ENSAIOS SOBRE A GUERRA Russia Ucrania 20

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RÚSSIA UCRÂNIA

ENSAIOS SOBRE A GUERRA 2022 Kinoruss

BRUNO GOMIDE E NEIDE JALLAGEAS ( ORGS .)


Era para a verdade atingir o objetivo
mais depressa que a mentira.
Era para já não mais ocorrerem
algumas desgraças:
a guerra por exemplo,
e a fome e assim por diante.
Era para ter sido levada a sério
a fraqueza dos indefesos,
a confiança e similares.

7
Quem quis se alegrar com o mundo
depara com uma tarefa
de execução impossível.1

1 Wisława Szymborska, “Ocaso do século", in: Poemas, tradução de Regina


Przybycien, São Paulo, Companhia Das Letras, 2011.
SUMÁRIO
15 IN TRODUÇ ÃO

21 Em defesa (crítica) do direito da Ucrânia à


autodeterminação: entre a Cila da agressão imperialista
russa e a Caríbdis da marginalização na Europa
Sve tl ana R U S E I S H V I L I

51 11
A invasão da Ucrânia: evidências e controvérsias
Daniel A A R ÃO R E I S

87 A Ucrânia tem o direito de existir como nação


soberana?
Henrique S. C A R N E I R O

111 As contradições nos argumentos de Pútin para invadir


a Ucrânia: os mitos da Otan, da proteção de minorias e
da desnazificação
V icente F E R R A R O
169 Breve esboço sobre a arte antimilitarista na Rússia
contemporânea
Cris tina D U N Á E V A
Fernando Bomf im M A R I A N A

201 Ouvir a cultura ou queimar o futuro? Rússia e Europa


no âmbito da invasão da Ucrânia
Mar tín B A Ñ A

225 Ucranianos em fuga da guerra: adaptação no Brasil e


aquisição de português
Anna S M I R N O V A
Volod y my r T E S K O
12

253 Projeto Vozes


Pedro F R A T I N O

283 Espaços vazios: império versus vida


Helen P E T R O V S K Y

307 “Não à guerra” por Liev Tolstói


Elena V Á S S I N A

333 “Guerra e Mundo”: o poeta pela paz


Le tícia M E I
367 E se não for sobre o Ocidente? Determinação e pavor
na invasão russa da Ucrânia
Omar Ribeiro T H O M A Z

401 A Guerra na Ucrânia: alguns elementos explicativos


(ensaio impressionístico)
Angelo S E G R I L L O

425 Literatos da nação cossaca: Os historiadores e a gênese


da “ideia ucraniana”
Lucas S I M O N E

451 13
A Ucrânia não é o diabo, mas talvez o futuro da
democracia
Yves C O H E N

483 Autores e Organizadores

492 Notas da editora

494 Agradecimentos
Introdução
INTRODUÇÃO

Na manhã do dia 24 de fevereiro de 2022, quando, decorridos dois


anos de pandemia, a Covid-19 ainda assombrava o planeta e no Brasil
tomávamos o café da manhã, os ucranianos haviam saltado ligeiros de suas
camas e corriam para abrigos subterrâneos que em poucas horas passariam
a acolher multidões. Se arriscavam na neve, sob tiros e explosões em busca

17
de locais seguros para si, os filhos, os bichinhos, chocados com as mortes
e os escombros que iam se avolumando rapidamente pelas ruas. Horas
antes o presidente russo, Vladímir Pútin, havia anunciado uma “operação
militar especial” na Ucrânia, expressão que, diante do poder destrutivo da
ofensiva militar russa e da pronta defesa pelo país agredido, foi imediata-
mente lida como um eufemismo para guerra que, de tão afrontoso, acabou
gerando memes que contrapunham a expressão eufemística à paz na capa
do romance de Tolstói. Com velocidade, cartazes negros com as palavras
НЕТ ВОЙНЕ – que em russo quer dizer NÃO À GUERRA –se multiplicaram
nas redes sociais do mundo inteiro.
Jornalistas, artistas e intelectuais começaram a se reunir para bus-
car entender toda a situação, promovendo lives, entrevistas; em vários can-
tos do mundo milhares de pessoas se reuniram para se manifestar contra
a guerra na Ucrânia.
Mesmo para quem, há anos, convive, estuda e acompanha os movi-
mentos políticos e culturais no Leste Europeu, a ofensiva e seus desdobra-
mentos demonstraram-se estarrecedores. Muita gente começou a morrer na
Ucrânia e, de uma hora para outra, famílias não tinham mais casa, prédios
inteiros tombaram em ruínas, crianças ficaram sem os pais, sem os avós. E a
fuga em massa teve início levando ao exílio milhões de pessoas, principal-
mente mulheres e crianças ucranianas. Grande número de russas e russos,
discordantes da "operação militar especial" promovida por Pútin, deixaram a
Rússia, inclusive notáveis nomes da literatura e das artes como LiudmilaU-
lítskaia que, aos 79 anos, trocou Moscou por Berlim, e uma das maiores can-
toras pop vivas, Zemfira, junto a sua companheira, a atriz e cineasta Renata
Litvínova, mudaram-se para Paris. Claramente, trata-se de um cenário que
promete mudanças profundas na ordem mundial, inclusive trazendo à baila
a ameaça nuclear, que muitos erroneamente julgavam superada.
Tão rápidas quanto foram a ação e a reação iniciais neste conflito,
foram também as medidas tomadas pelo governo russo para silenciar as
vozes discordantes. As poucas emissoras de oposição foram fechadas, a
internet foi amordaçada, e uma enxurrada de fakenews tratou de encobrir
18

os crimes perpetrados em cidades como Mariupol ou Bucha.


Dentro de nosso campo de estudo e trabalho, junto a alunos e lei-
tores, percebemos a urgência em promover e participar de debates fun-
damentados em estudos de pesquisadores dedicados a temas eslavos , de
vários campos. E, em abril, dois meses após a invasão russa, uma mesa-
-redonda foi realizada na USP, na Sala 266 do prédio Antonio Candido,
reunindo alguns dos estudiosos que semanas depois convidaríamos para
participar deste livro. A universidade, depois de mais de dois anos fechada,
voltava às atividades presenciais. A lufada de ar fresco trazida pela possi-
bilidade tão sonhada de reencontrar amigos e colegas, em sala lotada e
atenta, formou um estranho contraste com a discussão da nova tragédia em
curso. Duas opções se desenhavam: ceder ao desânimo diante de mais uma
catástrofe –estado de exceção, peste, e agora, guerra –ou tentar, no calor
da hora, mobilizar os recursos de nossa eslavística local, para produzir uma
reflexão necessariamente provisória, mas de qualidade, sobre os aconteci-
mentos que se desenrolavam às margens do Mar Negro. O presente livro é
o resultado desse esforço.

Bruno G O M I D E
Neide J A L LAG E A S

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Em defesa (crítica) do direito
da Ucrânia à autodeterminação
Em defesa (crítica) do direito da
Ucrânia à autodeterminação:
entre a Cila da agressão imperialista
russa e a Caríbdis da marginalização
na Europa1
Svetlana R U S E I S H V I L I

Assisti com curiosidade e aversão o discurso de Vladímir Pútin na


televisão russa no dia 21 de fevereiro de 2022. Na tensão de um iminente
ataque militar russo na Ucrânia, o pronunciamento do presidente russo
prometia esclarecer as pretensões do Krêmlin. O caráter imperialista pela
expansão territorial ficou claro nessa fala extensa e confusa. Mas o que

23
mais me intrigou foi a revisão da história soviética (manipulativa e instru-
mental, como já é costumeiro no regime de Pútin),2 empreendida para jus-
tificar a conquista neocolonial dos territórios ucranianos pelo Estado russo.
Pútin iniciou o seu discurso criticando a convicção de Vladímir Lênin
em defender o direito à autodeclaração dos povos do antigo Império Russo.

1 Partes desse ensaio foram inicialmente publicadas em 24 de fevereiro de 2022


em “O que é o internacionalismo proletário”, na Revista Movimento, disponível em:
https://movimentorevista.com.br/2022/02/o-que-e-o-internacionalismo-
proletario/.
2 Ver a esse propósito excelente tese de doutorado de Henrique Canary
Rodrigues (2021).
O argumento principal do presidente russo pode ser assim resumido: Lênin
errou em reconhecer a autonomia dos povos que faziam parte do Império
Russo; Stálin, posteriormente, acertou em não colocar em prática os pre-
ceitos de um governo confederativo, mas deveria ter retirado da própria
Constituição da URSS os princípios jurídico-administrativos da autonomia
dos povos; esse histórico soviético foi um erro fatal para a Rússia, de modo
que a situação atual nada mais seria do que uma restauração da “tradição
histórica” (pela qual Pútin entende a restauração dos territórios do Império
Russo sob o domínio grão-russo).
Em seguida, Pútin insinuou que o território ucraniano era ilegítimo
e a-histórico:

A Ucrânia contemporânea foi, na sua totalidade,


uma criação da Rússia. Mais precisamente, da Rús-
sia soviética comunista. Esse processo teve seu
início quase imediatamente após a revolução de
1917. Aliás, Lênin e seus camaradas fizeram isso de
uma maneira bruta com relação à própria Rússia:
por meio da separação e da alienação de seus pró-
prios territórios históricos. [...] Já depois da Segunda
24

Guerra Mundial, Stálin anexou e ofereceu à Ucrânia


territórios anteriormente pertencentes à Polônia,
Romênia e Hungria. [...] E, em 1954, Khruschov, sem
motivos aparentes, separou a Crimeia da Rússia e a
presenteou à Ucrânia. Foi assim que o território da
Ucrânia Soviética foi formado.3

Pútin então ironiza em um tom ameaçador, repleto de ressentimento:

3 Tradução minha da gravação da fala do presidente Pútin, disponível em rus-


so em: http://kremlin.ru/events/president/news/67828. Acesso em: 26.07.2022.
A Ucrânia deveria ser chamada de “Ucrânia de Vladí-
mir Ilitch Lênin”. Ela foi a sua criação. E hoje os des-
cendentes, repletos de gratidão, estão depondo os
monumentos para Lênin. Eles chamam isso de des-
sovietização. Vocês querem dessovietização? Esta-
mos completamente de acordo. Mas queremos que
ela seja levada até as últimas consequências. Nós
estamos prontos para mostrar a vocês o que signi-
fica para a Ucrânia a verdadeira dessovietização.

O raciocínio de Pútin é evidente: a Ucrânia como um Estado-nação


não tem legitimidade, os ucranianos não podem existir sem a Rússia e, se
eles quiserem uma dessovietização, têm que entendê-la como devolução
de partes de seus territórios para os seus relativos “proprietários históricos”.
Pútin continua atacando os bolcheviques:

Em 1922, no território do antigo Império foi criada a


URSS. Mas a prática logo mostrou que não era pos-
sível nem preservar um território tão vasto, nem o
governar com princípios amorfos, quase confedera-

25
tivos. Os bolcheviques eram totalmente alienados,
tanto da realidade, quanto da tradição histórica.
[...] É uma pena que dos fundamentos básicos, for-
mais e jurídicos nos quais o nosso Estado foi cons-
truído não tenham sido excluídas essas fantasias
(o direito à autodeterminação dos povos) odiosas,
utópicas, influenciadas pela revolução, e absoluta-
mente destrutivas para qualquer país.4

4 Tradução minha da gravação da fala do presidente Pútin, disponível em rus-


so em: http://kremlin.ru/events/president/news/67828. Acesso em: 26.07.2022.
A guerra que Pútin iria iniciar três dias depois desse discurso sig-
nificava para ele a reparação histórica de uma grande injustiça geopolítica
cometida pela realização da noção da autodeterminação dos povos, defen-
dida por Lênin. A descolonização que os ucranianos estavam ativamente
realizando na última década, que significou também uma “dessovietiza-
ção”, deveria, na visão do presidente russo, resultar na submissão do povo
ucraniano ao domínio colonial russo e na devolução de seus territórios às
antigas metrópoles. Ou seja, para Pútin, a descolonização é o retorno ao
status quo pré-soviético. Pútin recorre a esse paradoxo para introduzir a
ideia (historicamente equivocada) de que a nação ucraniana deve a sua
existência à boa vontade do líder bolchevique.
De fato, para os revolucionários socialistas no início do século XX,
a questão da autonomia dos povos historicamente colonizados era impor-
tantíssima para a construção do novo Estado proletário. Obviamente, não
foi Lênin que criou a Ucrânia como nação, mas ele defendeu as suas pre-
tensões por emancipação nacional, acreditando que ela era a condição
necessária para a emancipação da classe trabalhadora. A referência de
Pútin às ideias leninistas me levou a reler os escritos do revolucionário
russo sobre a questão nacional e a retornar ao seu debate sobre o tema
com Rosa Luxemburgo.
26

Nunca tive dúvida sobre a legitimidade da luta ucraniana contra o


imperialismo russo. Cresci em Kyiv, numa família russófona vinda da Geór-
gia, deslocada pela instabilidade política, econômica e social que reinava
no país nos anos 1990. A Ucrânia foi um refúgio seguro para a minha famí-
lia e eu nunca me deparei com qualquer tendência chauvinista por parte
de ucranianos étnicos contra georgianos ou russos. Estudei em uma escola
ucraniana. Aprendi a história, a literatura e o idioma ucranianos. A opressão
russa contra esse povo sempre foi um fato histórico para mim. Nada conse-
gue atenuar a russificação forçada do povo ucraniano pelo Império Russo,
a perseguição dos intelectuais ucranianos, o Holodomor.
Porém, a defesa da resistência nacional(ista) ucraniana me dei-
xou diante de um paradoxo. Ao mesmo tempo em que o povo ucraniano
A invasão da Ucrânia
A invasão da Ucrânia: evidências e
controvérsias1
Daniel AA RÃO R E I S

Introdução

É um desafio discorrer, na perspectiva da História, sobre uma guerra


em curso, sujeita a flutuações e a novos dinamismos. Além disso, é preciso
lidar com as polarizações apaixonadas, sem falar na ação da propaganda

53
que omite, quando não mente, confirmando Ésquilo, o pensador grego:
“numa guerra, a verdade é a primeira vítima”.
A guerra suscitada pela invasão dos exércitos russos na Ucrânia,
desde 24 de fevereiro de 2022, não foge ao padrão. Os Estados envolvi-
dos reiteram-no, abusando da imensa força que adquiriram os meios de

1 O presente artigo é um desdobramento, com retificações e atualizações, de


conferências e intervenções apresentadas por mim desde fevereiro de 2022, sobre a
invasão da Ucrânia pelos exércitos russos. Cumpre registrar o apoio do CNPq (bolsa
Senior de pós-doutorado no exterior entre dezembro de 2021 e maio de 2022) e do
Instituto Hoover/Universidade de Stanford (bolsa de Visiting Scholar ainda em curso
– julho-setembro de 2022).
comunicação, potencializados pela internet. No contexto de interesses
contraditórios, cabe ao historiador identificar as melhores fontes, analisar
as controvérsias, construir explicações e interpretações sobre o conflito
na sua gênese, no seu movimento e nas eventuais condições para o res-
tabelecimento da paz. Nesta difícil empreitada não é de se esperar uma
impossível neutralidade, desde que não se perca o compromisso essencial
do nosso ofício: compreender.
É com estes compromissos que organizamos o artigo da seguinte
forma:
1) A evolução político-militar, do começo da guerra aos dias atuais
(fins de julho de 2022);
2) As consequências imediatas e o impacto da guerra nas relações
internacionais;
3) O contexto e os fundamentos históricos da guerra;
4) O ressurgimento do protagonismo e do nacionalismo cultural
russos: a opção eurasiana;
5) O deslizamento para a guerra;
6) Os desafios da paz;
7) Cronologia; e
8) Referências bibliográficas.
54

A evolução político-militar da guerra (fevereiro-


julho de 2022)

Antes de considerar a invasão e seus resultados imediatos, cumpre


destacar dois aspectos sobre os quais retornaremos no final do artigo.
O primeiro diz respeito ao fato de que a guerra foi precedida, desde
2014, por um outro tipo de conflito, de baixa intensidade, uma guerra civil,
que produziu mortes e destruição material. Decorreu da autoproclamação
das repúblicas de Luhansk e Donetsk, no oriente da Ucrânia, que anuncia-
ram secessão por ocasião da ocupação russa na península da Crimeia2. O
governo russo apoiou política e militarmente os separatistas, mas evitou o
reconhecimento diplomático das duas repúblicas.3 Como o governo ucra-
niano não aceitou a secessão, deu-se início a um conflito que se estenderia
até a invasão de fevereiro passado. Nessa guerra civil de baixa intensi-
dade, acumularam-se ressentimentos e ódios, além de se forjarem ânimos
e experiências militares não apenas entre os combatentes diretos, mas
também na população civil.
O segundo aspecto é que, ao longo desses oito anos, a Rússia con-
centrou unidades militares na fronteira oriental com a Ucrânia. Em fins de
2021, havia cerca de 100 mil homens e os equipamentos militares cor-
respondentes, um processo denunciado como uma preparação para uma
agressão. Entretanto, o governo russo negava intenções nesse sentido,
gerando nas populações ucraniana, russa e europeia uma atmosfera de
dúvidas e/ou descrença na hipótese de uma invasão.4

2 A Crimeia foi transferida em 1954 da Rússia para a jurisdição ucraniana, no


quadro da União Soviética. Quando houve a desagregação desta última, firmou-se

55
um acordo, em 2010, entre a Rússia e a Ucrânia, pelo qual as bases militares russas
poderiam permanecer até 2042 em troca de vantagens no abastecimento de petró-
leo russo à Ucrânia. A maioria russa (58% da população, segundo o censo de 2001),
porém, incentivada por Moscou, manifestou-se a favor da secessão e incorporação na
Rússia. O desfecho veio entre 23 de fevereiro e 28 de março de 2014, envolvendo
pressões populares e ações militares, resultando num plebiscito que aprovou por
larga maioria a integração da península à Federação Russa. A anexação não foi reco-
nhecida internacionalmente, gerando tensões e sanções econômicas simbólicas da
parte dos Estados Unidos e de Estados europeus.
3 O reconhecimento diplomático por parte da Rússia seria oficializado na vés-
pera da invasão de fevereiro de 2022.
4 Depois que Joe Biden assumiu a presidência da república dos Estados Uni-
dos, em janeiro de 2021, os serviços de inteligência estadunidenses começaram a
divulgar os preparativos de uma iminente invasão. Entretanto, as informações não
alteraram as tendências da opinião pública. A maioria, parecendo anestesiada, conti-
nuou a não acreditar que o conflito fosse começar.
Examinemos agora a guerra, como se processou e seus desdobra-
mentos ao longo de cinco meses.
A invasão russa assumiu, no início, três direções: Kyiv, capital do
país, a oeste; Kharkiv, segunda cidade mais importante, a leste, adossada à
fronteira russa; e uma terceira “frente” no sul/sudeste, envolvendo as duas
referidas repúblicas autoproclamadas (Luhansk e Donetsk) e mais, em dire-
ção oeste, visando as cidades de Kherson e Mariupol.
Nos primeiros dias, parecia que o país seria tomado numa guer-
ra-relâmpago. Como acontecera, em ponto menor, na Crimeia, em 2014.
Russos, europeus, estadunidenses e mesmo não poucos ucranianos ima-
ginavam o pior. Multidões começaram a fugir das zonas de combate e,
quando possível, do país.5 O governo dos Estados Unidos chegou a oferecer
transporte para o exílio ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky.
Entretanto, e mais uma vez, o improvável aconteceu.6
Inesperada, irrompeu a resistência nacional ucraniana. Surpreen-
dente. Milhares e milhares de civis acorreram aos postos de recrutamento
e se integraram em unidades irregulares de defesa, na organização de ser-
viços auxiliares de todo o tipo, incluindo-se aí atividades desempenhadas
por cidadãos comuns que, munidos de aplicativos de celular, informavam
a posição dos invasores, localizando-os no terreno e viabilizando sua des-
56

truição. Em estudo recente, Shi Zhan mostrou como os ucranianos foram


hábeis, com apoio tecnológico dos Estados Unidos, de se valer de uma
guerra de novo tipo: dispersa, digital, em rede, inteligente.7 As forças arma-

5 Em começos de junho, a Agência de Refugiados da ONU (ACNUR) registrava


cerca de 7,3 milhões de passagens pela fronteira (cerca de 2,5 milhões já retornaram),
sem contar um número equivalente de “deslocados” internos. Cf. https://www.acnur.
org/portugues/2022/06/10/acnur-atualiza-dados-sobre-pessoas-refugiadas-na-u-
crania-para-refletir-movimentos.
6 A reflexão é de Edgar Morin. Ele sustenta que o improvável frequentemente
acontece na História.
7 Trata-se do metaverso, um universo que mistura ambientes virtuais e reais,
cf. Shi Zhan (2021, 2022).
das também não se desagregaram como era esperado. E houve a presença,
subestimada pelos observadores, do presidente da Ucrânia, Zelensky, ex-co-
mediante, alçado à presidência da república como expressão do descon-
tentamento da maioria dos ucranianos com a corrupção e ineficácia do
sistema, e que se revelou à altura dos desafios. Dominando a linguagem
mediática, soube expressar a vontade da resistência nacional, assumindo a
liderança de sua gente numa hora crucial.
As expectativas otimistas do governo russo não se confirmaram.
Suas tropas pareciam, em suas manobras ofensivas, com os exércitos da
Segunda Guerra Mundial. Viraram alvos fáceis do inimigo. Os serviços de
inteligência russos (FSB8 e outras agências) falharam de uma forma carica-
tural. Os cúmplices com que contavam em várias cidades não apareceram.
As populações russófonas, majoritárias no leste (Kharkiv) e no sul do país
(Kherson e Mariupol), na grande maioria, preferiram resistir – ou fugir.
Percebendo as dificuldades em dobrar a resistência em três frentes
simultâneas, o governo russo avaliou como inviável a queda imediata do
governo ucraniano e de seu presidente, Zelensky, e redefiniu os eixos da
ofensiva inicial: desistiu de manter os ataques às duas principais cidades –
Kyiv e Kharkiv – e se concentrou na frente sul-sudeste, objetivando ampliar
os territórios das repúblicas de Luhansk e Donetsk e conquistar uma faixa

57
contínua das cercanias de Kharkiv no nordeste às proximidades de Odessa,
no sul, ocupando o litoral do Mar Negro face à península da Crimeia. À
cidade de Kherson, tomada logo no sétimo dia da invasão, seguiu-se a
trabalhosa conquista de Mariupol, em meados de maio, garantindo parte
desses objetivos. No momento atual (fins de julho), sem deixar de bombar-
dear Kharkiv e mesmo Odessa, as tropas russas parecem mais interessa-
das em garantir e ampliar os territórios já conquistados (20% do território

8 ФСБ РФ - Федеральная служба безопасности Российской Федерации/


FSB-RF (Federálnaia slújba bezopásnosti rossískoi federatsii, Serviço Federal de
Segurança da Federação Russa).
ucraniano), alcançando toda a bacia do Don (Donbas). Os combates conti-
nuam. De um lado, tropas russas, agora concentradas, dotadas de poderosa
artilharia e com domínio absoluto dos ares, parecem ganhar terreno, mas
os ucranianos, apoiados pelo governo dos Estados Unidos e por estados
europeus, continuam oferecendo resistência.
Difícil prognosticar os desdobramentos a partir de agora. Os encon-
tros diplomáticos em busca da paz, ocorridos em Belarus e na Turquia, não
produziram resultados. Recentemente, houve um acordo que permitiu um
“corredor” para escoar a produção agrícola da Ucrânia e da Rússia pelo Mar
Negro. Entretanto, o ministro de relações exteriores russo permitiu-se dizer,
em 26 de julho, que os russos mantinham o objetivo de destituir o presi-
dente ucraniano. Também não faltam comentários na mídia russa a favor
do eventual recurso a armas atômicas, além de propostas de ocupação das
periferias da ex-União Soviética. Especula-se igualmente que seria inten-
ção russa ocupar todo o litoral ucraniano do Mar Negro, incluindo-se, aí, é
claro, Odessa, objetivando-se a junção com a chamada república da Trans-
nístria, uma faixa de terra a leste da Moldávia, sede de um grande exército
russo, que, desde os anos 1990, proclamou secessão em relação à Moldávia,
solicitando incorporação à Federação Russa. Tais objetivos seriam inacei-
táveis para a Ucrânia. Em contraste, autoridades estadunidenses afirmam
58

que é necessário que o conflito conduza a um enfraquecimento estratégico


da Rússia. Certos círculos defendem que a guerra deve durar até a queda e
o julgamento de Vladímir Pútin. Entretanto apesar do otimismo de alguns
dirigentes ucranianos, parece ser difícil expulsar os russos dos territórios
já conquistados.
Um impasse. Com um potencial catastrófico inimaginável.
No plano das relações internacionais, surpreendeu a mobilização
dos Estados europeus que, sob a liderança do governo dos Estados Uni-
dos, condenaram a invasão russa e definiram uma política de sanções que
ganhou um nível de efetividade ainda não alcançado em conflitos anterio-
res. Em sucessivas “rodadas”, além de congelar bens e haveres de membros
do establishment político russo, proibiram exportações consideradas sensí-
A Ucrânia tem o direito de
existir como nação soberana?
A Ucrânia tem o direito de existir como
nação soberana?
Henrique S. CA R N E I RO

O Estado-nação foi o grande protagonista da história moderna.


Forma política e cultural pela qual se unificaram territórios com identida-
des culturais, organizando mercados internos e sistemas internacionais de
alianças e hegemonias, o estado-nação permitiu ao capitalismo se estabe-
lecer na Europa e se expandir mercantil e colonialmente pelo mundo.

89
O sistema de Estados que foi formado na Europa, a partir dos trata-
dos de Westfália, em 1648, se estabeleceu como um modelo internacional,
que, por meio da expansão do colonialismo europeu, levou também o for-
mato do estado nacional que se tornou depois o veículo da descoloniza-
ção, com as independências das nações asiáticas e africanas no segundo
pós-guerra.
Os primeiros Estados-nações foram os mais bem-sucedidos em
se tornarem grandes impérios coloniais e países pioneiros na revolução
industrial, comercial e financeira. Países Baixos, Inglaterra e, especialmente,
a França após a revolução de 1789 vão ser os países centrais no sistema de
Estados europeus, enquanto Alemanha e Itália terão uma unificação tardia
como Estados nacionais centralizados.
Essa tendência, de formação de Estados nacionais, para Lênin, era
intrínseca ao desenvolvimento histórico socioeconômico contemporâ-
neo, “porque são os que melhor satisfazem as exigências do capitalismo
moderno” (LÊNIN, 1980, p. 147). Por isso, “o desenvolvimento do capitalismo
exige que os Estados sejam os maiores e os mais centralizados possíveis.
Em condições idênticas, o proletariado consciente será sempre partidário
de um Estado maior” (LÊNIN, 1980, p. 147).
A luta contra o particularismo medieval indica, dessa forma, uma ten-
dência à compactação de Estados. Isso não significa, entretanto, a recusa ao
direito de existência dos pequenos estados. Nas Américas, os novos países
independentes, especialmente os Estados Unidos, também se formaram como
Estados-nações, mas na Europa subsistiram, além dos Estados nacionais,
alguns grandes impérios plurinacionais, como a Rússia, a Áustria e a Turquia.
Os Estados Unidos colonizaram as regiões norte-americanas oci-
dentais dos indígenas e dos mexicanos, passando a possuir suas colônias
ou semicolônias só após ganhar a guerra contra a Espanha, em 1898, e se
apossar de Porto Rico, Cuba e Filipinas. Durante o entreguerras, os Estados
Unidos se mantiveram em rivalidade com outros imperialismos, como o
alemão e o japonês, mas após a Segunda Guerra Mundial se tornou o impe-
rialismo dominante, numa disputa bipolar com a União Soviética e, depois
90

do colapso desta última, uma fase de domínio quase unipolar.


Após os fracassos das guerras no Afeganistão e no Iraque, e com
estabelecimento da China como nova potência ascendente, o imperia-
lismo hegemônico estadunidense passou a ter maior concorrência, espe-
cialmente por parte da China, mas também com o ressurgimento de uma
política neotsarista russa expansionista.

Cárceres dos povos

O colonialismo ocidental se projetou para o domínio marítimo se


apoiando nos tráficos de especiarias, açúcar, tabaco e escravos, e domi-
nando regiões africanas, asiáticas e americanas. Nesse processo, ganhou
envergadura imperial a Espanha e, depois, a França e Inglaterra. Os demais
impérios – o Austro-Húngaro, o Alemão prussiano e o Russo – quase não
se projetaram sobre colônias de além-mar, mas praticaram um endocolo-
nialismo sobre a sua periferia. Os impérios europeus, especialmente desde
o século XIX, oprimiram dezenas de pequenas nacionalidades. O Império
Russo, assim como os outros, ficaram conhecidos como os “cárceres dos
povos”.
No caso austro-húngaro, assim como no dos russos e dos turcos, as
margens do Mar Negro foram algumas de suas zonas de disputa e expan-
são. Para a Rússia, essa expansão foi tanto europeia (Finlândia, Polônia, paí-
ses bálticos) como caucásica, asiática central e extremo oriental. A China,
por exemplo, foi invadida e colonizada pela Rússia. A maior parte da guerra
terrestre russo-japonesa entre 1904 e 1905 foi travada na China ocupada
pelos dois imperialismos que buscavam dominar a Manchúria.
O nacionalismo foi, portanto, um fenômeno central na história con-
temporânea, com dois polos opostos: o nacionalismo imperial, expansio-
nista, chauvinista, supremacista, racista e belicista dos grandes impérios e
o nacionalismo de resistência, de autodeterminação, de sobrevivência dos
pequenos povos. A Rússia, como escreveu Trótski, “não se constituíra como

91
um estado nacional, mas como um Estado de nacionalidades” (1980, p. 185).
Os estudos sobre o nacionalismo constituem uma enorme biblio-
grafia. Muito se destacam as condições conflituosas, híbridas e inviáveis
de reivindicações nacionais em caso de mistura de nacionalidades num
mesmo território, do desafio de se garantir direitos de minorias e das pecu-
liares e estranhas sobreposições de identidades étnicas, religiosas, políticas
e culturais na formação das identidades nacionais. Desde os gregos antigos
com suas noções de autoctonia até as ondas de movimentos nacionalistas
do século XIX, e, depois, com a constituição das Nações Unidas com o atual
número de 193 Estados membros, chegando até os conflitos do século XXI,
como a atual guerra da Rússia contra a Ucrânia, que se debate o signifi-
cado histórico das nações e do nacionalismo. Questões como a comuni-
As contradições nos argumentos
de Pútin para invadir a Ucrânia
As contradições nos argumentos de
Pútin para invadir a Ucrânia: os mitos
da Otan, da proteção de minorias e da
desnazificação
Vicente FERRARO

Em 24 de fevereiro de 2022, Vladímir Pútin deu início a uma invasão


de larga escala na Ucrânia, o que culminou em um dos maiores conflitos
em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial. Por envolver interesses
de grandes potências nucleares e alianças militares, a guerra na Ucrânia
representa uma verdadeira ameaça à estabilidade internacional, remon-

113
tando às tensões geopolíticas da Guerra Fria. Muitos cientistas políticos e
analistas não acreditavam que o Krêmlin fosse incorrer em uma ação tão
custosa e deletéria.
No presente artigo discorro acerca das incoerências nas principais
justificativas de Vladímir Pútin para iniciar a guerra contra a Ucrânia. Exa-
mino discursos presidenciais, declarações oficiais, fatos históricos, dados
estatísticos, pesquisas de opinião pública e relatórios de organizações da
sociedade civil e das Nações Unidas. Dada a proximidade temporal com os
eventos de interesse, também recorro a conteúdo midiático de periódicos
ocidentais, russos e ucranianos.
Três argumentos principais (os casus belli) foram utilizados pelo
Krêmlin para justificar o recurso à guerra, em particular a expansão da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a proteção da população
russófona do leste e da região do Donbas e o combate ao nazismo. Por
mais que o questionamento da diplomacia russa à expansão da Otan tenha
fundamentos legítimos, há diversas evidências que o contradizem como
motivador da ação russa; como esperado, a opção pela invasão veio a forta-
lecer a aliança e aproximá-la ainda mais das fronteiras russas. Contrariando
as pretensas intenções humanitárias do Krêmlin, no sentido de proteger as
minorias étnicas russas e russófonas, quatro meses de invasão levaram a
um número de mortes civis superior a oito anos de guerra no Donbas: a
população russófona do leste foi exatamente a maior vítima até o momento
e apresentou significativa resistência às investidas de “libertação” promo-
vidas pela Rússia. No que concerne ao argumento da desnazificação da
Ucrânia, a despeito de haver grupos neonazistas no país e uma relativa
leniência das autoridades em relação à sua atuação, não há evidências de
que tais grupos contem com significativo apoio social ou influência polí-
tica, além do que, o problema da extrema direita está também presente na
própria Rússia. Ao que tudo indica, a questão do nazismo constituiu uma
estratégia de “demonização” do oponente no conflito, mobilizada inclusive
para questionar o direito de a Ucrânia existir como Estado e nação.
Nas seções finais, discorro brevemente acerca de outros casus
114

belli mobilizados pelo Krêmlin, as reais motivações de Pútin para iniciar


a intervenção e os possíveis impactos do conflito na sociedade e política
ucraniana.

A “guerra justa” contra a expansão da Otan

O argumento da ameaça da Otan foi o que mais se difundiu em


debates acadêmicos no exterior, inclusive no Brasil. Na Rússia, embora
muito mobilizado, não ocupou a liderança das menções à primeira vista.
Em uma pesquisa de opinião pública de um instituto estatal realizada
poucos dias após o início da invasão, 20% dos entrevistados responderam
que o principal objetivo da “operação militar especial” (eufemismo para
a invasão usado oficialmente no país) era impedir que a Otan instalasse
bases militares em território ucraniano.1 A resposta ficou atrás da motiva-
ção humanitária de proteger a população russófona das autoproclamadas
República Popular de Donetsk (DNR) e República Popular de Luhansk (LNR),
regiões separatistas do Donbas, com 26%.2 Entretanto, quando a preocupa-
ção com a Otan é agrupada com outras considerações de segurança, vemos
uma considerável preponderância nas menções ao longo dos meses.
O alargamento da Otan foi um dos principais fatores de atrito entre
a Rússia e o Ocidente no pós-Guerra Fria. Já nos anos 1990, a diplomacia
russa e o presidente Boris Iéltsin questionaram a política expansionista da
aliança. Duas ondas de expansão foram particularmente problemáticas: a
de 1999, que incorporou países do ex-bloco socialista no Leste Europeu,
como Hungria, Polônia e República Tcheca, e a de 2004, a qual, além de
incorporar países do antigo bloco, alcançou três ex-repúblicas soviéticas,
Estônia, Letônia e Lituânia. Embora nunca tenha havido um tratado entre
países membros da Otan e a Rússia no sentido de restringir o alargamento
ao leste, representantes das elites russas afirmaram que tais garantias
teriam sido feitas verbalmente a Mikhail Gorbatchov durante as discussões
do Tratado 2+43 em 1990 acerca da reunificação da Alemanha – alguns

115
documentos confirmariam essa promessa (ZAKHAROVA, 2021; AKHTYRKO,
2022). Por outro lado, transcrições de negociações nos diferentes países
envolvidos indicaram que as discussões giraram em torno do status militar

1 A segunda opção mais mencionada, com 25%, foi evitar um ataque / ameaça
à Rússia; proteger suas fronteiras para que a Ucrânia não ataque.
2 WCIOM. Spetsiálnaya voiénnaia operátsiia v Ukraine: otnochenie i tseli [Ope-
ração militar especial na Ucrânia: atitude e objetivos]. 28.02.2022. Disponível em:
<https://wciom.ru/analytical-reviews/analiticheskii-obzor/specialnaja-voen-
naja-operacija-v-ukraine-otnoshenie-i-celi>. Acesso em: 15.07.2022.
3 Tratado Dois-Mais-Quatro ou Tratado sobre a Regulamentação Definitiva
referente à Alemanha (Treaty on the Final Settlement with Respect to Germany).
116

Figura 1. Na sua opinião, qual é o objetivo principal da Rússia na condução da operação


militar especial na Ucrânia?
Fonte: elaborado pelo autor com base em dados do Centro Russo de Estudo da Opinião Pública
(WCIOM).4

4 WCIOM. Spetsiálnaya voiénnaia operátsiia: monitoring [Operação mili-


tar especial: monitor]. 30.05.2022. Disponível em: <https://wciom.ru/analytical-
-reviews/analiticheskii-obzor/cpecialnaja-voennaja-operacija-monitoring>.
30.06.2022. <https://wciom.ru/analytical-reviews/analiticheskii-obzor/special-
naja-voennaja-operacija-monitoring-20223006>. Acesso em: 15.07.2022.
Breve esboço sobre a arte
antimilitarista na Rússia
contemporânea
Breve esboço sobre a arte antimilitarista
na Rússia contemporânea
Cristina D U N Á E VA
Fernando Bomfim M A R I A N A

Em 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia. Começou a


guerra. A partir daquele momento, todo dia chegam notícias sobre mortes,
bombardeios, destruições: uma avalanche pesarosa e viscosa de informa-
ções mórbidas e trágicas. Somos tomados pela escuridão e pelo desespero
a partir daquele momento. Por ora, não há qualquer indício da proximidade

171
da paz, de algum acordo, nem da vitória da resistência ucraniana. Sabemos
que, na Rússia, há apoio massivo à guerra, tudo indica que a populari-
dade de Pútin não cessa de crescer, tanto no país por ele governado há
23 anos, quanto entre amplos setores supostamente de esquerda e pro-
gressistas mundo afora. Num cenário tão assustador e pessimista, lembra-
mos da metáfora dos vaga-lumes (de Pasolini e de Didi-Huberman) que
insistem em emitir lampejos de luz, mesmo em vias de desaparição. Para
Pasolini, no ensaio “O artigo de pirilampos” escrito em fevereiro de 1974,
o sumiço repentino desses seres reluzentes fora o prenúncio e o indício
de instauração de uma forma peculiar do fascismo, o neofascismo, asso-
ciado ao aplacamento da multiplicidade das formas culturais e ao ecocí-
dio. Para Didi-Huberman, no livro Sobrevivência dos vaga-lumes, de 2008,
172

Microarte antimilitarista.

Texto da imagem: “Não quero a guerra”.


Em alguma cidade da Rússia após 24 de fevereiro de 2022.
Imagem extraída da rede social, de um perfil anônimo.
certa esperança ainda nos resta, mesmo após a passagem pelo ponto de não
retorno. Segundo o filósofo, alguns vaga-lumes sobrevivem, apesar de tudo;
e ele associa as obras de artistas, realizadas neste contexto contemporâ-
neo soturno e desesperador, aos lampejos de luz e de esperança. Seguindo
a ideia de lampejar, de faíscas, de pontos de lume que podem nos orientar,
sinalizando caminhos possíveis e apontando para a não solidão em meio
às trevas da guerra recém-instaurada, neste texto gostaríamos de trazer
exemplos e reafirmar a importância da arte antimilitarista, que tomou as
ruas e os espaços virtuais dentro da barriga do monstro, na Rússia.1

O legado do pensamento binário da civilização judaico-cristã –


notadamente o dualismo bem versus mal – reverbera nas análises macro-
políticas da Guerra na Ucrânia. Por um lado, observamos as nostálgicas
forças políticas que sustentam o imperialismo russo que, sustentadas na
visão anacrônica e pífia da Guerra Fria de meados do século passado,
seriam o contraponto à hegemonia militar do Ocidente: árduos defensores
do capitalismo de Estado. Por outro lado, configuram-se os apoiadores do
capitalismo liberal e dos desajustes generalizados do capital transnacio-
nal. O dualismo bem versus mal se estende desenfreado para uma geopolí-

173
tica intricada e arrasa, como uma bomba atômica o pensamento complexo

1 Neste ensaio não pretendemos abranger a totalidade das manifestações


artísticas antimilitaristas relacionadas à guerra na Ucrânia, escolhemos somente
alguns exemplos com intuito de focar na existência da resistência na Rússia. Infe-
lizmente, não pudemos nos dedicar, no curto tempo proposto para a escrita deste
texto, à pesquisa sobre a arte antimilitarista ucraniana e internacional. Optamos por
apresentar o material que já conhecíamos, em grande parte, por acompanharmos os
movimentos antimilitaristas na Rússia desde nossa participação na campanha de
denúncia dos crimes militares nas guerras da Chechênia. Consideramos importante
descrever as ações artísticas de insubmissão ao autoritarismo policialesco do Pútin
por acreditarmos que, devido à atuação dos coletivos e dos indivíduos que resistem
na Rússia, um dia o país será livre da ditadura.
e uma premissa que já deveria estar consolidada junto às práxis emanci-
patórias anticapitalistas: não há justiça na guerra e não há emancipação
social no capitalismo (seja ele de Estado ou liberal).
Ultrapassando o pensamento binário elementar dos abutres que
buscam inúmeras justificativas para a guerra, levantamos outra falsa pre-
missa que norteia os ditos movimentos e partidos de esquerda no Bra-
sil: o governo de Pútin e a Federação Russa representariam seus ideais
(uma vez que se opõem à Otan e aos militarismos que oprimem os países
latino-americanos), e dessa maneira deveríamos apoiar a invasão da Rús-
sia na Ucrânia. Tal argumento oscila entre a crueldade e a mais profunda
ignorância. Ignorância porque apenas os que desconhecem a necropolí-
tica engendrada pelo governo de Pútin ao longo de mais de vinte anos
podem imaginar que na Rússia exista algo que espelhe a humanização da
sociedade. Pelo contrário. A Rússia representa fielmente o exemplo de um
Estado terrorista que, para mover sua economia decadente e imprimir uma
política de medo cotidiano na população, promove permanentes guerras e
operações militares no continente asiático. E para isso os inúmeros estudos
e observatórios já proporcionam informações suficientes. Aos cientes de
todo esse processo resta a consolidação da crueldade na condição humana
e o silêncio perante a dor e o sofrimento alheio. No território da Ucrânia
1 74

observamos a obrigatoriedade da luta armada de resistência aos invasores,


decretada pelo Estado, e a aproximação com a política militarista da Otan.
No território da Rússia se consolidam o controle, a vigilância e a punição
dos movimentos antimilitaristas enquanto pilares da política interna e, em
relação à política externa, uma retomada agressiva dos territórios dos paí-
ses que alcançaram autonomia após a dissolução da União Soviética.

Artista de São Petersburgo, Elena Óssipova (1945-) há anos parti-


cipa de manifestações antimilitaristas. Sua tela “Não acredite na justiça da
guerra” foi um dos símbolos mais marcantes de protesto contra as guerras
na Chechênia. Essas guerras (1994-1996 e 1999-2008) foram tão cruéis e
Elena Óssipova

A artista em uma das manifestações antimilitaristas com a tela Não acredite na justiça
da guerra.
São Petersburgo, 15 de março de 2014. Fotografia de Serguei Tchernov.

Acesso: 20.09.2022 175

genocidas quanto a atual. A pequena república do Cáucaso Setentrional,


que proclamou sua independência após o fim da União Soviética, foi inva-
dida pela Rússia, o que ocasionou a morte de milhares de civis, o êxodo de
refugiados e a instauração do governo postiço e abominável de Ramzan
Kadírov. Hoje, a história se repete na Ucrânia. Desde aquela época, Elena
Óssipova expõe suas telas nas ruas da cidade e, chamando a atenção para
os crimes cometidos pelo exército da Rússia contra os moradores das cida-
des invadidas, denuncia o absurdo da guerra, sua inutilidade. As pinturas da
Ouvir a cultura ou queimar o
futuro?
Ouvir a cultura ou queimar o futuro?
Rússia e Europa no âmbito da invasão da
Ucrânia
Martín B A Ñ A
Tradução: Lizandra Magon

A invasão da Ucrânia decidida pelo Krêmlin em 24 de fevereiro


deste ano foi interpretada de diversas maneiras. Imediatamente aparece-
ram análises apresentando a incursão russa como uma reação diante do
que se poderia considerar uma provocação da Otan, apesar de essa moti-
vação ter figurado apenas nos discursos de Vladímir Pútin. Outras explica-

203
ções foram um pouco além e buscaram motivos por trás da tentativa do
presidente russo de ressuscitar não a União Soviética, mas o velho Império
Russo. De Moscou veio também sua própria versão dos fatos: tratava-se de
combater o neonazismo e de reparar um “erro histórico” cometido por Lênin
e pelos bolcheviques, mesmo que as evidências a sustentar qualquer uma
dessas teses fossem pequenas ou praticamente nulas. Um dos argumentos
mais interessantes, no entanto, foi o que levantou a ideia de que os dirigen-
tes russos buscavam restaurar um rússki mir [mundo russo], formado pela
população falante da língua russa que ficou espalhada pelos territórios da
antiga União Soviética depois de sua dissolução, população que o Krêmlin
deveria resgatar e proteger.
Para além das possíveis explicações sobre a invasão, o que a
guerra colocou em evidência foi que a Ucrânia é apenas um elemento
secundário (que pode servir de exemplo) e que o que está realmente em
jogo nessa disputa é uma luta pela hegemonia global em um contexto
de reacomodação das lideranças. Assim, as ações da Rússia se voltaram
a contestar a ordem global multilateral, a por um fim na hegemonia oci-
dental e a propor o país como um líder do novo ordenamento civilizatório,
cujo núcleo conteria uma orientação mais tradicionalista e conserva-
dora. Nesse sentido, seria a expressão particular de um fenômeno mais
geral vinculado ao ressurgimento mundial dos neoconservadorismos
(BRUDAITSKIS, 2020).
Entre as interpretações, no entanto, um aspecto que começou a
crescer com o correr dos meses, que reforça o conflito e que está estreita-
mente vinculado a todos antecedentes acabou ficando em segundo plano.
Trata-se da ideia de que a Rússia deve se separar de uma Europa vacilante
e decadente. Essa postura não é unilateral: uma onda de proibições a artis-
tas e obras emergiu da Europa apenas pelo fato de serem russos. Como
em um diálogo de surdos, a Rússia rechaça a Europa e a Europa cancela a
Rússia sem levar em conta os enormes e estreitos vínculos que as unem,
a tal ponto de não conseguirem pensar nem se compreender mutuamente.
20 4

Dizendo de outra forma: ambas são parte de uma mesma história e de


uma mesma tradição. A indissociabilidade desse vínculo fica mais evidente
quando os discursos e as ações das elites políticas são evitados e os inter-
câmbios culturais são analisados. Se como afirma Walter Benjamin (2011,
p. 9), “todo documento de cultura é um documento de barbárie”, podemos
rastrear o modo como esses artefatos culturais interagem dialeticamente
entre Rússia e Europa como potenciais vestígios futuros da barbárie do
presente, mas, também, como símbolos de um vínculo que resiste a perma-
necer na pulverização e no desencanto.
“Adeus, Europa”

No filme A arca russa, realizado em 2002 como parte das celebra-


ções dos 300 anos da fundação da cidade de São Petersburgo, o diretor
Aleksander Sokúrov apresenta um relato descontínuo dos últimos três
séculos da história russa. O cenário escolhido é o imponente Museu Her-
mitage, naquela cidade, onde o filme foi rodado em plano-sequência. Ao
longo de noventa minutos desfilam ali diferentes personagens históricos,
como os tsares Pedro I, Catarina, a Grande, e Nicolau I, mas também tra-
balhadores do museu e até protagonistas contemporâneos da cultura e
da arte russas. A viagem é conduzida por um aristocrata francês do século
XIX – chamado de o “europeu” e inspirado na figura do Marquês de Custine
– que não economiza frases de desaprovação quanto ao que seus olhos
vão observando ao longo do percurso. Nesse filme bastante premiado, o
diretor retoma a velha discussão da intelligentsia russa: a relação entre
Rússia e Europa. Grande parte dos diálogos entre o europeu e o narra-
dor – que não é outro senão o próprio Sokúrov – giram em torno dessa
complexa e delicada questão. Ao final do filme há uma cena imponente: o
último baile imperial de 1913 realizado no mesmíssimo Palácio de Inverno,
onde a aristocracia pode exibir sua riqueza e opulência. Uma vez encerrado

205
o evento, e enquanto os nobres deixam o grande salão, há um diálogo
sugestivo. O narrador convida o europeu a seguir “adiante”.1 O aristocrata
se nega e, enquanto olha com doce melancolia ao seu redor, responde
“fico aqui mesmo”. Imediatamente começa-se a ouvir o “Noturno em Fá
menor” (1839) de Mikhail Glinka, também conhecido como “A separação”. É
aí que o narrador conclui o diálogo com uma frase lacônica e contundente:
“Proschai, Evropa” [Adeus, Europa], pressagiando o que, em sua visão, seria

1 A palavra utilizada é “vperiód”. Aqui seria possível pensar inclusive em


uma alusão à reunião dos bolcheviques de esquerda formado [no início do Sécu-
lo XX], entre outros, por Aleksander Bogdánov e Anatóli Lunatcharski, que assim se
denominavam.
o final desse vínculo. Efetivamente, a frase ganha sentido na suposição de
que poucos anos depois a Revolução Russa acabaria com o tsarismo, a aris-
tocracia e seus laços com a cultura europeia. A frase do diretor revela um
viés ideológico liberal, mas também a noção de que os bolcheviques eram
a própria encarnação da barbárie asiática. Ou seja, a desconexão da Europa
e de todo o Ocidente. A separação tinha início em 1917.2
No entanto, os bolcheviques não cortaram laços nem com a Europa
nem com o Ocidente, e nunca deixaram de pensar em si mesmos como
parte dessa identidade mais ampla. Muito ao contrário. Não só porque seu
projeto era internacionalista e aspirava ao triunfo da revolução primeiro
na Europa e depois no resto do mundo, mas porque sua cúpula imagi-
nou a construção da nova sociedade comunista a partir de sua conexão
econômica com esse continente e o resto do mundo. O historiador Oscar
Sanchez-Sibony (2014) demonstrou como Stálin e os demais membros do
Comitê Central do Partido Comunista insistiram, durante a década de 1920,
na necessidade de vender grãos à Europa para assim financiar o desenvol-
vimento acelerado da indústria. Mais ainda, essa cúpula preferiu deixar seu
povo passar fome a negligenciar a dívida externa a fim de enviar mensa-
gens tranquilizadoras aos mercados financeiros. Sequer nos piores anos da
Guerra Fria as conexões foram interrompidas: no fim da década de 1940,
206

um grupo de jovens chamados stiliágui reforçou o contato com o mundo


europeu e norte-americano e tentou emular algumas de suas vestimentas,
músicas e costumes como forma de desafiar, negociar e redefinir os limites
aceitos pelo sistema soviético (cf. KOZLOV, 2009).
Já na década de 1970, os vínculos se tornaram mais profundos,
ainda que a União Soviética tenha se reacomodado no mesmo lugar de
semiperiferia que a Rússia ocupara antes de 1917. Isso não impediu que,

2 Na década de 1990, era muito comum que nos meios de comunicação e


no discurso oficial se falasse dos 70 anos de comunismo como um “parêntesis da
história”.
Ucranianos em fuga da guerra
Ucranianos em fuga da guerra:
adaptação no Brasil e aquisição
de português
Anna SMIRNOVA HENRIQUES
Volodymyr TESKO

O Brasil recebeu a primeira onda de imigração ucraniana ainda no


final do século XIX. Duas outras levas ocorreram após a Primeira e Segunda
Guerras Mundiais (BORUSZENKO, 1969, 1995). Esses imigrantes se insta-
laram principalmente nos estados do Paraná e Santa Catarina. Em 1969,
Boruszenko avaliou a quantidade de imigrantes ucranianos no Brasil em

227
cerca de 150 mil. Atualmente, considera-se que no Brasil vivem mais de
500 mil descendentes de imigrantes ucranianos, 80% deles no estado do
Paraná: entre as cidades com o maior número de descendentes, destacam-
-se Curitiba com 55 mil descendentes (cerca de 3% da população local) e
Prudentópolis com mais de 38 mil descendentes (cerca de 75% da popula-
ção local) (CZAIKOWSKI, 2022).
O colapso da União Soviética em 1991 induziu grandes ondas de
emigração no espaço pós-soviético, principalmente por razões econômi-
cas (VOROBYEVA; ALESHKOVSKI; GREBENYUK, 2018). Seguindo o relatório
da Organização Internacional para as Migrações (IOM, p. 26) de 2020, em
2019, a Ucrânia já ocupava o oitavo lugar entre os países com o maior
número de cidadãos residentes no exterior, mais de 5 milhões de pessoas.
A Rússia, o núcleo da ex-União Soviética, ocupava o quarto lugar com mais
de 10 milhões. Segundo o relatório do Ministério da Justiça e Segurança
Pública (BRASIL. MJSP, 2022a), de janeiro de 2010 a dezembro de 2021,
3370 cidadãos da Ucrânia solicitaram autorização de residência no Bra-
sil, no entanto, 67% deles eram marinheiros e buscavam o documento
visando a realização de trabalhos temporários. Segundo o mesmo rela-
tório, no mesmo período, cidadãos ucranianos fizeram 74 solicitações de
reconhecimento da condição de refugiados no Brasil. O painel interativo
de decisões sobre refúgio no Brasil (BRASIL. MJSP, 2022b), considerando
decisões de mérito no mesmo período, menciona 15 solicitações deferidas
e 5 indeferidas, com o tempo médio de análise de 4,3 anos. Nos últimos
20 anos, somente no período de 2011 a 2016 foram concedidas mais de
300 autorizações de residência por ano - nos demais, o número de autori-
zações foi inferior (OBSERVATÓRIO DE MIGRAÇÕES EM SÃO PAULO, 2022).
Em 2019, o último ano antes da pandemia de Covid-19, foram concedidas
141 autorizações de residência.
A agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, que começou em 24
de fevereiro de 2022, causou uma das maiores crises de deslocamento for-
çado conhecidas no mundo até hoje: no período até 10 de junho de 2022,
a ACNUR relata cerca de 7,3 milhões de passagens na fronteira a partir da
228

Ucrânia, contra 2,3 milhões de passagens de retorno para o país. A maioria


dos deslocados se encontra na Europa, no entanto, alguns ucranianos par-
tiram para a América Latina.
Uma semana depois do início da guerra, os ministros de Estado da
Justiça e Segurança Pública e das Relações Exteriores do Brasil autorizaram
a concessão de visto temporário e de autorização de residência para fins
de acolhida humanitária aos nacionais ucranianos e aos apátridas afetados
pelo conflito (BRASIL, 2022a). Nessa situação, os ucranianos podem entrar
no Brasil com um visto humanitário válido até 180 dias ou entrar sem
visto, de posse de passaporte ucraniano, e solicitar uma autorização de
residência para fins de acolhida humanitária no país diretamente. O prazo
autorizado de residência é de dois anos, com o direito de solicitar no fim
desse prazo uma autorização de residência com validade indeterminada. A
portaria esclarece que a obtenção da autorização de residência para fins
de acolhida humanitária implica a desistência de solicitação de reconhe-
cimento da condição de refugiado, ou seja: formalmente, os ucranianos
que solicitaram autorização de residência baseada em acolhida humanitá-
ria não são considerados refugiados, apesar de serem assim chamados em
vários jornais e na linguagem popular.
O objetivo do presente trabalho é descrever a situação dos migran-
tes ucranianos que chegaram ao Brasil após o início da invasão russa em
fevereiro de 2022: quantos são e quais desafios eles enfrentam começando
uma vida no novo país.

Estimativas do número de migrantes ucranianos


que chegaram ao Brasil após a invasão russa em
fevereiro de 2022

Os dados sobre o número de ucranianos que chegaram ao Brasil


em fuga da guerra são bastante incompletos. Uma vez que os ucranianos
que entram no país sem visto têm 90 dias para solicitar a autorização de

229
residência, muitos não fazem isso logo nas primeiras semanas após a che-
gada e não são contabilizados pela Polícia Federal como residentes recém-
-chegados. Por outro lado, entre aqueles que solicitaram autorização de
residência para fins de acolhida humanitária, alguns já se encontravam no
país antes da guerra. Alguns jornais, no fim de março, anunciaram o número
de ucranianos que atravessaram a fronteira do Brasil após a invasão russa,
como por exemplo: 894 em 19 de março (G1, 2022) e mais de 1100 em 22
de março (FIGUEIREDO, OSORIO, TORTELLA, 2022), com menção ao número
baixíssimo de solicitantes de visto humanitário (28 e 13, respectivamente).
No entanto, ao verificarmos o saldo entre as entradas e saídas de cidadãos
ucranianos do território brasileiro em pontos de fronteira apresentado na
Tabela 1, observamos que o número de saídas é comparável ao número de
entradas (BRASIL. MJSP, 2022c, d). O saldo de março é de 152, enquanto o de
abril é de 297, e o de maio é de -42 cidadãos ucranianos. Os dados de março
a maio de 2021 possuem um perfil parecido: às vezes o saldo é positivo, às
vezes é negativo (Tabela 1). Provavelmente, essa proximidade nos números
de entradas e saídas que passam de um mil por mês é influenciada pela
presença de marinheiros, que são a categoria majoritária a receber autori-
zações de residência (BRASIL. MJSP, 2022a; OBSERVATÓRIO DE MIGRAÇÕES
EM SÃO PAULO, 2022).

Entradas e saídas dos cidadãos


ucranianos do território brasileiro em Solicitações Solicitações
pontos de fronteira de residência de refúgio
Entradas Saídas Saldo
Março / 2021 1900 1755 145 12 1
Abril / 2021 1 312 1 555 -243 9 0
Maio / 2021 1838 1573 265 6 0
Março / 2022 1 684 1 532 152 44 2
Abril / 2022 1 692 1 395 297 114 5
Maio / 2022 1582 1624 -42 118 6
Tabela 1. Dados referentes às entradas no Brasil e solicitações de residência e refúgio por
cidadãos ucranianos entre março e maio de 2021 e 2022, segundo o Portal de Imigração
230

Fonte: Portal de Imigração (BRASIL. MJSP, 2022c, d)

Segundo a reportagem de Pauluze de 3 de junho de 2022, que cita


dados do Ministério da Justiça, 194 ucranianos foram registrados pela Polí-
cia Federal após o início da invasão russa: 137 pediram autorização de
residência para fins de acolhida humanitária, 42 entraram com vistos huma-
nitários e 15 solicitaram refúgio. Isso parece compatível com os dados da
Tabela 1, considerando que nem todos os ucranianos registrados na Polícia
Federal pediram acolhida humanitária.
Outra fonte de dados sobre o número de ucranianos que chegaram
ao Brasil são as informações sobre os deslocados ucranianos que foram
trazidos ao país por algumas organizações de maneira centralizada. Em
primeiro lugar no número de pessoas acolhidas, destaca-se a rede de
Espaços vazios
Espaços vazios: império versus vida
Helen P E T ROV S KY
Tradução: Raquel Dommarco Pedrão

Estou tentando encontrar a palavra certa – ou palavras, talvez –


antes de embarcar neste texto, e acho extremamente difícil abordar a ques-
tão do conflito neste momento, com a guerra ainda assolando a Ucrânia e
meu país sendo o agressor. Para muitas pessoas o dia 24 de fevereiro se
tornou um ponto de inflexão; entre outras coisas dolorosamente evidentes,

285
a data inaugurou uma cronologia totalmente nova: o que está sendo con-
tado atualmente são os dias de guerra, então hoje é o dia 47. Durante esses
47 dias de guerra, o mundo testemunhou dor e atrocidades, a destruição
de cidades inteiras e o sofrimento de civis inocentes. Ao mesmo tempo,
também foi testemunha da admirável resiliência dos defensores ucrania-
nos, das mais diversas nacionalidades. São todos cidadãos, lutando brava-
mente pela independência do país e pela própria liberdade. No entanto, as
palavras que estou procurando devem vir do outro lado da trincheira, pois
existe, de fato, um abismo separando Rússia e Ucrânia. Todos sabemos que
vai levar décadas, se não séculos, para corrigir os registros históricos. Não
vou falar de culpa nem (pelo menos não imediatamente) de responsabi-
lidade coletiva. A palavra que me vem à mente parece fraca e, em alguns
aspectos, até mesmo inapropriada se considerarmos o escopo da tragédia
em curso, porém eu não consigo deixar de pensar em piedade, ou no seu
sinônimo, compaixão. Isso requer alguma explicação, e farei o meu melhor
para explicar por que piedade é mais do que um mero sentimento que
consiste em um clássico retorno a si mesmo.
“Não precisamos da sua piedade”. Esse tipo de resposta permeada
por um tom de raiva é a mais frequente quando alguém do lado russo se
aventura a expressar abertamente seus sentimentos de compaixão, como
aconteceu mais de uma vez nas redes sociais ao longo dos últimos 47
dias. Psicologicamente, essa rejeição é bastante compreensível – a com-
paixão parece quase uma zombaria diante da violência perpetrada por
seus próprios compatriotas – e a reação imediata seria um arrebatador
sentimento de culpa. De fato, se você é incapaz de impedir que as tropas
invasoras do seu próprio país causem estragos em uma terra pacífica, que
outra coisa seria possível sentir? Nada além de culpa e uma enorme sen-
sação de desamparo. Não é minha tarefa aqui listar os vários sentimentos
que esta guerra suscitou. Eles são os mais diversos e, obviamente, a raiva
está no topo da lista. No entanto, gostaria de refletir sobre a piedade a
partir de uma perspectiva não psicológica que ainda seja possível ape-
sar da guerra. Em primeiro lugar, pode ser útil olhar para a etimologia da
286

palavra sympathy (compaixão, em inglês), de origem grega e composta por


duas partes, sendo elas: sun- ou syn-, que significa co- ou partilha, e pathos,
cujo significado é emoção. “Acometidos por sentimentos semelhantes”, para
citar o verbete do dicionário (The Free Dictionary 2003–2022). O mesmo
dicionário, no entanto, permite acrescentar algo mais a esse significado.
Acontece que coisas inconscientes também podem compadecer-se ou sim-
patizar umas com as outras; tal é a relação que existe entre corpos na física
ou entre órgãos na fisiologia, quando uma mudança em um deles produz
alterações nos outros, algo que talvez se relacione à ressonância.
Neste ponto, em total alinhamento com Jean-Luc Nancy e sua
influente filosofia sobre l’être-en-commun, ou o ser-em-comum (NANCY,
1991, 2004), gostaria de enfatizar o antigo prefixo syn-, que significa exa-
tamente união: ação coletiva, participação conjunta. Essa “copresença” é
fundamental para compreendermos tudo o que está acontecendo neste
momento, incluindo nossas fortes reações psicológicas, que podem ser tra-
duzidas em alguma coisa diferente, algo muito mais próximo da ação. (Por
essa razão, os comentaristas políticos afirmam que o aumento da raiva
em relação aos horrores da guerra por parte dos cidadãos europeus tem
se convertido em postura mais politicamente engajada e ativa de seus
respectivos governos diante do conflito na Ucrânia.) Em outras palavras,
o prefixo syn- é a origem, ou melhor, o traço determinante da sociabili-
dade. Segundo Nancy, ele carrega em si o pressuposto básico de que seres
humanos são seres políticos, ou seja, indivíduos que se integram em uma
rede de relações. Portanto, esse prefixo, que aparentemente é apenas um
auxiliar, aponta para um fato fundamental: não há existência sem comu-
nicação, sem troca e compartilhamento constantes, se até o próprio syn- é
parte integrante da existência. Como Nancy teria dito, não há existência
sem syn-. Isso significa que somos definidos por estarmos juntos e que
mesmo em um estado de união em meio à guerra, que assume o disfarce
da piedade – seja por meio da ação coletiva ou ao menos um sentimento
de compaixão –, essa união ainda existe para desafiar a destruição e, quem
sabe, até a morte.

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No entanto, isso é apenas uma parte da história. A outra tem a ver
com o que levou a essa guerra e porque até mesmo o prefixo syn- foi
comprometido e frustrado. O nome dessa outra realidade, que usurpa a
primeira, é colonialismo. De fato, esta é uma guerra colonial, embora isso
possa soar totalmente absurdo e inconcebível no início do século XXI. No
entanto, o objetivo da Rússia é transformar a Ucrânia em uma província
ou uma periferia da metrópole, o que quer que isso possa significar. O
que me leva a pensar nesses termos são os clichês ideológicos que atu-
almente estão sendo inculcados na mentalidade dos militares russos que
conduzem sua “operação especial”. Basta seguir as notícias das chamadas
cidades liberadas1 para descobrir que os soldados russos (se apresentando
ironicamente como “libertadores”) estão cumprindo uma tarefa tripla: pri-
meiro, esmagando a resistência das autoridades locais; depois, a dos Ban-
derites2 (ou, simplesmente, “nazis”) e, por fim, instalando em seu lugar uma
alternativa, ou seja, governantes pró-Rússia. Resumindo, o expansionismo
se disfarça de limpeza. O que estaria por trás da ideia de derrotar a “junta”
de Kyiv, um parlamento eleito democraticamente, como sabemos, se não a
necessidade de privar a Ucrânia de sua soberania ao transformá-la em uma
província do império? Talvez, a melhor expressão dessa ideologia torta seja
uma publicação recente de Vladislav Surkov, que um dia já foi um potente
ideólogo do Krêmlin. Valendo-se da definição de Lênin sobre o tratado de
Brest-Litovsk, de 1918, que de acordo com ele teria sido “obsceno” (uma
amarga referência às vastas perdas de território, população e recursos
como preço pelo fim da guerra), Surkov lamenta o atual estado das coisas:
a Rússia acabou por ser reduzida novamente à condição de Brest-Litovsk
devido a uma “perestróika ridícula, a uma glásnost duvidosa”. Mas o que
nos espera no futuro? “Bastante geopolítica – prática e aplicada. E talvez,
até mesmo contratual.” A Rússia parece estar “aborrecida” e “superlotada”;
é impossível para o país permanecer “dentro das fronteiras de uma paz
obscena” (SURKOV, 2022).3
288

Não pretendo analisar essas deliberações rasas. Elas falam por si


mesmas. Eu só adicionaria duas observações nesse sentido. É importante
apontar que Surkov foi o representante especial de Vladímir Pútin na Ucrâ-
nia durante vários anos, sendo demitido de sua posição como consultor
presidencial em fevereiro de 2020. Segundo ele, “não existe Ucrânia” e a

1 Refiro-me, em particular, às evidências fornecidas pelos moradores da Ucrâ-


nia que se comunicaram com as tropas russas.
2 Assim são chamados os grupos de extrema direita na Ucrânia. (N. da T)
3 Em seu artigo, Surkov presume erroneamente (e de maneira hipócrita) que
a palavra “obsceno” surge de alguma “imprensa oposicionista” que “ainda existia” na
época.
“coerção a relações fraternas por meio da força” é o único “método” admis-
sível (Wikipedia, 2022). Voltando à declaração pré-guerra de Surkov citada
no parágrafo anterior, gostaria de mencionar um comentário importante
feito de passagem pelo historiador Iuri Pivovárov, que realizou um relato
brilhante sobre as relações entre Rússia e Ucrânia ao longo dos tempos
em seu artigo no jornal Nóvaia Gazeta. Para ele, Surkov é um “revanchista
histórico e, ao mesmo tempo, um paisagista histórico”, o que significa que a
política não é nada menos que uma projeção do próprio panorama histórico.
Ao contrário do processo histórico, os panoramas são entidades fixas e ten-
dem a representar pelo menos alguma norma. No entanto, mais importante
ainda é a alegação de que a Rússia estaria se sentindo “desconfortável”
e “superlotada” dentro de suas fronteiras atuais, o que seria uma “derrota
sem guerra” provocada pela perestróika, pois esta fala tem uma implicação
muito simples: a de que à Rússia “faltaria espaço vital (Lebensraum)”(PIVO-
VÁROV, 2022). Não é necessário apontar as conotações ameaçadoras desse
termo: elas estão na superfície. Em uma perversa reviravolta do destino,
isso nos traz de volta à retórica repugnante – e agora também a atos terrí-
veis – de “erradicar o nazismo” na Ucrânia, que se tornou o projeto favorito
de uma propaganda russa cada vez mais agressiva desde 2014. Meu ponto
de vista tem como base o trabalho de Timothy Snyder, um aclamado espe-

289
cialista em história da Europa Central e Oriental. Ele vê a Ucrânia como um
modelo de relações coloniais no coração da Europa, que, eu acrescentaria,
talvez tenha sido negligenciado ou um pouco subestimado por outros estu-
diosos da área. Aqui está seu raciocínio, extraído de uma entrevista, que eu
gostaria de reproduzir na íntegra:

Você vê como este lugar [Ucrânia] é realmente cen-


tral para as principais tendências da história mun-
dial. Se há uma grande questão da história mundial
– quem é o colonizado e quem é o colonizador – e
pensamos nela como uma questão da Europa contra
o resto do mundo, ela também pode ser uma ques-
tão intraeuropeia. O que Pútin está fazendo agora
com a Ucrânia é reintroduzir uma linguagem colo-
nial, ao falar de como essas pessoas não têm Estado,
não têm língua, não têm nação própria, então eu vou
decidir quem são e o que será delas. E esse tema
da colonização é realmente central para a Ucrânia.
Então, a Ucrânia é essa espécie de ponte entre a his-
tória europeia e o resto do mundo. Ela nos permite
ver esta questão da colonização como uma questão
universal. (SNYDER, 2022).4

É justamente essa linha de raciocínio que leva Snyder a concluir


que os ucranianos deveriam vencer no clássico “sentido clausewitziano de
determinar a política do outro lado”. Caso contrário, a guerra continuará
indefinidamente. Então, aqui estamos nós testemunhando uma violenta
convulsão de (neo)colonialismo, na qual vale tudo, literalmente. De fato, o
próprio projeto soviético fracassado é apresentado como o colapso de um
império sem sentimentos fraternos ou ideologia de esquerda.
Tomemos um momento para examinar a relação entre o prefixo
syn-, a pressuposição de união, e império. Vou começar com uma lembrança
290

pessoal. Em 2006, Vladislav Inozémtsev, então Diretor do Centro de Pes-


quisa em Sociedades Pós-Industriais, convidou Michael Hardt e Antonio
Negri para visitar Moscou e falar sobre seus livros que já haviam sido tra-
duzidos para o russo por membros de sua instituição. Entre outras coi-

4 A mesma perspectiva é compartilhada pelo analista político Vladímir Pas-


tukhov, membro da University College London. Para ele, a colonização russa é marca-
da, entre outros elementos, por dois traços específicos: um sentimento de afinidade
com o colonizado (os colonizados são nossos “irmãos”) e motivação política (se não
colonizar, então outros o farão). Ele vê a guerra atual como o contínuo desmorona-
mento do império soviético, um processo que começou com o “Russian Maidan” em
1989-1990 (PASTUKHOV, 2022).
“Não à guerra” por Liev Tolstói
“Não à guerra” por Liev Tolstói
Elena VÁ S S I N A

Guerra de novo. De novo, sofrimentos de que nin-


guém precisa, causados à toa, de novo, mentiras, de
novo, estupefação geral, brutalização das pessoas.
(TOLSTÓI, 1936, v. 36, p. 101).

309
Ao longo de toda a sua vida, desde os “Contos de Sebastopol”, escri-
tos em 1855 durante a Guerra da Crimeia, até o “Discurso para o Congresso
da Paz em Estocolmo em 1909”, redigido um pouco antes de sua morte,
Liev Tolstói, autor do monumental romance Guerra e paz, foi um dos críticos
mais contundentes dos horrores da guerra. Analisando diferentes verten-
tes do tema da guerra na obra de Tolstói e a lei de não violência vista por
Tolstói como a única possibilidade eficiente para sair do círculo vicioso
bélico, surpreendemo-nos com atualidade impressionante das suas ideias
antimilitaristas nos dias de hoje. Para a nossa análise, escolhemos as obras
e os escritos de Tolstói relacionados ao tema da guerra e, especialmente,
à lei de não violência, ou seja, à importante batalha do escritor em prol de
“não à guerra!” (“niet voinié!”, em russo).
Em 1904, quando a Rússia começou a guerra contra o Japão, Tolstói
escreve em carta a Liev, um de seus filhos, o seguinte:

A guerra é antinatural e insana. Para mim, sua lou-


cura e criminalidade, especialmente nos últimos
tempos em que tenho escrito e, portanto, pensado
muito sobre a guerra, estão tão claras que, além
dessa loucura e criminalidade, não consigo ver nada
nela, e me parece que toda pessoa moral deve tentar
se afastar da guerra, não participar dela para não
se manchar com sua sujeira. (TOLSTÓI, 1936, v. 74,
p. 74-75).

E, infelizmente, o escritor sabia bem demais, pela própria experiên-


cia o que era guerra e quantas vítimas, destruições e sacrifícios absurdos
ela podia causar.
A obra de Tolstói reflete as quatro guerras que ele vivera ao longo
de sua vida, que foi bastante longa, especialmente para a época: nascido
em 1828, quando as memórias da campanha contra a invasão francesa diri-
gida por Napoleão ainda estavam vivas, o autor faleceu já no século XX, em
310

1910, quatro anos antes do início da Primeira Guerra Mundial. O primeiro


conflito militar de que Tolstói participou, como voluntário, foi a guerra do
Cáucaso. Quando lemos os materiais, as cartas de Tolstói sobre essa guerra,
temos a sensação de estarmos em um círculo vicioso: passam-se décadas
e séculos, mas parece que a Rússia não conseguiria sobreviver se não pro-
vocasse e não se envolvesse em conflitos militares no Cáucaso.... Na época
de Tolstói, a guerra do Cáucaso durou quase meio século, de 1817 até 1864,
passando por três tsares russos: Alexandre I, Nicolau I e Alexandre II. No dia
30 de maio de 1851, Tolstói junto com seu irmão mais velho, Nikolai, que já
era oficial, partiu para os campos de batalha no Cáucaso, onde serviu como
voluntário e, depois, foi para a guerra da Crimeia. Falamos da metade do
século XIX e agora, de novo, a história se repete: o novo milênio começou
com a guerra da Chechênia e nos dias de hoje presenciamos mortes e des-
truições causadas pela invasão russa na Ucrânia...
Tolstói viu a guerra de perto nessa primeira campanha do Cáucaso;
mas apesar de ter participado das batalhas (no início como junker e, depois,
já como oficial), o escritor sempre falava que sua consciência estava tran-
quila porque não chegou a matar nenhuma pessoa. É durante a guerra, e
inspirado pelo seu cenário, que Tolstói escreve uma de suas primeiras obras,
“A incursão (conto de um voluntário)”, de 1853, e dedicando a Ivan Turguêniev,
publica o conto na revista Sovreménnik [O contemporâneo] em 1855, mas
sem ter coragem de assiná-lo, coloca apenas as seus iniciais L.N.T.
Boris Eikhenbaum, destacado teórico do formalismo russo e autor
do livro O jovem Tolstói (1922) prestou atenção à decisão de Tolstói de
fazer de seu narrador um voluntário, isto é, um observador de fora que,
vendo de perto tudo o que acontece ao seu redor, analisa racionalmente
suas impressões e... “não entende nada”.
Tolstói cria aqui o seu famoso estranhamento/ostraniénie, segundo a
definição introduzida por outro teórico do formalismo, Viktor Chklóvski, que
descreve este procedimento artístico de apresentar algo banal e conhecido
como estranho (o termo provem da palavra russa stráni), incomum para
nossos olhos o que, por sua vez, permite ver um objeto familiar de nova

311
maneira.
O estranhamento tolstoiano ajuda a descrever a guerra como um
“fenômeno incompreensível”, cheio de contradições e paradoxos e, logo,
privado de qualquer auréola romântica. Segundo Eikhenbaum, este é o prin-
cipal procedimento usado por Tolstói com objetivo de destruir o cânone
romântico da batalha, ainda muito popular na época da entrada do escritor
na literatura russa (EIKHENBAUM, 1987, p. 92).
A descrição da guerra feita pelo jovem Tolstói em “A incursão” se
transforma em sua condenação: as terríveis leis do mundo que obrigam
que as pessoas a se matarem, levam à destruição da harmonia interior
tanto do homem quanto da natureza. Essa é a ideia principal que soa em
“A incursão” e que vai percorrer toda a criação do escritor. É também nessa
obra, escrita em meio a exuberante e majestosa beleza das montanhas do
Cáucaso1, que Tolstói formula uma pergunta crucial, que vai ser um fio con-
dutor para toda a sua reflexão filosófica do mundo:

Como podem as pessoas viver como se não tivessem


espaço neste mundo bonito, sob este céu estrelado
e imensurável? Como é possível, em meio a essa
natureza fascinante, persistir na alma do homem
o sentimento de rancor, de vingança, ou a paixão
de aniquilar seus semelhantes? Parece que tudo de
ruim no coração do homem deveria desaparecer em
contato com a natureza – essa expressão imediata
da beleza e do bem. (TOLSTÓI, 2015, v. 1, p. 60).

Para a obra de Tolstói, é sempre característico esse paralelismo,


essa comparação contrastante e conflituosa entre a natureza maravilhosa,
harmônica, a harmonia cósmica, e a violência das guerras provocada pelos
estados e apoiada no ser humano imperfeito, cruel que sempre está lutando
contra o seu semelhante para conquistar mais espaço sob esse céu.
O Cáucaso se torna também o cenário de Os cossacos, novela que
31 2

Tolstói começou a escrever em 1852, ou seja, no início da sua carreira lite-


rária, junto com Infância (a primeira parte de sua trilogia autobiográfica) e
“A incursão”, mas que foi terminada e publicada apenas em 1863 na revista
Rússki Viéstnik [Mensageiro russo]. Já no processo de criação dessa obra,
começa a se formar o método de trabalho muito específico de Tolstói: entre
todos os grandes escritores do século XIX, ele foi o que mais trabalhou

1 O Cáucaso é um lugar muito importante para a formação da literatura russa


do século XIX, desde O prisioneiro do Cáucaso (1821), de Aleksander Púchkin, passan-
do por O herói do nosso tempo (1840), de Mikhail Lérmontov, e culminando na criação
de Tolstói.
em seus manuscritos, reescrevendo e editando cada página, por isso, como
regra, o processo de acabamento das obras levava anos.
Nessa novela está presente também o tema da guerra do Império
Russo contra os povos caucasianos e contra os chechenos, mas esse não
é o motivo principal; aqui, no Cáucaso, nessas obras caucasianas, está se
formando uma ideia muito importante, que fora tomada de empréstimo
do filósofo, escritor e músico franco-suíço Jean Jacques Rousseau e desen-
volvida por Tolstói. Aos dezesseis anos, Tolstói dizia que em vez de uma
cruz, – os cristãos ortodoxos russos sempre usavam uma cruz no pescoço
– ele carregava uma medalha com o retrato de Rousseau, tamanha era a
importância de sua filosofia. Então, em Os cossacos e na obra seguinte (O
prisioneiro do Cáucaso, de 1872), forma-se a imagem do homem natural,
não corrompido pela civilização e pelo sistema estatal (o Estado, com seu
aparelho de opressão governamental, torna-se um dos maiores inimigos
ideológicos de Tolstói). Tolstói acredita que o ser humano seria tão perfeito
quanto a natureza desde que não fosse corrompido por seu engajamento
nas instituições sociais e, em razão disso, envolvido nos jogos políticos,
sempre sujos, dos governos e dos poderes.
Além destas três obras, integra o chamado “ciclo do Cáucaso” uma
das últimas novelas de Tolstói, Khadji-Murát. Apesar de curta, com suas cem

31 3
páginas, o escritor trabalhou nela durante oito anos. O livro foi terminado
em 1904, mas Tolstói não permitiu sua publicação em vida, de modo que
Khadji-Murát saiu apenas em 1912, dois anos após a morte de seu autor.
Para muitos críticos esta novela concorre apenas com A morte de Ivan Ilí-
tch em termos de acabamento formal. Harold Bloom, por exemplo, afirma:
“Minha referência pessoal para o sublime da ficção em prosa, para mim é o
melhor livro do mundo, ou pelo menos o melhor que já li.” A novela apre-
senta um relato verídico sobre a resistência armada dos povos islâmicos à
invasão russa e do líder montanhês Khadji-Murát (1818-1852). Em busca
de vingança contra Chamil, chefe checheno que aprisionara a sua família,
Khadji-Murát passa para o lado inimigo, isto é, o lado russo, e termina sua
vida da maneira trágica: Khadji-Murát é assassinado e degolado. No final
da vida, a arte de Tolstói chega a uma perfeição insuperável, ele usa toda
a força de seu talento para descrever os horrores, mortes e violência cau-
sados pela guerra, que gera uma “crueldade absurda” do exército russo e
“o sentimento natural” que era “mais forte que o ódio” dos chechenos em
relação aos russos:

O aúl destruído na incursão era aquele mesmo em


que Khadji-Murát passara a noite, antes de se ban-
dear para aos russos.
Sado, em casa de quem Khadji-Murát se detivera, fora
com a família para as montanhas, quando os russos
se aproximaram do aúl. Voltando, encontrou a sua
sáklia destruída, o telhado derrubado, a porta e os
postes queimados e todo o interior da casa coberto
de imundície. O seu filho, aquele rapazinho bonito,
de olhos coruscantes, que tinha olhado com des-
lumbramento para Khadji-Murát, fora trazido morto
para a mesquita, sobre um cavalo coberto com uma
japona. Tinha as costas atravessadas por uma baio-
neta. A mulher de ar venerável, que servira a refei-
314

ção a Khadji-Murát durante a sua visita, estava agora


com a camisa rasgada no peito, deixando à mostra
os seios decrépitos, pendentes, e, os cabelos soltos,
mantinha-se curvada sobre o filho, dilacerando o
rosto com as unhas e vociferando sem cessar. Sado
apanhara a pá e a picareta e fora com os parentes
cavar o túmulo do filho. O velho avô estava sentado
contra a parede da sáklia destruída e, afinando uma
vareta, olhava estupidamente diante de si. Acabava
de voltar do seu colmeal. Foram incendiadas as duas
medas de feno que lá havia, quebradas e queimadas
as cerejeiras e os abricoteiros plantados pelo velho
“Guerra e Mundo”
“Guerra e Mundo”:
o poeta pela paz
Letícia M E I

Será que vocês conhecem


a noite ucraniana?
Não,
vocês não conhecem a noite ucraniana.

Poema “Dívida com a Ucrânia” (1926), de


Maiakóvski1

Conhecer (e lembrar) para não repetir

É inacreditável que em 2022 ainda seja preciso reforçar o quão


condenável é a guerra, como se a paz não fosse um ideal óbvio. A guerra é
a concretização mais extrema da violência, mas esta tem inúmeras outras

335
faces. Ela se desenrola nos campos de batalha sob o estrondo dos mís-
seis e metralhadoras, mas também sob a forma da necropolítica promovida
por vários governos, no liberalismo desenfreado que aprofunda o fosso
das discrepâncias econômico-sociais, na devastação ambiental acelerada,
no cinismo aliado à ganância imperialista e à onda antidemocrática que
assola o mundo. Em meio a este cenário desolador, os artistas são ato-

1 Esse poema de Maiakóvski começa e termina com uma referência à novela “Noite
de maio, ou a afogada”, integrante da coletânea “Noites numa fazenda perto de Dikanka”
(1830-1832), de Nikolai Gógol, obra que retrata a Ucrânia, seu povo e seus costumes.
res fundamentais, pois dão voz ao coletivo, elaboram e expressam a nossa
angústia, são a garganta do mundo.
Também é inacreditável que ainda seja preciso reforçar o quão
essencial é a arte para a sociedade. Somente ela é capaz de fazer con-
traponto aos desmandos, de garantir o espaço da liberdade e da loucura
que se permite apontar o dedo para o rei nu. Tal tarefa está longe de ser
fácil. Historicamente sabemos que quem tem essa coragem e ousadia sofre
retaliações, perseguições e censuras. Não é diferente no que tange à guerra
entre Rússia e Ucrânia. Alguns se colocam abertamente contra o conflito,
outros calam, outros ainda demonstram apoio ao Krêmlin. Ondas de boi-
cotes que vão da vodca à arte russa nos mostram o que Platão, por outro
prisma, já apontava na República: poetas não são bem-vindos. Perigosos
hoje não porque nos iludem com cópias da realidade, como acusava o filó-
sofo grego, mas porque elevam a voz acima do burburinho do mundo e
apontam para aquilo que muitos não querem ver (ou não querem que os
outros vejam), num movimento prometeico de iluminação das sombras que,
de outro modo, permaneceriam ocultas. A arte, em suma, nos conduz para
fora da caverna.
Neste ensaio convidamos à reflexão sobre o papel da arte e dos
artistas – em particular da poesia e dos poetas –, por meio da discussão
33 6

sobre o posicionamento assumido por Vladímir Maiakóvski em relação à


Primeira Guerra Mundial. Mostraremos que ele não foi uniforme, mas ama-
dureceu ao longo do tempo até chegar ao longo poema Guerra e Mundo
(1916), em que o poeta denuncia os horrores da violência, pede perdão
por sua postura inicial e se oferece em sacrifício por todos, prenunciando
um futuro de esperança e de paz em que haverá “pessoas mais verdadei-
ras”. O poema de mais de cem anos mostra-nos que a tragédia humana é
atemporal, que a arte ilumina os caminhos e que lutar pela paz é sempre
necessário e atual. Lembra-nos também que precisamos conhecer melhor
os fatos (e como chegamos até eles), para compreender a História que se
constrói (e que nós também construímos) diariamente.
“A guerra está declarada”: euforia e guerra
estética

Em agosto de 1914, após a invasão austríaca da Sérvia, teve início


um dos piores conflitos do século XX, a Primeira Guerra Mundial. Numa
rápida sucessão de eventos, no dia 2 de agosto, a Alemanha declarou guerra
à Rússia, em seguida à França e à Bélgica. Ao grupo de inimigos somou-se
ainda a Grã-Bretanha.2

“Extra! Extra! Extra!


A Itália! A Alemanha! A Áustria!”
E na praça sombria cercada de sombra
derramou-se o rubro fluxo de sangue.3

Assim Maiakóvski registrou o início da guerra em sua poesia. Antes de


começar, é interessante notar que Maiakóvski, um poeta que dispensa maio-
res apresentações, tinha raízes multiculturais: filho de pai russo e mãe de
origem ucraniana – seu avô Konstantin Konstantínovitch era descendente de
cossacos de Zaporizhzhia – Maiakóvski nasceu na Geórgia, em 1893, quando
o território ainda integrava o Império Russo. Essa origem o marcou profunda-

337
mente: além do russo, ele falava fluentemente georgiano e há muitos relatos
e poemas – dele e de seus contemporâneos – que atestam a presença das
cores, das montanhas e do sol da primeira infância em sua vida e obra.

2 A Rússia se retiraria do conflito por causa da Revolução Russa. O novo gover-


no soviético assinou o Tratado de Brest-Litovsk em março de 1918.
3 Estrofe inicial do primeiro poema curto escrito por Maiakóvski sobre a Pri-
meira Guerra Mundial, “Voiná Obiavlena” [A guerra está declarada], de 1914. Todas as
traduções dos poemas são da autora. A urgência de discussão sobre o tema não nos
permitiu o tempo necessário para um trabalho de tradução poética mais acurado de
todos os poemas aqui citados. Portanto, por vezes apresentamos aqui apenas esbo-
ços de tradução que privilegiam a semântica a fim de demonstrar como a temática
aparece na obra de Maiakóvski.
O caráter rebelde do poeta, que desde cedo demonstrou seu incon-
formismo e engajamento político, coadunava-se bem com o movimento
de vanguarda que ele ajudou a fundar. Mas diferentemente do movimento
artístico capitaneado por Marinetti – personalidade, aliás, muito mal-re-
cebida em Moscou em janeiro de 1914 – os cubofuturistas russos rompe-
ram com o ideal belicista defendido pelo futurismo italiano. Num primeiro
momento, deve-se reconhecer, os cubofuturistas receberam a notícia da
Primeira Guerra com entusiasmo, associando ingenuamente o evento ao
início de uma mudança radical no sistema vigente.
A guerra começou em julho de 1914. Em outubro do mesmo ano,
Maiakóvski tentou se alistar voluntariamente no exército, mas foi recu-
sado por seu histórico de reiteradas prisões políticas.: “Fui me alistar como
voluntário. Não aceitaram. Não sou confiável.” (citado em IMPOSTI, 2018,
p. 73). O fato histórico é mencionado em sua autobiografia Eu mesmo,
escrita ao longo de muitos anos: “Eu a acolhi [a guerra] com emoção. A
princípio apenas pelo seu lado decorativo e ruidoso. Cartazes encomen-
dados e, naturalmente, de todo belicosos. Depois o verso. ‘A guerra está
declarada’.” (citado em SCHNAIDERMAN, 1984, p. 95).
É importante contextualizar tal declaração do ponto de vista esté-
tico. A linguagem dos cubofuturistas prezava pela força e pela violência
338

– “bato com a bomba das palavras” (MAIAKÓVSKI, 2018, p.54), mas a guerra
que defendiam era, essencialmente, a guerra das palavras contra o sistema
poético tradicional. Assim, o tema da guerra era, segundo o especialista
Bengt Jangfeldt (Imposti, 2018, p. 71), adequado ao movimento: “Para ele
[Maiakóvski] a guerra não era simplesmente o campo de batalha, mas tam-
bém o apelo estético e uma oportunidade”. Era também, segundo a pes-
quisadora Gabriella Imposti, uma forma de afirmar a superioridade da arte
das vanguardas russas em relação à europeia, sobretudo a alemã. Alguns
curtos artigos da época marcam a posição inicial de Maiakóvski quanto
ao conflito mundial. Comentaremos alguns trechos sem a pretensão de
esgotá-los.
Em “Chtatskaia chrapniel” [Estilhaço civil] de 1914, Maiakóvski
comenta a guerra estética e o papel do poeta em contraposição ao do
soldado: “o guerreiro arrogante anseia pela guerra, o poeta anseia por
seus versos. [...] Como um homem da arte, devo pensar que talvez toda
guerra seja inventada apenas para que alguém escreva um bom poema”
(MAIAKÓVSKI, 1914a). Em outro artigo do mesmo ano, “Chtatskaia chrap-
niel’. Poety v fugasakh” [Estilhaço civil. Poetas em pedaços] (MAIAKÓVSKI,
1914b), ele fala da “cacofonia da guerra” que envolve “famílias, irmãos,
maridos”, mas aqui o foco ainda não está na crítica à violência da guerra,
mas em como as palavras podem superar o sistema vigente. A guerra seria,
portanto, um “pretexto”, uma “âncora” na conjuntura, que inspira e inflama
a arte. Percebe-se que neste momento a visão é ingênua, alienada, e até
mesmo egoísta. A perspectiva muda quando ele se depara com a terrível
realidade da guerra.
Sua intenção principal num primeiro momento é discutir a lingua-
gem poética. No mesmo artigo, Maiakóvski critica a uniformidade das ima-
gens da guerra materializadas na poesia da época, e o fato de a poesia
não ser tratada como um objetivo, mas como um meio, como “um animal
de carga” que transporta “o conhecimento”. Ele condena os que escrevem
sobre a guerra acreditando que basta inserir as palavras “metralhadora” e

339
“canhão” no “metro certo” para entrar para a história “como o bardo do dia”
(MAIAKÓVSKI, 1914b). Num terceiro texto de 1914, “Chtatskaia chrapniel’.
Vravchim kist’iu” [Estilhaço civil. Como um pincel de má-fé], ele convoca os
poetas a buscarem novas formas de expressão em dias de guerra: “não se
deve escrever sobre a guerra, mas se deve escrever violentamente” (MAIAKÓ-
VSKI, 1914c).
Ainda sobre o assunto, em “Voiná i iazik” [Guerra e linguagem], tam-
bém de 1914, ele se concentra na inadequação e no anacronismo das pala-
vras empregadas para descrever a guerra. “Lembrem-se! Cada sentimento,
cada objeto cresce das roupas da palavra” (MAIAKÓVSKI, 1914d). Segundo
ele, palavras muito repetidas ficam desgastadas e perdem o elo com a vida
real, deixam de causar a impressão de outrora, é preciso, portanto, outro
E se não for sobre o Ocidente?
E se não for sobre o Ocidente?
Determinação e pavor na invasão russa da
Ucrânia1
Omar Ribeiro T H O M AZ

Para Íris Kantor

Já disse em algum lugar que, vista do oriente,


durante os anos sem perspectiva da Guerra Fria,
Berlim Ocidental parecia ser a mais europeia das
cidades, talvez precisamente porque ao mesmo
tempo era a cidade mais ameaçada da Europa.
Passeando pela Leipziger Strasse de Berlim Orien-
tal, onde, “do outro lado”, do noticiário luminoso
do alto edifício da Springer-Verlag espreitavam-se
as notícias do mundo livre, podia-se ter o senti-
mento enganoso de que não era Berlim que estava
murada, mas o grande território monolítico que se

369
estendia do Muro até o mar Ártico.

Imre Kertész2

1 Uma primeira versão deste ensaio foi discutida com Piero Lerner em finais
de abril de 2022 num seminário sobre a guerra na Ucrânia organizado pelo Programa
de Pós-Graduação de Antropologia Social da Unicamp. Sou grato a Piero pela opor-
tunidade da divergência. Agradeço especialmente aos alunos da disciplina de Antro-
pologia e História do 1º semestre de 2022 do curso de Ciências Sociais da Unicamp
que, com empenho e entusiasmo, enfrentaram a leitura de textos que se debruçavam,
inicialmente, numa realidade tão distante: com eles pude discutir algumas das ideias
elaboradas no calor da hora.
2 Kertész (2004, p. 195).
I

No final de fevereiro de 2022, a guerra da Rússia contra a Ucrânia,


iniciada em 2014, entrou em uma nova etapa com a territorialização da
invasão. Nas semanas e meses seguintes, cerca de 5 milhões de ucrania-
nos deixaram o país, a esmagadora maioria concentrando-se em países de
fronteira como Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia. Por volta de 10
milhões abandonaram suas casas em direção ao Ocidente ucraniano; um
número bastante reduzido optou pela Rússia e uma quantidade ínfima por
Belarus; um número ainda não definido foi deslocado pelas forças russas
de forma forçada.3 Segundo informações do governo ucraniano, em finais
de abril cerca de 25.000 civis haviam perdido a vida e 3.000 haviam sido
feridos. Para as forças militares, as autoridades ucranianas indicavam cerca
de 3.000 mortos e 10.000 feridos. Quanto aos militares e paramilitares rus-
sos, os números eram tão imprecisos como espetaculares, e refletiam tanto
a violência da guerra como a eficácia do aparato repressivo do Krêmlin, que
mantém a imprensa e as redes sociais russas sob censura crescente.4
Seguindo a dinâmica do leste da Ucrânia e da Crimeia desde 2014,
a atuação de milícias paramilitares é recorrente, agindo tanto em nome
da Ucrânia como em nome da Rússia, atuando ao lado de forças militares
370

e policiais e promovendo a violência contra políticos, lideranças e civis


desarmados. A socióloga ucraniana Oskana Mikheieva (2022) e o cientista
político russo Serguei Sukhankin (2022) debruçaram-se sobre a atuação

3 No momento em que concluo este ensaio (agosto de 2022), há uma certa


tendência para a rotinização de uma guerra que se percebe como possivelmente
longa. Nesse sentido, o trânsito de pessoas pode assumir uma dinâmica específica,
na qual o grande número de refugiados e deslocados passa a conviver com o ir-e-vir,
de indivíduos e grupos alocados entre os países da Europa Central-Ocidental, os que
fazem fronteira com a Ucrânia ou mesmo os que fugiram para a parte oeste país.
4 Enfatizarei quantas vezes forem necessárias a relativa liberdade com a qual
exercem sua profissão os jornalistas e os enviados internacionais na Ucrânia, o que
não ocorre na Rússia ou em Belarus.
das forças paramilitares na região de Donbas desde 2014, procurando com-
preender tanto as que atuavam em nome da Ucrânia como as que agiam
sob a bandeira russa, bastante distintas entre si enquanto composição
social, formação e motivações. Ambos os autores concordam quanto a não
caracterização propriamente de uma “guerra civil” no Donbas como deseja-
ria o Krêmlin. Percebe-se, antes, a dinâmica de uma guerra entre Rússia e
Ucrânia. Segundo o historiador David Marples, a guerra no Donbas foi, entre
2014 e início de 2022, de difícil classificação. Se é certo que até então não
teria havido uma incursão militar russa direta e a dinâmica parecia se apro-
ximar de uma guerra civil – com a atuação do exército ucraniano ao lado
de grupos pró-Kyiv em conflito aberto com grupos que apontavam ora para
uma independência da região, ora para sua futura incorporação pela Rússia
–, também é verdade que o Krêmlin levou adiante uma combinação de
atividades de inteligência, apoio a grupos mercenários e o claro fomento
a grupos rebeldes e forças governamentais locais anti-centralistas. David
Marples trabalha ainda com a suposição de que o papel desempenhado
pela Rússia entre 2014 (quando também ocorreu a invasão e anexação da
Crimeia) e 2022 não foi “estático”, assinalando um campo fértil para histo-
riadores da região (Marples, 2022, p. 1-2).5
A invasão das regiões de Donetsk e Luhansk em 22 de fevereiro de

371
2022 foi chamada de “missão de paz” por Vladímir Pútin, enquanto que a
marcha de tropas russas em larga escala por diferentes regiões da Ucrâ-
nia iniciada dois dias depois, os bombardeios aéreos ou os mísseis lança-
dos a partir do território russo, tem sido denominados por meios oficiais

5 Sobre grupos paramilitares e sobre a natureza da guerra no Donbas, para


além dos trabalhos já citados de Serguei Sukhankin (2022) e Oksana Mikheieva, ver
também os do cientista político ucraniano Serhiy Kudelia (2022), que defende o cará-
ter “civil” da guerra na região. Nunca é demais lembrar que o conflito no Donbas
foi responsável entre 2014 e 2022 por um grande número de mortos, deslocados e
refugiados, pelo empobrecimento de boa parte da população da região e por níveis
alarmantes de insegurança alimentar (cf. Gyidel, 2022; Melnyk, 2022).
russos como parte de uma “operação militar especial”, jamais “invasão” ou
“guerra”.6 Esta nova etapa da guerra (iniciada efetivamente em 2014) foi
precedida de alertas e denúncias de Washington e Downing Street, de ten-
tativas frustradas de mediação por parte de Emmanuel Macron em plena
campanha eleitoral, da inação de uma Alemanha aparentemente órfã de
liderança, da ansiedade crescente da população polonesa, da mobilização
da extrema-direita húngara putinista, que vive no eterno delírio de recupe-
rar as fronteiras históricas magiares, da incredulidade de parte significativa
da cidadania ucraniana e, sobretudo, de sucessivas mentiras do chefe de
Estado e ditador russo.
Certamente, a mentira e a confusão em larga escala não é exclusi-
vidade da inteligência e do mundo bélico que cercam o ditador russo. Mas
há uma singularidade que deve ser destacada: Pútin é um ditador, apesar
de periódicos rituais eleitorais. O caráter híbrido da guerra na Rússia e nos
países que estão sob a órbita de Moscou vem acompanhado de repressão,
desmandos administrativos e judiciais, prisões arbitrárias, desaparecimento
de pessoas, envenenamentos e assassinatos. A dinâmica peculiar da guerra
híbrida promovida por Moscou na Geórgia e na Abkházia durante a guerra
russo-georgiana de 2008, na Síria pelo menos desde 2013, na Crimeia e no
Donbas pelo menos desde 2014 é de grande ajuda para a compreensão dos
372

sentidos da guerra híbrida na guerra da Ucrânia, tendo em vista, insisto,


que estamos no contexto de um conflito internacional promovido por uma
potência militar regional que, de quebra, é uma ditadura. Os trabalhos da

6 Até onde conseguimos acompanhar, a própria denominação de “guerra” ou


“invasão” na Rússia, pode levar à prisão ou a processos políticos, administrativos
ou criminais. Iuri Iuliánovitch Chevkuk, líder da banda de rock DDT – que mantém
independência do poder político desde o período tardo-soviético e se manifestou
contra as guerras da Chechênia, da Geórgia e do Donbas, entre outras manifestações
públicas desconfortáveis para Pútin – está sendo processado por ter se pronunciado
contra a guerra na Ucrânia em um show realizado em maio último em Ufa, cidade dos
Urais. Posteriormente, o show que deveria ser realizado em Moscou foi proibido pelas
autoridades. Parte do show de Ufa está, numa edição pirata, disponível no YouTube.
cientista política ucraniana Alla Hurska (2022) e da pesquisadora jurídica
também ucraniana Alina Cherviatsova (2022) são esclarecedores da dinâ-
mica da guerra híbrida na região, que não deve ser igual a dinâmicas béli-
cas híbridas em outras partes do mundo.
Nas primeiras semanas após a invasão, o impacto nas mídias e nas
redes sociais foi espetacular. Afinal, trata-se de uma guerra no continente
europeu, ora contando com o protagonismo de uma potência militar e
nuclear com franca tradição expansionista. O impacto econômico da guerra
também dominou parte dos noticiários: afinal, teriam impacto as sanções
dos países ocidentais à Rússia? Como lidar com a evidente dependência de
parte significativa da Europa com relação ao gás russo? Qual o impacto de
uma guerra num país como a Ucrânia, uma potência mundial na produção
de grãos?7
Para os países da União Europeia e da Otan que outrora foram parte
da União Soviética e da Cortina de Ferro,8 a invasão russa veio a confirmar

7 Concluo este texto em finais de julho de 2022 e é evidente de que os temo-


res quanto ao impacto da guerra na economia mundial são colossais e se expressam
na falta de alimentos em países claramente dependentes da importação e em uma

373
inflação generalizada. Assim, pouco a pouco se debate menos a guerra, tragicamente
rotinizada, e mais seus efeitos fora do território conflagrado; em outros termos, os
grãos e a inflação são os protagonistas, e o drama do refúgio e do deslocamento
forçado, os ataques a populações civis, a separação de famílias e amigos, a desarticu-
lação dos sistemas de saúde e educação ucranianos passam a segundo plano. Quanto
ao impacto das sanções na Rússia, devemos enfrentar a falta de informação: no país,
a imprensa e as mídias são controladas, qualquer um que divulgue indicadores que
escapem do esquadro oficial pode ser preso, julgado ou mesmo assassinado, e a
movimentação de jornalistas estrangeiros é cuidadosamente vigiada, um passo para
além do tolerado pelo Estado e é obrigado a deixar o país. Ao mesmo tempo, vale
a pena ressaltar, a economia russa gira em direção a outros grandes países, como
aqueles que outrora fizeram parte da União Soviética e claramente se encontram sob
sua órbita (como o Azerbaijão ou o Uzbequistão), o Irã e, sobretudo, a China.
8 Foram incorporados pela União Europeia e pela Otan a Lituânia (parte da
União Soviética até 1990), a Letônia e a Estônia (também parte da União Soviética até
1991); até a queda do muro de Berlim, faziam parte da “Cortina de Ferro” a Alemanha
A Guerra na Ucrânia
A Guerra na Ucrânia:
alguns elementos explicativos
(ensaio impressionístico)
Angelo SEGRILLO1

A invasão da Ucrânia pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022 sur-


preendeu a muitos especialistas pela sua escala (inicialmente generali-
zada, em vez de concentrada nas repúblicas separatistas russófonas) e por
alguns elementos esdrúxulos da argumentação utilizada para justificá-la
(“desnazificação” do governo, proibição de usar a palavra “guerra” para des-

4 03
crever o que estava acontecendo etc.).
O propósito deste texto é fornecer alguns elementos (especial-
mente em áreas menos exploradas e entendidas pelo público) que ajudem
a compreender o fenômeno em sua complexidade. Alguns desses elemen-
tos envolvem aspectos das realidades russa e ucraniana que são específi-
cos daqueles países e pouco conhecidos fora deles; daí a dificuldade em
sua compreensão adequada.

1 O presente texto traça suas origens à participação do autor no debate “Guer-


ra na Ucrânia: análise e consequências”, realizado na USP em 12/05/2022 e disponí-
vel em vídeo no link: https://www.youtube.com/watch?v=WJIdBLZ7zfM
Passaremos, então, a revisitar alguns deles. A começar pela proble-
mática dos Estados multinacionais.

Rússia e Ucrânia como Estados multinacionais:


“jus soli” versus “jus sanguinis”

A Rússia e a Ucrânia são Estados multinacionais. Esse fato impõe


condições bem diferentes dos Estados-nações (ou Estados nacionais) como
são o Brasil e a maioria dos países ocidentais. Nesses últimos, a naciona-
lidade de uma pessoa é determinada pelo princípio jurídico do jus soli
(“direito do solo”), ou seja, pelo local de nascimento. Por exemplo, um casal
de japoneses imigra para o Brasil. Se seu filho nasce no Brasil, ele é ime-
diatamente, de primeira geração, considerado brasileiro.
Já na Rússia, Ucrânia (e países eslavos em geral) a nacionalidade
(natsionálnost) de uma pessoa não tem nada a ver com o local onde nasce.
Lá a nacionalidade é determinada pelo princípio jurídico do jus sanguinis
(“direito do sangue”), ou seja, a nacionalidade de um bebê ao nascer é a
nacionalidade do pai ou da mãe (pode escolher, caso sejam diferentes)
e nada tem a ver com o local onde o bebê nasceu. Ou seja, o jus sangui-
404

nis eterniza as diferenças que, no Brasil, chamamos de étnicas, mas que,


na Rússia e Ucrânia, são chamadas de diferenças nacionais, ou seja, entre
nacionalidades diferentes. Na Rússia, por exemplo, há mais de cem nacio-
nalidades (natsionálnosti) diferentes.
Por um lado, isso cria uma grande riqueza cultural (nesses países
é possível ver dezenas de culturas diferentes de diversas nações), mas, por
outro, gera também um potencial de conflito. Afinal, os Estados multina-
cionais são Estados em que convivem muitas nações diferentes. Enfatizo
a palavra “nação” (nátsiia), pois é assim que lá são chamadas (em vez de
meras diferenças étnicas, como denominamos no Brasil). E essas diferen-
tes nações dentro do Estado tem aspirações e/ou exigências de direito a
resguardar seu próprio modo de vida e cultura, ter escolas e instituições
em suas próprias línguas, ter autonomia para sua cultura em determinadas
áreas etc.
Para exemplificar essa complexidade, podemos citar que na língua
russa existem duas palavras para “russo”: rússkii e rossiiánin. Rússkii é o
“russo étnico” (filho de pai ou mãe russa). Rossiiánin é qualquer um que
tenha nascido na Rússia. Por exemplo, um checheno é um rossiiánin (um
cidadão da Rússia como qualquer outro e com os mesmos direitos e deve-
res), mas não é rússkii (russo étnico).
Igualmente, na Ucrânia convivem dezenas de nacionalidades dife-
rentes. Há cidadãos ucranianos de nacionalidade (etnia, chamaríamos no
Brasil) ucraniana (falam ucraniano etc.). Há cidadãos ucranianos de nacio-
nalidade russa. O presidente Volodymyr Zelensky, por exemplo, não pertence
a nenhum desses dois grupos majoritários. Ele é um cidadão ucraniano de
nacionalidade (etnia) judaica. Os judeus formam outra das nacionalidades
da Ucrânia.
O fato de haver um Estado com várias nações dentro de si cria
algumas situações inusitadas politicamente, entre elas uma espécie de
irredentismo étnico. Por exemplo, Vladímir Pútin se sente na obrigação e no
direito de proteger a nação russa onde ela estiver, mesmo que fora da Rús-
sia (por exemplo, os russos étnicos da Ucrânia).2 Este foi um componente

4 05
da narrativa de Pútin para justificar a invasão de 2022: a defesa da parte da

2 Por exemplo, em 1 de julho de 2014 (no ardor do conflito com a Ucrânia


daquele ano), em discurso aos embaixadores russos, Pútin afirmou: “Vocês podem ver
que na Ucrânia nossos compatriotas estão ameaçados juntamente com pessoas de
outras nacionalidades, em sua língua, cultura, direitos jurídicos […] Quando eu digo
russos e falantes da língua russa eu me refiro àqueles que se consideram parte da
grande comunidade russa […] Quero deixar claro: nosso país continuará a defender
ativamente os direitos dos russos, nosso compatriotas no exterior, usando todos os
meios possíveis.” Soveschánie poslov i postoiánnikh predstavítelei Rossii [Encontro
dos Embaixadores e representantes permanentes da Rússia], site da Presidência da
Federação Russa, disponível online no link: http://kremlin.ru/events/president/
transcripts/46131
nação russa que habita a Ucrânia (ou seja, os russos étnicos das repúblicas
separatistas de Donetsk e Luhansk).
O princípio regulador da nacionalidade pelo jus sanguinis nos Esta-
dos multinacionais também cria o problema da dupla pertença e dupla
lealdade. O cidadão ucraniano de nacionalidade (etnia) russa, pela cidada-
nia, faz parte da Ucrânia. Mas, por nacionalidade (etnia), faz parte da nação
russa (que existe em vários países, mas cujo centro e núcleo populacional
maior está na Rússia). Em caso de conflito entre as duas pertenças, onde
ficará a lealdade maior? Esse foi um grande dilema para os cidadãos ucra-
nianos de nacionalidade (etnia) russa após 2014, quando as regiões onde
eles se concentravam majoritariamente (a Crimeia e as duas províncias
de Donetsk e Luhansk) não aceitaram a derrubada do presidente (cidadão
ucraniano de nacionalidade ou etnia russa) Viktor Yanukovych e se decla-
raram em rebelião.
Em comparação com o princípio do jus soli (que é um “liquidifica-
dor” e homogeneizador de etnias em uma nacionalidade só), o jus sanguinis
perpetua as diferenças étnicas dentro de um país e gera (ou perpetua)
tensões étnicas que, em Estados-nações, são sensivelmente diminuídas ou
desaparecem com o tempo.3
406

Dois pontos válidos apontados por Vladímir Pútin


para as tensões

Em minha opinião, há dois pontos válidos na argumentação de Vla-


dímir Pútin e que merecem atenção: 1) A revolução Maidan de 2014 derru-

3 Para mais detalhes sobre o problema das nacionalidades nos Estados multi-
nacionais do espaço ex-soviético, ver o capítulo “O Problema das Nacionalidades na
URSS” nas páginas 112-136 de minha tese de doutorado (SEGRILLO, 1999).
bou um presidente ucraniano (de origem étnica russa) constitucionalmente
eleito; 2) a questão da expansão da Otan em direção à Rússia.
Quanto ao primeiro ponto, sabemos que Viktor Yanukovych (um
cidadão ucraniano de nacionalidade ou etnia russa), eleito democrati-
camente em 2010 na Ucrânia, foi derrubado do poder por uma rebelião
popular (chamada de Revolução Maidan) em 2014. Isso resultou em uma
cisão no país. A maioria dos cidadãos ucranianos de nacionalidade (etnia)
ucraniana apoiaram a derrubada do impopular presidente. Mas a maioria
dos cidadãos ucranianos de nacionalidade (etnia) russa não aceitaram tal
derrubada, dizendo que isso havia sido uma jogada suja, fora das regras
do jogo democrático. Mais ainda, as províncias a leste, onde estes esta-
vam majoritariamente concentrados (Crimeia, Donetsk e Luhansk), não
aceitaram a legitimidade do novo governo e decretaram em rebelião. Ou
seja, iniciou-se uma guerra civil que perdura até hoje. Após um referendo
local, a Rússia anexou a Crimeia (onde se concentrava sua marinha de água
quente) e passou a dar apoio logístico às repúblicas de Donetsk e Luhansk
em sua luta contra o governo central.
A legitimidade de uma revolução é sempre assunto controverso,
pois implica em uma quebra (geralmente violenta) de regras do regime
anterior. Se o regime posterior será ou não legítimo é um debate que

4 07
geralmente perdura por um longo tempo, como mostra o exemplo das
principais revoluções, como a Francesa e a Russa. Este é o caso da cha-
mada Revolução Maidan, em que o país se dividiu em linhas étnicas a
respeito de sua avaliação.
O segundo ponto de Vladímir Pútin, que considero que deve ser
levado em conta, pois expressa preocupações legítimas, é a expansão da
Otan em direção à Rússia. A Otan é uma aliança militar da Guerra Fria
voltada contra a União Soviética. Como não existe mais Guerra Fria ou
União Soviética, a lógica diria que tal aliança militar tenderia a diminuir de
importância ou desaparecer. Porém, o contrário ocorreu: a Otan não apenas
não diminuiu ou desapareceu, como se expandiu (e coincidentemente em
direção à Rússia)! E isso nada tem a ver com Pútin. A expansão da Otan
a leste se iniciou ainda nos anos 1990, sob o presidente Iéltsin, que era
bastante pró-ocidental e buscava uma integração entre Rússia e Ocidente.
Assim, a expansão da Otan em direção à União Soviética já desapontava os
russos sob Iéltsin, bem antes de Pútin chegar ao poder.
Grandes potências não aceitam alianças militares chegando a suas
fronteiras ou cercando-as. Durante a Crise dos Mísseis em Cuba, em 1962,
os Estados Unidos, por exemplo, arriscaram o mundo com uma guerra
nuclear para evitar a existência de um aliado nuclear da União Soviética
em sua vizinhança.
E não é válido o argumento de que a Otan é uma aliança militar
“defensiva”. Todas as alianças militares se dizem defensivas. As alianças
militares que conduziram à Primeira Guerra Mundial, por exemplo, eram
todas alianças militares defensivas. E isso não impediu que contribuíssem
para a eclosão de um conflito de escala mundial.
É preciso que haja outro esquema de segurança para a Eurásia
pós-Guerra Fria que não seja baseado em alianças militares ainda do
tempo da Guerra Fria.

Dois pontos em que Pútin está errado


408

Acredito que Pútin está especialmente errado em dois de seus argu-


mentos: 1) a questão do nazismo na Ucrânia; 2) A problemática da Ucrânia
como país independente e sua autonomia em relação à Rússia.
Nos primeiros dias da Guerra, Pútin anunciou que um de seus obje-
tivos no conflito era “desnazificar” a Ucrânia. Segundo ele, grupos neona-
zistas estavam controlando o aparato governamental e influenciando a
política do país, especialmente em relação aos russos étnicos de lá.
Esta afirmação é um exagero ao absurdo de um ponto real. A Ucrâ-
nia, como grande parte dos países da Europa, tem grupos de direita radi-
cal e mesmo neonazistas. O caso mais famoso é o do Batalhão Azov que
tem suas origens em grupos da direita radical neofascista e que, após o
Literatos da nação cossaca
Literatos da nação cossaca
Os historiadores e a gênese da “ideia
ucraniana”
Lucas R. S I M O N E

Um país inventado

No dia 24 de fevereiro de 2022, enquanto tropas pesadamente


armadas adentravam o território ucraniano, o presidente da Federação
Russa, Vladímir Vladímirovitch Pútin, proferiu, por meio de uma transmis-

427
são televisiva exibida em todo o país — e, através da internet, em todo
o mundo —, um discurso que decerto já adquiriu caráter histórico. Para
justificar aquilo que chamou de “operação militar especial”, mas que a opi-
nião pública internacional classificou como uma invasão ao país vizinho, o
governante russo traçou um panorama histórico da região, das condições
em que se deu a formação dos Estados ali existentes e das relações entre
a Rússia e a Otan. O texto — lido, aliás, na costumeira voz maquinal do
presidente, porém lançando mão de um tom que se pretendia mais direto e
menos formal — dedicou-se ainda a uma paradoxal análise da constituição
da classe política da Ucrânia pós-soviética, com seus oligarcas corruptos e
seus flertes com movimentos de extrema-direita. Para este ensaio, porém,
não interessa a extensa fala de Vladímir Vladímirovitch em sua totalidade,
mas, sobretudo, o trecho que, quase de imediato, tornou-se alvo de zom-
baria e até memes nas redes sociais; a saber, a afirmação de que a Ucrâ-
nia, como país independente, foi inteiramente inventada pela Rússia, mais
precisamente pela “Rússia bolchevique”, mais precisamente por Vladímir
Ilitch Lênin.
A despeito do sarcasmo com que as palavras de Pútin foram rece-
bidas, há por detrás delas um pensamento de grande relevância, profun-
damente arraigado no debate político russo e, aliás, reiterado pelo próprio
presidente em sua fala: a ideia de que a Ucrânia, historicamente, nunca
teria possuído uma tradição de independência política e, por conseguinte,
deveria ser considerada um Estado artificial, cuja existência só pode ser
defendida por delirantes e perigosos radicais nacionalistas e, de modo
oportunista, por potências estrangeiras, em sua incansável tentativa de
desestabilizar estrategicamente a Rússia. Para Pútin, a Ucrânia faz parte do
que ele define como “territórios históricos russos”, faz parte de um mesmo
“espaço espiritual” — expressão que ressoa lugubremente o Lebensraum
evocado pelos alemães até a Segunda Guerra Mundial. No mundo todo, e
até mesmo no Brasil, houve vozes ávidas por ratificar a asserção putinista,
vozes que buscaram de imediato ecoar mecanicamente os argumentos que
comprovavam a tese da artificialidade da Ucrânia como Estado-nação. Ten-
428

taremos aqui colaborar, de maneira pontual, para esse debate específico


e trazer informações que possam ajudar a explicar o lento processo de
gestação da chamada “ideia ucraniana”, que, como veremos adiante, ante-
cede consideravelmente o nascimento do líder da facção bolchevique do
movimento revolucionário russo-soviético.
É importante salientar, logo no início, que a Ucrânia, como Estado
nacional, é de fato uma invenção. É uma invenção, porém, na mesma medida
que o Brasil o é, ou que a Itália o é, ou que a Rússia o é. As atuais frontei-
ras jurídicas, linguísticas, afetivas ou econômicas entre os países são uma
criação coletiva, um produto humano historicamente elaborado, e não um
fenômeno natural, permanente ou incontestável. A moderna historiografia
estudou profusamente esse intrincado processo, e tem na obra de Patrick
Geary um de seus mais eloquentes e conhecidos frutos. Igualmente digno
de nota é o conceito de “tradição inventada”, explorado, dentre outros, por
Eric Hobsbawm, que afirma que:

Elas [as tradições inventadas] são altamente apli-


cáveis no caso de uma invenção histórica compa-
rativamente recente, a “nação” e seus fenômenos
associados: o nacionalismo, o Estado nacional, os
símbolos nacionais, as interpretações históricas, e
daí por diante. Todos esses elementos baseiam-se
em exercícios de engenharia social muitas vezes
deliberados e sempre inovadores, pelo menos por-
que a originalidade histórica implica inovação. […]
As línguas nacionais padronizadas, que devem ser
aprendidas na escola e utilizadas na escrita, quanto
mais na fala, por uma elite de dimensões irrisórias,
são, em grande parte, construções relativamente
recentes. […] Não nos devemos deixar enganar
por um paradoxo curioso, embora compreensível:
as nações modernas, com toda a sua parafernália,

42 9
geralmente afirmam ser o oposto do novo, ou seja,
estar enraizadas na mais remota antiguidade, e o
oposto do construído, ou seja, ser comunidades
humanas, “naturais” o bastante para não necessita-
rem de definições que não a defesa dos próprios
interesses. Sejam quais forem as continuidades
históricas ou não envolvidas no conceito moderno
da “França” e dos “franceses” — que ninguém pro-
curaria negar —, estes mesmos conceitos devem
incluir um componente construído ou “inventado”.
E é exatamente porque grande parte dos consti-
tuintes subjetivos da “nação” moderna consiste de
tais construções, estando associada a símbolos ade-
quados e, em geral, bastante recentes ou a um dis-
curso elaborado a propósito (tal como o da “história
nacional”), que o fenômeno nacional não pode ser
adequadamente investigado sem dar-se a atenção
devida à “invenção das tradições”. (HOBSBAWM;
RANGER; 1997; 22-23)

Este último elemento, o da “história nacional”, é o que mais nos


interessa no presente ensaio. Afinal, se a Ucrânia foi “inventada” coleti-
vamente por escritores, poetas, dramaturgos, pintores, ativistas políticos
e autoridades religiosas — Tarás Chevtchenko, Ivan Frankó, Panteleimon
Kulich, Mykhailo Drahománov, Lessa Ukraiínka, apenas para nomear alguns
dos mais relevantes —, a argamassa conceitual e ideológica que aglutinou
os anseios e aspirações de todos os demais atores foi indubitavelmente
fornecida pelos historiadores. Esse resgate consciente de um passado ide-
alizado e de símbolos que dessem forma à nacionalidade, nessa tentativa
deliberada de “inventar tradições”, dependeu amplamente de figuras como
Mykola Kostomárov, Volodýmyr Antonóvytch e Mykhailo Hruchévskyi.
Ao leitor brasileiro, no entanto, será decerto necessário um
43 0

pequeno circunlóquio acerca da história da Europa Oriental, já que os


estudiosos citados acima engajaram-se de modo ativo em controvérsias
envolvendo precisamente essa esfera. A existência ou não de um grupo
que se pudesse denominar eslavo oriental; a pretensa coesão linguís-
tica dessas populações; o sentido do termo Rus e sua origem; o papel
dos escandinavos na formação da Rus: estes e outros temas serviram de
objeto de estudo e de discussão, mas, ao mesmo tempo, tornaram-se, na
mão dos historiadores de inclinação nacionalista, a matéria-prima com
que se erigiu a “ideia ucraniana”.
Rus, Rutênia e Pequena Rússia

Nos primeiros anos do século XII, no Monastério das Cavernas, em


Kyiv, foi compilada uma crônica de considerável extensão e detalhamento,
que a moderna historiografia tem chamado de Pověstĭ vremenĭnyhŭ lětŭ —
e que recentemente foi traduzida para o português, com o título de Narra-
tiva dos anos passados. Os monges que a elaboraram — possivelmente de
maneira coletiva, ao longo de algumas décadas — buscavam compreender e
explicar a origem dos príncipes kyivanos — ou, talvez de maneira mais pre-
cisa, dos reis kyivanos —, cujos domínios estendiam-se ao longo dos cauda-
losos rios que ligam os charcos do mar Báltico, ao Norte, às estepes do mar
Negro, ao Sul, numa intrincada malha de fortalezas, entrepostos comerciais
e pequenos povoados tributários, convencionalmente denominada Rus. Em
que pese o fato de que o cronista emprega o termo de maneira um tanto
inconsistente — em geral denotando um etnônimo, embora por vezes já
apareça como algo semelhante a um topônimo —, ele parece não ter dúvi-
das de que seus soberanos, ali instalados desde pelo menos um século e
meio antes, tinham ascendência escandinava: a Narrativa traz a lenda dos
três irmãos nórdicos Riurik, Sineus e Truvor, membros da tribo dos rus, que
foram convidados por eslavos e finos para “reinar sobre eles” em Nóvgorod,

431
e cujos sucessores desceram o rio Dnipro para conquistar a estratégica Kyiv.
Esta última, ainda de acordo com o informe do cronista, fora fundada muito
antes, por um certo Kyi e seus irmãos, Khóriv e Chtchek — aparentemente
eslavos polianos.
Assim, essa confederação de povos eslavos e finos sob domínio pre-
tensamente escandinavo, a que se atribui relativa coesão política, cultural
e econômica do fim do século X até meados do século XII, foi denominada
Rus kyivana pela contemporaneidade e, também por ela, fortemente ide-
alizada. Teria sido uma sociedade complexa e sofisticada, com comércio,
letramento abrangente, leis e até uma espécie de protodemocracia, simbo-
lizada pelo sino do věče — a assembleia popular que talvez tenha existido
em Nóvgorod, Kyiv, Pskov e outros aglomerados urbanos daquele reino. Não
ZALIZNIAK, Andrei Anatólievitch. Drevnenovgoródski dialiekt. Moscou:
Iazykí Slaviánskoi Kultury, 2004.

Tabela de transliteração do ucraniano ao


português

Cirílico Transliteração Cirílico Transliteração Cirílico Transliteração


Аa Aа Іі Ii Тт Tt

Бб Bb Її Ii ii Уу Uu

Вв Vv Йй Ii Фф Ff

Гг Hh Кк Kk Хх Kh kh

Ґґ Gg Лл Ll Цц Ts ts

Дд Dd Мм Mm Чч Tch tch

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Жж Jj Пп Pp ь ’

Зз Zz Рр Rr Юю Iu iu

Ии Yy Сс Ss Яя Ia ia
448
A Ucrânia não é o diabo, mas
talvez o futuro da democracia
A Ucrânia não é o diabo, mas talvez o
futuro da democracia
Yves CO H E N
Tradução: Letícia M E I

Este texto concentra-se em um ponto crucial do debate acerca da


guerra da Ucrânia.1 É clara a inconsistência da opinião que reduz a agressão
russa a uma “guerra da Otan”. Essa posição não apenas demonstra pouco
interesse pelo processo histórico em curso desde o fim da União Soviética,
como também não considera a dinâmica imperial própria da Rússia, que

453
Vladímir Pútin assumiu à sua maneira.2 Outro ponto cego de tal postura é
a ausência do principal interessado entre os atores em cena: a Ucrânia. A
guerra seria inteligível apenas como a vontade de um imperialismo singu-
lar, o americano, apoiado pela Otan, ou somente como um confronto entre
grandes potências, que não sofrem com a perda de seus vizinhos próximos,

1 Historiador da União Soviética, dentre outros, atuo também como cidadão


interessado pela história da Rússia e dos países da ex-União Soviética, o que me
levou tanto a defender a independência da Chechênia, quanto a buscar compreender
a insurreição da praça Maidan, sobretudo graças a uma pesquisa realizada no próprio
local, no início de 2015.
2 Ver seu artigo muito claro PÚTIN (2021).
vassalos. Os países pequenos seriam, portanto, peões cuja política não tem
nenhuma importância, e cujos povos são atores de interesse ainda menor.
Eles não são levados em consideração, pois seriam “fracos” diante dos “for-
tes”, e sua própria história não desempenharia nenhum papel.3 Essa visão
está difundida em parcelas significativas da opinião pública de esquerda
no mundo, e entre alguns grupos e autores (COHEN, 2022).
Não retomarei aqui a história do governo de Pútin, marcado por
suas guerras travadas invariavelmente contra as populações civis, desde a
guerra da Chechênia, a partir do ano 2000, até as atuais guerras na África
por intermédio dos assassinos mercenários Wagner, passando pela Geórgia
e pela Síria. Irei me concentrar na história da revolta Euromaidan (nome
dado pelos ucranianos à revolta na praça Maidan, entre novembro de 2013
e fevereiro de 2014), e em suas consequências até a guerra atual. Marcada
pela iniciativa popular e pela auto-organização, ela é fundamental para a
resistência da população ucraniana, que tem dificultado os planos de Pútin,
de maneira decisiva, desde o dia 24 de fevereiro de 2022.
Nem a Ucrânia nem Maidan são o diabo nazista. De fato, havia
organizações fascistas na praça Maidan, e retomarei esse ponto adiante.
Contrariando o discurso de Pútin sobre uma Maidan fascista e uma Ucrâ-
nia nazista, não só eles eram uma pequena minoria, como não tiveram
45 4

nenhuma influência sobre a maneira como a praça conduziu sua política.


A praça era um protesto cidadão muito maduro contra a política de um
governo pró-Rússia, e ela manifestava a vontade de orientar o país em
direção à Europa. Ela era, ao mesmo tempo, anticolonialista, patriótica e
democrática. Suas componentes não pararam de se desenvolver ao longo
da história dos oito anos que separam a “Revolução da dignidade” – outro

3 Único exemplo: “Why John Mearsheimer Blames the U.S. for the Crisis in
Ukraine” [Por que John Mearsheimer culpa os EUA pela crise na Ucrânia], New Yorker,
1o de março de 2022. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/q-and-
-a/why-john-mearsheimer-blames-the-us-for-the-crisis-in-ukraine. Acesso em:
20.07.2022).
nome da Euromaidan – da guerra de Pútin. Após 2014, e até a guerra pro-
priamente dita, há na combinação da ação do Estado com a iniciativa popu-
lar um fenômeno muito original que chama a atenção para o alcance da
experiência democrática em jogo para além da Ucrânia. Esses aspectos
organizam o texto a seguir.

Maidan = a praça da Independência

A experiência coletiva de Maidan é particularmente exemplar. Uma


coisa tinha me intrigado e me levado a ir a Kyiv investigar pessoalmente,
em abril de 2015: diante dos disparos dos atiradores em 20 de fevereiro
de 2014, que mataram várias dezenas de pessoas naquele dia, os mani-
festantes não armados, protegidos apenas por escudos metálicos mais ou
menos improvisados, não fugiam.4 Imagens muitos distantes daquelas do
fuzilamento de 4 de julho de 1917 na avenida Niévski em São Petersburgo.
De onde poderia vir tamanha resolução, tamanha força coletiva?
Pareceu-me necessário procurar o segredo de Maidan na própria
praça, muito mais do que em um suposto nacionalismo exaltado, em uma
organização de falanges militarizadas ou em uma limitação qualquer. O

455
segredo estava nas pessoas muito diversas que a frequentavam e no con-
junto das atividades que ela sediava: alimentação para todos, saúde, deli-
beração, autodefesa, cultura, religião, leitura, correio, arte, música... A utopia
estava na praça quando ela nem tinha sido convocada. Tais fatos convi-
davam a uma postura investigativa que poderia ser definida a posteriori
como pragmática, no sentido de que talvez o fenômeno possa ser pensado

4 Os atiradores disparam contra a multidão de Maidan: a reação da praça em


20 de fevereiro de 2014: https://youtu.be/HLCH83OohwM (consulté le 26 mai
2022). Ver também Serguei Lóznitsa, Maidan, filme documentário, Kyiv, Atoms & Void,
2014, (https://youtu.be/bbdarLkUKVI, indisponível em 20 de julho de 2022).
e, talvez, explicado apenas em função de sua própria dinâmica, em função
do processo aleatório de seu desenrolar na praça.5
Euromaidan começou em 21 novembro de 2013. A partir da pri-
meira repressão violenta, no final de novembro, ela se tornou o local fértil
da interseção de uma infinidade de práticas por meio das quais se formou
como praça, espaço público, ágora, lugar político, e produziu uma opinião
comum inabalável no curto prazo de três meses.6 Maidan Nezalezhnosti
é o nome da praça em ucraniano: praça da Independência. Um programa
completo. Ainda mais porque a própria palavra “maidan” significa justa-
mente “praça pública” em persa e em árabe!7 No local, portanto, desenvol-
veu-se toda uma série de práticas do cotidiano: alimentar os presentes por
meios de cozinhas improvisadas, abastecidas pelos ocupantes da praça ou
por moradores de Kyiv que traziam enormes quantidades de víveres; pres-
tar-lhes cuidados médicos seja por causa do inverno, seja por causa dos
ferimentos provocados pelos ataques policiais (cuidar deles no local e nos
hospitais, ajudar a organizar as emergências no monastério mais próximo
etc.); conduzir coletivamente o debate dos problemas do dia; acolher as
pessoas de todas as grandes cidades e regiões do país que tinham, cada
uma delas, sua tenda na praça; organizar o correio (papel), a informação
ou um serviço jurídico à disposição de todos; instalar pianos permanente-
456

mente disponíveis, uma biblioteca pública etc. (SHUKAN, 2016). Grupos e


associações proliferaram, como o célebre AutoMaidan que reunia os pro-
prietários de carros. Estes percorriam a cidade em ações de comunicação,
transporte, vigilância e assistência. Outro grupamento, SOS Euromaidan,
encarregou-se especificamente de identificar e acompanhar os desapareci-

5 “A sociedade não dispõe, para organizar suas estruturas do momento ou


regular suas dinâmicas, de nenhum ponto fixo exterior e que lhe seja transcendente.
Ela constrói suas próprias referências e constitui para si mesma seu próprio mecanis-
mo”, escreve com uma clareza notável Bernard Lepetit (1995, p. 14).
6 Alexandra Goujon e Ioulia Shukan (2015).
7 Ver Nilüfer Göle e Yves Cohen (2018).
mentos de pessoas após episódios de violência policial (SHUKAN, 2016, p.
64). Também foram inventadas práticas no próprio fazer, como a do “volun-
tário hospitalar”, expressão que designa voluntários que acompanham os
feridos nos hospitais para cuidar de suas necessidades e protegê-los do
sequestro policial (SHUKAN, 2016, p.51).
Convém notar que se o nome Maidan resume os três meses que
levaram à fuga do presidente Yanukovych, muitos Maidan formaram-se nas
praças das cidades da Ucrânia, do oeste ao leste, ou seja, também nas regi-
ões mais russófonas que logo seriam o palco de uma agitação completa-
mente diferente. Desde então, o nome Maidan não poderia encobrir o fato
de que a maidan de Kyiv não estava só, e era sem dúvida um elemento
central de um aglomerado muito mais vasto, rico de sentidos, de circula-
ções, trocas e tensões.8
Nessa configuração, a organização da autodefesa era um fenô-
meno crucial. Ela começou a se estabelecer após o ataque policial de 30
de novembro de 2013. Formaram-se espontaneamente, então, “centúrias”
(nome emprestado das unidades cossacas) mantidas pelas mais diversas
pessoas, como assistentes sociais, professores ou executivos. Não faltavam
nuances à própria panóplia das centúrias: entre as cerca de trinta que exis-
tiam, de tamanhos muito variados apesar do nome, tinha uma de mulheres,

457
uma de judeus, uma não violenta (que não participou menos das operações
mais delicadas e arriscadas) e a do Setor civil (uma organização ad hoc
da praça que se atribuíra a tarefa de oferecer um apoio para os proble-
mas logísticos do cotidiano) (SHUKAN, 2016, p. 33). Os sotni (“centúrias”)
também tinham suas tendas. Promoviam atividades de defesa, tais como
a fabricação dos coquetéis molotov (cuja receita e manual de instruções
eram, aliás, fornecidas nas redes sociais) e das barricadas.
A assembleia dos estudantes que se instalou na Casa da Ucrânia,
no limite da praça Maidan, também chama a atenção. Tratava-se de uma

8 Sobre a noção de aglomerado, ver Quentin Ravelli (2020).


reunião diária que funcionava segundo os critérios definidos nas assem-
bleias do movimento altermundialista desde o Fórum Social Mundial de
Porto Alegre em 2001. Esses critérios – um gestual que regula a expressão
dos participantes, fórmulas de moderação com papeis precisos para que a
palavra de cada um seja respeitada de modo igualitário, retorno ad libi-
tum aos procedimentos para assegurar uma democracia rigorosa – foram
introduzidos graças a circulação internacional de estudantes e de artis-
tas ucranianos e estrangeiros. Esses critérios são reformulados na Maidan,
assim como em outros lugares, em função das circunstâncias e dos locais.9
Tal assembleia, onde são trabalhadas as regras de um acordo não imposto
e deliberativo, mantém sua própria biblioteca, oferece cursos universi-
tários na praça, organiza projeções de filmes seguidas de debates, entre
outras atividades.

Maidan numa paisagem global

Se fosse necessária uma prova do caráter democrático da Euromai-


dan, ela estaria na grande quantidade de características que a inserem na
série dos “movimentos de praça pública” dos anos 2010.10 Com efeito, a
458

“praça pública” foi convidada para as praças reais em muitos países, como a
praça Tahrir no Cairo, a praça da Kasbah em Túnis, a praça Taksim em Istam-
bul ou a Maidan em Kyiv. Foi justamente o que os “coletes amarelos” fize-
ram com as rotatórias, reinventando-as, contra todas as expectativas, como
lugar democrático, ou ainda os manifestantes belarussos com os pátios dos
prédios em 2020.11 Ainda que esses movimentos tenham, cada um deles,

9 Entrevista com Nin Khodorivsko, um dos criadores da assembleia dos estu-


dantes, abril de 2015.
10 Ver Göle (2018) e Yves Cohen (2015).
11 O Brasil não teve a experiência de ocupação da praça pública, mas teve as
manifestações mais intensas de sua história em junho de 2013. Elas foram lançadas
Autores e organizadores
Autores e organizadores

Martín Baña é professor de história da Rússia na Faculdade de


Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, onde realizou seu
doutorado. Leciona também na Universidade Nacional de San Martín e é
pesquisador do Conicet. É autor de De la disolución de la Unión Soviética a
la Rusia de Putin (editora Crítica), de Una intelligentsia musical. Modernidad,

4 85
política e historia de Rusia en las óperas de Musorgsky y Rimsky-Korsakov
(editora Gourmet Musical), entre outros.

Henrique Soares Carneiro é professor doutor no Departamento


de História da Universidade de São Paulo, onde coordena o Laboratório
de Estudos Históricos das Drogas e da Alimentação (LEHDA), também é
membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP)
e da Alcohol and Drugs History Society (ADHS). Mestre e doutor em história
social pela Universidade de São Paulo. Realizou estágios acadêmicos na
França e na Rússia. Publicou sete livros e coeditou outros dois.
Yves Cohen é historiador e professor (directeur d’études) na École
des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Estuda a história e o
presente das práticas de influência nos séculos XX e XXI na França, Rússia,
Brasil e Estados Unidos. Em 2013, publicou Le siècle des chefs. Une histoire
transnationale du commandement et de l’autorité (1890-1940) (Paris, Édi-
tions Amsterdam) sobre a França, a Alemanha, a União Soviética e os Esta-
dos Unidos. Editou recentemente Histoires pragmatiques (Paris, Editions de
l’EHESS) com Francis Chateauraynaud.

Cristina Dunáeva é professora do Instituto de Artes da Universi-


dade de Brasília. Doutora em ciências sociais com pesquisa sobre racismo
e xenofobia na Rússia. Mestre em história da arte pela Universidade Esta-
dual de Campinas. Traduziu, do russo, Dos novos sistemas na arte, de Kazi-
mir Maliévitch. Participou da campanha de denúncia dos crimes cometidos
pelo governo russo nas guerras na Chechênia (2004-2008) e sobre a situ-
ação dos refugiados, realizou debates e exposições no Brasil e exterior.
Escreveu o texto “Ação Literária pela autodeterminação dos povos” publi-
cado no livro Terrorismo de Estado na Rússia: a guerra na Chechênia nos
descaminhos da indústria da violência.
486

Vicente Ferraro é membro do Laboratório de Estudos da Ásia da


Universidade de São Paulo. Doutor em ciência política pela USP, mestre
em ciência política pela Higher School of Economics de Moscou e bacha-
rel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Foi pesquisador visitante no Centre for European, Russian, and
Eurasian Studies da Universidade de Toronto. Pesquisa política da Rússia
e da Ucrânia, conflitos do Espaço Pós-Soviético, conflitos étnicos e separa-
tistas, nacionalismo, democratização e relações sociopolíticas em regiões
de fronteira.
Pedro Fratino é fotógrafo independente. Acompanha questões de
deslocamento humano e ajuda humanitária, cursou relações internacionais
na Fundação Armando Alvares Penteado e estudou fotografia com Carlos
Ebert. Tem trabalhos publicados em diversos veículos de comunicação,
dentre eles o Museu da Imigração e organizações de ajuda humanitária.
Atua como voluntário no Grupo de Busca de Pessoas Desaparecidas do
departamento de Restabelecimento de Laços Familiares da Cruz Vermelha
de São Paulo, setor especializado em imigrantes e refugiados.

Bruno Barreto Gomide é professor de literatura e cultura russa da


Universidade de São Paulo. Doutor em teoria e história literária pela Uni-
versidade Estadual de Campinas, com estágio na Universidade da Califórna,
em Berkeley. Realizou estágio de pós-doutorado pela École des Hautes Étu-
des en Sciences Sociales, em Paris. Professor visitante no Instituto Górki de
Literatura Mundial (Moscou) e Púchkinskii Dom (São Petersburgo) e outras
universidades na Europa e EUA. Dentre outras obras, publicou Da estepe à
caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936) (Edusp), organizou a Nova
antologia do conto russo (1792-1998) (Editora 34) e traduziu O arqueiro de
olho-e-meio, de Benedikt Lívchits (editora Carambaia).

4 87
Anna Smirnova Henriques é professora de russo, aplicadora do teste
de proficiência em russo autorizada pela Universidade de São Petersburgo
e professora de português como língua estrangeira para russófonos. Rea-
liza estágio de pós-doutorado em linguística aplicada e estudos da lingua-
gem na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui publicações
nas áreas de fonética experimental, sociolinguística, linguística de corpus,
ensino de segunda língua e estudos de migração. Em 2022, envolveu-se
com o acolhimento de refugiados ucranianos no Brasil.
Neide Jallageas é editora da Kinoruss, especializada em livros
sobre arte e cinema russos, áreas nas quais é doutora e realizou estágio
de pós-doutorado pela Universidade de São Paulo, com estágio no Museu
de Cinema Russo, em Moscou, focado no cinema de Andrei Tarkóvski. Com
Celso Lima assina o livro Vkhutemas, desenho de uma revolução (Kinoruss,
2020) e a curadoria da mostra Vkhutemas, o futuro em construção (SESC
Pompeia, 2018), premiada pela APCA (2018). Em 2020, recebeu o prêmio
Biéli Slon (Elefante Branco) da Guilda dos Historiadores e Críticos de
Cinema da Federação Russa.

Fernando Bomfim Mariana é Agente Articulador de Projetos de


Extensão da Diretoria de Difusão Cultural da Universidade de Brasília,
coordenador do Núcleo de Arte e Cultura “Travessia” e professor associado
da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília no Departamento
de Teoria e Fundamentos (TEF). Doutor, mestre e historiador pela Facul-
dade de Educação da Universidade de São Paulo. É autor de, entre outros,
de Terrorismo de Estado na Rússia: A Guerra na Chechênia nos descaminhos
da indústria da violência, Arte e direitos humanos: uma garrafa lançada ao
mar. Realizou a exposição fotográfica “Guerra e paz na Rússia”.
488

Letícia Mei é tradutora e professora de russo e francês. Pesquisa-


dora de Maiakóvski. Doutora e mestra em literatura e cultura Russa pela
Universidade de São Paulo. Licenciada em Letras (Francês, Russo e Portu-
guês). Do russo, já traduziu prosa, poesia e ensaios de Maiakóvski, Mandels-
tam, Turguêniev, Herzen, Chklóvski e Maliévitch. Para a Kinoruss traduziu
Forma, Cor e SENSAÇÃO de Maliévitch. Sua tradução de Sobre Isto (Editora
34), de Maiakóvski, recebeu os prêmios Jabuti 2019, Boris Schnaiderman
(ABRALIC) 2019 e APCA 2018.
Helen Petrovsky é chefe do Departamento de Estética do Instituto
de Filosofia de Moscou. Doutora em filosofia pelo Instituto de Filosofia da
Academia de Ciências da URSS. Publicou, dentre outros, Theory of the image
(RGGU Press) e The Unapparent. Essays on the Philosophy of Photography
(Institute of Philosophy/AdMarginem). É compiladora, editora e co-tradu-
tora de Jean-Luc Nancy’s Corpus (1999) e Gertrude Stein’s selected writings
(The Autobiography of Alice B. Toklas. Picasso. Lectures in America, 2001).
Desde 2002, é editora-chefe da revista teórica bianual Sinii Divan. Em 2011
recebeu o Prêmio Andrei Biéli, na categoria Teoria.

Daniel Aarão Reis é professor titular de história contemporânea da


Universidade Federal Fluminense e pesquisador 1A do CNPq. É autor de:
A revolução faltou ao encontro; 1968, A paixão de uma utopia; Ditadura
e democracia no Brasil; Luís Carlos Prestes, um revolucionário entre dois
mundos e A revolução que mudou o mundo/Rússia, 1917. Suas áreas de
especialização são as revoluções socialistas no século XX (a história das
revoluções russas e do socialismo soviético) e a história da ditadura e das
esquerdas brasileiras no pós-1964.

Svetlana Ruseishvili é professora no Departamento de Sociologia e

489
no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de
São Carlos. Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, mestre
em ciências sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e
graduada em sociologia pela Universidade Estatal de Moscou Lomonóssov.
Em suas pesquisas, investiga regimes globais da mobilidade internacional
históricos e contemporâneos, com foco nas migrações do Império Russo,
URSS e os países pós-soviéticos.
Angelo Segrillo é professor de história contemporânea na Universi-
dade de São Paulo. Doutor pela Universidade Federal Fluminense, mestre
em língua e literatura russa pelo Instituto Púchkin e graduado pela Uni-
versidade do Estado de Missouri. É autor de vários livros sobre a Rússia e
ex-União Soviética, dentre eles O Declínio da União Soviética: um estudo
das causas (editora Record), De Gorbachev a Putin (editora Prismas) e Os
Russos (editora Contexto). Traduziu do russo o livro Que Fazer?, de Nikolai
Tchernichevski (editora Prismas).

Lucas Simone é doutor em letras pelo Programa de Literatura e


Cultura Russa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo e graduado em história pela mesma instituição.
Traduziu Pequeno-burgueses, A velha Izerguil e outros contos, de Maksim
Górki e Memórias do subsolo (editora Hedra); A aldeia de Stepántchikovo
e seus habitantes, de Fiódor Dostoiévski; O artista da pá, de Varlam Cha-
lámov; Diário de Kóstia Riábtsev, de Nikolai Ognióv e O ano nu, de Boris
Pilniák (Editora 34); O fim do homem soviético, de Svetlana Aleksiévitch
(Companhia das Letras); A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói (Antofágica).

Volodymyr Tesko foi professor visitante de matemática na Universi-


49 0

dade Federal do ABC, entre 2016 e 2020, e é responsável pela revista Ukrai-
nian Mathematical Journal de Kyiv. Doutor em matemática pelo Instituto de
Matemática da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia e graduado em
matemática pela Universidade Nacional de Chernihiv Shevchenko. Desde o
início da guerra, tem ajudado ucranianos no Brasil. Criou o site bilíngue de
apoio e orientação “Visto Humanitário para Ucranianos”.
Omar Ribeiro Thomaz é professor do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Campinas. Trabalhando na intersecção entre
pós-colonialismo e pós-socialismo e atento às profundas transformações
contemporâneas de uma perspectiva etnográfica e histórica, pesquisa e
orienta trabalhos sobre distintos contextos africanos, Caribe e Europa Cen-
tral e Oriental. Entre suas publicações, destacam-se Ecos do Atlântico Sul;
Os outros da colonização; Da crise às ruínas; O tempo e o medo (no prelo).

Elena Vássina é pesquisadora e professora de russo da Faculdade


de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Realizou estágio de pós-doutorado em teoria e semiótica da cultura e da
literatura pelo Instituto Estatal de Pesquisa da Arte (Rússia), é doutora em
história e teoria de arte e mestre em literatura comparada pela Universi-
dade Estatal de Moscou, onde graduou-se em letras. Atua principalmente
como professora e tradutora nos seguintes temas: literatura russa, teatro
russo, estudos comparados e tipologia de cultura.

491
Notas da editora

Este livro foi realizado em regime de urgência e, como tal, contou


com a compreensão e total colaboração das autoras e autores convidados,
tradutoras, revisora, designer e demais colaboradores que buscaram, de
forma ágil, apoiar da melhor maneira.
E para que um livro tão denso, com quinze diferentes autores,
pudesse manter a consistência, já que se trata de um evento em curso, os
organizadores e a editora buscaram agilizar o processo tendo em vista sua
premência sem que, no entanto, o projeto como um todo perdesse a consis-
tência. Assim sendo, algumas decisões editoriais tiveram que ser tomadas
sem maiores delongas. Uma delas envolve a transliteração das palavras
ucranianas, em cirílico, para o alfabeto latino/português.
Faz parte da rotina da Kinoruss trabalhar com textos em que a pre-
sença de palavras em russo é uma constante e ao longo dos anos, a editora
convencionou a transliteração do russo para o português com base nas
normas estabelecidas no Brasil pelos especialistas em Língua e Cultura
Russa do Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo que constam do
Caderno de Cultura e Literatura Russa, n° 1, São Paulo: Ateliê Editorial/
492

FFLCH-USP, 2004. Porém, as convenções para a transliteração do ucraniano


para o português ainda não foram normatizadas no Brasil. Sendo assim,
optamos por utilizar a tabela de transliteração do governo ucraniano, cien-
tes de que alguns ajustes deverão ser realizados futuramente. E assim foi
feito para todos os textos que nos chegaram ao longo de dois meses e que
foram sendo revisados, um a um, por ordem de chegada. Reconhecemos
que a referida tabela é insuficiente e limitada para uma representação ade-
quada dos fonemas do idioma ucraniano em alfabeto latino, considerando
sua pronúncia em português brasileiro. Contudo, esse recurso se mostrou
uma solução razoável e mais imediata para que evitássemos subordinar
o modo de transliteração já consolidado do russo para o português a um
idioma distinto, que, ademais, tem especificidades tanto na composição de
seu alfabeto quanto em sua fonética.
Ainda que o alfabeto cirílico tenha apenas umas poucas distinções
entre os idiomas, verifica-se que uma mesma letra pode ser pronunciada
de modo diferente em russo e em ucraniano. Tal é o caso do “г”, que em
russo se pronuncia como o nosso “g” (em “guerra”) e em ucraniano soa
como um “r” aspirado. Dessa forma, o sistema ucraniano mostra-se mais
adequado para a transliteração, por exemplo, de um topônimo de grande
relevância para o contexto do presente livro como Луганск, aqui grafado
como Luhansk e não Lugansk. Quanto aos demais topônimos, evidente-
mente foram preferidas as grafias ucranianas (Kyiv, Donbas etc.) para cida-
des e regiões deste país.
O último ensaio, de autoria de Lucas Simone, estudioso e tradutor
das línguas eslavas, trouxe uma grata surpresa: a proposta de uma tabela
de transliteração do ucraniano para o alfabeto latino/português que ele
mesmo utilizou na escrita de seu texto. Porém, quando este texto nos foi
entregue, o livro já estava em processo acelerado de diagramação, ativi-
dade que antecede a entrega do volume digital para a impressão gráfica.
Depois de ponderarmos um bom tanto sobre a melhor decisão
acerca das transliterações já realizadas em mais de quatrocentas páginas

493
de texto e diante do livro em processo de produção, optamos por conser-
var a transliteração que Lucas sugere apenas para o texto dele e manter
os textos anteriormente revisados com a transliteração elaborada pelo
governo ucraniano. O que nos moveu foi pensar na dinâmica de se produzir
um livro de forma ágil enquanto a dita “ordem mundial” se transforma à
revelia de nossas frágeis certezas. A Rússia luta por alargar suas fronteiras,
a Ucrânia defende sua autonomia e o resultado humano imediato desse
conflito armado é a perda inestimável de milhões de vidas. Traduzir, ágil e
talvez imperfeitamente, essa tragédia humana em termos científicos, filo-
sóficos e artísticos fez parte do esforço coletivo de dar materialidade a este
livro. Transliterar faz parte desse empenho de traduzir.
COORDENAÇÃO EDITORIAL Neide Jallageas

ORGANIZAÇÃO Bruno Gomide e Neide Jallageas

PROJETO GRÁFICO E CAPA Paulo Angerami

PREPARAÇÃO E REVISÃO Priscila Marques

DIAGRAMAÇÃO Gabriel Kolyniak e Paulo Angerami

ASSISTÊNCIA EDITORIAL Fernanda Heitzman

TRATAMENTO DE IMAGENS Paulo Angerami

CATALOGAÇÃO Ruth Simão Paulino

OS ORGANIZADORES AGRADECEM, EM ESPECIAL

Às autoras e aos autores pela generosidade de suas contribuições.


À Priscila Marques pela presença e apoio diligente para lapidar a excelência de cada texto.
Ao Paulo Angerami que, em suas férias da universidade, dedicou-se a tornar este livro um objeto à
altura dos ensaios aqui reunidos.
49 4

Ao Pedro Fratino pela cessão dos retratos das ucraninas, presentes no projeto Vozes e a elas: Olga
Dvorova, Olha Kucher, Oksana Nikolayenko, Olga Nikolayenko e Iryna Moroz, por cederem suas imagens
para publicação neste livro.
À Marina F. Bykova (North Carolina State University), editora da revista Studies in East European
Thought que viabilizou a cessão dos direitos da tradução para o português e publicação do texto de
Helen Petrovsky junto à Springer Nature.

Aos apoios recebidos por meio da campanha de financiamento coletivo no


Catarse. Os nomes das apoiadoras e apoiadores estão registrados em página
encartada a este livro e, ainda, em uma página especial de nosso site.
Acesse por meio do QRcode:

Copyright dessa edição © Kinoruss Edições e Cultura, 2022


Organização © Bruno Gomide e Neide Jallageas, 2022
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO – CIP

J26 Jallageas. Neide, Org.; Gomide, Bruno, Org. Ensaios Sobre a Guerra Rússia Ucrânia
2022. / Organização de Neide Jallageas e Bruno Gomide. – São Paulo: Kinoruss,
2022. 496 p. Il. P&B
ISBN 978-65-992062-5-2

1. Ciência Política. 2. Relações Internacionais. 3. Geopolítica. 4. Sociologia. 5. Arte. 6. Literatura. 7.


Rússia. 8. Ucrânia. 9. Guerra. 10. Guerra Rússia Ucrânia. I. Título. II. Em defesa (crítica) do direito
da Ucrânia à autodeterminação: entre a Cila da agressão imperialista russa e a Caríbdis da
marginalização na Europa. III. A invasão da Ucrânia: evidências e controvérsias. IV. A Ucrânia
tem o direito de existir como nação soberana? V. As contradições nos argumentos de Pútin
para invadir a Ucrânia: os mitos da Otan, da proteção de minorias e da desnazificação. VI. Breve
esboço sobre a arte antimilitarista na Rússia contemporânea. VII. Ouvir a cultura ou queimar o
futuro? Rússia e Europa no âmbito da invasão da Ucrânia. VIII. Ucranianos em fuga da guerra:
adaptação no Brasil e aquisição de português. IX. Projeto Vozes. X. Espaços vazios: império vs.
Vida. XI. “Não à guerra” por Liev Tolstói. XII. “Guerra e Mundo”: o poeta pela paz XIII. E se não for
sobre o Ocidente? Determinação e pavor na invasão russa da Ucrânia. XIV. A Guerra na Ucrânia:
alguns elementos explicativos (ensaio impressionístico). XV. Literatos da nação cossaca: Os
historiadores e a gênese da “ideia ucraniana”. XVI. Jallageas, Neide, Organizadora. XVII. Gomide,
Bruno, Organizador. XVIII. Ruseishvili, Svetlana. XIX. Aarão Reis, Daniel. XX. Carneiro, Henrique S.
XXI. Ferraro, Vicente. XXII. Dunáeva, Cristina. XXIII. Mariana, Fernando Bomfim. XXIV. Baña, Martin.
XXV. Smirnova, Anna. XXVI. Tesko, Volodymyr. XXVII. Fratino, Pedro. XXVIII, Petrovsky, Helen.
XXIX. Vássina, Elena. XXX. Mei, Letícia. XXXI. Thomaz. Omar Ribeiro. XXXII. Segrillo, Angelo. XXXIII.
Simone, Lucas. XXXIV. Cohen, Yves. XXXV. Kinoruss Edições e Cultura.
CDU 320 CDD 327

495
Catalogação elaborada por Regina Simão Paulino – CRB 6/1154

A reprodução de qualquer parte deste livro sem o


consentimento expresso da editora é ilegal.

© Kinoruss Edições e Cultura


São Paulo SP Brasil
[email protected]
www.kinoruss.com.br
Este livro foi concebido sob o impacto
da violência brutal da invasão russa na
Ucrânia, quando a palavra de ordem
em nosso devastado planeta deveria
ser “reconstruir”, quando mal saíamos
do trauma de dois anos de isolamento
social devido à pandemia de Covid 19.
Foi impresso em outubro de 2022,
composto em PT Sans Pro, Korolev e
Rodchenko, no papel Pólen Natural
80 g/m2 e Cartão 250 g/m2, na gráfica
PSI7 para Kinoruss Edições e Cultura.

НЕТ
496

ВОЙНЕ
Omar Ribeiro T H O M A Z
Cristina D U N Á E V A
e Fernando Bomfim M A R I A N A

Mar tín B A Ñ A

Anna S M I R N O V A

Elena V Á S S I N A
Helen P E T R O V S K Y
Svetlana R U S E I S H V I L I

Daniel A A R Ã O R E I S

Henrique S. C A R N E I R O

Vicente F E R R A R O

e Volodymyr T E S K O

Pedro F R AT I N O

Letícia M E I

Angelo S E G R I L LO

Lucas S I M O N E

Yves C O H E N
Em 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia. Começou a guerra. A partir daquele
momento, todo dia nos chegam notícias sobre mortes, bombardeios, destruições: uma avalanche
pesarosa e viscosa de informações mórbidas e trágicas. Fomos tomados pela escuridão e pelo
desespero a partir daquele momento. Por ora, não há qualquer indício da proximidade da paz,
de algum acordo, nem da vitória da resistência ucraniana. Sabemos que, na Rússia, há apoio
massivo à guerra, tudo indica que a popularidade de Pútin não cessa de crescer, tanto no
país por ele governado há 23 anos, quanto entre amplos setores supostamente de esquerda e
progressistas mundo afora. Num cenário tão assustador e pessimista, lembramos da metáfora
dos vaga-lumes (de Pasolini e de Didi-Huberman) que insistem em emitir lampejos de luz,
mesmo em vias de desaparição. (Cristina DUNÁEVA e Fernando Bomfim MARIANA, julho, 2022)

Kinoruss

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