Encontro Com Rama
Encontro Com Rama
Encontro Com Rama
1 - Spaceguard
2 - Intruso
3 - Rama e Sita
4 - Encontro
5 - Primeira AEV
6 - Comitê
7 - Duas Esposas
8 - Através do Eixo
9 - Reconhecimento
10 - Descida na Escuridão
13 - A Planície de Rama
14 - Sinal de Tempestade
15 - A Beira do Mar
16 - Kealakekua
17 - Primavera
18 - Aurora
19 - Um Alerta de Mercúrio
20 - Apocalipse
21 - Depois da Tempestade
24 - Libélula
25 - Voo Inaugural
26 - A Voz se Rama
27 - Vento Elétrico
28 - Ícaro
29 - Primeiro Contato
30 - A Flor
31 - Velocidade Terminal
32 - A Onda
33 - Aranha
35 - Entrega Especial
36 - Observador se Biômatos
37 - Míssil
38 - Assembleia Geral
39 - Decisão de Comando
40 - Sabotador
41 - Herói
42 - Templo de Vidro
43 - Retirada
44 - Propulsão Espacial
45 - Fênix
46 - Interlúdio
Nota de rodapé
Créditos e copyright
Para o Sri Lanka,
onde subi a Escadaria dos Deuses
1
SPACEGUARD
A luz era tão brilhante que, por um minuto inteiro, Norton teve de
manter os olhos firmemente fechados. Em seguida, arriscou abri-los
e fitou por entre as pálpebras semiabertas a parede a poucos
centímetros diante de seu rosto. Piscou várias vezes, esperou que
as lágrimas involuntárias secassem e virou-se lentamente para
contemplar a aurora.
Conseguiu tolerar a visão só por alguns segundos; então, foi
forçado a fechar os olhos novamente. Não era a claridade que era
insuportável – ele poderia se acostumar a ela –, mas o
impressionante espetáculo de Rama, visto agora pela primeira vez
em sua plenitude.
Norton sabia exatamente o que esperar; não obstante, a visão o
atordoara. Foi tomado por um espasmo de tremor incontrolável;
suas mãos apertaram os degraus da escada com a violência de
alguém que está se afogando e se agarra a uma boia salva-vidas.
Os músculos dos antebraços começaram a saltar, ao mesmo tempo
em que as pernas – já fatigadas por horas de escalada ininterrupta –
pareciam prestes a sucumbir. Se não fosse pela baixa gravidade,
poderia ter caído.
Então, seu treinamento falou mais alto, e ele começou a aplicar o
primeiro remédio contra o pânico. Mantendo os olhos fechados e
tentando esquecer o absurdo espetáculo à sua volta, começou a
inspirar e expirar longamente, enchendo os pulmões de oxigênio e
purificando seu sistema dos venenos da fadiga.
Num instante, sentiu-se muito melhor, mas não abriu os olhos até
fazer mais uma coisa. Foi necessário um grande esforço de vontade
para obrigar sua mão direita a abrir – ele teve de conversar com ela
como se falasse a uma criança desobediente –, mas num instante
manobrou-a para baixo, até a cintura, desprendeu o cinto de
segurança dos arreios e enganchou a fivela no degrau mais
próximo. Agora, acontecesse o que acontecesse, ele não poderia
cair.
Norton respirou fundo, várias vezes mais; depois – ainda de
olhos fechados – ligou o rádio. Esperava que sua voz soasse calma
e resoluta quando chamou:
– Aqui é o capitão. Todos estão bem?
À medida que checava os nomes, um a um, e recebia as
respostas – ainda que um tanto trêmulas – de todos, a própria
confiança e o autocontrole voltaram rapidamente. Todos os homens
estavam sãos e salvos e buscavam nele a liderança. Ele era o
comandante, mais uma vez.
– Fiquem de olhos fechados até terem certeza absoluta de que
podem aguentar isso – ele disse. – A vista é... impressionante. Se
alguém achar que não pode suportá-la, continue escalando sem
olhar para trás. Lembrem-se: vocês logo estarão em gravidade zero
e não poderão mais cair.
Era desnecessário salientar um fato tão elementar a
espaçonautas treinados, mas o próprio Norton tinha de lembrar a si
mesmo disso a cada segundo. A ideia de gravidade zero era quase
um talismã a protegê-lo do perigo. O que quer que os seus olhos lhe
dissessem, Rama não poderia derrubá-lo e arrastá-lo para a
destruição na planície, oito quilômetros abaixo.
Tornou-se uma urgente questão de honra e autoestima abrir os
olhos outra vez e olhar o mundo à sua volta. Mas, primeiro, tinha de
controlar o próprio corpo.
Soltou as duas mãos da escada e enganchou o braço esquerdo
sob um degrau. Fechando e abrindo os punhos, esperou até que as
câimbras musculares desaparecessem; quando se sentiu
completamente confortável, abriu os olhos e lentamente virou-se
para Rama.
A primeira impressão foi de um azul. A claridade que enchia o
céu não podia ser confundida com luz solar; parecia mais um arco
elétrico. Então o sol de Rama, pensou Norton, deve ser mais quente
que o nosso. Isso deve interessar aos astrônomos...
E agora entendia a finalidade daquelas misteriosas valas, do Vale
Reto e seus cinco companheiros; eram nada menos que
gigantescos refletores. Rama tinha seis sóis lineares,
simetricamente dispostos em torno de seu interior. De cada um
deles, um largo leque de luz apontava para o eixo central, para
iluminar o lado oposto do mundo. Norton imaginou se poderiam ser
acesos de modo alternado, para produzir um ciclo de luz e
escuridão, ou se esse era um mundo com dias perpétuos.
De tanto olhar aquelas ofuscantes barras de luz, seus olhos
começaram a doer novamente; não achou ruim ter um bom pretexto
para fechá-los por um momento. Só naquele instante, quando quase
se recuperara do primeiro choque visual, pôde devotar-se a um
problema muito mais sério.
Quem ou o que tinha acendido as luzes de Rama?
Esse era um mundo estéril, segundo os testes mais sensíveis
que o homem poderia aplicar. Mas agora acontecia algo que não
podia ser explicado pela ação de forças naturais. Não poderia haver
vida ali, mas poderia haver consciência, percepção; robôs poderiam
estar despertando após um sono de milhões de anos. Talvez essa
explosão de luz fosse um espasmo aleatório, não programado – o
último suspiro de máquinas agonizantes que reagiam desorde-
nadamente ao calor de um novo sol e logo recairiam em sua
inatividade, desta vez para sempre.
No entanto, Norton não conseguia acreditar numa explicação tão
simples. Peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar,
embora ainda faltassem muitas. A ausência de todo e qualquer sinal
de desgaste, por exemplo – a sensação de novidade, como se
Rama tivesse acabado de ser criado...
Esses pensamentos poderiam ter inspirado medo, e mesmo
terror. De algum modo, não causaram nada disso. Pelo contrário,
Norton experimentou uma sensação de euforia – quase deleite.
Havia mais a descobrir aqui do que jamais ousaram esperar. Espere
até o Comitê de Rama ficar sabendo disso!, disse a si mesmo.
Então, com calma determinação, abriu os olhos novamente e
começou a fazer um cuidadoso inventário de tudo o que via.
Primeiro, tinha de estabelecer algum tipo de sistema de
referência. Estava olhando para o maior espaço fechado já visto
pelo homem e precisava de um mapa mental para se orientar nele.
A fraca gravidade não ajudava muito, pois, com força de vontade,
poderia usar Para Cima e Para Baixo em qualquer direção que
desejasse. Mas algumas direções eram psicologicamente perigosas;
sempre que sua mente esbarrava numa delas, ele tinha de desviá-la
rapidamente.
O mais seguro era ele imaginar que estava no fundo abaulado de
um gigantesco poço, de dezesseis quilômetros de largura e
cinquenta de profundidade. A vantagem dessa imagem era que não
podia haver perigo de cair mais abaixo; não obstante, ela tinha
alguns defeitos sérios.
Ele podia fingir que as vilas e cidades espalhadas, e as áreas de
diferentes cores e texturas, estavam todas firmemente presas nas
elevadíssimas paredes. As variadas e complexas estruturas que se
viam penduradas na cúpula acima talvez não fossem menos
desconcertantes do que os candelabros pendentes em algumas
salas de concerto na Terra. Absolutamente inaceitável era o Mar
Cilíndrico...
Lá estava ele, a meia altura do poço – uma faixa de água a
circundá-lo completamente, sem nenhum suporte visível. Não havia
dúvida de que era água; era de um azul vívido, salpicado de
centelhas brilhantes dos poucos blocos de gelo remanescentes.
Mas um mar vertical formando um círculo completo a vinte
quilômetros de altitude no céu era um fenômeno tão desconcertante
que, depois de algum tempo, ele começou a procurar uma
alternativa.
Foi quando sua mente fez a cena girar 90 graus.
Instantaneamente, o poço fundo tornou-se um longo túnel, com uma
calota em cada extremidade. “Para baixo” era, obviamente, na
direção da escada e da escadaria que acabara de subir; e agora,
com essa perspectiva, Norton finalmente foi capaz de apreciar a
verdadeira visão dos arquitetos que tinham construído aquele lugar.
Ele estava agarrado à superfície de um penhasco curvo de
dezesseis quilômetros de altura, cuja metade superior formava um
arco completo, até fundir-se com o teto que agora era o céu. Abaixo
dele, a escada descia mais de quinhentos metros, até terminar na
primeira borda ou terraço. Ali começava a escadaria, que continuava
quase verticalmente a princípio, nesse regime de baixa gravidade, e
lentamente se tornava cada vez menos íngreme, até alcançar,
depois da interrupção de mais cinco plataformas, a planície distante.
Pelos primeiros dois ou três quilômetros, ele conseguia ver os
degraus individualmente, mas a partir daí eles se fundiam numa
faixa contínua.
O mergulho daquela imensa escadaria era tão impressionante
que se tornava impossível apreciar a sua verdadeira escala. Certa
vez, Norton tinha sobrevoado o Monte Everest e ficara assombrado
com seu tamanho. Lembrou a si mesmo que aquela escadaria era
tão alta quanto o Himalaia, mas a comparação não fazia sentido.
E nenhuma outra comparação era possível com as duas outras
escadarias, Beta e Gama, que subiam até o céu e depois faziam
uma curva lá longe, sobre sua cabeça. Norton agora ganhara
confiança suficiente para inclinar o corpo para trás e olhar para elas
– de relance. E então tentou esquecer que elas estavam lá...
Pois pensar demais naquelas linhas evocava uma terceira
imagem de Rama, que ele ansiava por evitar a qualquer custo.
Tratava-se do ponto de vista que considerava aquele mundo
novamente um cilindro vertical ou poço – mas agora ele estava no
topo, não no fundo, como uma mosca rastejando de ponta-cabeça
num teto abobadado, com uma queda de cinquenta quilômetros
imediatamente abaixo. Toda vez que essa assustadora imagem se
insinuava, Norton precisava exercer toda a força de vontade para
não se agarrar novamente à escada, num pânico irracional.
Tinha certeza de que, com o tempo, todos esses medos
declinariam. A maravilha e a estranheza de Rama expulsariam seus
terrores, pelo menos para homens treinados para enfrentar as
realidades do espaço. Talvez ninguém que jamais tivesse saído da
Terra e jamais estivesse cercado de estrelas por todos os lados
conseguiria suportar aqueles panoramas. Mas, se havia homens
capazes de aceitá-los, Norton disse a si mesmo, com rigorosa
determinação, seriam o capitão e a tripulação da Endeavour.
Olhou seu cronômetro. A pausa tinha durado apenas dois
minutos, mas parecera uma vida inteira. Fazendo apenas o pequeno
esforço necessário para sair da inércia naquele campo gravitacional
cada vez mais fraco, começou a subir as últimas centenas de
metros da escada. Pouco antes de entrar na câmara pressurizada e
dar as costas a Rama, fez uma última e rápida vistoria de seu
interior.
O cenário havia mudado, mesmo nos últimos minutos; uma
névoa subia do Mar. Nas primeiras centenas de metros, as
fantasmagóricas colunas brancas inclinavam-se nitidamente para a
frente, na direção do giro de Rama; então começaram a se dissolver
num redemoinho de turbulência, à medida que o ar ascendente
tentava se desfazer do excesso de velocidade. Os ventos alísios
desse mundo cilíndrico começavam a estampar seus padrões no
céu; a primeira tempestade tropical em eras desconhecidas estava
prestes a eclodir.
19
UM ALERTA DE MERCÚRIO
Não era uma cidade; era uma máquina. Norton tinha chegado a
essa conclusão em dez minutos e não viu motivo algum para
modificá-la depois de terem realizado uma travessia completa da
ilha. Uma cidade – qualquer que seja a natureza de seus ocupantes
– certamente teria de fornecer algum tipo de acomodação: não
havia nada do tipo ali, a não ser que estivesse no subsolo. E, se era
este o caso, onde estavam as entradas, as escadarias, os
elevadores? Ele não encontrara nada que pudesse ser classificado
como uma porta...
A analogia mais próxima que tinha visto para esse lugar na Terra
era uma gigantesca usina de processamento químico. Entretanto,
não havia nenhuma pilha de matéria-prima, ou alguma indicação de
um sistema de transporte para carregá-la. Tampouco conseguia
imaginar onde surgiria o produto final – muito menos que tipo de
produto poderia ser. Tudo isso era muito confuso e frustrante.
– Alguém quer dar um palpite? – disse, por fim, a todos os que
estivessem ouvindo. – Se isso é uma fábrica, o que ela produz? E
onde obtém a matéria-prima?
– Tenho uma sugestão, capitão – disse Karl Mercer, lá da outra
margem. – Suponhamos que a fábrica utilize o Mar. Segundo a
doutora, ele contém praticamente tudo o que se possa imaginar.
Era uma resposta plausível, e Norton já a tinha considerado.
Poderia haver canos subterrâneos conduzindo ao Mar – na verdade,
deveria mesmo haver, pois qualquer usina química concebível
exigiria grande quantidade de água. Mas ele desconfiava de
respostas plausíveis; com frequência eram equivocadas.
– É uma boa ideia, Karl; mas o que Nova York faz com a água?
Por longos instantes, ninguém da nave, do Eixo ou da planície
norte respondeu. Então, uma voz inesperada falou.
– É fácil, capitão. Mas todo mundo vai rir de mim.
– Não, não vamos, Ravi. Continue.
O sargento Ravi McAndrews, comissário-chefe e adestrador de
simps, era a última pessoa na nave que normalmente se envolveria
numa discussão técnica. Seu qi era modesto e seu conhecimento
científico era mínimo, mas não era nenhum bobo e tinha uma
perspicácia natural que todos respeitavam.
– Bem, é uma fábrica mesmo, capitão, e talvez o Mar forneça a
matéria-prima... Afinal, foi como tudo aconteceu na Terra, mas de
um jeito diferente... Acredito que Nova York seja uma fábrica de...
ramanos.
Alguém, em algum lugar, deu uma risadinha, mas calou-se
rapidamente e não se identificou.
– Sabe de uma coisa, Ravi? – disse, por fim, o comandante. –
Essa teoria é maluca o suficiente para ser verdadeira. Mas não
tenho certeza se quero comprová-la... Pelo menos até voltar ao
continente.
Aquela Nova York celeste tinha quase o mesmo tamanho da ilha
de Manhattan, mas a geometria era totalmente diferente. Havia
poucas ruas retas; era um labirinto de arcos curtos concêntricos,
ligados entre si por raios. Felizmente, era impossível se perder em
Rama; bastava olhar o céu para estabelecer o eixo norte-sul
daquele mundo.
Pararam em quase todas as intersecções para tirar uma
fotografia panorâmica. Quando todas essas centenas de imagens
fossem colocadas em ordem, seria uma tarefa enfadonha, mas
muito simples, construir uma maquete da cidade. Norton suspeitava
que o quebra-cabeça resultante ocuparia os cientistas por gerações.
Era ainda mais difícil acostumar-se ao silêncio ali do que tinha
sido na planície de Rama. Uma cidade-máquina deveria emitir
algum som; no entanto, não havia sequer o ruído elétrico mais débil,
ou o sussurro mais leve de movimento mecânico. Por várias vezes,
o comandante Norton pôs o ouvido no solo, ou na parede de um
prédio, e escutou com atenção. Não ouviu nada, exceto o pulsar do
próprio sangue.
As máquinas estavam dormindo: sequer estavam em marcha
lenta. Será que um dia despertariam novamente, e com que
propósito? Tudo estava em perfeita ordem, como sempre. Era fácil
acreditar que o fechamento de um único circuito em algum
computador paciente e oculto traria todo esse labirinto de volta à
vida.
Quando finalmente chegaram ao outro lado da cidade, subiram
até o topo do dique circundante e examinaram o braço sul do Mar.
Por longo tempo, Norton fitou o penhasco de quinhentos metros de
altura que os separava de quase a metade de Rama – e, a julgar
pelas análises telescópicas, a metade mais complexa e variada.
Daquele ângulo, o penhasco parecia de uma cor preta agourenta e
sombria, e era fácil encará-lo como a muralha de uma prisão,
contornando um continente inteiro. Em nenhum ponto, ao longo de
seu circuito, havia uma escada ou qualquer outro meio de acesso.
Como será que os ramanos chegavam à sua terra meridional a
partir de Nova York?, pensou Norton. Provavelmente havia um
sistema de transporte subterrâneo passando por baixo do Mar, mas
devia haver aeronaves também; havia muitas áreas abertas ali na
cidade que poderiam ser usadas como pistas de pouso. A
descoberta de algum veículo ramano seria um feito importante –
especialmente se aprendessem a operá-lo. (Mas será que alguma
fonte de energia concebível ainda estaria funcionando, depois de
centenas de milhares de anos?)
Havia inúmeras estruturas que tinham a aparência funcional de
hangares ou garagens, mas eram todas lisas e sem janelas, como
se tivessem sido impermeabilizadas. Cedo ou tarde, Norton dissera
sombriamente a si mesmo, seremos forçados a utilizar explosivos e
raios laser. Estava determinado a adiar essa decisão para o último
instante possível.
A relutância em usar força bruta devia-se, em parte, ao orgulho e,
em parte, ao medo. Não queria se comportar com um bárbaro
tecnológico, destruindo o que não conseguia entender. Afinal, ele
era um visitante não convidado naquele mundo e deveria se
comportar como tal.
Quanto ao medo – talvez a palavra fosse muito forte; apreensão
seria mais apropriado. Os ramanos pareciam ter planejado tudo;
Norton não estava nada ansioso para descobrir quais precauções
tinham tomado para proteger sua propriedade. Voltaria ao
continente de mãos vazias.
24
LIBÉLULA
Jimmy mal teve tempo de falar pelo rádio: “A asa está vergando...
Vou cair... Vou cair!”, quando a Libélula começou a se dobrar
graciosamente em torno dele. A asa esquerda partiu-se ao meio, e a
metade exterior flutuou à deriva, como uma folha de árvore caindo
delicadamente. A performance da asa direita foi mais complicada.
Dobrou-se inteira para trás, com tanta força que sua ponta
enroscou-se na cauda. Jimmy teve a sensação de estar sentado
numa pipa quebrada, lentamente caindo do céu.
Contudo, não estava completamente indefeso; a hélice ainda
funcionava e, enquanto tivesse força motriz, haveria certa medida
de controle. Teria, talvez, cinco minutos para usá-la.
Havia alguma esperança de alcançar o Mar? Não, estava longe
demais. Então lembrou que ainda pensava em termos terrestres;
embora fosse bom nadador, levaria horas até ser resgatado, e até lá
as águas venenosas sem dúvida já o teriam matado. Sua única
esperança era cair em terra firme; quanto ao problema do penhasco
vertical, pensaria nisso depois – se houvesse um “depois”.
Caía bem devagar, naquela zona de um décimo de gravidade,
mas logo começaria a acelerar, à medida que se afastasse do eixo.
Entretanto, a resistência do ar complicaria a situação e evitaria uma
queda muito rápida. A Libélula, mesmo sem força motriz, atuaria
como um paraquedas improvisado. Os poucos quilos de propulsão
que ele talvez ainda conseguisse fornecer fariam toda a diferença
entre a vida e a morte; essa era sua única esperança.
O Eixo parara de falar; seus amigos viam exatamente o que
estava acontecendo com ele e sabiam que suas palavras não
poderiam ajudar. Jimmy agora realizava o voo mais difícil de sua
vida; que pena, pensou ele com humor amargo, que sua plateia era
tão pequena e não seria capaz de apreciar os detalhes mais sutis de
sua habilidosa performance.
Ele caía numa ampla espiral e, enquanto a queda seguisse
razoavelmente plana, as chances de sobrevivência eram boas. A
força com que pedalava contribuía para manter a Libélula no ar,
embora temesse exercer força total e as asas quebradas se
soltarem completamente. E todas as vezes que se virava para o sul,
apreciava o fantástico espetáculo que Rama gentilmente lhe
preparara.
As serpentinas de raios ainda relampejavam da ponta do Grande
Chifre até os picos menores abaixo, mas agora o conjunto inteiro
girava. A coroa de fogo de seis dentes movia-se no sentido contrário
da rotação de Rama, completando cada revolução em poucos
segundos. Jimmy teve a impressão de estar observando um
gigantesco motor elétrico em operação. E talvez isso não estivesse
muito longe da verdade.
Estava a meio caminho da planície, ainda orbitando numa espiral
plana, quando o show pirotécnico subitamente cessou. Pôde sentir a
tensão esvair-se do céu e soube, sem precisar olhar, que os pelos
dos braços já não estavam eriçados. Agora não havia mais nada
para distraí-lo ou perturbá-lo durante os últimos minutos de sua luta
pela vida.
Agora que podia ter certeza da área geral em que devia pousar,
começou a estudá-la atentamente. Grande parte daquela região era
um tabuleiro de ambientes totalmente conflitantes, como se um
paisagista louco tivesse recebido carta branca para exercer sua
imaginação ao máximo. As casas desse tabuleiro mediam quase um
quilômetro de cada lado e, embora a maioria fosse plana, não tinha
certeza se eram sólidas, tamanha era a variedade de cores e
texturas. Decidiu esperar até o último minuto possível antes de
tomar uma decisão – se de fato tivesse escolha.
Quando faltavam apenas alguns metros, chamou pela última vez
o Controle Central pelo rádio:
– Ainda tenho algum controle... Vou cair em meio minuto...
Chamo vocês depois.
Eram palavras otimistas, e todos sabiam. Mas ele se recusava a
dizer adeus; queria que seus companheiros soubessem que ele
caíra lutando, e sem medo.
De fato, sentiu muito pouco medo, e isso o surpreendeu, pois
nunca pensara em si mesmo como um homem corajoso. Era quase
como se observasse os desafios de um completo estranho e não
estivesse envolvido pessoalmente. Ou como se estudasse um
problema interessante de aerodinâmica, mudando vários
parâmetros para ver o que aconteceria. Quase a única emoção que
sentiu foi um remoto lamento por oportunidades perdidas – das
quais a mais importante era a próxima Olimpíada Lunar. Um futuro,
pelo menos, estava decidido: a Libélula jamais mostraria suas
qualidades na Lua.
Faltavam cem metros; sua velocidade absoluta parecia aceitável,
mas com que rapidez estava caindo? E ele teve sorte: o terreno era
completamente plano. Empregaria toda a sua força num ímpeto final
de energia, começando... AGORA!
A asa direita, tendo cumprido o seu dever, finalmente soltou-se
inteira. A Libélula começou a girar, e ele tentou corrigir o movimento
jogando o peso de seu corpo no sentido contrário do giro. Estava
olhando diretamente para a paisagem em arco a dezesseis
quilômetros de distância quando bateu.
Pareceu-lhe totalmente injusto e absurdo que o céu fosse tão
duro.
29
PRIMEIRO CONTATO
TÍTULO ORIGINAL:
Rendezvous with Rama
COPIDESQUE:
Marcos Fernando de Barros Lima
REVISÃO:
Hebe Ester Lucas
Isabela Talarico
CAPA:
Mateus Acioli
DIREÇÃO EXECUTIVA:
Betty Fromer
DIREÇÃO EDITORIAL:
Adriano Fromer Piazzi
DIREÇÃO DE CONTEÚDO:
Luciana Fracchetta
EDITORIAL:
Daniel Lameira
Andréa Bergamaschi
Renato Ritto
FINANCEIRO:
Roberta Martins
Sandro Hannes
COMUNICAÇÃO:
Nathália Bergocce
Alexandre Nuns
COMERCIAL:
Giovani das Graças
Lidiana Pessoa
Roberta Saraiva
Gustavo Mendonça