2022 - TESE Miguel Colaço Bittencourt
2022 - TESE Miguel Colaço Bittencourt
2022 - TESE Miguel Colaço Bittencourt
Recife
2022
MIGUEL COLAÇO BITTENCOURT
Recife
2022
Catalogação na Fonte
Bibliotecário: Rodriggo Leopoldino Cavalcanti I, CRB4-1855
Os meus agradecimentos são muitos. Elaborei essa tese atravessando muitas etapas de
vida, obtive financiamentos para a pesquisa, tive a abertura e a amizade de muitos indígenas da
aldeia Fulni-ô assim como um grande suporte do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade Federal de Pernambuco. Também tive meu primeiro filho no ano de 2019, e
no ano seguinte enfrentamos uma pandemia que quase acabou com boa parte da minha família.
Então, não foram anos fáceis que acompanharam a consolidação desse trabalho, porém, posso
assegurar que esta tese foi o que me manteve motivado a pesquisar e refletir os contextos étnicos
nos dias fáceis e difíceis.
Inicio minha lista agradecendo à totalidade do povo Fulni-ô, àqueles que hoje estão do
“lado de lá e do lado de cá”, mas, que se assumem enquanto pertencentes à mesma etnia. Posso
citar muitos nomes, certamente os que mais contribuíram para este trabalho foram: Dona Ita e
seu Mauro, com seus filhos: Francisco, Ary, Yoran, Itanara e Elpidio, Luana e Ribeiro,
Marcinho (que fez o desenho da capa da tese), Irma e Mara. Essa família Fulni-ô sempre me
recebeu de braços abertos e esteve disposta a conversar comigo durante muitos dias, inclusive,
foi Dona Ita que me apelidou de: “filho branco”, revelando o apreço que construímos nos meus
dias de envolvimento etnográfico e de amizade que superou as tensões das observações
antropológicas.
Também expresso minha gratidão à família de torezeiros: seu Abdon dos Santos, Dona
Tereza e ao seu filho Sarapó, que muito me ensinaram sobre a socialidade musical Fulni-ô,
acerca da tradição e dos saberes sonoros da etnia. Do mesmo modo, agradeço à professora Dona
Solange, ao seu esposo Thuny/ Antônio e aos seus filhos. Agradeço os pifeiros (Mestre Matinho
e Marcos Matos), aos guerreiros e artistas da tradição: Wyho, Rafael, Victor, Txhalé, Juracy,
Lualisson, Khal`Txowa. Agradeço ao sr. João/ Thxyxá (em memória) por sua alegria e
disposição em fazer um circuito turístico indígena nos estados brasileiros (junto ao seu sobrinho
já mencionado Thafkhêa/ Elpidio) e por detalhar a sua visão acerca do uso indígena da jurema
indígena.
Agradeço aos professores indígenas: Telson e Ediraldo pelo apoio prestado e
disponibilidade de contribuir com este trabalho, principalmente, no que se refere às traduções
das cafurnas do yaathe para o português, assim como as reflexões em torno da tradição Fulni-
ô. Agradeço aos cineastas indígenas que também atuam como professores, mas, que
desenvolvem um olhar singular no audiovisual: Coletivo Fulni-ô de Cinema: Hugo de Sá,
Expedito e João Victor. Do mesmo modo, ao coletivo Thulsê que se fortalece através dos
trabalhos de Tahyo/ Bruno e demais integrantes.
Agradeço à professora indígena Marilena de Sá Araújo, que tem lugar especial nas
minhas reflexões, pois, com poucas conversas muito me ensinou sobre a construção da
educação indígena e sobre o desenvolvimento da língua materna yaathe.
Agradeço ao amigo Eric Caldas pela escrita musical e ajuda para a formulação das
partituras, assim como pela abertura em conversar sobre as variações musicais e tipos de
juremas.
Agradeço aos professores e toda a equipe de profissionais que compõem o Programa de
Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco. Também agradeço
aos colegas pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) e do
Laboratório de Antropologia Visual (LAV). Em especial agradeço ao meu orientador, PhD.
Edwin B. Reesink, pelo apoio, diálogo, disposição e esclarecimentos durante meu processo de
doutoramento.
Agradeço ao apoio da minha família (Renata e Martim) e dos meus pais (Paulo e Dui)
no meu processo de formação. Do mesmo modo, agradeço aos demais familiares que - de perto
ou distante - somaram forças neste projeto e de algum jeito foram apoiadores.
Agradeço aos incentivos e fomentos que possibilitaram esta pesquisa e o meu processo
de formação: a bolsa inicial da Propesq em 2016.1; a contemplação da bolsa 2016.2 do edital
da FACEPE; a aprovação do edital da Lei Aldir Blanc de Registro e Salvaguarda de Mestre da
Cultura Popular em 2020/ 2021, que permitiram as idas ao campo de pesquisa e a realização
total da pesquisa.
Agradeço ao mundo encantado, animado, visível e invisível das plantas que nos ajudam
a criar sentidos de vida.
“O conhecer-se através do conhecimento de outros implica em relativizar-se e, dessa forma,
minar todo o etnocentrismo sobre o qual se alicerçam a incompreensão e a intolerância”
(OLIVEIRA, 1976b, p. XX).
1 Introdução ............................................................................................ 17
2 As partes do todo: perfil étnico Fulni-ô ............................................. 21
2.1 As raízes da identidade .......................................................................... 21
2.2 Tapuias: antigos antepassados ............................................................... 26
3 Os caminhos da constituição Fulni-ô ................................................. 43
3.1 “Carnijós” .............................................................................................. 43
3.2 No tempo da epidemia, da guerra e da fome ......................................... 55
3.3 A “resistência, o sagrado e o segredo do ouricuri / keyxathka-lhá” ...... 59
4 O reconhecimento do Keyxatka-lhá: o território de Eedjadwá .......... 68
4.1 Processos de estratificação, demarcação territorial ................................. 68
e criação do Posto Indígena
4.2 Reconhecimento, levantamento e demarcação ........................................ 71
4.3 A retomada Fulni-ô: resistência e segredo no cenário de mobilidade étnica 76
4.4 Etnólogos na T.I Fulni-ô .......................................................................... 79
4.5 Apontamentos do yaathe: a língua materna Fulni-ô ................................. 90
4.6 As dialéticas do segredo e as fronteiras simbólicas .................................. 93
4.7 A presença, a visibilidade e as identificações Fulni-ô .............................. 107
4.8 Direitos históricos e originários Fulni-ô ................................................... 109
5 Etnicidade e cosmologia ......................................................................... 113
5.1 Os caminhos da interseção étnico-cosmológica ....................................... 113
5.1.2 Fases e paradigmas ................................................................................... 118
5.2 Etnicidade ................................................................................................. 120
5.2.1 Memória, cosmologia, mito-práxis e performance ................................... 124
5.3 Planta, Complexo e Símbolos: as juremas e os seus significados ............ 130
5.3.1 Arqueologia, história, difusão e sagrado ................................................. 133
5.3.2 A visibilidade das juremas ........................................................................ 138
5.3.3 A jurema indígena: uma planta diacrítica ................................................ 142
5.4 Comunicação indígena, ritual, “trabalho" ................................................. 146
5.5 A (re)vegetalização indígena: o cosmos da territorialidade ...................... 148
6 Aspectos teórico-metodológicos .............................................................. 159
6.1 Breves apontamentos da noção de pessoa .............................................. 159
6.2 Metodologia ............................................................................................ 163
6.3 O estudo de caso ..................................................................................... 165
6.4 Entrada no campo de pesquisa ................................................................ 171
6.4.1 Práticas performáticas ............................................................................ 175
6.4.2 Práticas etnobotânicas ............................................................................ 177
7 Situação atual ........................................................................................ 180
7.1 O habitar Fulni-ô: antropologia, arquitetura e arte ................................. 180
7.2 O Ouricuri e o tolê como declaração de pertença étnica ........................ 184
7.3 As iniciações étnico-religiosas ................................................................ 186
7.4 Relações Inter-étnicas: ............................................................................ 190
Fulni-ô, coletivos Mebêngôkre e o Vídeos nas Aldeias
7.5 O campo religioso: ecologia, ritual e performance ecumênica ............... 193
7.6 Relações intraétnicas e o “racha da Aldeia”: .......................................... 200
o “ouricuri do juazeiro” e o “ouricuri novo do umbuzeiro branco”
7.7 A cidadania Fulni-ô e as suas reivindicações ......................................... 205
7.8 Calendário ecológico, climático, cosmológico Fulni-ô .......................... 206
8 A “tradição” Fulni-ô no turismo indígena comunitário ................... 210
8.1 A revitalização das práticas tradicionais ................................................ 210
8.2 As “medicinas indígenas” Fulni-ô e o campo do etnoturismo ............... 217
8.3 O movimento das entidades: .................................................................. 223
Eedjadwá, Tupãn, Encantados e o Grande Espírito
8.4 Kotcha: a jurema Fulni-ô ....................................................................... 226
8.5 Interculturalidade e a enteogenia da jurema no etnoturismo ................. 230
8.5.1 Contextos e atores sociais ..................................................................... 234
8.6 Vivências, trilhas e ancestralidade na T.I. ............................................. 240
8.6.1 As “reservas” do turismo indígena ....................................................... 242
8.6.2 Trilhas sagradas: Ouricuri, pintura rupestre e lamarão ...................... 244
8.7 Entre palhas e penas: os sinais distintivos na representação do índio .. 246
9 A perspectiva Fulni-ô no contexto das práticas tradicionais ........... 249
9.1 A autonomia do cuidado através das plantas ......................................... 249
9.2 Os remédios: “do mato e da farmácia” .................................................. 254
9.3 As práticas tradicionais e as normas do sagrado no contexto das “drogas” 258
9.4 Concepções de movimento, vida, morte e comunicação .......................... 262
9.4.1 A “tradição” em disputa .......................................................................... 265
9.4.2 O movimento de Oyaa txtxosoo: a Mãe D’Água ..................................... 266
9.4.3 Foowa: a personalização da Serra do Comunaty ................................... 269
9.5 A perspectiva ameríndia nordestina Fulni-ô ............................................ 270
10 A ecologia musical do búzio .................................................................. 280
10.1 O sagrado instrumento musical do “tolé” ................................................ 280
10.2 A organologia dos instrumentos indígenas (búzio, maracá e pife) .......... 290
10.3 O tolê Fulni-ô e o seu acontecimento ....................................................... 295
10.4 “O búzio é um quebra-cabeça” ................................................................. 302
10.5 A política da tradição e a cópia autenticada do búzio .............................. 310
10.6 A comunicação e o transe do “tolê” ......................................................... 311
11 Sociabilidade musical e os saberes sonoros 10 ..................................... 314
11.1 Yakhletxaka-sê: o canto da gente ............................................................. 314
11.2 Das ecologias e trabalhos agrários aos palcos e teatros ........................... 317
11.3 Redes musicais e comunicação indígena no Nordeste ............................. 323
11.4 Tradição, sociabilidade e aprendizagem musical ..................................... 326
11.4.1 Mestres da cultura tradicional Fulni-ô..................................................... 332
11.4.2 Unakesa: vamos procurar nossos direitos ............................................... 333
11.4.3 A Banda de Pife Fulni-ô e o grupo cultural Fetxhá .................................. 338
11.5 Possíveis indicações, traduções e representações (pauta e fonograma) .... 341
12 Considerações finais ................................................................................ 345
Referências ............................................................................................... 352
Apêndice A (plantas) ............................................................................... 383
Apêndice B (cafurnas) ............................................................................. 396
Anexo A (arquivos) .................................................................................. 403
Anexo B (mitos) ........................................................................................ 410
17
1 Introdução
A etnohistória Fulni-ô e dos seus “antepassados” pelos Sertões e Agrestes contém mais
de 4 séculos de contato com muitas incertezas e fronteiras materiais/ simbólicas, que remetem
aos tempos coloniais, pós-coloniais, regimes, assimetrias e conflitos sociais. É possível
identificar no processo social da etnia enfrentamentos diversos por uma contínua luta pela terra
e por direitos indígenas específicos expressados em seu modo de viver e estar nos locais (aldeias
e cidades). A etnia tem em sua memória coletiva maneiras de narrar a sua “história” e os
percursos dos seus “troncos antigos”, resguardando o tempo “sagrado” e uma série de
conteúdos pelo “segredo”. Ademais, o território indígena assume um leque de particularidades,
pois além de ter sido um dos primeiros do Brasil a receber a instalação de um posto do SPI, na
década de 1920, também tem uma divisão por lotes de terra na área indígena e um conflituoso
processo agrário, em consequência das políticas dos arrendamentos. Tais questões apontam
problemáticas nos processos adaptativos dos indígenas para a integração com a sociedade
nacional dominante de classes.
Por outro aspecto, os Fulni-ô resguardam uma relação singular de habitar o seu território
com diversas práticas sociais, sendo o “rito do ouricouri” a instituição cosmológica de maior
centralidade na preservação e revitalização da vida indígena acionada através da língua materna
yaathe. O rito que passou por fases históricas e processos de ressemantização ganha uma série
de traduções, sendo hoje o “ouricouri” um tempo de reclusão e uma forma de explicação
indígena do que significa o ritual de longa duração dos Fulni-ô no espaço do Keyxatkalha (a
cabeça do lugar). São transformações de espaços, pessoas participantes, simbolismos e sentidos
que ganham sua ressemantização no decorrer dos movimentos históricos e adaptativos, sendo
também um elo de iniciação e manutenção do pertencimento étnico Fulni-ô com uma intima
relação de construção simbólica intra-étnica. Como veremos adiante tal preservação está
intimamente ligada com os atributos da constituição da pessoa – setso Fulni-ô. Diante destas
questões, tal trabalho aponta as transformações cosmológicas e performáticas do habitar Fulni-
ô através da memória coletiva e das práticas tradicionais em torno das plantas consideradas
“sagradas”, em uma série de atividades que expressam fechamento e abertura a partir de casos
etnografados da situação atual, do turismo indígena, intermedicalidade e sociabilidade musical
Fulni-ô. De modo geral, busca-se compreender como os Fulni-ô narram a perenidade da vida
étnica em sua relação com um sistema assimétrico nacional de dominação.
18
Esta tese tem a proposta de exercitar um diálogo dos complexos ao destacar a dialética
e adaptação cosmológica performática de dois complexos: 1. do toré Fulni-ô (através do “rito
do ouricouri” e dos aerofones “sagrados” do “búzio”), e 2. da jurema. Diante destas questões
questiona-se: quais as adaptações cosmológicas e performáticas possíveis de serem
mencionadas no caso Fulni-ô? Quais as interações e conteúdos das aberturas Fulni-ô em torno
da “jurema” e dos “búzios”? Tais questionamentos se esbarram no “segredo do sagrado” Fulni-
ô e em uma série de adaptações socioculturais e econômicas. Portanto, ao descrever um
fragmento das trocas econômicas simbólicas do Nordeste indígena, tenho enquanto pressuposto
a tentativa de apontar uma perspectiva ameríndia nordestina, onde as plantas são elementos
centrais nas relações cosmológicas, de alteridade e de constituição de um “eu, nós, eles”, assim
como de acesso ao campo do sobrenatural.
Para tal, a tese é organizada em três partes. A primeira se refere ao aparecimento dos
“Tapuias, Carnijós e Fulni-ô” nos registros e literatura antropológica, não pretendo reconstruir
a totalidade da historicidade indígena e nacional, mas destacar breves eventos marcantes para
os rumos da vida indígena nos Sertões e no Nordeste brasileiro. De tal modo, procuro descrever
a partir do contato o processo de territorialização dos Fulni-ô e a sua noção de territorialidade
utilizada para reivindicações diversas. Na primeira sessão (caps. 1 – 4) é apresentada uma
19
Colocar palavras em sequências cronológicas torna o exercício de contar algo como uma
tarefa árdua e preocupante, porque lidamos com vazios historiográficos e alguns dilemas na
construção do conhecimento antropológico. Para tecer um caminho narrativo possível ao estudo
de caso, sigo o movimento cronológico dos eventos com a intenção de apontar as adaptações e
economias simbólicas étnico-religiosas, no que diz respeito aos “regimes” compartilhados pelas
suas memórias, cosmologias, práticas e territórios. São muitos os agentes e personagens com
distintos modos de contar as “histórias” que estão em questão. Por isso, entre mitos, contos,
memórias, eventos, instituições e atores em diferentes contextos, parece-me mais didático
respeitar o tempo cronológico e seguir as evidências possíveis dos registros e dados etnológicos.
Para nos aproximarmos de uma possível interpretação do processo sócio-histórico
Fulni-ô, a observação inicial parte por três fases situadas cronologicamente. Primeiro, destaco
os relatos e registros surgidos por instituições coloniais, missionários e viajantes com a intenção
de compreender a formação de termos discriminatórios atribuídos aos “outros” e, qual o locus
simbólico social que essas pessoas eram designadas. Segundo, partimos para a observação de
uma etnologia inicial para destacar como os Tapuias e os Carnijós foram mencionados nos
registros históricos e no locus simbólico societário. Por fim, destaca-se o protagonismo indígena
para descrever o contexto intercultural Fulni-ô e o seu sistema de identificação, o qual mesmo
em contato com a regionalização e colonização secular, ainda, demonstra-se acima de tudo:
indígena. O objetivo principal é destacar as políticas da tradição através de emblemas
cosmológicos, práticas tradicionais e performances. Estamos tratando do tema de: identidades,
saberes e economias simbólicas, que estão em fluxo e revelam práticas identitárias-étnico-
cosmológicas, um senso de existência coletiva e individual, com um estatuto autodeterminado
no regime de morais e valores, que circundam e envolvem todos os pertencentes na
interculturalidade.
No período inicial da revisão bibliográfica do processo de formação da etnia Fulni-ô e
da sua ideologia de pertença, observei que as informações existentes dos trajetos étnico-
religiosos se concentram nos relatos de agentes coloniais que demonstravam uma tensa relação
com os indígenas. Geralmente, ainda que estes dados e escritos forneçam uma base de
informações importantes do seu contexto histórico, eles são de natureza etnocêntrica, pois
carregam a tendência de inferiorização e exclusão da identidade étnica da “História”. Por
conseguinte, carecem de melhor esclarecimento acerca dos contextos e assimetrias sociais.
22
1
Os autores mencionados trazem aportes teóricos que merecem consideração, SAID (2007[1978]) ao destacar as
concepções ideológicas do “ocidentalismo” e “orientalismo” em uma escala ampla como um sistema de
marcadores socioculturais que criam semelhanças e diferenças junto com a construção de um projeto de dominação
e poder. Por outro viés, Viveiros de Castro (1996) salienta como uma política epistemológica operou no sistema
de dominação e sujeição nas Américas de modo material e simbólico nas pessoas, instituições, terras e territórios,
sendo a colonização do pensamento uma consequência da internalização da sujeição e de uma série de
comportamentos morais. Pode-se dizer ainda que o autor (ibid.) aprofunda uma critica ao analisar na formação
acadêmica antropológica brasileira um conjunto de concepções político-epistemológicas da etnologia e depois da
antropologia indígena no Brasil que se pauta pelas relações de dominação, contato, interação e relações internas/
externas dos centrismos societários que destacam a situação de contato como limitante e apenas como parte que
envolve a sociedade nacional, como se a etnohistória indígena fosse um semento e/ou parte da história nacional.
23
cair nesses enganos históricos aplica-se a compreensão dos indígenas enquanto: sujeitos
históricos e atores políticos nas suas próprias tramas.
Falar em como os Fulni-ô esculpiram o seu destino é detalhar os seus processos sócio-
históricos e a sua percepção no mundo, assim como as situações em que estiveram envolvidos
e como se organizam politicamente enquanto unidade social - no sentido weberiano (1999). O
fato é que estes indígenas expressam em sua constituição uma linhagem de descendência e uma
noção de continuidade histórica. “Tapuia, Carnijó, Folá, Fokhlassa e Fulni-ô” são algumas das
classificações que revelam em sua natureza elementos históricos e semânticos. A partir da
situação de contato, que perdura por muitos anos, há uma disputa simbólica entre grupos sociais
que procuram espaços e formas de valorização de si. No caso dos grupos étnicos (cujo aporte
teórico encontra-se no 4º capítulo) esses conflitos dirigem-se aos seus termos classificatórios,
sentidos e valores associados. Se do lado de fora, a criação da alter-classificação tende à
construção de um corpo simbólico de inferiorização, do lado de dentro da comunidade de
pertença, as auto-classificações se revestem de sentidos e significados que firmam uma auto-
valorização (REESINK, 2020). Essa relação de contato e conflito (FERNANDES, 2009 [1975])
dos grupos sociais são concretizadas por fronteiras materiais e simbólicas (BARTH, 1969,
2000). A força e hegemonia desses valores e noções simbólicas criam um campo de estruturas,
que poderão ser estruturantes em sua sociabilidade e na construção do habitus (BOURDIEU,
2013; VIVEIROS DE CASTRO, 1999; SCHRÖDER, 2012).
A partir da consolidação de uma linhagem antropológica autores como Galvão (1960),
Melatti (1983 [1970]), Cardoso de Oliveira (1976a), Manuela Carneiro da Cunha (1986, 1992),
Viveiros de Castro (1999), Seeger (1980), Mata (1989), Reesink (1999) e Oliveira (2011)
elaboraram noções em torno das áreas culturais e da etnohistória no Brasil, com a intenção de
se livrar dos equívocos da história nacional e, por conseguinte, compreender como a identidade
étnica se situa em sua organização política lidando com projetos de poder em curso. A aplicação
da etnohistória se situa sob o arcabouço de uma ‘antropologia histórica’, com a intenção de
compreender os sentidos vividos e reelaborados, derivados da situação de contato. O conjunto
temático está conectado à memória social e aos seus enraizamentos individuais e coletivos. Em
última instância, buscamos compreender quais são os sentidos históricos e criatividades
culturais acionadas para se retratar à etnia de pertença como categoria classificatória
fundamental.
Por essa razão, caracterizar a etnia Fulni-ô é sobretudo um estudo da resistência étnica,
diante da colonização e da formação do Estado-nação (DÍAZ, 1983, 1992, 2015; FOTI, 1991).
24
2
Utilizo o verbo invisibilizar no sentido de que diferentes partes (instituições e atores sociais) criam e disputam
um locus simbólico ao construir uma “história” com narrativa que criam valores, morais, comportamentos, códigos
sociais, funções sociais e estruturas que acionam um projeto ideológico de descendência. Outros termos também
são aplicados nessa ideia para detalhar a noção de estruturas e atores sociais em conflito, como: ocultadas e
marginalizados. Ambos emitem a ideia de forças sociais que são visíveis e invisivilizadas por algo ou alguém em
interação que compõe uma rede com centros e periferias. O termo subalternos proposto Spivak (2010) remete as
reflexões das disputas de representação e dos atos políticos do discurso hegemônico ao excluir sujeitos inseridos
nas negociações das classes sociais.
25
3 Como destaca Bartolomé (2017, p. 263), o conceito de etnogênese foi estabelecido - de modo emergencial diante
da transfiguração étnica - para destacar “processos sociais designados pelos grupos étnicos” submetidos a relação
de dominação e marginalização, que se unificaram e se adaptaram juridicamente enquanto Povos Indígenas, ou,
“nações sem Estado”. Para o autor, “Povos Indígenas” se refere à dignidade cultural atribuída aos grupos
etnolinguísticos como “uma comunidade de comunicação e de reconhecimento mútuo, que possibilite uma
orientação e ação compartilhada para o cumprimento de objetivos públicos” (BARTOLOMÉ, 2017, p.272). Deste
modo, a partir do caso Fulni-ô pode-se considerar que houve uma etnogênese de segundo grau no contexto de
reconhecimento estatal, principalmente, devido ao reconhecimento continuo existente das diferenças por longa
duração - dos tempos coloniais aos democráticos, que teve como consequência a integração por circunstâncias
históricas. Logo, impulsionados no contexto do reconhecimento, há a posteriori uma necessidade de afirmação e
agrupamento dos grupos étnicos para a reivindicação de direitos “originários” que reorganiza a identidade e seus
objetivos políticos.
27
4 Os Caétes - descritos em Hohenthal (1960, p. 37-38) - eram inimigos ferrenhos dos portugueses, por volta dos
anos de 1560, esse grupo fez diversas migrações e frentes de combate à Coroa portuguesa, que impediu as
expedições aos interiores nas regiões do rio São Francisco, sendo muitas nações indígenas contrárias a invasão e
de difícil abertura à sujeição colonial da Ordem de Cristo e da Coroa (HOHENTHAL, 1960; POMPEU
SOBRINHO, 1934, PINTO, 1956). Diversos movimentos e acontecimentos ocorreram contra as imposições
religiosas coloniais, a exemplo dos Caétes e dos ditos “tapuias bárbaros” aliados dos batavos e dos mamelucos
que configuraram uma contracultura religiosa ao catolicismo e aos eclesiásticos. Fato é que a educação por sujeição
dos religiosos portugueses também resultava em muitas violências contra os indígenas, havendo em geral um clima
de tensão nos agrupamentos populacionais pelo surgimento de conflitos. Temos como exemplo a Guerra dos
Bárbaros que se inicia com conflitos desde os anos de 1650 e termina por volta de 1720, como evento de rejeição
dos Tapuia à imposição cristã e colonial. A oposição ameríndia ao mundo cristão teve como resposta a morte de
diversos núcleos indígenas tapuias, os quais não se sujeitaram ao regime e estabeleceram antes de tudo, uma
relação de vida ou morte com a Ordem de Cristo e a adequação missionária cristã, capuchinha e jesuíta. Durante
as Missões os postos de autoridade dos agentes religiosos e coloniais foram os eixos centrais na formação das
aldeias e subgrupos organizacionais.
28
e Sublimis Deus5, que ambas certificaram a capacidade do índio em ter liberdade, alma e
propriedade, mas, por outro lado também entender e converter-se à religião católica sem a
escravidão. Essa diretriz partiu do papa Gregório I, na colonização europeia, que buscou
reorientar a cultura nativa em vez de destruí-la. A ordem do papado de Paulo III sanava três
questionamentos da época: se os índios eram gente, se podiam ser convertidos e se realmente
tinham o direito à terra, de tal modo que dava diretrizes para agrupar indígenas, mas, não lhes
tratar como escravos. Logo, a conversão foi uma maneira de agrupar e atrair os nativos para
uma ideologia e modelo organizacional no campo do trabalho da “liberdade colonial”. Porém,
vale ressaltar, que, em muitos casos, não livrou os indígenas de uma relação escravocrata, pois,
conforme os registros da primeira lei de 1570 que determinou a “liberdade”, ela também
legitimou o aprisionamento pelo uso do trabalho compulsório justificado por “guerras justas”.
Em outras palavras, o uso da violência dos agentes coloniais se justificava caso houvesse
rejeição e negação dos nativos à conversão e a missão espiritual/ temporal dos agentes
religiosos (PUNTONI, 2002).
Nos relatos coloniais existem muitas dúvidas acerca dos etnônimos e da veracidade dos
registros, o termo tapuia demonstra essa questão ao ser descrito de distintos modos nos relatos
de missionários, crônicas e registros “oficiais”. O relato de Anchieta, em 1584, revela que havia
uma disputa nas alianças coloniais com os grupos indígenas, a exemplo dos costeiros falantes
do tupi com os do interior, que possivelmente realizavam um tipo de percurso sazonal, também
eram caracterizados por construção de casas, dormirem ao ar livre e serem mais inclinados à
caça. Conforme sugere Anchieta, o termo tapuia parte dos Tupi com a tradução de “escravos e
não-aliados”, os ditos inimigos contrários numa tradução que derivou da aliança tupi com os
lusos, resultando em uma troca cultural enorme (POMPEU SOBRINHO, 1939; REESINK,
2002; CUNHA, 2011).
As descrições de Gabriel Soares de Sousa, no Tratado Descritivo do Brasil, em 1587,
nos dão algum indício de como os tapuias eram apontados. A obra tenta construir uma imagem
5 “Nós, que, embora indignos, exercemos sobre a terra o poder de nosso Senhor e buscamos com todas as nossas
forças recolher as ovelhas dispersas de seu rebanho no aprisco a nós confiado, consideramos, no entanto, que os
índios são verdadeiramente homens e que eles não só são capazes de compreender a fé católica, como, segundo
nos informaram, anseiam sobremaneira recebê-la. Desejosos de prover amplo remédio para estes males, definimos
e declaramos pela presente Encíclica, ou por qualquer sua tradução assinada por qualquer notário público e selada
com o selo de qualquer mandatário eclesiástico, a quem se deve dar os mesmos créditos que às autoridades
originais, que, não obstante o que quer que se tenha dito ou se diga em contrário, os ditos índios e todos os outros
povos que venham a ser descobertos pelos cristãos, não devem em absoluto ser privados de sua liberdade ou da
posse de suas propriedades, ainda que sejam alheios à fé de Jesus Cristo; e que eles devem livre e legitimamente
gozar de sua liberdade e da posse de sua propriedade; e não devem de modo algum ser escravizados; e se o contrário
vier a acontecer, tais atos devem ser considerados nulos e sem efeito.” ([escrito por Paulo III em 29 de maio de
1537] Bula do Papa Paulo III, acervo do Centro de Estudos de História do México, 1755).
29
da história indígena e sugere uma narrativa para diferentes grupos indígenas em relações de paz
e guerras na região interiorana e da costa. Os Tapuias são colocados como os diversos grupos
interioranos, sendo os índios dos sertões que migraram dos interiores para a costa e foram
expulsos pelos Tupi (agrupados em Tupinambá, Caeté, Tupinaés, chamados de indígenas
costeiros). Segundo consta no relato do senhor de engenho e explorador de minério, o termo
tapuias foi retratado como uma classificação para os diferentes grupos, sendo um grupo de
“diferentes castas, costumes diferentes e contrários entre si” (SOUSA, 1851 [1587], p. 341).
No relato do cronista, as regiões dos interiores dos sertões e agrestes são descritas como
habitadas por tapuias com diferentes características.
Ao longo deste rio vivem agora alguns caetés, de uma banda, e da outra vivem
tupinambás; mais acima vivem os tapuias de diferentes castas, tupinaés, amoipiras,
ubirajaras e amazonas; e além delas vive outro gentio (não tratando dos que
comunicam com os portugueses), que se atavia com jóias de ouro, de que há certas
informações. Este gentio se afirma viver à vista da Alagoa Grande, tão afamada e
desejada de descobrir, da qual este rio nasce. E é tão requestado este rio de todo o
gentio, por ser muito farto de pescado e caça, e por a terra dele ser muito fértil como
já fica dito; onde se dão mui bem toda a sorte de mantimentos naturais da terra
(SOUSA, 1851 [1587], p. 341, [grifo de minha autoria]).
Através das descrições de Gabriel Soares, em torno da região do São Francisco, observa-
se que a classificação de tapuias era genérica e abrange distintas unidades sociais, sendo
utilizada pelos colonizadores portugueses para designar a posição geográfica de diferentes
indígenas com seus conflitos intergrupais. Desse modo, tapuias não representava uma unidade
cultural, mas sim uma classificação genérica para uma pluralidade sociocultural. O cronista e
viajante também nos apresenta uma série de descrições em torno das características musicais e
espirituais de grupos tupi e não tupi, abordamos especificamente os instrumentos de sopros
indígenas (búzios feitos de concha do mar, trombetas e trompas utilizadas como instrumentos)6.
A classificação tapuia também é associada à categoria de “índios amansados”, aqueles
que foram aldeados e que ajudavam nas missões dos aliados portugueses, demonstrando que
estes grupos estavam em contato e estabeleceram um convívio, com o estabelecimento de uma
distinção cultural (PINTO, 1956). Robert Lowie (1946, p. 553) chegou a afirmar sobre o
6 “Trazem os amoipiras os beiços furados e pedras neles como os tupinambás; pintam-se de jenipapo, e enfeitam-
se como eles; e usam na guerra tambores que fazem de um só pau, que cavam por dentro com fogo tanto até que
ficam mui delgados, os quais toam muito bem; na mesma guerra usam de trombetas que fazem de uns búzios
grandes furados, ou da cana da perna das alimárias que matam, a qual lavram e engastam num pau. Em tudo o
mais seguem os costumes dos tupinambás, assim na guerra como na paz, dos quais fica dito largamente no seu
título. Estes amoipiras têm por vizinhos no sertão detrás de si outro gentio, a que chamam ubirajaras [‘senhores
dos paus’], com quem têm guerra ordinariamente, e se matam e comem uns aos outros com muita crueldade, sem
perdoarem as vidas, quando se cativam” (SOUSA, 1851 [1587], p. 336).
30
aspecto classificatório genérico: “The inevitable conclusion is that "Tapuya" is a blanket term
like "Digger Indian" or "Siwash" in North America. No good purpose is served by considering
them as a linguistic or ethnic unit.”. Desse modo, o que está em evidência é um sistema de
relação que procura através de categorias classificatórias atribuir características e valor para
definições de grupos sociais. Pompeu Sobrinho (1939, p. 225) demonstra essa questão quando
afirma: “[...] os tupís consideravam os tapuias como gente inferior, espécie de bárbaros
americanos. Para nós, tapuia é o índio não tupi, o ameríncola que não se expressa na língua
geral ou qualquer dos seus dialetos, mas fala uma língua travada, conforme a pitoresca
designação dos cronistas coloniais”. De acordo com o relato, o sistema de relações ditado pela
separação e oposição de identidades por características, aponta a língua como um alto
demarcador étnico, sendo a língua geral duas possibilidades para os colonizadores: 1.
decorrente do tupi, 2. uma língua geral que se desenhava nos sertões sob influências
desconhecidas. Logo, é possível formular que diferentes nações indígenas habitavam estas
regiões, de modo relacional e dinâmico com migrações, intercâmbios e trocas culturais. Como
destaca o relato do reposteiro do príncipe Maurício de Nassau, Zacarias Wagner, acerca dos
Tapuias: “êsses índios não permaneciam por muito tempo em um mesmo lugar, mas vagueavam
acima e abaixo, em busca de todo tipo de raízes estranhas, de cobras e pássaros silvestres”
(apud PINTO, 1935, p. 192).
Pelos registros a região da bacia hidrográfica do rio São Francisco agrupava diversas
nações indígenas que caçavam, migravam de modo sazonal, aproveitavam da água e do clima
favorável para a possibilidade de uma horticultura de curto e médio prazo (HOHENTHAL,
1960). Desta maneira, é comum na literatura a descrição de que estas unidades sociais
desconhecidas tinham como característica uma rota sazonal de migrações e deslocamentos por
percursos/ terrenos já conhecidos na temporada do caju (planta nativa da região) e demais, a
que Reesink (2002) atribui a uma espécie de trekking, configurado como expedições e
deslocamentos que aproveitem territórios conhecidos - por descendentes e investigações – com
saída temporária.
De acordo com John Monteiro (2001) esta visão histórica pautada pelo binômio tupi e
tapuias indica um simples jogo de aliança e conflito com colonizadores e as diversas nações
indígenas, mas, que, como detalhado, invisibiliza a questão de uma pluralidade étnica e
processos históricos a que o próprio binômio nos indica. Como detalha o autor, numa visão
geral da colonização, somos levados a pensar que existiam apenas dois grandes grupos: tupis e
tapuias, significando em primeiro momento àqueles que são os contatados na costa e aqueles
31
que estão além do litoral, situados nos sertões costeiros. Essa ideia que descreve aliados e não
aliados marca a construção histórica do senso comum, fundamentada numa ideia positiva de
estaticidade, evolução e progresso, escrita hegemonicamente pela história dos dominadores, ou,
exclusivamente por uma visão histórica fruto da oposição: dominados x dominadores /
perdedores x vencedores. Em contrapartida, torna-se necessário destacar os múltiplos pontos
de vista e sentidos históricos presentes nos regimes de memória.
Desse modo, as complexas imagens que a nossa história guarda são distintas do ideal
de uma colonização linear totalmente impulsionada do lado europeu. Os cultos e missas
católicas eram feitas nos idiomas nativo e estrangeiro, enquanto os cristãos pegavam seus
instrumentos, roupas e rezas para compor o seu sagrado católico, os Tupi pegavam suas flautas
e chocalhos para mostrar como se protegiam dos espíritos e dos mortos, utilizando os
instrumentos como tática para as guerras e comunicação, conforme indica o relato de Gabriel
Soares (1587). É desse modo que os feiticeiros e curandeiros surgiram aos olhos dos
missionários como pessoas detentoras de práticas e categorias de oposição ao regime da fé que
procurava se instalar. Os circuitos “no mato”, uso de instrumentos materiais, práticas
cosmológicas, de adivinhação, beberagens e técnicas cinegéticas dos indígenas foram vistos
como coisas ou manifestações do diabo por parte dos missionários7. O uso de bebidas
fermentadas que “embebedavam", ditas por Martin de Nantes (1979) e Bernard de Nantes
(1709) como equivalentes aos vinhos europeus, agrupou futuramente um conjunto de
beberagens sagradas, incluindo, o cauim, o culto da jurema, caju, fruto do ouricuri. A luta
religiosa contra as bebidas nativas ocupa um lugar central, segundo Fernandes (2004, p. 358):
“a embriaguez cerimonial inspirou os Catecismos em língua Kariri escritos pelo jesuíta Luis
Vicente Mamiani (1698) e pelo capuchino B. de Nantes (1709)”. O estranhamento dos
religiosos para com os “costumes gentílicos” dos “feiticeiros” e vice-versa operava como um
teste de eficácia de cada sistema religioso mágico-curativo de acordo com as situações
vivenciadas e as curas almejadas, as quais muitas vezes eram inalcançáveis. Todavia, na
tentativa da consolidação temporal e espiritual da fé, só o que lhes restara seria uma alta rejeição
e diabolização das práticas mágico-religiosas curativas e exóticas. Entretanto, os nativos não se
7
Diante de um vasto campo de práticas indígenas (continuidades e descontinuidades) ao longo do tempo e do
espaço, procuro visibilizar práticas localizada no Sertão e Caatinga das Terras Baixas da América Sul, onde o
ouricuri, a jurema, o juazeiro, o imbu e demais vegetais nativos têm uma relação de prestígio através da valoração
das metas particulares de cada grupo social. Consideramos também que tais práticas aparecem sob o ponto de vista
da etnohistória como forma de visibilizar atores sociais e a colonização do colonialismo por parte dos indígenas.
Quantos missionários conhecemos que atuaram de algum modo nos tempos coloniais e imperiais? Porém, quantos
indígenas feiticeiros sabemos e que estão na memória orla como mitos?
32
sujeitaram completamente à conversão, o que causou uma frustração e cansaço por parte dos
jesuítas cujos agiram com o “ardor” da violência. O padre Anchieta (16/4/1563) chegou a dizer
que: “para este gênero de gente, não há melhor pregação que espada e vara de ferro [...]”
(Cartas Jesuíticas Avulsas, [1550 – 1568], 1931; VIEIRA, 1949; LEITE, 1939; DANTAS, et
al., 1992; CORRÊA, 2018). Logo, os ditos “índios” estavam para os “civilizados” como seres
mais próximos da natureza, a qual representava também uma animalidade e selvageria.
Em consequência, os missionários foram vistos na “história brasileira” como religiosos
construtores de jardins para armazenamento de plantas alimentícias, medicinais e terapêuticas.
Entretanto, a realidade é que muitos grupos indígenas manuseavam vegetais e os classificavam
ao seu modo. É deste modo, que, muitos termos conhecidos advêm do tupi, como: caju, cajá,
jurema, caatinga. Consequentemente, inicia-se uma tensão entre as concepções classificatórias
em conjunto as suas ontologias e epistemologias gerando um conjunto de estigmas e
marginalizações em torno de práticas religiosas com uso de plantas terapêuticas que se
atrelavam a reprodução social. A implementação de um regime religioso e moral foi posto em
prática pelos portugueses para atender a necessidade de controle territorial, através do
agrupamento e reorganização dos diferentes grupos que estariam sujeitos a um sistema de
lideranças e aos postos de autoridade.
Os estrangeiros visavam o controle das rotas do comércio para a exploração das regiões
e dos recursos naturais. Depois, a instalação das colônias para forçar a escravatura aos “naturaes
da terra”, “primitivos” e “selvagens”8, cujos passaram do escambo para a mão-de-obra com
relações escravocratas. Essa relação inicial de dependência entre índios e colonos para o
alojamento das colônias e bases militares, é vista no relato de um velho nativo Tubinambá do
Maranhão que apontou a similaridade do mesmo modelo colonial entre os peró [portugueses]
e os franceses9. O relato desse Tupinambá demonstra a construção de uma relação de
interdependência nas Terras Baixas da América do Sul.
8 Termos usados respectivamente por Pero Vaz de Caminha, padre Anchieta (1534 - 1597) e pelo frei Yves d’
Évreux (1577 – 1632) como projeções ocidentais aos que ali já habitavam.
9 Este é um registro anterior e tão marcante quanto a carta do cacique Seattle, em 1855, que consagrou a oposição
cosmológica Suquamish frente ao governo dos EUA. “Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e
Potiú; e começaram eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar sem
pretenderem fixar residência […] Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a eles e que precisavam
construir fortalezas, para se defenderem, e cidades para morarem conosco […] Mais tarde afirmaram que nem eles
nem os paí [padres] podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. Mas não satisfeitos com
os escravos capturados na guerra quiseram também os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação
[…] Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizeste somente para traficar […]
Nessa época não faláveis em aqui vos fixar; apenas vós contentáveis com visitar-nos uma vez por ano […]
Regressáveis então a vosso país, levando nossos gêneros para trocá-los com aquilo que careciamos. Agora já falais
de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos contra os nossos inimigos. Para isso,
33
A conquista apresenta em seu histórico uma relação de forças pelos seus protagonistas.
No século XVII, dentre os agentes coloniais estavam: colonos, agentes da Coroa e missionários.
Essa tríade compunha um conjunto de forças e projetos de expansão distintos. Os religiosos
assumiram uma posição ambígua, pois ao mesmo tempo em que tinham conflitos com os
“índios”, também buscavam protegê-los das investidas e violências dos colonos e demais
autoridades locais. Desse modo, os agentes religiosos como: os capuchinhos franceses, os
protestantes batavos e os jesuítas portugueses representavam interesses específicos, mas,
concordantes com as suas matrizes10 (SERAFIM LEITE, 1940; POMPEU SOBRINHO 1939;
REESINK, 2002; FERNANDES, 2009 [1975]). A indução forçada da ética cristã utilizou dos
chamados curumins/ curumí/ colomin, vistos pelos missionários como os intermediários da
cultura, sendo os agentes de uma moral em construção induzida pelas diretrizes de reorientar a
cultura nativa tendo como vetor os valores católicos (FREYRE, 1984).
Os holandeses que promoveram o protestantismo ocuparam Pernambuco até a região de
Paulo Afonso (1630 – 1654), eles estabeleceram relações de exploração das rotas de comércio
e, posteriormente, de guerras com os portugueses. Ambas as frentes coloniais batavas e lusas
formaram invasões exploratórias e linhas de batalhas para conquistar as terras, garantir as
colônias e prosperar politicamente. Os batavos além de enfraquecer as missões e promoverem
o protestantismo, também formaram alianças com os ditos tapuias, vistos nos documentos como
os inimigos dos portugueses e dos Tupi. As alianças com determinados grupos tapuias foram
por intermédio de Willem Glimmer e de Jacob Rabbi, cujo segundo atuou como intérprete na
Companhia das Índias Ocidentais Holandesas e liderou um grupo de Potiguares e Janduí, em
alguns confrontos nos engenhos portugueses de cana de açúcar. Tais conflitos resultaram em
grandes batalhas definidoras para o futuro colonial. O evento marcante entre os portugueses e
os holandeses - com seus respectivos aliados para a dominação territorial - é referente aos
confrontos da Batalha dos Guararapes em 1648-49, que teve como consequência a derrota e a
negociação da saída dos holandeses da costa. Este evento é conhecido como parte da Insurreição
trouxestes um Morubixaba e vários Paí. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo […] Como
estes, vós não queríeis escravos, a princípio: agora os pedis e os quereis como eles no fim […] (CUNHA, 2011, p.
15, apud Abbeville, trad. Sérgio Milliet, 1975 [1614]:115-6)
10 Em 1549, o jesuíta Antônio Nóbrega chega na costa e após três anos de permanência declara, que, devido aos
conflitos decorrentes do regime religioso, a tese de que era lícito conservar alguns costumes do gentio que não
fossem contrários à fé católica. Por outro lado, estas ações não livraram todas as práticas, pois alguns costumes
eram duramente reprimidos sendo a “desmoralização e os castigos físicos as técnicas para afastar a ação dos pajés”
(THALES DE AZEVEDO, 1959, p. 86). A carta de A. Nóbrega ilustra a tentativa de contenção de determinados
conflitos religiosos e territoriais entre os grupos que se reorganizavam nos aldeamentos impostos pelos
portugueses e missionários, que buscavam sancionar a fé e impor uma moralidade católica (SERAFIM LEITE,
1940).
34
Pernambucana, que foi estabelecida pelo Tratado de Taborda, em 1654, no qual os holandeses
abdicaram das terras e posses conquistadas do Novo Mundo. Após essa guerra, em sua segunda
fase exploratória, a Coroa portuguesa investiu nas Missões e formação de agrupamentos na
região do São Francisco, com a intenção de desterritorialização e destribalização.
Na segunda fase, após a expulsão dos holandeses, a colônia portuguesa explorou os
sertões para dominar as terras do rio São Francisco11. Após os desgastes dos conflitos foram
necessárias novas medidas da Coroa de Portugal para uma nova administração das terras, sob
a tentativa de estabelecer o controle dos Povos Indígenas e concretizar os aldeamentos. As
atividades portuguesas de conversão e exploração das terras tiveram as suas principais
repercussões a partir de 1650. A criação da Junta Geral das Missões, em Lisboa, no ano de
1655, realizou o projeto colonial das expedições e aldeamentos dos índios do sertão, que
subordinava as Juntas das Missões nas Capitanias para o reconhecimento e controle do
território. Como ocorreu nas regiões da Bahia em 1688, no Pará em 1701, na cidade de São
Paulo no ano de 1746 e no Rio de Janeiro em 1750. Na região de Pernambuco o projeto colonial
ocorreu por ordem do governador, Luiz de Brito Almeida ordenou uma exploração aos sertões
- nas terras do rio São Francisco - pelas Capitanias Pernambucanas para vistoriar e implementar
as aldeias indígenas. Tais investidas resultaram em inúmeros conflitos e impasses com os povos
indígenas interioranos, tendo como resultado a criação da Junta das Missões, por carta régia em
7 de março de 1681, com representantes das Ordens Católicas, Capitão-Môr e o Governador de
Pernambuco, cujo recebeu o título de “defensor público dos índios e tapuios” (HOHENTHAL,
1960; PINTO, 1956).
Durante o período colonial a tentativa de formar Companhias portuguesas para expulsar
os estrangeiros europeus e marcar uma frente exploratória foram constantes, por meio da
formação de postos de autoridade que marcava hierarquias, criação de fazendas e vilas, as quais
tiveram a imposição temporal e espiritual da religião católica. A principal ação e função católica
era comandar um agregado de “índios” para facilitar as explorações, para isto, foi estabelecido
o foco nas traduções dos idiomas para uma comunicação comum, vista posteriormente como a
“língua geral”. Sob determinação do Rey, os agentes coloniais tinham o objetivo de sujeitar os
grupos e seus segmentos sob o domínio temporal, na tentativa de impor um modelo de moral e
valor. As forças religiosas representavam um enorme apoio ao projeto de colonização dos seus
países e a estruturação dos aldeamentos. Ao mesmo tempo em que o contexto religioso
11
O rio São Francisco foi visto e registrado pela expedição de Américo Vespúcio, em 4 de outubro de 1501.
Entretanto, podemos considerar que o rio e os seus afluentes sempre foram meios para a sobrevivência dos grupos
nativos que utilizavam dos seus recursos naturais.
35
construía um corpo simbólico no espaço social, a pecuária dominava as terras usando o gado
como instrumento de expansão. Estas ações estavam associadas à necessidade de controle
territorial e dos recursos, se de um lado a religião católica procurava reunir os índios
“descidos”12 dos sertões para atuarem como vassalos dos portugueses, do outro o gado se
espalhava pelas terras (PERRITONE-MOISÉS, 1990). Logo, ao longo dos tempos, os modelos
de organização das fazendas, vilas e aldeamentos planejados pela Coroa portuguesa buscaram
descaracterizar o estilo indígena e vida tapuia, com a intenção de remover a política
organizacional territorial e autonomia étnica. No entanto, para os agentes coloniais
administradores da Coroa era favorável criar acordos de submissão entre colonos e indígenas,
uma vez que as alianças com os distintos grupos reunidos legitimam o poder da Coroa e
consolidam áreas de bases militares para as guerras, que resultaram em benefício fundamental
para a Coroa, sob a ideia e imagem de “proteção” com o escudo do governo que reflete a luz
do Deus cristão. Essa tríade de agentes constituiu muitas divergências em torno das “guerras
justas” e da relação do trabalho escravocrata indígena, estando o acervo ideológico e conflito
cultural como elemento central no desenvolvimento societário (CUNHA, 2011; GALINDO,
2010; DANTAS, 2010; SCHRÖDER, 2012).
As dinâmicas territoriais tiveram enormes repercussões com os regimes impostos de
submissão (FERNANDES, 2009 [1975]) os quais formaram as colônias, fazendas e,
posteriormente, as vilas no final do século XVII. As forças da Coroa e da Igreja exerciam o
poder colonial nas explorações e disputavam o controle acerca da imposição de um sistema
hierárquico. A Capitania de Pernambuco doada pelo Rei Dom João III ao Capitão Donatário,
Duarte Coelho Pereira, foi um dos poucos locais de sucesso inicial na formação da colonização.
A Capitania pernambucana foi responsável pelo cultivo da cana-de-açúcar e expansão
açucareira, ainda, que, com os seus “altos e baixos” econômicos, ela serviu de pólo de
desenvolvimento. Se no período quinhentista pré-colonial o tema era explorar e realizar o
escambo, sendo o Ibirapitanga/ Pau-Brasil (Paubrasilia echinata) e demais recursos naturais a
marca exótica do “Novo Mundo”. Nos anos seiscentistas a preocupação colonial era manter a
exploração, definir territórios, cooptar mão de obra praticamente escrava e conquistar alianças
para formar aldeamentos. Eram grandes os conflitos territoriais, o cenário de insegurança que
12
Como indica a autora (PERRITONE-MOISÉS, 1990, p. 118): “Constantes e incentivados ao longo da
colonização (desde o Regimento de Tomé de Souza de 1547 até o Diretório Pombalino de 1757), os descimentos
são concebidos como deslocamentos de povos inteiros para novas aldeias próximas aos estabelecimentos
portugueses. Devem resultar da persuasão exercida por tropas de descimento lideradas ou acompanhadas por um
missionário, sem qualquer tipo de violência. Trata-se de convencer os índios do “sertão” de que é de seu interesse
aldear-se junto aos portugueses, para sua própria proteção e bem-estar”.
36
ocorria entre os exploradores e os já habitantes era constante, inclusive, nos espaços religiosos
que se formavam. Diversas investidas exploratórias e invasões acabaram em mortes e fracassos
de ambos os lados, fazendo com que houvessem muitas migrações e reorganizações dos grupos,
derivadas dos conflitos para aquisição e exploração das terras (PUNTONI, 2002; POMPA,
2011).
Se na primeira fase da colonização houveram excursões em direção aos “índios”, no
segundo momento, surgiram as tentativas de agrupamentos dos “índios” em núcleos sob a
autoridade da Coroa, impondo uma forma de integração forçada pautada pela educação por
sujeição, que visava a desconfiguração dos modelos nativos e consequentemente a
implementação do sistema de dominação. Conforme os relatos, os “índios” dos sertões e
interiores foram vistos como difíceis de serem convertidos pela sua mobilidade e circulação,
sendo de difícil permanência, estando próximos da possibilidade da conversão, mas, ao mesmo
tempo, distantes em sua prática, sendo vistos como “brabos” e “instáveis por natureza” pelas
suas fugas e hábitos de ir ao mato.
Sobre os Indios, que fugirem de umas Aldeas, se não admittirem em outras, nem os
moradores os consintão em suas cazas
Caetano de Mello de Castro: amigo: Eu El Rey vos envio muito saudar. Mandando
vêr o que escreveu o Bispo d'essa Capitania pela Junta das Missões sobre as queixas,
que ha entre os Padres da Companhia, Carmo e Sam Bento, Capuxos, e Congregados
de lhes fugirem de umas Aldeas, para as outras os índios das que administram do Rio
de Sam Francisco da Nação Cabocollos, o que o dito Bispo entende não ter remedio
pelo perigo de fugirem para o matto, quando não sejão admittidos nas Aldeas, para
onde fogem : Me pareceu ordenar-vos informeis expecialissimamente desta materia,
e achando que não ha perigo, que considera o Bispo, passeis as ordens necessarias,
para que os fugidos de umas Aldeas se nam admittam em outras, nem os possam
receber os moradores em suas cazas, e havendo o dito perigo lhe apliqueis aquelle
remedio, que a experiencia tiver mostrado que é mais conveniente para se
conservarem na doutrina da fé, que tem adquerido, ou seja em umas ou em outras
Aldeas, e ao Bispo se encommenda o mesmo pelo que lhe toca.
Escripta em Lisboa a 10 de janeiro de 1698 = Rey (Informação geral da Capitania de
Pernambuco [1749], publicada nos Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
1906 [1908], p. 386-7 [Sublinhado e grifo do autor])
13
Conforme a referência, el Rey envia uma carta ao Governador de Pernambuco para detalhar a importância do
exercício espiritual nos aldeamentos através da “conversão da gentilidade” e “propagação da fé católica”, porém,
destaca que a conversão deve ocorrer com menos fervor e severidade, inclusive el Rey ameaça a expulsão dos
religiosos que não fizerem o bom exercício da santa fé e da conversão da gentilidade. Informação geral da
Capitania de Pernambuco [1749], publicada nos Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 1906 [1908], p.
381.
38
14 Uma das imagens históricas colocadas no Brasil recorrente na etnologia (FREYRE, 1984; HOLANDA, 1995;
SCANTIMBURGO, 1971) parte das comparações entre os processos e tentativas de escravatura dos “negros” e
“índios” em decorrência dos seus processos de desterritorialização, da submissão da autonomia e não
permissividade a escravização, no entanto, detalho que a complexidade histórica se revela de modo mais amplo.
Para uma análise mais precisa consideramos que é necessário resgatar trajetórias históricas relacionadas com as
mudanças de posições sociais, ver: Perritone-Moisés (1990), Corrêa (2018) e Cunha (1985).
39
cenário de conflitos por terra e poder entre posseiros, religiosos e indígenas nos sertões, que
teve como consequência a desterritorialização e destribalização com base na violência resultado
em fugas, migrações e rearranjos étnicos. Dessa maneira, os conflitos coexistiam com as
tentativas de apropriação das terras, visto que a invasão e as conquistas formam um cenário de
desterritorialização, expropriações e rearranjo organizacional.
O reconhecimento dos “índios” enquanto antigos donos da terra - por parte dos agentes
coloniais (colonos, posseiros, religiosos), tratou-se de uma relação ambígua, pois as colônias
em expansão eram projetos ainda na tentativa de consolidação. Dessa maneira, a concessão de
terras da Coroa às Missões passava pela rejeição da Casa da Torre e de Garcia de Ávila, que
via nessa ação uma diminuição das suas futuras conquistas e autoridade. O termo “légua em
quadra” foi surgido em 1663 e disposto em carta régia por El Rey, em 1695, destinado à
concessão de terra para o estabelecimento dos aldeamentos, sob o regime religioso e da lei.
Como detalha Reesink (1984), o próprio termo da época é referente à marcação e definição dos
limites da terra conforme a instalação das igrejas e casas de apoio nos aldeamentos. Este marco
aponta para um regime mediado pela fé, sendo a Igreja a saída das coordenadas principais para
o pião, ou seja, os rumos ou vestígios de definição da légua em quadra. Como visto por Reesink
(1984) nos casos dos Kaimbé e Kiriri a definição de terras varia conforme as circunstâncias e a
própria interpretação dos procedimentos de mediação, assim como na concordância entre a
demarcação de fora (missionários) e a demarcação de dentro (indígenas) (REESINK, 1984,
p. 133), sendo estas circunstanciais com disputas de poder que conferem reconhecimento e
legitimidade à demarcação e modelo de habitação da porção de terra. O notório exemplo do
território Kiriri assume como forma um octógono, devido à referência de auto-demarcação -
das léguas em quadras - associada aos rumos ou lados da época pelos oito pontos cardeais: a
rosa dos ventos (REESINK, 1984).
Em muitos casos, os missionários se tornaram elementos mediadores entre os “índios”,
a Casa da Torre e o Rei de Portugal, sob o intuito de reconhecer e doar terras às Missões e aos
aldeamentos. As tensões provocadas pelas disputas territoriais entre os missionários e a Casa
da Torre - que gerenciava as sesmarias - envolveram na reiteração das leis de terras nos séculos
seguintes. Como forma de apaziguar os conflitos decorrentes, a Coroa decretou o Alvará Régio
de 1700, que resultou na “doação” e agrupamento de um mínimo de população indígena em
aldeamentos, com medição da época de uma “légua em quadra” de terra.
Consequentemente, o Alvará citado documentava oficialmente a posse e domínio
territorial como sendo dos “índios”. Porém, de modo prático estas ações surtiram pouco efeito
40
nos posseiros e sesmeiros que controlavam fazendas e lidavam diretamente com os nativos.
Este choque nas relações de apropriação e uso dos recursos naturais resulta em uma série de
respostas dos “índios”, os quais eram protagonistas das suas vidas. Ainda, em 22 de maio de
1703, o rei enviou uma carta régia ao desembargador, Cristóvão Soares Reyman, ordenando o
cumprimento da criação dos aldeamentos, com os seguintes termos:
Se os indios não se quizeram aldeiar, se ham de obrigar com o poder das armas […]
Se fugirem á minha obediencia, e se forem para o mato paresse se fazerem transfugas
pois em lhe faltando de comer no certam vem roubar os Portuguezes no Povoado em
assaltos e passam a traidores e ladrões e ficam dignos de morte e de se lhes fazer a
guerra (carta del Rey, 22 de maio de 1703) [Informação geral da Capitania de
Pernambuco [1749], publicada nos Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
1906[1908], p. 384].
Segundo a carta régia, a menção de “ir ao mato” ou “fugir para o mato”15 nos fornece
indícios de que tal prática possivelmente era corriqueira na criação dos aldeamentos, uma vez
que a menção na carta já prevê uma diretriz para as ações coloniais que coloca à disposição o
“poder das armas”, que, em outras palavras é o uso da violência por “justa-causa” para agrupar
e conter os indígenas. Podemos pensar que, por parte dos índios, fugir ao mato significava um
modelo de operação para a manutenção do modo de vida autônomo, preservando vínculos
territoriais e saberes, que apenas o “índio” teria sabedoria e acesso, ou, poderia indicar locais
de apoio já conhecidos para a sua sobrevivência. Portanto, a formação de sítios coexistiu com
os rearranjos sociais organizacionais e territoriais em uma disputa de forças.
Alguns teóricos como Meyer Fortes e Evans-Pritchard (1940) destacam nas sociedades
africanas paralelos nos polos estruturais das relações de interdependência decorrentes de
situações de coerções e conflitos, moldadas pelo modo de ser, ter e saber dos grupos em contato/
tensão, assim como pelos papéis sociais desempenhados nos sistemas de linhagem e autoridade
na estrutura política. Segundo os autores, as adesões através dos símbolos de solidariedade
organizam valores finais, que estabelecem uma moldura territorial e valorativa dos grupos que
atuam com significado ideológico. Uma preocupação central dos autores ocorre pela
15A menção também era atribuída aos “Callambollas” em sua fuga aos “Quillombos” como demonstrado na carta
da Informação da Capitania de Pernambuco. Ilustra-se, dessa maneira, para ambos os casos, dos quilombolas e
dos indígenas, uma menção à fuga e rejeição ao estilo de vida e controle colonial. Desde os relatos do padre
Anchieta (apud MENDES JÚNIOR, 1912, p. 21), os indígenas fugiam ao mato para escapar das tiranias da
escravidão colonial e da consequente separação dos seus familiares. Em outras palavras, aqui, busco apontar a
preservação de espaços de resistência e de práticas culturais - contraculturais à colônia - que estabeleceram uma
continuidade religiosa e territorial com a ideia de “ir ao mato”. Conforme detalha Lindoso (2007, p. 38), o
Quilombo dos Palmares como o oitero do Barriga utilizava de táticas tupinambá (e mais povos étnicos) de
acampamento e defesa, chamadas de cercas reais, no duplo sentido de agregar um corpo de pessoas com posições
semelhantes e fornecer tática de guerra de proteção com vigas de madeiras entrelaçadas. Tais táticas foram
inicialmente descritas em H. Staden (1556) na sociedade tupinambá no litoral paulista.
41
suas atribuições. As fazendas que se expandiram usando o gado como estratégia econômica
colonial de sustento e exploração se contrastam socioeconomicamente com a caça indígena e
os seus modos de subsistência, que via o gado como disponível para a alimentação. Desse
modo, os modelos de subsistência e as distintas concepções ao território estavam aproximando
mundos distintos para uma situação de contato e conflito. Segundo Galindo (2011, p. 168), no
final dos anos seiscentistas se inicia uma espécie de “lumpesinato” 16– que se caracteriza pela
saída das comunidades originais para as periferias das oligarquias regionais. Dessa maneira,
através da instalação do “trabalho” formal, os grupos étnicos se agregavam na população
marginal dos assentamentos.
Reesink (1983, 2000, p. 372) ressalta na formação de uma sociedade “cabocla” as
configurações sociais que se integram no estilo camponês pelo incentivo de núcleos agrários
produtivos. Reesink (2000) cita o termo “campesinidade” que se reveste pelo sentido de
instalação do modelo rural, porém, ao mesmo tempo, reveste-se de um fortalecimento étnico
pelo campo religioso. Em suma, o que a literatura nos detalha é que o projeto dos agrupamentos
de unidades populacionais agrárias, na América Latina, formou-se com a presença de categorias
objetivadas pelas distribuições de terras aos coletivos sociais. Sob as forças coloniais este
projeto seguiu duas formas no estabelecimento das populações de base agrária: a étnica e a
camponesa. A instalação de grupos étnicos e camponeses em propriedades coletivas rurais
tiveram aspectos semelhantes em sua organização, porém, com atuações distintas nos processos
de formação e ação enquanto sujeito coletivo político (WEBER, 1999; PERRITONE-MOISÉS,
1990).
16 Como destaca Galindo (2011), essa proposta teórica faz uma alusão aos estudos da sociologia marxista –
Lumpenproletariat - que propõe a relação entre os indicadores de camada social e consciência política através das
atividades marginais do mundo do trabalho e da produção social.
43
17O jornalista Mario Melo (1930) arrisca uma linha semântica do termo Carnijó, a sua explicação aponta o nome
para uma derivação do tupi. “Carijo é palavra tupi, corruptela de cari-ió, descendente de branco, o que tem sangue
europeu; carnijó parece, diz T. Sampaio, corrupção cará-ni-ió, o cará se arranca, onde se colhe o cará” (MELO,
1930, p. 182). Ainda que os registros coloniais e dados etnólogicos forneçam tais informações iniciais, as
referências e evidências não confirmam uma interpretação única ao termo, mostrando-nos a literatura mais
hipóteses e elaborações acerca do assunto.
44
[...]Villa do Penedo
Aldea de São Braz, Invocação Nossa Senhora do O'. o Missionario é Religiozo da
Companhia de Jezus: tem duas nações de Cabocollos da Lingua Geral de Nações
Cariris, e Progéz,
Aldea da Alagoa comprida, Invocação S. Sebastiam; não tem Missionario e tem uma
só nação de índios Carapotios.
Aldea do Parn de Assuquar, Invocação Nossa. Senhora da Conçeição, o Missionario
é Sacerdote do Habito de Sam Pedro, tem uma Nação de Cabocollos da Lingua Geral
chamados Chocós.
Aldea da Alagoa da Serra do Comonaty Invocação Nossa Senhora da Conceyção, o
Missionário é Sacerdote do Habito de Sam Pedro, tem uma nação de Cabocollos da
Lingua Geral chamados Carnijós.
Freguezia do Ararobá
Aldea do Ararobá, o Missionario é Religiozo da Congregaçam de Sam Filippe Nery,
tem uma nassam de Tapuyos, Chururús, com 642 pessoas.
Aldea dos Carnijós sita na Ribeyra do Panema, Lugar da Lagoa, o seu
Missionario é Sacerdote do Habito de Sam Pedro, tem uma nassam de Tapuyos,
chamados, e 323 pessoas […]
(Informação geral da Capitania de Pernambuco [1749], publicada nos Annaes da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1906 [1908], p. 421 [grifos do autor])
Este é um dos principais documentos que vincula a doação de terra por carta régia à
formação dos aldeamentos situando a posição e situação dos Carnijós. Este documento aponta
para duas diferentes aldeias de Carnijós, situadas nas regiões serranas próximas ao rio Ipanema.
Ainda, é possível detalhar, que, nessa época, esses indígenas já enfrentavam uma tentativa de
remoção e apagamento da língua e identidade indígena, através da imposição da denominação
de “Cabocollos” e da inclusão com uma “língua geral”, que pode indicar uma língua utilizada
nos sertões com diferentes influências como o Kariri, uma vez que a presença tupi foi pouco
relatada18, ou, ainda há a probabilidade de ser simplesmente a desinformação e falta de
informação da realeza portuguesa. Todavia, essa informação se situa historicamente em uma
época próxima à reorganização da Coroa portuguesa.
Em 1757, foi instituído o Diretório Geral dos Índios, impondo uma série de medidas
administrativas para o exercício do Estado, com a finalidade de proteger o território colonial e
o fortalecimento das unidades metropolitanas. Dentre as ações da era pombalina para o controle
político-administrativo do governo português estavam: a consolidação fixa dos impostos;
criação de companhias de comércio; a expulsão dos jesuítas para aprofundar a reforma
educacional; e no que tange aos índios foi estabelecido um controle da escravatura pela
diferenciação entre os “índios” chamados de “negros da terra” e os “negros” com origem étnica
18 Os estudos linguísticos foram tão escassos no período colonial, que, apenas a abrangência das famílias
linguísticas Kariri que abrangia o Ceará, Paraíba e sertão setentrional da Bahia foram classificadas: Kipeá,
Dzubukuá, Kamuru e Sapuyá, pelos estudos de Mamiani (1698) (DANTAS; et al., 1992).
45
Tendo em vista as imbricadas redes de relações entre índios e não índios na região,
torna-se necessário analisar brevemente também um pouco da formação do
aldeamento do Ipanema, em conjunto com o lugar de Águas Belas durante o período
colonial. O aldeamento do Ipanema, tal como se tornou conhecido no final do século
XIX, estava numa área entre a Serra do Comunati e o rio Ipanema, um dos afluentes
do rio São Francisco. O aldeamento foi constituído por fluxos diversos de populações
que habitavam a região, sendo estabelecido a partir de duas aldeias ali existentes em
meados do século XVIII, ambas de índios Carnijó. Antes dessas aldeias, foram
fundadas uma aldeia de índios Carapotó na serra do Comunati, entre 1681 e 1685, e
outra de índios Xocó na ribeira do Ipanema, em 1688 (Costa, 1962: 162; Vasconcelos,
1962: 19). Além da instalação das aldeias, na segunda metade do século XVII foram
feitas doações de sesmarias a alguns indivíduos que haviam combatido do lado
português nas lutas contra os holandeses, iniciando-se assim a criação extensiva de
gado no interior da capitania, aliada a um novo impulso colonizador com o objetivo
de consolidar a possessão americana de Portugal (DANTAS, 2011, p. 414).
Figura 1- Recorte com ênfase no bioma Caatinga da readaptação do Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões
Adjacentes de Curt Nimuendajú (1883-1945), de 1944. Nesta versão do mapa, destaco as aldeias de “Carapotó”
(1746) e de “Chocó” (1746), na região do Nordeste que levantam hipóteses da presença indígena e das suas linhas
de continuidade.
Todavia, visto a falta de precisão e confusão das denominações através das migrações
forçadas pelos “fluxos diversos” de deslocamentos por diferentes causas (DANTAS, 2011), há
nesses registros históricos arbitrariedade na atribuição de etnônimos e a impossibilidade de
confirmar uma sequência cronológica na totalidade da filiação destes grupos. Portanto, torna-
se difícil construir uma continuidade nas transfigurações das filiações étnicas e dos grupos que
habitavam os aldeamentos, ou seja, quais permaneceram e quais migraram, visto que o próprio
termo fluxos nos aponta para uma indeterminação e ocultamento na construção dos dados
históricos. Como dito, cruzamos à falta de informações e um grande hiato histórico em
determinadas épocas, onde as poucas referências não são suficientes para desvendar esse
percurso, tornando qualquer metodologia classificatória frágil. Nesse grande hiato histórico, as
hipóteses apontam para uma migração dos “Shocos” (1680-1720) e, possivelmente, para um
desaparecimento, transformação toponímica ou rearranjo étnico dos Carapotó. Suponho, que,
considerar os Fulni-ô apenas e exclusivamente como remanescentes dos Carapotó e Xocó seja
uma falsa imagem histórica, a qual é frágil pela ausência de informações e a sua não
equivalência com a história oral. Também existem relatos de migração dos Carnijó para
Pernambuco, em 1725, porém sem nenhum dado adicional. Costa (1983) aponta para uma
48
possível migração dos Carnijós através das expedições das bandeiras, por volta de 1722-1725
nos sertões, que derivou nos aldeamentos dos “Carijós/ Carnijós”, mas, não há como relacionar
estes fatos e saber se falamos dos mesmos nativos, uma vez que as classificações genéricas e
apontamentos históricos soam imprecisos19.
Nessa correspondência de reagrupamentos dos aldeamentos se formava uma identidade
que remodelava os padrões da época. Em resposta El Rey teve como projeto instituir uma
condição – termo da “qualidade das pessoas que compõem o país” - às muitas pessoas de
descendência étnica (ameríndia e não ameríndia) ignoradas a priori pela Coroa, que incluídas
no regime da lei eram direcionadas ao reconhecimento racial derivado pelos termos genéricos
e fenotípicos (índio, negro e branco) como vetor sócio-moral ao associar a ideia de substância
das pessoas ao seu comportamento (REESINK, 1999, 2011, 2017). Como destacado na
literatura, as mulheres índias e pretas se tornaram o foco das observações no controle dos
cruzamentos matrimoniais e nascimentos, estando as “índias” e “negras” em posição subalterna
semelhante na formação dos “mestiços”. Este controle também esteve ligado ao controle de
escravos e impostos na colônia (CUNHA, 1985). Dentre os instrumentos da colonização que
objetivavam a “conversão”, sujeição e dominação estavam o uso da “língua geral”
(caracterizada como uma língua comum derivada do tupi) e a identificação com o termo
“caboucollos”20, como àqueles que a grosso modo se submetiam ao regime da fé e do rei.
19 Se formos correlacionar os eventos históricos registrados com a memória oral atual, pode-se destacar a história
mítica da junção de dois grupos (os Fowkhlassa e os Carnijó), que, segundo os relatos, formaram os atuais Fulni-
ô. O entendimento do encontro de povos “tribais” foi etnografado por volta dos anos 30 - descritos por Melo (1930,
p. 183), como: “canijós de Cumunati e carnijós de Ipanema”. Um documento de 1688, conforme destaca Pinto
(1956, p. 67), destaca a presença da nação Xocó, no entanto, Boudin (1949) afirma um possível neologismo
semântico, não confirmando a pertença clânica. Veremos futuramente na tese que a formação do aldeamento e
processo de territorialização Fulni-ô envolve um conjunto de narrativas na história oral, registros institucionais e
etnológicos.
20 (Informação geral da Capitania de Pernambuco [1749], publicada nos Annaes da Biblioteca Nacional do Rio
21 Mendes Júnior (1912) destaca que os nascimentos frutos de cruzamentos interétnicos formaram condições e
status sociais que a Coroa se preocupava em administrar e controlar. “Em summa, pode-se affirmar, sem perigo
de erro, que muitos casaram-se aqui com filhas de europeus, porém mais de duas terças partes se alliaram, por
consórcios e por concubinatos às indígenas, e d’ahi a geração dos que depois foram chamados mamelucos. É
verdade que, nos últimos annos do seculo XVI, já principiaram a entrar africanos; mas, a grande massa delles só
entrou em meados do seculo XVIII, isto é, depois de 1755. Os mamelucos não eram faceis de cruzar com africanos;
ao contrario, os europeus é que foram mais propensos a isso, formando mulatos que, quando cruzavam com
indígenas constituiam o chamado – caribóca, e a que alguns extendiam o nome de cabôclos, primitivamente dado
somente aos filhos de branco e de india, nos quaes prevalecesse o typo indigena” (MENDES JÚNIOR, 1912, p.
25).
22 As referências dos temas estão: Informação geral da Capitania de Pernambuco [1749], publicada nos Annaes da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1906, p. 381 – 400, [Conversão ao Gentio (p. 381), Indios orphãos (p. 400)
[grifos do autor]).
50
pagãos, ou seja, ainda não convertidos, explica como a “gentilidade” era vista pelos religiosos
como algo desafiador pois estariam em outras lógicas. O projeto colonial de sujeitar os
“naturaes d’essa terra” e os “gentis” foi uma presença constante na colonização, que ocorreu
sob uma imposição identitária, coerção e interdependência à mudança da condição de índio
para a de não-índio, como visto nos escritos do Rei de Portugal.
nos “índios antigos” por volta de 1766, quando a antiga missão foi transformada em paróquia
de Nossa Senhora da Conceição do Panema (MELO, 1930). Depois, em 1787, foi homologada
a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Águas Belas. Segundo Vasconcelos (1962) e a
história oral Fulni-ô, o aglomerado e aumento da população branca ocorreu com a chegada da
Igreja e de João Rodrigues Cardoso, cujo foi nomeado para o cargo de Diretor dos Índios pelo
decreto pombalino, por Lourenço Bezerra Cavalcanti de Albuquerque, o Governador de
Pernambuco da época, que autorizou por missão a união dos aldeamentos existentes para a sua
reorganização. João Rodrigues Cardoso foi justamente o responsável pela junção dos
aldeamentos e da implementação do vilarejo de Águas Belas. A sua presença derivou na obra
conhecida localmente: Os Cardosos de Águas Belas (VASCONCELOS, 1962), a qual registra
o aumento da presença branca e dos laços matrimoniais familiares.
A inserção da religião católica também foi um elemento marcante para o modo de vida
regional, que configurou num plano mítico e simbólico a interação dos mundos cosmológicos.
A figura da inserção da “Santa” nos deixa interessantes apontamentos na questão fundiária e
no arcabouço simbólico das relações, acerca da descrição mítica do tempo do contato. A figura
de uma Santa na colonização do Nordeste que tinha como tonalidade o patriarcalismo é vista
em muitos aldeamentos indígenas. Os aldeamentos missionários se formavam, no século XVIII,
com o apoio destes elementos simbólicos que arranjavam seus espaços físicos e psíquicos.
Dantas (et al., 1992) descreveu um quadro de aldeias missionárias no Nordeste no período de
1749 – 1760, com um total de 91 aldeamentos, destes 11 eram Invocação de Nossa Senhora da
Conceição. Todas as reorganizações indígenas têm padroeiros e, em geral, são os próprios
índios que representam a imagem religiosa que se torna o centro da igreja e da aldeia indígena
(REESINK, 1984; DANTAS; et al., 1992). Dessa maneira, podemos representar como
elemento de entrada religiosa das conquistas, as figuras míticas das “Santas” que, numa diretriz
colonial procura não guerrear, mas pacificar e abençoar. Entretanto, o falso pacífico atua como
um “cavalo de troia”, que revela uma estrutura patriarcal de domínio e tendência, mas, também
de dependência do outro/ aborígene. Em outras palavras, o evento da Santa tem em seu corpo
semântico a expansão neocolonial que é dependente da aceitação forçada do índio, por essa
razão, necessita de cuidado dos próprios indígenas para a manutenção da paz e da ordem do
aldeamento. Esta ideia configura a interdependência e relação de apoio mútuo para o
predomínio da comunidade em rearranjo. Concomitantemente, também ilustra o elemento de
participação indígena na formação colonial. Com o passar do tempo a Santa conquistou terras
e espaço material nas T.I., assim como o aspecto afetivo-cognitivo do mapeamento sensorial
52
dos indígenas que buscaram utilizar dessa assimetria pacífica ao seu favor. A “Terra da Santa”
tornou-se uma expressão para se referir à entrada missionária e instalação religiosa, moral e
mítica dos aldeamentos indígenas e nos anos posteriores (ALMEIDA, 1989, 2008, 2009;
QUIRINO, 2012).
Fato é que as dinâmicas e conflitos territoriais aumentaram com o não reconhecimento
das doações das terras e dos direitos indígenas, gerando pressões e casos de violência que se
mantiveram por vários anos com a administração das autoridades locais (VASCONCELOS,
1962; SCHRÖDER, 2012; QUIRINO, 2012). Durante este tempo, diante das artimanhas dos
postos de autoridade do Sargento-Môr e das táticas missionárias, em 1832, foi registrado que
os indígenas “doaram” uma parcela do território à Igreja de N. S. da Conceição. O evento
conhecido na tradição oral, como a “doação à Santa” é considerado miticamente como o início
da formação da cidade de Águas Belas e da comunicação entre os “índios” e os “brancos”
(DANTAS, 2007, 2012b; DÍAZ, 1983, 1992, 2015). A igreja e a religião católica se
consolidaram atualmente nas aldeias indígenas, adorada - e ressignificada à la Sahlins (1968) -
pelos próprios Fulni-ô em sua dinâmica territorial e cosmológica. A Santa de Nossa Senhora da
Conceição transformou-se em Yasaklhane (Nossa Grande/ Santíssima Mãe) e tem um enorme
papel social na aldeia indígena (QUIRINO, 2012).
Nós morávamos em Águas Belas. Aqui era tudo mata, o branco veio e achou as terras
boas e muitas águas boas também, daí eles tiveram inveja e procuraram nos enganar.
Fizeram um povoado e bolaram os índios para correr, queimavam as ocas obrigando-
nos a nos refugiarmos mais distante, em KamaKamira, Cacimba Cercada, Bom
Conselho, Ipanema.
Mas sempre voltávamos a nos juntar de novo aqui neste lugar. Como botar os índios
para correr não era suficiente decidiram fazer uma santa de madeira dizendo ser
Nossa Senhora da Conceição, mãe de Jesus Cristo, que vinha nos proteger, mas
seria preciso dar terras para construir uma igreja para a Santa morar.
Eles botaram a Santa em uma lagoa grande onde os índios gostavam de pescar.
Quando a viram pensaram que era uma pessoa, foram até ela, agarraram-na e
decidiram levá-la para a aldeia. À noite, um branco tirou a imagem às escondidas e
voltou a colocá-la na lagoa. Depois disso se repetir por vários dias, um índio contou
o acontecido para o padre que lhe disse: “Meu filho isso significa que a Santa está
pedindo terra.
“Foi assim que os brancos tomaram nossa terra.
(professor indígena Xixiá Fulni-ô/ sr. Abdon dos Santos, [GERLIC, 2001, p. 9-10]).
indígena. Em contrapartida, está documentado que o Diretor dos Índios Lourenço Biserra
Albuquerque Maranhão enviou um ofício ao Presidente da Província de Pernambuco,
Domingos de Souza Leão, em 12 de agosto de 1864, para verificar a demarcação de um terreno
e tomar medidas acerca desta doação que lhe parecia incoerente. Pois, não era habitual e não
havia até o momento o status de sujeito jurídico aos índios. Possivelmente, conforme aponta
Dantas (2011) e Secundino (1995), a finalidade da “doação” era favorecer o arrendamento da
terra indígena ao não-índio para, consequentemente, dominar o aldeamento indígena, sendo
essa uma ação recorrente nas diretrizes da Lei de Terras de 1850. A lei visava à incorporação
dos nacionais aos aldeamentos “misturados”. Para acompanhar essa estratégia de consolidação
territorial, negando o direito coletivo indígena, foi utilizado pelas autoridades locais uma
diretriz que já vinha sendo imposta pela colônia, sob a ideia de que nos aldeamentos não
existiam mais índios, com a afirmação de que estavam apenas os remanescentes dos Carnijó e
“índios misturados”.
Desse modo, o aldeamento sofreu uma forte tentativa de supressão, os inúmeros
conflitos com os regionais só tendiam a aumentar. Esse hiato nas delimitações da terra Fulni-ô,
fruto das dinâmicas dos diversos agentes realizou um hibridismo23, ou, criatividade
sociocultural formado por uma combinatória e reelaboração cultural. Por enquanto, quero
enfatizar que o projeto de declarar os indígenas enquanto “misturados” foi uma repercussão do
projeto colonial que pareceu se consolidar 200 anos depois, o qual teve como meta final a
tomada das terras. Mas, em resposta, o cenário indígena formou uma identidade que se
diferenciava dos regionais. Ainda que os indígenas fossem “abertos” às santas, aos religiosos e
as dinâmicas inerentes da situação em que viviam. Eles optaram por manter a diferenciação
étnica e resistir às imposições das perdas culturais segundo seus próprios valores. No entanto,
as dinâmicas territoriais e leis de terras imperiais, que marcaram as ações para o futuro não
favoreceram os indígenas que enfrentaram um cenário difícil nos aldeamentos.
Como demonstram (DANTAS; et al., 1992) em seu estudo historiográfico, a estratégia
dos agentes religiosos de aldear “índios” com elementos católicos foi um movimento presente
no Nordeste, com repercussão em diferentes locais da região do São Francisco. Com o decorrer
dos anos, a comunicação intratribal dos aldeamentos por parte dos índios tornou-se uma
23 Neste trabalho, opta-se pelo termo hibridismo, de acordo com o “processo de estruturação e reestruturação
histórica das culturas nativas” (BARTOLOMÉ, 2017, p. 140), com isso, aplica-se nesse conceito a remoção da
ideia de pureza, estaticidade e de culturas autocontidas entranhadas na ideia das perdas culturais. Neste caso,
enfatiza-se que os símbolos, experiências e trocas culturais lidam com reestruturações mútuas que partem de um
processo contínuo e dinâmico atrelados a relações de interdependência e poder.
54
estratégia territorial para reforçar seus laços sociais, econômicos e políticos para uma
(re)emergência étnica. Estes eventos religiosos foram paralelos ao rompimento com o sistema
colonial e a consolidação do Império, que estabeleceu mudanças no regime pela separação do
Estado e da Igreja, passando a responsabilidade da tutela e controle sobre os indígenas para a
Diretoria-Geral dos Índios24. Nas cartas do Rey aos governadores se registram ordens de
afastamento da presença missionária e das Ordens de Cristo das reuniões e das decisões sobre
os aldeamentos. Nesse momento, o que se tornou marcante para direcionar e impulsionar os
conflitos foram os decretos sobre as Terras do Império, as relações de patronagem que se
formaram com os posseiros e a ocupação de determinados cargos de autoridade. Diante destas
circunstâncias, como destaca Dantas (2011), os conflitos no processo de regionalização e
municipalização ocorreram em paralelo à formação dos posseiros, sesmeiros e autoridades
locais que viam no território indígena a chance de ampliação do patrimônio individual.
Uma série de normas foram aplicadas à separação das terras (públicas, privadas) e ao
direito do uso do solo, como a Lei das Terras do Império - Lei 601 de 1850 – que confere terra
devoluta como a “posse privada ilegal de terra” e o “sem uso público”. A partir de um
movimento de reorganização dos aldeamentos em busca da correção do esvaziamento e
demasiadas ocorrências nas vilas, o Império declara em 1850 as “terras devolutas” como
associadas às terras “doadas, não cultivadas ou não aproveitadas”. Logo, as leis imperiais sobre
as “terras devolutas” geraram muita discórdia entre os indígenas e a população local de
posseiros, pois além da tentativa de os posseiros expulsarem os indígenas para se apropriarem
das terras, muitos grupos étnicos estavam além dos mapas e reconhecimento dos portugueses.
Além destas questões, a própria incorporação da mão de obra indígena e sua regulação, ou,
compensação se tornaram problemáticas constantes, tendo nos registros coloniais, uma série de
leis e decretos contraditórios em sua natureza. Deste modo, com o passar dos anos uma série
de conflitos foram resultantes das ações dos posseiros que tentavam retirar os direitos já
reconhecidos dos indígenas pela carta régia. Em 1891, o artigo 64 instituiu que passava a
pertencer ao Estado as terras devolutas situadas no seu território, sendo este o “tutor” das terras
24 A obrigatoriedade dos missionários na colonização dos aldeamentos foi estabelecida na Lei de 24/2/1587, no
entanto, a presença missionária já era destacada 40 anos antes. Como os missionários trabalhavam na comunicação,
tradução das línguas e assimilação pacífica, os mesmos dividiram os esforços dos domínios com os moradores
colonos, que nas “descidas” às serras e sertões buscavam agrupar os “índios”. Em decorrência, os agentes coloniais
visavam manter um poderio e controle no estabelecimento das “utilidades” (mão de obra) das nações. Dessa
maneira, os missionários foram importantes à Coroa que lhes utilizaram como forma de persuasão e fiscalização
da ilegalidade da coação dos moradores colonos. Segundo Perrone-Moisés (1992) destacamos que a presença
missionária esteve atuante principalmente na ordem espiritual e temporal da administração colonial desde o
Regimento de Tomé de Souza, em 1547, até o Diretório Pombalino instituído no ano de 1757.
55
e dos povos indígenas. Logo, foi instituído que as terras ganhavam as características de
“abandonadas” e “sem usufruto" (SCHRÖDER, 2012). Tais medidas deixavam os indígenas
em posição de vulnerabilidade, e a tal proteção conferida anteriormente praticamente não
existia, logo, estas medidas a cada ano retiraram a autonomia Carnijó para incluí-la enquanto
dado de subsistema inserido em um sistema maior.
25 Seguindo a referência de Vasconcelos (1962), a narração de Dantas (2011) detalha o seguinte: “Os conflitos se
iniciaram quando praças da guarda nacional, que estavam alojados numa casa próxima da matriz, abriram fogo
contra os índios e os liberais. Quando a troca de tiros foi suspensa, três envolvidos obrigaram o juiz de paz a assinar
as atas da eleição que presidira, conferindo a vitória aos membros do Partido Liberal, entre eles o diretor do
aldeamento. Em consequência desses conflitos, dez pessoas foram mortas e oito, feridas. Em janeiro de 1861, o
juiz de direito de Garanhuns, Teodoro Machado Freire Pereira da Silva, foi designado pelo presidente da província
para apurar os fatos, tendo sido deslocados na oportunidade 24 praças do 9º Batalhão de Infantaria de Tacaratu.
Além disso, 64 praças da guarda nacional de Mata Grande, da província de Alagoas, foram destacados para
capturar os envolvidos. O chefe de polícia, Tristão de Alencar Araripe, foi encarregado de concluir o processo,
considerando culpadas 49 pessoas, algumas das quais posteriormente enviadas para a casa de detenção do Recife.
No fim do processo, a eleição que causou o conflito acabaria anulada pela Câmara de Deputados do Império (:71-
8) (DANTAS, 2011, p. 418).
57
26Como demonstra Galindo (2011) ao apontar dados históricos na formação das Capitanias de Parnambucco e
das Capitanias do Pihaui, a sub-emergência tapuia nos sertões era ocultada dos censos demográficos e de um local
maior na construção de uma “história”. Os “índios” nos registros coloniais estavam destinados a seguir ordens e
serem agrupados conforme as autoridades, o que demonstra claramente uma visão parcial e etnocêntrica, que não
deve ser compreendida como ‘fato social total’ (MAUSS, 2003 [1950]).
58
27As reivindicações apontavam violências contra os índios praticadas pelo grupo de Lourenço de A. Maranhão,
que envolvia também o subdelegado, João Francisco da Cunha, dentre as reclamações estão: a queima de ranchos
no lugar chamado de Jenipapo, agressões aos índios, reclamações de investidas nas terras do aldeamento e a má
administração que visava a expropriação Carnijó, não cumprindo os acordos de proteção previamente
estabelecidos (DANTAS, 2011, p. 426).
60
28 A “indianidade” é um “modo de ser característico de grupos indígenas assistidos pelo órgão tutor, sendo uma
classificação exterior conferida pelo órgão tutelar que conferia a condição ou não ao índio da assistência, a sua
operação entendia o índio enquanto estágio transitório frente a civilização nacional (OLIVEIRA, 1988, p. 14).
61
Deste modo, os Carnijós e as plantas associadas ao seu estilo de vida estavam sob
ameaça. Nestas circunstâncias, cria-se na memória e práticas da fitolatria Fulni-ô um
movimento de relação simbólica e semântica, sendo o coqueiro e o termo “Ouricuri” revestido
de grande poder, expresso nitidamente em sua sociocosmologia e nas práticas socioeconômicas
(REESINK, 2000, 2002). Por isso, dentre a hierarquia vegetal o ouricuri, o juazeiro e a jurema
são plantas com um alto valor atribuído, devido a produção de um corpo simbólico de
significados construídos e reforçados historicamente, que material e imaterialmente auxiliavam
os Carnijós a sobreviver, na mesma medida que eles conferem sentido revitalizador ao corpo
simbólico vegetal. A simbologia da árvore enquanto locus de uma unidade social está associada
a vitalidade, fertilidade e união (ELIADE, 2010 [1963]; FORTES; EVANS-PRITCHARD,
1940). É justamente em torno destes indicadores que os Carnijós procuraram organizar o seu
tempo e espaço, onde o sagrado opera de modo constitutivo em sua organização política. Por
isso, a centralidade de sua devoção está no Juazeiro (Ziziphus joazeiro) que guardou o lugar e
a forma dos seus troncos. Desse modo, a prática ritual opera um tempo mítico de união, ou,
retorno ao sagrado, que é o centro do mundo Fulni-ô. O ritual do ouricuri opera mecanismos de
fortalecimento da organização do grupo, que, por motivações semelhantes confere na ação
ritual um sentido religioso, que engloba suas relações políticas e a continuidade de sua vida
social. Isto posto, as práticas indígenas rituais no Nordeste se complexificam em seus
entrelaçamentos, conforme apresentam suas particularidades e múltiplos campos semânticos
(PINTO, 1956; BOUDIN, 1949; DÍAZ, 1983, REESINK, 2015).
A continuidade destas situações de conflitos teve como resposta da etnia uma reclusão
e manipulação de uma prática restrita de coesão social cada vez maior com o passar dos anos.
Inclusive, para (de)marcar a população regional e descendentes do entorno: quem são os índios
Fulni-ô e o que fazem deles os "índios". Por isso, para responder à supressão do avanço não-
indígena, houve um fechamento dos Fulni-ô nas suas políticas de convívio, que, com o passar
dos anos ficaram mais rigorosas, em decorrência das violências físicas e simbólicas vistas
anteriormente. O rito do ouricuri tornou-se o acontecimento magno e central da identidade
Fulni-ô (REESINK, 2015; DÍAZ, 2015).
Como sinal da readaptação em um cenário social religioso, os indígenas interagiam com
a criação dos aldeamentos em seu aspecto temporal e espiritual, em troca de proteção e das suas
terras, mas, demarcando as fronteiras do seu território com práticas cosmológicas que são
fundamentais na constituição da pessoa ameríndia: o setsô-Fulni-ô. Se de um lado os índios
interagiam com a “Santa” e a “civilização”, do outro preservavam práticas que lhes distinguia
62
dos regionais e compartilhava com os seus semelhantes uma unidade social orientada religiosa
e politicamente. Como prova de vitória da sua adaptação e permanência religiosa, os Fulni-ô
atribuem grande valor ao “Juazeiro Sagrado”, que, situado no centro do Ouricuri carrega uma
associação simbólica fundamental de uma situação de domínio indígena. Nesse sentido, os
indígenas ditam as regras do jogo. Na visão Fulni-ô, a sua religião engloba todas as outras. Por
isso, para os índios o juazeiro de tronco forte não tem espinhos, pois transmite a noção de
continuidade de uma linhagem étnica, que sobrepõe os seus valores normativos aos demais.
Desse modo, o rito e tudo que ele educa aos Fulni-ô é fundamental no processo temporal e
cosmológico (DANTAS, 2003; FOTI, 2012; DÍAZ, 2015).
Ainda pude encontrar documentos oficiais do SPI de 05/04/1949, que declararam a
organização dos mapas escolares de 1948-49, conforme o tempo do rito do ouricuri. O que
indica, que os Fulni-ô com o passar dos anos continuaram a realizar o rito e concentrar a sua
população que optava pela mesma forma de resistência étnica, através da manutenção de
identidade diferenciada. Em segundo, provavelmente, estes documentos nos apontam que, para
se precaver das adversidades exteriores, os "Carnijó" utilizaram dos mecanismos do registro
oficial para continuar a declarar a sua separação e avisar a “civilização”, acerca da sua
concentração e reclusão, uma vez que esta medida poderia protegê-los de possíveis
desencontros políticos. Neste documento, a declaração de mudança do currículo escolar, nos
indica algo bastante precioso no ritual do ouricuri: a compreensão do tempo e de um posicionar-
se no mundo. Pois, havendo uma mudança do calendário escolar e o estabelecimento de um
tempo próprio Fulni-ô, os indígenas continuam por preservar uma linha de continuidade
cosmológica de um modus vivendi de se posicionar no mundo situado no tempo/ espaço,
havendo no modo de viver um tempo e um ritmo próprio Fulni-ô. É preciso esclarecer, que,
além de alguma proteção nos registros oficiais, os Fulni-ô conduziram uma construção
societária, onde a sua noção de tempo se tornava elementos constitutivo principal ao mundo
exterior. Após muitas reclamações indígenas por particularidades nas políticas públicas, hoje,
as escolas obedecem ao tempo ritual e revertem o modelo curricular ao ritmo indígena.
Desse modo, como descrito, o rito transparece uma multi-semântica que adentra em
vários significados. Alguns autores como: Boudin (1949) e Pinto (1956) supõem nas
entrelinhas, que o ritual pode ter uma relação de memória com os troncos e linhagens étnicas,
tendo inclusive uma prática ritual de representação corporal pelas pinturas expressas nos
próprios corpos no momento de sua execução. Se isso ainda existir, digo, a produção de um
ritual em que as pinturas corporais representam a organização familiar e o parentesco, seria
63
possível fazer muitas reflexões, inclusive, relacioná-los com a temática do rito como uma
consciência de si através da sua construção histórica, atualizando seu lugar no mundo por uma
relação religiosa, uma vez que as pinturas representariam (em tese) animais29 e uma hierarquia
clânica, relacionada com os troncos étnicos30. No entanto, como este assunto se torna
praticamente um tabu para os nativos (dificultando o acesso às informações do trabalho
antropológico), logo, não é conveniente que o assunto seja conversado com os Fulni-ô, ou, até
mesmo detalhado textualmente com maior afinco para quem pretende continuar pesquisas com
este povo. A resposta será sempre a mesma, um silêncio ensurdecedor, ocasionando na
finalização das perguntas e conversas, deixando-nos mais um hiato para as análises, mas, desta
vez por parte dos Fulni-ô.
Entretanto, podemos supor, como Reesink (2000) descreve, que, possivelmente, o
Ouricuri tem uma multi-semântica de enorme readaptação e ressignificação com o passar dos
anos, visto, que, anteriormente a sua realização ocorria nos meses anteriores, iniciado em
agosto, assim, tendo possivelmente uma relação agrícola e ecológica. Em casos paralelos há
registros de que o ritual dos Kiriri-Kariri, antes de 1700, poderia ser realizado em abril
relacionado às Plêiades. Posteriormente, com os rearranjos em decorrência das circunstâncias
sociais da colonização, regionalização e municipalização. O rito foi utilizado como uma forma
diacrítica de proteção e mecanismo indígena de fortalecimento étnico, como uma maneira de
agregar e instaurar uma política de organização étnica. Inclusive, de decidir acerca do seu
mundo, selecionar e formar indígenas pertencentes por consangüinidade e laços afins31. Desse
29
Tais registros constam em Pinto (1956) e Boudin (1950) ao detalharem etnologicamente suas impressões acerca
do rito do “ouricouri” e seu conjunto de expressão cultural. Para tal, torna-se nece’ário destacar que pelas
circunstancias do longo processo e colonização e formas de manuseio, as práticas indígenas do Nordeste atuais
carecem de uma maior presença de seres e elementos animais como araras, pássaros, antas, porcos do mato, pois
muitos destes animais estão ameaços de extinção ou já extintos, como veremos futuramente.
30 Durante o evento da VI Jornadas de Estudos sobre Etnicidade (2015) do NEPE-UFPE, o Fulni-ô e antropólogo
Wilke Torres de Melo destacou numa conferência que não poderia levantar informações ou responder os
questionamentos acerca do Ouricuri. Todavia, neste dia, Wilke nos disse brevemente que durante o ritual do
Ouricuri realiza-se atividades de pinturas que trabalham o caráter de reciprocidade, uma vez que indígenas de
diferentes clãs tinham como obrigação pintar os seus correligionários da mesma etnia, porém, de clãs diferentes.
31 Os critérios de seleção de pertença da organização política envolvem relações conjugais entre os Fulni-ô e os
não Fulni-ô (brancos e indígenas não Fulni-ô), em conjunto com a formação indígena das crianças, uma vez que
segundo a lógica interna, as crianças passam por um processo de amadurecimento e formação indígena. Logo, a
inclusão do indivíduo ao grupo através da participação no Ouricuri envolve uma complexidade social singular.
Para estes indígenas, há um vetor moral em torno do “sangue”, similar ao que foi apresentado por Reesink (2011),
no que tange à prática política e moral dos critérios de inclusão e pertença, pois as linhas de consangüinidade são
estabelecidas por graus. Existe “o índio puro” de sangue e traços físicos verdadeiros, que teria a descendência
indígena de ambos os lados. Assim como, teriam aqueles que se distanciaram e que teriam perdido o sangue e o
dom de ser índio, ou seja, o dom referido como capacidade de relações sobrenaturais e políticas através da língua
yaathe. Em suma, pode-se detalhar que para adentrar no Ouricuri e ser Fulni-ô, a criança tem que ter ao menos um
lado familiar (pai ou mãe) com filiação Fulni-ô, além de cumprir as “obrigações” do rito. Caso não haja filiação
64
Fulni-ô, minimamente, de um lado familiar, é impossível alguma criança participar da formação do setsô Fulni-ô.
Voltarei ao assunto nos próximos capítulos durante a exposição dos dados etnográficos.
65
na aldeia, ocorrendo uma rejeição de variado grau (TORRES DE MELO, 2013; MENEGHINI,
2015). Internamente, com o distanciamento e a perda de vínculo, esse termo adquire um sentido
de perda de valor da pessoa indígena que sai da aldeia e não retorna, ou, não lhe ajuda a
desenvolver, perdendo o contato e enfraquecendo o laço de pertença. Portanto, podemos colocar
como hipótese que haveria uma rejeição interna, considerando, que, àquele que esquece ou não
contribui com o desenvolvimento da aldeia não é verdadeiramente o setsô Fulni-ô.
Pode-se ver o Ouricuri como uma sala de aula que ensina um tempo e um modo de ser
indígena no Nordeste, uma escola ritual onde se socializa uma consciência de um nós e de um
eu na mesma ação simbólica, que ensina aos seus semelhantes a incorporar as suas
compreensões históricas. Essa internalização individual estabelecida por uma visão coletiva de
solidariedade ensina como cada Fulni-ô expressa o seu tempo vivido aos não-Fulni-ô, através
das normas do segredo e do que se pode falar. Por isso, só alguns Fulni-ô têm autoridade para
traduzir suas memórias ao português. Por causa dessa complexidade, entre o que se pode revelar
e o que não pode ser dito, é que muitas pessoas indígenas se negam a contar o seu “tempo”. As
assimetrias e invisibilidades desencadeadas pelos regimes de dominação deixam marcas
incuráveis nas pessoas e nos territórios indígenas. As horas e os anos passam, mas, os Fulni-ô
não esquecem os acontecimentos guardando-os em suas memórias.
67
32
A instalação do sistema energético da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) e da Companhia
Elétrica de Pernambuco (CELPE) foi realizada em uma parcela das terras indígenas, o que impediu o acesso
dos indígenas nestes locais, inclusive, na memória oral se fala que poucos indígenas morreram devido ao
perigo de sobrecarga e vazamento da tensão elétrica. De fato, não sabemos a validade e quantificação da
informação, mas, de todo modo, isso nos deixa claro como os indígenas se sentem prejudicados com o não
acesso das suas próprias terras. Após uma reivindicação foi estabelecido judicialmente que as companhias têm
a obrigação de retornar benefícios à comunidade, sendo um destes o não pagamento das contas de energia
gerada nas terras indígenas e o recebimento de uma quantia de dinheiro à etnia, com uma certa periodicidade
definida em contratos. Por outro lado, isso gera um embate com os regionais cujos veem os índios como
“preguiçosos e folgados”, por não pagarem suas contas e obrigações. Já de modo intra-étnico Fulni-ô o entrave
ocorre em torno da distribuição dos “benefícios” na comunidade, visto que isto resulta no embate dos
'faccinalismos' e das expectativas de quais seriam as melhores ações pelas autoridades locais.
69
alternativa à estrada (BR 423), para evitar a perda de mais vidas indígenas. A apropriação e o
uso dos recursos naturais são questões centrais nos conflitos territoriais, entre as partes
envolvidas, tendo variados discursos e motivações, em torno da constituição da propriedade e
de sua produção. No caso Fulni-ô, uma das argumentações para a definição territorial é a
questão da antiguidade da presença indígena, sendo a sua demarcação um marco nos emblemas
da ‘indianidade’ e na gestão dos recursos naturais, como veremos a seguir.
Durante os anos de 1876 – 1878, o engenheiro Luís José da Silva realiza o loteamento
que demarca e entrega o território aos índios, com uma área de um quadrilátero com 11.506
hectares, divididos em 427 lotes, sendo 30 lotes de 302.500m² cada um e 107 de variados
tamanhos, dos quais os índios receberam apenas 140 (PINTO, 1956, p. 14; DÍAZ, 2015; FOTI,
2009). A demarcação respeitou a “doação” da Capela de Nossa Senhora da Conceição, com a
área de 795.664m², livrou os 80 hectares da igreja e os espaços da cidade. Todavia, mesmo com
o loteamento, o cenário dos posseiros que realizaram benfeitorias e os indígenas que foram
suprimidos não haviam cessado, revelando-nos uma fase de conflitos territoriais entre os índios
e os posseiros locais. Em 1886, a Câmara dos Vereadores, ao considerar a situação irregular
das terras, solicitou ao governo a criação de uma Comissão para vistoriar e legalizar as terras
ocupadas. À medida que Águas Belas se emancipava na categoria de município autônomo
(16/01/1893) e de cidade pela Lei Estadual nº 665 (24/05/1904), a expropriação indígena crescia
decorrente dessas normas que atribuíam a noção das terras devolutas as terras indígenas e aos
conflitos no processo de emancipação local. Porém, em 1904, o governador Sigismundo
Gonçalves determinou a respeito da situação jurídica e dos residentes do antigo aldeamento de
Ipanema (DÍAZ, 1992, 2015).
Um evento marcante foi o conflito local entre o diretor do aldeamento do Ipanema,
Adrião Rodrigues de Araújo, cujo ocupou e acumulou irregularmente outros cargos, como:
delegado de Águas Belas, segundo juiz de paz e suplente de delegado. Ele foi responsável por
várias acusações contra os indígenas, chegando a expressar que a extinção dos aldeamentos não
foi suficiente e, que, para findar os crimes cometidos seria preciso dispersar os índios aliados
ao subdelegado José Lourenço de Oliveira Marques, o ex-delegado da polícia Salustino
Cavalcante de Albuquerque e o ex-comissário Nicolau Cavalcanti de Siqueira, que viam nos
nativos oportunas alianças para o favorecimento pessoal. Nicolau Cavalcanti de Siqueira era de
uma família que adquiriu um número alto de propriedades e tinha uma posição política
significativa no município, o seu pai era Salustino C. A. Araça cujo foi o prefeito de Águas
Belas, em 1892-94 (DANTAS, 2011).
70
Figura 3- Planta da extinta Aldeia do Ipanema, Província de Pernambuco pela Comissão de Mediação, 1887. Cópia
de 12 de março de 1914. Detalhe para a divisão em lotes da terra indígena Fulni-ô, que se torna uma particularidade
no cenário brasileiro de demarcações de terras indígenas.
33
O padre Alfredo D. participou ativamente na fase de reconhecimento do S.P.I. aos Carnijós, ainda hoje o padre
faz parte da memória da etnia, sendo até mesmo um “Klaichiua-lhá (digníssimo homem de Deus)" (QUIRINO,
2012, p. 116). Nas memórias o Padre Alfredo aparece como um padre protetor que com força militar e
inclusive armada estava sempre a proteger os “índios” dos regionais e estrangeiros, ele também foi dito como
um dos impulsionadores responsáveis pela preservação dos costumes e idioma. Ainda hoje, alguns indígenas
contam: “foi ele que disse pra nós manter o nosso idioma que é a coisa mais importante, ele sempre dizia:
"não pare de falar o yaathe" (sr. Thxyxá/ João Matos, ancião Fulni-ô, Aldeia Sede, agosto de 2018; sr. Mauro,
agricultor indígena, agosto de 2018, Aldeia Sede.).
73
pagamentos das posses, o inspetor Dagoberto escreveu a favor dos Carnijó, dando sequência a
mais uma fase de mudanças na Aldeia. Segundo Peres (2004) e Amorim (1971), a decisão do
S.P.I. ocorreu prioritariamente pelo acordo dos arrendatários águas-belense em contribuir com
pagamentos ao Posto Indígena, o que favoreceu a sua instalação e atuação na mediação dos
conflitos entre indígenas e rendeiros, já que no caso dos Potiguara a agência indigenista arcaria
com indenizações aos civilizados para a conciliação, o que seria mais dispendioso para o
estabelecimento da empresa indigenista.
Como apontam Agostinho (1989), Reesink (2000), Grünewald (2005), Dantas (2007) e
Oliveira (2004a) a política de reconhecimento dos anos de 1920, tomou por base “uma prova
de indianidade”, que conferia aos etnônimos de auto-identificação a distinção e legitimidade
externa do alter, sendo, em suma, este o regime do índio perante o Estado. Em síntese “a prova”
exigia uma auto consciência indígena que apresentasse sinais de ‘indianidade’, sendo
genericamente a prática religiosa, festiva, folclórica e auto-reflexiva do “toré”34 o critério
estabelecido inicialmente para o reconhecimento do alter (REESINK, 2000). Toré é um termo
emblemático na integração indígena no Brasil, pela sua disseminação e criação de
particularidades frutos dos jogos políticos. Se o nome parte de uma flauta indígena tupi
vinculada a uma dança (PINTO, 1956), posteriormente, de modo geral, em um deslize
semântico (REESINK, 2000) ela se combina com vários elementos locais e se particulariza
numa singularidade performática, recebendo denominações de torìp, no caso Kamayurá
(MENEZES BASTOS, 1999, p. 67) e tolê para os Fulni-ô, já que não existe o ‘r’ no yaathe.
Certamente, o caso Fulni-ô expressa um marco na continuidade das mobilizações dos povos
indígenas e o início de uma série de reivindicações étnicas, visto que foi uma das primeiras
etnias no Brasil que teve a instalação de um posto indígena. Esse acontecimento serviu de
auxílio e impulso para os demais grupos étnicos reelaborarem seus arranjos simbólicos e os
fortalecessem para a retomada, que ocorreu de modo religioso e político. No capítulo seguinte
trataremos exclusivamente desta rede de comunicação com seus significados e sentidos rituais,
que conduz para a reprodução de um complexo de práticas religiosas, vistas como xamânicas,
cosmológicas, cosmo-políticas, cosmográficas, que atentam para uma relação com a temática
34
As políticas de reconhecimento da indianidade do S.P.I. impuseram um regime classificatório a partir das
reivindicações políticas indígenas para o reconhecimento, os inspetores do S.P.I. – como Raimundo Dantas
Carneiro – respondiam que os “índios deviam marcar um toré para comprovar sua condição. Nestas circunstâncias
a prática do “toré” assume na autoclassificação um sentido “sagrado” e organizador da vida étnica, enquanto para
o alter ela é vista como uma prática folclórica de inserção à sociedade nacional (CARVALHO, 1994, p. 8;
REESINK, 2000, p. 360-366).
74
práticas dos arrendamentos, ainda, que, não estivessem em conformidade com a lei federal em
vigor (SCHRÖDER, 2012). Todavia, conforme indicam os estudos de Peres (1992; 2004), as
ações de negociação dos arrendamentos, mediadas e tuteladas pelo S.P.I. foram o ponto de
partida para a consolidação do órgão. O cenário se tornava favorável para a instalação e
manutenção do S.P.I. na medida em que os indígenas e rendeiros aceitavam e legitimavam as
ações e condições da instituição. Por isso, entende-se, que, para o órgão público se instalar na
região foi preciso estabelecer negociações e condições de domínio legítimo que interessavam
também aos demais habitantes do território serrano.
Sob as consequências da pressão local dos regionais exercida aos Carnijós, em 1940, o
S.P.I. inicia uma nova posição sobre os arrendamentos, vistos agora como prejudiciais à
existência e ao desenvolvimento socioeconômico indígena, conforme escreveu Tubal Vianna
Filho, encarregado do P.I. Gen. Dantas Barreto. Logo, os arrendamentos estavam declarados
como um fator de impedimento à emancipação e autonomia Carnijó. No entanto, ao que parece,
nada conseguiu impedir as práticas dos arrendamentos das terras indígenas. Posteriormente, em
1993, frente a irregularidade e indefinição dos limites existentes na área indígena, a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) - órgão que substituiu as funções do S.P.I. - realizou uma avaliação
antropológica e o levantamento topográfico para estabelecer limites com a municipalidade,
porém, o acordo não foi efetivado por parte da prefeitura municipal, havendo uma difícil
conciliação intersetorial (municipal, estadual e federal) (SCHRÖDER, 2012).
76
35
A generalização, senso de unidade coletiva de motivações e interesses comuns presente na categoria étnica
Fulni-ô, muitas vezes, não exprime ou oculta os conflitos internos da comunidade. Na organização social
interna do grupo existem divergências nas tomadas de decisões derivados das relações de parentesco e das
redes políticas de inter-relacionamento (DÍAZ, 2015; TORRES DE MELO, 2012). Esses conflitos se agravam
nas disputas por recursos, empregos, incentivos públicos e privados, perante a “sociedade de meios escassos”
e a imagem marcada dos sertões como local infértil, conforme demonstram (REESINK; REESINK, 2007) no
caso do desenvolvimento do turismo religioso em Monte Santo/BA. Também, pode-se fazer um paralelo com
a noção da “ilusão do sujeito coletivo” (BARTOLOMÉ, 2017) a qual esclarece que a abstração de um coletivo
oculta os conflitos de interesses internos a sua própria formação.
77
36
O processo organizativo de pertença Fulni-ô abrange diferentes categorias e vínculos, estabelecidos pelas
linhas de descendência e continuidade da afirmativa étnica. Para tal, àqueles descendentes que mantiveram a
continuidade de pertença étnica são considerados pelas instituições do Estado brasileiro (pela ideia das
perdas), como: os indígenas remanescentes, “a pessoa que resta após o fim de algo”. Por outro lado, os sujeitos
que descendem de índios, mas, que, por algum motivo não levaram adiante a sua pertença étnica se afastaram
da comunidade Carnijó/ Fulni-ô, são vistos como “os descendentes de índio, mas não são índios de fato”.
37
Port. FUNAI nº 1201/Pres/02), referida nos termos do artigo 231 da Constituição Federal (FOTI, 2009).
38
Segundo Schröder (2006, p. 553) a Comissão foi criada devido as divergências que ocorriam na administração
da aldeia, um grupo de indígenas Fulni-ô que eram funcionários da FUNAI fizeram pressão política para abrir
uma série de sindicâncias e levantamentos para apurar a habitação e uso do solo, assim como os investimentos
que eram realizados na aldeia por parte de órgãos públicos e privados. Deste modo, não é novidade que os
conflitos internos proporcionados pelos subgrupos de parentelas em disputas se tornem parte das dinâmicas
de negociação e embates políticos da retomada, como detalhado pelo autor, de modo preciso e irônico, “todos
querem a demarcação, mas não como o outro lado quer”.
78
os vestígios para determinar a área antiga do aldeamento e a tal “légua em quadra” pareciam
escassos e inexistes. Os possíveis marcos foram arrancados e destruídos nos séculos anteriores,
os documentos oficiais também não detalharam os limites da porção de terra. Entretanto,
segundo consta, um grupo com mais de 130 índios, nas reuniões de planejamento do GT
declararam como demanda consensual, a ampliação do território às serras da região, a exemplo
da Serra dos Cavalos, uma área tradicional de coleta de plantas com grande importância
simbólica. Para a apresentação do nosso estudo de caso, a referência da memória oral aos
vegetais e as práticas tradicionais é um elemento demarcador nos processos de territorialização
(OLIVEIRA, 2004) e territorialidade (CARVALHO; REESINK, 2018). Pois, como Reesink
(1983, 2003) destaca, o movimento étnico no Nordeste assume - enquanto linha de continuidade
como fator prioritário - a reivindicação à propriedade coletiva de terra. Deste modo, a
associação e construção de sentidos entre práticas tradicionais, plantas e localidades se torna
um eixo de investigação de extrema importância para a antropologia contemporânea. Tal
proposta foi realizada por Clarice N. da Mota em sua tese: Jurema tould us (1987), adiante
retornarei nesta temática.
As ações para a retomada e redefinição do território Fulni-ô ficaram inconclusivas uma
vez que esbarraram com as dificuldades de conciliar questões de escalas internas e externas. As
tentativas de resolução tiveram seus entraves com os interesses das unidades familiares
indígenas da etnia e com os interesses exteriores à aldeia de setores institucionais (municipal,
estadual e federal). Transformar ou readaptar um modus vivendi “pacífico”, porém,
desarmônico, da prática dos arrendamentos e da atual distribuição das terras, tornou-se um
grande dilema para muitas pessoas. Este modo de vida desenvolvido por processos históricos e
dinâmicas territoriais por índios e não índios, gerou na prática econômica o “desenvolvimento”
financeiro para algumas famílias Fulni-ô, derivado da diferença da qualidade dos loteamentos
entregues. Logo, possivelmente, a retomada promoverá a transformação de um determinado
status quo presente na aldeia, que é motivo de muitos conflitos internos entre políticos de
diferentes setores, lideranças indígenas, funcionários das instituições públicas e grupos
familiares que detêm propriedades privadas arrendadas. Fato é que esse processo político de
arrendamentos nas terras indígenas gerou um choque de interesses internos e externos à etnia,
ao ponto, que, para a solução definitiva será necessária uma força tarefa enorme com grande
engajamento dos Fulni-ô, numa busca por superação e melhoria na qualidade de vida coletiva.
Outro fator importante de destaque é que os impactos socioeconômicos destas ações e medidas
de reparação da retomada territorial precisam de estudos e avaliações para possibilitar
79
Segundo os comentários do autor, foi possível ver a dança, visitar o espaço do ouricuri e da
árvore sagrada, mas, saber sobre ela, ou, coletar informações foi impossível, as respostas eram
apenas sim ou não, restando muitas deduções, algumas delas equivocadas conforme a relação
com jurupari, que teve em seu trabalho a tradução derivada do tupi: “bôca-fechada”. No entanto,
o próprio autor comenta o seu esforço na coleta de informações, que se demonstra mais
importante pela relação de englobamento ritual das práticas, as quais o tolê tinha maior
flexibilidade em sua visibilidade e apresentação. Porém, a sua completude e ensinamento,
apenas seria realizado no “ouricuri” “aos carnijó de puro sangue por constituir tradição na tribu”
(MELO, 1930, p. 196). Ainda, que, Melo tenha esbarrado no segredo do seu informante (um
tocador de búzio), com a conclusão equivocada de que o rito tenha relação com Jurupari39, por
outro lado, o etnógrafo aponta indícios de uma política ritual que seriam as próprias diretrizes
para uma etnopolítica. Logo, se o tolê encerra determinados elementos silenciados pelos índios,
por outro, ele ganhava uma dimensão interna maior associada ao ritual do Ouricuri, conforme
Reesink (2000). Como constatado: “toda a organização dos carnijós, a razão de sua existência
como tribu, o que lhes cimenta a unidade, o que os fortalece, é o ouricuri e é o iatê” (MELO,
1930, p. 197).
Nimuendajú (IBGE, 1987) visita os Xucuru de Cimbres e os Fulni-ô em 1934 e destaca
em sua carta (12/10/1934) que os Fulni-ô representam um fenômeno de deculturação material
raro e estranho no Nordeste, pois os Fulni-ô conservam com tenacidade elementos espirituais
da cultura como o ritual do “ouricury” e a língua isolada. Ainda que a carta esteja com
influências americanistas de uma etnologia das perdas, nota-se como Nimeundajú se
impressiona com tais elementos que em sua opinião estão vinculado com a tribo Wakona de
Colégio.
Pouco tempo adiante, Carlos Estevão de Oliveira (1942) realizou investigações
etnográficas durante os anos de 1935-42, sendo um dos etnólogos precursores na produção
aplicada, acerca da visibilidade e reconhecimento étnico no Nordeste. Devido à importância
dos autores, C. E. de Oliveira e M. Melo, ambos foram conhecidos como clainkya-lhá (branco
bom, aliado) pelos Fulni-ô que adquiriram um certo apreço pelos pesquisadores. Carlos Estevão
visitou os Pancararús em Brejo dos Padres/ PE, os Kariri-Xocó em Palmeiras dos Índios (AL)
39
O autor destaca em seu trabalho vários significados e traduções para Jurupari, mas, a sua essência em sua
simbologia teria o personagem do legislador divinizado, que, de modo mítico fundaria os costumes entre
homens e mulheres e demais grupos sociais em diferentes etnias (MELO, 1930). Podemos destacar que, na
década de 1930, Jurupari era uma entidade mais famosa localizada na região do Alto Rio Negro, sendo este o
principal motivo da associação de Melo.
82
e os Fulni-ô em Águas Belas, elaborando além das suas descrições a possibilidade de haver um
sistema compartilhado de práticas rituais, mas, apresentadas de modo particular. Em cada um
desses grupos ele descreveu brevemente características representadas como sinais de
indianidade pela civilização nacional, e, quando possível focou em questões religiosas: como o
rito do menino do rancho e o uso da jurema/ ajucá entre os Pankararu, a organização Kariri-
Xocó, a língua e o “uricurí” Fulni-ô. Sendo deste etnólogo uma das imagens fotográficas mais
emblemáticas do uso da jurema Tuxá, no Nordeste, a qual ainda hoje carrega uma certa
proibição dos Tuxá em sua publicação e divulgação40. A sua investigação de cunho
antropológico e arqueológico, em Itaparica, achou vestígios de ossos e artesanatos indígenas
que servem de provas e evidências para uma linha de continuidade indígena, no Nordeste,
inclusive, com os ditos caboclos. Por conseguinte, o etnólogo realizou palestras em Congressos
de Geografia com o objetivo de valorizar e apoiar a presença dos “remanescentes indígenas”,
na região do São Francisco, na medida em que visibiliza um processo histórico assimétrico com
falta de seguridade social e assistência.
A relação da conjunção entre a sociedade : cultura : língua impulsionou na etnologia
os estudos das áreas culturais influenciados pela antropologia social boassiana (haja vista:
Hohenthal, 1960 e Galvão, 1960) que procuravam estabelecer relações entre os grupos
indígenas. Neste sentido, estes conteúdos culturais - em especial a língua - eram vistos como
essenciais para a manutenção de uma cultura “original”. Como vimos, o decreto pombalino em
1755-57 impôs a extinção da língua indígena, sendo esta tríade o pressuposto do estado nacional
para a consideração do “bárbaro, habitante das matas, silvícola”, vinculado com elementos de
uma distinção radical com a sociedade nacional em formação (ALMEIDA, 2018). É deste modo
que o “silvícola” é visto como uma condição estática, de isolado e de barbárie, aproximado da
natureza e afastado da cultura, representando ao “Novo Mundo” urbanizado um estágio inferior
da humanidade e da civilização. Nesse jogo de projeções, Schaden (1942) nos demonstra que
o etnocentrismo atua como um concreto social de instinto gregário por laços afetivos e de
experiência da herança social, em ambas as sociedades, sendo o etnocentrismo “a coerência e
a conformidade do espírito humano consigo mesmo” (SCHADEN, 1946, p. 271), em busca da
sua continuidade e manutenção. As formas etnocêntricas de “crença no próprio grupo” (ibid.)
funcionam como um enrijecimento no sistema de alteridade, sendo a língua elemento
fundamental, pois, é um meio de comunicação privilegiado entre os semelhantes, definindo o
40
Informação proferida pelo professor Renato Athias, durante um dos Seminários do NEPE – Redes de
Xamanismo nas cidades, que abordou parte da amplitude das práticas tradicionais da jurema e demais plantas, no
ano de 2019.
83
‘nós’ e o ‘eles’. Portanto, “o idioma da própria comunidade é que constitui a verdadeira fala
humana” (SCHADEN, 1946, p. 271-3). Desse modo, para os antigos gregos e os colonizadores
nas Américas, as línguas desconhecidas eram inferiorizadas, mas ganhavam uma dimensão
mística, vista como semelhante às vozes dos animais e da natureza. Curiosamente, esta é a base
do mesmo pensamento que circunda a formação indígena e nacional.
Para tal, uma série de estudos etnológicos procuraram demonstrar as árvores linguísticas
dos sertões do Nordeste e as suas possíveis aproximações. Pompeu Sobrinho (1934, 1950) -
com o intuito de classificar as ligações sociais tomando como efeito classificatório o estudo
léxico comparativo entre os povos ameríndios - desenvolveu a hipótese migratória e geracional
derivada das migrações de sociedades pré-colombianas nas áreas do rio São Francisco, que
formaram segmentações e reelaborações culturais permeadas por relações de dispersão e
‘condensação’ formando outros conjuntos sociolinguísticos construídos por uma trama
histórica de relações. A ênfase do autor recai para as modificações antropológicas ocorridas
pelas migrações ao afirmar uma linha de continuidade linguística com uma raiz de
descendência, intitulada como a empresa utópica do “Brasílido”41 (POMPEU SOBRINHO,
1950, p. 322)
Desse modo, o caso Fulni-ô foi objeto de estudo acerca do questionamento da sua
possível relação pré-colombiana e com os Cariri, na região do São Francisco, uma vez que
havia uma hipótese de vínculo com este tronco, que estava dividido em dois: os Cariris Velhos
e os Cariris Novos. Rodolfo Garcia (1922) destacou os Carnijós como os “últimos
remanescentes dos Cariris” (MELO, 1930, p. 182), seguindo essa hipótese classificatória.
Posteriormente, Estevão Pinto (1935, 1938) e Mário Melo (1930, p. 221) também os
classificaram desta maneira. Portanto, sob as suposições das relações intertribais, os etnólogos
– Garcia (1922), Pinto (1935, 1938), Melo (1930) e Ramos (1943) em suas primeiras
elucubrações, acerca dos índios do Nordeste, cometeram o equívoco de classificar os Fulni-ô
enquanto pertencentes aos Cariri. No entanto, após a coleta de Melo, em 1931, de palavras e
frases indígenas para estudos e comparações linguísticas as argumentações foram refeitas. A
partir de um estudo comparativo, Pompeu Sobrinho (1934, 1935, 1947, p. 169) aponta para
uma diferenciação linguística entre os “Carnijós ou Fulniôs” com a família “Kariri/ Cariri”,
41
Segundo o autor (POMPEU SOBRINHO, 1950, p. 320): “Chamamos Brasílido a língua morta de que derivam
as actuais famílias que se originaram da diferenciação étnico-cultural do tipo racial deste nome. Teria sido o
idioma usado por um importante grupo protomalaios logo depois da chegada à América, mas antes de sua
segmentação. Parece natural supor que essa língua arcaica já trazia um começo mais ou menos apreciável de
divisão, que se acentua com a dispersão e isolamento dos grupos no interior do continente dando as diversas
famílias agora conhecidas e outras que se perderam.”
84
existindo a possibilidade da língua dos “Karnijós” assumir uma autonomia linguística e ser
alofilo aos Cariris. Pompeu Sobrinho ao analisar o material afirma:
“[…] não é dificil verificar que, de acôrdo com o criterio taxionomico mais corrente
para definir os grupos etnicos dos amerincolas, os Karnijós ou Fulniôs não devem ser
considerados Kariris.”
[…] O material linguistico que vimos de referir, conquanto resumido, já permite
verificar que a língua dos indios Karnijós difere consideravelmente da dos amerincolas
da família Kariri, bem como das que constituem os grupos Tupí, Gê, Karaiba,
Arawak, Bororó e outros que formam o vasto e desordenado acêrvo da linguistica
americana do Brasil.
[…] Conclue-se, pois, que o Karnijó representa as reliquias de uma família linguistica,
ainda não computada na relação das línguas americanas do Brasil ou liga-se a alguma
família que não tem representantes no nosso territorio, pelo menos devidamente
conhecidos (POMPEU SOBRINHO, 1935, p. 32, 49 [grifos originais]).
língua yaathe foi traduzida como: nossa boca, nossa fala42, conseguindo se aproximar dos
sentidos êmicos. As suas descrições despertam grandes interesses pelas questões míticas, da
religião e da formação social acerca do seu plano cosmológico. O etnólogo registrou um mito
da origem Fulni-ô, o qual faz referência ao pensamento ameríndio pela estrutura comum da
separação e encontro dos irmãos gêmeos, que significam o equilíbrio social. No entanto, hoje
este mito não é mais contado abertamente pelos Fulni-ô, estando apenas registrado nos estudos
etnológicos43. M. Boudin descreveu os mitos, a religião e algumas das suas funções rituais,
assim como as atribuições dadas aos instrumentos musicais, a relação com os troncos étnicos,
o “ballet” do toré e a reza (sê ka), além do uso da fumaça como um elemento mágico de cura.
A religião dos índios Fulni-ô é denominada de Urikuri, tanto pelos civilizados como
pelos Fulni-ô, e vem do nome de palmeira: “cocos coronata” (Mart.) Na língua ía-tê,
urikuri se traduz por – kêxa tka: a cabeça do lugar, e só designa o lugar do retiro
religioso e não a própria religião como alguns leigos poderiam acreditar, pois que a
língua ia-tê não conhece outra palavra para significar a sua ideia de religião, o que
ocorre com tôdas as línguas primitivas.
O pagé Basílio, encarregado de determinar a época do retiro religioso do grupo,
costuma reunir na sua casa, geralmente no último domingo do mês de agôsto, um
número importante de índios fulni-ô, sem distinção clânica, para noticiar que nos quinze
dias que se vão seguir começarão os ofícios religiosos. O período do ano em que se
realiza êsse retiro religioso é aquêle no qual os trabalhos agrícolas ficam
completamente parados, para que, no espaço de 3 meses seguintes, o grupo inteiro
possa consagrar todo o tempo às devoções prescritas pelos antigos aos deuses da tribo.
O lugar escolhido, desde tempos imemoriais, pelos Fulni-ô acha-se a uma légua do
Posto Indígena, numa clareira escondida na caatinga vizinha. O culto é secreto. Cada
membro obriga-se a respeitar estritamente os mandamentos religiosos do grupo.
(BOUDIN, 1949, p. 59)
42
Inicialmente, o autor fez a seguinte explanação: “a autodenomição dêstes indígenas significa,
etimologicamente: os que tem um topete de cabelos sôbre a cabeça (Fu = vertex, li =cabelo, ni ka (nê ka) =
ter, donde o adjetivo clássico Fu-li-ni-ho – que deu: Fulni-ô). (BOUNDIN, 1949, p. 52). No entanto, em outro
documento, BOUDIN (s.d., p. 12) aponta: “conservamos voluntariamente a denominação pela qual os Fulni-
ô qualificam sua língua: ia-té, a nossa boca (a nossa língua) por oposição a “kla-i té”: a boca (língua) dos
brancos – português ou qualquer língua estrangeira falada pelos brancos”.
43
Confira o mito no anexo deste trabalho.
86
44
Como destacam Palitot e Grünewald (2011, p. 553) a etnografia de salvamento desenvolvida por Hohenthal
foi inspirada pela ideia de salvage ethnology ou “arqueologia da mente” de Alfred Métraux, que buscou
superar as condições de mestiçagem/ aculturação, através de pesquisa de campo e levantamentos históricos
para reconstruir um padrão suficiente próximo do padrão aborígene tapuya. Parece-nos também importante
destacar o pioneirismo de Franz Boas (1858 – 1942), que com importantes obras já havia destacado a falácia
do evolucionismo racial e da tentativa de sua universalização. De fato, a teoria de Boas inaugurou na
antropologia uma análise pelo exercício comparativo e relativismo, com a intenção de classificar grupos
diferenciando-os sem lhes hierarquizar. Falaremos sobre o tema mais a frente.
87
Pinto (1955, 1956) iniciou no ano de 1953 o estudo de campo a respeito dos
remanescentes indígenas de Águas Belas. O seu trabalho teve uma enorme repercussão, pois
descreve elementos religiosos de enorme importância, os quais para os Fulni-ô são secretos.
Dentre vários assuntos, a sua descrição levanta na realização do rito do ouricuri uma relação
dos troncos étnicos com as pinturas corporais, além de uma determinada posição de poder e
autoridade legitimada pelo tempo das formações destes clãs. Segundo o autor, determinados
troncos teriam uma relação de englobar os demais, ao mesmo tempo em que se destacavam no
seu conjunto hierárquico. As descrições de Pinto (1956) são debatidas pelos Fulni-ô até hoje,
segundo o argumento de que: “tudo o que ele contou é mentira!”. Desse modo, a autoridade
45
Hohenthal através do yaathê Fulni-ô aponta a hipótese de uma linhagem em comum, derivado do sufixo Ká,
o qual designa um forte senso de identidade aos Tuxá. Hohenthal (1960, p. 60) diz: “Indivíduos dessa tribo
dizem-se pertencer a uma das duas “famílias" ká ou tuxá têrmos que adicionam a seus nomes como sufixo
designativo. Isto reflete possivelmente a existência no passado de um sistema de "moieties", ou divisão social
dual da tribo. Ká significa aparentemente "filho". (Compare-se com i.ka, que significa "meu filho", em Iaté,
língua falada pelos índios Fulniô, de Águas Belas, Pernambuco). Ao lado disto, os Tuxá não se lembram de
nada de sua antiga organização social, e até o presente nada revela a existência de "sibs", ou linhagens”. Ainda
que o autor, faça essa referência, não sabemos quais os reais laços entre o grupo e se de fato um poderia ser
considerado “filho” ou gerado alguma formação no contexto de sociogênese indígena. O fato é que ainda hoje
muitos autores imputam as chances de continuidades de termos indígenas ao yaathe, talvez isso ocorra pela
sua preservação e maior facilidade de traçar comparativos. Todavia, tais associações merecem a manutenção
da dúvida e maiores estudos em fontes históricas comparadas às memórias orais.
88
textual do autor, ainda que assuma relevância significativa etnológica, em contrapartida, ela é
contestada e menosprezada pela etnia, deixando-nos a complexidade da verificabilidade e
credibilidade das informações. O “ranço” Fulni-ô se tornou tão grande a Estevão Pinto (1956),
que até as suas citações são vistas de malgrado, uma vez que - segundo os indígenas - “os seus
escritos deturparam a realidade de uma coisa que ele disse ter visto, mas não viu”. De todo
modo, segundo as preocupações bibliográficas e etnológicas, E. Pinto assume um certo
destaque, pois além de visibilizar o caso étnico dos Fulni-ô, também incluiu o grupo como
pertencentes aos Gê, como: “um ramo do phylum Macro-Gê” (PINTO, 1956, p. 253). Desse
modo, o autor favoreceu o estudo linguístico desenvolvido por Rodrigues e realizou uma
importante etnografia ao ressaltar as violências e as readaptações nos costumes indígenas no
paradigma da mudança cultural.
Geraldo Lapenda (1965) trabalhou na mesma expedição de Pinto na área da linguística,
ele realizou conclusões significativas para o distanciamento do “yathê” com o Cariri, em sua
opinião, ainda que a língua tivesse semelhança, ou, tomasse algo de empréstimo, haveria uma
diferença clara na fonética, morfologia, sintaxe, estilística e no vocabulário. As questões e
análises em torno da língua yaathe estavam presentes no campo etnológico e, inclusive,
posteriormente, quase como um enigma étnico: qual seria a relação da língua Fulni-ô com os
seus vizinhos? Por isso, com o decorrer dos anos, a língua foi representada com diferentes
grafias por etnólogos, linguistas e antropólogos, na tentativa de expressar suas relações sócio-
históricas e sua sonoridade fonética: iaté (SCHULLER, 1930; LOUKOTKA, 1939), iatê
(MELO, 1930), ia-té, ía-té, ia-tê (BOUDIN, s.d.; 1950), yáthê (PINTO, 1956; LAPENDA,
1965), yatê (METRAUX, 1952; RODRIGUES, 2013) yahthe (MELAND; MELAND, 2010
[1960-1961]) e yaathe (SÁ, 2002; COSTA; SILVA, 2012).
A preocupação com as línguas indígenas foi ligada ao projeto de destupinização, sob o
argumento de considerar as variedades e pluralidades de línguas no território nacional. Deste
modo, a linguística serviu de instrumento metodológico para traçar possíveis difusões e relações
culturais. Neste sentido, a classificação dos Fulni-ô esteve atrelada a sua bagagem cultural e a
sua relação com as outras línguas, como destacado no mapa de Loukotka (1939) e Nimuendajú
(1944 [IBGE; IPHAN, 2017]). A partir dos anos de 1950, as ações iniciais do Summer Institute
of Linguistic (SIL) foram algumas das bases para a consolidação de uma área da linguística
descritiva no Brasil, a organização desenvolveu o trabalho missionário vinculado ao campo
linguístico e indígena. As ações do SIL tiveram como publicações: (MELAND; MELAND,
1967, 1968), (MELAND, 1969) e inclusive uma tradução das histórias da bíblia para a língua
89
yaathe (SIL, 1968). Mas, a sua maior importância foi formar futuros profissionais, como
Mattoso Câmara (1965) que apontou a possível negação do “iá-tê” com os demais troncos
linguísticos identificados no Brasil, e Rodrigues (1986, 2013) que classificou a língua indígena
como pertencente ao tronco Macro-Jê, porém, de modo isolado, sem incluí-la nas famílias
linguísticas. Greg Urban (1992) também fez apontamentos sobre a presença indígena nas Terras
Baixas da América do Sul, sob a hipótese de ser um elemento de estudo para verificar as
similaridades e as relações de proximidade/ distância das redes e complexos culturais, estando
a estimativa da presença da língua Macro-Jê apontada há cerca de 3 mil anos. Lucy Seki (2000)
traça um panorama das línguas indígenas faladas no Brasil, em sua configuração contextual no
século XXI, e destaca a especificidade da formação do tronco Macro-Jê.
No tronco macro-jê, definido com base em evidências menos claras, são incluídas cinco
famílias genéticas: jê (com 27 línguas e dialetos), bororo (com duas línguas), botocúdo
(com uma língua) karajá e maxakalí (com três línguas cada), e ainda quatro línguas:
guató, ofayé, rikbaktsá e yatê ou fulniô. As línguas (e dialetos) filiadas a esse tronco,
exclusivamente brasileiro, são faladas em particular em regiões de campos e cerrados,
desde o sul do Maranhão e do Pará, passando pelos Estados do Centro-Oeste até do Sul
do País (SEKI, 2000, p. 237)
Como pontua Seki (2000), o estudo “sobre” as línguas foi apontado como uma
possibilidade de compartilhar um meio de comunicação para a conversão religiosa. Por isso, os
estudos linguísticos carregaram essa carga semântica das conversões, traduções missionárias e
das relações interétnicas, como no caso do SIL. Desse modo, a busca de superação do
neocolonialismo para um trabalho decolonial (WALSH, 2019; ESCOBAR, 2015), por um
pensamento crítico e emancipatório, no campo da linguística é realizado metodologicamente
como um estudo realizado para, pelos e com os falantes. Ora, estes são justamente os aspectos
concordantes com o projeto de preservação do yaathe, uma vez que a própria comunidade de
especialistas (acadêmicos, professores escolares indígenas, discentes da licenciatura
intercultural) desenvolvem trabalhos com a intenção emancipatória e fortalecimento do
patrimônio linguístico Fulni-ô. Detalho especificamente as pesquisas de Costa (1993, 1999,
2012), Cabral (2009), Silva (2011, 2012, 2016), Sá (et al., 2018) e Dias (2019).
Consequentemente, os projetos de preservação da língua ocorrem pela “tradição”,
oralidade, sociabilidade e projetos de agências indigenistas que procuram a valorização do
multilinguismo e operações afeto-cognitivas únicas. Destarte, podemos incluir nas agências as
universidades federais e museus que desenvolvem projetos de estudo e material pedagógico em
diferentes línguas indígenas. O projeto de Documentação de línguas indígenas promovido pelo
Museu do Índio detalha que as línguas são repositórios de tradições e conhecimentos nativos,
90
sendo o fator multicultural expresso pela diversidade linguística. Estima-se que se falam hoje
no Brasil cerca de 150 – 180 línguas nativas, que correspondem a 41 famílias e 2 troncos
linguísticos, com mais de 10 línguas isoladas (MUSEU DO ÍNDIO; FUNAI; UNESCO, 2008).
No que se refere ao pertencimento consensual do yaathe ao tronco Macro-Gê, há
informações situadas no projeto de pesquisa de Reesink (2016)46, conferidas pelo linguista prof.
W. Adelaar (especialista no estudo em línguas indígenas na América do Sul), que reportam
fenômenos linguísticos semelhantes no yaathe e nas línguas andinas. Tal vínculo histórico-
comparativo se comprovado situaria a língua materna Fulni-ô em uma outra linha
classificatória, tornando-a próxima de uma língua isolada com ligações ainda desconhecidas.
Ainda que estes sejam estudos preliminares de uma revisão necessária, eles nos servem para
indagar acerca da sua classificação consensual e prever a necessidade de ampliação das
pesquisas neste campo, inclusive, sobrepondo estes fenômenos. Como destaca Nikulin (2020),
as ligações e classificações do yaathe ao Macro-Gê partem de Rodrigues (1999, p. 165) através
de uma “hipótese em construção”, que não abrange um consenso científico definitivo acerca
das ligações linguísticas, necessitando de mais pesquisas acerca do tema. Segundo a conclusão
de Nikulin (2020), a família do yaathe foi descartada do tronco Macro-Jê, refutando as
correspondências sonoras e teorias anteriores, porém, vale destacar que em termos de
aproximação foi destacado uma maior relação do Macro-Jê e do Proto-Chiquitano do que com
o Tupi. Portanto, em estudos recentes, como pontua o linguista Nikulin (2020), existe a
possibilidade de uma relação temporal profunda ainda não verificada entre tais famílias
linguísticas. Logo, é necessário um maior esforço temporal para abranger essa complexidade
nas pesquisas acadêmicas no campo da linguística e antropologia para desvendar o que o
consenso linguístico parece camuflar.
46
O projeto intitulado: O Estado da arte da etnologia da economia simbólica das alteridades indígenas no
Nordeste Brasileiro das Terras Baixas da América do Sul (2016) tem uma proposta inovadora por uma
etnologia avançada que considera uma linha de continuidade em transformação no movimento indígena, que
se preocupa mais em traçar as continuidades históricas do que enfatizar as perdas étnicas. Desse modo, em
síntese, o projeto investiga por modelos rituais e ações simbólicas as economias e regimes de alteridade étnica
no Nordeste.
91
sendo parte e vetor da tradição oral. O seu encontro com a tradição escrita e o português foi um
grande impacto. Ainda hoje, de modo romântico e nostálgico, alguns “anciões" dizem: “o
português e o dinheiro acabaram com nós”. Tal afirmação expressa que os Fulni-ô fizeram um
grande esforço para não deixar que o regime do “progresso civilizatório” e do
“desenvolvimento” extinguisse o seu idioma nativo. A integração e a educação oferecida ao
indígena destinada à comunhão nacional não levaram em conta as suas especificidades. Em
consequência, devido às imposições, os Fulni-ô sentiram a necessidade de proteger a sua língua
e de torná-la uma ferramenta pedagógica de comunicação e poder nas Aldeias. Desse modo, o
yaathe foi e é a principal modalidade Fulni-ô de interpretar o mundo e indianizá-lo ao seu jeito
(SAHLINS, 2003 [1985]). Se antes a língua era ensinada apenas no ambiente familiar, dentro
das casas e dos ritos, hoje ela continua nestes mesmos espaços, somando as escolas, igrejas,
livros, cartilhas, rádios, filmes, e redes sociais da internet (SÁ, 2005, 2011).
O movimento de “preservação do yaathe” criou uma preocupação em torno da sua
continuidade nas aldeias e no seu ensino às crianças, de modo que foram realizadas oficinas,
cursos e criação de material pedagógico. Estas ações tiveram o engajamento de professores
indígenas e, especialmente, da professora indígena Marilena A. de Sá, que esteve à frente
durante muitos anos da sistematização da língua e direção de uma das escolas bilíngues. Apenas
em 2010, o ensino do yaathe foi instituído como disciplina na matriz curricular. Hoje as aldeias
Fulni-ô têm três escolas da Rede Estadual: Escola Indígena Marechal Rondon, Escola Bilíngue
Antônio José Moreira e Escola Indígena Ambrósio Pereira Júnior, situada na aldeia rural Xixia-
khlá. Hoje, após as formações e as adequações curriculares, a língua é instrumentalizada por
professores indígenas, com a intenção de facilitar o seu ensino às crianças e a sua rede de
ensino-aprendizagem em torno da língua. Do mesmo modo, também, é estudada por coletivos
de pesquisa intercultural e de produção audiovisual.
Como destaca a estudiosa e índia Fulni-ô, Fabia Silva (2015), a língua viva yaathe
constitui um elo com o pertencimento étnico, sendo um canal de comunicação privilegiado que
demonstra a competência e a habilidade do falante em ser e estar como semelhante na
comunidade. As teorias da diversidade linguística - impulsionada pelos estudos das línguas
ágrafas nas Américas e pelo estruturalismo na antropologia e na linguística - aborda uma
relação de direitos humanos pelo direito à terra, “porque a escolha da língua é parte dos direitos
dos povos indígenas a sua terra, sua autonomia e a sua autodeterminação cultural e econômica”
(COSTA, 2015, p. 97). Esse argumento está associado aos modelos cognitivos evidenciados
pela língua que possibilitam a explicação e entendimento das múltiplas possibilidades da
92
linguagem e cognição humana. […] “uma língua não é apenas um mecanismo para denotar
significados. Além disso, ela tem poderes plenos para representar um mundo de experiência
vivida” (SILVA, 2016, p. 3). Tornando o ser no mundo com uma tarefa multissensorial: “A
habilidade de ouvir é quem desenvolve a habilidade de falar” (SILVA, s.d., p. 5). Desse modo,
quando uma língua ou uma parte dela morre ou se perde no tempo, perdem-se modelos e
modalidades únicas de compreender e viver o mundo. Costa (2015) e Silva situam o yaathe, no
Nordeste brasileiro, como um modo linguístico que resistiu ao choque cultural. Portanto, a
conjunção entre língua e rito opera um mecanismo constituidor da noção do: eu, nós e eles.
Até os dias atuais, a linguagem transmite um alto grau de distintividade nos sinais de
indianidade, por isso, geralmente, os Fulni-ô se autovalorizam como sendo os únicos em
Pernambuco e no Nordeste que mantiveram a “língua mãe”, resguardando sua tradição e
protegendo sua autenticidade. Por isso, a preservação da língua é estritamente associada à
resistência e a formação do setsô Fulni-ô. Para os Fulni-ô, a demonstração do projeto de
preservação (e não de revitalização) lhes colocam em uma posição hierárquica, no Nordeste,
pelo processo de continuidade linguística, que resulta numa maior proximidade com sua cultura
autóctone, estabelecendo através da língua um alto grau de distintividade no sistema interétnico
(REESINK, 2015, 2016; DÍAZ, 2015). O bilinguismo presente é mais comum que o
multilinguismo na aldeia, uma vez que muitas pessoas falam o yaathe e o português, mas é
reduzido o número de falantes indígenas de três ou mais línguas.
Certamente, a religiosidade em conjunção com a língua Fulni-ô é um sistema que
apresenta criatividade sociocultural e uma singularidade no modelo de comunicação com os
outros “índios e não índios”. Todavia, é importante salientar que essa hierarquia linguística não
se refere ao entendimento geográfico da região do Nordeste, mas, sim em relação a
denominação do conjunto de determinadas regiões que estão em situações socioeconômicas
semelhantes, estando o bioma da Caatinga em contraste com a Amazônia Legal. Por isso, que,
como exemplo, os Guajajara - que preservam a língua ze’egete (“a fala boa”) - estão no
Maranhão, no Nordeste brasileiro, mas se encontram em outra situação socioambiental, situada
na região denominada politicamente de Amazônia Legal (SILVA, 2011). Por outro viés, o caso
da etnia Maxakalí também com língua própria pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, estão
situados em Minas Gerais (MG), que hoje se inclui na área cultural e socioeconômica do
Nordeste.
Portanto, conclui-se que os Fulni-ô são os últimos do bioma Caatinga que traçam uma
linha de aplicação efetiva de preservação com a língua nativa. Entretanto, isto também não
93
indica que os demais indígenas e povos no Nordeste (incluindo Fulni-ô) não procurem realizar
projetos de rememoração, criatividade, empréstimo ou renovação linguística. Um exemplo
disto, é o próprio rio São Francisco chamado pelo termo tupi (Opará) por grupos indígenas no
Nordeste, ou, a presença de mais termos encontrados genericamente como: pajé, cacique,
maracá, jurema. À vista disso, a dinamicidade e criatividade linguística é circunscrita às
circunstâncias socioculturais.
47
Inspirado em Barth (1969), o “modelo aborígene” privilegia as definições êmicas na descrição das políticas
organizacionais e na formação do particular aborígene, ou seja, a concepção indígena do índio verdadeiro,
revelando um modelo autocentrado. Segundo a particularidade indígena no Nordeste, a presença dos Fulni-ô
é marcante, pois se colocam como um “tronco antigo” e “os únicos que mantiveram a língua”. Desse modo, é
comum observar um pensamento de hierarquização indígena, por parte dos Fulni-ô, uma vez que a sua posição
ontológica no mundo compreende a língua enquanto sinal de indianidade primordial, em conjunto com
algumas características raciais (cabelos, olhos, pele), que também estão como caracteres nesse conjunto
valorativo. O traço de manutenção linguística para os Fulni-ô é importantíssimo e se torna critério dominante,
pois além de estarem intimamente ligados com o setsô Fulni-ô, também, os posicionam em um status de
“índios verdadeiros”, perante os demais “índios do Nordeste” que perderam (forçados pelas pressões) grande
parte dos seus idiomas. Por isso, segundo contam: os Fulni-ô não precisam provar nada! De fato, esse
entendimento hierárquico é acionado, ao mesmo tempo em que pode ser ignorado pelos próprios Fulni-ô, a
depender das circunstâncias e das suas motivações. No entanto, devo ressaltar que o modelo aborígene ao
estilo Fulni-ô, no sentido de preservação da língua e execução de um ritual de continuidade de longa duração
os deixam num ponto minimamente curioso em relação às estratégias de resistência étnica. O tempo
cosmológico do Keyxatka-lhá, em que os Fulni-ô se inserem e vivem opera o segredo da experiência do setsô
Fulni-ô, englobando a língua, o rito e a terra, que, em seu conjunto engloba o mundo exterior ao seu, inclusive
o mundo, tempo e religião dos brancos. Desse modo, de acordo com a projeção Fulni-ô do seu modelo
aborígene, os índios falantes do yaathe não precisam de mais nada! Pois, já está mais do que comprovado a
sua indianidade, sendo o idioma o fator de maior grau de distintividade sócio-cultural (REESINK, 2015;
DÍAZ, 2015).
94
nos modelos propostos por Barth (1969) e Cardoso de Oliveira (1967, 1976) - publica artigos
relevantes para compreensão do cenário Fulni-ô e do seu processo social, destacando de modo
etnográfico como as identificações étnico-religiosos e políticas organizacionais põe fronteiras
de modo interativo, sendo a divisão de espaços e práticas rituais acionamentos para preservar
os mecanismos diacríticos.
Um dos registros etnográficos mais marcantes do sistema de clãs, relacionados com as
linhagens de descendência está destacado em Jorge H. Díaz (2015), através do relato de um
ancião, que aborda a organização clânica e a sua hierarquia por ligações territoriais. Como
salienta Díaz a descrição concentrada numa única pessoa indígena poderá resultar em
imprecisões, todavia, nos apontam para um indício de sua territorialidade e formação étnica.
No relato o ancião afirma o seguinte48:
E bem, assim tem essas partes aqui: Waledaktóa já é de Pesqueira, da aldeia dela.
Faledaktóa de Palmeira. Agora Lildyaktóa de Tacaratu. Agora eu falo Cedayto é Fulni-
ô, a primeira parte, são os principais dessa aldeia. Agora essa gente Faledaktóa,
Waledaktóa, Lildyaktoá, já essas famílias são que vem das outras, antigos que deram o
nome assim [...].
O meu avô mesmo dizia fulano, ao invés de chamar pelo nome dele ou a aldeia dele.
Wakôna quer dizer que eu já estou sabendo que Wakôna é de Palmeira. De Walêkoso
que eu já estou sabendo, eu mesmo já sei, já o mais novo do que eu que nunca ouviu e
nunca falou isso, não entende. Ele pergunta a eu: que vem dizer essa palavra?. É a
espécie daquele que vem acolá. Sé um índio de Palmeira afinal é como nós, não é Fulni-
ô já é como nós: Nós chamamos Brasileiros, o inglês, de acordo o país nós damos o
nome; então é assim, eles fizeram essa classificação que nem todos nós não entende
mais. Nossos filhos não entendem mais. Se eu mandar ele: Walêkoso, que ele não
entende mais; é preciso que dê uma explanação a ele (DÍAZ, 2015, p. 212-213 [relato
registrado em Setembro de 1982 por um ancião Fulni-ô]).
48
Hernandez (2015) descreve nos Fulni-ô cinco clãs: Sedayto (fumo, tabaco), Faledaktoá (pato), Waledaktoá
(porco), Lildyaktoá (periquito), Txokotkwá (peixe). Tal sistema clânico teria uma possível relação com a
linhagem de descendência étnica com os Kiriri e os Xocó, porém, estes dados parecem difíceis de serem
registrados em uma etnografia atual. Aqui, é preferível expor os dados antropológicos como ‘facetas da
história’ e continuar com ‘a pulga atrás da orelha’, compreendendo os limites da hermenêutica de suspeição,
por causa do segredo e prática Fulni-ô.
95
parentesco estipula uma forma de reconhecer a linhagem histórica de cada nascido conforme
as suas localidades. Neste sentido, em síntese, Díaz (2015) propõe o seguinte:
Essa possibilidade de construção nos aponta para uma complexa rede de migrações e
comunicação indígena, que trocavam informações e estabeleciam identificações para
determinados grupos com as suas localidades de “origem”, que surgiram em paralelo com o
cenário de regionalização. Consequentemente, a constituição do agrupamento dos "povos
remanescentes” em fluxo força a reelaboração das políticas e regimes identitários em
reconhecimento da solidariedade, dependência mútua e o fortalecimento coletivo, em torno de
um mesmo território e um modo de viver. Deste modo, o Ouricuri expressa em sua formação
intraétnica um conjunto de práticas e sentidos religiosos, que em sua combinatória criativa é o
locus de continuidade cosmológica nas práticas indígenas. Ao que tudo indica, ao mesmo tempo
em que é a conexão com os “antepassados” também é o mecanismo de pertença e iniciação (êka
itê)49 do setsô Fulni-ô. Nesta reorganização cultural, índios e caboclos se reuniram e se
reconheceram como “os índios da beira do rio”, onde estiveram em efervescência simbólica na
formação de uma política organizacional. Reparemos que o relato do ancião por sua memória
oral, provavelmente, detalha eventos de uma fase anterior, ou, próxima à fase de instalação do
S.P.I.. Logo, cada vez mais, os cientistas sociais e os demais curiosos se esbarraram com o
segredo e o particular, que se tornou decisivo para a manutenção da política de pertença,
segurança étnica e a demarcação das fronteiras simbólicas. Contudo, este relato descreve um
senso de territorialidade das linhagens de ascendência, as quais, supostamente, também
carregavam os seus dons e protetores rituais. Como expõe o “ancião”, a transmissão de saberes
49
Segundo Boudin (1949, p. 67) a iniciação e passagem ritual, com o nome em yaathe de êka itê assume a
tradução de: “para receber o seu filho”, que representa uma passagem dos meninos à casa dos homens com
todas as condições e revelações, tendo os jovens em formação um novo papel social e um novo local na
participação ritual. Tal descrição etnográfica oferece o melhor relato sobre o rito de pertença e iniciação Fulni-
ô, demonstrando o papel do toque dos búzios e de seres animados de palhas na formação da pessoa (setsô
Fulni-ô).
96
estava comprometida ao esquecimento, já que os mais jovens não entendiam mais dessas
relações territoriais com as famílias e estavam cada vez mais distantes desse contexto temporal.
Entretanto, ainda hoje, no plano mítico, simbólico e material das relações interculturais tais
questões parecem indicar um vínculo com o segredo do sagrado, que se solidificou com o passar
dos anos ao ponto de formarem complexos de (re)vegetalização xamânica no Nordeste
indígena, através dos rituais do Ouricuri, Praiá e do Toré, realizados por povos indígenas no
Nordeste brasileiro para se referirem a sua “história” de modo intraétnico (REESINK, 2000,
2002).
A constituição e reelaboração da identidade étnica para a formação Fulni-ô esteve
perenemente imbricada nas suas redes de relações, que estão associadas com a etnicidade e
ritual. É sabido que as linhagens indígenas têm os seus próprios protetores, entendidos de modo
geral como encantados, àqueles seres sobrenaturais, que, em alguns casos o encantamento
representa a continuidade da vida em plano sobrenatural do ente que se encantou (passou pela
experiência de morte ou pós-vida), partindo para um local específico, como: as serras, matas,
lagos, furnas, objetos e na memória, estando presente material e imaterialmente. Em cada etnia
há um entendimento particular dos encantados. Segundo Melatti (2016), os Fulni-ô são os que
menos conhecem o termo ‘encantados’ em seu interior, ocorrendo a possibilidade de uma
cosmopolítica e cosmografia nesta rede étnica. Se estes símbolos rituais pareciam estar em
maior migração vinculados às famílias com um número reduzido de partilhantes, atualmente,
os complexos rituais já estão com suas ramificações em áreas culturais definidas e
estabelecidas. Vale destacar o complexo Pankararu - e suas ramificações (Kantaruré >
Pankararé, Geripancó) - que utilizam das práticas dos Praiás, como demonstradas por Arruti
(2004). Da mesma forma, o Complexo do Ouricuri, que tem como ponto central os Fulni-ô (PE)
e os Kariri-Xocó (AL). Por terceiro, o toré se encontra disseminado genericamente pelo ‘regime
de indianidade’ (promovido pelo S.P.I.), onde a sua performance demonstrará a sua fórmula
estética particular e o drama local em nível simbólico em uma comunicação para si e para o
outro (TURNER, 1987, 2015). Deste modo, no Nordeste se disseminou o Ouricuri, o Praiá e o
Toré enquanto práticas com maior grau de ‘indianidade’, sendo o sagrado o mote na negociação
de símbolos e emblemas culturais da ‘indianidade’. Deste modo, uma rede étnica de migração
e comunicação é formada nos agrupamentos indígenas, que em resposta se mobilizam e
ressurgem, como veremos no capítulo seguinte.
Por isso, perguntar das máscaras e da existência de alguma prática religiosa interna com
esses elementos gera um grande estranhamento e desconforto aos Fulni-ô, como se de fato estes
97
50
Conferir em anexo o quadro de entidades registrados por Boudin (1949, 1950) e Pinto (1956).
98
seu cotidiano, desde a mesa da cozinha às ruas das aldeias. O seu trabalho dissertativo tem
como plano central das observações, os sentidos semânticos criados em torno da correlação do
ritual e do tempo religioso do Ouricuri, símbolo da manutenção e resistência étnica, que,
envoltos pelo segredo resguardam a plenitude Fulni-ô. Segundo pontua Foti (1991), a
comunicação entre esses planos (sagrado/ ritual > cotidiano/ mundano) são permeados
principalmente pela língua yaathe, a qual é revestida de eficácia e elo de abertura entre esses
mundos. Inclusive, com um tempo cosmológico definidor de se posicionar no mundo. “O
referencial desses ‘meios’ é enigmático, a um deles está associado, não sei de que forma, algo
que é central no mistério” (FOTI, 1991, p. 120). Como destacado na obra e em outras seguintes,
o elo enigmático da língua conduz a determinados segredos da historicidade e posicionamentos
sagrados, que são permitidos apenas aos participantes do ritual do Ouricuri, deste modo,
corresponde a experiência de ser Fulni-ô, como demonstrado neste trecho:
Nos dias anteriores ao retorno, delinearam-se para mim alguns motivos que fazem com
que o segredo Fulni-ô seja especial. Todos os homens tem segredo, e ele entra na sua
prática social como garantia de posse de posição, cimento da hierarquia, selecionando
comportamentos e tipos de grupo, reforçando sentidos, que se constituem em motivos
para as suas ações. Detrás de uma escrivaninha, certa vez, em Recife, atentei para um
grupo Fulni-ô, entre delegações de índios nordestinos e brancos: entre frases em Yathê
e risos, o grupo parecia indicar-me que o segredo é algo que se usa para “degustar” o
“nós”, ele tem uma força semântica que o torna adequado para viver em resistência, é a
metáfora do sentido compartido, o protetor da crença, o não-dito a reforçar o dito.
Corporações profissionais e confrarias segregam, homens segregam de mulheres e vice-
versa, chefes hierárquicos segregam, etnias segregam. Mas o Fulni-ô segregam de modo
a fazerem-se desaparecer, segregam dentro de limites que são metafísicos, que
implantam no espaço e que descobrem no tempo, com o retorno cíclico a um “lado de
lá”, que atualizam indo e vindo e vivendo. Metafísica que lhes é dada como
possibilidade de sua língua e da longa experiência humana que a constituiu (FOTI,
1991, p. 112-13).
Como destaca Foti (1991), o “segredo” em seu sentido semântico reforça uma
identidade fazendo um duplo ambíguo em seu pronunciamento, de falar ao mesmo tempo em
que não se diz, ou seja, quando se pronuncia a palavra “segredo” não se fala o seu conteúdo,
diz-se haver através da palavra a existência de um conteúdo, que poderia até mesmo ser vazio.
Todavia, ainda que o seu conteúdo seja vazio (o que é improvável), o “segredo” assume a sua
função de marcar fronteiras identitárias, sendo o domínio da experiência apresentado de modo
inconsciente. O sentido compartilhado da língua refere-se também a algo mais abrangente: ao
sentido internalizado enquanto pertencente a um grupo, compreendendo a língua e as suas
regras morais. Foti (1991) destaca que a experiência do “sagrado” e do “segredo” é
correspondente a necessidade indígena de se proteger dos avanços da cidade de Águas Belas e,
inclusive, dos pesquisadores, etnólogos, etnógrafos e antropólogos. Mas, certamente ultrapassa
99
essas questões e adquirem um valor próprio a experiência do vivido do Fulni-ô, pois é dentro
da prática ritual, ou seja, do “segredo” que a Eididi (força) ouricuriniana se liga aos seus
semelhantes. (FOTI, 1991, p. 93). Portanto, Foti (2009) faz uma consideração interessante, ao
notar que estes indígenas elaboram em termos processuais um rito de longa duração (VAN
GENNEP, 2013; TURNER, 2015) que lhes colocam no lugar de ‘índios isolados
voluntariamente’, criando eternas barreiras por parte do Estado que pauta o índio como “em
vias de integração”. Este pensamento é recorrente no processo de mudança social e integração
das sociedades indígenas ao Estado brasileiro, que, de modo etnocêntrico, prevê etapas e fases
à sua incorporação.
Nesse sentido, as categorias estabelecidas por D. Ribeiro se tornaram tecnicamente
operativas, pois elas classificam em qual etapa de contato uma sociedade indígena se encontra,
podendo ser considerado “isolado, em relações intermitentes, permanentes, ou, integrado”.
(GALVÃO, 1963, p. 43). Todavia, como já expôs Darcy Ribeiro (1995, p.145), com
preocupações na pluralidade de identidades, a integração não é assimilação, sendo
interdependência e forte dependência do lado indígena. Logo, pode-se destacar o caso dos
Kariri-Xocó em Alagoas, descritos em V. Mata (1989), como em demais casos étnicos, os quais
são integrados, mas, não assimilados. Muitas vezes, tais conceitos foram utilizados com o
mesmo sentido na etnologia, tendo sua raiz na aculturação. Contudo, como detalha R. Athias
(2007) - nas tipologias das teorias etnológicas - há uma enorme relação e diferença entre a
aculturação e assimilação, sendo utilizados por etnólogos sem uma diferenciação precisa
durante um curto tempo. Entretanto, em 1953, após o conceito se tornar nebuloso pelas muitas
leituras, o Social Science Research Council define a aculturação como a “mudança social que
é iniciada pela conjunção de dois ou mais sistemas culturais autônomos”. Tendo em vista tal
definição, Thales de Azevedo destaca o “regime de relação assimétrica” e o “fluxo cultural
unidirecional” que tem a função de limitar a adaptação da sociedade subordinada (AZEVEDO,
1959, p. 91-2). Então, cabe ressaltar que a integração representa a inserção e subordinação do
grupo étnico à sociedade nacional. Enquanto a assimilação com tonalidade evolucionista impõe
retirar o reconhecimento e condição de grupo étnico, através de sua formação e
institucionalização etnocêntrica, que desenvolve a ideia de etapas de evolução dos grupos
indígenas ao extrato “civilizado”. É deste modo, que os grupos étnicos procuram o seu espaço
na sociedade nacional enquanto indígena sem perder de vista as assimetrias do sistema político.
Retornando ao caso Fulni-ô, Sérgio Dantas (2002a, 2002b, 2012) realizou uma
importante etnografia ao detalhar a mudança dos espaços físicos e uma gramática inter-religiosa
100
Fulni-ô com seus sentidos e significados. Conforme detalha Dantas (2007), a memória oral é
transpassada afetivamente ao traduzir paisagens, objetos, construções, casas, árvores, pedras e
serras, as quais representam concepções do território e experiências concretas de invasão e
estratificação, a exemplo da profecia Fulni-ô a respeito das “Duas Pedras” e do “Ouricuri”, que
não deveriam ficar próximas das casas dos brancos. O “Juazeiro sagrado (Lookhea)”, a “Pedra
do Cruzeiro (Tatka Klidjoõkya)” e a “Lagoa da Pedra (Tatká-tokthuldjoõkya)” são marcos
territoriais associados a aspectos sagrados, tendo a primeira pedra uma cruz firmada pelos
próprios índios, sob o convencimento do padre José Antonio Cavalcante, no sábado de Aleluia
de 1900. Conforme apresenta Dantas (2002b), as paisagens e espaços são enredados numa
trama histórica de interação, onde as profecias indígenas resguardam a sua moldura afetiva,
simbólica e territorial. Em paralelo, os conteúdos religiosos são evidenciados em dinâmica entre
os diversos atores sociais, sendo o campo religioso permeado por um viés intercultural e inter-
subjetivo, pela presença de diferentes grupos sociais e constante crescimento da cidade de
Águas Belas. Segundo o trabalho de Dantas (2002b) é possível destacar as mudanças no mapa
simbólico Fulni-ô, assim como na materialidade da organização do espaço social das aldeias e
do Ouricuri, que revestido de sentido sagrado tem em sua organização a centralidade do mundo,
que dinamiza relações de interior – exterior e dentro – fora. Como destaca Reesink (2000,
2015), o Ouricuri é o núcleo de proteção e manutenção da identidade étnica para lidar com os
citadinos, usado também para conter o avanço moralista da identidade negativa dos águas-
belenses aos Fulni-ô.
Deste modo, estes índios utilizam de uma relação dialética de aproximação e
afastamento, em sua dinâmica com o “segredo” e o “sagrado”, ao se permitirem ou não, o
convívio com o não-fulni-ô. Saber os momentos e oportunidades para acionar essa dialética
envolve todo um conjunto moral e valores, que é inscrito nos saberes locais e na memória
coletiva, como uma forma de organizar os símbolos e noções espirituais em seu favor.
Paradoxalmente, como pontua Sérgio Dantas (2007, p. 151), o particular Fulni-ô se revela na
sua não revelação, na invisibilidade do segredo e do compartilhamento social de um conhecer
secreto que apenas a pessoa Fulni-ô experiencia. Deste modo, as relações interculturais e
religiosas (DANTAS, 2002, 2004, 2007) nos evidenciam que os Fulni-ô desenvolveram uma
importante habilidade na manutenção de sua identidade étnica em sistemas religiosos
compartilhados em partes que ora se distancia e se aproxima. Em outras palavras, quando a
época do Ouricuri se aproxima, os Fulni-ô se concentram ao ponto de cortarem o convívio com
os “de fora” para preservarem a sua “obrigação” e intimidade ritual. O espaço do Keyxathka-
101
lhá é vigiado impedindo a passagem e invasão de qualquer pessoa “de fora”. As suas proibições
envolvem uma série de infortúnios, castigos e obrigações – sob a óptica Fulni-ô, que recaem
sobre todos os mundos (Fulni-ô e não-fulni-ô). Com o encerramento do rito ocorre um
movimento de expansão em que os Fulni-ô retornam ao contato rotineiro com menor restrição.
Dantas (2007) nos aproxima da complexidade inter-subjetiva religiosa Fulni-ô, em decorrência
das peregrinações anuais e sentido revitalizador do Ouricuri. A devoção ao Juazeiro e aos
símbolos do catolicismo popular movimentam a Aldeia Fulni-ô e parte da cidade de Águas
Belas, numa ebulição da consciência de si mesmo e do outro.
Fulni-ô (salvo Kariri-Xocó) não cometerem este equívoco e estarem suscetíveis a algum
infortúnio.
Desta maneira, os Fulni-ô através de um jogo representativo se colocam como os
detentores dos caminhos da origem espiritual/ mítica do Brasil, uma vez que apenas eles podem
se aproximar da árvore para encaminhar o pedido ou a promessa das pessoas de fora. Este
mesmo jogo representativo também é expresso em múltiplas vertentes do toré, com tonalidade
sagrada, terapêutica, reflexiva, lúdica e de brincadeira (DANTAS, 2012). De modo ambíguo, a
marginalidade atribuída aos Fulni-ô pelos regionais na formação de uma sociedade de classes
lhes alocam a um poder e capacidade espiritual. Logo, há uma rica relação simbólica próxima
à noção de Turner (2015), onde, numa inversão dialética, os marginalizados são vistos como
portadores de poderes místicos associados aos elementos naturais (serras, árvores, pássaros),
que, no caso em questão, através de símbolos codificam séculos de convívio e os acionam em
uma economia da alteridade. Essa 'mito-práxis' é exposta (DANTAS, 2002b, p. 228) através de
crenças, símbolos, objetos, emoções e plantas no cenário do Ouricuri, uma vez que no momento
da sua abertura ritual toda a comunidade Fulni-ô se envolve em torno da prática religiosa, a
‘efervescência do sagrado’ também chega aos regionais e demais “brancos” que visitam o local
até o meio dia da sua abertura. A “trilha sagrada” em direção ao Keyxathka-lhá apresenta uma
vivência afeto-cognitiva de ligação territorial da comunidade indígena, onde a centralidade do
espaço sagrado se torna a fonte de fertilidade e renovação étnica. Caminhar em sua direção é ir
rumo à renovação. Logo, a intersubjetividade do “sagrado” corresponde a economias e acordos
simbólicos, em torno de concepções acerca da terra e dos poderes místicos do esotérico
(segredo) e exotérico (revelação). A árvore do juazeiro se torna elemento mítico fundamental
acerca do poder espiritual do índio Fulni-ô, uma vez que apenas estes são aptos para cruzar as
fronteiras sagradas do ouricuri e do juazeiro.
Por conseguinte, o segredo se tornou no Nordeste indígena o símbolo da manutenção
da fronteira da identidade étnica, o qual é constituído de um universo sagrado e religioso. É
desta forma, que a religião exerce grande influência política. Pois, o “segredo” é acionado para
expressar uma fronteira ancestral na qual afirma que os índios são os donos da terra. Para tal,
os ritos e passagens religiosas adquirem uma forma e sentido prático de festa, reflexão e terapia
no sentido fundamental do conceito do religare como uma prática de revitalização comunitária
(CARVALHO, 2008; CANCLINI, 2000). Os poderes especiais à língua yaathe derivam da
ideia de um tempo mítico originário, a qual reflete a questão da autenticidade através de uma
eficácia da comunicação (GRÜNEWALD, 2005), onde o “índio” é visto como um ser
103
aproximado da natureza, com capacidade para falar com os animais e “andar” nos planos
sobrenaturais, sendo este o detentor de uma “cultura originária”. Pois, como bem pontua Dantas
(2007) o campo religioso indígena Fulni-ô é um campo intersubjetivo e transcultural que, a
partir dos movimentos de expansão e contração da etnia, em torno da prática e do secreto do
Ouricuri, dinamizam-se relações sociais e espaços de convivência. Deste modo, a etnia
encontra-se em uma constante busca de estabilidade e continuidade em sua manutenção.
Reesink (2002) expôs que o Ouricuri atua como um demarcador e renovador da indianidade
frente a aproximação e invasão da cidade de Águas Belas. Logo, com bastante habilidade os
indígenas marcam um processo de preservação simbólica ao conduzirem a estabelecerem
normas e regras de convívio respeitadas pelos brancos com hora para chegar e sair.
Concomitantemente, tal força de coesão social apresenta ciclos centrífugos e
centrípetos, que ora convocam os pertencentes ao seu centro e ora lhes autorizam a se distanciar.
Logo, é perceptível o fechamento dos indígenas durante o ritual ou a medida da sua
aproximação. O “segredo” e sua moralidade acionam na prática comportamental Fulni-ô um
conjunto de normas sociais para “cumprir as obrigações e os trabalhos indígenas”. Na época
ouricuriniana a aproximação do homem branco pode ser motivo de infortúnio e má sorte a
qualquer casa indígena. A imagem da “abertura do Ouricuri” é complexa e sincrética, uma vez
que uma série de fatores se correlacionam, uma missa é realizada na frente do Juazeiro, havendo
uma “benção católica” com autoridades religiosas de Garanhuns e Águas Belas. Há uma feira
com vendedores regionais que montam suas barracas para vender seus alimentos e o surgimento
de passeatas e campanhas políticas que entram no início do rito oferecendo folders e pedindo
voto aos indígenas. Tais eventos são vistos de formas variadas pela comunidade, que ora se
sente valorizada com as visitações e às vezes acham desnecessários os vendedores, políticos e
brancos no local da Aldeia Ouricuri.
Com o decorrer dos anos, alguns trabalhos foram publicados em diferentes
departamentos e temáticas de estudo (linguística, antropologia, arqueologia, etnobotânica,
sociologia), consequentemente, utilizam-se os estudos que relacionam de alguma forma as
questões étnicas e religiosas da etnia, uma vez que este assunto se demonstra prioritário nesta
tese. Isto posto, em continuidade, o antropólogo Fulni-ô Torres de Melo (2012, p.122) destaca
que “ser Fulni-ô é antes de tudo pertencer ao Ouricuri e em segundo caso ser falante da língua
Yathê, ou seja, é preciso conhecer os princípios fundamentais que regem a sua vida no
Ouricuri”. Estes elementos são fundamentais na composição e constituição do índio Fulni-ô
que se referem à centralidade das políticas identitárias de pertença do grupo e das práticas
104
socioculturais, sendo o rito Ouricuri englobador de todas elas e parte central nas políticas de
organização social. O termo em yaathe Safenkia Fotheke é atrelado a um mecanismo ritual de
equilíbrio e coesão do grupo (TORRES DE MELO, 2012). Da mesma maneira, Torres de Melo
detalha um esquema hierárquico que busca o equilíbrio da organização social pelos troncos
étnicos e sua composição em um sistema de conjuntos. [...] “según la mitología Fulni-ô los
segmentos de linajes deben estar dispuestos de la siguiente manera A>b, B>c, C>d, D y E = a
+b +C+ d. Está distribución significa una especie de equilibrio en las jerarquías y
organización del poder tradicional” (TORRES DE MELO, 2013, p. 9)". Deste modo, o sistema
de clãs e seus englobamentos demonstra-se uma complexidade, posto que procura a harmonia
e a reciprocidade no sistema de troca entre as partes e o todo Fulni-ô. Então, procura-se
compreender o “equilíbrio” citado, como um tipo de estado da vida social que não
necessariamente resulta em simetria e harmonia, sendo possível a ocorrência de conflitos intra-
étnicos de naturezas variadas. A dissertação de Torres de Melo (2013) trata de importantes
dinâmicas territoriais nas terras do ex-aldeamento, detalhando o desenvolvimento histórico de
lugares e a formação das três Aldeias Fulni-ô, assim como suas dinâmicas e formas de
transmissões de poder através das lideranças tradicionais, novas lideranças e do Conselho, o
que implica muitas vezes em concepções confrontantes no destino societário do povo Fulni-ô.
O autor (ibid.) apresenta aspectos da organização política Fulni-ô, derivada da convenção
aplicada pelo S.P.I. das lideranças: Pajé e Cacique, a qual perdura nos dias atuais, é destacado
que a variação genealógica histórica dos pajés se dá pelas famílias “Pereira e Ferreira de Sá”,
enquanto a do cacicado alterna entre as famílias Ribeiro e Santos. Portanto, segundo as
informações de Torres de Melo (2013) e Díaz (2015), apresenta-se a seguinte corrente
tradicional na transmissão de poder e cargos de autoridade, que somados aos dados etnográficos
do conflito intraétnico atual aponta para o seguinte esquema:
Como destacado pelos autores, além dos cargos vitalícios do cacique e pajé passados
por geração, a etnopolítica Fulni-ô também é composta por um Conselho formado pelos
“anciãos” das famílias da aldeia, cujos atuam como mediadores e conselheiros nas decisões
internas (TORRES DE MELO, 2012). Em torno das questões territoriais, o professor e
antropólogo Peter Schröder realizou o trabalho de campo em serviço da revisão e delimitação
da FUNAI das terras indígenas Fulni-ô. A sua conclusão, além de retratar de modo preciso a
relação conceitual entre terra e território na dinâmica organizacional Fulni-ô, revela uma
importante história oral da etnia. Segundo os relatos da história oral, três “troncos” andavam
pela região do rio Ipanema e das suas serras circundantes. “Estes “troncos” se denominam “fola
e fola-uli e fokhlassa”" (SCHRÖDER, 2012, p. 24). O que demonstra uma forma de percurso
histórico e noção de territorialidade por famílias e certas unidades sociais. Estes “troncos” estão
vinculados com algumas famílias que tiveram seus nomes indígenas removidos, apenas
constando nos registros oficiais os escritos no português. A linhagem também mencionada por
Pinto (1956, p. 68) “Brogradá ou Brogodá” não foi inserida, pois como sugere os relatos em
Schröder (2012, p. 28) “Brogradá” seria uma alterdenominação para “Fokhlassa”, tendo em
vista que a letra ‘b’ não integra o repertório fonêmico do yaathe. O que coloca mais um
apontamento decisivo na questão da auto/ alter denominações existentes nos registros e relatos
históricos.
Segundo a tradição oral, estes “troncos” partilhariam o mesmo idioma, porém, com
algumas diferenças nos significados e nas fonéticas, tendo uma variação no seu dialeto
(KIEZTMAN, 1972). A memória oral indica a junção de diferentes quantidades de “troncos”:
2, 4 e até 5 contados em diferentes mitos e memórias (ROCHA PITTA, 1992). Ao que tudo
indica, ocorreram novas formas de reorganização e transfigurações étnicas em muitos eventos
históricos distintos. Segundo alguns relatam, o encontro de povos que resultou na batalha mítica
dos Karnijó com os Fokhlassa teve como consequência a unificação de grupos que andavam
pela região do rio Ipanema e das Serras do Comunaty, dos Cavalos e das Caraíbas. Esse evento
mítico que expressa solidariedade e interdependência é amplamente reconhecido na aldeia:
“então, aconteceu um encontro, um Toré, com muitas danças e cantos. Uma índia
Fouclaça se engraçou de um rapaz Carnijó, daí as famílias não gostaram e começou a
briga. Os Fouclaça tinham como arma o arco e flecha e os Carnijó, cacete e pedra.
Fizeram um acerto: quem ganhasse ficava com as terras. Mas na hora de brigar
entenderam que era melhor se juntar, nascendo assim a tribo Fulni-ô. Somaram-se
depois outras comunidades indígenas com os Fôla e os Brogadas” (Thxyxá/ seu João;
GERLIC, 2001, p. 5-6).
Muitas histórias dos “troncos” têm carácter mítico e abordam um tempo em que não há
a possibilidade de comprovação dos seus eventos, onde as memórias aparecem como vetor
moral da “origem em comum” (WEBER, 1999), para interpretar o presente acionando o
passado (HOBSBAWN, 2008). Todavia, o que se demonstra como pertinente é a interpretação
e compreensão de uma síntese étnica, evidenciando uma ‘consciência de si’ e de um “nós” com
o estabelecimento de políticas organizacionais, postos de liderança e participação comunitária
na vida social. O outro interesse é acerca do repertório criativo das histórias orais que acionam
seus contextos de atuação por noções processuais.
Tais versões registradas da história oral, desde os anos de 1930, mais do que indicar um
senso absoluto dos fatos, nos indicam uma consciência Fulni-ô através da interpretação de uma
situação histórica específica, com suas possíveis traduções dos percursos e territorialidades
étnicas no Nordeste. Neste aspecto, a tradução e retórica varia o conteúdo e suas combinatórias
culturais a depender para quem o discurso é acionado. Uma interpretação especulativa que
observei ser possível, é que estes termos “Fokhlassa, Fola e Fola-uli” vieram substituir o vazio
simbólico que se instaurou após os indígenas ocultarem suas denominações clânicas e os seus
termos sagrados, os quais são derivados das suas posições e linhas de descendência. Portanto,
é deste modo que os Fulni-ô conseguem expor a sua territorialidade pretéritas, ao mesmo tempo
em que mantêm intactos os mistérios das suas verdades clânicas e aspectos do sagrado. À vista
disto, seriam os ‘clãs’ unidades territoriais pré-cabralinas transformadas? As práticas
107
1976), os Fulni-ô se uniram em torno de um “sagrado” para preservar a sua identidade étnica,
ainda, que, os “civilizados” ousassem intitular os indígenas de “folgados, preguiçosos e
mentirosos”. Os índios respondiam as inferiorizações com a afirmação de que os seus projetos
e motivações eram diferentes dos demais não-Fulni-ô. Portanto, é por meio do cenário religioso
e político em que as classificações são ressignificadas, os caboclos não perdem seus sentidos e
se observam com olhos e perspectivas indígenas evitando veementemente a ideia de serem
remanescentes.
Águas Belas exigem seus direitos originários e históricos enquanto etnia, frente aos avanços da
cidade na aldeia. Neste aspecto, os Fulni-ô não são os Índios de Águas Belas, mas, sim em
Águas Belas, pois, a sua relação territorial é anterior ao município, que, ainda segue em dívida
com estas pessoas.
Ao traçar um paralelo histórico, é factível que as antigas linhagens de descendência do
grupo indígena Fulni-ô enfrentaram diversas frentes de colonização, sobretudo, as religiosas
missionárias, pastoris e agrícolas, as quais seguiram na direção do território do Rio São
Francisco com a intenção de controle, manipulação e extrativismo. Estas dinâmicas territoriais
permeadas pela interação e relação situacional (FERNANDES, 1995; OLIVEIRA, 1976;
DÍAZ, 2015) coexistiram e perduraram com as dinâmicas territoriais e reorganização dos índios
“Carnijó”, que, em resistência utilizaram dos instrumentos administrativos para reivindicar as
autoridades diversas. Um dos tópicos levantados por diversos pesquisadores (DANTAS, 2011;
DANTAS, 2012; VIEIRA, 2011; SILVA, 2011; POMPA, 2011; LOPES, 2011; GALINDO,
2011) é a relação de passividade/ atividade ou submissão/ emancipação dos indígenas, visto
que por muito tempo, a história reservou aos “índios” a visão colonizadora de dominados. No
entanto, essa visão simplista não contempla a complexidade do ponto de vista histórico em que
os indígenas estão situados e, menos ainda a sua visão sobre os processos na construção da vida
social. Diante da historicidade dos séculos XVII-XX, os indígenas passaram por duas fases,
categorizadas pela Coroa e pelos Governadores dos Estados, numa relação interétnica: índios
misturados e índios regimados (REESINK, 2000; REESINK; CARVALHO, 2011;
CARVALHO, 2011; GRÜNEWALD, 2002). Reesink (2000) define o regime como a inclusão
forçada a um sistema compartilhado de valores que estabelece unilateralmente as condições de
subordinação e um padrão de indianidade, criando uma relação de assimetria (A > b). Portanto,
tal operação binária demonstra (através da submissão e autonomia) graus de relação de força
entre a dominação e a resistência, que difere para pessoas e coletivos que lidam com transições
temporais e espaciais.
Como vimos acima, a consolidação de um status jurídico ao indígena, com base
evolucionista, propagado pelo Estado nacional, atribuiu ao “índio” um status de: “em vias de
integração”, com repercussões em uma série de leis e normas, pondo em ordem prioritária os
compromissos legais de proteger as minorias étnicas, frente os avanços globais e do seu regime
assimétrico, mas, considerá-la como um estágio a ser evoluído. Mauss (2003 [1950], p.405)
destaca o “homem total” como condição social pela educação de valores sólidos socialmente
compartilhados pelos deveres e obrigações jurídicas no processo civilizatório (RIBEIRO,
111
2017). Tal formulação do autor destaca para o paralelo da formação jurídica no Estado
brasileiro que confere status e condição às pessoas que dotadas de capacidades, deveres e
obrigações se inserem em um modo de atuação sob o julgamento das leis e moral jurídica do
Estado. No entanto, essa proteção jurídica de caráter dúbio às reais práticas institucionais do
Estado, deixou o “índio” em uma condição jurídica-administrativa, que, como detalha Pedro
Agostinho (1989) reconheceu os grupos étnicos como uma unidade política de realidade
inquestionável com um relacionamento estritamente assimétrico. De acordo com Agostinho
(1989, p. 60): “o Estado brasileiro reconheceu, de direito, a existência de fato de populações
sócio-culturalmente organizadas e delimitadas como entidades discretas, ocupantes de
territórios espacialmente definidos pelo conjunto de suas atividades sociais e relações
ecológicas, mas englobadas pelos espaços que o Estado politicamente domina”. Nesta situação
de contato e participação efetiva de uma cidadania indígena, os conflitos ocorrem pelo direito
à terra, que, para os povos indígenas assume características particulares as quais foram
resguardadas (ao menos em tese) na criação das políticas territoriais indigenistas, com base na
Convenção nº 107 da O.I.T. e, posteriormente, no Estatuto do Índio (lei 6001/1973), conforme
detalhado abaixo:
Foram em torno destas questões que a criação do status jurídico de índio esteve
imbricado com as questões territoriais e efetivação de normas e políticas públicas de regulação
das terras da União. Pois, se aos índios cabiam as normas da integração, ao Estado cabiam as
proteções, as quais eram os reconhecimentos territoriais dos indígenas com as suas
homologações e formalizações jurídicas/ administrativas. Por isso, se formos seguir à risca tais
112
critérios, não devia ser disposto ao bel-prazer dos brasileiros a construção de estradas e qualquer
outra subtração territorial étnica. Do mesmo modo, hoje, ainda se acrescenta o artigo nº 168 da
O.I.T., que se destina às proteções de emprego e apoio ao mercado de trabalho, assim como o
combate à discriminação social fundada em raça, cor, sexo e religião. Como detalha o jurista
João Mendes Júnior (1912), que cunhou na administração das terras indígenas a noção de
‘indigenato’, a qual configura o direito histórico e originário como pré-estabelecido à formação
nacional, através da concisa argumentação de que as terras indígenas não foram adquiridas por
posse comum, ou, título adquirido, mas, sim, por uma relação congênita e primária de povos já
estabelecidos. Logo, segundo a reflexão do jurista, não há posse para validar, mas, domínio
histórico originário a ser reconhecido, uma vez que este processo de dinâmica territorial é
configurado por documentos e comprovações de um tempo anterior à formação nacional
(CUNHA, 2018; SCHRÖDER, 2012; JÚNIOR, 1912).
Como detalha Cunha (2018), em seu artigo – Índios na Constituição, a União com o
poder de suas atribuições jurídico-administrativas confere o direito de posse e usufruto das
terras aos indígenas, seguindo as diretrizes normativas do artigo 231 da Constituição Federal:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e
os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231, Constituição Federal,
1988). Logo, em decorrência das atribuições, discute-se as formas de reconhecer e validar a
permanência pelo carácter da durabilidade da ocupação das terras indígenas, tanto nos seus
limites territoriais quanto nos temporais.
A realidade histórica no Brasil é a de que as terras indígenas estão em um conflito
histórico no quesito das demarcações e regularizações dos territórios, para isto, diversos grupos
de trabalhos foram organizados durante e após a Constituição de 1988 para estudar e demarcar
de modo definitivo o reconhecimento dos grupos étnicos e terras indígenas no país. Porém, os
andamentos dos trabalhos foram mais lentos do que imaginados e com mais problemáticas em
torno destas ações. Neste conflito de identificações e raízes históricas presentes no Brasil
surgem as reflexões em torno do quanto os atores sociais indígenas estão conscientes dos seus
atos, ou, o quanto eles sabem que há um jogo sendo jogado. Essa é uma questão antiga sobre o
poder simbólico e a consciência histórica em torno das suas interações. Por esta razão, seguimos
as indicações de Goffman (1975), ao considerar que é na interação que o jogo é jogado,
admitindo-se uma crença no papel social, conscientizando-se (ou não) acerca da completude
das suas possibilidades.
113
5 Etnicidade e cosmologia
5.1 Os caminhos da interseção étnico-cosmológica
Plantas são da família, signos familiais, símbolos de uma percepção compartilhada do
mundo. Consequentemente, elas representam também um símbolo comunitário.
Pessoas são descendentes das “raízes” e “troncos” de gerações passadas. Raízes são
remédios de duas maneiras significativas: trazem vida e cura, sendo também a origem
de tudo (MOTA, 2007, p. 141).
para a sua proteção. Neste sentido, a América Latina é uma região com uma sócio-diversidade
de povos indígenas, considerada um dos berços de práticas cosmológicas com uso de plantas
sagradas e, sobretudo, de reivindicações sociais que se colocam enquanto um sistema em
oposição. Se antes as plantas eram cultivadas e utilizadas na fitoterapia sem o uso de
distintividade, com o passar dos anos, os cultos ganharam novos anagramas e conteúdos
culturais, sendo as trocas e economias simbólicas os elementos centrais na reflexão acerca das
continuidades étnicas. As ligações entre estas práticas estão enraizadas e ramificadas em planos
materiais e simbólicos, sendo associadas às ligações territoriais, cosmologias, regimes de
memórias e formação de uma estética ameríndia contemporânea com alto grau de distintividade
no regime da alteridade na época do antropoceno (MOTA, 1987, 2007; MOTA; BARROS,
2002; REESINK, 2000, 2002).
Neste viés a humanidade e as plantas estão entrelaçadas como a natureza e a cultura, em
um “acordo simbiótico”, onde o ambiente atua como um veículo de transmissão para um campo
de categorias de entendimento (representações e educação ao território) (REESINK, 2002;
FOLADORI, 2004). Os Reinos Plantae e Animalia estão postos em dependência e dialética, de
modo que a relação entre plantas e culturas foi notada através de diferentes ópticas, graus,
epistemes e hábitos que configuram o ethos, sendo este elemento um grande fator para a
reprodução social. A passagem taxonômica da natureza para a cultura envolve através destes
símbolos a interatividade espacial e experimental com as coisas da vida, que, em muitos casos,
ganham agência em um mundo animado.
O conhecimento e as práticas que remetem às plantas são observados em diversos povos
com múltiplos fins, os grupos humanos direta e indiretamente lidam cotidianamente com as
plantas nas suas atividades diárias, como na alimentação, saúde, arquitetura, desenvolvimento,
tecnologia e artes que envolvem o habitar em variadas escalas. O uso de vegetais resulta em
saberes específicos da fauna e flora do habitat, onde se considera os aspectos materiais
(matéria-prima, utensílios, ornamentos, ecologia, plantas e demais vegetais) e imateriais
(saberes, transmissão de conhecimento e formas de expressão). Ambos, o material e o imaterial
são necessários e importantes nos quesitos socioambientais, econômicos e processos
identitários dos povos tradicionais. Tais saberes expressam relações profundas do ser humano
no ambiente que evidenciam as práxis e os modos de operação simbólica na vida social
(THOMAS, 2010). Por isso, é possível destacar diferentes atividades econômicas e sociais que
utilizam de vegetais para sua produção. Não intenciono trazer um resgate histórico de todas,
mas, é sabido do destaque e difusão do pau-brasil, da mandioca, macaxeira, cana-de-açúcar,
115
cacau, café, milho, batata, algodão, dendê, borracha e de uma ampla domesticação de vegetais
que impôs a difusão de plantas nativas e exóticas, assim como um amplo debate em torno da
sua extração e mercantilização (CARNEIRO, 2004; PRANCE; NESBITT, 2005).
As economias simbólicas das plantas com finalidades sagradas envolvem um conjunto
de vegetais e preparados, como: bebidas fermentadas, vinhos, jurema, tabaco, rapé, Cannabis
sativa/ indica, paricá, yopo, datura, Salvia divinorium, ayahuasca, une, caapi, mambe e demais.
Existe um imenso arsenal de casos os quais ilustram a vastidão de estudos na área de: Drogas
e Culturas, desencadeando em uma pluralidade de políticas públicas, entendimentos,
pedagogias e contextos que apontam a complexidade das relações entre: ciência x religião,
indivíduo x sociedade, lícito x ilícito, centro x periferia, local x global, tradicional x
contemporâneo (LABATE; GOULART, 2005, 2008). Em muitos casos, tal compreensão
abrange relações com o regime de Deus, regime da lei e o regime do índio na construção
histórica e na consolidação da formação nacional (TAUSSIG, 1997; REESINK, 2000).
Consequentemente, as interações de identidades e valores dinamizam os ethos, pondo a
etnicidade e a religião enquanto aspecto diferenciador de alto grau no mundo habitado das
diferenças e similaridades culturais.
Sob o estudo da alforria, Cunha (1985) detalha como a religião foi definidora para os
escravos recém-libertos (que compraram sua liberdade), os chamados “negros da terra51”
praticavam a “vadiagem” como forma de resistência e através da religião marcaram o seu lugar
social de identidade nacional. É desta maneira, que, ex-escravos africanos e crioulos voltaram
para Lagos/ África e manifestam a sua nacionalidade brasileira através do catolicismo,
remetendo o seu vínculo com o Brasil. Enquanto, numa inversão, os africanos que estavam no
Brasil, chegados forçadamente por navios negreiros, buscavam preservar ao máximo as
religiosidades africanas, posteriormente, vistas tradicionalmente como: xangô e nagô.
Certamente, esta conclusão se refere a casos particulares, não sendo uma regra a todos os
acontecimentos. Neste sentido, o acionamento da identidade religiosa se torna um elemento
retórico relacional de distintividade para a formação comunitária e o estabelecimento de
51
O termo que assume uma conotação colonial parece ganhar neste caso, uma semântica voltada aos negros
libertos, escravos ou descendentes. No caso do trabalho de J. Monteiro (1985), o termo “negros da terra” ganha
uma conotação que busca uma diferenciação entre as nações de índios e dos negros, oriundos principalmente da
Guiné. Já em Cunha (1985, p. 13) o termo aplicado introduz a complexidades das identidades que se formavam
em torno da descendência, nacionalidade, religião e comércio, tendo como tema a alforria, trabalho e a escravidão.
Ademais, os dois trabalhos tratam de aspectos temporais e espaciais diferentes, visto que Monteiro se foca no séc.
XVI e Cunha no séc. XIX.
116
solidariedade e coesão social (DURKHEIM, 2008 [1960]), como veremos com o caso da
jurema e do toré nos povos indígenas no Nordeste.
No decorrer dos tempos alguns vegetais e práticas foram associados com a identidade
de grupos indígenas e quilombolas através da realização de práticas mágicas, religiosas ou
sagradas que cultuavam seus descendentes e as terras que habitavam. Certamente, o elemento
de maior difusão no Nordeste brasileiro é a fumaça que provém do tabaco (Nicotiana tabacum)
e mais ervas secas, que, quando sai do cachimbo (com o fornilho virado ou não) defumam o
ambiente para estabelecer o poder e comunicação com o sobrenatural. É deste modo, que
determinados vegetais integram as práticas com finalidades divinatórias e terapêuticas que
transcendem o espaço e o tempo para encontrar profecias, patronos e lugares encantados. A
jurema é o segundo vegetal no campo do sagrado de maior presença histórica no Nordeste,
usada por muitos grupos étnicos, religiosos e raciais com variadas configurações e práticas
sagradas. Ainda podemos citar mais plantas, como a própria “maconha” (cannabis), a “figueira-
do-diabo” (daturas) e a copaíba (Copaifera langsdorffii) as quais tiveram grande difusão social
e uso nos sertões, como apontam os registros históricos e as memórias orais (HOHENTHAL,
1960; PINTO, 1956; TORRESAN; BATISTA, 1989).
Vimos nos capítulos anteriores que a repressão foi historicamente contínua no período
missionário e imperial, de modo que determinados “costumes dos índios” se tornaram sagrados
e secretos, muito bem escondidos em cabanas e choças, onde apenas os “índios” teriam acesso,
sendo vistas como “coisa de índio” que indicava costumes reservados e oráculos. Estes centros
sagrados se protegiam do regime de Deus e da fé que procuravam instalar proibições e
repressões para moldar os rumos da sociedade e, a longo prazo, instaurar o projeto de
‘catequização e europeização’ dos costumes ameríndios (JÚNIOR, 2010). Como consequência
uma série de imposições foram realizadas para impedir a realização de cultos indígenas e
reuniões no mato. Estas fases históricas quando analisadas são vistas como eventos bastante
próximos. Cruz (2018) analisa na formação histórica do séc. XVIII e XIX, o papel dos
feiticeiros e a difusão de práticas "diabólicas" com uso de plantas mágicas que se difundiram
pelos sertões entre indígenas, negros, padres e missionários. Segundo o autor, a escola do diabo
(CRUZ, 2018) se associava a um conjunto de práticas, como: o transe, a vadiagem, mandinga,
as bolsas, uso de símbolos e demais saberes em torno do uso de plantas e instrumentos musicais.
No Nordeste muitas etnias têm em sua memória oral a imposição da proibição dos seus
rituais por parte destes regimes, como dizem os Fulni-ô (DÍAZ, 2015), Xocó (DANTAS, 1980),
Kiriri (NASCIMENTO, 1994), Pankararu (ARRUTI, 1996), Atikum-Umã (GRÜNEWALD,
117
de relações sociais como objeto principal de análise, com a intenção de construir modelos de
sistemas interétnicos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1970, p. 434). Logo, a ideia de uma
‘etnologia avançada’ é correlacionada com as tradições de pensamento e possibilidade de
instrumentalizar por concepções a realidade empírica. Pretendo apontar o que se demonstra
enquanto o cerne da questão na aplicação do conceito de etnicidade, pois os regimes englobam
aspectos marcadores e as características da identidade, tornando-os ‘sinais de indianidade’
usados também na mercantilização e reflexão da "cultura" (TAUSSIG, 1987; CUNHA, 2017).
5.2 Etnicidade
Barth (1969) – ao estudar o caso dos Pathan - marcou os caminhos dos estudos étnicos
pela sua definição de grupo étnico como: “organizacional type” (tipo organizacional), que
significou uma rejeição analítica do grupo como uma “unidade portadora de cultura”. A
metáfora da fronteira utilizada por Barth (1969, 2000) ilustra as disposições simbólicas e
materiais, que ocorrem nas situações de contato interétnico, as quais abrangem uma identidade
histórica e uma relação de diferenciação entre grupos sociais. Deste modo, a fronteira representa
a separação de grupos pelo ideal weberiano de uma crença em comum auto-justificada pela:
descendência, religião/ cosmologia, localidade, etc. Logo, segundo o autor, os grupos étnicos
são formados pelas suas próprias relações que lhes constituem atribuindo realidade à vida
social. Barth (2000, p. 123) destaca determinados aspectos do conhecimento local como
correntes de tradições culturais, “formando conjuntos de características coexistentes que
tendem a persistir ao longo do tempo”. Inserido na ideia de fluxo transnacional, os critérios de
classificação estão em torno da criatividade, durabilidade, coerência e contradições que
permeiam a ação humana. Tal concepção mudou significativamente a perspectiva de análise
dos grupos étnicos, ao considerar que a sua definição não atuava em termos culturais stricto
sensu, mas em um processo de identidade por um jogo de valor e classificação, onde se consuma
a identidade étnica em situações de mudança, tomando como ponto central a auto-apreensão e
a afirmação do “nós” perante os outros.
A aplicação da noção de identidade étnica transferiu as reflexões antropológicas das
culturas como características visíveis para a compreensão do grupo étnico enquanto interação
social e auto-apreensão de si no mundo com os outros. Deste modo, o estudo e codificação dos
sistemas de relações sociais ganha uma dimensão instrumental, acerca de como (e não o porquê)
se articula a identidade étnica e o seu jogo de valor imbricado (VILAR, 2004; REESINK,
121
52
Para ler uma crítica pertinente e os limites da concepção de F. Barth com maiores detalhes, ver: (VILLAR, 2004;
REESINK, 2017).
122
Os valores locais encontram sua raiz no mundo mítico e nos rituais que reorganizam
tais mitos. No entanto, a percepção do mundo é ao mesmo tempo sagrada e secular.
Os seres humanos são parte da natureza e, portanto, compartilham sua existência com
seres vivos não humanos. O homem não está separado da natureza, da mesma forma
que os seres humanos não estão separados da cultura. Sob essa perspectiva, surge a
necessidade de encontrar o equilíbrio entre essa cosmovisão e o mundo real. Em
consequência, a verdadeira significação do saber tradicional não é a de um
conhecimento local, mas a do conhecimento universal expressado localmente (Posey)
(TOLEDO; BARRERA-BASSOLS 2015, p. 138-39).
história ambiental ou uma ecologia histórica/ política derivam da iniciativa de pôr a noção de
interação nas relações entre homem e ambiente, iniciadas pelas caracterizações e estudos nas
mudanças de paisagens, assumindo abordagens macro e micro social e especificando as partes
envolvidas. Deste modo, se durante o determinismo geográfico o ambiente foi visto como
determinante nos estilos de vida e das condições de sobrevivência, hoje, após a Revolução
Industrial vemos a velocidade da ação humana nas mudanças ambientais e culturais. Então,
para compreendermos a influência do homem na modificação dos ambientes e dos recursos
naturais, foi preciso restabelecer compreensões dialéticas em torna da criatividade, transmissão
de saberes e sistemas de ensino-aprendizagem, logo, a antropologia simbólica cognitiva
enquanto disciplina procurou estudar a sócio diversidade, o compartilhamento e a expressão
destes saberes, em distintos contextos sociais e sistemas culturais. Neste sentido, buscou-se a
correlação de informações para de modo complementar compreender como os sistemas
classificatórios se relacionam e interagem na composição de realidades e operações simbólicas.
Escobar (2014) ao associar o movimento étnico na Colômbia e na América Latina
aponta um processo de tomada de consciência, sendo a cosmologia um campo onde essas
relações apresentam sentidos semânticos que guardam uma memória individual e coletiva do
passado e servem de orientação para as ações do futuro. Segundo Arturo Escobar (2014, p. 76)
as cosmologias atuam como uma forma de defesa pela vida de diversos grupos étnicos em
processos de territorialização, que atribuem prática política e uma memória identitária pela
ancestralidade, resultando numa prática política ontológica, a qual visa manter a própria
sobrevivência num mundo de relações.
territórios e identidades. Esta cosmologia não está livre das lutas espirituais, econômicas e
simbólicas, sendo este um campo de poder que abrange assimetrias e equilíbrios não saudáveis.
Segundo o autor, a proposição de uma ‘alternativa ao desenvolvimento’ é crucial nestes tempos
de políticas excludentes, uma vez que a homogeneidade do mundo do progresso procura
avassalar todos, transformando-os num regime uniforme. Deste modo, as lutas ontológicas se
mostram enquanto alternativas tanto a um mundo homogêneo como de um mundo econômico
único. Escobar (2014) ao enunciar os processos de territorialização descreve uma prática
política ontológica, conceituando a cosmologia enquanto uma forma de defesa pela vida de
diversos grupos étnicos em processos de territorialização, que atribuem prática política em seu
regime de memória. Tais lutas ontológicas criam o pluriverso que representa a pluralidade
cosmológica em tensão com o projeto de integração nacional dos grupos étnicos, ou, o projeto
de construção de apenas um mundo possível. Tal enfrentamento responde a tentativa de
uniformização e homogenização das sociedades nacionais, com a imposição das suas normas e
padrões sociais. Neste sentido, há um entrave baseado nas ideias da laicidade e da atuação dos
poderes do Estado e da Religião no sistema inter-étnico, a partir das suas constituições,
diferenciações culturais e dos seus regimes de conhecimento, visto que os indígenas através do
“trabalho” religioso procuram vencer as epistemes do modelo de desenvolvimento e do trabalho
econômico. Deste modo, o “trabalho” indígena procura através de fronteiras simbólicas operar
ontologias e epistemes, as quais apontam a prática religiosa enquanto um modo de reprodução
da vida social, sendo essencial para a produção comunitária e legitimidade territorial. É legítimo
dizer que através do “trabalho” e da cosmologia indígena é demonstrada a reivindicação dos
entendimentos da função social da terra, uma vez que essa ligação entre terra, religião e saúde
são os princípios da reprodução social.
Como demonstrei anteriormente através do caso Fulni-ô, as conquistas étnicas estão
associadas com conflitos socioambientais e territoriais, em conjunto com a formação de uma
unidade étnica subordinada ao Estado. A dimensão deste conflito também pressupõe um
acionamento religioso, visto a construção histórica da própria história do Estado, da Igreja e do
pensamento moral (MAUSS, 2003 [1950]). Consequentemente, a adaptação indígena parte de
uma autonomia completa para uma subordinação parcial, que envolve um protagonismo
desenvolvido pela disputa dos regimes de memória, epistemológicos e ontológicos, a qual visa
uma integração que mantém a distintividade. Esta diferenciação ocorre com o confronto da
identidade étnica e, em eixo secundário, com a identidade religiosa, como “condições nas quais
128
certas diferenças culturais são utilizadas como símbolos da diferenciação entre in-group e out-
group” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011 [1995] p. 129).
Langdon (1996) escreve na introdução da obra – Xamanismo no Brasil: novas
abordagens – que o sistema cosmológico aciona enquanto sistema simbólico multi-vocal a
intenção de se desviar dos equívocos pejorativos das projeções da magia e da religião. O
entendimento do xamanismo como uma instituição de amplo complexo sociocultural permite
um estudo de diferentes mediações e técnicas dos especialistas, bem como do seu público e
sistema simbólico de saúde/ doença. Desta maneira, é que o xamanismo procura influenciar o
mundo e tecer as próprias redes de conhecimento e informação. A influência de Langdon
(1996), a partir das noções interpretativas de Geertz (2004 [1968], 2012 [1989]), aponta a
necessidade das particularidades em um mar de generalizações. Desta maneira, conforme a
fonte nos indica, (o que lembra a teoria da enunciação de Benveniste) […] “a religião pode ser
uma pedra lançada na terra; mas deve ser uma pedra palpável e, alguém deve lançá-la”
(GEERTZ, 2004, p. 17). Desta maneira, o “sagrado” indígena são temas que trazem
subjetividade e compartilhamento simbólico representados pela "tradição" e "cultura".
Compreender os processos e as dinâmicas da tradição são abordagens que detalham a
criatividade da ação humana (WAGNER, 1975).
Segundo Viveiros de Castro (1996, 2002) o pensamento ameríndio de modo
inconsciente se diferencia em sua essência do pensamento ocidental, pois a mito-práxis revela
através do perspectivismo animal e vegetal, o antropomorfismo e a intercomunicabilidade que
misturam os atributos humanos e não humanos, assim como as participações em eventos.
Nessas operações e construções da realidade relacional, o ser ameríndio amazônico não veria o
ser humano como espécie, mas, enquanto condição. Tal economia geral da alteridade,
provocada pela alimentação da constituição ontológica, inicialmente ditas pelas metáforas do
Mármore e da Murta53, apontam para concepções epistemológicas e mito-práxis diversas.
53
Os dois termos exprimem construções relacionais com a alteridade, o mármore expressa a relação de identidade
substancial dos europeus que em contrapartida firmava uma rigidez e fechamento às trocas, enquanto, a murta,
exprime uma afinidade relacional com facilidade de renovação. “A inconstância da alma selvagem, em seu
momento de abertura, é a expressão de um modo de ser onde “é a troca, não a identidade, o valor fundamental a
ser afirmado [...]” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 206).
129
54
“Hoje, o animismo é de novo imputado aos selvagens, mas desta vez ele é largamente proclamado (não por
Descola, apresso-me a sublinhar) como reconhecimento verdadeiro, ou ao menos “válido”, da mestiçagem
universal entre sujeitos e objetos, humanos e não humanos, a que nós modernos sempre estivemos cegos, por conta
do nosso hábito tolo, para não dizer pecaminoso, de pensar por dicotomias. Da húbris moderna, salvem-nos assim
os híbridos primitivos e pós-modernos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 30)
55
Agradeço ao professor PhD. Edwin Reesink, orientador deste trabalho, pelas suas contribuições e, em especial,
a ideia da aplicação da “perspectiva vegetal”, que tornou a aplicação deste conceito viável com uma contribuição
original no campo etnológico no Nordeste brasileiro.
130
vegetal animado “[...] como equivalência lógica das relações reflexivas” (VIVEIROS DE
CASTRO, 1996, p. 129; idem, 2002, p. 376). Esses conceitos e as roupas que são vestidas
determinam o ponto de vista: a unidirecionalidade do objeto ou a pluridirecionalidade do
sujeito. Neste sentido, os humanos e não humanos têm as suas materialidades mediadas, criando
mutualidade e participação na construção dos seus respectivos mundos que superam a
existência de um mundo único e exclusivamente material. Deste modo, implicar que o ponto
de vista cria o objeto ou o sujeito, refere-se dizer, ao nosso caso, que, determinados vegetais
são compreendidos contendo agência em um regime de autoridade, eles têm espírito e família,
havendo uma função cosmológica à unidade trans-específica. Numa relação semelhante ao que
Descola aponta: “como um sistema de categorização dos objetos naturais, mas com um sistema
de categorização dos tipos de relação que os humanos mantêm com os não-humanos”
(DESCOLA, 1997, p. 257). Para expor a questão, um dos vegetais de influência e difusão nos
grupos indígenas torna-se um dos elementos centrais das nossas reflexões. Para tal, veremos
como se desenvolveu a sua complexidade e moradia nas árvores e famílias.
56
Segundo U. Albuquerque essa espécie de vegetal não é nativa da caatinga, sendo uma planta exótica nesta região,
trazida possivelmente por indo-europeus que a utilizavam com finalidades afrodisíacas para práticas sexuais e de
fertilidade (ALBUQUERQUE, 2002; I seminário Humanos e Plantas do NEPE/ UFPE).
131
classificadas como “jurema-preta”: a Mimosa tenuiflora Wild. Poir.) = (Mimosa hostilis Benth.)
e a (Piptadenia moniliformis Benth.). Segundo o autor (ibid.), as classificações científicas e o
reconhecimento destas plantas são controversos na literatura, visto a diversidade de plantas,
consensos e bases comparativas ao longo dos estudos, sendo este um tema de provável
crescimento nas pesquisas acadêmicas favorecendo na sua sistematização.
As juremas são plantas que se destacam na região da caatinga e do semiárido, pois as
suas cascas e raízes têm propriedades: fitoterápica, antimicrobiana, anti-inflamatória,
cicatrizante e antifúngica. Um dos fatores que nos induzem ao uso da jurema se refere aos
próprios recursos naturais provindos dos biomas, no caso do bioma Caatinga, da Zona da Mata
e do Litoral. As árvores e arbustos se difundem amplamente como uma fonte de “remédio” de
muitos estilos através das suas cascas, raízes e folhas. Os seus usos vão desde a defumação,
beberagem e uso tópico. As juremas integram a mata nativa dos biomas nordestinos com alto
poder de reflorestamento, a planta também serve como fonte de recursos alimentícios aos
animais e insetos. Inclusive, a sua floração em variadas épocas do ano a depender da
sazonalidade das chuvas, tornando-se atrativa para animais, abelhas e demais polinizadores
formando um campo de interação multi-espécies (SILVA et al., 2015). Ademais, é fonte de
recursos energéticos aos humanos pelo uso da sua lenha e madeira (FARIA, 1984), sendo de
ampla abrangência e resistência ao tempo seco da Caatinga. Suas madeiras também servem
para carvão vegetal, estacas, artesanatos e fabricação de móveis rústicos. Portanto, as juremas
se tornaram expressivas no bioma da Caatinga pelo alto potencial de regeneração das matas
brancas e cobertura vegetal ao lado das árvores do umbu (Spondias tuberosa Arr. Cam.), da
aroeira (Myracrodruon urundeuva), imburana de cambão (Commiphora Leptophloeos) e
demais nativas. Consequentemente, a jurema se tornou um vegetal símbolo de diferentes grupos
sociais, expressivo dentro e fora dos muros acadêmicos e das fronteiras nacionais (SILVA,
2003).
Nas aldeias indígenas do Nordeste é um símbolo de resistência e ressurgência, que
remete à ciência do índio e à ciência do próprio vegetal um alto poder de comunicação extra-
mundano, que dotado de agência molda subjetividades e objetos. Dentro do Brasil a prática
religiosa é reconhecida como contestadora e crítica à autoridade colonial. Por outro lado, no
cenário internacional o uso da jurema é visto atrelado a identidade de uma religião brasileira
(JÚNIOR, 2014). A jurema é uma planta, uma prática e uma religião que se difundiu pelo
mundo através de muitas vertentes. A sua expansão religiosa transnacional imputa à jurema a
classificação de uma religião brasileira de poder e mistérios. Entretanto, no difusionismo
133
brasileiro as religiões da jurema ou que usam a planta têm em seu histórico os impactos das
tensões da intolerância religiosa, proibição e a atribuição de ser uma prática marginal. Ou seja,
em âmbito internacional as práticas com a jurema são vistas como uma "religião brasileira",
mas, por outro lado, dentro do Brasil ela é vista como uma prática fora dos muros da colônia,
algo que historicamente não é "coisa de branco" e nem do Estado brasileiro.
As múltiplas denominações e representações que recaem a este vegetal revelam a
abrangência e complexidade da sua difusão internacional e nos estados de Pernambuco,
Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, Piauí, Ceará, Sergipe e Bahia. Logo, são muitas as
espécies de juremas e as suas denominações nativas. A jurema é vista sob diversos prismas,
pois o mesmo nome é atrelado ao vegetal, espécies botânicas, bebida, divindade, práticas e
religião. O caso da jurema traz um 'complexo de idiossincrasias' (REESINK, 2002;
GRÜNEWALD, 2004) e uma rede de 'tradições de conhecimentos' (BARTH, 1969, 2000), ao
ponto que a jurema é uma planta lendária e mítica de destaque no Nordeste indígena, ligada a
aspectos arqueológicos, vestígios materiais e a trabalhos religiosos como ‘símbolo de
indianidade' e do “caboclo”. Certamente, a jurema é uma planta sagrada pela primazia dos seus
aspectos míticos e também enteógeno pelos amplos sentidos de comunicação, experiência e
entendimentos de vida e morte que estão nos povos indígenas no Nordeste. São muitos os atores
das juremeiras com genéricas denominações de: índios, pretos, brancos, religiosos e
psiconautas de variados estilos que veem a planta como dotada de poder comunicativo, seja
por entidades ou substâncias. Em muitas práticas religiosas a jurema assume posição central e
elemento de destaque, seja pela bebida, "assentamento, garrafadas, religião ou viagens
psicodélicas". Na minha leitura, a sua presença histórica registrada em cultos religiosos e na
fitoterapia induz a interpretação da presença deste vegetal sem uso diacrítico, sendo um
elemento disponível no ambiente que favorece a cura e inclusive as trocas sagradas e
cosmológicas. É acerca deste acúmulo (botânico, histórico, sociológico e antropológico) que
peço a licença ao leitor para uma breve explanação das construções simbólicas das juremas, na
intenção de compreender o hibridismo deste vegetal como contestador da autoridade colonial.
supõe uma presença endêmica de algumas espécies deste vegetal, utilizadas sem necessidade
de uso distintivo, vistas como o próprio diabo ou as coisas do diabo (pelos missionários e
jesuítas, impondo este pensamento com ampla difusão aos grupos étnicos: africanos e
ameríndios) (REESINK, 2000; CRUZ, 2018). A sua abrangência se distribui no Nordeste do
Brasil, no norte da Colômbia e Venezuela, em El Salvador e no México pelo nome de
tepescohuite do idioma dos astecas (náhuatl), que também utiliza de uma mimosa como
elemento religioso-medicinal (MECKES-LOZOYA, 1990; GRÜNEWALD, 2020).
A jurema surge inicialmente como planta mágico-religiosa, sendo conhecida pelas suas
propriedades e agrupamentos para cultos a partir de uma “ciência primeira” bem refletida
através da bricolagem lévi-straussiana: “[...] as espécies animais e vegetais não são conhecidas
porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes porque são primeiro
conhecidas” (LÉVI-STRAUSS, 2013 [1962], p. 25), definindo o caráter experimental do que
está disponível no ambiente e das relações de acúmulo dos saberes e trocas. No Brasil os
registros dos “ritos gentílicos” surgem a partir dos aldeamentos e das Missões coloniais pelo
Nordeste. Os registros históricos da Paraíba - local de grande difusão do vegetal - existem
informações de revoltas, sincretismos e as mais variadas trocas, inclusive, de jesuítas que iam
aos cultos indígenas para beber e cultuar as divindades da jurema e aprender os “feitiços”, ou,
indígenas de aldeamentos distintos que se encontravam "no mato" para a realização de práticas
(contrariando as normas das Capitanias) (CRUZ, 2018, p. 53, p. 137). Este contexto de trocas
e influências exigiu da Coroa (como já vimos) algumas ações para o controle territorial e
espiritual. Ao modo que os “ritos gentílicos” conservados como práticas marginais e de risco
às áreas colonizadas sofreram com denúncias e tentativas de extermínio na Inquisição. A partir
dos anos setecentos as "roças" dos aldeamentos foram modificadas na intenção de aproximação
das casas e da ordem colonial para o impedimento dos "ritos gentílicos" (CRUZ, 2018, p. 162).
No século XVIII já se encontram evidências documentais das autoridades coloniais
tentando impedir práticas "gentílicas". As cartas dos governadores de Pernambuco: Henrique
Luís Pereira Freire de Andrada em 1741 e Luís Diogo da Silva em 1758, mais as denúncias do
jesuíta Martim de Nantes e do capuchinho José de Calvatam são evidências da tentativa do
apagamento e extermínio dos ritos indígenas, vistos como “diabólicos” e coisas da “feitiçaria”.
A carta do Governador de Pernambuco é um marco para a perseguição da jurema, aos olhos
dos colonizadores os feiticeiros, curandeiros mestiços e os “mestres da jurema” eram elementos
de perigo, pois espalhavam com as línguas nativas o medo e o terror com a fumaça (CRUZ,
2018). A formação do “segredo” da Jurema é similar ao caso apresentado pelos índios
135
colombianos exposto por Taussig (1992), que associa o vegetal a um corpo de conhecimento
que precisa de proteção para continuar vivo.
Os eventos coloniais da jurema são diversos ocorrendo desde cultos indígenas com a
presença sincrética de jesuítas que beberam jurema, como na sua proibição e tentativa de
extermínio. Ao longo dos séculos a jurema foi e continua por ser uma planta demonizada,
associada aos “ritos gentílicos” e costumeiramente receitada para as doenças que não havia
remédio. Tais confrontos de ideologias e formações de fronteiras destacam concepções diversas
da jurema. Se de um lado a jurema é perseguida, do outro ela é sagrada e misteriosa sendo
veículo para diversas práticas. Como vimos no cenário geral de formação das repúblicas na
América, estão dois projetos: a imposição da fé, que aponta as práticas mágicas enquanto
feitiçarias/ curandeirismos, e segundo a imposição do estigma da marginalidade pela sua
classificação de crime e drogas, definindo as condutas lícitas e ilícitas (SANGIRARDI, 1984,
1989; BITTENCOURT, 2015; ECHEVERRI; PEREIRA, 2004). Em síntese, o regime de Deus
e o regime do índio também podem ser transpostos para um tipo de regime ético e estético
ameríndio, que agrupa um conjunto de valores e morais. Portanto, para um quadro histórico
mais geral acerca da revitalização de práticas xamânicas indígenas há um processo de
resistência à autoridade e das imposições coloniais e imperiais: a) do Decreto Pombalino (1757)
que buscou remover a matriz ameríndia pela tentativa de abolição dos ritos gentílicos e
apagamento das línguas indígenas; b) reagrupamento de populações e comunidades do séc. XIX
(Lei de Terras 1850); c) reconhecimento do SPI aos povos indígenas a partir da década de 1920,
uma vez que o toré foi o elemento organizacional da religião e da retomada das terras. Logo,
Grünewald (2005a, 2005b) destaca que através do toré ocorre uma revitalização do xamanismo
dos indígenas no Nordeste brasileiro.
A jurema é conhecida como mata rasa e mata rasteira, o seu nome deriva do tupi Yú-
r-ema / Yú-c-ema assumindo como tradução: planta com espinhos e espinheiro suculento
(BRAGA, 1976). Supõe-se que a origem do seu uso advém dos povos ameríndios Tupi, devido
ao processo de dinamicidade cultural e difusionismo, o seu uso foi transferido criativamente
por gerações, estando principalmente associado aos povos ameríndios e aos africanos (bantos,
iorubás, nagôs), oriundos dos portos do Congo e de Angola (CASCUDO, 1988;
SANGIRARDI, 1989; ALBUQUERQUE, 2002; SALLES, 2010; GRÜNEWALD, 2002;
CRUZ, 2018). A difusão do termo a partir do tupi não expressa toda a sua abrangência, visto
que ainda hoje grupos étnicos resguardam termos próprios para a classificação vegetal, o que
indica correntes de fluxos (contra-fluxos), usos e concepções diversas (LIMA, 1946). Segundo
136
Sangirardi (1989, p. 139) a jurema era utilizada principalmente por povos jês, tapuias e kariris.
De fato, constam nos registros históricos e oficiais uma linha de continuidade com a
presença das práticas juremeiras nos aldeamentos e nas terras indígenas, inclusive com um alto
grau de interação entre “negros, índios e colonos”. Portanto, não há como estudar a jurema sem
a compreensão da temática da dinamicidade das trocas culturais. Talvez pelos kariri terem
maior aceitação à colonização dos sertões (quando comparados aos tapuias e janduís), eles
tiveram o maior número de relatos e registros acerca do tema de uso de plantas mágicas e
feitiços.
Por conseguinte, muitos grupos foram reclassificados sob preceitos raciais e coloniais,
esquecendo, transfigurando ou transpondo as suas filiações étnicas, como é o caso das muitas
matrizes ameríndias. Os casos das religiões afro-brasileiras também se destacam, pois
conservaram suas linhagens étnicas na oralidade através de pensamentos religiosos e míticos.
Desta maneira, a jurema entre os grupos se torna um instrumento de mediação com a
'imaginação histórica' na medida em que os praticantes da jurema se apresentam como
descendentes de uma ancestralidade autóctone e aborígene (COMAROFF, 1992). A mediação
da jurema revela um tipo de tempo e espaço que se materializa nos símbolos pela cidade da
jurema, onde se encontra todo tipo de mistério, inclusive, o reino e o segredo dos antepassados
o qual é abordado por diferentes concepções de vida/ morte e comunicação extra-mundana. A
árvore da jurema se torna um local sagrado e ponte entre os mundos com a possibilidade de
efetivar a comunicação entre gerações, animais, pessoas, clãs e vegetais. O tempo e o espaço
cotidiano se dissolvem para realinhar um plano mítico-cosmológico, onde a comunicação e as
percepções do mundo se ampliam. Em outras palavras, a árvore se torna a morada dos encantos
e dos encantados. No Dicionário das mitologias americanas (DONATO, 1973) a jurema
(árvore/ divindade) está situada nos saberes e oralidade dos encantados equivalente à lógica
dos iroko dos iorubás e do loko dos haitianos, que se destina aos seres espirituais que se
incorporam sua morada na forma de árvore, como o caso da gameleira.
As classificações das práticas juremeiras estão registradas em diferentes partes do
Nordeste. A partir dos encontros étnicos e religiosos ocorre a formação dos caboclos,
catimbozeiro, feiticeiros e uma grande difusão dos costumes. Os termos que surgem na
literatura como: “Catimbó" que deriva dos “Candomblé de Caboclo” foi reconhecido entre os
afrodescendentes e indígenas, evidenciando diferentes práticas religiosas comunitárias e
entendimentos particulares da realização do transe (BASTIDE, 2006). Como destaca
Nascimento (2012) o acesso dos pesquisadores foi em grande maioria aos povos denominados
137
57
Destaco autores que descreveram trabalhos religiosos indígenas secretos e abertos com jurema. O senhor de
engenho e cronista, Henry Koster (1942, p. 397, p. 419), descreveu no início do século XIX a relação de segredo
através do relato de uma jovem moça índia a qual disse ter ido às cabanas da vizinhança dormir para seus pais
beberem jurema. Em outro momento, durante a saída dos seus pais para uma beberagem, as índias costumavam
receber visitas que bisbilhotaram curiosamente os artefatos deixados dos seus parentes, tendo como resposta da
jovem: "não é bom olhar para esse lado, são os maracás que minha mãe e meu pai guardam sempre nos cestos
mas hoje se esqueceram, na parte de fora". Se pouco sabemos neste registro do rito da jurema, existem detalhes
importantes que salientam que tais cerimoniais eram feitos em casas de palhas escondidas e afastadas no mato,
apenas com poucos índios que tinham efeitos estupefaciente. Também, foram destacados pelo cronista uma série
de termos que existiam na época, como: mandinga, feitiço e feiticeiros, sendo a reunião dos "feiticeiros e
catimbozeiro" conhecida geralmente como adjunto da jurema. Por outro viés, os dados coletados em 1961 por
Menno Kroeker e sistematizados por R. Meader (1973, p. 25-27) - acerca dos índios do Nordeste - descreve a
cerimônia da jurema dos "Aticum" da Serra d'Uma, a qual com riqueza etnográfica (comparado aos registros
anteriores que se esbarravam no segredo) destaca a defumação, a beberagem, a oferenda para a árvore e a
embriaguez que os próprios "Aticum" reconheciam como o(a) "doido(a)", sendo, talvez um tipo de incorporação
em que a pessoa juremada personaliza uma entidade reconhecida pelo grupo.
138
Bastide (2006) apresenta algumas diferenças de práticas entre linhagens étnicas: banto,
iorubá, fon e os genéricos caboclos. Para o autor, a diferença ocorria pela diferenciação da
‘intercomunicação’ do catimbó e do candomblé que continham em suas práticas o transe.
Enquanto o catimbó tem o transe centrado no chefe do culto que recebe uma pluralidade de
espíritos sem o uso da dança, o candomblé atinge os filhos-de-santo com o transe de modo
descentralizado aos que passaram pela iniciação, com o uso da dança e recebendo apenas uma
divindade. Por mais que o autor aponte as religiões como distintas, Bastide destaca que as
religiosidades coexistem e se encontram pelo “candomblé de caboclo” que é dançado abarcando
uma concentração do sagrado, onde as linhas, a dança, as plantas e o transe têm papel central.
Em síntese, o autor evidencia como os mestres e entidades têm lugar de destaque nos espaços
de memória compartilhados das configurações religiosas. Logo, o “mimodrama” dos cultos
representa a memória e as tendências do sincretismo, que, devido ao romantismo e a
incorporação nacional objetiva o índio em oposição ao negro e as hierarquias sociais. “[…]
podemos dizer que a tendência do sincretismo é função da passagem da sociedade tradicional
arcaica para a sociedade capitalista e industrial, com sua hierarquia das classes sociais que
moldam as mentalidades dos constituintes dessas diversas classes" (BASTIDE, 2006 [1997],
p. 232-3). Se o autor nesta época não destacou a força da jurema nos cultos enquanto uma
religião própria, depois alguns pesquisadores a incluíam enquanto uma nova formação
religiosa. Os filhos e filhas da jurema estariam nos cultos indígenas e afro-brasileiros, sendo
elemento central para a "cura, proteção, limpeza e o segredo" (já destacada em Vandezande
(1975) no início da década de 1970.
Logo, a Jurema foi estudada nas décadas de 1930 e 1940 nos projetos culturais e de
preservação nacional que visavam uma política emergencial frente às perdas culturais. A partir
de 1970 foi pesquisada de modo menos sistemático, na década de 1980 em diante os seus
estudos se tornaram mais plurais e descentralizados. Visto os trabalhos de René Vandezande
(1975), Roberto Motta (1976), Clélia Pinto (1995), Brandão e Nascimento (1998). A referência
mágico-religiosa surge devido a dois fatores: primeiro, aos efeitos provocados pela ingestão da
bebida e a memória coletiva que atribui à planta mágica a capacidade de conduzir o ser humano
às experiências sensíveis, transcendentais e realidades não-ordinárias chamados também de
estados não-ordinários de consciência58 (ALBUQUERQUE, 2002, p. 15; REESINK, 2002;
HARNER, 1973). O outro fator se dá pela compreensão da esfera religiosa dos pesquisadores
58
Aplico politicamente este termo no sentido de destacar uma pedagogia da experiência compartilhada por grupos
sociais em que revela padrões de comportamento e dispositivos por técnicas corporais para a comunhão de
determinados estados afeto-cognitivos. Para uma discussão aprofundada, ver: Mercante (2015).
140
folcloristas da época por uma óptica evolucionista que concluíam a realidade do alter como
mágica, sem lógica e irracional, tendo como consequência a inferiorização de tais saberes.
Assim como o folclore no Brasil é sinônimo de mentira, o curandeirismo era sinônimo
de charlatanismo e enganação. Vale ressaltar que diversos estigmas foram criados
acompanhados dos planos hegemônicos de desenvolvimento com o intuito do combate e
repressão ao uso de plantas: 1. pelo combate religioso cristão da bruxaria, feitiçaria, práticas
mágicas/ malignas/ diabólicas/ infortuno, 2. a política do medo da "guerra às drogas",
impulsionada principalmente pela Convenção de 1912 assinada em Haia, 3. a hegemonia do
modelo biomédico oficial que considerou diversas práticas tradicionais e populares como
charlatanismo, 4. a hegemonia do modelo econômico – progresso/ desenvolvimento. Tal
controle nacional é inspirado no controle internacional, mais precisamente em três Convenções
da Organização das Nações Unidas (ONU), das quais o Brasil é signatário: Convenção Única
de Entorpecentes, de 1961; Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971; Convenção
das Nações Unidas de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 (MORAES, 2018, p.
23). Todavia, ainda que imputada a um local persecutório, parece-nos que a jurema teve uma
certa proteção dos folcloristas (no projeto de desafricanização) pela sua associação com a
religião e as lendas (JÚNIOR, 2010), diferente da maconha (Cannabis sativa) que teve
associação constante à "marginalidade e ao mundo do crime".
Deste modo, a necessidade de controle e combate às plantas esteve conectado às regras
do contexto colonial ao combate étnico através da negação da "mistura" e da pureza racial, a
qual recai principalmente aos povos que detinham o seu uso e saber. Por conseguinte, a
marginalização atribuída no contexto de formação nacional era sinônimo de risco social e,
sobretudo, de exclusão de uma camada social (étnica). Por outro lado, tais grupos expunham
uma autonomia cosmogônica, epistemológica e terapêutica acerca dos processos de saúde/
doença ao manusearem formas de cuidado e de concepção de mundo. Entretanto, é importante
destacar que os sistemas-mágicos eram complexos, tendo os especialistas difíceis condições de
peregrinação e aceitação, sendo vistos ambiguamente como mentirosos ou curadores, como
demonstrado por historiadores que pesquisam as trajetórias históricas dos feiticeiros (CRUZ,
2018; CORRÊA, 2018).
Portanto, atualmente é viável pensar nos “caminhos de visibilidade da jurema”,
conforme propôs Rodrigues e Campos (2013), com o intuito de compreender ações, discursos
e mobilizações sociais em torno dos vegetais que são acionados e agenciam diferenças no
campo sociopolítico com a intenção de buscar qualidade de vida em diversos aspectos. Hoje,
141
e, não apenas sagrada com tonalidades místicas. É acerca destas questões e revitalizações que
trataremos adiante deste assunto no caso Fulni-ô.
que utilizam a Jurema nas variadas regiões do Nordeste. Tal consenso entre os pesquisadores
propõe atentar as continuidades/ descontinuidades, a economia das trocas simbólicas e o estado
da ciência do índio – rede de saberes entre indígenas de múltiplas etnias (NASCIMENTO,
1994, 2012; REESINK, 2002).
Posteriormente, Nascimento (1994, 2012), sobre os Kiriri da Bahia, reúne esforços para
construir as linhas de continuidade das práticas que opta por classificar o Complexo Ritual da
Jurema (NASCIMENTO, 2012) com o intuito de definir uma categoria analítica que suporte
as diferenças ritualísticas e simbólicas das ramas (metáfora vegetal que exprime as linhas de
continuidade étnica), mas, que também abranja analiticamente as vertentes de matriz afro-
brasileira. Ao compreender estas dimensões ritualísticas e diferentes composições na formação
do complexo da Jurema, Nascimento (2012) conceitua o Complexo Ritual da Jurema, com a
finalidade de abranger o complexo a níveis indígenas e não indígenas, problematizando a rede
de atores, usuários (índios, negros) e formas de uso destas plantas.
como um sinal e status de indianidade que representa uma disputa por identidade, diáspora,
tradição, propriedade intelectual, acesso a serviços, espaços e direitos. Atualmente pelas redes
e apropriações dos sujeitos, o vegetal ganha novas dimensões simbólicas, religiosas e usos em
contextos urbanos e não-urbanos. Torna-se necessário assinalar, assim como Grünewald
(2005a), Salles (2010b), Nascimento (2012) e Mota (2012) que os atores neste cenário
produzem discursos identitários que acionam epistemes, motivações e sentidos.
Atualmente, a jurema ganha uma notoriedade pela reparação de muitos grupos sociais
através do seu uso turístico, o qual ganha notoriedade com o decorrer dos anos. O uso da jurema
no turismo religioso desperta cada vez mais interesses dos pesquisadores sociais com uma
observação acerca das traduções, equivalência e práticas que se formam neste campo. Neste
sentido, a jurema invade matas, cidades, grupos e indivíduos de muitos segmentos. No caso
indígena encontramos um ponto curioso de que o seu uso é a comunhão da vida coletiva
indígena, marcando iniciações secretas que utilizam da jurema para estabelecer níveis
intracomunitários de solidariedade, sendo a jurema exclusiva ao índio, não sendo ofertada ao
não-índio. No entanto, a sua expansão e o seu cotidiano envolvem uma dialética entre o uso
coletivo e individualizado, com amplas intencionalidades e contextos. As plantas são também
um elemento que oferece proteção no campo religioso, com o poder de abrir ou fechar o corpo
(individual e coletivo), ou seja, deixar o corpo protegido ou vulnerável diante das coisas do
mundo. O carácter místico atribuído às plantas as ligam com práticas e processos sociais que
lhes tornam veículos e instrumentos de acesso ao mundo sobrenatural ao qual contêm
informações da natureza e dos antepassados. Um local que foge ao tempo e ao espaço cotidiano,
dito como o reino dos encantos, um local brilhante e luminoso de beleza e proteção. Deste
modo, o contexto de estudo das plantas psicoativas estudadas com finalidades etnobotânicas
procurou desvendar determinados mistérios, os quais traduzidos à linguagem científica
poderiam nos elucidar acerca de entidades e propriedades físico-químicas, que se encontram
em disputas epistemológicas e ontológicas.
No Nordeste indígena as práticas rituais recaem ao entendimento genérico dos
encantados, atribuídos à cosmologia indígena como uma aproximação com o mundo
sobrenatural dos ancestrais, mestres em figuras de índios e caboclos das nações indígenas e dos
“reinos encantados”. Espíritos que habitam locais da natureza como um rio, uma árvore, um
animal e o próprio vento. Com o decorrer dos anos e repercussões dos movimentos da
sociogênese, uma série de reivindicações territoriais foram realizadas, com a utilização de uma
“religião indígena” com o uso da fumaça, do cachimbo, da jurema e de rezas sagradas. Ao ponto
145
que alguns destes objetos estavam destinados apenas ao coletivo, sendo elemento agregador e
excludente de compartilhamento de um mesmo corpo cultural, como no caso da jurema
indígena, conhecida tradicionalmente como “coisa de índio”, havendo como regra que: apenas
quem tem “sangue de índio” é autorizado a beber desta fonte. Revela-se, então, o status do índio
como detentor do uso vegetal e da sua mediação com o sobrenatural. Tais afirmações destacam
a necessidade de se singularizar enquanto indígena, separado das coisas do negro e do branco,
como veremos a frente. Ainda que se note o sincretismo das práticas indígenas com elementos
afro-brasileiros e espírita kardecista, ou, elementos semelhantes ao catimbó (GRÜNEWALD,
2005), para muitos indígenas as “coisas de negro” e “do branco” são vistas como práticas não
convergentes com o toré. Como destaca Carvalho (2011, p. 13), as “guias” e linhagens se
apresentam enquanto elementos pré-existentes do toré que demonstram costumes próprios,
mais precisamente matrizes que religa à vida atual e presente aos antigos caboclos que se
tornaram encantados e protetores das “tribos”.
O surgimento do termo encantados é um componente ibérico de indicação que
representa um aspecto genérico e bastante difundido na cosmologia indígena no Brasil,
especialmente, no Norte e Nordeste brasileiro. O seu conteúdo varia de acordo com o singular
de cada grupo social, estando em sua configuração uma relação com a morte, vida, continuidade
e proteção, assim como noções territoriais dos antepassados e de locais sagrados. No geral, os
encantados são seres da terra, do ar e da água que se encantaram, sendo o encantamento uma
experiência de passagem para outro plano, através do entendimento de pós-morte, que pode
ocorrer com a experiência de morte, como visto nos Atikum-Umã (GRÜNEWALD, 2004), ou,
com a não morte conforme os Kiriri de Mirandela e os Pankararu (REESINK, 2000). Conforme
indica Melatti (2016) (que passa despercebido por muitos antropólogos especialistas no tema),
os Fulni-ô parecem ser os mais distantes desta concepção no Nordeste (retornarei neste ponto
nos próximos capítulos).
É deste modo que a tríade (complexo : planta : símbolo) opera como um centro de
práticas convergentes (CAMARGO, 2014) para demonstrar a difusão e regime de alteridade
pela noção de rede de idiossincrasias e particularidades das criatividades e sistemas
socioculturais (REESINK, 2002). A tríade aborda as construções históricas em conjunto com
as operações epistemológicas em questão com as suas economias simbólicas. Os nossos
atratores são as práticas musicais com plantas sagradas que conferem vínculo e associação
étnica, sendo usadas atualmente como emblemas da identidade e símbolo diacrítico. Para tal,
objetivo no estudo de caso um diálogo dos complexos, visto a reflexão em torno das
146
(6.406), Pankaiuká (150), Pipipã (1.080), Tuxá (264), Truká (5.899), Xukuru (11.227)
(FUNASA, 2010).
O pertencimento indígena constitui uma identificação que reivindica através de práticas
diversas o direito à terra, ao território e um modo de ser singular, que reúne minorias étnicas
em torno de um mesmo movimento: o reconhecimento do “índio”, afirmado pelos próprios
indígenas como os seus costumes, tradições e segredos. As redes de relações indígenas não se
limitam apenas aos estados brasileiros, na realidade, os indígenas de modo geral se reconhecem
enquanto “parentes” para se referirem à proximidade da posição política e do local de
semelhante frente à nação brasileira. Essa rede de comunicação foi vista no Nordeste por um
modelo popular, caboclo e indígena, visto a ação em adaptar-se às mudanças, persistir e insurgir
com sua identidade. Algumas atividades religiosas consideradas como ritos e práticas
tradicionais de grande importância na vida indígena no Nordeste constituem parte da tecelagem
destas redes de comunicação para si, o mundo e o cosmos (BRETON, 2012 [1990]). Tais
práticas integram diferentes grupos e áreas culturais que atuam como uma ‘comunidade de
comunicação’ (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1989) para designar as sociabilidades sociais,
equivalência e saberes compartilhados. Esses fatores se relacionam com os ‘regimes da
tradição’, que seriam as políticas da organização étnica com as suas normas e valores
duradouros (as tradições das políticas).
O termo bastante difundido no Nordeste, Toré, também é visto com uma multiplicidade
semântica. Grünewald (2005), Reesink (2000), Dantas (2002a, 2002b, 2011a, 2011b) e
Nascimento (1998) destacam que a amplitude do termo abrange: flauta, dança, religião,
costumes, mito, conscientização da indianidade, patrimônio étnico e reflexão do modus
operandi. Certamente, como destacado pelos autores, o toré no regime do índio é um manifesto
de sinal diacrítico, que confere autenticidade e atua como ‘processo ordenador’ da vida indígena
no Nordeste. Deste modo, o toré é o mote do Nordeste indígena, sendo fundamental na
constituição do regime dos índios “misturados”, atuante de modo religioso e político, como
marcador na interação dos povos indígenas.
De modo geral, o toré opera como um legitimador externo de ser índio (para o Estado
brasileiro), mas, ganha ao longo do tempo, um corpo multi-semântico após as muitas
reivindicações inter e intra-étnicas. O toré é flauta, dança e o acontecimento que pode ser
representado de diversas formas. Reesink (2000) considera que o toré ganha uma nova
semântica no momento em que deixa de ser praticado dentro do Ouricuri Fulni-ô, unicamente
para os “índios”, sendo, parcialmente, apresentado aos órgãos federais que legitimam e
148
Nota-se, no Nordeste, que a planta jurema assume um papel central na cosmologia e nas
diferentes práticas dos indígenas situados nesta região, uma destas consiste no estabelecimento
de coletividades por operação ritual, surgimento do etnônimo da aldeia e o próprio
levantamento de aldeias indígenas (NASSER, 1975; GRÜNEWALD, 1993; ARRUTI, 1996),
que expressam vínculo territorial, linha de continuidade e transmissão de saberes com causas
políticas identitárias. Esta expressão é utilizada por grupos indígenas no Nordeste que utilizam
de trocas simbólicas e ‘trabalho’ ritual com a jurema para escolher o local em que nasce a
Aldeia, ressurgindo o centro e aglomerado de pessoas. Neste sentido, Carvalho (1983, 1988,
Reesink (1984) e Oliveira (2004) destacam uma rede de transmissão que incluem os Fulni-ô,
Kariri-Xocó, Tuxá, Truká, Atikum-Umã, Xocó, Kiriri, Xucuru, Pankararu, Pankararé,
Kantaruré, Kambiwá, Kapinawá, Tingui-Botó, Tremembé e mais. “Levantar” tem um sentido
lúdico, que expressa a ressurgência étnica e a amplitude de reivindicações dos indígenas, em
resposta às políticas das perdas culturais, das misturas e regimes criados nos domínios coloniais
e pós-coloniais, consequentemente, é uma reivindicação afirmativa inserida no movimento da
etnogênese, a partir da contestação das linhas de descendência, situação histórica, vínculo
territorial e grupo social.
Em 1924 foi a instalação do Posto Indígena Dantas Barreto, no extinto aldeamento de
Ipanema, como vimos anteriormente. Caso este que se torna um emblema para os próximos,
tendo como instrumentalização da identidade o “reconhecimento” por parte do Estado pelos
critérios de: fazer o toré e ter consciência de ser índio. A partir do caso Fulni-ô, mais etnias
souberam da sua possibilidade de assistência do SPI. Ao final da década de 30, os Kambiwá da
Serra Negra reivindicam seu território e, posteriormente, em 1940 ocorre a instalação do posto
indígena Pankararu, em Brejo dos Padres. Também, nesta década os Atikum tomam
conhecimento do reconhecimento através de um morador da Serra do Umã cujo é alertado por
integrantes Tuxá e um índio Kambiwá: “primo, aqui não é reconhecido que é de índio? Então
procure os direitos que o governo tá dando”. (GRÜNEWALD, 1993, p. 24; idem, 2005;
CARVALHO, 2011, p. 8). Paralelamente, em 1944, com a junção de dois grupos (Xocó de
Sergipe e Kariri de Alagoas), os Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio se mobilizam e iniciam
seu processo de reconhecimento, nas décadas de 1970 e 80, bem como os Xucuru-Kariri que
iniciam no ano de 1952 a sua retomada, recebendo maior apoio dos Pankararu, Fulni-ô e Kariri-
Xocó, que “ensinaram a religião dos caboclos, as práticas do toré e do praiá”, foi assim que
os Fulni-ô levaram os caboclinhos: entidades sobrenaturais que fortalecem o toré (MARTINS,
152
1994, p. 33). Neste sentido, os encantos e os encantados se espalharam pelo Nordeste para
rememorar e viver um tempo que estava ameaçado.
Dantas (1997, p. 32), Mota (1987) V. da Mata (1989) destacam um trânsito de práticas
e especialistas rituais, por meio das migrações forçadas de algumas famílias Xocó que
praticavam o toré e foram à Porto Real do Colégio, local visto como uma das principais linhas
de continuidade de práticas cosmológicas e de divindades do Ouricuri. Por outro lado, os Kariri
já têm um longo histórico de práticas e divindades sobrenaturais. Mota (1987, 2002, 2005,
2007) apresenta que o grupo preservara determinados entendimentos acerca de Sonsé e de
Badzé. A segunda divindade Badzé é citada desde os relatos do jesuíta Martin de Nantes (1706),
cujo registrou o mito da origem do tabaco entre os Kariri – referenciado em Lévi-Strauss (2004
[1964], p. 128-9) - que descreveu a equivalência dos deuses indígenas Badzé, Poditan e
Warakidran com a Santa Trindade do Pai, Filho e Espírito Santo. De acordo com os registros,
Warakidran corresponde a companheiro, Badzé é a divindade incorporada à planta do tabaco e,
por último, Poditan é o filho. Atualmente, segundo dados etnográficos, Sonsé permanece como
a figura mítica de maior destaque, sendo ao mesmo tempo: a jurema, o dono e o zelador, atuando
como categoria central de poder aos Kariri-Xocó: os filhos da Jurema. Novaes (2007) destaca
uma ideia de ancestralidade ligada ao rito ouricuri e aos vegetais que corporificam deuses e
eficácias, sendo o termo matekraí (akraí = raiz; ma/ to = ideia de ancestralidade) correspondente
à noção de “raízes antigas/ dos velhos”, na qual as plantas corporificam as divindades e
ancestrais. Na “mata dos caboclos” ou na “mata do encanto” seria possível voltar a essas raízes,
que, teria o nome: “Festa da Varakidra ou Warakidza, uma divindade ancestral dos Kariri-
Xocó” (MOTA, 2007, p. 75) A autora (MOTA, 2007) também destaca o nome bizamu, que
segundo suas interpretações corresponde a feiticeiro em yaathe, o que indicaria o uso
compartilhado de categorias e empréstimos linguísticos entre os Fulni-ô e os Kariri-Xocó.
Entretanto, ao verificarmos na literatura, bidzamú é um termo dos antigos Kariri decodificado
por R. Seabra no Catecismo. Termos registrados pelo Pe. Mamiani traz relações pertinentes,
como: dzú = água, bydzú = rever o licor, bidzora = olhos pasmados, bukeri = agourar o mal.
Por outro lado, o termo para feiticeiro em yaathe é khohfliflitwa ou etxhitoa, conforme veremos
a frente maiores detalhes (RODRIGUES, 1942; Dicionário online Kariri, s.d.).
Segundo as entrevistas de Andrade em 1993 (s.d.) e Silva (2000) com José Heleno, o
filho do cacique Kariri-Xocó, é revelado que os irmãos Fulni-ô, Luiz Cruz e José Álvares da
Cruz, tiveram contato com estes indígenas, e foram os responsáveis pelo aprendizado ou
reaprendizado das práticas da jurema em Águas Belas/ PE. Esta informação não nos permite
153
detalhar, de fato, os responsáveis pelo uso, porém, é um indício da rede de comunicação ritual
do uso de jurema e do ritual do “ouricouri” entre as etnias. Entretanto, Pinto (1956) já destacava
o uso da jurema Fulni-ô servido pelo clã do Waledaktoa (porco) dentro do “rito ouricouri".
Como destacado por V. da Mata (1989), no caso dos Kariri-Xocó, o toré também
representa um regime, visto a instalação do modelo de transmissão de saberes, definição de
postos de autoridade (cacique, pajé) e uma conscientização coletiva em operar como elemento
de distintividade, a partir da condição de ser índio. O que resulta na aquisição e manipulação
da “ciência do índio” que confere identidade, como diz o cacique Kariri: um “costume de antiga
data” que confere legitimidade ao índio civilizado (CARVALHO, 1983). Os Kariri-Xocó são
apontados na literatura como uma etnia de grande mobilidade. Segundo Mata (1989), os Kariri-
Xocó se referem à categoria de “coador” e “cabeça seca” para se distinguir dos não índios que
não possuem o “entendimento”, que se refere em reconhecer o índio, ou, saber as trajetórias de
descendência histórica da identidade étnica. Consequentemente, este discernimento opera como
função coercitiva e normativa étnico-religiosa em formar a unidade coletiva.
As relações intergrupais e os padrões de mobilidade também são destacados por Arruti
(2004) no Complexo Pankararu, através dos “pontas de rama”, que, por “enxame e migração”
resolveram “plantar a semente” e “levantar a aldeia”. Plantar a semente tem o sentido de
comunicar-se com os “encantados” para achar a singularidade daquele povo. Arruti (1996,
2004) descreve que o movimento migratório dos Pankararu atua como um ‘enxame de abelhas’
que transmite a sua semente no levantamento das aldeias, em outras palavras estas metáforas
lidam com o entendimento vegetal da ressurgência dos “ponta de rama”, que reivindicam por
“rituais indígenas” a descendência dos seus “troncos”, identidade étnica e reconhecimento
legítimo ao território. Arruti (ibid.) destaca que as migrações ocorreram por meio das viagens
de líderes às grandes metrópoles para oficialização das reivindicações e reclamações. Bem
como pela articulação e rede de informação interétnica, que ocorre em torno do ritual do toré,
acionado para o surgimento da aldeia, correlacionado com a criatividade intra-étnica em
descobrir a sua singularidade em pisar o toré e manter seus segredos, sendo esta uma parte da
ciência do índio: saber plantar e nutrir a sua semente. A árvore Pankararu auxiliou muitas etnias
migrantes, as quais assumem linhagens de descendência, a exemplo dos (Pankaru, Kapinawá,
Kambiwá, Tuxá), ou, simplesmente de apoio ritual como o caso (Pankararé, Geripancó,
Kantaruré).
O caso Kiriri destacado por Reesink (1984, 2000) e Nascimento (1994) destaca uma
linha de continuidade acerca das práticas sagradas e da cosmologia indígena. Reesink (2000,
154
2002) publicou dois artigos pertinentes em torno de práticas indígenas e de uma observação
geral acerca do caso do Nordeste. Conforme explicitado por Reesink o campo religioso opera
modos de revitalização da identidade, sendo os ritos indígenas elementos de transformação e
combinatórias culturais que buscam a reprodução social. O caso Kiriri explicitado pelo autor -
bem como sua generalização do toré - aborda em diferentes fases históricas como os indígenas
preservaram um modelo de cosmologia. Para resguardar as particularidades os indígenas não
incorporaram nem diabos e nem santos para traduzir a plenitude da sua cosmologia. Através de
levantamentos históricos foi possível correlacionar o entendimento ecológico e etno-
astronômico ligado as Plêiades, que, posteriormente foram associados aos especialistas
religiosos, vistos como semelhantes ao diabo, citados como: Ngigos em Serafim Leite e Nhewó
em Mamiani (1942). Reesink inclusive destaca registros históricos de que os Kiriri faziam uso
de bebidas fermentadas no século XVIII, do mesmo modo, que, destacado por Hohenthal
(1954) e Pinto (1956), sobre os Fulni-ô que fazem uso de uma bebida fermentada e alcóolica
dos frutos da palmeira do Ouricuri, como vimos anteriormente. A equivalência para chegar ao
plano dos encantados, trata-se, sobretudo, de uma rejeição das concepções que não se
assemelham às raízes ameríndias. O termo encantados com raiz ibérica se reveste de um
genérico que supera conceitos restritos, mas resguarda a especificidade de cada identidade, a
qual guarda a memória dos antigos índios autóctones, aqueles bravios autônomos e
autossuficientes, que estão em locais sagrados: as moradas encantadas (serras, rios e locais
encantados). Este termo se reveste com enorme abrangência, visto a sua aplicação empírica no
Norte e Nordeste do Brasil. Todavia, o divisor etnológico que se instaurou na disciplina da
etnologia, nos traz ressalvas para traçar comparações mais gerais. Portanto, influenciado por
Reesink (2000, 2002), destacarei a fase de trans-substancialização mítica em que o ritual opera
como revitalizador das condições de reprodução social, também apontado em: (CARVALHO,
1983; MOTA, 1987, 2007; BATISTA, 1992; GRÜNEWALD, 2005).
Nasser (1975, p. 126-7) destaca que os Tuxá em busca do seu reconhecimento viram
uma criança em cima de uma pedra, na tentativa de encontrá-la acabaram por receber durante
um “trabalho” um encantado, que vos disse: “eu sou o mestre Velho Ká-neném, dono da aldeia
da tribo Tuxá, as correntes do velho Ká”. Segundo consta na dissertação (ibid), este encantado
toma as diversas formas: “animal e humana e aparece com recorrência sob o efeito tóxico da
jurema”. O “Velho Ká” também é presente nos casos: Atikum-Umã e Truká, os quais se tornam
emblemáticos, pois, imputam à “ciência” a descoberta do etnônimo da Aldeia, uma vez que por
meio do particular e do toré, o grupo recebeu os encantados que lhes relembraram o etnônimo.
155
No primeiro caso, o nome foi definido em torno da Serra do Umã tomando como referência
cosmológica o “Velho Ká” como o patrono da aldeia. Por outro lado, os Truká sob referência
da divindade Ká incorpora uma ressignificação identitária, partindo de Procá aos Truká, na qual
traz uma relação histórica com os caboclos antigos. Batista (2005, p. 89) afirma que o “Velho
Ká” “[...] é identificado enquanto o índio que primeiro descobriu o poder da árvore/ raiz da
jurema, e tudo que dela se pode obter. Desta maneira, o Velho U-Ká é considerado o protetor
do índio e do seu vinho”.
Na famosa obra – Toré - organizada por R. Grünewald (2005b, p. 26), é apresentado -
em concordância com as teorias da performance (TURNER, 1986, 1987) - que o toré é um
fenômeno de linguagem semântica que comunica algo, consequentemente, ele traduz de
maneira proto estética a autoctonia nordestina através da codificação ontológica e economia
simbólica em regimes específicos. Logo, existem diferentes “representações do índio” e tipos
de torés que ocorrem para lógicas internas e externas, os quais remetem a conteúdos diversos,
alguns são secretos, fechados, enquanto outros são abertos e de “brincadeira” para branco ver.
Estas dimensões normativas e coercitivas estão nas religiões indígenas: do toré, do particular,
do trabalho e da brincadeira que corresponde ao acionamento dos níveis de solidariedade de
mestres, famílias e comunidades étnicas. Assim como dos sincretismos e formas de conceber a
comunicação extra-mundana com os encantados e as divindades indígenas no Nordeste.
Em síntese, os rituais do Ouricuri, Toré e Praiá representam dois complexos religiosos
das etnias indígenas no Nordeste. O complexo do Ouricuri abrange principalmente as etnias
Fulni-ô, Kariri-Xocó e Fulkaxó, estando plenamente conectada com as suas políticas de
organização. Anteriormente, detalhamos como o Ouricuri Fulni-ô é o centro do mundo e do
cosmos para a etnia. Este mesmo aspecto foi destacado entre os Kariri-Xocó (MATA, 1989;
MOTA, 2007). A diferença é que ambos têm seu estilo de produzir o ritual. Enquanto os Fulni-
ô realizam um Ouricuri de 3 meses, os Kariri-Xocó fazem o rito no período de 15 dias, no
entanto, não é possível descrever estes ritos como desassociados, uma vez que ambos são os
únicos que detêm a permissão para partilhar seus rituais entre si, fortalecendo uma rede de
comunicação étnica de reciprocidade. Segundo V. da Mata (1989), esses ritos estão associados
às organizações hierárquicas, onde cada clã ou grupo tem um período de apresentação,
apresentando no ritual os altares e divindades. No caso dos Kariri-Xocó o rito se divide por
apresentações dos dois grupos étnicos que se uniram, já no caso Fulni-ô os registros etnológicos
induzem a algum tipo de divisão clânica, mas a organização é desconhecida (DÍAZ, 1983;
MOTA, 1987; DA MATA, 1989). Ao comparar Pinto (1956) e Boudin (1949), sob o tema das
156
reverências rituais aos altares e patronos dos clãs Fulni-ô, ainda que algumas dinâmicas se
repitam, não foi possível destacar uma uniformidade e simetria entre o movimento dos clãs e
das entidades, nem mesmo do local de morada de cada ser. Todavia, alguns patronos (que não
são revisitados na literatura etnológica) merecem destaque pois surgem como emblemas
cosmológicos, como: Natkwêa (Tamanduá), Sewlihokhlá (O Criador), Etfon-twá (o que mora
nos matos) e demais conforme nos anexos (BOUDIN, 1949; PINTO, 1956). Tais seres
alimentam a tese das linhas de continuidade e transformação de algum traço do perspectivismo
ameríndio no Nordeste, tendo o búzio, as árvores e as roupas partes centrais na comunicação
simbólica. Mata (1989, p. 206) destaca que o “toré de búzio” utiliza da flauta indígena como
instrumento evocatório e modelo para a representação do índio, que, por sua ligação com
possíveis práticas ouricurinianas se torna a “parte revelada do segredo” inviolável. Pois,
segundo os Kariri-Xocó, quando se dança o toré o Ouricuri é lembrado. O termo Ouricuri
também sofre uma modulação para Auricuri, ritual praticado por mais etnias, à exemplo dos
Pipipã, porém, mantêm uma rede de comunicação mais afastada com o Ouricuri Fulni-ô e
Kariri-Xocó (GONÇALVES et al., 2018).
Por outro viés, tais práticas rituais abrangem esferas ecológicas, sagradas, religiosas e
míticas da vida indígena, sendo estes complexos rituais realizados por curta ou longa duração,
relacionados com os recursos naturais e formas classificatórias para a organização social. O
Complexo dos Praiás atribui a sua difusão aos Pankararu que auxiliou as etnias Pankaru,
Geripankó, Katokinn, Kambiwá. Nestes casos, o Praiá atua como elemento diacrítico, mas tem
um sentido duplo, já que é o dançarino, a roupa ou uma modulação da prática. Entre os
Pankararu o ciclo festivo está associado ecologicamente com a colheita e periodicidade do
Umbu (REESINK, 2000).
Herbetta (2013) pontua nos cânticos Kalankó um saber em torno dos encantados e do
ambiente através do complexo dos pássaros (descrito inicialmente por Lévi-Strauss), tal relação
seria fonte de energia vital dos demais corpos – vegetais e humanos, buscando nos fluxos
sonoros e nas linguagens metafóricas conferir legitimidade ao seu habitar e pertencer. Neste
sentido, como pontua Herbetta (2013, p. 185): “o som é o próprio encanto”, pois, de acordo
com os estudos de Miguel Wisnik (1989), criar os sons são ações produtoras de sentido e
significado, as quais são regidas e regem a sociedade atuando como uma forma terapêutica de
reorganização.
Nota-se no projeto de revitalização cultural indígena um compartilhamento de saberes
em torno das músicas e dos instrumentos rituais sonoros que, muitas vezes, adquirem carácter
157
6 Aspectos teóricos-metodológicos
59
Torna-se necessário destacar que não atenderei à totalidade de uma antropologia da pessoa, e dos seus subtemas:
incorporação, corporalidade, corporeidade e etc. As ‘passagens’ intelectuais são extensas e remetem a diversas
questões que fogem aos objetivos da tese.
60
A temática da fenomenologia se insere no campo das constituições pela problemática de como se constitui a
realidade, neste sentido, Husserl (1990 [1907]) destaca em sua obra o conceito de intencionalidade, sendo este
160
central nas concepções fenomenológicas. Por conseguinte, Merleau-Ponty (2018 [1945]) desenvolve noções
detalhadas da fenomenologia acerca do corpo, da memória, das sensações, da percepção e do ser no mundo através
das reflexões dos modus vivendi.
161
na antropologia, pois apontou o uso mimético do corpo como uma forma de aprendizado e
constituição que reflete a sociedade em questão. O fato social durkheimiano salienta o corpo
inscrito, considerando as representações do sujeito como constitutivas da sociedade. Se de
um lado o autor abriu caminhos para o estudo das emoções, do comportamento, da
subjetividade e das representações transmitidas, por outro, a teoria orgânica não abrangia a
complexidade das problematizações entre natureza / cultura e não abria espaço para o devir
individual e social, sendo - na concepção dukheimniana - a constituição do self um espelho da
sociedade permeada por vínculos de solidariedade e coesão.
Sob este aspecto, Radcliffe-Brown (1973) situa a produção do conhecimento como
localizada, a fim de perceber no processo social a estática/ dinâmica e a estrutura/ função,
através das características pautadas nas ações e interações dos seres humanos, agindo
individualmente ou coletivamente. O autor (1973, p. 13) diz: “A minha opinião é que a
realidade concreta que o antropólogo social estuda, através da observação, da descrição, da
comparação e da classificação dos fenómenos, não é uma entidade mas sim um processo, o
processo da vida social”. De modo geral, a abordagem dicotômica entre indivíduo e sociedade
ainda pautava as premissas metodológicas aparecendo sob diferentes ângulos na Antropologia
Social e através do estudo dos papéis sociais, ver (TURNER, 2013; EVANS-PRITCHARD,
2005 [1976]; RADCLIFFE-BROWN, 1973).
Posteriormente, Mauss (2003 [1950]) definiu a noção de pessoa como categoria e
elaborou a noção de interdependência entre o biológico, psicológico e o social, retirando a ideia
de um ‘estado natural’ e direcionando-se para uma abordagem escalonada referente ao:
biopsicosocial. Seus estudos traçaram apontamentos iniciais sobre a concepção e construção da
pessoa, a qual se refere ao homem investido de um estado em uma unidade biológica, psíquica
e social, segundo o autor: “a pessoa é uma substância racional indivisível, individual”
(MAUSS, 2003, p. 367-397). Logo, as práticas corporais eram incorporadas através da natureza
social do habitus, que derivado do léxico [héxis] exprime o adquirido. De acordo com a teoria
da incorporação, conclui-se que o corpo é a ferramenta e substância original que molda o mundo
e é moldada pelo mundo. Em outras palavras, Mauss elaborou a noção de indivíduo para o
aspecto psicológico e da consciência pelos graus de interdependência e vínculos sociais. Se a
tradição de Mauss centralizou o discurso - continuada por Dumont (2008) e Geertz (2012) -,
por outro lado, tentou elaborar uma etnofilosofia ou etnopsicologia, afim de destacar as
categorias nativas para a definição da pessoa. Portanto, a ‘antropologia’ estava iniciando as
problemáticas da representação e dos pressupostos metodológicos para destacar as formas de
162
interação social e formação comunitária. Logo, a categoria de pessoa foi e é um rótulo útil para
destacar as classificações nativas que se referem a relação de indivíduo : sociedade para se
distanciar dos pré-conceitos ocidentais da noção de indivíduo, uma vez que a preocupação
antropológica se voltou para os termos nativos.
Os estudos da noção de pessoa e as ideias do corpo são diversos, como Seeger, Da Matta
e Viveiros de Castro (1979) descrevem, a Melanésia, o sudoeste asiático, a África e a América
do Sul tiveram problematizações distintas através das teorias de reciprocidade, incorporação,
bruxaria, magia, descendência, filiação e ontologia. Por ora, como apontam os autores, pode-se
ressaltar que estes estudos circundam a “definição e construção da pessoa pela sociedade”
(SEEGER; DA MATTA; CASTRO, 1979, p. 3-4). Desta maneira, as ideias sul-americanas
acerca da pessoa não são totalmente deslocadas e equivalentes às concepções africanistas, logo
problematiza-se a noção de pessoa ameríndia diante de quais as formas processuais de
constituição. Portanto, agora, a corporalidade não era vista meramente como experiência de
suporte de papéis e identidades, em contrapartida, era uma matriz de significação e objeto de
pensamento. Portanto, o processo de constituição da pessoa não se restringia apenas ao seu
aspecto físico, havendo uma pluralidade de níveis e especificidades.
As teorias mágicas deram espaço para as práticas singulares de: formação do self,
técnicas, organização, percursos e itinerários terapêuticos (LOYOLA, 1984).
Concomitantemente, a noção de estrutura instaurada em uma abordagem funcional do social,
foi transformada na visão estruturalista que caracteriza a estrutura psicológica como uma
capacidade biológica simbólica do ser humano. Logo, o homem fazia passagem de uma
natureza que se tornava cultura, ou seja, um ser natural em formação cultural - ver Lévi-Strauss
(1976), Geertz (2012), Csordas (1990, 2008) e Ingold (1996).
A noção de pessoa abrange um fenômeno de relações e de experiências que se refere ao
processo perceptivo e relacional entre indivíduos e sociedades, desta maneira, procura-se
detalhar o sagrado como modalidade da experiência e problematizar o seu sentido no trabalho
etnográfico, trazendo também a ideia do conhecimento culturalmente compartilhado do corpo
como uma técnica que opera em comunidade a partir de disposições compartilhadas
potencializadas pelos rituais, as quais envolvem aspectos psicossomáticos que interagem em
nível cognitivo, emocional, interativo e reflexivo nas práticas sociais. A aplicabilidade deste
modelo é um instrumento para: 1) problematizar o trabalho etnográfico partindo das noções
nativas do sentido do “sagrado”, 2) compreender adaptações cosmológicas e sociais que
envolvem práticas localizadas em territórios tradicionais, 3) analisar significados
163
6.2 Metodologia
Pesquisador: [...] estudo práticas com plantas, músicas, essas coisas,
Qual é o seu nome mesmo?
F- Maktxo/ Ediraldo
P- e quer dizer o quê?
F- Desconfiado.
[durante entrevista com professores indígenas, Aldeia Sede Fulni-ô, julho de 2018]
minorias é uma variável significativa e de grande valor para a abertura no campo. Como um
“de fora” fui visto como: “fotógrafo, cineasta, antropólogo, intruso, professor, historiador,
hippie, estudante, turista, frei, amigo, curioso, filho branco” e mais. São muitas as imagens
trocadas e atribuídas ao antropólogo pesquisador, não pretendi vestir as roupas das caricaturas
mencionadas, porém elas surgiram por algum motivo. Por ora, quero enfatizar que é fora destes
estereótipos que se encontra a chance de novas “imagens”. É no convívio entre pesquisador e
pesquisados que estas imagens se reforçam ou ganham novas roupagens nas suas interações.
Em outras palavras, estar na posição de um antropólogo com pesquisa aceita pelo grupo étnico
foi um trabalho de anos de convívio com muitas conversas e diálogos acerca das barreiras e
possibilidades de tradução.
Em linhas gerais, ao analisar a minha trajetória acadêmica me considero um pesquisador
“entre espaços” - aqui faço uma analogia a (AUGÉ, 2000 [1992], 2007) no campo de drogas/
culturas, pois enquanto antropólogo e nativo desenvolvi uma dissertação com um grupo urbano
de ayahuasca: a Sociedade Panteísta Ayahuasca (SPA) (BITTENCOURT, 2015), que renderam
boas discussões sobre religião e enteógenos. No entanto, no campo da jurema ainda não estava
claro a sociabilidade e o particular dos contextos étnicos no Nordeste. O segundo eixo da
sociabilidade das expressões sonoras, da organologia das fontes sonoras e sentidos dos
aerofones se correlacionam com meus estudos pessoais sobre a confecção do didgeridoo
(instrumento aborígene australiano) e demais execuções em instrumentos de sopros e cordas.
Certamente, estas bagagens influenciaram a minha atenção para as plantas sagradas e a
expressão musical Fulni-ô no Nordeste.
Para tal, o trabalho de campo por meio da observação participante é o fio condutor do
direcionamento metodológico. A importância da participação e coleta de dados em primeira
mão é destacada em ambas as disciplinas, a aproximação e experiência direta com os sujeitos
da pesquisa permite a construção aproximada dos sentidos e uma elaboração detalhada acerca
do empírico. Logo, este rumo transversal se consolidou por ações específicas, uma vez que a
disciplina da etnobotânica auxiliou com o reconhecimento de plantas e a sua catalogação,
enquanto a etnomusicologia serviu de apoio para a sistematização e teorização das
performances (ALBUQUERQUE, 2015; MERRIAM, 1964; SEEGER, 2015; GEERTZ, 2004
[1968]). Como as concepções da noção de tradição são tratadas distintamente em cada
disciplina, segui os direcionamentos propostos por Manuela Carneiro da Cunha (2017, p. 302):
“reconhecer e valorizar as contribuições dos saberes tradicionais para o conhecimento
científico; fazer participar as populações que as originaram nos seus benefícios; […] preservar
a vitalidade da produção do conhecimento tradicional”.
O recorte metodológico se concentrou na classificação das arenas “sagradas”, artísticas
e os modos de comunicação presente na performance Fulni-ô, logo, em minha visão, o saber
tradicional entrelaça a produção de identidade através da territorialidade, plantas, rezas, sons e
sentidos. Os espaços religiosos se revelaram com distintas normas culturais: o Ouricuri, a Igreja
da Aldeia Sede, as festividades comunitárias e as “reservas” turísticas que atendiam aos turistas
tinham códigos bem definidos e compartilhados na comunidade. Logo, procurei atender três
questões: qual a circulação cosmológica e performática Fulni-ô? Quais os sentidos e
continuidades cosmológicas acessíveis no caso Fulni-ô?
Como alternativa ao campo do “secreto” e do “sagrado” Fulni-ô foi visto como objeto
de análise um conjunto de práticas religiosas acessíveis. Por isso, foco nas práticas
complementares que se constituem pelo contato, articulação e contexto da interculturalidade,
como as práticas de valor comunitário, sejam estas religiosas, terapêuticas, festivas, familiares,
de etnoturismo. Concomitantemente, específico o “índio artesão” àquele que coloca uma
roupagem - no sentido bourdiano (2013) - por disposições compartilhados pelo habitus, a qual
se provê das atividades étnico-religiosas-artísticas e as utiliza como opção de renda secundária
no orçamento familiar indígena. Para tal, acompanhei a circulação e itinerários de alguns grupos
e famílias indígenas em suas atividades nos estados de Pernambuco, Paraíba, Piauí e Bahia. No
entanto, não considero que o modelo etnográfico seja multi-situado, uma vez que o locus
privilegiado de troca etnográfica central foi no território da Aldeia Fulni-ô. Também, realizei
escolhas de alguns locais, uma vez que eventos em Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo se
169
tornaram financeiramente caros e dispendiosos demais. O outro motivo foi a saturação dos
dados e a observação de um padrão. Se do lado de fora essas dinâmicas eram mais momentâneas
e uniformes, no aspecto local essas dinâmicas performáticas se correlacionaram
economicamente com o tempo das práticas do “rito do Ouricuri” e do mundo dos brancos em
uma dialética de aproximação e afastamento (como já destacado, DANTAS 2002b, 2007). Esta
configuração social estaria presente em todos os “trabalhos” produzidos na "representação do
índio" ou na “coisa de índio para branco ver”.
De modo geral, este trabalho se insere no contexto da teoria de fricção interétnica
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976) para atender aos estudos da etnicidade, segundo os
processos de articulação e mobilidade (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1976a, 1976b) dos
indígenas para as cidades e dos turistas para as aldeias. Com a intenção de alcançar os percursos
performáticos e itinerários terapêuticos de âmbito ritualístico, será utilizado como referencial
cosmológico de Langdon (1996) e Reesink (2016). A intenção é compreender a agência dos
indivíduos, das plantas e os contextos sociais que permeiam as políticas da tradição e a sua
economia simbólica. Em última instância, a abordagem teórico-metodológica procura captar
fragmentos da comunicação de uma identidade em processo pela abertura das potencialidades
humanas. Através destas questões fundamentais questionamos - sob influência de Viveiros de
Castro (1996) - acerca das possibilidades de verificar alguma perspectiva ameríndia nordestina
Fulni-ô pelas práticas contínuas de longa duração que abrangem as plantas consideradas
sagradas e de prestigio na comunidade. Para tal, seguimos três amplos percursos: 1.
Compreender as adaptações das dinâmicas territoriais e cosmológicas em torno do ouricouri,
jurema e juazeiro; 2. relações entre indivíduo, sociedade, território e plantas; 3. criatividade e
expressões tradicionais musicais derivadas de plantas sagradas Fulni-ô. Estas preocupações me
colocaram em consonância com pesquisadores que trabalharam com o “sagrado” indígena no
Nordeste, através das práticas com plantas e as suas performances.
Para a compreensão das formas dos “trabalhos” e apresentações artísticas foram
necessárias a participação observante e a conversa com os atores deste cenário, sendo estes
classificados a grosso modo de indígenas e turistas. Os turistas são um grupo genérico que iam
à aldeia para as vivências ou para conhecer o local, sendo vistos como os “de fora”. Eles podiam
ser genericamente indígenas de outras etnias, brancos, pessoas de terreiro e new agers que têm
a semelhança do não pertencimento à etnia Fulni-ô. Desse modo, foram realizadas entrevistas
semi-estruturadas e conversas informais em grupo com turistas e indígenas durante estas
atividades, assim como fora delas. O público-alvo para as entrevistas semi-estruturadas foram
170
61
Talvez, os termos etnoturismo, turismo indígena e turismo em terras indígenas esteja dúbio pela sua não
definição, porém, nos próximos capítulos retornaremos a essa questão e terei a possibilidade de esclarecer como
estas categorias são aplicadas.
171
processual do caso. Notei estudos que realizam uma catalogação imensa de plantas, mas não
expõem nenhum termo nativo, o que se subentende a consolidação de assimetrias na produção
do conhecimento. Já em outros casos, os antropólogos descrevem suas ações, mas não
correlacionam as plantas nativas com os conhecimentos científicos botânicos em questão,
deixando-nos uma brecha nas pesquisas (ALBUQUERQUE, 2002). Portanto, de modo
propositivo, penso que seja dever do antropólogo(a) que estude vegetais no campo religioso ou
ecológico, a correlação com metodologias e ações da etnobotânica, minimamente, como:
reconhecimento, registro fotográfico, desenhos, produção de exsicatas e catalogação de plantas
encontradas em campo. Deste modo, é possível um paralelismo e correlação dos saberes/
conhecimentos. Em vista disso, este trabalho se torna propositivo para os pesquisadores no
cenário antropológico realizarem tais ações metodológicas.
performáticas e comunicativas em um cenário sócio-histórico mais amplo. Pois, ainda que com
ressalvas, todos gostam de conversar brevemente sobre as transformações cosmológicas das
religiosidades e do cenário musical da aldeia, a citar as cantigas de trabalho, a batida de feijão,
a banda de pife, o tolê, as cafurnas, serestas e demais gêneros musicais, os quais traziam uma
abordagem contextual do mundo vivido e percebido Fulni-ô.
Durante os anos de 2016 a 2021 fui à aldeia para diferentes atividades, participando da
circulação e articulação religiosa, no ano de 2018, mantive a observação a partir do cotidiano
da aldeia, com a intenção de conversar e entrevistar indígenas acerca do contexto local das
performances e da teatralização - nos termos de Canclini (2000). Estive presente nos eventos
da aldeia, como: aberturas do rito do ouricuri, a Restauração de Yassakhlane, “Festa da Santa”,
formação de professores indígenas nas escolas das Aldeias, Fest-Cine Fulni-ô, a 8º Conferência
de Saúde Regional Indígena, falecimento do cacique João de Pontes e abertura de “terreiros”
em casas de unidades familiares. Também, participei das mais diversas cenas do cotidiano local,
desde: aniversários de crianças, batismos, pedidos de casamento, cerimônias fúnebres, e muitas
mesas de refeições.
Durante toda a pesquisa foi preciso respeitar o tempo do “sagrado Fulni-ô”, uma vez
que as “obrigações” indígenas têm como consequência o distanciamento com os brancos e a
impossibilidade de determinados temas. Inclusive, a partir das 18:00h é proibida a entrada e
circulação dos “de fora” na T.I., o que deixou um clima de tensão durante as minhas estadias,
visto que acampei durante 3 meses embaixo de um juazeiro no quintal de algumas famílias. Em
decorrência desta regra interna, senti a necessidade de conversar com o pajé Gildiere Pereira
Ribeiro a respeito da minha estadia na aldeia, a qual foi bem recebida desde que eu sempre
avisasse quando retornasse e não ficasse "à toa na aldeia durante a noite". A dinâmica da
recepção e dos grupos políticos Fulni-ô me obrigou a buscar hospedagem em lugares dentro e
fora da aldeia Fulni-ô, em pousadas e hotéis na cidade de Águas Belas, visto que os indígenas
tinham um sentimento ambíguo ao "branco". Na realidade, por mais que qualquer família ou
colaborador te hospede dentro da aldeia, em algum momento a curto prazo ocorrerá uma
pressão comunitária impondo as normas Fulni-ô tradicionais. Deste modo, realizar uma
etnografia clássica de longa permanência não se torna possível e viável, uma vez que os
indígenas solicitam no seu cotidiano espaço e “reclusão sagrada” para as suas “obrigações”. Tal
dinâmica me obrigou a ir e vir da aldeia muitas vezes como forma de restaurar os princípios de
convivência, já que a saturação da estádia a tornava altamente negativa para as aberturas nas
conversas. Logo, realizei trabalho em campo durante os meses de março a setembro de 2018,
173
com estadia de 15 dias em cada mês. Também passei finais de semana e poucos dias nos meses
de fevereiro e abril de 2017 e nos meses de fevereiro, março e abril de 2019. Mesmo com a
pandemia (do Sars-covid 19), em janeiro de 2021, permaneci uma semana na aldeia com uma
pequena equipe audiovisual para realizar o registro audiovisual do Mestre Matinho Fulni-ô, por
projeto aprovado na Lei Aldir Blanc de Registro e Salvaguarda de Mestre da Cultura Popular
Tradicional.
É preciso destacar que há um conjunto de temas proibidos aos Fulni-ô. Qualquer
pergunta que envolva os clãs, a jurema ou o tolê do Keyxatka-lhá estará sujeita ao encerramento
da entrevista, ameaçando a profundidade do estudo. Lembro, quando, de modo ingênuo,
perguntei acerca dos clãs para uma senhora índia, tive como resposta uma chamada de atenção
por parte de vários indígenas com um convite de retorno para casa. Apenas depois fui entender
a dimensão dessa pergunta e o quanto poderia ser negativo para algumas famílias revelar suas
linhagens de parentesco, uma vez que os casamentos entre “índios e não-índios” é visto na
aldeia com maus olhos. Em outras palavras, a exposição histórica da “mistura” não é tão
simples. Por isso, a posição de fazer perguntas, produzir fotos e vídeos é algo difícil de lidar,
pois os pesquisados se sentem expostos e impõem com sensibilidade limites no campo do saber.
Por outro aspecto, após alguma convivência alguns indígenas me convocavam para fotografar
no cotidiano eventos da igreja, batismos, produzir videoclipes e mais criações em torno das
festividades e interesses. Obviamente, essa relação foi se formando na medida em que me tornei
conhecido por algumas famílias indígenas. Posso ressaltar que foi através da câmera que recebi
vários convites e várias chamadas de atenção, incluindo pedidos para deletar fotos e filmagens,
ou, para enviá-las o mais rápido possível. Em suma, a câmera fotográfica e o gravador foram
dispositivos interessantes para reconhecer e dialogar acerca dos limites do “sagrado”. Se de um
lado, a câmera foi um elemento de busca pelos limites do sagrado ao verificar até onde era
permitida a produção de imagens, por outro, a restituição das fotografias e vídeos foram
elementos de entusiasmo e aproximação dos vínculos, pois, devolvi cerca de 300 fotografias a
muitos núcleos familiares, sendo inclusive esta ação o motivo de me convidarem para as
festividades da Igreja, batismos e a entrada do Ouricuri.
Nesse sentido, é consenso que uma das maiores dificuldades no campo Fulni-ô é a
disputa intraétnica por oportunidades socioeconômicas, uma vez que os discursos e ações dos
atores sociais também são centrados em suas posições: etnia, família, classe, gênero
(BOURDIEU, 1986). Este aspecto teve maior proporção com a morte do antigo cacique e o
“racha da aldeia” (como detalhado adiante). Entrar na casa de alguns poderia ser um fator para
174
não conversar com outros, do mesmo modo que poderia gerar maus entendidos. Por isso, atingir
a simetria e objetivos na realização da pesquisa se torna uma idealização a ser vivenciada em
conjunto. Como detalhamos acima, é no processo de aprendizagem etnográfica que estudamos
com as pessoas e reconhecemos qual a possibilidade das ações etnográficas.
Como forma de viabilizar a pesquisa e esclarecer a minha presença na aldeia, a qual
obviamente era notada por muitos (inclusive me paravam e perguntavam o que eu fazia na
aldeia), conversei com colaboradores e interlocutores para refletirmos a consolidação dos
objetivos em comum acerca dos objetivos da pesquisa. Aos poucos a comunidade esteve
informada de que um “branco, barbudo e magro” andava de um canto ao outro perguntando por
plantas, toré, flautas e cafurnas. Como era difícil os interlocutores indígenas me acompanharem
por causa dos conflitos familiares, alguns me davam indicações de pessoas e locais, em
consequência, geralmente, eu conhecia as pessoas sozinho, batia nas portas das suas casas ou
as encontrava na rua. Em muitos momentos para a realização das entrevistas foi necessário
marcar horários, andar sem destino ou esperar para encontrar as pessoas na rua da igreja e as
acompanhar em suas feiras, exercícios e refeições.
O momento das conversas e entrevistas não era fácil, muitas vezes o gravador ganha um
olhar negativo e de reprovação, a ideia de gravar a voz em um relato poderia ser um tanto
incômoda e perigosa, visto a repercussão das palavras na própria comunidade e fora dela.
Consequentemente, foram muitos os pedidos para desligar o aparelho, ou, realizar as entrevistas
sem o uso do gravador. Bastava dizer a minha profissão: “antropólogo”, que a negativa surgia
com um: “ai Meu Deus, tem um antropólogo aqui” (família da Aldeia Xixia-khlá [02/2019];
entrevista na casa de Francisco, professor indígena, [07/2018]). O que exigiu um certo exercício
para acompanhar as histórias escrevendo no momento de sua narração ou lembrá-las depois.
Em outros casos, o gravador ganha um destaque, pois na exibição das cafurnas sempre me
pediam para captar o som, alguns indígenas ainda pegavam o gravador para entrar na “roda” e
registrar o som de um local onde branco nenhum poderia estar. Certamente, desvendar as
possibilidades imagéticas e sonoras do “sagrado” não foi tarefa fácil, mas, tornou-se possível
por um entendimento mútuo acerca da valorização das tradições Fulni-ô.
Entretanto, posso destacar que a maior dificuldade (além do silêncio) foi com o termo
de consentimento e autorização da pesquisa, uma vez que geralmente os pesquisadores coletam
as assinaturas no momento da entrevista, antes de publicar o trabalho final. No meu caso, alguns
indígenas destacaram que apenas assinariam a autorização da divulgação do trabalho após a
restituição da versão final. Assim, alguns especialistas da tradição se comprometeram a
175
esclarecer possíveis dúvidas, revisar a tese e conferir informações necessárias antes de sua
publicação. O maior fator de dificuldade para esta ação foi a pandemia de COVID-19, pois com
o isolamento social e impossibilidade de sair da cidade para a aldeia durante o ano de 2020,
estive impedido de realizar a repartição e restituição com conversas presenciais. Portanto, a
solução foram os telefonemas e conversas por aplicativos que se apresentaram como formas
possíveis de comunicação nos tempos de isolamento social. Ainda que em muitos momentos
as opiniões sejam distintas, principalmente acerca do uso das referências necessárias, houve um
consenso em torno das adaptações cosmológicas e da importância linguística havendo uma
valorização do estudo pela sua capacidade de demonstrar temporalmente o aspecto dinâmico
do “rito ouricouri” e os padrões do regime da indianidade Fulni-ô a partir da manutenção
linguística do yaathe.
busca de bem-estar. A autora destacou cerca de 118 espécies citadas, sendo destas 89
endêmicas, tendo grande valor na composição ecológica e tradicional. Do mesmo modo, estas
plantas ocupam diferentes finalidades como: medicinal, terapêutica, artesanato e demais.
Juliana L. Campos (2017) realizou um estudo etnobotânico sobre a sustentabilidade do coqueiro
Ouricuri (Syagrus coronata), apresentando como resultado a necessidade de sustentabilidade
da atividade extratora da palmeira ouricuri e propagação da espécie, a qual se choca com os
impactos históricos e territoriais da situação do colonialismo interno, portanto, a autora avalia
que a orientação do saberes tradicionais do caso Fulni-ô confere políticas de manutenção e
transmissão de aprendizados relacionados aos vegetais.
Portanto, tal estudo visa destacar uma preocupação ímpar da etnobotânica: em que
medida os saberes locais e cosmologias se adaptam no cenário de transformações antrópicas?
Para tal, procuro descrever as compreensões, habilidades e concepções nativas, evitando a
sobreposição analítica das categorias éticas às êmicas. O estudo aborda as percepções, valores
e classificações acerca dos territórios, práticas e plantas sagradas conferidas pelos próprios
indígenas em yaathe e português. A escolha das plantas ocorrera pelas abordagens da
etnofarmacológica, quimiotaxonômica e filogenética, visto as evidências do uso de juremas e
das suas correlações com uma determinada classe química de substâncias (MACIEL; et al.,
2002).
Portanto, realizou-se levantamentos de vegetais que são relacionados com as práticas
tradicionais, especificamente, as espécies vegetais citadas no diálogo dos complexos. No que
se refere às plantas, realiza-se um trabalho de coleta de plantas e produção de exsicatas com
indígenas Fulni-ô, em diferentes localidades do território, nas serras e áreas periféricas à aldeia
sede. As plantas foram reconhecidas pelos indígenas, assim como foram relatadas as suas
aplicabilidades e relações “sagradas”. Ao todo soma-se na catalogação cerca de 25 exsicatas
produzidas com diversos tipos de vegetais, a exemplo da: Jurema, Mulungu, Imburana, Pinhão-
Roxo, Catingueira, Unha-de-Gato e mais. As exsicatas embora feitas para a composição do
acervo individual da pesquisa, foram produzidas de acordo com as normas do Instituto
Agronômico de Pernambuco (IPA), com a intenção de uniformizar a catalogação.
180
7 Situação atual
7.1 O habitar Fulni-ô: antropologia, arquitetura e arte
Figura 5- Fotografia retirada na Serra do Comunaty a caminho da Reserva Canto dos Guerreiros, que apresenta
uma visão do território Fulni-ô e da cidade de Águas Belas, fevereiro de 2019.
Neste capítulo realizo alguns apontamentos acerca da situação atual Fulni-ô a partir de
um comparativo com a literatura antropológica - de um rural que tem características urbanas e
das memórias orais possíveis do “rito do ouricouri”, que ganham uma tonalidade “secreta” cada
vez mais rígida com o passar dos anos. Por meio de uma narrativa dos possíveis relatos da
iniciação da pertença cosmológica e da abertura do “rito do ouricouri” há a intenção de
demonstrar que a etnia Fulni-ô sempre esteve em um processo dinâmico, com mudanças de
espaços rituais e entendimentos da territorialidade, que, com a necessidade de um regime de
diferenciação intercultural assume normas e noções onde o “sagrado” tem local central na
formação da pessoa Fulni-ô (setsô).
Os índios Fulni-ô do início do século XXI somam mais de 7 mil pessoas, conforme os
próprios habitantes contam nas suas estimativas, que remete ao crescimento demográfico da
Aldeia Sede e da cidade de Águas Belas ao longo dos anos. O território Fulni-ô é localizado no
Nordeste brasileiro, na região do Sertão e Agreste meridional com clima semiárido, no bioma
181
Caatinga, visto como um dos ecossistemas de maior degradação e impactos históricos derivados
da colonização através da agropecuária e do monocultivo. A T.I. Fulni-ô é situada na região
hidrográfica da bacia do rio São Francisco - no Baixo São Francisco - próxima ao rio Ipanema
e aos seus subafluentes, os quais são de extrema importância para o grupo étnico, que traduzem
o etnônimo Fulni-ô, como: “os índios da beira do rio” (BOUDIN, 1950), pela proximidade
com o rio Ipanema, que tem seus tempos de seca e cheia conforme a época sazonal. A auto-
classificação (que deriva de “ful-li-do”) advém do meio de sobrevivência que o grupo teve há
pouco mais de um século, com as atividades da caça e da pesca, daí a importância do rio ao
grupo que cria condições para reprodução social. Como vimos anteriormente, os conflitos da
disputa territorial e do modo de reprodução moldou os rumos dos Fulni-ô, que são
vulnerabilizados com entraves e conflitos socioambientais de muitas escalas. Por isso,
descrever a situação atual da etnia é um esforço de apontar os aspectos positivos (de como estes
ameríndios indigenizam o seu mundo) e, negativos, através dos impactos decorrentes do
contexto da regionalização e do 'colonialismo interno' (SCHRÖDER, 2012; DÍAZ, 2015;
CBHSF, 2022). Os Fulni-ô demonstram a partir de vários casos um senso de reparação como
demonstrado anteriormente pelas questões territoriais no Nordeste, ou, até mesmo em seu
movimento de diáspora retratado por Brayner (2013) quando uma parentela Fulni-ô conquista
um território indígena em Brasília – chamado de Santuário dos Pajés, que, ainda segue com
impasses em sua demarcação.
Há uma tensão constante entre os modos de vida e os paradigmas de interação com o
ambiente e a sociedade. Pelo paradigma da convivência com o semiárido, compreendendo os
períodos sazonais das províncias das caatingas, os indígenas valorizam aspectos do seu
território chamando-lhe de: “a mata do ouricuri”, "a mata verde", "serras sagradas". Os locais
de “serras”, "baixadas" e “açudes” são vistos com alto potencial para a agricultura. Muitos
destes locais são vistos como centros medicinais, sendo "a mata" o local da "farmácia viva"
com "plantas selvagens" com alto "poder de cura". É justamente por conta da vegetação rasteira
e mudança rápida da cobertura vegetal nas restingas nos tempos das secas e das chuvas que os
recursos naturais disponíveis de cascas, folhas e raízes das árvores - de pequeno e grande porte
- surgem na fitoterapia Fulni-ô com prestígio. As cascas, madeiras, folhas, raízes e palhas são
extraídas para darem vida e forma aos “remédios do mato”, aos artesanatos e um sentido de ser
que expressa relações ecológicas, epistemológicas e cosmológicas.
As atividades de extração são encontradas na produção de artesanatos e nas práticas
tradicionais de produção de “remédios” em geral (garrafadas, xaropes, chás). Os especialistas
182
Fulni-ô fazem seus "remédios do mato" e “artesanatos” através dos recursos extraídos das serras
e proximidades da Aldeia Ouricuri, sendo uma atividade econômica secundária ao grupo.
Também compram nas feiras locais as ervas necessárias para os “remédios”. São muitas as
maneiras que os indígenas se beneficiam da sua gestão territorial, da “farmácia viva” e dos seus
“remédios do mato”, gerando formas de cuidado e bem-estar na aldeia. No que remete ao
artesanato, a etnia fabrica a mão materiais das palhas do Ouricuri, das fibras de crauá, sementes,
cabaças e coités para produzir produtos como: esteiras, potes, vassouras, bolsas / ayó, chapéus,
aloá, colares, cocás, apitos, camisas. Logo, demonstra-se um conjunto de saberes em torno da
ecologia e dos seus modos de existência, que desenvolve formas particulares de produção
social, por atividades e trocas que envolvem relações internas e externas à etnia. É desta
maneira, que o extrativismo e a troca material/ simbólica estão presentes nas “tradições Fulni-
ô” e nas suas políticas, como demonstrou Carla Campos (2006) e Juliana Campos (2017). Em
ambos os trabalhos os questionamentos apontam para a tradição como um meio dinâmico de
possível manutenção e preservação da vegetação que favorece a sustentabilidade das práticas
ecológicas que envolvem a palmeira do Ouricuri (Syagrus coronata) e demais árvores nativas.
Nestes trabalhos também vemos uma imagem de um “índio” que está permeado por inúmeros
conflitos, onde a ideia de “harmonia com a natureza” está contida mais nas ‘representações do
índio’, do que de fato em seu modo de vida, sendo um dos problemas mais recorrentes nas
aldeias indígenas do Nordeste a perda da biodiversidade, poluição dos riachos e a produção de
“lixo” (que ainda são desafios para serem vencidos)62.
62Os indígenas lidam com dificuldades e adversidades no contexto da “integração”, em torno do sistema de água,
saneamento, do acesso à saúde e demais serviços públicos associados ao "progresso" e "desenvolvimento".
Segundo o censo do IBGE, a evolução do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da etnia foi de 0,261% no
ano de 1991, 0,358% em 2000 e de 0,526% em 2010, estando na posição 178° no ranking de PE.
183
Figura 6- Caminho de volta da Aldeia Ouricuri para a Aldeia Sede registrado no dia em que muitos indígenas
transportavam sua “mudança”, agosto de 2018.
entendimento de si e das expressões humanas, nos termos de Ingold (2015), tal noção se traduz
com 3 eixos: antropologia, arquitetura e a arte. Diante destas concepções estão as relações e
concepções humanas das suas moradias e expressões culturais: o ser, fazer e estar. O senso
antropológico Fulni-ô destaca como os “índios” se veem e se colocam no mundo, como os
Fulni-ô aplicam suas regras de condutas tendo “o sangue”, o “sagrado” e as “obrigações”
enquanto vetor moral, conferindo substância às linhagens de descendência, logo, o “verdadeiro
índio” seria aquele com atributos da língua indígena e de características físicas raciais (olhos
puxados, cabelos lisos, etc) de descendência direta “sem mistura”. Entretanto, embora essa ideia
permaneça em torno do índio genérico na aldeia, no que diz respeito aos Fulni-ô, como já visto,
o “rito ouricouri” e o idioma yaathe são os principais atributos da constituição da pessoa Fulni-
ô, que estão imbricados por relações de parentesco e participação comunitária. Portanto, a
observação do mundo Fulni-ô parte do deslocamento do seu centro - que é o Ouricuri - para as
demais relações sociais periféricas (INGOLD, 2015; DÍAZ, 2015; MAUSS, 2003 [1950]).
A construção da pessoa também envolve a sua noção de habitar o mundo com os outros.
As casas indígenas (seti) passaram por mudanças em diversos níveis, as choças de palha e as
demais técnicas do barro batido e pisado deram espaço às casas de alvenarias que estão em
todas as aldeias. Os bebês que antes nasciam no “trempi nas choças de palha”, hoje nascem de
parto normal na maternidade da cidade, ou, em hospitais próximos por uma cesariana. Algumas
casas são simples, enquanto outras já são dotadas de maiores recursos e apetrechos
tecnológicos, revelando a faceta da desigualdade dentro da aldeia, resultante da formação de
uma sociedade indígena de classes sociais no contexto de recursos escassos nos interiores do
estado. As casas e os costumes se modificaram e o seu senso cosmológico em torno do Ouricuri
se ampliou com novas semânticas. Possivelmente, o rito que iniciado com um ritual ecológico
de fertilidade e criação do cosmos compartilhado ampliou-se semanticamente para uma forma
de etnopolítica de pertença étnico-cosmológica. Por isso, quanto mais próximos do setsô Fulni-
ô mais a sua arquitetura e arte se tornam restritas. De todo modo, o equilíbrio social no aspecto
intra-étnico e extra-étnico é um desafio para todos que se completa na realização do “rito do
ouricouri”, como veremos a frente.
populações residentes nas serras, nas beiras dos rios e riachos da região. Segundo as
informações em campo, consta que o rito foi interrompido e revitalizado por uma série de
motivos os quais constam: a pandemia de cólera e os ataques dos regionais aos índios no
contexto da ‘ideologia do desaparecimento’. Após um período sem a realização do ritual (com
datação não informada), certo dia em busca da retomada cosmológica houve uma reunião com
todas as aldeias indígenas localizadas nas serras e nas cabeceiras dos riachos. Por conseguinte,
o “rito ouricouri” teve a sua prática retomada com um debate de quais seriam as lideranças
atuantes. Consta que um ancião sábio apontou uma criança como possível pajé do povo para
ser aceita por Deus (que inclusive desbancaria o cacique e pajé que interromperam o rito). A
revitalização do rito acarretou na escolha do líder, a qual é realizada e aceita principalmente por
ordens xamanicas de Eedjadwá. Para o espanto de todos da aldeia uma criança foi a escolhida
no rito para liderar os indígenas no espaço sagrado, continuando uma linhagem clânica de
sucessão de lideranças nos cargos de pajé e cacique. Com a escolha das lideranças, um outro
debate surgiu acerca da localização do rito, que, teria como opções: o mesmo local onde os
falecidos pela cólera padeceram ou um espaço novo. Segundo a memória oral, a ideia de
revitalização optou por um novo espaço ritual, tendo as mesmas árvores sagradas como ponto
de encontro central do cosmos. Pois, o risco de contaminação dos falecidos enterrados pela
epidemia de cólera próximos do antigo espaço ritual era demasiado, podendo prejudicar o
desenvolvimento étnico da nação Fulni-ô.
O simbolismo de uma criança com o eixo de reflexão da memória oral e continuidade
da aldeia mais do que contar um fato real, aponta para uma idealização mítica acerca da
manutenção e construção das políticas de pertença. Ainda que o relato esteja preenchido com
os conflitos intraétnicos nos é revelado como o “ouricouri” é uma prática agregadora de
revitalização, sendo as práticas rituais no território reflexos da atribuição simbólica para a
organização da vida Fulni-ô. É desta maneira que a prática ritual assume uma multi-semântica,
sendo um rito espelhado na palmeira e em mais árvores com sentidos múltiplos correlacionados.
Na história do povo Fulni-ô, sempre ela foi passada de geração em geração, então,
aqueles que falavam e que quando a língua era viva e existente para todas as
pessoas e, inclusive, as pessoas e crianças ainda não falavam português. Então,
havia segurança de que toda a história contada ela dava continuidade aos
procedimentos do sagrado e da particularidade do povo Fulni-ô. Então, em todos
os tempos os velhos da comunidade eles contavam que o Ouricuri que é o local
sagrado do povo Fulni-ô, eles chamam de Ouricuri porque faz uma tradução,
Ouricuri é uma palmeira que simboliza uma árvore das mais resistentes da região
e que os índios conhecem o mistério e entendem o mistério da árvore, dessa
palmeira que chama coco Ouricuri. Em yaathê na nossa língua a... a... o coco
pequeno do Ouricuri é chamado de Keyxatkhá, que quer dizer lugar pequeno...
186
lugar pequeno, então esse nome que é aplicado no local onde os índios fazem seu
ritual, essas casas também eram feitas de palha, inclusive você viu aquelas fotos
que tem na história da escola para que eu possa contar qualquer coisa do povo
Fulni-ô, no início quando eles estavam menos... é.... em paz ... um pouquinho em
paz eles estavam na cabana deles. Então, havia esse lugar formado com casas de
palha de Ouricuri considerado um lugar pequeno onde só os índios ficavam, aí
chamava-se Ouricuri.
Então, eles contavam com veracidade, você sente, você percebe no olhar na
formação na conversa deles, o que eles contavam de tanta verdade e que pra eles
não existiu em lugar do mundo nenhum, nada poderia ser mais importante pra eles
do que a formação do povo Fulni-ô com seus rituais… Essa linguagem, um dos
grupos de maior classificação é o Fulni-ô …. porque até 1982, agora desse século
até o ano de 1982, a nossa tribo estava afirmada, porque havia um líder dessa
linhagem do homem que construiu, quando o Ouricuri foi extinto... (Wadja Fulni-
ô/ Marilena Araújo de Sá, 26/02/2019)
autoridade das famílias na expressão cultural de maneira estética e polifônica. Talvez esta
afirmação se torne abstrata para um leitor distante da realidade contemporânea Fulni-ô.
Todavia, cada vez que o tolê foi praticado nas reivindicações do “racha da aldeia” associado
com os discursos de continuidade hierárquica, esteve claro que fazer o tolê acontecer é
revitalizar e se comunicar com os “antepassados” e a natureza em um movimento de
organização clânica que diz respeito à união de parentelas familiares legitimadas por uma
hierarquia de valor temporal pela ideia de antiguidade.
Em resumo observei que os Fulni-ô tem dois batismos: o do “ouricouri” realizado
secretamente através da iniciação e o da Igreja católica cristã, que é a porta de entrada para
muitos valores da sociedade nacional. A pessoa Fulni-ô (o setso) inicia e se forma ritualmente
ao longo dos anos, como me relataram alguns jovens: “os anciões nos veem como índios em
formação, ainda temos que passar por ensinamentos no Ouricuri para sermos vistos como
índios formados” (Fernando de Matos, jovem Fulni-ô, julho de 2018). Certamente, ainda que o
rito seja associado ao segredo, “a Casa dos Homens” exerce importante função ritual na
iniciação, uma vez que os índios falam abertamente que o local separa os homens da aldeia das
mulheres e dos meninos. O melhor relato da inciação do setso encontra-se em Boudin (1949),
onde os meninos são levados ao som dos búzios e jogados de um canto ao outro dos espaços
rituais, havendo depois um encontro entre pessoas, palhas e entidades que revelam o segredo
Fulni-ô aos jovens (é obvio que atualmente tal relato é contestado pelos indígenas)63.
Os batismos são um momento importante na aldeia, embora não seja permitida
atualmente a possibilidade de acompanhar a iniciação na prática do ouricuri, conversei com
indígenas que escolhiam o nome dos seus filhos, através de um “adivinhador”, um sujeito que
através de sonhos nomeia as crianças, sendo, deste modo, que muitos indígenas têm seus nomes
escolhidos. O sonho (kfotxse) é visto como um canal de comunicação privilegiado utilizado
pelos índios. Entretanto, obviamente, não são todos os atos de nomeação que ocorrem pela
“adivinhação e sonhos”. Os animais e vegetais são inspirações para o ato de nomeação: Setka
(Mato), Xyxyá (Catingueira), Txhleka (Pau-Brasil), Akha (arara canindé), Thiaya (saguim) são
63
Segundo contam os registros etnológicos de maiores detalhes, é dentro do “ouricouri” que as crianças são
iniciadas ao som dos búzios e das danças, as entidades mostram a face humana da vida através do mundo vegetal
e/ou animal. Os búzios agouram os espíritos ruins para evitar qualquer malefício na criança, que migra de condição
(de criança à adulto em formação), sendo jogada de um canto ao outro do terreiro para realizar sua passagem
social. As entidades com pinturas, máscaras e fibra vegetal revelam a sua face humana à criança iniciada no “rito
ouricouri”. A criança ao ouvir o som dos búzios e ver o segredo da humanidade através da entidade que representa
o mundo animal/ vegetal, escuta do pajé: "Snê-s-kê, a-tkwa-nê (caso você fale, morrerá)!" (BOUDIN, 1949, p.
71). Segundo os registros, algumas entidades são pessoas que se encantaram que tem nome de animal e árvore
com moradias no mato, nas serras e nas próprias árvores (conforme consta nos anexos).
188
Um dia estava andando por aí e quando vi caí num terreiro, um canto grande cheio
de gente, e lá estava um pessoal diferente, o pessoal negro, né?! Com coisa de
religião, de candomblé e dessas coisas todas dos costumes deles de entidade,
incorporação. Mas, eu vendo tudo aquilo acontecer, eu fiquei parado no meu lugar
sem falar nada. Fiquei só de beira. Mas, daí eles sentiram, o chefe que estava lá
incorporado por algum espírito disse que tinha um índio ali. Aí todos pararam e
abriram espaço pra mim, porque ele mandou me chamar, o espírito né?! Aí eu fui
lá, vi que aquele trabalho tinha uma corrente muito forte. Eu acendi meu cachimbo
e fui andando em direção a ele, quando cheguei lá falei algumas palavras sagradas
no idioma, no yaathe, né?! Aí ele não disse nada, ouviu tudo o que eu disse no
idioma e foi embora, se amansou, depois disso o rapaz se libertou do espírito, e
190
todos vieram me agradecer foi muito que eu apareci ali. (sr. Thxyxá Fulni-ô/ João
de Matos, abril de 2018).
Registrei essa “história” em muitas ocasiões que apresenta um modelo determinado para
distinguir pessoas, etnias e religiões através do elemento do idioma como marcador. Às vezes
até aqueles que não eram especialistas no idioma também utilizavam deste recurso na auto-
representação coletiva para afirmar o posicionamento do “índio Fulni-ô” frente às demais
religiosidades. Através destas simplórias linhas, os Fulni-ô católicos tradicionalmente rejeitam
algumas ideias, como a da incorporação e demonstram o seu bem cultural de maior valor: o
yaathe, como importante elemento distintivo. Todavia, como veremos a frente, também
registrei fronteiras culturais que acionam outro mecanismo entre indígenas que preservam o
idioma e utilizam dos seus rituais na formação da pessoa.
64
O terreiro foi aberto no dia 26-27/08/2017, com uma reunião de índios e índias Fulni-ô, que cantaram durante a
noite enquanto comiam carne assada pela noite.
191
Parte da oficina buscava representar os índios pelo olhar indígena com as ferramentas
do audiovisual, especificando como cada etnia dialoga acerca da sua identidade. O “sagrado” e
o “segredo” Fulni-ô foram abordados quando os coletivos visitaram o pajé Gildiere Pereira e o
cacique João de Pontes. Enquanto o pajé afirmou a importância da língua indígena do yaathe
para a identificação étnica, o cacique que estava com idade bastante avançada e nos contou
alguns detalhes de sua trajetória para o cacicado, mostrando uma foto de sua convocação pela
FUNAI. João de Pontes disse: “eu já estive com Kayapó antes, foi neste evento aqui, estavam
todos os caciques do Brasil” (João de Pontes, diário de campo, 07/2018). Essa foi uma visita
marcante, pois, além de haver dificuldades de conversar com o cacique pela sua idade e estado
de saúde, visto que após poucos meses ao episódio ele teve o seu falecimento. De modo geral,
o encontro teve uma tonalidade informal marcada por uma captação cinematográfica, onde os
Kayapó conheciam outras etnias no Nordeste e elaboravam materiais audiovisuais,
desenvolvendo o cinema indígena.
Figura 7- Registro da fotografia em que o ex-cacique, João de Pontes (em memória), reuniu-se com os demais
caciques indígenas, por convocação da Funai para uma cerimônia solene. Registro durante conversa com sr. João
ainda em vida, que está sentado ao lado observando Cícero de Brito Fulni-ô mostrar a foto ao Coletivo da
Associação Floresta Protegida, março de 2018.
Os Fulni-ô ficaram entusiasmados com a visita dos indígenas Kayapó, o jovem que
articulou o evento aponta o dia como "algo histórico na aldeia". Pois, a visita adquiriu uma
tonalidade de prestígio, ele dizia: “agora ninguém vai esquecer que Kayapó visitou Fulni-ô!”
(Arytana Verissimo, produtor cultural indígena). De modo geral, os Fulni-ô ativavam a
categoria do setso-sô (indígena não-Fulni-ô) quando se dirigiam ao coletivo Kayapó -
192
Associação Floresta Protegida. As etno políticas Fulni-ô foram abordadas quando a oficina se
dirigiu ao local do Ouricuri, onde alguns Fulni-ô expuseram as fronteiras simbólicas e a
importância do ritual no pertencimento, no cumprimento das obrigações e no bem-estar do
povo. O anfitrião Fulni-ô da cena, Cícero de Brito (que ainda não era cacique na época)
informou os demais acerca do “rito ouricouri” e alguns dos regimes da tradição. Ele mencionou
o motivo de “não poder convidar nenhum Kayapó ou índio não-Fulni-ô ao rito”. Enquanto
alguns Kayapó lhe ouviam compondo uma cena cinematográfica no Ouricuri, outros indígenas
filmavam o evento procurando os melhores ângulos para registrarem as falas, que apresentavam
o “segredo do sagrado” como um mecanismo distintivo no contexto inter-étnico.
Figura 8- Da esquerda para a direita: Cícero de Brito Fulni-ô com o Coletivo Mebêngôkre (Pat-i, Motere, Daniel),
na aldeia do Ouricuri, detalhando a etnopolítica Fulni-ô na pertença étnica através da palestra sobre o sagrado e o
segredo. Ao redor desta imagem estão os indígenas captando as imagens e uma pequena plateia que acompanhava
a oficina.
Aqui é um lugar que trazemos pessoas de fora, e eu acredito de um modo geral, que
se fosse só nós indígenas, a gente poderia entrar e participar, mas ainda assim eu
tenho medo também, porque eu não sei o castigo ou o que pode acontecer. Segundo
o outro pajé [Claúdio], ele falou que a polícia veio... veio a federal procurar um
bandido, aí quando veio: “vamos entrar, vamo”… ai pajé disse: “pode entrar, mas
daqui pra lá ninguém responde por ninguém”… aí tiveram medo de entrar e
voltaram, ai é assim que funciona e nós trazemos essa doutrina pra nossas crianças,
pra não perder e isso é muito importante pra nós...
esse aí, é onde nós chama aqui [Ouricuri] que é chamada e realizada a cerimônia
religiosa do povo, é por isso que somos existentes e resistentes hoje pelo segredo,
e eu aconselho a vocês também parente, porque justamente onde tem essa questão
do segredo existe uma força muito mais além, então, eu acho que Fulni-ô e Kayapó
tem uma conexão bastante forte, o porque eu não sei explicar, é interessante que
vocês são do lado Sul e nós do Norte, são os únicos povos que mantém contato,
193
boas energias Fulni-ô e Kayapó. Por isso que eu disse vamos levar eles lá, no nosso
território sagrado?! Sim.. Mas, aqui é diferente de lá, sim eu sei, eu quero conhecer
o de vocês um dia, aqui é assim... as casinhas feita de alvenaria é por conta da
perseguição do passado, eles queimavam, todas as vezes que fazia casinha de palha
eles queimavam, aí teve um dia que nós falamos, “vamos nos sentir seguros”, aí
fizemos casas de alvenaria e conseguimos também.
O que eu tenho a dizer a vocês como povo também: chega de viver em cativeiro,
preso! Vamos viver em liberdade, agora é a hora. Kayapó está aqui no Nordeste,
PE e Fulni-ô, amanhã Fulni-ô pode estar lá em Kayapó também, trocando a sua
cultura, se avaliando, se conhecendo melhor porque vivemos presos há muitos anos
atrás, hoje, nós temos liberdade de viver nesse Brasil inteiro… é importante pra nós
a presença de vocês aqui, é importante, mas um dia eu acredito que nós não vamos
depender de branco até a morte, chega disso, porque indígena tem que depender do
branco a vida toda?!, porque desde os ancestrais que dependemos... o branco é que
manda em nós, queima nós, manda nós correr… Não pode.
Então, é hora da gente se libertar. É justamente assim, não é porque eu
tenho uma casa de alvenaria que eu vou deixar de ser feito kayapó, né verdade?! Eu
conheci Kayapó lá em 1994, em Brasília...
(Cícero de Brito Fulni-ô, [na época ainda não exercia o cacicado, Aldeia Ouricuri],
março de 2018; grifo do autor).
De acordo com o trecho acima fica evidente que o castigo se refere ao não cumprimento
das normas do “sagrado”. A punição conferida pelas entidades ocorre de muitas formas, como
doenças, perturbações e acontecimentos trágicos. Por isso, para evitar qualquer punição divina
e riscos diante do sagrado/ segredo, os Fulni-ô não abrem seu espaço sagrado para as demais
etnias (com exceção dos Kariri-Xocó). Por outro lado, a argumentação demonstra a necessidade
de singularidade das normas Fulni-ô, ao mesmo tempo em que mantém os vínculos com os
parentes, através do termo genérico de “índios” como movimentos e grupos que lutam por uma
causa comum: a demarcação das suas terras.
[...] nessa época do Ouricuri é como se fosse o nosso ano novo, por isso, a gente
tem que se preparar, você está vendo isso tudo aqui porque nós estamos indo
comemorar o nosso ano novo, a nossa celebração é nesse tempo: do nosso ritual
sagrado onde ficamos todos juntos. E todo ano nós faz isso, ano após ano nós
estamos todos juntos lá, comemorando a nossa entrada e a nossa saída do ritual, por
isso, a gente também tem que se vestir bem e colocar a nossa roupa nova (Luana,
indígena Fulni-ô; Diário de campo, 2018).
A entrada para o Ouricuri dinamiza toda a etnia e as suas relações interiores e exteriores,
definitivamente ocorre uma mudança em escala social e individual: as escolas encerram as aulas
como se fossem férias, as pessoas se organizam nos seus trabalhos para darem uma pausa, os
Fulni-ô que residem fora da aldeia retornam quando possível para cumprir “a obrigação”. Os
artistas negam apresentações na época do Ouricuri e qualquer movimento que seja uma abertura
de dentro do centro Fulni-ô para fora é rejeitado. Se a preparação para o rito do Ouricuri gera
uma efervescência cultural, a abertura do rito tem uma movimentação intensa: religiosa, política
e econômica.
No ano de 2018, quando participei da entrada do Ouricuri vi uma família “tratando”
algumas galinhas criadas em casa para a “galinhada” do almoço das famílias Ribeiro e
Veríssimo, vi alguns indígenas fazendo todo o processo de abater os animais para levá-los com
as partes boas à panela. Um deles me perguntou durante o abate: “você gosta de tripa? É agora
que a gente come essas tripinhas aqui, veja se é bom!” As partes que não iam para a panela
eram dadas aos cachorros. Em muitos momentos eles brincavam comigo com a memória social
196
dos “índios carnívoros”, às vezes chegavam até a me oferecer nas noites de fogueira pedaços
de carne crua e mal assada com bastante risada. O detalhe é que só percebi depois de algum
tempo essas relações e o sentido das risadas. Depois da refeição fui até o local com uma carona
de algumas pessoas da família que organizavam sua "mudança", eles também aproveitaram
para me aconselhar sobre como proceder na manhã do rito.
No dia seguinte vi a “abertura do ouricouri” com uma movimentação significativa de
pessoas, índios e demais comerciantes que vendiam produtos, artesanatos e cascas de árvores
nas calçadas; feirantes vendiam comidas e políticos famosos apareceram no dia pedindo votos
enquanto acontecia uma missa religiosa com o cacique, pajé, padre e bispo da Igreja de Águas
Belas e Garanhuns. Enquanto o padre falava que Deus estava abençoando a todos, o cacique e
o pajé lembravam a todas as pessoas de respeitar o “Juazeiro sagrado” e “Yassakhlane”. Uma
grande corda separava o Juazeiro dos visitantes não-Fulni-ô no terreiro, uns poucos Fulni-ô
vinham de um canto a outro colocando algumas fitas que os m’late e os otxaytowa pediam aos
índios para pendurar na árvore. Os Fulni-ô são os únicos que têm acesso àquele Juazeiro,
atuando como especialistas do sobrenatural que encaminhavam os pedidos e auxiliavam na sua
“realização espiritual”. Vi muitas pessoas empolgadas em entregarem a "fita do santo" à árvore
do juazeiro como um “sinal de fé”. Encontrei muitas pessoas Fulni-ô que faziam discursos
variados, que representavam e sinalizavam a árvore como um ente vivo que acompanhou as
gerações aborígenes Fulni-ô. Portanto, pela visão interna o “juazeiro sagrado” simboliza as
linhagens de descendência da árvore genealógica, as suas raízes que originam da terra, dão vida
aos “troncos” e aos seus galhos que representam as linhagens étnicas das famílias.
Consequentemente, apenas os autorizados e pertencentes àquelas famílias têm permissão de
caminhar no “sagrado e do segredo”. Certamente, a possibilidade de conhecer o “segredo” está
imbricada com o fato da experiência, apenas quem é Fulni-ô e experiência a vida indígena tem
permissão para adentrar nestes caminhos sagrados. Nesta lógica, o juazeiro não tem espinho
porque ele é domesticado pelos Fulni-ô, é uma árvore protetora no Nordeste que resguarda o
“segredo” e um conjunto de movimentos e memórias da vida étnica.
“Você tá vendo esse Juazeiro, ele é sagrado, se você observar bem ele não tem
espinho. Agora, as fitas são promessas, pedidos que os brancos fazem. Eles não
podem passar dessa corda. Então entregam [a fita] pra gente pendurar lá. (sr.
Thxyxá/ João de Matos, Entrada do rito do Ouricuri, 02/09/2018).
197
Figura 9- Registro do Juazeiro sagrado no dia da Missa de Abertura do Ouricuri, no dia 2 de setembro de 2018.
Na foto se enfatiza uma corda que separa a árvore sagrada dos não-Fulni-ô cujos não podem se aproximar. As fitas
que estão penduradas na árvore permanecem ali por muitos dias, como sinal de fé pelos dos pedidos de variadas
pessoas, que são colocadas pelos indígenas. Nos outros dias essa corda é retirada, ficando apenas uma fronteira
simbólica marcada em todas as pessoas.
Estamos aqui, porque é o nosso momento de rezar por toda a humanidade, por
tudo que a humanidade faz, então, nós estamos pedindo o bem de todo mundo,
que todo o mundo sinta as nossas rezas e compreenda que precisamos melhorar,
é isso que nós estamos fazendo com o poder de Eedjadwa. Viemos aqui rezar para
o mundo, para o bem do mundo todo e ninguém pode nos atrapalhar por causa
disso. (Txlekhá, raizeiro Fulni-ô, abertura do ouricuri, 09/2018, diário de campo).
Por outro lado, os indígenas que abrem as portas da aldeia brevemente detalham que o
rito ocorre em torno da organização, reflexividade e equilíbrio do coletivo Fulni-ô. Após
registrar cada expressão e visitar uma série de casas na abertura do Ouricuri, compreendi a força
ouricuriniana nas relações Fulni-ô, realmente os indígenas mudavam o seu estado de existência
na época do Ouricuri. Assisti toda a missa que lembrava constantemente a padroeira da cidade,
o juazeiro sagrado e algumas normas de convívio e etiqueta na alimentação. Entretanto, o que
se demonstrou de maior impacto neste ano, foi o aspecto intra-étnico, pois a organização Fulni-
ô enfrentava uma transformação, o cargo do cacicado passava por uma mudança com o
falecimento do antigo cacique. O que acarretava em uma série de mudanças e embates na
etnopolítica. A tensão dentro da aldeia era tão grande que qualquer comunicação ou pergunta
neste sentido trazia um silêncio ensurdecedor. A efervescência e sentimento coletivo Fulni-ô
de transformação esteve claro em toda a "Missa de Abertura", seja pelos murmúrios nos
corredores do evento, ou, pelas palavras do Pajé Gildiere Pereira e do recém-eleito cacique
Cícero de Brito.
Hoje o povo Fulni-ô... se tem uma coisa que a gente sabe fazer é receber bem
aqueles que nos procuram, pois, antigamente, há muito tempo atrás o branco não
queria ver índio, nem de longe, quanto mais de perto. Então os brancos de hoje
não têm mais essa visão de nós indígenas, e vem procurar saber como é a vida do
povo indígena. Então, nós não temos o porque não recebê-los bem. E dizer a todos
199
aqui que estamos iniciando o período do Ouricuri, dos 90 dias que nós se
encontraremos no nosso retiro sagrado, a entrada é restrita ao não indígena,
podemos recebê-los bem até o meio-dia, sintam-se abraçados, sintam-se a vontade
até ao meio-dia e daí então nós passamos o restante dos dias rezando em prol não
só do povo Fulni-ô, rezando em prol de toda a humanidade, todos tenham certeza
disso que aqui no Fulni-ô não se encontramos rezando para Deus e ao Juazeiro
sagrado só ao povo Fulni-ô, mas é ao bem de toda a humanidade, que é isso que
o índio Fulni-ô faz durante 90 dias. E dizer também que nós estamos alegres por
iniciar o decorrer dos 90 dias e triste também, eu acredito que aqui todo mundo
sabe o motivo da tristeza do povo Fulni-ô, pois é a primeira missa da abertura do
Ouricuri que nós estamos sem o nosso saudoso cacique João Francisco dos Santos
Filho, conhecido por João de Pontes... então nós estamos um pouco tristes por
isso. Também aqui eu quero que os senhores permitam um minuto de silêncio
pela morte do saudoso cacique João Francisco dos Santos...
[1 minuto de silêncio no terreiro do Ouricuri]
Então é isso minha gente... o nosso cacique João Francisco dos Santos Filho partiu
pra outra vida e não se encontra aqui com nós fisicamente, mas acredito que
espiritualmente ele está aqui com nós, e nunca vi deixar de fazer aquilo que ele
sempre fez, a bem não só do povo Fulni-ô, ele está lá rezando e pedindo a nosso
pai o bem de toda a nossa humanidade. Então, eu quero dizer que mesmo triste
com a perda dele, nós agradecemos a Deus primeiramente por termos conseguido
o cacique e a continuidade de toda a nossa riqueza cultural que nós temos.
(Gildiere Pereira, Pajé Fulni-ô, Missa de Abertura do Ouricuri, setembro de
2018).
Acredito que todos aqui estão sentindo aquela dor mesma dor que estou sentindo
nesse momento, mas, quero dizer o seguinte, ele partiu deixando bastante saudade
e sei que ele está no meio de nós. Dentro do coração de cada um rezando por nós.
Mas, assim, João Francisco dos Santos Filho se foi, mas o cacique continua minha
gente... e está aqui diante de vocês, o cacique de vocês que vai tentar nessa jornada
caminhar junto com todos vocês. Mesmo com a dor que estou sentindo, mas, estou
verdadeiramente falando, que chegou e se tem que nascer o guerreiro, está aqui o
guerreiro de vocês. É ... com grande sentimento que estou falando isso, mas, assim
acredito que Deus está sobre nós a todo momento, na dor, na tristeza, saúde e fé,
acredito que todos nós, o povo Fulni-ô e os visitantes, que esse momento venha a
continuar com fé em Deus, nós acreditamos no futuro e precisamos de vocês,
todos com um só coração nesse lugar sagrado que é a casa de Deus.
(Cacique Cícero de Brito Fulni-ô, Abertura do Ouricuri, setembro de 2018).
descanso. O seu velório ocorreu no dia posterior ao seu falecimento (19/08/2018), com a
presença de um tolê, da Igreja Católica e de toda a comunidade Fulni-ô. O falecimento do
cacique João de Pontes foi um divisor de águas nos grupos e famílias da etnia, com diversas
repercussões nas relações sociais. O cacique era bastante reconhecido pelo povo, embora suas
escolhas fossem vistas de muitas maneiras internamente, ninguém questionava a sua posição
de cacique, sendo um ator social de união entre as parcelas parenterais indígenas. O campo
ficou denso, tenso e pesado. O luto não envolveu apenas o falecimento de um grande líder, mas,
a renovação do cargo de autoridade, que deixava os ânimos de todos "à flor da pele”. Grupos
Fulni-ô se reuniam toda semana para debater sobre o assunto e se preparar para as repercussões
etnopolíticas. Toda a dinâmica do trabalho de campo foi modificada, principalmente, porque
todas as relações de convivência Fulni-ô também mudaram com o evento conhecido na época
como: “o racha da aldeia”, que afetou o povo em sua dimensão total.
Figura 10- Velório do antigo cacique, João de Pontes, que comoveu todo o povo Fulni-ô, com a sua partida, sendo
um divisor de águas na aldeia. No momento do registro os torezeiros acompanham o ritual com seus toques e
cânticos do tolê.
Fonte: Desconhecida.
Este evento foi um marco, pois, com o falecimento de qualquer líder, a “tradição” sugere
que alguém com linhagem hereditária de autoridade ocupe o seu lugar, sendo esta troca de lugar
e papel social a causa de grande discórdia intraétnica. A escolha do novo líder ocorreu antes do
Ouricuri, mas, de fato, ela se consolidou dentro das políticas do rito, de maneira misteriosa e
não revelada. Conforme ouvi de alguns indígenas, “quando o cacique falece, o pajé escolhe
202
com quem ele trabalha daí para frente” (diário de campo, 02/2019). O inverso também ocorre,
quando o pajé falece, o cacique escolhe com quem trabalhará. A revelação da formação da
dupla ocorre sob os olhos de Eedjadwa no tempo do Ouricuri. Entretanto, essa escolha não
advém apenas de um ou outro, pois tem relação com o contato e os direcionamentos de
Eedjadwá (Deus). Com o falecimento do cacique aos poucos a aldeia entrou numa espécie de
luto, onde não se falava sobre o assunto, sendo a realocação de papéis um fator de grande jogo
político e discórdia. O fato é que os indígenas esperaram a chegada do Ouricuri para
compreender coletivamente a aceitação dessa nova estrutura, que, conforme detalham alguns:
“tudo já estava planejado e já vinha sendo arquitetado há muito tempo”. Com o tempo
compreendi que a comunidade se articulava há algum tempo em torno desta transformação
social, com reuniões semanais e assembleias familiares.
Como demonstrado por parte do povo, a escolha não foi de completa felicidade à
totalidade da aldeia Fulni-ô. Aos poucos, ouvia-se que ocorria um “racha na aldeia” com muitas
repercussões. Muitos indígenas não iam mais ao rito e a Aldeia do Ouricuri em protesto ao não
reconhecimento das lideranças, muitas famílias e amigos que sempre conviveram “racharam”
e interromperam os vossos convívios. Se no nível interpessoal os conflitos apareciam por
inimizades, conflitos e tensões, no nível institucional as organizações públicas (como DSEI e
escolas indígenas) tomaram partido neste conflito, reconhecendo (ou não) as lideranças que
contestavam os cargos e os moldes da etnopolítica Fulni-ô. Consequentemente, instalou-se um
clima de tensão e conflito na Aldeia Fulni-ô, ao ponto de o assunto ir ao Ministério Público
(MP), que decidiu reconhecer ambas as lideranças e realizar um laudo técnico. Por outro lado,
tornou-se difícil conversar com as pessoas indígenas, por causa da tensão das parentelas
familiares que disputavam uma legitimidade indígena das lideranças e do verdadeiro rito do
ouricouri. Durante um breve tempo, o clima tenso virava caso de polícia, que chegava a rondar
a aldeia aos pedidos dos próprios indígenas para conter possíveis agressões. Amigos pararam
de se falar, parentes pararam de se ver e um clima de instabilidade e perda de equilíbrio se
instaurou. Iniciou-se um divisor na etnia com lados de “cá e de lá”65 que direcionavam aos
Fulni-ô uma mesma noção de etnia, mas, em separação por dois grupos com centros sagrados
distintos. Quais seriam os rumos da étnica com “o racha da aldeia”?
65
Se anteriormente na etnografia de Foti (1991) o “lado de cá e o de lá” remetiam respectivamente as ideias de
centralidade e localidade Fulni-ô, sendo “cá” a aldeia do ouricouri e “lá” a aldeia Sede, hoje, o fenômeno do “racha
da aldeia” indica que ambos os grupos usam a separação na primeira pessoa para se referir ao “cá” como o seu
centro do sagrado que poderá ser tanto o juazeiro como o imbuzeiro, já o “lado de lá” surge em ambos os grupos
como o outro centro do sagrado Fulni-ô que não é reconhecido sendo de certa forma menosprezado.
203
desempenhadas ainda não são claras, visto que no período de construção da nova aldeia ritual
ocorreu um fechamento dos indígenas com a intenção de evitar observações e comentários
alheios ao grupo. Possivelmente, ainda terão mais consequências ao longo dos anos acerca
destas categorias de pertença e criatividades culturais dos rituais e espaços sagrados. Estas
mudanças acionam diferentes ideologias e retóricas em ambos os lados, tanto na turma do “lado
de cá”, quanto do “lado de lá”. Obviamente, todos que se pronunciaram falavam em primeira
pessoa e estavam no “lado de cá”, sendo o “lado de lá” a oposição para ambos os lados. As
tensões do “racha” também tiveram como consequências uma revisitação histórica na formação
do rito do Ouricuri e no desenvolvimento da linhagem de sucessão (como visto acima no relato
de Wadja/ Marilena A. de Sá, e abaixo da cafurna de Xixiá/ Abdon dos Santos). Como minha
posição de antropólogo sem lados permitia um trânsito para falar com pessoas de lados opostos,
comecei a me hospedar na cidade para evitar conflitos pessoais entre ambos os lados, e tentar
compreender os acionamentos e discursos dos dois grupos, os quais apesar de pertencentes à
mesma categoria étnica sentiam a necessidade de um desmembramento no campo das
atividades do “sagrado”.
Ao conversar com pessoas de importante autoridade na aldeia compreendi que as
reivindicações em torno das autoridades e lideranças se confrontavam com a formação clânica
e do exercício das instituições públicas e privadas, assim como na distribuição e gestão de
recursos. Neste cenário o prestígio social acerca das lideranças tem grande importância, pois,
enquanto este “racha” ocupava uma porcentagem significativa da aldeia66, ele poderia se
manifestar de forma legítima e recorrer às suas devidas conquistas, inclusive, territoriais se lhes
fosse a vontade. Portanto, o “racha da aldeia” revelou uma nova estrutura coletiva aos Fulni-ô,
ao ponto de formarem dois ritos separados por linhagens de parentesco e de autoridade na
aldeia, ambos os lados recorreram ao mesmo dispositivo para legitimidade: a hierarquia pela
temporalidade das famílias na sócio-gênese da etnia Fulni-ô. Deste modo, enquanto uns diziam
que os cargos foram usurpados, outros mencionaram que eles eram desrespeitados, conforme
diz a cafurna criada após o episódio destacado:
66
Alguns indígenas relataram que o “racha” envolveu metade da aldeia, sendo uma divisão de 50% do grupo, em
outros relatos soube de cerca de 2 a 3 mil indígenas que passaram para o “novo ouricouri”. Segundo detalhado, a
contestação frente ao DSEI e Controladoria Geral da União (26/02/2019) teve uma coleta de assinaturas com um
alto número próximo a 2 mil assinaturas. Tal quantificação se tornou uma curiosidade para os próprios indígenas
que buscavam fazer as contas ao dividir a etnia ou buscar uma verificação de qual lado contém mais adeptos.
205
ações políticas. Os Fulni-ô exercem a sua cidadania através de várias táticas, criando formas de
protesto para visibilizar os rumos que o próprio povo quer seguir. Quando os Fulni-ô querem
ter alguma repercussão em torno das suas reivindicações, ou, quando a resposta é para o âmbito
federal e estadual, rapidamente eles fecham a estrada: BR 423, que corta o território, ou, visitam
as instituições para reivindicar suas demandas. Acompanhei alguns desses protestos, como: a
caminhada na cidade contra a queimada da Serra do Comunaty, mutirões de limpeza do
Ouricuri, o bloqueio das estradas contra a municipalização da saúde e da Pec 241. De modo
geral, os índios contestam as queimadas que ocorrem na Serra do Comunaty e o desleixo que
acompanha o cenário das políticas públicas e ambientais, na cidade de Águas Belas. Para
contestar tais ações assimétricas regionais e federais, os indígenas reivindicam por
performances, gestos, sons, entonações, movimentos e sentidos, que comunicam a vida Fulni-
ô. É deste modo que uma parcela do povo se mostra enquanto grupo ativo politicamente,
visibilizando uma vontade coletiva para a sociedade regional e nacional.
Figura 11- Os protestos indígenas costumeiramente fecham a BR 423, impedindo a circulação de veículos e
visibilizando as reivindicações dos grupos Fulni-ô, contra o desmonte das políticas públicas que assistem a
população indígena nacional. Neste registro um coletivo da aldeia se demonstra contra a PEC 241.
em suas políticas de pertença e o seu modo de viver se impõe mais uma vez a todo tipo de
barreira pejorativa etnocêntrica externa. Também consideram que estas atividades rituais
buscam a "cura Fulni-ô para os seus males", com trocas de vitalidade entre pessoas, animais,
plantas e ambiente para agregar o coletivo.
Os ciclos Fulni-ô se movimentam com as mudanças climáticas e ecológicas, assim como
por marcos festivos que operam como códigos para o comportamento e solidariedade social.
Desta maneira, determinados elementos podem se sobrepor para ilustrar um calendário Fulni-ô
pela representação de processos climáticos, ecológicos e cosmológicos Fulni-ô. Para tal,
agrupei em sobreposição um conjunto de vegetais importantes no ambiente e para os indígenas,
como o ouricuri (Syagrus coronata Becc.), khoxa/ jurema (Mimosa tenuiflora) e o lookhea/
juazeiro (Ziziphus joazeiro), com práticas cosmológicas indígenas e católicas. Muitas das
práticas da agricultura foram deixadas de lado para favorecer as aproximações entre os vegetais
e práticas rituais, no entanto, uma parte pequena Fulni-ô ainda mantém a prática de plantação
de diferentes tipos de feijão, milho e fruteiras respeitando as épocas das chuvas. A "bata de
feijão" rememorada pelos Fulni-ô é um exemplo de uma destas atividades que entrelaça clima,
tempo, vegetais, ritmo e saberes. Os antigos caboclos da década de 50 (PINTO, 1956) faziam
a plantação do feijão de abril a junho nos meses de chuva e de modo menos coletivo, após um
breve período com o findar das chuvas, os caboclos se reuniam durante a colheita nos meses de
agosto e setembro para fazer "a batida do feijão" que significava reunir as vagens e batê-las
com as ferramentas de trabalho para soltar a semente do feijão. No mesmo ritmo das batidas os
agricultores cantavam letras e harmonias batendo e chutando o amontoado de feijão. No que
tange aos demais vegetais citados, a comparação é feita pela sobreposição entre as épocas de
floração e frutificação com as práticas cosmológicas.
A proposta do calendário vista nos autores (TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2015,
p. 179) aponta processos sociais e renovações que se realizam nas atividades da agricultura e
das festividades católicas, como o dia de São José e dos artesãos em que se planta o milho. No
nosso caso o calendário ecológico, cosmológico e festivo Fulni-ô apresenta principalmente a
dinâmica do Ouricuri que revela uma faceta de isolamento, restrição e retração. Como polo
oposto, o fenômeno de expansão ocorre assim que se finaliza o rito surgindo um novo estado
comunitário de abertura e equilíbrio (DANTAS, 2002b, 2007). Embora as “obrigações” rituais
permaneçam presentes nos dias da semana dos outros meses, ao findar o “ritual” ocorre uma
nova etapa social, que é perceptível pelo próprio ânimo coletivo. Ilustrei o movimento de
retração e expansão ritual pelos sinais de positivo e negativo no calendário. As festividades
208
espelham o estado do povo Fulni-ô, o rito de longa duração, “a Festa da Aldeia, a Festa de São
Sebastião, a Festa Junina”, festas populares e demais tradicionais contêm um conjunto de
características e expressões com uma duração limitada. Todas as festividades são produzidas
com expressões sonoras que criam ritmo ao processo de viver e conferem sentido ao se
pronunciarem mais uma vez batendo o pé no toré, na sambada ou na cafurna!
Consequentemente, o comportamento simbólico - no sentido geertzeniano (2012) - comunica
o processo social da continuidade Fulni-ô.
Portanto, como forma de sistematizar uma série de atividades que dinamizam os ciclos
Fulni-ô, ilustrei o calendário ecológico, cosmológico e festivo Fulni-ô, na intenção de destacar
fases performáticas e práticas sagradas. Os elementos destacados são aqueles que atingem
concepções sagradas nas atividades internas e externas à Aldeia. Foram incluídas as
festividades do catolicismo popular em que os indígenas participam em sua própria igreja e
celebram o convívio com a cidade de Águas Belas/ PE. Assim como as práticas cosmológicas
que os Fulni-ô realizam a partir dos vegetais: juazeiro, imbuzeiro, o ouricuri e a jurema. Em
síntese, tal calendário destaca a sobreposição dos ciclos ecológicos destas plantas com as atuais
práticas cosmológicas.
209
Figura 12- Calendário cosmológico, ecológico e climático Fulni-ô focado nos ciclos rituais associados às árvores
do juazeiro, os arbustos das juremas e das palmeiras do ouricuri.
67
O conceito revegetalização do mundo é inspirado nos trabalhos de Mota (1987), Mota e Barros (1990, 2002),
Nascimento (1994, 2002, 2005) e Reesink (1999, 2002) os quais abordam a abrangência e profundidade das
interações do complexo da jurema nas suas modulações históricas, espaciais, temporais, cosmológicas, rituais,
etnopolíticas e representativas. Portanto, procura-se apontar uma linha de continuidade das práticas que envolvem
as juremas, entretanto, destacar como as mesmas tem seus usos revitalizados e adaptados devido às circunstâncias
dos contextos sociais e econômicos.
68
Como destacado no capítulo 4, observa-se o animismo pela classificação de Viveiros de Castro (1996, p. 129;
2002, p. 376) enquanto “equivalência lógica das relações reflexivas”, ao atribuir agencia e ação animada a
determinados seres não-humanos.
211
Txlêkha - Antes aqui tinha todo tipo de bicho: onça, guará, pássaro de todo tipo, mel...
hoje a gente não tem histórico [de animais].
P- Aqui tinha mel?
T- Sim, é originário, hoje que tá difícil, está assim, mas isso aqui é uma riqueza, o
contato é desde 1600, pense que é tempo… Agora o pessoal toca fogo na serra e acaba
com tudo, acaba com os remédios. Tinha garrafada pra tudo que é coisa, se o sr. me
der 10 reais eu faço uma pra você ter filho, tira tremedeira, tira tudo, é pra dar vigor…
(Txlêkha Fulni-ô/ Pau-Brasil, raizeiro e especialista em plantas medicinais,
14/08/2018)
69
Saburá advém de um termo tupi-guarani que se refere ao armazenamento e “potes” de polén produzidos pelas
abelhas sem ferrão. Provavelmente, o termo foi internalizado pela etnia Fulni-ô ao se apropriar de um conjunto de
saberes e termos indígenas Tupi externos que foram utilizados para classificar elementos da vida social.
70
Tais apontamentos e questionamentos são desenvolvidos concomitantemente com as formulações dos projetos
de pesquisa de Reesink (2016, 2019) que abordam as continuidades de longa duração das ritualidades,
perspectivas, territórios e demais práticas sociais dos povos indígenas no Nordeste que se inserem em um contexto
de trocas e afirmações políticas.
212
sustento. Tive como resposta: “ah, essa história é legal, mas não é daqui porque esse animal
só veio depois, antes dele já existiam outros bichos que estavam mais próximos do Ouricuri”
(Abdon dos Santos/ Xixiá, janeiro de 2021, Aldeia Sede). A resposta afirma claramente
perspectivas ameríndias que utilizam dos elementos animais e vegetais para organizar a
hierarquia do mundo social e as relações espaciais/ temporais. Também registrei histórias e
mitos que diziam que antigos caboclos desapareciam ou se transformavam em pássaros e onças
para fugir de fazendeiros e da polícia. Geralmente, estas histórias aparecem na memória oral
revelando habilidades de ficar invisível e de voar71. As interpretações Fulni-ô aos eventos
nordestinos também utilizam dessa operação de pensamento, certa vez seu João/ sr. Thxyxá ao
explicar o encontro do cangaceiro Lampião com o inspetor do SPI, Estigarribia, nas serras do
território Fulni-ô, disse: “e quando eles se encontraram na serra, estavam ali duas cobras
juntas!” O comparativo de homens postos na condição de cobras revela o status de pessoas
perigosas que ambos os personagens tinham socialmente, entretanto, não sei se de fato tal
encontro realmente ocorreu. Por outro lado, com todos estes contos e situações, parece-me que
o elo mais sólido da reflexividade social (WAGNER, 2015 [1975]) e perspectiva ameríndia
nordestina contemporânea (REESINK, 2018) se concretiza nos elementos vegetais do ouricuri,
juazeiro e mais árvores que são moradas do “sagrado” e assumem significados culturais na
constituição do setsô nos atos de iniciação, nomeação e orientação.
Como descrito anteriormente, possivelmente o juazeiro com o seu tronco principal e
bifurcações representa por forma vegetal a hierarquia e organização dos "troncos" familiares
indígenas classificados como clãs. O complexo do “rito ouricouri” demonstra a diversidade de
elementos presentes nas relações entre os mundos do vegetal, animal, humanos e não-humanos
pela amplitude de concepções e movimentos. No caso Fulni-ô os detalhes etnológicos
descrevem que se nasce e morre dentro do ouricuri, porém a morte não encerra a vida, estando
estes seres que passaram pela experiência de morte presentes na vida indígena e em locais
específicos nos ambientes (serras, árvores, pedras). Existem diferentes ideias e traduções de
“espírito”, “alma”, materialidade e imaterialidade para os Fulni-ô, com combinatórias religiosas
(internas e externas) derivadas dos encontros do indígena com os regionais, sertanejos e afro-
71 O sr. Mauro contou-me uma passagem durante uma caminhada pela Aldeia Sede: “aqui tinham uns índios
antigos curandeiros e feiticeiros que tinham condições de fazer coisas impressionantes, ninguém mandava neles
podia ser policia, justiça... o que fosse. Teve uma vez uns anos atrás que a policia foi pegar um desses índios, por
causa de alguma confusão, mas ele se escondeu em uma casa e virou um bicho tipo um pássaro, assim ele ficou
invisível e ninguém conseguia ver ele realmente, daí ele saiu na forma de bicho e foi ao Ouricouri se esconder, aí
é que não acharam ele nunca mais, feito ele tinham muitos aqui [...]”. (seu Mauro, durante uma entrevista informal,
Aldeia Sede, junho de 2018).
213
artefatos, das máscaras, altares e quais os patronos que movimentam o plano ritual do ouricuri
Fulni-ô. Por outro lado, se os registros antropológicos no contexto de reemergência étnica
apontam para uma revitalização de práticas restritas, sendo exclusivamente compartilhada aos
Kariri-Xocó que partilham uma rede de comunicação ritual. Hoje não é possível traçar a todos
os grupos indígenas uma linha de continuidade do uso do ouricuri, da jurema e mais vegetais,
seja pela ausência de registros ou impossibilidade de alcance da memória oral. A jurema assume
historicamente um local central nas cosmologias da matriz ameríndia nordestina. Ao “índio”
genérico é atribuído o status de detentor tradicional, concomitante "a jurema é coisa de índio"
que traz ao grupo a sua raiz, os seus “encantos e encantados”. Por conseguinte, o vinho da
jurema é o veículo de comunhão do “sagrado” que cria vínculo mundano e extra-mundano
dentro de um mesmo cosmos entre os membros da comunidade ao acessar comunicações entre
o transcendente e o transcendental. Portanto, o rito e beberagem da jurema indígena conecta os
membros substancialmente pela ideia do “sangue” como vetor sociomoral para a construção da
realidade social (REESINK, 1997, 1999, 2000, 2002). Nesta lógica, foi o “índio” quem ensinou
e deu a Jesus a ciência (GRÜNEWALD, 2020). Segundo o ancião Thxyxá: “a jurema indígena
dos antigos caboclos é preparada a partir de uma raiz específica, que deve ser tirada com
proteção com a finalidade de extrair o seu sangue”. Segundo as palavras do ancião Fulni-ô, o
“sangue da jurema” é uma tradução para a bebida de cor avermelhada que se torna o elo para a
transubstancialização, dessa maneira “o sangue da jurema” é a sagrada comunhão do índio com
o seu território e comunidade. Pois, apenas aqueles de sangue indígena permitem fazer e usar
bem o “sangue da jurema”, assim compartilham antes e depois a capacidade e a bebida ao
partilhar o sangue jurema e se comunicar com os encantados, que, (em partes) são os seus
próprios ancestrais em uma comunidade transcendental (REESINK, 2018, 2002;
GRÜNEWALD, 2020).
A antropóloga Clarice Novaes da Mota - na obra audiovisual Jurema: Raízes Etéreas
(dir. Marcos Alexandre de Albuquerque (2003)) - detalha três entendimentos gerais acerca de
um contexto indígena da jurema: 1. É coisa de índio, apenas o índio bebe; 2. Eles acreditam
que "Ela lhe pega"; 3. é um espírito. Deste modo, falamos de uma jurema que atua como um
dos elementos centrais e veículo ao “sagrado”. A árvore da jurema é a morada da força
encantada que é habitada por entidades “originárias” indígenas como Sonsé no caso Kariri-
Xocó (MOTA, 1987), ou, pela própria entidade Jurema (que na tradução nacional tornou-se
uma índia cabocla): a divindade de apoio dos indígenas que abre espaços que revelam
encantados e curam os males como: “poeira nos olhos”, relatado no caso Fulni-ô em Boudin
215
(1950), ou, “cabeça seca” como descrito no caso Kariri-Xocó por V. Mata (1989, p. 153-4).
Tais males são o esquecimento da identidade e tempo vivido pelos antepassados, tendo,
pontanto, a jurema o potencial de aproximar temporalidades, espaços, entidades e conexões da
totalidade da comunidade. Portanto, o potencial comunicativo sagrado da jurema ocorre pelo
encontro com os “antepassados” e entidades que protegem as condições da existência social.
Então, com a jurema existe a possibilidade de se comunicar com os antepassados indígenas e
reanimar a memória, fazer a anamnese em seu conceito inicial: despertar os deuses e a memória.
Por outro lado, a ideia de "lhe pegar" remete a aplicação da problemática da entidade Jurema e
da incorporação. Como se aplica a ideia genérica da incorporação no particular? os Fulni-ô
"incorporam espíritos"? ou até mesmo: existe a concepção espírito ou termos próprios para os
Fulni-ô?
Se o contexto de reemergência étnica exigiu dos indígenas um uso restrito e exclusivo
de uma série de plantas que se associava a oralidade, aos saberes e proteção das áreas de terras
indígenas. Posteriormente com as mudanças culturais da colonização e regionalização, bem
como dos aspectos religiosos, artísticos e econômicos exigiu-se ao uso indígena algumas
aberturas após o seu processo de territorialização – que teve como pressuposto para alguns de
realizar o toré para ser reconhecido e já ter um para expor a indianidade para fora. Ao ponto
que para a inserção socioeconômica indígena no mundo do espetáculo surgiu o uso de uma
jurema de brincadeira, preparada pelos “índios” e oferecida aos não-índios como “jurema
sagrada, medicina indígena, medicina da floresta” no contexto do turismo, das artes e do
encontro de religiosidades/ espiritualidades propagadas pela 'Nova Espiritualidade' ou “neo-
esoterismo” (MAGNANI, 2000), tendo o seu mote central a ‘universalização da experiência’ e
a circulação de indígenas que saem dos seus centros para as grandes urbes. Paralelamente, o
caso dos Pataxó retratado em Grünewald (1999) destaca a inserção indígena na cadeia produtiva
do turismo, fazendo anos mais tarde rituais xamânicos vistos tipicamente como algo indígena
pelos turistas, os quais esperavam ter alguma experiência mística e psicoativa autêntica
(GRÜNEWALD, 2018). Com o decorrer dos anos, tais trânsitos impulsionaram rotas do
“sagrado” com tonalidades contra-coloniais, pois inseriram as aldeias indígenas nas rotas
religiosas do turismo. Tais criatividades transculturais - advindas das expectativas coloniais
estereotipadas de etnocentrismo do “selvagem” e das suas capacidades perto da “natureza” -
revelam a problemática 'zona de contato' e tensão social por fronteiras e sistemas religiosos,
econômicos e de saúde que se confrontam. Muitas vezes as tensões têm como segundo plano
debates sobre a “autenticidade” de práticas, autoridade e o questionamento do que é ser “índio”.
216
Por outro lado, cada sociedade indígena em sua singularidade contextual ‘representa a
indianidade’ e expressa um conjunto de saberes acerca dos vegetais, os quais têm dinâmicas
próprias nos regimes de conhecimento e autoridade, que se atrelam à hierarquia da própria
organização étnica, como descrito no relato abaixo.
Pesquisador: [...] aqui no Nordeste tem a jurema. Essa planta tem sua história muito
relacionada com os povos indígenas. Existe também uma relação de segredo, de
mistério, tudo né? E o que é que a senhora pode me dizer sobre a planta da jurema
com os Fulni-ô aqui?
Wadja: Olhe, eu acho que depende de quem vai fazer, de quem vai tirar. Ele não
fazendo a jurema da forma que é pra ser feita para área indígena, ele tem que saber o
outro jeito. O jeito de… Porque Deus é de todo mundo, as graças é para todo mundo.
Então, como a jurema ela é uma erva medicinal ou uma erva de limpeza, de proteção,
etc e tal...Se ela é, tem que ter a outra forma. Tem a forma do índio, tem a forma do
não índio. E o que complica nessa questão é que não é todo mundo que tem que mexer
com a jurema. Qualquer pessoa não pode mexer com a jurema. Tem que ter as pessoas
certas para mexer, porque mexer qualquer um mexe. Você mesmo mexe, você
conhece as coisas de jurema, vai lá tira e faz o remédio. Mas, o mistério não é aí! O
mistério é a forma de você tirar, sabe? Porque para tirar qualquer erva, você tem que
ver as posições dela, aonde que você vai encontrar. Tem erva que você tem que
encontrar aonde está formado o cruzeiro sul, tal estrela, tal isso, tá aquilo, o tempo da
lua, em que fase da lua eu você tira ela. E hoje, com essa perda de conhecimento, eles
tiram de qualquer jeito. Então, essa tirada de qualquer jeito compromete, entendeu? E
é por isso que tem muita gente que ignora e as pessoas que não fazem assim, ficam
querendo esconder. Aí entra nesse sistema de usar sem saber. Só pra ganhar dinheiro.
Isso é muito triste pra nós índios, porque quem for os donos… porque às vezes a
pessoa não alcança, né? Mas se for quem sabe alcança, não é longe não, alcança! Por
que a jurema tem dois papel, entendeu? Ou ela faz um, ou ela faz outro. Isso é onde
tá o risco. Ela não é uma erva só do índio, ela é do afro, entendeu? E o índio sabe qual
é o tipo de erva que é dele. Qual o tipo de jurema que é dele. Tem vários tipos de
jurema. E eles também para tirar ela e fazer o remédio, eles têm que ver as posições
que ela tá plantada. Ninguém explica isso!
P: Sobre os tipos que tem aqui… Eu vi muito que o pessoal fala muito da jurema preta
e da branca, né? uma que tem espinhos e outras que tem poucos, né? Não sei… eu
vejo muito essas que têm espinhos aqui. Realmente é uma planta misteriosa
W- Todas as plantas, cada uma delas tem seus mistérios!
P: Você percebe alguma diferença do uso que os mais velhos faziam das plantas, do
uso que os jovens fazem. Por exemplo: uma dor de barriga. Os mais velhos faziam
mais chás e hoje em dia o pessoal tá resolvendo mais essas coisas na farmácia?
W- Mas também não tem… elas não foram ensinadas não. Mas tem remédio aí que
bateu, curou! Mas depende da pessoa que vai tirar, depende da pessoa que vai dar,
porque não é todo mundo que pode pegar uma erva não. Cada planta tem um dom,
um tronco familiar que pega ali. Tem coisa que eu olho, mas não pego para não me
comprometer. Eu posso ter autoridade de chamar alguém para tirar. “Fulano vem cá,
tira aqui você”, tá entendendo? Aí fica até mais forte quando tem mais pessoas pra
tirar. Porque eu não mexo, mas eu posso mandar alguém tirar.
P: Essa autoridade que a senhora fala… isso acontece também com buzu? Essa
autoridade de fazer?
W- Tem, é. Inclusive, nunca é bom até o que vai tirar o buzu ir sozinho.
W- É.
72
Segundo o Dicionário Iatê – Português, a tradução para espírito no yaathe é tatya que é análoga a alma (SÁ,
2014, p. 331).
73
É possível destacar a importância linguística como patrimônio vivo e cultural de um povo indígena que é
fundamental na sua continuidade e reprodução social, neste ponto, é possível realizar um paralelo com o caso
Kiriri, que, com os processos seculares de violência e vulnerabilização social enfrentaram um enorme drama e
depressão com a perda linguística (NASCIMENTO, 1994; REESINK, 1999, 2002, 2018). Logo, nota-se a razão
dos Fulni-ô se manterem tão preocupados com a manutenção do seu patrimônio linguístico.
218
74Existem diferentes termos no yaathe para feiticeiro que designam trabalhos internos e externos, e/ou, coisas de
índio e de negro: khohfliflitwa – (macumbeiro); “aquele que não serve o bem, que mexe com a mão esquerda; que
faz trabalho ruim; lança feitiço”. No feminino diz-se: khohfliflitwane (mulher que faz feitiços). Também encontra-
220
Fulni-ô organizarem sua clientela para administrar os recursos externos que são destinados à
aldeia e as famílias indígenas. Ramos (2018) destaca que há uma feitiçaria que responde aos
dramas sociais das desigualdades econômicas que atuam contra a exploração de parentes por
parentes, sendo uma forma de anti desigualdade. Neste sentido, um conjunto de termos como
“pajelança, feitiços, encantos, trabalhos, defumações, banhos, cerimônias” são associados às
práticas mágicas Fulni-ô que praticam um sistema determinado de cuidado sob operações
resultantes das disputas e das políticas internas entre as parentelas da etnia. Por outro viés, os
eventos do turismo indígena pelo lado dos Fulni-ô lidam com a ‘auto representação coletiva’,
ou seja, o “índio” que fala em nome de toda a sua comunidade. Esta ideia gera uma certa
confusão na sociedade nacional, pois imaginam que qualquer “índio” que vá na cidade é um
“grande pajé ou cacique de sua nação”, perdendo de vista que ele pode ser simplesmente um
pai de família que procura vender alguns artesanatos para comprar uma cesta básica de
alimentos. Ou seja, muitas vezes a realização destes “trabalhos” atende uma pequena parcela
do povo, tal como núcleos familiares e demais parentes. Como caso geral, há uma necessidade
de buscar meios e recursos fora do seu povo, tal articulação com o sistema maior é uma das
problemáticas, pois nota-se claramente a imposição de dominação a uma sociedade de meios
escassos (REESINK; REESINK, 2007).
O campo da ‘zona de contato cultural’ no cenário do turismo, das práticas religiosas e
das “medicinas indígenas” parecem utilizar ideias de uma indianidade estereotipada
(REESINK, 2005). Alguns poucos indígenas Fulni-ô fazem um percurso neoxamânico com "as
medicinas indígenas” ou “medicinas da floresta" oferecendo “limpeza, defumação, rapé,
jurema, ayahuasca, sananga”75. Alguns poucos até já internalizaram a junção da ayahuasca com
se o termo: etxhitoa (masc.)/ etxhitosoa (fem.) para designar pessoa com dons mágicos, possivelmente
relacionados às plantas uma vez que etxhi tem como traduções possíveis: “sangue, seiva, qualquer liquido do
corpo, ânimo, transe” (SÁ, 2014, p. 93, 336). Tais traduções apontam questões acerca das bases interpretativas
Fulni-ô, seria a partir destes termos em que se faria alguma associação e pedagogia do sangue da jurema? Não
consegui mais dados no campo de pesquisa, entretanto, parece-me que etxhi supõe analogias e troca de qualidades
entre o humano e o vegetal.
75 Muitas vezes, coloca-se na classificação de “medicinas indígenas” um conjunto de práticas indígenas situadas
em contextos particulares para o campo do genérico, como se a ayahuasca ou sananga fosse do índio genérico.
Ainda que esta seja uma retórica comum no primeiro discurso de determinados grupos indígenas e de personagens
da sociedade nacional, sabe-se que tais práticas estão associadas às linhas históricas, troncos linguísticos, regiões,
comunidades e pessoas bem definidas. Neste caso, ambos os vegetais e práticas se localizam na região amazônica.
Portanto, vale mencionar que a ayahuasca e a sananga são práticas e produtos externos ao Fulni-ô. A ayahuasca é
semelhante a jurema no sentido de haver um campo multissemântico de abordagem entre: bebida, entidade,
práticas sociais e significados. A ayahuasca historicamente usada por povos do tronco Pano foi legitimada no
estado brasileiro nos anos 2000 com resoluções definidas do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas
(CONAD) acerca do uso das plantas (Psychotria viridis e Banisteriopsis caapi), para mais informações ver:
Bittencourt (2015), Mercante (2012), Labate (et al., 2008). Por outro lado, a sananga é um colírio com propriedades
antimicrobianos extraída da planta (Tabernaemontana sanaho) utilizada originalmente por povos amazônicos
221
Desta maneira, os Fulni-ô exercem um certo controle comunitário acerca destas práticas
desencadeadas pelo tensionamento entre as gerações e as formas de geração de renda
secundária. Tal controle se volta principalmente para respeitar o “segredo”, falar corretamente
o yaathe e o que se diz acerca da etnia ao externo, sob o lema de nunca inferiorizar o povo.
como: Matsés, Yawanawá, Ticuna, que segundo Abilio (et al., 2018) precisa de mais dados científicos acerca da
sua eficácia terapêutica.
76
Quero expressar através deste termo a modulação das práticas místicas que procuram atender ao psiconautismo
ao trazer dois elementos: 1. continuidades de práticas étnico-religiosas que utilizam de plantas terapêuticas e uma
preocupação com os efeitos psicoativos para a efetivação da experiência e eficácia dos vegetais/ entidades.
222
Desta maneira, a “medicina indígena” por trazer o diálogo do campo do genérico com as
particularidades de cada povo se torna um termo de certa plasticidade que apresenta
criatividades e economias simbólicas apresentando uma dinamicidade. Se a real “pajelança”
Fulni-ô é proibida porque é “secreta”, os “guerreiros” acharam um jeito de realizar seus
trabalhos com ervas para atender ao público externo respeitando princípios e normas sociais da
etnia.
Diante da literatura e das observações em campo, o cenário das Novas Espiritualidades
desperta uma noção de ecumenismo na formação de redes (indígenas e não indígenas)
chamadas de “alianças”, sob a tentativa de ambos de compreenderem os muitos mundos sociais
com um mínimo de envolvimento e compromisso em cada um deles. Neste sentido é que
Magnani afirma que o trânsito encontrado nestes grupos atribui um sentido de circulação (pelo
conceito de rede que se faz e refaz continuamente), onde seus laços são frágeis com doutrinas
pouco consolidadas entre as partes em equivalência. Por outro lado, parece-me (como apontado
por Terrin (1996) que tal ecumenismo tem como base diversas crenças católicas que servem de
base para um conjunto de símbolos atuantes, mas que se movimentam continuamente em
espaços sendo internalizados por diversos indivíduos. De tal maneira, que Heelas (2006, 2007)
destaca as transformações do self na efervescência no cenário das novas religiosidades, que
opera sob lógicas individualizantes e modulam laços rígidos (com instituições e figuras de
autoridade religiosa). Segundo Magnani (2014), ao observar o trânsito dos Sateré-Mawé o
circuito religioso liga pontos espaciais e temporais ao traçar uma inter-relação de categorias
entre (centro e periferia, rede, circuito, trânsito, tempo, espaço e demais). Em sua definição
(MAGNANI, 2014, p. 8) “circuito seria a configuração espacial, não contígua, produzida pelos
trajetos de atores sociais no exercício de alguma de suas práticas, em dado período de tempo”.
Como destacado, tais circuitos desvendam um conjunto de convenções e possibilidades de
mundo que se fazem e refazem na medida em que constroem interações mais frágeis ou
consolidadas. Neste sentido, algumas categorias se unificam ao compreendermos que o modo
de ser e viver indígena lhes permite estar nas cidades, caatingas, cerrados, rios e florestas sem
perderem sua identificação étnica.
Portanto, as noções de circuito, circulação e trânsito se aplicam à inserção
socioeconômica Fulni-ô no contexto de articulação étnica no cenário religioso ecumênico, ao
demonstrarem um modo de ser Fulni-ô que expressa através do seu senso cosmológico do
sagrado do ouricuri um modo de estar nos demais espaços. Desta maneira, tais concepções
223
confecção de cachimbo e de maracá” repetiam: “não conseguimos curar se vocês não tiverem
fé, acreditem em Tupã e no Grande Espírito que nós estaremos cantando para Eedjadwa-lhá
proteger a todos nós. Os deuses e a sua fé vão te ajudar” (Thafkhêa, durante trabalho religioso
em abril de 2017). Estas entidades “apareciam” quando se musicalizava a vida com cafurnas, a
música indígena neste contexto atuava como um tipo de terapia musical que guiava a ‘angústia
da alma’77 dos participantes. É deste modo que os indígenas utilizam um mesmo discurso para
vários grupos sociais que têm crenças semelhantes. Como os próprios indígenas disseram: “a
turma do xamanismo, do yoga, do reike e de todos os grupos são abençoados pelo Grande
Espírito”. Ao saírem da aldeia para vender artesanatos e fazer apresentações, o indígena Fulni-
ô aprimorou criativamente suas relações exteriores e conheceu o Grande Espírito: entidade que
habita pontes e mundos dentro e para além das Aldeias Fulni-ô, como relatou um jovem músico
da tradição que circulava nas datas comemorativas.
P- é a sua geração que fala de Grande Espírito? Os mais velhos já não falam, né?!
Rafael- é, exatamente... isso é de hoje.
P- e como começou isso?
R- é porque o branco gosta! Se você for ver como era antigamente, os índios só faziam
esse percurso de lá [Aldeia Sede/ Águas Belas] para a cidade [Recife] e pronto. Hoje,
já tem índio Fulni-ô em todo canto... tem em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará,
Pernambuco, Pará e lá pra fora também, hoje tem Fulni-ô até na China, [risos]. (Rafael
Fulni-ô, artesão e músico da tradição, 08/2019).
77
O termo é apontado segundo as considerações do austríaco Viktor Frankl, segundo o autor a falta de sentido da
vida associado a uma dimensão espiritual seria uma das causas da angustia existencial, desta maneira, o autor
inseriu uma dimensão espiritual e realidade ontológica nas análises psicológicas e biológicas antes ignoradas pelos
psicólogos da época. (SILVA; SILVA, 2014)
226
78 No saber popular a jurema é vista como tendo “espinhos” que servem para a sua proteção, o que caracteriza a
planta como selvagem e perigosa, entretanto, a disciplina da etnobotânica classifica tal morfologia vegetal como
acúleos. Ainda que ambos os termos assumam a mesma função (de proteção contra predadores e retenção de água),
a sua manifestação é diferente, uma vez que os espinhos se originam no caule da planta e os acúleos na casca da
planta.
228
jurema preta é mais pesada, ela tem espinho, já a branca é mansa, ela não tem espinho, cada
uma tem um tipo de trabalho, pra trabalhar com elas tem que saber mexer com cada uma”. O
mesmo ancião mencionou que: “para preparar a planta e fazer o sangue da jurema tem que
saber mexer com a raiz, pois a raiz correta usada para trabalhos fica por baixo, a do nó da
jurema”. Logo, durante a pesquisa observei diferentes tipos de preparados da jurema com raízes
e cascas do tronco.
Figura 13- Fotografia do sr. Thxyxá/ João de Matos ao lado de uma jurema preta no terreiro da família Veríssimo
Fulni-ô, Aldeia Sede Fulni-ô, julho de 2018.
Figura 14- Preparado da bebida jurema feita em uma bacia com cascas da planta que maceradas e amassadas
deixam a água com a tonalidade avermelhada, registro realizado após uma "vivência" na Reserva Canto dos
Guerreiros, fevereiro de 2019.
De modo geral, na tradição Fulni-ô a jurema bebida é utilizada para “limpeza, proteção
e força”79. Beber a planta remete a uma experiência de amargor - devido a alta concentração de
tanino - e de acesso aos saberes das “matas”. Em paralelo, há a ideia de que [...] “a jurema é
uma bebida para sonhar” como certa vez me disse o jovem Sainny que relatou ter aprendido
com um primo mais velho sobre seu uso, na intenção de reafirmar que a preocupação Fulni-ô
não seria criar um efeito psicodélico, mas chegar a um estado de comunicação com o
transcendental/ ancestrais80. Neste sentido, a jurema é uma planta para cantar, dançar e sonhar.
As juremas também estão associadas com lugares do território, vistas como “domesticadas ou
selvagens”. Tal fator influência na coleta, como disse um agricultor indígena: “tem uma que
não pode nem dar, derruba você na hora, essas pretas daqui [do lado de casa] são mais fracas,
as do mato são as mais fortes” (sr. Mauro Fulni-ô, 07/2018). Logo, as juremas que estão nas
serras e próximas do Ouricuri são vistas como plantas com maior potência e “força”, esse
pensamento também é presente nas demais plantas com finalidades mágicas e sagradas.
Segundo seu João, um ancião com cerca de 80 anos, os indígenas daquela região sempre
beberam a jurema, vista como “uma planta selvagem, um remédio do mato”. A vida espiritual
estaria associada ao “caminho do cotidiano”, havendo certos casos de doença causada por um
“sofrimento como sinal de desequilíbrio e não aceitação da sua identificação e da sua história”.
As retóricas da doença Fulni-ô neste contexto variam, mas centralizavam alguma explicação
espiritual com espíritos maus e almas penadas que perturbavam a pessoa. Tais questões
envolvem concepções e representações de saúde e doença, que direciona estados fisiológicos
às explicações sobrenaturais.
Tais explicações também foram registradas nos contextos do turismo religioso, uma vez
que os Fulni-ô criam uma abertura aos padrões nacionais e turísticos do espetáculo, protegendo
o “segredo do sagrado” e oferecendo fragmentos semânticos aos turistas que enxergam a
obtenção da “cura” e dos “ensinos” a partir do “contato com uma cultura indígena”. Deste
modo, se a “cura” da jurema esteve genericamente associada à coesão étnica, posteriormente a
79
Vale destacar que muitas das compreensões traduzidas pelos Fulni-ô são realizadas no idioma nacional, o que
revela uma ressemantização na tentativa de aproximar os sentidos, mas proteger o “sagrado e o segredo”, ainda
assim notam-se muitas singularidades em torno do caso em como os grupos organizam seus “trabalhos” e narram
suas pedagogias de uso em torno da planta.
80
Durante uma entrevista um dos principais interlocutores mencionou: “as pessoas vem pra cá achando que vão
ter uma viagem, um encontro com o astral ou uma coisa desse tipo, mas aqui na nossa tradição nós usamos a
jurema para “limpeza” e também para sonhar, assim... dormir tranquilo para receber os recados das nossas
entidades, por isso que às vezes fica complicado fazer esse trabalhos para fora, porque na nossa tradição é
diferente” (Thafkhêa Fulni-ô/ Elpidio Matos, julho de 2018, aldeia sede)
230
Flitxyá - Olha, a jurema não tem explicação, é preciso sentir… um tio avô meu me
disse que não se pode cobrar pra fazer trabalho, nem pode dar pra branco, só em caso
extremo… eu já tinha trabalhado, mas, depois fiquei meio assim, né?!
P- resguardado?
F- Sim, né, é coisa de família, é preciso ter guardião… tem gente que usa assim, mas
não sabe nada disso, esse tio meu andou no meio do mato e me disse os tipos todos
de jurema, olhei: essa serve pra mulher, pra homem, pra criança, pra tudo que é coisa.
P- então vocês usam jurema aqui?
F- Olhe, [pediu para desligar o gravador fazendo sinal com a mão], vou te contar,
ninguém vai te dizer… isso é nosso segredo. É segredo de Estado! (Fitxyá Fulni-ô/
Francisco Verissimo, professor indígena, 14/08/2018)
A partir do relato acima (e dos anteriores), evidencia-se que existe uma relação de
autoridade com um “dono da jurema” de uma parentela e, ainda, uma classificação Jurema-
categorias sociais, talvez como se fossem partes da planta equiparadas com tipos de gente. Os
postos de autoridade e possíveis analogias em torna da jurema planta e pessoa não foram
possíveis de serem coletadas, entretanto, os fragmentos da jurema despertam breves
apontamentos acerca das práticas e concepções da etnia em suas interações internas e externas.
81 O set and setting é um importante conceito no campo dos estudos de drogas/ culturas, pois a partir de trabalhos
etnobotânicos, etnofarmacológicos, antropológicos e de ativistas de um conjunto de autores, como Dobkin de Rios
(1984), Harner (1973), Wasson ([et al.] 1986), T. Leary, N. Zinberg (1984), R. Metzner (2002), MacRae (1992) e
demais, compreendeu-se que a formação do campo da experiência psicoativa é contextual estando inter-
relacionada com as bagagens pessoais, sistemas de crença, políticas públicas, contexto de imersão e das interações
231
(in)conscientes que são reveladas e/ ou vivenciadas. Penso que tais noções se traduzem pelo pensamento
interacionista de E. Goffman acerca da inserção do indivíduo no ambiente/ contexto com os padrões de
comportamento possíveis. Em Bittencourt (2015) demonstrei o desenvolvimento desta noção e de como ela se
torna importante aos estudos de práticas rituais e estados alterados/ ampliados/ não ordinários de consciência.
Ainda existem questões em torno desta temática que podem ser encontradas em: Mercante (2012).
82 Lima (1946) realizou viagens a grupos indígenas para coletas a planta e verificar as substâncias presentes,
ademais também encontrou diferentes termos usados: os Xucuru chamaram de vêuka, os Fulni-ô de khoxá e os
Pankararu de ajucá ou de vinho.
83
O conceito de estados alterados de consciência ou estados não ordinários de consciência foram propostos por
Arnold M. Ludwig em 1966 como estados diferenciados ao estado normal de vigília cotidiana para destacar estados
inatos do ser humano a partir de experiências provocadas por fármacos, substancias e demais experiências
sociológicas, causados por fatos acidentais, patológicos ou intencionais (DOBKIN DE RIOS; WINKELMAN,
1989).
232
(WASSON; et al.,1986) e Plants of the Goods (SCHULTES; HOFMANN, 2001 [1992]). Esta
relação de grupos sociais evidenciou-se distintos modos epistemológicos e pedagógicos entre
substâncias e seres sobrenaturais, assim como as distintas práticas pedagógicas que estão em
cada contexto (DOBKIN DE RIOS, 1984 [1972]). Neste aspecto, Harner (1973) destacou
uma certa etno-psico-farmacologia nos estudos de determinados vegetais, na intenção de
elucidar um sistema de cuidado, o qual se relaciona com a construção da realidade. Sob outro
viés, Jonathan Ott (1995) propõe a 'reforma enteógenica' através de uma episteme técnica de
extração, sintetização e uso individualizado da planta, a qual visa o fim de representantes para
a 'experiência numinosa'84 que seja. O autor também foi responsável pela proposta da
"juremahuasca", uma vez que divulgou receitas com os elementos da jurema (DMT) e das
sementes de Perganum harmala, que contém as beta-carbolinas responsáveis pela inibição da
monoamina-oxidase, ocorrendo a experiência psicoativa pelo efeito do DMT.
Concomitantemente, surge aos poucos e de modo bastante lento e minoritário a enteógenização
da jurema, onde indígenas, afro-brasileiros e psiconautas vêm a jurema como um veículo
místico e psicoativo, seja para o “reino dos encantos” ou para uma “viagem”. Neste sentido, os
trabalhos de J. Ott (1994, 1995, 2002) foram marcantes para o movimento enteógeno no Brasil,
impulsionando uma episteme fisioquímica e técnica de sintetização das substâncias e
individualização da ‘experiência numinosa’. Pois, segundo o autor, as plantas substituiriam os
intermediários para a revelação do sagrado, causando uma revolução no cenário social.
Certamente, um pequeno grupo de psiconautas foram os mais influenciados por estas ações
sendo este o grupo que pratica as propostas do químico no contexto do ‘psiconautismo’ e das
substancias sintetizadas (GRÜNEWALD, 2020).
Ao transpormos tais lógicas para a realidade do Nordeste indígena, seguimos os
apontamentos de Mota (2007), Nascimento (1994), Camargo (2015) e Grünewald (2005, 2020)
ao considerar que os indígenas consideram a jurema como uma fonte da “ciência sagrada”, logo
os efeitos psicoativos não são a preocupação fundamental para a realização da experiência.
Deste modo, encontramos um distanciamento das preocupações estritamente psicoativas e da
vertente de uso focada nos efeitos do DMT. A jurema do Nordeste indígena é um “trabalho de
limpeza” para sonhar e genericamente se comunicar com os “encantados”. Deste modo, as
criatividades transculturais da enteógenia da jurema se tornam múltiplas. De tal modo, parece-
me que existe uma possibilidade de variabilidade da jurema nestes conceitos, ora privilegiando
84
Termo proposto por Rudolf Otto sobre as experiências luminosas e sagradas que escapam ao processo de
racionalização (BITTENCOURT, 2015).
233
alguma enteógenia e/ou a jurema como um veículo místico do sagrado. Pois, de acordo com as
bagagens pessoais, expectativas, intencionalidades e da interação do set and setting poderão
ocorrer variações no subjetivo campo da experiência. Se de um lado descrevi relatos em torno
de um não efeito psicodélico da jurema Fulni-ô, em outros momentos também coletei
afirmativas de que houveram sensações de força e aspectos visionários psicoativos. Entretanto,
o fato é que a linguagem, a administração de plantas e substâncias impulsionados pelos estudos
da neurobiologia e da psicofarmacologia85 em torno dos efeitos psicoativos das substâncias não
encerram as compreensões e interpretações da vida social, apenas são pontos de partida para as
problematizações e o tensionamentos de lógicas. Deste modo, diante deste confronto
epistemológico, encontra-se na literatura uma variedade de compreensões com preocupações
políticas acerca do que é enteógeno e quais as suas repercussões sociais. Portanto, vale
questionar: será que todo indígena está preparado para uma experiência enteógena? A
experiência e sensação da manifestação da mente se trata de algo bastante cuidadoso que exige
de uma série de dispositivos da corporeidade humana, lidamos com determinados cuidados da
saúde física e mental previstos para o uso de psicoativos. Deste modo, é de extrema importância
que projetos que tratem de psicoativos com povos indígenas sejam aplicados com ética, pois os
seus efeitos poderão causar benefícios e malefícios na comunidade.
Atualmente, na minha leitura, o termo enteógeno é uma classificação guarda-chuva, os
pesquisadores a utilizam para retirar os aspectos pejorativos das políticas das drogas e criar uma
tonalidade de plantas com potencialidades de experiências sagradas, que despertem o advento
do divino no experimentalista. Como bem destacam Grünewald e Neto (2012), é preciso
destacar que o conceito não se resume a uma vertente fisioquímica de causa e efeito. Inclusive,
para alguns autores como Wagner Lira (2009) a enteógenia se reveste pela negação da episteme
fisioquímica dos vegetais. Portanto, enteógenos podem implicar, como descrevi
85
O DMT ingerido é degradado pelo corpo humano no estômago por uma enzima chamada de monoamina oxidase
que tem como função degradar monoaminas de neurotransmissores, portanto para a absorção do DMT ingerido
ocorrer é preciso que seja feita uma junção com beta-carbolinas que inibem o funcionamento destas enzimas.
Algumas plantas contêm estas propriedades como os cipós (Banisteriopsis caapi) e a arruda-siria (Perganun
harmala). Desta maneira, algumas vertentes religiosas buscam manipular plantas, substâncias e entidades para
operar os efeitos dos preparados vegetais a fim de conseguirem uma experiência psicoativa numinosa ou
“autêntica”. Por outro lado, no contexto do psiconautismo, ainda podemos destacar que o DMT sintetizado e
fumado conhecido como “changa” opera por outra via, uma vez que os pulmões absorvem diretamente o DMT.
Entretanto, outras preocupações são operadas já que é necessário sintetizar a substância e adquirir alguma expertise
para “fumar” os cristais de DMT sintetizados que não entram em combustão para a sua absorção. Logo, os usuários
experimentalistas fazem tais extrações caseiramente utilizando solventes e demais produtos que deixam o
preparado com uma alta concentração de impurezas. Talvez o autor que mais se debruce sobre este assunto seja
Grünewald (2020) que iniciou uma breve discussão sobre o caso do ‘psiconautismo’ e do DMT, mas, o fato é que
precisamos de uma etnografia mais completa desta vertente do ‘psiconautismo’ para relatar publicamente suas
implicações sociais, bem com suas operações e confrontações com o regime das políticas de drogas nacional.
234
(BITTENCOURT, 2015) em uma operação política e epistemológica acerca das plantas vistas
pelos nativos com carácter sacramental que tem seu uso aceito e legitimado pelo Estado
brasileiro e regularizado pelas políticas de “drogas”. Por outro lado, sabemos que essa
imposição ou autorização oficial pouco vale para um grupo social se definir acerca de si. Ou
seja, determinadas plantas podem ser consideradas enteógenas e serem proibidas, como é o caso
do movimento dos “marianos” que nascidos no Santo Daime sacralizam a Mãe de Deus
associada a planta da Cannabis sativa, ou, o caso dos usuários de “cogumelos mágicos”
(Psilocybe cubensis) pouco comentado (inclusive etnograficamente). Entretanto, este não é o
caso da jurema que é utilizada como símbolo do sagrado já legitimada pelo estado brasileiro.
Por outro lado, as reflexões em torno do termo enteógenos tem associação com práticas
psicoativas nos apresentando a seguinte questão: seria a jurema Fulni-ô um enteógeno com
característica psicoativa?
De imediato, ainda que alguns pesquisadores etnobotânicos associem a enteógenia com
a experiência psicoativa ou a bagagem cultural dos usuários, é necessário destacar que a noção
de enteógeno não se encerra pela relação psicoativa que provoca como a sua definição sugere:
uma manifestação da mente, pois a experiência do sagrado se compõe por dispositivos e
técnicas com muitas manifestações e intencionalidades. Por isso, para responder esta questão,
é preciso ter a noção de que o modus operandi dessa pergunta é a relação epistemológica de
causa e efeito pela noção fisioquímica de moléculas e substâncias que afetam o corpo humano.
Em torno destas problemáticas e em busca de uma reflexão das equivalências culturais,
proponho pensarmos na jurema e nos ritos indígenas no cenário do turismo religioso, onde a
jurema mantém relação com o “sangue” indígena, mas, adquire uma determinada licença para
ser oferecida aos “de fora” no contexto da representação do índio. Seria esta jurema um
enteógeno? Também, de modo mais amplo, proponho destacar estilos musicais e a
sociabilidade musical Fulni-ô na intenção de compreender os sentidos sonoros da tradição e o
que os Fulni-ô dizem ao realizarem seus “trabalhos espirituais”.
pesquisador: por que você acha que os turistas que vem para as vivências valorizam
tanto a jurema?
Thafkhêa: tipo assim… essas pessoas chegam iludidas86 de que a jurema tem um
efeito psicodélico feito o da ayahuasca, mas é diferente, é outro tipo de trabalho…
86
Esta entrevista revela algumas peculiaridades, pois é possível afirmar que os discursos do entrevistado foram se
definindo durante os rumos da pesquisa. Ele que se vestia de fato com a roupa do índio xamã (sendo bem e mal
visto pelo próprio povo a depender da parentela referente) lidou com diferentes retornos dos seus “trabalhos”, os
quais inicialmente começaram com jurema, tabaco, rapé, ayahuasca. Alguns deles vinham como uma resposta
positiva às suas expectativas, vistas como um trabalho de “força e cura”. Já outros “trabalhos” foram vistos como
“fracos” e sem ação psicodélica. Outros casos também são demasiados problemáticos para fazer alguma menção
aqui. O fato é que após tais respostas positivas e negativas, ele me liga para dizer: “olha, vieram aqui e reclamaram
da jurema, porque eu tive que dar uma mais fraca, eu quero fazer essa coisa que falam de juremahuasca, você vai
me ajudar!”. A sua intenção era claramente oferecer uma experiência psicodélica já que o seu trabalho de limpeza
236
esse pessoal da ayahuasca do Santo Daime hoje está mais reconhecendo o que é a
planta jurema. Eu tenho uma visão particular, veja bem, espie bem… essa [ayahuasca]
é uma prática de outro território, não carece de trabalhar com isso, é dos parentes de
lá, eu respeito, mas é de outro território. A jurema tinha que ser mais reconhecida
aqui, porque é uma planta, é uma vida… é natural da caatinga, né?! eu penso assim
(Thafkhêa/ Elpidio de Matos, indígena Fulni-ô, 11/08/2018)
Por outro lado, alguns termos e posições se destacavam nas hierarquias étnicas, Thxyxá
(sr. João) era apresentado como um importante “ancião” e “conhecedor de ervas” (e de fato ele
conhecia praticamente todas as plantas do território), sendo o “ancião” responsável por oferecer
a jurema, os demais são chamados de “guerreiros” trazendo uma performance múltipla do
“índio verdadeiro” e do cenário social de guerra, contato, negociação e contraste. Essa
teatralização do ‘drama colonial’ é comunicada por uma performance que expressa um contexto
simbólico diverso: de um cenário de guerra à convivência pacífica.
Também (havia por parte Fulni-ô) claramente uma forma de organização hierárquica
por idade, geração e gênero, um certo respeito era oferecido ao ancião como pessoas dotadas
de saberes pelo tempo e experiência de vida, ocupando um lugar central nestes rituais
ecumênicos87. As mulheres indígenas (quando presentes) também tinham um local determinado
nestas atividades de turismo, geralmente ficavam na parte da cozinha e na organização da
alimentação, sendo mínima a participação em rodas de cantos e até mesmo nas viagens para
outros estados. Ademais, pude encontrar uma sistemática de como os indígenas trocam culturas
e os emblemas da identidade apresentando uma série de percursos, histórias e situações do
território Fulni-ô.
As trocas interculturais se referem aos compartilhamentos dos conteúdos semânticos
entre as partes em relação que criam “verdades”, projeções e lógicas que se confrontam. Este
conteúdo remete a um conjunto afetivo-cognitivo de projeções acerca do outro - do indígena
Fulni-ô ao turista e vice-versa. Como os “turistas” veem os indígenas, como eles reconhecem
o que é ser “índio” e como os mesmos demonstram isto é um campo bastante estereotipado.
Estes conteúdos semânticos colocam uma série de tensões acerca do que as partes consideram
algumas vezes não atingia tal estado esperado pelos turistas. Como sugestão ofereci um estudo da continuidade do
seu trabalho e lhe disse para deixar a ideia de lado. Depois de algum tempo ele me dá como resposta um discurso
sobre um trabalho exclusivo com a jurema, o que seria tradicional aos Fulni-ô e o campo de ilusão dos brancos
sobre as “medicinas indígenas”. Por outro lado, tal preocupação com os efeitos psicodélicos nas práticas indígenas,
torna-se curiosa, pois, nota-se claramente alguma influencia externa na modulação interna de tais práticas.
87
Enquanto o sr. Thxyxá esteve vivo, participei de “trabalhos e vivências” com ele, o seu sobrinho e demais jovens
Fulni-ô oferecem jurema cantando cafurna. Um pouco antes do falecimento do sr. João o Coletivo Fulni-ô de
Cinema esteve preparando um filme com este ancião chamado de: O filho das raízes, o que diz bastante sobre o
prestígio que o senhor assumia na comunidade acerca das práticas com plantas e saberes do território. Infelizmente,
a obra teve que ser cancelada, pois o seu estado de saúde e falecimento pegou todos de surpresa. Meses antes da
sua morte fizemos algumas viagens para cidades do Piauí, Paraíba e Pernambuco.
237
88 No dia 19 do mês de abril é celebrado o dia do índio. A data faz referência a uma série de eventos ocorridos na
América Latina, em especial, o primeiro Congresso Indigenista Interamericano em que índios e não-índios se
reuniram em 1940 dedicados à valorização, respeito e equidade das populações da América. O Congresso
impulsionou o Brasil a instituir o decreto-lei 5.540 de 1943, sob influências do Marechal Rondon e Roquette Pinto,
assinado pelo presidente da época Getúlio Vargas. Ainda que o mês do índio seja de busca por direitos, a data
também relembra episódios trágicos na sociedade, como o assassinato de Galdino Pataxó e de mais indígenas que
morreram pela sua condição indígena e as circunstancias racistas que encontraram. Deste modo, o Abril Indígena
é uma época de efervescência e de rememoração da sociedade nacional para com os índios.
238
circulação dentro e fora da aldeia indígena. Os jovens indígenas realizam apresentações nas
escolas públicas e privadas de Águas Belas, Recife, Paudalho, Paraíba, São Paulo, Rio de
Janeiro e mais estados. Também vão em museus, escolas, zoológicos, centros religiosos e
demais espaços que lhes convidem para representarem a sua cultura e tradição. Deste modo, os
indígenas colocam as suas roupas de índio e saem para as metrópoles com seus cocares,
chanducas (cachimbos) e ervas de proteção na intenção de vender artesanatos, formar redes e
grupos de apoio que lhes ajudem a renovar seus ciclos econômicos e espirituais. Em uma
ocasião, um grupo de índios divulgou uma chamada nas redes sociais89 para conseguir
apoiadores em suas atividades.
As críticas dos Fulni-ô também se voltavam para os turistas que exotizam o índio,
colocando-os unicamente como seres do passado. Se de um lado os Fulni-ô se protegem
apresentando sua “autenticidade” a determinadas expectativas do turista, do outro eles moldam
os caminhos do turismo para corresponder ao seu campo da tradição criativa. "O pessoal vem
aqui e acha que vai encontrar as ocas, o índio de olho puxado, mas o setsô, o índio tá na
natureza dele, está aqui… no sangue, na arrumação e na língua" (Arytana Verissimo, produtor
cultural da tradição, 07/08/2018).
Os “trabalhos”, “cerimônias” e “vivências” que participei (fora e dentro) da aldeia foram
muito semelhantes, parecia que havia alguma ordenação pré-determinada e que a música
dinamizava as relações sociais e o tempo de cada coisa acontecer. Se os indígenas aplicavam
rapé, bebiam jurema, vendiam artesanato e queriam expor sua “cultura”, eles cantavam e assim
seguiam de evento a evento, ano após ano. Os eventos que participei dentro e fora da aldeia
tinham práticas de entretenimento turístico, sendo resultado da articulação entre indígenas e
89
As redes sociais do facebook, instagram e youtube são bastante utilizadas para promover tais trabalhos,
curiosamente existe uma rede on-line e off-line em torno destas circulações que contribui para a divulgação de
informação. Muitos agentes Fulni-ô criam contas e perfis na intenção de manter uma rede de trabalhos e estimular
a circulação.
239
produtores culturais que organizam tais atividades. Para alguns turistas participantes conhecer
e se aproximar da “cultura indígena” seria um “autoconhecimento das próprias origens”, como
me relatou uma francesa chamada Mathilde: “eu estou em busca de conhecer mais sobre a
nossa ancestralidade, sobre o que sou e somos, por isso, fui até os Guarani e agora vim aqui
conhecer esses Fulni-ô para saber como pensam e o que podem me ensinar”. Outra participante
também me relatou a motivação de participar destas atividades: “vamos agora fumar o
cachimbo que é sagrado, através disso nós poderemos fazer uma viagem xamânica, você já
ouviu falar sobre isso, é preciso se concentrar que parece que você vai em outros espaços, já
vivi antes com um amigo, nós nos encontramos uma vez, estou aqui tentando ver de novo”.
Também presenciei cenas que ultrapassam o senso comum do que se entende destas
experiências, relatos de incorporações e até mesmo situações embaraçosas. Certa vez, uma
moça deu umas “cachimbadas” em uma oficina de chanduca e começou a tremer, chorar e se
desesperar. Em um outro momento, uma jovem incorporou tendo como sintomas uma série de
vômitos, mãos fechadas e falas agressivas. Para todos estes casos os indígenas respondiam do
mesmo jeito, eles enchiam as chanducas de tabaco e defumavam o ambiente e a pessoa,
iniciavam-se os pronunciamentos no yaathe que se alternavam com mais fumaça no ambiente.
Não sei o que ocorria, mas, aos poucos as coisas pareciam voltar ao normal, segundo os relatos
os espíritos saiam do corpo e as aflições cessavam. Até mesmo aqueles indígenas que não eram
especialistas no yaathe socorriam as formas de pronunciamento sagrado para ter controle da
situação, demonstrando que o yaathe é o instrumento de acesso aos meios sobrenaturais. De
fato, as pessoas acreditavam nisso, mesmo sem entenderem nenhuma palavra do yaathe, logo
a arena xamânica atuava com certa previsibilidade com espaços para improvisos.
Tais questões também ocorriam com as cafurnas cantadas em yaathe, muitos
participantes não Fulni-ô ficavam comovidos ao ouvirem as cafurnas, pois se diziam
sensibilizados por uma certa força que a música continha, acreditavam que ela proporciona
algum estado de proteção e cura. Embora, não sabiam exatamente o que a canção expressava
pela ausência de conhecimento no idioma e historicidade Fulni-ô. Neste cenário, permeia a
ideia entre indígenas e não-indígenas de que existem poderes intrínsecos e “originários” nos
idiomas nativos, sendo dotados de uma eficácia na comunicação religiosa e espiritual.
Consequentemente, dentro do cenário religioso intercultural as músicas são bem vistas por
segmentos da sociedade, logo, revelam fragmentos dos dispositivos de alteridade que
resguardam nas performances histórias vividas e modos de interação. Este elemento se
apresentou como significativo na pesquisa, uma vez que a experiência estava pautada pelo
240
vocês acham que nós estamos assim… desse jeito, por quê? Nós já sofremos demais
aqui, os brancos não deixam a gente em paz, são séculos de violência, eles vieram e
estupraram as mulheres, chegaram e queimaram nossas casas, nos levaram a força
para a Guerra do Paraguai. E agora? Eles vem reclamar das nossas casas de alvenaria,
dizer que nós não somos índios porque moramos assim… olhe, nós enfrentamos isso
tudo e não ficamos pra trás, hoje, o índio já não é mais besta, já sabe se proteger e ir
atrás dos seus direitos.
(Flitxyá Fulni-ô/ Francisco, professor indígena durante evento turístico na Aldeia
Sede, março de 2018).
A ideia de dizer: “somos como nossos ancestrais, mas não somos iguais” estava sempre
presente nas conversas, por isso, eles falavam acerca das transformações das choças para as
casas de alvenaria, da inclusão das tecnologias e as adaptações da vida indígena. Para alguns
brancos, ver as casas de alvenaria na aldeia Fulni-ô seria um rompimento com os estereótipos,
ou, até mesmo uma “perda de autenticidade da vida indígena”, em contrapartida os Fulni-ô
respondiam com veemência: “essas são as nossas casas, assim os brancos não queimam mais”.
No dia do evento, a indígena Itanara se sentindo observada pelo grupo de turistas, disse: “vocês
241
querem ver minha casa?! É essa aqui! Feito a de vocês com alvenaria e tudo... mas, eu tenho
a essência indígena de qualquer jeito, eu vou pro meu Ouricuri sagrado, entrem, podem ver
que não tem nada demais”. Aos olhos dos Fulni-ô, os sentimentos de atender ao índio
estereotipado são múltiplos. Se por um lado o turismo indígena é realizado em torno dos
estereótipos do regime de índio pela ideia de folclorização da memória indígena, por outro, ele
permite que as “pessoas de fora” visitem áreas indígenas e vejam pela experiência direta os
locais sagrados para estes indígenas, as suas habitações de alvenaria. Esse tipo de “experiência”
dita como uma “vivência” é buscada pelos visitantes por vários motivos: “ver a cultura
ancestral”, “conhecer a tradição indígena”, “conectar-se com a sua real natureza” são algumas
das ideias que surgiram durante a etnografia. Já outras pessoas vão procurar uma “cura
espiritual” ou alguma espécie de bênção (por parte dos Fulni-ô) para realizarem os seus próprios
trabalhos religiosos com a jurema, ou, outras plantas de poder. De modo geral, compreendi que
este trânsito tratava de uma experiência intercultural com carácter de entretenimento e
aprendizagem através da dramatização. Depois das conversas no anoitecer do dia todos os
participantes foram guiados para um “terreiro” em uma serra próxima da Aldeia Sede, situada
na casa de um “parente” para a “cerimônia da jurema Fulni-ô”.
Certamente o auge da vivência para os participantes ocorre na realização da cerimônia
da jurema. Com a instalação das barracas dos turistas na serra e após a organização do evento
servir o jantar começou a se ouvir no terreiro a imitação de alguns pássaros. “Acauã, a-ca-uã...
a-ca-uã, acauã” e mais assobios, gritos e imitações de animais da paisagem sonora da região.
Ainda que os sons fossem ouvidos, não se viam os indígenas, eles estavam escondidos em
algum local. Víamos apenas a fogueira: local em que os participantes sentaram ao redor. Depois
de alguns minutos entoando sons de pássaros, cerca de 25 guerreiros Fulni-ô aparecem
cantando uma cafurna e iniciando o “trabalho” da jurema. Depois de mais algumas breves falas,
a bebida foi distribuída aos participantes pelo ancião Thxyxá e poucos guerreiros indígenas que
também beberam do líquido e iniciaram uma performance musical que pode ser separada em
dois momentos. No primeiro apenas os guerreiros dançaram, eles pareciam performar alguma
situação, depois dois indígenas ficaram encarregados de serem personagens principais no rito,
onde um aparentava uma incorporação ou possivelmente uma situação de morte com
acompanhamento do grupo. Em muitos momentos os indígenas dinamizavam a cena cantando
cafurnas. Ainda que nada me foi dito posteriormente (e não por falta de perguntas), pareceu-
me que a cena do trabalho performou a morte de um “índio” e o seu renascimento. O trabalho
foi mediado pelas cafurnas e pelas entidades sendo cantado pelos indígenas ornamentados com
242
pinturas, roupas de palhas e penas imitando pássaros batendo as asas como se estivessem no
céu.
Após tal cena - que pareceu um palco exclusivo aos guerreiros Fulni-ô, os mesmos
abriram o seu círculo musical e cantaram cafurnas junto com os turistas em uma mesma roda,
batendo os pés no mesmo ritmo em tom de brincadeira. Também ofereceram mais rodadas de
jurema e de rapé. Ao final do ritual fizeram algumas fogueiras para assar carne e continuaram
a tocar o coco de roda. Na medida em que o ritual acabava, os turistas externavam opiniões que
migravam do autêntico ao não-autentico. Algumas questões também iam sobre a experiência
com o “xamanismo indígena” e os “encantados”. As pessoas questionavam umas as outras:
“vocês viram algo? Viram os encantados?” Uma moça respondeu: “eu senti, eles passaram
por aqui hoje!” Nesse misto de sensações os turistas visitam as ditas “reservas” e afirmam um
conjunto de experiências.
[...] tudo era motivo de alegria então tudo era motivo de cantar, de comemorar, de
agradecer ao Grande Espírito por ter aquilo ali, né?! e o rio, a pedra e a natureza e
tudo que tinha ali, então tudo era motivo de festa, então emocionava, tem muitas
músicas deles que emocionam, outras trazem uma reflexão, introspecção, outra traz
uma vontade de ir feito trio elétrico, de ir atrás, você tem vontade de ir junto, dançar
junto, então você experimenta nesses cantos deles um misto de sensações, elas se
englobam dentro de você e aí volta justamente aquele processo de você se reconhecer,
se identificar, no feitio da jurema foi fantástico, seu João ali... Fred também presente
... trazendo essa energia, essa sabedoria de como eles aprenderam com os pais que
aprenderam com os avós que aqui e ali foi passado, aquele momento ali pra mim foi
como um batizado de como seu João colocou a Jurema na nossa cabeça, ali pra mim
aquele momento foi emocionante demais, foi como um sentimento de consentimento
... "estou lhe iniciando nisso, essa permissão de fazer o uso dessa bebida que é sagrada,
com respeito!" [referindo-se ao sr. Thxyxá/ João] ... né... essa sensação dele dar esse
consentimento com toda a humildade do mundo.... aquele momento pra mim foi
fantástico ... outro momento também da jurema que pra mim foi fantástico foi aquele
momento que a gente abaixou ao redor para colocar as nossas intenções ali e os
meninos fazendo os cantos ao redor, são 4, 5 índios mas parece que é a aldeia inteira
cantando, é incrível como cresce o canto a energia é surreal, no rapé também foi
indescritível, mesmo simples, é... pequeno, porque foi pouco pela quantidade de
pessoas mas a energia a espiritualidade ali presente a energia do rapé quando feito,
intencionado, todo mundo ali naquela intenção com bons pensamentos, sentimentos,
e quando eu recebi o sopro eu só faltava quicar, espírito quicador de energia, chorei
como uma criança, então, é muito emocionante o ver a espiritualidade e o ouvir,
absorver essa energia transmutar e entregar a terra para receber do divino… é
fantástico (Thais de Alencar, terapeuta holística, Aldeia Sede, julho de 2018.)
e costumes indígenas”. Embora o termo reserva não seja mais utilizado para se referir às terras
e territórios indígenas devido ao senso pejorativo e de estaticidade que ele contém. Os Fulni-ô
utilizam este termo para atender as ideias do estereótipo do índio, uma vez que essa é a atração
e o que se planeja entregar ao não-índio, para tal há um argumento óbvio de que reserva traz a
ideia de preservação e de isolamento. Estes locais dentro do território Fulni-ô são inspirados no
modelo antigo de demarcação de terras do SPI que procuram trazer a ideia de um local
preservado e isolado com menos contato com a sociedade envolvente. Ainda que este termo
não seja mais utilizado para definir terras indígenas pela FUNAI, os Fulni-ô ainda o utilizam
para trazer a ideia de uma área de preservação.
As reservas do turismo indígena são locais separados do Ouricuri, a exemplo dos locais:
Canto dos Guerreiros e a Reserva Othxaytowa que se situam na região da Serra do Comunaty,
onde se constroem casas de palhas para se apresentar a “cultura indígena” com cantos, comidas,
palestras, vivências e oficinas. Nestes locais os Fulni-ô fazem “trabalhos” com cânticos e usos
de ervas medicinais com a jurema, velame do campo, alecrim, tabaco e ayahuasca. Geralmente,
estas atividades têm um aspecto de entretenimento artístico-religiosa. Por outro lado, os Fulni-
ô chamam os convidados para participarem de vivências na aldeia indígena, na intenção de
“encontrar as verdadeiras raízes e origens, conhecer o que é ser índio de verdade”.
Figura 15- Grupo Fulni-ô fumando chanduca na Cachoeira do Lamarão, localizada na Aldeia Sede, durante
"vivência" dentro da aldeia no cenário do turismo indígena. Detalhe para as vestimentas da ‘representação do
índio’, onde os cocares e palhas do ouricouri ganham roupagens xamânicas, julho de 2018
Ah, achei bastante interessante a ... os locais onde a gente ficou [visitou], a região do
Ouricuri ééé... de uma energia muito grande, eu tive o prazer de consagrar rapé na
região do Ouricuri, a força é muito forte é um lugar assim, de uma energia espiritual
muito grande que é difícil explicar ... a cachoeira do Lamarão também foi bem bacana,
embora a gente teve que montar e remontar nosso acampamento devido a chuva várias
vezes... é... lá nós fizemos a jurema, o ritual da jurema sagrada, né... a cerimônia da
jurema ... ah... foi bastante interessante.. é de uma energia muito grande, é
indescritível, recomendo a todo mundo. O conhecimento adquirido que foi, o que eu
mais vim atrás de conhecimento, de cultura indígena foi assim maravilhoso, o
conhecimento com relação a ervas, aos rituais mesmo, os cânticos dos índios são
lindos demais, a própria linguagem deles... bom, eu vim pra vivência em busca mais
da minha espiritualidade, em busca de cultura indígena mesmo, até pra ter mais
conhecimentos em relação ao xamanismo em si que eu venho pesquisando muito, e
assim foi, acabei de me lembrar que foi bem bacana o feitio do rapé, até pq eu pude
participar com os índios da ritualística toda, pra mim foi assim um presente mesmo
que os índios me deram... até pq eu já fiz feitio de rapé mas nunca com um índio
mesmo... e assim.. o poder de participar ali e botar a mão na massa junto com os
guerreiros da tribo. eu já havia participado de uma ritualística dessa com os índios aí
da tribo Fulni-ô, só que lá na reserva Thá-Fene, em Lauro de Freitas, numa das idas
deles pra lá... e foi bem bacana aqui acho que até muito mais do que lá pelo fato dos
anciões terem participado, foi é de um conhecimento assim da própria ritualística
indígena do ... da parte parte indígena quando o ancião, seu João lavou a cabeça de
245
todos ali com a jurema também foi assim bem bacana. (Eduardo Roman, terapeuta
holístico. Aldeia Sede Fulni-ô, julho de 2018).
Hoje, nós estamos aqui. Isso aqui é pintura rupestre na Serra dos Cavalos, um antigo
território do povo Fulni-ô, que, o povo Fulni-ô habitava. Essas pinturas são feitas de
tauá, tauá é uma pedra daqui mesmo, que quando umedecida com outra pedra ela
extrai essa tinta. Então, os Carnijó viveram aqui nessa região. Os Carnijós é um dos
grupos étnicos que formam o povo Fulni-ô O Fulni-ô é formado a partir de 5 troncos
que viviam nessa região de Águas Belas.
Então, eles eram nômades, não tinham moradia fixa, eles andavam de acordo com a
sua necessidade. Então, um tempo eles passavam aqui porque caçavam e coletavam
frutos, e sempre iam para a margem do Rio Ipanema pescar. Iam para várias regiões
dentro desse município, sempre buscando o seu apoio e sua alimentação. Até então,
eles não tinham moradia fixa. Então, pra poder marcar os territórios eles faziam essas
pinturas pra poderem se localizar, eles faziam isso em ciclo, passavam por várias
regiões e eles marcavam com isso aqui. Então, como é que eles faziam isso? Ao
mesmo tempo eles retratavam as suas histórias do que eles faziam em cada lugar
desse, né?!
Vocês podem ver ali que tem imagem de artesanatos, linhas circulares que é uma
espécie do território e do caminho que marcavam... e quando eles faziam essas
pinturas as mãos ficavam meladas e faziam assim pra poder limpar do tauá (imitando
o desenho da mão na pedra).
Tauá como eu falei é uma pedra vermelha, que quando umedecida em outra pedra...
joga água aí assim fica vermelha... e ainda hoje essa pedra é utilizada nas pinturas
corporais do povo. Ela é dessa região. E também tem o Tauá preto, que dá as duas
cores, essa combinação, que é utilizado nas pinturas corporais (Expedito Fulni-ô,
professor indígena, durante excursão da Serra dos Cavalos, material coletado a partir
de divulgação audiovisual pelo Coletivo Vídeo nas Aldeias, 22/02/2019).
246
Figura 16- Pintura rupestre próxima à Serra dos Cavalos que demonstra o senso de territorialidade Fulni-ô, na
medida em que é descrita como uma evidência da etnohistória e dos percursos realizados pelos “antepassados” em
anos anteriores.
de mais nada, pois eles têm o idioma no cotidiano. Geralmente, uma história circula na boca de
muitos anciões que dizem:
“uma vez, um Kayapó me viu e eu estava sem nada, só com minha bolsa, o meu ayó,
e um chapéu de palha. Eu não estava pintado e nem estava de cocá. Aí o Kayapó que
era um índio grande e forte ficou parado na minha frente esperando saber. Aí eu disse
no meu idioma: Soô txaya kaká, dei boa tarde a ele no meu idioma e pedi pra passar.
Aí ele me disse: “passe, que você é índio mesmo, não precisa de mais nada, de cocá,
de pintura e de nada”. Tá vendo... foi só eu falar no meu idioma que eu já provei o
que eu sou” (Abdon dos Santos, professor indígena, agosto de 2019, aldeia sede).
Tal narrativa aponta para uma certa crítica intra-étnica que se volta aos demais jovens
que participam das atividades culturais artísticas-religiosas, usando cocares e se expressando
com a roupa da representação do índio, porém, por outro lado, não se empenham para dominar
os sentidos e o uso completo da língua do yaathe. Consequentemente, existem muitas
preocupações em como os indígenas realizam este trabalho turístico. No caso em questão fica
evidente que a geração mais nova utiliza do padrão mais geral da indianidade genérica adotado
pelos povos indígenas em termos gerais, mas os anciões acham desnecessário para o cotidiano
e até frente a outros povos.
Portanto, para a conclusão é possível destacar uma série de continuidades, adaptações e
concepções “sagradas” que estão encobertas pelo “segredo”, que criam fechamentos e aberturas
por parte dos Fulni-ô. Por outro lado, há uma necessidade continua para buscar recursos
exteriores a sua sociedade (de meios escassos) que tem como consequência a remodelação de
uma série de práticas sociais a exemplo do uso da jurema, do turismo indígena e da
representação do índio, daí a ideia de reflorestar e revegetalizar a imaginação entre os Fulni-ô
e os demais não Fulni-ô, na intenção de criar possíveis “alianças” e pontes semânticas
compartilhadas que auxiliem nas suas condições de sobrevivência. É deste modo, que as
praticas das juremas Fulni-ô continuam a se adaptar às transformações socioculturais e
ambientais, deste modo, os Fulni-ô perceberam que podem beber jurema junto com alguns “de
fora” e cantarem elementos do seu território, pois ao povoar tal imaginação eles conquistam e
colonizam uma parcela pequena, mas significativa da sociedade nacional.
248
Figura 17- Fotografia da jurema registrada por Rafael Fulni-ô, no local do "Paredão", nas margens da Aldeia Sede,
março de 2020.
90
Hoje muitos indígenas se inserem em formações e especializações diversas dos sistemas tradicionais e do
sistema de saúde nacional. A tradição oral é ensinada e socializada nas escolas no período diurno e nas fogueiras
durante as reuniões noturnas, por outro lado, muitos indígenas buscam formações técnicas, de graduação e pós-
graduação com a finalidade de se inserirem no mercado de trabalho da saúde, da educação, cinema, etc. O Encontro
de Saúde que mencionado durante o trabalho de campo demonstrou claramente que a formação e participação
indígena nos setores da saúde são diversos com atuação de profissionais indígenas presentes, como: gestores,
técnicos, agentes de saúde, médicos, psicólogos, técnicas de enfermagem, enfermeiras. Durante um momento do
evento um dos gestores mencionou: “hoje vocês podem ver que 98% das pessoas que estão aqui são indígenas”, o
que comprova a participação Fulni-ô dentro dos serviços públicos e dos serviços de saúde.
250
representam uma gramática mítica da etnia. Para adentrar neste campo é preciso alguns anos
de convívio e vivência com a etnia. A ampliação da compreensão do processo da vida social é
mensurada a partir do acompanhamento temporal e simbólico, que, neste caso se apresenta
pelos Fulni-ô por agências humanas e não-humanas. São interações entre epistemes e ontologias
que traduzem: corpos, territórios, vegetais, entidades, metáforas, substâncias, espaços e tempos
que compõem um complexo sistema social com particularidades (MOURA; ATHIAS, 2010).
De acordo com Ellen (2016) – ao examinar de forma crítica a interação do conhecimento
etnobotânico com os saberes locais - os modos de conhecer estão relacionados com o ‘domínio
cultural’ que evidencia produtos da transformação nos modos, métodos, epistemes e ontologias.
Tais relações lógicas e reflexivas expressam vínculo territorial e identitário que estão em fricção
com sistemas simbólicos nacionais nas áreas de saúde, educação e religião. Logo, cabe a
disciplina da antropologia a difícil tarefa de tradução da coexistência de cosmologias e amplos
sistemas de saúde e cuidado. Por conseguinte, tais questões estão de encontro com
ordenamentos sociais e políticos de pertença que se associam as relações de “doença”, “saúde”,
“curas” e relações da pessoa em sociedade. Já vimos a importância do “rito ouricouri” na
constituição da pessoa (setso Fulni-ô) através das passagens do nascimento, nomeação,
batismo, iniciação, maturação e revitalização, agora apresento mais algumas imagens do
Ouricuri nas políticas da tradição em torno das “plantas sagradas” e das “drogas”.
A renovação ritual da vitalidade ouricuriniana ocorre por meio de uma troca simbólica
e simbiótica para nutrir a corporeidade individual e coletiva, atribuindo força (eididi) para a
continuidade da vida étnica (como demonstrado no capítulo 6). Esta troca ocorre de modo
material e simbólico no agenciamento entre humanos, entidades, animais e plantas. É comum
os indígenas se vestirem com palhas, peles de animais e “roupas” que representam e dramatizam
o seu território para destacar o seu elo de pertença e identificação com o seu território e
ambiente. Identificação esta que também pode ser vista ao vestir a roupa da “sustança”91
indígena, ou seja, vestir-se daquilo que alimenta, logo, as palhas são o alimento da memória e
alma (mais precisamente do ânimo) Fulni-ô.
Como é sabido no geral, a biomedicina atribui a não eficácia as muitas práticas
tradicionais de cuidado o que cria um campo de políticas de saúde com tensionamentos. Tal
tensionamento cultural é destacado por pesquisadores sob diversos campos de atuação
91
O termo “sustança” que é bastante notado nos povos indígenas no Nordeste e na vida cabocla descreve as metas
econômicas particulares para o auto sustento, associados as formas de alimentação e formas de trabalho
(CANESQUI, 2005).
251
profissional de atores sociais com enfoque nos profissionais de saúde, indígenas, políticas e
gestão (e até mesmo da mescla entre estes eixos e atores sociais) (LANGDON, 1996, 2005;
CARNEIRO, 2004). Follér (2004) - ao estudar o caso dos Shipibo-conibo no Peru92 - aponta o
termo ‘intermedicalidade’ para caracterizar a tensão da ‘zona cultural de contato’, provocada
por fronteiras simbólicas e materiais dos contrastes no encontro da biomedicina e da
etnomedicina. Conforme Follér (2004, p. 112), as concepções são postas em contraste por
indígenas e não-indígenas em torno de epistemes e ‘tradições de conhecimentos’ entendidas
binariamente como: ocidentais x locais; conhecimento x saber; biomedicina x prática
tradicional. Desta maneira, o campo das práticas e noções xamanicas também apresentam um
contraste com o modelo da biomedicina na sua dimensão total. Para tal, na tentativa de
compreender a variedade de discursos, situações e trocas culturais, a ‘intermedicalidade’
caracteriza uma interseção de campos que visibilizam a promoção da saúde indígena a partir de
diversas óticas a exemplo do xamanismo.
Tal ‘zona de contato’ entre sistemas étnicos, religiosos e de saúde destacam formas
fenomenológicas diversas de concepção de mundo, realidade e experiência. O sistema indígena
visa o combate à autoridade do discurso colonial e das práticas hegemônicas. Tais fronteiras
contextuais dos povos indígenas e não indígenas, bem como as atuações sistemáticas religiosas
e no campo da saúde procuram: "enfatizar a forma em que os sujeitos são constituídos em suas
relações uns com os outros"(ibid., p. 108), sob aspectos de "poder, resistência e fusão de
conhecimentos". Nestas ideias o termo de ‘etnomedicina’ surge como um sistema indígena que
busca uma experiência dialógica e suas próprias interpretações sobre esta fusão. A
etnomedicina93 abrange um conjunto de ações nos campos da saúde, religião, práticas
tradicionais com uso de plantas, das técnicas do parto, dos aspectos psicológicos, das práticas
do etnoturismo e, principalmente, do acesso indígena ao Serviço Especial e Único de Saúde no
Brasil. O campo das intervenções biomédicas, religiosas e das participações antropológicas
revelam diversas facetas acerca da reprodução social e busca por autonomia dos indígenas,
sendo um cenário fértil para uma análise das trocas culturais. Neste sentido, é possível encontrar
trabalhos antropológicos que se debruçam sobre os profissionais de saúde na interação dos
92
Como destaca Follér (2004) o Peru atua com uma política de saúde diferente do Brasil, uma vez que não
apresenta uma política de saúde comum aos cidadãos peruanos e indígenas. O Brasil por outro lado apresenta uma
política de saúde e atenção diferenciada e especial à saúde indígena. Logo, os modelos dos sistemas de saúde
desenvolvem lógicas diferenciadas em suas ações e organizações.
93
Neste campo existem algumas possibilidades de categorizações, como: etnomedicina, etnopiscologia, medicinas
indígenas que trabalham com determinadas compreensões que colocam no índio o lugar de cuidado ou de busca
por assistência.
252
técnicas seriam criticadas por profissionais de saúde que orientam apenas a aplicação de álcool
na cicatrização do cordão umbilical. Entretanto, o fato é que o conjunto de técnicas estão
articulados com os saberes do território e as possibilidades de exercitar para os indígenas suas
“tradições” e uma autonomia do cuidado. Deste modo, os Fulni-ô transitam entre mundos
procurando preservar um mundo indígena de permanência e abrangência em torno de
concepções e práticas diversas.
temos que viver os dois mundos, ninguém toma um remédio do branco de farmácia
sem fazer a consulta ao nosso sistema, é uma regra essa… minha mãe teve 9 filhos,
ela não tomava esses remédios, hoje está diferente. Eu dizia a ela: temos que conhecer,
hoje não é mais como antigamente. As pessoas andavam a pé na serra carregando
palha na cabeça, tinham filhos em cima da cama [no trempi]. Agora, no resguardo
respeitavam mesmo, ficavam 8 dias em cima da cama, nem tomavam banho, nem
nada… gravidez não é doença, hoje o pessoal fica assim [fazendo posição de deitado
com as mãos no peito] mas, antes as pessoas eram mais fortes, faziam as suas comidas,
hoje ninguém faz mais isso.
você sabia que tem espírito que vem e provoca a doença, vem para levar a pessoa, aí
quando a pessoa se cuida com defumação, banho de ervas, eles são obrigados a ir
embora. temos que saber lidar com esses dois tipos de doença: a do branco e a do
índio (Xicê Fulni-ô, durante o 8º Encontro de Saúde Indígena Regional, na Aldeia
Sede, 12/08/2018).
“primeiro vem a nossa tradição”. A breve argumentação foi proferida durante uma entrevista
durante o 8º Encontro Regional de Saúde em 2018, na escola da Aldeia Sede. Naquele momento
Xicê se referiu a algo mais amplo nestas palavras relacionando a condição pessoal de saúde
com a participação indígena no “rito ouricouri”. Em outros termos, ele citou o vínculo da
“obrigação” ritual com a preservação da saúde individual e coletiva da etnia (no tempo ritual e
cotidiano) como base para as demais interações sociais. Desta maneira, ao falar de saúde
indígena menciono a gestão e autonomia intraétnica, em conjunto com as reivindicações
políticas para os aprimoramentos das políticas e serviços especiais da saúde indígena nos
estados e municípios. No nível intraétnico é possível afirmar que o rito do ouricuri e a pertença
da pessoa estão estreitamente relacionados com a “cura” do corpo étnico, ou, as formas de
resolução interna de conflitos e demais problemáticas. Já demonstramos no capítulo 6 como o
evento do “racha da aldeia” causou uma sensação de “confusão” generalizada nas aldeias Fulni-
ô com diversas “perturbações”. Em alguns casos estes eventos estão associados a processos
psicossomáticos e psicológicos acerca da pertença étnica. Portanto, “cumprir as obrigações do
ouricouri” é sanar a ‘angústia da alma’ e compreender-se pertencer às palhas, serras e pedras
com seus consanguíneos: “os filhos e filhas de Eedjadwá”.
94
É possível problematizar a noção de especialistas uma vez que encontramos nesta categoria uma diversidade de
indígenas Fulni-ô que atuam no Sistema Único de Saúde que podem ser classificados como profissionais de saúde
com atuação distinta dos que praticam a medicina indígena tradicional. Assim, encontramos em campo indígenas
que trabalham na gestão e diretamente nos serviços de saúde como: médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos,
etc.
95
As parteiras da tradição não são mais conhecidas na aldeia Fulni-ô, como me disse a professora indígena Solange
Feitosa: “hoje nós chamados de parteira as mulheres que trabalham nas maternidades e que ajudam no parto”.
Embora, seja difícil encontrar parteiras da tradição ou partos em casa no território Fulni-ô, pude conversar com
anciãs com mais de 70 anos que tiveram mães parteiras na aldeia, o que comprova uma remodelação dos partos,
nascimentos e das muitas práticas tradicionais nos anos 90. Segundo me contaram a anciãs, as parteiras sabiam
mexer com ervas e teriam dons mágicos de “parar a barriga” por rezas, ou seja, impedir que a mulher ficasse
grávida novamente, tais ações seriam guiadas por previsões e presságios.
255
serras (Comunaty, Cavalos, das Antas), locais vistos como “sagrados” e “caminhos dos
antepassados” (o que indica sinais amplos da territorialidade Fulni-ô através da tradição oral).
No “mato” também estão as plantas não domesticadas e “selvagens” as quais são mais
“poderosas”. Pois, não sendo mexidas pelo homem estariam dotadas de maior “poder” e
eficácia. Tais remédios são usados em formas de garrafadas, chás, sucos, extrações,
defumações, uso tópico, demais. Encontrei muitos casos em que compreendi a autonomia do
cuidado praticado pelas pessoas Fulni-ô. Os “remédios” são plantas e ervas retiradas “do mato”
para fazer chás para as crianças com verminoses; “limpar o corpo” com banhos e defumações;
melhorar a respiração; cicatrização e mais necessidades. Um caso pertinente de ser apontado
refere a minha estádia em uma unidade familiar dos Matos Fulni-ô. Em uma ida à Aldeia Sede,
a esposa do meu interlocutor havia realizado uma cesariana há duas semanas em um hospital
particular em Caruaru. Durante os meus 15 dias de estádia na residência do casal, todos os dias
a indígena se banhou com uma solução de plantas que guardava na geladeira: um liquido de
tonalidade avermelhada. Ao questionar o por quê de usar aquilo, ela me afirmou que a árvore
aroeira e demais iriam lhe ajudar na “cicatrização” física da cirurgia e lhe observaria já que “o
seu corpo estava aberto” devido ao nascimento do bebê, assim seria “uma forma de proteção
para não pegar uma inflamação e nenhum espírito ruim encostar” (Itanara Fulni-ô, indígena
Fulni-ô). Também, vi muitas formas do uso de tabaco (fora o fumado e defumado), o extrato
da planta era passado no umbigo em bebês, feridas e pancadas.
Por outro viés, “os remédios da farmácia são os remédios da tradição do branco”, como
o próprio nome indica são encontrados nas farmácias e hospitais, indicando a interação com o
sistema biomédico. Destarte, observei diversos indígenas recorrendo aos dois sistemas de
cuidado, entre plantas e comprimidos as “curas” estavam alcançadas, ou, chegava “o tempo que
é de todo mundo: a morte”. Tais relações de saúde também se estreitam com concepções de
vida e morte, ao modo que falar de saúde também é falar de movimento aos Fulni-ô.
A oposição entre os sistemas de saúde sempre foi vista como algo a ser enfatizado, de
forma que parece ao olhar externo excepcional um indígena recorrer ao hospital, mas, a
realidade é que esses sensos comuns não exemplificam a realidade de acesso e fusão que se
apresenta mais complexa que meros estereótipos. Conversei bastante com um casal indígena
sobre as dificuldades de realizar os tratamentos renais do seu filho de 3 anos, que, com muitas
dificuldades de locomoção e hospedagem iam ao hospital IMIP/ Recife semanalmente para
acompanhar a evolução do caso, que infelizmente não teve um final feliz. Desse modo, a
interação, o uso dos sistemas de saúde e de “cura” pelos indígenas Fulni-ô surgem como
256
96
O Laboratório de Ervas Medicinais Fulni-ô foi criado a partir de uma parceria entre entidades acadêmicas, não
acadêmicas e indígena na intenção de criar um centro de cuidado fitoterapêutico na etnia. Muitos pesquisadores
se destacaram na formação deste centro como: Liliane Cunha Souza, prof. Ulysses Albuquerque, prof. Renato
Athias e, especialmente, o indígena e agente de saúde Xicê Fulni-ô, que assume a coordenação do centro de
257
Quadro 5- Cafurna do compositor Abdon dos Santos sobre as doenças, plantas e remédios, registrada em 2019 na
Aldeia Sede.
Yahatxo Nossa medicina/ remédio
cuidado. Ainda hoje, após a inauguração do projeto o centro de mantém enfrentando diversas dificuldades,
visibilizando um debate que se torna paralelo a disciplina da museologia (acerca da sustentabilidade dos museus,
farmácias vivas e centros de memória). Neste caso, o espaço do laboratório Fulni-ô enfrenta dificuldades de
sustentabilidade uma vez que sua manutenção envolve apoios, participação de editais, produção e venda de
pomadas, sabonetes, xaropes e extratos para tratamento de doenças. As oficinas realizadas pelo agente de saúde
também fazem parte das atividades realizadas. Por outro lado, o centro apresenta um importante ponto de produção
de cuidado na etnia ao desenvolver ações para a revitalização das práticas tradicionais e autocuidado.
258
Demonstrei casos em que ocorre uma busca por ambos os sistemas configurando um
campo de trocas e acesso de sistemas por parte dos indígenas, entretanto, ainda que ocorra uma
busca por ambos os sistemas - como mencionado acima por Xicê e por mais indígenas
entrevistados – recorrer primeiro ao sistema indígena Fulni-ô a partir dos especialistas, plantas
e práticas rituais afirma uma primazia original e permanência simbólica, que se apresenta sob
a difícil prática de acomodar o sistema indígena com a “arrogância” da biomedicina. Desta
maneira, os “remédios do mato e da farmácia” e as “doenças do índio e do branco” revelam
campos específicos de atuação, uma vez que os brancos não cuidam do campo do sobrenatural,
o qual é acessado apenas por indígenas que recorrem as suas ervas e árvores do mato para
efetivarem as “curas”. Desta maneira, o “rito do ouricouri” surge de modo multitemático na
formação do bem-estar individual e coletivo, já que opera normas sociais e aspectos de
revitalização abrangentes.
ir ao retiro sagrado. Escutei por alguns de que a política correta seria esperar uns “3 dias para
esperar que aquilo que mexeu com seu corpo ir embora, aí limpo você pode ir lá (diário de
campo, julho, 2018)”. Obviamente, o que os índios classificam como “drogas” é associado às
questões que “sujam e prejudicam o corpo”, entram nessa ideia o álcool, a maconha97, a cocaína
e o crack, como principais elementos vistos como danosos à saúde individual e coletiva que
estão presente no agreste e sertão brasileiro.
As drogas e os enteógenos no Nordeste indígena necessitam de mais observações, uma
vez que este é um tema continua em debate, sendo, muitas vezes, permeado por estereótipos ou
concepções guarda-chuva que não condizem com os contextos. O próprio termo enteógenos
associado inicialmente por etnobotânicos como o advento do divino, como já destacou
Grünewald (2014, 2020) não é unicamente relacionado ao estado psicoativo das práticas, mas,
à uma disposição ao êxtase que se integra à espaços, coletivos memórias, ancestrais e
etnohistórias. Dessa maneira, para a definição de enteógenos ser aplicada no Nordeste é preciso
remover alguns dos seus aspectos conceituais que lhe tornam uma categoria guarda-chuva.
Neste sentido, torna-se mais favorável o entendimento de práticas sagradas ou místicas, uma
vez que as relações entre “drogas, plantas, substâncias e metáforas” expressam relações do
corpo e da corporeidade nas concepções do “sagrado”, mas, que, não necessariamente estão
condizentes com o entendimento psicoativo da cultura ocidental e das suas relações de causa –
efeito psicodélico.
Na memória oral os Fulni-ô contam que descobriram a planta da maconha com o negro
que trouxe aquilo e agradou a todos da aldeia. A partir disso é que começaram a utilizar a planta
para as demais atividades e inclusive no “rito do Ouricuri”. Mas, a realidade é que não se sabe
a origem do uso e precisaríamos de mais registros para afirmar algo preciso, entretanto, pode-
se consensualmente afirmar que a etnia internalizou a ideia regional das concepções das
"drogas" acerca da maconha (Cannabis sativa), bastante cultivada no "polígono da seca e das
drogas" no interior do estado de PE. Este é um tema com grandes repercussões políticas e
jurídico-administrativas em todo estado de Pernambuco e no cenário nacional, envolvendo
97
Nos anos 50, segundo Pinto (1956) a jurema substituiu o lugar da maconha nos ritos tendo o 'transe' provocado
pela bebida com uso do termo: "enramado" (etxtyá), destacando elementos da "mistura" com costumes "afro-
negros". O curioso é que em algumas expedições etnológicas foram encontradas uma destas plantas. Segundo
Boudin (1949), os Fulni-ô chamavam uma planta parecida com a Cannabis sativa de “liamba/ diamba” e de
Sewliho khlá sedayá (“a folha amarga do avô”), a qual ganhava uso nos ritos e nas rodas de conversa, pois tinha a
capacidade de abrir os ouvidos para as explanações, contos e ritos. Entretanto, visto a falta detalhes e informações,
certamente esta planta não adquire a mesma semântica comunitária hoje, pois a negação e desconfiança com que
os caboclos tratam deste assunto é perceptível, vendo a planta como danosa e perigosa, visto a sua repressão
policial e marginalização com o passar dos anos no contexto das "drogas".
260
questões de: saúde, justiça, segurança e educação. A integração dos Fulni-ô em uma sociedade
industrial de classes, também os transformou em suas relações com as coisas e os valores de
dentro e de fora, numa espécie de 'etnocentrismo inverso', logo, a etnia absorveu o combate de
guerras as drogas ao ponto que a maconha se tornou estigmatizada do mesmo modo que a
sociedade nacional a reconhece. O contexto da interculturalidade no campo das drogas é um
cenário bastante delicado e ainda pouco explorado estando os indígenas à margem em muitas
ações nas áreas da saúde e educação.
As regras do “sagrado” dinamizam uma série de comportamentos, durante o trabalho de
campo, além de verificar a visível desigualdade dentro da Aldeia Sede, também verifiquei
problemas de uso de “drogas”, bebidas alcoólicas e mais problemas de saúde mental. Depois
de duas semanas hospedado na aldeia Sede, soube que mataram um indígena queimado vivo
dentro da aldeia, o seu corpo estava nu e amarrado por cordas. Quando perguntei o que houve
me informaram que ele tinha problemas com “drogas”. Depois soube de mais casos parecidos
na região. Aos poucos compreendi um pouco as complexas relações em torno das “drogas” na
comunidade, dos “remédios”, das plantas e do estado afeto-cognitivo dos indígenas. As
respostas para essas questões não foram encontradas à maneira em que eu presumi, pois, os
Fulni-ô acionam diversas categorias e valores para se referir ao seu sistema cosmológico e de
bem-estar, ter a possibilidade de falar sobre o tema certamente foi uma das maiores
dificuldades. Pois, enquanto algumas “drogas” têm a potência para “sujar a pessoa”, algumas
plantas (como a jurema) “têm o poder de limpar” e estão dentro do “segredo”.
No trabalho de campo conversei sobre o uso e o contexto das plantas de poder e de como
o seu contexto é diverso no povo Fulni-ô. Conversei com muitos especialistas nas plantas
nativas: anciões, anciães, agricultores, guerreiros, benzedeiras, garrafeiros, rezadores, mateiros.
Os assuntos abordados variaram desde como se usa as plantas, quais são cultivadas e as suas
associações simbólicas. As plantas também levavam a assuntos imateriais como mortes e almas
que transitam em busca de algum lugar, que claramente demonstraram combinatórias de
sistemas cosmológicos. Durante uma entrevista informal com a professora. Marilena A. de Sá,
perguntei-lhe sobre os encantados. Ela sempre associava a questão a algum poder intuitivo do
“índio”, uma relação com elementos naturais que apresentavam algum presságio. Ela falava:
"Você acredita em lenda? é como lenda... todo mundo acha que é mentira, mas tem um senso
de verdade" depois, dentre alguns contos, ela seguiu contando a história da morte de Ariano
Suassuna. Segundo ela contou, uma árvore que caiu dentro do prédio do Conselho de
Cultura foi o presságio de sua morte. Ela disse: "quando a árvore caiu, eu sabia que alguma
261
coisa ia acontecer com alguém, só não sabia que era com ele, havia uma ligação ali [árvore –
pessoa] (Marilena A. de Sá, prof. indígena)". Em muitas vezes, falar de plantas e do termo
encantados era motivo para os indígenas relembrarem de presságios com árvores em torno dos
acontecimentos da vida de alguém (demonstrado no relato abaixo). Essas reflexões me faziam
estabelecer uma imagem acerca da organização simbólica da ação comunitária.
[...] Olhe, eu ainda tenho uma história minha que eu tenho muito medo ainda. O ano
retrasado, quando eu deixei o conselho de cultura, eu vinha com uma intuição danada,
danada, danada, com Ariano [Suassuna], preocupada com Ariano. Aí teve, por esse
tempo, festival de inverno [...]
Aí com essa dificuldade, eu não fui. Agora porque que eu estava com pressentimento?
Porque eu estava na reunião do conselho de cultura e lá tem um pé de arvore
centenário, é uma arvore muito, muito, muito sagrada para mim, para nós. E toda vez
que eu chegava nesse conselho, eu puxava uma folha dessa arvore e cheirava a aroeira
e passava no meu corpo. Muito cheirosa. Toda vez que chegava. Por que aqui na nossa
mata, não tinha mais uma daquele tamanho e era muito longe. Aí quando foi um dia,
a gente na reunião do conselho, sem chuva, sem vento, sem nada, essa árvore caiu! Aí
foi um barulho tão grande, tão grande, tão grande e ela caiu pela raiz assim… como
se a terra tivesse fraca e não suportasse a raiz dela, porque ela caiu e derrubou telha,
parede, não sei aonde lá e foi aquele alvoroço todinho. Quando eu vi a árvore, eu vi
um grande homem em estado morto! Eu sabia que ia ser o fim de alguma coisa. Eu
senti isso, né? Aí eu não consegui controlar, aí eu comecei a chorar. Aí nesse
momento, eu senti Dr. Marcos Acioli, presidente, que era quem lutava pelo conselho
e nessas alturas o conselho estava sofrendo ameaças de transformação e estava todo
mundo sofrendo por causa dessa mudança de conselho, de estatuto, disso e daquilo
outro… E eu já tinha aberto e dito que não queria ficar mais no conselho e outros
também já tinha dito que não queriam ficar. E aí, aquilo me deu uma crise e o filho de
Dr. Waldemar de Oliveira que era médico, quando eu me retirei eu falei: “mas o que
foi que aconteceu?” Eu vou pro apartamento e eu ficava ali na Manoel Borba. Aí ele
foi me deixar. No caminho eu chorei, chorei, chorei, chorei, forte, forte, forte, forte e
ele não me perguntava o que era. Eu também não ia dizer o que era que eu estava
sentido. Quando eu cheguei lá no apartamento, eu tirei a roupa, tomei um banho, lavei
o rosto e fui refletir, né? Fazer uma reflexão sobre a nossa história aqui que a gente
sabe quando morre, cai uma árvore desse jeito, é uma queda de uma grande coisa.
Agora é que o povo tá sabendo hoje que árvore tem alma e animal também. (Marilena
A. de Sá, professora indígena, Aldeia Sede, 12.07.2019)
“tradicional”. Foram justamente estas que abriram meus olhos para um uso tradicional dos
recursos do território indígena.
pés no açude da Aldeia do Ouricuri conversei com integrantes da família Feitosa sobre como
os Fulni-ô entendem seus “troncos” e o mundo cosmológico. O relato que precisa de alguma
discrição para não ferir subjetividades assume uma importância singular ao caso. Segundo a
professora indígena Solange, durante o falecimento do seu pai ocorreu o encontro espiritual dos
seus genitores e troncos.
[...] nós estávamos aqui nessa casa, dentro desse quarto, não tinha mais o que fazer e
estávamos esperando... momentos antes de morrer meu pai disse que estava vendo
todo mundo! E eu disse que todo mundo?! Aí ele disse: todo mundo, minha mãe, meu
pai, a mulher, os avós e conhecidos. Ele disse que o quarto estava cheio de gente e até
hoje quando eu conto eu me arrepio toda porque é algo muito forte. Então o que foi
que aconteceu, ele disse que as pessoas estavam falando com ele, que havia chegado
a sua hora e que podia ir sem medo, que eles estavam ali para protege-lo. Ele ficava
conversando com eles, eu não estou brincando, não! Eles sabiam aonde levar ele, e
daí foi que aconteceu, ele morreu depois daquilo, ele disse que todos os antepassados
vieram aqui em casa naquele dia para buscar ele em segurança e proteger a gente. E
depois desse dia pode falar o que quiser, mas eu acredito! Então, a nossa família tem
espíritos protetores (Solange Feitosa, professora indígena Fulni-ô, conversa informal
na Aldeia do Ouricuri, abril de 2019).
Após a professora relatar uma vivência pessoal tão marcante para sua subjetividade,
questionei se essas pessoas eram os “encantados” que alguns indígenas falam. Então, ela me
respondeu: “é porque encantados é quando falamos pro geral, aqui nós chamamos os espíritos
de outra coisa, eles passam e sentimos aquele arrepio, você às vezes não consegue nem ver,
mas sentiu e sabe que ele passou, mas a gente aqui não chama de espírito, pra nós o nome é
xumaya que significa vento” (Solange Feitosa, prof. indígena). Portanto, ao criar analogias
entre o vento como elemento dado da natureza e o mundo extra-humano os Fulni-ô abordam o
imaterial e o material, aquilo que os olhos não veem, mas que é sentido através da
multisensorialidade e formação do setso.
Depois dessa situação, ainda continuei por algum tempo perguntando sobre os
encantados e a me deparar com traduções ou alguns "não existe", até que um colaborador me
disse: “você quer que eu te diga o quê? os outros índios daqui [do NE] tem isso de encantados,
mas, aqui, F. não tem. eu não posso ficar mentindo pra você, não tem e pronto. O nosso Deus
é Eedjadwa” (Rafael Fulni-ô, artesão). Por conseguinte, é possível destacar uma complexidade
retórica para os Fulni-ô se fazerem entender em escala: no intraétnico, entre os “parentes”
(interétnico) e extraétnico (com ao nacionais). Logo, uma série de conclusões são previstas ao
destacar algumas hipóteses acerca da preservação linguística.
Todos os povos indígenas apresentam singulares e encadeamentos comuns com uso de
termos que servem para entrelaçar um conjunto de povos díspares, porém, todos jogados na
264
que não erra e a Natureza que domina as leis da vida, entretanto, estas traduções indicam, mas
não expressam a completude dos sentidos nativos. Logo, torna-se claro também porque o
domínio do ritual assume enorme importância, pois tende a ser o último a perder a terminologia
da língua original em que os Fulni-ô tanto se mostram preocupados. Em um paralelo, vale
destacar que os Kiriri depois de perder a língua, com a morte dos "últimos pajés", ficaram
depressivos em muitos sentidos e se queixaram de perda da eficiência do contato com as
entidades e daí (possivelmente) resultou na perda de orientação e proteção (NASCIMENTO,
1994; REESINK, 2002, 2018). Provavelmente os Fulni-ô temem algo semelhante. Desta
maneira, é possível apontar uma hipótese interpretativa acerca da preservação da língua
indígena (yaathe) com a manutenção das noções cosmológicas. Obviamente, que, no caso
apresentamos a dinamicidade e o ideal weberiano do mundo “original”. Para destacar tais
noções e encaminhar possíveis apontamentos de uma perspectiva ameríndia nordestina,
destacarei algumas situações em campo acerca do mundo dos espíritos na visão dos filhos e
filhas de Eedjadwá.
98 Ao pesquisar alguns relatos históricos da Inquisição e das ocorrências do "charlatanismo" estavam casos dessa
mesma natureza. Achei curioso o mesmo caso em épocas diferentes. Todavia, não pretendo explorar essa vertente
na tese, nem proferir julgamentos que não seja cabível no raciocínio antropológico, uma vez que o caso ainda
permanece em julgamento. O fato é que o ocorrido ainda está em trânsito de julgamento e afetou bastante as
relações entre indígenas Fulni-ô e turistas nas tais vivências e cerimônias de jurema.
266
durante a pesquisa, morou muito tempo em Kariri-Xocó e nos Fulni-ô. Ele falava muito em
entidades e nas suas misturas com o campo afro-religioso. (não era falante assíduo); 3º. sr. Fred/
Klekeniho - ancião Fulni-ô de prestígio por falar bem o yaathe. O interessante é que os três
entraram em uma conversa acalorada sobre o assunto de "espírito" no corpo do índio
(incorporação) e durante o diálogo partiram para conclusões variadas acerca dessa concepção,
como destaco abaixo em resumo:
1º- disse: "o índio não incorpora... se algum índio disse isso, ele está mentindo!"
2º. existem espíritos de diversos tipos: leves e pesados, para alguns deles a pessoa tem
que ter o corpo forte para enfrentar e tirar ele do corpo
quando ele começou a narrar um encontro com um espírito, que disse: "eu me deparei
e vi...."
o 3º parou a conversa e disse: seu João, o senhor é mais velho que eu, mas, vai me
desculpar, porque nesse mundo não tem ninguém que olhe para um espírito assim
dessa forma. isso não existe... eu mesmo, indo pro Ouricuri já teve dia de um se
intrometer no meu caminho, mas falei com ele de canto de olho sabendo da presença
dele mas sem olhar ... falei com ele rápido pra seguir meu rumo, porque com isso não
se brinca. Falei: o senhor me deixa passar que vou cumprir minhas obrigações no meu
santo lugar, o ouricouri dos índios, eu preciso ir que os meus me esperam e nada pode
me impedir, se o senhor quiser um favor vamos ter que deixar pra outro dia.
A vida para os Fulni-ô é compreendida através de muitas noções que são refletidas por
elementos vegetais e demais símbolos do ambiente, certa vez durante uma conversa um ancião
me explicou acerca da existência de Oya (a encantada da água ou a Mãe D’água) que estava
atrelada ao “movimento” e ao fluxo da vida.
267
Olhe, você já viu a água andando e a água parada? Me diga uma coisa, você acha que
a água parada tem vida? Tem não! E sabe por quê? Ela não vai mais para canto
nenhum, ela perdeu suas ligações de onde corre, de onde vai e de onde vem, aí ela
está parada, está morta sem ter para onde ir. Agora, a água que está correndo está viva
porque ela tem movimento, ela vai pra todo canto (sr. Fred Fulni-ô, ancião e
especialista no yaathe).
I kone thliman khia, I ho khiakahe yake fekhlaxkya sato eethe susoma txfalte. Nema
nekawde ke I satkhalaykya nokase de yaathelha ke. Nema i tiaman hle, i ho khiaka i
thokhethanelha sato nanisene sato lay, tha tole. Toosedey, tatxhante, tha lkinte
thooman, djo khiaka tha tole. Se takewa tsote thookhiakke. Neknay hle, fekoman hle,
ya nankya owa ooya teeke txay fthone ewlidjonkya taka salkinte. Nema I tookhethane
ke I neka hle de. “- I as, kane, efnixi txay fthone kinse!” Nema hle: “- Unke,
yaadedwa? A winkya teka, mahe?” “- I wiidode. Kane! Fnite!” E fniman hle txhutsa
txay sate ooya teeke. Ama ekhde? Txhuuuuu… Nema hle: “- Senenkya hesa, ka!
Awtsa txayhe ooya txtxoso, ooya tookhethane, tha nesse. Awtosa, ama kefe?”
Newde hle yooka hle de isa itho tole nede I tookhethane nanisene sato tole lahele
fulikha tuy, ama kefe? Nema ufa ya txman ta i tookhethane nanisene ya kuldjohe fdate
fulikha ke. Sade. “- Exideytowa tha txinexi sato.”
Nema yooka. Ixtola senenkya lulnite. Yooka hle. Ufa ya tximan hle, itsa tkooka hle
de fowa dotkane ooya teeke. “- Kanin!”
Teeke totdowa fthowa kexa, oya teeke. Nema ta sakhoho nolneman hle txay kui ke.
Ta futxkya txay fthone ooya teeke. Neho teeke hle txidjo nendowa. Nema ta sa tkhatxi
fdaka hle de txhua fowa sato teeke, tkodowa etwa fthowanay teeke tkookake txidjo
futxti. Nema e tkhatxi hle, ta nelha hle de yatookhethane nanisene sato: “- Ta i ufa,
ooya teke. I tkhatxi yeekhdedekase. Nema ufa teeke txay fthone kui ke futxkyase de.”
Nema nekdey itookhethane nanisene sato neka: “- Ooya txtxososehe, kawa, a kui ke
futxidonkyase.”Newdehle ya tkya hle de ya txidjo sato lay. Ya tximan hle i
tookhethane nanisene ekhaykya hle de. Khlokman hle ta ya tosnewka hle de ya khofle
sa tole. Sakman lelnete ya xkya hle de. Khlokman hle ta ya tosnewka hle de ya khofle
as tole. Sakman lelnete ya xkya hle sa tole, ya keete. Newde ta sehe sdowa txhone.
Etxkya hle de dokexkya fthoneke txhua sehe sdowa etxhuante. Nekadjoke take sexne
khante. Nekadjoke yasdey ta koka hle. “- Was a athe xinexitowa!”Ya keesesde, ya
txkya hle de sa athe xnete. Nema Wake nedwa dehe ooke fulinse de dehe, awtsa txay,
awtsa txaine, ya fenkhettotwalha sato exine khiaka. Fathowa nelha khiaka, setso
fathowa sa thwa holhake neso te, nese thwalha khiakke noman khiaka foente txidjo
268
sato de teetxonelha khiaka de. “- Totte tetdowa khofean? Ama ekhede? Nema eekhde.
Txiane.”
***
Depois nós fomos com meus parentes e com minhas avós também para o rio, está
ouvindo? Então quando nós chegamos lá minha mãe fez a gente procurar o que comer
no rio. É verdade. "- Chame os seus irmãos!"
Então nós fomos. É uma história curta. Nós fomos. Quando chegamos lá, meu parente
entrou no meio da pedra dentro da água. Foi difícil para ele sair. "- Cuidado".
Dentro estava um pouco seco, dentro da água. Então ele passou a mão no peito de
uma mulher. Ele pegou em uma mulher dentro da água. Ali dentro havia muito peixe.
Aí ele saiu procurando aqueles que entram nas pedras, os que entraram na craibeira,
para pegar esses peixes. Aí quando ele saiu, ele disse às nossas avós: " - Eu estava lá
dentro d'água. Eu não sei como eu saí. Lá dentro eu peguei no peito de uma mulher.
Aí minha avó disse de novo: "- Foi a Mãe D'Água, meu filho, a que você pegou no
peito. Daí nós voltamos com os nossos peixes. Quando nós chegamos, minha avó já
ia fazer a comida. Quando ela cozinhava, ela nos juntava para comer com ela. Quando
estávamos juntos nós ficávamos alegres com ela, comendo. Depois ela trazia imbu
verde. Ela chegava com aquele imbu verde espremido no prato, depois ela botava
açúcar em cima. Depois ela dava a todos nós. “- Adocem a boca de vocês!” Depois
que nós comíamos, nós ficávamos com a boca adoçada. Então eu estou contando para
vocês aqui a história do rio, dessa mulher, essa mulher, que os nossos antepassados
contavam. Um índio contava, um índio gostava de andar por conta dela, dizia que era
porque gostava quando ia pescar e trazia muito peixe. “- O que ele fez para isso? Você
sabe? Então sabem. Embuzeiro. (Etnohistória registrada em: SÁ; et al., 2018, p. 40-
7).
Alguns dos elementos ditos como “naturais” do território Fulni-ô são corporificados e
personalizados, descritos como entes extra humanos que passam por questões diversas em suas
interações com os humanos. As serras têm grande valor como a dos Cavalos e a do Comunaty,
descritas em histórias como espíritos de antigas índias que foram enterradas com palhas, mas,
que após a morte saíram das suas covas e retornaram à vida tendo o seu corpo a forma das
serras. Da mesma maneira, registrei mais memoriais coletivas em torno das entidades e das
localidades, que para além de um espaço de paisagem estática ganha vida e movimento aos
sentidos Fulni-ô.
269
Eu criei está canção principalmente para os meus alunos, na intenção deles levarem
aos pais deles para falar sobre o que acontece nas serras... essas queimadas que tanto
prejudicam a gente, o nosso trabalho e o nosso ambiente. Porque as serras e as plantas
do ouricouri são muito importantes pra nós. Então, eu fiz a letra dela né?! [da canção]
para as pessoas entenderem. Aí a música é como se fosse a serra falando, mas é uma
entidade viva pra nós, que nós entendemos assim: aí ela fala ei vocês, olhem para
mim, parem de me queimar, vocês não estão vendo como eu sou importante?! Eu sou
tudo para vocês!
[...] "através de uma simples letra as pessoas começaram a cantar ela na escola e em
casa, aí os pais ouvem também, agora, desse jeito, todos vão saber o que a Serra está
nos falando, que nós precisamos cuidar dela, olhar para isso que estão fazendo e
resolver! Você percebe que na música ela faz um pedido de socorro, porque cada vez
mais, cada ano que passa ela é queimada". (Professor indígena Ediraldo Torres/
Maktxo, em sua casa na Aldeia Sede, agosto de 2018).
Quadro 6- Música do compositor indígena Maktxo Fulni-ô/ Ediraldo Torres, escrita em yaathe e traduzida para o
português.
Foowa Serra
Footui ya, kil’nilhaxto yéf’nite fowa takatxtxohle, Ergamos nossas cabeças para à serra, para vermos a
yatate txhuf’nik’ke tha xiukahle take, toê hesa tãte, situação em que se encontra à serra, por termos
txhanutosa fowanehe thiti hãsa dodwanelha eefeka comercializado a mesma, agora estão ateando um
taí, ekhedehõkyake yasetsõdowa lha sato nek’ke ta grande fogo nela, aquela serra não sem valor, nós
faunelhaka, itxhwiwaxtõnã! Toseke ikekya tha toê nativos quem sabemos o valor que ela tem, por isso
khãte ithalhauke? Oso lhawsa wakhlweso lha. que ela grita: socorram-me! O que foi que eu fiz
Sesto Fulni-ô, f’nika yõnexto inese, txhwtsa fowane para colocarem fogo em mim? Eu sou aquela que
yafekhet’totwase tha tatxa fooke saxinelhaka lhes alimenta, e que lhes dá de beber.
270
mak’se. Txhanutosa fowanehe thiti hãsa Nativo Fulni-ô, preste bem atenção a isto que estou
dodwanelha eefeka taí, ekhdehõkyake yasetsõdowa falando, naquela serra viveram todos os nossos
lha sato nek’ke ta faunelhaka, itxhwiwaxtõnã! antepassados, lá está guardada toda a nossa história.
Toseke ikekya? Tha toê khãte ithalhauke? Oso Aquela serra não é sem valor, nós nativos quem
lhawsa wakhoflesolha, wakhlweso lha. sabemos o valor que a mesma tem, por isso que ela
grita: socorra-me! O que foi que eu fiz para
colocarem fogo em mim? Eu sou aquela que lhes
alimenta, e que lhes dá de beber.
Fonte: Ediraldo Torres, 2019.
No caso Fulni-ô é possível identificar práticas especificas em torno destas questões que
indicam um campo de interações entre espécies e com o mundo sobrenatural, através da
formação da noção de pessoa pelo “rito do ouricouri” que desenvolve um conjunto semântico
em torno de plantas - do ouricouri, juazeiro, imbuzeiro - que representam “troncos” e
conhecimentos dos “antepassados”. Desta maneira, comunicar-se com tais sentidos através do
“rito ouricouri” e ser falante do yaathe se tornam atributos essenciais na formação da pessoa
(setso Fulni-ô), que ao relacionar símbolos, pessoa, comunidade e vegetal desenvolve uma
perspectiva ameríndia nordestina singular. Tais questões do Nordeste indígena retomam o
diálogo da continuidade de um tempo mítico e originário em que pessoas e vegetais assumem
um mundo compartilhado com comunicações, formas, roupas e condições próximas, que,
inclusive, são formas comunicativas com uma continuidade transformada. Na época da “Festa
da Santa” em 2019, a professora indígena Marilena A. de Sá realizou uma “palestra” para narrar
como os índios deveriam permanecer com os ensinamentos dos “antigos” destacando o inicio
de um diálogo e formação de equivalência cosmológica.
[...] só que nós nunca mostremos e nem nunca dizemos ao povo como é que nós vê o
próprio Deus, e nessa questão do catolicismo houve uma distorção nas comunidades
indígenas que até e os próprios índios foram tão sábios na inocência deles, que quando
eles foram induzidos a encontrar uma imagem da Nossa Senhora da Conceição na
pescaria deles, eles pescando, eles não sabiam identificar que mistérios seria aquela
99 Tais mediações são descritas por antropólogos que buscam traduzir as maneiras em que o mundo social é
refletido e construído ao apontar o ponto de vista nativo e como ele interpreta o seu mundo (WAGNER, 2012
[1975]). Obviamente, tais questões permeiam a construção da pessoa (SEEGER; MATTA; VIVEIROS DE
CASTRO, 1979) o sistema ontológico da cultura e as teorias que constroem um mundo centrado nos sujeitos sob
os códigos da enunciação (BENEVISTE, 1989; VIVEIROS DE CASTRO, 1996, 2022).
272
Eles acreditaram que Nossa Senhora da Conceição estava ali por orientação dos
catequizadores e missionários, eles acreditaram, só que eles tinham conhecimento
de uma divindade do imbuzeiro, eles tinham conhecimento de uma divindade de
uma lagoa, eles tinham conhecimento de uma divindade misteriosa a qual os
catequizadores fizeram eles acreditar que a imagem de Nossa Senhora da Conceição
era um ser encantado porque no que eles encontraram na imagem de Nossa Senhora
da Conceição... e de lá com poucos dias ela desaparecia, não ficava lá na cabana com
eles, e eles ficavam lá naquela inocência, porém com uma sabedoria muito nata,
porque a sabedoria dos índios não era ensinamento de bíblia, não era ensinamento de
igreja… nunca foi ensinamento de nenhum profeta, eles tinham os profetas deles e
eles se consideravam eles mesmos profetas...
então eles foram acreditando que essa imagem dela desaparecia, só que eles no
momento do desaparecimento da imagem, e enquanto o missionário estava agindo
talvez com gestos de maldade e eu não duvido que foi … porque foi através dessa
imagem de Nossa Senhora da Conceição que o território chamado de Ipanema, porque
antes não tinha Águas Belas, não tinha nome, era Ipanema, ipa- nema... porque os
indígenas dessa região percorriam essa região e qualquer local que eles chegassem
eles estravam em Ipanema, ipa quer dizer pedra e nema… ipa -nema... pedra forte,
pedra que fortalece, pedra que fortifica à nós... que o branco começou a transformar e
nomear
(Falando em yaathe)
divindade que na crença deles existia de outra forma eles tinham perdido o
idioma, eles tinham perdido a língua, os princípios e os conhecimentos, porque
eles iam seguir apenas os ensinamentos da igreja católica dos padres dos
missionários…
e eles fizeram que acreditaram, conseguiram e até hoje ainda eles verem isso, só que
era preciso... não os brancos, os índios saberem desses princípios e como foi que os
índios viram Nossa Senhora da Conceição e passaram a acreditar nela, porque se eles
tivessem acredita nisso eles iam seguir a bíblia, os padres e as leis de Deus (Marilena
A. de Sá, professora indígena, Aldeia Sede, fevereiro de 2019 [grifos do autor])
Tais questões foram abordadas diante de muitos questionamentos acerca das relações
dos Fulni-ô com seu território e a ideia de “ancestralidade”, concomitante quais as formas de
preservar uma noção de perenidade étnica. Sob tais questões um interlocutor mencionou que
“o espírito dos Fulni-ô morre ou se perde quando ele perde a língua e perde o yaathe” (Maktxo
Fulni-ô/ Ediraldo Torres, professor indígena), ao destacar tal afirmativa que lida diretamente
274
com a noção da pessoa (setso Fulni-ô) através dos atributos para a constituição coletiva, a
professora indígena mencionou o seguinte:
a gente fica sem espirito pra conduzir a nós quando nós estamos sem o nosso idioma,
porque na língua de branco a gente não tem condições de adquirir esse espirito que é
forte, que pesa, que cura, que domina todos os tipos de fracassos da nossa carne e do
nossos desejos materiais, sexuais e qualquer tipo de desejo... sem o idioma a gente
não pode controlar, a gente só pode controlar ele se a gente tiver o idioma, porque
quando aprendi isso quando criança tive muito medo de nosso povo chegar como
estamos hoje, com o número de jovens e crianças sem o conhecimento de buscar essa
forca, se materializando com coisas que enfraquecem… dinheiro, bens materiais
supera essa riqueza suprema? Nenhum dinheiro, não existe ... se você não tem seu
nível de espiritualidade dentro dos princípios sagrados do avo e bisavô, você não será
feliz, mas se você cumpre e obedece aos espaços sagrados e o conhecimento da
ancestralidade, você pode ocupar os espaços do homem branco e ser médico, juiz,
advogado, o índio pode ser tudo isso sem ele deixar de ser índio.
Porque no momento em que ele sai dos princípios dele, ele tem a consulta dele porque
na consulta ele cura, ele descobre doenças, remédios, formas naturais de curar um
doente, pode ser em qualquer nível, na psicologia, sociologia, um médico ou um índio
… se eu for psicólogo ou médico e for curar uma pessoa com problema psíquico eu
nem uso a forma do branco eu vou atrás do índio... o medico índio sabe onde está a
busca da resistência espiritual e esquece da caneta da medicina porque ele faz uma
cura com a palavra ... (Marilena A. de Sá, professora indígena, Aldeia Sede, fevereiro
de 2019).
Ao seguir tais afirmações, a “cura com a palavra” aponta para uma construção
sociomoral do yaathe como uma forma de comunicação essencial ao índio Fulni-ô que é uma
resistência aos eventos de dominação histórica e demonstração de singularidade étnica. Neste
caso, é uma forma de comunicação privilegiada que revela ao índio formas de articulação de
um mundo fundamental e englobante, assim o índio Fulni-ô revela uma estrutura histórica e
performática, onde segundo Fausto (1992) – influenciado por M. Sahlins – a estrutura de poder
depende do evento, das circunstâncias e das ações criativas dos acontecimentos, logo, o caso
Fulni-ô demonstra um conjunto de noções em torno das formas comunicativas que criam
possibilidades aos índios sob a obrigação de realizar uma formação estritamente indígena por
uma constituição linguística e da participação social do “rito ouricouri”. Foi destacado que a
interação ocorre por meio de uma compreensão cosmológica de um mundo possível: os clãs, a
iniciação e os ritos de passagem, a nomeação indicam possibilidades de criar e preservar um
mundo, onde a comunicação multi-sensorial com o mundo extra-humano dita as faces da
existência e inclusive os aspectos da saúde individual e coletiva a partir do cumprimento das
“obrigações”. Como vimos anteriormente nas referências etnológicas, na iniciação Fulni-ô a
275
Um dia desses escutei de um professor indigena (Maktxo), ele disse... A língua yaathe
era a língua do espirito e quem não soubesse o yaathe poderia estar com o espirito
morto, quem já viu o espirito morrer? a nossa língua, ela é espiritual, no que ela
desaparece não nos sabemos qual é o nosso rumo” (Marilena A de Sá, Aldeia Sede
fevereiro de 2019).
troncos antigos, ensinamentos” e todo um modo de ser que compreende na vida vegetal uma
proximidade com a “ancestralidade”. Perder um dos atributos da pessoa é uma perda indenitária
irreparável onde se poda as formas de comunicação e entendimento da ancestralidade em até
mesmo ouvir, dizer e ser o que os antigos já comunicavam. Daí a necessidade do Povo Fulni-ô
zelar tanto pela continuidade do yaathe, pois além de ser atributo essencial do setso, a língua
cria formas privilegiadas para uma comunicação “espiritual”.
Figura 18- Aricocó: objeto mágico utilizado com tabaco e mais plantas para fazer “fumaça”, “defumações” e
comunicações sagradas extra-humanas, registrado na “reserva” Canto dos Guerreiros, na Serra do Comunaty,
Aldeia Sede, fevereiro de 2019
há uma forte ligação com a “ancestralidade”, Makairy Fulni-ô afirmou que foi emocionante ver
um ancestral em comum com seu povo que tem ligações indígenas, mas, que para além disso
ele é um ancestral de todo o povo brasileiro.
Figura 19- Desenho representativo de uma” flauta” de tíbia humana com detalhes de fibra vegetal ao seu redor e
próximo ao furo do instrumento. Artefato associado a um dos sepultamentos do achado da Furna do Estrago, Brejo
da Madre de Deus, PE.
a intenção de assustar o inimigo. Ainda que seja difícil realizar qualquer generalização das
práticas dos aerófonos é possível destacar deslizes semânticos e combinatórias culturais através
dos relatos e demais trocas históricas (IZIKOWITZ, 1935; PINTO, 1956)
Wittmann (2011) realiza um importante estudo histórico em torno da música nos sécs.
XVI e XVII na Costa, na Amazônia e no Sertão brasileiro, detalhando os objetos musicais e os
seus aspectos sagrados para os ameríndios e diabólico aos missionários100. De modo mais
plausível, a autora destaca que a música se tornou um instrumento de aproximação ou
afastamento, sendo a sua demonização ou elogios consequências das relações estabelecidas. No
que se refere aos Sertões (como já destacado), os Tapuias - foram classificados de modo
ambíguo em torno da complexidade e diversidades socioculturais, segundo os registros
conferidos por missionários (ainda que existam poucas informações e resumidos detalhes) nos
povos Payayá, Moriti, Kariri foram notadas diferenciações dos usos das flautas e dos cantos, e
seguindo as interpretações de C. Pompa do difusionismo de práticas, “a festa de Eraquizã/
Varakidran/ Arachizâ” foi notada como “o ritual Tapuia por excelência” (ibid., p. 233).
Wittman (2011, p. 225 -240) diz, ainda, que no geral as flautas para os Tapuias a depender de
cada sociedade eram feitas de ossos humanos ou de animais e ganhavam mais importância do
que o canto (tão valorizado pelos missionários), pois com o poder de se comunicar com as
entidades por meios dos especialistas (pagés) ganhavam notoriedade sobrenatural. Além dos
fatores mencionados, a autora destaca no contexto de catequese portuguesa um cenário de
transculturação musical, aonde determinados elementos se fundem, enquanto outros
resguardam as matrizes ameríndias como: o maracá e as flautas indígenas.
As flautas indígenas - e demais instrumentos sonoros que fogem a classificação de
“flauta”, mas que tem funções rituais - são entendidas dentro de cada contexto etnológico como
elementos que têm atribuições ligadas aos costumes ameríndios, sendo um alto marcador de
contraste e identidade (como vimos no relato anterior). Pois, ainda que os costumes Tapuias
sejam de difícil distinção é notada uma série de práticas particulares entre grupos sociais e
coabitações como notado acima. No entanto, torna-se impossível compreender a completude
100
Vale mencionar que segundo os registros disponibilizados por Wittman (2011) através de relatos jesuítas, foi
destacado que as práticas cosmológicas Tapuia tiveram grandes repercussões e variedades, se o uso de flautas já
serviu para receber os religiosos colonizadores nos aldeamentos dos sertões, ela também foi demonizada tendo
seus locais sagrados queimados como a Aldeia de Jerû que foi até meados do ano de 1692 um importante ponto
de encontro ritual. Tal aldeia que futuramente se tornou pertencente a aldeia dos grupos Kariri teve um significativo
conflito quando um jesuíta destruiu uma cabaça e queimou as flautas sagradas, tendo repercussões drásticas aos
índios que interromperam negociações e alguns até abandonaram a aldeia (WITTMAN, 2011, p. 235). Através
destas menções e pelo que se segue nos registros os indígenas começaram a tornar cada vez mais a prática reclusa
ao realiza-la no mato e escondida em locais secretos.
283
das linhas de continuidade desta prática no Nordeste indígena e as demais trocas simbólicas
existentes, visto que um dos principais estudos acerca do tema ocorreu apenas na década de
1930 com a Missão das Pesquisas Folclóricas. Por conseguinte, coube aos estudos folclóricos
dos modernistas a tentativa de acompanhamento da pluralidade das expressões e práticas
materiais. Mário de Andrade, Luís Saia, Martin Braunwieser, Benedicto Pacheco e Antônio
Ladeira merecem destaque pela organização e excursão da Missão das Pesquisas Folclóricas,
que foi precursora nos estudos das expressões populares e indígenas, tendo como eixo os
aspectos tangíveis, materiais e sonoros das culturas. Na pesquisa foram encontrados búzios
entre os Pankararu cujos posteriormente “perdem” este costume e decidem resgatá-lo em suas
expressões (como veremos a seguir). Portanto, uma série de indagações surgem quais são os
sons existentes e os seus sentidos? quando são executados? quem executa e o por quê?
Existem diferentes retóricas acerca das “flautas sagradas” do Nordeste, as quais são
consideradas “originárias” e “tradicionais” através de sua vinculação e continuidade da matriz
ameríndia e características ao representar a cultura autóctone. Os projetos de “preservação”,
“revitalização” e “retomada” dos povos indígenas no Nordeste utilizam de entendimentos da
perenidade e “ancestralidade” para expressar sua ordem cosmológica através da performance.
O “búzio, o pife, a gaita e a maracá” por sons e “pisadas” organizam o mundo da vida indígena
embaralhando e desembaralhando símbolos. A performance também revela uma ecologia
musical que ao ligar culturas e naturezas diversas mostra a face humana através de elementos
vegetais acionando dramas e lutas cosmológicas. Neste sentido os materiais, técnicas e saberes
em torno destes instrumentos sagrados expressam ordenamentos sociais, organizações míticas
e políticas. Por ecologia musical considero o processo de aprendizagem em um território
específico que constitui a noção de eu junto com suas relações coletivas, a partir de práticas de
extração de plantas e recursos naturais que permitem a fabricação de instrumentos e fontes
sonoras que criam interações, performances, ritos, ritmo e, deste modo, dinamizam os sentidos
da existência humana de um dado grupo social101.
Vejamos um caso concreto no Nordeste, Souza, Tomáz e Santos (2018) - a partir da
ecologia humana e da ecologia sonora - realizaram um estudo interpretativo na performance
ritualística do toré Tuxá através de materiais arqueológicos na tentativa de formular mapas
acústicos sonoros e uma estrutura de representação da comunicação oral. Em outras palavras,
101
Tal formulação é inspirada na ‘ecologia sonora’ de Murray Schafer, que busca aguçar os sentidos da audição e
estudar os efeitos do ambiente acústico, das suas consequências físicas e comportamentais nos seres humanos
através de um estudo em torno dos sentidos sonoros das culturas. Também, há uma influência da obra organizada
por J. Marques (2012) – Natureza Sagrada: ensaios de ecologia humana.
284
tal estudo propõe compreender como os indígenas interpretam suas ligações musicais e
territoriais com os “antepassados” através de mapas afeto-cognitivos tendo a música um
primeiro plano nas categorias de análise. Segundo os autores (ibid.) os materiais de adornos,
flautas e apitos encontrados nos sítios arqueológicos do Nordeste revelam uma relação
histórica-cultural-arqueológica da presença autóctone e de comunicação sonora com o mundo
encantado. O Toré Tuxá entoa cantos – Lêiandôa - na língua indígena “Dzubukuá” que
remetem à ciência do povo e sua forma de efetivar uma comunicação que se vincula à filiação,
aos afetos e as memórias em torno da totalidade da vida Tuxá.
Por sua vez, Menezes (et al., 2016) – na ecologia musical do som do osso – descreve
desde os registros arqueológicos iniciais das “flautas” e principalmente do “pife” no Nordeste,
que, embora suas materialidades permaneçam pelos “achados”, as representações sonoras são
elementos perdidos no tempo. As flautas são geralmente descritas como formas de mimetizar
o som dos pássaros, do vento e das furnas. Por isso, entende-se que tais instrumentos eram
mecanismos de comunicação com o ambiente e espaços territoriais que formam uma
territorialização do meio, da técnica, expressão e ritmo. É possível apontar que tais formas de
apresentar estão presentes na atualidade através de técnicas corporais e demais, portanto,
reproduzir o som dos pássaros nas performances indígenas é uma expressão da territorialização
e do conhecimento do que lhe envolve.
Ainda que não foram encontrados registros arqueológicos musicais de longa
continuidade na T.I. Fulni-ô, as flautas têm uma atenção especial nesse trabalho, pois na
memória coletiva Fulni-ô há uma continuidade da pratica na etnia que resguarda um importante
“tradição” pelo “toré de búzio”. Ademais, é possível etnografar um conjunto de representações
e técnicas em torno destes instrumentos como veremos adiante. As flautas sagradas do “búzio”
têm características de aerofones (GONÇALVES, 2008) e são instrumentos de sopro
classificados como trompetes por terem na sua fonte sonora uma coluna de ar, cujo som é
produzido pela vibração de uma paleta que ressoa no tubo pelas técnicas de sopro do
instrumentista. A obra de destaque sobre os instrumentos musicais indígenas é de Izikowitz
(1935), que, ao estudar as tribos da Guiana e algumas ao longo do Amazonas descreveu o “Toré
Clarinets”, classificando-os como clarinetas idioglóticas (SANDRONI et al., 2005).
Recentemente, Beaudet (1989) realizou um estudo abrangente acerca das flautas e dos
instrumentos sonoros, caracterizando duas áreas de origem e circulação em torno dos objetos,
apontando três modalidades: chaco, turé e polyanche, que, têm em seus conjuntos sonoros
execuções pelos critérios seguintes: “solo, em par, orquestras em uníssono e orquestra em
285
102
A flauta dos Xucuru assume diferentes grafias na literatura antropológica (memby, mibim), a qual era tocada
apenas por “um índio antigo”, que também teve a sua revitalização por um jovem Xucuru na “Festa de Reis”.
286
Figura 20- Descrição da formula rítmica no ano de 1938 do toré Pankararu, sistematizada por Carlini a partir do
diário de Martin Braunwieser (pp. 30- 35) - músico e pesquisador da Missão das Pesquisas Folclóricas.
Figura 21- Transcrição registrada por Nascimento (1998, p. 178) – Transcrição musical 5, toque dos búzios
acompanhado da marcação do maracá (versão 1).
103
O segundo registro da retomada Pankararu do “toque de búzio” pode ser conferido em:
<https://vimeo.com/21832572>.
288
Segundo Athias (2016), os Fulni-ô entendem o Toré como um objeto, música e dança,
sendo a sua execução uma certa rememoração da visita do criador e uma homenagem no
presente dos seus antepassados. Pois, quando os Fulni-ô executam o toré eles revivem
miticamente sua história, o local do índio na sociedade e de um regime de alteridade, que, por
gestos, sons e sentidos ressalta a ideia de que o índio é originário desta terra, conforme
demonstra a narrativa a seguir.
Piedade (1999, 2006, 2011) têm publicações pertinentes e significativas sobre aspectos
identitários, cosmológicos, nos papeis sociais e funções de gênero entre os Kamayurá, Wauja,
Tukano no campo do Complexo das Flautas Sagradas na área cultural do alto Xingu e noroeste
amazônico. Destarte, existem diferentes complexos culturais e particularidades na temática
torno das flautas sagradas que ligados a uma ecologia musical evidenciam saberes territoriais,
normas sociais e interações entre humanos, espécies vegetais e animais. De modo geral, tais
pesquisas assumem como eixo transversal apontamentos acerca das organizações de
autoridade, gênero, hierarquia, aprendizado (dom) e sociabilidade. Mello (2013) descreve a
mitologia dos indígenas Desana, acerca de de Yurupari o dono das flautas sagradas, do Alto do
Rio Negro com suas implicações práticas e de poder nas relações de gênero cotidianas.
Logo, estariam os grupos de aerofones no Nordeste apresentando correlações
semelhantes com demais povos? A citar relações de autoridade? Separação entre gênero?
Ocasiões especiais? Proteção ou feitiço? Como se fazem estes instrumentos? As fitas e
embrulhos dos “búzios” Fulni-ô surgiram como uma adaptação a visibilidade do instrumento
ao público? Em um grau comparativo, o caso que parece se assemelhar ao caso Fulni-ô se refere
ao uso dos aerofones como poder de fabricar ritualmente a pessoa (setso Fulni-ô) no “rito
ouricouri” e na sua formação diacrítica com a sociedade nacional. Os registros etnológicos (já
mencionados anteriormente) de Boudin (1949) sobre a iniciação no “rito ouricouri” reforça a
hipótese interpretativa que aponta para um importante papel dos aerofones na fabricação da
pessoa no que hoje poderia estar dentro do toré secreto, por outro aspecto, o toré público tem
como objetivo organizar e definir os papeis sociais do “índio e do branco” ao apresentar
diacriticidade.
O que certamente há de singular no Nordeste indígena é que as flautas sagradas, o
mundo vegetal e o toré assumem uma estreita relação em torno de alguns significados,
reelaborações e criatividades socioculturais nesta região. A mediação dos mundos (do cotidiano
e do sobrenatural) ocorrem pela interferência destes elementos. Entretanto, até qual ponto esses
elementos se unem e se separam nos regimes da tradição e das práticas religiosas do particular
dos grupos étnicos?
Na esfera da musicalidade está contida o acúmulo histórico de interações entre indígenas
e regionais, as quais atualmente se inserem em movimentos de adaptação local. O campo de
atuação da performance comunica conflitos territoriais, relações socioambientais, animais que
estão ameaçados de extinção, assim como uma linha continua de ancestralidade (como
demonstrado nas cafurnas em anexo). É desta maneira que a música de sentido comunitário
290
tradicional ganha um destaque particular que não se vincula a atender apenas ao genérico da
indianidade e ao mercado da sociedade do espetáculo (DEBORD, 2003 [1967]). Ainda assim,
notam-se transformações nas lógicas, ou, uma busca indígena de inserção no campo econômico
das artes e de uma economia cultural artística que representa o índio através dos elementos da
sua “cultura” e “tradição”. Através desta passagem e da comunicação (do local ao nacional) se
encontram transformações e aberturas cultuais do cenário da comunidade para atender o mundo
do espetáculo. Para tal, descrevo a compreensão do fazer musical e as ligações territoriais que
estão atreladas a tal prática dos Fulni-ô, junto ao movimento de preservação da tradição em sua
sociabilidade musical.
não o registrou em mais entrevistas por ninguém da aldeia (NASCIMENTO, 1998, p. 96). O
nome conferido pelo antigo pajé é semelhante ao outro instrumento do toré, pois tsaka é
referente a maracá no yaathe.
Os Fulni-ô nada dizem sobre o “búzio”, mas nas poucas conversas possíveis resta uma
sensação de que há alguma ideia animista ao performarem animais da caatinga e movimentos
dos “troncos velhos” pela imitação dos animais dos clãs. Segundo contam, em sua coreografia
dançam como os animais e se sentem bem assim. O estado do seu transe é provocado pelas
técnicas de movimentos corporais, entoações, técnicas rítmicas e pelo êxtase do evento em si.
Seriam estes movimentos acessos aos clãs? Não sabemos. De todo modo, a sua expressão
parece englobar a junção de ritmos, melodias, gestos, cantos, samba de roda, instrumentos e
modos indígenas que expressam a organização em um campo de interações.
Segundo a literatura e a realidade empírica na pesquisa de campo, existe um modelo
especifico de “búzio” considerado como o “tradicional”, sendo aquele elaborado com bamboo
ou cana da índia que tem o seu corpo coberto por alguns tecidos, fitas e um laço, impedindo do
instrumento ser visto pelos demais curiosos. Entretanto, o corpo do búzio que serve como
amplificador do seu som também pode ser feito com o cacto facheiro, canela de veado, pinhão,
cana da índia, bamboo, sabugo de milho (maltyi-tekodo) e até de PVC. Tudo dependerá qual a
finalidade do instrumento (veremos a frente este tema), eles podem ter o tamanho variado de
1m - 1,2m, ou, até mesmo 2 m, tendo uma pequena variação de acordo com a intenção do uso.
Uma série de materiais são usados para confeccionar o instrumento: madeira, bamboo, palha,
cera de abelha, borracha, cola branca, tinta. A paleta é feita por pedaços de taquari (tyityinewa)
uma espécie de bamboo da região que é cortado adequadamente com amarração e cera de abelha
(arapuã, irapuã). Por ser um instrumento feito tradicionalmente com um corpo único e o
encaixe de alguns materiais, os modelos semelhantes registrados etnograficamente também já
foram comparados com o clarinete, sendo reconhecidos como os “turé clarinets” (IZIKOWITZ,
1935), devido a particularidade da paleta do instrumento e do ressoar do seu corpo.
Possivelmente, os búzios foram comparados com o clarinete ocidental pela sua organologia e
aplicação da paleta. Entretanto, o som do clarinete é produzido pela pressão do sopro e dos
lábios que apertam o bocal e a paleta do instrumento a fim de permitir a sua vibração em cada
nota pretendida. O “búzio” tem uma particularidade, pois o torezeiro não põe a boca
diretamente na paleta, sendo a vibração do “búzio” provocada pelo sopro que através da coluna
de ar do bocal do instrumento causa a vibração da paleta que produz a sonoridade. O som do
292
“búzio” basicamente ocorre pelo sopro do torezeiro em seu bocal, que ocasiona a vibração da
paleta que tem seu som amplificado pelo tubo oco.
A maracá (tsaka) é feita pela junção de alguns materiais, basicamente é fabricada a partir
de uma cabaça (ou coite) oca, seca e raspada com sementes (meru, mulungu, olho de pombo,
chumbinho de pesca) em seu interior proporcionando sua fonte sonora. Também se utiliza de
um bastão de madeira atravessado e fincado na cabaça que é colado com cera, amarrações de
vegetais e cola. Alguns pequenos furos são feitos para seu som ter maior abrangência, as
pinturas e amarrações variam conforme os padrões, mas são feitos com tinta acrílica, fio
encerado e palha de Ouricuri. Alguns desenhos são feitos sendo o mundo animal uma fonte de
inspiração criativa para os padrões indígenas. Durante o trabalho de campo, encontrei diversas
famílias que trabalhavam em uma agricultura familiar que plantavam cabaças para revenderem
dentro da aldeia e até mesmo fazer a confecção das maracás dentro de casa para
comercializarem em feiras e eventos.
O pife também merece adentrar na classificação dos instrumentos indígenas já
pertencente a “tradição Fulni-ô”. Pois, como demonstra os relatos de Manoel de Matos (Mestre
Matinho), os “índios antigos” também tinham esse conhecimento guardado ao longo do tempo.
Segundo Mestre Matinho tradicionalmente “o pife do índio é aquele feito do mato”, desta
maneira o pife feito de taboca é um instrumento que também perpassa gerações e um fazer
musical que envolve uma série de adaptações contextuais. Atualmente é possível encontrar
muitos instrumentos feitos de PVC, sob o argumento de que seus recursos já estão demasiados
escassos para a retirada constante de vegetais para fabricação de flautas. Em uma consulta no
dicionário de yaathe, elaborado por Sá (2014), é possível citar uma série de termos que remetem
a organologia Fulni-ô, como: flauta/ pife (ulili), flautista (ulililkya), flautista (ulililho), canudo
de taquari (titinewa), trêmulo (titi), tremedor (titineka), maracá (tsaka) que são utilizados pela
comunidade. Tais registros demonstram uma série de termos oriundos da língua materna que
evidenciam uma série de saberes etnolinguisticos e etnomusiclógicos que operam um modo de
ser singular e de fazer “música”.
Sob o tema das imagens do “búzio” e do toré há uma complexa relação sobre a
divulgação, produção de ilustrações e demais, em muitos casos, os indígenas se negam a
comercializar quadros, ilustrações e fotografias do “tolé”, sob a alegação de que quebrariam as
ordens do “sagrado”. Porém, com a variedade de narrativas e respostas compreendi que tal fator
também depende como cada indígena internaliza a “tradição”, enquanto uns se negavam
mostrar qualquer imagem decretando um “segredo”, outros me levavam às casas que tinham
293
quadros expostos do toré indígena sendo realizados no terreiro do Ouricuri e até perguntavam
se que pretendia compra-lo. No que se refere as representações dos instrumentos, Nascimento
(1998) elaborou uma ilustração do búzio e da maracá Fulni-ô, sendo a representação mais fiel
que existe até o momento104. Com a intenção de somar apontamentos etnológicos criei uma
representação ilustrativa vetorizada paralela ao caso, apresento a seguir um quadro
representativo dos instrumentos (pife, búzio e maracá).
Figura 22- Ilustração vetorizada do "pife Fulni-ô", a partir do modelo do Mestre Matinho e dos “pifeiros” da
família Matos.
104
A paleta simples de bamboo é encaixada em um corpo de madeira (oco ou não), que, quando soprado faz um
som similar a uma corneta. No gráfico de Nascimento (1998, p. 99), ainda que a representação esteja com tamanha
qualidade de precisão, ao meu ver a paleta ilustrada se torna semelhante aos instrumentos ocidentais como:
clarinete e saxofone. Através de uma observação em primeira mão foi possível conferir que a parte da paleta não
é pontuda, sendo apenas uma pequena lasca do bamboo que é cortada e arramada com palha e cera de abelha que
criam a particularidade desta flauta indígena. Este é apenas um pequeno detalhe.
294
Figura 24- Gráfico do “tolê” que ilustra “torezeiros e torezeiras” no círculo de execução e os locais dos
instrumentos (maracás e búzios).
Figura 25- “Toré de búzio” público realizado no Ponto de Cultura Fulni-ô, durante evento de cultura tradicional
das oficinas do Mestre Matinho Fulni-ô, na Aldeia Sede. Na imagem consta o grupo dos torezeiros e torezeiras
que cantam e dançam ao som das maracás e das flautas indígenas
Figura 26- “Toré de búzio” público realizado na “Festa da Santa” na frente da Igreja após a procissão, tal momento
é marcante para os Fulni-ô e aos regionais que formam um público significativo para ver a “dança”. Detalhe para
as “torezeiras” com suas mãos na boca e para os demais participantes que fazem o “tolê” acontecer.
Telson: nós não fazemos o toré por qualquer coisa, tem que ter um motivo. Tem que
ser um assunto de alguma importância, o toré não acontece a tôa [por acaso]. É como
se fosse um jogo... é um acontecimento político. Ele é diferente das cafurnas, pois não
tem aquelas coisas, ele é sério!
Bruno: é a situação que faz o toré!
Telson: [...] você vê o nosso toré, ele é diferente dessas cafurnas que cantam por aí na
aldeia, em que ficam gritando, fazendo simpatia, imitando uns bichos e fazendo
aquelas coisas todas. O toré não tem nada disso, é aquela letra com os instrumentos
que você viu lá naquele dia da festa e pronto. Aí a pessoa canta aquela letra he – a ...
e fica todo mundo vendo... cada um que vai lembrar de uma coisa, não tem algo
especifico, mas ele pra nós é sagrado!
298
Eedjadwa-lha txhokase owa fea-lha-ti Deus desceu/ veio para essa terra
Ta naadowa klehese setsô tkano saftxhatwa pra ver quem foi o primeiro casal de índios
Setsõkya nekase, tohe txhua etxdjowa? A índia disse: quem é aquele que vem?
Eedjadwa-lha nekase wo õõkyake ihia-lha Deus disse: vocês são meus filhos
efewdete saanite wo õõkyake ihia-lha Igualmente a todos
Flithya hesa fthowa-lha efewde flelhakase Uma grande chuva acabou com tudo
Eedjadwa saafitxo-lha te tatixdjone-lha te pra Deus renová-la (a terra)
setsô tkano efẽykyase satxtxo ekhede dosey Dois índios sobreviveram e ficaram perdidos
Eedjadwa-lha nekase wo õõkyake ihia-lha Deus disse: vocês são meus filhos
Efewdete saanite wo õõkyake ihia-lha Igualmente a todos, vocês são meus filhos.
Quadro 7- Cafurna Flithya hesa – Chuva Grande/ Dilúvio (sr. Abdon dos Santos, professor indígena, compositor
em yaathe, criador da Unakesa Fulni-ô)
Segundo Dantas (2012), o canto do toré induz ao transe que revela uma nostalgia,
memória e momento fúnebre de lembrança dos antepassados. O autor ainda ressalta um transe
provocado pelo cântico do toré, que, através do he – ê – a … he – he induzem estados afeto-
cognitivos. Segundo as palavras da índia Marilena A. de Sá: “há o fundo musical da história”,
que significa a relação do cantar com certos eventos do povo e do pertencer dos Fulni-ô que
entendem a letra e a amplitude de suas associações cosmológicas, relatando e produzindo o
compartilhamento de eventos que se refere a realização musical (DANTAS, 2012).
299
O Toré sagrado alinhado a temas catastróficos ainda é lamento de catarse, mas a força
da reminiscência embalada na letra musicada canaliza sentidos e desígnios de outra
natureza. Dança e música do Toré vão constituir instâncias rememorativas atadas a
valores atuais que convém preservar. Dramáticas lembranças tornam-se símbolos
evocativos de elos grupais por manter, como cicatrizes de injustiças ainda por sanar”
(DANTAS, 2012, p. 198).
Dantas (2012, p. 200) evoca que o toré integra a composição do ser indígena Fulni-ô,
pois provoca o efeito solidário e agregativo em um mundo de estímulos e cognições
entrelaçadas. Logo, a pertença Fulni-ô interage diretamente com a memória compartilhada
sobre suas vidas e antepassados, ganhando constantemente vida ao serem recontadas e
recantadas, em especial, ao que parece eventos dramáticos e até traumáticos (QUIRINO, 2006,
2012). Deste modo, os Fulni-ô tem em seu toré um acúmulo cultural que se articula com as
festas religiosas e populares regionais, juntando as peregrinações católicas com as tradições
ameríndias e mais matrizes que revelam a influência da “sambada de coco, das cafurnas, da
batida de feijão”.
O etnomusicólogo Zeferino Nascimento (1998) descreve os aspectos identitários do toré
Fulni-ô na “Festa da Aldeia” de Yasakhlane (Nossa Senhora da Conceição), que acontece em
fevereiro. Como descreve o autor, a festa assim como os instrumentos assumem grande
importância na tradição, visto que atuam como elemento diacrítico e de revitalização da
identidade étnica ano após ano. A “festa” é considerada a continuidade dos costumes antigos
que representa a benção compartilhada de índios e regionais desde os tempos do contato, em
seu aspecto sincrético a “Festa da Aldeia” não pode ser vista apenas como uma atuação para o
exterior. O seu complexo sincrético é visto pelo Fulni-ô numa óptica onde o yaathe engloba
todas as formas culturais, se antigamente o Padre Dâmaso foi chamado para converter os índios,
na visão dos Fulni-ô a atuação do padre foi um fracasso, pois: “foi o padre que se converteu,
no fim, aquele padre que não gostava de índio, quando ouviu o toré foi convertido pelos índios
e passou a amar e defender a etnia. Ele nos ensinou princípios sagrados, mas, nós também
ensinamos a ele os costumes ainda primeiros daqui” (professora indígena Marilena A. de Sá,
Aldeia Sede, 2018). Do mesmo modo, os Fulni-ô afirmam que já tinham uma mulher que atuava
como santa em sua aldeia, chamada como a “Grande Mãe”, então não tiveram nenhuma
surpresa em conhecer mais uma “Santa” e a incluir em seu panteão. Deste modo, a prática do
toré sagrado na Festa da Aldeia revive o tempo do contato através dos mitos e práticas
interculturais, aos Fulni-ô significa o contato mais íntimo com Eedjadwá e Yasakhlane para
reafirmar diacriticamente a etnia: “da maneira que os antigos cantavam e rezavam”.
300
Os Fulni-ô contam que são detentores “originais” desta prática e dizem que não sabem
como a prática surgiu, mas que sempre existiu na etnia: “[…] esse daí ninguém pegou, é
costume antigo que vem da Natureza” (sr. Abdon dos Santos e Mestre Matinho dizem o
mesmo). Consequentemente, é deste modo que grupos indígenas preservam ou se apropriam
desta prática com a intenção de trazer força aos seus sinais de indianidade, organizando estas
características no regime da fé, da lei, da ética e da estética. Portanto, o “toré de búzio” Fulni-
ô organiza uma relação com o tempo mítico e a continuidade de uma herança vista como
permanente e autenticamente Fulni-ô. O tolé para os Fulni-ô tem um lugar de hierarquia pelo
critério da temporalidade, porque “é de um tempo que ninguém pegou, um tempo dos antigos
que até hoje está aqui”. A “torezeira” Dona Tereza - a esposa de sr. Abdon - certa vez em uma
entrevista disse: “o toré é de gerações ... vixi ... eu lembro é de muita gente que fazia isso aqui,
meus parente todos daqui, os índios e as índias antigas todas já dançavam o toré!”. Portanto,
o toré é narrado como algo imemorial pela sua perenidade, ao mesmo tempo que também é
compreendido como continuo ao longo das gerações que cada subjetividade alcança
301
temporalmente. Por outr lado, em uma sociedade indígena patrialcal é possível destacar uma
certa diferença das funções entre torezeiros e torezeiras, uma vez que apenas os homens tocam
e os instrumentos musicais, tendo o búzio um local de representação nas relações de gêneros.
Aqui as mulheres não pegam no búzio, às vezes nem ver, ele não pode ser vendido,
tem até um templo para ele, é muito cuidado com ele Miguel, ele é da nossa tradição,
é uma coisa muito importante para nós, até pra falar dele é difícil, tem que ter muito
cuidado (Xicê Fulni-ô, agente de saúde indígena, conversa informal na aldeia sede,
agosto de 2018).
Hoje, o búzio dos Fulni-ô é apresentado pelas ideias de uma representação do índio
seguindo as noções da “tradição”, são instrumentos que falam sobre “troncos”, proibidos de
serem vendidos ou comercializados profanamente, sendo peças fundamentais na tradição Fulni-
ô. Soprar o seu som é sentir nas sombras dos pés e no poder dos ventos a “ancestralidade”. Se
o som organiza os símbolos sociais, ele também se torna uma representação das organizações
sociais, havendo em sua representação a definição de funções sociais. Os instrumentos são
considerados fortes quando “são do mato”, demonstrando claramente uma ligação maior com
determinados locais e atores. O que demonstra que quando o objeto se relaciona com a sua terra
e os seus vegetais não domesticados a sua conexão com o passado e o cosmos se torna mais
forte, tal como será visto nas citações a seguir quando se equivale sua origem da “natureza” a
origem do “índio” (de acordo, diga-se, com a noção de que os ancestrais eram “índios não
civilizados” e que esta origem “natural” (talvez selvagem) é a fonte de sua força étnica Os
instrumentos resguardam um conjunto de normas conhecidas aos Fulni-ô, porém,
desconhecidos aos não Fulni-ô. São instrumentos acionados constantemente que acionam
gerações e regimes de conhecimento.
Aqui, ninguém sabe quem ou que ano começou o toré, ninguém sabe quem trouxe
essas flautas, a gente sabe é que elas sempre existiram pra nós, sempre estiveram
e sempre foram de Fulni-ô. Elas são da Natureza e revelam tudo que a natureza
diz com o seu toque. Fulni-ô sempre teve toré de búzio, isso é coisa dos antigos,
dos tempos que ninguém pegou... ninguém daqui vai saber lhe dizer, porque esse
tempo ninguém de hoje alcançou, só sabemos que ele sempre existiu geração após
geração como dizem os caboclo velho (sr. Abdon dos Santos, guardião dos búzios,
agosto de 2018)
(sr. Manoel de Matos, Mestre Matinho Fulni-ô, músico e artista tradicional, março
de 2018).
105
Obviamente não me cabe questionar ou desvalidar tais pensamentos Fulni-ô, a intenção é destacar como tais
concepções estão presentes fazendo parte de uma economia simbólica interétnica no Nordeste. Obviamente, a
marca do toré genérico é ser multitemático, a busca pela sua singularidade envolve confrontações de práticas e de
ideologias, as quais muitas vezes são ocultadas nas etnografias na ideia de trazer um sujeito étnico coletivo
marcado no estereótipo do Índio do Nordeste como um único indígena.
303
efetivar alguma contribuição à minha pesquisa, uma vez que geralmente os indígenas
perguntavam: “o que você está fazendo aqui? Ah, você quer pesquisar”. Em uma destas
perguntas um grupo de jovens resolveu convidar o senhor para contar algumas de suas histórias
indígenas. O fato foi que conheci sr. Abdon e a partir deste momento começamos uma longa
jornada de traduções em torno das minhas perguntas de pesquisa. Depois de alguns meses de
convívio estabeleceu-se uma reciprocidade para passarmos algumas tardes em sua residência
conversando sobre música, toré e cafurnas. Passamos alguns meses em diálogo sobre a música
tradicional e as dinâmicas culturais com foco na “música indígena”, nas questões ambíguas do
tradicional, os estilos musicais que se encontravam na aldeia e como o idioma é utilizado.
Foram tempos de confusão e exercício de compreensão da minha parte para adentrar naqueles
sentidos que antes estavam desconhecidos. Ao longo dos meses e anos, compreendi acerca dos
projetos musicais de preservação que utilizam do yaathe como ferramenta pedagógica e quais
as performances que são realizadas nas aldeias Fulni-ô, junto com o tempo e efervescência
social de cada uma delas. Em suma, quais as tradições políticas Fulni-ô junto com as práticas
de permissão e negação de acesso às informações.
Após uma longa jornada de negociações com os atores sociais da pesquisa e,
especificamente, com o sr. Abdon, senti alguma confiança para lhe fazer um convite de
contribuição para a tese. Na realidade, eu sendo um artesão de didgeridoo`s que passou parte
da vida fazendo troncos ocos ganharem sons e harmônicos, participar da confecção dos búzios
se tornava o ápice do trabalho de campo, com uma grande expectativa pessoal. Foi durante uma
entrevista na casa do professor Maktxo/ Ediraldo Fulni-ô, que o sr, Abdon apareceu com uma
conversa descontraída que antecipava as nossas próximas atividades de tradução das cafurnas.
Então, perguntei-lhe:
Combinamos o “trabalho de fazer o búzio” para o dia seguinte, visto que a atividade
convergia com o cronograma de estadia de idas e vindas. Neste sentido, o Mestre Abdon e o
seu filho Sarapó (um dos grupos responsáveis pela execução do tolê) foram solícitos ao
304
conciliar seus cronogramas. Depois que finalizei a entrevista com o professor indígena,
direcionei-me para a pousada na cidade que estava hospedado, por pouco tempo parei na frente
da igreja no centro da aldeia para apreciar a festividade de Yasakhlane, foi quando encontrei
com o professor Telson Fulni-ô que também estava me auxiliava com as traduções e alguns
entendimentos do cenário intercultural. Ao relatar o ocorrido, ele sorriu e disse: “é... mas o que
ele vai fazer não é o nosso: o tradicional, ele vai dar um jeito de fazer o búzio, mas vai ser uma
adaptação”, depois ele detalhou que um rapaz de um grupo musical também passou por lá
fazendo um trabalho cultural de música nas escolas e também pediu o instrumento como uma
recordação do tempo em que passou com os Fulni-ô. A principio não havia compreendido a
dimensão do que ele relatava, mas continuei acompanhando o diálogo para aprender acerca dos
regimes da “tradição” e sanar as minhas dúvidas acerca do caso Fulni-ô e da reprodução das
flautas sagradas no Nordeste indígena. O professor Telson encerrou dizendo: “ah, então é isso,
ele vai fazer um instrumento de búzio pra você, mas, não pense que esse será esse da tradição,
ele fará um parecido, um similar, mas, que não é o autêntico nosso, o daqui que tocam no tolê
na frente da igreja”.
No dia seguinte fui à casa de seu Abdon e nos direcionamos para uma área externa
periférica à Aldeia do Ouricuri, uma área de “mata” da caatinga próxima aos “três juazeiros”106
com pedras, vegetação rasa e seca. Fomos de carro até a área pretendida e iniciamos os
trabalhos. Quando nos direcionamos ao ouricuri, sr. Abdon disse ao seu filho: “e você avisou
que estamos indo fazer isso ao pajé? Com a confirmação de Sarapó seguimos para a “mata do
Ouricuri”, quando descemos do carro, comecei a organizar o equipamento de registro
audiovisual enquanto sr. Abdon falava em yaathe com o filho. No meio da conversa ele dizia:
“está vendo Miguel, aqui não tem encantado, Fulni-ô não sabe o que é isso?! Isso é de outro
canto, aqui nós não temos essas coisas, somos simples, não temos essas coisas que dizem esse
tempo todo, a nossa vida é essa mesmo! Você já está aqui e já sabe”. Entretanto, quando ele
foi procurar o facão que ficou perdido entre os galhos do pinhão, ele disse sorrindo: “eita, será
que o facão se encantou, que eu não tô mais achando ele”. E aquele conjunto de valores acerca
dos encantados me intrigava ao ponto de entender como os Fulni-ô se relacionam em uma rede
mais ampla e se singularizam no conjunto etnológico dos índios do Nordeste.
Em meio aos pronunciamentos em yaathe, seu Abdon e o seu filho escolheram as plantas
do pinhão periféricas à área da Aldeia do Ouricuri para retirar. Eles cortaram e tiraram a casca
do pinhão para deixar a madeira lisa. Depois voltamos novamente até a sua casa. No caminho
106
Local próximo a aldeia do Ouricuri onde os indígenas se reúnem para cantar e coletar plantas “sagradas”.
305
de volta eles me falaram que o toré é executado em vários momentos, mas alguns são mais
especiais tendo sua funcionalidade mais marcada: “os índios antigos cantavam quando alguém
morria, mas, hoje, nós só cantamos assim quando o cacique ou o pajé falece, aí nós podemos
fazer o nosso toré, se não for assim, fica um menor, mais curto pra ver logo”. Depois Sarapó
mostrou um pedaço de cera de abelha de cor marrom escuro e disse: “está vendo isso, é um dos
segredos do instrumento, é isso que ajuda ele a funcionar”. Lembrei-me de outro momento
quando ele me mostrou a resina de uma planta, que, quando colocada em seu cachimbo deixava
o cheiro do tabaco e da fumaça com um ar perfumado. Deixei Sarapó na casa de Thuny Fulni-
ô (pai de sua esposa e artesão), em um espaço que é destinado à fabricação de artesanatos e
demais adornos indígenas. A principio eu não percebi, mas Sarapó ficou encarregado de abrir
as madeiras do pinhão, deixa-las ocas para formar o tubo do instrumento. Enquanto isso passei
uma hora conversando com sr. Abdon em sua residência junto com mais anciãs, como: Dona
Tereza (sua esposa). Após algumas nuvens passarem ao céu ameaçando uma chuva, o mestre
das cafurnas diz: “[...] mas, Sarapó está demorando muito e nós não fizemos o negócio direito,
nós vamos precisar voltar para fazer o trabalho”. Logo ele chamou o seu neto, Gustavinho,
para irmos novamente à “mata do Ouricuri”.
Ao chegar descemos do carro e seu Abdon foi em direção as plantas, fez
pronunciamentos no yaathe e começou a retirar novos troncos tendo como medida um outro
pedaço de madeira. Depois, pegamos os pedaços e fomos até uma pedra grande em que ele
disse: “estamos fazendo um trabalho, nós estamos fazendo o toré, mas, aqui é a flauta do toré,
nós estamos fazendo essa flauta pra você ver que nós temos flauta aqui”. Então começou a
cantar algumas cafurnas com o jovem Gustavinho cortando a madeira com o facão,
transformando-a em instrumento, criando forma sob uma harmonia da cafurna a qual é
inspirada no heia heia do tolê Fulni-ô. Os Fulni-ô têm uma ideia de estabelecer uma
comunicação com o Dono da planta através da música pedindo “licença” com uma reverência,
ao demonstrar o yaathe eles demonstram quem são e de onde veem fazendo uma comunicação
xamânica privilegiada com o sobrenatural. Ficamos na imersão das harmonias do yaathe até as
madeiras estarem prontas para serem levadas. Aquela cena que eu captava (com câmera DSLR
e gravador portátil) permitiu compreender parte das economias simbólicas de como o sistema
estético Fulni-ô protege o seu “segredo” criando novas possibilidades musicadas, pois se os
Fulni-ô não cantavam a “tôa” o heia heia do toré, eles faziam as cafurnas para atividades de
característica aberta e pública, como a confecção e produção de uma cópia autenticada do búzio.
306
Sarapó: antes era feito só para as pessoas de grande importância. Mas, ainda tem isso,
a gente só toca assim hoje quando são para as nossas lideranças – cacique e pagé
(Sarapó, músico da tradição, idealizador do grupo Sawlin’ho-Sato).
Portanto, segundo o relato é possível concluir que antigamente nem todo funeral Fulni-
ô tinha toré, mas que a prática era realizada pela comunidade para as pessoas que exerciam
algum poder de autoridade. Para tentar estabelecer alguma continuidade ao assunto, sabe-se
que os Fulni-ô realizaram um toré no falecimento do cacique anterior, João de Pontes, sendo
um evento de grande impacto social que causou uma grande mudança, uma vez que o cacique
e o pagé tem função indispensável no Ouricuri. O que sugere ligações das performances com a
rememoração e as experiências de trauma com os eventos que causam disfunção social de
107
O termo “casamento” é visto na cultura popular de forma geral, em especial na capoeira (regional e de angola)
que tem na confecção do instrumento do berimbau a junção das formas e sons da madeira da beriba com a cabaça,
as quais ambas precisam de um bom “casamento” ou junção para ter uma boa sonoridade, uma vez que suas formas
precisam de uma certa simetria para resultarem em um único instrumento musical.
307
grande impacto. Neste sentido, o tolê organiza a vida étnica e é organizada por ela sendo uma
ponte xamânica de comunicação entre os antepassados e os contemporâneos.
308
Figura 27- Conjunto de imagens realizadas a partir da gravação audiovisual da confecção de um tipo de par de
“búzio” Fulni-ô, realizada nas margens da Aldeia Ouricuri e na Aldeia Sede. (parte 1).
Figura 28- Imagens realizadas a partir da gravação audiovisual da confecção de um tipo de par de “búzio” Fulni-
ô, realizada nas margens da Aldeia Ouricuri e na Aldeia Sede. (parte 2).
é sim, ele é o nosso segredo, outros índios do Norte também têm flautas, nós já vimos,
mas nós temos a nossa flauta que é o búzio e o nosso jeito de tocar, aqui nós fazemos
uma adaptação para poder mostrar nossa cultura, por isso é um búzio de PVC, veja...
eu tiro essa paleta e essa borracha e aqui só sobra o cano, e você vê o que aqui? Não
vê nada, apenas o cano. Então não tem perigo, porque as pessoas não conhecem [a
técnica] e como faz ele, por isso a gente leva.
[...] e vendo essas flautas dos xinguanos, eles fazem de cano para transportar, é igual
a nossa, é de cano dentro... como é que tem essa? [referindo-se ao mesmo instrumento]
... não é isso de copiar de fulano, eles já tinham essa lá e nós já tinha essa aqui!
(Professor Francisco, em sua casa fazendo cocares para comercializar no evento,
agosto de 2018).
Podemos conferir que o búzio tem sentidos de extrema importância aos Fulni-ô, sendo
um objeto que representa, materializa e educa à atenção ao regime de indianidade no caso de
apresentar para fora, os seus sentidos são múltiplos que unificam e separam pessoas, etnias e
religiões. O “búzio” que se comunica com a harmonia coletiva, o corpo e o ânimo das pessoas
Fulni-ô, sendo uma das pontes para a comunicação com os antepassados e os que estão
presentes. Os sentidos dos “búzios” são muitos e as suas sensibilidades também. As adaptações
dos instrumentos ganham forma com combinações que se mesclam com as cafurnas, o protótipo
311
humana e não-humana. Pois, ao mesmo tempo em que o toré rememora eventos, os Fulni-ô
também dizem que ele passa “força”.
O transe do tolê foi destacado principalmente por S. Dantas (2011, p. 227, 231) a partir
da dança e das entoações do: heia, he, heia, he. Segundo sr. Abdon dos Santos ainda que o
“tolê” não tenha palavras pronunciadas em yaathe, o heia he heia atua com a finalidade “de se
comunicar com a Natureza”. Segundo contou o ancião, os índios antigos conheciam o yaathe,
entretanto, quando eles queriam cantar com a finalidade de se conectar, eles cantavam a
linguagem da Natureza, que não precisava dizer palavras com yaathe, mas, pronunciar o heia
heia, sendo a forma que a natureza tem o seu ritmo, ele mencionou que essa forma de cantar
seria semelhante ao que fazem os pássaros, assim o índio diz verdadeiramente quem ele é. O
movimento do transe ocorre com um conjunto de fragmentos que se articulam criando o tempo
certo entre as fontes sonoras, pisada dos pés, cantos, passos, animação como se fossem dos
animais. Esta movimentação cria uma harmonia que busca equilibrar a vida étnica em um só
corpo na realização do acontecimento: o passado e o presente. A articulação do tolê educa
sensibilidades e estados afetivo-cognitivos que através da expressão destaca a tradição
intersubjetiva e transcultural. Certa vez, perguntei para os responsáveis por guardar um par de
búzios o por quê cantavam em heia heia e não em yaathe, já que a revitalização da língua é tão
importante atualmente. Ele me respondeu:
os índios de antes não tinham a preocupação em manter a língua, eles tinham uma
outra sensibilidade... tinham como se diz... uma outra forma de se conectar e aprender
com a Natureza deles e em volta. Por isso, não carecia deles cantarem em yaathe,
porque era essa a forma deles cantarem para seus antepassados. Isso é coisa de muito
tempo, de muito longe, nós nem sabemos o quanto, ninguém daqui pegou. Por isso,
eles cantavam assim. Não precisavam cantar na língua, assim, dessa maneira, no heia
heia eles se comunicavam com tudo que era coisa. Era a forma deles se sensibilizarem
e hoje nós fazemos assim também, porque foi a forma que aprendemos. (sr. Abdon
dos Santos, durante uma caminhada na Aldeia Sede, agosto de 2019)
A técnica performática do tolê permite uma ampla comunicação com o território Fulni-ô onde
os afetos e a cognição podem rememorar acerca da interculturalidade através da dramática
situação do contato cultural, em que o Índio carregando o seu búzio após o Dilúvio diz para os
Deuses católicos e para Hermes – criador da harpa celeste - que ele já estava ali! A cada ano e
passagem dos tempos um novo Dilúvio surge sendo preciso reafirmar esta concepção para que
este Índio mítico caminhe, cante e dance ao som dos aerofones de paleta: “kawê, kawê”.
Figura 29- Ilustração do toré de búzio realizado no oitavo Congresso Regional de Saúde Indígena Fulni-ô, onde
constam os “torezeiros” que tocam “búzios” e aqueles com a maracá, assim como as “torezeiras” que sob quatro
movimentos do toré público performam a junção de uma tradição indígena com um samba de roda. Os búzios
comandam o caminho dos “torezeiros” indicando os movimentos e para onde cada personagem da ação dança e
caminhe. Observação para mais um detalhe, o registro foi feito com diversos personagens da família Santos que
narraram suas interpretações do toré: como sr. Abdon, Dona Tereza e seu filho Sarapó.
108
Ainda que o professor mencionasse tal maneira de indigenizar o mundo (SAHLINS, 2003), ele detalhou que o
tolê não é incluído nesta concepção uma vez que a sua semântica exerce uma linha de continuidade de tempo
anteriores e não passa por uma reformulação lógica e semântica de sentido.
315
yakhletxaka, que, do verbo cantar significa: “eu canto”. O professor também explicou que as
variações da partícula (sê) podem indicar o passado, o que transforma o verbo em “ele cantou”.
Desse modo, a partir da sua interpretação, as variações dessa partícula podem traduzir uma
questão mais abrangente, pois quando se junta a esta expressão o pós-fixo (sê) compreende-se
no yaathe a 1º pessoa do plural (nós), tornando-se também “nosso canto, nossa música”. Além
disso, o professor respondeu algumas das minhas indagações acerca da tradição musical. O
cenário musical Fulni-ô é diversificado com uma diversidade de gêneros e influências externas,
indo desde as músicas sertanejas, músicas indígenas, xamânicas, nacionais, populares, serestas.
Desse modo, qual é a música tradicional Fulni-ô? Como os Fulni-ô apresentam suas
performances resguardando seu “segredo” e o “sagrado”? Tais questões foram constantes nas
minhas entrevistas e conversas informais. Desse modo, desenvolvo uma reflexão temporal do
constructo estético e histórico. Principalmente, no modo em que os indígenas elaboram suas
mobilizações e performances na intenção de apontar transformações e adaptações. Diante desta
questão, há uma preocupação dos indígenas em distinguir o que é “originário, de dentro e de
fora” do povo. Logo, a utilização do termo “tradição” aponta amplos processos de adaptação e
ressemantização, pois a categoria em sua forma reflexiva busca organizar um mundo de
histórias e relações sociais para compreender as formas de seleção de conteúdo através da
memória, transmissão e aprendizagem, logo, tradição e criatividade podem compor uma
dialética em sua composição social (MORIN, 2016).
Por conseguinte, a musicalidade109 indígena está associada à memória e ao
pertencimento, pois, narra o sentido de ser com o seu acúmulo cultural material e imaterial,
inclusive, com os aspectos afeto-cognitivos compartilhados socialmente. É deste modo, que a
música interage com os ciclos ecológicos, festivos, sincréticos e terapêuticos de revitalização
das aldeias, onde de algum modo ela atua de modo terapêutico. Nela estão contidos os
elementos dos encontros de sociedades, costumes, tradições e economias simbólicas entre o
que se entende genericamente por “coisas de índios, negros e brancos”, mas, para além disto,
também são formas reflexivas para um quadro geral de disputa intraétnico e interetnico. Neste
caso, o “rito ouricouri” no Keyxatka-lhá, a presença do catolicismo popular, a Festa da Aldeia
109
Em alguns casos e estudos da etnomusicologia podemos encontrar a classificação de música indígena como
uma categoria ética de reflexão. Nesta direção, o termo música e música indígena não aparecem de modo nativo,
havendo outros termos classificatórios para abordar tais expressões que se enquadram dentro desse espectro de
atuação. Em uma tentativa de traduzir tais entendimentos utilizamos (NETO; BITTENCOURT, 2017) a noção de
musicalidade para se referir as expressões culturais com características musicais que não utilizam de modo êmico
a classificação de música. Por outro viés, no caso Fulni-ô descrevo uma particularidade uma vez que a noção de
“música indígena” é trabalhada como algo que envolve: dança, cantos, uso da maracá e/ ou as flautas do búzio.
316
também expressa uma gramática cultural por orientações que apontam as formas de preservação
linguística e de indigenização do mundo Fulni-ô.
P: Abdon, o sr. aprecia as músicas em português que são transferidas para o yaathe?
Xixiá/ Abdon: Quando passa pro yaathe eu passo a curtir ela... quando elas estão
assim no português eu não gosto, só gosto depois que passa pro yaathe. O yaathe está
presente na igreja e no celular dos jovens. Nós temos uma ferramenta importante, mas
estamos numa fase difícil. A rádio nós tinha, mas está parada. A escola está
caminhando, ainda tem velhos presentes... porque ainda resiste. O yaathe é uma língua
complicada de sistematizar, se você for colocar dá zero! É complicado, mas, os mais
velhos estão entendendo que a escola é uma ferramenta para ensinar (Xixiá Fulni-ô,
Abdon dos Santos, professor indígena, agosto de 2018).
Uma das rezas compartilhadas por todos da aldeia se refere à Yasakhlane: a Santa e
Padroeira da Aldeia Fulni-ô, que resguarda o mito do contato cultural e do encontro de povos.
No decorrer da pesquisa encontrei muitas vozes que cantavam a mesma reza no yaathe e a
traduziam de modo parecido, ainda que muitos significados se conservavam nas traduções, um
ou outro detalhe era modificado. Segundo me contaram, essas rezas da igreja não são cafurnas,
são apenas rezas transferidas ao yaathe para serem cantadas na igreja, que “o índio ressignifica
ao seu mundo para ganhar força e valor” (Ediraldo Torres/ Maktxo, prof. indígena). Esta mesma
operação foi encontrada em muitos casos, o que evidenciou uma sistemática padrão na forma
dos Fulni-ô executarem a indigenização do mundo (SAHLINS, 2003 [1985]), sendo a língua
yaathe a principal forma desta ação.
Quadro 8- Reza de Yasakhlane no yaathe com sua tradução no português (registrada e traduzida por dois
professores indígenas, em julho de 2018).
Oração de Yasakhlane
Yaathe 1ª versão 2ª versão
Yasakhlane Nossa Grande Mãe Ô Maria
Yasakhlane Nossa Grande Mãe Ô Maria
alternam no: “he – eia, he -ia”. Como já descrevi o toré nos capítulos anteriores, concentrarei
esforços na cafurna e na etnohistória da adaptação musical Fulni-ô. Em muitos casos, as
cantigas de trabalho reconhecidas como as toadas dos caboclos ou cantiga de índio velho eram
músicas de trabalho cantadas no português que traduziam o contexto do colonialismo interno,
da formação agrária e das “misturas”. Para tal, muitas expressões indígenas são evidenciadas
no contexto agrário como: as toadas, toantes, linhas, benditos, a bata do feijão/ milho (e o toré
para reivindicar a indianidade) (OLIVEIRA, 2005; GRUNEWALD, 2005). Com o decorrer dos
anos tais práticas ganham sentidos através das transformações culturais agrárias e do modo de
produção para incorporar o campo da memória, das políticas de patrimônio, mercantilização
cultural, espetáculo, coreografia, teatro e cinema. Um dos casos emblemáticos é narrado através
do samba ou coco, o qual era realizado na fabricação de casas, onde “os índios se reuniam para
pisar” e “bater o chão da casa, tudo dançando” (Mestre Matinho, Aldeia Sede, janeiro de 2021).
Neste sentido, as choças de palha e casas de taipa que preenchiam o rito do Ouricuri de
antigamente, hoje são utilizadas no campo do turismo étnico como objetos da memória da
autoctonia nordestina aonde se guardam encantos e ensinos verdadeiros da natureza.
Por esta razão, é possível destacar um conjunto de esquemas éticos, estéticos,
antropológicos e até mesmo arquitetônicos na dinamicidade da tradição do fazer musical Fulni-
ô. A “pisada” é uma expressão para se referir aos pés que batem no chão de maneira ritmada,
sendo uma fonte sonora corporal, geralmente associada a alguma atividade de trabalho, como
construção de casas de barro, plantios, colheitas de milho, de feijão de corda e ciclos festivos110.
A frase antiga: “vamos fazer o samba e pisar à noite” era sinônimo de trabalho coletivo para
assentar o piso de barro da casa de algum “índio”, como bem nos disse Mestre Matinho, durante
o trabalho de registro e salvaguarda de Mestre Tradicional111:
P: Mestre [Matinho] conte pra gente, por favor, como começou a sambada aqui, a
inclusão dos instrumentos, como o pessoal dançava o samba aqui?
110
Tal ato corporal é dotado de sentido sendo valorizado pelos próprios indígenas que observam na prática uma
continuidade histórica associada como algo da “tradição”. Um grupo de jovens professores indígenas Fulni-ô,
através do Coletivo Thul`se audiovisual realizaram uma obra fílmica intitulada: O som dos pés (2020, 10m, Dir.:
Tahyo Fulni-ô), que detalha os sons, sentidos e ciclos do comportamento simbólico associados a coleta de plantas
no território com ações comunitárias.
111
A obra audiovisual está disponível no link: < https://www.youtube.com/watch?v=s7t6nZfktA4&t=150s>. O
registro foi desenvolvido após a aprovação no Edital da Lei Aldir Blanc, organizado pela Secretaria de Cultura do
Estado de Pernambuco (Secult/ PE), no ano de 2020-2021. O registro foi realizado durante a pandemia (COVID-
19) com todos os cuidados de isolamento prévio à ação e cuidados sanitários para adentrar no território indígena,
bem como entrevistar os colaboradores do registro, intitulado: Mestre Matinho: pife e tradição Fulni-ô. Perguntei
ao Mestre Matinho o que ele pretendia mostrar e representar da sua vida musical e qual a intenção do registro. O
Mestre disse: “o pife, tudo que eu venho fazendo é em torno do pife, eu quero que você fale e mostre eu tocando
ele”.
319
Mestre Sêtka/ Matinho: É o coco... o coco... ele tem várias misturas, mas, aqui, o
nós... o samba da tribo Fulni-ô. Dá esse nome porque ele era batido pelos pés e ele
não era instrumental, o único instrumento que tinha era o ganzá, ou o ganzá ou a
maracá, né?! e aí os índios velhos e as índias nas festas juninas, eles se juntava e
dançava o samba de coco a noite toda, tudo no pé, batido mesmo no pé. E nas tapaia
de casa de antigamente, hoje não que tá sendo de alvenaria pra não acabar com a
natureza, porque se for fazer todo ano, a multidão de índios que tem aqui, mais de 6
mil índios, se for fazer suas casas de palha, as ocas como era de primeiro que fazia
aqui, aí vai acabar a floresta, vai acabar a natureza, aí por isso, o pajé e o cacique
mandou fazer uma casa de alvenaria. Porque ali fez e pronto, ali só vai consertar ela...
Mas, na época era assim, fazia a tapaia de casa. Ai o dono da casa o índio chamava a
galera, né?! ... que era os indígenas, ai tapava o dia e quando era noite era coco até
amanhã bem cedo, quando amanhecia o dia a casa estava como que tava cimentada
deles pisar, agora homens e mulher... e o coco da época não era esse coco de
imbuigada, praieiro, de roda... era o coco mazurcado, por isso que deu o nome de
samba de coco mazurcado, porque era no pé ... ta-ca-pa ta-ta, ta-ca-pá ta-ta ... e só o
ganzá .... e aí eu vou mostrar como era o samba deles... (Manoel de Matos, 01/2021)
A noção de “pisada” mais uma vez mostra por uma via estética e performática
(TURNER, 1986, 2015) o processo social e simbólico da história dos Fulni-ô. O ato de pisar
está em muitas atividades coletivas na realização de práticas que conectam o território e a
comunidade através da noção de identidade. Através da dinamicidade e complexidade de
determinados estilos e expressões culturais - como os cânticos de trabalho na roça, ditos pelos
Fulni-ô como a batida do feijão - feitos pelos índios velhos quando se reuniam para os trabalhos
rurais lidamos com as transformações semânticas para a imagem de um Fulni-ô contemporâneo.
Hoje, a batida de feijão é praticamente extinta estando quase inexistente na aldeia, sendo
realizada por poucos índios, que, com uma breve cantoria relembram os cantos de roça e o
trabalho coletivo do tempo em que os Fulni-ô guardavam suas sementes e elaboram políticas
de distribuição das colheitas. A bata/ batida de feijão é relembrada em proximidade as toadas
dos índios antigos, tendo os seus cantos realizados no português112, os quais assim como outros
ritmos e práticas foram se distanciando na constituição de tradição contemporânea. Desta
mesma maneira, foi notada uma série de transformações no fazer musical associado com as
atividades de trabalho coletivo.
Xixiá/ Abdon dos Santos: a música em viola cantada em português é um ritmo que
foi extinto, eles não cantam mais [...]
Telson Fulni-ô: [complementou] [...] era um ritmo do não-índio que eles aprenderam
isso. Parecia uma brincadeira fruto de uma reunião. Eles cantavam trabalhando
embaixo do sombreiro das árvores e o redor do feijão... o pessoal gostava de cantar e
aí conhecia os músicos e cantavam, né?! Existe gravação de toadas dos tempos atrás
112
Durante o trabalho de campo o professor Telson Fulni-ô mostrou uma fita gravada com muitas batidas de feijão
e toadas produzidas por alguns anciões anos atrás, segundo mencionaram daquelas gravações, apenas dois ou três
indígenas estavam vivos. Não me foi permitido copiar as gravações em um pendrive, entretanto, pude gravar
alguns trechos com meu gravador no momento em que o material foi mostrado. Possibilitando uma compreensão
histórica do fazer musical associado aos ritmos e vida do trabalho.
320
do tio Jazi, Lolo, Pinto. O Jazi foi quem trouxe o pendrive com essas músicas que
estou te mostrando” (conversa com professores Fulni-ô, na Aldeia Sede, em julho de
2018).
Figura 30- Atividade da bata do feijão realizada em lembrança aos antigos que faziam tal atividade com cantos de
trabalho. Imagem captada na Aldeia Sede Fulni-ô e extraída do youtube.
A pisada traz um movimento rítmico sendo o corpo uma fonte sonora no fazer musical,
que esteve presente na construção das casas de barro/taipa e na agricultura. Também é presente
imemorialmente no tolê, “desde o tempo dos índios mais antigos, eles dançavam pisando,
fazendo ritmo com os pés descalços quando entoavam cantigas da natureza sem letra” (sr.
Abdon dos Santos, 08/2018). A pisada cria ritmo à produção social e revela um modo de habitar
o mundo, se antes o barro era pisado ao som do coco ou do acontecimento do samba para
construção de moradia e o compartilhamento de práticas coletivas e agrárias, atualmente há um
sentido de rememoração na “pisada”, estabelecida como uma forma de reza que evidencia um
movimento coletivo de conexão para a alimentação do ânimo, sendo (em indicação) uma forma
de reza que busca a força (eididi) ao se comunicar com a ideia de passado, presente e futuro.
Para isto, os pés descalços demonstram o fluxo de energias da terra à corporeidade Fulni-ô.
Inclusive, os pés descalços para os Fulni-ô é um dos sinais diacríticos mais antigos, estando
presente nas ações dos anciões e na realização da performance do tolê e da cafurna. Portanto,
321
Pisar na terra (fea) e cantar é estabelecer uma comunicação com a ideia da totalidade,
ligando “as energias daqui [da terra] com as do céu”. Inclusive, em yaathe o termo: feyaa
assume a tradução de “o terra” associada a planeta revelando nesta semântica níveis de
abordagem que vão do chão aos astros. Desta maneira, o toré de búzio, o coco, as sambadas,
toadas e cafurnas são expressões da cosmologia e identidade que se referem aos encontros
étnicos com o regional no regime da indianidade e ao tempo contemporâneo da
interculturalidade. Aonde a musicalidade é o elemento de reflexão, mediação, ensino e
aprendizagem cultural da tradição e, principalmente, da conscientização do ser Fulni-ô.
O processo da musicalidade Fulni-ô já foi descrita de muitas maneiras e abordagens, os
etnólogos da velha guarda mencionaram elementos que não se encontram mais, ou, são restritos
(vimos este tema com exaustão nos capítulos anteriores). Os trabalhos mais recentes a partir da
década de 90, ilustram pontos de mediação mais próximos detalhando a inter e
(trans)subjetividade das identidades: indígena e regional dos Fulni-ô. Nesta fase, certamente os
trabalhos de Nascimento (1998) e Dantas (2002, 2004, 2011, 2012) se destacam por tratarem
especificamente deste tema ao apontarem: as profecias, conscientização indígena e organização
do mundo da tradição ao classificar conteúdos semânticos. No meu caso etnográfico, procurei
compreender o transe ou o êxtase musical como uma ‘comunhão de dispositivos’ que se
‘movimentam em e para o mesmo curso’113. Os gestos, as entoações, os sons, as letras e
significados são elementos que se articulam para o mesmo movimento. Neste sentido, pareceu-
me que a concepção de “pisada” se destacou como elemento central no processo social do
113
Aqui, resgato o conceito de performance em seu senso etiológico mais essencial: um movimento em curso
caracterizado por uma comunicação verbal e não verbal dotada de sentido e significado.
322
sagrado da constituição indígena, pois, presente em um longo processo temporal, a pisada está
atrelada a muitos tipos de musicalidades e ciclos da vida étnica, os quais vão de um regime
agrário para um regime da indianidade (estético-religioso-artístico). Em suma, a pisada
evidencia economias simbólicas, estados de ânimo e formas comunicativas associadas com os
ciclos da vida étnica que representa o índio. Transformar ideologias da autoctonia aborígene
em performances exige um comportamento de dramatização da vida social, onde o palco da
vida é uma constante luta étnica do teatro cotidiano que guerreia por significados, mas, também
é dotada de uma plasticidade para criar aberturas. A representação de uma substância cultural
através destes emblemas da identidade utiliza de retóricas contraditórias que manifestam as
projeções e o etnocentrismo das relações humanas de ambos os lados.
Tais temas também envolvem outros quesitos da natureza da função social do gênero
nas metas particulares do povo, uma vez que o espaço de homens e mulheres é informado pelas
concepções socioculturais de gêneros. Enquanto, os homens tem maior acesso as atividades de
turismo e entretenimento, as mulheres são destinadas prioritariamente aos serviços domésticos.
Se de um lado vemos nas políticas da tradição do toré alguns regimes de gênero plural, no
sentido de as mulheres cantarem e dançarem o toré mas não tocarem os instrumentos, e segundo
contam existem proibições para as mulheres manusearem os objetos no cotidiano. Na exibição
das cafurnas as atividades que surgiram como um espelho da necessidade de inserção de
atividades econômicas e artístico-culturais afastam cada vez mais as mulheres de também
exibirem a “cultura Fulni-ô”. Como resultado da pesquisa ficou evidente um conflito em torno
da participação das mulheres no cenário de circulação cultural e de realização das
performances. Sob a ideia de que as mulheres cuidam da casa e dos filhos e os homens vão em
busca da caça na cidade (que seria a venda de artesanatos).
Ainda há uma forte ideia no povo Fulni-ô de que o lugar da mulher é cuidar do lar e das
crianças, inclusive, encontrei casos de ansiedade de muitas mulheres conquistarem autonomia
profissional para a realização de uma vida econômica. Tais dilemas foram perceptíveis em
muitas entrevistas, que, sob muita desconfiança falavam dos sentimentos do trabalho doméstico
e de um afastamento das mulheres nas atividades do turismo. Certa vez uma índia com receio
disse: [...] “através desse seu trabalho, todos vão saber que agora nós mulheres também
queremos trabalhar com algo que nos possibilite crescer, ter dignidade, porque só isso [de
cuidar do lar] não pode, isso não é vida, nós também queremos ter nosso trabalho e nossa vida
(L. índígena Fulni-ô, cerca de 40 anos). Por outro lado, os organizadores brancos dos eventos
que lidavam com essa temática chegavam a propor aos indígenas a presença feminina nas
323
Temos como exemplo destes o coco de roda, que é uma herança que os ancestrais
Fulni-ô tiveram do povo negro e a cafurna, uma herança dos grupos indígenas Kariri-
Xocó e Xucuru. O coco de roda tem a função de entretenimento durante as festas
juninas. É dançado em círculo e tem um coro responsorial ao solista, que por sua vez
pode cantar versos improvisados ou decorados. A formação musical do coco de roda
tanto pode ser formada pela banda de pífano da aldeia, como pode ser composta de
um pandeiro que é conduzido pelo solista ou puxador. A cafurna, por sua vez,
funciona como um mecanismo de conscientização do grupo acerca de sua cultura, é
também um modo que os Fulni-ô encontraram para apresentarem uma cultura musical
indígena para os não índios. Tem diversas coreografias de dança e, como o coco,
possui um ou vários solistas com acompanhamentos de um coro. O instrumento
musical é o Maracá que normalmente está na mão do solista (NASCIMENTO, 1998,
p.5).
114
Muitas cafurnas registradas estão disponibilizadas no apêndice do trabalho, as quais servem de dados
etnográficos para tais afirmações.
324
de contatos culturais, como um certo mestre negro (José/ Zé Domingo), que fazia a sambada
nas festas juninas e teria seria bastante apreciado por todos da Aldeia. Tal homem foi
apresentado na pesquisa como o responsável pela inclusão do coco de roda nas festividades,
como disse um índio músico da tradição: “ele vinha aqui todo ano, aí os índios gostavam da
música dele e começaram a fazer aquele coco também, foi assim que ficou” (Wyho Fulni-ô,
Aldeia Sede, julho de 2019). Outros personagens também aparecem para revelar anagramas
culturais que espelham miticamente o contato cultural e um sistema de trocas simbólicas.
Ademais, segundo o relato abaixo de Leonardo Cunha (2008), outros percursos e redes musicais
são mencionados que traçam paralelos e parceiros privilegiados de ensinamentos musicais entre
os Fulni-ô e Kariri-Xocó com seus processos de territorialização e a ‘reterritorialização do toré’.
Embora não seja objeto central desta pesquisa, este tipo de Toré tem sido apresentado
amplamente pelo grupo da Thá-Fene, o qual atribui sua origem ao povo Fulni-ô. Na
cultura Fulni-ô, o próprio nome Toré ou Tolê (em yathê) designa o ritual sagrado onde
o par de Búzios é tocado por dois homens, que dançam ao lado de duas mulheres que
seguram nos seus braços. Segundo alguns informantes, no contato com a cultura
kariri-xocó, os Fulni-ô assimilaram o Toré destes últimos, começaram a traduzir as
letras para o Yathê e designaram esta forma como cafurna, diferenciando do seu Toré
(Búzios). De maneira oposta, os Kariri-Xocó assimilaram o Toré Fulni-ô, que
passaram a designar como Toré de Búzios (referencia ao instrumento), mas fazem
questão de frisar que a maneira de dançar e praticar esse Toré segue a “forma kariri”.
Aqui designado Toré de Búzios Kariri-Xocó, pode-se levantar algumas hipóteses
relacionadas a sua relativa frequência nas apresentações do grupo da reserva Thá-Fene
e outros grupos Kariri-Xocó que vêm a Salvador, posto que os Fulni-ô que aqui
estiveram não mostraram este Toré. (CUNHA, 2008, p. 149).
Thxyxá Fulni-ô/ sr. João (cujo é o pai de Wakay: criador da reserva Tha-Fené)
mencionou que as redes musicais da cafurna ocorreram a partir de processos de territorialização
e trocas políticas. Ele e mais “anciãos” da aldeia Fulni-ô me afirmaram que: “isso daqui poucos
vão te contar, mas isso veio de fora, é lá dos Kariri e da mata da cafurna”, fazendo referência
aos Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio/ AL e principalmente aos Xucuru-Kariri da Mata da
Cafurna de Palmeiras dos Índios/ AL. Em entrevistas pessoais, a professora Marilena A. de Sá
também confirmou a possibilidade de uma rede de comunicação com amplas consequências
nas expressões musicais. Por outro lado, alguns jovens Fulni-ô engajados no universo musical
ressaltaram que a comunicação mais estreita ocorre com os Kariri-Xocó, cujos tem costumes
parecidos e a prática do Ouricuri. Portanto, ao que tudo indica, no contexto de reconhecimento
da indianidade uma rede étnica se formara em apoio as reivindicações indígenas impulsionando
uma constelação étnica de forças políticas e de trocas. Neste sentido podemos traçar paralelos
das transformações musicais com as reivindicações territoriais dos Fulni-ô, Kariri-Xocó e
Xucuru-Kariri nos séculos XX e XXI. Como é sabido tais indígenas formaram redes políticas
de reivindicação com apoio e reciprocidade que certamente envolveu um contexto de relevância
para troca musical étnica entre o toré e a cafurna. Se de um lado o processo histórico nos
direciona para as dinâmicas e influências das modalidades, do outro os indígenas do Nordeste
apresentam uma música “originária”, “autêntica” e germinada em decorrência das bagagens
culturais, influências e criatividades.
Deste modo, a cafurna Fulni-ô (sob a óptica interna) é vista (ainda que com influências
interétnicas processuais) como algo exclusivamente Fulni-ô, pois a partir do momento em que
é cantada no yaathe ganha sentidos que não existiram anteriormente em nenhum outro grupo.
Esse processo de reconstrução do passado e recriação do presente revela um regime de saber
com contradições e ambiguidades, pois muitas vezes a ideia do “autentico” e do “original”
procura camuflar uma rede de apoio de trocas de saberes indígenas, sendo justamente nas
narrativas do autêntico que são encontradas problemáticas em torno dos processos criativos e
de autoria. No entanto, ao meu ver, tais relatos e escritos carecem de maiores detalhes, sendo
possível apenas indicar e supor uma rede de comunicação entre determinados povos no
Nordeste brasileiro, que em torno de uma situação política buscam singularizar e autenticar a
sua forma de pisar o mundo. Neste sentido, é possível considerar que tais redes impulsionaram
aprendizados recíprocos nas etnias que aprimoraram uma comunicação política e performática
através da criatividade do ato de pisar, cantar e pertencer no ‘regime da indianidade’.
326
histórica, social, regional, local, afetiva e cognitiva. Em torno do fazer musical há um processo
de aprendizagem com modos de educação e atenção particulares que se articulam com funções
sociais e estruturas simbólicas. Atualmente, a geração acima dos 30 anos relata que aprendeu
as cantigas com os mais velhos dentro de casa, cantando junto com os grupos que se formavam.
Em um período mais recente, o “patrimônio musical” (como definido pela etnia) é ensinado
dentro das escolas indígenas como parte da “cultura Fulni-ô”. As performances do toré e das
cafurnas são praticadas com professores indígenas nas aulas de música, ao mesmo tempo em
que cantam, eles aprendem o yaathe, refletem e se conscientizam acerca da identidade e do seu
território.
Figura 31- Grupo Fulni-ô sob a liderança do compositor Towê puxando cafurnas, durante performance na Aldeia
Multiétnica, na Chapada dos Veadeiros em Goiás/ Brasil, no ano de 2016.
ele se preparava para concluir o último ano escolar) se ele faria algum estudo posterior, ele me
respondeu: “não, continuarei o que já fazemos com a cultura Fulni-ô, essa é a nossa tradição e
o meu trabalho”. Logo, demonstra-se a importância das atividades performáticas para questões
socioeconômicas e identitárias Fulni-ô.
A cafurna é um termo geral para designar estilos musicais disseminados entre alguns
grupos indígenas no Nordeste, que diz respeito ao longo processo de manutenção e criatividade
estética. Cada grupo social cria um repertório musical próprio que tende a crescer ao longo dos
anos com um jeito de “pisar” e fazer a polifonia da cafurna acontecer. Deste modo, os estilos
das cafurnas se referem a uma rede atuante na comunicação intra e interétnica, no Nordeste
brasileiro com um paradigma básico, pois quando adotada haverá um acréscimo de traço
diacrítico próprio.
Na organização musical há um ou mais puxadores e um coro que responde em canto
uníssono. Como o repertório musical na comunidade é extenso, muitas vezes as cafurnas são
disseminadas dentro e fora da comunidade sem saber ao certo os processos de autoria, o que
exige uma busca maior das atividades do etnomusicólogo. Desta maneira, as cafurnas são
conhecidas de modo geral como “música da tradição” (acordado com relatos de alguns jovens
e como descrito na cartilha do Sonora Brasil do SESC, que teve o intuito de divulgar a música
indígena do Brasil, a qual também registrou algumas cafurnas Fulni-ô). Certa vez, o criador das
cafurnas Unakesa Fulni-ô sr. Abdon disse:
“eu fiz essas unakesa todas pra gente, esses jovens ficam cantando por ai e em todo
canto, fazem apresentação em muitos lugares, passa na TV, na rádio, na novela, já
tem muito CD, às vezes nem colocam meu nome... mas eu não tenho como ficar
pedindo dinheiro disso ou qualquer coisa, o que eu fiz foi pra eles mesmo, não tem
condições da gente ficar assim, se fizer um reconhecimento é bom, mas é assim que
funciona já tá bom pra eles perceberem que têm isso, eu não posso fazer nada” (sr.
Abdon dos Santos, professor indígena, Aldeia Sede julho de 2019; diário de Campo).
Também são utilizadas diversas técnicas de canto e danças nas cafurnas que imitam
animais115 e passos já ensaiados - baixo, meio, alto e muriçoca são categorias e técnicas
compartilhadas que expressam a pedagogia musical indígena e a colocação da voz na posição
115
A cafurna da onça descrita nos anexos é um exemplo da afirmação, uma vez que os Fulni-ô dizem que se ao
performar a cafurna eles imitam uma onça, mas não só imitam como todos ali parecem ser onças. Certa vez, ouvi
a professora Marilena dizer: tem uma cafurna que cantam que gosto muito parece que tem um bocado de onça ali,
é muito interessante!”
329
dos intervalos, respectivamente do grave ao agudo como dito pelo jovem músico Rafael Fulni-
ô (e registrado em: ARRUDA, 2017). Também existem variações com uso de 3ª e 5ª da nota
fundamental para criar uma atmosfera de beleza, geralmente fazendo no final da cafurna
alguma variação, a qual chamam de embelezamento. O elemento corporal na música indígena
é presente e central, como me relatou Wyho Fulni-ô: “se você não cantar, tocar e dançar ao
mesmo tempo isso não é cafurna, aí não é música da gente, você pode até fazer só uma parte
como cantar sentado, mas, aí não fica completo, por isso não é cafurna, é um canto qualquer”.
Logo, o fazer musical guarda uma ideia que reúne um conjunto de elementos que atuam
diacriticamente com as demais modalidades musicais ocidentais. Aqui podemos pensar na
característica da “dança” e da “música indígena” que ao atuar como ‘signo do ritmo’ contrasta
com a música ocidental clássica a qual é produzida sem dança (BASTOS, 2006d).
quando ele deixa de ser realizado no chão para adentrar aos palcos, ocorre uma certa perda de
simetria entre os torezeiros e o público, que além de observar o evento também se sentem
participando da performance ao estarem mais próximos para rememorar. Momentos antes da
realização do toré, sr. Abdon dos Santos disse: “estamos fazendo nosso toré para mostrar para
vocês e a todo mundo que aqui em Águas Belas existe o índio Fulni-ô: o setso está aqui e está
vivo!”. Diante destas adaptações, percebe-se que o toré realizado no palco perde a característica
de festividade tradicional e de acontecimento em que todos se reúnem juntos e fazem a festa
acontecer partilhando o mesmo sentido simbólico. Por outro viés, pareceu-me que os Fulni-ô
estavam bem mais acostumados a colocar a cafurna nos palcos do que o tolê (o que reforça o
argumento anterior).
Do mesmo modo, os Fulni-ô lidam com as transferências de contexto e de sentido na
interculturalidade seja no cenário audiovisual ou fonográfico gravando CD`s, filmes e
videoclipes em sua própria comunidade. A partir do desenvolvimento tecnológico e acesso
facilitado às redes sociais da internet, os indígenas têm diversas músicas em plataformas digitais
que impulsionam a intervisualidade Fulni-ô e a percepção nacional de uma gama de estilos
musicais presentes nos territórios indígenas. O tolê, o xaxado de feijão e a cafurna estão
associados às relações socioculturais sincrônicas e diacríticas internas da aldeia, já as outras
como o sertanejo, o forró estilizado e as ‘músicas do mundo’ do campo da Nova Era,
demonstram no contexto de interculturalidade atual uma apropriação musical no cenário étnico
nordestino. Ademais, hoje, existe na etnia grupos musicais que se inserem no mercado
fonográfico, audiovisual e artístico através da produção de CD’s, DVD’s, clipes, documentários
e demais apresentações. Aqui, nos focaremos nas classificações atribuídas a musica Fulni-ô
entre: mestres, artistas, coletivos formais e informais. Para tal, destacarei a unakesa: grupo e
estilo musical com característica de histórias cantadas que dissemina informações e conselhos,
os quais também expressam a sacralidade da língua e proteção da identidade étnica frente às
pressões da globalização e do infortuno das transformações identitárias).
Deste modo, podemos classificar distintos sentidos e atores sociais que atuam fazendo
“música” como um papel social que atua no plano comercial e fonográfico. Existem os mestres
tradicionais da cultura que têm prestigio comunitário e atuam nas políticas de patrimônio (como
Mestre Abdon dos Santos, Mestre Matinho de Matos, Towê, Walê e demais); também estão
atuantes os indígenas que formam grupos formais e informais (de 3 a 50 pessoas) para
apresentar “artesanatos”, produtor culturais e performar um estilo cultural, artístico e/ou
folclórico; nos últimos anos alguns indígenas realizam um trabalho artístico individual com
331
carreira solo que visa sair das esferas do “artesanato” comunitário para se inserir no contexto
artístico do espetáculo. Todos estes estão no contexto da “música indígena brasileira” propondo
ao mesmo tempo realizar uma ação estética e falar do território. Tal caso se problematiza nas
diferenças semânticas vistas nos discursos indígenas entre: “a arte e o artesanato” (como
destacado na nota de rodapé abaixo). Sob poucas palavras, tais categorias apresentam distintas
semânticas de atuação do campo performático, o “artesanato” procura transpassar uma
identidade coletiva agregadora e ecológica, já a arte se insere na cadeia produtiva artística de
grandes espetáculos por uma ideia individual de auto representação coletiva116.
116
No ano de 2019 fui convidado para uma mesa redonda com alguns produtores e indígenas (1 pankararu, 1 truká,
1 kambebá e 1 guarani-kaiwá) para explanar sobre a classificação de música indígena. A minha fala transcorreu
acerca da performance do toré como manifestação comunitária ao reconhecimento da indianidade e da sua
formação no Nordeste do SPI a FUNAI. Todavia, o que se revelou nas entrelinhas de maior interesse foi um
tensionamento que ocorreu entre um indígena artista e uma professora indígena acerca da classificação entre:
artesanato e arte. Na fala do artista houve o argumento: “eu parei de fazer artesanato para acreditar em mim e fazer
arte”. Tal trecho recortado é construído em cima de uma critica maior acerca da inserção indígena no cenário
comercial fonográfico e de apresentação musical, que sob uma construção colonial exclui os grupos étnicos,
colocando-os na categoria de folclore, “música étnica” sob as ordens das Músicas do Mundo (World Music). O
que o artista indígena abordou é uma crítica profunda das bases constitutivas da mercantilização musical étnica
que é vista apenas como folk que se limita a sua comunidade e a um mundo interno fechado, estático e excluído.
Por outro lado, a professora indígena viu nessas palavras uma diminuição das práticas do artesanato ensinadas na
escola que trazem em senso de identidade e ligação comunitária e também proferiu criticas fortíssimas a
necessidade de se moldar ao mercado comercial que inferioriza a imagem e vida indígena. Sob estas duas ordens
criticas, reparei um eixo transversal nas atuações, pois ambos reportaram sobre a necessidade de conscientização
com o uso de múltiplos instrumentos. Se de um lado o artesanato - dito pela professora - cria laços coletivos mais
consolidados, mas se esbarra nestes limites criticados; a arte - dita pelo artista - parece deixar evidente uma
individuação e auto representação coletiva mais distanciada de uma prática performática coletiva. Aqui, não há
receita de bolo para o fazer musical através da arte ou do artesanato. Ambos, enfrentam o mesmo problema
constitutivo: os limites da colonização do pensamento, portanto, cabe a reflexão para a compreensão das múltiplas
forças constitutivas e transformativas do colonialismo para revelar que cabe no contexto étnico uma atuação no
artesanato e nas artes.
332
anos. Deste modo, ao refletir acerca da música indígena, observamos que tais constituições do
mercado fonográfico, do espetáculo e as formas de nacionais do aprendizado musical mantêm
uma assimetria no viés artístico-estético aonde se reserva aos indígenas um local especifico
estereotipado. Obviamente, estes sujeitos viajam nestes mundos e procuram tecer suas redes
utilizando das políticas públicas de afirmação e reparação117, bem como nestes eventos - que
procuram agregar um corpo de crenças e cosmologias – com o argumento de que “conhecer a
cultura indígena é conhecer a si mesmo”.
Xixiá/ Abdon: “quando eu comecei, ninguém fazia isso, era poucos, desde os
anos 70 eu estou criando música para esses meninos conseguirem algum trocado.
Quando eu ia em Recife, Olinda, esses cantos todos, eu levava uma tuia de gente,
117
Atualmente, dentro do povo Fulni-ô poucos mestres conseguem premiações culturais, com o devido
reconhecimento de: Mestre da Cultura Popular/ Tradicional. Podemos citar Mestre Matinho que ganhou o prêmio
de Salvaguarda da Lei Aldir Blanc (2020 -2021) e posteriormente o 5º prêmio Ariano Suassuna da Cultura Popular.
No ano de 2021 – 2022, inscrevi o Mestre Abdon dos Santos no Prêmio de Salvaguarda para Mestres da Cultura
Tradicional, cujo foi selecionado em 1º na região agreste e 26º na colocação geral. Outros coletivos formais e
informais também fazem pontes culturais e artísticas para se inserirem nesta cadeia de editais culturais, os quais
muitas vezes apresentam um distanciamento de realidades e necessidades com as aldeias étnicas, devido as reais
possibilidades de acessos a tecnologias e saberes em torno dos requisitos e dos termos dos editais. Entretanto,
ainda que se note uma necessidade de reformulação e melhoria de acesso de ambos os lados (Secretarias de
Culturas e Aldeias Indígenas), estas ações ainda se tornam importantes para fortalecer a cultura local e uma serie
de aprendizados das culturas indígenas no Nordeste.
333
era mais de 20 índios para cantar, vender artesanato e mostrar a nossa cultura, a
música do índio. Depois, eu cansei de sair de casa, mas, aí continua porque esses
meninos tudinho aprenderam. Eu fiz essas unakesa e entreguei tudo a eles, eu não
pedi e nem quis nada em troca, porque como é que eu vou dizer que isso é meu?!
Eu não posso fazer isso, eles tocando e ganhando o deles já está bom, porque
assim estamos nos ajudando” (Xixiá Fulni-ô/ Abdon os Santos, professor
indígena, agosto de 2018).
É possível afirmar que os antecessores destes personagens eram nativos que realizavam
atividades musicais nas festividades locais e nos trabalhos da roça. Os indígenas que utilizaram
do fazer música para dinamizar o trabalho e desenvolver uma atividade econômica rentável
hoje são conhecidos por toda a comunidade como os que iniciaram um movimento de
circulação e trânsito na construção de uma performance e na mercantilização da cultura. Dentro
do quadro de entrevistas três personagens surgiram nas conversas formais e informais. Os
indígenas: Abdon dos Santos criador da Unakesa, Boró Monteiro118 fundador do grupo Feea
Hia e Mestre Matinho de Matos que criou o grupo Fethxá; também vale citar o grupo Xumaya
que se tornou uma referência musical à etnia. Estes são lembrados por toda a comunidade
quando o tema é acerca da inserção econômica musical da etnia Fulni-ô. Aqui nos focaremos
em duas trajetórias: a da unakesa e da banda de pife Fulni-ô.
118
Boró Monteiro é um descendente Fulni-ô cujo a avó saiu muito jovem da aldeia e casou-se em Recife
(MENEGHINI, 2015, p. 76), na sua fase adulta trabalhou incentivando a mercantilização da “cultura indígena”,
fazendo circulação e pontes em torno da divulgação e promoção Fulni-ô com a venda de artesanatos e
performances culturais. Podemos dizer que este personagem foi um dos protagonistas das trocas entre as cidades
e as aldeias, inclusive, em Recife e Olinda, quando se fala de música indígena Fulni-ô para fora da aldeia é bastante
difícil alguém não citá-lo, desta maneira, destacamos a sua presença neste campo como forma de ilustrar o devido
merecimento ao apontar caminhos possíveis para outros indígenas, como sobrinhos, netos e amigos que inseridos
na vida étnica das aldeia seguiram o caminho da performance e da mercantilização cultural.
334
assim o termo cafurna remete a ideia que os antepassados faziam preces nas pedras. Ainda que
a explicação altere o termo furna - que advém de um abrigo embaixo de pedra e uma espécie
de buraco, ela se desenvolve para detalhar uma continuidade musical criativa, estando hoje as
preces em muitos locais (e não apenas nas pedras como era feito antigamente).
Figura 32- Foto de Xixiá Fulni-ô/ Abdon dos Santos cantando cafurna na cachoeira do Lamarão durante atividade
turística, onde foi representar um “ancião Fulni-ô” e contar as memórias cantadas.
Certamente, tal história oculta as redes e trocas simbólicas, mas, por outro aspecto,
aborda a criatividade Fulni-ô para significar o seu processo social estabelecendo linhas de
continuidade nas suas condutas. Segundo os especialistas contam, foi através de sonhos que as
músicas indígenas chegaram até eles, por meio de Eedjadwa-lhá, sendo o próprio Deus/ Criador
que lhes levou a criatividade e informação para cantarem. Um dos criadores das cafurnas Fulni-
ô, Xixiá Fulni-ô/ Abdon dos Santos, contou-me durante uma caminhada em que compraria a
mistura (carne para almoço) uma passagem do seu processo criativo, foi através de um sonho
que iniciou sua trajetória musical:
A partir desta vivência o ancião relatou que criou o primeiro grupo de cafurna chamado
de unakesa - que é o nome original do yaathe para o estilo musical das cafurnas, a qual é uma
“chamada para uma “procura cantada”, que utiliza da estrutura organológica do maracá (tsaka)
como fonte sonora e rítmica. O termo em yaathê: unakesa assume a tradução de: “onde está?
Vamos procurar nossos direitos” (Abdon dos Santos, etnografia 08/2018), sendo histórias
contadas na história, as quais através do saber narrativo despertam uma busca aos direitos
indígenas e a noção (trans)pessoal coletiva de tempo/ espaço. Para demonstração seguem
abaixo duas cafurnas que representam dilemas e preocupações na etnia Fulni-ô. A primeira
aborda a inserção econômica dos Fulni-ô ao criarem grupos musicais com a preocupação dos
direitos indígenas, sob um formato de apresentação artístico-cultura. Enquanto a segunda
descreve a necessidade de preservação da língua como ponto central na resistência étnica.
Quadro 9- Cafurna unakesa de Xixiá Fulni-ô/ Sr. Abdon dos Santos, agosto de 2018.
Quadro 10- cafurna Yatxtxo nine criada por Xixiá/ sr. Abdon dos Santos
Yake datka-lha sato yatxhatxhletwa keynixto Nossa liderança (cacique/ pajé) ensinem nossos filhos
que há de mais sagrado na música, a potência do canto que encontra harmonias e sentidos como
forma de revelar o que é “autentico” dentro de regimes de opressão e marginalização.
Segundo me foi apresentado por registros em cartório, sr. Abdon dos Santos nasceu em
07/09/1949 – considerado o rei das cafurnas – registrou a “Unakesa” em cartório na década de
90, havendo em seu estatuto uma procura por benefícios na qualidade de vida por meio da
gestão artística comunitária. Embora, segundo os relatos a “Unakesa” foi iniciada nos anos 70
para promover a “cultura indígena” e auxiliar os adolescentes na inserção de atividades culturais
socioeconômicas. Ao conversar sobre música e cafurna todos os jovens relataram alguma
influência da Unakesa, seja através das canções que estão como repertório ou das formas de
apresentar a música indígena. Ainda foi possível compreender uma transferência cultural em
torna das gerações e famílias que optaram por fazer da atividade musical um meio de atividade
econômica. O seu filho Flixiwá Nal`txowá Fulni-ô/ Manoel Sarapó dos Santos - nascido em
08/01/1990 - também enveredou nos caminhos da “música indígena” com o seu grupo
Sawlin`hô-Satô, que seguindo os passos da Unakesa realiza apresentações dentro e fora das
Aldeias Fulni-ô.
Durante algumas aulas indígenas foi possível compreender que a internalização das
habilidades sonoras envolve processos de aprendizado com uma troca de saberes entre jovens
e adultos que conversam sobre dificuldades e modos motores de incorporação das expressões
musicais. Certa vez, após a apresentação de grupos indígenas na abertura do terreiro da família
Verissimo em março de 2018, pude gravar um grupo de 12 crianças cantando cafurnas aonde
elas criativamente reproduziam os ensinamentos alternando coro e vozes conforme suas
vontades. Alguns gestos eram repetidos como a mão nos ouvidos, gestos corporais, alternância
e entoação das vozes. Em resumo, foi possível encontrar uma dinâmica das cafurnas uma vez
que os músicos internalizam tais aprendizados e direcionam a voz e o corpo para demonstrar
uma maneira de se comunicar.
Mestre Abdon dos Santos tem uma longa trajetória musical, ao detalhar sobre as suas
composições da cafurna ele me disse: “[...] agora, quando você for fazer o seu trabalho não
diga que fazemos cafurna, porque isso aqui não existe, o que nós fazemos é unakesa, que essa
é que é o nosso jeito de cantar a música do índio”. Certamente, tal detalhe argumentativo tem
uma lógica, uma vez que a cafurna é difusa no Nordeste, a unakesa traz a particularidade do
setsô que canta em sua língua e, desta maneira, apresenta uma linha de continuidade que
organiza e escolhe conteúdos culturais disponíveis. Após eu e mais jovens escutarmos essa fala
338
do ancião, muitos vieram me relatar que eles não faziam cafurna, o que faziam ali era unakesa.
Todavia, tanto a cafurna como a unakesa estavam na boca dos indígenas que cantavam por
muitas razões para pertencer e existir.
Figura 33- Registro do Mestre Matinho durante as gravações do edital de registro e salvaguarda de mestre da
cultura popular, promovido pela Lei Aldir Blanc, em janeiro de 2021.
Como nos contou seu filho Marcos de Matos: “os antigos pifeiros da aldeia eram
chamados de leleus, ainda nem existia a ideia de banda de pife, mas eles já tocavam o pife”. O
tio Luna e o avô Manoel de Matos do Mestre Matinho são parentes lembrados que também
tocavam o instrumento, cujos lhe repassaram o dom e confiança para manter a tradição da
339
Banda de Pife Fulni-ô. Em sua narrativa, o mestre também conta uma série de episódios que
descrevem como ocorreu seu amadurecimento musical, desde sonhos até passagens vivenciadas
para o alcance da maturidade musical, reconhecimento e prestígio social. A sua biografia é
expressa pelo mestre quando relata que sonhou conversando com seus antepassados e se viu
sob os pés de Yasakhlane tocando pife com os anjos. Tal passagem é emblemática pois também
descreve por uma simbologia o local de Mestre Matinho nas festividades populares da Festa da
Aldeia, uma vez que o seu pife acompanha toda a festividade da Santa estando das 6:00 da
manhã até o período da noite “fazendo o coco e tocando pife na festa da Santa”, com a
confirmação de que mantém a tradição e o que os antepassados faziam. A passagem que
descreve a transmissão musical de Mestre Matinho narra o encontro dele com o seu tio Luna,
quando ambos tocaram pife – como que em uma prova – para testar as habilidades de pifeiro.
Após alguns toques e variações, eles partiram para a última prova, assim que o Mestre Matinho
tocou a música - A briga do cachorro com a onça - todos tiveram a certeza de que ele seria o
pifeiro da aldeia, e que não deixaria a Banda de Pife acabar, “continuando a tradição dos pife
na Aldeia Fulni-ô”. Também registrei outra passagem que descreve a inserção do Mestre
Matinho e do seu grupo artístico nas festividades e nos palcos carnavalescos da cidade do Recife
e Olinda.
Geração do Índio
A geração do índio
vem de outra geração
quando tudo se acabou
com aquele grande Dilúvio
o índio virou peixe,
o índio virou pedra.
Representar o som e comunicar a sonoridade Fulni-ô é uma atividade que se insere com
diferentes perspectivas e intenções. Como transformar uma experiência revelada pelo sentido
auditivo para as letras do papel? Como materializar o som e os seus aprendizados? Para os
Fulni-ô há o senso experiencial para compreender o que é a sua vida conectada à performance.
Como dizem, “é preciso estar aqui e ver para saber o que é [nossa vida], não adianta achar
342
que viu um vídeo e achar que sabe o que é a nossa vida na palha, subindo e descendo serra”
(Arytana, músico da tradição). Deste modo, não falamos dos saberes e conhecimentos musicais
apenas pela via da organização da música entre som agradável e ruído desagradável (WISNIK,
1989). Pois, já vimos que os próprios Fulni-ô trabalham a noção de ruído em suas cafurnas.
Mas, o desafio permanece ao transpor sentidos, lógicas e sons à escrita e ao papel. Na cultura
ocidental o som é visto como uma manifestação física, são frequências de ondas que chegam
aos ouvidos e apenas são compreendidos por interação entre emissão e recepção, sob a lógica
de que cada som no ambiente necessita de um tímpano (ou aparelhos específicos) para serem
captados (INGOLD, 2015). Entretanto, por outra vertente, o problema da antropologia
filosófica aqui é demonstrado pela reversão de lógicas, ao realocar sons e sentidos os
removemos de um lugar para conduzi-los a outra representação: escrita, a pauta da
representação musical e ao fonograma. Ainda que estejamos no limite do inefável para
descrever timbres sonoros (do búzio, da maracá e da junção de vozes), foi procurado a indicação
de um processo musical étnico no Nordeste. Em outras palavras, descrevo formas possíveis de
aproximação dos processos de um etnohistória cantada.
Neste sentido, mais do que falar de paisagens estáticas com materiais que se encerram
no ambiente, procurei abordar no processo o movimento de continuidade das transformações.
Portanto, como forma de sistematizar algumas das coletas de campo, destaco também uma
atuação antropológica interdisciplinar no campo musical e da produção audiovisual, através da
manipulação destes sentidos, reversões de lógicas e sensibilidades. Desta maneira, como forma
de indicar, transpor e sistematizar lógicas, procuro materializar o som à escrita sobre a
precepção das limitações e possíveis equívocos que a pauta musical não representa com a
devida perfeição, seja porque as cafurnas podem ser cantadas diferentes ou porque a música
popular não carece desta sistemática, como já nos disse Martin Braunwieser durante o trabalho
da Missão das Pesquisas Folclóricas (CARLINI, 1993, 2000).
De acordo com José Miguel Wisnik (1989), a música traz consigo um princípio
ambivalente de ordem/ desordem, mas, que, quando organiza o mundo vivido oferece a
ordenação do modelo utópico de uma sociedade. Este sentido formado e expresso pela música
é constantemente totalizado reflexivamente no termo de “cultura” (CUNHA, 2017), sendo um
instrumento reflexivo da tradição, que, quando acionado expressa suas histórias, políticas,
normas e controles sociais. Brevemente, procurei apresentar através de uma faceta musical das
cafurnas as redes de comunicação, a particularidade Fulni-ô e as pressões sofridas pelo grupo
343
étnico e junto com suas formas de resistência. Por fim, sabe-se que os idiomas assumem uma
dinamicidade devido às transformações nas expressões e nos modos de comunicação, deste
modo, apresentou-se através da organização e dinâmicas musicais, as formas de contar
histórias, resistir e resguardar a identificação étnica. Pois, paralelamente, tais questões são
respostas às imposições internas/ externas. A predição cantada é um aviso ao grupo social que
demonstra seus agenciamentos na remodelação social por modelos imaginados de sociedade.
Portanto, cantar é um modo de pertencer (DANTAS, 2011a) resistir, reivindicar e performar
uma luta ontológica. A busca nestas canções está na justiça social, por isso, elas são o
instrumento que despertam a memória e profetizam entre os iguais a atenção para se buscar
direitos.
Portanto, para retomar e finalizar nossa ideia inicial do processo histórico, a tradução
semântica de Yakhletxaka-sê se refere ao conjunto de interação da identidade: ambiente, povo
e pessoa, em conjunto com seus dilemas internos e externos. Tal combinatória histórica revela
uma formação do canto sob um duplo sentido: de um lugar e de uma expressão que compõe um
modo de existir, habitar e se comunicar. A expressão artística é a base da formação humana,
antes de falar nós cantamos, antes de escrever nós desenhamos. Portanto, o “nosso canto”, ou,
o canto Fulni-ô carrega um corpo semântico inseparável entre as espécies que se comunicam
no ambiente fazendo casas, festas e rituais.
Figura 34- Fonograma 1: Cafurna unakesa (onde está? Vamos procurar os nossos direitos).
Figura 35- Fonograma 2: Mestre Matinho tocando com a pife a música: A briga do cachorro com a onça
Unakesa
Figura 36- Trecho da partitura da unakesa (vamos procurar nossos direitos).
Percussão / Ó ∑ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
9 30
Perc. œ/ œ ¿ œ ™¿ œ œ œ#¿œ œ#œ¿ n¿œ œ œ œ¿œ œ¿ ¿ œ#œ œ¿œ ¿ œ œ ¿œ œ¿ œ ¿œ œ¿ œ
& #œ #œ œ
17 & œ™#œ
œ œ œ œ#œ#œ œ#œ œ#œ#œ œ œ™#œ œ œ œ œ œ#œ œ œ Œ #œ
& œTranscrita
Fonte: œ œ œ saœ#œ œ œ œ œ œ œ œ œ uœ- naœ œ- ke
œ œ œ œ œ œ œ œ œ œu -œna œ- ke
por Eric Caldas, 2022. œ œ- sa œ œ œ œ uœ-œ
37
Perc.
25 / ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
#œ œ #œ œ œ œ#œ œ œ#œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ
& œ œ œ œ œ#œœ#œ
& œ#œ œ#œ#œ œ œ Œ #œ œ#œ #œ #œ œ#œ#œ ˙ œ™#œ œ œ œ
35 na - y no-se - se No - ka-se txhu -a - y No -ka
& œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ #œ œ #œ œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ
46
& œ œ œ œ œ œ œ
œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ ˙
345
12 Considerações finais
políticas da tradição. Por conseguinte, foi visto uma série de adaptações socioeconômicas e de
práticas sociais pelo ‘diálogo dos complexos’ (jurema e aerofones sagrados), que revelam
práticas tradicionais com uma série de narrativas e necessidades sociais intra e extra étnicas.
Tais processos territoriais e de dinamicidade social estão entrelaçados como uma malha com
questões sociais de conflitos, articulações e adaptações, que foram vistas a partir de três
categorias: cosmologia, territorialidade e performance.
No sentido das práticas tradicionais o processo de dinamicidade cultural demonstra
enquanto resultado que os Fulni-ô realizaram seus “ritos do ouricuri” em diversos locais da sua
territorialidade como forma de resistência étnica, e que continuam por firmar locais sagrados
tendo como simbologia determinadas árvores que agenciam um conjunto semântico de
significados, saberes e práticas que conectam os Fulni-ô contemporâneos aos seus “ancestrais”.
Desde modo, os Fulni-ô tem mais do que um sistema estático de ritual, conhecimento territorial
e pertença étnica, pois a partir destas interações e habilidades de mobilização os Fulni-ô por
saberes “sagrados” revitalizam suas formas de comunicação sem perder os sentidos dos
atributos indígenas da fala e da presença territorial no espaço “sagrado” que é encantado pela
presença das raízes, árvores e “troncos” familiares. Sob o viés da articulação de sistemas
cosmológicos, procurei demonstrar como as noções Fulni-ô do “ouricouri” e da vida social
envolvem questões de organização política dos sistemas culturais, que estabelecem concepções
distintas e relacionais de atuação. No caso há uma clara ligação com os “ancestrais” pelas ideias
cosmológicas de vida, movimento e comunicação demonstradas, criando-nos dados para
detalhar acerca da perspectiva ameríndia nordestina no caso Fulni-ô, a qual tem no yaathe um
dos principais atributos na formação da pessoa para estabelecer capacidades comunicativas e
mediar mundos entre os seres humanos e não-humanos (vegetais e entidades). Por outro lado,
é visto como resultado que tal conhecimento repassado desde os “troncos antigos” determina
na comunidade Fulni-ô uma relação de coesão comunitária no território, pois apenas os que
adquirem tal “ciência” são os capacitados e habilitados a compreenderem tais ensinos da
Natureza e repassá-los.
Como detalhado, o “rito ouricuri” tem em sua história uma característica de
dinamicidade realizado em diferentes épocas e locais, sendo provavelmente um dos elos
centrais na organização política e da noção de territorialidade destes indígenas. Pois, se antes
os mesmos realizaram os seus rituais, eles certamente realizaram os ritos nas suas terras. O
ritual envolve um conjunto de práticas como coleta de plantas, preparação de alimentos e o
exercício da formação de uma conduta étnica do segredo e do sagrado. Ademais, o rito está
347
associado aos aprendizados dos atributos da formação da pessoa Fulni-ô (setso), que é
correlacionado pela descendência indígena, participação do rito ouricouri e ser falante do
yaathe, deste modo, os ensinos sagrados são aprendidos e rememorados em uma vivência ritual
de longa duração que atua de maneira multissemântica no campo político e religioso. Tal modo
de operação ameríndio Fulni-ô no Nordeste brasileiro se torna uma forma de resistência, pois
ao proteger ritualmente a língua materna yaathe e continuar por preserva-la dentro e fora do
“rito ouricuri”, também se preserva a perenidade da compreensão e visão de mundo Fulni-ô
nestas terras interioranas das caatingas, pois os animais, vegetais e serras têm nomes e sentidos
próprios na língua, eles também podem ter donos que segundo contam são as forças maiores
que guardam e abençoam seus territórios.
***
vida pelas possibilidades de realizar uma atividade social secundária de geração de renda. A
partir deste contexto foi notada uma série de práticas em torno da jurema, que por feituras e
intencionalidades é vista sob a ótica de uma “ciência do índio” (como dito por pesquisadores:
MOTA, 1987, 2002; NASCIMENTO, 1994; REESINK, 2002) com uma variedade política e
de ações em torno do tema da tradição. No caso descrito, a “tradição” assume um aspecto
reflexivo da vida indígena com processos de adaptação de práticas e conteúdos simbólicos que
são consideradas tradicionais, que lidam diacriticamente com um regime maior de dominação
assimétrica.
Deste modo, o “sangue da jurema” como dito por sr. Thxyxá / João de Matos demonstra
como a planta é tomada em uma analogia comparativa ao corpo humano, tendo o sangue o
potencial de revitalizar o animo da vida indígena, mas, sobretudo deixar claro a todos que os
indígenas Fulni-ô são os capacitados espirituais a percorrer os mundos e os caminhos
xamânicos da Natureza para compreender uma linguagem dos “mistérios” destas plantas e do
território. Tal demonstração aponta os indígenas como reais detentores de uma habilidade no
sentido de ouvir os mistérios da natureza e dos encantados e saber transpassa-los, logo, a jurema
tem em seu agenciamento uma capacidade de ampliação de visão de mundo e poder curativo.
Em síntese, foi visto que a jurema ocupa diversos símbolos e lugares no território, pois como
planta, entidade, encantada, cabocla, bebida e símbolo, a jurema se reveste de poder com o dom
da cura, seja uma cura no contexto espiritual intercultural ou pelo uso das suas cascas como um
remédio anti-inflamatório. Nessas formas de compreender a jurema, parece-me que os Fulni-ô
fazem uma distinção ao uso da jurema com o transe (khoxá) e o uso de forma cotidiano com
finalidades terapêuticas utilizando-a como um remédio (hehatyo). Em todos os casos, os
indígenas compreendem que há um “espírito” dono da planta, nesse sentido, talvez, “Eedjadwá”
ganhe maiores forças no panteão Fulni-ô do que a “cabocla jurema”, uma vez que os usos
etnografados procuravam se comunicar principalmente com tal patrono. Deste modo, pode-se
notar que os termos abordados em yaathe ganham um sentido experiencial de originalidade
maior do que qualquer palavra portuguesa, uma vez que a língua materna Fulnio-ô é
temporalmente continua e assume uma maior continuidade intraétnica.
Em muitas destas experiências procurei descrever e traduzir os saberes Fulni-ô sobre
sua territorialidade, cosmologia e modos de performar, entretanto, algumas traduções são
indicações de semânticas similares, pois ao correlacionar (xumaya – vento – espírito), ou,
(khoxá – uso jurema com transe - possível incorporação), não é possível dizer que falamos da
mesma coisa e que xumaya é espírito tal qual se entende nacionalmente no senso comum
349
brasileiro. Tais associações são aproximações com os sentidos ameríndios Fulni-ô que detalham
um campo relacional de contraste, deste modo, comparei noções similares, mas não idênticas.
Em outras palavras, comparamos termos como espíritos e encantados, mas, quando abordados
na língua indígena estamos falando de outros conceitos, visões de mundo e experiências.
Portanto, as interações que os Fulni-ô tem com seus territórios são formas ameríndias
de compreender a “ancestralidade, tradição, cultura e autenticidade” junto com seus percursos
históricos e sua organização política atual. Através de símbolos vegetais como o ouricuri,
jurema, juazeiro e a árvore da aroeira os indígenas estabelecem pontes de significados e
comunicação com os “troncos”, que são seus familiares que viveram em tempos passados. Por
outro lado, manter a forma de organização política através de uma atividade cosmológica/
xamânica/ ritual de reverenciar palmeiras e árvores como uma forma de auto-representação à
etnia e ao outro. Assim, desenvolve-se uma série de habilidades no campo da comunicação, no
sentido de se colocar no grupo genérico de “índios” ao mesmo tempo em que se exercita uma
singularidade do modo de existir Fulni-ô. Foi neste sentido que detalhei a complexidade em
torno do termo encantados em uma rede de relação indígena, ou, as formas particulares da
pisada, toré e cafurna Fulni-ô.
***
lugar de destaque na “tradição”, o seu toré público é executado com o instrumento que se torna
um dispositivo xamânico para rememorar eventos e reafirmar a identificação étnica.
Como exposto, o búzio Fulni-ô assume uma característica de continuidade de práticas
ameríndias que se adaptam ao contexto de regionalização e do antropoceno, sendo o
instrumento confeccionado de maneiras diversas, existindo formas tradicionais e não
tradicionais. O complexo dos aerofones sagrados através de uma ecologia musical demonstra
formas de criatividade realizadas no território por práticas que expressam sentidos
compartilhados. Deste modo o “toré de búzio” Fulni-ô e a confecção do par do instrumento
sonoro é realizado por especialistas, que, com a efervescência e o transe coletivo rememoram
os eventos e o local simbólico do “índio” na sociedade. Deste modo, o toré em sua
multisemântica continua por organizar a vida étnica no Nordeste, sendo por meio das suas
apresentações públicas, ou, através de autenticação de cópias de “flautas” para museus e demais
personagens que o indígena destaca a sua “autenticidade” e a sua atuação como detentor
cultural. Para além da realização do toré público foi visto como os especialistas Fulni-ô lidam
com o instrumento sonoro aerofone (búzio) e apresentam uma economia simbólica por um
conjunto de técnicas e regimes que revelam uma política da tradição.
Portanto, foi destacado que os Fulni-ô expressam no campo do tradicional uma série de
saberes que são localizados de acordo com seu senso de territorialidade, o manuseio com as
plantas, o conjunto de técnicas, rede de trocas simbólicas e mais saberes compõem dispositivos
para a criatividade ameríndia nordestina que orientam sentidos territoriais, identitários e
simbólicos.
352
Referências
ACSELRAD, Henri.
2004. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Fundação Henrich Böll.
AGOSTINHO, Pedro
1989. Incapacidade civil relativa e tutela do índio. Em: CARVALHO, M. R. de (org.).
Identidade étnica, mobilização política e cidadania. Salvador: UFBA, Empresa Gráfica da
Bahia.
ALBUQUERQUE, U. P. de; SOLDATI, G. T.; SIEBER, S. S.; RAMOS, M. A.; SÁ, J. C. de;
SOUZA, L. C. de.
2011. The use plants in the medical system of the Fulni-ô people (NE Brazil): A perspective on
age and gender. Journal of Ethnopharmacology, nº 133.
ALBUQUERQUE, U. P. de; SOLDATI, G. T.; SIEBER, S. S.; RAMOS, M. A.; SÁ, J. C. de;
SOUZA, L. C. de.
2011. Rapid ethnobotanical diagnosis of the Fulni-ô Indigenous lands (NE Brazil): floristic
survey and local conservation priorities for medicinal plants. Springer, nº 13, p. 277-92.
2009 “Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito.” Em E Pietrafesa
de Godoi, Marilda Aparecida de Menezes e Rosa Acevedo Marin (orgas.), Diversidade do
campesinato: expressões e categorias v.2: estratégias de reprodução social. São Paulo e
Brasília: Editora UNESP e Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural.
ARRUDA, André.
2017. Processos de Aprendizagem Musical entre Estudantes e Indígenas Fulni-ô em uma Escola
Pública de Ensino Médio de Paudalho-PE. João Pessoa: UFPB.
ATHIAS, Renato.
2002. Os encantados, a saúde e os índios Pankararu. ALMEIDA, L. S. de; GALINDO, M.
(orgs.). Índios do Nordeste: temas e problemas 3. Maceió: Ed. UFAL.
2007. A noção de identidade étnica na antropologia brasileira de Roquette Pinto à Roberto
Cardoso de Oliveira. Recife: Ed. UFPE.
2016. Máscaras, danças e maracás. Imagens sobre a espiritualidade ameríndia da coleção
etnográfica Carlos Estevão de Oliveira. Belém: Revista Visagem, vol. 2, jan. - jun., p. 8-27.
354
AUGÉ, Marc.
2000 [1992]. Los no lugares espacios del anonimato: una antropologia de la Sobremodernidad.
Barcelona: Editorial Gedisa.
2007. El oficio de antropólogo. Barcelona: Editorial Gedisa.
BALBONI, André.
2018. Sopro das musas: fundamentos filosóficos da música. São Paulo: Odysseus.
BALDUS, Herbert.
1950. Bebidas e narcóticos dos índios do Brasil: sugestões para pesquisas etnográficas. São
Paulo: Escola de Sociologia e Política de São Paulo, vol. XII, nº 2.
BARBOSA, W. de Deus.
2005. O toré (e o praia) entre os Kambiwá e os Pipipã: performances, improvisações e disputas
culturais. Em GRUNEWALD, R. de A. (org.). Toré: regime encantado do índio do Nordeste.
Recife: Fundaj, Ed. Massangana.
BARTH, Fredrik.
1969. Ethnic Groups and Boundaries. Boston: Little, Brown and Company.
2000. O guru, iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Ed. Contra capa.
2003. Temáticas pertinentes e emergentes na análise da etnicidade. VERMEULEN, H.;
GOVERS, C. (orgs.). Antropologia da Etnicidade: para além de ethnic groups and boundaries.
Lisboa: Fim de Século.
BASTIDE, Roger.
1951. O folclore brasileiro e a geografia. Boletim Paulista de Geografia, nº 8.
2006 [1997]. O Sagrado Selvagem e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
BASTOS, R. J. de M.
1999. A musicologia Kamayurá: para uma antropologia da comunicação no Alto Xingu.
Florianópolis: Ed. da UFSC.
355
2006a. Música nas Terras Baixas da América do Sul: Estado da Arte (Primeira Parte).
2006b. Música nas Terras Baixas da América do Sul: Estado da Arte (Segunda Parte).
2006c. Arte, Percepção e Conhecimento – O “Ver”, o Ouvir e o “Complexo das Flautas
Sagradas” nas Terras Baixas da América do Sul.
2006d. O índio na música brasileira: recordando quinhentos anos de esquecimento. Em Tugny,
R. P.; Queiroz, R. C. de (orgs.). Músicas africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Ed.
UFMG.
2007. Música nas Sociedades Indígenas das Terras Baixas da América do Sul: Estado da Arte.
Mana 13(2): 293-316.
2011. Análise musical e contexto na música indígena: a poética das flautas. Revista
TransCultural de Música.
2013. A festa da Jaguatirica: uma partitura crítico interpretativa. Florianópolis: Ed. da UFSC.
2014. Para uma antropologia histórica da música popular brasileira. Antropologia em primeira
mão / Florianópolis: UFSC.
2017.Tradução intersemiótica, sequencialidade e variação nos rituais musicais das terras baixas
da América do Sul. Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 60 n. 2: 342-355 | USP.
BEAUDET, Jean-Michel.
1989. Les “Turè”, des Clarinettes Amazoniennes. Revista de Música LatinoAmericana, vol. 10,
nº1.
1998. WAYÂPIOF GUYANE - An Amazon Soundscape. Paris: CNRS/Musée de l'Homme.
BECKER, H.
2007. Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.
2008 [1963]. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.
BENEVISTE, Émile.
1989. O aparelho formal da enunciação. Em: Problemas de linguística geral II. São Paulo:
Pontes, cap. 5, pp. 81 – 92.
BITTENCOURT, Miguel.
2015. O nascimento do panteísmo ayahuasqueiro e os seus processos de cura. Recife: UFPE.
2019. “Unakesa”: uma expressão musical Fulni-ô (uma revisão). Recife: Revista de Estudos e
Investigações Antropológicas [on-line], v.6, n.1.
BLACKING, John.
1973. How musical is man? Londres: Faber & Faber.
BRASIL.
2007. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Projeto Vigisus II. Coordenação
Técnica. Área de Medicina Tradicional Indígena. Medicina Tradicional Indígena em Contextos
356
BRAYNER, T, Nogueira.
2013. É terra indígena porque é sagrada: Santuário dos Pajés – Brasília/ DF. Brasília: UnB.
Dissertação de mestrado.
BOUDIN, Max.
1949. Aspectos da vida tribal dos índios Fulni-ô. [s.ed.] Cultura. Bibliografia.
1950. Singularidades da língua Iá-té. Rio de Janeiro: Unv. Católica, Revista Verbum.
Gramática, vocabulário e textos da língua ia-té. SPI; Ministério de Agricultura.
BOURDIEU, Pierre.
2002 [1972]. Esboço de uma teoria da pratica. Tradução por Paula Montero.
1986. L’illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. L’illusion
biographique, v. 62 – 63, pp. 69-72, jun.
1989. O poder simbólico. Lisboa: DIEFEL.
2013. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva.
2013 [1979]. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk.
BRANNER, John.
1886-7. Notes upon a brazilian native language. New York: Indiana University.
1927. Os Carnijós de Aguas Belas. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, tomo 94, vol. 148, (1923).
CARLINI, Álvaro.
1993. Cachimbo e maracá: o Catimbó da Missão (1938). São Paulo: CCSP.
2000. A viagem na viagem: maestro Martim Braunwieser na missão das pesquisas folclóricas
do Departamento de Cultura de São Paulo (1938) – diário e correspondências à família. São
Paulo: Universidade de São Paulo. Tese de doutorado.
CARNEIRO, Henrique.
2004. As plantas sagradas na história da América. Minas Gerais: Revista [on-line] Varia
História, vol. 20, n° 32.
CARTAS JESUITICAS.
1886. I. Cartas do Brasil (do padre Manoel de Nobrega 1549 – 1560). Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional.
1931. II. Cartas Avulsas 1550 – 1568. Rio de Janeiro: officina industrial gráfica, Academia
Brasileira. II História.
CARVALHO, M. Rosário. G. de
1977. Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema econômico. Dissertação de mestrado, UFBA.
1983. “A Identidade dos Povos do Nordeste”. Anuário Antropológico, v. 7, n. 1, pp. 169 –
188.
1988. “Os povos indígenas no Nordeste: Território e Identidade Étnica”. In Cultura, Ano 1,
no. 1.
1989. Introdução. Identidade Étnica, Mobilização Política e Cidadania. Salvador: UFBA.
2011. “De índios “misturados” a índios “regimados”. In: CARVALHO, Maria R. de;
REESINK, Edwin B (orgs.). Negros no mundo dos índios: Imagens, reflexos, alteridades.
Natal: EdUFRN.
CASTRO, M.; RÊGO, L.; NUNES, C.; SPINELI, A.; NUNES, F..
2017. A uruçu dos Pankararé no Raso da Catarina, Bahia. In: FONSECA, V.; KOÉDAM, D.;
HRNICIR, M.. A abelha jandaíra no presente, no passado e no futuro. Mossoró: EDUFERSA.
CLASTRES, Pierre.
2017 [1974]. A sociedade contra o Estado. pesquisas de antropologia política. São Paulo: Ubu
Editora.
CLIFFORD, James.
2014 [1994]. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro:
UFRJ.
CORIOLANO. L. N. M. T.
2008. O turismo comunitário no Nordeste brasileiro. Belo Horizonte/ MG, V Seminário de
Associação Nacional de Pesquisa de Pós-Graduação em Turismo. Texto online dos anais
consultado em: 10/12/2019, disponível em: [www.anptur.org.br/anais/anais/files/5/23.pdf].
2009. Arranjos produtivos locais do turismo comunitário: atores e cenários em mudança.
Fortaleza: EdUECE.
1999. Ya:thê, a última língua nativa no nordeste do Brasil: aspectos morfo-fonológicos e morfo-
sintáticos. Tese de doutorado. Recife: UFPE.
2015. Descrevendo línguas brasileiras: Yaathe, a língua dos índios Fulni-ô. Revista do GELNE
Vol. 17, Nº 1-2.
CRAVALHO, Mark.
1998. “Do doente a “encantado” – o conceito do mecanismo de defesa constituído
culturalmente e a experiência de uma vítima “espírito mau” em uma comunidade rural na
Amazônia” in Alves, Paulo César (org.) Antropologia da saúde: traçando identidade e
explorando fronteiras/organizado por Paulo César Alves e Miriam Cristina Rabelo. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará, pp. 157-178.
1980. Terras dos índios Xocó: estudos e documentos. São Paulo: Comissão Pró-Índio.
DANTAS, Sérgio.
2002a. Contando, cantando, rememorando: história, sagrado e tradição. [s.l.]: Revista Tempo
de Conquista [online].
2002b. Sou Fulni-ô, meu Branco. São Paulo Tese de Doutorado em Ciências
Sociais/Antropologia, Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.
2007. Processos interculturais de identidade religiosa: o mundo Fulni-ô. Goiânia: Revista
Caminhos [online], vol. 5, nº 1, p. 149-177.
2011a. Sagrado canto Fulni-ô: por uma causa, uma história, um pertencer.. In: SCHRÖDER,
Peter (org.). Cultura, identidade e território no Nordeste indígenas. Recife: Ed. Universitária,
pp. 187-206.
2011b. O fundo musical da história: memória, sagrado e tradição indígenas consciências.
Consciências. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa. CTEC – Centro Transdisciplinar
de Estudos da Consciência, nº. 4, p. 225-238.
DEBORD, Guy.
2003 [1967]. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Coletivo Periferia [e-book].
DE NANTES, Bernardo.
1709. Katecismo Indico da língua Kariris. [...] acrescentado de varias praticas doutrinaes, e
Moraes, adaptadas ao gênio, e capacidades dos Indios do Brasil. Lisboa: Officina de Valentim
da Costa Deslandes.
2013. A constituição da identidade étnica dos Fulni-ô do nordeste brasileiro. Recife: Revista
Anthropológicas, ano 17, v. 24(2),pp. 75-112.
2014. Los Fulni-ô. Territorialidad e identidad en el nordeste de Brasil. Ciudad México: IX
Congresso de la Associação LAtinoAmericana de Sociología Rural.
2015. “Los Fulni-ô: lo sagrado del secreto. Construccíon y defesa de la identidad en un
pueblo indígena del nordeste brasileño”. Quito: Ed. Abya-Yala.
DONATO, Hernâni.
1973. Dicionário das mitologias americanas (incluindo as contribuições míticas africanas). São
Paulo: Ed. Cultrix, 1° ed.
DOUGLAS, Mary.
2012 [1966]. Pureza e perigo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2º ed..
DURKHEIM, Émile.
2008 [1960]. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulus. 3º ed.
ELLEN, Roy.
2016. Is there a role for ontologies in understanding plant knowledge systems?. Society of
Ethnobiology: Journal of Ethnobiology, 36 (1): 10 -28.
ELIADE, Mircea.
1976. El chamanismo y las técnicas arcaicas del éxtasis. México: FCE.
ESCOBAR, Arturo.
2014. Sentipensar com la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia.
Medellín: Ediciones UNAULA.
362
ESCOHOTADO, Antonio.
2004 [1996]. História elementar das drogas. Lisboa: Ed. Antígona.
ESTIVAL, Jean-Pierre.
1993. Quelques aspects des polyphonies instrumentals tule des Asurini du Moyen-Xingu.
Cahiers d’ethnomusicologie [en ligne], v.6.
EVANS-PRITCHARD, E. Evan.
2014 [1928]. A dança. Em: CAVALCANTI, M. L. (org.). Ritual e performance: 4 estudos
clássicos. Rio de Janeiro: 7Letras.
2005. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar.
FAUSTO, Carlos.
1992. Fragmentos de história e cultura Tupinambá: Da etnologia como instrumento crítico de
conhecimento etno-histórico. Em CUNHA, M. C. da. História dos Índios no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP.
FERNANDES, Florestan.
2009 [1975]. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Ed. Global, 2º
ed..
FERREIRA, L. O..
2013. Medicinas Indígenas e as Políticas da Tradição: entre discursos oficiais e vozes indígenas.
Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ.
FOLLÉR, Maj-Lis.
2004. Intermedicalidade: a zona de contato criada por povos indígenas e profissionais de saúde.
Em: LANGDON, E.J.; GANELO, L. (orgs.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre
antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contra-Capa.
FOTI, Miguel.
1991. Resistência e segredo: relato de uma experiência de antropólogo com os Fulni-ô.
Dissertação de mestrado. Brasília: UnB.
2000. Uma etnografia para um caso de resistência: o ético e o étnico. SANTO, M. A. do E.
(org.). Política Indigenista: Leste e Nordeste Brasileiros.Brasilia/ DF: FUNAI, DEDOC.
2009. A questão Fulni-ô: complexidade e urgência de um protocolo governamental
363
GALINDO, Marcos.
2011. A subemergência tapuia. In: PACHECO DE OLIVEIRA, João (org.). A presença
indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de
memória. Rio de Janeiro: Contra Capa.
GALVÃO, Eduardo.
1960. Áreas culturais no Brasil. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Nova Série,
Antropologia, n. 8, pp. 1 – 41.
GEERTZ, Clifford.
2004 [1968]. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
2012. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.
2014. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 14ª ed., Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes.
GEEST, S. Van Der; WHYTE, S. Reynolds.
2011. o encanto dos medicamentos: metáforas e metonímias. Goiania: Sociedade e Cultura, v.
14, n. 2, pp. 457 – 472.
GERLIC, Sebastián.
2001. Índios na visão dos índios: Fulni-ô. Bahia, Salvador: ONG Águia Dourada.
GLUCKMAN, Max.
1987 [1940]. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. Em: Antropologia das
sociedades contemporâneas: métodos, ed. B. Feldman-Bianco. São Paulo: Unesp.
GOFFMAN, Erving.
1975. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis. Ed. Vozes.
2002. A Jurema no “Regime de Índios”: O Caso Atikum. In: C. N. da Mota e Ulysses Paulino
de Albuquerque (orgs.), As muitas faces da jurema: de espécie botânica à divindade afro-
indígena.
2003. Etnodesenvolvimento indígena no Nordeste (e Leste): aspectos gerais e específicos.
Recife: Revista Anthropológicas [online], ano 7, vol. 14 (1 e 2).
2004. Etnogênese e ‘regime de índio’ na Serra do Umã. Em: OLIVEIRA, J. P. (org). A viagem
da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro:
Contra Capa.
2005a. Toré: regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Ed. Massangana.
2005b. Sujeitos da Jurema e o resgate da ciência do índio. Em: LABATE, B.; GOULART, S.
(orgs,). O uso ritual das plantas de poder. São Paulo: Mercado de Letras.
2008. Jurema e novas religiosidades metropolitanas. Em: ALMEIDA, L. S.; SILVA, A. H. L.
da. Índios do Nordeste: etnia, política e história. Maceió: EDUFAL.
2009. The Contingency of Authenticity Intercultural Experiences in Indigenous Villages of
Eastern and Northeastern Brazil. In: Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, v. 6, n. 2. July
to December.
2016. Sociogêneses de comunidades tradicionais. Comunhão política e territorialização. Ruris,
vol. 10, nº 2.
2018. Nas trilhas da jurema. Rio e Janeiro: Revista Religião e Sociedade, 38(1).
2020. Jurema. Campinas/ SP: Mercado de Letras.
HALBWACHS, Maurice.
1990. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Vértice.
HANNERZ, Ulf.
1997. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. Mana [online]
3(1).
HARNER, Michael.
1973. Hallucinogens and shamanism. London/ Oxford/ New York: Oxford University Press.
365
HERBETTA, Alexandre.
2013. Peles braiadas: modos de ser Kalankó. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed.
Massangana.
HOWES, David.
2014. El creciente campo de los Estudios Sensoriales. Argentina: Revisa Latinoamericana sobre
Cuerpos, Emociones y Sociedad, n. 15, ano 6, pp. 10 – 26.
HUSSERL, Edmund.
1990 [1973]. A ideia da fenomenologia. Rio de Janeiro: Edições 70.
IBGE; IPHAN.
2017. Mapa etno-histórico de de Curt Nimuendaju.
Acesso on-line em: 10/10/2022 e disponível no endereço eletrônico:
[http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Mapa%20Nimuendaju%202017%20vers
%C3%A3o%20Jorge%2004092017.pdf].
INGOLD, Tim.
1991. Becoming persons: consciousness and sociality in human evolution. Cultural Dynamics,
v. 4, n.3, pp. 355 – 378.
1996. General Introduction. Key Debates in Anthropology. Londres: Routledge.
2002. The Perception of the Environment: Essays on Livelihood, Dwelling and Skill. Londres:
Routledge.
2010. Da transmissão de representações à educação da atenção. Porto Alegre: Revista
Educação, vol. 33, nº 1.
366
2012. Caminhando com dragões: em direção ao lado selvagem. STEIL, C.A.; CARVALHO,
I.C. de M. (orgs.). Cultura, percepção e ambiente. São Paulo: Editora Terceiro Nome.
2015. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de Janeiro: Ed.
Vozes.
2019. Antropologia: para que serve. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
KLEINMAN, Arthur.
1978. Concepts and a model for the comparation of medical systems as cultural system. Social
Science and Medicine. Great Britain: Pergamon Press., vol. 12.
KOSTER, Henry.
1942. Viagens ao Nordeste do Brasil. Travels in Brazil. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto
Alegre: Companhia Editora Nacional, Biblioteca Pedagógica Brasileira Brasiliana, vol. 221.
LE BRETON, David.
2007. A sociologia do corpo. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
2012. Antropologia do corpo e da modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
2016. Antropologia dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes.
LEACH, Edmund.
1966. Nascimento Virgem – In grandes cientistas sociais – disponível online.
LEITE, Serafim.
1938. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo II (Século VXI – A obra). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
1940. Novas cartas jesuiticas (de Nobrega a Vieira). São Paulo, Rio de Janeiro, Recife Porto
Alegre: Companhia Editora Nacional, Brasiliana, Biblioteca Nacional.
LÉVI-STRAUSS, Claude.
1950. The use of wild plants in tropical South America. Handbook of South America Indians,
vol. 6: Physical Anthropology, Linguistics and Cultural Geography of South American Indians:
Bulletin, 143. Washington: Government Publishing Office.
1975. Antropologia Estrutural um. Rio de Janeiro: Vozes.
1976. Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro.
2004 [1964]. O cru e o cozido (Mitológicas v. 1). São Paulo: Cosac & Naify.
2005. Mitológicas ll - Do mel às cinzas. Rio de Janeiro: Cosac & Naify.
2013 [1962]. O pensamento selvagem. 2ª reimp. Campinas: Papirus.
LIMA, J. M..
1984a. Pesquisa arqueológica no município do Brejo da Madre de Deus – Pernambuco.
Symposium, Recife, v. 26 (1), p. 9 – 60.
1984b. Arqueologia do Brejo da Madre de Deus, Pernambuco. Clio, Recife, (6), pp. 91 – 4,
(Arqueológica, 1).
1999. “Como se faz um grande divisor? – Etnologia das sociedades indígenas e antropologia
das sociedades complexas.” In: GOLDMAN, Marcio. Alguma Antropologia. Rio de JAneiro:
Relume
LINDOSO, Dirceu.
2007. Na aldeia de Ia-ti-lhá etnografia dos índios tapuias do Nordeste. Em: ALMEIDA, Luiz
Sávio de (et. al). Resistência, memória, etnografia, Índios do Nordeste: temas e problemas, vol.
VIII. Maceió: EDUFAL.
LIRA, Wagner.
2009. Os trajetos do êxtase dissidente no fluxo cognitivo entre homens, folhas, encantos e
cipós: uma etnografia ayahuasqueira nordestina. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco.
2020. “Entre Plantas, Curadores e Entidades”: o Modelo Terapêutico do Centro Ayahuasqueiro
Flor de Jasmim. Revista MEDIAÇÕES, Londrina, v. 25, n. 2, p. 523-537.
[DOI: 10.5433/2176-6665.2020.2v25n2p523].
LOUKOTKA, Chestmir.
1939. Línguas indígenas do Brasil. Revista do Arquivo Municipal, ano 5, v. LIV. São Paulo:
Arquivo Municipal.
MACIEL, M. A. M.; PINTO, A. C. de; VEIGA JR, V.; GRYNBERG, N.; ECHEVARRIA, A.
2002. Plantas medicinais: a necessidade de estudos multidisciplinares. Quim. Nova, v. 25, n. 3.
MACRAE, Edward.
1992. Guiado pela lua: xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime. São
Paulo: Ed. Brasiliense.
MARQUES, Juracy.
2012. Natureza Sagrada: ensaios de ecologia humana. Petrolina/ PE: Gráfica Franciscana.
MARTINS, Silvia.
1994. Os caminhos da Aldeia... Índios Xucuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais.
Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Dissertação de mestrado.
MATA, Veronica L. C.
1989. Semente da Terra: identidade e conquista territorial por um grupo indígena. Rio de
Janeiro: Museu Nacional.
MAUSS, Marcel.
2003 [1950]. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify..
McCALLUM, Cecília.
1998. O corpo que sabe – Da epistemologia Kaxinawá para uma antropologia médica das terras
baixas sul-americanas,” in Alves, Paulo César (org.) Antropologia da saúde: traçando
identidade e explorando fronteiras/organizado por Paulo César Alves e Miriam Cristina Rabelo.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará, pp. 215-243.
MEADER, R. E.
1978. Índios do Nordeste: levantamento sobre os remanescentes tribais do Nordeste brasileiro.
Série Linguistica, Summer Institute of Linguistic. Brasília/ DF.
MEDEIROS, Guilherme.
2006. O uso ritual da Jurema entre os indígenas do Brasil colonial e as dinâmicas das fronteiras
territoriais do Nordeste no século XVIII. Recife: Clio Arqueológica, vol. 1, nº 20.
MELATTI, J. Cezar.
1983 [1970]. Índios do Brasil. São Paulo: Editora Hucitec.
2016. Áreas etnográficas da América indígena, Nordeste. Texto online Capítulo B1. Nordeste,
acessado no dia 20/10/2019 em: [http://www.juliomelatti.pro.br/areas/b1nordeste.pdf]
MELO, Mário.
1929. Os Carnijós de Águas Belas. Revista do Museu Paulista, Tomo XVI, São Paulo.
1930. Os Carnijós de Águas Belas. Instituto Archeológico, Histórico e Geographico
Pernambucano, vol. XXIX. Pernambuco: Officinas Graphicas da Imprensa Official.
MERLEAU-PONTY, Maurice.
1984. De Mauss a Claude Lévi-Strauss. Textos selecionados (Os Pensadores). São Paulo: Abril
Cultural, 2º ed..
2018 [1945]. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 5º ed..
METRAUX, Alfred.
1946. The Fulnio. HandBook of South American Indians. Vol. 1, The Marginal Tribes. EUA –
Washington: Government Printing Office.
371
METZNER, Ralph.
2002. Ayahuasca: alucinógenos, consciência e o espírito da natureza. Rio de Janeiro: Gryphus.
MONTEIRO, John.
2001. Tupis, Tapuias e Historiadores: estudos de História Indígena e do indigenismo.
UNICAMP: Departamento de Antropologia.
MORIN, Olivier.
2016. How traditions live and die. New York: Oxford University Press.
MOTTA, Roberto.
1976. “Jurema”. Recife: Centro de Estudos Folclóricos da Fundação Joaquim Nabuco, volante
nº 22.
1988. “A eclesificação dos cultos afro-brasileiros”. Em Comunicações do Iser, v. 7, n. 30, pp.
31-43.
372
Museu Nacional.
1993. Atlas das terras indígenas do Nordeste. Rio de Janeiro: Museu Nacional/ PETI.
NARBY, Jeremy.
2018. A serpente cósmica: o DNA e as origens do saber. Rio de Janeiro: Dantes.
NASCIMENTO, M. Tromboni.
1994. O tronco da Jurema: Ritual e etnicidade entre os povos indígenas no Nordeste – o caso
Kiriri. Dissertação de Mestrado em Sociologia, UFBA, Salvador.
2005 “Toré Kiriri: o sagrado e o étnico na reorganização coletiva de um povo”. Em: Grünewald,
R. de A.. Toré: regime encantado do índio do nordeste. Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
Editora Massangana.
2012. A Jurema das ramas até o tronco: ensaio sobre algumas categorias de classificação
religiosa. Em: CARVALHO, M. R.; CARVALHO, A. M., (orgs.). Índios e caboclos: a história
recontada [on-line]. Salvador: EDUFBA.
2005. Dramas e performances: o processo de reelaboração étnica Xucuru nos rituais, festas e
conflitos. Florianopolis: Universidade Federal de Santa Catarina. Tese de doutorado.
ORTNER. Sherry.
2007.Uma atualização da teoria da prática. In: Conferências e práticas antropológicas. In:
Miriam Grossi, Cornelia Eckert, Peter Fry. Blumenau: Nova Letra.
2011. Teoria na antropologia desde os 60. Mana 17,2:419-466.
OTT, J.
1994. Ayahuasca analogues. Pangean entheogens. Kennewick: Natural Products Co.
1995. The Age of Entheogens e The Angels’ Dictionary. Kennewick: Natural Products Co.
2002. “Pharmahuasca, anahuasca e Jurema preta: farmacologia humana de DMT oral mais
harmina”. Em: LABATE, B.; ARAÚJO, S. (orgs.). O uso ritual da ayahuasca. São Paulo:
Mercado de Letras.
PEREIRA, Edmundo.
2005. Benditos, toantes e sambas de coco: notas para uma antropologia da música entre os
Kapinawá de Mina Grande. Em: GRUNEWALD, R. (org.). Toré: regime encantado do índio
do Nordeste. Recife: Ed. Massangana
2011. Música indígena, música sertaneja: notas para uma antropologia da música entre os índios
do Nordeste brasileiro. Revista Transcultural de Música da América, v. 15.
PERES, Sidnei.
2011. SPI, etnicidade e indigenismo no Nordeste: cotidianidade e historicidade do poder tutelar.
SÁ. Em: FREIRE, Carlos A. da Rocha (org.). Memória do SPI: textos, imagens e documentos
sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Índio-FUNAI.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz.
1990. Legislação indigenista colonial: inventário e índice. São Paulo: Universidade Estadual de
Campinas.
1992. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial
(séculos XVI a XVIII). Em: Cunha, Manuela Carneiro da (org.) História dos índios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, FAPESP.
PIEDADE, Acácio.
1999. FLAUTAS E TROMPETES SAGRADOS DO NOROESTE AMAZÔNICO: SOBRE
GÊNERO E MÚSICA DO JURUPARI. Horizontes Antropológicos. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 5, n. 11, p. 93-118, out.
2006. Reflexões a partir da etnografia da música dos índios Wauja. Revista
ANTHROPOLÓGICAS, ano 10, volume 17(1): 35-48.
2011. Análise musical e contexto na música indígena: a poética das flautas. Revista
TransCultural de Música.
PINTO, Estevão.
1935. Os indígenas no Nordeste. Vol 1. São Paulo: Companhia Ed. Nacional.
1938. Os indígenas no Nordeste. Vol 2. São Paulo: Companhia Ed. Nacional.
1955. Estórias e Lendas Indígenas. Secção E (História e Geografia), 15. Recife: Faculdade de
Filosofia de Pernambuco, Universidade do Recife.
1956. Etnologia brasileira: Fulni-ô os últimos Tapuias. São Paulo: Ed. Nacional.
POMPA, Cristina.
2001. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil Colonial. São Paulo:
UNICAMP.
375
PUNTONI, Pedro.
2002. A guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão do Nordeste do
Brasil. São Paulo: Ed. Hucitec Ltda.; Ed. USP, Fapesp.
POSEY, D. A..
1983. The importance of bees by the Kayapó indians of brazil. Journal of Ethnobiology, New
Work, v. 3, n.1, pp. 63-3.
RADCLIFFE-BROWN, A. R..
1973 [1952]. “Sobre o conceito de função em ciências sociais” e “Sobre a estrutura social”.
Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Ed. Vozes.
1989. Estrutura e função nas sociedades primitivas. Lisboa: Edições 70.
REESINK, Edwin.
1983. Índio ou Caboclo: Notas sobre a identidade étnica dos índios no Nordeste. Salvador:
Universitas Cultura, nº 32.
1984. A questão do território dos Kaimbé de Massacará: um levantamento histórico. Salvador-
Bahia: Gente, nº 1, p. 127-137.
1997. Alteridades substanciais. Apontamentos diversos sobre índio e negro, Salvador, trabalho
apresentado no V Congresso Afro-brasileiro, mimeo, disponível [online].
1999. O Gavião e a Arara: etnohistória Kiriri. Em: ALMEIDA, Luiz S. de; GALINDO, Marcos;
SILVA, Edson. Índios do Nordeste: temas e problemas. Maceió: EDUFAL.
2000. O segredo do sagrado: o Toré entre os índios no Nordeste. In: L. S. de Almeida; M.
Galindo e J. L. Elias (orgs.), Índios do Nordeste: temas e problemas – II. Maceió: EDUFAL.
376
2002. Raízes Históricas: a Jurema, Enteógeno e Ritual na História dos Povos Indígenas no
Nordeste. Em: MOTA, C. N. da; ALBUQUERQUE, Ulysses Paulino de (orgs.). As muitas
faces da jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena. Recife: Bagaço.
2004. A felicidade do povo brasileiro: notas sobre a visão do mundo construído no discurso
oficial a respeito de etnicidade e nações indígenas no Brasil e os embates de disputa
simbólica. Mneme: Revista de Humanidades, V. 05, n. 1. Caicó.
2005. Sete teses equivocadas sobre ‘os 500 anos de Descobrimento do Brasil’. Natal: UFRN.
Revista Vivência, v. 28, pp. 277 – 289.
2010. O limite de Barth: a influência da “Introdução” de Barth sobre os estudos de etnicidade
e racialidade. Trabalho apresentado na 27º Reunião Brasileira de Antropologia. Belém: Pará.
2013. Saber os nomes: observações sobre a degola e a violência contra Bello Monte
(Canudos). Revista Anthropológicas, ano 17, volume 24(2).
2016. O estado da arte na etnologia da economia simbólica das alteridades indígenas no
Nordeste brasileiro das Terras Baixas da América do Sul. Projeto de Pesquisa.
2018. As alparcatas do Conselheiro e a maior alegria do mundo: etnohistórias Kaimbé e
Kiriri. Recife: Tese Titular.
2019. Uma longa duração e uma vasta extensão: ritual, cosmologia, território, etnicidade e
etnopolítica entre os povoa indígenas no Nordeste brasileiro das Terras Baixas da américa do
Sul. Projeto de Pesquisa Cnpq.
RIBEIRO, Darcy.
2017. Os índios e a civilização. São Paulo: Ed. Global, 7º ed..
ROCHA PITTA, D. P.
1992. Traditions, structures de l’imaginaire et resistance Culturelle des Indiens Fulni-ô du
Nordeste du Brésil. Quebec/ Canadá: Religiologiques, v. 6.
2011. Vozes indígenas Fulni-ô na documentação do Serviço de Proteção aos Índios: memória
e história. Em: FREIRE, Carlos A. da Rocha (org.). Memória do SPI: textos, imagens e
documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do
Índio-FUNAI.
SÁ, Elvis F. de; COSTA, J. F. da; FABIA, Fulni-ô; OLIVEIRA JR, Miguel.
2018.Fulni-ô Sato Saathatise/ A fala dos Fulni-ô/ Fulni-ô’s Speech. São Paulo: Editora Edgar
Blucher Ltda.
SAHLINS, Marshall.
2003. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed..
2006. História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed..
SANGIRARDI, Júnior.
1984. Botânica Fantástica: as plantas da mitologia, da religião e da magia. São Paulo: Ed.
Brasiliense.
1989. O índio e as plantas alucinógenas. Rio de Janeiro: Ed. Alhambra.
SCHADEN, Egon.
1946. Notas sôbre etnocentrismo. São Paulo: Revista Didática e Científica, Escola de
Sociologia e Política Sociologia, v. VIII, n. 4, p. 270-81.
1948. A erva do diabo. México: Instituto Indígena Interamericano: América Indígena, v. VIII,
nº 3, p. 165-9.
SCHRÖDER, Peter.
2006. Fulni-ô: Incertezas na regularização da TI. Em: Povos indígenas no Brasil 2001/2005.
São Paulo: Instituto SocioAmbiental, nº 225, pp. 550-3.
2012. Cultura, identidade e território no Nordeste indígena: Os Fulni-ô. Recife: Ed.
Universitária.
2019. Empirismo preconceituoso. Texto on-line, resenha publicada originalmente no blog de
Curt Nimuendajú e disponível em: [www.etnolinguistica.org/doc:40].
SCHULLER, Rudolf.
1930. Die Sprache der Mongoyo – Indianer im Staate Bahia (Nordost – Brasilien). International
Journal of American Linguistics, 6: 43 – 46.
SCOTT, Parry
2009. Negociações e resistências presistentes: agricultores e a barragem de Itaparica num
contexto de descaso planejado. Recife: Ed. Universitária da UFPE.
SEEGER, Anthony.
1980. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Rio de Janeiro: Campus.
2015. Por que cantam os Kĩsêdje – uma antropologia musical de um povo amazônico. São
Paulo: Cosac Naify.
SHELEMAY, K. K..
2008. The ethnomusicologist, Ethnographic Method, and the Transmission of Tradition. In:
BARZ, G.; COOLEY, T.. Shadows in the Field: News Perspectives for Fieldwork in
Ethnomusicology. Oxford: University Press.
SPIVAK, G. Chakravorty.
2010. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG.
2015. Diálogos imaginados entre Tim Ingold e Thomas Csordas. In: Citro, Silvia e Mennelli,
José Bizerril. Cuerpos e corporalidades em las culturas de las Americas. Editora Biblios,
Buenos Aires.
STRASSMAN, Richard
2001. DMT: The Spirit Molecule. Rochester: Park Street..
STRATHERN, Marilyn.
2014. O efeito etnográfico. São Paulo: Cosac Naify.
TAUSSIG, Michael.
1993. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um estudo sobre o terror e a cura. Rio
de Janeiro: Editora Paz e Terra.
THOMAS, Keith.
2010. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais
(1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras.
TURNER, Victor.
1986. Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology of experience. In: Turner, Victor
& Bruner, Edward M. (orgs.). The anthropology of experience. Urbana: University of Illinois
Press, p. 33-44.
1987. The anthropology of performance. Nova York: PAJ Publications.
2005. Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: Ed. da UFF.
2008. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói: Ed. da UFF.
2013. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Ed. Vozes.
2015. Do ritual ao teatro: a seriedade humana de brincar. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
TURNER, Nancy J.
1988. ‘The importance of a rose’; evaluating the cultural significance of plants in Thompson
and Lillooet Interior Salish. American Anthropologist, 90(2), 272-290.
Fevereiro de 1989.
URBAN, Greg.
1992. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. Em: CUNHA, Manuela C.
da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
VANDEZANDE, René.
1975. Catimbó, pesquisa exploratória sobre uma forma nordestina de religião mediúnica.
Recife: Dissertação de mestrado em antropologia, UFPE.
VATIN, Xavier.
2008. O desenvolvimento do turismo étnico na Bahia: o caso da cidade de Cachoeira. Bahia:
26ª Reunião Brasileira de Antropologia.
2017. Memórias afro-atlânticas: as gravações de Lorenzo Turner na Bahia em 1940 e 41.
Petrobras: [e-book].
1999. Etnologia brasileira. Sergio MICELI, Sergio (org.). O que ler na Ciência Social brasileira
(1970-1995). São Paulo: Sumaré/ANPOCS; Brasília: CAPES, vol. I (Antropologia), p. 109-
223.
2002. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac
Naify.
2015. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac
Naify, 1 ed.
WACH, J.
1990. Sociologia da religião. São Paulo: Edições Paulinas.
WAGNER, Roy.
2015 [1975] A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify.
WASSON, Richard Gordon; KRAMRISCH, Stella; OTT, Jonathan; RUCK, Carl A. P..
1986. Persephone’s Quest: Entheogens and the Origins of Religion. New Haven, London:
Yale University Press.
WEBER, Max.
1995. Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo: Ed. USP.
1999. Sociologia e Economia. Fundamentos da sociologia compreensiva, volume 2. Brasília,
DF: Ed. Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
2004. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 12º
reimp..
Apêndice A – (plantas)
1.
Família: Fabaceae
Nome científico: Caesalpinia pyramidalis Tul.
Nome popular: Catingueira
Nome yathê: XIXIÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
2.
Família: Fabaceae
Nome científico: Melanoxylon brauna
Nome popular: Braúna
Nome yathê: TXHIFETEÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão,PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
3.
Família: Rutaceae
Nome científico: Ruta graveolens L.
Nome popular: Arruda/ mesinha
Nome yathê: SEHATINEHO (planta que cura)
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Aldeia Sede, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
4.
Família: Leg. Mimosoideae
Nome científico: Piptadenia stipulacea (Benth.) Ducke
Nome popular: Espinheiro
Nome yathê: TXHLYNEHO
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
5.
Família: Verbenaceae
386
6.
Família: Lamiaceae
Nome científico: Ocimum basilicum L.
Nome popular: Manjericão/ Alfavaca
Nome yathê: ------------
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Aldeia Sede, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
7.
Família:
Nome científico:
Nome popular: Flor da Catinga, Flor da Catenga
Nome yathê:
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
8.
Família: Anacardiaceae
Nome científico: Spondias tuberosa
Nome popular: Imbuzeiro
Nome yathê: TXYANE (o pé do Imbuzeiro)
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
9.
Família: Apocynaceae
Nome científico: Aspidosperma pyrifolium Mart.
Nome popular: Pau Pereiro, Pau Pereira, Pau amargoso
Nome yathê: TXLEKA Ê DAYA/ ÊDJODAYÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
10.
Família: Rubiaceae
Nome científico: Uncaria tomentosa
Nome popular: Unha de Gato
Nome yathê: TAFKEXKYA KOTKYA
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Aldeia Sede, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
11.
Família: Fabaceae
Nome científico: Amburana cearensis
Nome popular: Imburana de Cheiro
Nome yathê: SETXIÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE,
Data: 21- 25/ 02/ 2019
387
12.
Família: Sapotaceae
Nome científico: Sideroxylon obtusifolium / Humb. exRoem.&Schuly.) T.D.Penn.
Nome popular: Quixabeira
Nome yathê: TXHLEKTÁTOÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
13.
Família: Fabaceae
Nome científico: Caesalpinia férrea Mart.
Nome popular: Pau Ferro/ Jucá / Arapiraca
Nome yathê: TXLEKÁ KLILÁ (pau duro)/ TXHYTH'DIISAKA/ TXHIDIDISAKA
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
14 - 16.
Família: Leguminosae
Nome científico: Mimosa Tenuiflora (Wild.) Poir
Nome popular: Jurema Vermelha/ Jurema Roxa
Nome yathê: KHOXÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
17.
Família: Euphorbiaceae
Nome científico: Cróton rhamnifolius Willd.
Nome popular: Velame
Nome yathê: KYATUL'NI TWL'NI FOWA
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
18.
Família: Leg-papilionoideae
Nome científico: Erythrina velutina Wild.
Nome popular: Mulungu
Nome yathê: NAAXIA
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
19.
Família: Anacardiaceae
Nome científico: Myracrodruon urundeuva Allemão
Nome popular: Aroeira
Nome yathê: THSAYKYA
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Aldeia Sede, PE
Data: 21- 25/ 02/ 2019
20.
Família: Euphorbiaceae
Nome científico: Jatropha ribifolia (Pohl) Baill.
Nome popular: Pião Rasteiro
Nome yathê: THÔYÁ KH'KÁ
Local da Coleta: Território Indígena Fulni-ô - Paredão, PE
388
SAPONINAS
NOME TIPO SUB-TIPO PROPRIEDADES EXTRAÍDO
DA
Campesterol-3-0-beta-D- Saponina Saponina Angiogênico- Casca de
glucopyranosyl esteroidal Anticancerígeno tronco
Stigmasterol-3-0-beta-D- Saponina Saponina Saponina esteroidal Casca de
glucopyranosyl esteroidal tronco
Bota-sitosterol-3-0-D- Saponina Saponina Saponina esteroidal Casca de
glucopyranosyl esteroidal tronco
Lupeal Saponina Saponina Anticancerígeno/ Anti- Casca de
triterpenóide inflamatório tronco
Mimonoside A Saponina Saponina Antibacteriano Casca de
triterpenóide tronco
Mimonoside B Saponina Saponina Antibacteriano Casca de
triterpenóide tronco
Mimonoside C Saponina Saponina Antibacteriano Casca de
triterpenóide tronco
FLAVONÓIDES
NOME TIPO SUB- PROPRIEDADES EXTRAÍDO
TIPO DA
Tenuiflorin A Flavonóides Anti-protozoic folhas
Tenuiflorin B Flavonóides Desconhecida folhas
Tenuiflorin C Flavonóides Desconhecida folhas
6-metoxi-4-0- metilnaringenina Flavonóides Desconhecida folhas
6-metoxinaringenina Flavonóides Desconhecida folhas
389
Apêndice B - (cafurnas)
Trabalho de documentação e sistematização de cafurnas Fulni-ô criadas pelo sr. Abdon dos Santos
(Xixiá Fulni-ô), no contexto do Nordeste indígena. Tais músicas foram registradas com a consultoria e
orientação dos professores da língua materna yaathe, sr Abdon dos Santos, Telson dos Santos, Ediraldo
e Marcio.
Durante três tardes e alguns dias de convivência selecionamos as temáticas de interesse e realizamos o
trabalho de tradução do yaathe para o português. Por conseguinte, é importante destacar que a tradução
não retrata uma fidelidade, mas aproximações e indicações de palavras, significados e sentidos.
walka - manga
dewa - fruta verde
ya setsõsõdowa sato - nós índios
kexatka-lhade - de lá
flatka - coité
Kilhaka - tirar de dentro de uma bolsa, remover
kilhase - tirar, remove
i - eu
mim
meu - iska
ya - sentido de nós
Flithya hesa - Chuva Grande/ Grande Chuva/ Dilúvio (sr. Abdon dos Santos)
Eedjadwa-lha txhokase owa fea-lha-ti Deus desceu/ veio para essa terra
Ta naadowa klehese setsô tkano saftxhatwa pra ver quem foi o primeiro casal de índios
Setsõkya nekase, tohe txhua etxdjowa? A índia disse: quem é aquele que vem?
Eedjadwa-lha nekase wo õõkyake ihia-lha Deus disse: vocês são meus filhos
efewdete saanite wo õõkyake ihia-lha Igualmente a todos
Flithya hesa fthowa-lha efewde flelhakase Uma grande chuva acabou com tudo
Eedjadwa saafitxo-lha te tatixdjone-lha te pra Deus renová-la (a terra)
setsô tkano efẽykyase satxtxo ekhede dosey Dois índios sobreviveram e ficaram perdidos
Eedjadwa-lha nekase wo õõkyake ihia-lha Deus disse: vocês são meus filhos
Efewdete saanite wo õõkyake ihia-lha Igualmente a todos, vocês são meus filhos.
Capacaça - tirar o ovo da caça, no sentido de que capavam a caça em Bom conselho
iam a Bom Conselho capar a caça e falar com outros índios que moravam na região
Xolxaka - na Macambira
Djownese - vem de finalizar
fea - terra
392
Nós não somos índios iguais aos nossos antepassados (sr. Abdon dos Santos)
Yafẽkhettotwa yenideka nós não somos iguais aos nossos antepassados
yafẽkhetto-lha sato-lha nós não somos iguais aos nossos antepassados
yeenideka os não índios os expulsavam
otxhaytowa-lha sato-lha tha Eles moravam nesses lugares: na macambira, na cacimba cercada,
klẽnekhiaka nas margens do rio Panema,
xolxaka uliay fulikha
Papacaça (Bom Conselho) eles moravam
onde foi que eles terminaram? em Águas Belas
ut-xi lka setha sdowke tha onde foi que eles moravam? em Águas Belas
tnilhakase os não índios fizeram
ũnayse tha djownese, ooya uma santa de mentira/ falsa/ não verdadeira
dmanewke
ũnayse tha tni-lha se? ooya pra que foi que eles fizeram? eu vou contar
dmanewke por estar de olho nas terras deles
otxhaytowa-lha sato-lha onde foi que eles finalizaram? em Águas Belas
tetkyase onde foi que eles morvam? em Águas Belas
eedjadwane fthone-lha wĩĩtosoa
tõkyate yasewaka nĩĩne? klekeeniso seka txtxoke Como iremos dançar? do jeito da onça
yakhããdodete otxhaytowa yake para o não índio não ser introduzido na nossa cultura
senẽkya-lha ke
Itfe Xixia - meu pai é xixia (sr. Abdon dos Santos, Manoel Sarapó dos Santos)
Owẽkyake xixia eka-lha Eu sou filho de Xixia (Abdon)
Edowka takanemã quando ele se fornecedor
tatetxdjoa itetkyahe o que ele faz eu farei
ya txthatxhlewa keynite ensinar as crianças
Unakesa - onde está? vamos procurar nossos direitos (sr. Abdon dos Santos)
Owe unakesa Eu sou aquele que procura
unay nosese - unakesa por onde ele foi? vamos procurar nossos direitos
Nokase txhuay - unakesa ele foi por ali, vamos procurar nossos direitos
unay nosese por onde ele foi
Nokase txhuay ele foi por ali
395
unay nosese - unakesa por onde ele foi? vamos procurar nossos direitos
nokase txhuay - unakesa ele foi por ali, vamos procurar nossos direitos
E hesanelha grandiosíssima
e flidwanelha puríssima
ya kmasilhaxto peço/rogai por nós
ya kmasilhaxto peço/rogai por nós
ya tx'txalha nosehemã para nossas vidas seguirem em frente
Sem registro da versão no O céu, o sol e a lua, foi Deus que fez
yaathe. O céu, o sol e a lua, foi Deus que fez
pra vocês ensinarem pros seus filhos
o nosso yaathe, que Deus deu pra nós
Unakesa
Percussão / Ó ∑ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
2
44
Perc. / ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Ooya
Maraca °/ ∑ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
¢/ ∑ ™ ™
7
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™ ™ ™ ™ ™
13
°
/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™ ™
œ œ œ#œ #œ #œ œ œ
& œ#œ œ œ #œ œ#œ ™#œ #œ œ #œ #œ ™#œ #œ #œ œ#œ nœ
ta - te e - ia - ne - te
19
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
Œ
¢/ ™ ™ ™
2
26
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™ ™
œ œ œ#œ#œ œ œ
& #œ#œ œ#œ œ #œ #œ ™ œ #œ#œ œœ œ #œ#œ œ™#œ #œ#œ œ œ œ #œ
33
°
/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™ ™ Œ
40
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
3 . ≈ . ≈
¢/ ™ ‰ ™
™ .
3
& #œ œ œ œ œ ‰#œ #œ œ #œ ™ œ œ #œ. ≈#œ œ œ #œ ≈#œ œ œ nœ
#œ œ œ œ
46
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
≈ . ≈
¢/ ™
œ œ œ#œ #œ #œ œ œ
& #œ œ #œ œ œ ≈#œ œ œ #œ. ≈ œ #œ œ #œ œ #œ #œ ™#œ
401
3
52
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™ Œ ™ ™
59
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™ ™ ™ ™
œœ
& #œ #œ ™ œ #œ#œ œ#œ ™ #œ #œ ™ œ #œ#œ œ œ#œ #œ nœ#œ ™ œ #œ#œ #œ œ#œ #œ
66
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
Perc.
¢/ ™
œ #œ #œ œ œ
& œ #œ œ œ #œ ™ #œ #œ œ œ #œ nœ #œ #œ
70
°/ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ Y
Perc.
Œ
¢/ ™
& <#>œ #œ œ œ #œ œ #œ #œ œ #œ ™ #œ #œ œ œ Œ
402
2
&4 ∑ œ œ ‰#œJ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ#œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ
#œ
9
œ œ œ ™ œ œ œ#œ œ#œ nœ œ œ œ œ œ œ œ#œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ
& #œ #œ
17
œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ#œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ
&
25
#œ œ #œ œ œ œ#œ œ œ#œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ
& œœœ œœœ
35
& œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ #œ œ #œ œ #œ œ œ œ œ œ œ œ œ
46
& œ œ œ œ œ œ œ
œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ #œ ˙
403
Anexo A- (arquivos)
REGISTROS E FOTOGRAFIAS DA ETNOLOGIA.
***
Anexos, remeto-vos para os devidos fins, os mapas escolares referentes aos mezes de fevereiro
e julho de 1948 e março de 1949, despresando os mezes de setembro e outubro em virtude dos
índios se encontrarem no seu Ouricuí, tudo devidamente assinado e de acôrdo com a solicitação
do memorando nº 54 desse I.R.
Saudações cordiais
Roberto Florentino de Albuquerque
Agente VIII do S.P.I.
404
Figura 38- Registros etnológicos realizados por Carlos Estevão de Oliveira (parte 1).
Fonte: registrado a partir de acervos pessoais de indígenas que continham as fotografias, do Museu on-line de
Carlos E. de Oliveira e (FREIRE, 2014).
405
Figura 39- Registros etnológicos realizados por Carlos Estevão de Oliveira (parte 2).
Fonte: registrado a partir de acervos pessoais de indígenas que continham as fotografias, do Museu on-line de
Carlos E. de Oliveira e (FREIRE, 2014).
406
Figura 40- Registros da construção da cidade de Águas Belas, demonstrando o contexto de regionalização e
mudanças territoriais.
Figura 41- Búzios, maracás, pinturas, máscaras e entidades Fulni-ô descritas em Pinto (1956).
Anexo B – (mitos)
“Isso aconteceu há muito tempo. Nessa época, Sê-uli-ho-kla, o grande Criador de gente, Deus
onipotente, dono dos quatro elementos: a terra, o fogo, o céu e a água, teve dois filhos. Ao
primeiro, Falê-da-to, Deus deu o fogo e tôdas as calamidades, tais como a sêca, a fome, a
guerra, e as doenças. Para compensaras possíveis ações maléficas de Falê-da-to, Deus deu ao
segundo filho, Walê-da-to, poderes absolutos sôbre a água, a trovoada, a vida, etc., equilibrando
assim as fôrças más, detidas pelo primeiro filho.
Falê-da-to, (gênio do mal), em vez de compartilhar equitativamente de seus poderes com seu
irmão, queria tornar-se dono absluto do mundo, e uma inveja terrível o torturava. Queria entrar
em conflito com Walê-da-to (Gênio do bem) mas não achava pretexto. Surgiu, enfim, um caso
que desencadeou as hostilidades entre os dois irmãos. Falê-da-to tinha um filho e quis castigá-
lo por desobediência. Pôs uma cobra num buraco, e foi caçar com êle. Na volta, pediu ao filho,
mostrando-lhe o burado, não muito longe, que apanhasse uma caça que já havia deixado. E foi-
se embora. O filho aproximou-se do buraco, porém Walê-da-to,seu tio, que de tudo sabia,
preveniu o rapaz dizendo-lhe que havia uma cobra no buraco. O jovem, talvez porque teimoso,
talvez porque não quisesse desobedecer ao pai, botou a mão no buraco e a cobra o mordeu. Não
durou muito que o rapaz morresse. Walê-da-to, que assistira à cena, foi cientificar a seu irmão
do ocorrido, e êste; aparentando profunda dor, manifestou o desejo de sair do lugar onde o filho
tijnha morrido. Walê-da-to, sempre bom, não quis deixar o irmão percorrer sózinho o mundo e
foi se juntar com êle. Êste, enraivecido, vendo as pernas finas e delicadas de Walê-da-to, lhe
disse:
Falê-da-to, armado de enorme cacete, deu então uma tremenda paulada nas canelas do irmão,
mas com grande surpresa sua, foi o cacete que se quebrou.
Em seguida, continuaram a caminhada, até chegar perto do mar, que desde êsse tempo se
chama txaltuti-a, ou seja, “o cacete divino que dói”. Lá, Falê-da-to, sempre cheio de maldade,
e desejoso de mostrar a sua superioridade, disse: - “Vamos tomar um banho?” - “Vamos, meu
irmão”, respondeu o outro, “entre primeiro”. Quando Falê-da-to entrou nomar, as águas
desapareceram; sua simples presença tinha secado tudo. De águas ficou apenas uma cacimba,
na qual, fêz as suas abluções. Orgulhoso de seu poder (sêca), convidou o irmão, uma vez que
as águas voltaram, para tomar banho. Quando Walê-da-to entrou no mar, tôda a água se lhe
ajuntou sôbre a barriga, e, deitado de costas, fêz as suas abluções, voltou à beira-mar e as águas
baixaram de novo.
Tendo sentido, por duas vêzes, sua potência posta em xeque, Falê-da-to, disse ao irmão:
Falê-da-to pôs as mãos sôbre as coxas (figura de dança conservada nas manifestações
religiosas) emitiu um hã formidável, secou e queimou tudo, a tal ponto que Walê-da-to tornou-
412
se completamente prêto:porém, da parte superior do crânio saiu um brôto, e quanto mais Falê-
da-to o soprava, tanto mais o brôto crescia. E cresceu até chegar ao céu. Por isso, os Fulni-ô
qualificam essa parte do crânio: txi-kxi – o lugar do sangue (vida).
Explica-se, dessarte, como Walê-da-to tornou-se avô do seu irmão Falê-da-to, e, como os netos
sempre devem respeitar os avós.
Esclarece também porque a gente do clã Falê-da-to ficou má, até hoje, e os Walê-da-to têm
tantas virtudes e qualidades, tôdas elas reconhecidas pelos demais membros da tribo. Desejosos
de voltar a sua terra, os dois irmãos seguiram rumos diferentes: Falê-da-to foi pelo caminho do
Norte e Walê-da-to pelo do Sul. Por tôda parte onde Walê-da-to passava, a temperatura ficava
mais úmida e mais fresca, e as chuvas eram abundantes. As plantas cresciam, e a região tornava-
se rica e farta. Daí, Walê-da-toser também chamado: i-to xi-a -avô frio (ou potente).
Enquanto isso, por onde quer que Falê-da-to passasse, o ar queimava, e a sua presença secava
tudo, a tal ponto que sua vinda era uma calamidade. Por isso, também, Falê-da-to foi chamado
: i-to kla – o avô quente (grande).
Êsse o motivo por que, por tôda parte, o frio vende o calor, como a água apaga o fogo.
Cansado da viagem, Falê-da-to quis ver por onde Walê-da-to tinha andado. E encontrando-o,
queixou-se muito do frio, da umidade e da lama do sul. Walê-da-to, à vista disso resolveu
seguir, em companhia do irmão, em direção ao Norte, porém não conseguiu ir muito longe,
devido ao calor e à desolação que êle havia espalhado à sua passagem. Chegaram os dois, então,
a um entendimento, deliberaram morar no limite das duas zonas, onde as influências benéficas
da umidade e do frio podiam combater as influências maléficas do calor e da sêca. Êsse lugar é
a pátria dos Fulni-ô e tem o nome de ía-ti-lha: “nossa moradia sagrada”. (Águas Belas).
*****
Uma vez localizados ali, Falê-da-to sempre temendo a potência benéfica do Walê-da-to, criou
quatro Lildyak-to, dos quais tornou-se avô (por serem os seus súditos), e disse ao irmão: “Êstes
são os seus avós!” (por imposição). Seguro do seu poder Walê-da-to aceitou, e, por êsse fato,
tornou-se neto de Lildyak-to. Era princípio de Walê-da-to sempre lutar com doçura, ou força
moderada, embora Falê-da-to só quisesse empregar a fôrça bruta.
Para contrapor-se à potência dos quatro Lildyak-to, Walê-da-to criou oito txo-o ko, dos quais
tornou-se avô, por havê-los criado. Reservou quatro para si e os outros quatro foram
encarregados de repelir a potência dos quatro Lildyak-to.
Assim, os quatro txo-o ko tornaram-se pelo direito do mais forte avós dos Lildyak to.
413
Além disso, os txo-o ko, por respeito a Deus, Sê-uli-ho-kla, e a seu filho maior, consideram-se
netos de Falê-da-to, o Deus nefasto.
Tais divisões clãnicas impõem, naturalmente, certas regras rígidas quanto às relações civis e
religiosas, e atualmente regulam, dum modo mais ou menos livre, os casamentos interclânicos.
A tribo que hoje é Fulni-ô começou com a raça Carnijó, que vivia nômade entre a Bahia e
Pernambuco. Com a desmatação o índio foi forçado a subir, procurando um lugar que tivesse
alimento e tranquilidade. Saiu da Bahia e veio subindo, fazendo moradias, até aqui, na Mata,
no rio Ipanema, defronte daquela serra, a Serra dos Cavalos, onde tinha uma tribo que era os
Fouclaça.
Então aconteceu um encontro, um Toré, com muitas danças e cantos. Uma índia Fouclaça se
engraçou de um rapaz Carnijó, daí as famílias não gostaram e começou a briga. Os Fouclaça
tinham como arma o arco e flecha e os Carnijó, cacete e pedra. Fizeram um acerto: quem
ganhasse ficava com as terras. Mas na hora de brigar, entenderam que era melhor se juntar,
nascendo assim a tribo Fulni-ô. Somaram-se depois outras comunidades indígenas como os
Fôla e os Brogadas.
(relato do ancião João Thxyxá e Wakay).
Nós morávamos em Águas Belas. Aqui era tudo mata, o branco veio e achou as terras boas e
muitas águas boas também, daí eles tiveram inveja e procuraram nos enganar. Fizeram um
povoado e botaram os índios para correr, queimavam as ocas, obrigando-nos a nos refugiarmos
mais distante, em KamaKamira, Cacimba, Cercada, Bom Conselho, Ipanema.
Mas sempre voltávamos a nos juntar de novo aqui neste lugar. Como botar os índios para correr
não era o suficiente decidiram fazer uma Santa de madeira dizendo ser Nossa Senhora da
Conceição, mãe de Jesus Cristo, que vinha nos proteger, mas seria preciso dar terras para
construir uma igreja para a Santa morar.
Eles botaram a santa em uma lagoa aonde os índios gostavam de pescar. Quando a viram
pensaram que era uma pessoa, foram até ela, agarraram-na e decidiram leva-la para a aldeia. A
noite, um branco tirou a imagem às escondidas e voltou a coloca-la na lagoa. Depois disso se
repetir por vários dias um índio contou o acontecido para o padre que lhe disse: Meu filho isto
significa que a Santa está pedindo terra.
Foi assim que os brancos tomaram nossas terras.
(Xixiá, ancião e professor indígena).
1- Deus, para castigar o povo que aqui vivia mandou uma grande chuva que durou quarenta
dias e quarenta noites. Neste dilúvio, seres humanos, animais e outras espécies de vida foram
dizimadas. Ao fim da grande chuva, quando as águas baixaram, estavam ali sobreviventes, um
homem e uma mulher, índios. Lá bem distantes avistaram um homem que caminhava em
direção a eles. Ao se aproximar, a mulher perguntou ao homem índio, quem era esse homem e
o próprio respondeu que era filho de Deus, com a missão de verificar se haviam sobreviventes
do diluvio, que agora se confirmava ao encontrar aquele casal.
414
2- Os índios sentiram fome e procurando o que comer, encontraram um peixe numa poça d’água
ainda da grande chuva. Com dois pedaços de Imburana fizeram fogo, assaram peixe e o
comeram.
3- A índia grávida, tem um filho que cresce, e mais outros. Com o tempo a família vai
crescendo, outras famílias vão se formando.
4- Com o passar do tempo aqueles dois primeiros índios, sobreviventes do dilúvio e que
iniciaram aquela família, que já se encontrava numerosa lembraram daquele homem que disse
ser o filho de Deus, como eles. Aquele homem veio confirmar que eles, entre tantos pecadores
que eles viviam, foram escolhidos por Deus, o criador, para aqui permanecerem vivos.
E sentiram necessidade de orar a esse Deus e cultuá-lo. Nesses cultos eles cantavam louvando
a Deus, e juntos homens e mulheres, e juntos cantavam em uma só voz, engrandecendo e
agradecendo o seu criador e Pai.
Esses cantos eram acompanhados por toré e uma maraca, instrumentos musicais criados pelos
índios.
Aqueles que criaram os cantos foram atribuídos poderes de Deus e a função de Cacique e Pajé,
sendo o Cacique, possuidor de maior autoridade que o Pajé.
5- Formada a comunidade, surgiram outros povos que eram chamados pelos índios de brancos.
Esses brancos, discordando dos costumes indígenas, começaram a tentar destruí-los.
Queimaram casas, na tentativa maior de assassiná-los e levaram uma índia para seduzi-la e
reproduzir a miscigenação, os índios, por sua vez, fugiram, dividindo o povo indígena. E assim,
formaram-se outras aldeias em diversas partes do mundo.
Ainda tiveram mais tentativas de tirar o restante das terras do índio, mas todas foram em vão,
o que levou o branco a questionar que poder possuía os índios que nada os atingia.
CASAMENTO
Dos costumes indígenas também fazem parte o casamento e o batizado dentro das suas leis,
diferentes um pouco do costume branco, onde são oficializados diante de um padre.
Quando um índio deseja casar com uma índia na aldeia Fulni-ô, ele vai até o pai da moça, este,
por sua vez, determina que o pretendente, para desposar sua filha, deve mostrar sua força.
415
Assim, ele deverá carregar uma pedra, ou um tronco de madeira, bastante pesados, como forma
de pagamento, pela mão da índia.
O tronco deverá ser entregue ao Pajé e ao Cacique que realização o casamento. Após colocar o
tronco aos pés do Pajé é a vez da índia ser trazida, também, e finalmente o índio e a índia serão
abençoados pelo Pajé e pelo Cacique, com o cachimbo da PAZ, (a fumaça) e as folhas de mato
molhadas em água sagrada.
BATIZADO
Casados partirão para a criação de um filho, e após os 9 (nove) meses nasce o junto daquela
união.
Já crescido o pai e a mãe levarão o filho até o Pajé, com o desejo de tomá-lo cristão.
O Pajé com uma folha de mato, molha-a na água e proferindo o canto batismal molha a cabeça
da criança, batizando-a assim.
CURA
O índio quando se vê com o filho ou parente doente, vai até o Cacique que por sua vez os leva
até o Pajé que realizará a cura.
O Pajé com raízes, folhas e raspas de árvores prepara o remédio para aquela determinada
doença. E proferindo aquele canto dá o remédio para o doente tomar. Assim o curando.
MORTE
Se após a tentativa de cura, o índio não consegue sobreviver, sua morte é chorada por todos na
Tribo. Choram em voz alta e após, todos cantam.
Nesse momento do canto cessam as lágrimas, pois para os índios o espírito do índio morto,
incorporará num tronco de árvore e ao redor dele cantarão com alegria. E assim vivem os índios.