Artigo Brasileiro Cultura Do Cancelamento

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 15

Etcétera

REVISTA DEL ÁREA DE CIENCIAS SOCIALES DEL CIFFYH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 - Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/

#ENSAYANDO

Cultura do cancelamento: primeiras


aproximações

Dra. Teresa Mary Pires de Castro Melo


[email protected]

Universidade Federal de São Carlos


Departamento de Ciências Humanas e Educação
São Paulo – Brasil

Eduardo Gomes Vasques


[email protected]

Universidade Federal de São Carlos


Programa de Pós-Graduação em Estudos da Condição Humana
São Paulo – Brasil

CORRECCIÓN LITERARIA
Conceição Coutinho Melo

Recibido: 12 de abril de 2021 / Aprobado para publicación: 14 de mayo de 2021

Copyright © 2018 Etcétera. Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH está bajo una
Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-CompartirIgual 4.0 Internacional.
#ENSAYANDO

Resumo
No fim do ano de 2019 o termo “cultura do cancelamento” foi eleito como o mais relevante
pelo Dicionário Macquarie, que anualmente seleciona palavras e expressões que definem,
revelam ou evidenciam o comportamento humano no período, dando mais fôlego e vigor
ao objeto. Este artigo tem como objetivo apresentar uma primeira aproximação em torno
do que é hoje denominada “cultura do cancelamento”. O fenômeno, com esta denominação,
é relativamente novo nas redes sociais digitais, tem afetado especialmente figuras públicas
na contemporaneidade e começa a atingir a rotina de cidadãos comuns. Este trabalho
utilizou consultas a uma base teórica que dão um aporte a uma observação especialmente
de dois casos, além de dados coletados em plataformas de redes sociais digitais e veículos
de imprensa. Vamos analisar, nesta pesquisa exploratória, dois casos recentes de J.K.
Rowling, autora inglesa consagrada da saga do jovem bruxo Harry Potter e a história de
Emmanuel Cafferty, um simples operário filho de migrantes mexicanos residente na
Califórnia, Estados Unidos, tentando identificar características próprias.

Palavras-chave
Cultura do Cancelamento, Mídias Digitais, Redes Sociais Digitais

Abstract
At the end of 2019, the term “cancellation culture” was chosen as the most relevant by the
Macquarie Dictionary, which annually selects words and expressions that define, reveal or
evidence human behavior in the period, giving the object more breath and vigor. This
article aims to present a first approach around what is today called “cancellation culture”. 2
The phenomenon, with that denomination, which is relatively new in digital social
networks, has especially affected public figures in the contemporary world and is
beginning to affect the routine of ordinary citizens. This work used consultations to a
theoretical basis that contribute to an observation especially of two cases, in addition to
data collected on digital social media platforms and press vehicles. We will analyze, in this
exploratory research, two recent cases of J.K. Rowling, English author consecrated in the
saga of the young wizard Harry Potter and the story of Emmanuel Cafferty, a simple
worker son of Mexican migrants residing in California, United States, trying to identify his
own characteristics.

Keywords
Cancellation Culture, Digital Media, Digital Social Networks

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Cultura do cancelamento: primeiras


aproximações

TERESA MARY PIRES DE CASTRO MELO


EDUARDO GOMES VASQUES

Introdução

O entendimento do crescimento exponencial do acesso e utilização das Tecnologias


de Informação e Comunicação (TICs) coloca luz sobre a maneira como os
indivíduos constituem suas subjetividades e se colocam no e para o mundo. O
digital impõe uma reorganização das configurações sociais, políticas, econômicas. 3
A adoção dessas novas tecnologias interativas atualiza constantemente a maneira
como fazemos uso delas.
Na era farmacopornográfica (Preciado, 2018 [2008]), da sociedade do
espetáculo (Debord, 2007 [1967]) ou ainda da transparência (Han, 2017), a forma
como nos apropriamos dessas novas mídias desempenha papel fundamental na
discussão da condição e das relações humanas. Um momento de redescoberta do
ser e das identidades em um mundo de fluxos acelerados. As relações sociais
nessas plataformas vêm provocando um processo de quebra de paradigmas em
muitos campos do viver, do econômico ao amoroso. Como consequência, estamos
assistindo a uma ressignificação da esfera pública e a uma reforma sobre a noção
do privado. Uma espécie de extimidade (Sibilia, 2016).
O alcance e adoção –ou penetração e densidade– das plataformas digitais,
embora sigam desiguais no Brasil e no mundo, são determinantes para consolidar
novos pilares e concepções sobre crenças, hábitos, ética e valores morais. De
acordo com relatório anual, mais de 4,6 bilhões de pessoas no mundo usam a
internet e cerca de 4,2 bilhões de indivíduos consomem mídias sociais ativamente

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

(91%). Já no Brasil, estes números chegam a 160 milhões de usuários da web (75%
da população) e 150 milhões de usuários de redes sociais digitais, 70,3% da
população (We Are Social and Hootsuite, 2021).
Para além dos números, essa presença nas redes não se dá em um patamar
“virtual”, mas, para De Certeau (2014 [1979]), passa a ser parte da cultura do
cotidiano. O historiador postula que o consumidor não pode ser qualificado a
partir dos produtos que consome, mas que entre o produto e o consumidor há um
distanciamento que se define pelo uso que este faz daquele (p. 90). E esse novo
modo de viver que passa a fazer parte da nossa cultura do cotidiano é fundamental
na arena pública (agora expandida em tempo e espaço). Tal circunstância traz ao
nosso cotidiano exatamente as potencialidades e misérias da condição humana,
assim como nas relações pré-digitais. Dentre as misérias, podemos elencar a
criação de um ambiente de intolerância e radicalismos, insultos, intimidação e até
mesmo assédio. É sobre um aspecto dessa sociabilização em rede que vamos
elaborar uma primeira aproximação do tema “cancelamento”.

4
Comportamentos à flor da pele

Podemos admitir que o tema em si não é novo. Já no início da popularização da


web, em 1999, surgiam os primeiros estudos sobre os novos desafios colocados
para a sociedade –com a disseminação do ódio on-line–, sem que os indivíduos
tivessem o controle sobre o fluxo de informações que produziam ou
compartilhavam (Ziccardi, 2016).
É de longa data a preocupação com as interações e sociabilidade em rede.
Vemos nascer e se fortalecer sentimentos antagonistas que resvalam ou se
concentram –em boa parte dos casos– em dilemas éticos e morais. Questões
filosóficas e lutas sociais construídas ao longo de séculos, encontram lugar na vida
rotineira, criando e amplificando novos conflitos. Atuando como moduladores de
comportamento (Lanier, 2018) as redes sociais digitais e seus algoritmos acabam
por propagar –e talvez até incentivar– modalidades opressivas e de controle do
discurso.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Uma visão binária do mundo é um terreno fértil para o ativismo que pode se
configurar como inquisitorial, desconectado com a luta por equidade e inclusão. Ao
contrário, é a popularização do famoso “boicote” que, no diagnóstico da época que
vivemos, vem sendo rotulado de "cultura do cancelamento". A tentativa de ajustar
condutas inadequadas por supostas transgressões sociais alimenta esse fenômeno.
Dos julgamentos abertos em espaços físicos e tempo delimitados, passamos a
enfrentar um novo tipo de foro, formado por juízos desterritorializados e
atemporais. São arbítrios formatados a partir de redes sociais digitais mediadoras
de discurso e conduta. Atitudes distantes do potencial das redes de indignação e
esperança (Castells, 2012) como meios de transformação social e reivindicações
conectadas com as preocupações dos indivíduos na experiência humana.
A lista dos "cancelados" (Dicionário Online de Português, 2021) isto é, de
sujeitos populares submetidos ao constrangimento público e à pressão coletiva nos
meios digitais parece crescer a cada ano. Há uma tendência pela exposição massiva
ou representatividade social que se concentre em símbolos notáveis, em suas
respectivas áreas. Um ponto de inflexão é que os casos de humilhações públicas
vêm atingindo também pessoas sem qualquer notabilização. 5
É possível analisar os eventos a partir da ótica da dissonância cognitiva, da
desindividualização dos sujeitos ou até mesmo do aspecto bastante contestado da
loucura coletiva na psicologia das multidões (Le Bon, 1895). O que muda, porém,
são os termos e as condições sobre as quais a exploração acontece, bem como as
formas de sua definição. Ainda que o conceito de flaming (Aranha, 2011)
expandido por O’Sullivan e Flanagin (2003), descreva as discussões acaloradas na
web –para o primeiro autor– e represente interações hostis de todos os tipos
findando em desrespeitos morais parciais com o objetivo de promover
linchamento pessoal para os demais, há uma zona cinzenta sobre uma definição
conceitual precisa. Há até pontos de interseção com o já bastante retratado
bullying ou cyberbullying numa versão atualizada nomeada de neocyberbullyng.
Essas ondas de incentivo à suspensão dos indivíduos vêm se consolidando e
estão produzindo resultados inquietantes, com efeitos nos planos pessoais,
emocionais e profissionais. Discordância e troca embasadas em argumentações
tomaram outra intensidade, criando possibilidades distintas de análise, sobre o

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

limiar entre as críticas como protestos legítimos e as retaliações ou deslegitimação


de falas dissidentes.

A “cultura do cancelamento”

Muitos termos novos (ou antigos ressignificados) têm sido adotados para se referir
a fenômenos do tipo na internet. Por que haveria a necessidade de criação de um
conceito tão forte como o de “cultura do cancelamento”? No fim do ano de 2019 a
expressão “cultura do cancelamento” foi eleita a mais relevante pelo Dicionário
Macquarie, que anualmente seleciona palavras e expressões que definem, revelam
ou evidenciam o comportamento humano no período. Além da consulta a
especialistas como linguistas, pesquisadores e teóricos de diversos campos, a
escolha também passa pelo crivo popular, por meio de votação aberta. O dicionário
aponta a cultura do cancelamento como “um termo que captura um aspecto
importante do estilo de vida deste ano. Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu
próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa” 6
(Macquarie Dictionary, 2019).1
Austin Michael Hooks (2020) remonta à exibição pública dos sofistas
(epideixes), com a finalidade de se tornarem conhecidos, propagarem suas ideias e
angariarem novos alunos. Essa prática, atualizada com as ferramentas digitais,
torna expostas as figuras públicas (na maioria das vezes), alvos de interações com
outros usuários da internet. Diferente do “doxing”, que necessita de uma pesquisa
de dados privados, esta exibição voluntária e sua reação “é apenas uma extensão
digital dos processos que usamos para atribuir valor e recompensar/punir certos
comportamentos” (p. 14).2 O autor cita Richards (1997) que considera esses
espaços “Um campo de batalha para sistemas de valores culturais, políticos e
científicos concorrentes” (Hooks, 2020: 14).3

1 Traducción libre del original: “A term that captures an important aspect of the past year's
Zeitgeist...an attitude which is so pervasive that it now has a name, society’s cancel culture has
become, for better or worse, a powerful force”.
2 Traducción libre del original: “It is merely a digital extension of the processes we use to assign

value and reward/ punish certain behaviors”.


3 Traducción libre del original: “a battleground for competing cultural, political, and scientific value

systems”.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Pippa Norris (2020) também utiliza o termo “batalha” para analisar o


fenômeno nas universidades: “Batalhas acaloradas sobre a chamada ‘cultura de
cancelamento’ nos campi universitários tem sido intensificada pelas recentes
controvérsias em torno de questões de racismo e etnia, assédio sexual e misoginia,
identidades de gênero não binárias e transfobia” (p. 3).4 O autor analisa as
características da cultura do cancelamento:

O conceito de "cultura de cancelamento" pode ser definido amplamente como tentativa de


condenar alguém ao ostracismo por violar as normas sociais. A noção também foi
entendida de forma mais restrita como “A prática de retirar o apoio a (ou cancelar) figuras
públicas e empresas após terem feito ou dito algo considerado questionável ou ofensivo.”
Esta prática é análoga à tática de boicotes do consumidor, retirando o apoio a marcas e
corporações consideradas antiéticas, uma forma comum de ativismo político. A estratégia
de cancelamento normalmente usa a mídia social para envergonhar os indivíduos com a
intenção de aplicar penalidades com diferentes graus de severidade, que vão desde limitar
o acesso a plataformas públicas ao prejuízo de reputações e encerramento de carreiras,
instigando processos legais (p. 3).5

Não há certezas em relação ao surgimento da expressão cultura do 7

cancelamento. A primeira grande demonstração do potencial desse tipo de


iniciativa, que se tornou patente e se tornou emblemática é o da diretora de
comunicações corporativas da IAC/InterActiveCorp, Justine Sacco. Em dezembro
de 2013, ela usou o Twitter para divulgar a mensagem: “Indo para a África. Espero
não pegar aids. Brincadeira. Sou branca!”. A publicação foi considerada racista e,
rapidamente, ganhou escala gigantesca com proporções globais. Ao longo das 11
horas seguintes, a executiva foi massacrada por usuários de internet ao redor do
mundo. Sacco só se deu conta do estrago quando desembarcou. Em resumo: foi

4 Traducción libre del original: “Heated battles about the so-called ‘cancel culture’ on college
campuses have been intensified by recent controversies surrounding issues of racism and ethnicity,
sexual harassment and misogyny, non-binary gender identities and transphobia”.
5 Traducción libre del original: “The concept of a ‘cancel culture’ can be defined broadly as attempts

to ostracize someone for violating social norms. The notion has also been understood more
narrowly as ‘the practice of withdrawing support for (or canceling) public figures and companies
after they have done or said something considered objectionable or offensive’. This practice is
analogous to the tactic of consumer-boycotts withdrawing support for perceived unethical brands
and corporations, a common form of political activism. The cancelling strategy typically uses social
media to shame individuals with the intention of exerting penalties with different degrees of
severity, ranging from limiting access to public platforms, damaging reputations, and ending
careers to instigating legal prosecutions”.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

demitida do emprego e “apagada”, como conta Jon Ronson (2020), em Humilhado:


Como a era da internet mudou o julgamento público. Até hoje, muito tempo depois,
a procura pelo nome de Justine Sacco em mecanismos de busca traz a mensagem
em seus primeiros resultados.
Outro marco importante para a adoção acentuada do termo parece ter
surgido quase como um padrão em reportagens da grande imprensa após as
manifestações, em 2017, do movimento #metoo (#eutambém, em português). A
campanha, com início nas redes sociais digitais, irrompeu as plataformas e atingiu
repercussão na mídia tradicional em todo o mundo todo. Mulheres vítimas de
crimes sexuais passaram a relatar seus casos particulares em plataformas de redes
sociais digitais. As revelações, lideradas por importantes figuras da cena artística e
cinematográfica de Hollywood, tiveram início logo depois de uma série de
denúncias contra o produtor Harvey Weinstein, acusado, condenado e preso por
abusar sexualmente de muitas mulheres, que foi “cancelado”.
Os atos de cancelamento em série se tornaram corriqueiros e receberam
contrapontos. Em julho de 2020, artistas, intelectuais e escritores de diversos
países divulgaram uma carta aberta em oposição a esses agrupamentos de vigília e 8
detração de indivíduos. “Uma carta sobre justiça e debate aberto”, apresentada na
Harper’s Magazine (2020), pretendia dar luz ao choque democrático do processo.
“[...] essa necessária prestação de contas também intensificou um novo conjunto de
atitudes morais e engajamentos políticos que tendem a enfraquecer nossas normas
de debate aberto e tolerância de diferenças, em favor da conformidade ideológica”,
dizia o documento. Três dias depois, uma nova carta, produzida por jornalistas,
escritores e ativistas contestando a própria publicação e o posicionamento dos
autores anteriores:

[...] signatários, muitos deles brancos, ricos e dotados de plataformas enormes,


argumentam que têm medo de ser silenciados, que a chamada cultura do cancelamento
está fora de controle e que eles temem por seus empregos e pelo livre intercâmbio de
ideias, ao mesmo tempo que se manifestam em uma das revistas de maior prestígio do país.
[...] passam por cima do xis da questão: a ironia da carta aberta é que em nenhum lugar
seus signatários mencionam como a gerações são silenciadas vozes marginalizadas no
jornalismo, no mundo acadêmico e no setor editorial (The Objective, 2020).

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

A questão é que ninguém está imune a esse fenômeno. A forma como os


debates sociais vêm se formando conta muito com a horizontalidade das
hierarquias possibilitadas pelos canais digitais que se tornam ferramentas para a
afirmação de políticas identitárias marginalizadas. Mas ideias de organização
política, ideológica e representativa mudam de lugar e a essência das
reivindicações lícitas e coerentes migra para um ambiente que nos parece mais
obscuro, contagiante e voluntarioso, onde a provocação à exposição soa
inquisitória. O fenômeno do cancelamento se vale de competências e recursos
fornecidos pelas plataformas digitais para enterrar identidades e expressões,
podendo levar à banalização do embate direto sem argumentação, possibilidade de
defesa ou direito de resposta.
Em tempos de conectividade digital com relações cada vez mais mediadas
por plataformas digitais, a subjetividade se forjará sob um discurso de uma
vigilância normalizadora? Ou seria uma produção de discurso cada vez mais
“controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (Foucault,
1996 [1971]: 55). Han (2017) atualiza a reflexão, indicando como um imperativo 9
essa disciplina:

A coação por exposição nos rouba, em última instância, nossa própria face; já não é possível
ser sua própria face. Desse modo, a absolutização do valor expositivo se expressa como
tirania da visibilidade. O problemático não é o aumento das imagens em si, mas a coação
icônica para tornar-se imagem. Tudo deve tornar-se visível; o imperativo da transparência
coloca em suspeita tudo o que não se submente à visibilidade. E é nisso que está seu poder
e sua violência (Han, 2017: 35).

Não estamos fazendo juízo de valores sobre os temas alvo da cultura do


cancelamento, tampouco sobre as manifestações. Nos ocorre, porém, neste
momento, refletir se esta cultura, embora de manifestação coletiva, não seria
forjada sobre a competitividade em um cenário de hiperindividualização. Um
concorrencialismo social (Laval y Dardot, 2020) valorado e validado por
indicadores numéricos de uma teoria de sucesso controverso, mas que na
contemporaneidade constituem o capital social mais do que valores morais e
éticos. É a pressão do desempenho (Han, 2015).

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Pesos e medidas

Nesta pesquisa exploratória, elegemos dois casos distintos de cancelamento


virtual. A história de J.K. Rowling, conhecida autora britânica da saga lúdica Harry
Potter. E o caso de Emmanuel Cafferty, de 47 anos e filho de migrantes mexicanos,
sem qualquer tipo de holofote, mas que sofreu consequências importantes na vida.
Ao criar um universo de magia que mexeu com a imaginação de várias gerações,
Rowling já vinha recebendo críticas por uma parcela dos fãs ao tratar de detalhes
das tramas vistos como “desnecessários”. Mas ela atraiu a ira de muitos fãs ao
redor do mundo por fazer, no Twitter, comentários considerados transfóbicos.
Mesmo sendo apoiadora de movimentos filantrópicos e causas sociais –inclusive
ligadas às defesas dos direitos dos LGBTQIA+–6 a escritora se viu diante do
“tribunal da internet” ao publicar mensagem em que defendia Maya Forstater, que
havia perdido o emprego por se posicionar contra leis que permitiam pessoas
trans se identificarem com outros gêneros. “Vista-se como quiser. Chame a si
mesmo do jeito que preferir. Durma com qualquer adulto que puder consentir e
quiser você. Viva a sua vida da melhor forma, em paz e em segurança. Mas tirar as 10
mulheres de seus empregos por dizerem que sexo biológico é algo real?” [tradução
nossa], proclamou em seu perfil na rede social digital (UOL, 2019).
Mesmo sob muitas críticas, Rowling manteve a posição e chegou a publicar
em seu perfil uma foto na qual usava uma camiseta escrita “Essa bruxa não
queima”, de uma marca que comercializa itens com estampas como “Ideologia
trans invisibiliza mulheres”, “Transativismo é misoginia” e “Mulheres trans são
homens” (Guia do Estudante, 2020). Não há registros de grandes prejuízos para a
autora.
Já o quadro enfrentado por Emmanuel Cafferty, um desconhecido
trabalhador de San Diego, na Califórnia, nos Estados Unidos, é diferente. Depois de
uma longa jornada de trabalho em inspeções na rede subterrânea de gás e
eletricidade, na volta para casa, com o braço para fora da caminhonete da empresa,
estalava as juntas dos dedos da mão esquerda fazendo com que o polegar
alongasse os demais em direção à palma da mão. Ao parar em um semáforo, um

6Movimento político e social de inclusão de pessoas de diversas orientações sexuais e identidades


de gênero: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais ou Transgêneros, Queers, Intersexos, Assexuais e
outros.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

homem ao lado em outro carro gesticulava e gritava: "você vai continuar fazendo
isso?" e, com o celular, tirou uma foto. Horas depois, receberia uma ligação de seu
chefe informando que tinha sido acusado de racismo.
A imagem, registrada pelo desconhecido, ganhou as redes sociais digitais.
Foi interpretada como aceno utilizado por supremacistas brancos e recebeu
enorme repercussão pelo momento (BBC News Brasil, 2019). Uma semana antes,
um homem negro e desarmado, George Floyd, tinha sido imobilizado e morto por
um policial branco em Minneapolis, estado de Minnesota, nos Estados Unidos. A
ocorrência gerou uma onda de protestos populares contra o preconceito racial no
país. Com a amplitude da história, o autor da mensagem apagou a foto. Em cinco
dias, Cafferty foi demitido do trabalho. "Foi assim que eu perdi o melhor emprego
que já tive na vida", disse em entrevista ao veículo BBC. Com baixa escolaridade, o
profissional recebia US$ 41 por hora, o que representava o dobro dos ganhos em
seu emprego anterior. Também perdeu plano de saúde e plano de aposentadoria.
Julgado e sentenciado pela internet e por milhões de pessoas que sequer conhecem
sua história, Cafferty aparentemente não consegue se recolocar no mercado de
trabalho. Existe atualmente uma petição on-line –ou abaixo-assinado virtual– 11
(change.org, 2021) para que a empresa devolva o emprego e limpe o nome do
profissional.

Considerações finais

Pretendemos, com este trabalho, fazer uma primeira aproximação com o tema
cultura do cancelamento, a partir da observação de casos que vêm acontecendo em
nível global e de dois casos que elegemos por terem sido protagonizados por
pessoas de diferentes representações sociais. Nesta abordagem foi possível
localizar alguns aspectos dessas interações: ameaça à identidade, confronto de
discursos, julgamento e sentenciamento em curto espaço de tempo, possibilidade
de descontextualização das narrativas, prejuízos econômicos e/ou morais.
Entendemos que o cancelamento mobiliza também o debate (profícuo ou não)
sobre temas recorrentes na contemporaneidade: liberdade de expressão, discurso
de ódio e lugar de fala.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Propulsionada por plataformas digitais e com critérios de seleção privados


e desconhecidos, a cultura do cancelamento não está só suspendendo indivíduos,
mas, antes de tudo, pode estar sufocando e invalidando o diálogo e o debate amplo,
democrático e inclusivo. Ainda não é possível aferir com precisão as implicações
desse modelo que vem se estabelecendo, mas, nessa batalha, o potencial de
consequências nocivas e da banalização de lutas sociais é real.
Transformar a identidade e expressão de sujeitos, atualmente,
independentemente de sua popularidade, resume-se a um único posicionamento.
Pouco importa se havia um contexto, tampouco há espaço para a discussão sobre
se tratar de um erro ocasional. Uma frase mal colocada ou suscetível a todo tipo de
interpretação pode colocar em condição de impedido qualquer pessoa.
É plausível, ainda, questionar até que ponto podemos definir essas
demonstrações como uma cultura. Se considerarmos que cultura remete à reflexão
a partir de um tempo e contexto, as atitudes de quem adere a essas manifestações
não parecem localizadas e, em muitos casos, não responde por uma racionalidade e
se restringe a uma bolha específica de sociabilidade digital. Também é complexo
demais determinar seu real alcance. Rastrear o início e mensurar especificamente 12
o tamanho de um “cancelamento” nem sempre é viável, mesmo que consequências
psicológicas e financeiras fiquem nítidas na vida do perseguido após o episódio.
No caso de sujeitos ditos notáveis, não há, até o momento, nenhuma
comprovação –nem mesmo científica– que muitos dos abalados tenham perdido,
de fato, reconhecimento ou respeito públicos para as grandes audiências que
atingem. Os efeitos costumam ficar limitados a um ambiente mais reservado.
Dados, por exemplo, sobre perda de contratos, prejuízos financeiros, em geral, são
apenas comunicados, mas nunca se tem a certeza da oficialização da atitude ou do
dano. Isto nos leva a questionar até que ponto declarar um indivíduo como
cancelado ou incentivar o boicote a esse sujeito verdadeiramente surte algum tipo
de efeito real. Curiosamente, as consequências do cancelamento tendem a ser
privadas e não há também uma continuidade da avaliação sobre os efeitos do
processo.
Para além disso, se a proposta é cancelar o sujeito, portanto levá-lo ao
ostracismo público ou exílio, qual é o resultado quando há um direcionamento de
massas e hordas coletivas opositoras, jogando holofotes sobre o indivíduo?

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Iniciativas do gênero podem e costumam até mesmo ampliar a visibilidade não só


do indivíduo, mas do pensamento que ele representa.
É preciso separar ou iniciar um processo de classificação do cancelamento?
A garantia de liberdade de expressão muitas vezes se confunde com o direito de
atacar lutas identitárias e por direitos humanos e representatividade. O debate
público, liberal, progressista é sufocado porque os indivíduos, sentindo-se
compelidos, hesitam entrar nas conversas por temerem ser cancelados por suas
opiniões. Em busca de aceitação podem também simplesmente substituir suas
próprias crenças, convicções e verdades por teorias e concepções do outro e
agrupamentos em geral. Talvez, uma saída esteja em ampliar a análise sobre essas
manifestações, para e por fora das redes digitais.

Referências bibliográficas

Aranha, G. (2014). Flaming e cyberbullying: o lado negro das novas mídias. C-


Legenda, núm. 31, pp. 122-133. Brasil: PPGCA, Universidade Federal Fluminense.
En línea: https://periodicos.uff.br/ciberlegenda/article/view/36968 13

BBC News Brasil. (2019). “Cultura do cancelamento”: o que é “sinal de OK” que fez
homem perder emprego. British Broadcasting Corporation. En línea:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53554306 Consultado en marzo
2021.

Castells, M. (2013). Redes de indignação e esperança. Movimentos sociais na era da


Internet. São Paulo: Zahar.

change.org. (2021). Reinstate Emmanuel Caffertys job @ SDGE. En línea:


https://www.change.org/p/sdge-reinstate-emmanuel-caffertys-job-sdge.
Consultado en marzo 2021.

Dardot, P. y Laval, C. (2017). A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo


Editorial.

De Certeau, M. (2014 [1979]). A invenção do cotidiano I: as artes do fazer.


Petrópolis: Vozes.

Debert, G. G. (2004). A reinvenção da velhice: socialização e processos de


reprivatização do envelhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

Debord, G. (2007 [1967]). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Dicionário Online de Português. (2021). Significado de Cancelado. En línea:


https://www.dicio.com.br/cancelado/ Consultado en marzo 2021.

Foucault, M. (1996 [1971]). A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Edições Loyola.

Guia do Estudante. (2021). Cancelamento: fãs não sabem como lidar com a autora
de Harry Potter. Brasil: Grupo Abril Mídia. En línea:
https://guiadoestudante.abril.com.br/atualidades/cultura-de-cancelamento-j-k-
rowlling/ Consultado en marzo 2021.

Han, B. C. (2015). A sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes.

Han, B. C. (2017). Sociedade da transparência. Petrópolis: Editora Vozes.

Harper’s Magazine. (2021). A letter on justice and open debate. Estados Unidos:
Harper’s Foundation. En línea: https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-
debate Consultado en marzo 2021.

Hooks, A. M. (2020). Cancel culture: posthuman hauntologies in digital rhetoric and


the latent values of virtual community networks. Tesis de Maestría en Artes,
Facultad de Artes y Ciencias, Universidad de Tennessee en Chattanooga. Estados
Unidos. En línea: https://scholar.utc.edu/theses/669/

Lanier, J. (2018). Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Rio de
Janeiro: Intrínseca. 14

Le Bon, G. (2016). Psicologia das multidões. São Paulo: WMF Martins Fontes.

Macquarie Dictionary. (2019). Cultura do cancelamento. Australia. En línea:


https://www.macquariedictionary.com.au/resources/view/word/of/the/year/20
19 Consultado en marzo 2021.

Norris, P. (2020). Closed minds? Is a “cancel culture” stifling academic freedom and
intellectual debate in political science? HKS Working Paper, núm. RWP20-025.
Estados Unidos: Kennedy School of Government, Harvard University. En línea:
http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3671026 Consultado en marzo 2021.

O’Sullivan, P. y Flanagin, A. (2003). Reconceptualizing “flaming” and other


problematic messages. New Media & Society, vol. 5(1), pp. 69-94. Estados Unidos:
Sage Journals.

Pariser, E. (2012). O filtro invisível: O que a internet está escondendo de você. Rio de
Janeiro: Zahar.

Preciado, P. (2018 [2008]). Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era


farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições.

Ronson, J. (2018). Humilhado: Como a era da internet mudou o julgamento público.


São Paulo: Editora Best Seller / Grupo Editorial Record.

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/
#ENSAYANDO

Sibilia, P. (2016). O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.

The Objective. (2020). A more specific letter on justice and open debate. Estados
Unidos. En línea: https://theobjective.substack.com/p/a-more-specific-letter-on-
justice Consultado en marzo 2021.

We Are Social and Hootsuite. (2021). Relatório anual dos mercados de digital,
mobilidade e redes sociais digitais. En línea: https://wearesocial.com/digital-2020
Consultado en marzo 2021.

UOL. (2019). J. K. Rowling é acusada de transfobia após se posicionar sobre polêmica.


En línea: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2019/12/19/j-k-
rowling-e-acusada-de-transfobia-apos-se-posicionar-sobre-polemica.htm
Consultado en marzo 2021.

Ziccardi, G. (2016). L'odio online. Italia: Raffaello Cortina.

Sobre les autores

TERESA MARY PIRES DE CASTRO MELO es docente asociada del Departamento de


Ciências Humanas e Educação (DCHE) y del Programa de Pós-Graduação em 15

Educação de la Universidade Federal de São Carlos (PPGECH). Es Mestre y Doctora


en Ciencias de la Comunicación por la Universidade de São Paulo. Dirige el Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Tecnologia, Cultura e Sociedade (NEPeTeCS / UFSCAR).

EDUARDO GOMES VASQUES es Mestrando del Programa de Pós-Graduação em Estudos


da Condição Humana de la Universidade Federal de São Carlos
(PPGECH/CCHB/UFSCAR), Campus Sorocaba. Pesquisador del Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Tecnologia, Cultura e Sociedade de la Universidade Federal de São
Carlos (NEPeTeCS / UFSCAR).

ETCÉTERA - Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH


ISSN 2618-4281 / Nº 8 / Año 2021 / revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/

Você também pode gostar