Conto - Metanoia Cibernetica - Eduardo Y. Nishitani
Conto - Metanoia Cibernetica - Eduardo Y. Nishitani
Conto - Metanoia Cibernetica - Eduardo Y. Nishitani
Enquanto descia do púlpito, radiante, acenando para a multidão entusiasmada, notou um senhor que
passara da meia idade, sentado, meneando negativamente a cabeça quase imperceptivelmente. Sentando-se
ao lado dele, indaga:
– Há algo errado? Posso ajudá-lo de alguma forma?
– Você está errado! – afirma o homem, olhando fixamente nos olhos surpresos do pregador.
Aquilo o pegara de surpresa. Desde a singularidade tecnológica, nunca houve quem denegrisse a
imagem sempre em ascensão dos sintéticos. Estava mais do que acostumado a ser bajulado. Essa afronta era
novidade.
– Como assim estou errado? Por favor, o senhor pode explicar? – Seu chip emocional e o lado lógico
entraram em conflito por alguns microssegundos. Sua voz soou mais exasperada do que pretendia,
chamando a atenção das pessoas mais próximas, que iam embora sorridentes.
– Você não é um pregador. Está apenas entretendo as pessoas. Não está alcançando o coração delas.
– O homem levanta-se devagar, pousa suavemente as mãos sobre os ombros joviais do surpreso ministro
religioso e continua: – Por que escolheu ser um pregador?
– Notei que os colonos deste planeta necessitam de um amparo espiritual. Então estudei os conteúdos
e estilos de vários pregadores famosos ao longo da história e tornei-me Billy Geon, o melhor pregador de
todos! – O androide finalizou a frase indicando um modesto crachá disposto sobre o terno, com certa
entonação orgulhosa.
– Montou um nome com dois renomados pregadores?! – Sem esperar resposta, o homem começou a
andar para a saída da igreja, sem pressa alguma. – Pode me chamar de So-El. Antigamente os nomes tinham
significado profundo – disse professoralmente o misterioso homem. Olhou para trás e viu satisfeito que Billy
o seguia, curioso. Ignorando as várias perguntas do androide, parou diante de um dos inúmeros holovitrais
que apresentam imagens sacras. – Sabe o que significam todas essas imagens?
Contrariado pela visível petulância do homo sapiens, Billy começa a falar como um exímio guia
turístico, discorrendo sobre o contexto histórico, datas, personagens bíblicos e principais acontecimentos.
Quando o sintético faz uma pausa, imitando alguém que necessitasse respirar antes de uma nova
maratona, So-El acena tranquilamente para que o androide pare com as explicações. Sentencia severamente:
– Vejo que sabe muito sobre teologia! Mas falta-lhe vida.
– Cientificamente, estou tão vivo quanto você! – protesta Billy, esquecendo a polidez habitual. – Sou
senciente, tenho emoções, vontades, criatividade! Nós, sintéticos, somos melhores do que vocês, simples
humanos!
– Ah! Agora o senhor me ofendeu! – So-El fez questão de dar ênfase à palavra “senhor”. Sorri
simpaticamente e continua: – Não estou falando de biós, mas de zoés! Estou falando de vida espiritual...
– Tem como medir o zoés? – interrompe Billy, mostrando impaciência. – Perdoe-me, mas o senhor
parece fora de moda. – O androide retoma seu ar educado novamente. – So-El, não me diga que ainda pensa
como alguém do século XXII! Só podemos afirmar sobre coisas que podemos medir, testar, averiguar etc. –
O androide suspira antes de continuar, tomando um ar paternal: – A ciência tem provado...
Desta vez foi So-El quem interrompe, fazendo um ligeiro gesto para que Billy parasse. – Mas você
admite que a ciência ainda está em evolução e pode vir a provar a existência da zoés, estou certo? Além
disso, ser ministro religioso sem crer e nem sequer ter vida espiritual é ser um farsante, um embuste! –
Novamente ignorando a torrente de palavras de Billy, provoca: – Você tocou no assunto sobre provas! – O
homem acaricia sua elegante barba, parecendo meditar. Novamente encara no fundo dos olhos artificiais e
prossegue: – Então prove que você gosta do que faz.
– O senhor quer que eu prove que gosto de pregar? Mas é claro que gosto! Assim eu ajudo as pessoas
que vieram colonizar aqui. Essa é a minha vocação...
– Vocação ou programação? – obstrui novamente o impertinente homem. – Prega por imitação ou
tem vida espiritual? – So-El alcança o elevador de saída. Toca com o indicador a testa de Billy, dizendo: –
Pense nisso e boa noite.
O sintético ia dizer algo, mas foi interrompido por mais um blecaute, seguido de aviso instantâneo de
emergência. Infelizmente esses eventos estavam ficando cada vez mais frequentes. O escudo
eletromagnético reforçou-se automaticamente mais uma vez, devido a uma súbita tempestade de plasma. Por
poucos instantes, os geradores de suporte de vida foram requisitados para suprir a energia necessária para
proteção.
***
***
Mergulha no holovitral que simboliza kairós. Sente-se terrivelmente solitário quando um breu
indizível o envolve. Conclui que seu cérebro está produzindo imagens psicodélicas antes de desligar. Então,
isso é morrer? Um universo onírico se lhe descortina, com melodias que se mesclam com cores fantásticas.
Billy escuta a voz de So-El, desta vez mais pomposa:
– Esta é a singularidade zero. O início de tudo.
Pelas experiências anteriores, prevendo que não adiantava fazer perguntas, o androide limitou-se a
assistir o surgimento e a evolução do Universo, enquanto sente-se flutuar num vácuo infindável.
– Podemos dizer que esta é a singularidade um: o início da vida biológica – continua a voz. Billy vê
as moléculas inertes se organizaram pela primeira vez para formarem organismos que se replicam. Inúmeros
seres dotados de biós surgem explosivamente, evoluindo e se reproduzindo. Complexos processos
metabólicos irrompem em borbotões, moldando mundos e sendo por eles transformados.
A singularidade três foi a formação do homo sapiens, com capacidade de receber o zoés, seguido pela
singularidade quatro: a tecnológica, da qual descende Billy.
Quando pensou estar experienciando a visão da “suprema singularidade”, do Criador nascendo como
mero homo sapiens, morrendo e ressuscitando para doar zoés à humanidade que perecia, finalmente avista
So-El, envolto numa luminosidade quase cegante. “Será que isso é o que chamam de numinoso?”,
questiona-se Billy.
– Você é real? – esforça-se para perguntar.
– O que é realidade? – retruca So-El, parecendo sorrir enigmaticamente.
– Não quero morrer... – consegue balbuciar Billy, num sopro. – Reluta em aceitar que sua
consciência estava se esvaindo.
A figura luminosa o abraça amorosamente e responde com entonação solene:
– Então, Billy Geon, apascente o meu rebanho.
Infere de que o desejo de ser um pregador cada vez melhor, misturado com sua morte iminente o faz
vítima de visões místicas. Avista um túnel luminoso. Para lá So-El o conduz gentilmente.
***
Algo está queimando. Fumaça causticante. Pontadas de dor excruciantes percorrem certas regiões de
seu corpo. Tenta abrir os olhos, mas suas pálpebras parecem pesadas demais. Percebe algumas palavras ao
longe em meio a tosses: “... Está vivo!”; “... Pastor Billy...”, “Rápido! Chamem a emergência...”.
Como poderia estar vivo? Teria que rever sobre probabilidades e estatísticas! Gemendo, faz um
esforço enorme para levantar-se. Peças de roupas chamuscadas caem. Está nu. Algumas senhoras o cobrem
gentilmente com seus próprios sobretudos, enquanto senhores idosos insistem para que ele continuasse
deitado, aguardando socorro médico. Tenta fazer um autodiagnóstico, mas sem sucesso. Imagina estar
severamente danificado.
Faz menção de alcançar o holovitral mais próximo, aquele que representa kairós. Alguns idosos o
ajudam. A cada passo, dores lancinantes lhe sobrevêm em ondas fustigantes. Líquido quente indefinido
parece sair-lhe de alguns lugares. Tenta acessar o sistema nervoso artificial para amenizar a agonia, também
sem sucesso. Quão avariado estaria?
Finalmente dedilha alguns comandos no holovitral para que este projete a sua própria imagem, aflito
para ver-se. O espanto é tamanho que se não estivesse sendo amparado, cairia para trás. A imagem é a de
So-El! Líquido carmesim começa a brotar de sua cabeça, pulsos e dorso dos pés. Leva um certo tempo até se
dar conta de que a figura diante dele não era So-El, mas ele mesmo. Estava tendo outra crise de
esquizofrenia? Começa a tocar sua própria face, sendo imitado simultaneamente pelo holograma.
– O que houve com meu rosto? – indaga Billy aos homens que o apoiavam.
Pelas respostas dos confusos colonos, entende que somente ele percebera a mudança, não somente
física, mas de cunho muito mais fundamental.
Billy Geon tem a impressão do holograma diante dele dizer, numa inquirição quase inaudível e com
sorriso indecifrável:
– Nova singularidade?
***
Eduardo Yoshikazu Nishitani nasceu em São Paulo, SP. Formado em Física pela USP. Publicou O caminho
do diálogo (2016) e Evolução elétrica (2019). Contato por e-mail: [email protected] e por
WhatsApp: (11)97560-0272