A Durabilidade de Salazar PDF
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A “durabilidade” de Salazar
e os desafios da história do Estado Novo
edição e propriedade
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9
1600-189 Lisboa Portugal — [email protected]
C OM E N TÁ R I O I I
A “durabilidade” de Salazar
e os desafios da história do Estado Novo
O
último livro de Fernando Rosas, Salazar e o Poder, A Arte de Saber
Durar (Tinta-da-China, 2012) afronta um dos problemas por-
ventura mais difíceis e delicados com que a historiografia sobre o
período do Estado Novo tem lidado. Como pôde o regime autoritário sobre-
viver ao longo de 48 anos, apesar das diversas crises que atravessou e do seu
caráter antidemocrático? Uma pergunta incontornável para a construção da
imagem histórica coletiva do nosso passado recente, mas nem sempre fácil
de enunciar e de manipular no quadro de um rigoroso inquérito historiográ-
fico. Foi isso que, de uma forma inédita, Fernando Rosas se propôs fazer neste
ensaio, tomando a “longa duração do salazarismo como um fenómeno histó-
rico em si” (p. 186). Para isso, o autor retraçou a evolução do regime naquela
que será talvez uma das melhores sínteses do período até hoje publicadas,
resumindo e sistematizando não só a sua já longa reflexão sobre o tema, como
também a vasta produção académica das duas últimas décadas, de que ele pró-
prio foi, aliás, em boa parte o impulsionador.
O livro abre com a definição das grandes linhas do pensamento político de
Salazar, mas distancia-se assumidamente do género biográfico. Para F ernando
Rosas, mais importante do que compreender neste contexto as motivações
pessoais e o trajeto individual de Salazar, é compreender como ele se tornou
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populares” (p. 19) das intenções ideológicas emanadas das dinâmicas institu-
cionais. É verdade que Fernando Rosas assume claramente o enquadramento
que escolheu, e que o livro não pretende ser uma história da sociedade portu-
guesa durante o período salazarista, nem cobrir todas as suas dinâmicas polí-
ticas, económicas e sociais. O estudo pretende isolar, para o tratar enquanto
objeto autónomo, a lógica interna do poder salazarista. Mas ao enquadrar o
poder através dessa focal centralizadora, ao tomá-lo como uma lógica de apa-
relhos que exercem o seu poder sobre uma população passiva, reforça o seu
caráter exógeno em relação à sociedade portuguesa.
Essa perspetiva encontra o seu limite, a nosso ver, na forma como é abor-
dada a noção problemática de “consenso”. Fernando Rosas não faz uma refe-
rência explícita ao conceito tal como foi introduzido por Renzo de Felice no
debate historiográfico do fascismo, apesar de invocar uma outra contribuição
importante do historiador italiano, a diferenciação entre “fascismo enquanto
movimento” e “fascismo enquanto regime”. Mas a palavra e a ideia surgem
por duas vezes e de forma aparentemente contraditória. No capítulo dedi-
cado à violência, Fernando Rosas afasta a possibilidade de o enquadramento
ideológico organizado pelo regime ter constituído uma forma de “cimento”
para a durabilidade do regime: “até aos finais dos anos 60, quando tudo isto se
começa a desmoronar, o que largamente predominava não era o consenso, a
aceitação livre, ou sequer o sucesso de uma doutrinação massiva. Era a sujei-
ção, a obediência, a passividade, obtidas pela combinação eficaz do enquadra-
mento preventivo com a resposta punitiva” (p. 202). No entanto, no último
capítulo do livro, sobre o “projeto totalitário” do regime, Fernando Rosas não
deixa de assinalar a importância decisiva da fabricação do consenso como jus-
tificação da rede de aparelhos de propaganda e inculcação do regime. Segundo
ele, a tarefa reservada por Salazar às elites era a de saber “controlar e conduzir a
massa [...], organizar o consenso e a conformação, em suma, garantir a estabi-
lidade e a durabilidade do regime” (p. 329). O retrato que Fernando Rosas nos
desenha é o de um regime que procurou incessantemente fabricar o consenso
através da propaganda e da inculcação, mas que apenas o conseguiu aplicar
através do medo assegurado pelo seu aparato policial. Ou seja, reconduz o
fascismo à ação de uma minoria, deixando na sombra a forma capilar como o
poder se exerceu e se manifestou durante esse período.
O “projeto totalitário” do regime surge assim como o pilar menos proble-
matizado da argumentação de Fernando Rosas. Não só o conceito de “tota-
litarismo” não merece o mesmo enquadramento reservado ao conceito de
“fascismo” (evitando assim discutir o seu carácter problemático enquanto cate-
goria analítica e política), como a escolha dos discursos que são convocados
para justificar essa vocação do salazarismo são mais restritos (são sobretudo
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B I B L I O G R A F IA
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