Artigo Brasileiro Cultura Do Cancelamento
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#ENSAYANDO
CORRECCIÓN LITERARIA
Conceição Coutinho Melo
Copyright © 2018 Etcétera. Revista del Área de Ciencias Sociales del CIFFyH está bajo una
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#ENSAYANDO
Resumo
No fim do ano de 2019 o termo “cultura do cancelamento” foi eleito como o mais relevante
pelo Dicionário Macquarie, que anualmente seleciona palavras e expressões que definem,
revelam ou evidenciam o comportamento humano no período, dando mais fôlego e vigor
ao objeto. Este artigo tem como objetivo apresentar uma primeira aproximação em torno
do que é hoje denominada “cultura do cancelamento”. O fenômeno, com esta denominação,
é relativamente novo nas redes sociais digitais, tem afetado especialmente figuras públicas
na contemporaneidade e começa a atingir a rotina de cidadãos comuns. Este trabalho
utilizou consultas a uma base teórica que dão um aporte a uma observação especialmente
de dois casos, além de dados coletados em plataformas de redes sociais digitais e veículos
de imprensa. Vamos analisar, nesta pesquisa exploratória, dois casos recentes de J.K.
Rowling, autora inglesa consagrada da saga do jovem bruxo Harry Potter e a história de
Emmanuel Cafferty, um simples operário filho de migrantes mexicanos residente na
Califórnia, Estados Unidos, tentando identificar características próprias.
Palavras-chave
Cultura do Cancelamento, Mídias Digitais, Redes Sociais Digitais
Abstract
At the end of 2019, the term “cancellation culture” was chosen as the most relevant by the
Macquarie Dictionary, which annually selects words and expressions that define, reveal or
evidence human behavior in the period, giving the object more breath and vigor. This
article aims to present a first approach around what is today called “cancellation culture”. 2
The phenomenon, with that denomination, which is relatively new in digital social
networks, has especially affected public figures in the contemporary world and is
beginning to affect the routine of ordinary citizens. This work used consultations to a
theoretical basis that contribute to an observation especially of two cases, in addition to
data collected on digital social media platforms and press vehicles. We will analyze, in this
exploratory research, two recent cases of J.K. Rowling, English author consecrated in the
saga of the young wizard Harry Potter and the story of Emmanuel Cafferty, a simple
worker son of Mexican migrants residing in California, United States, trying to identify his
own characteristics.
Keywords
Cancellation Culture, Digital Media, Digital Social Networks
Introdução
(91%). Já no Brasil, estes números chegam a 160 milhões de usuários da web (75%
da população) e 150 milhões de usuários de redes sociais digitais, 70,3% da
população (We Are Social and Hootsuite, 2021).
Para além dos números, essa presença nas redes não se dá em um patamar
“virtual”, mas, para De Certeau (2014 [1979]), passa a ser parte da cultura do
cotidiano. O historiador postula que o consumidor não pode ser qualificado a
partir dos produtos que consome, mas que entre o produto e o consumidor há um
distanciamento que se define pelo uso que este faz daquele (p. 90). E esse novo
modo de viver que passa a fazer parte da nossa cultura do cotidiano é fundamental
na arena pública (agora expandida em tempo e espaço). Tal circunstância traz ao
nosso cotidiano exatamente as potencialidades e misérias da condição humana,
assim como nas relações pré-digitais. Dentre as misérias, podemos elencar a
criação de um ambiente de intolerância e radicalismos, insultos, intimidação e até
mesmo assédio. É sobre um aspecto dessa sociabilização em rede que vamos
elaborar uma primeira aproximação do tema “cancelamento”.
4
Comportamentos à flor da pele
Uma visão binária do mundo é um terreno fértil para o ativismo que pode se
configurar como inquisitorial, desconectado com a luta por equidade e inclusão. Ao
contrário, é a popularização do famoso “boicote” que, no diagnóstico da época que
vivemos, vem sendo rotulado de "cultura do cancelamento". A tentativa de ajustar
condutas inadequadas por supostas transgressões sociais alimenta esse fenômeno.
Dos julgamentos abertos em espaços físicos e tempo delimitados, passamos a
enfrentar um novo tipo de foro, formado por juízos desterritorializados e
atemporais. São arbítrios formatados a partir de redes sociais digitais mediadoras
de discurso e conduta. Atitudes distantes do potencial das redes de indignação e
esperança (Castells, 2012) como meios de transformação social e reivindicações
conectadas com as preocupações dos indivíduos na experiência humana.
A lista dos "cancelados" (Dicionário Online de Português, 2021) isto é, de
sujeitos populares submetidos ao constrangimento público e à pressão coletiva nos
meios digitais parece crescer a cada ano. Há uma tendência pela exposição massiva
ou representatividade social que se concentre em símbolos notáveis, em suas
respectivas áreas. Um ponto de inflexão é que os casos de humilhações públicas
vêm atingindo também pessoas sem qualquer notabilização. 5
É possível analisar os eventos a partir da ótica da dissonância cognitiva, da
desindividualização dos sujeitos ou até mesmo do aspecto bastante contestado da
loucura coletiva na psicologia das multidões (Le Bon, 1895). O que muda, porém,
são os termos e as condições sobre as quais a exploração acontece, bem como as
formas de sua definição. Ainda que o conceito de flaming (Aranha, 2011)
expandido por O’Sullivan e Flanagin (2003), descreva as discussões acaloradas na
web –para o primeiro autor– e represente interações hostis de todos os tipos
findando em desrespeitos morais parciais com o objetivo de promover
linchamento pessoal para os demais, há uma zona cinzenta sobre uma definição
conceitual precisa. Há até pontos de interseção com o já bastante retratado
bullying ou cyberbullying numa versão atualizada nomeada de neocyberbullyng.
Essas ondas de incentivo à suspensão dos indivíduos vêm se consolidando e
estão produzindo resultados inquietantes, com efeitos nos planos pessoais,
emocionais e profissionais. Discordância e troca embasadas em argumentações
tomaram outra intensidade, criando possibilidades distintas de análise, sobre o
A “cultura do cancelamento”
Muitos termos novos (ou antigos ressignificados) têm sido adotados para se referir
a fenômenos do tipo na internet. Por que haveria a necessidade de criação de um
conceito tão forte como o de “cultura do cancelamento”? No fim do ano de 2019 a
expressão “cultura do cancelamento” foi eleita a mais relevante pelo Dicionário
Macquarie, que anualmente seleciona palavras e expressões que definem, revelam
ou evidenciam o comportamento humano no período. Além da consulta a
especialistas como linguistas, pesquisadores e teóricos de diversos campos, a
escolha também passa pelo crivo popular, por meio de votação aberta. O dicionário
aponta a cultura do cancelamento como “um termo que captura um aspecto
importante do estilo de vida deste ano. Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu
próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa” 6
(Macquarie Dictionary, 2019).1
Austin Michael Hooks (2020) remonta à exibição pública dos sofistas
(epideixes), com a finalidade de se tornarem conhecidos, propagarem suas ideias e
angariarem novos alunos. Essa prática, atualizada com as ferramentas digitais,
torna expostas as figuras públicas (na maioria das vezes), alvos de interações com
outros usuários da internet. Diferente do “doxing”, que necessita de uma pesquisa
de dados privados, esta exibição voluntária e sua reação “é apenas uma extensão
digital dos processos que usamos para atribuir valor e recompensar/punir certos
comportamentos” (p. 14).2 O autor cita Richards (1997) que considera esses
espaços “Um campo de batalha para sistemas de valores culturais, políticos e
científicos concorrentes” (Hooks, 2020: 14).3
1 Traducción libre del original: “A term that captures an important aspect of the past year's
Zeitgeist...an attitude which is so pervasive that it now has a name, society’s cancel culture has
become, for better or worse, a powerful force”.
2 Traducción libre del original: “It is merely a digital extension of the processes we use to assign
systems”.
4 Traducción libre del original: “Heated battles about the so-called ‘cancel culture’ on college
campuses have been intensified by recent controversies surrounding issues of racism and ethnicity,
sexual harassment and misogyny, non-binary gender identities and transphobia”.
5 Traducción libre del original: “The concept of a ‘cancel culture’ can be defined broadly as attempts
to ostracize someone for violating social norms. The notion has also been understood more
narrowly as ‘the practice of withdrawing support for (or canceling) public figures and companies
after they have done or said something considered objectionable or offensive’. This practice is
analogous to the tactic of consumer-boycotts withdrawing support for perceived unethical brands
and corporations, a common form of political activism. The cancelling strategy typically uses social
media to shame individuals with the intention of exerting penalties with different degrees of
severity, ranging from limiting access to public platforms, damaging reputations, and ending
careers to instigating legal prosecutions”.
A coação por exposição nos rouba, em última instância, nossa própria face; já não é possível
ser sua própria face. Desse modo, a absolutização do valor expositivo se expressa como
tirania da visibilidade. O problemático não é o aumento das imagens em si, mas a coação
icônica para tornar-se imagem. Tudo deve tornar-se visível; o imperativo da transparência
coloca em suspeita tudo o que não se submente à visibilidade. E é nisso que está seu poder
e sua violência (Han, 2017: 35).
Pesos e medidas
homem ao lado em outro carro gesticulava e gritava: "você vai continuar fazendo
isso?" e, com o celular, tirou uma foto. Horas depois, receberia uma ligação de seu
chefe informando que tinha sido acusado de racismo.
A imagem, registrada pelo desconhecido, ganhou as redes sociais digitais.
Foi interpretada como aceno utilizado por supremacistas brancos e recebeu
enorme repercussão pelo momento (BBC News Brasil, 2019). Uma semana antes,
um homem negro e desarmado, George Floyd, tinha sido imobilizado e morto por
um policial branco em Minneapolis, estado de Minnesota, nos Estados Unidos. A
ocorrência gerou uma onda de protestos populares contra o preconceito racial no
país. Com a amplitude da história, o autor da mensagem apagou a foto. Em cinco
dias, Cafferty foi demitido do trabalho. "Foi assim que eu perdi o melhor emprego
que já tive na vida", disse em entrevista ao veículo BBC. Com baixa escolaridade, o
profissional recebia US$ 41 por hora, o que representava o dobro dos ganhos em
seu emprego anterior. Também perdeu plano de saúde e plano de aposentadoria.
Julgado e sentenciado pela internet e por milhões de pessoas que sequer conhecem
sua história, Cafferty aparentemente não consegue se recolocar no mercado de
trabalho. Existe atualmente uma petição on-line –ou abaixo-assinado virtual– 11
(change.org, 2021) para que a empresa devolva o emprego e limpe o nome do
profissional.
Considerações finais
Pretendemos, com este trabalho, fazer uma primeira aproximação com o tema
cultura do cancelamento, a partir da observação de casos que vêm acontecendo em
nível global e de dois casos que elegemos por terem sido protagonizados por
pessoas de diferentes representações sociais. Nesta abordagem foi possível
localizar alguns aspectos dessas interações: ameaça à identidade, confronto de
discursos, julgamento e sentenciamento em curto espaço de tempo, possibilidade
de descontextualização das narrativas, prejuízos econômicos e/ou morais.
Entendemos que o cancelamento mobiliza também o debate (profícuo ou não)
sobre temas recorrentes na contemporaneidade: liberdade de expressão, discurso
de ódio e lugar de fala.
Referências bibliográficas
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