Capítulo 1 - Princípios Gerais de Ação de Psicofarmacos
Capítulo 1 - Princípios Gerais de Ação de Psicofarmacos
Capítulo 1 - Princípios Gerais de Ação de Psicofarmacos
PRINCÍPIOS GERAIS
DA AÇÃO DE
PSICOFÁRMACOS
CLARICE GORENSTEIN
TANIA MARCOURAKIS
ABSORÇÃO
Todos os processos que ocorrem desde a administração de uma droga até sua
eliminação envolvem a passagem através de barreiras representadas pelas mem-
branas celulares. A absorção refere-se à passagem da droga do seu sítio de aplica-
ção para a corrente sangüínea.
Os principais mecanismos por meio dos quais os psicofármacos atravessam
membranas são difusão aquosa e difusão lipídica. A difusão aquosa consiste na
passagem através dos poros aquosos, o que ocorre principalmente em função do
tamanho da molécula. As moléculas grandes difundem-se mais lentamente do
que as pequenas. Como o peso molecular da maioria das drogas não varia muito,
em geral é a passagem pelas barreiras não-aquosas que determina a velocidade
de absorção.1,2
Para que ocorra a difusão lipídica, é necessário que a molécula seja lipossolúvel
e esteja na forma não-ionizada. Como muitas drogas são ácidos ou bases fracas
(os psicotrópicos em geral são bases fracas), elas se apresentam sob duas formas
em equilíbrio dinâmico: não-dissociada (ou não-ionizada), e dissociada (ou ioni-
zada). Para a maioria das drogas, a lipossolubilidade da fração não-dissociada é
suficiente para permitir considerável absorção.
A proporção de moléculas que se encontra na forma não-ionizada, ou seja, o
grau de dissociação, depende das propriedades físico-químicas da droga (que
determinam seu pKa) e do pH do meio em que está dissolvida. Em conseqüência
dessas propriedades, sabe-se que drogas de caráter ácido são mais bem absorvidas
no estômago, enquanto as básicas tendem a ser absorvidas no intestino.3
Destaca-se, entre os vários fatores que modificam a velocidade de absorção,
a influência da via de administração. A via endovenosa, embora possibilite um
melhor controle da quantidade administrada e seja, sem dúvida, a via mais rápida
para a obtenção de efeitos, apresenta risco de efeitos adversos ou de superdosa-
gem relativa muito maior do que as demais vias. Efeitos tóxicos autonômicos e
cardíacos podem ser observados com drogas como clorpromazina ou amitriptilina,
cuja administração endovenosa deve ser feita com cautela.2
A via intramuscular, utilizada para sedação de pacientes agitados e para admi-
nistração de neurolépticos de ação prolongada, permite a administração de volu-
mes moderados de soluções, veículos oleosos (p. ex., enantato e decanoato de
flufenazina) e soluções irritantes, o que já não é possível com injeções subcutâneas.
Por outro lado, o diazepam administrado por via intramuscular resulta em absorção
lenta e errática, com picos de concentração plasmática inferiores aos obtidos
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
14
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
Figura 1.1
Etapas da droga no organismo após a administração.
DISTRIBUIÇÃO
A etapa seguinte à absorção é geralmente a distribuição da droga para os diversos
tecidos. A velocidade de distribuição depende do grau de perfusão do órgão. O
equilíbrio de distribuição é atingido mais facilmente nos tecidos que recebem
grande circulação de fluidos (coração, cérebro, fígado) e mais lentamente nos
órgãos pouco irrigados (ossos, unhas, dentes e gorduras).3
A água corpórea, que corresponde a aproximadamente 60% do peso do
indivíduo, distribui-se por dois compartimentos funcionais principais: o líquido
intracelular (40%) e o líquido extracelular (20%, sendo 15% intersticial e 5%
vascular). O volume de distribuição aparente (Vd) de uma droga é o volume de
fluido no qual ela está aparentemente distribuída. Portanto, a distribuição de
uma droga depende do compartimento pelo qual ela se distribui. De um modo
geral, as drogas que se distribuem pelo líquido extracelular e que exercem efeitos
em membranas têm início de ação mais rápido do que aquelas que devem penetrar
na célula para atuar. Dado que são lipossolúveis, a maioria dos psicofármacos
distribui-se pela água corpórea total.2
A distribuição também é regulada pela ligação da droga às proteínas plasmá-
ticas (principalmente albumina), o que torna a droga biologicamente inativa. A
competição entre dois fármacos pela ligação às proteínas plasmáticas leva a um
aumento de suas porções livres, o que pode determinar o aumento do efeito
terapêutico e tóxico ou a ineficácia terapêutica.4
15
A droga pode também se acumular no tecido adiposo. Este constitui, aproxima-
damente, 15% do peso corpóreo, e seu volume é de cerca de 25% do volume
de água total, representando, portanto, um grande compartimento não-polar
do organismo. Uma molécula não-polar, com alto coeficiente de partição óleo/
água, tende a acumular-se consideravelmente no tecido adiposo, não exercendo
ação farmacológica. O acúmulo em um determinado tecido pode prolongar a
permanência da droga no organismo, como ocorre, por exemplo, após administra-
ção endovenosa de tiopental, que se acumula no tecido adiposo e sofre redistri-
buição.2
BARREIRA HEMATENCEFÁLICA
Embora o cérebro represente apenas 2% do peso corpóreo de um indivíduo, ele
recebe aproximadamente 16% do débito cardíaco. Devido ao seu alto suprimento
sangüíneo, esperar-se-ia que as drogas passassem rapidamente da corrente circu-
latória para o espaço extracelular cerebral, mas isso não ocorre devido à restrição
imposta pela barreira hematencefálica. Embora não verdadeiramente definida
do ponto de vista anatômico, essa barreira caracteriza-se pela justaposição das
células do endotélio dos capilares cerebrais. É provável que o arranjo característi-
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
co das células pericapilares da glia também contribua para a lenta difusão dos
ácidos e das bases orgânicas para o SNC. Além disso, a vascularização das diversas
áreas cerebrais não é uniforme (p. ex., o córtex é mais vascularizado que a substân-
cia branca), e as drogas entram mais rapidamente nas áreas mais vascularizadas.2
Além da barreira hematencefálica, existe uma via indireta de passagem, que
é a barreira hematoliquórica, constituída por células epiteliais do plexo coróide,
que regulam o acesso de drogas ao líquido cerebrospinal.
Os principais fatores que determinam a passagem das drogas pela barreira
hematencefálica são semelhantes aos que interferem na sua passagem através
do endotélio gastrintestinal para o sangue, ou seja, a lipossolubilidade, o grau de
ionização e a ligação a proteínas plasmáticas.
Quanto maior for a lipossolubilidade, mais facilmente a droga penetra no
cérebro. A maioria dos psicofármacos são aminas secundárias ou terciárias que,
sendo lipossolúveis, não encontram dificuldade na passagem para o cérebro.
Para aumentar as concentrações cerebrais de substâncias com baixa lipossolubi-
lidade, como a dopamina e a serotonina, é necessária a administração de seus
precursores, L-dopa e L-triptofano, respectivamente, que atravessam a barreira.
No caso de drogas polares, a velocidade de difusão para o SNC é determinada
pela solubilidade da forma não-iônica.5
Em relação ao grau de ionização, sabe-se que apenas moléculas neutras são
capazes de atravessar barreiras lipídicas e que, portanto, o transporte será tanto
mais rápido quanto maior for a concentração de moléculas. Já a passagem dos
íons é determinada pelo seu tamanho: íons pequenos, como o lítio, são capazes
de atravessar os poros das membranas, enquanto íons maiores dependem da
presença de algum tipo de transporte ativo. Substâncias altamente ionizadas,
tais como as aminas quaternárias, são geralmente incapazes de penetrar no SNC.
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A ligação a proteínas plasmáticas limita a concentração da droga nos tecidos
e no sítio de ação uma vez que apenas a fração não-ligada tem a capacidade de
atravessar as membranas. Drogas altamente ligadas a proteínas plasmáticas ten-
dem a penetrar no cérebro e no líquido cerebrospinal mais lentamente. A maioria
dos psicofármacos apresenta alta taxa de ligação às proteínas plasmáticas e teci-
duais, e, portanto, pequenas alterações de sua fração livre, como em estados
carenciais, devidos à desnutrição, por exemplo, ou no envelhecimento, podem
levar à intensificação de seu efeito farmacológico.5
Como o líquido cerebrospinal normalmente não contém proteínas, toda droga
aí presente encontra-se livre. Por outro lado, o cérebro é rico em proteínas, poden-
do haver intensa ligação protéica. Pequenas modificações na taxa de ligação
podem levar a alterações importantes nas concentrações de droga biologicamente
ativa em seus locais de ação.
Vale ressaltar que recentemente foi identificada uma série de proteínas trans-
portadoras de moléculas expressas nas membranas celulares, que tem conferido
proteção ou toxicidade dependendo de sua localização (células intestinais, renais,
hepáticas, placenta e endotélio cerebral) e do agente envolvido. Um exemplo é
a MDR (multidrug resistant proteins) ou glicoproteína P, cuja superexpressão,
geneticamente definida, na barreira hematencefálica pode ser um dos mecanismos
que explica a resistência ao tratamento antiepiléptico em alguns pacientes.1
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pela degradação oxidativa de dopamina, noradrenalina, serotonina e tiramina,
existindo em vários órgãos e tecidos, como cérebro, fígado, rins, coração e pla-
quetas sangüíneas. Já o álcool etílico é oxidado, transformando-se em acetaldeído,
principalmente pela álcool-desidrogenase e, em menor quantidade, pelas oxidases
microssômicas.2
Enquanto as reações de redução e hidrólise não são comuns nos psicofármacos,
as de conjugação são bastante freqüentes. Elas consistem na combinação da
droga ou dos seus metabólitos com moléculas pequenas que existem no organis-
mo, tais como o ácido glicurônico (glicuronidação), o ácido acético (acetilação),
o ácido sulfúrico (sulfatação), os radicais metila (metilação), a glicina, etc. O
objetivo dessas reações é tornar a droga menos lipossolúvel e mais facilmente
excretável pela bile ou pelos rins. A acetilação de drogas como a fenelzina parece
ser geneticamente determinada, sendo que pacientes que a acetilam rapidamente
tendem a apresentar menor resposta terapêutica que os acetiladores lentos.2
Algumas drogas são eficazmente removidas da circulação pelo fígado e bio-
transformadas antes de atingir a circulação sistêmica. Este metabolismo de primeira
passagem, ou metabolismo pré-sistêmico, exige doses maiores da droga quando
ela é administrada por via oral. Por exemplo, mais de 80% de uma dose oral de
cloropromazina pode ser metabolizada por esse processo, e calcula-se que a
administração por via intramuscular resulte em níveis plasmáticos cinco vezes
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
maiores que os obtidos com a mesma dose oral dessa substância. Drogas tais
como imipramina, doxepina, levodopa e metilfenidato também sofrem o efeito
da primeira passagem.5
Os avanços recentes em farmacologia molecular permitiram a caracterização,
até o momento, de 267 famílias de citocromo P450, codificadas por mais de
5.000 genes.1 As isoenzimas do citocromo P450 são representadas pela sigla
CYP, seguida de um algarismo que indica a família, uma letra que indica a subfamília
e outro algarismo que indica o gene. Por exemplo, CYP3A2 significa a isoenzima
2 da família 3 e da subfamília A.3,6
Isoformas específicas de CYP são responsáveis pelo metabolismo dos diversos
psicofármacos. Nem todos os indivíduos têm as mesmas enzimas do CYP450, o
que explica a variabilidade individual na taxa de metabolismo das medicações. A
subfamília 3A do citocromo P450 e as isoformas 3A3 e 3A4 (CYP3A3/4) são
particularmente importantes em psicofarmacologia devido ao seu envolvimento
no metabolismo de várias substâncias, como antidepressivos, benzodiazepínicos,
bloqueadores de canais de cálcio e carbamazepina. A participação dos sistemas
enzimáticos no metabolismo das diferentes drogas tem implicações na interação
medicamentosa, como será explicado adiante.5
18
drogas que possuem essa capacidade. A indução da CYP3A4 ocorre geralmente
após alguns dias de tratamento e desaparece cerca de uma semana após a suspen-
são de seu uso. A conseqüência mais comum da indução enzimática é que várias
drogas podem estimular seu próprio metabolismo, levando assim à ineficácia da
medicação e à necessidade de aumento da dose para obtenção dos efeitos originais
(tolerância). Como essas enzimas são inespecíficas, o uso de um indutor pode
causar aceleração da biotransformação de outras drogas administradas conco-
mitantemente. Em fumantes, por exemplo, pode ser necessário o ajuste da dose
de drogas metabolizadas pela CYP1A2A, que é induzida pela nicotina.2
O fenômeno oposto é a inibição enzimática, que determina o acúmulo das
substâncias degradadas pela enzima inibida. O exemplo mais típico em psiquiatria
é o dos antidepressivos inibidores da MAO. Essas drogas, além de acarretarem
acúmulo dos neurotransmissores, que são seus substratos naturais, potencializam
os efeitos pressórios de aminas simpatomiméticas administradas, como desconges-
tionantes nasais e broncodilatadores, ou ingeridas na alimentação, como é o
caso da tiramina. A inibição da MAO intestinal e hepática leva ao acúmulo de
tiramina, que libera noradrenalina da terminação nervosa, acarretando crises hiper-
tensivas. Esse risco é minimizado pela contra-indicação de drogas de ação indireta
e pela restrição dietética (alimentos ricos em tiramina, como queijos envelhecidos,
arenque defumado, etc.).2 Com os inibidores reversíveis da MAO, como a moclo-
EXCREÇÃO
Os processos básicos mais importantes para a excreção renal de psicofármacos
são a filtração glomerular e a reabsorção tubular.
A filtração glomerular permite a eliminação de moléculas não muito grandes
(peso molecular inferior a aproximadamente 20.000) e não-ligadas às proteínas
plasmáticas.
As substâncias lipossolúveis, após sofrerem filtração glomerular, são reabsor-
vidas por difusão passiva nos túbulos renais. A reabsorção tubular é altamente
influenciada pelo pH urinário. Como ocorre na absorção, as formas não-ionizadas
tendem a ser reabsorvidas pelos túbulos renais. Assim, ácidos fracos são excretados
melhor em urina alcalina, e bases fracas, em urina ácida. Daí as vantagens de
alcalinizar a urina de pacientes com superdosagem de barbitúricos e de usar
cloreto de amônio para acidificar a urina de intoxicados por anfetamina.1
A excreção de drogas na bile e sua conseqüente reabsorção intestinal geram
o chamado ciclo êntero-hepático, que é parcialmente responsável pela longa
permanência de drogas como a cloropromazina no organismo.
19
Os psicofármacos podem também ser excretados no leite, mas seus efeitos
no lactente são pouco conhecidos. Sabe-se, por exemplo, que o diazepam excre-
tado dessa maneira pode produzir efeitos sedativos na criança.
DURAÇÃO DA AÇÃO
Conforme já abordado, o início de ação das drogas depende da via de administra-
ção, da formulação farmacêutica, da velocidade de absorção e da passagem para
o cérebro, que, por sua vez, depende, dentre outros fatores, da lipossolubilidade.
Já a duração dos efeitos depende principalmente das meias-vidas de eliminação
(β) da droga ou de seus metabólitos ativos. No caso de doses únicas de drogas
muito lipossolúveis, a duração de ação é geralmente determinada pela meia-
vida de distribuição. Por exemplo, a meia-vida do diazepam, após atingir o pico
de concentração no sangue, é rápida, e ele é extensivamente distribuído aos
tecidos, o que pode resultar em uma curta duração do efeito após doses únicas.2
Por outro lado, quando a administração é repetida, a meia-vida de eliminação
é que determinará a ocorrência ou não de acúmulo do fármaco e/ou de seus
metabólitos. Drogas de meia-vida de eliminação curta, em geral, são completa-
mente eliminadas antes da administração seguinte. Intervalos de administração
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
20
determinada dose dentro de uma população. Os fatores genéticos são os principais
determinantes da insensibilidade ou da sensibilidade exagerada a uma droga,
decorrentes do aumento ou da diminuição da quantidade de enzimas de bio-
transformação. Uma resposta inesperada é chamada idiossincrasia e pode ser
devida à ausência ou alteração genética de uma enzima.3
Diferenças genéticas podem afetar a resposta aos fármacos, já que são respon-
sáveis por variações nas atividades de enzimas e transportadores envolvidos na
absorção, na distribuição, no metabolismo e na excreção de drogas. A grande
variabilidade genética (étnico-racial), decorrente do polimorfismo de diferentes
isoformas do CYP, pode alterar a metabolização dos fármacos. Os polimorfismos
podem também interferir no padrão de efeitos colaterais, como, por exemplo, o
aumento de peso observado com antipsicóticos, que apresenta alta correlação
com o dimorfismo na região promotora do receptor de serotonina 5-HT2C. Contri-
buem para o maior risco de discinesia tardia dos antipsicóticos típicos (como o
haloperidol) os fatores ambientais (p. ex., o tabagismo) e o polimorfismo genético
do receptor de dopamina (D3) e da isoforma CYP1A2 envolvida no seu metabo-
lismo.5
A idade assume um papel importante, principalmente nos extremos, quando
os sistemas enzimáticos responsáveis pela biotransformação não estão completa-
mente desenvolvidos (recém-nascidos) ou quando a capacidade de excreção re-
21
ou seja, via de administração, dose, administração aguda ou crônica e interação
com outras drogas.3
MECANISMOS DE AÇÃO
Os psicofármacos, em última análise, interferem na neurotransmissão. É crescente
o número de neurotransmissores ou neuromoduladores identificados no SNC
(Tab. 1.1). Os principais neurotransmissores são as catecolaminas – noradrenalina
(NA), adrenalina (A), dopamina (DA) –; as indolaminas – serotonina (5-HT), his-
tamina (H) –; os aminoácidos excitatórios – glutamato e aspartato –; os aminoá-
cidos inibitórios – ácido γ-aminobutírico (GABA) –; e o óxido nítrico (NO). Embora
sua participação efetiva no mecanismo de ação dos psicofármacos não esteja
totalmente estabelecida, aparentemente NA, 5-HT, DA e GABA são, provavelmen-
te, os neurotransmissores mais envolvidos com a ação dessas drogas.1,2
É importante lembrar que os sistemas neurais que regulam a atividade do
SNC formam interações complexas entre si. Os neurotransmissores que exercem
funções excitatórias interagem com os que desempenham funções inibitórias,
modulando as funções nervosas de forma balanceada. Conseqüentemente, qual-
quer manipulação que afete um ou mais componentes desses sistemas afeta o
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
22
Tabela 1.1
NEUROTRANSMISSORES/NEUROMODULADORES DO SNC
23
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
Figura 1.2
Principais eventos sinápticos.
24
exerce o efeito máximo, ocupando ou não 100% dos receptores disponíveis (p.
ex., apomorfina, LSD e muscimol, que são exemplos de agonistas nos receptores
de dopamina, serotonina e GABA, respectivamente). Já o agonista parcial, mesmo
ocupando 100% dos receptores, produz efeito sempre menor do que o efeito
máximo exercido pelo agonista total (p. ex., ação do aripiprazol nos receptores
dopaminérgicos).1
As drogas também podem se ligar ao receptor e não desencadear nenhuma
resposta (sem atividade intrínseca), sendo nesse caso denominadas antagonistas.
Seu efeito resulta da inibição da ação do neurotransmissor ou de uma droga
agonista, uma vez que elas impedem o acesso dessas substâncias aos receptores,
como no caso de competir pela ocupação deles. Acredita-se que o efeito antipsicó-
tico dos neurolépticos deva-se à sua ação antagonista nos receptores dopaminér-
gicos mesolímbicos preferencial por receptores D2 (clorpromazina, haloperidol,
flufenazina, olanzapina, risperidona).
Um efeito inibitório também pode ser observado com agonistas parciais, isto
é, drogas que têm a capacidade de se ligar aos receptores (afinidade), porém
cuja atividade intrínseca é menor do que a de um agonista forte.
Existe ainda um grupo de substâncias que se ligam a receptores e promovem
efeitos opostos aos dos agonistas. É o caso dos agonistas inversos (β-carbolinas),
que atuam em receptores de benzodiazepínicos e induzem ansiedade, rigidez
25
em AMPc. A ativação do sistema AMPc pode ser feita a partir de diferentes
sistemas de neurotransmissores e de diferentes tipos de receptores, sendo que as
respostas variam de acordo com o tipo de proteína G ativada pelo receptor. Por
exemplo, os receptores dopaminérgicos D1 e D2 estão acoplados a proteínas G
que, respectivamente, ativam e inibem a adenililciclase. Os receptores β-adre-
nérgicos e serotoninérgicos 5-HT1 atuam através de uma proteína G estimulatória,
ativando a formação de AMPc.7-10
Outro exemplo de sistema de segundo mensageiro é o fosfoinositídeo. Ele
envolve receptores acoplados a proteínas G que ativam a fosfolipase C, uma
enzima responsável pela formação de diacilglicerol e IP3 (1,4,5-trifosfato de ino-
sitol). O IP3 libera cálcio, que, por sua vez, gera uma série de estímulos, entre
eles, a ativação da enzima responsável pela formação do óxido nítrico, a óxido
nítrico sintase. A ativação da guanililciclase solúvel pelo óxido nítrico leva à for-
mação do segundo mensageiro, GMPc. Um exemplo de receptor que atua por
essa via é o 5-HT2 (Fig. 1.3).7-10
Um exemplo de psicofármaco que atua diretamente nos sistemas de segundos
mensageiros é o lítio, que bloqueia a formação do fosfatidilinositol pela inibição
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
Figura 1.3
Regulação da proteína G e dos segundos mensageiros em sistemas efetores
celulares. (Adaptada de Rang; Dale, 1995.2) GMPc = guanina monosfato cíclico;
AMPc = adenosina monosfato cíclico; IP3 = trifosfato de inositol;
DAG = diacilglicerol; AA = ácido araquidônico; [CA+2] = cálcio intracelular;
PKG = proteína quinase G; PKC = proteína quinase C;
PKA = proteína quinase dependente de AMPc.
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da enzima inositol monofosfatase e pela modificação das respostas mediadas
pelo sistema adenililciclase e AMPc.2
Apesar dos inúmeros estudos realizados e dos avanços obtidos, nenhuma
descoberta foi capaz de explicar, de forma satisfatória, o mecanismo responsável
pela ação terapêutica dos psicofármacos a partir do seu efeito agudo sobre os
neurotransmissores ou das alterações na sensibilidade dos receptores produzidas
após administração crônica (ver a seção a seguir, “Fenômenos de neuroadapta-
ção”). Além disso, verificou-se que as alterações metabólicas e funcionais obser-
vadas inicialmente nos tratamentos agudos de animais na maioria das vezes não
só não persistem após administração repetida como também são substituídas
por alterações que podem, de fato, ser opostas às observadas agudamente.11
Passou-se, assim, a estudar as alterações moleculares (plasticidade), enfatizan-
do as alterações intracelulares (pós-receptor) promovidas pelos psicofármacos.
Essas alterações envolvem subunidades das diferentes proteínas G, os segundos
mensageiros (AMPc, GMPc, fosfatidilinositol, diacilglicerol), as proteínas envolvi-
das na síntese e na liberação de neurotransmissores, os mensageiros gasosos
intra e intercelulares (monóxido de carbono e óxido nítrico), os mecanismos de
fosforilação protéica através do estudo das proteínas quinases dependentes destes
segundos mensageiros (PKA, PKC e PKG) e das proteínas reguladoras de proteínas
fosfatases, além dos fatores de transcrição e de receptores de corticosteróides
FENÔMENOS DE NEUROADAPTAÇÃO
Sabe-se que a administração crônica de drogas leva a alterações adaptativas, por
exemplo, nos receptores. Os receptores não só iniciam a regulação de uma função
fisiológica ou bioquímica como também são alvos de controles regulatórios e
homeostáticos. A contínua estimulação de um receptor por um agonista geralmen-
te resulta em um estado de dessensibilização ou subsensibilidade (down-regula-
tion), isto é, uma diminuição do efeito obtido em condições normais. Essa alteração
de resposta pode envolver uma modificação do receptor, sua destruição ou dimi-
nuição de síntese ou, ainda, sua realocação na célula. A subsensibilidade é, muitas
vezes, responsável pela tolerância observada após uso crônico.11
O contrário também é freqüentemente observado, ou seja, a hipersensibilidade
do receptor quando exposto cronicamente a uma redução no nível de estimulação.
Em alguns casos, essa hiper-reatividade decorre do aumento de síntese do receptor.
A hipersensibilidade resultante do bloqueio prolongado de receptores dopami-
nérgicos parece estar envolvida no desenvolvimento da discinesia tardia observada
no tratamento crônico com neurolépticos.11
27
Os mecanismos de neuroadaptação têm sido relacionados não só com fenôme-
nos de tolerância e de dependência, mas também vêm sendo propostos como
subjacentes ao mecanismo de ação de muitos psicofármacos, além de estarem
possivelmente implicados na fisiopatologia dos próprios transtornos psiquiátricos.
Por exemplo, sabe-se que a administração crônica de muitos psicofármacos
antidepressivos, ainda que não de todos, leva, entre outros resultados, ao desen-
volvimento de subsensibilidade de receptores α2 pré-sinápticos e de receptores
β-adrenérgicos e de hipersensibilidade de receptores α1. A diminuição na densida-
de e na função dos receptores β-adrenérgicos é temporalmente relacionada com
o efeito clínico e é observada após administração prolongada de inibidores da
MAO, tricíclicos, antidepressivos atípicos e eletrochoque. Os mecanismos subja-
centes a essa subsensibilidade envolvem mecanismos de fosforilação do próprio
receptor por proteínas quinases, como, por exemplo, a β-ARK (quinase do receptor
β-adrenérgico), e o acoplamento de proteínas associadas, como a β-arrestina.
Outro exemplo dessas alterações adaptativas envolve o sistema serotoninér-
gico. No tratamento agudo com antidepressivos que bloqueiam a recaptação de
5-HT, os auto-receptores inibitórios 5-HT1A, localizados nos corpos celulares dos
neurônios serotoninérgicos no núcleo da rafe, estão expostos a uma concentração
mais alta de 5-HT em função de seu bloqueio da recaptação. Em conseqüência
disso, há uma diminuição no disparo neuronal e liberação de 5-HT. Já no tratamen-
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
TOLERÂNCIA E DEPENDÊNCIA
O uso continuado de uma droga pode levar a uma diminuição da resposta, levando
à necessidade da administração de doses crescentes para a obtenção do efeito
original. Esse fenômeno é chamado de tolerância. Ela pode ser inata, ou seja,
uma sensibilidade preexistente, ou adquirida – neste caso, pode ser farmacoci-
nética (metabólica) ou farmacodinâmica.2
A tolerância farmacocinética, conforme visto anteriormente, decorre da in-
dução enzimática, com conseqüente aumento da biotransformação e diminuição
da concentração do composto ativo no sangue. Por exemplo, a atividade das
enzimas hepáticas aumenta após um período prolongado de consumo de álcool,
acelerando sua eliminação.1
Já a tolerância farmacodinâmica depende dos fenômenos de neuroadaptação:
ocorre por diminuição do número dos receptores ou da sensibilidade neuronal.
28
Por exemplo, os efeitos anoréxicos das anfetaminas, os efeitos analgésicos dos
opióides e os efeitos sedativos dos benzodiazepínicos e do etanol podem diminuir
de intensidade após administração crônica.
Fatores ambientais também são capazes de desencadear um tipo de tolerância,
conhecida como tolerância comportamental. Para um indivíduo habituado a
consumir determinada droga em um mesmo ambiente, esta pode apresentar
efeitos mais intensos quando administrada em um ambiente diferente. Além disso,
vários psicofármacos apresentam tolerância cruzada com outras drogas da mesma
classe farmacológica (opióides) ou entre compostos de efeitos semelhantes
(barbitúricos e etanol).
O fenômeno oposto à tolerância é a sensibilização, também conhecida como
tolerância reversa, que determina um aumento da resposta inicial após administra-
ção crônica. Ocorre, por exemplo, com psicoestimulantes (cocaína, anfetamina),
opióides e etanol. É possível que a sensiblização tenha um papel na manutenção
da dependência, tornando os dependentes mais suscetíveis a recaídas, mesmo
após longos períodos de descontinuação. A sensibilização é uma forma de plas-
ticidade neuronal e está associada com mudanças neuroadaptativas no circuito
da recompensa, decorrentes do uso crônico de drogas de abuso, sendo a dopamina
o principal substrato neuronal envolvido nesse fenômeno.13
A dependência física consiste no estado de adaptação induzido pelo uso contí-
29
INTERAÇÕES MEDICAMENTOSAS
São bastante freqüentes as combinações de drogas para se obter a potenciação
ou a diminuição da latência do efeito terapêutico, ou, ainda, para atingir um
número maior de sintomas. Entretanto, muitas vezes essas interações não são
benéficas, ou são mesmo potencialmente perigosas, devido a efeitos aditivos ou
ao antagonismo entre os agentes. Por exemplo, em geral existe efeito aditivo
entre os depressores do SNC, e combinações como as de barbitúricos e álcool
podem ser letais.3
As interações basicamente ocorrem quando as drogas envolvidas atuam no
mesmo sítio de ação (interação farmacodinâmica), podendo ocorrer sinergismo,
potenciação ou antagonismo, ou quando elas se processam fora dos locais de
ação, acarretando alterações na concentração de droga ao nível de seus receptores.
Estas últimas podem ser farmacocinéticas, decorrentes de alteração na absorção,
distribuição, biotransformação ou eliminação. Por exemplo, drogas que retardam
o esvaziamento gástrico e a motilidade intestinal, como as que possuem efeitos
anticolinérgicos, vão interferir na velocidade de absorção de outras drogas. A
competição por ligação protéica e as alterações no metabolismo (ver biotrans-
formação) por conseqüência da indução enzimática (barbitúricos), com diminui-
ção da concentração plasmática da outra droga, e da inibição do metabolismo
PRINCÍPIOS GERAIS DA AÇÃO DE PSICOFÁRMACOS
(inibidores da MAO), são alguns dos exemplos de como as drogas podem interagir
quando administradas simultaneamente.3
No caso de drogas com faixa terapêutica estreita, as interações medicamen-
tosas devem ser feitas com especial cautela por poderem desencadear efeitos
tóxicos caso sua faixa terapêutica seja ultrapassada.
O mais prudente é, sempre que possível, prescrever apenas um medicamento.
É preferível aproveitar um efeito colateral sedativo para tratar a insônia associada
a quadros psiquiátricos a prescrever um hipnótico para esse fim. Entretanto, muitas
vezes a monoterapia pode não ser suficiente para a melhora adequada do paciente.
Mais ainda, considerando a cronicidade da maioria dos transtornos psiquiátricos,
é comum que ocorram quadros clínicos associados que necessitem de tratamentos
específicos. Quando necessária, a administração concomitante de diferentes dro-
gas deve ser cuidadosa para evitar as interações indesejáveis.2
REFERÊNCIAS
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