipo de precaução.
E seria à prova de falhas, Norton pensou consigo. Só poderia
abrir se não houvesse perigo ao sistema...
Agarrou dois raios opostos do molinete, firmou os pés contra o
piso e testou a roda. Ela não se moveu.
– Me ajude aqui – pediu a Mercer. Cada um pegou num raio;
mesmo exercendo extrema força, foram incapazes de produzir o
menor movimento.
Naturalmente, não havia razão para supor que relógios e saca-
rolhas em Rama girassem para o mesmo lado dos da Terra...
– Vamos tentar para o outro lado – sugeriu Mercer.
Desta vez, não houve resistência. A roda fez um giro completo
quase sem esforço. Depois, muito suavemente, o mecanismo
assumiu o controle.
A meio metro de distância, a parede curva da casamata começou
a se mover, como uma concha se abrindo lentamente. Algumas
partículas de poeira, carregadas por minúsculas lufadas do ar que
escapava, flutuaram para fora como reluzentes diamantes, ao
refletirem a luz solar.
O caminho para Rama estava aberto.
6
COMITÊ

Tinha sido um erro grave, pensava às vezes o dr. Bose, colocar a


sede dos Planetas Unidos na Lua. Inevitavelmente, a Terra tendia a
dominar os trabalhos – assim como dominava a paisagem além do
domo. Se tinham de construí-la aqui, talvez devessem ter ido para o
Lado Escuro, onde aquele disco hipnótico nunca emitia seus raios...
Mas, naturalmente, era tarde demais para mudar e, em todo
caso, não havia mesmo alternativa. Gostassem as colônias ou não,
a Terra seria, por séculos e séculos, a soberana cultural e
econômica do Sistema Solar.
O dr. Bose nascera na Terra e só emigrou para Marte aos 30
anos de idade; assim, julgava poder analisar a situação política com
isenção. Sabia, agora, que jamais retornaria ao planeta natal,
embora estivesse a apenas cinco horas de distância pelo ônibus
espacial.
Aos 115 anos, estava em perfeita saúde, mas não poderia
enfrentar o recondicionamento necessário para acostumá-lo a uma
gravidade três vezes maior do que a que desfrutara durante a maior
parte de sua vida. Exilara-se para sempre do mundo onde nascera;
como não era sentimental, isso nunca o deprimira além da conta.
O que o deprimia, às vezes, era a necessidade de lidar, ano após
ano, com os mesmos rostos familiares. As maravilhas da medicina
eram ótimas, e certamente ele não desejava voltar ao passado –
mas havia homens ao redor daquela mesa de reuniões com quem
trabalhava há mais de meio século. Sabia exatamente o que iriam
dizer e como iriam votar sobre qualquer assunto. Gostaria que,
algum dia, um deles fizesse algo totalmente inesperado – até
mesmo alguma loucura.
E, provavelmente, sentiam o mesmo em relação a ele...
O Comitê de Rama era ainda pequeno e administrável, mas isso,
sem dúvida, mudaria em breve. Seus seis colegas – os
representantes de Mercúrio, Terra, Luna, Ganimedes, Titã e Tritão
nos Planetas Unidos – estavam presentes em carne e osso. Tinham
de estar; diplomacia eletrônica não era possível nas distâncias do
Sistema Solar. Alguns estadistas mais velhos, acostumados às
comunicações instantâneas que há muito a Terra aceitara como
coisa natural, jamais se conformaram com o fato de as ondas de
rádio levarem minutos, até mesmo horas, para viajar de um planeta
a outro. “Vocês, cientistas, não podem fazer nada?”, reclamavam,
amargamente, quando informados de que conversas diretas eram
impossíveis entre a Terra e qualquer um de seus filhos mais
remotos. Apenas a Lua possuía aquele atraso quase inaceitável de
um segundo e meio – com todas as consequências políticas e
psicológicas inerentes. Por conta desse fato da vida astronômica, a
Lua – e apenas a Lua – sempre seria o subúrbio da Terra.
Também presentes, em pessoa, estavam três dos especialistas
que haviam sido cooptados para o Comitê. O professor Davidson,
astrônomo, era um velho conhecido; nesse dia, não parecia estar
tão irascível como de costume; o dr. Bose ignorava por completo a
luta interna que precedera o lançamento da primeira sonda a Rama,
mas os colegas do professor não o deixavam esquecê-la.
A dra. Thelma Price era conhecida graças aos inúmeros
aparecimentos na televisão, embora tenha ficado famosa cinquenta
anos antes, durante a explosão arqueológica que se seguiu à
drenagem daquele vasto museu marinho, o Mediterrâneo.
O dr. Bose ainda se recordava do entusiasmo daquela época,
quando os tesouros perdidos dos gregos, dos romanos e de uma
dúzia de outras civilizações foram restituídos à luz do dia. Foi uma
das poucas vezes em que se arrependera de estar vivendo em
Marte.
O exobiólogo Carlisle Perera fora outra escolha óbvia; assim
como Dennis Solomons, o historiador da ciência. O dr. Bose estava
ligeiramente menos feliz com a presença de Conrad Taylor, o
renomado antropólogo, que conquistara fama pela combinação
única entre erudição e erotismo em seus estudos sobre os ritos da
puberdade em Beverly Hills, no final do século 20.
Ninguém, entretanto, poderia discutir o direito de sir Lewis Sands
de fazer parte do Comitê. Homem cujos conhecimentos só eram
menores que sua urbanidade, sir Lewis tinha fama de perder a
compostura apenas quando era chamado de o Arnold Toynbee de
sua época.
O grande historiador não estava presente em pessoa;
teimosamente, recusava-se a sair da Terra, mesmo para uma
reunião tão grandiosa como aquela. Sua estéreo-imagem,
indistinguível da realidade, parecia ocupar a cadeira à direita do dr.
Bose; como para completar a ilusão, alguém colocara um copo de
água diante dele. O dr. Bose considerava esse tipo de proeza
tecnológica um artifício desnecessário, mas surpreendia ver tantos
homens inegavelmente notáveis se deleitarem, de maneira infantil,
com o fato de estarem em dois lugares ao mesmo tempo. Às vezes,
o milagre eletrônico produzia desastres cômicos; ele estivera numa
recepção diplomática em que alguém tentara atravessar o
estereograma – e descobrira, tarde demais, que se tratava da
pessoa real. E o mais engraçado foi observar projeções tentando
cumprimentar-se com um aperto de mão...
Sua Excelência, o Embaixador de Marte nos Planetas Unidos,
tirou-lhe de seus devaneios, pigarreou e disse:
– Cavalheiros, o Comitê está agora em sessão. Acho que estou
certo ao afirmar que este é um encontro de talentos ímpares,
reunidos para lidar com uma situação ímpar. A diretriz passada pelo
secretário geral foi a de avaliarmos a situação e aconselharmos o
comandante Norton, quando necessário.
Era um milagre do excesso de simplificação, e todos sabiam. A
menos que houvesse uma verdadeira emergência, o Comitê talvez
jamais entraria em contato direto com o comandante Norton – se é
que ele já tinha ouvido falar de sua existência. Pois o Comitê era
uma criação temporária da Organização Científica dos Planetas
Unidos, reportando-se ao secretário geral por meio de seu diretor. É
verdade que a Observação Solar fazia parte dos PU, mas do setor
de Operações, não do lado científico. Teoricamente, isso não fazia
muita diferença; não havia motivo para o Comitê de Rama – ou
qualquer outro, aliás – não entrar em contato com o comandante
Norton e oferecer conselhos úteis.
Mas as comunicações em espaço profundo são caras. Só se
podia entrar em contato com a Endeavour através da PLANETCOM,
uma corporação autônoma, famosa pelo rigor e pela eficiência de
sua contabilidade. Levou um longo tempo para que fosse
estabelecida uma linha de crédito com a PLANETCOM; em algum lugar,
alguém cuidava do assunto; mas, no momento, os cruéis
computadores da PLANETCOM não reconheciam a existência do
Comitê de Rama.
– Esse comandante Norton – disse sir Robert Mackay,
Embaixador da Terra – tem uma tremenda responsabilidade. Que
tipo de pessoa ele é?
– Posso responder a essa pergunta – disse o professor
Davidson, os dedos voando sobre o teclado de seu bloco-memória.
Franziu as sobrancelhas diante da tela cheia de informações e
começou a fazer uma sinopse instantânea...
... William Tsien Norton, nascido em 2077, em Brisbane, Oceana.
Estudou em Sydney, Bombaim, Houston. Depois, cinco anos em
Astrograd, se especializando em propulsão. Comissionado em 2102.
Foi sendo promovido aos postos de praxe – tenente na terceira
expedição a Perséfone, distinguiu-se durante a décima quinta
tentativa de estabelecer uma base em Vênus... hum... hum... folha
de serviço exemplar... dupla cidadania, Terra e Marte... esposa e um
filho em Brisbane, esposa e dois filhos em Port Lowell, com
possibilidade de uma terceira...
– Esposa? – perguntou Taylor, inocentemente.
– Não, criança, é claro. Um terceiro filho – disparou rispidamente
o professor, antes de ver o sorriso malicioso no rosto de Taylor.
Risos contidos murmuraram em volta da mesa, embora aqueles
terrestres apinhados aparentassem mais inveja do que divertimento.
Após um século de esforços resolutos, a Terra ainda falhara em
manter a população abaixo da meta de um bilhão...
... nomeado oficial comandante da nave Endeavour, do projeto
Observação Solar. Primeira viagem aos satélites retrógrados de
Júpiter... hum, essa foi difícil... estava em missão num asteroide
quando recebeu a ordem de se preparar para esta operação...
conseguiu fazer tudo antes do prazo...
O professor apagou a tela e olhou para os colegas.
– Acho que tivemos uma tremenda sorte, considerando que ele
era o único homem disponível num prazo tão curto. Poderíamos ter
arranjado um capitão comum, sem nada de especial. – Parecia
referir-se ao típico flagelo de perna de pau das rotas espaciais,
pistola em uma mão e cutelo na outra.
– O registro mostra apenas que ele é competente – objetou o
Embaixador de Mercúrio (população: 112.500, e aumentando). –
Como ele vai reagir numa situação totalmente nova como esta?
Na Terra, sir Lewis Sands pigarreou. Um segundo e meio depois,
fez o mesmo na Lua.
– Não é exatamente uma situação nova – lembrou ao mercuriano
–, embora tenha ocorrido pela última vez há três séculos. Se Rama
estiver morto, ou desocupado, e até agora as evidências mostram
que está, Norton encontra-se na posição de um arqueólogo
descobrindo as ruínas de uma cultura extinta. – Curvou-se,
educadamente, à dra. Price, que concordou com a cabeça. – Os
exemplos óbvios são Schliemann em Troia, ou Mouhot em Angkor
Vat. O perigo é mínimo, mas, naturalmente, nunca se pode
descartar a possibilidade de um acidente.
– Mas e as armadilhas explosivas e os mecanismos engatilhados
que esse pessoal da Pandora tem comentado? – perguntou a dra.
Price.
– Pandora? – perguntou prontamente o embaixador mercuriano.
– O que é isso?
– Um grupo de malucos – explicou sir Robert, com tanto
constrangimento quanto um diplomata poderia demonstrar –,
convencidos de que Rama é um sério perigo em potencial. Uma
caixa que não deveria ser aberta, entende? – Ele duvidava que o
mercuriano realmente entendesse; estudos clássicos não eram
incentivados em Mercúrio.
– Pandora... paranoia – bufou Conrad Taylor. – Ah, é claro que
essas coisas são concebíveis, mas por que uma raça inteligente iria
querer fazer truques infantis?
– Bem, mesmo descartando esses aborrecimentos – sir Robert
continuou –, ainda temos a possibilidade muito mais temível de que
Rama esteja ativo e habitado. Então, a situação se tornará o
encontro entre duas culturas em níveis tecnológicos muito
diferentes. Pizarro e os incas. Peary e os japoneses. Europa e
África. Quase invariavelmente, as consequências foram
desastrosas, para uma ou ambas as partes. Não estou
recomendando nada: estou apenas apontando precedentes.
– Obrigado, sir Robert – respondeu o dr. Bose. Era um leve
incômodo, pensou ele, ter dois “sirs” num comitê tão pequeno; nos
últimos tempos, título de nobreza era uma honra a que poucos
ingleses escapavam. – Tenho certeza de que todos nós
consideramos essas possibilidades alarmantes. Mas se as criaturas
dentro de Rama são... hã... malévolas, o que fizermos terá alguma
importância?
– Eles podem nos ignorar, se formos embora.
– O quê? Depois de viajarem bilhões de quilômetros e milhares
de anos?
A discussão atingira o ponto de decolagem e agora se
sustentava sozinha. Dr. Bose recostou-se em sua cadeira, disse
muito pouco e aguardou o consenso emergir.
Foi exatamente como previra. Todos concordaram que, depois de
ter aberto a primeira porta, era inconcebível que o comandante
Norton não abrisse a segunda.
7
DUAS ESPOSAS

Se um dia suas esposas comparassem os videogramas, pensou o


comandante Norton, mais se divertindo do que se preocupando, ele
iria ter muito mais trabalho. Por enquanto, podia fazer apenas um
longo vídeo e duplicá-lo, acrescentando apenas breves mensagens
pessoais carinhosas, antes de enviar as cópias quase idênticas para
Marte e Terra.
Naturalmente, era muito improvável que suas esposas fizessem
tal coisa; mesmo a taxas especiais, concedidas às famílias dos
espaçonautas, seria muito caro. E não haveria por quê; suas duas
famílias se davam muito bem e trocavam os cumprimentos de praxe
em aniversários e outras datas comemorativas. No entanto, de
modo geral, talvez tenha sido bom que as duas moças nunca
tenham se encontrado, e provavelmente jamais se encontrariam.
Myrna nascera em Marte e, portanto, não poderia tolerar a alta
gravidade da Terra. E Caroline detestava até os vinte e cinco
minutos da mais longa viagem terrestre possível.

Desculpe o atraso de um dia desta transmissão, disse o


comandante, após terminar as preliminares gerais, mas fiquei longe
da nave nas últimas trinta horas, acredite ou não...
Não se preocupe, está tudo sob controle, indo perfeitamente
bem. Levamos dois dias, mas estamos quase conseguindo
atravessar o complexo de câmaras pressurizadas. Poderíamos ter
atravessado em duas horas, se soubéssemos o que sabemos
agora. Mas resolvemos não arriscar: enviamos câmeras acionadas
por controle remoto à nossa frente e passamos por todas as
câmaras doze vezes, para termos certeza de que não se trancariam
atrás de nós, depois que tivéssemos atravessado...
Cada câmara é um simples cilindro giratório, com uma fenda num
dos lados. Entra-se por essa abertura, gira-se o cilindro cento e
oitenta graus, por meio de uma manivela, e a fenda então se
encaixa numa outra porta, para que se possa sair andando. Ou, no
nosso caso, flutuando.
Os ramanos realmente tomaram todas as precauções. Existem
três desses cilindros-câmaras, um atrás do outro, logo no interior do
casco externo e abaixo da casamata de entrada. Não consigo
imaginar nem mesmo um deles falhando, a menos que alguém o
detonasse com explosivos, mas, se isso acontecesse, haveria um
segundo cilindro de segurança, e ainda um terceiro...
E isso é só o começo. A última câmara abre para um corredor
reto, de quase meio quilômetro de comprimento. Parece limpo e
bem cuidado, como tudo o que já vimos aqui; a cada poucos metros,
há pequenos compartimentos que provavelmente continham luzes,
mas agora está tudo completamente escuro e, não me importo de
confessar, assustador. Há também duas fendas paralelas, com
cerca de um centímetro de largura, recortadas nas paredes, ao
longo de toda a extensão do túnel. Desconfiamos que algum tipo de
veículo percorria essas fendas, carregando equipamento – ou
pessoas – para lá e para cá. Se conseguíssemos colocar um deles
para funcionar, nos pouparia muito trabalho...
Mencionei que o túnel tem meio quilômetro de extensão. Bem,
com base em nossas sondagens sísmicas, sabíamos que essa era
a espessura aproximada do casco, portanto, obviamente,
estávamos quase terminando de atravessá-lo. E, ao final do túnel,
não nos surpreendemos ao encontrar mais um desses cilindros-
câmaras.
Sim, mais um. E mais outro. Essa gente parece ter feito tudo em
grupos de três. Estamos agora no último cilindro-câmara,
aguardando o ok da Terra antes de prosseguirmos. O interior de
Rama está a apenas alguns metros de distância. Vou me sentir bem
mais feliz quando terminar o suspense.
Você conhece Jerry Kirchoff, meu oficial executivo, que tem uma
biblioteca tão grande de livros de verdade, que não pode se dar ao
luxo de emigrar da Terra? Bem, Jerry me falou de uma situação
exatamente como esta, ocorrida no início do século 21 – não, século
20. Um arqueólogo encontrou a tumba de um rei egípcio, a primeira
que não havia sido saqueada por ladrões. Seus trabalhadores
levaram meses para cavar um caminho, câmara após câmara, até
chegarem à última parede. Então perfuraram a alvenaria, ele
segurou uma lanterna e enfiou a cabeça no buraco. Lá dentro,
descobriu uma sala cheia de tesouros – coisas incríveis, ouro e
joias...
Talvez este lugar também seja uma tumba; parece cada vez mais
provável. Até agora, não houve o menor barulho ou sinal de
atividade. Bem, amanhã saberemos.

O comandante Norton pressionou o botão PAUSA no gravador. O


que mais, pensou, deveria dizer sobre o trabalho antes de começar
a separar as mensagens pessoais a suas famílias? Normalmente,
nunca entrava em tantos detalhes, mas as circunstâncias estavam
longe de ser normais. Esse talvez fosse o último vídeo que enviaria
aos entes queridos; tinha o dever de lhes explicar o que estava
fazendo.
Quando vissem as imagens e ouvissem as palavras, ele já
estaria no interior de Rama – para o bem ou para o mal.
8
ATRAVÉS DO EIXO

Nunca antes Norton sentira tão fortemente sua afinidade com


aquele egiptólogo falecido há tanto tempo. Desde que Howard
Carter pôs os olhos na tumba de Tutancâmon, ninguém conhecera
um momento como este – no entanto, a comparação era quase
ridiculamente absurda.
Tutancâmon fora enterrado ainda ontem – há menos de quatro
mil anos; Rama talvez fosse mais velho que a humanidade. Aquela
pequena tumba no Vale dos Reis poderia estar perdida nos
corredores por onde já haviam passado, e o espaço por trás do
último selo era pelo menos um milhão de vezes mais incrível. E
quanto ao tesouro que talvez guardasse – isso estava além da
imaginação.
Ninguém se comunicara pelos circuitos do rádio há pelo menos
cinco minutos; a equipe bem treinada sequer se reportara
verbalmente quando todas as verificações estavam completas.
Mercer apenas lhe fizera um sinal de OK e lhe acenara em direção
ao túnel aberto. É como se todos percebessem que o momento era
histórico e não deveria ser estragado por conversas desnecessárias.
Isso convinha ao comandante Norton, pois, no momento, ele
também não tinha nada a dizer. Ligou sua lanterna, acionou os jatos
e flutuou lentamente pelo breve corredor, arrastando atrás de si o fio
de segurança. Em poucos segundos, estava lá dentro.
Dentro de quê? Diante dele, a escuridão era total; sequer um
vislumbre de luz como reflexo do feixe da lanterna. Já esperava por
isso, mas não acreditara realmente. Todos os cálculos indicaram
que a parede mais distante estava a dezenas de quilômetros de
distância; agora seus olhos lhe diziam que essa era, de fato, a
verdade. Enquanto flutuava lentamente na escuridão, sentiu uma
súbita necessidade do amparo de seu fio de segurança, uma
necessidade mais forte do que jamais experimentara antes, mesmo
em sua primeira AEV. E isso era ridículo; já tinha encarado os anos-
luz e os megaparsecs sem vertigem; por que deveria se perturbar
com alguns quilômetros cúbicos de vazio?
Ainda pensava, inquieto, nesse problema, quando o amortecedor
de impacto na extremidade do fio freou-o delicadamente, com um
ricochete quase imperceptível.
Desviou o feixe da lanterna do nada à sua frente, que em vão
tentava sondar, para examinar a superfície de onde ele havia
emergido.
Era como se pairasse sobre o centro de uma pequena cratera
que, por sua vez, era apenas uma covinha na base de uma cratera
muito maior. De cada um dos lados, erguia-se um complexo de
plataformas e rampas – todos geometricamente precisos e
obviamente artificiais –, que se estendiam até onde a luz da lanterna
alcançava. A cerca de cem metros, via a saída de outros dois
sistemas de câmaras pressurizadas, idênticos a este.
E isso era tudo. Não havia nada particularmente exótico ou
alienígena naquela cena: na verdade, parecia-se muito com uma
mina abandonada. Norton teve uma vaga sensação de
desapontamento: depois de tanto esforço, deveria ter havido alguma
revelação dramática, até mesmo transcendental. Lembrou-se,
então, de que conseguia enxergar apenas até uns duzentos metros.
A escuridão além de seu campo de visão talvez ainda contivesse
mais maravilhas do que ele desejaria enfrentar.
Relatou brevemente o que vira aos companheiros, que
aguardavam ansiosos, e então acrescentou:
– Estou lançando o sinalizador. Dois minutos de atraso. Aí vai!
Com toda sua força, lançou o pequeno cilindro diretamente para
cima – ou para fora – e começou a contar os segundos, enquanto o
sinalizador diminuía de tamanho no feixe da lanterna. Antes de
alcançar um quarto de minuto, o cilindro sumiu; quando chegou aos
cem segundos, Norton protegeu os olhos e apontou a câmera.
Sempre tinha sido bom em calcular o tempo; com apenas dois
segundos de atraso, o mundo explodiu em luz. E, desta vez, não
houve motivo para decepção.
Nem os milhões de velas do sinalizador conseguiram iluminar
toda a imensa cavidade, mas agora ele podia enxergar o suficiente
para ter uma visão geral e apreciar sua escala titânica. Estava numa
das extremidades de um cilindro oco com pelo menos dez
quilômetros de largura e comprimento indefinido. De seu ponto de
observação, no eixo central, pôde ver tantos detalhes nas paredes
curvas à sua volta que sua mente não conseguiu absorver mais do
que uma fração diminuta de tudo aquilo: estava contemplando a
paisagem de um mundo inteiro à luz de um único relâmpago e
tentou, com deliberado esforço de vontade, congelar a imagem na
memória.
À sua volta, as rampas e plataformas da “cratera” erguiam-se até
se fundirem na parede sólida que circundava o céu. Não – essa
impressão era falsa; tinha de descartar os dois instintos, da Terra e
do espaço, e se reorientar para um novo sistema de coordenadas.
Ele não estava no ponto mais baixo desse estranho mundo às
avessas, mas no mais alto. Dali, todas as direções eram para baixo,
não para cima. Se ele se distanciasse do eixo central, em direção à
parede curva, que ele não deveria mais encarar como uma parede,
a gravidade iria aumentar gradualmente. Quando atingisse a
superfície interna do cilindro, poderia ficar de pé em qualquer ponto,
com os pés voltados para as estrelas e a cabeça para o centro do
tambor giratório. O conceito era familiar; desde a aurora dos voos
espaciais, a força centrífuga tinha sido utilizada para simular
gravidade. Só a escala dessa aplicação é que era tão
impressionante, tão surpreendente. A maior estação espacial,
Syncsat 5, tinha menos de duzentos metros de diâmetro. Levaria um
tempinho para se acostumar a um tamanho cem vezes maior.
O tubo de paisagem que o cercava era salpicado de áreas de luz
e sombra que poderiam ser florestas, campos, lagos congelados ou
cidades; a distância e a iluminação já fraca do sinalizador
impossibilitavam a identificação. Linhas estreitas que poderiam ser
estradas, canais ou rios com cursos retificados formavam uma rede
geométrica vagamente visível; e lá adiante no cilindro, no limite da
visão, havia uma faixa mais escura. A faixa formava um círculo
completo, emoldurando o interior desse mundo, e Norton
subitamente recordou-se do mito de Oceano, o mar que, segundo a
crença dos antigos, circundava a Terra.
Ali talvez houvesse um mar ainda mais estranho – não circular,
mas cilíndrico. Antes de congelar na noite interestelar, será que
possuía ondas, marés e correntes – e peixes?
A luz do sinalizador bruxuleou e morreu; o momento de revelação
terminara. Mas Norton sabia que, enquanto vivesse, essas imagens
permaneceriam impressas em sua mente. Quaisquer que fossem as
descobertas reservadas pelo futuro, jamais poderiam apagar essa
primeira impressão. E a História jamais lhe tiraria o privilégio de ter
sido o primeiro homem de toda a humanidade a contemplar as
obras de uma civilização alienígena.
9
RECONHECIMENTO

Já lançamos cinco sinalizadores de longa duração no eixo do


cilindro, e assim temos uma boa cobertura fotográfica de sua
totalidade. Todos os aspectos principais foram mapeados; embora
haja poucos identificáveis, demos a eles nomes provisórios.
A cavidade interior tem cinquenta quilômetros de extensão e
dezesseis de largura. As duas extremidades são arredondadas, com
geometrias bem complicadas. À nossa, demos o nome de
Hemisfério Norte, e estamos implantando a primeira base aqui, no
eixo.
Irradiando do eixo central, a 120 graus de distância uma da outra,
há três escadas de quase um quilômetro de comprimento. Todas
terminam numa plataforma ou platô circular, que rodeia a
extremidade abaulada. E, partindo daí, continuando a direção das
escadas, três escadarias enormes descem até a planície. Se puder
imaginar um guarda-chuva com apenas três varetas, igualmente
espaçadas, terá uma ideia bastante exata desta extremidade de
Rama.
Cada uma das varetas é uma escadaria, muito íngreme perto do
eixo e depois se aplanando pouco a pouco, à medida que se
aproxima da planície abaixo. As escadarias – que chamamos de
Alfa, Beta e Gama – não são contínuas, mas interrompem-se em
cinco outras plataformas circulares. Calculamos que deve haver
entre vinte e trinta mil degraus... presumivelmente, eram usados
apenas em casos de emergência, já que é inconcebível que os
ramanos – ou seja lá como vamos chamá-los – não tivessem um
jeito mais prático de alcançar o centro de seu mundo.
O Hemisfério Sul parece ser completamente diferente; para
começar, não há escadarias, nem eixo central plano. Em vez disso,
há um imenso espigão pontiagudo – com quilômetros de extensão –
projetando-se do eixo, rodeado por seis outros menores. O arranjo
todo é muito estranho, e não conseguimos imaginar o que significa.
Chamamos de Planície Central a parte cilíndrica de cinquenta
quilômetros de comprimento entre as duas cúpulas. Pode parecer
loucura usar a palavra “planície” para descrever algo tão obviamente
curvo, mas achamos que o termo se justifica. O lugar vai parecer
plano quando chegarmos lá – assim como o interior de uma garrafa
deve parecer plano para uma formiga caminhando por ele.
A característica mais impressionante da Planície Central é a faixa
escura de dez quilômetros de largura que a circunda completamente
em seu centro exato. Parece gelo, então a batizamos de Mar
Cilíndrico. Bem no meio, há uma grande ilha oval, com cerca de dez
quilômetros de comprimento e três de largura, coberta de altas
estruturas. Por nos fazer lembrar da velha Manhattan, demos a ela o
nome de Nova York. No entanto, não acho que seja uma cidade;
parece mais uma enorme fábrica ou usina de processamento
químico.
Mas há algumas cidades – ou, em todo caso, pequenas cidades.
Pelo menos seis; se fossem construídas para seres humanos, cada
uma delas poderia acomodar cerca de cinquenta mil pessoas.
Demos a elas os nomes de Roma, Pequim, Paris, Moscou, Londres,
Tóquio... São ligadas por estradas e por algo que parece ser um
sistema ferroviário.
Deve haver material suficiente para séculos de pesquisa nesta
carcaça congelada de um mundo. Temos quatro mil quilômetros
quadrados para explorar, e apenas algumas semanas para isso.
Pergunto-me se algum dia iremos descobrir a resposta para dois
mistérios que têm me assombrado desde que entramos: quem eram
eles – e o que deu errado?

A gravação terminou. Na Terra e na Lua, os membros do Comitê


de Rama relaxaram, e então começaram a examinar os mapas e
fotografias espalhados diante deles. Embora já os tivessem
estudado por muitas horas, a voz do comandante Norton
acrescentou uma dimensão que nenhuma imagem poderia
comunicar. Ele estivera lá em pessoa – olhara com os próprios olhos
esse extraordinário mundo às avessas, durante os breves
momentos em que sua noite interminável fora iluminada pelos
sinalizadores. E era ele o homem que conduziria qualquer
expedição para explorá-lo.
– Dr. Perera, acredito que o senhor tenha alguns comentários a
fazer.
O Embaixador Bose perguntou a si mesmo, por um breve
momento, se não deveria ter dado a palavra em primeiro lugar ao
professor Davidson, como cientista mais velho e único astrônomo.
Mas o velho cosmólogo ainda parecia estar num leve estado de
choque e estava claramente fora de seu elemento. Em toda a sua
carreira profissional, o universo fora para ele uma arena para as
titânicas e impessoais forças da gravitação, do magnetismo, da
radiação; nunca acreditara que a vida exercesse papel importante
na ordem das coisas e encarava o surgimento dela na Terra, em
Marte e em Júpiter como uma aberração acidental.
Mas agora havia provas de que a vida não apenas existia fora do
Sistema Solar, mas havia escalado alturas muito além de tudo que o
homem tinha alcançado ou esperava alcançar nos próximos
séculos. Além disso, o descobrimento de Rama desafiava outro
dogma que o professor Olaf pregara por anos. Quando pressionado,
ele admitia, com relutância, que a vida provavelmente existia em
outros sistemas estelares – mas sempre sustentava que era
absurdo imaginar que ela um dia pudesse atravessar os abismos
interestelares...
Talvez os ramanos realmente tivessem fracassado, se o
comandante Norton estivesse certo ao acreditar que o mundo deles
era agora uma tumba. Mas pelo menos tinham tentado a proeza,
numa escala que indicava um alto grau de confiança no resultado.
Se tal coisa aconteceu uma vez, certamente deve ter acontecido
muitas vezes nesta galáxia de cem bilhões de sóis... e alguém, em
algum lugar, acabaria tendo êxito.
Essa era a tese que, sem provas mas com muita gesticulação, o
dr. Carlisle defendia há anos. Agora era um homem feliz, embora
também profundamente frustrado. Rama confirmara
espetacularmente suas ideias – mas ele jamais poderia pôr os pés
lá dentro, ou mesmo vê-lo com seus próprios olhos. Se o diabo
tivesse aparecido de repente e lhe oferecido o dom do teletransporte
instantâneo, ele teria assinado o contrato sem ler as letras miúdas.
– Sim, senhor Embaixador, acho que tenho algumas informações
interessantes. O que temos aqui é, sem dúvida, uma “arca espacial”.
É uma ideia antiga na literatura astronáutica; consegui rastrear sua
origem até o físico britânico J. D. Bernal, que propôs esse método
de colonização interestelar num livro publicado em 1929... sim, há
duzentos anos. E o grande pioneiro russo Tsiolkovski havia
apresentado propostas semelhantes ainda antes disso...
... Quem quiser viajar de um sistema estelar a outro tem algumas
alternativas. Presumindo que a velocidade da luz seja um limite
absoluto, e isso ainda não está totalmente confirmado, apesar de
tudo o que os senhores ouviram em contrário – o professor
Davidson torceu o nariz, indignado, mas não protestou formalmente
–, pode-se fazer uma viagem rápida numa nave pequena, ou uma
jornada longa numa nave gigante...
... Parece não haver nenhuma razão técnica para que naves
espaciais não possam alcançar noventa por cento, ou mais, da
velocidade da luz. Isso significaria um período de viagem de cinco a
dez anos entre duas estrelas vizinhas; tedioso, talvez, mas não
impraticável, especialmente para criaturas cuja expectativa de vida
talvez seja medida em séculos. Pode-se imaginar viagens com essa
duração, realizadas em naves não muito maiores do que as
nossas...
... Mas talvez essas velocidades sejam impossíveis com uma
carga razoável; lembrem-se de que é preciso levar o combustível
para frear a velocidade, ao final da viagem, mesmo que ela seja só
de ida. Então talvez seja mais sensato ir com calma, em dez ou cem
mil anos...
... Bernal e os demais achavam que isso poderia ser feito com
pequenos mundos migratórios de alguns quilômetros de diâmetro,
carregando milhares de passageiros em viagens que durariam
gerações. Naturalmente, o sistema teria de ser rigidamente fechado,
reciclando toda a comida, o ar e outras coisas dispensáveis. Mas,
claro, isso é exatamente como a Terra funciona... numa escala
ligeiramente maior...
... Alguns escritores sugeriram que essas arcas espaciais
deveriam ser construídas em forma de esferas concêntricas; outros
propuseram cilindros ocos e giratórios, para que a força centrífuga
pudesse fornecer a gravidade artificial; exatamente o que
encontramos em Rama...
O professor Davidson não pôde tolerar essa conversa sem rigor
científico.
– Não existe força centrífuga. Isso é um fantasma criado pelos
engenheiros. O que existe é só inércia.
– Claro, o senhor tem toda a razão – admitiu Perera –, embora
talvez seja difícil convencer alguém que tenha acabado de ser
arremessado para fora de um carrossel. Mas rigor matemático
parece desnecessário...
– Apoiado, apoiado! – interpôs o dr. Bose, com certa
exasperação. – Todos nós sabemos o que o senhor quer dizer, ou
achamos que sabemos. Por favor, não destrua nossas ilusões.
– Bem, eu apenas estava observando que não há nada
conceitualmente novo sobre Rama, embora seu tamanho seja
impressionante. Os homens vêm imaginando coisas assim há
duzentos anos...
... Agora eu gostaria de considerar outra questão. Há quanto
tempo, exatamente, Rama está viajando pelo espaço?...
... Já temos uma determinação muito precisa de sua órbita e de
sua velocidade. Supondo que não tenha havido nenhuma mudança
de navegação, podemos rastrear sua posição até milhões de anos
atrás. Esperávamos que tivesse vindo de uma estrela vizinha... mas
não é o caso, em absoluto...
... Faz mais de duzentos mil anos que Rama passou por uma
estrela próxima, e acontece que essa estrela em particular era uma
variável irregular, talvez o sol mais inadequado que se possa
imaginar para um sistema solar habitado. Rama tem uma variação
de brilho de mais de cinquenta para um; qualquer planeta seria
alternadamente assado e congelado, em intervalos de poucos anos.
– Uma sugestão – interveio a dra. Price. – Talvez isso explique
tudo. E se a estrela fosse um sol normal que se tornou instável? Por
isso os ramanos tiveram que encontrar um novo sol.
O dr. Perera admirava a velha arqueóloga, então refutou sua
intervenção com delicadeza. Mas, pensou ele, o que ela diria se ele
começasse a apontar o óbvio em sua própria especialidade?
– Já consideramos essa hipótese – ele disse, gentilmente. – Mas,
se as teorias atuais sobre evolução estelar estiverem corretas, essa
estrela jamais poderia ter sido estável, jamais poderia ter tido
planetas habitados por seres vivos. Portanto, Rama está navegando
pelo espaço há pelo menos duzentos mil anos, e talvez há mais de
um milhão...
... Agora está gelado, escuro e aparentemente morto, e acho que
sei por quê. Os ramanos podem não ter tido escolha. Talvez
estivessem realmente fugindo de um desastre, mas erraram nos
cálculos...
... Nenhuma ecologia fechada pode ser cem por cento eficiente;
sempre há desperdício, perdas, alguma degradação do ambiente e
a formação de poluentes. Pode-se levar bilhões de anos para
envenenar e esgotar um planeta, mas, no fim, vai acontecer. Os
oceanos irão secar, a atmosfera irá se dispersar no espaço...
... Pelos nossos padrões, Rama é enorme. No entanto, ele ainda
é um planeta muito pequeno. Meus cálculos, baseados no
vazamento através do casco e em alguns palpites razoáveis sobre a
taxa de renovação biológica, indicam que a sua ecologia só poderia
sobreviver por cerca de mil anos. No máximo, admito dez mil...
... Esse tempo seria suficiente, na velocidade em que Rama está
viajando, para um trânsito entre os sóis apinhados no centro da
galáxia. Mas não aqui fora, na população esparsa dos braços da
espiral. Rama é uma nave que exauriu suas provisões antes de
alcançar seu objetivo. É um navio abandonado, à deriva entre as
estrelas...
... Há apenas uma objeção séria a essa teoria, e vou fazê-la
antes que alguém o faça. A órbita de Rama está apontada com
tanta precisão para o Sistema Solar que a hipótese de mera
coincidência parece estar descartada. Na verdade, eu diria que
neste momento ele está perto demais do Sol: a Endeavour terá que
se desprender bem antes do periélio, para evitar
superaquecimento...
... Não tenho a pretensão de compreender isso. Talvez haja
alguma forma de orientação terminal automática ainda em
operação, guiando Rama para a estrela adequada mais próxima,
milênios depois da morte de seus construtores...
... E eles estão mortos; aposto minha reputação nisso. Todas as
amostras que colhemos do interior são absolutamente estéreis. Não
encontramos nenhum micro-organismo. E quanto à conversa que os
senhores devem ter ouvido sobre animação suspensa, podem
ignorar. Há razões fundamentais por que as técnicas de hibernação
só funcionam por alguns séculos; e estamos lidando com intervalos
de tempo mil vezes mais longos...
... Assim, os pandoristas e seus seguidores não precisam se
preocupar. De minha parte, lamento. Teria sido maravilhoso
conhecer outra espécie inteligente...
... Mas pelo menos temos a resposta a uma velha pergunta. Não
estamos sozinhos. As estrelas nunca mais serão as mesmas para
nós.
10
DESCIDA NA ESCURIDÃO

O comandante Norton ficou fortemente tentado – mas, como


capitão, seu primeiro dever era com a nave. Se algo desse errado
nessa sondagem inicial, ele poderia ter de fugir às pressas.
Portanto, isso deixava seu oficial imediato, tenente-comandante
Mercer, como a escolha óbvia. Norton admitiu prontamente que Karl
era mais adequado para a missão.
Autoridade máxima em sistemas de suporte de vida, Mercer
escrevera alguns dos manuais obrigatórios sobre o assunto. Tinha
examinado pessoalmente inúmeros tipos de equipamento, muitas
vezes em condições arriscadas, e seu controle biofeedback era
famoso. A qualquer momento, poderia diminuir o ritmo de sua
pulsação em cinquenta por cento e reduzir sua respiração a quase
zero, por até dez minutos. Esses pequenos truques úteis lhe tinham
salvado a vida em mais de uma ocasião.
No entanto, apesar de sua grande capacidade e inteligência, era
quase inteiramente desprovido de imaginação. Para ele, os
experimentos ou missões mais perigosos eram apenas tarefas a
serem cumpridas. Nunca se arriscava sem necessidade e jamais
fazia uso de algo que se conhece por coragem. Os dois lemas
expostos em sua escrivaninha resumiam sua filosofia de vida. Um
perguntava O QUE VOCÊ ESQUECEU? O outro dizia AJUDE A ERRADICAR A
BRAVURA. O fato de ser amplamente considerado o homem mais
corajoso da Frota era a única coisa que o deixava irritado.
Escolhido Mercer, isso automaticamente selecionava o próximo
homem: seu companheiro inseparável, tenente Joe Calvert. Era
difícil perceber o que os dois tinham em comum; o oficial de
navegação franzino e hipersensível era dez anos mais novo que seu
amigo impassível e imperturbável, que certamente não partilhava de
seu interesse pela arte do cinema primitivo.
Mas ninguém pode prever onde vai cair o raio, e, anos atrás,
Mercer e Calvert tinham estabelecido uma ligação aparentemente
estável. Isso era bastante comum; muito mais incomum era o fato
de também compartilharem uma esposa na Terra, que tinha dado
um filho a cada um deles. O comandante Norton esperava poder
conhecê-la algum dia; ela devia ser uma mulher notável. O triângulo
durava há pelo menos cinco anos e ainda parecia ser equilátero.
Dois homens não bastavam para uma equipe de exploração; há
muito se descobrira que três era o melhor número – pois, se um
homem se perdesse, dois ainda poderiam escapar, numa situação
em que apenas um sobrevivente estaria condenado. Após ponderar
muito, Norton escolhera o sargento técnico Willard Myron. Gênio da
mecânica que conseguia fazer qualquer coisa funcionar – ou
projetar algo melhor, se não funcionasse –, Myron era o homem
ideal para identificar equipamentos alienígenas. Numa longa licença
de seu trabalho regular como professor adjunto na Astrotech, o
sargento recusara uma comissão, alegando não querer bloquear a
promoção de oficiais de carreira mais merecedores do que ele.
Ninguém levou muito a sério essa explicação, e a opinião geral era
a de que o grau de ambição de Will era zero. Poderia chegar a
sargento espacial, mas nunca seria professor titular. Myron, como
inúmeros oficiais antes dele, descobrira a combinação perfeita entre
poder e responsabilidade.

Enquanto atravessavam a última câmara pressurizada e


flutuavam ao longo do eixo sem gravidade de Rama, o tenente
Calvert sentiu-se, como lhe acontecia com frequência, no meio de
um flashback cinematográfico. Às vezes se perguntava se não
deveria tentar se curar desse hábito, mas não via nele nenhuma
desvantagem. Era algo que tornava interessante a situação mais
enfadonha e – vejam só – um dia poderia até lhe salvar a vida. Ele
se lembraria do que Fairbanks, Connery ou Hiroshi tinham feito em
circunstâncias semelhantes...
Desta vez, estava prestes a partir para o ataque, numa das
guerras do início do século 20; Mercer era o sargento, conduzindo
uma patrulha de três homens numa incursão noturna a uma terra de
ninguém. Não era muito difícil imaginar que estavam no fundo de
uma imensa cratera produzida pela explosão de uma granada,
embora ela tivesse sido, de algum modo, adaptada com uma série
de plataformas ascendentes. A cratera estava inundada de luz,
proveniente de três arcos de plasma largamente espaçados, que
proporcionavam uma iluminação quase sem sombras a todo o seu
interior. Mas, para além disso – além da borda da plataforma mais
distante –, reinavam a escuridão e o mistério.
Em sua imaginação, Calvert sabia perfeitamente bem o que
havia lá. Primeiro, uma planície circular com mais de um quilômetro
de extensão. Dividindo-a em três partes iguais, e parecendo-se
muito com largos trilhos de trem, havia três amplas escadas, os
degraus embutidos na superfície, para não obstruírem o caminho de
nada que deslizasse por ali. Como o arranjo era completamente
simétrico, não havia razão para escolher uma escada em detrimento
de outra; a escada mais próxima da câmara pressurizada Alfa tinha
sido selecionada por mera questão de conveniência.
Embora os degraus das escadas fossem desconfortavelmente
distantes uns dos outros, isso não constituía nenhum problema.
Mesmo na borda do eixo, a meio quilômetro do Eixo Central, a
gravidade era um trigésimo da gravidade terrestre. Apesar de
estarem carregando quase cem quilos de equipamentos e aparelhos
de sustentação de vida, ainda assim conseguiam avançar
facilmente, de mão em mão.
O comandante Norton e a equipe de apoio os acompanhavam ao
longo das cordas-guias que haviam sido esticadas da câmara Alfa
até a borda da cratera; então, além da série de refletores, a
escuridão de Rama se apresentava diante deles. Tudo o que se via
nos feixes oscilantes das lanternas dos capacetes eram os primeiros
cem metros da escada, desaparecendo numa planície perfeitamente
uniforme.
E agora, Karl Mercer dizia a si mesmo, tenho de tomar minha
primeira decisão. Vou subir ou descer a escada?
Não era uma questão trivial. Ainda estavam, essencialmente, em
gravidade zero, e o cérebro podia escolher qualquer sistema de
referência que lhe aprouvesse. Por um simples esforço de vontade,
Mercer poderia convencer a si mesmo de que estava olhando para
uma planície horizontal, ou para a superfície de uma parede vertical,
ou para baixo, à beira de um precipício. Não poucos astronautas
haviam experimentado sérios problemas psicológicos, equivocando-
se na escolha das coordenadas ao iniciarem uma tarefa complicada.
Mercer estava determinado a ir de cabeça para baixo, pois
qualquer outro modo de locomoção seria desajeitado; além disso,
desse jeito ele poderia ver com mais facilidade o que estivesse à
sua frente. Nas primeiras centenas de metros, portanto, ele
imaginaria estar subindo: apenas quando a crescente atração
gravitacional tornasse impossível manter a ilusão, ele alteraria suas
direções mentais em 180 graus.
Agarrou o primeiro degrau e delicadamente impulsionou-se ao
longo da escada. O movimento era tão sem esforço quanto nadar no
fundo do mar – mais ainda, na verdade, pois não havia a resistência
da água. Era tão fácil que havia a tentação de ir depressa demais,
mas Mercer tinha experiência suficiente para não se apressar numa
situação inédita como aquela.
Em seus fones de ouvido, ouvia a respiração regular dos dois
companheiros. Não precisava de mais nenhuma prova de que
estavam em boa forma e não perdeu tempo com conversas. Embora
estivesse tentado a olhar para trás, decidiu não se arriscar até
chegarem à plataforma, ao final da escada.
Os degraus eram espaçados uniformemente a cada meio metro,
e na primeira parte da escalada Mercer subiu de dois em dois. Mas
contou-os cuidadosamente e, por volta dos duzentos, percebeu as
primeiras sensações nítidas de peso. O giro de Rama começava a
se fazer sentir.
No degrau quatrocentos, estimou seu peso aparente em cerca de
cinco quilos. Isso não era problema, mas agora estava ficando difícil
fingir que estava subindo, quando de fato estava sendo firmemente
arrastado para cima.
O degrau quinhentos pareceu um bom lugar para descansar.
Sentia os músculos dos braços reagindo ao exercício inabitual,
muito embora Rama estivesse fazendo todo o trabalho, e ele tivesse
apenas de se guiar.
– Tudo certo, capitão – comunicou. – Estamos no meio do
caminho. Joe, Will, algum problema?
– Estou bem. Por que você parou? – respondeu Joe Calvert.
– Eu também – acrescentou o sargento Myron. – Mas cuidado
com a força de Coriolis. Está começando a aumentar.
Mercer já tinha percebido isso. Quando se soltou dos degraus, a
tendência nítida foi flutuar para a direita. Sabia perfeitamente bem
que isso era apenas o efeito da rotação de Rama, mas era como se
uma força misteriosa o empurrasse delicadamente para fora da
escada.
Talvez fosse o momento de começar a seguir com os pés à
frente, agora que “para baixo” assumia um sentido físico. Ele
correria o risco de uma desorientação momentânea.
– Cuidado. Vou dar meia-volta.
Segurando-se firmemente no degrau, usou os braços para girar o
corpo 180 graus, e as luzes de seus companheiros o ofuscaram
momentaneamente. Muito acima deles (e agora era realmente
acima) avistou um brilho mais fraco ao longo da borda do precipício
vertical. Contra essa luz, viu as silhuetas do comandante Norton e a
equipe de apoio, observando-o atentamente. Pareciam muito
pequenos e distantes, e ele acenou para eles, tranquilizando-os.
Soltou-se e deixou que a pseudogravidade de Rama, ainda fraca,
assumisse. A queda de um degrau para outro levou mais de dois
segundos; na Terra, nesse mesmo tempo, um homem teria caído
trinta metros.
A velocidade da queda era tão penosamente lenta que ele
começou a apressar um pouco as coisas empurrando com as mãos,
deslizando espaços de uma dúzia de degraus de cada vez e usando
os pés como freios, sempre que sentia estar se movendo muito
rápido.
No degrau setecentos, parou mais uma vez e apontou o feixe da
lanterna de seu capacete para baixo; conforme tinha calculado, o
início da escadaria estava a apenas cinquenta metros abaixo.
Alguns minutos depois, chegaram ao primeiro degrau. Foi uma
experiência estranha, após meses no espaço, ficar em pé sobre
uma superfície sólida e sentir a pressão contra os pés. Ainda
pesavam menos de dez quilos, mas isso bastava para lhes dar uma
sensação de estabilidade. Quando fechou os olhos, Mercer
acreditou, mais uma vez, que pisava num mundo real.
A saliência ou plataforma de onde descia a escadaria tinha cerca
de dez metros de largura e curvava-se para cima de ambos os
lados, até desaparecer na escuridão. Mercer sabia que a plataforma
formava um círculo completo e que, se caminhasse por ela ao longo
de cinco quilômetros, voltaria ao ponto de partida, após
circunavegar Rama.
Na ínfima gravidade existente ali, entretanto, caminhar de
verdade era impossível; só se podia avançar aos saltos, com passos
de gigante. E isso era perigoso.
A escadaria que mergulhava na escuridão, muito abaixo dos
feixes de suas lanternas, parecia enganosamente fácil de descer.
Mas seria essencial segurar-se aos altos corrimãos que a ladeavam;
um passo mais ousado poderia enviar o viajante incauto ao espaço.
Ele bateria na superfície novamente talvez uns cem metros abaixo;
o impacto seria inócuo, mas suas consequências, não – pois a
rotação de Rama teria movido a escadaria para a esquerda. Assim,
um corpo em queda se chocaria contra a curvatura lisa que se
estendia num arco ininterrupto até a planície, quase sete
quilômetros abaixo.
Isso, pensou Mercer, seria um infernal passeio de tobogã; a
velocidade final, mesmo naquela gravidade, poderia ser de várias
centenas de quilômetros por hora. Talvez fosse possível empregar
fricção suficiente para frear uma descida tão precipitada; nesse
caso, talvez fosse o modo mais conveniente de chegar à superfície
interna de Rama. Mas primeiro seria necessário realizar
experimentos muito cuidadosos.
– Capitão – comunicou Mercer –, não houve nenhum problema
na descida pela escada. Se você concordar, eu gostaria de
continuar até a próxima plataforma. Quero cronometrar nossa
velocidade de descida pela escadaria.
Norton respondeu sem hesitação.
– Vá em frente. – Não acrescentou “vá com cuidado”.
Não demorou muito para Mercer fazer uma descoberta
fundamental. Era impossível, pelo menos nesse nível de um
vigésimo de gravidade, descer caminhando normalmente pela
escadaria. Qualquer tentativa nesse sentido resultava num
movimento onírico, em câmera lenta, intoleravelmente tedioso; a
única maneira prática era ignorar os degraus e utilizar os corrimãos
para impulsionar-se para baixo.
Calvert chegara à mesma conclusão.
– Essa escadaria foi feita para subir, não descer! – exclamou. –
Você pode usar os degraus quando está se movendo contra a
gravidade, mas nessa direção só atrapalham. Pode não ser muito
digno, mas acho que a melhor maneira de descer é escorregando
pelo corrimão.
– Isso é ridículo – protestou o sargento Myron. – Não acredito
que os ramanos descessem assim.
– Duvido que alguma vez tenham usado essa escadaria...
obviamente, ela só servia para emergências. Eles devem ter tido
algum sistema de transporte mecânico para subir até aqui. Um
funicular, talvez. Isso explicaria aquelas longas ranhuras descendo
até o Eixo.
– Sempre supus que as ranhuras fossem drenos, mas acho que
poderiam ser ambos. Será que chovia aqui?
– Provavelmente – disse Mercer. – Mas acho que John está
certo. A dignidade que vá para o inferno! Lá vamos nós.
O corrimão (presumivelmente projetado para algo como mãos)
era uma barra de metal lisa e chata, apoiada em pilares de um
metro de altura, espaçados a largos intervalos. O comandante
Mercer montou nele, avaliou cuidadosamente a força de frenagem
que poderia exercer com as mãos, e deixou-se escorregar.
Muito serenamente, lentamente ganhando velocidade, ele
desceu na escuridão, movendo-se na poça de luz da lanterna de
seu capacete. Já avançara cerca de cinquenta metros quando
chamou os outros para que o seguissem.
Ninguém admitiria, mas todos se sentiram como crianças de
novo, escorregando balaustrada abaixo. Em menos de dois minutos,
haviam percorrido um quilômetro de descida, de modo seguro e
confortável.
Sempre que sentiam estar avançando muito rápido, um firme
aperto no corrimão fornecia toda a frenagem necessária.
– Espero que tenham gostado – comentou o comandante Norton
quando eles pisaram na segunda plataforma. – A subida de volta
não será tão fácil.
– É o que quero verificar – respondeu Mercer, que experimentava
caminhar de lá para cá, adaptando-se à gravidade mais forte. – Já
estamos a um décimo de gravidade aqui. Nota-se claramente a
diferença.
Ele caminhou – ou, mais precisamente, flutuou – até a borda da
plataforma e direcionou a lanterna do capacete para a próxima
seção da escadaria, abaixo. Até onde o feixe de luz alcançava,
parecia idêntica à de cima – embora o exame cuidadoso de fotos
tivesse mostrado que a altura dos degraus decrescia à medida que
a gravidade aumentava. Aparentemente, a escada tinha sido
projetada para que o esforço requerido para subi-la fosse mais ou
menos constante em todos os pontos de seu longo e curvo trajeto.
Mercer ergueu os olhos de relance para o Eixo de Rama, agora a
dois quilômetros acima dele. A leve claridade e as pequeninas
silhuetas pareciam horrivelmente distantes. Pela primeira vez,
alegrou-se subitamente por não poder ver toda a extensão dessa
enorme escadaria. Apesar de seus nervos de aço e de sua falta de
imaginação, não tinha certeza de como reagiria se pudesse ver a si
mesmo como um inseto rastejando pela superfície de um pires
vertical de mais de dezesseis quilômetros de altura – e com a
metade de cima pendendo sobre sua cabeça. Até aquele momento,
tinha considerado a escuridão um aborrecimento; agora, ele quase a
saudava.
– Sem mudança de temperatura – comunicou ao comandante
Norton. – Ainda pouco abaixo de zero. Mas a pressão do ar
aumentou, como já esperávamos: por volta de trezentos milibares.
Mesmo com este baixo teor de oxigênio, é quase respirável; lá
embaixo, não haverá problema algum. Isso vai simplificar
enormemente a exploração. Que achado! O primeiro mundo em que
poderemos andar sem equipamento de respiração! Aliás, vou
experimentar esse ar.
Lá em cima, no Eixo, o comandante Norton remexeu-se, um
pouco preocupado. Mas Mercer, mais do que ninguém, sabia
exatamente o que estava fazendo. Com certeza, já teria feito todos
os testes necessários.
Mercer compensou a pressão, desprendeu o fecho de proteção
de seu capacete e o entreabriu. Aspirou cautelosamente; depois,
uma aspiração mais profunda.
O ar de Rama era morto e mofado, como o de uma tumba tão
antiga que o último traço de decomposição física tinha desaparecido
há milênios. Até mesmo o nariz ultrassensível de Mercer, treinado
em anos de testes de sistemas de suporte de vida, não detectou
nenhum odor reconhecível. Havia um leve travo metálico, e ele
subitamente se recordou de que os primeiros homens na Lua tinham
falado de um cheiro sutil de pólvora quando repressurizaram o
módulo lunar. Mercer imaginou que a cabine do Eagle, contaminada
pela poeira lunar, devia ter um cheiro semelhante ao de Rama.
Tornou a fechar o capacete e esvaziou os pulmões do ar
alienígena. Não extraíra nenhum sustento dele; até um montanhista
aclimatado ao topo do Everest morreria rapidamente ali. Mas,
alguns quilômetros abaixo, as condições seriam bem diferentes.
O que mais havia para fazer ali? Não conseguiu pensar em nada,
exceto aproveitar a branda e inusitada gravidade. Mas não
adiantava acostumar-se a ela, já que retornariam imediatamente à
ausência de peso do Eixo.
– Estamos voltando, capitão – comunicou. – Não há razão para
prosseguir, até estarmos prontos para ir até o fim.
– Concordo. Vamos cronometrar a volta de vocês, mas venham
com calma.
Enquanto saltava os degraus, três ou quatro de cada vez, Mercer
reconheceu que Calvert tinha toda a razão; aquelas escadas tinham
sido construídas para serem subidas e não descidas. Desde que
não se olhasse para trás e se ignorasse a vertiginosa inclinação da
curva ascendente, a escalada era uma experiência muito agradável.
Após cerca de duzentos degraus, entretanto, começou a sentir
fisgadas nos músculos das panturrilhas, e decidiu diminuir a
velocidade. Os outros tinham feito o mesmo; quando se aventurou a
dar uma olhada por sobre o ombro, viu que estavam muito abaixo
dele.
A escalada transcorreu sem incidentes – apenas uma sucessão
de degraus aparentemente interminável. Quando pisaram
novamente na plataforma mais alta, imediatamente abaixo da
escada, mal ofegavam, e tinham levado apenas dez minutos.
Descansaram outros dez, antes de iniciarem o último quilômetro
vertical.
Saltar – agarrar-se a um degrau – saltar – agarrar – saltar –
agarrar... Era fácil, mas tão monotonamente repetitivo que havia o
perigo de ele se tornar descuidado. A meio caminho da escada
vertical, descansaram por cinco minutos; mas, desta vez, os braços
e as pernas tinham começado a doer. Mais uma vez, Mercer
alegrou-se por conseguirem ver tão pouco da superfície vertical a
que estavam agarrados; não era difícil fingir que a escada se
estendia por apenas alguns metros além do círculo de luz da
lanterna, e logo terminaria.
Saltar – agarrar um degrau – saltar. Então, de repente, a escada
realmente terminou. Estavam de volta ao mundo sem peso do Eixo,
entre seus ansiosos amigos. A viagem inteira levara menos de uma
hora, e eles tiveram uma sensação de modesto triunfo.
Mas era cedo demais para ficarem satisfeitos com seu feito.
Apesar de todo o esforço, tinham percorrido menos de um oitavo
daquela ciclópica escadaria.
11
HOMENS, MULHERES E MACACOS

O comandante Norton concluíra há muito tempo que certas


mulheres não deveriam ser admitidas a bordo; a ausência de peso
exercia em seus seios efeitos muito perturbadores. Já era difícil
quando ficavam paradas; mas quando se punham em movimento,
dando início às vibrações harmônicas, era mais do que qualquer
homem de sangue quente poderia suportar. Ele tinha certeza de que
pelo menos um acidente espacial grave tinha sido causado pela
distração da tripulação, após o trânsito de uma oficial bem
acolchoada pela cabine de controle.
Certa vez, mencionara a teoria à comandante médica Laura
Ernst, sem revelar quem tinha inspirado essa linha de raciocínio.
Não era necessário; eles se conheciam muito bem. Na Terra, muitos
anos antes, num momento de mútua solidão e depressão, tinham
feito amor. Provavelmente, jamais repetiriam a experiência (mas
quem poderia ter certeza?), pois muita coisa havia mudado para
ambos. No entanto, sempre que a robusta médica entrava flutuando
na cabine do comandante, ele sentia o eco fugaz de uma antiga
paixão, ela sabia que ele sentia, e todo mundo ficava feliz.
– Bill – ela começou. – Verifiquei nossos alpinistas, e eis meu
veredicto. Karl e Joe estão em boa forma: todas as indicações
normais, para o trabalho que fizeram. Mas Will exibe sinais de
exaustão e perda corporal... Não vou entrar em detalhes. Creio que
ele não esteja fazendo todos os exercícios necessários, e ele não é
o único. Tem gente trapaceando no centrifugador; se continuarem
com isso, cabeças vão rolar. Avise todo mundo, por favor.
– Sim, senhora. Mas há uma desculpa. Os homens têm
trabalhado muito.
– Com o cérebro e os dedos, certamente. Mas não com o corpo,
não trabalho de verdade, que se pode medir em quilos e metros. E é
com isso que vamos lidar, se quisermos explorar Rama.
– Bem, podemos explorar?
– Sim, se prosseguirmos com cautela. Karl e eu elaboramos um
perfil bastante conservador, baseado na presunção de que podemos
dispensar os aparelhos de respiração abaixo do Nível Dois. É claro
que isso foi um incrível golpe de sorte e muda todo o quadro
logístico. Ainda não me acostumei com a ideia de um mundo com
oxigênio... Então, só precisamos fornecer alimentação, água e
roupas térmicas, e estamos em operação. Descer vai ser fácil;
parece que podemos escorregar na maior parte do caminho, por
aquele bendito corrimão.
– Chips está trabalhando num trenó com paraquedas como freio.
Mesmo se não pudermos arriscar a tripulação com ele, podemos
usá-lo para mantimentos e equipamentos.
– Ótimo; com isso, faríamos a viagem em dez minutos. Senão,
vai levar cerca de uma hora.
– A subida é mais difícil de calcular; gostaria de conceder seis
horas, incluindo dois períodos de uma hora. Depois, quando
tivermos adquirido mais experiência – e também alguns músculos –
talvez possamos reduzir consideravelmente esse tempo. E os
fatores psicológicos?
– Difícil de avaliar, num ambiente tão inusitado. A escuridão
talvez seja o maior problema.
– Vou instalar holofotes no Eixo. Além de suas próprias lanternas,
todo o grupo lá embaixo terá sempre um feixe de luz passando
sobre ele.
– Ótimo. Isso deve ajudar bastante. Mais uma coisa: vamos evitar
riscos e enviar um grupo só até a metade do caminho, e depois de
volta, ou devemos ir até o fim na primeira tentativa?
– Se tivéssemos mais tempo, eu seria cauteloso. Mas o tempo é
curto, e não vejo perigo em irmos até o fim e darmos uma olhada lá
embaixo. Obrigado, Laura. Isso é tudo o que eu queria saber. Vou
encarregar o sub de preparar os detalhes. E vou ordenar que toda a
tripulação vá para o centrifugador. Vinte minutos por dia em meia
gravidade. Isso a satisfaz?
– Não. Lá embaixo, em Rama, a gravidade é 0,6, e quero uma
margem de segurança. Ponha três quartos...
– Ai!
– ... por dez minutos...
– Vou determinar isso.
– ... duas vezes por dia.
– Laura, você é uma mulher dura e cruel. Mas que assim seja.
Vou dar a notícia logo antes do jantar. Isso deve estragar o apetite
de alguns deles.

Era a primeira vez que o comandante Norton via Karl Mercer


ligeiramente constrangido. Ele passara os quinze minutos discutindo
problemas de logística com sua competência habitual, mas algo
obviamente o preocupava. O capitão, que tinha uma vaga ideia do
que era, aguardou pacientemente que ele tocasse no assunto.
– Capitão – disse Karl, enfim –, você tem certeza de que deve
liderar esse grupo? Se algo der errado, sou consideravelmente mais
dispensável. E já fui mais longe no interior de Rama do que
qualquer outro, mesmo que só cinquenta metros.
– De acordo. Mas chegou a hora do comandante liderar suas
tropas, e concluímos que não há maior risco nesta viagem do que
na última. Ao primeiro sinal de problema, subo aquela escadaria de
volta rápido o bastante para me classificar para a Olimpíada Lunar.
Ele esperou por novas objeções, mas não houve nenhuma,
embora Karl ainda parecesse infeliz. Ficou com pena dele e
acrescentou, delicadamente:
– E aposto que Joe chega antes de mim aqui em cima.
O homenzarrão relaxou, e um meio sorriso espalhou-se pelo seu
rosto.
– Mesmo assim, Bill, gostaria que tivesse escolhido outra pessoa.
Preferia pelo menos um que já tivesse descido antes, e não
podemos ir os dois. Quanto ao Herr Doutor professor Sargento
Myron, Laura disse que ele ainda está com dois quilos de
sobrepeso. Não adiantou nem raspar aquele bigode.
– Quem é o terceiro do grupo?
– Ainda não decidi. Depende de Laura.
– Ela própria quer ir.
– E quem não quer? Mas se ela aparecer no topo da própria lista
dos mais aptos, vou ficar muito desconfiado.
Enquanto o tenente-comandante Mercer juntava seus papéis e
se lançava para fora da cabine, Norton sentiu uma ponta de inveja.
Quase toda a tripulação – cerca de oitenta e cinco por cento, pela
sua estimativa mínima – tinha arranjado algum tipo de acomodação
emocional. Ele sabia de algumas naves em que o capitão havia feito
o mesmo, mas esse não era o seu hábito. Embora a disciplina a
bordo da Endeavour fosse amplamente baseada no respeito mútuo
entre homens e mulheres inteligentes e altamente treinados, o
comandante precisava de algo mais para sublinhar sua posição. A
responsabilidade era única e exigia um certo grau de isolamento,
mesmo dos amigos mais chegados. Qualquer ligação poderia ser
danosa ao moral, e era quase impossível evitar acusações de
favoritismo. Por essa razão, casos amorosos entre dois tripulantes
com mais de dois graus de separação na hierarquia eram
firmemente desencorajados; mas, fora isso, a única regra que
regulava o sexo a bordo da nave era: “desde que não façam nos
corredores, para não assustar os simps”.
Havia quatro superchimpanzés – ou simps – a bordo da
Endeavour, embora, rigorosamente falando, o nome fosse
inadequado, pois a tripulação não humana não se baseava na
família dos chimpanzés. Em gravidade zero, um rabo preênsil é uma
vantagem enorme, e todas as tentativas de fornecer tais apêndices
aos humanos redundaram em constrangedores fracassos. Após
resultados igualmente insatisfatórios com os grandes símios, a
Companhia Superchimpanzé havia se voltado para os primatas
menores.
Blackie, Blondie, Goldie e Brownie1 tinham árvores genealógicas
que incluíam os mais inteligentes macacos do Velho e do Novo
Mundo, além de genes sintéticos que nunca existiram na natureza.
A criação e a educação desses animais provavelmente custavam
tanto quanto as de um astronauta médio, e valiam a pena. Cada um
deles pesava menos de trinta quilos e consumia apenas metade do
alimento e do oxigênio de um ser humano, e cada um poderia
substituir 2,75 homens nos afazeres domésticos, culinária
elementar, transporte de ferramentas e uma dúzia de outras tarefas
rotineiras.
Esses 2,75 eram alegados pela Corporação, com base em
inúmeros estudos de tempo e movimento. O número, embora
surpreendente e frequentemente contestado, parecia ser exato, pois
os simps trabalhavam alegremente quinze horas por dia e não se
entediavam com as tarefas mais servis e repetitivas. Assim,
libertavam os seres humanos para o trabalho humano; e, na nave,
isso era uma questão de vital importância.
Ao contrário dos macacos que eram seus parentes mais
próximos, os simps da Endeavour eram dóceis, obedientes e pouco
curiosos. Sendo clones, eram também assexuados, o que eliminava
problemas comportamentais embaraçosos. Vegetarianos
cuidadosamente treinados, eram muito limpos e não cheiravam mal;
teriam se tornado animais de estimação perfeitos, não fosse o fato
de que ninguém poderia tê-los bancado.
Apesar dessas vantagens, ter simps a bordo envolvia certos
problemas. Eles precisavam ter alojamentos próprios –
inevitavelmente rotulados de “A Casa dos Macacos”. Seu pequeno
refeitório estava sempre impecável, e era bem aparelhado com tv,
equipamentos para jogos e máquinas programadas para ensinar.
Para evitar acidentes, eles eram absolutamente proibidos de entrar
nas áreas técnicas da nave; as entradas de todas elas eram
pintadas de vermelho, e os simps eram condicionados para que lhes
fosse psicologicamente impossível transpor as barreiras visuais.
Havia também um problema de comunicação. Embora tivessem
um qi equivalente a sessenta e conseguissem entender várias
centenas de palavras em inglês, eram incapazes de falar. Tinha sido
impossível dar cordas vocais úteis tanto aos grandes símios quanto
aos macacos menores e, portanto, eles tinham de se expressar por
meio da linguagem de sinais.
Os sinais básicos eram óbvios e fáceis de aprender, para que
todos a bordo da nave pudessem entender mensagens de rotina.
Mas o único homem fluente em simpiês era o adestrador dos
macacos – comissário-chefe McAndrews.
Uma piada corrente era que o sargento Ravi McAndrews se
parecia bastante com um simp – o que não poderia ser considerado
um insulto, pois, com sua pelagem curta e colorida e seus
movimentos graciosos, eram animais muito bonitos. Eram também
afetuosos, e cada um a bordo tinha seu favorito; o do comandante
Norton era o apropriadamente chamado Goldie.
Mas a relação carinhosa que tão facilmente se estabelecia com
os simps criava mais um problema, muitas vezes utilizado como
argumento contra o emprego desses animais no espaço. Como só
podiam ser treinados para tarefas rotineiras e comezinhas, eram
mais que inúteis numa emergência; poderiam, então, ser um perigo
para si próprios e para seus companheiros humanos. Em especial,
tinha sido impossível ensiná-los a usar trajes espaciais, pois os
conceitos envolvidos estavam muito além de sua compreensão.
Ninguém gostava de falar sobre o assunto, mas todos sabiam o
que tinha de ser feito se houvesse uma ruptura no casco ou se
fosse dada a ordem de abandonar a nave. Já acontecera uma vez;
e o adestrador dos simps cumprira suas instruções com mais
fidelidade do que se esperava. Foi encontrado com seus pupilos,
morto pelo mesmo veneno. A partir daí, o serviço de eutanásia foi
transferido para o oficial médico chefe, que, segundo se supunha,
teria menos envolvimento emocional.
Norton era muito grato por essa responsabilidade, pelo menos,
não ter recaído nos ombros do capitão. Conhecia homens a quem
mataria com muito menos escrúpulo do que a Goldie.
12
A ESCADARIA DOS DEUSES

Na atmosfera clara e fria de Rama, o feixe do holofote era


completamente invisível. Três quilômetros abaixo do Eixo central, a
oval luminosa de cem metros de largura atravessava uma parte da
colossal escadaria. Um oásis brilhante na escuridão ao redor, ela
varria lentamente em direção à planície curva ainda a cinco
quilômetros abaixo; e, no seu centro, movia-se um trio de figuras
semelhantes a formigas, projetando longas sombras à sua frente.
Tinha sido exatamente como esperaram e previram, uma descida
completamente sem incidentes. Descansaram brevemente na
primeira plataforma, e Norton caminhara algumas centenas de
metros ao longo da saliência estreita e curva, antes de
escorregarem para o segundo nível abaixo. Ali, descartaram o
equipamento de respiração e deleitaram-se no estranho luxo de
poderem respirar sem auxílio mecânico. Agora, podiam explorar à
vontade, livres do maior perigo enfrentado pelo homem no espaço, e
esquecendo-se das preocupações sobre a integridade do traje
espacial e a reserva de oxigênio.
Quando chegaram ao quinto nível, e havia apenas mais uma
seção a percorrer, a gravidade alcançara quase a metade de seu
valor terrestre. A rotação centrífuga de Rama enfim exercia sua
verdadeira força; eles se rendiam a essa força implacável que rege
todos os planetas, e que pode cobrar um preço altíssimo ao menor
deslize. Ainda era muito fácil descer; mas a ideia do retorno,
subindo aqueles milhares e milhares de degraus, já começava a
lhes rondar a mente.
A escadaria há muito cessara seu vertiginoso mergulho vertical e
agora se aplanava na direção horizontal. O gradiente era agora
cerca de apenas 1 por 5; no começo, era de 5 por 1. Caminhar
normalmente era física e psicologicamente aceitável; somente a
reduzida gravidade lembrava-lhe de que não estavam descendo
alguma grande escadaria na Terra. Norton uma vez visitara as
ruínas de um templo asteca, e as sensações que experimentara na
ocasião voltaram a ecoar nele – amplificadas cem vezes. Aqui,
havia a mesma impressão de assombro e mistério, e a tristeza do
passado irrevogavelmente desaparecido. No entanto, a escala aqui
era tão maior, tanto no tempo quanto no espaço, que a mente era
incapaz de lhe fazer justiça; após algum tempo, deixou de reagir.
Norton perguntou a si mesmo se, mais cedo ou mais tarde, ele não
acabaria se acostumando com Rama, aceitando-o como coisa
natural.
E havia outro aspecto em que o paralelo com as ruínas terrestres
falhava completamente. Rama era centenas de vezes mais velho do
que qualquer estrutura que sobrevivera na Terra – até a Grande
Pirâmide. Mas tudo parecia absolutamente novo; não havia nenhum
sinal de desgaste.
Norton refletira bastante sobre isso e chegara a uma explicação
provisória. Tudo o que tinham examinado até ali fazia parte de um
sistema auxiliar de emergência, muito raramente posto em uso. Não
conseguia imaginar que os ramanos – a não ser que fossem
maníacos por forma física, tipos não muito incomuns na Terra –
andassem para cima e para baixo nessa incrível escadaria, ou de
suas duas idênticas companheiras que completavam o Y invisível
muito acima de sua cabeça. Talvez tenham sido utilizadas apenas
durante a construção de Rama e não serviam mais a nenhum
propósito desde esse dia tão distante. A teoria serviria, por ora, mas
não era muito convincente. Havia algo errado, em algum ponto...
Não escorregaram no último quilômetro, mas desceram de dois
em dois degraus, em longas e delicadas passadas; desta forma,
concluiu Norton, exercitariam mais os músculos que em breve
teriam de usar. E, assim, chegaram ao final da escadaria, quase
sem se darem conta; de repente, não havia mais degraus – apenas
uma planície, de um cinza fosco, no agora esmaecido feixe do
holofote do Eixo, desaparecendo na escuridão a algumas centenas
de metros adiante.
Norton olhou para trás, ao longo do feixe luminoso, até sua
origem, no Eixo a mais de oito quilômetros de distância. Sabia que
Mercer estaria observando pelo telescópio, então acenou para ele,
animadamente.
– Aqui é o capitão – comunicou pelo rádio. – Estão todos em
perfeita forma. Sem problemas. Continuando como planejado.
– Ótimo – respondeu Mercer. – Estaremos observando.
Houve um breve silêncio; então, uma nova voz interrompeu.
– Aqui é o subcomandante, a bordo da nave. Francamente,
capitão, só isso não basta. O senhor sabe que as agências de
notícias ficaram atrás de nós o tempo todo na semana passada.
Não espero nenhuma prosa imortal, mas não dá para dizer algo
melhor?
– Vou tentar – Norton deu uma risadinha. – Mas lembre que não
há nada para ver ainda. É como... bem, é como estar num palco
enorme e escuro, com um único holofote. Dessa luz emergem as
primeiras centenas de degraus da escadaria, até desaparecerem na
escuridão lá em cima. O que podemos ver da planície é que ela é
perfeitamente plana. A curvatura é pequena demais para ser visível
nesta área limitada. Isso é tudo o que posso dizer.
– Gostaria de nos dar algumas impressões?
– Bem, ainda faz muito frio, abaixo de zero, e ainda bem que
temos os trajes térmicos. E é silencioso, claro. Mais silencioso do
que qualquer coisa que já conheci na Terra, ou no espaço, onde
sempre há um ruído de fundo. Aqui, todo o som foi engolido; o
espaço à nossa volta é tão grande que não há ecos. É estranho,
mas espero que a gente se acostume.
– Obrigado, capitão. Alguém mais, Joe, Boris?
O tenente Calvert, que nunca se embaraçava com as palavras,
falou de bom grado:
– Não me sai da cabeça que esta é a primeira vez, em todos os
tempos, que caminhamos em outro mundo respirando sua
atmosfera natural... se bem que “natural” não seria bem o termo a
se aplicar a um lugar como este. Ainda assim, Rama deve se
parecer com seus construtores; nossas próprias naves são Terras
em miniatura. Apenas dois exemplos não servem como estatística,
mas será que isso significa que todas as formas de vida inteligentes
são consumidoras de oxigênio? O que vimos até agora de seu
trabalho sugere que os ramanos eram humanoides, mas talvez
cinquenta por cento mais altos do que nós. Não concorda, Boris?
Joe está provocando Boris?, Norton pensou consigo. Como será
que ele vai reagir...?
Para todos os seus companheiros da nave, Boris Rodrigo era
uma espécie de enigma. O calado e digno oficial de comunicações
era estimado pela tripulação, mas nunca participava inteiramente de
suas atividades e sempre parecia um pouco afastado – marchando
ao som de um tambor diferente.
E de fato marchava, já que era membro devoto da Quinta Igreja
do Cristo Cosmonauta. Norton nunca conseguiu descobrir o que
tinha acontecido às quatro anteriores, como também desconhecia
os rituais e as cerimônias da Igreja. Mas o principal dogma de sua
doutrina era conhecido: acreditava-se que Jesus Cristo era um
visitante do espaço, e toda uma teologia fora construída em torno
desse pressuposto.
Talvez não fosse surpreendente que uma grande proporção de
seus devotos trabalhasse no espaço, num cargo ou outro.
Invariavelmente, eram eficientes, conscienciosos e absolutamente
confiáveis. Todos gostavam deles e os respeitavam, especialmente
porque nunca tentavam converter ninguém. No entanto, havia
também algo ligeiramente estranho neles; Norton nunca pôde
entender como homens com treinamento técnico e científico tão
avançado conseguiam acreditar em coisas que ele ouvia cristeiros
afirmarem como se fossem fatos incontroversos.
Enquanto aguardava o tenente Rodrigo responder à pergunta
possivelmente capciosa de Joe, o comandante teve um súbito
lampejo sobre seus próprios motivos ocultos. Ele escolhera Boris
por ser fisicamente apto, tecnicamente qualificado e completamente
confiável. Ao mesmo tempo, perguntou-se se algum ponto de sua
mente não tinha selecionado o tenente por uma curiosidade quase
perversa. Como um homem com tais crenças religiosas reagiria à
assombrosa realidade de Rama? Suponha que ele encontre algo
que confronte sua teologia... ou, pelo contrário, a confirme?
Mas Boris Rodrigo, com sua habitual cautela, não se deixou
levar.
– Eles certamente eram consumidores de oxigênio, e poderiam
ser humanoides. Mas vamos esperar para ver. Com sorte, vamos
descobrir como eram. Pode haver pinturas, estátuas, talvez até
corpos, lá naquelas cidades. Se forem cidades.
– E a mais próxima fica a apenas oito quilômetros – disse Joe
Calvert, esperançoso.
Sim, pensou o comandante, mas também são oito quilômetros de
volta – e depois aquela escadaria descomunal para escalar
novamente. Podemos arriscar?
Uma rápida expedição à “cidade” que eles denominaram Paris
estava entre seus primeiros planos de contingência, e agora ele
tinha de decidir. Tinham água e comida de sobra para uma estada
de vinte e quatro horas; estariam sempre à vista da equipe de apoio
no Eixo, e qualquer tipo de acidente parecia virtualmente impossível
naquela planície metálica lisa e delicadamente curva. O único perigo
previsível era o cansaço; quando chegassem a Paris, o que
cumpririam com facilidade, o que mais poderiam fazer além de tirar
algumas fotografias e talvez recolher alguns pequenos artefatos,
antes que tivessem de voltar?
Entretanto, mesmo uma breve incursão valeria a pena; tinham
pouco tempo, pois Rama se precipitava em direção a um periélio
perigoso demais para a Endeavour.
Em todo caso, parte da decisão não lhe cabia. Lá em cima, na
nave, a dra. Ernst estaria observando os dados dos sensores
biotelemétricos presos ao seu corpo. Se ela voltasse o polegar para
baixo, não haveria conversa.
– Laura, o que você acha?
– Descansem por trinta minutos e comam um módulo de energia
de quinhentas calorias. Depois, podem começar.
– Obrigado, doutora – interveio Joe Calvert. – Agora posso
morrer feliz. Sempre quis conhecer Paris. Montmartre, lá vamos nós!
13
A PLANÍCIE DE RAMA

Depois daquela escadaria interminável, era um luxo estranho


caminhar novamente numa superfície horizontal. Diretamente à
frente, o chão era de fato completamente plano; à direita e à
esquerda, nos limites da área iluminada pelo holofote, podia-se
detectar a curva ascendente. Era como se andassem por um vale
muito largo e raso; era difícil de acreditar que, na verdade, estavam
avançando lentamente na face interna de um enorme cilindro e que,
para além daquele pequeno oásis de luz, a terra se erguia até
encontrar – não, até se tornar – o céu.
Embora estivessem tomados por uma sensação de confiança e
contido entusiasmo, após algum tempo o silêncio quase palpável de
Rama começou a pesar sobre eles. Cada passo, cada palavra se
desvanecia instantaneamente no vazio sem eco; depois de
percorrerem pouco mais de meio quilômetro, o tenente Calvert não
pôde mais suportar aquilo.
Dentre suas pequenas habilidades, havia um talento hoje raro,
embora muitos achassem que não era raro o suficiente: a arte de
assobiar. Com ou sem encorajamento, ele podia reproduzir os
temas da maioria dos filmes dos últimos duzentos anos. Começou,
apropriadamente, com “Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou”,
constatou que não conseguiria sustentar os graves da marcha dos
anões da Disney e mudou rapidamente para A Ponte do Rio Kwai. E
então passou, mais ou menos em ordem cronológica, por meia
dúzia de épicos, culminando com o tema do famoso Napoleão, de
Sid Krassman, do final do século 20.
Valeu a tentativa, mas não funcionou, nem para elevar o moral.
Rama exigia a grandeza de Bach, Beethoven, Sibelius ou Tuan Sun,
não a trivialidade do entretenimento popular. Norton estava a ponto
de sugerir que Joe poupasse seu fôlego para exercícios futuros,
quando o jovem oficial percebeu a inadequação de seu esforço. Daí
em diante, fora alguma consulta ocasional com a nave, caminharam
em silêncio. Rama vencera esse round.
Em sua travessia inicial, Norton havia permitido um único desvio.
Paris ficava bem à frente, a meio caminho entre o pé da escadaria e
a praia do Mar Cilíndrico, mas, a apenas um quilômetro à direita,
havia um acidente no terreno muito proeminente e um tanto
misterioso, que fora batizado de Vale Reto. Era um longo sulco ou
vala, com quarenta metros de profundidade e cem de largura, e
laterais levemente inclinadas; tinha sido provisoriamente identificado
como um canal de irrigação. Assim como a escadaria, o Vale Reto
tinha duas cópias similares, igualmente espaçadas ao longo da
curva de Rama.
Os três vales tinham quase dez quilômetros de extensão e
terminavam abruptamente, um pouco antes de chegarem ao Mar – o
que era estranho se, de fato, eram destinados ao transporte de
água. E, do outro lado do Mar, o padrão se repetia: outras três valas
de dez quilômetros seguiam até a região polar sul.
Alcançaram o final do Vale Reto depois de apenas quinze
minutos de uma confortável caminhada e, por um momento,
pensativos, ficaram fitando suas profundezas. As paredes
perfeitamente lisas inclinavam-se para baixo num ângulo de 60
graus; não havia nenhum degrau ou apoio para os pés.
Preenchendo o fundo, havia a fina camada de um material branco e
achatado que se parecia muito com gelo. Uma amostra desse
material poderia resolver muitas discussões; Norton decidiu obtê-la.
Com Calvert e Rodrigo atuando como âncoras e soltando aos
poucos uma corda de segurança, ele foi descendo lentamente pela
rampa íngreme. Quando chegou ao fundo, tinha quase certeza de
que iria experimentar a sensação escorregadia de gelo sob os pés,
mas estava enganado. O atrito era muito grande; sua passada era
segura. O material era algum tipo de vidro ou cristal transparente;
quando o tocou com as pontas dos dedos, sentiu-o frio, duro e
inflexível.
Virando-se de costas para o holofote e protegendo os olhos
contra sua luminosidade, Norton tentou perscrutar as profundezas
cristalinas, como quem tenta enxergar através da camada de gelo
de um lago congelado. Mas não conseguiu ver nada, mesmo
quando tentou o feixe concentrado de sua própria lanterna no
capacete. O material era translúcido, mas não transparente. Se era
algum líquido congelado, possuía um ponto de fusão muito mais alto
que o da água.
Bateu nele levemente com o martelo de seu kit geológico; a
ferramenta repercutiu com um ruído surdo e dissonante. Bateu mais
forte, sem melhor resultado, e estava prestes a exercer toda a sua
força quando um impulso o fez desistir.
Parecia muito improvável que ele pudesse rachar aquele
material; mas, e se conseguisse? Seria como um vândalo,
estilhaçando uma enorme vidraça. Haveria uma oportunidade
melhor mais tarde, e pelo menos tinha descoberto informações
valiosas. Agora, mais do que nunca, parecia improvável que aquilo
fosse um canal; era apenas uma vala peculiar que começava e
terminava abruptamente, mas que não levava a lugar algum. E, se
em alguma época tinha transportado líquido, onde estavam as
manchas, as crostas de sedimentos secos que eram de se esperar?
Tudo era brilhante e claro, como se os construtores tivessem partido
ainda ontem...
Mais uma vez, estava frente a frente com o mistério fundamental
de Rama e, desta vez, era impossível esquivar-se. O comandante
Norton era um homem razoavelmente imaginativo, mas nunca teria
chegado à sua posição atual se tivesse se entregado aos voos mais
desenfreados da fantasia. Agora, no entanto, pela primeira vez, teve
uma sensação – não exatamente um mau presságio, mas um
pressentimento. As coisas não eram o que pareciam ser; havia algo
muito, muito estranho num lugar que era simultaneamente novo em
folha – e tinha um milhão de anos.
Pensativo, começou a andar vagarosamente ao longo do
pequeno vale, enquanto seus companheiros, ainda segurando a
corda atada à sua cintura, o seguiam pela borda. Não esperava
fazer novas descobertas, mas queria deixar seu curioso estado
emocional ir até o fim. Pois uma outra coisa o preocupava; e não
tinha nada a ver com a inexplicável aparência jovem de Rama.
Não tinha andado mais do que doze metros quando o
pensamento o atingiu como um raio.
Conhecia aquele lugar. Já tinha estado ali antes. Mesmo na
Terra, ou em algum planeta familiar, essa experiência é inquietante,
embora não seja particularmente rara. Quase todas as pessoas já a
tiveram, numa ou noutra ocasião, e geralmente a desprezam,
explicando-a como a lembrança de uma fotografia esquecida, uma
simples coincidência – ou, se possuem uma inclinação mística,
alguma forma de telepatia, ou até mesmo um lampejo do próprio
futuro.
Mas reconhecer um lugar que nenhum outro ser humano poderia
ter visto – isso é absolutamente chocante. Por vários segundos, o
comandante Norton permaneceu imóvel, como que enraizado à
superfície lisa e cristalina sobre a qual vinha caminhando, tentando
pôr as emoções em ordem. Seu universo bem ordenado tinha virado
de ponta-cabeça, e ele experimentou um vertiginoso vislumbre
daqueles mistérios à margem da existência que tivera êxito em
ignorar por quase toda a vida.
Então, para seu imenso alívio, o bom-senso veio socorrê-lo. A
perturbadora sensação de déjà-vu desapareceu, sendo substituída
por uma lembrança real e identificável de sua juventude.
Era verdade – certa vez estivera entre duas paredes inclinadas
como aquelas, vendo-as perder-se na distância, até parecerem
convergir num ponto infinitamente afastado. Mas eram cobertas de
grama impecavelmente aparada; e, sob os pés, havia pedra britada,
não cristal liso.
Acontecera trinta anos antes, durante as férias de verão, na
Inglaterra. Em grande parte por causa de uma outra estudante
(lembrava-se do rosto, mas tinha esquecido o nome), ele tinha
seguido o curso de arqueologia industrial, na época muito em voga
entre os graduados em ciência e engenharia. Eles tinham explorado
minas de carvão e cotonifícios abandonados, escalado ruínas de
altos-fornos e máquinas a vapor, arregalado os olhos, incrédulos,
diante de primitivos (e ainda perigosos) reatores nucleares, e
dirigido preciosas antiguidades movidas a turbinas por estradas
restauradas.
Nem tudo o que viram era genuíno; muito havia se perdido ao
longo dos séculos, pois as pessoas raramente se dão ao trabalho de
preservar os objetos comuns da vida cotidiana. Mas, onde foi
necessário construir réplicas, tinham sido feitas com amoroso
cuidado.
E assim o jovem Bill Norton encontrara-se rolando por trilhos, a
eufóricos 100 km/h, enquanto energicamente enchia com pazadas
de precioso carvão a fornalha de uma locomotiva que aparentava ter
duzentos anos, mas que, na verdade, era mais nova do que ele. O
trecho de trinta quilômetros da ferrovia Great Western Railway,
entretanto, era absolutamente genuíno, embora tivesse exigido
considerável trabalho de escavação para tornar a funcionar.
Com o apito gritando, tinham mergulhado numa encosta e
entrado a toda velocidade numa escuridão avermelhada e
esfumaçada. Depois de um tempo surpreendentemente longo,
explodiram para fora do túnel, deparando com um corte profundo,
perfeitamente reto, entre duas margens íngremes e gramadas. A
imagem, há tanto esquecida, era quase idêntica à que tinha diante
de si, agora.
– O que foi, capitão? – gritou o tenente Rodrigo. – Encontrou
alguma coisa?
À medida que Norton se arrastava de volta à realidade presente,
sua mente libertou-se, em parte, da sensação que o oprimia. Sim,
havia mistério ali; mas nada além da compreensão humana. Tinha
aprendido uma lição, embora não fosse fácil comunicá-la
prontamente aos outros. De maneira alguma deveria deixar-se
subjugar por Rama. Nesta senda residia o fracasso – e talvez até a
loucura.
– Não – respondeu –, não há nada aqui embaixo. Podem me
puxar... Vamos direto para Paris.
14
SINAL DE TEMPESTADE

– Convoquei esta reunião do Comitê – disse Sua Excelência o


Embaixador de Marte nos Planetas Unidos – porque o dr. Perera
tem algo importante a nos comunicar. Ele insiste que entremos em
contato imediatamente com o comandante Norton, utilizando o canal
prioritário que conseguimos estabelecer... depois de muita
dificuldade, devo acrescentar. A declaração do dr. Perera é bastante
técnica e, antes de chegarmos a ela, creio que convém fazer um
resumo da situação até o momento; a dra. Price preparou esse
resumo. Ah, sim... Alguns pedidos de desculpas pela ausência. Sir
Lewis não pôde comparecer porque está presidindo uma
conferência, e o dr. Taylor pede que o dispensemos.
Agradou-lhe bastante a última ausência. O antropólogo logo
perdera o interesse por Rama, quando se tornou evidente que ele
não ofereceria muito campo para seus estudos. Como vários outros,
ficara amargamente decepcionado ao saber que aquele pequeno
mundo itinerante estava morto; agora, não haveria oportunidade
para livros e vídeos sensacionais a respeito dos rituais e dos
padrões comportamentais dos ramanos. Outros que
desencavassem esqueletos e classificassem artefatos; esse tipo de
coisa não atraía Conrad Taylor. Talvez a única coisa capaz de fazê-
lo voltar correndo fosse a descoberta de obras de arte altamente
explícitas, como os famosos afrescos de Tera e Pompeia.
O ponto de vista de Thelma Price, a arqueóloga, era exatamente
o oposto. Preferia escavações e ruínas livres de habitantes que
pudessem interferir nos desapaixonados estudos científicos. O leito
do Mediterrâneo tinha sido ideal... Pelo menos até urbanistas e
arquitetos começarem a atrapalhar. E Rama teria sido perfeito,
exceto pelo irritante detalhe de que estava a cem milhões de
quilômetros de distância e ela jamais iria visitá-lo pessoalmente.
– Como todos sabem – iniciou –, o comandante Norton
completou uma travessia de quase trinta quilômetros, sem encontrar
qualquer problema. Ele explorou a curiosa vala que aparece em
seus mapas como Vale Reto; a finalidade desse fosso ainda é
completamente desconhecida, mas é claramente importante, já que
percorre toda a extensão de Rama, com exceção do Mar Cilíndrico,
e há duas outras estruturas idênticas, a 120 graus de separação, em
torno da circunferência daquele mundo...
... Depois o grupo virou à esquerda, ou a leste, se adotarmos a
convenção do Polo Norte, até chegar a Paris. Como verão nessa
fotografia, tirada por uma câmera telescópica no Eixo, trata-se de
um conjunto de centenas de edifícios, com ruas largas entre eles...
... Bem, as outras fotografias foram tiradas pelo grupo do
comandante Norton, quando chegaram ao local. Se Paris for uma
cidade, é uma cidade muito peculiar. Notem que nenhum dos
edifícios possui janelas, ou mesmo portas! Todos são simples
estruturas retangulares, com uma altura idêntica de trinta e cinco
metros. E eles parecem ter sido expelidos diretamente do solo: não
há emendas ou juntas. Vejam esse close da base de uma parede: a
transição para o solo é lisa...
... Minha impressão é que esse lugar não é uma área residencial,
mas algum tipo de armazém ou depósito de suprimentos. Em apoio
a essa teoria, vejam essa foto...
... Essas ranhuras estreitas ou sulcos, com cerca de cinco
centímetros de largura, percorrem todas as ruas, e existe um sulco
para cada um dos edifícios, penetrando diretamente na parede. Há
uma notável semelhança com os bondes do início do século 20;
obviamente, eles fazem parte de um sistema de transporte...
... Nunca consideramos necessário ter um transporte público
diretamente para cada casa. Seria economicamente absurdo, as
pessoas sempre podem caminhar algumas centenas de metros.
Mas se esses edifícios fossem utilizados como depósito de materiais
pesados, faria sentido.
– Posso fazer uma pergunta? – disse o Embaixador da Terra.
– Claro, sir Robert.
– O comandante Norton não conseguiu entrar em nenhum
desses prédios?
– Não. Quando ouvirem o relato dele, verão que ele ficou muito
frustrado. Logo deduziu que só se poderia entrar nos edifícios pelo
subsolo; mas descobriu os sulcos do sistema de transporte e mudou
de ideia.
– Ele tentou forçar a entrada?
– Não havia como, sem explosivos ou ferramentas pesadas. E
ele só quer fazer isso se todas as outras abordagens falharem.
– Já sei! – exclamou Dennis Solomons, de repente. –
Encasulamento!
– Perdão?
– É uma técnica desenvolvida há dois séculos – prosseguiu o
historiador da ciência. – O outro nome para isso é mothballing.
Quando se quer preservar alguma coisa, põe-se dentro de um saco
plástico e enche-se de um gás inerte. O uso original era para
proteger equipamento militar nos períodos entre guerras; uma vez a
técnica foi aplicada em navios inteiros. É ainda amplamente utilizada
em museus com pouco espaço de armazenamento; ninguém sabe o
que há dentro de alguns casulos centenários no porão do
Smithsonian.
Paciência não era uma das virtudes de Carlisle Perera; estava
louco para soltar a sua bomba e não podia mais se conter.
– Por favor, sr. Embaixador! Isso é tudo muito interessante, mas
acho que minha informação é bem mais urgente.
– Se não há outras questões... Muito bem, dr. Perera.
O exobiólogo, ao contrário de Conrad Taylor, não tinha
considerado Rama uma decepção. Era verdade que ele não
esperava mais encontrar vida – porém, tinha absoluta certeza de
que, cedo ou tarde, seriam encontrados restos mortais das criaturas
que tinham construído aquele mundo fantástico. A exploração mal
começara, embora o tempo disponível fosse terrivelmente curto
antes que a Endeavour fosse obrigada a escapar de sua órbita tão
próxima ao Sol.
Mas agora, se seus cálculos estivessem corretos, o contato do
homem com Rama seria ainda mais breve do que ele temera. Pois
um detalhe tinha sido negligenciado – um detalhe tão grande que
ninguém tinha percebido antes.
– Segundo nossas últimas informações – começou Perera –, um
grupo está agora a caminho do Mar Cilíndrico, enquanto o
comandante Norton tem outro grupo instalando uma base de
suprimentos no pé da escadaria Alfa. Quando essa base estiver
pronta, ele pretende ter pelo menos duas missões exploratórias em
operação permanente. Desta forma, ele espera utilizar seus
limitados recursos humanos com o máximo de eficiência...
... É um bom plano, mas talvez não haja tempo de realizá-lo. Na
verdade, eu recomendaria um alerta imediato e uma preparação
para a retirada total com doze horas de aviso prévio. Deixe-me
explicar...
... É surpreendente como foram poucas as pessoas a comentar
sobre uma anomalia tão óbvia em Rama. Ele está agora bem no
meio da órbita de Vênus; no entanto, seu interior continua gelado.
Mas a temperatura de um objeto exposto à luz direta do Sol é de
aproximadamente 500 graus!...
... O motivo, naturalmente, é que Rama não teve tempo de
esquentar. Deve ter resfriado até quase o zero absoluto, 270 abaixo
de zero, enquanto estava no espaço interestelar. Agora, à medida
que se aproxima do Sol, o casco externo está quase tão quente
quanto chumbo derretido. Mas o interior continuará frio, até que o
calor atravesse aquele quilômetro de rocha...
... Existe um tipo especial de sobremesa quente por fora e com
sorvete no meio, não lembro como se chama...
– Baked Alaska. É uma das sobremesas favoritas nos banquetes
dos Planetas Unidos, infelizmente.
– Obrigado, sir Robert. Essa é a situação de Rama, no momento,
mas não vai durar. Nas últimas semanas, o calor solar tem
penetrado pouco a pouco, e a expectativa é que um aumento
acentuado da temperatura comece em algumas horas. Mas o
problema não é esse; quando tivermos de partir, de qualquer
maneira, o calor não será além do confortavelmente tropical.
– Qual a dificuldade, então?
– Posso responder numa só palavra, sr. Embaixador: furacões.
15
A BEIRA DO MAR

Havia agora mais de vinte homens e mulheres dentro de Rama –


seis lá embaixo, na planície, e os demais transportando
equipamento e material de consumo através do sistema de câmaras
pressurizadas e escadaria abaixo. A nave em si estava quase vazia,
com o mínimo de pessoal em serviço; circulava a piada de que a
Endeavour estava de fato sendo administrada pelos quatro simps, e
que Goldie tinha sido promovido a comandante interino.
Para essas explorações iniciais, Norton estabelecera várias
regras básicas; a mais importante datava dos primeiros tempos das
viagens espaciais humanas. Ele decidira que todo grupo devia
incluir uma pessoa com experiência anterior. Mas não mais que
uma. Dessa forma, todos teriam a oportunidade de aprender o mais
rápido possível.
Assim, o primeiro grupo a tomar o rumo do Mar Cilíndrico,
embora fosse liderado pela comandante médica Laura Ernst, tinha
como veterano o tenente Boris Rodrigo, que acabara de retornar de
Paris. O terceiro membro, sargento Pieter Rousseau, fizera parte
das equipes de apoio, no Eixo; ele era perito em instrumentação de
reconhecimento espacial, mas nessa viagem teria de confiar nos
próprios olhos e num pequeno telescópio portátil.
A distância entre o pé da escadaria Alfa e a beira do Mar era de
menos de quinze quilômetros – na baixa gravidade de Rama, o
equivalente a oito quilômetros na Terra. Laura Ernst, que tinha de
provar estar à altura de seus próprios padrões, estabeleceu um
ritmo veloz. Pararam por trinta minutos na metade do caminho e
fizeram a viagem toda, tranquilamente, em três horas.
Era também muito monótono caminhar à luz do feixe do holofote,
em meio à escuridão sem ecos de Rama. À medida que o círculo
luminoso avançava com eles, ele lentamente se alongava numa
elipse comprida e estreita; essa deformação do feixe era o único
sinal visível de progresso. Se os observadores lá em cima, no Eixo,
não tivessem lhes fornecido verificações contínuas da distância, não
teriam como adivinhar se haviam percorrido um quilômetro, cinco ou
dez. Apenas caminhavam penosamente adiante, através de uma
noite de um milhão de anos, sobre uma superfície metálica
aparentemente sem emendas.
Mas, por fim, muito longe à frente, nos limites do feixe de luz que
agora enfraquecia, havia algo novo. Num mundo normal, teria sido
um horizonte; à medida que se aproximavam, podiam ver que a
planície sobre a qual estavam caminhando terminava abruptamente.
Estavam se aproximando da beira do Mar.
– Só mais algumas centenas de metros – informou o Controle
Central. – É melhor diminuírem o passo.
Isso era quase desnecessário; no entanto, já tinham
desacelerado. Era um precipício vertical de cinquenta metros, do
nível da planície até o Mar – se de fato fosse um mar, e não outra
camada daquele misterioso material cristalino. Embora Norton
tivesse convencido a todos sobre o perigo de se tomar qualquer
coisa como certa em Rama, poucos duvidavam de que o Mar era
realmente feito de gelo. Mas por que razão concebível o penhasco
da costa sul tinha quinhentos metros de altura, em vez de cinquenta,
como aqui?
Era como se estivessem se aproximando da beira do mundo; a
oval de luz, cortada abruptamente à frente deles, tornava-se cada
vez mais curta. Mas, a distância, na tela curva do Mar, apareceram
suas sombras diminutas e disformes, aumentando e exagerando
cada movimento. Aquelas sombras tinham sido suas companheiras
a cada passo do caminho, enquanto marchavam pelo feixe, mas
agora que estavam quebradas à beira do precipício não mais
pareciam fazer parte deles. Poderiam ter sido criaturas do Mar
Cilíndrico, prontas a enfrentar quaisquer intrusos em seus domínios.
Por estarem agora à beira de um penhasco de cinquenta metros,
era possível, pela primeira vez, apreciar a curvatura de Rama. Mas
ninguém jamais tinha visto um lago congelado e curvado para cima,
numa superfície cilíndrica; isso era nitidamente perturbador, e o olho
fazia o possível para encontrar alguma outra interpretação. Pareceu
à dra. Ernst, que certa vez realizara um estudo sobre ilusões óticas,
que metade do tempo estivera olhando uma baía curvada
horizontalmente, e não uma superfície que se elevava para o céu.
Foi preciso um esforço deliberado para aceitar a fantástica verdade.
Somente na linha diretamente à frente, paralela ao eixo de
Rama, preservava-se a normalidade. Apenas nessa direção é que
havia acordo entre visão e lógica. Aqui – ao menos pela extensão
de alguns quilômetros –, Rama parecia plano, e era plano... E lá
adiante, além de suas sombras distorcidas e do limite exterior do
feixe luminoso, ficava a ilha que dominava o Mar Cilíndrico.
– Controle do Eixo – chamou a dra. Ernst, pelo rádio –, por favor,
aponte o feixe para Nova York.
A noite de Rama subitamente caiu sobre eles, enquanto a oval
de luz deslizava pelo mar. Conscientes do penhasco agora invisível
a seus pés, todos recuaram alguns passos. Então, como que num
passe de mágica, as torres de Nova York surgiram à vista.
A semelhança com a velha Manhattan era apenas superficial;
aquele eco do passado terrestre nascido nas estrelas possuía sua
própria e singular identidade. Quanto mais a dra. Ernst olhava para
aquilo, mais se convencia de que não era em absoluto uma cidade.
A Nova York real, como todas as habitações humanas, nunca
tinha sido terminada; e muito menos planejada. Aquele lugar,
entretanto, tinha uma simetria e um padrão geral, embora fossem
tão complexos que confundiam a mente. Havia sido concebido e
projetado por alguma inteligência controladora – e depois
completado, como uma máquina destinada a um propósito
específico. Isto feito, não havia possibilidade de crescimento ou
mudança.
O feixe do holofote lentamente rastreou aquela distante
paisagem de torres, cúpulas, esferas entrelaçadas e tubos
entrecruzados. Às vezes havia um reflexo brilhante, como se
alguma superfície lisa disparasse a luz de volta na direção deles; a
primeira vez que isso aconteceu, foram pegos de surpresa. Era
exatamente como se, lá na estranha ilha, alguém lhes estivesse
enviando sinais...
Mas não podiam ver nada que já não tivesse sido mostrado com
muito mais detalhe em fotografias tiradas do Eixo. Após alguns
minutos, pediram a luz de volta e começaram a caminhar a leste, ao
longo da margem do penhasco. A teoria plausível era a de que, com
certeza, haveria um lance de escada, ou uma rampa, descendo até
o Mar. E uma tripulante, que era excelente marinheira, levantou uma
conjectura interessante.
– Onde há um mar – previra a sargento Ruby Barnes –, deve
haver docas e portos... E navios. Você pode aprender tudo sobre
uma cultura estudando o modo como ela constrói barcos. – Seus
colegas consideraram esse um ponto de vista um tanto restrito, mas
pelo menos era estimulante.
A dra. Ernst tinha quase desistido da busca e preparava-se para
descer por cordas, quando o tenente Rodrigo avistou a escadaria
estreita. Poderia facilmente ter passado despercebida nas sombras
da escuridão abaixo da margem do penhasco, pois não havia
nenhuma grade de proteção ou algum outro indício de sua
presença. E parecia não levar a lugar nenhum; descia a parede
vertical de cinquenta metros, num ângulo íngreme, e desaparecia
abaixo da superfície do Mar.
Examinaram a escada com a lanterna de seus capacetes, não
detectaram nenhum possível risco, e a dra. Ernst conseguiu a
permissão do comandante Norton para descerem. Um minuto
depois, ela testava cautelosamente a superfície do Mar.
Seu pé escorregava quase sem atrito para a frente e para trás. O
material tinha quase exatamente a mesma textura do gelo. Era gelo.
Quando bateu nele com seu martelo, um padrão familiar de
rachaduras irradiou do ponto de impacto, e ela não teve dificuldade
em recolher todos os pedaços que desejava. Alguns já haviam
derretido quando ela ergueu o recipiente das amostras contra a luz;
o líquido parecia água ligeiramente turva, e ela cheirou, com
cautela.
– Isso não é perigoso? – gritou Rodrigo lá de cima, com um traço
de ansiedade.
– Acredite, Boris – ela respondeu –, se existe algum agente
patogênico por aqui que escapou dos meus detectores, nossas
apólices de seguro prescreveram há uma semana.
Mas Boris não deixava de ter certa razão. Apesar de todos os
testes realizados, havia ainda um pequeno risco de aquela
substância ser venenosa ou portadora de alguma doença
desconhecida. Em circunstâncias normais, a dra. Ernst não teria
corrido nem esse minúsculo risco. Desta vez, entretanto, o tempo
era curto e havia coisas enormes em jogo. Se fosse necessário
colocar a Endeavour em quarentena, seria um preço muito pequeno
a pagar pela carga de conhecimento.
– É água, mas não me atreveria a bebê-la. Tem cheiro de alga
podre. Mal posso esperar para levá-la ao laboratório.
– É seguro andar por esse gelo?
– Sim, é sólido como rocha.
– Então, podemos chegar a Nova York.
– Podemos, Pieter? Você já tentou atravessar quatro quilômetros
de gelo?
– Ah, entendo. Imagine o que o pessoal dos Suprimentos diria se
pedíssemos alguns pares de patins! Não que todos aqui saberiam
usá-los, mesmo se houvesse patins a bordo.
– E há mais um problema – intercedeu Boris Rodrigo. – Vocês
perceberam que a temperatura já está acima de zero? Não vai
demorar muito para esse gelo começar a derreter. Quantos
espaçonautas conseguem nadar quatro quilômetros? Com certeza,
não este aqui...
A dra. Ernst estava de volta à beira do penhasco e ergueu, em
triunfo, o pequeno frasco com as amostras.
– Foi uma longa caminhada só por alguns centímetros cúbicos de
água suja, mas ela pode nos ensinar mais sobre Rama do que
qualquer coisa que encontramos até agora. Vamos voltar para casa.
Viraram-se em direção às luzes distantes do Eixo, movendo-se
em passadas suaves, galopantes, que se haviam revelado como o
modo de caminhada mais confortável naquela gravidade reduzida.
Olharam para trás várias vezes, atraídos pelo enigma oculto da ilha
lá no centro do mar congelado.
E, apenas uma vez, a dra. Ersnt pensou ter sentido na face um
leve sopro de brisa.
Não aconteceu de novo, e ela rapidamente esqueceu a
impressão.
16
KEALAKEKUA

– Como sabe perfeitamente bem, dr. Perera – disse o Embaixador


Bose num tom de paciente resignação –, poucos aqui compartilham
seus conhecimentos de meteorologia matemática. Então, por favor,
tenha piedade de nossa ignorância.
– Com prazer – respondeu o exobiólogo, imperturbável. – Posso
explicar melhor contando-lhes o que vai acontecer dentro de Rama,
muito em breve...
... A temperatura está prestes a subir, à medida que o pulso de
calor solar alcança o interior. Segundo as últimas informações que
recebi, já está acima de zero. O Mar Cilíndrico logo vai começar a
degelar; e, ao contrário dos corpos aquáticos da Terra, vai derreter
do fundo para a superfície. Isso deve produzir alguns efeitos
estranhos; mas o que mais me preocupa é a atmosfera...
... Ao se aquecer, o ar dentro de Rama irá se expandir e tentará
subir até o eixo central. E esse é o problema. Ao nível do solo,
embora aparentemente estacionário, ele na verdade está girando
junto com Rama... a mais de 800 km/h. À medida que subir em
direção ao eixo, ele vai tentar manter essa velocidade... e não vai
conseguir, é claro. O resultado serão ventos violentos e turbulência;
calculo velocidades de 200 a 300 km/h...
... A mesma coisa ocorre na Terra, diga-se de passagem. O ar
quente do Equador, que gira a 1.600 km/h junto com a rotação da
Terra, depara com o mesmo problema quando sobe e flui para o
norte e para o sul.
– Ah, os ventos alísios! Eu me lembro disso das aulas de
geografia.
– Exatamente, sir Robert. Rama terá ventos alísios, e que ventos!
Creio que durarão apenas algumas horas, e então um certo
equilíbrio será restabelecido. Enquanto isso, recomendo que o
comandante Norton evacue o mais rápido possível. Eis aqui a
mensagem que proponho enviar.

Com um pouco de imaginação, disse a si mesmo o comandante


Norton, ele poderia fingir estar num acampamento noturno
improvisado no sopé de uma montanha, em alguma região remota
da Ásia ou da América. A confusão de sacos de dormir, cadeiras e
mesas dobráveis, geradores portáteis, equipamento de iluminação,
Electrosans e diversos aparelhos científicos não pareceriam fora de
lugar na Terra – especialmente porque havia homens e mulheres
trabalhando ali sem sistemas de suporte de vida.
Montar o Acampamento Alfa tinha sido um trabalho muito difícil,
pois tudo teve de ser trazido manualmente através da cadeia de
câmaras pressurizadas e, após descer de trenó rampa abaixo a
partir do Eixo, ser recuperado e desempacotado. Algumas vezes,
quando o freio de paraquedas falhou, o carregamento foi parar a um
bom quilômetro de distância, na planície. Apesar disso, vários
tripulantes haviam pedido permissão para realizar a descida; Norton
a proibira firmemente. Numa emergência, entretanto, estaria
preparado para reconsiderar a proibição.
Quase todos aqueles equipamentos teriam de ser deixados ali,
pois o trabalho de carregá-los de volta era impensável – na verdade,
impossível. Houve vezes em que o comandante Norton sentiu uma
vergonha irracional por deixar tanto lixo humano naquele lugar
estranhamente imaculado. Quando finalmente partissem, estava
preparado para sacrificar parte de seu precioso tempo para deixar
tudo em ordem. Por mais improvável que fosse, dali a milhões de
anos, quando Rama disparasse para outro sistema solar, talvez
recebesse visitantes novamente. Ele queria deixar uma boa
impressão da Terra.
Enquanto isso, tinha um problema mais premente. Durante as
últimas vinte e quatro horas, recebera mensagens quase idênticas
tanto de Marte quanto da Terra. Parecia uma estranha coincidência;
talvez estivessem se solidarizando uma com a outra, como esposas
que viviam em segurança em planetas diferentes estavam sujeitas a
fazer, se houvesse motivo suficiente. Incisivamente, as duas lhe
lembravam que, embora ele fosse agora um grande herói, ainda
tinha responsabilidades para com as famílias.
O comandante pegou uma cadeira dobrável e saiu do círculo de
luz para a escuridão ao redor do acampamento. Era o único modo
de ter privacidade, e ele conseguia refletir melhor longe do tumulto.
Deliberadamente dando as costas para a bagunça organizada atrás
de si, começou a falar no gravador pendurado em torno do pescoço.

Original para arquivo pessoal, cópias para Marte e Terra. Olá,


querida. Sim, eu sei que tenho sido um péssimo correspondente,
mas não vou a bordo da nave há uma semana. Fora uma tripulação
mínima, estamos todos acampados dentro de Rama, no pé da
escadaria que batizamos de Alfa.
Tenho três grupos em operação agora, explorando a planície,
mas o progresso tem sido decepcionantemente lento, porque tudo
tem que ser feito a pé. Se ao menos tivéssemos algum meio de
transporte! Ficaria feliz com algumas bicicletas elétricas... seriam
perfeitas para o serviço.
Você conheceu minha oficial médica, a comandante Ernst...
Fez uma pausa, hesitante; Laura tinha conhecido uma de suas
esposas, mas qual? Melhor cortar essa parte...
Apagou a frase e começou novamente.
Minha oficial médica, a comandante Ernst, conduziu o primeiro
grupo a chegar ao Mar Cilíndrico, a quinze quilômetros daqui. Ela
descobriu que é feito de água congelada, como já esperávamos...
Mas você não iria querer beber aquela água. A dra. Ernst diz que é
uma sopa orgânica diluída, contendo traços de quase todos os
compostos de carbono que se possa imaginar, assim como fosfatos
e nitratos e dúzias de sais metálicos. Não há o menor sinal de vida...
nem mesmo microrganismos mortos. Então, ainda não sabemos
nada sobre a bioquímica dos ramanos... embora provavelmente não
seja assim tão diferente da nossa.

Alguma coisa roçou de leve seu cabelo; tinha estado ocupado


demais para cortá-lo e teria de dar um jeito naquilo antes de usar o
próximo capacete espacial...

Você viu os vídeos de Paris e das outras cidades que exploramos


neste lado do Mar... Londres, Roma, Moscou. É impossível acreditar
que foram construídas para alguém viver nelas. Paris parece um
gigantesco depósito. Londres é uma coleção de cilindros
interligados por tubulações conectadas a estruturas que são,
obviamente, postos de bombeamento. Tudo é completamente
vedado, e não há como saber o que há lá dentro sem explosivos ou
lasers. Só vamos usá-los quando não houver outras alternativas.
Quanto a Roma e Moscou...
– Com licença, capitão. Mensagem prioritária, da Terra.
O que seria agora?, Norton se perguntou. Não se pode ter nem
alguns minutos para falar com as famílias?
Pegou a mensagem das mãos do sargento e percorreu-a
rapidamente, apenas para convencer-se de que não se tratava de
nada urgente. Depois, leu de novo, mais devagar.
O que diabos era o Comitê de Rama? E por que ele nunca tinha
ouvido falar dele? Sabia que todo tipo de associações, sociedades e
grupos profissionais – alguns sérios, outros completamente malucos
– haviam tentado entrar em contato com ele; o Controle da Missão
fizera um bom trabalho de proteção e não teria encaminhado essa
mensagem a menos que fosse considerada importante.
“Ventos de 200 km/h, provavelmente de início repentino, a
caminho.” Bem, era algo em que se pensar. Mas era difícil levar a
mensagem a sério, naquela noite perfeitamente calma; e seria
ridículo sair correndo como ratos assustados, quando estavam
apenas começando a explorar de verdade.
O comandante Norton ergueu a mão para afastar uma mecha de
cabelo que, não sabia como, tornara a cair sobre os seus olhos. E
então se paralisou, o gesto incompleto.
Ele havia sentido um traço de vento várias vezes na última hora.
Foi tão leve que o ignorou completamente; afinal, era comandante
de uma nave estelar, não de um navio a vela. Até agora, o
movimento do ar não tivera o menor interesse profissional para ele.
O que teria feito o capitão da primeira Endeavour, morto há tanto
tempo, numa situação como essa?
Norton se fizera a mesma pergunta em cada momento de crise
dos últimos anos. Era um segredo seu que nunca revelara a
ninguém. E, como a maioria das coisas importantes de sua vida,
acontecera de modo completamente acidental.
Já era capitão da Endeavour há vários meses, quando soube que
o nome da nave tinha sido uma homenagem a um dos navios mais
importantes da história. É verdade que nos últimos quatrocentos
anos existiram doze Endeavours do mar e duas do espaço, mas o
antepassado de todas era o navio carvoeiro de 370 toneladas de
Whitby, que o capitão James Cook, da Marinha Real Britânica, tinha
comandado numa volta ao mundo entre 1768 e 1771.
Com um moderado interesse que rapidamente se transformou
em absorvente curiosidade – quase uma obsessão –, Norton
começara a ler tudo o que podia encontrar sobre Cook. Era agora,
provavelmente, a maior autoridade do mundo sobre o maior
explorador de todos os tempos e conhecia de cor trechos inteiros
dos Diários.
Ainda parecia incrível que um homem pudesse ter feito tanto,
com equipamentos tão primitivos. Mas Cook não era só um
navegador inigualável, mas um cientista e – numa época de
disciplina brutal – um humanitário. Tratava seus homens com
gentileza, o que era incomum; mas o que nunca se mencionou é
que ele se comportava exatamente da mesma forma com os
selvagens muitas vezes hostis das novas terras que descobria.
O sonho particular de Norton, que ele sabia que nunca iria
realizar, era refazer pelo menos uma das viagens de Cook ao redor
do mundo. Fizera uma tentativa espetacular, mas limitada, que
certamente teria surpreendido o capitão, quando certa vez voara
numa órbita polar diretamente acima da Grande Barreira de Corais.
Um ano depois, uma visita à Estação de Rastreamento Espacial
do Havaí lhe proporcionara uma experiência ainda mais
inesquecível. Tinha tomado o hidrofólio até a Baía de Kealakekua e,
ao passar rapidamente pelos penhascos vulcânicos, sentiu uma
emoção profunda que o surpreendeu e até o desconcertou. O guia
passara com o grupo de cientistas, engenheiros e astronautas pela
torre de metal reluzente que tinha substituído o monumento anterior,
destruído pelo grande tsunami de 2068. Caminharam alguns metros
em meio à lava preta e escorregadia até a placa à beira d’água.
Pequenas ondas quebravam-se nela, mas Norton mal as notou,
quando se inclinou para ler as palavras:

PERTO DESTE PONTO,


O CAPITÃO JAMES COOK
FOI MORTO
14 DE FEVEREIRO DE 1779
A PLACA ORIGINAL FOI INAUGURADA EM 28 DE AGOSTO DE 1928
PELA COMISSÃO DO SESQUICENTENÁRIO DE COOK.
SUBSTITUÍDA PELA COMISSÃO DO TRICENTENÁRIO EM 14 DE
FEVEREIRO DE 2079

Isso foi há muitos anos, e a cem milhões de quilômetros de


distância. Mas, em momentos como aquele, a presença
confortadora de Cook parecia muito próxima. Nas profundezas
secretas de sua mente, perguntou: “Bem, capitão, qual o seu
conselho?” Era um pequeno jogo consigo mesmo, em ocasiões em
que não havia fatos suficientes para um juízo sólido, e era preciso
confiar na intuição. Isso fazia parte do gênio de Cook; ele sempre
fazia a escolha certa – até o fim, na Baía de Kealakekua.
O sargento aguardou pacientemente enquanto seu comandante
fitava em silêncio a noite de Rama. Já não era uma noite incólume,
pois em dois pontos, a cerca de quatro quilômetros de distância,
viam-se claramente duas manchas luminosas dos grupos de
exploração.
Numa emergência, posso chamá-los de volta em uma hora,
Norton disse a si mesmo. E isso, com certeza, seria suficiente.
Virou-se para o sargento. – Anote a seguinte mensagem: Comitê
de Rama, aos cuidados do Spacecom. Agradeço o aviso e tomarei
precauções. Por favor, especifique o significado da frase “início
repentino”. Respeitosamente, Norton, comandante, Endeavour.
Esperou até que o sargento desaparecesse em meio às luzes
brilhantes do acampamento e então tornou a ligar o gravador. Mas a
linha de raciocínio tinha sido interrompida, e ele não conseguiu
recuperar o estado de espírito anterior. A carta teria de aguardar
outra oportunidade.
Não era com frequência que o capitão Cook lhe acudia quando
negligenciava seu dever. Mas subitamente lembrou-se de quão
raras e breves foram as vezes que a pobre Elizabeth Cook tinha
visto seu marido nos dezesseis anos de casados. No entanto, ela
lhe dera seis filhos – e sobrevivera a todos eles.
Suas esposas, nunca a mais de dez minutos de distância à
velocidade da luz, não tinham do que reclamar...
17
PRIMAVERA

Durante as primeiras “noites” em Rama, não tinha sido fácil dormir.


A escuridão e os mistérios que ela escondia eram opressivos, mas
ainda mais perturbador era o silêncio. A ausência de ruídos não é
uma condição natural; todos os sentidos humanos exigem
informações. Se delas são privados, a mente fabrica seus próprios
substitutos.
Assim, muitos haviam se queixado de barulhos estranhos – até
vozes – enquanto dormiam, o que era uma ilusão, pois os que
estavam acordados não tinham ouvido nada. A comandante médica
Ernst prescrevera um remédio simples e eficaz; durante o período
de sono, o acampamento agora era embalado por uma discreta e
suave música de fundo.
Nessa noite, o comandante Norton achou o remédio inadequado.
A todo momento, aguçava os ouvidos na escuridão, e sabia o que
procurava ouvir. Mas, embora uma brisa muito fraca realmente
acariciasse seu rosto de vez em quando, não havia nenhum som
que pudesse ser interpretado como a ascensão de um vento ao
longe. Tampouco um dos grupos de exploração relatou alguma
coisa incomum.
Finalmente, por volta da meia-noite, horário da nave, ele foi
dormir. Havia sempre alguém de plantão no console das
comunicações, em caso de mensagens urgentes. Nenhuma outra
precaução parecia necessária.
Nem mesmo um furacão poderia ter produzido o som que
despertou Norton e o acampamento inteiro, num único instante.
Parecia que o céu estava caindo, ou que Rama tivesse sido partido
ao meio e se despedaçava. Primeiro, houve um estrondo
dilacerante, e depois uma longa série de estalos cristalinos, como
um milhão de casas de vidro sendo demolidas. Durou vários
minutos, embora parecessem horas; ainda continuava,
aparentemente distanciando-se, quando Norton chegou ao centro
de comunicações.
– Controle Central! O que aconteceu?
– Um momento, capitão. Foi no Mar. Estamos mandando a luz
para lá.
Oito quilômetros acima, no eixo de Rama, o holofote moveu seu
feixe para a planície. Alcançou a beira do Mar e então começou a
rastreá-lo, vasculhando o interior do mundo. A um quarto do
caminho da superfície cilíndrica, o feixe parou.
Lá em cima no céu – ou aquilo que a mente ainda insistia em
chamar de céu – algo extraordinário estava acontecendo. No
começo, pareceu a Norton que o Mar estava fervendo. Não estava
mais estático e congelado nas garras de um eterno inverno; uma
imensa área, com quilômetros de extensão, movimentava-se em
turbulência. E estava mudando de cor; uma larga faixa branca
avançava através do gelo.
De repente, uma placa de talvez meio quilômetro num dos lados
começou a inclinar-se para cima, como uma porta se abrindo. Lenta
e majestosa, alçou-se para o céu, cintilando e reluzindo à luz do
holofote. Depois deslizou para trás e desapareceu sob a superfície,
enquanto um vagalhão de água espumante escapava para fora em
todas as direções, a partir do ponto de submersão.
Somente então o comandante Norton percebeu o que estava
acontecendo. O gelo estava se quebrando. Durante todos aqueles
dias e semanas, o Mar estivera degelando, em suas profundezas.
Era difícil de se concentrar, por causa dos estalos estrepitosos que
ainda enchiam o mundo e ecoavam pelo céu, mas ele tentou pensar
num motivo para uma convulsão tão dramática. Quando um lago ou
um rio congelado degelava na Terra, não ocorria nada parecido com
isso...
Mas é claro! Era óbvio, agora que já tinha acontecido. O Mar
estava derretendo por baixo, à medida que o calor solar penetrava o
casco de Rama. E quando gelo se transforma em água, seu volume
diminui...
Assim, o mar estivera afundando sob a camada superior de gelo,
deixando-a sem apoio. Dia após dia, a pressão aumentava; agora a
faixa de gelo que circundava o equador de Rama desmoronava,
como uma ponte que tivesse perdido o pilar central. Estilhaçava-se
em centenas de ilhas flutuantes, que iriam se chocar e se acotovelar
até derreterem também. O sangue de Norton esfriou de repente,
quando ele se lembrou dos planos que faziam para chegar a Nova
York de trenó...
O tumulto amainava rapidamente; um empate temporário fora
alcançado na guerra entre gelo e água. Em algumas horas, à
medida que a temperatura continuasse a subir, a água venceria, e
os últimos vestígios de gelo iriam desaparecer. Mas, no longo prazo,
o gelo sairia vitorioso, depois que Rama desse a volta em torno do
Sol e iniciasse mais uma vez sua viagem na noite interestelar.
Norton lembrou-se de começar a respirar novamente; então
chamou o grupo mais próximo do Mar. Para seu alívio, o tenente
Rodrigo respondeu de imediato. Não, a água não os alcançara.
Nenhuma onda de impacto tinha quebrado na beira do penhasco.
– Agora sabemos – ele acrescentou, muito calmamente – por
que existe um penhasco.
Norton concordou em silêncio; mas isso dificilmente explica,
pensou consigo, por que o penhasco na margem sul é dez vezes
mais alto...
O holofote do Eixo continuava a esquadrinhar o mundo. O mar
desperto acalmava-se aos poucos, e a fervilhante espuma branca
não mais corria para fora dos bancos de gelos emborcados. Em
quinze minutos, o distúrbio principal cessara.
Mas Rama já não era silencioso; despertara de seu sono, e a
cada instante ouvia-se o som de gelo sendo triturado quando dois
icebergs colidiam.
A primavera estava um pouco atrasada, pensou Norton, mas o
inverno terminara.
E lá estava aquela brisa de novo, mais forte do que nunca. Rama
já lhe dera sinais de alerta suficientes; era hora de partir.

Ao aproximar-se da marca que sinalizava a metade do caminho,


o comandante Norton mais uma vez agradeceu à escuridão que
escondia a visão acima – e abaixo. Embora soubesse que havia
ainda dez mil degraus pela frente, e pudesse imaginar a íngreme
curva ascendente, o fato de só conseguir enxergar uma pequena
parte dela tornava a perspectiva mais suportável.
Era a sua segunda subida, e ele aprendera com os erros da
primeira. A grande tentação foi subir rápido demais nessa gravidade
baixa; cada passo era tão fácil que foi difícil adotar um ritmo lento e
arrastado. Mas, a menos que se fizesse isso, após os primeiros
milhares de degraus surgiam dores estranhas nas coxas e
panturrilhas. Músculos que nem se sabia existirem começavam a
protestar, e era necessário descansar por períodos cada vez mais
longos. Ao final da primeira escalada, ele passara mais tempo
descansando do que subindo, e, mesmo assim, não bastava.
Sofrera dolorosas câimbras nos dois dias seguintes e teria ficado
incapacitado, se não tivesse retornado ao ambiente de gravidade
zero da nave.
Assim, desta vez começara com uma lentidão quase penosa,
movendo-se como um velho. Fora o último a deixar a planície, e os
demais se enfileiravam ao longo de meio quilômetro de escadaria
acima dele; podia ver suas luzes movendo-se na rampa invisível à
frente.
Sentia tristeza pelo fracasso da missão, e mesmo agora ainda
tinha esperança de que a retirada fosse apenas temporária. Quando
chegassem ao Eixo, poderiam esperar até que os distúrbios
atmosféricos cessassem. Presumivelmente, reinaria lá uma calma
total, como no centro de um ciclone, e eles poderiam esperar, em
segurança, a aguardada tempestade.
Mais uma vez, tirava conclusões precipitadas, com base em
perigosas analogias com a Terra. A meteorologia de um mundo
inteiro, mesmo em condições estacionárias, era questão de extrema
complexidade. Mesmo após vários séculos de estudo, a previsão do
tempo na Terra ainda não era absolutamente confiável. E Rama não
era apenas um sistema completamente novo; ele também passava
por rápidas mudanças, pois a temperatura tinha subido vários graus
nas últimas horas. No entanto, não havia nenhum sinal do prometido
furacão, embora tenha havido algumas débeis lufadas, vindas de
direções aparentemente aleatórias.
Já tinham escalado cinco quilômetros, o que, nessa gravidade
baixa e que aos poucos diminuía, equivalia a menos de dois na
Terra. No terceiro nível, a três quilômetros do Eixo, descansaram por
uma hora, tomando um lanche leve e massageando os músculos
das pernas. Era o último ponto em que poderiam respirar
confortavelmente; como os montanhistas do Himalaia nos velhos
tempos, tinham deixado os suprimentos de oxigênio ali e agora os
carregariam para a escalada final.
Uma hora depois, tinham chegado ao topo da escadaria – e
começado a subir a escada vertical. À frente tinham mais um
quilômetro, felizmente num campo gravitacional de apenas uma
pequena porcentagem do da Terra. Mais um descanso de trinta
minutos, uma verificação cuidadosa do oxigênio, e estavam prontos
para a etapa final.
Mais uma vez, Norton certificou-se de que todos os homens
estavam seguros à sua frente, separados por intervalos de vinte
metros ao longo da escada. De agora em diante, seria uma
escalada lenta e regular, extremamente enfadonha. A melhor
técnica era esvaziar a mente de todos os pensamentos e contar os
degraus à medida que iam passando – cem, duzentos, trezentos,
quatrocentos...
Acabara de chegar a mil duzentos e cinquenta quando, de
repente, percebeu que havia algo errado. A luz que brilhava na
superfície vertical imediatamente à frente de seus olhos tinha uma
cor diferente – e muito clara.
O comandante Norton mal teve tempo de verificar a rampa, ou
alertar seus homens. Tudo aconteceu em menos de um segundo.
Num silencioso impacto de luz, a aurora rompeu em Rama.
18
AURORA

A luz era tão brilhante que, por um minuto inteiro, Norton teve de
manter os olhos firmemente fechados. Em seguida, arriscou abri-los
e fitou por entre as pálpebras semiabertas a parede a poucos
centímetros diante de seu rosto. Piscou várias vezes, esperou que
as lágrimas involuntárias secassem e virou-se lentamente para
contemplar a aurora.
Conseguiu tolerar a visão só por alguns segundos; então, foi
forçado a fechar os olhos novamente. Não era a claridade que era
insuportável – ele poderia se acostumar a ela –, mas o
impressionante espetáculo de Rama, visto agora pela primeira vez
em sua plenitude.
Norton sabia exatamente o que esperar; não obstante, a visão o
atordoara. Foi tomado por um espasmo de tremor incontrolável;
suas mãos apertaram os degraus da escada com a violência de
alguém que está se afogando e se agarra a uma boia salva-vidas.
Os músculos dos antebraços começaram a saltar, ao mesmo tempo
em que as pernas – já fatigadas por horas de escalada ininterrupta –
pareciam prestes a sucumbir. Se não fosse pela baixa gravidade,
poderia ter caído.
Então, seu treinamento falou mais alto, e ele começou a aplicar o
primeiro remédio contra o pânico. Mantendo os olhos fechados e
tentando esquecer o absurdo espetáculo à sua volta, começou a
inspirar e expirar longamente, enchendo os pulmões de oxigênio e
purificando seu sistema dos venenos da fadiga.
Num instante, sentiu-se muito melhor, mas não abriu os olhos até
fazer mais uma coisa. Foi necessário um grande esforço de vontade
para obrigar sua mão direita a abrir – ele teve de conversar com ela
como se falasse a uma criança desobediente –, mas num instante
manobrou-a para baixo, até a cintura, desprendeu o cinto de
segurança dos arreios e enganchou a fivela no degrau mais
próximo. Agora, acontecesse o que acontecesse, ele não poderia
cair.
Norton respirou fundo, várias vezes mais; depois – ainda de
olhos fechados – ligou o rádio. Esperava que sua voz soasse calma
e resoluta quando chamou:
– Aqui é o capitão. Todos estão bem?
À medida que checava os nomes, um a um, e recebia as
respostas – ainda que um tanto trêmulas – de todos, a própria
confiança e o autocontrole voltaram rapidamente. Todos os homens
estavam sãos e salvos e buscavam nele a liderança. Ele era o
comandante, mais uma vez.
– Fiquem de olhos fechados até terem certeza absoluta de que
podem aguentar isso – ele disse. – A vista é... impressionante. Se
alguém achar que não pode suportá-la, continue escalando sem
olhar para trás. Lembrem-se: vocês logo estarão em gravidade zero
e não poderão mais cair.
Era desnecessário salientar um fato tão elementar a
espaçonautas treinados, mas o próprio Norton tinha de lembrar a si
mesmo disso a cada segundo. A ideia de gravidade zero era quase
um talismã a protegê-lo do perigo. O que quer que os seus olhos lhe
dissessem, Rama não poderia derrubá-lo e arrastá-lo para a
destruição na planície, oito quilômetros abaixo.
Tornou-se uma urgente questão de honra e autoestima abrir os
olhos outra vez e olhar o mundo à sua volta. Mas, primeiro, tinha de
controlar o próprio corpo.
Soltou as duas mãos da escada e enganchou o braço esquerdo
sob um degrau. Fechando e abrindo os punhos, esperou até que as
câimbras musculares desaparecessem; quando se sentiu
completamente confortável, abriu os olhos e lentamente virou-se
para Rama.
A primeira impressão foi de um azul. A claridade que enchia o
céu não podia ser confundida com luz solar; parecia mais um arco
elétrico. Então o sol de Rama, pensou Norton, deve ser mais quente
que o nosso. Isso deve interessar aos astrônomos...
E agora entendia a finalidade daquelas misteriosas valas, do Vale
Reto e seus cinco companheiros; eram nada menos que
gigantescos refletores. Rama tinha seis sóis lineares,
simetricamente dispostos em torno de seu interior. De cada um
deles, um largo leque de luz apontava para o eixo central, para
iluminar o lado oposto do mundo. Norton imaginou se poderiam ser
acesos de modo alternado, para produzir um ciclo de luz e
escuridão, ou se esse era um mundo com dias perpétuos.
De tanto olhar aquelas ofuscantes barras de luz, seus olhos
começaram a doer novamente; não achou ruim ter um bom pretexto
para fechá-los por um momento. Só naquele instante, quando quase
se recuperara do primeiro choque visual, pôde devotar-se a um
problema muito mais sério.
Quem ou o que tinha acendido as luzes de Rama?
Esse era um mundo estéril, segundo os testes mais sensíveis
que o homem poderia aplicar. Mas agora acontecia algo que não
podia ser explicado pela ação de forças naturais. Não poderia haver
vida ali, mas poderia haver consciência, percepção; robôs poderiam
estar despertando após um sono de milhões de anos. Talvez essa
explosão de luz fosse um espasmo aleatório, não programado – o
último suspiro de máquinas agonizantes que reagiam desorde-
nadamente ao calor de um novo sol e logo recairiam em sua
inatividade, desta vez para sempre.
No entanto, Norton não conseguia acreditar numa explicação tão
simples. Peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar,
embora ainda faltassem muitas. A ausência de todo e qualquer sinal
de desgaste, por exemplo – a sensação de novidade, como se
Rama tivesse acabado de ser criado...
Esses pensamentos poderiam ter inspirado medo, e mesmo
terror. De algum modo, não causaram nada disso. Pelo contrário,
Norton experimentou uma sensação de euforia – quase deleite.
Havia mais a descobrir aqui do que jamais ousaram esperar. Espere
até o Comitê de Rama ficar sabendo disso!, disse a si mesmo.
Então, com calma determinação, abriu os olhos novamente e
começou a fazer um cuidadoso inventário de tudo o que via.
Primeiro, tinha de estabelecer algum tipo de sistema de
referência. Estava olhando para o maior espaço fechado já visto
pelo homem e precisava de um mapa mental para se orientar nele.
A fraca gravidade não ajudava muito, pois, com força de vontade,
poderia usar Para Cima e Para Baixo em qualquer direção que
desejasse. Mas algumas direções eram psicologicamente perigosas;
sempre que sua mente esbarrava numa delas, ele tinha de desviá-la
rapidamente.
O mais seguro era ele imaginar que estava no fundo abaulado de
um gigantesco poço, de dezesseis quilômetros de largura e
cinquenta de profundidade. A vantagem dessa imagem era que não
podia haver perigo de cair mais abaixo; não obstante, ela tinha
alguns defeitos sérios.
Ele podia fingir que as vilas e cidades espalhadas, e as áreas de
diferentes cores e texturas, estavam todas firmemente presas nas
elevadíssimas paredes. As variadas e complexas estruturas que se
viam penduradas na cúpula acima talvez não fossem menos
desconcertantes do que os candelabros pendentes em algumas
salas de concerto na Terra. Absolutamente inaceitável era o Mar
Cilíndrico...
Lá estava ele, a meia altura do poço – uma faixa de água a
circundá-lo completamente, sem nenhum suporte visível. Não havia
dúvida de que era água; era de um azul vívido, salpicado de
centelhas brilhantes dos poucos blocos de gelo remanescentes.
Mas um mar vertical formando um círculo completo a vinte
quilômetros de altitude no céu era um fenômeno tão desconcertante
que, depois de algum tempo, ele começou a procurar uma
alternativa.
Foi quando sua mente fez a cena girar 90 graus.
Instantaneamente, o poço fundo tornou-se um longo túnel, com uma
calota em cada extremidade. “Para baixo” era, obviamente, na
direção da escada e da escadaria que acabara de subir; e agora,
com essa perspectiva, Norton finalmente foi capaz de apreciar a
verdadeira visão dos arquitetos que tinham construído aquele lugar.
Ele estava agarrado à superfície de um penhasco curvo de
dezesseis quilômetros de altura, cuja metade superior formava um
arco completo, até fundir-se com o teto que agora era o céu. Abaixo
dele, a escada descia mais de quinhentos metros, até terminar na
primeira borda ou terraço. Ali começava a escadaria, que continuava
quase verticalmente a princípio, nesse regime de baixa gravidade, e
lentamente se tornava cada vez menos íngreme, até alcançar,
depois da interrupção de mais cinco plataformas, a planície distante.
Pelos primeiros dois ou três quilômetros, ele conseguia ver os
degraus individualmente, mas a partir daí eles se fundiam numa
faixa contínua.
O mergulho daquela imensa escadaria era tão impressionante
que se tornava impossível apreciar a sua verdadeira escala. Certa
vez, Norton tinha sobrevoado o Monte Everest e ficara assombrado
com seu tamanho. Lembrou a si mesmo que aquela escadaria era
tão alta quanto o Himalaia, mas a comparação não fazia sentido.
E nenhuma outra comparação era possível com as duas outras
escadarias, Beta e Gama, que subiam até o céu e depois faziam
uma curva lá longe, sobre sua cabeça. Norton agora ganhara
confiança suficiente para inclinar o corpo para trás e olhar para elas
– de relance. E então tentou esquecer que elas estavam lá...
Pois pensar demais naquelas linhas evocava uma terceira
imagem de Rama, que ele ansiava por evitar a qualquer custo.
Tratava-se do ponto de vista que considerava aquele mundo
novamente um cilindro vertical ou poço – mas agora ele estava no
topo, não no fundo, como uma mosca rastejando de ponta-cabeça
num teto abobadado, com uma queda de cinquenta quilômetros
imediatamente abaixo. Toda vez que essa assustadora imagem se
insinuava, Norton precisava exercer toda a força de vontade para
não se agarrar novamente à escada, num pânico irracional.
Tinha certeza de que, com o tempo, todos esses medos
declinariam. A maravilha e a estranheza de Rama expulsariam seus
terrores, pelo menos para homens treinados para enfrentar as
realidades do espaço. Talvez ninguém que jamais tivesse saído da
Terra e jamais estivesse cercado de estrelas por todos os lados
conseguiria suportar aqueles panoramas. Mas, se havia homens
capazes de aceitá-los, Norton disse a si mesmo, com rigorosa
determinação, seriam o capitão e a tripulação da Endeavour.
Olhou seu cronômetro. A pausa tinha durado apenas dois
minutos, mas parecera uma vida inteira. Fazendo apenas o pequeno
esforço necessário para sair da inércia naquele campo gravitacional
cada vez mais fraco, começou a subir as últimas centenas de
metros da escada. Pouco antes de entrar na câmara pressurizada e
dar as costas a Rama, fez uma última e rápida vistoria de seu
interior.
O cenário havia mudado, mesmo nos últimos minutos; uma
névoa subia do Mar. Nas primeiras centenas de metros, as
fantasmagóricas colunas brancas inclinavam-se nitidamente para a
frente, na direção do giro de Rama; então começaram a se dissolver
num redemoinho de turbulência, à medida que o ar ascendente
tentava se desfazer do excesso de velocidade. Os ventos alísios
desse mundo cilíndrico começavam a estampar seus padrões no
céu; a primeira tempestade tropical em eras desconhecidas estava
prestes a eclodir.
19
UM ALERTA DE MERCÚRIO

Era a primeira vez, depois de semanas, que todos os membros do


Comitê de Rama estavam disponíveis. O professor Solomons
emergira das profundezas do Pacífico, onde estivera estudando
operações de mineração ao longo das fossas centrais daquele
oceano. E o reaparecimento do dr. Taylor não surpreendeu ninguém,
já que agora existia pelo menos a possibilidade de que Rama
tivesse algo mais valioso do que apenas artefatos sem vida.
O presidente já esperava que o dr. Carlisle Perera se mostrasse
ainda mais dogmaticamente assertivo do que de costume, agora
que sua previsão do furacão ramano tinha sido confirmada. Para
grande surpresa de Sua Excelência, Perera foi notavelmente
comedido e aceitou as congratulações dos colegas com um
constrangimento que alguém como ele provavelmente jamais
experimentara.
O exobiólogo, de fato, estava profundamente mortificado. O
espetacular degelo do Mar Cilíndrico era um fenômeno muito mais
óbvio do que os vendavais – no entanto, ele o negligenciara
completamente. Ter lembrado que o ar quente sobe, mas ter
esquecido que gelo quente se contrai não era uma realização digna
de orgulho. Entretanto, ele logo superaria a situação e reverteria à
autoconfiança olímpica que lhe era normal.
Quando o presidente lhe passou a palavra e perguntou que
outras mudanças climáticas esperava, ele foi muito cauteloso com
as especulações.
– Os senhores devem compreender – explicou – que a
meteorologia de um mundo tão estranho como Rama pode trazer
muitas outras surpresas. Mas, se meus cálculos estiverem corretos,
não haverá mais tempestades, e as condições logo irão se
estabilizar. A temperatura vai subir lentamente até o periélio, e além
dele, mas isso não vai nos preocupar, já que a Endeavour terá
partido muito antes disso.
– Então logo deverá ser seguro voltar ao interior de Rama?
– Hã... provavelmente. Em quarenta e oito horas devemos saber
com certeza.
– É imperativo que retornemos – disse o Embaixador de
Mercúrio. – Temos que aprender tudo o que for possível sobre
Rama. A situação agora mudou completamente.
– Acho que sei o que quer dizer com isso, mas poderia nos dar
mais detalhes?
– Claro. Até agora, presumimos que Rama não tinha vida, ou, em
todo caso, era um mundo descontrolado. Mas agora não podemos
mais fingir que é um navio abandonado. Mesmo que não haja
nenhuma forma de vida a bordo, ele pode estar sendo dirigido por
mecanismos robóticos, programados para cumprir uma missão...
Talvez uma missão altamente desvantajosa para nós. Por mais
desagradável que seja, temos que considerar a questão da
autodefesa.
Houve uma confusão de vozes em protesto, e o presidente teve
de erguer a mão para restaurar a ordem.
– Deixem Sua Excelência terminar! – rogou. – Gostemos ou não
da ideia, ela deve ser considerada com seriedade.
– Com todo o devido respeito ao Embaixador – disse o dr.
Conrad Taylor, no tom de voz mais desrespeitoso –, acho que
podemos descartar o medo ingênuo de uma intervenção malévola.
Criaturas tão avançadas como os ramanos devem possuir valores
morais à altura. Senão, já teriam destruído a si mesmos, como
quase fizemos no século 20. Deixei isso bem claro em meu novo
livro, Ethos e Cosmos. Espero que tenham recebido seu exemplar.
– Sim, obrigado, embora, infelizmente, a pressão de outros
afazeres não me tenha permitido ir além da introdução. Entretanto,
estou familiarizado com a tese geral. Podemos não ter intenções
malévolas contra um formigueiro. Mas se quisermos construir uma
casa no mesmo local...
– Isso é pior que o Partido de Pandora! Nada menos que
xenofobia interestelar!
– Por favor, cavalheiros! Isso não vai levar a nada. Senhor
Embaixador, ainda tem a palavra.
O presidente lançou um olhar furioso de 380 mil quilômetros de
espaço até Conrad Taylor, que, relutantemente, se acalmou, como
um vulcão que aguarda sua hora.
– Obrigado – disse o Embaixador de Mercúrio. – O perigo pode
parecer improvável, mas quando o futuro da humanidade está em
jogo, não podemos nos arriscar. E, se me permitem dizê-lo, nós,
mercurianos, estamos especialmente preocupados. Talvez
tenhamos mais razão para alarme do que todos os demais.
O dr. Taylor bufou audivelmente, mas foi reprimido por mais um
olhar furioso vindo da Lua.
– Por que Mercúrio, mais do que qualquer outro planeta? –
perguntou o presidente.
– Vejam a dinâmica da situação. Rama já está em nossa órbita. É
apenas uma suposição que ele irá contornar o Sol e voltar ao
espaço. Suponham que realize uma manobra de frenagem. Se fizer
isso, será no periélio, daqui a aproximadamente trinta dias. Meus
cientistas dizem que se a mudança inteira de velocidade for
realizada lá, Rama acabará numa órbita circular a apenas 25
milhões de quilômetros do Sol. Dali, ele dominaria o Sistema Solar.
Por um longo instante, ninguém – nem mesmo o dr. Conrad
Taylor – disse uma só palavra. Todos os membros do Comitê
concentravam seus pensamentos no difícil povo mercuriano, tão
habilmente representado ali por seu embaixador.
Para a maioria das pessoas, Mercúrio era uma imagem muito
próxima do inferno; pelo menos serviria até que aparecesse algo
pior. Mas os mercurianos tinham orgulho de seu bizarro planeta e
seus dias mais longos que os anos, seus duplos nasceres e pores
do Sol, seus rios de metal fundido... Em comparação, a Lua e Marte
tinham sido desafios quase triviais. Só quando o homem pousasse
em Vênus (se é que um dia o faria), encontraria um ambiente mais
hostil que o de Mercúrio.
E, no entanto, esse mundo tinha se tornado, em muitos aspectos,
a chave do Sistema Solar. Isso parecia óbvio em retrospecto, mas a
Era Espacial já tinha um século quando se percebeu esse fato.
Agora os mercurianos não deixavam ninguém esquecer.
Muito antes de o homem ter alcançado Mercúrio, a densidade
anormal do planeta indicava a existência de metais pesados;
mesmo assim, sua riqueza ainda causava espanto e tinha adiado
por mil anos quaisquer temores de que os metais essenciais à
civilização humana se esgotariam. E esses tesouros estavam no
melhor lugar possível, onde a energia solar era dez vezes maior do
que na fria Terra.
Energia ilimitada – metais ilimitados. Isso era Mercúrio. Seus
incríveis lançadores magnéticos podiam catapultar produtos
manufaturados a qualquer ponto do Sistema Solar. Podia também
exportar energia em isótopos de transurânio sintético ou radiação
pura. Chegaram a sugerir que os lasers mercurianos um dia
descongelariam o gigantesco Júpiter, mas a ideia não foi bem-aceita
pelos outros mundos. Uma tecnologia capaz de cozinhar Júpiter
trazia muitas possibilidades tentadoras de chantagem
interplanetária.
Só o fato de tal preocupação ter sido expressa dizia muito sobre
a atitude geral para com os mercurianos. Eles eram respeitados por
sua tenacidade e suas habilidades em engenharia, e admirados pelo
modo como tinham conquistado um mundo tão temível. Mas não
eram estimados, e muito menos inspiravam total confiança.
Ao mesmo tempo, era possível apreciar seu ponto de vista. Os
mercurianos, dizia uma piada corrente, às vezes se comportavam
como se o Sol fosse sua propriedade particular. Estavam presos a
ele numa íntima relação de amor e ódio – como os vikings estiveram
ligados ao mar, os nepaleses ao Himalaia e os esquimós à tundra.
Tornavam-se os seres mais infelizes se algo se interpusesse entre
eles e a força natural que dominava e controlava suas vidas.
Por fim, o presidente quebrou o longo silêncio. Ainda se lembrava
do sol da Índia e tremia só de pensar no sol de Mercúrio. Então, ele
de fato levava os mercurianos a sério, embora os considerasse
rudes bárbaros tecnológicos.
– Acho que há mérito em seus argumentos, sr. Embaixador –
disse lentamente. – Tem alguma proposta?
– Sim, senhor. Antes de sabermos que medidas tomar,
precisamos dos fatos. Conhecemos a geografia de Rama, se é que
podemos usar esse termo, mas não temos ideia de suas
potencialidades. E a chave do problema é esta: Rama possui um
sistema propulsor? Ele pode mudar de órbita? Estou muito
interessado na opinião do dr. Perera.
– Já pensei bastante sobre o assunto – respondeu o exobiólogo.
– Naturalmente, Rama deve ter recebido o impulso inicial de algum
dispositivo de lançamento, mas pode ter sido um impulso externo.
Se ele realmente tiver alguma propulsão a bordo, não encontramos
nem sinal dela. Com certeza, não há canos de escapamento de
foguetes, ou algo parecido, em nenhum ponto do casco exterior.
– Podem estar escondidos.
– Verdade, mas qual seria o sentido disso? E onde estão os
tanques de combustível, as fontes de energia? O casco principal é
sólido, verificamos isso com testes sísmicos. Todas as cavidades da
calota norte foram explicadas como sistemas de câmaras
pressurizadas.
– Resta a extremidade sul de Rama, que o comandante Norton
foi incapaz de alcançar, devido àquela faixa de água de dez
quilômetros. Há toda sorte de curiosos mecanismos e estruturas no
Polo Sul... O senhor viu as fotografias. O que são, ninguém sabe.
– De uma coisa tenho quase certeza. Se Rama realmente tiver
um sistema de propulsão, é algo completamente fora de nosso atual
conhecimento. Na verdade, teria que ser a fabulosa ‘propulsão
espacial’ de que se fala há duzentos anos.
– O senhor não descartaria isso?
– Certamente que não. Se pudermos provar que Rama tem
propulsão espacial, mesmo se não aprendermos nada sobre sua
operação, seria uma descoberta muito importante. Pelo menos
saberíamos que tal coisa é possível.
– O que é propulsão espacial? – perguntou o Embaixador da
Terra, um tanto queixoso.
– Qualquer sistema de propulsão, sir Robert, que não opere no
princípio do foguete. Antigravidade, se isso é possível, se sairia
muito bem. No momento, não sabemos onde procurar por tal
propulsão, e a maioria dos cientistas duvida que ela exista.
– Não existe – interveio o professor Davidson. – Newton
estabeleceu isso. Não pode haver ação sem reação. Propulsão
espacial é bobagem. Acreditem em mim.
– O senhor pode estar certo – Perera retrucou, com brandura
incomum. – Mas se Rama não tem propulsão espacial, não tem
propulsão alguma. Simplesmente não há espaço para um sistema
de propulsão convencional, com seus tanques enormes de
combustível.
– É difícil imaginar um mundo inteiro sendo empurrado por aí –
disse Dennis Solomons. – O que aconteceria com os objetos em
seu interior? Tudo teria que ser parafusado. Extremamente
incômodo.
– Bem, a aceleração provavelmente seria muito baixa. O maior
problema seria a água do Mar Cilíndrico. Como você impediria que
ele...
A voz de Perera apagou-se de repente, e seus olhos se vidraram.
Ele parecia estar à beira de um ataque epilético, ou mesmo um
ataque cardíaco. Os colegas olharam para ele, alarmados; então,
recuperou-se repentinamente, bateu o punho na mesa e gritou:
– Mas é claro! Isso explica tudo! O penhasco sul... Agora faz
sentido!
– Não para mim – resmungou o Embaixador de Luna, falando por
todos os diplomatas presentes.
– Vejam esta seção longitudinal de Rama – Perera continuou,
entusiasmado, desdobrando o seu mapa. – Os senhores estão com
suas cópias? O Mar Cilíndrico está contido entre dois penhascos
que circundam completamente o interior de Rama. O do norte só
tem 50 metros de altura. O do sul, por outro lado, tem quase meio
quilômetro. Por que uma diferença tão grande? Ninguém conseguiu
encontrar uma razão plausível...
... Mas suponham que Rama seja capaz de propelir a si mesmo,
acelerando de modo que a extremidade norte fique na frente. A
água do Mar tenderia a se mover para trás; o nível no sul subiria,
talvez centenas de metros. Daí o penhasco. Vejamos...
Perera começou a rabiscar freneticamente. Após um tempo
espantosamente curto – não mais do que vinte segundos –, olhou
para os demais com ar triunfante.
– Sabendo a altura daqueles penhascos, podemos calcular a
máxima aceleração que Rama é capaz de alcançar. Se fosse mais
do que dois por cento de 1 g, o Mar inundaria o continente sul.
– Um cinquenta avos de g? Não é muito.
– É, sim, para uma massa de dez milhões de megatons. E não é
preciso mais do que isso para manobras astronômicas.
– Muito obrigado, dr. Perera – disse o embaixador mercuriano. –
O senhor nos deu muito que pensar. Sr. presidente, podemos
convencer o comandante Norton sobre a importância de se explorar
a região do Polo Sul?
– Ele está fazendo o que pode. O Mar é um obstáculo,
naturalmente. Estão tentando construir um tipo de jangada, para
chegarem pelo menos até Nova York.
– O Polo Sul é ainda mais importante. Enquanto isso, vou levar
essas questões à atenção da Assembleia Geral. Tenho a aprovação
dos senhores?
Não houve objeções, nem mesmo do dr. Taylor. Mas, justamente
quando os membros do Comitê estavam prestes a desligar o
circuito, sir Lewis levantou a mão.
O velho historiador raramente falava; quando o fazia, todos
ouviam.
– Suponhamos que Rama realmente esteja... ativo... e que tenha
essas potencialidades. Segundo um velho ditado militar,
potencialidade não implica intenção.
– Quanto tempo devemos esperar até descobrir quais são suas
intenções? – perguntou o velho mercuriano. – Quando as
descobrirmos, poderá ser tarde demais.
– Já é tarde demais. Não há nada que possamos fazer para
afetar Rama. Na verdade, duvido que jamais tenha havido.
– Não admito isso, sir Lewis. Há muitas coisas que podemos
fazer... se for necessário. Mas temos pouquíssimo tempo. Rama é
um ovo cósmico que está sendo chocado pelo calor do Sol. A casca
do ovo pode se romper a qualquer momento.
O presidente do Comitê olhou para o Embaixador com
indisfarçada perplexidade. Raramente tinha se surpreendido tanto
em sua carreira diplomática.
Jamais teria sonhado que um mercuriano fosse capaz de um voo
de imaginação tão poético.
20
APOCALIPSE

Quando alguém da tripulação o chamava de “comandante”, ou, pior


ainda, “senhor Norton”, o assunto era sempre grave. Não se
lembrava de jamais ter ouvido Boris Rodrigo dirigir-se a ele dessa
maneira; logo, a coisa devia ser duplamente grave. Mesmo em
tempos normais, o tenente-comandante Rodrigo era uma pessoa
muito séria e sensata.
– Qual o problema, Boris? – perguntou, quando a porta da cabine
se fechou atrás deles.
– Comandante, gostaria de uma permissão para usar a
Prioridade da Nave para enviar uma mensagem direta à Terra.
Isso era incomum, mas não inédito. Sinais de rotina iam até o
posto de retransmissão mais próximo – no momento, comunicavam-
se através de Mercúrio –, e, embora o tempo de trânsito fosse de
apenas alguns minutos, geralmente levava cinco ou seis horas até
uma mensagem chegar à mesa do destinatário. Em noventa e nove
por cento das vezes, isso bastava; mas numa emergência mais
direta, e muito mais cara, os canais poderiam ser utilizados, a
critério do capitão.
– Você sabe, claro, que preciso de um bom motivo. Toda a nossa
banda disponível já está congestionada de transmissões de dados.
É uma emergência pessoal?
– Não, comandante, é muito mais importante que isso. Quero
enviar uma mensagem à Madre Igreja.
Ahã, pensou Norton. Como lido com isso?
– Ficaria feliz se me explicasse.
Não foi mera curiosidade que inspirou o pedido de Norton –
embora ela certamente estivesse presente. Se concedesse a Boris a
prioridade solicitada, teria de justificar sua ação.
Os calmos olhos azuis fitaram os seus. Nunca ouvira dizer que
Boris tivesse perdido o controle, que tivesse sido outra coisa senão
um homem completamente seguro de si. Todos os cosmo-cristeiros
eram assim; era um dos benefícios de sua fé, e isso contribuía para
que fossem bons espaçonautas. Às vezes, entretanto, sua certeza
inabalável era um pouco exasperante aos infelizes a quem não se
concedera a Revelação.
– É sobre o objetivo de Rama, comandante. Acredito que eu
tenha descoberto.
– Continue.
– Veja a situação. Eis um mundo completamente vazio e sem
vida. No entanto, é adequado a seres humanos. Tem água e uma
atmosfera que podemos respirar. Vem das profundezas remotas do
espaço, dirigindo-se com precisão ao Sistema Solar... Algo
absolutamente incrível, se foi uma questão de mero acaso. E parece
não apenas novo; é como se nunca tivesse sido usado.
Já discutimos isso dezenas de vezes, Norton disse a si mesmo.
O que Boris teria a acrescentar?
– Nossa fé nos ensinou a esperar tal visita, mas não sabemos
exatamente que forma ela assumirá. A Bíblia dá pistas. Se isso não
for o Segundo Advento, pode ser o Segundo Juízo; a história de
Noé descreve o primeiro. Acredito que Rama seja uma Arca
cósmica, enviada para cá para salvar... os que forem dignos de
serem salvos.
Houve um longo silêncio na cabine do capitão. Não que Norton
não encontrasse as palavras; ao contrário, pensou em muitas
questões, mas não sabia quais delas seriam muito delicadas.
Finalmente, observou, no tom de voz mais brando e tolerante que
conseguiu arranjar:
– É um conceito muito interessante e, embora eu não compartilhe
a sua fé, é tentadoramente plausível.
Ele não estava sendo hipócrita ou lisonjeiro; despida de suas
conotações religiosas, a teoria de Rodrigo era no mínimo tão
convincente quanto a meia dúzia de outras que tinha ouvido. E se
uma catástrofe estivesse prestes a se abater sobre a raça humana,
e uma inteligência mais alta soubesse disso? Isso explicaria tudo,
perfeitamente. Entretanto, ainda havia alguns problemas...
– Duas perguntas, Boris. Rama vai alcançar o periélio em três
semanas; depois vai contornar o Sol e deixar o Sistema Solar tão
rápido quanto chegou. Não há tempo suficiente para um Dia do
Juízo Final ou para embarcar os... hã... escolhidos, seja como isso
for feito.
– É verdade. Então, quando alcançar o periélio, Rama terá que
desacelerar e entrar em órbita estacionária... provavelmente tendo
como afélio a órbita da Terra. Ali, talvez ele mude a velocidade
novamente e vá ao encontro da Terra.
Era uma hipótese perturbadoramente persuasiva. Se Rama
quisesse permanecer dentro do Sistema Solar, estava fazendo a
coisa certa. O modo mais eficiente de diminuir a velocidade era
aproximar-se o máximo do Sol e lá realizar a manobra de frenagem.
Se houvesse algo verdadeiro nessa teoria, ou alguma variante dela,
logo seria posta à prova.
– Mais uma questão, Boris. O que controla Rama agora?
– Não existe doutrina sobre isso. Poderia ser um mero robô. Ou
poderia ser... um espírito. Isso explicaria por que não há sinais de
formas de vida biológicas.
O Asteroide Assombrado; por que a frase surgira do fundo de
sua mente? Então se lembrou de uma história tola que lera anos
atrás; achou melhor não perguntar a Boris se ele já tinha lido.
Duvidava que o outro tivesse gosto para esse gênero de leitura.
– Vamos fazer o seguinte, Boris – disse Norton, decidindo-se
abruptamente. Queria terminar aquela conversa antes que ela
ficasse difícil demais e julgou ter encontrado uma boa saída. – Você
consegue resumir suas ideias em menos de, digamos, mil palavras?
– Sim, acho que sim.
– Bem, se você puder fazer com que pareça uma teoria científica
objetiva, eu a enviarei, com prioridade máxima, ao Comitê de Rama.
Ao mesmo tempo, uma cópia poderá seguir à sua Igreja, e todo
mundo ficará satisfeito.
– Obrigado, comandante, realmente agradeço.
– Não estou fazendo isso para salvar minha consciência. Só
gostaria de ver o que o Comitê tem a dizer sobre isso. Mesmo não
concordando com toda a sua linha de raciocínio, talvez você tenha
tocado num ponto importante.
– Bem, saberemos no periélio, não?
– Sim, saberemos no periélio.
Depois que Boris Rodrigo saiu, Norton chamou a ponte e deu a
autorização necessária. Pensava ter resolvido o problema de modo
impecável; além disso, imagine se Boris estivesse certo.
Ele poderia ter aumentado suas chances de estar entre os
salvos.
21
DEPOIS DA TEMPESTADE

Enquanto flutuavam pelo agora familiar corredor do complexo de


câmaras pressurizadas Alfa, Norton se perguntava se tinham
deixado a impaciência superar a cautela. Aguardaram a bordo da
Endeavour por quarenta e oito horas – dois preciosos dias –,
prontos para partir imediatamente, se os eventos assim o
justificassem. Mas nada acontecera; os instrumentos deixados em
Rama não detectaram nenhuma atividade incomum. Para a
frustração de todos, a câmera de televisão do Eixo tinha sido
coberta por um nevoeiro que reduzira a visibilidade para poucos
metros, e apenas agora começava a se dissipar.
Quando abriram a porta da última câmara pressurizada e
flutuaram por entre a cama de gato de cordas-guia em torno do
Eixo, a primeira coisa que impressionou Norton foi a mudança na
luz. Não era mais de um azul agressivo, mas muito mais suave e
agradável, lembrando um dia claro de névoa na Terra.
Olhou ao longe, através do eixo do mundo – e não viu nada,
exceto um túnel brilhante, branco e uniforme, estendendo-se até
aquelas estranhas montanhas no Polo Sul. O interior de Rama
estava completamente nublado, sem nenhuma abertura visível nas
nuvens. O topo da camada estava nitidamente definido; formava um
cilindro menor dentro do maior daquele mundo giratório, deixando
um núcleo central de cinco ou seis quilômetros de largura,
perfeitamente claro, exceto por alguns filetes esparsos de cirros.
O imenso tubo nebuloso era iluminado de baixo pelos seis sóis
artificiais de Rama. As localizações dos três neste continente norte
eram claramente definidas por difusas tiras de luz, mas as do outro
lado do Mar Cilíndrico fundiam-se numa faixa contínua e brilhante.
O que estaria acontecendo sob aquelas nuvens?, Norton
perguntou-se. Mas pelo menos a tempestade, que as tinha
centrifugado em perfeita simetria em volta do eixo de Rama, já tinha
terminado. A menos que houvesse outras surpresas, seria seguro
descer.
Pareceu apropriado, nesse retorno, usar a mesma equipe que
fizera a primeira penetração profunda em Rama. O sargento Myron
– como todos os outros membros da tripulação da Endeavour –
satisfazia agora todos os requisitos físicos da comandante médica
Ernst; ele até afirmou, com sinceridade convincente, que jamais
usaria de novo seus uniformes antigos.
Enquanto observava Mercer, Calvert e Myron “nadando” escada
abaixo de modo rápido e despreocupado, Norton lembrou a si
mesmo de quanta coisa havia mudado. Da primeira vez, tinham
descido no frio e no escuro; agora desciam ao encontro da luz e do
calor. E em todas as visitas anteriores, tinham a certeza de que
Rama estava morto. Isso talvez ainda fosse verdade, num sentido
biológico. Mas algo se movia ali; e a frase de Boris Rodrigo servia
tanto quanto qualquer outra. O espírito de Rama havia despertado.

Quando chegaram à plataforma ao pé da escada e se


preparavam para descer a escadaria, Mercer realizou o teste de
rotina da atmosfera. Havia certas coisas que ele nunca deixava de
examinar; mesmo com todos à sua volta respirando perfeita e
confortavelmente, sem aparelhos auxiliares, sabia-se que ele parava
para um teste do ar antes de abrir o capacete. Quando lhe pediram
para justificar tal excesso de cautela, respondeu:
– Porque os sentidos humanos não são bons o suficiente, é por
isso. Você pode achar que está tudo bem e cair de cara no chão na
primeira respiração profunda.
Olhou seu medidor e exclamou:
– Droga!
– Qual o problema? – perguntou Calvert.
– Quebrou. A indicação está alta demais. Estranho; nunca vi isso
acontecer antes. Vou testar no meu circuito respiratório.
Conectou o pequeno analisador compacto ao ponto de teste de
seu suprimento de oxigênio, e então permaneceu em silêncio por
um instante. Seus companheiros o olhavam com preocupação
ansiosa; qualquer coisa que perturbasse Karl devia realmente ser
levada muito a sério.
Desconectou o medidor, usou-o para recolher uma amostra da
atmosfera de Rama novamente, e então chamou o Controle Central.
– Capitão! Pode fazer uma leitura do oxigênio?
Houve uma pausa muito mais longa do que justificava o pedido.
Então Norton respondeu pelo rádio:
– Acho que meu medidor está com algum problema.
Um lento sorriso espalhou-se pelo rosto de Mercer.
– Subiu cinquenta por cento, não foi?
– O que isso significa?
– Significa que todos nós podemos tirar as máscaras. Não é
conveniente?
– Não tenho certeza – respondeu Norton, ecoando o sarcasmo
na voz de Mercer. – Parece bom demais para ser verdade. – Não
era preciso dizer mais nada. Como todos os espaçonautas, o
comandante Norton tinha profunda desconfiança de tudo que fosse
bom demais para ser verdade.
Mercer entreabriu sua máscara e inspirou, cautelosamente. Pela
primeira vez naquela altitude, o ar era perfeitamente respirável. O
cheiro bolorento de coisa morta tinha desaparecido; assim como a
secura excessiva, que anteriormente havia provocado vários
distúrbios respiratórios. A umidade alcançava agora o espantoso
índice de oitenta por cento; sem dúvida, o degelo do Mar era
responsável por isso. Havia uma sensação de mormaço no ar,
porém não desagradável. Era como uma noite de verão, Mercer
disse a si mesmo, em alguma praia tropical. O clima dentro de
Rama tinha melhorado drasticamente nos últimos dias...
E por quê? O aumento da umidade não era problema; a
surpreendente elevação do oxigênio era muito mais difícil de
explicar.
Enquanto recomeçava a descida, Mercer deu início a toda uma
série de cálculos mentais. Não tinha chegado a nenhum resultado
satisfatório quando entraram na camada de nuvens.
Foi uma experiência dramática, pois a transição foi muito
abrupta. Num momento, deslizavam para baixo com ar claro,
segurando no metal liso do corrimão para que não ganhassem
velocidade rápido demais naquela área de um quarto de gravidade.
Então, de repente, adentraram uma neblina branca e ofuscante, e a
visibilidade caiu para poucos metros. Mercer freou tão bruscamente
que Calvert quase se chocou contra ele – e Myron de fato chocou-
se contra Calvert, por pouco não o derrubando do corrimão.
– Calma – disse Mercer. – Espalhem mais a fila, até que mal
possamos nos ver. E não se deixem acelerar, caso eu tenha que
parar de repente.
Em silêncio assustado, continuaram a deslizar para baixo,
através da névoa. Calvert via Mercer apenas como uma vaga
sombra dez metros adiante e, quando olhou para trás, viu Myron à
mesma distância. Em alguns aspectos, aquilo era mais sinistro do
que descer na absoluta escuridão da noite de Rama; naquela
ocasião, pelo menos, o feixe do holofote lhes mostrara o caminho.
Mas assim era como mergulhar, com pouca visibilidade, em alto-
mar.
Era impossível afirmar a distância que tinham percorrido, e
Calvert imaginou que talvez já estivessem quase chegando ao
quarto nível quando Mercer, de repente, freou outra vez. Quando se
juntaram, ele sussurrou:
– Prestem atenção! Não estão ouvindo nada?
– Sim – disse Myron, após um minuto. – Parece o vento.
Calvert teve dúvida. Virou a cabeça para todos os lados, tentando
localizar a direção no murmúrio muito fraco que os alcançara
através do nevoeiro, mas abandonou a tentativa como inútil.
Continuaram a deslizar, alcançaram o quarto nível e partiram
para o quinto. O som se tornava cada vez mais forte – e cada vez
mais assombrosamente familiar. Estavam na metade da quarta
escadaria quando Myron gritou:
– Estão reconhecendo agora?
Teriam identificado há muito tempo, mas era um som que jamais
associariam a qualquer outro mundo, exceto a Terra. Através do
nevoeiro, vindo de uma fonte cuja distância não se podia estimar,
ouvia-se o estrondo regular e contínuo de uma cachoeira.
Alguns minutos depois, o teto de nuvens terminou tão
abruptamente como havia começado. Os três emergiram na
claridade ofuscante do dia ramano, que a luz refletida pelas nuvens
baixas tornava ainda mais brilhante. Lá estava a conhecida planície
curva – agora mais aceitável à mente e aos sentidos, uma vez que
não se via o círculo completo. Não foi muito difícil fingir que
contemplavam um amplo vale, e que a curva ascendente do Mar
era, na verdade, para fora.
Pararam na quinta e penúltima plataforma, para comunicar que
tinham atravessado a cobertura de nuvens e para fazer uma
cuidadosa avaliação do local. Pelo que podiam ver, nada havia
mudado lá embaixo, na planície; mas ali em cima, na cúpula norte,
Rama produzira uma nova maravilha.
Lá estava a origem do som que tinham ouvido. Descendo de uma
fonte oculta nas nuvens, a três ou quatro quilômetros de distância,
havia uma cachoeira, e por longos minutos eles a fitaram em
silêncio, quase incapazes de acreditar em seus olhos. A lógica lhes
dizia que naquele mundo rotativo nenhum objeto em queda poderia
se mover em linha reta, mas havia algo terrivelmente contrário às
leis da natureza numa cachoeira curva, que se inclinava
lateralmente, indo terminar a quilômetros de distância do ponto
diretamente abaixo de sua fonte...
– Se Galileu tivesse nascido neste mundo – disse Mercer, por fim
–, teria enlouquecido ao tentar entender as leis da dinâmica.
– Eu achava que entendia – respondeu Calvert –, mas vou
enlouquecer do mesmo jeito. Isso não o perturba, professor?
– Por que deveria? – disse o sargento Myron. – É uma
demonstração perfeita e objetiva do Efeito Coriolis. Quem me dera
poder mostrá-la a alguns dos meus alunos.
Mercer fitava pensativamente a faixa do Mar Cilíndrico que
circundava Rama.
– Vocês perceberam o que aconteceu com a água? – disse,
finalmente.
– Bem... Não está mais tão azul. Eu diria que está verde-ervilha.
O que isso significa?
– Talvez a mesma coisa que significa na Terra. Laura comparou o
Mar a uma sopa orgânica esperando ser mexida para que a vida
brotasse. Pode ser que tenha acontecido exatamente isso.
– Em dois dias! Na Terra, levou milhões de anos.
– Trezentos e setenta e cinco milhões, segundo a última
estimativa. Então foi daí que veio o oxigênio. Rama passou do
estado anaeróbico para plantas fotossintéticas... Em quarenta e oito
horas! O que será que ele vai produzir amanhã?
22
SINGRAR O MAR CILÍNDRICO

Quando chegaram ao pé da escadaria, tiveram outro choque. À


primeira vista, parecia que alguém havia revirado o acampamento,
derrubando equipamentos e até levando embora objetos menores.
Porém, após um breve exame, o alarme foi substituído por um
aborrecimento envergonhado.
O culpado era apenas o vento; embora tivessem amarrado todos
os objetos soltos antes de partirem, algumas cordas devem ter
arrebentado durante as rajadas excepcionalmente fortes. Levou dias
até que recuperassem todo o material espalhado.
Fora isso, parecia não haver mudanças importantes. Até o
silêncio de Rama retornara, agora que as efêmeras tempestades de
primavera tinham cessado. E, ao longe, na margem da planície,
havia o mar calmo, à espera do primeiro navio em milhões de anos.

– Não é costume batizar um barco novo com uma garrafa de


champanhe?
– Mesmo se tivéssemos uma garrafa a bordo, eu não permitiria
tão criminoso desperdício. De qualquer modo, é tarde demais. Já
lançamos a coisa.
– Pelo menos ela flutua. Você ganhou a aposta, Jimmy. Pagarei
quando voltarmos à Terra.
– Ela precisa de um nome. Alguma ideia?
O objeto desses comentários tão pouco lisonjeiros oscilava ao
lado dos degraus que desciam até o Mar Cilíndrico. Era uma
pequena jangada, feita de seis tambores vazios e uma leve armação
metálica. Construí-la, montá-la no acampamento Alfa e transportá-la
sobre rodas desmontáveis por mais de dez quilômetros de planície
tinha absorvido todas as energias da tripulação, por vários dias. Era
uma aposta que precisava se pagar.
O prêmio valia o risco. As enigmáticas torres de Nova York,
reluzindo na luz sem sombras a cinco quilômetros de distância, os
tinham intrigado desde que entraram em Rama. Ninguém duvidava
que a cidade – o que quer que fosse – era o verdadeiro coração
daquele mundo. Ainda que não fizessem mais nada, precisavam
chegar até Nova York.
– Ainda não temos um nome. Capitão, o que acha?
Norton riu, e então, repentinamente, ficou sério.
– Tenho um para vocês. Chamem de Resolution.
– Por quê?
– Era um dos navios de Cook. É um bom nome. Que ela faça por
merecê-lo.
Houve um silêncio pensativo; depois, a sargento Barnes,
principal responsável pelo projeto, pediu três voluntários. Todos os
presentes levantaram a mão.
– Desculpem, só temos quatro coletes salva-vidas. Boris, Jimmy,
Pieter... Vocês já foram marinheiros. Vamos testá-la.
Ninguém estranhou que uma sargento agora assumisse o
comando das atividades. Ruby Barnes era a única a bordo com uma
carta de capitão, e isso resolvia a questão. Ela já atravessara o
Pacífico em trimarãs de corrida, e não parecia provável que uns
poucos quilômetros de águas calmas pudessem representar grande
desafio para suas habilidades.
Desde que pusera os olhos no Mar, ela tinha decidido fazer essa
viagem. Durante os milênios em que o homem se relacionara com
as águas de seu próprio mundo, nenhum marinheiro jamais havia
enfrentado algo remotamente parecido com aquilo. Nos últimos dias,
um pequeno e tolo verso não lhe saía da cabeça. “Singrar o Mar
Cilíndrico”... Bem, era exatamente o que ela iria fazer.
Os passageiros tomaram seus lugares nos assentos
improvisados com baldes, e Ruby abriu a válvula reguladora. O
motor de 20 quilowatts começou a zunir, a transmissão por cadeia
da engrenagem de redução fez um barulho, e a Resolution lançou-
se ao mar, sob os aplausos dos espectadores.
Ruby esperava atingir 15 km/h com aquela carga, mas se
contentaria com qualquer coisa acima de dez. Um percurso de meio
quilômetro tinha sido medido ao longo do penhasco, e ela fez a
viagem de ida e volta em cinco minutos e meio. Descontando o
tempo necessário para dar meia-volta, isso correspondia a 12 km/h,
o que a deixou muito satisfeita.
Sem força motriz, mas com três vigorosos remadores a ajudá-la,
Ruby conseguira obter um quarto dessa velocidade. Assim, mesmo
que o motor falhasse, poderiam voltar à praia em duas horas. As
resistentes baterias poderiam fornecer energia suficiente para
circunavegar o mundo; ela trazia duas sobressalentes, por
precaução. E agora que o nevoeiro se dissipara completamente, até
uma marinheira cautelosa como Ruby estava preparada para se
lançar ao mar sem bússola.
Ela bateu uma rápida continência quando pisou em terra firme.
– Viagem inaugural da Resolution completada com sucesso,
senhor. Aguardando suas instruções.
– Muito bem... Almirante. Quando estará pronta para partir?
– Assim que embarcarmos os suprimentos, e o capitão do porto
nos der a autorização.
– Então, partiremos ao alvorecer.
– Sim, senhor.
Cinco quilômetros de água não parecem grande coisa num
mapa; é bem diferente, porém, quando se está no meio dela.
Navegavam há apenas dez minutos, e o penhasco de cinquenta
metros que faceava o continente meridional já parecia estar a uma
surpreendente distância. Porém, misteriosamente, Nova York não
parecia mais próxima do que antes...
Entretanto, na maior parte do tempo, prestaram pouca atenção à
terra firme, tão fascinados estavam com a maravilha do Mar. Não
faziam mais as brincadeiras nervosas que pontuaram o início da
viagem; aquela nova experiência era por demais impressionante.
Cada vez que pensava estar se acostumando a Rama, Norton
disse a si mesmo, o lugar produzia uma nova maravilha. À medida
que a Resolution avançava, zunindo, parecia ter sido apanhada na
depressão de uma onda gigantesca – uma onda que se curvava
para cima dos dois lados até se tornar vertical, e então se inclinava
até as duas metades se encontrarem num arco líquido, dezesseis
quilômetros acima de suas cabeças. Apesar de tudo o que a razão e
a lógica lhes diziam, nenhum dos viajantes poderia evitar por muito
tempo a impressão de que, a qualquer momento, aqueles milhões
de toneladas de água iriam desabar do céu.
No entanto, apesar disso, o sentimento predominante era de
euforia; havia sensação de perigo, sem qualquer perigo real. A
menos, naturalmente, que o próprio Mar reservasse outras
surpresas.
Era uma distinta possibilidade, pois, como Mercer tinha sugerido,
a água agora estava viva. Cada colher de sopa continha milhares de
microrganismos esféricos e unicelulares, semelhantes às primeiras
formas de plâncton que existiram nos oceanos da Terra.
No entanto, havia diferenças intrigantes; eles não tinham núcleo,
bem como muitos outros requisitos mínimos das mais primitivas
formas de vida terrestres. E embora Laura Ernst – agora
acumulando as funções de cientista e médica da nave – tivesse
provado que eles definitivamente geravam oxigênio, eram em
número insuficiente para explicar o aumento da atmosfera de Rama.
Teriam de existir aos bilhões, não poucos milhares.
Depois ela descobriu que o número diminuía rapidamente, e
deve ter sido muito mais alto nas primeiras horas do alvorecer de
Rama. Era como se tivesse havido uma breve explosão de vida,
recapitulando, numa escala trilhões de vezes mais rápida, a história
primitiva da Terra. Agora, talvez, tivesse se exaurido; os
microrganismos levados pelas correntes estavam se desintegrando,
devolvendo ao Mar seus estoques de substâncias químicas.
– Se tiverem que nadar – a dra. Ernst alertara os marinheiros –,
mantenham a boca fechada. Algumas gotas não farão mal, se vocês
cuspirem imediatamente. Mas todos aqueles estranhos sais
metálico-orgânicos formam uma mistura bastante venenosa, e eu
detestaria ter que desenvolver um antídoto.
Esse perigo, felizmente, parecia muito improvável. A Resolution
poderia continuar à tona mesmo se quaisquer dois de seus tanques
flutuantes fossem perfurados. (Quando ouviu isso, Joe Calvert
murmurou: “Lembrem-se do Titanic!”.) E, ainda que a jangada
afundasse, os toscos, mas eficientes, coletes salva-vidas manteriam
suas cabeças acima da água. Embora Laura tivesse relutado em dar
um veredicto sobre o assunto, ela achava que algumas horas de
imersão no Mar não seriam fatais; mas não o recomendava.
Após vinte minutos de viagem ininterrupta, Nova York já não
parecia uma ilha tão distante. Tornava-se um lugar real, e detalhes
que eles tinham visto apenas através do telescópio e de fotos
ampliadas agora se revelavam como imponentes e sólidas
estruturas. E tornava-se evidente que a “cidade”, como tantas outras
coisas em Rama, era triplicada; constituía-se de três superestruturas
ou complexos circulares idênticos, elevando-se de uma longa
fundação oval. Fotografias tiradas do Eixo indicavam também que
cada complexo, em si, dividia-se em três componentes iguais, como
uma torta cortada em três fatias de 120 graus. Isso simplificaria
muito o trabalho de exploração; presumivelmente, bastaria examinar
uma nona parte de Nova York para ter visto o todo. Mesmo isso
seria um empreendimento descomunal; significaria investigar pelo
menos um quilômetro quadrado de prédios e maquinários, alguns
dos quais se elevavam a centenas de metros no ar.
Os ramanos, ao que parecia, tinham levado a arte da
redundância tripla a um alto grau de perfeição. Isso ficou
demonstrado no sistema de câmaras pressurizadas, nas escadarias
no Eixo e nos sóis artificiais. E onde realmente importava, eles
deram um passo além. Nova York parecia ser um exemplo de
redundância triplamente tripla.
Ruby manobrava a Resolution em direção ao complexo central,
onde um lance de escada conduzia da água até o topo do muro ou
dique que circundava a ilha. Havia até um mastro, muito bem
localizado, ao qual se podiam amarrar barcos; quando viu isso,
Ruby ficou muito entusiasmada. Agora não sossegaria enquanto
não encontrasse uma das embarcações nas quais os ramanos
navegavam seu extraordinário mar.
Norton foi o primeiro a pisar em terra firme; olhou para seus três
companheiros e disse:
– Esperem aqui no barco até eu chegar ao topo do muro.
Quando eu acenar, Pieter e Boris irão ao meu encontro. Você fica no
leme, Ruby, para que possamos sair daqui num instante. Se alguma
coisa acontecer comigo, informem Karl e sigam as instruções dele.
Usem seu discernimento, mas nada de heroísmo. Entendido?
– Sim, capitão. Boa sorte!
O comandante Norton não acreditava realmente na sorte; nunca
entrava numa situação sem antes analisar todos os fatores
envolvidos e garantir um modo de bater em retirada. Mas, outra vez,
Rama o obrigava a quebrar algumas de suas regras mais sagradas.
Quase todos os fatores ali eram desconhecidos – tão
desconhecidos como o Pacífico ou a Grande Barreira de Corais
tinham sido para seu herói, há três séculos e meio... Sim, um pouco
de sorte não lhe faria mal.
A escadaria era virtualmente uma cópia daquela que haviam
descido no outro lado do Mar; sem dúvida, seus amigos lá estavam
olhando diretamente para ele através de seus telescópios. E
“diretamente” era a palavra correta; naquela direção, paralela ao
Eixo de Rama, o Mar era de fato completamente plano. Poderia
muito bem ser o único corpo de água do universo em que isso era
verdade, pois em todos os outros mundos, cada mar ou lago tinha
de seguir a superfície de uma esfera, com igual curvatura em todas
as direções.
– Quase no topo – comunicou, falando só para constar e para
que seu atento subcomandante ouvisse, a cinco quilômetros de
distância. – Ainda completo silêncio... Radiação normal. Estou
segurando o medidor acima da minha cabeça, caso esse muro
esteja atuando como um escudo para alguma coisa. E se houver
seres hostis do outro lado, vão atirar no medidor primeiro.
Ele estava brincando, naturalmente. E, no entanto, para que
correr riscos, se era tão fácil evitá-los?
Quando subiu o último degrau, descobriu que o topo plano do
dique tinha dez metros de espessura; no lado interno, uma série de
rampas e escadas alternadas conduziam ao nível principal da
cidade, vinte metros abaixo. De fato, ele estava no topo de um muro
alto que circundava Nova York completamente e, portanto, tinha
uma vista panorâmica do lugar.
Era uma vista quase estonteante em sua complexidade, e a
primeira coisa que ele fez foi percorrê-la lentamente com sua
câmera. Então acenou para os companheiros e falou pelo rádio para
o outro lado do Mar:
– Nenhum sinal de atividade... Tudo calmo. Subam. Vamos
começar a explorar.
23
NOVA YORK, RAMA

Não era uma cidade; era uma máquina. Norton tinha chegado a
essa conclusão em dez minutos e não viu motivo algum para
modificá-la depois de terem realizado uma travessia completa da
ilha. Uma cidade – qualquer que seja a natureza de seus ocupantes
– certamente teria de fornecer algum tipo de acomodação: não
havia nada do tipo ali, a não ser que estivesse no subsolo. E, se era
este o caso, onde estavam as entradas, as escadarias, os
elevadores? Ele não encontrara nada que pudesse ser classificado
como uma porta...
A analogia mais próxima que tinha visto para esse lugar na Terra
era uma gigantesca usina de processamento químico. Entretanto,
não havia nenhuma pilha de matéria-prima, ou alguma indicação de
um sistema de transporte para carregá-la. Tampouco conseguia
imaginar onde surgiria o produto final – muito menos que tipo de
produto poderia ser. Tudo isso era muito confuso e frustrante.
– Alguém quer dar um palpite? – disse, por fim, a todos os que
estivessem ouvindo. – Se isso é uma fábrica, o que ela produz? E
onde obtém a matéria-prima?
– Tenho uma sugestão, capitão – disse Karl Mercer, lá da outra
margem. – Suponhamos que a fábrica utilize o Mar. Segundo a
doutora, ele contém praticamente tudo o que se possa imaginar.
Era uma resposta plausível, e Norton já a tinha considerado.
Poderia haver canos subterrâneos conduzindo ao Mar – na verdade,
deveria mesmo haver, pois qualquer usina química concebível
exigiria grande quantidade de água. Mas ele desconfiava de
respostas plausíveis; com frequência eram equivocadas.
– É uma boa ideia, Karl; mas o que Nova York faz com a água?
Por longos instantes, ninguém da nave, do Eixo ou da planície
norte respondeu. Então, uma voz inesperada falou.
– É fácil, capitão. Mas todo mundo vai rir de mim.
– Não, não vamos, Ravi. Continue.
O sargento Ravi McAndrews, comissário-chefe e adestrador de
simps, era a última pessoa na nave que normalmente se envolveria
numa discussão técnica. Seu qi era modesto e seu conhecimento
científico era mínimo, mas não era nenhum bobo e tinha uma
perspicácia natural que todos respeitavam.
– Bem, é uma fábrica mesmo, capitão, e talvez o Mar forneça a
matéria-prima... Afinal, foi como tudo aconteceu na Terra, mas de
um jeito diferente... Acredito que Nova York seja uma fábrica de...
ramanos.
Alguém, em algum lugar, deu uma risadinha, mas calou-se
rapidamente e não se identificou.
– Sabe de uma coisa, Ravi? – disse, por fim, o comandante. –
Essa teoria é maluca o suficiente para ser verdadeira. Mas não
tenho certeza se quero comprová-la... Pelo menos até voltar ao
continente.
Aquela Nova York celeste tinha quase o mesmo tamanho da ilha
de Manhattan, mas a geometria era totalmente diferente. Havia
poucas ruas retas; era um labirinto de arcos curtos concêntricos,
ligados entre si por raios. Felizmente, era impossível se perder em
Rama; bastava olhar o céu para estabelecer o eixo norte-sul
daquele mundo.
Pararam em quase todas as intersecções para tirar uma
fotografia panorâmica. Quando todas essas centenas de imagens
fossem colocadas em ordem, seria uma tarefa enfadonha, mas
muito simples, construir uma maquete da cidade. Norton suspeitava
que o quebra-cabeça resultante ocuparia os cientistas por gerações.
Era ainda mais difícil acostumar-se ao silêncio ali do que tinha
sido na planície de Rama. Uma cidade-máquina deveria emitir
algum som; no entanto, não havia sequer o ruído elétrico mais débil,
ou o sussurro mais leve de movimento mecânico. Por várias vezes,
o comandante Norton pôs o ouvido no solo, ou na parede de um
prédio, e escutou com atenção. Não ouviu nada, exceto o pulsar do
próprio sangue.
As máquinas estavam dormindo: sequer estavam em marcha
lenta. Será que um dia despertariam novamente, e com que
propósito? Tudo estava em perfeita ordem, como sempre. Era fácil
acreditar que o fechamento de um único circuito em algum
computador paciente e oculto traria todo esse labirinto de volta à
vida.
Quando finalmente chegaram ao outro lado da cidade, subiram
até o topo do dique circundante e examinaram o braço sul do Mar.
Por longo tempo, Norton fitou o penhasco de quinhentos metros de
altura que os separava de quase a metade de Rama – e, a julgar
pelas análises telescópicas, a metade mais complexa e variada.
Daquele ângulo, o penhasco parecia de uma cor preta agourenta e
sombria, e era fácil encará-lo como a muralha de uma prisão,
contornando um continente inteiro. Em nenhum ponto, ao longo de
seu circuito, havia uma escada ou qualquer outro meio de acesso.
Como será que os ramanos chegavam à sua terra meridional a
partir de Nova York?, pensou Norton. Provavelmente havia um
sistema de transporte subterrâneo passando por baixo do Mar, mas
devia haver aeronaves também; havia muitas áreas abertas ali na
cidade que poderiam ser usadas como pistas de pouso. A
descoberta de algum veículo ramano seria um feito importante –
especialmente se aprendessem a operá-lo. (Mas será que alguma
fonte de energia concebível ainda estaria funcionando, depois de
centenas de milhares de anos?)
Havia inúmeras estruturas que tinham a aparência funcional de
hangares ou garagens, mas eram todas lisas e sem janelas, como
se tivessem sido impermeabilizadas. Cedo ou tarde, Norton dissera
sombriamente a si mesmo, seremos forçados a utilizar explosivos e
raios laser. Estava determinado a adiar essa decisão para o último
instante possível.
A relutância em usar força bruta devia-se, em parte, ao orgulho e,
em parte, ao medo. Não queria se comportar com um bárbaro
tecnológico, destruindo o que não conseguia entender. Afinal, ele
era um visitante não convidado naquele mundo e deveria se
comportar como tal.
Quanto ao medo – talvez a palavra fosse muito forte; apreensão
seria mais apropriado. Os ramanos pareciam ter planejado tudo;
Norton não estava nada ansioso para descobrir quais precauções
tinham tomado para proteger sua propriedade. Voltaria ao
continente de mãos vazias.
24
LIBÉLULA

O tenente James Pak era o oficial mais jovem a bordo da


Endeavour, e essa era apenas sua quarta missão em espaço
profundo. Era ambicioso, e estava na lista de promoções; mas
também tinha cometido uma infração grave. Não surpreendia,
portanto, que tivesse levado tanto tempo para decidir.
Seria um risco; se perdesse, ficaria em sérios apuros; não estaria
arriscando a própria carreira; talvez estivesse arriscando o próprio
pescoço. Mas, se fosse bem-sucedido, se tornaria um herói. O que
finalmente o convenceu não foi nenhum desses argumentos; foi a
certeza de que, se não fizesse absolutamente nada, passaria o
resto da vida se lamentando por ter perdido a oportunidade. Não
obstante, ainda hesitava, e solicitou uma reunião particular com o
capitão.
O que será desta vez?, perguntou-se Norton, enquanto analisava
a expressão de incerteza no rosto do jovem oficial. Lembrou-se da
conversa delicada com Boris Rodrigo; não, não seria nada como
aquilo. Jimmy certamente não era do tipo religioso; os únicos
interesses que havia demonstrado fora do trabalho eram esporte e
sexo, de preferência uma combinação dos dois.
Dificilmente seria o primeiro, e Norton esperava que não fosse o
segundo. Já enfrentara a maioria dos problemas que um oficial
comandante poderia encontrar nesse departamento – exceto o
clássico problema de um nascimento imprevisto durante uma
missão. Embora essa situação fosse objeto de inúmeras piadas,
nunca acontecera até agora; mas tal flagrante incompetência era
provavelmente apenas uma questão de tempo.
– Bem, Jimmy, o que é?
– Tenho uma ideia, comandante. Sei como chegar ao continente
sul... Até mesmo ao Polo Sul.
– Estou ouvindo. Qual a sua proposta?
– Hã... Voando até lá.
– Jimmy, já tive pelo menos cinco propostas nesse sentido...
Mais, se você contar as sugestões malucas vindas da Terra. Já
examinamos a possibilidade de adaptar os propulsores dos trajes
espaciais, mas a resistência do ar os tornaria irremediavelmente
ineficientes. O combustível acabaria antes dos dez quilômetros.
– Eu sei disso. Mas tenho a solução.
A atitude de tenente Pak era uma curiosa mistura de total
confiança e mal disfarçado nervosismo. Norton ficou muito intrigado;
o que preocupava o garoto? Com certeza ele conhecia seu
comandante bem o suficiente para ter certeza de que nenhuma
proposta sensata seria ridicularizada.
– Bem, prossiga. Se funcionar, vou providenciar para que sua
promoção seja retroativa.
A pequena semipromessa, semibrincadeira não caiu tão bem
quanto ele esperava. Jimmy deu um sorrisinho amarelo, abriu a
boca várias vezes para falar e então optou por uma abordagem
indireta do assunto.
– Como o senhor sabe, comandante, participei da Olimpíada
Lunar no ano passado.
– Claro. Uma pena você não ter ganhado.
– O problema foi o equipamento; eu sei o que deu errado. Tenho
amigos em Marte que estão trabalhando no aparelho, em segredo.
Queremos fazer uma surpresa para todo mundo.
– Marte? Não sabia...
– Poucas pessoas sabem... Esse esporte ainda é novo lá; só foi
experimentado no Estádio Xante. Mas a melhor aerodinâmica do
Sistema Solar está em Marte; quem consegue voar naquela
atmosfera consegue voar em qualquer lugar. Bem, minha ideia foi
que, se os marcianos, com todo o seu know-how, pudessem
construir uma boa máquina, ela se sairia muito bem na Lua, onde a
gravidade tem a metade da força.
– Parece plausível. Mas como isso pode nos ajudar?
Norton começava a adivinhar, mas queria dar bastante corda a
Jimmy.
– Bem, formei uma sociedade com alguns amigos em Lowell City.
Eles construíram uma máquina voadora totalmente acrobática, com
alguns aperfeiçoamentos que ninguém viu até hoje. Na gravidade
lunar, no Estádio Olímpico, deve causar sensação.
– E lhe render uma medalha de ouro.
– Espero que sim.
– Deixe-me ver se estou acompanhando corretamente sua linha
de raciocínio. Uma sky-bike que poderia entrar na Olimpíada Lunar,
a um sexto de gravidade, seria até mais sensacional em Rama, sem
gravidade nenhuma. Você poderia voar com ela ao longo do eixo, do
Polo Norte ao Polo Sul, e depois voltar.
– Sim... Facilmente. A viagem de ida duraria três horas, sem
paradas. Mas é claro que o ciclista poderia descansar onde
quisesse, desde que ficasse perto do eixo.
– É uma ideia brilhante, e eu lhe dou os parabéns. É uma pena
que sky-bikes não façam parte do equipamento regular de uma nave
exploratória.
Jimmy parecia ter dificuldade em encontrar as palavras. Abriu a
boca várias vezes, mas nada acontecia.
– Tudo bem, Jimmy. Só por uma questão de curiosidade mórbida,
e estritamente entre nós, como você conseguiu trazer essa coisa a
bordo?
– Hã... “Material Recreativo”.
– Bem, você não estava mentindo. E o peso?
– O aparelho pesa apenas vinte quilos.
– Apenas? Ainda assim, não é tão grave quanto eu pensava. Na
verdade, estou espantado em saber que se pode construir uma
bicicleta com esse peso.
– Algumas pesavam só quinze quilos, mas eram frágeis demais e
geralmente dobravam ao fazer uma curva. Não há perigo de
acontecer isso com a Libélula. Como eu disse, ela é totalmente
acrobática.
– Libélula... Belo nome. Pois bem, agora me diga como planeja
usá-la; depois eu decido se vai haver uma promoção ou uma corte
marcial. Ou ambas.
25
VOO INAUGURAL

Libélula era certamente um belo nome. As asas longas e afiladas


eram quase invisíveis, exceto quando a luz batia nelas em certos
ângulos e se quebrava nas cores do arco-íris. Era como se uma
bolha de sabão embrulhasse o delicado bordado das asas; o
envelope que envolvia a pequena máquina voadora era uma
película orgânica de apenas algumas moléculas de espessura, mas
forte o bastante para controlar e direcionar os movimentos de um
fluxo de ar de 50 km/h.
O piloto – que era também o gerador e o sistema de orientação –
sentava-se num pequeno assento no centro de gravidade, numa
posição semirreclinada, para reduzir a resistência do ar. O controle
era feito por uma única alavanca, que se movia para a frente e para
trás, direita e esquerda; o único “instrumento” era um pedaço de fita
com lastro, amarrado à ponta dianteira, para mostrar a direção do
vento relativo.
Depois que a máquina voadora fora montada no Eixo, Jimmy Pak
não permitia que ninguém a tocasse. O manuseio inábil poderia
romper um dos membros estruturais, feitos de uma única fibra, e
aquelas asas brilhantes eram uma atração quase irresistível para
dedos curiosos. Era difícil acreditar que realmente havia alguma
coisa ali...
Ao ver Jimmy embarcar na engenhoca, o comandante começou
a pensar duas vezes. Se um daqueles suportes finos como arame
se rompesse quando a Libélula estivesse do outro lado do Mar
Cilíndrico, Jimmy não teria como voltar – mesmo se conseguisse
pousar em segurança. Estavam também violando uma das regras
mais sacrossantas da exploração espacial; um homem estava indo
sozinho a um território desconhecido, além de qualquer
possibilidade de socorro. O único consolo era que ele estaria o
tempo todo em plena vista e comunicação; saberiam exatamente o
que tinha lhe acontecido, caso houvesse algum desastre.
No entanto, não se podia perder uma oportunidade tão boa como
aquela; para quem acredita no destino, seria desafiar os próprios
deuses negligenciar a única chance que jamais teriam de alcançar o
outro lado de Rama e ver de perto os mistérios do Polo Sul. Jimmy
sabia dos riscos envolvidos, muito melhor do que qualquer outro
membro da tripulação. Aquele era exatamente o tipo de risco que
era preciso assumir; se fracassasse, seria parte do jogo. Não se
pode ganhar todas...
– Ouça com atenção, Jimmy – disse a comandante médica Ernst.
– É muito importante não se esforçar demais. Lembre-se, o nível de
oxigênio aqui ainda é muito baixo. Se ficar sem fôlego a qualquer
momento, pare e respire fundo por trinta segundos, mas não mais
que isso.
Jimmy assentiu com a cabeça, distraidamente, enquanto testava
os controles. Todo o mecanismo de elevação do leme, que formava
uma só unidade sobre um suporte de cinco metros atrás da nacele
rudimentar, começou a se torcer; depois, os airelons em forma de
flape, localizados no meio das asas, moveram-se alternadamente
para cima e para baixo.
– Quer que eu dê impulso à hélice? – perguntou Joe Calvert,
incapaz de suprimir lembranças de filmes de duzentos anos. –
Ignição! Contato! – Provavelmente ninguém, exceto Jimmy, sabia do
que ele estava falando, mas ajudou a aliviar a tensão.
Muito lentamente, Jimmy começou a mover os pedais. A larga e
frágil pá da hélice – assim como a asa, um delicado esqueleto
coberto por uma película brilhante – começou a girar. Depois de
completar algumas revoluções, desapareceu completamente; e a
Libélula partiu.
Moveu-se em linha reta a partir do Eixo Central, flutuando
vagarosamente ao longo do eixo de Rama. Após voar por duzentos
metros, Jimmy parou de pedalar; era estranho ver um veículo
obviamente aerodinâmico pairar imóvel em pleno ar. Devia ser a
primeira vez que tal coisa acontecia, exceto, talvez, em escala muito
limitada, dentro de alguma grande estação espacial.
– Como está o manejo? – Norton gritou.
– Ela responde bem; pouca estabilidade. Mas sei qual é o
problema... Nenhuma gravidade. Seria melhor se eu estivesse um
quilômetro abaixo.
– Mas espere um pouco... Não é perigoso?
Ao perder altitude, Jimmy estaria sacrificando sua principal
vantagem. Enquanto permanecesse exatamente no eixo, ele – e a
Libélula – não teria peso algum. Poderia pairar sem esforço, ou
mesmo dormir, se quisesse. Mas, assim que se afastasse da linha
central em torno da qual Rama girava, o pseudopeso da força
centrífuga iria reaparecer.
Dessa forma, a menos que pudesse se manter naquela posição,
ele continuaria a perder altitude – e, ao mesmo tempo, a ganhar
peso. Seria um processo de aceleração, que poderia acabar em
tragédia. A gravidade lá embaixo, na planície de Rama, era duas
vezes maior do que aquela para a qual a Libélula tinha sido
projetada para operar. Jimmy talvez fosse capaz de pousar em
segurança; com certeza, não poderia decolar novamente.
Mas ele já tinha considerado tudo isso, e respondeu com
bastante confiança:
– Posso lidar com um décimo de gravidade sem problema
nenhum. E o manejo será mais fácil no ar mais denso.
Numa espiral lenta e calma, a Libélula flanou no céu, seguindo
mais ou menos a linha da escadaria Alfa, descendo em direção à
planície. De alguns ângulos, a pequena sky-bike era quase invisível;
Jimmy parecia estar sentado em pleno ar, pedalando
energicamente. Às vezes, movia-se em ímpetos de 30 km/h; então
diminuía a velocidade, sentindo os controles, antes de acelerar
novamente. E sempre tomava muito cuidado para se manter a uma
distância segura da extremidade curva de Rama.
Logo se tornou evidente que o manejo da Libélula era muito
melhor em baixas altitudes; ela não virou mais em qualquer ângulo,
mas estabilizou-se, de modo que suas asas ficaram paralelas à
planície sete quilômetros abaixo. Jimmy completou várias órbitas
amplas, e depois começou a subir de novo. Finalmente, parou
alguns metros acima dos colegas que o aguardavam e percebeu,
um pouco tarde, que não sabia ao certo como pousar aquela
máquina diáfana.
– Quer que lhe atiremos uma corda? – perguntou Norton, meio
sério, meio brincando.
– Não, capitão... Tenho que resolver isso sozinho. Não vou ter
ninguém para me ajudar na outra extremidade.
Ficou pensando por alguns momentos e então, lenta e
cuidadosamente, começou a mover a Libélula em direção ao Eixo,
com breves impulsos de energia. A máquina rapidamente perdia
força entre cada impulso, à medida que a resistência do ar a fazia
parar de novo. Quando ele estava a apenas cinco metros de
distância, e a sky-bike mal se movia, Jimmy saltou. Deixou-se flutuar
em direção à corda de segurança mais próxima na teia do Eixo,
segurou-a e virou-se a tempo de agarrar a bicicleta com as mãos. A
manobra foi executada com tanta perfeição que provocou uma salva
de palmas.
– E a próxima apresentação... – começou Joe Calvert.
Jimmy apressou-se a recusar os créditos.
– Isso foi malfeito – ele disse. – Mas agora sei como fazer. Vou
levar uma bomba adesiva na ponta de uma linha de vinte metros;
assim, vou conseguir me puxar para onde eu quiser...
– Me dê o seu pulso, Jimmy – ordenou a médica – e sopre nesse
saco. Vou querer uma amostra de sangue também. Teve alguma
dificuldade para respirar?
– Só nesta altitude. Ei, para que você quer o sangue?
– Nível de glicose; aí vou poder dizer que quantidade de energia
você usou. Precisamos ter certeza de que você vai carregar
combustível suficiente para a missão. Aliás, qual é o recorde de
resistência em sky-biking?
– É de 2h25min3,6s. Na Lua, claro... Um circuito de dois
quilômetros no Estádio Olímpico.
– E você acha que consegue resistir por seis horas?
– Facilmente, já que vou poder parar e descansar a qualquer
momento. O sky-biking na Lua é pelo menos duas vezes mais difícil
do que aqui.
– Muito bem, Jimmy. Volte para o laboratório. Vou dizer sim ou
não assim que eu analisar essas amostras. Não quero criar falsas
esperanças, mas me parece que você vai conseguir.
Um largo sorriso de satisfação espalhou-se pelo semblante
branco-marfim de Jimmy Pak. Enquanto acompanhava a
comandante médica Ernst à câmara pressurizada, virou-se e gritou
para os companheiros:
– Não toquem nela, por favor! Não quero ninguém furando as
asas com a mão.
– Eu cuido disso, Jimmy – prometeu o comandante. – Todos
estão proibidos de se aproximar da Libélula... Inclusive eu.
26
A VOZ DE RAMA

A real magnitude da aventura só ficou clara a Jimmy Pak quando ele


chegou à costa do Mar Cilíndrico. Até então, sobrevoara território
conhecido; salvo uma catastrófica falha estrutural, sempre poderia
pousar e voltar a pé à base, em algumas horas.
Essa opção já não existia. Se descesse no mar, provavelmente
se afogaria, de modo bastante desagradável, nas águas venenosas.
E, mesmo que aterrissasse em segurança no continente meridional,
talvez fosse impossível resgatá-lo antes que a Endeavour tivesse de
abandonar a órbita de Rama em direção ao Sol.
Também tinha plena consciência de que os desastres previsíveis
eram os mais improváveis de acontecer. A região totalmente
desconhecida sobre a qual voava poderia produzir inúmeras
surpresas; e se lá houvesse criaturas voadoras que se opusessem à
sua intrusão? Detestaria envolver-se numa briga com qualquer coisa
maior que um pombo. Algumas bicadas bem colocadas poderiam
destruir a aerodinâmica da Libélula.
No entanto, se não houvesse nenhum risco, não haveria glória –
nem sensação de aventura. Milhões de homens alegremente
trocariam de lugar com ele agora. Ele não só ia aonde ninguém
jamais tinha ido, mas aonde ninguém jamais iria novamente. Em
toda a História, ele seria o único ser humano a visitar as regiões
meridionais de Rama. Sempre que sentia o medo se apoderando de
sua mente, se lembrava disso.
Já se acostumara a ficar sentado no ar, com o mundo à sua
volta. Por ter descido a dois quilômetros abaixo do eixo central,
adquirira um senso definido de “acima” e “abaixo”. O chão estava a
apenas seis quilômetros abaixo, mas o arco do céu estava a dez
quilômetros acima de sua cabeça. A “cidade” de Londres estava
pendurada lá em cima, próxima ao zênite; Nova York, por sua vez,
estava do lado certo, bem à frente.
– Libélula – disse o Controle Central –, você está baixando
demais. Dois mil e duzentos metros do eixo.
– Obrigado – respondeu. – Vou ganhar altitude. Me avisem
quando eu voltar a vinte.
Tinha de tomar cuidado com isso. Havia uma tendência natural
em perder altitude – e ele não tinha nenhum instrumento para lhe
dizer exatamente onde estava. Se se afastasse demais da
gravidade zero do eixo, talvez não conseguisse mais subir.
Felizmente, havia ampla margem de erro, e sempre havia alguém
observando seus movimentos através de um telescópio no Eixo.
Voava agora em alto-mar, pedalando a uma velocidade constante
de 20 km/h. Em cinco minutos, estaria acima de Nova York; a ilha já
se parecia bastante com um navio, navegando eternamente pelo
Mar Cilíndrico.
Quando alcançou Nova York, sobrevoou-a em círculo, parando
várias vezes para que a pequena câmera de tv enviasse imagens
nítidas, sem vibrações. O panorama de prédios, torres, fábricas,
usinas de energia – ou o que quer que fossem – era fascinante,
mas, essencialmente, sem sentido. Não importa por quanto tempo
olhasse sua complexidade, era improvável que descobrisse alguma
coisa. A câmera gravaria muito mais detalhes do que ele seria
capaz de assimilar; e algum dia – talvez dali a anos –, algum
estudioso pudesse encontrar neles a chave para os segredos de
Rama.
Depois de deixar Nova York, atravessou o outro lado do Mar em
apenas quinze minutos. Embora não percebesse, tinha voado rápido
acima da água, mas, assim que chegou à costa sul,
inconscientemente relaxou, e sua velocidade baixou vários
quilômetros por hora. Podia estar sobrevoando território estranho –
mas pelo menos era terra firme.
Logo após atravessar o grande penhasco que formava o limite
meridional do Mar, fez uma panorâmica completa do mundo ao
redor com a câmera de tv.
– Lindo! – disse o Controle Central. – Isso vai deixar os
cartógrafos felizes. Como está se sentindo?
– Tudo bem... Só um pouco cansado, mas não mais do que eu
esperava. A que distância vocês calculam que estou do Polo?
– Quinze quilômetros e seiscentos metros.
– Me avisem quando eu estiver a dez; aí vou descansar. E não
me deixem perder altura de novo. Vou começar a subir quando
faltarem cinco quilômetros.
Vinte minutos mais tarde, o mundo pareceu fechar-se à sua volta;
ele chegara ao fim do cilindro e estava entrando na cúpula
meridional.
Ele a estudara por horas através dos telescópios, na outra
extremidade de Rama, e tinha decorado sua geografia. Mesmo
assim, isso não o preparara para o espetáculo à sua volta.
Em quase todos os aspectos, as extremidades norte e sul de
Rama diferiam completamente. Ali não havia nenhuma tríade de
escadarias, nenhuma série de plataformas estreitas e concêntricas,
nenhuma enorme curva do Eixo até a planície. Em vez disso, havia
um enorme espigão central, de mais de cinco quilômetros de
comprimento, estendendo-se ao longo do eixo. Em volta dele, havia
outros seis menores, da metade do tamanho, igualmente espaçados
entre si; o conjunto todo parecia um grupo de estalactites
notavelmente simétricas, pendendo do teto de uma caverna. Ou,
invertendo o ponto de vista, pareciam os pináculos de algum templo
cambojano, instalados no fundo de uma cratera...
Ligando essas torres esguias e cônicas, descendo em curva até
fundir-se com a planície cilíndrica, havia pilares flutuantes que
pareciam maciços o bastante para suportar o peso de um mundo. E
esta, talvez, fosse sua função, se de fato fossem os elementos de
exóticas unidades de propulsão, como alguns tinham sugerido.
O tenente Pak cautelosamente aproximou-se do espigão central,
cessou de pedalar enquanto ainda estava a cem metros de distância
e deixou a Libélula flutuar até parar. Verificou o nível de radiação e
encontrou apenas a baixíssima radiação de fundo de Rama. Poderia
haver forças atuando ali que nenhum instrumento humano seria
capaz de detectar, mas havia outro risco inevitável.
– O que você está vendo? – perguntou o Controle Central,
ansiosamente.
– Apenas o Grande Chifre... é absolutamente liso... sem
marcas... e a ponta é tão afiada que parece uma agulha. Dá até
medo de chegar perto.
Não estava só brincando. Parecia incrível que um objeto tão
grande se afilasse numa ponta tão geometricamente perfeita. Jimmy
tinha visto coleções de insetos empalados com alfinetes e não
queria que sua Libélula tivesse um fim semelhante.
Pedalou lentamente até o espigão alargar-se, medindo vários
metros de diâmetro, e então parou novamente. Abrindo um pequeno
recipiente, com muita cautela extraiu uma esfera do tamanho de
uma bola de beisebol e jogou-a na direção do espigão. À medida
que flutuava, a esfera soltava um fio quase invisível.
A bomba adesiva bateu na superfície curva e lisa – e não
ricocheteou. Jimmy testou o fio, puxando-o. Então, deu um puxão
mais forte. Como um pescador que puxa a sua presa, lentamente
enrolou o fio, aproximando a Libélula da ponta do espigão,
apropriadamente batizado de “Grande Chifre”, até conseguir
estender a mão e estabelecer contato com ele.
– Suponho que se poderia chamar isso de um tipo de touchdown
– comunicou ao Controle Central. – Parece vidro... quase sem atrito
e ligeiramente morno. A bomba adesiva funcionou bem. Agora estou
testando o microfone... Vamos ver se a ventosa aguenta tão bem...
Conectando as sondas... Estão ouvindo alguma coisa?
Houve um longo silêncio; então o Controle disse, aborrecido:
– Absolutamente nada, só os ruídos térmicos normais. Você
poderia bater nele com um pedaço de metal? Pelo menos
saberemos se é oco.
– OK. E agora?
– Gostaríamos que você voasse ao longo do espigão,
esquadrinhando cada meio quilômetro, procurando qualquer coisa
incomum. Depois, se tiver certeza de que não há perigo, você
poderia ir até um dos Pequenos Chifres. Mas só se você tiver
certeza de que pode voltar à gravidade zero sem problema nenhum.
– Três quilômetros de distância do eixo... fica um pouco acima da
gravidade lunar. A Libélula foi projetada para isso. Só terei que fazer
mais esforço.
– Jimmy, aqui é o capitão. Reconsiderei isso. A julgar pelas suas
fotos, os espigões menores são exatamente iguais ao maior.
Obtenha as melhores imagens que puder com o zoom. Não quero
que você saia da região de baixa gravidade... A menos que veja
algo que pareça muito importante. Então conversaremos.
– OK, capitão – disse Jimmy, e talvez houvesse um leve traço de
alívio em sua voz. – Vou ficar perto do Grande Chifre. Lá vamos nós
de novo.
Sentiu-se como se estivesse em queda livre em direção a um
estreito vale entre um conjunto de montanhas incrivelmente altas e
esguias. O Grande Chifre agora se elevava a um quilômetro acima
de Jimmy, e os seis espigões dos Pequenos Chifres assomavam à
sua volta. O complexo de pilares e arcos flutuantes que
circundavam as encostas inferiores aproximava-se rapidamente;
imaginou se conseguiria pousar em segurança em algum ponto
daquela arquitetura ciclópica. Não poderia mais pousar no próprio
Grande Chifre, pois a gravidade em suas amplas encostas era
agora forte demais para ser neutralizada com a força débil da
bomba adesiva.
Ao se aproximar do Polo Sul, começou a se sentir cada vez mais
como um pardal voando sob o teto abobadado de alguma grande
catedral – embora nenhuma catedral já construída fosse sequer um
centésimo do tamanho daquele lugar. Imaginou se aquilo era de fato
um templo religioso, ou algo remotamente análogo, mas
rapidamente descartou a ideia. Em nenhuma parte de Rama havia
qualquer sinal de expressão artística; tudo era puramente funcional.
Talvez os ramanos julgassem que já conheciam os últimos segredos
do universo e não eram mais assombrados pelos desejos e
aspirações que moviam a humanidade.
Era um pensamento assustador, completamente estranho à
filosofia habitual, não muito profunda, de Jimmy; sentiu uma
necessidade urgente de retomar o contato e comunicou sua
situação a seus amigos distantes.
– Repita, Libélula – respondeu o Controle Central. – Não
conseguimos entendê-lo... Sua transmissão está distorcida.
– Repetindo: estou perto da base do Pequeno Chifre número
Seis e estou usando a bomba adesiva para me puxar até ele.
– Entendido só parcialmente. Está me ouvindo?
– Sim, perfeitamente. Repito, perfeitamente.
– Por favor, conte até dez.
– Um, dois, três, quatro...
– Ouvi só uma parte. Sinalize por quinze segundos e depois volte
à comunicação por voz.
– Aí vai.
Jimmy ligou o sinalizador de baixa potência, que poderia localizá-
lo em qualquer ponto de Rama, e contou os segundos. Quando
retornou à voz, perguntou, em tom de queixa:
– O que está acontecendo? Está me ouvindo agora?
Presumivelmente, o Controle Central não o ouvia, pois o
controlador pediu quinze segundos de televisão. Só depois de
Jimmy repetir a pergunta duas vezes é que a mensagem foi
recebida.
– Ainda bem que você consegue nos ouvir perfeitamente, Jimmy.
Mas está acontecendo uma coisa muito esquisita aí do seu lado.
Ouça.
No rádio, ele ouviu o assobio familiar de seu próprio sinalizador,
transmitido de volta para ele. Por um instante, o som era
perfeitamente normal; então, uma estranha distorção infiltrou-se
nele. O assobio de mil ciclos passou a ser modulado por um pulso
muito grave, tão baixo que estava no limiar de audição; era um tipo
de tremulação em basso profundo, em que se ouvia cada vibração
separadamente. E a própria modulação, por sua vez, era modulada;
subia e descia a cada cinco segundos, aproximadamente.
Nem por um instante ocorreu a Jimmy que o problema estava em
seu transmissor de rádio. Aquilo vinha de fora; mas o que era, e o
que significava, estava além de sua imaginação.
O Controle Central não sabia muito mais, mas pelo menos tinha
uma teoria.
– Achamos que você deve estar em algum tipo de campo muito
intenso, provavelmente magnético, com uma frequência de
aproximadamente dez ciclos. Pode ser forte o suficiente para se
tornar perigoso. Sugerimos que saia daí agora mesmo. Pode ser
apenas local. Ligue o sinalizador de novo, e vamos retransmitir os
sinais. Assim você saberá quando estiver se livrando da
interferência.
Às pressas, Jimmy soltou a bomba adesiva e abandonou a
tentativa de pousar. Descreveu um amplo círculo com a Libélula,
enquanto prestava atenção no som que ondulava em seu fone de
ouvido. Depois de voar apenas alguns metros, percebeu que a
intensidade da interferência caía rapidamente; confirmando a
suposição do Controle Central, ela era extremamente localizada.
Jimmy deteve-se por um instante no último ponto onde poderia
ouvi-la, como um leve pulsar nas profundezas de seu cérebro – do
mesmo modo, talvez, que um selvagem primitivo teria ouvido, em
apavorada ignorância, o zunido baixo de um gigantesco
transformador de energia. E até o selvagem talvez adivinhasse que
aquele ruído era apenas o vazamento de energias colossais,
plenamente controladas, mas aguardando sua hora...
O que quer que esse som significasse, Jimmy estava feliz por ter
se livrado dele. Ali não era lugar, em meio à assombrosa arquitetura
do Polo Sul, para um homem sozinho ouvir a voz de Rama.
27
VENTO ELÉTRICO

Quando Jimmy deu a volta para retornar, a extremidade norte de


Rama parecia incrivelmente distante. Mal se viam as três escadarias
gigantescas que formavam um indistinto Y gravado na cúpula
daquele mundo fechado. A faixa do Mar Cilíndrico era uma barreira
larga e ameaçadora esperando para engoli-lo se, como Ícaro, suas
frágeis asas falhassem.
Mas tinha chegado até ali sem problemas e, embora estivesse
ligeiramente cansado, sentia que agora não havia nada com que se
preocupar. Nem tocara na comida e na água e estivera excitado
demais para descansar. No retorno, estaria mais calmo e relaxado.
Também o animava a ideia de que a viagem de volta poderia ser
vinte quilômetros mais curta do que a de ida, pois, assim que
passasse pelo Mar, poderia realizar um pouso de emergência em
qualquer lugar no continente norte. Seria um incômodo, pois teria de
fazer uma longa caminhada – e, o que é muito pior, teria de
abandonar a Libélula –, mas isso lhe dava uma margem de
segurança bastante confortável.
Agora estava ganhando altura, subindo em direção ao espigão
central; a afilada agulha do Grande Chifre ainda se estendia por um
quilômetro à sua frente, e às vezes ele tinha a impressão de que
este era o eixo em torno do qual girava aquele mundo inteiro.
Tinha quase alcançado a ponta do Grande Chifre quando tomou
consciência de uma curiosa sensação; um pressentimento, na
verdade um desconforto, tanto físico quanto psicológico, apoderou-
se dele. Subitamente se lembrou – e isso não ajudou em
absolutamente nada – de uma frase com que tinha deparado certa
vez: “Alguém está pisando na sua sepultura”.
A princípio, deu de ombros e continuou a pedalar com firmeza e
regularidade. Certamente não tinha a intenção de comunicar um
mal-estar tão tênue e vago ao Controle Central, mas, à medida que
a sensação piorava, ficou tentado a fazê-lo. Não poderia ser
psicológico; se fosse, sua mente era muito mais poderosa do que
imaginava. Pois ele sentia, literalmente, sua pele começar a se
arrepiar...
Já seriamente alarmado, parou no ar e passou a considerar a
situação. O que a tornava mais estranha era o fato de aquele
pesado sentimento depressivo não ser completamente novo; ele já o
sentira antes, mas não se lembrava de onde.
Olhou em volta. Nada tinha mudado. A enorme ponta do Grande
Chifre estava algumas centenas de metros acima, e o outro lado de
Rama se estendia pelo céu além. Oito quilômetros abaixo,
desdobrava-se a complicada colcha de retalhos do continente
meridional, cheio de maravilhas que nenhum outro homem jamais
veria. Em toda aquela paisagem completamente alienígena, mas
agora familiar, ele não conseguia encontrar nenhuma causa para o
seu desconforto.
Algo lhe fez cócegas no dorso da mão; por um instante, achou
que um inseto pousara ali e coçou sem olhar. Mal acabara de
completar o rápido movimento quando se deu conta do que estava
fazendo, e parou subitamente, sentindo-se ligeiramente ridículo. É
claro que ninguém jamais tinha visto um inseto em Rama...
Ergueu a mão e olhou-a, um tanto intrigado, pois a coceira
persistia. Só então percebeu que todos os pelos estavam eriçados.
Em todo o antebraço, ocorria o mesmo – assim como na cabeça,
que ele verificou com a mão.
Então era esse o problema. Estava num campo elétrico
tremendamente poderoso; a sensação pesada e opressiva que
experimentara era a mesma que às vezes precede uma trovoada na
Terra.
A repentina compreensão do apuro em que se encontrava levou
Jimmy quase ao pânico. Nunca antes em sua vida estivera em real
perigo físico. Como todos os espaçonautas, tivera momentos de
frustração com equipamentos de difícil manuseio e ocasiões em
que, devido a erros ou inexperiência, acreditara erroneamente que
estava numa situação perigosa. Mas nenhum desses episódios
tinha durado mais do que alguns minutos, e geralmente ele era
capaz de rir deles quase no mesmo instante.
Desta vez, não houve saída rápida. Sentiu-se nu e sozinho num
céu subitamente hostil, cercado de forças titânicas que poderiam
descarregar sua fúria a qualquer momento. A Libélula – que já era
frágil – agora parecia mais insubstancial do que a teia de aranha
mais fina. A primeira explosão da tempestade que se formava iria
reduzi-la a fragmentos.
– Controle Central – ele chamou, com urgência. – Há uma carga
elétrica se acumulando à minha volta. Acho que vai haver uma
trovoada a qualquer momento.
Mal terminara de falar quando uma luz tremeluziu às suas costas;
contou até dez, e o primeiro estrondo chegou. Três quilômetros –
isso situava o relâmpago em volta dos Pequenos Chifres. Olhou na
direção deles e viu que cada uma das seis agulhas parecia em
chamas. Descargas luminosas, de centenas de metros de
comprimento, dançavam a partir de suas pontas, como se as
agulhas fossem gigantescos para-raios.
O que estava acontecendo lá atrás poderia ocorrer, numa escala
muito maior, próximo ao afilado espigão do Grande Chifre. A melhor
saída seria afastar-se o máximo possível daquela perigosa estrutura
e procurar um ar seguro. Começou a pedalar novamente,
acelerando o mais rápido que pôde, sem forçar a Libélula em
demasia. Ao mesmo tempo, começou a perder altitude; embora isso
significasse entrar numa região de gravidade mais alta, estava
preparado para correr o risco. Oito quilômetros era uma distância
grande demais do chão para sua paz de espírito.
O ominoso espigão preto do Grande Chifre ainda estava livre de
descargas visíveis, mas Jimmy não duvidava de que potências
tremendas estivessem se acumulando ali. De vez em quando, o
trovão ainda reverberava às suas costas, circulando em toda a
circunferência do mundo. Subitamente ocorreu-lhe quão estranha
era uma tempestade num céu perfeitamente claro; então percebeu
que não se tratava, em absoluto, de um fenômeno meteorológico.
Na verdade, poderia ser apenas um vazamento trivial de energia de
alguma fonte oculta, nas profundezas da calota sul de Rama. Mas
por que agora? E, ainda mais importante – o que aconteceria em
seguida?
Já se afastara bastante da ponta do Grande Chifre e esperava
em breve estar a salvo de quaisquer descargas elétricas. Mas agora
tinha outro problema; o ar tornava-se turbulento, e ele tinha
dificuldade em controlar a Libélula. Um vento pareceu ter surgido do
nada e, se as condições piorassem muito, o frágil esqueleto da
bicicleta estaria em perigo. Seguia pedalando incessantemente,
procurando amortecer as trepidações com variações na força e nos
movimentos de seu corpo. Como a Libélula era quase uma extensão
de si mesmo, ele teve êxito, em parte; mas não gostou dos débeis
estalidos de protesto vindos da longarina principal, nem do modo
como as asas se torciam a cada lufada.
E havia mais uma coisa que o preocupava: um som fraco e
desenfreado, aos poucos ganhando força, que parecia vir da direção
do Grande Chifre. Parecia gás escapando de uma válvula sob
pressão, e ele imaginou se teria algo a ver com a turbulência com
que se debatia. Qualquer que fosse a causa, dava-lhe mais um
motivo para inquietação.
De tempos em tempos, relatava esses fenômenos, de modo
bastante conciso e ofegante, ao Controle Central. Ninguém de lá lhe
dava nenhum conselho, ou mesmo sugeria o que poderia estar
acontecendo; mas era reconfortante ouvir a voz de seus amigos,
embora começasse a temer que jamais os veria novamente.
A turbulência ainda aumentava. Era quase a mesma sensação
de estar entrando numa corrente de jato – o que já fizera uma vez,
tentando quebrar um recorde, enquanto pilotava um planador de
grande altitude na Terra. Mas o que poderia criar uma corrente de
jato no interior de Rama?
Ele se fizera a pergunta certa: assim que a formulou, soube a
resposta.
O som que ouvira era o vento elétrico arrastando a tremenda
ionização que devia estar se acumulando em torno do Grande
Chifre. O ar carregado de eletricidade se pulverizava ao longo do
eixo de Rama, e mais ar fluía para a área de baixa pressão que ele
deixara para trás. Virou-se para olhar a agulha gigantesca, e agora
duplamente ameaçadora, tentando visualizar os limites do vendaval
que dali soprava. Talvez a melhor tática fosse voar de ouvido,
afastando-se o máximo possível do agourento assobio.
Rama poupou-lhe a necessidade de escolher. Um lençol de
chama explodiu às suas costas, preenchendo o céu. Teve tempo de
vê-lo dividir-se em três tiras de fogo, estendendo-se da ponta do
Grande Chifre para cada um dos Pequenos Chifres. Então o choque
o alcançou.
28
ÍCARO

Jimmy mal teve tempo de falar pelo rádio: “A asa está vergando...
Vou cair... Vou cair!”, quando a Libélula começou a se dobrar
graciosamente em torno dele. A asa esquerda partiu-se ao meio, e a
metade exterior flutuou à deriva, como uma folha de árvore caindo
delicadamente. A performance da asa direita foi mais complicada.
Dobrou-se inteira para trás, com tanta força que sua ponta
enroscou-se na cauda. Jimmy teve a sensação de estar sentado
numa pipa quebrada, lentamente caindo do céu.
Contudo, não estava completamente indefeso; a hélice ainda
funcionava e, enquanto tivesse força motriz, haveria certa medida
de controle. Teria, talvez, cinco minutos para usá-la.
Havia alguma esperança de alcançar o Mar? Não, estava longe
demais. Então lembrou que ainda pensava em termos terrestres;
embora fosse bom nadador, levaria horas até ser resgatado, e até lá
as águas venenosas sem dúvida já o teriam matado. Sua única
esperança era cair em terra firme; quanto ao problema do penhasco
vertical, pensaria nisso depois – se houvesse um “depois”.
Caía bem devagar, naquela zona de um décimo de gravidade,
mas logo começaria a acelerar, à medida que se afastasse do eixo.
Entretanto, a resistência do ar complicaria a situação e evitaria uma
queda muito rápida. A Libélula, mesmo sem força motriz, atuaria
como um paraquedas improvisado. Os poucos quilos de propulsão
que ele talvez ainda conseguisse fornecer fariam toda a diferença
entre a vida e a morte; essa era sua única esperança.
O Eixo parara de falar; seus amigos viam exatamente o que
estava acontecendo com ele e sabiam que suas palavras não
poderiam ajudar. Jimmy agora realizava o voo mais difícil de sua
vida; que pena, pensou ele com humor amargo, que sua plateia era
tão pequena e não seria capaz de apreciar os detalhes mais sutis de
sua habilidosa performance.
Ele caía numa ampla espiral e, enquanto a queda seguisse
razoavelmente plana, as chances de sobrevivência eram boas. A
força com que pedalava contribuía para manter a Libélula no ar,
embora temesse exercer força total e as asas quebradas se
soltarem completamente. E todas as vezes que se virava para o sul,
apreciava o fantástico espetáculo que Rama gentilmente lhe
preparara.
As serpentinas de raios ainda relampejavam da ponta do Grande
Chifre até os picos menores abaixo, mas agora o conjunto inteiro
girava. A coroa de fogo de seis dentes movia-se no sentido contrário
da rotação de Rama, completando cada revolução em poucos
segundos. Jimmy teve a impressão de estar observando um
gigantesco motor elétrico em operação. E talvez isso não estivesse
muito longe da verdade.
Estava a meio caminho da planície, ainda orbitando numa espiral
plana, quando o show pirotécnico subitamente cessou. Pôde sentir a
tensão esvair-se do céu e soube, sem precisar olhar, que os pelos
dos braços já não estavam eriçados. Agora não havia mais nada
para distraí-lo ou perturbá-lo durante os últimos minutos de sua luta
pela vida.
Agora que podia ter certeza da área geral em que devia pousar,
começou a estudá-la atentamente. Grande parte daquela região era
um tabuleiro de ambientes totalmente conflitantes, como se um
paisagista louco tivesse recebido carta branca para exercer sua
imaginação ao máximo. As casas desse tabuleiro mediam quase um
quilômetro de cada lado e, embora a maioria fosse plana, não tinha
certeza se eram sólidas, tamanha era a variedade de cores e
texturas. Decidiu esperar até o último minuto possível antes de
tomar uma decisão – se de fato tivesse escolha.
Quando faltavam apenas alguns metros, chamou pela última vez
o Controle Central pelo rádio:
– Ainda tenho algum controle... Vou cair em meio minuto...
Chamo vocês depois.
Eram palavras otimistas, e todos sabiam. Mas ele se recusava a
dizer adeus; queria que seus companheiros soubessem que ele
caíra lutando, e sem medo.
De fato, sentiu muito pouco medo, e isso o surpreendeu, pois
nunca pensara em si mesmo como um homem corajoso. Era quase
como se observasse os desafios de um completo estranho e não
estivesse envolvido pessoalmente. Ou como se estudasse um
problema interessante de aerodinâmica, mudando vários
parâmetros para ver o que aconteceria. Quase a única emoção que
sentiu foi um remoto lamento por oportunidades perdidas – das
quais a mais importante era a próxima Olimpíada Lunar. Um futuro,
pelo menos, estava decidido: a Libélula jamais mostraria suas
qualidades na Lua.
Faltavam cem metros; sua velocidade absoluta parecia aceitável,
mas com que rapidez estava caindo? E ele teve sorte: o terreno era
completamente plano. Empregaria toda a sua força num ímpeto final
de energia, começando... AGORA!
A asa direita, tendo cumprido o seu dever, finalmente soltou-se
inteira. A Libélula começou a girar, e ele tentou corrigir o movimento
jogando o peso de seu corpo no sentido contrário do giro. Estava
olhando diretamente para a paisagem em arco a dezesseis
quilômetros de distância quando bateu.
Pareceu-lhe totalmente injusto e absurdo que o céu fosse tão
duro.
29
PRIMEIRO CONTATO

Quando Jimmy recobrou a consciência, a primeira coisa que


percebeu foi uma lancinante dor de cabeça. Quase lhe deu as boas-
vindas; pelo menos provava que ainda estava vivo.
Então tentou se mover, e imediatamente sentiu uma ampla
variedade de dores. Mas, tanto quanto poderia dizer, parecia não
haver nenhum osso quebrado.
Depois disso, arriscou abrir os olhos, mas fechou-os no mesmo
instante, quando descobriu que olhava diretamente para a faixa de
luz ao longo do teto do mundo. Como remédio para dor de cabeça,
aquela vista não era recomendável.
Ainda estava estirado no chão, recuperando as forças e
imaginando quando seria seguro abrir os olhos, quando ouviu um
barulho de mastigação bem próximo. Virando a cabeça bem
devagar na direção da origem do som, arriscou uma espiada – e
quase desmaiou de novo.
A não mais de cinco metros de distância, uma grande criatura
semelhante a um caranguejo parecia estar devorando os destroços
da pobre Libélula. Quando conseguiu pôr as ideias em ordem,
Jimmy rolou sobre o próprio corpo, afastando-se lenta e
silenciosamente do monstro, na expectativa de, a qualquer
momento, ser apanhado por suas garras, quando o bicho
descobrisse que um alimento mais apetitoso estava disponível.
Entretanto, a criatura não prestou a menor atenção nele; quando a
separação entre eles alcançou dez metros, Jimmy cautelosamente
sentou-se, apoiando-se nas mãos.
Àquela distância, a coisa não parecia tão temível. Tinha um corpo
baixo e chato, com cerca de três metros de comprimento e um de
largura, suportado por seis patas triarticuladas. Jimmy viu que
estava equivocado ao supor que estava comendo a Libélula; de fato,
não conseguia ver nenhum sinal de uma boca. Na verdade, a
criatura executava um belo trabalho de destruição, utilizando garras
semelhantes a tesouras para cortar a bicicleta em pedacinhos. Uma
fileira de manipuladores que, estranhamente, pareciam mãos
humanas, transferia os fragmentos para uma pilha que crescia cada
vez mais no lombo do animal.
Mas aquilo era um animal? Embora tivesse sido essa a primeira
impressão de Jimmy, ele agora a reconsiderava. Havia um sentido
de propósito em seu comportamento, o que sugeria uma inteligência
bastante elevada; não via razão para uma criatura guiada por puro
instinto juntar cuidadosamente os pedaços espalhados de sua sky-
bike – a menos, talvez, que estivesse colhendo material para um
ninho.
Sempre com os olhos no caranguejo, que ainda o ignorava
completamente, Jimmy, com muito custo, pôs-se de pé. Alguns
passos vacilantes demonstraram que ele ainda conseguia andar,
embora não tivesse certeza se conseguiria deixar para trás aquelas
seis patas numa corrida. Ligou o rádio, com a certeza de que ainda
funcionava. O choque a que ele sobrevivera nem teria sido notado
pelo sólido aparelho eletrônico.
– Controle Central – disse, suavemente. – Estão me ouvindo?
– Graças a Deus! Você está bem?
– Só um pouco abalado. Deem uma olhada nisso.
Virou a câmera na direção do caranguejo, bem a tempo de gravar
a destruição final da asa da Libélula.
– Que diabo é isso? E por que está mastigando sua bicicleta?
– Quisera eu saber. Ele acabou com a Libélula. Vou recuar, caso
ele queira fazer o mesmo comigo.
Jimmy retirou-se devagar, sem tirar os olhos do caranguejo, que
agora se movia em círculos, dando voltas e mais voltas numa
espiral cada vez mais ampla, aparentemente procurando por
fragmentos que porventura tivesse negligenciado – e, assim, Jimmy
conseguiu, pela primeira vez, vê-lo por inteiro.
Agora que o choque inicial havia passado, conseguiu reconhecer
que se tratava de um belo animal. O nome de “caranguejo” que ele
automaticamente lhe dera talvez fosse um pouco enganoso; se não
fosse tão grande, talvez o tivesse chamado de besouro. Sua
carapaça tinha um magnífico brilho metálico; na verdade, quase
podia jurar que era metal.
Era uma ideia interessante. Poderia ser um robô, não um animal?
Olhou atentamente o caranguejo, com esse pensamento em mente,
analisando todos os detalhes de sua anatomia. No lugar onde devia
estar a boca havia uma coleção de manipuladores, lembrando muito
os canivetes de múltiplas utilidades que são o deleite de todo garoto
ousado; havia pinças, agulhas, limas e até algo que parecia uma
broca. Mas nada disso era decisivo. Na Terra, o mundo dos insetos
produzira todas essas ferramentas, e muitas outras. A questão
“animal ou robô?” permaneceu em perfeito equilíbrio em sua mente.
Os olhos, que poderiam ter resolvido o assunto, tornaram a
questão ainda mais ambígua. Estavam tão profundamente
escondidos sob toldos protetores, que era impossível dizer se os
cristalinos eram feitos de cristal ou gelatina. Eram olhos
completamente destituídos de expressão e de uma cor azul
assustadoramente vívida. Embora tivessem se dirigido a Jimmy
várias vezes, não mostraram o menor sinal de interesse. Em sua
opinião, talvez preconceituosa, isso decidia o nível de inteligência da
criatura. Uma entidade – robô ou animal – que conseguia ignorar um
ser humano não poderia ser muito esperta.
Tinha parado de dar voltas e ficou imóvel por alguns segundos,
como se escutasse alguma mensagem inaudível. Depois partiu, com
um curioso passo bamboleante, em direção ao Mar. Movia-se em
perfeita linha reta, numa velocidade estável de 4 ou 5 km/h, e já
percorrera uns duzentos metros antes de a mente de Jimmy, ainda
levemente chocada, registrar o fato de que a criatura levava embora
a última e triste relíquia da sua amada Libélula. Lançou-se, então,
numa indignada e furiosa perseguição.
Seu ato não foi de todo ilógico. O caranguejo rumava para o Mar
– e, se algum resgate fosse possível, só poderia vir de lá. Além
disso, queria descobrir o que a criatura faria com o seu troféu; isso
poderia revelar algo a respeito de sua motivação e inteligência.
Por ainda estar machucado e dolorido, Jimmy levou vários
minutos para alcançar o caranguejo, em sua marcha resoluta.
Quando o alcançou, passou a segui-lo de uma distância segura, até
ter certeza de que ele não se ressentia de sua presença. Foi então
que notou seu cantil e sua ração de emergência entre os destroços
da Libélula, e imediatamente sentiu fome e sede.
Ali, fugindo dele a impiedosos 5 km/h, estava o único alimento e
a única água em toda aquela metade do mundo. Tinha de recuperá-
los, quaisquer que fossem os riscos.
Cautelosamente, aproximou-se do caranguejo pela traseira
direita. Enquanto marcava passo com ele, estudou o complicado
ritmo de suas patas, até poder prever onde cada uma estaria em
qualquer momento. Quando se sentiu pronto, murmurou um ligeiro
“Com licença” e, de modo muito ágil, pegou de volta seus bens.
Jimmy nunca sonhou que um dia precisaria exercitar as habilidades
de um batedor de carteira e ficou encantado com seu êxito. Em
menos de um segundo, afastou-se novamente, e o caranguejo
sequer diminuiu a velocidade.
Ficou a uns doze metros na retaguarda, umedeceu os lábios com
a água do cantil e começou a mastigar uma barra de concentrado
de carne. A pequena vitória o deixou muito mais feliz; agora, podia
até arriscar-se a pensar em seu futuro sombrio.
Enquanto houvesse vida, havia esperança; no entanto, não
conseguia imaginar um modo de ser resgatado. Mesmo que seus
colegas atravessassem o Mar, como poderiam alcançá-lo, meio
quilômetro abaixo? “Vamos dar um jeito de você descer”, prometera
o Controle Central. “Aquele penhasco não pode contornar o mundo
sem nenhum intervalo.” Ficara tentado a retrucar “Por que não?”,
mas pensou melhor e não disse nada.
Uma das coisas mais estranhas em se caminhar no interior de
Rama era que sempre se podia ver o ponto de destino. Ali, a
curvatura do mundo não escondia – revelava. Já há algum tempo,
Jimmy sabia qual o objetivo do caranguejo; lá em cima, na terra que
parecia subir à sua frente, havia um fosso de meio quilômetro de
largura. Fazia parte de um grupo de três no continente sul; do Eixo,
tinha sido impossível ver sua profundidade. Todos tinham recebido
nomes de proeminentes crateras lunares, e ele se aproximava de
Copérnico. O nome não era muito apropriado, pois não havia colinas
à sua volta, nem picos centrais. Esse Copérnico era apenas um
poço fundo, com paredes perfeitamente verticais.
Quando se aproximou o bastante para olhar o fundo, Jimmy viu
uma sinistra poça de água cinzenta-esverdeada, a pelo menos meio
quilômetro abaixo. Isso a colocava aproximadamente ao nível do
Mar, e ele imaginou se haveria alguma comunicação entre ambos.
Uma rampa espiral descia serpenteando pelo interior do poço,
completamente embutida na parede vertical, de modo que o efeito
parecia bastante com o cano estriado de um imenso rifle. Havia um
extraordinário número de voltas; só depois de acompanhar várias
delas, ficando cada vez mais confuso, é que Jimmy percebeu que
não se tratava de uma única rampa, mas de três, totalmente
independentes, a 120 graus de distância uma da outra. Se estivesse
em qualquer outro lugar, e não em Rama, toda aquela concepção
teria sido uma impressionante proeza arquitetônica.
As três rampas conduziam diretamente à poça e desapareciam
sob a superfície opaca. Próximo à linha d’água, Jimmy viu um grupo
de cavernas ou túneis escuros; eram bastante assustadores, e
Jimmy imaginou se seriam habitados. Talvez os ramanos fossem
anfíbios...
Quando o caranguejo se aproximou da beira do poço, Jimmy
presumiu que ele iria descer uma das rampas – talvez carregando
os destroços da Libélula a alguma entidade que seria capaz de
avaliá-los. Em vez disso, a criatura caminhou direto até a margem,
estendeu quase a metade do corpo sobre aquele abismo, sem
nenhum sinal de hesitação – embora qualquer erro de poucos
centímetros tivesse sido desastroso – e sacudiu vigorosamente os
ombros. Os fragmentos da Libélula caíram tremulando nas
profundezas; os olhos de Jimmy lacrimejaram ao vê-los
desaparecer. Eis a inteligência dessa criatura, pensou Jimmy,
amargamente.
Depois de jogar fora o lixo, o caranguejo virou-se e começou a
andar na direção de Jimmy, que estava apenas a uns dez metros de
distância. Terei o mesmo tratamento?, perguntou a si mesmo.
Esperava que a câmera não estivesse tremendo muito quando
mostrou ao Controle Central a rápida aproximação do monstro.
– Qual o conselho de vocês? – sussurrou ansiosamente, sem
esperança de obter uma resposta útil. O pequeno consolo era
perceber que estava fazendo história, e sua mente percorreu os
padrões aprovados para um encontro daquela natureza. Até então,
todos tinham sido puramente teóricos. Ele seria o primeiro homem a
testá-los na prática.
– Só corra se tiver certeza de que ele é hostil – sussurrou de
volta o Controle Central. Correr para onde?, Jimmy se perguntou.
Pensou que poderia ganhar daquela coisa numa corrida de cem
metros, mas tinha uma mórbida certeza de que ela o venceria pelo
cansaço, num percurso mais longo.
Lentamente, Jimmy estendeu os braços, com as mãos abertas. A
humanidade vinha discutindo há dois séculos sobre esse gesto; será
que todas as criaturas, em todos os lugares do universo,
interpretariam isso como “Está vendo? Não tenho armas”? Mas
ninguém conseguiu pensar em nada melhor.
O caranguejo não esboçou nenhum tipo de reação, nem diminuiu
o passo. Ignorando Jimmy por completo, passou direto por ele e
rumou, resoluto, para o sul. Sentindo-se ridículo, o representante
interino do Homo sapiens observou seu Primeiro Contato afastar-se
na planície de Rama, totalmente indiferente à sua presença.
Nunca tinha sido tão humilhado na vida. Então, seu senso de
humor veio em seu socorro. Afinal, não era tão importante assim ter
sido ignorado por um caminhão de lixo animado. Teria sido pior se a
coisa o tivesse cumprimentado como se ele fosse um irmão
desaparecido há muitos anos...
Jimmy caminhou de novo até a beira de Copérnico e examinou a
água opaca lá do fundo. Pela primeira vez, notou que formas vagas
– algumas bem grandes – moviam-se lentamente para lá e para cá
abaixo da superfície. Num instante, uma delas dirigiu-se à rampa
mais próxima, e algo que parecia um tanque cheio de pernas iniciou
a longa subida. Naquela velocidade, calculou Jimmy, aquilo levaria
quase uma hora para chegar até ele; se fosse uma ameaça, era
uma ameaça bem lerda.
Então percebeu uma vibração de movimentos muito mais
rápidos, perto daquelas aberturas semelhantes a cavernas ao nível
da água. Alguma coisa se deslocava muito rápido pela rampa, mas
ele não conseguia focalizá-la claramente, ou discernir qualquer
forma definida. Era como se estivesse olhando um pequeno
redemoinho, mais ou menos do tamanho de um homem...
Piscou e balançou a cabeça, mantendo os olhos fechados por
vários segundos. Quando tornou a abri-los, a aparição tinha sumido.
Talvez o impacto o tivesse abalado mais do que imaginara; era a
primeira vez que sofria de alucinações visuais. Não mencionaria
isso ao Controle Central.
Nem se daria ao trabalho de explorar aquelas rampas, como
chegou a cogitar. Seria um evidente desperdício de energia.
O espectro rodopiante que ele apenas imaginara ver não tinha
nada a ver com sua decisão.
Absolutamente nada; pois, naturalmente, Jimmy não acreditava
em fantasmas.
30
A FLOR

O esforço de Jimmy o deixara com sede, e ele tinha plena


consciência do fato de que, em toda aquela terra, não havia uma
gota de água que se pudesse beber. Com o conteúdo do cantil,
provavelmente poderia sobreviver por uma semana – mas para
quê? Os melhores cérebros da Terra logo se concentrariam em seu
problema; sem dúvida o comandante Norton seria bombardeado por
sugestões. Mas ele não conseguia imaginar nenhum modo de
descer aquele penhasco de meio quilômetro. Mesmo se tivesse uma
corda comprida o suficiente, não havia onde amarrá-la.
Não obstante, era uma tolice – e uma fraqueza – desistir sem
lutar. Qualquer socorro teria de vir pelo Mar e, enquanto se dirigia
para lá, poderia continuar seu trabalho como se nada tivesse
acontecido. Nenhuma outra pessoa jamais observaria e fotografaria
o variado terreno por onde teria de passar, e isso garantiria
imortalidade póstuma. Embora tivesse preferido muitas outras
honras, era melhor do que nada.
Se estivesse voando com a pobre Libélula, estaria a apenas três
quilômetros do Mar, mas era improvável que conseguisse chegar
até lá em linha reta; alguns trechos do terreno à sua frente poderiam
revelar-se intransponíveis. Isso não era problema, entretanto, já que
não faltavam rotas alternativas. Jimmy via todas elas, espalhadas no
grande mapa curvo estendido à sua direita e à sua esquerda.
Tinha tempo de sobra; começaria pelo cenário mais interessante,
mesmo que isso o desviasse do caminho. A cerca de um quilômetro
de distância, à direita, havia um quadrado que cintilava como vidro
quebrado – ou como uma gigantesca exibição de joias. Foi
provavelmente esse pensamento que desencadeou os passos de
Jimmy. É razoável esperar que um homem, mesmo condenado à
morte, demonstre um ligeiro interesse por alguns milhares de metros
quadrados de pedras preciosas.
Não se decepcionou ao constatar que eram cristais de quartzo,
milhões deles, incrustados num banco de areia. O quadrado
adjacente do tabuleiro era ainda mais interessante, coberto por
colunas metálicas ocas, aparentemente dispostas num padrão
aleatório, muito próximas umas das outras, com alturas que
variavam entre menos de um metro até mais de cinco metros. Era
completamente intransitável; somente um tanque, derrubando tudo,
poderia atravessar aquela floresta de tubos.
Jimmy caminhou entre os cristais e as colunas até chegar à
primeira encruzilhada. O quadrado à direita era um imenso tapete
ou tapeçaria feito de arame trançado; tentou soltar um fio, mas não
conseguiu rompê-lo.
À esquerda, havia um mosaico de ladrilhos hexagonais, tão bem
assentados que não se viam as juntas. Teria parecido uma
superfície contínua, se os ladrilhos não tivessem todas as cores do
arco-íris. Jimmy passou vários minutos tentando encontrar dois
ladrilhos contíguos da mesma cor, para ver se conseguiria distinguir
os seus limites, mas não encontrou sequer um único exemplo de tal
coincidência.
Enquanto gravava uma lenta panorâmica em volta da
encruzilhada, disse ao Controle Central, em tom de lamento:
– O que vocês acham que é isso? Parece que estou preso num
gigantesco quebra-cabeça. Ou será que é a Galeria de Arte de
Rama?
– Estamos tão perplexos quanto você, Jimmy. Mas nunca se viu
nenhum sinal de que os ramanos se dedicassem à arte. Vamos
esperar até termos mais exemplos, antes de tirar conclusões
precipitadas.
Os dois exemplos que encontrou nas duas encruzilhadas
seguintes não ajudaram muito. Um era completamente vazio – um
cinza liso e neutro, duro, mas escorregadio ao tato. O outro era uma
esponja macia, perfurada com bilhões e bilhões de buraquinhos.
Experimentou com o pé, e a superfície inteira ondulou de maneira
nauseante debaixo dele, como uma areia movediça com quase
nenhuma estabilidade.
Na encruzilhada seguinte, encontrou algo incrivelmente parecido
com um campo lavrado – só que os sulcos tinham todos um metro
de profundidade, e o material de que eram feitos possuía a textura
de uma lima ou grosa. Mas deu pouca atenção a ele, pois o
quadrado adjacente era o mais intrigante de todos os que tinha visto
até então. Finalmente, havia algo que conseguia entender; e era
bastante perturbador.
O quadrado inteiro era cercado, tão convencional que não teria
olhado duas vezes para ele na Terra. Tinha mourões –
aparentemente de metal – espaçados entre si a cada cinco metros,
com seis fios de arame bastante esticados entre eles.
Além dessa cerca havia outra, idêntica – e, além desta, uma
terceira. Era mais um típico exemplo da redundância ramana. O que
quer que estivesse preso dentro desse cercado não tinha chance
nenhuma de escapar. Não havia nenhuma entrada – nenhum portão
que se pudesse abrir para introduzir o animal – ou animais – que,
presumivelmente, era mantido ali. Em vez disso, havia um único
poço, como uma versão reduzida de Copérnico, no centro do
quadrado.
Mesmo em outras circunstâncias, Jimmy provavelmente não teria
hesitado, mas agora não tinha nada a perder. Rapidamente escalou
as três cercas, caminhou até o poço e examinou seu interior.
Diferentemente de Copérnico, aquele poço tinha apenas
cinquenta metros de profundidade. Havia três bocas de túneis no
fundo, cada uma grande o suficiente para deixar passar um elefante.
E era tudo.
Após olhar por algum tempo, Jimmy concluiu que a única coisa
que poderia fazer sentido naquele arranjo seria o fundo do poço ser
um elevador. Mas o que esse elevador transportava, ele talvez
nunca saberia; só podia imaginar que era bem grande, e
possivelmente bem perigoso.
Durante as horas seguintes, andou mais de dez quilômetros na
beira do Mar, e os quadrados do tabuleiro começaram a se
embaralhar em sua memória. Tinha visto alguns totalmente
fechados por estruturas semelhantes a barracas feitas de tela de
arame, como se fossem gigantescas gaiolas. Outros pareciam
poças de líquido congelado, cheios de marcas em forma de
turbilhão; entretanto, quando os testara com cautela, eram
completamente sólidos. E havia um tão absolutamente negro que
ele nem conseguia vê-lo com clareza; apenas o tato lhe dizia que
havia alguma coisa ali.
No entanto, todos eles modularam sutilmente para algo que ele
conseguia entender. Sucedendo-se uns aos outros em direção ao
sul, havia uma série de – nenhuma outra palavra servia – campos.
Era como se estivesse passando por uma fazenda experimental na
Terra; cada quadrado era um espaço liso de terra cuidadosamente
nivelada, a primeira terra que tinha visto nas paisagens metálicas de
Rama.
Os extensos campos eram virgens, sem vida – à espera de
cultivos que nunca foram plantados. Jimmy imaginou qual seria seu
objetivo, já que era inacreditável que criaturas avançadas como os
ramanos se dedicassem a qualquer forma de agricultura; até mesmo
na Terra, a agricultura não passava de um hobby e de fonte de
luxuosos alimentos exóticos. Mas ele podia jurar que aquilo eram
fazendas em potencial, imaculadamente preparadas. Nunca tinha
visto terras de aparência tão limpa; cada quadrado era recoberto
com um lençol de plástico duro e transparente. Tentou cortá-lo para
obter uma amostra, mas sua faca mal arranhou a superfície.
Mais para o interior, havia outros campos, e em muitos deles
havia complexas construções de varas de arame, presumivelmente
destinadas a apoiar plantas trepadeiras. Pareciam desertas e
desoladas, como árvores sem folhas em pleno inverno. O inverno
deles deve ter sido de fato longo e terrível, e aquelas poucas
semanas de luz e calor talvez fossem apenas um breve interlúdio
até que o frio voltasse.
Jimmy nunca soube o que o fez parar e olhar mais de perto o
labirinto metálico. Inconscientemente, seu cérebro devia estar
verificando cada detalhe à sua volta, pois notou, naquela paisagem
fantasticamente alienígena, algo ainda mais anômalo.
A cerca de um quarto de quilômetro de distância, no meio de
uma latada de arames e varas, brilhava um único ponto de cor. Era
tão pequeno e imperceptível que estava quase no limite da
visibilidade; na Terra, ninguém o teria olhado duas vezes. No
entanto, indubitavelmente, um dos motivos que o fizeram notá-lo
agora foi que ele lhe lembrou a Terra...
Não comunicou o Controle Central até ter certeza de que não
havia engano e que não estava iludindo a si mesmo. Não até estar a
apenas alguns metros de distância e ter a absoluta certeza de que a
vida, tal como a conhecia, havia se introduzido no mundo asséptico
e estéril de Rama. Pois ali, em solitário esplendor à beira do
continente sul, desabrochava uma flor.
À medida que se aproximava, tornou-se óbvio para Jimmy que
algo tinha dado errado. Havia um buraco no revestimento que,
presumivelmente, protegia aquela camada de terra contra a
contaminação por formas de vida indesejadas. Através dessa
brecha, saía um caule verde, da grossura do dedo mínimo de um
homem, que se estendia e se enroscava nos arames da latada. A
um metro do chão, o caule explodia numa florescência de folhas
azuladas que mais pareciam plumas do que folhagens de qualquer
planta conhecida por Jimmy. O caule terminava, ao nível do olho, no
que ele, a princípio, tomara por uma única flor. Agora via, sem
nenhuma surpresa, que eram na verdade três flores muito juntas.
As pétalas eram tubos de cor viva, com uns cinco centímetros de
comprimento; havia pelo menos cinquenta em cada flor e brilhavam
em azuis, violetas e verdes tão metálicos que mais pareciam asas
de borboleta do que qualquer coisa do reino vegetal. Jimmy não
sabia praticamente nada de botânica, mas intrigou-lhe a ausência
de qualquer estrutura que se parecesse com pétalas ou estames.
Imaginou se a semelhança com flores terrestres era mera
coincidência; talvez aquilo tivesse mais afinidade com um pólipo de
coral. De qualquer modo, parecia implicar a existência de pequenas
criaturas voadoras que serviam como agentes fertilizantes – ou
como alimento.
Na verdade, isso não tinha importância. Qualquer que fosse a
definição científica, para Jimmy aquilo era uma flor. O estranho
milagre, o acidente tão insólito de sua existência ali em Rama o fez
lembrar-se de tudo o que jamais veria novamente; e determinou-se
a possuí-la.
Não seria fácil. A flor estava a mais de dez metros de distância,
separada dele por uma treliça feita de finas varetas que formavam
um padrão cúbico, repetido diversas vezes, com menos de quarenta
centímetros de cada lado. Jimmy não sairia voando em sky-bikes se
não fosse esguio, portanto sabia que conseguiria se meter pelos
interstícios da grade. Mas sair de lá de dentro era outra história; com
certeza, seria impossível virar-se, então teria de se retirar de costas.
O Controle Central ficou encantado com sua descoberta, quando
ele descreveu a flor e filmou-a de todos os ângulos possíveis. Não
houve objeção quando ele disse: – Vou buscá-la. – Nem esperava
que houvesse; sua vida lhe pertencia agora, e podia fazer dela o
que quisesse.
Tirou toda a roupa, segurou as varetas lisas de metal e começou
a se infiltrar na armação. Eram firmes e apertadas; ele se sentiu um
prisioneiro fugindo pelas barras da cela. Depois de se introduzir
completamente na latada, tentou sair de novo, só para ver se não
havia nenhum problema. Foi muito mais difícil, já que agora tinha de
usar os braços estendidos para empurrar, em vez de puxar, mas não
viu razão para sentir-se irremediavelmente preso.
Jimmy era um homem de ação e impulso, não de introspecção.
Enquanto se retorcia desconfortavelmente pelo estreito corredor de
varetas, não perdeu tempo se perguntando por que, exatamente,
realizava uma façanha tão quixotesca. Em toda a sua vida, jamais
se interessara por flores, mas agora desperdiçava suas últimas
energias para colher uma.
É verdade que aquele era um espécime único, e de enorme valor
científico. Mas ele a queria, na verdade, porque era seu derradeiro
elo com a vida e com seu planeta natal.
No entanto, quando a flor estava ao seu alcance, teve um
escrúpulo repentino. Talvez fosse a única flor existente em Rama;
era justo que a apanhasse?
Se precisasse de uma desculpa, poderia consolar-se com a ideia
de que os próprios ramanos não a tinham incluído em seus planos.
Era obviamente uma aberração, crescendo milênios atrasada – ou
adiantada. Mas ele não precisava realmente de uma desculpa, e
sua hesitação foi apenas momentânea. Estendeu a mão, agarrou o
caule e deu um puxão forte.
A flor desprendeu-se com muita facilidade; ele colheu também
duas folhas, e então começou a recuar lentamente pela treliça.
Agora que tinha só uma das mãos livre, o deslocamento tornou-se
extremamente difícil, doloroso até, e ele logo teve de parar e tomar
fôlego. Foi então que percebeu que as folhas plumosas estavam se
fechando, e a haste decapitada lentamente se desprendia de seus
suportes. Enquanto a observava com um misto de fascínio e
espanto, viu que a planta inteira se retirava para o solo, como uma
cobra mortalmente ferida arrastando-se de volta à toca.
Matei algo tão lindo, Jimmy disse a si mesmo. Mas Rama
também o matara. Ele apenas colhia o que lhe era de direito.
31
VELOCIDADE TERMINAL

O comandante Norton nunca perdera um homem e não tinha


intenção alguma de começar agora. Mesmo antes de Jimmy partir
para o Polo Sul, ele já vinha considerando maneiras de resgatá-lo
em caso de acidente; o problema, entretanto, se revelara tão difícil
que ele não tinha encontrado uma resposta. Só o que conseguiu
fazer foi eliminar todas as soluções óbvias.
Como escalar um penhasco vertical de meio quilômetro de altura,
mesmo em gravidade reduzida? Com o equipamento adequado – e
treinamento –, seria bastante fácil. Mas não havia lança-arpões a
bordo da Endeavour, e ninguém conseguia imaginar um modo mais
prático de cravar as centenas de pregões necessários naquela
superfície dura e espelhada.
Tinha dado uma olhada rápida nas soluções mais exóticas,
algumas francamente malucas. Talvez um simp, equipado com
ventosas, pudesse fazer a escalada. Mas, mesmo que esse
esquema fosse prático, quanto tempo levaria para manufaturar e
testar o equipamento – e treinar o simp para usá-lo? Norton
duvidava que um homem tivesse a força necessária para realizar a
façanha.
Havia uma tecnologia mais avançada. As unidades propulsoras
de AEV eram tentadoras, mas seu impulso era muito fraco, pois
tinham sido projetadas para operações em gravidade zero. Não
seriam capazes de levantar o peso de um homem, mesmo na
modesta gravidade de Rama.
Seria possível enviar um propulsor de AEV em controle
automático, carregando apenas uma corda de salvação?
Experimentara essa ideia com o sargento Myron, que prontamente
abatera a tiros o propulsor em chamas. Havia, segundo explicou o
engenheiro, sérios problemas de estabilidade; poderiam ser
resolvidos, mas levaria muito tempo – muito mais tempo do que
dispunham.
E balões? Parecia haver uma pequena possibilidade aqui, se
conseguissem arranjar um invólucro e uma fonte de calor
suficientemente compacta. Foi a única abordagem que Norton não
descartara, quando o problema subitamente deixou de ser teoria e
se tornou questão de vida ou morte, dominando o noticiário em
todos os mundos habitados.
Enquanto Jimmy fazia sua jornada pela beira do Mar, metade dos
malucos do Sistema Solar tentava salvá-lo. No quartel-general da
Frota, todas as sugestões eram consideradas, e cerca de mil delas
foram enviadas à Endeavour. A do dr. Carlisle Perera chegou duas
vezes – uma pela própria rede da Observação Solar e outra pela
PLANETCOM, PRIORIDADE RAMA. A ideia tomara cinco minutos de

reflexão do cientista e um milissegundo de tempo do computador.


A princípio, o comandante Norton pensou tratar-se de uma piada
de mau gosto. Então, viu o nome do remetente, bem como os
cálculos anexos, e rapidamente reexaminou a sugestão.
Entregou a mensagem a Karl Mercer.
– O que acha disso? – perguntou, no tom de voz mais neutro
possível.
Karl leu tudo no mesmo instante e disse:
– Caramba! Ele está certo, claro.
– Tem certeza?
– Ele acertou sobre a tempestade, não foi? Deveríamos ter
pensado nisso. Me sinto um idiota.
– Você não é o único. O problema agora é... Como dar a notícia a
Jimmy?
– Acho que não deveríamos contar a ele... Até o último minuto. É
como eu iria preferir se estivesse no lugar dele. Só diga que
estamos a caminho.

Embora pudesse enxergar toda a largura do Mar Cilíndrico e


soubesse a direção geral de onde viria a Resolution, Jimmy só
avistou a pequena jangada depois que ela já tinha passado por
Nova York. Parecia incrível que pudesse transportar seis homens –
e todo o equipamento necessário para resgatá-lo.
Quando a pequena embarcação estava a um quilômetro de
distância, reconheceu o comandante Norton e começou a acenar.
Pouco depois, o capitão o localizou e acenou de volta.
– Estou contente em vê-lo tão bem, Jimmy – falou pelo rádio. –
Prometi que não iria deixá-lo para trás. Acredita em mim agora?
Não completamente, pensou Jimmy; até aquele momento, ainda
se perguntava se aquilo tudo não seria uma bondosa trama para
levantar seu moral. Mas o comandante não teria atravessado o Mar
apenas para dizer adeus; ele deve ter elaborado algum plano.
– Vou acreditar no senhor, capitão – respondeu –, quando eu
estiver aí embaixo, no convés. Agora, pode me dizer como farei
isso?
A Resolution diminuía a velocidade, a cem metros da base do
penhasco; pelo que pôde observar, o barco não trazia nenhum
equipamento incomum – embora não tivesse certeza do que
esperava ver.
– Desculpe, Jimmy... Mas não queríamos lhe preocupar ainda
mais.
Ora, isso sim deixou Jimmy preocupado. Que diabo o capitão
quis dizer?
A Resolution parou a cinquenta metros da base, quinhentos
metros abaixo. Jimmy quase viu o comandante lá de cima, quando
ele falou ao microfone.
– É isso aí, Jimmy. Você não vai correr nenhum perigo, mas será
preciso ter coragem. Você vai pular.
– Quinhentos metros?!
– Sim, mas em meia gravidade apenas.
– E daí? O senhor já saltou duzentos e cinquenta metros na
Terra?
– Cale a boca, ou cancelo sua próxima licença. Você mesmo
deveria ter feito o cálculo... É só uma questão de velocidade
terminal. Nesta atmosfera, você não pode atingir mais de 90 km/h,
seja caindo de duzentos ou dois mil metros. Noventa é uma
velocidade meio alta para uma descida confortável, mas podemos
reduzi-la um pouco. Preste atenção no que você deve fazer...
– Estou ouvindo – disse Jimmy. – Tomara que seja uma boa
ideia.
Não tornou a interromper o comandante e não fez nenhum
comentário depois que Norton terminou. Sim, fazia sentido, e era tão
absurdamente simples que só um gênio poderia ter tido a ideia. E,
talvez, alguém que não esperava pô-la em prática pessoalmente...
Jimmy nunca experimentara saltos de plataforma ou de
paraquedas, o que lhe teria proporcionado um preparo psicológico
para a façanha. Podia-se explicar a um homem que era
perfeitamente seguro atravessar um abismo caminhando sobre uma
prancha – contudo, mesmo que os cálculos estruturais fossem
impecáveis, ainda assim ele poderia ser incapaz de fazê-lo. Agora
entendia por que o comandante tinha sido tão evasivo sobre os
detalhes de seu resgate. Não lhe deram tempo para refletir, nem
para pensar em objeções.
– Não quero apressá-lo – disse a voz persuasiva de Norton, meio
quilômetro abaixo. – Mas quanto antes, melhor.
Jimmy olhou para o seu precioso souvenir, a única flor em Rama.
Embrulhou-a com todo o cuidado em seu lenço sujo, deu um nó no
tecido e jogou-a do penhasco.
Ela flutuou com uma lentidão reconfortante, mas também levou
um bom tempo para diminuir de tamanho, e foi diminuindo,
diminuindo, até que ele não pôde mais vê-la. Mas a Resolution
oscilou para a frente, e ele compreendeu que a flor tinha sido
avistada.
– Linda! – exclamou o comandante, com entusiasmo. – Tenho
certeza que darão o seu nome a ela. Muito bem, estamos
esperando...
Jimmy tirou a camisa – a única peça de roupa superior que se
usava naquele clima agora tropical – e esticou-a, pensativo. Por
várias vezes, em sua jornada, quase a descartara; agora, ela
poderia salvar sua vida.
Pela última vez, virou-se para olhar o mundo oco que explorara
sozinho, e os distantes e sinistros pináculos do Grande Chifre e dos
Pequenos Chifres. Depois, segurando a camisa firmemente com a
mão direita, correu e saltou o mais longe possível da beira do
penhasco.
Agora, não havia mais pressa; tinha longos vinte segundos para
desfrutar a experiência. Mas não perdeu tempo, à medida que o
vento ficava mais forte à sua volta e a Resolution lentamente se
expandia em seu campo de visão. Segurando a camisa com ambas
as mãos, esticou os braços acima da cabeça, para que o ar em
movimento preenchesse o tecido e o transformasse num tubo oco.
Como paraquedas, não era exatamente um sucesso; os poucos
quilômetros por hora que subtraía de sua velocidade eram úteis,
mas não vitais. A tarefa mais importante que cumpria era manter
seu corpo na vertical, de modo que pudesse mergulhar diretamente
no Mar, como uma flecha.
Ainda tinha a impressão de estar absolutamente parado, e a
água é que subia depressa em sua direção. Depois de se
comprometer consigo mesmo, não teve mais a sensação de medo;
na verdade, sentiu certa indignação contra o capitão, por não lhe ter
dito nada. Ele realmente pensou que Jimmy ficaria com medo de
pular, se tivesse tido muito tempo para refletir sobre o assunto?
No último instante, soltou a camisa, encheu os pulmões e
apertou a boca e o nariz com as mãos. Seguindo as instruções que
recebera, endureceu o corpo até torná-lo uma barra rígida e travou
os pés bem juntos. Entraria na água como uma lança...
– Vai ser o mesmo – prometera o comandante – que pular de um
trampolim na Terra. Sem problema... Se entrar bem na água.
– E se eu não entrar? – ele perguntara.
– Aí você vai ter que voltar e tentar de novo.
Algo bateu em seus pés – com força, mas sem violência. Um
milhão de mãos viscosas beliscaram seu corpo com força; um
trovão retumbou em seus ouvidos, e a pressão aumentou – e,
embora seus olhos estivessem firmemente fechados, podia
perceber que escurecia, à medida que mergulhava nas profundezas
do Mar Cilíndrico.
Com toda a sua força, começou a nadar para cima, em direção à
luz esmaecida. Não podia abrir os olhos por mais tempo do que uma
única piscadela; sentia a água venenosa como ácido quando os
abria. Parecia estar lutando há milênios, e mais de uma vez temeu,
como num pesadelo, ter perdido a orientação e estar, na verdade,
nadando para baixo. Arriscava, então, mais uma olhadela, e a cada
vez a luz era mais forte.
Estava ainda com os olhos fortemente cerrados quando saiu da
água. Engoliu um precioso bocado de ar, boiou de costas e olhou
em volta.
A Resolution vinha em sua direção a toda a velocidade; em
poucos segundos, mãos ávidas o agarraram e o arrastaram para
bordo.
– Você engoliu água? – foi a pergunta ansiosa do comandante.
– Acho que não.
– Enxágue a boca com isso, em todo caso. Ótimo. Como se
sente?
– Não tenho certeza. Aviso num minuto. Ah... Obrigado a todos. –
Mal acabou o minuto, e Jimmy já tinha certeza de como se sentia.
– Vou vomitar – confessou, com desagrado. Seus salvadores
ficaram incrédulos.
– Num mar calmo e plano como esse? – protestou a sargento
Barnes, que parecia considerar a indisposição de Jimmy uma crítica
direta à sua habilidade.
– Eu não chamaria isso de plano – disse o comandante, fazendo
um gesto com o braço em volta da faixa de água que circundava o
céu. – Mas não se envergonhe, Jimmy... Você pode ter engolido um
pouco dessa coisa. Ponha para fora o mais rápido possível.
Jimmy ainda se contorcia, sem heroísmo e sem êxito, quando
houve uma súbita cintilação de luz no céu às costas do grupo. Todos
os olhares se voltaram para o Polo Sul, e Jimmy imediatamente
esqueceu a náusea. Os Chifres tinham recomeçado o show
pirotécnico.
Lá estavam as quilométricas serpentinas de fogo, dançando do
espigão central para seus companheiros menores. Mais uma vez,
começaram sua majestosa rotação, como se dançarinos invisíveis
estivessem enrolando suas fitas num mastro elétrico. Mas agora
começaram a acelerar, movendo-se cada vez mais rápido, até se
fundirem num cintilante cone de luz.
Era um espetáculo ainda mais impressionante do que qualquer
coisa que tinham visto ali até então, e vinha acompanhado de um
longínquo estrondo crepitante que aumentava a impressão de uma
força avassaladora. A exibição durou cerca de cinco minutos; então
parou abruptamente, como se alguém tivesse desligado um
interruptor.
– Eu queria saber o que o Comitê de Rama acha disso –
murmurou Norton, sem se dirigir a ninguém em particular. – Alguém
tem alguma teoria?
Não houve tempo para resposta, pois nesse momento o Controle
Central chamou, com grande excitação.
– Resolution! Vocês estão bem? Sentiram isso?
– Sentimos o quê?
– Achamos que foi um terremoto... Deve ter acontecido no
momento em que aqueles fogos pararam.
– Algum dano?
– Acho que não. Não chegou a ser violento... Mas nos sacudiu
um pouco.
– Não sentimos absolutamente nada. Mas não sentiríamos, aqui
no Mar.
– Claro, que tolice a minha. Parece que tudo está tranquilo
agora... Até a próxima vez.
– Sim, até a próxima vez – Norton ecoou. O mistério de Rama
aumentava cada vez mais; quanto mais descobriam sobre ele,
menos compreendiam.
Houve um grito repentino da timoneira.
– Capitão! Olhe! Lá em cima, no céu!
Norton ergueu os olhos, rapidamente percorrendo o circuito do
Mar. Não viu nada, até quase alcançar o zênite, olhando para o
outro lado do mundo.
– Meu Deus – sussurrou devagar, quando percebeu que a
“próxima vez” já estava quase ali.
Uma onda gigantesca corria na direção deles, descendo a curva
eterna do Mar Cilíndrico.
32
A ONDA

No entanto, mesmo nesse momento de choque, a primeira


preocupação de Norton foi sua nave.
– Endeavour! – gritou. – Relatório da situação!
– Tudo bem, capitão – foi a resposta tranquilizadora do imediato.
– Sentimos um ligeiro tremor, mas nada que pudesse causar danos.
Houve uma pequena mudança de atitude... A ponte diz que foi de
aproximadamente 0,2 grau. Eles também acham que a velocidade
de rotação se alterou levemente... Teremos uma leitura exata em
dois minutos.
Então já começou, Norton disse a si mesmo, e bem mais cedo do
que esperávamos; ainda estamos longe do periélio e do momento
lógico para uma mudança de órbita. Mas, sem dúvida, estava
ocorrendo algum tipo de mudança de posição – e poderia haver
outros choques a caminho.
Por enquanto, os efeitos do primeiro choque eram bem
evidentes, lá em cima no lençol curvo de água que parecia cair
perpetuamente do céu. A onda ainda estava a cerca de dez
quilômetros de distância e se estendia por toda a largura do Mar, da
margem norte à margem sul. Nas laterais, era uma espumante
parede branca, mas nas águas mais profundas era uma linha azul
quase invisível, movendo-se muito mais rápido do que o vagalhão
em cada um dos flancos. A resistência dos baixios já começava a
curvá-la em arco, com a parte central ganhando cada vez mais
dianteira.
– Sargento – disse Norton, com urgência na voz. – Isso é tarefa
sua. O que podemos fazer?
A sargento Barnes imobilizara completamente a jangada e
estudava a situação atentamente. Sua expressão, para alívio de
Norton, não mostrava nenhum sinal de alarme – mas sim de certa
empolgação, como um atleta habilidoso prestes a aceitar um
desafio.
– Gostaria que tivéssemos algumas sondagens – ela disse. – Se
estivermos em águas profundas, não há com que se preocupar.
– Então está tudo bem. Estamos ainda a quatro quilômetros da
praia.
– Espero que sim, mas quero estudar a situação.
Tornou a acionar o motor e balançou a Resolution até colocá-la
em marcha, rumando diretamente em direção à onda que se
aproximava. Norton calculou que a parte central, em seu rápido
movimento, os alcançaria em menos de cinco minutos, mas também
percebeu que ela não representava um sério perigo. Era apenas
uma ondulação veloz com uma fração de metro de altura, e mal
sacudiria o barco. As paredes de espuma que avançavam
lentamente, muito atrás, é que constituíam a verdadeira ameaça.
De repente, bem no centro do Mar, surgiu a linha de um
vagalhão. A onda claramente se chocara contra uma muralha
submersa, de vários quilômetros de extensão, não muito longe da
superfície. Ao mesmo tempo, os vagalhões nos dois flancos
desmoronaram ao depararem com águas mais profundas.
Placas antiespirros d’água, pensou Norton. Exatamente as
mesmas dos tanques propulsores da Endeavour – mas numa escala
mil vezes maior. Deve haver um complexo sistema dessas placas
em toda a volta do Mar, para amortecer qualquer onda o mais rápido
possível. A única coisa que importa agora é: estamos bem em cima
de uma delas?
A sargento Barnes estava um passo à sua frente. Fez uma
parada total da Resolution e lançou a âncora. Ela bateu no fundo em
apenas cinco metros.
– Levantar âncora! – gritou aos tripulantes. – Temos que sair
daqui!
Norton concordou entusiasticamente; mas em qual direção? A
sargento rumava a toda a velocidade em direção à onda, que estava
agora a apenas cinco quilômetros de distância. Pela primeira vez,
conseguiu ouvir o som de sua aproximação – um distante e
inconfundível rugido que ele nunca esperara ouvir dentro de Rama.
Então, a intensidade da onda mudou; a parte central desmoronava
mais uma vez – e os flancos tornavam a aumentar.
Tentou estimar a distância entre as placas defletoras submersas,
presumindo que estavam separadas por intervalos iguais. Se
estivesse correto, deveria haver mais uma; se conseguissem
imobilizar a jangada nas águas profundas entre elas, estariam
perfeitamente a salvo.
A sargento Barnes desligou o motor e lançou a âncora
novamente. Desceu trinta metros sem bater no fundo.
– Estamos fora de perigo – ela disse, com um suspiro de alívio. –
Mas vou manter o motor funcionando.
Só restavam, agora, as paredes retardadas de espuma ao longo
da costa; lá adiante, no centro do Mar, estava tudo calmo
novamente, com exceção da discreta ondulação azul que ainda
corria na direção deles. A sargento apenas mantinha a Resolution
na rota, em direção à turbulência, pronta para aplicar toda a força a
qualquer momento.
Foi então que, a apenas dois quilômetros adiante, o Mar
começou a espumar outra vez. Em fúria, formou uma corcova de
juba branca, e agora o rugido parecia encher o mundo inteiro. Acima
da onda de dezesseis quilômetros de altura do Mar Cilíndrico,
sobrepunha-se uma ondulação menor, como uma avalanche
retumbando montanha abaixo. E essa ondulação era grande o
bastante para matá-los.
A sargento Barnes deve ter visto a expressão nos rostos de seus
colegas tripulantes. Gritou mais alto que o rugir das ondas:
– Estão com medo de quê? Já enfrentei ondas maiores que essa.
Não era bem verdade; e ela tampouco acrescentou que sua
experiência anterior tinha sido num barco bem construído, não numa
jangada improvisada.
– Mas, se tivermos que saltar, esperem até eu dar o sinal.
Verifiquem o colete salva-vidas.
Ela é magnífica, pensou o comandante, obviamente desfrutando
cada minuto, como um guerreiro viking a caminho da batalha. E ela
provavelmente tem razão... A menos que tenhamos cometido um
grave erro de cálculo.
A onda começava a subir, curvando-se no alto, preparando-se
para rebentar. A inclinação acima deles provavelmente exagerava
sua altura, mas ela parecia enorme – uma força irresistível da
natureza que esmagaria tudo o que encontrasse pela frente.
Então, em segundos, a onda desmoronou, como se suas
fundações tivessem sido arrancadas por baixo. Estava sobre a
barreira submersa, em águas profundas novamente. Quando os
alcançou, um minuto depois, a Resolution apenas balançou para
cima e para baixo algumas vezes, antes de a sargento Barnes dar
meia-volta e partir a toda velocidade para o norte.
– Obrigado, Ruby. Foi esplêndido. Mas vamos chegar em casa
antes que ela apareça pela segunda vez?
– Provavelmente não. Ela vai voltar daqui a uns vinte minutos.
Mas, até lá, terá perdido toda a sua força. Mal iremos notá-la.
Agora que a onda tinha passado, podiam relaxar e desfrutar a
viagem – se bem que ninguém estaria completamente tranquilo até
retornarem a terra firme. A turbulência deixara redemoinhos errantes
na água e também provocara um cheiro ácido muito peculiar –
“como formigas esmagadas”, na acertada comparação de Jimmy.
Embora desagradável, o odor não provocou nenhum dos ataques de
enjoo que se poderiam esperar; era algo tão estranho que a
fisiologia humana não conseguia reagir.
Um minuto depois, a onda bateu de frente com a próxima
barreira submersa. Desta vez, visto de trás, o espetáculo não
impressionou, e os viajantes se envergonharam de seu medo
anterior. Começaram a se sentir os mestres do Mar Cilíndrico.
Por isso, tanto maior foi o choque quando, a não mais de cem
metros de distância, algo como uma roda girando devagar começou
a subir à tona. Reluzentes raios metálicos de cinco metros de
comprimento emergiram pingando do Mar, giraram por um instante
na claridade feérica de Rama e depois se espatifaram na água. Era
como se uma gigantesca estrela-do-mar com braços tubulares
tivesse aparecido na superfície.
À primeira vista, era impossível dizer se se tratava de um animal
ou de uma máquina. Então, tombou e ficou parcialmente inundada,
balançando para cima e para baixo nos delicados efeitos
remanescentes da onda.
Agora viam que havia nove braços, aparentemente articulados,
irradiando de um disco central. Dois deles estavam quebrados,
mutilados na junta externa. Os outros terminavam numa complicada
coleção de manipuladores que lembraram fortemente a Jimmy o
caranguejo que tinha encontrado. As duas criaturas provinham da
mesma linha evolutiva – ou da mesma prancheta de desenho.
No meio do disco havia uma pequena torre em que se alojavam
três grandes olhos. Dois estavam fechados e um aberto – e mesmo
este parecia inexpressivo e cego. Ninguém duvidou que estavam
observando os estertores de um estranho monstro, trazido à tona
pela turbulência submarina que acabara de passar.
Então, viram que ele não estava só. Nadando à sua volta, e
beliscando-lhe os membros que se moviam debilmente, havia dois
pequenos animais que pareciam duas lagostas crescidas. Estavam
despedaçando o monstro com bastante eficiência, e ele não fazia
nada para resistir, embora suas próprias garras parecessem
plenamente capazes de lidar com os atacantes.
Mais uma vez, Jimmy lembrou-se do caranguejo que destruíra a
Libélula. Observou atentamente o conflito unilateral que prosseguia
e rapidamente confirmou sua impressão.
– Olhe, capitão – sussurrou. – Está vendo? Não estão comendo
nada. Eles nem têm boca. Só estão cortando em pedaços. Foi
exatamente o que aconteceu com a Libélula.
– Tem razão. Estão desmontando a coisa... Como... como uma
máquina quebrada. – Norton franziu o nariz. – Mas jamais uma
máquina morta cheirou assim!
De repente, veio-lhe mais um pensamento.
– Meu Deus! E se eles vierem atrás de nós? Ruby, nos leve de
volta à praia o mais depressa possível!
A Resolution deu uma arrancada para a frente, com temerária
desconsideração pela vida de suas baterias. Atrás deles, os nove
raios da grande estrela-do-mar – não conseguiram pensar num
nome melhor – iam sendo cortados, encurtando cada vez mais, e
num instante os protagonistas daquele estranho espetáculo
mergulharam de volta às profundezas do Mar.
Não houve perseguição, mas só respiraram tranquilos quando a
Resolution encostou-se ao cais e eles pisaram, agradecidos, em
terra firme. Ao olhar de novo aquela misteriosa, e agora subitamente
sinistra, faixa de água, o comandante Norton decidiu, de uma vez
por todas, que ninguém jamais voltaria a navegá-la. Havia muitas
incógnitas, muitos perigos...
Voltou os olhos para as torres e os baluartes de Nova York, e
para o escuro penhasco do continente mais além. Estavam a salvo,
agora, da curiosidade humana.
Ele não voltaria a desafiar os deuses de Rama.
33
ARANHA

De agora em diante, decretara Norton, sempre haveria pelo menos


três pessoas no acampamento Alfa, e uma delas sempre estaria
acordada. Além disso, todos os grupos exploratórios seguiriam a
mesma rotina. Criaturas potencialmente perigosas estavam à solta
em Rama e, embora nenhuma tenha demonstrado hostilidade, um
comandante prudente não correria riscos.
Como segurança adicional, haveria sempre um observador no
Eixo, vigiando através de um poderoso telescópio. Daquele ponto,
todo o interior de Rama poderia ser esquadrinhado, e até o Polo Sul
parecia estar a apenas algumas centenas de metros de distância. O
território em torno de qualquer grupo de exploradores deveria ficar
sob constante observação; deste modo, esperava-se eliminar
qualquer possibilidade de surpresa. Era um bom plano – e fracassou
completamente.
Após a última refeição do dia, e pouco antes do período de
repouso das 22h, Norton, Rodrigo, Calvert e Laura Ernst assistiam
ao telenoticiário noturno transmitido especialmente para eles, a
partir da estação transmissora em Inferno, Mercúrio. Estavam
particularmente interessados no filme de Jimmy sobre o continente
sul e o retorno pelo Mar Cilíndrico – episódio que emocionara todos
os espectadores. Cientistas, comentaristas e membros do Comitê
de Rama tinham dado suas opiniões, quase todas contraditórias.
Ninguém chegou a um acordo sobre se a criatura semelhante a um
caranguejo que Jimmy encontrara era um animal, uma máquina, um
legítimo ramano – ou algo que não se encaixava em nenhuma
dessas categorias.
Tinham acabado de assistir, com uma clara sensação de náusea,
à estrela-do-mar gigante ser destruída por seus predadores, quando
descobriram que não estavam mais sozinhos. Havia um intruso no
acampamento.
Laura Ernst foi a primeira a notar. Ficou paralisada pelo choque
repentino, e então disse:
– Não se mexa, Bill. Agora, olhe devagar para a direita.
Norton virou a cabeça. A dez metros de distância, havia um tripé
de pernas esguias, coroado por um corpo esférico do tamanho de
uma bola de futebol. Fixados em volta dessa esfera, havia três olhos
grandes e inexpressivos, aparentemente com uma visão de 360
graus, e, abaixo da esfera, pendiam três apêndices que lembravam
chicotes. A criatura não tinha a estatura de um homem e parecia
frágil demais para ser perigosa, mas isso não desculpava o
descuido deles ao deixá-la esgueirar-se ali de surpresa. Para
Norton, a criatura lembrava uma aranha de três pernas, ou um
mosquito, e ele imaginou como ela tinha resolvido o problema –
desafio jamais enfrentado por qualquer animal terrestre – da
locomoção sobre três patas.
– O que acha, doutora? – sussurrou, tirando o som da tv.
– A usual simetria tríplice ramana. Não vejo como ela poderia nos
ferir, embora alguns chicotes sejam desagradáveis... e podem ser
venenosos, como os dos celenterados. Vamos manter posição e ver
o que ela vai fazer.
Depois de olhá-los, impassível, por vários minutos, a criatura
subitamente se moveu – e então puderam entender por que não
haviam percebido sua aproximação. Ela era rápida e deslocava-se
com um movimento rotativo tão extraordinário que o olho e a mente
humanos tinham grande dificuldade de acompanhar.
Tanto quanto Norton pôde discernir – e somente uma câmera de
alta velocidade poderia resolver a questão –, cada pata funcionava
como um pivô em torno do qual a criatura rodopiava o corpo. E, ele
não tinha certeza, mas também lhe pareceu que a cada poucos
“passos” ela invertia o sentido da rotação, enquanto os três chicotes
vibravam sobre o chão como um relâmpago, à medida que ela se
movia. Sua velocidade máxima – embora também fosse difícil
estimá-la – era de pelo menos 30 km/h.
Rapidamente, deu uma volta pelo acampamento, examinando
cada equipamento, delicadamente tocando as camas, cadeiras e
mesas improvisadas, os aparelhos de comunicação, recipientes de
alimentos, banheiros Electrosan, câmeras, tanques de água,
ferramentas – parecia não ignorar nada, exceto os quatro
observadores. Claramente, tinha inteligência suficiente para fazer
uma distinção entre os seres humanos e seus bens inanimados;
suas ações davam a nítida impressão de uma curiosidade
extremamente metódica.
– Quem me dera poder examiná-la! – Laura exclamou, frustrada,
enquanto a criatura continuava suas rápidas piruetas. – Vamos
tentar capturá-la?
– De que jeito? – foi a sensata pergunta de Calvert.
– Do mesmo jeito que os caçadores primitivos derrubam animais
velozes: dois pesos rodopiando nas pontas de uma corda. Isso nem
os machuca.
– Disso eu duvido – disse Norton. – Mas, mesmo que
funcionasse, não podemos arriscar. Não sabemos até onde vai a
inteligência dessa criatura, e um truque desses poderia facilmente
quebrar as pernas dela. Aí estaríamos em sérios apuros... com
Rama, com a Terra e com todo mundo.
– Mas tenho que obter um espécime!
– Vai ter que se contentar com a flor de Jimmy... A menos que
uma dessas criaturas coopere com você. O uso da força está fora
de cogitação. Que tal se alguma coisa pousasse na Terra e
decidisse que você daria um belo espécime para dissecção?
– Não quero dissecá-la – disse Laura, de modo algum
convincente. – Só quero examiná-la.
– Pois visitantes alienígenas poderiam ter a mesma atitude em
relação a você, mas isso não impediria que você passasse por um
período de desconforto antes de acreditar neles. Não devemos fazer
nada que possa ser interpretado como ameaça.
Norton citava o Regulamento da Nave, naturalmente, e Laura
sabia disso. Os interesses da ciência eram menos prioritários que os
da diplomacia espacial.
Na verdade, não havia necessidade de invocar considerações
tão elevadas; era simplesmente uma questão de bons modos. Todos
eram visitantes ali, que nunca tinham pedido permissão para
entrar...
A criatura parecia ter terminado a inspeção. Fez mais um circuito
em alta velocidade pelo acampamento e então disparou para uma
tangente – em direção à escadaria.
– Como será que ela vai lidar com os degraus? – Laura
ponderou. A pergunta foi logo respondida; a aranha ignorou-os
completamente e foi subindo a rampa suavemente curva sem
diminuir a velocidade.
– Controle Central – disse Norton. – Vocês poderão receber uma
visita daqui a pouco; deem uma olhada da escadaria Alfa, seção
seis. E, a propósito, muito obrigado pelo ótimo serviço de vigilância
que vocês nos prestaram.
Levou um minuto para o sarcasmo ser percebido; então o
observador do Eixo começou a balbuciar desculpas.
– Hã... Estou vendo alguma coisa, capitão, agora que o senhor
disse que ela está lá. Mas o que é?
– Sei tanto quanto você – respondeu Norton, enquanto apertava
o botão de Alerta Geral. – Acampamento Alfa chamando todos os
postos. Acabamos de receber a visita de uma criatura parecida com
uma aranha de três pernas muito finas, com cerca de dois metros de
altura, pequeno corpo esférico, que se desloca muito rápido num
movimento giratório. Parece inofensiva, mas é curiosa. Pode
esgueirar-se sem que vocês percebam. Por favor, respondam.
A primeira resposta veio de Londres, quinze quilômetros a leste.
– Nada incomum aqui, capitão.
Da mesma distância, a oeste, Roma respondeu, numa suspeita
voz sonolenta.
– O mesmo aqui, capitão. Ah, um momento...
– O que é?
– Larguei minha caneta aqui há um minuto... Desapareceu! O
que... Ah!
– Fale coisa com coisa!
– Não vai acreditar, capitão. Estava fazendo algumas
anotações... o senhor sabe, gosto de escrever, isso não perturba
ninguém... Estava usando minha esferográfica preferida, de quase
duzentos anos... Pois agora ela está no chão, a cinco metros daqui!
Peguei... Graças a Deus não está danificada.
– E como acha que ela foi parar lá?
– Hã... Posso ter cochilado por alguns minutos. Foi um dia difícil.
Norton suspirou, mas absteve-se de comentários; eram tão
poucos, e tinham tão pouco tempo para explorar um mundo! Nem
sempre o entusiasmo superava a exaustão, e ele se perguntou se
estariam correndo riscos desnecessários. Talvez não devesse dividir
seus homens em grupos tão pequenos, nem tentar cobrir tanto
território. Mas estava sempre ciente da rápida passagem dos dias e
dos mistérios não resolvidos à sua volta. Tinha cada vez mais
certeza de que algo estava prestes a acontecer, e que seriam
forçados a abandonar Rama mesmo antes de ele alcançar o periélio
– a hora da verdade em que a forçosa mudança de órbita teria de
ocorrer.
– Ouçam com atenção, Eixo, Roma, Londres... todo mundo – ele
disse. – Quero um relatório a cada meia hora durante toda a noite.
Devemos presumir que, de agora em diante, podemos ter visitas a
qualquer momento. Algumas podem ser perigosas, mas temos que
evitar incidentes a todo custo. Todos conhecem as diretrizes sobre o
assunto.
Isso era verdade; fazia parte do treinamento – contudo, talvez
nenhum deles tivesse realmente acreditado que o tantas vezes
debatido “contato físico com alienígenas inteligentes” ocorreria no
seu tempo – muito menos que eles próprios o experimentariam.
Treinamento era uma coisa, realidade era outra; e ninguém podia
ter certeza de que os antigos instintos humanos de autopreservação
não dominariam durante uma emergência. No entanto, era essencial
conceder o benefício da dúvida a cada entidade que encontrassem
em Rama, até o último minuto possível, e até além disso.
O comandante Norton não queria ser lembrado pela História
como o homem que provocou a primeira guerra interplanetária.

Em algumas horas, havia centenas de aranhas espalhadas por


toda a planície. Através do telescópio, via-se que o continente sul
também estava infestado delas – mas não, ao que parecia, a ilha de
Nova York.
Já não prestavam atenção nos exploradores e, depois de algum
tempo, os exploradores já não prestavam atenção nelas – embora,
de vez em quando, Norton ainda detectasse um brilho predador nos
olhos da comandante médica. Tinha certeza de que nada lhe
agradaria mais do que uma daquelas aranhas sofrer um infeliz
acidente, e ela era bem capaz de forjar um, no interesse da ciência.
Parecia virtualmente certo que as aranhas não eram inteligentes;
os corpos eram demasiado pequenos para conter muita coisa, no
que diz respeito a cérebros, e, de fato, era difícil entender onde
estocavam toda a energia para se moverem. Contudo, seu
comportamento era curiosamente intencional e coordenado;
pareciam estar em toda a parte, mas nunca visitavam o mesmo
lugar duas vezes. Norton às vezes tinha a impressão de que
procuravam alguma coisa. O que quer que fosse, aparentemente
não tinha sido encontrado.
Subiram até o Eixo Central, ainda desprezando as três grandes
escadarias. Não ficou claro como conseguiram escalar as partes
verticais, mesmo em gravidade quase zero; Laura especulou que
eram equipadas com ventosas.
E então, com evidente deleite, ela conseguiu o tão desejado
espécime. O Controle Central comunicou que uma aranha caíra da
superfície vertical e jazia, morta ou incapacitada, na primeira
plataforma. O tempo que Laura levou para subir da planície até lá foi
um recorde que jamais seria superado.
Quando chegou à plataforma, descobriu que, apesar da baixa
velocidade de impacto, a criatura tinha quebrado todas as pernas.
Os olhos ainda estavam abertos, mas não mostraram reação a
nenhum exame externo. Até mesmo um cadáver humano fresco
teria mais vida, pensou Laura; assim que levou o prêmio até a
Endeavour, começou a preparar seu kit de dissecação.
A aranha era tão frágil que quase se despedaçou sem sua ajuda.
Laura desarticulou as pernas, e então passou a trabalhar na
delicada carapaça, que se dividia em três círculos e se abria como
uma laranja descascada.
Após alguns momentos de absoluta incredulidade – pois não
havia nada que ela pudesse reconhecer ou identificar –, tirou uma
série de cuidadosas fotografias. Por fim, apanhou seu escalpelo.
Por onde começar? Sentiu vontade de fechar os olhos e
esfaqueá-la aleatoriamente, mas isso não seria muito científico.
A lâmina penetrou praticamente sem resistência. Um segundo
depois, o grito indecoroso da comandante médica ecoou em cada
canto da Endeavour.
Irritado, o sargento McAndrews levou uns vinte minutos para
acalmar os assustados simps.
34
SUA EXCELÊNCIA LAMENTA...

– Como todos os senhores sabem – disse o Embaixador de Marte –,


muita coisa aconteceu desde nossa última reunião. Temos muito a
discutir... e decidir. Por isso, lamento particularmente que nosso
colega de Mercúrio não esteja aqui.
Esta última afirmação não era totalmente exata. O dr. Bose não
lamentava particularmente que ELE, o embaixador mercuriano,
estivesse ausente. Teria sido muito mais sincero dizer que estava
preocupado. Todos os seus instintos diplomáticos lhe diziam que
alguma coisa estava acontecendo e, embora suas fontes de
informação fossem excelentes, não tinha nenhum indício do que
poderia ser.
A carta em que o embaixador se desculpava era cortês e muito
pouco comunicativa. Sua Excelência lamentava que negócios
urgentes e inevitáveis o tivessem impedido de comparecer à
reunião, pessoalmente ou por vídeo. O dr. Bose achava muito difícil
imaginar qualquer coisa mais urgente – ou mais importante – do que
Rama.
– Dois de nossos membros têm declarações a fazer. Gostaria de
começar dando a palavra ao professor Davidson.
Houve um sussurro alvoroçado entre os outros cientistas do
Comitê. A maioria achava que o astrônomo, com seu conhecido
ponto de vista cósmico, não era a pessoa indicada para ser
presidente do Conselho Consultivo Espacial. Às vezes, ele dava a
impressão de que as atividades da vida inteligente eram uma infeliz
irrelevância no majestoso universo de estrelas e galáxias, e que não
era de bom-tom dar-lhes muita atenção. Isso não atraía a simpatia
de exobiólogos como o dr. Perera, que assumia uma perspectiva
exatamente oposta. Para eles, o único propósito do universo era a
produção de inteligência, e tendiam a tratar com desdém fenômenos
puramente astronômicos. “Mera matéria morta” era uma de suas
frases favoritas.
– Sr. Embaixador – começou o cientista –, estive analisando o
curioso comportamento de Rama nos últimos dias e gostaria de
apresentar minhas conclusões. Algumas delas são espantosas.
O dr. Perera pareceu surpreso, depois satisfeito consigo mesmo.
Aprovava firmemente tudo o que espantasse o professor Davidson.
– Em primeiro lugar, houve a notável série de eventos quando
aquele jovem tenente sobrevoou o hemisfério sul. As descargas
elétricas em si, embora espetaculares, não são importantes; é fácil
demonstrar que continham relativamente pouca energia. Mas
coincidiram com a mudança na velocidade de rotação de Rama e
em sua atitude... ou seja, sua orientação no espaço. Isso deve ter
envolvido uma enorme quantidade de energia; as descargas que
quase custaram a vida do sr. ... hã... Pak não passaram de um
subproduto... talvez um incômodo que teve de ser minimizado por
aqueles gigantescos para-raios no Polo Sul...
... Tirei duas conclusões disso. Quando uma espaçonave – e
devemos nos referir a Rama como uma espaçonave, apesar de
suas fantásticas dimensões – realiza uma mudança de atitude,
geralmente significa que está prestes a mudar de órbita. Portanto,
devemos levar a sério as opiniões dos que acreditam que Rama
pode estar se preparando para se tornar mais um planeta de nosso
Sistema Solar, em vez de retornar às estrelas...
... Se for este o caso, a Endeavour, evidentemente, precisa estar
preparada para desatracar – é isso o que as espaçonaves fazem? –
a qualquer momento. Ela pode estar correndo sério perigo enquanto
estiver fisicamente ligada a Rama. Imagino que o comandante
Norton já esteja ciente dessa possibilidade, mas acho que devemos
enviar-lhe um aviso adicional.
– Muito obrigado, professor Davidson. Pois não, dr. Solomons?
– Gostaria de fazer um comentário – disse o historiador da
Ciência. – Rama parece ter feito uma mudança na rotação sem usar
jatos ou dispositivos de reação. Isso deixa apenas duas
possibilidades, ao que me parece.
... A primeira é que Rama tem giroscópios internos, ou algo
equivalente. Devem ser enormes; onde estão?...
... A segunda possibilidade, que subverteria toda a nossa Física,
é que ele tem um sistema de propulsão não reativo. A chamada
propulsão espacial, na qual o professor Davidson não acredita. Se
assim for, Rama pode ser capaz de fazer praticamente qualquer
coisa. Seremos completamente incapazes de prever seu
comportamento, mesmo no nível físico mais evidente.
Os diplomatas, obviamente, ficaram um tanto aturdidos com essa
conversa, e o astrônomo recusou-se a ser arrastado para a
discussão. Já se aventurara o bastante por um dia.
– Fico com as leis da Física, se não se importam, até que eu seja
forçado a abandoná-las. Se não encontramos nenhum giroscópio
em Rama, pode ser que não tenhamos procurado o suficiente, ou
pelo menos não no lugar certo.
O Embaixador Bose percebeu que o dr. Perera estava ficando
impaciente. Normalmente o exobiólogo gostava, como qualquer
outro, de entrar em especulações; mas agora, pela primeira vez,
tinha alguns fatos sólidos. Sua ciência, há tanto tempo empobrecida,
enriquecera da noite para o dia.
– Muito bem... Se não houver mais comentários... creio que o dr.
Perera tem informações importantes para nós.
– Obrigado, senhor Embaixador. Como todos vimos, finalmente
obtivemos um espécime da forma de vida ramana e observamos
vários outros de perto. A dra. Ernst, comandante médica da
Endeavour, nos enviou um relatório completo da criatura
semelhante a uma aranha que ela dissecou...
... Devo dizer, de antemão, que alguns resultados são
espantosos e, em quaisquer outras circunstâncias, eu teria me
recusado a acreditar neles...
... A aranha é definitivamente orgânica, embora sua química seja
diferente da nossa em muitos aspectos, contendo quantidades
consideráveis de metais leves. No entanto, hesito em qualificá-la de
animal, por várias razões fundamentais...
... Em primeiro lugar, parece não ter boca, estômago ou
intestinos... nenhum método de ingerir alimento! Não tem vias de
entrada de ar, pulmões, sangue, sistema reprodutor...
... Talvez os senhores estejam se perguntando o que é que ela
tem. Bem, existe uma musculatura simples que controla as três
pernas e os três apêndices que parecem chicotes ou tentáculos.
Existe um cérebro, bastante complexo, quase todo voltado ao
controle da visão triocular notavelmente desenvolvida da criatura.
Mas oitenta por cento do corpo consiste em um favo de grandes
células, e foi isso que causou uma surpresa tão desagradável à dra.
Ernst, quando ela iniciou a dissecação. Se ela tivesse tido mais
sorte, poderia tê-lo reconhecido a tempo, pois é a única estrutura
ramana que existe também na Terra – embora apenas num punhado
de animais marinhos...
... Em sua maior parte, a aranha é apenas uma bateria, muito
parecida com a que se encontra em raias e células elétricas. Mas,
neste caso, aparentemente, ela não é usada como arma de defesa.
É a fonte de energia da criatura. E é por isso que não há aparelho
digestivo ou respiratório; ela não precisa de sistemas tão primitivos.
E, diga-se de passagem, isso significa que ela ficaria perfeitamente
à vontade no vácuo...
... Portanto, temos uma criatura que, para todos os efeitos, nada
mais é do que um olho móvel. Ela não tem nenhum órgão de
manipulação; aqueles tentáculos são frágeis demais. Se eu
recebesse tais especificações, diria que se trata de um simples
dispositivo de reconhecimento...
... O comportamento delas certamente se encaixa nessa
descrição. Tudo o que as aranhas fazem é correr de um lado para o
outro e olhar coisas. É tudo o que podem fazer...
... Mas os outros animais são diferentes. O caranguejo, a estrela-
do-mar, os tubarões – por falta de melhores termos – obviamente
são capazes de manipular o ambiente e parecem ser especializados
em diversas funções. Presumo que também sejam movidos a
eletricidade, já que, como a aranha, parecem não ter boca...
... Tenho certeza de que os senhores conseguem avaliar os
problemas biológicos suscitados por tudo isso. Tais criaturas
poderiam evoluir naturalmente? Creio que não. Elas parecem ter
sido projetadas como máquinas, para trabalhos específicos. Se eu
tivesse que descrevê-las, diria que são robôs... robôs biológicos...
algo sem análogos na Terra...
... Se Rama é uma espaçonave, talvez elas sejam parte da
tripulação. Quanto a como nascem... ou como são criadas... isso
não sei dizer. Mas imagino que a resposta esteja lá em Nova York.
Se o comandante Norton e seus homens puderem esperar o
suficiente, talvez encontrem criaturas cada vez mais complexas,
com comportamento imprevisível. Em algum ponto do caminho, é
possível que encontrem os próprios ramanos... os verdadeiros
construtores daquele mundo...
... E, quando isso acontecer, cavalheiros, não haverá
absolutamente nenhuma dúvida...
35
ENTREGA ESPECIAL

O comandante Norton dormia profundamente quando seu


comunicador pessoal o arrancou de seus bons sonhos. Estava de
férias com a família em Marte, sobrevoando o impressionante pico
nevado de Nix Olímpica – o maior vulcão do Sistema Solar. O
pequeno Billie começava a lhe dizer algo; agora ele nunca saberá o
que era.
O sonho desapareceu; a realidade era o subcomandante da
nave.
– Desculpe acordá-lo, capitão – disse o tenente-comandante
Kirchoff. – Mensagem com prioridade 3-A do Quartel-General.
– Vamos ouvir – respondeu Norton, sonolento.
– Não posso. Está classificada como exclusiva para o
comandante.
Norton acordou no mesmo instante. Recebera tal mensagem
apenas três vezes em toda a sua carreira e, em cada uma das
ocasiões, era sinônimo de problema.
– Caramba! – ele disse. – O que vamos fazer agora?
O subcomandante não se deu ao trabalho de responder. Ambos
entendiam o problema perfeitamente; era um caso que o
Regulamento da Nave jamais previra. Normalmente, um
comandante nunca estava a mais de cinco minutos de seu gabinete,
e do livro de código no cofre particular. Se saísse naquele momento,
Norton talvez chegasse à nave – exausto – em quatro ou cinco
horas. Não era o melhor modo de lidar com uma prioridade AAA.
– Jerry – ele disse, por fim. – Quem está no painel de
comunicações?
– Ninguém. Eu mesmo estou fazendo a ligação.
– O gravador está desligado?
– Sim, por uma estranha infração do regulamento.
Norton sorriu. Jerry era o melhor subcomandante com quem
trabalhara. Ele pensava em tudo.
– Certo. Você sabe onde está minha chave. Me ligue de volta.
Esperou, com o máximo de paciência que pôde, pelos dez
minutos seguintes, tentando – sem muito sucesso – pensar em
outros problemas. Detestava desperdiçar esforço mental; era muito
improvável que conseguisse adivinhar a mensagem que estava para
chegar, e logo tomaria conhecimento do conteúdo. Só então
começaria a se preocupar efetivamente.
Quando o subcomandante o chamou de volta, a considerável
tensão em sua voz era evidente.
– Não é realmente urgente, capitão... Uma hora não fará
nenhuma diferença. Mas prefiro evitar o rádio. Vou enviar por um
mensageiro.
– Mas por que...OK, tudo bem. Confio em seu julgamento. Quem
vai trazer a mensagem pelas câmaras pressurizadas?
– Eu mesmo. Chamarei o senhor quando eu chegar ao Eixo.
– O que deixa Laura no comando.
– Por uma hora, no máximo. Volto para a nave em seguida.
Um médico comandante não tinha o treinamento especializado
para ser comandante interino, assim como não se podia esperar que
um comandante realizasse uma cirurgia. Em situações de
emergência, os dois serviços já tinham sido trocados, com êxito;
mas não era recomendável. Bem, uma ordem já tinha sido infringida
essa noite...
– Oficialmente, você não saiu da nave. Você acordou Laura?
– Sim. Ela está encantada com a oportunidade.
– Por sorte, médicos estão acostumados a guardar segredos. Ah,
você acusou o recebimento da mensagem?
– Claro, em seu nome.
– Então, estarei aguardando.
Agora era quase impossível evitar a ansiedade. “Não é urgente...
mas prefiro evitar o rádio...”
Uma coisa era certa. O comandante não iria dormir muito essa
noite.
36
OBSERVADOR DE BIÔMATOS

O sargento Pieter Rousseau sabia por que tinha se voluntariado


para aquele serviço; em muitos aspectos, era a realização de um
sonho de infância. Tornara-se fascinado por telescópios quando
tinha apenas seis ou sete anos, e passou boa parte da juventude
colecionando lentes de todas as formas e tamanhos. Ele as
montava em tubos de papelão, fazendo instrumentos de potência
cada vez maior, até se familiarizar com a Lua e os planetas, com as
estações espaciais mais próximas e toda a paisagem no raio de
trinta quilômetros de sua casa.
Tivera a sorte nascer em meio às montanhas do Colorado; em
quase todas as direções, a vista era espetacular e inesgotável.
Passara horas explorando, em perfeita segurança, os picos que
todos os anos ceifavam a vida de alpinistas desatentos. Embora
tivesse visto muita coisa, imaginara muito mais; gostava de fingir
que atrás de cada topo rochoso, além do alcance do telescópio,
havia reinos mágicos repletos de criaturas maravilhosas. E, assim,
durante anos evitou visitar os lugares que suas lentes lhe traziam,
pois sabia que a realidade não poderia estar à altura de seu sonho.
Agora, no eixo central de Rama, podia explorar maravilhas que
superavam as fantasias mais loucas da juventude. Um mundo
inteiro se espalhava diante de seus olhos – um mundo pequeno, é
verdade, mas um homem poderia passar a vida toda explorando
seus quatro mil quilômetros quadrados, mesmo que fosse um
território morto e imutável.
Agora, porém, a vida, com todas as suas infinitas possibilidades,
chegara a Rama. Se os robôs biológicos não eram criaturas vivas,
certamente eram excelentes imitações.
Ninguém sabia quem tinha inventado a palavra “biômato”;
pareceu ter entrado imediatamente em uso, num tipo de geração
espontânea. De seu posto privilegiado no Eixo, Pieter era o
observador-chefe dos biômatos e estava começando – segundo
acreditava – a compreender alguns padrões de comportamento
daqueles seres.
As aranhas eram sensores móveis, utilizando a visão – e
provavelmente o tato – para examinar todo o interior de Rama. Em
dado momento, tinha havido centenas delas correndo de lá para cá
em alta velocidade, mas, em menos de dois dias, tinham
desaparecido; agora, era muito incomum ver sequer uma.
Foram substituídas por um verdadeiro jardim zoológico de
criaturas muito mais impressionantes; não foi tarefa fácil pensar em
nomes adequados para elas. Havia os Limpadores de Vidraças,
com grandes pés almofadados, que pareciam polir, à medida que
caminhavam, toda a extensão dos seis sóis artificiais de Rama.
Suas enormes sombras, projetadas em todo o diâmetro do mundo,
às vezes provocavam eclipses temporários do outro lado.
O caranguejo que destruíra a Libélula parecia ser um Lixeiro.
Uma cadeia de revezamento formada por criaturas idênticas se
aproximara do acampamento Alfa e recolhera os destroços que
tinham sido impecavelmente empilhados nos arredores; teriam
levado tudo, se Norton e Mercer não tivessem resistido firmemente.
A confrontação fora tensa, mas breve; daí em diante, os Lixeiros
pareceram entender que não lhes era permitido tocar em nada, e
chegavam em intervalos regulares para ver se seus serviços eram
necessários. Era um arranjo muito conveniente e indicava um alto
grau de inteligência – seja da parte dos próprios Lixeiros ou de
alguma entidade controladora em outro lugar.
A remoção do lixo em Rama era muito simples; todo o lixo era
jogado no Mar, onde, presumivelmente, era decomposto em formas
que pudessem ser reutilizadas. O processo era rápido; a Resolution
desaparecera da noite para o dia, para grande aborrecimento de
Ruby Barnes. Norton a consolara observando que a jangada
desempenhara seu trabalho magnificamente – e que ele jamais teria
permitido que alguém a usasse de novo. Talvez os tubarões fossem
menos perspicazes que os Lixeiros.
Um astrônomo que descobrisse um planeta desconhecido não
teria ficado mais feliz do que Pieter, quando ele avistava um novo
tipo de biômato e conseguia uma boa foto através de seu telescópio.
Infelizmente, todas as espécies interessantes pareciam estar lá no
Polo Sul, onde executavam tarefas misteriosas em volta dos Chifres.
Alguma coisa semelhante a uma centopeia com ventosas era vista
de tempos em tempos explorando o próprio Grande Chifre,
enquanto nos picos mais baixos Pieter vislumbrara uma corpulenta
criatura, que poderia ser um cruzamento entre um hipopótamo e
uma escavadeira. E havia até uma girafa de dois pescoços, que,
aparentemente, agia como um guindaste móvel.
Presumivelmente, Rama, como qualquer nave, exigia testes,
verificações e reparos após a sua imensa viagem. A tripulação já
estava empenhada no trabalho; quando apareceriam os
passageiros?
Classificar biômatos não era a tarefa principal de Pieter; suas
ordens eram monitorar os dois ou três grupos exploratórios que
estavam sempre em atividade, para evitar que tivessem problemas
e alertá-los se qualquer coisa se aproximasse. Revezava-se a cada
seis horas com quem quer que estivesse disponível, embora, mais
de uma vez, estivera de serviço por doze horas seguidas. O
resultado era que, agora, conhecia a geografia de Rama melhor do
que qualquer pessoa jamais conheceria. Aquele mundo lhe era tão
familiar quanto as montanhas do Colorado em sua juventude.
Quando Jerry Kirchoff emergiu da câmara pressurizada Alfa,
Pieter percebeu na hora que algo incomum estava acontecendo.
Transferências de pessoal nunca ocorriam durante o período de
sono, e já passava da meia-noite, de acordo com o Horário da
Missão. Então Pieter se lembrou de como a mão de obra era
escassa e ficou chocado com uma irregularidade mais assustadora.
– Jerry... Quem está no comando da nave?
– Eu – disse o subcomandante, com frieza, enquanto abria o
capacete. – Você não acha que eu deixaria a ponte durante o meu
turno, não é?
Enfiou a mão na bolsa de seu traje e tirou dali uma pequena lata
com o rótulo: SUCO DE LARANJA CONCENTRADO – PARA FAZER CINCO LITROS.
– Você é bom nisso, Pieter. O capitão está esperando.
Pieter avaliou o peso da lata e disse:
– Espero que tenha colocado bastante peso aqui dentro... Às
vezes as coisas ficam presas na primeira plataforma.
– Bem, você é o perito no assunto.
E era verdade. Os observadores do Eixo tinham adquirido muita
prática em jogar lá para baixo pequenos objetos que tinham sido
esquecidos ou eram necessários com urgência. O truque era fazer
com que atravessassem em segurança a zona de baixa gravidade e
garantir que o Efeito Coriolis não os carregasse para muito longe do
acampamento, durante a descida de oito quilômetros.
Pieter plantou firmemente os pés no chão, segurou a lata e
lançou-a na superfície do penhasco. Não mirou diretamente o
acampamento Alfa, mas um ponto a 30 graus de distância.
Quase imediatamente, a resistência do ar privou-a de sua
velocidade inicial, mas então a pseudogravidade de Rama assumiu
o controle, e a lata começou a se mover para baixo numa
velocidade constante. Bateu uma vez perto da base da escada e
saltou em câmera lenta, o que a livrou da primeira plataforma.
– Agora está tudo bem – disse Pieter. – Quer apostar?
– Não – foi a pronta resposta. – Você sabe das probabilidades.
– Você não tem espírito esportivo. Mas afirmo: ela vai parar a
trezentos metros do acampamento.
– Não parece muito perto.
– Você deveria tentar. Uma vez vi o Joe errar por dois
quilômetros.
A lata já não saltava; a gravidade se tornara forte o bastante para
aderi-la à superfície curva da cúpula norte. Quando alcançou a
segunda plataforma, ela rolava a 20 ou 30 km/h e alcançara a
velocidade máxima permitida pelo atrito.
– Agora temos que esperar – disse Pieter, sentando-se ao
telescópio para não perder de vista a mensageira. – Vai chegar lá
em dez minutos. Ah, lá vem o capitão... Já me acostumei a
reconhecer as pessoas deste ângulo... Agora ele está olhando para
nós.
– Creio que esse telescópio lhe dê uma sensação de poder.
– Ah, dá, sim. Sou a única pessoa que sabe tudo o que está
acontecendo em Rama. Pelo menos, pensava que sabia –
acrescentou, melancolicamente, lançando a Kirchoff um olhar de
repreensão.
– Se isso vai deixá-lo feliz, o capitão descobriu que estava sem
creme dental.
Depois disso, a conversa esmoreceu; mas, por fim, Pieter disse:
– É pena você não ter feito a aposta... Ele teve que andar só
cinquenta metros... Agora ele viu a lata... Missão cumprida.
– Obrigado, Pieter... Excelente trabalho. Pode voltar a dormir.
– Dormir! Estou de plantão até às 4h.
– Desculpe... Você deve ter dormido. Senão, como teria sonhado
tudo isso?

QG DA OBSERVAÇÃO ESPACIAL PARA COMANDANTE DA SS


ENDEAVOUR, PRIORIDADE AAA. CLASSIFICAÇÃO: EXCLUSIVA
PARA O COMANDANTE. SEM REGISTRO PERMANENTE.
SPACEGUARD RELATA VEÍCULO DE ALTA VELOCIDADE
APARENTEMENTE LANÇADO DE MERCÚRIO HÁ 10 OU 12 DIAS
PARA INTERCEPTAR RAMA. SE NÃO HOUVER MUDANÇA DE
ÓRBITA, CHEGADA PREVISTA PARA AS 15H DO DIA 322. TALVEZ
SEJA NECESSÁRIO EVACUAR ANTES. AGUARDE NOVO AVISO.
c. c.

Norton leu a mensagem meia dúzia de vezes para memorizar a


data. Era difícil acompanhar o tempo dentro de Rama; teve de olhar
o calendário de seu relógio para ver que estavam no dia 315. Talvez
tivessem apenas uma semana...
A mensagem era assustadora, não apenas pelo que dizia, mas
pelo que insinuava. Os mercurianos tinham realizado um
lançamento clandestino – isso, em si, já era uma infração da Lei
Espacial. A conclusão era óbvia; seu “veículo” só poderia ser um
míssil.
Mas por quê? Era inconcebível – bem, quase inconcebível – que
se arriscassem a pôr a Endeavour em perigo; portanto,
presumivelmente, ele receberia amplos alertas dos próprios
mercurianos. Numa emergência, poderia partir em poucas horas,
mas o faria sob veementes protestos, e apenas por ordem do
comandante em chefe.
Devagar, e muito pensativo, atravessou o complexo improvisado
de suporte de vida e jogou a mensagem num Electrosan. O brilho da
luz do laser irrompendo através da fenda sob o assento informou
que as exigências de segurança tinham sido satisfeitas. Pena que
nem todos os problemas, disse a si mesmo, pudessem ser
resolvidos de maneira tão rápida e higiênica.
37
MÍSSIL

O míssil ainda estava a cinco milhões de quilômetros de distância


quando o clarão dos jatos-freios de plasma tornou-se nitidamente
visível no telescópio principal da Endeavour. Àquela altura, o
segredo já se espalhara, e Norton relutantemente ordenara a
segunda e talvez última evacuação de Rama; mas só partiria se os
eventos não lhe dessem outra alternativa.
Quando concluiu a manobra de frenagem, o visitante indesejável
de Mercúrio estava a apenas cinquenta quilômetros de Rama e,
aparentemente, realizava uma sondagem através de suas câmeras
de tv. Elas estavam claramente visíveis – uma na proa e outra na
popa –, assim como várias pequenas antenas e uma grande
parabólica apontada constantemente para a distante estrela de
Mercúrio. Norton imaginou quais instruções vinham por aquele feixe,
e que informações voltavam por ele.
No entanto, os mercurianos não poderiam aprender nada que já
não soubessem; tudo o que a Endeavour descobrira fora transmitido
para todo o Sistema Solar. Aquele míssil – que quebrara todos os
recordes de velocidade para chegar até ali – só poderia ser uma
extensão da vontade de seus construtores, um instrumento de seu
objetivo. Esse objetivo em breve seria conhecido, pois em três horas
o embaixador mercuriano nos Planetas Unidos falaria à Assembleia
Geral.
Oficialmente, o míssil não existia. Não trazia nenhuma marca de
identificação, nem transmitia em qualquer frequência padrão. Era
uma grave infração da lei, mas nem a própria spaceguard protestara
formalmente. Todos aguardavam, impacientes e nervosos, para ver
o que Mercúrio faria.
Fazia três dias que a existência do míssil – e sua origem – fora
anunciada; em todo esse tempo, os mercurianos permaneceram
teimosamente calados. Eram muito bons nisso, quando lhes
convinha.
Alguns psicólogos alegaram ser quase impossível entender
plenamente a mentalidade de qualquer pessoa nascida e criada em
Mercúrio. Para sempre exilados da Terra, por conta de sua
gravidade três vezes mais forte, os mercurianos podiam descer na
Lua e contemplar a pequena distância até o planeta de seus
ancestrais – ou mesmo de seus próprios pais –, mas jamais
poderiam visitá-lo. Assim, inevitavelmente, alegavam que não
visitavam a Terra porque não queriam.
Fingiam desprezar as chuvas delicadas, as planícies, os lagos e
mares, o céu azul – todas as coisas que só podiam conhecer
através de gravações. Como seu planeta era banhado por tanta
energia solar que a temperatura diurna muitas vezes atingia 600
graus, afetavam uma arrogância áspera que não resistia nem por
um instante a um exame mais atento. Na verdade, tendiam a ser
fisicamente fracos, já que só podiam sobreviver mantendo-se
totalmente isolados de seu ambiente. Mesmo se tolerasse a
gravidade, um mercuriano sucumbiria rapidamente a um dia de calor
em qualquer país equatorial da Terra.
Contudo, em questões que realmente importavam, eles eram
resistentes. A pressão psicológica exercida por aquela estrela voraz
tão próxima, os problemas de engenharia para alcançar as
entranhas de um planeta renitente e arrancar de lá todas as
necessidades da vida – tudo isso tinha criado uma cultura espartana
e, em muitos aspectos, altamente admirável. Podia-se confiar neles;
se prometiam algo, cumpriam –, mas a conta poderia ser alta. Os
próprios mercurianos brincavam que, se o Sol um dia emitisse sinais
de que iria explodir em nova, eles assumiriam o compromisso de
controlar o processo – mas só depois de acertarem os honorários.
Uma piada não mercuriana dizia que qualquer criança que
demonstrasse interesse em arte, filosofia ou matemática abstrata
era imediatamente condenada a trabalhos forçados nas fazendas
hidropônicas. No caso de criminosos e psicopatas, isso não era
piada. Crime era um dos luxos a que Mercúrio não podia se permitir.
O comandante Norton estivera em Mercúrio uma vez, ficara
enormemente impressionado – como todos os visitantes – e fizera
muitos amigos mercurianos. Apaixonara-se por uma moça em Porto
Lúcifer e até pensara em assinar um contrato de três anos, mas a
desaprovação dos pais a qualquer um oriundo além da órbita de
Vênus tinha sido forte demais. Foi melhor assim.
– Mensagem prioridade 3-a da Terra, capitão – disse a ponte. –
Voz e texto confirmatório do comandante em chefe. Pronto para
receber?
– Verifique e arquive o texto; envie a mensagem de voz.
– Aí vai.
O almirante Hendrix parecia calmo e prosaico, como se estivesse
emitindo uma ordem de rotina à frota, e não lidando com uma
situação única na história do espaço. Por outro lado, não era ele que
estava a apenas dez quilômetros da bomba.

Comandante em chefe para comandante, Endeavour. Este é um


breve resumo da situação tal qual a vemos agora. O senhor sabe
que a Assembleia Geral irá se reunir às 14h e o senhor ouvirá os
trabalhos. É possível que tenha de agir imediatamente, sem
consulta; daí as presentes instruções.
Analisamos as fotos que o senhor nos enviou; o veículo é uma
sonda espacial padrão, modificada para alto impulso e
provavelmente transportada em laser, para ganhar velocidade
inicial. Tamanho e massa condizem com uma bomba de fusão na
faixa de 500 a 1.000 megatons; os mercurianos utilizam,
rotineiramente, até 100 megatons em suas atividades de mineração,
portanto não teriam dificuldade alguma em montar essa ogiva.
Nossos peritos também calculam que esse seria o tamanho
mínimo necessário para garantir a destruição de Rama. Se fosse
detonada contra a parte mais fina do casco – abaixo do Mar
Cilíndrico –, ele se romperia e a rotação de Rama completaria a sua
desintegração.
Presumimos que os mercurianos, se realmente estão planejando
tal ato, lhe darão tempo suficiente para evacuar. Para sua
informação, os raios gama emitidos nessa explosão podem ser
perigosos a vocês até um raio de mil quilômetros.
Mas esse não é o maior perigo. Os fragmentos de Rama,
pesando toneladas e girando a quase 1.000 km/h, poderiam destruí-
los a uma distância ilimitada. Portanto, recomendamos que se
afastem ao longo do eixo de rotação, já que nenhum fragmento será
arremessado a partir dessa direção. Dez mil quilômetros devem
proporcionar uma margem de segurança adequada.
Esta mensagem não pode ser interceptada; está sendo
transmitida por um roteador múltiplo pseudoaleatório, para que eu
possa falar em inglês claro. Sua resposta pode não ser segura,
então fale com discrição e utilize códigos, se necessário. Tornarei a
chamá-lo imediatamente após a discussão da Assembleia Geral.
Mensagem concluída. Comandante em chefe desliga.
38
ASSEMBLEIA GERAL

Segundo os livros de História – embora ninguém realmente


acreditasse –, houve um tempo em que a antiga Organização das
Nações Unidas tinha 172 membros. Os Planetas Unidos tinham
apenas sete; e isso às vezes já era ruim o bastante. Em ordem de
distância do Sol, eram eles Mercúrio, Terra, Luna, Marte,
Ganimedes, Titã e Tritão.
A lista continha inúmeras omissões e ambiguidades, que,
presumivelmente, o futuro iria retificar. Os críticos não se cansavam
de observar que a maior parte dos membros dos Planetas Unidos
nem era constituída de planetas, mas de satélites. Fora o ridículo de
os quatro gigantes, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, não estarem
incluídos...
Mas ninguém vivia nos gigantes gasosos e, muito possivelmente,
jamais viveria. Podia-se dizer o mesmo de outra ausência
importante, Vênus. Até os engenheiros planetários mais entusiastas
concordavam que levaria séculos para domar Vênus; enquanto isso,
os mercurianos não tiravam os olhos dele e, sem dúvida, remoíam
planos de longo prazo.
A representação separada da Terra e de Luna também tinha sido
um pomo da discórdia; os outros membros argumentaram que isso
concentrava poder demais num canto do Sistema Solar. Mas havia
mais gente na Lua do que em todos os outros mundos, exceto a
própria Terra – e era ali o ponto de encontro dos pu. Além disso,
Terra e Lua quase nunca estavam de acordo sobre nada, portanto
não era provável que constituíssem um bloco perigoso.
Marte tinha a custódia dos asteroides – exceto o grupo de Ícaro
(supervisionado por Mercúrio) e um punhado com o periélio além de
Saturno – e, portanto, reivindicados por Titã. Um dia os asteroides
maiores, como Palas, Vesta, Juno e Ceres, seriam importantes o
suficiente para possuírem os próprios embaixadores e, então, o
número de membros dos PU atingiria dois dígitos.
Ganimedes representava não apenas Júpiter – e, portanto, mais
massa do que todo o restante do Sistema Solar reunido –, mas
também os outros cinquenta e poucos satélites jupterianos,
incluídos aí os cativos temporários do cinturão de asteroides (os
advogados ainda discutiam este ponto). Do mesmo modo, Titã
cuidava de Saturno, seus anéis e os demais trinta e tantos satélites.
A situação de Tritão era ainda mais complicada. A grande lua de
Netuno era o corpo mais distante do Sistema Solar com habitantes
permanentes; em consequência, seu embaixador acumulava
inúmeras funções. Ele representava Urano e suas oito luas
(nenhuma ainda ocupada); Netuno e seus outros três satélites;
Plutão e sua lua solitária; e a isolada Perséfone, sem luas. Se
houvesse planetas além de Perséfone, eles também estariam sob a
responsabilidade de Tritão. E, como se não bastasse, o Embaixador
da Escuridão Distante, como às vezes era chamado, já tinha se
queixado: “E os cometas?” A sensação geral era que a solução
desse problema poderia ser deixada para o futuro.
No entanto, num sentido muito real, esse futuro já havia chegado.
Segundo algumas definições, Rama era um cometa, os outros
únicos visitantes das profundezas do espaço, e muitos tinham
viajado em órbitas hiperbólicas até mais próximas do Sol do que a
de Rama; qualquer advogado espacial poderia ganhar a causa com
base nesses fatos – e o embaixador mercuriano era um dos
melhores.
– Saudamos Sua Excelência, o Embaixador de Mercúrio.
Como os delegados estavam dispostos no sentido anti-horário,
em ordem de distância do Sol, o mercuriano estava à extrema
direita do presidente. Até o último minuto, estivera confabulando
com seu computador; agora, removera os óculos sincronizadores,
impedindo que os demais lessem a mensagem exibida na tela.
Apanhou a pilha de anotações e pôs-se vivamente de pé.
– Senhor presidente, ilustres colegas, gostaria de iniciar com um
breve resumo da situação com que nos defrontamos neste
momento.
Vinda de alguns delegados, a frase “um breve resumo” teria
provocado silenciosos gemidos entre todos os ouvintes; mas todos
sabiam que os mercurianos cumpriam exatamente o que diziam.
– A gigantesca espaçonave, ou asteroide artificial batizado de
Rama, foi detectada há um ano, na região além de Júpiter. A
princípio, acreditava-se que era um corpo celeste natural, movendo-
se numa órbita hiperbólica que o levaria a uma volta em torno do Sol
e depois às estrelas...
... Quando se descobriu sua verdadeira natureza, a nave
Endeavour, do serviço de Observação Solar, recebeu ordens de ir
ao seu encontro. Tenho certeza de que todos nós parabenizamos o
comandante Norton e sua tripulação pela eficiência com que
realizaram uma tarefa tão singular...
... A princípio, acreditava-se que Rama estava morto... congelado
há tantos milênios que não havia possibilidade de revivificação. Isso
ainda pode ser verdade, num sentido estritamente biológico. Parece
haver um consenso geral, entre os que estudaram o assunto, de
que nenhum organismo vivo de qualquer complexidade consegue
sobreviver mais do que alguns séculos em animação suspensa.
Mesmo em zero absoluto, efeitos quânticos residuais apagam tantas
informações celulares que a revivificação se torna impossível.
Parecia então que, embora Rama tivesse enorme importância
arqueológica, não apresentava maiores problemas astropolíticos...
... Hoje, é evidente que essa atitude foi ingênua, embora, desde o
início, não tenha faltado quem salientasse que a trajetória de Rama,
apontada para o Sol, era exata demais para ser fruto de mero
acaso...
... Mesmo assim, poderia ter-se argumentado, como de fato
aconteceu, que se tratava de uma experiência fracassada. Rama
atingira o alvo planejado, mas a inteligência controladora não
sobrevivera. Essa opinião também parece simplista demais; com
certeza, subestima as entidades com as quais estamos lidando...
... O que deixamos de levar em consideração foi a possibilidade
de sobrevivência não biológica. Se aceitarmos a teoria muito
plausível do dr. Perera, e que certamente se encaixa em todos os
fatos, as criaturas observadas no interior de Rama não existiam até
há bem pouco tempo. Seus padrões, ou modelos, estavam
guardados em algum banco central de informações e, no tempo
propício, foram manufaturados a partir da matéria-prima disponível –
presumivelmente, a sopa metalorgânica do Mar Cilíndrico. Tal
façanha ainda está além de nossa capacidade, mas não apresenta
nenhum problema teórico. Sabemos que circuitos em estado sólido,
ao contrário da matéria viva, conseguem armazenar informações
sem perda, por períodos de tempo indefinidos...
... Portanto, Rama está agora em plenas condições operacionais,
servindo aos propósitos de seus construtores – sejam eles quem
forem. Do nosso ponto de vista, não importa se os ramanos em si
tenham morrido há milhões de anos, ou se eles também serão
recriados a qualquer momento, para fazer companhia aos seus
servos. Com ou sem eles, sua vontade está sendo feita, e
continuará a ser feita...
... Rama já deu provas de que seu sistema de propulsão ainda
está funcionando. Em alguns dias, estará no periélio, onde, pela
lógica, fará qualquer mudança de órbita importante. Portanto, em
breve poderemos ter um novo planeta... movendo-se em espaço
solar sobre o qual meu governo tem jurisdição. Ou, naturalmente,
pode efetuar mudanças adicionais e ocupar uma órbita final a
qualquer distância do Sol. Pode até se tornar um satélite de um
planeta importante... como a Terra...
... Portanto, caros colegas, estamos diante de todo um espectro
de possibilidades, algumas delas realmente sérias. É tolice fingir
que essas criaturas devem ser benévolas e não irão interferir em
nossos assuntos. Se vieram até o Sistema Solar é porque precisam
de alguma coisa aqui. Mesmo que seja apenas conhecimento
científico, pensem em como esse conhecimento poderá ser usado...
... Estamos diante de uma tecnologia centenas, talvez milhares
de anos à frente da nossa, e de uma cultura com a qual talvez não
tenhamos absolutamente nenhum ponto de contato. Estivemos
estudando o comportamento dos robôs biológicos, os biômatos,
dentro de Rama, conforme mostrados nos filmes transmitidos pelo
comandante Norton, e chegamos a certas conclusões que desejo
comunicar aos senhores...
... Em Mercúrio, infelizmente, não temos formas de vida nativas
para observar. Mas, naturalmente, temos um registro completo da
zoologia terrestre, e nele encontramos um notável paralelo com
Rama...
... Trata-se da colônia de cupins. Como Rama, a colônia é um
mundo artificial com um ambiente controlado. Como Rama, seu
funcionamento depende de toda uma série de máquinas biológicas
especializadas: operários, construtores, agricultores, guerreiros. E,
embora não saibamos se Rama possui uma rainha, sugiro que a ilha
conhecida como Nova York desempenhe uma função semelhante...
... Ora, seria obviamente absurdo levar essa analogia longe
demais, pois ela falha em muitos pontos. Mas eu a proponho pelo
seguinte: que grau de cooperação ou compreensão seria possível
entre seres humanos e cupins? Quando não há conflito de
interesses, existe tolerância mútua. Mas quando um dos dois
precisa do território ou dos recursos do outro, a guerra é total...
... Graças à nossa tecnologia e à nossa inteligência, sempre
poderemos vencer, se estivermos determinados o suficiente. Mas,
às vezes, a longo prazo, a vitória ainda pode ser dos cupins...
... Com isso em mente, considerem agora a pavorosa ameaça
que Rama talvez – notem que digo talvez – seja para a civilização
humana. Que medidas tomamos para combatê-la, caso ocorra o
pior? Absolutamente nenhuma; apenas conversamos, especulamos
e escrevemos artigos eruditos...
... Bem, meus caros colegas, Mercúrio fez mais do que isso.
Agindo de acordo com as disposições da Cláusula 34 do Tratado
Espacial de 2057, que nos dão o direito de tomar as medidas
necessárias para proteger a integridade de nosso espaço solar,
despachamos um dispositivo nuclear de alta energia para Rama.
Ficaremos muito felizes se nunca tivermos que utilizá-lo. Mas agora,
pelo menos, não estamos indefesos... como estávamos antes...
... Pode-se argumentar que agimos de forma unilateral, sem
consulta prévia. Admitimos isso. Mas alguém aqui imagina – com
todo o respeito, senhor presidente – que teríamos chegado a tal
acordo no tempo disponível? Consideramos que não estamos
agindo apenas no interesse próprio, mas no interesse de toda a raça
humana. Todas as futuras gerações poderão um dia nos agradecer
por nossa providência...
... Reconhecemos que seria uma tragédia, até mesmo um crime,
destruir um artefato artificial tão maravilhoso como Rama. Se houver
um modo de evitar isso, sem risco para a humanidade, estamos
prontos a ouvir as sugestões. Ainda não encontramos nenhum, e o
tempo está se esgotando...
... Nos próximos dias, antes que Rama alcance o periélio,
teremos que tomar uma decisão. É claro que avisaremos a
Endeavour com toda a antecedência, mas recomendamos que o
comandante Norton esteja sempre pronto para partir no prazo de
uma hora. É concebível que Rama venha a sofrer novas
transformações drásticas a qualquer momento...
... Isso é tudo, sr. presidente, caros colegas. Obrigado pela
atenção. Conto com sua colaboração.
39
DECISÃO DE COMANDO

– Bem, Rod, como os mercurianos se encaixam na sua teologia?


– Se encaixam bem até demais, comandante – respondeu
Rodrigo, com um sorriso sem graça. – É o antigo conflito entre as
forças do bem e do mal. E há momentos em que os homens têm
que tomar partido nesse conflito.
Já sabia que seria algo assim, Norton disse a si mesmo. A
situação deve ter sido um choque para Boris, mas ele não teria se
resignado a uma aquiescência passiva. Os cosmo-cristeiros eram
uma gente muito dinâmica e competente. De fato, em certos
aspectos se pareciam notavelmente com os mercurianos.
– Imagino que tenha um plano, Rod.
– Sim, comandante. E é bem simples. Só temos que desativar a
bomba.
– Ah! E como sugere que se faça isso?
– Com um pequeno alicate.
Se fosse qualquer outra pessoa, Norton teria presumido que
estivesse brincando. Mas não Boris Rodrigo.
– Espere aí! O lugar está cheio de câmeras. Acha mesmo que os
mercurianos vão ficar lá sentados, só observando você?
– Claro, é a única coisa que poderão fazer. Quando o sinal
chegar até eles, será tarde demais. Posso facilmente terminar o
serviço em dez minutos.
– Entendo. Com certeza, eles ficarão furiosos. Mas, e se a
bomba estiver armada para detonar em caso de interferência?
– Isso parece muito improvável; qual seria o objetivo? Essa
bomba foi construída para uma missão específica em espaço
profundo e deve estar equipada com todo tipo de dispositivos de
segurança para evitar uma detonação, salvo em caso de uma ordem
direta. Mas esse é um risco que estou preparado para correr... E
pode ser feito sem colocar a nave em perigo. Já planejei tudo.
– Quanto a isso, não tenho a menor dúvida – disse Norton. A
ideia era fascinante, quase sedutora em seu apelo; gostou
especialmente da ideia dos mercurianos frustrados e daria tudo para
ver a reação deles quando percebessem – tarde demais – o que
estava acontecendo com seu brinquedo mortífero.
Mas havia outras complicações, e elas pareciam multiplicar-se à
medida que Norton avaliava o problema. Estava diante da decisão
mais difícil e crucial de toda a sua carreira.
E essa, aliás, era uma ridícula meia verdade. Estava diante da
decisão mais difícil que qualquer comandante já precisou tomar; o
futuro de toda a humanidade poderia estar dependendo dela. Pois
suponhamos que os mercurianos tivessem razão...

Depois que Rodrigo saiu, Norton ligou o NÃO PERTURBE; não se


lembrava da última vez que tinha usado o aviso e ficou um pouco
surpreso ao ver que ainda funcionava. Agora, no coração da sua
apinhada e movimentada nave, ele estava completamente sozinho –
exceto pelo retrato do capitão James Cook, que o contemplava lá de
longe, dos corredores do tempo.
Era impossível consultar a Terra; ele já fora alertado que
qualquer mensagem poderia ser interceptada – talvez por
dispositivos de transmissão na própria bomba. Isso deixava toda a
responsabilidade em suas mãos.
Certa vez ouvira uma história em algum lugar sobre um
presidente dos Estados Unidos – era Roosevelt ou Perez? – que
tinha uma placa sobre a mesa com os dizeres: “O jogo de empurra
sempre termina aqui”. Norton não conhecia muito bem a expressão,
mas sabia quando um problema era empurrado para a sua mesa.
Poderia não fazer nada, à espera do aviso dos mercurianos para
sair. Que impressão isso causaria nos registros históricos do futuro?
Norton não se preocupava muito com fama ou infâmia póstuma,
mas não gostaria de ser lembrado para sempre como o cúmplice de
um crime cósmico que ele poderia ter evitado.
E o plano era perfeito. Como já esperava, Rodrigo planejara cada
detalhe, previra cada possibilidade, até a de que a bomba poderia
ser detonada caso fosse adulterada. Se isso ocorresse, a
Endeavour ainda poderia ser salva, usando Rama como escudo.
Quanto ao próprio tenente Rodrigo, ele parecia encarar com
completa serenidade a possibilidade de uma apoteose instantânea.
No entanto, mesmo que a bomba fosse desarmada com sucesso,
isso estaria longe de ser o fim da questão. Os mercurianos
poderiam fazer nova tentativa – a não ser que se descobrisse um
meio de detê-los. Mas pelo menos ganhariam algumas semanas;
Rama já estaria muito além do periélio antes que outro míssil
pudesse alcançá-lo. Até lá, esperava-se que os piores temores dos
alarmistas já tivessem sido refutados. Ou o contrário...
Agir ou não agir, eis a questão. Nunca antes Norton sentira tanta
afinidade com o príncipe da Dinamarca. O que quer que fizesse, as
possibilidades do bem e do mal pareciam em perfeito equilíbrio.
Estava diante da mais moralmente difícil das decisões. Se sua
escolha estivesse errada, logo saberia. Mas se estivesse certa...
talvez nunca fosse capaz de prová-lo...
De nada adiantava recorrer a outros argumentos lógicos e a
intermináveis mapeamentos de futuros alternativos. Por esse
caminho, poderia andar em círculos para sempre. Chegara o
momento de escutar suas vozes internas.
Fitou os olhos calmos e firmes que o contemplavam através dos
séculos.
– Concordo com o senhor, capitão – Norton sussurrou. – A raça
humana tem que viver com sua consciência. O que quer que os
mercurianos aleguem, a sobrevivência não é tudo.
Apertou o botão que chamava a ponte de comando e disse, com
a voz pausada:
– Tenente Rodrigo... Gostaria de falar com o senhor.
Então fechou os olhos, enganchou os polegares nos cintos de
segurança de sua cadeira e preparou-se para desfrutar alguns
momentos de total relaxamento.
40
SABOTADOR

A motoneta tinha sido despida de todos os equipamentos


desnecessários e fora reduzida a uma simples armação aberta que
sustentava os sistemas de propulsão, direção e suporte de vida. Até
o assento do segundo piloto tinha sido removido, pois cada quilo
extra de massa tinha de ser compensado em tempo de missão.
Este foi um dos motivos, mas não o mais importante, por que
Rodrigo insistiu em ir sozinho. Era um trabalho tão simples que não
havia necessidade de assessores, e a massa de um passageiro
custaria vários minutos de tempo de voo. Agora, a motoneta despida
poderia acelerar para mais de um terço da gravidade; faria a viagem
entre a Endeavour e a bomba em quatro minutos. Assim, sobrariam
quatro minutos. Isso bastaria.
Rodrigo olhou para trás apenas uma vez, depois de deixar a
nave; viu que, conforme planejado, ela havia se levantado do eixo
central e delicadamente atravessava o disco rotativo da Face Norte.
Quando ele alcançasse a bomba, estaria separado da nave por toda
a espessura de Rama.
Sobrevoou tranquilamente a planície polar. Não havia pressa,
pois as câmeras da bomba ainda não podiam vê-lo e, portanto, era
possível economizar combustível. Então flutuou até contornar a
borda curva do mundo – e lá estava o míssil, cintilando à luz de um
Sol ainda mais ardente do que o que brilhava em seu planeta natal.
Rodrigo já programara as instruções de direção. Deu início à
sequência; a motoneta rodou sobre os giroscópios e atingiu
propulsão total em questão de segundos. A princípio, a sensação de
peso pareceu esmagadora, mas Rodrigo logo se ajustou a ela.
Afinal, já tinha suportado, confortavelmente, o dobro dentro de
Rama – e tinha nascido sob o triplo na Terra.
A imensa parede curva do cilindro de cinquenta quilômetros
movia-se lentamente abaixo dele, à medida que a motoneta rumava
diretamente para a bomba. Contudo, era impossível avaliar o
tamanho de Rama, pois ele era completamente liso e uniforme – tão
uniforme, na verdade, que era difícil perceber que estava girando.
Cem segundos de missão haviam se passado; ele se aproximava
do ponto mediano. A bomba ainda estava longe demais para revelar
quaisquer detalhes, mas brilhava com muito mais intensidade contra
o breu do céu. Era estranho não ver nenhuma estrela – nem mesmo
a brilhante Terra ou o ofuscante Vênus; os filtros escuros que
protegiam seus olhos contra a claridade mortífera tornavam essa
visão impossível. Rodrigo desconfiava estar batendo um recorde;
provavelmente nenhum outro homem havia realizado uma missão
extraveicular tão perto do Sol. Por sorte, o nível de atividade solar
estava baixo.
Aos dois minutos e dez segundos, a luz de manobra começou a
piscar, a propulsão caiu a zero e a motoneta girou 180 graus. A
propulsão voltou com toda força um instante depois, mas agora ele
estava desacelerando à mesma louca proporção de três metros por
segundo ao quadrado – bem melhor do que isso, na verdade, já que
perdera quase metade de sua massa de combustível. A bomba
estava a vinte e cinco quilômetros de distância; ele chegaria lá em
mais dois minutos. Atingira a velocidade máxima de 1.500 km/h –
que, para uma motoneta espacial, era uma completa insanidade e,
provavelmente, mais um recorde. Mas aquela não era uma AEV de
rotina, e ele sabia exatamente o que estava fazendo.
A bomba crescia; e agora ele via a antena principal, firmemente
apontada para a estrela invisível de Mercúrio. Ao longo daquele
feixe, a imagem da motoneta que se aproximava estava viajando na
velocidade da luz pelos últimos três minutos. Ainda faltavam dois
minutos para a imagem chegar até Mercúrio.
O que os mercurianos fariam quando o vissem? Haveria
consternação, é claro; perceberiam imediatamente que Rodrigo
tinha entrado em contato com a bomba vários minutos antes de eles
sequer saberem que ele estava a caminho. Provavelmente o
observador de plantão chamaria uma autoridade superior – o que
tomaria mais tempo. Mas mesmo na pior das hipóteses – mesmo
que o oficial de serviço tivesse autoridade para detonar a bomba e
apertasse o botão imediatamente –, levaria mais cinco minutos para
o sinal chegar.
Embora Rodrigo não estivesse apostando nisso – cosmo-
cristeiros jamais apostavam –, ele tinha certeza absoluta de que não
haveria tal reação imediata. Os mercurianos hesitariam em destruir
um veículo de reconhecimento da Endeavour, mesmo que
desconfiassem de suas motivações. Certamente tentariam primeiro
alguma forma de comunicação – e isso significava mais demora.
E havia uma razão ainda melhor: eles não iriam desperdiçar uma
bomba de um gigaton numa simples motoneta. Pois seria, sim, um
desperdício detoná-la a vinte quilômetros do alvo. Teriam de movê-
la primeiro. Ah, tinha tempo de sobra... mas, ainda assim, suporia a
pior hipótese de todas.
Agiria como se o impulso detonador fosse chegar no menor
tempo possível: apenas cinco minutos.
Enquanto a motoneta percorria as últimas centenas de metros,
Rodrigo rapidamente comparava os detalhes que agora via com
aqueles que estudara nas fotografias tiradas a longa distância. O
que tinha sido apenas uma coleção de imagens converteu-se em
metal sólido e plástico liso – não mais abstratos, mas uma realidade
mortífera.
A bomba era um cilindro com cerca de dez metros de
comprimento e três de diâmetro – por uma estranha coincidência,
quase as mesmas proporções do próprio Rama. Estava ligada à
estrutura do veículo portador por uma malha metálica. Por alguma
razão, provavelmente relacionada à localização do centro da massa,
a bomba era sustentada em ângulos retos com o eixo do portador,
dando assim a impressão apropriadamente sinistra da cabeça de
um martelo. Era de fato um martelo, poderoso o bastante para
esmagar um mundo.
De cada extremidade da bomba, um feixe de fios trançados
percorria o flanco cilíndrico e sumia através da malha para o interior
do veículo. Toda a comunicação e o controle estavam ali; não havia
antena de nenhum tipo na bomba em si. Rodrigo tinha apenas de
cortar aqueles dois conjuntos de fios e nada restaria senão metal
inerte e inofensivo.
Embora fosse exatamente o que esperava, ainda parecia fácil
demais. Olhou de relance o seu relógio; faltavam trinta segundos
para os mercurianos tomarem conhecimento de sua existência,
mesmo que estivessem observando desde o instante que
contornara a borda de Rama. Era absolutamente certo que tinha
cinco minutos para trabalho ininterrupto – e noventa e nove por
cento de probabilidade de um tempo muito mais longo.
Assim que a motoneta parou de flutuar e imobilizou-se por
completo, Rodrigo engatou-a à armação do míssil, para que os dois
formassem uma rígida estrutura. Isso levou apenas alguns
segundos; ele já selecionara as ferramentas e num instante saiu do
assento do piloto, apenas ligeiramente dificultado pela inflexibilidade
de seu pesado traje espacial.
A primeira coisa que inspecionou foi uma pequena placa de
metal, com a seguinte inscrição:

DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA ELÉTRICA


Seção D,
47, Sunset Boulevard,
Vulcanópolis, 17464
Para mais informações, contatar o sr. Henry K. Jones

Rodrigo desconfiou que, em poucos minutos, o sr. Jones estaria


bem ocupado.
O pesado alicate cortou facilmente os fios. Enquanto os primeiros
filamentos se rompiam, Rodrigo mal pensou nos fogos infernais
contidos a poucos centímetros dele; se suas ações os ativassem,
ele nunca saberia.
Olhou seu relógio mais uma vez; levara menos de um minuto, o
que significava que estava dentro do horário programado. Agora, os
fios secundários – e então ele poderia voltar para casa, bem à vista
dos furiosos e frustrados mercurianos.
Estava prestes a cortar o segundo feixe de fios quando sentiu
uma leve vibração no metal em que estava tocando. Assustado,
virou-se e olhou o corpo do míssil.
O característico brilho azul-violeta de um propulsor de plasma em
ação pairava sobre um dos jatos de controle de atitude. A bomba
preparava-se para se mover.

A mensagem de Mercúrio era breve, e devastadora. Chegou dois


minutos após Rodrigo desaparecer atrás da borda de Rama.
COMANDANTE ENDEAVOUR, DO CONTROLE ESPACIAL DE MERCÚRIO,
INFERNO OESTE. O SENHOR TEM UMA HORA A PARTIR DO RECEBIMENTO DESTA
MENSAGEM PARA DEIXAR AS IMEDIAÇÕES DE RAMA. SUGERIMOS QUE SE RETIRE
EM ACELERAÇÃO MÁXIMA AO LONGO DO EIXO ROTATIVO. FAVOR ACUSAR
RECEBIMENTO. FIM DA MENSAGEM.

Norton leu a mensagem com absoluta incredulidade, depois com


raiva. Teve um impulso infantil de responder pelo rádio que toda a
tripulação estava dentro de Rama, e levaria horas para retirar todo
mundo. Mas isso não levaria a nada – exceto, talvez, a testar a força
de vontade e a audácia dos mercurianos.
E por que, vários dias antes do periélio, eles tinham decidido
agir? Imaginou que a pressão crescente da opinião pública estava
se tornando forte demais, e eles decidiram apresentar à raça
humana um fato consumado. Parecia uma explicação improvável;
tal sensibilidade não era característica dos mercurianos.
Não havia como chamar Rodrigo de volta, pois a motoneta se
encontrava agora atrás da parede de Rama, e a comunicação por
rádio estaria bloqueada até retornarem à linha de visão. E isso só
ocorreria depois que a missão fosse cumprida – ou fracassasse.
Teria de esperar até lá; ainda havia tempo de sobra – cinquenta
minutos inteiros. Enquanto isso, já decidira qual seria a melhor
maneira de responder a Mercúrio.
Iria ignorar completamente a mensagem e aguardar o próximo
passo dos mercurianos.

A primeira sensação de Rodrigo, quando a bomba começou a se


mover, não foi de medo físico; era algo muito mais devastador. Ele
acreditava que o universo funcionava de acordo com leis rígidas que
nem o próprio Deus poderia desobedecer – muito menos os
mercurianos. Nenhuma mensagem viajava mais rápido que a luz;
ele estava cinco minutos à frente de qualquer coisa que Mercúrio
pudesse fazer.
Poderia ser apenas uma coincidência – fantástica e mortal,
porém nada mais que uma coincidência. Por acaso, um sinal de
controle deve ter sido enviado à bomba mais ou menos no mesmo
instante em que ele deixava a Endeavour; enquanto viajava
cinquenta quilômetros, a mensagem percorrera oitenta milhões.
Ou talvez fosse apenas uma mudança automática de atitude,
para neutralizar o superaquecimento em alguma parte do veículo.
Havia pontos em que a temperatura superficial se aproximava de
1.500 graus, e Rodrigo tomara o cuidado de permanecer tanto
quanto possível na sombra.
Um segundo propulsor começou a se ativar, controlando o giro
provocado pelo primeiro. Não, não era apenas um ajuste térmico. A
bomba estava se reorientando e apontando para Rama...
Era inútil perguntar-se por que aquilo estava acontecendo
naquele exato momento. Havia uma coisa a seu favor: o míssil era
um dispositivo de aceleração lenta. Um décimo de gravidade era o
máximo que poderia alcançar. Havia tempo.
Verificou os ganchos que prendiam a motoneta à armação da
bomba e tornou a verificar o cabo de segurança em seu traje
espacial. Uma cólera fria crescia em sua mente, contribuindo para
sua determinação. Essa manobra significaria que os mercurianos
explodiriam a bomba sem aviso, sem dar à Endeavour uma chance
de escapar? Isso parecia incrível – um ato não só de brutalidade,
mas de loucura, calculado para voltar todo o restante do Sistema
Solar contra eles. E o que os teria feito ignorar a promessa solene
de seu próprio embaixador?
Qualquer que fosse o plano, os mercurianos não iriam sair
impunes.

A segunda mensagem de Mercúrio era idêntica à primeira e


chegou dez minutos depois. Portanto, tinham estendido o prazo –
Norton ainda tinha uma hora. E, obviamente, aguardaram o tempo
necessário para uma resposta da Endeavour alcançá-los, antes de
contatá-lo novamente.
Agora, havia outro fator: a essa altura, já deviam ter visto Rodrigo
e tido vários minutos para agir. Suas instruções já poderiam estar a
caminho. Poderiam chegar a qualquer instante.
Deveria estar se preparando para partir. A qualquer momento, a
enorme massa de Rama, que preenchia o céu, poderia se tornar
incandescente ao longo das bordas e arder com um esplendor que
excederia o brilho do Sol.

Quando veio o impulso mais forte, Rodrigo estava firmemente


ancorado. Apenas vinte segundos depois, desligou outra vez. Fez
um rápido cálculo mental; o delta-v não poderia ter sido superior a
uns 15 km/h. A bomba levaria mais de uma hora para atingir Rama;
talvez estivesse se aproximando apenas para obter uma reação
mais rápida. Neste caso, era uma sábia precaução; mas os
mercurianos a tinham tomado tarde demais.
Rodrigo olhou seu relógio, se bem que agora quase sabia a hora
sem ter de verificar. Em Mercúrio, nesse momento, eles o estariam
vendo dirigir-se resolutamente para a bomba, a menos de dois
quilômetros dela. Não teriam dúvidas quanto às suas intenções e
estariam se perguntando se ele já as executara.
O segundo feixe de fios foi cortado com a mesma facilidade do
primeiro; como todo bom trabalhador, Rodrigo escolhera bem suas
ferramentas. A bomba estava desarmada; ou, para ser mais exato,
não poderia mais ser detonada por comando remoto.
No entanto, havia outra possibilidade, e ele não poderia se
permitir ignorá-la. Não havia detonadores externos, mas poderia
haver internos, armados para serem acionados por choque de
impacto. Os mercurianos ainda controlavam os movimentos do
veículo e poderiam arremessá-lo contra Rama quando desejassem.
O trabalho de Rodrigo ainda não terminara.
Dentro de cinco minutos, naquela sala de controle em algum
lugar de Mercúrio, eles o veriam engatinhando sobre o exterior do
míssil, carregando o modesto alicate que tinha neutralizado a mais
poderosa arma já construída pelo homem. Quase teve vontade de
acenar para a câmera, mas concluiu que o gesto pareceria indigno;
afinal, ele estava fazendo História, e milhões de pessoas assistiriam
à cena por muitos e muitos anos. A menos, é claro, que os
mercurianos destruíssem a gravação num acesso de raiva; e ele
não os culparia por isso.
Alcançou o suporte da antena de longo alcance e flutuou,
escalando com as mãos, até o grande disco. O fiel alicate inutilizou
sem esforço o sistema de alimentação multiplex, mastigando tanto
os fios quanto os guias de raios laser. Quando fez o último corte, a
antena começou a girar lentamente; o movimento inesperado o
pegou de surpresa, mas logo percebeu que tinha destruído a trava
automática em Mercúrio. Em apenas cinco minutos, os mercurianos
perderiam todo o contato com seu servo, que agora não só estava
impotente, mas cego e surdo.
Rodrigo voltou devagar à motoneta, soltou-a e girou-a até o para-
choque dianteiro pressionar o míssil, o mais próximo possível de
seu centro de massa. Acionou o impulso em força total, mantendo-o
assim por vinte segundos.
A motoneta, que empurrava um corpo muitas vezes maior que
sua própria massa, respondeu com muita morosidade. Quando
Rodrigo retornou a impulso zero, fez uma cuidadosa leitura do novo
vetor de velocidade da bomba.
O míssil erraria o alvo por ampla margem, passando longe de
Rama – e poderia ser localizado com precisão a qualquer momento
no futuro. Afinal, era um equipamento muito valioso.
O tenente Rodrigo era de uma honestidade quase patológica.
Não gostaria que os mercurianos o acusassem de ter extraviado um
bem de sua propriedade.
41
HERÓI

Querida, começou Norton, esse absurdo nos custou mais de um dia,


mas pelo menos me deu a chance de falar com você.
Continuo na nave, que está retornando ao seu posto no eixo
polar. Recolhemos Rod uma hora atrás, com ar de quem sai do
serviço após um turno tranquilo. Suponho que nenhum de nós
jamais poderá visitar Mercúrio outra vez, e me pergunto se seremos
tratados como heróis ou vilões quando retornarmos à Terra. Mas
minha consciência está tranquila; tenho certeza de que fizemos a
coisa certa. Será que algum dia os ramanos irão nos agradecer?
Só podemos ficar aqui mais dois dias; ao contrário de Rama, não
temos um revestimento de um quilômetro de espessura para nos
proteger do Sol. O casco já está começando a desenvolver
perigosos pontos quentes e tivemos de efetuar algumas blindagens
localizadas. Desculpe, não queria aborrecê-la com meus
problemas...
Assim, temos tempo para apenas mais uma viagem ao interior de
Rama, e pretendo aproveitá-la ao máximo. Mas não se preocupe...
Não vou correr nenhum risco.

Parou a gravação. A última frase era, para dizer o mínimo, uma


distorção da verdade. Havia perigo e incerteza em cada momento
dentro de Rama; ninguém jamais poderia sentir-se realmente à
vontade lá, na presença de forças além da compreensão. E, nessa
incursão final, agora que ele sabia que jamais retornariam e que
nenhuma operação futura seria prejudicada, pretendia insistir um
pouco mais na sorte.

Então, em quarenta e oito horas teremos completado a missão.


O que vai acontecer depois ainda é incerto; como sabe, usamos
praticamente todo o combustível para entrar nesta órbita. Ainda
estou esperando informações sobre se uma nave-tanque irá nos
encontrar a tempo de voltarmos à Terra, ou se teremos que fazer
uma parada em Marte. De todo modo, devo estar em casa no Natal.
Diga ao Junior que sinto muito, mas não posso levar um filhote de
biômato; tal animal não existe...
Estamos todos bem, mas muito cansados. Mereço uma longa
licença depois de tudo isso, e vamos compensar o tempo perdido. O
que quer que se diga sobre mim, você pode se gabar que se casou
com um herói. Quantas esposas têm um marido que salvou um
mundo?

Como sempre, ele ouviu a fita com cuidado antes de duplicá-la,


para ter certeza de que se aplicava a ambas as famílias. Era
estranho não saber qual das duas ele veria primeiro; geralmente,
sua agenda era determinada com pelo menos um ano de
antecedência, pelos próprios movimentos inexoráveis dos planetas.
Mas isso era nos tempos antes de Rama; agora, as coisas jamais
voltariam a ser as mesmas.
42
TEMPLO DE VIDRO

– Se tentarmos – disse Karl Mercer –, o senhor acha que os


biômatos vão nos deter?
– Pode ser. Essa é uma das coisas que quero descobrir. Por que
está me olhando assim?
Mercer deu aquele seu sorriso irônico, lento e enigmático, sujeito
a ser deflagrado a qualquer momento por uma piada particular, que
ele podia ou não compartilhar com seus colegas de bordo.
– Eu estava imaginando, capitão, se o senhor pensa que é dono
de Rama. Até agora, o senhor tinha vetado qualquer tentativa de se
penetrar à força nos edifícios. Por que mudou de ideia? Influência
dos mercurianos?
Norton riu, mas depois, de repente, se conteve. Era uma
pergunta perspicaz, e ele não tinha certeza se as respostas óbvias
eram as corretas.
– Talvez eu tenha tido excesso de cautela... Tentei evitar
problemas. Mas esta é a nossa última chance; se formos obrigados
a nos retirar, a perda não será grande.
– Desde que nos retiremos em ordem.
– Claro. Mas os biômatos nunca demonstraram hostilidade; e,
com exceção das aranhas, acredito que nenhum deles seja capaz
de nos alcançar... se realmente tivermos que fugir.
– O senhor pode fugir, capitão, mas eu pretendo sair daqui com
dignidade. A propósito, acho que descobri por que os biômatos são
tão educados conosco.
– É um pouco tarde para uma nova teoria.
– Em todo caso, aqui vai ela. Eles pensam que somos ramanos.
Não sabem distinguir entre um e outro consumidor de oxigênio.
– Não acredito que sejam tão burros.
– Não é questão de burrice. Eles foram programados para suas
tarefas particulares, e nós simplesmente não entramos em seu
quadro de referências.
– Talvez você tenha razão. E talvez possamos descobrir... assim
que começarmos a trabalhar em Londres.

Joe Calvert sempre gostara daqueles velhos filmes sobre


assaltos a banco, mas nunca imaginou que se envolveria num
deles. No entanto, era isso que, no fundo, estava fazendo agora.
As ruas desertas de “Londres” pareciam ameaçadoras, embora
soubesse que era apenas a sua consciência culpada. Não
acreditava realmente que as estruturas hermeticamente vedadas e
sem janelas estivessem repletas de habitantes à espreita,
esperando para emergir em hordas furiosas assim que os invasores
pusessem as mãos em sua propriedade. Na verdade, tinha certeza
absoluta de que todo esse complexo – como todas as outras
cidades – era meramente algum tipo de área de depósitos.
No entanto, um segundo temor, também baseado em inúmeros
dramas antigos sobre crimes, tinha mais fundamento. Talvez não
houvesse o ressoar de campainhas e sirenes estridentes, mas era
razoável supor que Rama tivesse algum sistema de alarme. Senão,
como os biômatos saberiam quando e onde seus serviços eram
necessários?
– Os que estão sem óculos protetores, virem de costas –
ordenou o sargento Myron. Sentiu-se um cheiro de óxidos nítricos
quando o próprio ar começou a queimar no feixe de raio laser, e
ouviu-se um chiado uniforme, à medida que a faca de fogo abria
caminho para os segredos escondidos desde o nascimento do
homem.
Nenhuma matéria podia resistir àquela concentração de energia,
e o corte prosseguia num ritmo tranquilo de vários metros por
minuto. Num tempo notavelmente curto, tinha sido recortada uma
seção grande o suficiente para a passagem de um homem.
Como a parte seccionada não mostrava sinais de movimento,
Myron bateu nela de leve – depois mais forte – e então deu um
pontapé com toda a força. A placa caiu para dentro com um
estampido oco e reverberante.
Mais uma vez, como acontecera durante a primeira entrada em
Rama, Norton lembrou-se do arqueólogo que tinha aberto a velha
tumba egípcia. Não esperava ver o brilho do ouro; na verdade, não
tinha absolutamente nenhuma ideia preconcebida quando se enfiou
pela abertura, segurando sua lanterna.
Um templo grego feito de vidro – esta foi sua primeira impressão.
O edifício estava cheio de fileiras e fileiras de colunas verticais
cristalinas, com cerca de um metro de largura, estendendo-se do
chão até o teto. Eram centenas, distanciando-se na escuridão além
do alcance da luz da lanterna.
Norton caminhou até a coluna mais próxima e direcionou o feixe
de luz para seu interior. Como que refratada por uma lente cilíndrica,
a luz abriu-se em leque do outro lado da coluna, focalizada e
refocalizada na série de pilares além, ficando mais fraca a cada
repetição. Norton sentiu-se em meio a uma complicada
demonstração de ótica.
– Muito bonito – disse o prático Mercer –, mas o que significa?
Para que serve uma floresta de pilares de vidro?
Norton bateu delicadamente na coluna. Soou sólida, embora
mais metálica que cristalina. Ficou totalmente confuso, então seguiu
um conselho útil que ouvira há muito tempo: “Quando em dúvida,
não diga nada e siga em frente”.
Quando alcançou a coluna seguinte, que parecia exatamente
igual à primeira, ouviu uma exclamação de surpresa de Mercer.
– Eu podia jurar que esse pilar estava vazio! Agora há alguma
coisa dentro dele.
Norton olhou rapidamente para trás.
– Onde? – perguntou. – Não estou vendo nada.
Seguiu a direção apontada pelo dedo de Mercer. Mas ele não
apontava para nada; as colunas ainda estavam completamente
transparentes.
– Não está vendo? – disse Mercer, incrédulo. – Dê a volta e
venha olhar deste lado. Droga... Agora perdi!
– O que está acontecendo aqui? – indagou Calvert. Passaram-se
vários minutos antes que ele obtivesse algo próximo de uma
resposta.
As colunas não eram transparentes de todos os ângulos ou sob
qualquer iluminação. Ao contorná-las, subitamente se avistavam
objetos, aparentemente incrustados em suas profundezas – como
moscas em âmbar –, que logo tornavam a desaparecer. Eram
dúzias, todos diferentes. Pareciam absolutamente reais e sólidos,
mas muitos davam a impressão de ocupar exatamente o mesmo
espaço.
– Hologramas – disse Calvert. – Exatamente como um museu na
Terra.
Essa era a explicação óbvia e, portanto, Norton a encarava com
desconfiança. Suas dúvidas aumentavam à medida que examinava
as outras colunas e fazia aparecer as imagens guardadas em seus
interiores.
Ferramentas manuais (para mãos enormes e peculiares),
recipientes, pequenas máquinas com teclados que pareciam ter sido
feitas para mais de cinco dedos, instrumentos científicos, utensílios
domésticos surpreendentemente convencionais, inclusive facas e
pratos que, fora o tamanho, não atrairiam a atenção em nenhuma
mesa terrestre... estavam todos ali, com centenas de objetos menos
identificáveis, muitas vezes misturados no mesmo pilar. Um museu,
seguramente, teria um arranjo mais lógico, alguma separação por
itens relacionados. Aquilo parecia uma coleção aleatória de objetos.
Já tinham fotografado as imagens fugidias dentro de vários
pilares cristalinos quando a própria variedade dos itens forneceu
uma pista a Norton. Talvez aquilo não fosse uma coleção, mas um
catálogo, organizado de acordo com algum sistema arbitrário, mas
perfeitamente lógico. Pensou nas estranhas justaposições
existentes em qualquer dicionário ou lista em ordem alfabética e
experimentou a ideia com seus companheiros.
– Entendo o que quer dizer – falou Mercer. – Os ramanos
ficariam igualmente surpresos se nos vissem colocar... hã...
câmeras junto com canecas.
– Ou botas ao lado de botões – acrescentou Calvert, após vários
segundos de reflexão. Esse jogo poderia durar horas, concluiu, com
graus de disparate cada vez maiores.
– A ideia é essa – respondeu Norton. – Isso pode ser o índice de
um catálogo com imagens em 3-d... modelos... diagramas sólidos,
se preferirem chamá-los assim.
– Com que propósito?
– Bem, você conhece a teoria sobre os biômatos... a ideia de que
não existem até que se precise deles, e então eles são criados...
sintetizados... a partir de padrões armazenados em algum lugar?
– Entendo – disse Mercer, lento e pensativo. – Então, quando um
ramano precisa de uma coisa, ele digita o código numérico correto e
uma cópia é fabricada a partir do modelo que está aqui.
– Algo assim. Mas, por favor, não me peça detalhes práticos.
Os pilares em meio aos quais andavam aumentaram
regularmente de tamanho e agora tinham mais de dois metros de
diâmetro. As imagens também estavam maiores, na mesma
proporção; era evidente que, sem dúvida por ótimos motivos, os
ramanos utilizavam a escala de um por um. Neste caso, Norton
imaginou como guardariam os modelos de coisas realmente
grandes.
A fim de acelerar os registros, os quatro exploradores agora
estavam espalhados pelas colunas cristalinas e tiravam fotografias
tão rápido quanto a focalização das fugazes imagens lhes permitia.
Era uma sorte incrível, disse Norton a si mesmo, embora sentisse
que a merecera; não poderiam ter feito escolha melhor do que
aquele Catálogo Ilustrado de Artefatos Ramanos. No entanto, sob
outro ponto de vista, não poderia ser mais frustrante. Na verdade,
não havia nada ali, exceto padrões impalpáveis de claros e escuros;
aqueles objetos aparentemente sólidos não existiam de fato.
Mesmo sabendo disso, mais de uma vez Norton sentiu uma
tentação quase irresistível de abrir um daqueles pilares com o laser,
para poder levar à Terra algo material. Era o mesmo impulso, disse
a si mesmo ironicamente, que induziria um macaco a agarrar o
reflexo de uma banana no espelho.
Estava fotografando o que parecia ser um tipo de dispositivo
ótico, quando o grito de Calvert o fez correr em meio aos pilares.
– Capitão... Karl... Will... vejam isto!
Joe era dado a entusiasmos repentinos, mas o que encontrara
era suficiente para justificar qualquer alvoroço.
Dentro de uma das colunas de dois metros de largura, havia uma
elaborada armadura, ou uniforme, obviamente feita para uma
criatura que ficava verticalmente em pé, muito mais alta que um
homem. Uma faixa metálica central, muito estreita, parecia circundar
a cintura, tórax ou alguma divisão desconhecida da zoologia
terrestre. Dela erguiam-se três colunas esguias, afilando-se para
fora e terminando num perfeito cinturão circular, com um
impressionante metro de diâmetro. Argolas dispostas ao longo do
cinturão, igualmente espaçadas, só podiam servir para contornar
membros superiores, ou braços. Três braços...
Havia inúmeras cartucheiras, fivelas e bandoleiras de onde
saíam ferramentas (ou armas?), canos e fios elétricos, e até mesmo
caixinhas pretas que pareceriam perfeitamente em casa num
laboratório eletrônico na Terra. O arranjo todo era quase tão
complexo quanto um traje espacial, embora obviamente só
fornecesse cobertura parcial para a criatura que o usasse.
E essa criatura era um ramano?, perguntou-se Norton.
Provavelmente, nunca saberemos; mas deve ter sido inteligente –
nenhum simples animal saberia lidar com todo aquele sofisticado
equipamento.
– Cerca de dois metros e meio de altura – disse Mercer,
pensativo –, sem contar a cabeça... sabe-se lá como era.
– Com três braços... e, presumivelmente, três pernas. O mesmo
projeto das aranhas, mas numa escala muito maior. Acha que é
coincidência?
– Provavelmente não. Desenhamos robôs à nossa própria
imagem; podemos esperar que os ramanos façam o mesmo.
Joe Calvert, excepcionalmente calado, contemplava aquela
exposição com uma espécie de assombro.
– Vocês acham que eles sabem que estamos aqui? – falou,
quase sussurrando.
– Duvido – disse Mercer. – Nem sequer alcançamos o limiar da
consciência deles... Embora os mercurianos tenham feito uma bela
tentativa.
Continuavam parados ali, incapazes de se afastar, quando Pieter
chamou do Eixo Central, com a voz cheia de urgência e
preocupação.
– Capitão! É melhor vocês saírem.
– O que foi? Biômatos vindo para cá?
– Não... algo muito mais sério. As luzes estão se apagando.
43
RETIRADA

Quando saiu apressadamente pelo buraco que tinham aberto com o


laser, pareceu a Norton que os seis sóis de Rama brilhavam tanto
quanto antes. Certamente, pensou, Pieter deve ter cometido um
erro... e isso não é, absolutamente, de seu feitio...
Mas Pieter tinha previsto essa reação.
– Aconteceu tão devagar – explicou, se desculpando –, que levei
um bom tempo para perceber a diferença. Mas não há dúvida: medi
com o fotômetro. O nível da luz caiu quarenta por cento.
Agora, à medida que os olhos se readaptavam após a penumbra
do templo de vidro, Norton pôde acreditar nele. O longo dia de
Rama estava chegando ao fim.
Ainda fazia calor como sempre, no entanto Norton sentiu um
arrepio. Já tivera a mesma sensação antes, durante um lindo dia de
verão na Terra. A luz enfraquecera inexplicavelmente, como se uma
escuridão caísse do ar, ou o Sol tivesse perdido a força – embora
não houvesse sequer uma nuvem no céu. Então se lembrou: um
eclipse parcial estava ocorrendo.
– É isso aí – ele disse, com ar sombrio. – Vamos para casa.
Abandonem todo o equipamento... Não vamos precisar mais dele.
Agora, esperava ele, um detalhe do planejamento estava prestes
a provar o seu valor. Havia escolhido Londres para essa incursão
porque nenhuma outra cidade era tão próxima a uma escadaria; o
pé de Beta estava a apenas quatro quilômetros de distância.
Partiram trotando a passos largos, o modo mais confortável de
marchar em meia gravidade. Norton imprimiu um ritmo que,
segundo sua estimativa, os levaria até a borda da planície sem
provocar exaustão, e no mínimo de tempo. Tinha plena consciência
dos oito quilômetros que ainda teriam de escalar quando
chegassem a Beta, mas iria se sentir muito mais seguro quando
iniciassem a subida.
O primeiro tremor ocorreu quando estavam quase alcançando a
escadaria. Foi muito leve e, instintivamente, Norton virou-se para o
sul, esperando ver mais uma exibição pirotécnica em torno dos
Chifres. Mas Rama parecia nunca se repetir de modo exato; se
havia qualquer descarga elétrica acima daquelas montanhas
pontiagudas, eram fracas demais para serem vistas.
– Ponte – ele chamou –, perceberam isso?
– Sim, capitão. Um impacto muito pequeno. Pode ser mais uma
mudança de atitude. Estamos observando o nível do giroscópio...
nada ainda. Espere um pouco! Leitura positiva! Quase não se
detecta... menos de um microrrad por segundo, mas se mantendo.
Então, Rama estava começando a virar, embora com uma
lentidão quase imperceptível. Aqueles impactos anteriores devem
ter sido alarme falso... mas este, com certeza, era para valer.
– Nível aumentando... cinco microrrads. Alô, sentiram esse
impacto agora?
– Sentimos, sim. Acionem todos os sistemas da nave. Talvez
tenhamos que partir às pressas.
– O senhor já esperava uma mudança de órbita? Ainda estamos
longe do periélio.
– Acho que Rama não segue nossos manuais. Estamos quase
em Beta. Descansaremos lá por cinco minutos.
Um descanso de cinco minutos era totalmente inadequado, mas
parecia uma eternidade. Pois agora não havia dúvida: a luz estava
se apagando, e se apagando depressa.
Embora todos estivessem equipados com lanternas, a ideia da
escuridão ali se tornara intolerável; tinham se acostumado tanto,
psicologicamente, ao dia interminável, que era difícil lembrar as
condições sob as quais exploraram aquele mundo pela primeira vez.
Sentiam uma necessidade urgente de fugir – de sair para a luz do
Sol, a um quilômetro de distância, no outro lado daquelas espessas
paredes cilíndricas.
– Controle Central! – chamou Norton. – O holofote está
funcionando? Podemos precisar dele a qualquer momento.
– Sim, capitão. Aí está ele.
Um clarão tranquilizador começou a brilhar oito quilômetros
acima de suas cabeças. Mesmo contra o agora agonizante dia de
Rama, o facho de luz pareceu surpreendentemente fraco; mas ele
lhes servira antes, e os guiaria mais uma vez, se fosse necessário.
Norton estava soturnamente ciente de que aquela seria a
escalada mais longa e torturante que já tinham feito. O que quer que
acontecesse, seria impossível se apressarem; se exagerassem no
esforço, simplesmente desabariam, extenuados, em algum ponto
daquela rampa vertiginosa, e teriam de esperar até que seus
músculos doloridos lhes permitissem continuar. Àquela altura,
deviam ser uma das tripulações mais em forma que já realizaram
uma missão espacial; mas havia limites para o que o corpo humano
era capaz de fazer.
Após uma hora de subida lenta e constante, chegaram à quarta
seção da escadaria, a cerca de três quilômetros da planície. Dali em
diante, seria bem mais fácil; a gravidade já se reduzira a um terço
do valor da Terra. Embora tivesse havido alguns pequenos choques
esporádicos, não ocorrera nenhum outro fenômeno incomum, e
ainda havia luz de sobra. Começaram a ficar mais otimistas e até a
pensar se não estariam partindo cedo demais. Entretanto, uma
coisa era certa: não havia mais volta. Tinham caminhado pela última
vez sobre a planície de Rama.
Foi durante o descanso de dez minutos na quarta plataforma que
Joe Calvert subitamente exclamou:
– Que barulho é esse, capitão?
– Barulho?... Não estou ouvindo nada.
– Um apito agudo... baixando de frequência. Não é possível que
o senhor não esteja ouvindo!
– Seu ouvido é mais jovem que o meu... ah, agora sim.
O apito parecia vir de todas as direções. Logo ficou alto, quase
estridente, e caindo rapidamente de tom. De repente, parou.
Alguns segundos depois, recomeçou, repetindo a mesma
sequência. Tinha o som lúgubre e insistente da sirene de um farol a
enviar alertas através do nevoeiro na noite. Havia uma mensagem
ali, e uma mensagem urgente. Não fora feita para ouvidos humanos,
mas eles a compreenderam. E, como garantia dupla, a mensagem
foi reforçada pelas próprias luzes.
Baixaram até quase se apagarem, e então começaram a piscar.
Esferas brilhantes, como relâmpagos globulares, corriam pelos seis
vales estreitos que antes iluminavam aquele mundo. Moviam-se de
ambos os polos em direção ao Mar, num ritmo sincronizado e
hipnótico, que só podia significar uma coisa: “Ao Mar!”, gritavam as
luzes, “Ao Mar!”. E era difícil resistir ao chamado; não houve um só
homem que não sentisse a impulso de voltar atrás e buscar o total
esquecimento nas águas de Rama.
– Controle Central! – chamou Norton, com urgência. – Estão
vendo o que está acontecendo?
A voz de Pieter respondeu; ele parecia assombrado, e bastante
assustado.
– Sim, capitão. Estou olhando o continente sul. Ainda há alguns
biômatos lá... inclusive alguns dos grandes. Guindastes,
Escavadeiras... muitos Lixeiros. E estão todos correndo para o Mar
numa velocidade que eu nunca tinha visto antes. Lá vai um
Guindaste... acabou de pular! Igual ao Jimmy, só que caindo muito
mais rápido... se despedaçou quando bateu na água... e lá vêm os
tubarões... abocanharam... Argh! Não é uma visão agradável...
– Agora estou olhando a planície. Há uma Escavadeira que
parece quebrada... está girando sem parar. Dois caranguejos a
estão mastigando, arrancando pedaços... Capitão, é melhor vocês
voltarem imediatamente.
– Acredite – disse Norton, do fundo da alma –, estamos subindo
o mais rápido possível.
Rama parecia um navio trancando as escotilhas, preparando-se
para uma tormenta. Era a impressão avassaladora de Norton,
embora não pudesse assentá-la numa base sólida. Já não se sentia
completamente racional; duas compulsões se debatiam em sua
mente: a necessidade de fugir e o desejo de obedecer àqueles
relâmpagos, que ainda piscavam pelo céu, ordenando-o a unir-se
aos biômatos em sua marcha para o mar.
Mais uma seção da escadaria... mais dez minutos de descanso,
para deixar escoar de seus músculos os venenos da fadiga. Depois,
continuar a escalada... ainda faltavam dois quilômetros, mas vamos
tentar não pensar nisso...
A enlouquecedora sequência de apitos descendentes cessou
abruptamente. No mesmo instante, as bolas de fogo que corriam
pelas fendas dos Vales Retos pararam seu movimento
estroboscópico em direção ao mar; os seis sóis lineares de Rama
tornaram a ser faixas contínuas de luz.
Porém, estavam se apagando depressa, e às vezes
bruxuleavam, como se tremendos impulsos de energia estivessem
sendo drenados de suas fontes em declínio. De vez em quando,
sentiam-se leves tremores sob os pés; a ponte informou que Rama
ainda oscilava com uma lentidão imperceptível, como a agulha de
uma bússola reagindo a um campo magnético. Talvez isso fosse
tranquilizador; quando Rama parasse de mudar de posição é que
Norton realmente começaria a se preocupar.
Todos os biômatos tinham desaparecido, segundo informou
Pieter. Em todo o interior de Rama, o único movimento era o de
seres humanos, escalando com dolorosa lentidão a superfície curva
da cúpula norte.
Norton há muito superara a vertigem que sentira naquela
primeira subida, mas agora um novo temor começava a insinuar-se
em sua mente. Estavam muito vulneráveis ali, naquela interminável
ascensão da planície até o Eixo. E se, quando completasse a
mudança de atitude, Rama começasse a acelerar?
Presumivelmente, o impulso se daria ao longo do eixo. Se fosse
na direção norte, não haveria problema; seriam empurrados com um
pouco mais de força contra a rampa que agora subiam. Mas se
fosse em direção ao sul, poderiam ser arremessados para o espaço,
indo cair na planície quilômetros abaixo.
Tentou tranquilizar-se com a ideia de que qualquer aceleração
seria muito fraca. Os cálculos do dr. Perera eram muito
convincentes; não era possível Rama acelerar a mais de um
cinquenta avos da gravidade, ou o Mar Cilíndrico subiria o penhasco
sul e inundaria todo o continente. Mas o dr. Perera estava num
confortável gabinete lá na Terra, e não com uma cúpula metálica de
quilômetros de extensão aparentemente prestes a desabar sobre
sua cabeça. E talvez Rama tenha sido projetada para inundações
periódicas...
Não, a ideia era ridícula. Absurdo imaginar que todos aqueles
trilhões de toneladas de repente começariam a se mover com
aceleração suficiente para derrubá-lo. Apesar disso, durante todo o
restante da subida, Norton não se afastou um só instante do
corrimão.
Uma eternidade depois, a escadaria terminou; só faltavam
algumas centenas de metros na escada vertical embutida. Não era
mais necessário escalar esta seção, já que um homem no Eixo,
puxando um cabo, podia facilmente içar uma pessoa, na gravidade
que diminuía rapidamente. Mesmo no pé da escada, um homem
pesava menos de cinco quilos; no topo, praticamente nada.
Assim, Norton relaxou no cinturão, segurando-se de vez em
quando num degrau para neutralizar a tênue força Coriolis, que
ainda tentava arrancá-lo da escada. Quase esqueceu as dores
musculares, enquanto contemplava pela última vez a paisagem de
Rama.
A claridade, agora, assemelhava-se a uma noite de Lua cheia na
Terra; o cenário geral era perfeitamente nítido, mas ele já não
conseguia distinguir os pequenos detalhes. O Polo Sul estava agora
parcialmente coberto por uma névoa incandescente; somente o pico
do Grande Chifre se projetava através dela – um pequeno ponto
preto, visto exatamente de frente.
O continente além-mar cuidadosamente mapeado, mas ainda
desconhecido, era a mesma colcha de retalhos de sempre. Estava
reduzido demais e cheio de detalhes complexos para o exame
visual, e Norton limitou-se a perscrutá-lo brevemente.
Percorreu os olhos pela faixa circular do Mar Cilíndrico e notou
pela primeira vez um padrão regular de águas agitadas, como se as
ondas estivessem quebrando em recifes dispostos em intervalos
geometricamente precisos. A manobra de Rama estava produzindo
algum efeito, mas muito leve. Tinha certeza de que a sargento
Barnes teria alegremente navegado naquelas condições, se ele lhe
pedisse para atravessar o Mar na perdida Resolution.
Nova York, Londres, Paris, Moscou, Roma... Disse adeus a todas
as cidades do continente norte e esperou que os ramanos o
perdoassem por quaisquer danos que tivesse causado. Talvez
compreendessem que tudo fora feito no interesse da ciência.
Então, de repente, estava no Eixo, e mãos ávidas se estenderam
para agarrá-lo e apressá-lo para as câmaras de pressurização. Suas
pernas e seus braços extenuados tremiam de modo tão
incontrolável que ele quase não podia se mover, e então deixou-se
manusear como um inválido semiparalisado.
O céu de Rama contraiu-se acima dele, enquanto descia pela
cratera central do Eixo. Quando a porta da câmara pressurizada
interna fechou para sempre a vista, ele pensou: “Que estranho estar
anoitecendo, agora que Rama chegou mais perto do Sol!”.
44
PROPULSÃO ESPACIAL

Cem quilômetros davam uma margem de segurança suficiente,


concluíra Norton. Rama era agora um enorme retângulo preto,
exatamente de costado, eclipsando o Sol. O comandante usara
essa oportunidade para colocar a Endeavour completamente à
sombra, a fim de aliviar a sobrecarga nos sistemas de refrigeração
da nave e realizar algumas operações de manutenção que estavam
atrasadas. O cone protetor de escuridão de Rama poderia
desaparecer a qualquer momento, e ele pretendia aproveitá-lo ao
máximo.
Rama ainda virava; tinha inclinado quase 15 graus, e era
impossível não acreditar na iminência de alguma importante
mudança de órbita. Nos Planetas Unidos, a excitação atingira um
nível de histeria, mas apenas um eco disso tudo chegava até a
Endeavour. A tripulação estava exausta, física e emocionalmente;
com exceção de um turno reduzido, todos dormiram por doze horas,
após a decolagem da Base Polar Norte. Por ordens médicas, o
próprio Norton utilizara eletrossedação; mesmo assim, sonhara que
estava subindo uma escadaria infinita.
No segundo dia a bordo da nave, quase tudo tinha voltado ao
normal; a exploração de Rama já parecia parte de uma outra vida.
Norton começou a lidar com o trabalho de gabinete acumulado e a
fazer planos para o futuro; mas recusava os pedidos de entrevistas
que de algum modo tinham conseguido se insinuar nos circuitos de
rádio da Observação Solar e até da SPACEGUARD. Nenhuma
mensagem vinha de Mercúrio, e a Assembleia Geral dos pu tinha
encerrado a sessão, embora estivesse pronta a se reunir novamente
com uma hora de aviso prévio.
Norton estava tendo a primeira boa noite de sono, trinta horas
após a partida de Rama, quando uma brusca sacudida o trouxe de
volta à consciência. Praguejou, grogue, abriu os olhos injetados
para Karl Mercer – e então, como todo bom comandante, despertou
instantaneamente.
– Rama parou de virar?
– Sim. Está firme como uma rocha.
– Vamos para a ponte.
A nave inteira estava acordada; até os simps sabiam que havia
alguma coisa acontecendo e emitiram barulhos ansiosos e
estridentes; o sargento McAndrews teve de tranquilizá-los, fazendo
rápidos sinais com a mão. No entanto, ao deslizar em sua cadeira e
apertar os cintos de segurança em volta da cintura, Norton
perguntou-se se aquele não seria mais um alarme falso.
Rama agora se reduzira a um cilindro atarracado, e a borda
causticante do Sol espreitava-se por um dos cantos. Norton
delicadamente conduziu a Endeavour de volta à sombra do eclipse
artificial e viu o esplendor perolado da coroa reaparecer sobre o
fundo das estrelas mais brilhantes. Uma enorme proeminência solar,
de pelo menos meio milhão de quilômetros de altura, subira a tal
ponto que seus ramos superiores pareciam uma árvore de fogo
vermelho.
Agora temos de esperar, disse Norton a si mesmo. O importante
é não se entediar, é estar pronto a reagir de imediato e manter todos
os instrumentos alinhados e registrando, não importa o quanto
demore...
Era estranho. O campo de estrelas se deslocava, quase como se
ele tivesse acionado os propulsores de rolamento. Mas não tocara
nos controles, e se tivesse havido qualquer movimento real, ele o
teria sentido no mesmo instante.
– Capitão! – disse Calvert, com urgência, do posto de navegação
–, estamos rodando... veja as estrelas! Mas os instrumentos não
indicam nada!
– O giroscópio está funcionando?
– Perfeitamente normal... estou vendo as flutuações do indicador
em cima do zero. Mas estamos rodando vários graus por segundo!
– Impossível!
– Claro que é... mas veja o senhor mesmo...
Quando tudo o mais falhava, só se podia confiar no olhômetro.
Norton não duvidava que o campo de estrelas estivesse de fato
girando lentamente – lá ia Sirius, atravessando no canto a
bombordo. Ou o Universo, numa reversão à cosmologia pré-
copernicana, tinha subitamente decidido orbitar a Endeavour, ou as
estrelas estavam paradas e a nave girava.
A segunda explicação parecia muito mais provável, mas envolvia
paradoxos aparentemente insolúveis. Se a nave estivesse
realmente girando com essa velocidade, ele teria sentido
literalmente na pele, como diz a expressão. E não era possível que
todos os giroscópios tivessem falhado simultaneamente, de maneira
independente.
Só restava uma resposta. Todos os átomos da Endeavour
deviam estar presos por alguma força – e só um poderoso campo
gravitacional poderia produzir esse efeito. Pelo menos, nenhum
outro campo conhecido...
De repente, as estrelas sumiram. O disco flamejante do Sol
emergira de trás do escudo de Rama, e seu brilho as expulsara do
céu.
– Está conseguindo uma leitura do radar? Qual o Doppler?
Norton estava totalmente preparado para ouvir que isso também
estava inoperante, mas se enganou.
Rama finalmente se moveu, acelerando à modesta velocidade de
0,015 gravidade. O dr. Perera, Norton pensou, ficaria satisfeito; ele
previra um máximo de 0,02. E a Endeavour foi de algum modo
apanhada em seu rastro, como o fragmento de um naufrágio,
rolando e rolando na superfície da água atrás de um navio que
acelera...
Hora após hora, a aceleração se manteve constante; Rama se
afastava da Endeavour a uma velocidade cada vez maior. À medida
que a distância aumentava, o comportamento anômalo da nave
cessava lentamente; as leis normais da inércia tornaram a operar.
Tudo o que podiam fazer era conjecturar sobre as energias em cujo
fluxo tinham sido apanhados por breves momentos, e Norton
agradeceu por ter posicionado a Endeavour a uma distância segura
antes de Rama acionar a sua propulsão.
Quanto à natureza dessa propulsão, uma coisa era certa, mesmo
que todo o resto fosse um mistério: não houve nenhum jato de gás,
nenhum feixe iônico ou de plasma empurrando Rama para a sua
nova órbita. Ninguém expressou melhor a situação do que o
sargento-professor Myron, quando disse, chocado e incrédulo: “Lá
se vai a Terceira Lei de Newton”.
Entretanto, foi na Terceira Lei de Newton que a Endeavour teve
de confiar no dia seguinte, quando utilizou as últimas reservas de
combustível para afastar a sua órbita do Sol. O desvio foi pequeno,
mas aumentaria em dez milhões de quilômetros a distância do
periélio. Era a diferença entre operar os sistemas de refrigeração da
nave a noventa e cinco por cento de sua capacidade e morrer
queimado.
Quando completaram a própria manobra, Rama estava a
duzentos mil quilômetros de distância e difícil de ver, contra o brilho
do Sol. Mas ainda obtinham medições precisas do radar sobre sua
órbita; e quanto mais observavam, mais perplexos ficavam.
Conferiram os números diversas vezes, até não haver mais como
escapar da inacreditável conclusão. Parecia que os temores dos
mercurianos, o heroísmo de Rodrigo e a retórica da Assembleia
Geral tinham sido completamente em vão.
Que ironia cósmica, disse Norton, enquanto olhava os números
finais, se, após um milhão de anos de orientação segura, os
computadores de Rama tivessem cometido um errinho qualquer –
talvez trocando o sinal de uma equação de mais para menos.
Todos tinham certeza de que Rama perderia velocidade a fim de
poder ser capturado pela gravidade do Sol e, assim, tornar-se um
novo planeta do Sistema Solar. Pois ele fazia exatamente o oposto.
Estava ganhando velocidade – e na pior direção possível.
Rama seguia cada vez mais rápido diretamente para o Sol.
45
FÊNIX

À medida que os detalhes da nova órbita iam se definindo cada vez


mais claramente, era difícil imaginar como Rama poderia escapar ao
desastre. Apenas um punhado de cometas havia passado tão perto
do Sol; no periélio, ele estaria a menos de meio milhão de
quilômetros acima daquele inferno de hidrogênio em fusão. Nenhum
material resistiria à temperatura de tal aproximação; a sólida liga da
qual era feito o casco de Rama começaria a derreter a uma
distância dez vezes maior.
A Endeavour já havia ultrapassado o próprio periélio, para alívio
de todos, e lentamente aumentava a sua distância do Sol. Rama ia
muito adiante, em sua órbita mais fechada e mais veloz, e já parecia
estar dentro da orla exterior da coroa. A nave iria assistir de
camarote ao ato final do drama.
Então, a cinco milhões de quilômetros do Sol, e ainda
acelerando, Rama começou a tecer seu casulo. Até agora, Rama
estivera visível, sob a máxima potência dos telescópios da
Endeavour, como uma pequena barra luminosa; de repente,
começou a cintilar, como uma estrela vista através das névoas do
horizonte. Quase parecia estar se desintegrando; ao ver a imagem
se dissolvendo, Norton teve uma comovente sensação de tristeza
pela perda de tantas maravilhas. Então percebeu que Rama ainda
estava lá, mas envolta em uma bruma tremeluzente.
E depois desapareceu. Em seu lugar ficou um objeto brilhante,
semelhante a uma estrela, sem nenhum disco aparente – como se
Rama tivesse subitamente se contraído numa pequena bola.
Somente depois de um tempo perceberam o que havia
acontecido. Rama de fato desaparecera: estava agora envolta numa
esfera perfeitamente refletora, com cerca de cem quilômetros de
diâmetro. Tudo o que viam agora era o reflexo do próprio Sol na
parte curva voltada para eles. Dentro dessa bolha protetora, Rama
presumivelmente estava a salvo do inferno solar.
Com o passar das horas, a bolha mudou de forma. A imagem do
Sol tornou-se alongada, distorcida. A esfera transformava-se numa
elipsoide, com seu longo eixo apontado na direção do voo de Rama.
Foi então que os primeiros registros anômalos começaram a chegar
dos observatórios automáticos que há quase duzentos anos
mantinham o Sol sob vigilância permanente.
Alguma coisa estava acontecendo ao campo magnético solar, na
região de Rama. As linhas de energia de milhões de quilômetros de
extensão que teciam a coroa, e soltavam mechas de gás
intensamente ionizado a velocidades que às vezes desafiavam até a
gravidade esmagadora do Sol, estavam envolvendo a elipsoide
reluzente. Nada era visível aos olhos ainda, mas os instrumentos
orbitais registravam cada mudança no fluxo magnético e na
radiação ultravioleta.
E pouco depois, até os olhos podiam ver as mudanças na coroa.
Um tubo ou túnel fracamente incandescente, com centenas de
quilômetros de comprimento, surgira no alto da atmosfera exterior
do Sol. Era ligeiramente curvo, inclinando-se ao longo da órbita
traçada por Rama, e o próprio Rama – ou o casulo protetor à sua
volta – era visível como uma esfera luminosa correndo cada vez
mais rápido por aquele tubo fantasmagórico formado pela coroa.
Pois Rama ainda acelerava; agora se movia a mais de dois mil
quilômetros por segundo, e não havia dúvida de que jamais seria
capturado pelo Sol. Agora, finalmente, a estratégia dos ramanos era
óbvia: tinham se aproximado tanto do Sol apenas para aproveitar
sua energia na fonte e para ganhar velocidade rumo ao seu
derradeiro e desconhecido destino...
E, pouco depois, pareciam aproveitar mais do que energia.
Nunca se teve certeza disso, pois os instrumentos de observação
mais próximos estavam a trinta milhões de quilômetros de distância,
mas houve claros indícios de que fluiu matéria do Sol para dentro de
Rama, como se estivesse substituindo os vazamentos e perdas de
dez mil séculos no espaço.
Cada vez mais rápido, Rama contornou o Sol com uma
velocidade jamais alcançada por qualquer objeto que já tenha
viajado pelo Sistema Solar. Em menos de duas horas, a direção de
seu movimento desviara mais de 90 graus, e ele provou, quase com
desdém, sua total falta de interesse por todos aqueles mundos cuja
paz de espírito havia tão grosseiramente perturbado.
Estava saindo da eclíptica e entrando no céu meridional, muito
abaixo do plano em que se movem todos os planetas. Embora
certamente não fosse seu destino final, rumava diretamente para a
Grande Nuvem de Magalhães, e para os ermos abismos além da
Via Láctea.
46
INTERLÚDIO

– Entre – disse o comandante Norton distraidamente, ao ouvir


baterem na sua porta.
– Tenho uma notícia para você, Bill. Queria lhe dar logo, antes
que a tripulação começasse a comentar. De qualquer modo, é o
meu departamento.
Norton ainda parecia distante. Estava deitado, com a cabeça
sobre as mãos entrelaçadas, olhos semifechados, as luzes da
cabine baixas – não exatamente cochilando, mas perdido em algum
devaneio ou sonho particular.
Piscou uma ou duas vezes, e de repente voltou ao próprio corpo.
– Desculpe, Laura... Não estou entendendo. Do que se trata?
– Não me diga que você esqueceu!
– Pare de provocar, mulher malvada. Tenho andado com a
cabeça um pouco ocupada ultimamente.
A comandante médica Ernst empurrou uma cadeira deslizante e
sentou-se ao lado dele.
– Apesar das crises interplanetárias, as engrenagens da
burocracia marciana continuam funcionando. Mas suponho que
Rama tenha ajudado. Ainda bem que você não precisou da
permissão dos mercurianos também.
Norton começou a entender.
– Ah... Port Lowell emitiu a licença!
– Melhor do que isso: já estão pondo em prática – Laura olhou de
relance para o papel que tinha em mãos. – “Imediato” – ela leu. –
Provavelmente, neste exato momento, seu novo filho está sendo
concebido. Parabéns.
– Obrigado. Espero que ele não tenha se aborrecido com a
demora.
Como todo astronauta, Norton fora esterilizado quando ingressou
no serviço; para um homem que passaria anos no espaço, mutação
causada por radiação não era um risco – era uma certeza. O
espermatozoide que acabava de entregar sua carga genética em
Marte, a duzentos milhões de quilômetros de distância, estivera
congelado por trinta anos, aguardando o momento de seu destino.
Norton imaginou se estaria em casa para ver o nascimento. Ele
merecia um tempo de descanso e diversão – uma vida normal em
família, tanto quanto era possível para um astronauta. Agora que a
essência da missão terminara, ele começava a se descontrair e a
pensar mais uma vez sobre o próprio futuro, e o futuro de ambas as
suas famílias. Contudo, seria bom passar uma temporada em casa,
para compensar o tempo perdido – em todos os sentidos...
– Esta minha visita – protestou Laura, sem muita convicção – era
puramente profissional.
– Depois de todos esses anos – retrucou Norton –, já nos
conhecemos bem demais para isso. Em todo caso, você está de
folga agora.

– E agora? No que você está pensando? – perguntou a


comandante médica Ernst, muito tempo depois. – Espero que não
esteja ficando sentimental.
– Sobre nós dois, não. Sobre Rama. Estou começando a sentir
falta dele.
– Muito obrigada pelo elogio.
Norton apertou-a nos braços. Uma das coisas mais agradáveis
da falta de peso, pensava ele com frequência, era que realmente se
podia abraçar alguém a noite inteira, sem cortar a circulação. Havia
quem afirmasse que o amor a 1 g era tão pesado que não se podia
mais sentir prazer.
– É fato conhecido, Laura, que a mente masculina, ao contrário
da feminina, opera em dois canais. Mas, falando sério... bem, mais
sério... realmente estou com uma sensação de perda.
– Posso entender.
– Não seja tão clínica. Este não é o único motivo. Ah, deixa pra lá
– desistiu. Não era fácil explicar, nem para si próprio.
Tivera êxito além de toda expectativa razoável; o que os seus
homens descobriram em Rama manteria os cientistas ocupados por
décadas. E, acima de tudo, tinha feito tudo sem uma única baixa.
Mas também fracassara. Podia-se especular infinitamente, mas a
natureza e o objetivo dos ramanos ainda eram completamente
desconhecidos. Tinham usado o Sistema Solar como um posto de
reabastecimento, ou como um acelerador – chamem como quiserem
–, e depois o tinham desprezado completamente, a caminho de
coisas mais importantes. Provavelmente nunca saberiam da
existência da raça humana; tal monumental indiferença era pior do
que o insulto deliberado.
Quando Norton vislumbrara Rama pela última vez, uma pequena
estrela movendo-se rapidamente além de Vênus, sentiu que parte
de sua vida havia terminado. Tinha apenas cinquenta e cinco anos,
mas era como se tivesse deixado sua juventude lá embaixo,
naquela planície curva, em meio aos mistérios e maravilhas que
agora se afastavam inexoravelmente além do alcance do homem.
Por mais honras e conquistas que lhe reservasse o futuro, para o
resto da vida seria assombrado por uma sensação de anticlímax e
pela consciência das oportunidades perdidas.
Isso era o que dizia a si mesmo; mas, mesmo então, sabia que
não seria assim.
E, na longínqua Terra, o dr. Carlisle Perera ainda não contara a
ninguém que tinha acordado de um sono inquieto com a mensagem
do subconsciente ainda ecoando em seu cérebro:
Os ramanos fazem tudo em grupos de três.
1- Os nomes dos macacos foram dados de acordo com a cor da
pelagem: Blackie (Pretinho), Blondie (Loirinho), Goldie (Douradinho)
e Brownie (Marronzinho). [N. da T.]
ENCONTRO COM RAMA

TÍTULO ORIGINAL:
Rendezvous with Rama

COPIDESQUE:
Marcos Fernando de Barros Lima

REVISÃO:
Hebe Ester Lucas
Isabela Talarico

CAPA:
Mateus Acioli

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:


Desenho Editorial

DIAGRAMAÇÃO DE E-BOOK E REVISÃO DA VERSÃO ELETRÔNICA:


Calil Mello Serviços Editoriais

DIREÇÃO EXECUTIVA:
Betty Fromer

DIREÇÃO EDITORIAL:
Adriano Fromer Piazzi

DIREÇÃO DE CONTEÚDO:
Luciana Fracchetta

EDITORIAL:
Daniel Lameira
Andréa Bergamaschi
Renato Ritto

FINANCEIRO:
Roberta Martins
Sandro Hannes
COMUNICAÇÃO:
Nathália Bergocce
Alexandre Nuns

COMERCIAL:
Giovani das Graças
Lidiana Pessoa
Roberta Saraiva
Gustavo Mendonça

COPYRIGHT © ROCKET PUBLISHING COMPANY LTD., 1973


COPYRIGHT © EDITORA ALEPH, 2011
(EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA PARA O BRASIL)

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.


PROIBIDA A REPRODUÇÃO, NO TODO OU EM PARTE, ATRAVÉS DE QUAISQUER
MEIOS.

Rua Tabapuã, 81, cj. 134


04533-010 – São Paulo – SP – Brasil
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

Clarke, Arthur C., 1917-2008.


Encontro com Rama [livro eletrônico] / Arthur C. Clarke ; tradução Susana
Alexandria. -- São Paulo : Aleph, 2015
708 Kb; ePUB

Título original: Rendezvous with Rama.


ISBN: 978-85-7657-257-2

1. Ficção científica inglesa I. Título.

15-06624 CDD 823.914

ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:


1. Ficção científica : Literatura inglesa 823.914
O Fim da Infância
Clarke, Arthur C.
9788576572565
320 páginas

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Em plena Guerra Fria, enquanto russos e americanos se preparam


para a corrida espacial, imensas naves surgem sobre as principais
capitais do mundo, revelando um dos grandes mistérios da
humanidade: O homem não está sozinho no universo. Seus
ocupantes, chamados de Senhores Supremos, dominam a Terra de
forma pacífica e melhoram substancialmente as condições de vida.
A ignorância, a guerra e a pobreza deixam de existir, dando início a
uma era de ouro. Porém, uma dúvida assombra a humanidade:
quais seriam os verdadeiros objetivos dos Senhores Supremos? Até
quando suas políticas iriam coincidir com o bem-estar dos homens?
As respostas para essas questões podem revelar uma verdade
aterradora.

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Flores Para Algernon
Keyes, Daniel
9788576573999
288 páginas

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Uma cirurgia revolucionária promete aumentar o QI do paciente.


Charlie Gordon, um homem com deficiência intelectual severa, é
selecionado para ser o primeiro humano a passar pelo
procedimento. O experimento é um avanço científico sem
precedentes, e a inteligência de Charlie aumenta tanto que
ultrapassa a dos médicos que o planejaram. Entretanto, Charlie
passa a ter novas percepções da realidade e começa a refletir sobre
suas relações sociais e até o papel de sua existência. Delicado,
profundo e comovente, Flores para Algernon é um clássico da
literatura norte-americana. A obra venceu o prêmio Nebula e
inspirou o filme Os Dois Mundos de Charlie, ganhador do Oscar de
Melhor Ator, um musical na Broadway e homenagens e referências
em diversas mídias.

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As Cavernas de Aço
Asimov, Isaac
9788576571728
302 páginas

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Em Nova York, o investigador de polícia Elijah Baley é escalado


para investigar o assassinato de um embaixador dos Mundos
Siderais. A rede de intrigas envolve desde sociedades secretas até
interesses interplanetários. Mas nada o preocupa tanto quanto o seu
parceiro no caso, cuja eficiência pode tomar o seu emprego, algo
cada vez mais comum. Pois seu parceiro é um robô. Publicado no
início da década de 1950, "As Cavernas de Aço" é o primeiro
romance da consagrada Série dos Robôs de Isaac Asimov,
mesclando de forma magistral os gêneros de ficção científica e
literatura policial.

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O homem do castelo alto
Dick, Philip K.
9788576571476
304 páginas

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Neste livro que é considerado por muito o melhor trabalho do autor,


Dick apresenta um cenário sombrio: a Segunda Guerra Mundial foi
vencida pelos Nazistas. O mundo vive sob o domínio da Alemanha e
do Japão. Os negros são escravos. Os judeus se escondem sob
identidades falsas para não serem completamente exterminados. É
nesse contexto que se desenvolvem os dramas de vários
personagens. Ao apresentar uma versão alternativa da história, Dick
levanta a grande questão: "O que é a realidade, afinal?"

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Laranja mecânica
Burguess, Anthony
9788576571421
201 páginas

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Narrada pelo protagonista, o adolescente Alex, esta brilhante e


perturbadora história cria uma sociedade futurista em que a
violência atinge grandes proporções e provoca uma resposta
igualmente agressiva de um governo totalitário. Ao lado de 1984, de
George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Laranja
Mecânica é um dos ícones literários da alienação pós-industrial que
caracterizou o século 20. Adaptado com maestria para o cinema em
1972 por Stanley Kubrick, o livro é uma obra marcante que
atravessou décadas e se mantém atual.

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