Sobre A Língua Yaathê

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA

ELVIS FERREIRA DE SÁ

DOCUMENTAÇÃO DE NARRATIVAS DE ANCIÃOS FULNI-Ô

Maceió/2017
ELVIS FERREIRA DE SÁ

DOCUMENTAÇÃO DE NARRATIVAS DE ANCIÃOS FULNI-Ô

Trabalho apresesentado ao Programa de Pós-graduação em


Letras e Linguística/PPGLL da Universidade Federal de
Alagoas/UFAL, como requisito final para a obtenção do título
de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Miguel Oliveira Jr.


Coorientadora: Profa. Dra. Januacele da Costa

Maceió/AL
2017
Termo de Aprovação

Defesa de Dissertação

SÁ, Elvis Ferreira de. Documentação de Narrativas de Anciões Fulni-ô. Dissertação


(Mestrado em Letras e Linguística) – Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística,
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2017.

Banca Examinadora:

______________________________________________________________
Prof. Dr. Miguel Oliveira Jr (orientador)

______________________________________________________________
Prof. Dra. Januacele da Costa (co-orientadora)

______________________________________________________________
Profa. Dra. Stella Telles

______________________________________________________________
Prof. Dr. Jair Barbosa da Silva

______________________________________________________________
Profa. Dra. Fábia Fulni-ô (Suplente)

______________________________________________________________
Prof. Dra. Luciana Lucente (Suplente)
Às três pessoas que me incentivaram desde o início da
minha caminhada acadêmica. Tatiana pelo carinho,
tranquilidade e por ter também compartilhado comigo
as noites mal dormidas, quando ia seguir na
madrugada rumo a viagem a Maceio. A meus pais,
Acione Ferreira de Sá pelo incentivo repleto de orgulho,
por eu estar conquistando meu espaço e a Marinilde
Leite (in memoriam), pelo amor desde a minha
infância.
A Januacele, pelo apoio e pela sensibilidade de
encorajar-me a seguir os estudos, onde depositou toda
sua confiança em mim nesse trajeto.
AGRADECIMENTOS

Kleynite, Eedjadwa hesa i eyonkyahe owa sematdi ke ta ihdidinekaske. Agradeço


primeiramente ao grande Deus por ter me fortalecido nessa estrada e ter me dado o espaço
necessário para concluir esse trabalho.
Aos ilustres anciãos do meu povo e aos que fizeram parte desta pesquisa, Agenor,
Abdon, Aristide (Fipa), Eloi, João Lúcio, Romildo, Ivanilde, Rita de Matos, Maria Brasilina,
Teresa Maria, Maria de Lurdes.
Ao Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística, que abriu as portas e me deu
a oportunidade de ser selecionado, onde posteriormente pude ser incluído como membro do
Fonufal, um dos grupos de pesquisa acolhedor, que abraça os estudos da diversidade
línguística no país.
Ao Prof. Dr. Miguel Oliveira Jr, ao qual dei o nome de Maktxo no meu idioma
Yaathe, que me acolheu no grupo Fonufal, teve a disposição de ser meu orientador nesse
trabalho, permitindo que eu buscasse maneiras de adequar todo meu trabalho de forma
metodológica, sistemática e objetiva. Grande satisfação em tê-lo como orientador. Agradeço
imensamente a sua disponibilidade.
A Januacele, parceira das causas indígenas, que com seus estudos vem contribuindo
substancialmente com metodologias de revitalização para o ensino da língua Yaathe, dando
suporte voluntário aos professores da minha aldeia. Agradeço o seu esforço, respeito e
atenção pela língua de meu povo indígena, tenho orgulho de ela ter participado nessa pesquisa
como a minha coorientadora.
Nesta trilha fui muito feliz, ganhei muitos amigos e parceiros, um presente de Deus,
levarei todos no coração com muita honra em toda minha vida. Trago aqui a minha satisfação
em poder contar com Fábia Fulni-ô, sem o seu auxílio como parenta e amiga, eu não chegaria
a marchar neste processo. Tenho orgulho de você ter pisado firme no terreno da linguística,
pois assim tive a oportunidade de ser norteado nessa direção pela minha própria irmã Fulni-ô.
A minha tia Sineide Leite, que também me incentivou desde o início de minha
caminhada, foi uma das pessoas que insistentemente mandou que eu me inscrevesse no
vestibular de licenciatura intercultural indígena. Também registro o meu agradecimento aos
meus tios, Glaucio Leite (Txhleka Fulni-ô) e Cícero de Brito (Djik), pela paciência de sempre
permitir que eu pudesse em muitos momentos tirar as dúvidas a respeito da nossa língua,
igualmente presentes no processo de construção desta pesquisa.
A Leandro, Marina e Regina, por me acolherem como se eu fosse da família em
Maceió, sou grato pela preocupação e cuidado, meus sinceros agradecimentos.
Ao Fábio Cabral, grande parceiro, demonstrou sua hospitalidade e amizade desde o
início, como se fôssemos velhos amigos. Grande ser humano, agradeço o apoio.
Agradeço cordialmente e, por ser membro do povo Fulni-ô, destino este trabalho para
todos eles, juntamente aos nossos renomados líderes, Pajé Gildiere Ribeiro Pereira e o
cacique João Francisco dos Santos.
Aos professores e colegas do curso de mestrado com quem mantive contato, pois
juntos tivemos a oportunidade de partilhar conhecimentos advindos da linguística, que foram
imprescindíveis para esta pesquisa. Especialmente a Januacele, Miguel Oliveira Jr. e Fábia
Fulni-ô, por sempre terem me mostrado o caminho do conhecimento da Línguistica e terem
me guiado no curso em relação ao estudo do Yaathe e às narrativas dos velhos Fulni-ô.
Aos meus colegas professores da Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon
e aos professores de língua Yaathe, especialmente a Maristela, Ivanilde e meus colegas
Expedito, José Rogaciano, Josinete e Rosinete.
A meu avô Agenor Ferreira de Sá por se preocupar nas minha idas e vindas a Maceió,
correspondo aqui o carinho e atenção na minha estrada estudantil.
Aos mes filhos, Wayaty Ferreira de Sá e Dayane Ferreira de Sá pela compreensão de
não estar presente durante esse tempo de estudo.
Aos meus amigos, primos, tios, cunhados: Gildo Pereira, Edineide (Neide), Eliel,
Ubiran, Marrury, Auricélio, Rosimar, Tairan, Tainan, Paulo Alberto (Paulinho), Tanaua,
Rosaline, Rosimere, Maria Inês, Romero, Milene, Paula Francisca, Nelson dos Santos, Carla
Maria, Rosimare, João Paulo Ribeiro, Raquel Botafogo, a todos pela amizade e união
familiar.
A Junior Militão e Hedpo pelo apoio das caronas a Garanhus-PE, o meu
agradecimento.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em ter
destinano o apoio financeiro para a produção de meu trabalho.
A todos os amigos, familiares que fizeram parte de minha vida, que também prestaram
apoio tanto do lado presencial desta pesquisa como também vindo de incentivos carinhosos, o
que fez com que eu pudesse ter força para dar conta de tudo e enriquecer positivamente meu
trabalho. Tenho reconhecimento disso, pois senão seria impossível concluir todo o processo.
“Ooke se thwahohe ya se thwadwa, se thwadohode
ya se thwadodwa.”
RESUMO

Esta dissertação apresenta resultados de um projeto de documentação da língua


indígena brasileira Yaathe. O trabalho está organizado da seguinte maneira: em sua primeira
seção, apresenta um breve histórico do povo indígena Fulni-ô, o contato com os brancos
desde o século XVII, desde o início da colonização e confinamento nas aldeias do Panema e
Lagoa da Serra do Comunati, onde os antigos Carnijó, hoje conhecidos como Fulni-ô, foram
aldeados em missões religiosas. Também coloca em evidência a resistência dos Fulni-ô e a
sobrevivência de seu idioma Yaathe em meio às fugas para os seus rituais secretos, apontando
os velhos como disseminadores da cultura, cumprindo, assim, um papel social significativo
dentro do grupo. Alem da seção 1, descrita acima, o trabalho está organizado da seguinte
forma: na seção 2, apresentamos as bases teóricas da documentação linguística, os seus
objetivos e a relevância em documentar línguas minoritarias do mundo de acordo com
diversos estudiosos: Drude (2006); Everett & Sakel (2010); Moore, Gabas Jr. e Galúcio
(2007); Himmelmann (2006), entre outros, onde se enfatiza a importância das línguas
indígenas e se apresenta procedimentos que visam a envolver as comunidades indígenas
afetadas no trabalho de documentação, procurando conduzir o trabalho de documentação de
modo mais satisfatório; na seção 3, descrevemos os procedimentos metodológicos de pesquisa
na área de registros de línguas, com o uso do aparato tecnológico disponível, expondo assim
as maneiras como foi feita a coleta de dados em áudio e vídeo, aplicando esses procedimentos
ao trabalho de registro das narrativas dos anciãos e descrevendo como o trabalho foi
realizado; na seção 4, apresentamos uma lista dos arquivos de documentação realizada com os
velhos e amostras dos arquivos preparados para documentação, conforme foram transcritos e
anotados no Praat e encontram-se disponíveis para arquivamento, bem como amostras de suas
histórias, lendas e relatos que foram colhidos em todo processo ilustrando os comentários
acerca da transmissão oral e repasse de conhecimentos; na seção 5, listamos fatos linguísticos
observados nas narrativas dos anciãos e tecemos comentários sobre essas formas, apontando
para a importância de estudos linguísticos subsequentes. Enfim, consideramos que este
trabalho objetivou colocar em evidência a importância da revitalização da tradição oral do
meu povo, em conectividade com as novas tecnologias correspondente da documentação,
buscando a manutenção, revitalização e preservação da língua Yaathe.
ABSTRACT

This dissertation presents the result of a documentation project of a Brazilian


indigenous language, Yaathe. It is organized in the following way: in its first section, it
presents a brief history of the Fulni-ô indigenous people, who are in contact with non-
indigenous people since the 17th century: from the beginning of the colonization and the
confinement in the villages of Panema and Lagoa da Serra do Comunati, where the ancient
Carnijó (now known as Fulni-ô) were settled on religious missions. It also highlights the
resistance of the Fulni-ô and the survival of their Yaathe language in the midst of escapades
for their secret rituals, positioning the elderly as disseminators of the Fulni-ô culture, fulfilling
thus a significant social role within the group. In section 2, we present the theoretical bases of
linguistic documentation, listing its objectives and supporting the importance of documenting
minority languages. Following several scholars (Drude, 2006; Everett & Sakel, 2010; Moore,
Gabas Jr. and Galúcio, 2007; Himmelmann 2006, among others) we emphasize the
importance of indigenous languages for the understanding of several linguistic phenomena
and present in this section the procedures to engage members of indigenous communities in
documentation work, with the purpose of conducting a more appropriate documentation. In
section 3, we briefly describe some methodological procedures associated to the research in
the area of language documentation, including the use of technological apparatus. By doing
so, we also describe the methods we use to record the data in audio and video for the present
dissertation; In section 4, we present a list of the files that were collected for the present
documentation work, with samples of the annotation that were done in Praat. We also present
the analysis of some of these data (stories told by the Fulni-ô elderly), illustrating some
important cultural aspects that they carry, is special those related to oral transmission and
transfer of knowledge; In section 5, we list some linguistic phenomena observed in the
narratives of the elders and comment on them, pointing to the importance of subsequent
linguistic studies on specific areas of Yaathe. Finally, we conclude that this work aimed to
highlight the importance of the revitalization of the oral tradition of my people, with the help
of the technology that has been used in the field of language of documentation, seeking the
maintenance, revitalization and preservation of the Yaathe language.
ATXHA MASKA

Owa sekhodjo Fulni-ô sato eksandowa efliwa ta naaneka, otxhaytowa te saktxka


eenise txtxaya hesa ethandowa XVII. Fuli kha nede fowa Comunati khetkyandonkya
otxhaytowa sato etximase ooke tha setso sato eykhekase thaksanete Carnijó sato eytxdjoa
uunima ekhdedwa Fulni-ô te, tha txhtkwase klaixiwa tha tnikase. Fulni-ô sato eethe nede
wapela sato ta khandowa khiate. Setso etnise fulikha de nede fowane Comunati de. Setso
Carnijó etnise etkano newde setso exitia sato setsnehe hesa eytxtxowa sato Capitania de
Permanbuco tha nese. Nekhaman, Yaathe efnekhana nede Fulni-ô sato ex’xi, neka dotkake
tha silha khiaka sahutnite tasedwake, khetkeneka tha yakhete sayxnekãy, efekhlato ethey
ekhoodjo efeeate newthoa sake thfo etxlese dotkake. Owa sekhodjo ke efenkhethasey, tha
setso sato de ethothi khiaka nede wapela eethat’xi hesa setso sato ekhsawase. Otxhaytowa sa
tho hesa ya fekhake lay nekawde. Owa sekhodjo ke kleynite yastowa ethandowa sato ya
khankya yonkya: owa sekhodjo tkano ke ya naaneka wapela ke atxha ekhnedwa, netkase sato
nede eethe wapela ekhnete xitia sato eefenkya kexa kthoawde yakhdeho sato tha nesatkwa,
setso eethe sato naanese lahele nede setso sato ex’xi etkunikama neka sekhodjo teeke. Ta
thakka sekhodjo thinedwa tha tetite: Drude (2006); Everett & Sakel (2010); Moore, Gabas Jr.
e Galúcio (2007); Himmelmann (2006). Owa sekhodjo lixino ke ya naaneka txtxo neka
sekhodjo wapela ke khnedwa, Yaathe keynika txtxo ya txkya noka etstakkãy, otxhaytonan
tate sa khoonese nekawdete ya sakhownete. Neka txtxoke, ya futxkya noka se kfalho ke
seethe wenese ke. Efekhla ya khdeho sato sekeynise txtxoke tha saathatkya txtxo futxkya.
Owa sekhodjo satutkano ya naaneka efekhla sato te wapela ke ekhnedwa fathowa ke khakya
yonkya efekhla, sake senenkya sato sathotxwa, saathatkya txtxo saykledwa, neka sekhodjo
kthoawke, nema nehodete ya naanekase saathatkya txtxo, fathowa ke naanedwa newde neka
yakhdese sake sayxnese saathatkya thoya ke. Owa sekhodjo khoya ya khankyase sawlinkya
fthowa saathatx’xi, Yaathe te saathatkya txtxo ke efekhla sato saykhledwa, wapela eetha tx’xi
efeekayke oode theti, nedoman ike astoa Yaathe sayxnese tolneka efeekayke, ya ya khedesete
otxhaytowa ya khdesewte sake thfo txledwa.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. 1
SEÇÃO 1: FULNI-Ô, A VOZ DA RESISTÊNCIA .............................................................. 5
1.1 UM FIO DE HISTÓRIA ........................................................................................................ 5
1.2 GUARDIÕES DE UM TESOURO LINGUÍSTICO-CULTURAL .................................................... 9
1.3 DOCUMENTANDO NARRATIVAS DOS ANCIÃOS FULNI-Ô: A RELEVÂNCIA DE
DOCUMENTAR A LÍNGUA E A CULTURA DE NOSSO PRÓPRIO POVO ....................................... 11
SEÇÃO 2: AS BASES TEÓRICAS DA DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA .............. 13
2.1 DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA: O QUE É E PARA QUE SERVE ....................................... 13
2.2 COMO SE FAZ DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA ................................................................ 15
2.2.1 O corpus de dados linguísticos primários .............................................................. 15
2.2.2 O papel da comunidade de fala .............................................................................. 16
2.2.3 As bases técnicas e tecnológicas da documentação linguística ............................. 19
2.3 DOCUMENTAÇÃO DAS LÍNGUAS INDÍGENAS BRASILEIRAS: O ESTADO DA ARTE ........... 21
2.3.1 As línguas indígenas brasileiras em geral .............................................................. 21
SEÇÃO 3: METODOLOGIA ............................................................................................... 26
SEÇÃO 4: DOCUMENTAÇÃO DAS NARRATIVAS DOS ANCIÃOS FULNI-Ô........ 31
4.1 LISTAS DE ARQUIVOS E DURAÇÃO................................................................................... 33
4.2 NARRATIVAS: DESCRIÇÃO E COMENTÁRIOS ................................................................... 34
4.2.1 Narrativa 1: FUN_ABS_NAR_001 ......................................................................... 34
4.2.2 Narrativa 2: FUN_ROB_NAR_002 ........................................................................ 37
4.2.3 Narrativa 3: FUN_RIM_NAR_003 ......................................................................... 40
4.2.4 Narrativa 4: FUN_JOL_NAR_004 ......................................................................... 42
4.2.5 NARRATIVA 05: FUN_AGF_NAR_005 ................................................................. 46
4.2.6 Narrativa 06: FUN_MAC_NAR_006 ..................................................................... 49
4.2.7 Narrativa 07: FUN_ELC_NAR_007 ...................................................................... 52
4.2.8 Narrativa 8: FUN_ARL_NAR_008 ......................................................................... 54
4.2.9 Narrativa 09: FUN_TEE_NAR_009 ....................................................................... 56
4.2.10 Narrativa 10: FUN_ IVL_NAR_010 ..................................................................... 60
4.2.11 Narrativa 11: FUN_ MAL_NAR_011 ................................................................... 63
SEÇÃO 5: OBSERVAÇÕES SOBRE A LÍNGUA: ESTRUTURA, FUNÇÃO E USOS 67
5.1 GRAMÁTICA .................................................................................................................... 67
5.2 VARIAÇÃO ...................................................................................................................... 72
5.3 VOCABULÁRIO ................................................................................................................ 75
5.4 EXPRESSÕES .................................................................................................................... 76
5.5 ONOMATOPEIAS OU ICONICIDADE ................................................................................... 78
5.6 EMPRÉSTIMOS ................................................................................................................. 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 84
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 87
1

APRESENTAÇÃO

O povo Fulni-ô concentra-se em área protegida, localizada a aproximadamente 300


quilômetros do Recife. Seus membros são falantes de uma língua nativa do Nordeste
brasileiro, o Yaathe, a única língua desta região a sobreviver à destruição causada pela
colonização portuguesa e de outros povos. Comumente incluído no tronco linguístico Macro-
Jê, o Yaathe vem sobrevivendo a séculos de dominação e esbulhos, sofrendo ataques da
imposição cultural dos não índios por um grande período de tempo.
Historicamente, houve muitas tentativas para fazer desaparecer o nosso idioma, mas o
Yaathe ainda resiste e sobrevive no convívio da comunidade Fulni-ô. No entanto, existe na
comunidade uma percepção de enfraquecimento de seu uso. Isso se deve em parte aos
ataques de que fomos alvo pela cultura dominante, principalmente com a expansão e avanço
da criação de gado no Nordeste, que promoveram, desde a época colonial, o extermínio de
várias nações indígenas nessa parte do território brasileiro.
É observado nos estudos sobre a extinção das nações indígenas no Nordeste o uso de
estratégias que visavam acabar ou enquadrar os índios dentro de políticas integracionistas do
governo. Diante disso, vários indígenas foram mantidos em confinamento nos aldeamentos
missionários para serem miscigenados e em seguida serem impedidos de comunicar-se com o
seu idioma. Isso foi instituído como prática para dizimar todos os índios do Nordeste e
silenciar suas manifestações culturais.
Mas agora a realidade é outra. Os direitos das populações indígenas estão contidos na
Constituição Cidadã, ou seja, na Constituição de 1988, apesar de muitas vezes esses direitos
conquistados pelas populações indígenas estarem ameaçados por propostas de emendas que
visam ao retrocesso das questões sociais resguardadas por eles resguardadas.
Listamos abaixo algumas garantias e conquistas efetuadas através dos movimentos
indígenas, como o Capítulo VIII, artigo 231 e respectivos parágrafos e artigo 232, no texto
constitucional, que são imprescindíveis para os direitos dos povos indígenas. (BRASIL,
1988):
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.

§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
2

§ 2.º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse


permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.

§ 3.º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a


pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-
lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4.º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.

§ 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o
risco.

§ 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação
de boa-fé.

§ 7.º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3.º e 4.º.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério
Público em todos os atos do processo.
( CF. C VIII, 1988).

As espoliações de direitos indígenas nunca tinham sido tratadas nas demais


constituições. Os crimes e a desgraça praticados pelos não índios causaram sequelas históricas
que marcaram profundamente durante muito tempo os povos indígenas no Brasil, como a
negação de garantias e direito a suas terras e a condução de ataques a suas culturas,
principalmente no Nordeste, onde se iniciou todo esse processo. Entretanto, os direitos
indígenas estão fundamentados na constituição de 1998, um marco na história dos índios
brasileiros. Por conta disso, a exposição de boa parte desse texto constitucional neste trabalho
é justificada.
É verdade que, em alguns casos, essa Lei pode até ser revertida pelo interesse de uma
classe dominante gananciosa. Isso pode trazer um retrocesso de conquistas para esses povos
nativos. De toda forma, os movimentos indígenas junto aos seus parceiros, como as Ongs
(Organizações Não Governamentais) nacionais e internacionais, durante os anos 80, vêm com
um significativo contingente apoiando as causas indígenas até os dias atuais. Nessa época,
foram assegurados, nos itens citados acima, a demarcação de seus territórios, sua organização
3

social, costumes, crença e sua língua; enfim, tudo que foi totalmente negado desde o início da
empresa colonial dos aldeamentos, conforme executado pelos missionários.
Esse novo horizonte de conquistas dos povos indígenas veio dar voz às suas lutas
históricas, pois por muito tempo o genocídio desses povos vinha sendo velado e negado
categoricamente. Só há pouco tempo emergiu a ação do reconhecimento dos povos
originários na efetivação de direitos e respeito à diversidade cultural no país. Apesar da não
aceitação do outro, o índio, ou até mesmo os afro-descendentes, estão conquistando seus
espaços, digamos com muitas lutas. É nítido hoje, no sistema acadêmico, as “vozes
indígenas” que estão sendo representadas nos trabalhos científicos, em pesquisas de cunho
indígena, espaços esses que só eram postos para as elites dominantes até muito recentemente.
Representamos uma minoria que antes era tida como incapaz, devido a uma crença racista e
preconceituosa.
O objetivo do presente trabalho é apresentar resultados de um projeto de ocumentação
da língua indígena brasileira Yaathe. Especificamente, o projeto visou documentar narrativas
de anciões da comunidade Fulni-ô. O trabalho teve apoio financeiro da agência internacional
Gesellschaft für bedrohte Sprachen – GBS (http://www.uni-koeln.de/gbs/e_index.html), que
vêm se comprometendo em apoiar significativamento os registros das línguas minoritárias no
mundo, bem como do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), que concedeu uma bolsa de estudo para o seu desenvolvimento.
A importância de um trabalho como este é indiscutível, sobretudo quando constatamos
que a comunidade encontra-se inserida em um contexto no qual se fazem bastante fortes as
influências não indígenas, algo que sabidamente vem desconstruindo e extinguindo culturas e
línguas indígenas no mundo. Nesse contexto, documentar histórias narradas pelos anciões em
sua própria língua, o Yaathe, herdada dos seus ancestrais, é também demonstrar
reconhecimento de sua singularidade e afirmação étnica. Ações como esta de documentação
de historias e palavras do idioma que estão deixando de ser usadas pelos jovens, mas que
ainda ocorrem na fala usada por anciões, são necessárias e urgentes para a preservação da
língua e da cultura de nosso povo. O presente trabalho constitui uma contribuição neste
sentido.
A seguir, apresentamos a estrutura do trabalho.
Na seção 1, apresentamos um resumo da história dos Fulni-ô, falamos da sua língua, o
Yaathe, enfatizando a importância do registro de narrativas como forma de preservação dos
modos de fala dos mais velhos na nossa língua de herança, bem como da importância de essa
documentação estar sendo feita por um indivíduo que é membro da comunidade.
4

Na seção 2, apresentamos a teoria e os princípios básicos da documentação linguística,


definindo o seu objeto, os seus objetivos e a abrangência e importância de um trabalho de
documentação linguística.
Na seção 3, trazemos a metodologia e os procedimentos metodológicos observados na
documentação.
Na seção 4, descrevemos o processo de documentação aqui realizado, ilustrando todas
as etapas com amostras dos exemplares coletados, juntamente com comentários sobre os
conteúdos de cada narrativa.
A seção 5 é um levantamento, com comentários, de aspectos linguísticos encontrados na fala
dos anciãos e que nos pareceram válidos de registro para estudos posteriores.
Finalmente, apresentamos as nossas considerações e observações levantadas pela
investigação realizada.

SEÇÃO 1: FULNI-Ô, A VOZ DA RESISTÊNCIA

1.1 Um Fio de História

O que sabemos da trajetória dos Fulni-ô, aldeados desde o início da década de 1920
em terras do antigo aldeamento do Panema, remonta ao contato com os primeiros
missionários na região, ainda no século XVII.
Os registros históricos mostram que nessa localidade habitava uma nação Tapuia
subdivididas em diferentes grupos étnicos. Essas notícias dão conta, segundo Dantas (2010),
de acordo com os documentos históricos investigados, das primeiras missões religiosas na
capitania de Pernambuco. As primeiras informações sobre o aldeamento tratam de quando o
capuchinho francês Frei José de Bluerme, no final do século XVII, empreendeu a
catequização desses indígenas. Os grupos indígenas da região de Águas Belas citados por essa
época são dois, habitando duas aldeias: a aldeia de índios Carapotó, na serra do Comunati, e a
aldeia de índios Xocó, situada no vale do Rio Ipanema.
A aldeia da serra do Comunati, habitada pelos Karapotó, foi administrada pelo
capuchinho francês José de Bluerme de 1681 a 1688. A esse respeito, Pereira da Costa (1951,
p. 363) escreveu:
O nome dessa tribo de tapuias, como se colige do escrito de Elias Herckman a
respeito (1639), vem de Karapotó, seu rei ou chefe, que então a governava. Pelos
anos de 1681 a 1685 foram os Carapotós reduzidos à fé católica pelo missionário
capuchinho francês Fr. José de Bluerme (...)

Na mesma obra, encontram-se informações bastante interessantes sobre os Karapotó:


Carapotós. Descendentes dos índios da nação Cariris, habitavam na serra do
Cumunati, ao norte da cidade sertaneja de Águas Belas, de grande altitude,
ubérrima, de excelentes e perenes águas, bom clima e de um verde constante.
Cumunati, segundo Teodoro Sampaio, é corrutela de comanátim, feijão branco.1
(PEREIRA DA COSTA, 1951, p. 163).

Da aldeia dos Xocó, localizada no vale do Rio Ipanema, não são encontradas maiores
informações.
Porém acreditamos que, para o convívio e manutenção das suas relações sociais, os
autóctones então nômades – Carapotó, Carnijó e Xocó – nessa época remota, buscavam
lugares adequados para possibilitar a reprodução cultural e física dos seus membros. Esse
assunto é de fato uma proposta que objetiva o registro onde se discute a primeira aparição das


1
Essas interpretações dos nomes de lugares não devem ser levadas a sério sem uma análise mais aprofundada.
6

aldeias fundadas pelos missionários, as quais também, nesse caso, não foram permanentes no
rio Ipanema e na serra do Comunati, por conta da instituição de extinção dos aldeamentos em
1875 com o objetivo de fazer com que toda presença indígena desaparecesse, conforme era a
política do Governo imperial.
Mesmo assim, a interação e conflitos dos grupos indígenas na localidade por território
provavelmente eram constantes, como também a unificação dos grupos étnicos que conduziu
à formação dos subgrupos nativos. Por conta desses grupos habitarem na mesma região, eles
se refugiavam muitas vezes às escondidas para não serem apreendidos pelos brancos2. Assim,
o processo de aglomeração desses índios deu-se com mais rapidez diante da aparição
desastrosa do homem branco nesse espaço, que dizimou grande parte e conduziu outra parte
ao confinamento forçado nos aldeamentos missionários.
A história documental não narra precisamente a unificação dos grupos indígenas desse
século e nem informa como ela se deu, diante da dinâmica opressora de colonos e
missionários. Dantas (2010) afirma que foram constituídas essas aldeias na Serra do
Comunati e no Rio Ipanema entre fins do século XVII e início do XVIII.
O Aldeamento do Ipanema foi constituído a partir de fluxos diversos de populações
que habitavam a região entre a Serra do Comunati e o rio Ipanema, sendo
estabelecido a partir de duas aldeias ali existentes em meados do século XVIII,
ambas de índios Carnijó. Antes dessas aldeias, foi fundada uma aldeia de índios
Carapotó no Comunati, entre 1681 e 1685, e outra de índios Xocó na ribeira do
Ipanema, 1688. Embora não tenhamos dados para elucidar de que forma ocorreu a
junção das duas aldeias de índios Carnijó e as dos Carapotó e Xocó, podemos inferir
que, devido à proximidade dessas aldeias com outras em áreas muito próximas, e
também ao contato estabelecido com missionários, vaqueiros e escravos na região,
essas populações vivenciavam relações de trocas e conflitos num constante fluxo
entre as fronteiras das missões, das fazendas e dos povoados. (DANTAS, 2010, p.
24).

De acordo com a literatura, nesse contexto regional e histórico diversos grupos étnicos
viviam muito próximos, provavelmente por questões de semelhanças culturais, de certo modo.
E diante da ação dos não índios, que aprisionaram muitos deles, surgiu, assim, a fusão de
grupos nativos remanescentes de forma a agrupar todos e com isso miscigená-los mais tarde.
É nesse tempo que dois grupos de Carnijós, o grupo da Serra dos Cavalos e o grupo da
Serra do Comunati, surgem na história e na memória dos anciãos da comunidade, atualmente.
De acordo com a tradição oral, mais tarde esses dois grupos se unificaram em um só povo.


2
Os termos “branco” e “homem branco” serão utilizados aqui neste trabalho para se referir a não índios. Trata-se
de um termo que embora hoje em dia não seja muito acurado para descrever o não índio, o foi durante o maior
período de dizimação dos povos indígenas brasileiros. O termo ainda é bastante empregado por indígenas no
Brasil.
7

Segundo o relato de Ostílio Marques, ancião de nosso povo com seus 86 anos de
idade, sua família se denominava Fola, os Carnijó que residiam na Serra dos Cavalos. Esse
grupo veio a se unificar aos outros Carnijó da Serra do Comunati, por conta mesmo do
processo acima citado de miscigenação. Esses índios passaram, posteriormente, a formar um
só povo.
Ainda conforme os relatos desse velho, esses grupos de Carnijós passaram muito
tempo em conflitos, por conta de um jovem Carnijó da Serra do Comunati, em seu percurso
de caça, ter entrado no território dos Carnijó da Serra dos Cavalos. O jovem tinha se
afeiçoado a uma jovem dos Fola e a carregou para a sua aldeia.
Na literatura, esse episódio de roubo da jovem não é retratado como as causas dos
conflitos desses dois grupos de Carnijó. Melo (1929) e Pinto (1955), em seus estudos, por
exemplo, descreveram esse episódio como apenas uma conturbação na história dos antigos
Fulni-ô. Portanto, essas informações agrupadas à memória e história oral servem como base
para contextualizar a nossa pesquisa.
No cenário de vestígios da extinção do aldeamento, mais tarde os Fulni-ô foram
novamente impostos a outra reformulação de acordo com o Diretório dos Índios, com a
estratégia pombalina ainda no século XVIII. Por conta das misturas entre colonos e índios, a
presença indígena, antes mesmo da extinção dos aldeamentos, já vinha sendo contestada,
como informa Santana (2011):
A partir de 1835, passou-se a negar a existência de índios e ganharam vulto os
conflitos, tendo como causa a presença de posseiros brancos e negros. As
autoridades são dúbias, ora negando, ora atestando existir “um pequeno número de
índios” completamente civilizados e misturados com a população. (SANTANA,
2011, p. 2)

A presença indígena estava nessa situação mergulhada, a ausência sendo incluída


expressivamente no contingente de brancos colonos dessa época.
No século XIX3, mostram-se indícios de pesquisas referentes aos remanescentes
indígenas do antigo aldeamento do Ipanema. Deste modo, estudos nesse período referem que
“os brasileiros em Águas Belas chamam Carnijós a esses índios; mas eles se apelidam a si
próprios, em sua língua, Förnio, ou Iacotoá, para se distinguirem das outras pessoas”.
(BRANNER, 1927, p. 364).
Curt Nimuendajú, etnólogo de origem alemã, pesquisou, em 1934, resquícios de
vestígios de indianidade da cultura material e imaterial dos índios Fulni-ô e dos Xucuru de


3
A publicação consultada é de 1927, mas Branner esteve em Águas Belas, entre os Fulni-ô, por volta de 1886.
8

Cimbres. (SILVA, 2007). A pesquisa de Nimuendajú, entretanto, foi frustrada, porque os


Fulni-ô já tinham consciência dos abusos que vinham sofrendo, o que fez com que eles
passassem a repudiar estranhos devido a que o convívio com estes tinha afetado por muito
tempo o modo de vida dos seus ancestrais. Assim, não revelavam completamente todas as
características de sua cultura. Os aspectos culturais dos Fulni-ô passaram, desse modo, a ser
protegidos e, como consequência natural, a ser ocultados.
Relatos históricos propõem que os Fulni-ô foram formados pela origem distinta de
dois grupos Carnijós, que por sua vez é fruto da união de outras etnias: os Fokhlasa, os Fola e
Brobadás ou Brogradás. Não encontramos, no entanto, vestígios de narrativas sobre este
último grupo dentro da comunidade indígena Fulni-ô. Esses relatos devem ter sido
dispersados no tempo. De qualquer maneira, todos esses grupos são de origem Tapuia, que
possivelmente pertencem à nação chamada Tairariú.
As menções à existência desses grupos na região são muito antigas. A maior parte
situa os índios nessa região no final do século XVII, como vimos. Entretanto, há documentos
que registram essa presença já nos meados do século XVII, como podemos ver no trecho do
documento transcrito a seguir.
Faço saber aos Governador e Capitão Geral da Capitania de Pernambuco que
tomando-se resolução na junta das missões sobre a aldeia que mando entregar aos
Padres da Congregação do Oratório dessa capitania como se vos declaram por outra
ordem minha que haveis de receber nesta ocasião. Sou servido (ilegível) vos
mandeis entregar ao propósito da dita congregação a provisão que com esta se vos
remete pela qual lhe mando expressar que suposto pelas obrigações da sua fundação
não seja[m] admissíveis as escusas que alegam para se isentarem os congregados da
administração das duas aldeias que de novo lhe foram avisadas. Contudo atendendo
aos outros serviços que fazem o D. (ilegível) e (ilegível) público nesta capitania
houve por bem que se lhes não entregassem de novo mais que uma só aldeia das
duas sobre ditas (ilegível) escolham, como declaração que se uniram as de Aroroba,
Limoeiro, as dos Carnijós e de Palmar, ou se farão outra apregação semelhante por
meio da qual se (uma frase ilegível). Aldeias que (ilegível) e que será muito do meu
real agrado que o Propósito se conforme com a devida resignação a esta resolução
sem mais demora, nem réplica. (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, AHU-
ACL-CU-015, Cx13, 1684: 1320 apud Quirino, 2006, p. 34-35).

Parece ser possível dizer que hoje todos os remanescentes desses povos são
reconhecidos pelo nome dado aos que permaneceram junto do Rio Ipanema, ou seja, os Fulni-
ô, que podem ter herdado muitos traços culturais dos Tarairiú, uma nação indígena que
habitava o sertão do Nordeste, do Rio Grande do Norte até Pernambuco, no início da
colonização.
9

1.2 Guardiões de Um Tesouro Linguístico-cultural

Diante do processo de dizimação sofrido pelos povos indígenas da região Nordeste,


pode-se dizer que os antigos Carnijó – como eram chamados os índios Fulni-ô – poderiam ter
tido o mesmo destino de outros povos da região e, hoje, a língua Yaathe seria uma língua
extinta. No entanto, o grande feito da resistência do nosso idioma se deu justamente pelo
empenho dos nossos antepassados que, apesar de serem impedidos de praticar os seus rituais e
de falar o seu próprio idioma, perpetuaram a nossa cultura, através de práticas diversas, entre
as quais rituais secretos, danças e o ato de narrar histórias. As narrativas são instrumentos
importantes de preservação e transmissão das heranças identitárias e das tradições (Lima e
Castro, 2014). Isso possibilitou uma aprendizagem para os jovens, que puderam então se
contrapor, usando como estratégia o hábito de praticar os seus costumes às escondidas, longe
dos olhos dos não-índios. A captura de índios, que confinou todos em aldeia fixa, privavam os
Fulni-ô de desenvolver junto aos bens sagrados da natureza os seus costumes étnicos de visão
e de significação do mundo.
A prisão de índios em aldeamentos desenvolvidos pelos missionários e colonos nesse
período e, consequentemente, as fugas dos aldeamentos-missões, conduziu ao surgimento das
noites furtadas, uma prática que até hoje faz parte dos rituais Fulni-ô. Os Fulni-ô fugiam dos
aldeamentos missionário para realizarem seus rituais às escondidas, no meio da caatinga. Isso
garantiu a vitalidade dos costumes tradicionais ocultamente, mantendo esses costumes para as
futuras gerações, inclusive o Ouricuri, que é um marco importante para a resistência e
afirmação do Povo Fulni-ô como povo indígena impenetrável, que têm muitos aspectos da sua
cultura blindada aos não índios ou aos que não são Fulni-ô, de modo geral. Foi dessa forma
que eles se apoderaram do seu mundo novamente e se contrapuseram à cultura opressora.
Conforme Medeiros (2002):
Apesar do desinteresse pela cultura nativa manifestado pelos missionários que mais
queriam impor sua cultura que compreender a do outro, a desobediência e as fugas
dos rituais indígenas praticados às escondidas, mostram uma resistência cultural aos
novos modelos impostos pelos aldeamentos missionários. (MEDEIROS, 2002, p.
210).

Foi dessa maneira que se manteve por muitos anos a difusão de conhecimentos: no
meio da noite, com narração de histórias e práticas dos seus rituais. Assim, passavam a
impressão para os ditos civilizados que os Fulni-ô já estavam entregues à cultura dominante.
10

A resistência e o comprometimento com a cultura fizeram com que os velhos garantissem a


permanência da língua Yaathe.
Com o objetivo de manter a cultura e difundir a história de seu povo, preservando,
assim, a prática de nossa língua (Yaathe), os anciãos Fulni-ô vêm, desde os seus mais remotos
antepassados, mantendo um importante papel na construção e formação do ser indígena,
conhecedor de seus costumes étnicos. Isso é feito sobretudo através da prática frequente entre
a oralidade dos anciãos e essencialmente quando eles exercem a força de suas memórias, pois
assim podem ultrapassar gerações. Segundo Delgado (2006, p. 19),
A memória, em sua extensa potencialidade, ultrapassa, inclusive, o tempo de vida
individual. Através de histórias de famílias, das crônicas que registraram o
cotidiano, das tradições, das histórias contadas através de gerações e das inúmeras
formas de narrativas, constrói-se a memória de um tempo que antecedeu ao da vida
de uma pessoa. Ultrapassa-se a cronologia atual e o homem mergulha no seu
passado ancestral. Nessa dinâmica, memórias individuais e memórias coletivas
encontram-se, fundem-se e constituem-se como possíveis fontes para a produção do
conhecimento histórico.

É nesse sentido que as memórias individuais e coletivas desses detentores da cultura,


da tradição oral e dos conhecimentos tradicionais têm uma função importante na cultura de
nosso povo, uma vez que, através das suas lembranças, podem expressar e disseminar os
significados de seu mundo, de uma maneira que garante a difusão da cultura Fulni-ô.
Consideramos que é fundamental manter viva essa prática, valorizando os seus
perpetuadores – os anciãos. Ao fazer isso, salientaremos a grande importância que têm esses
membros da comunidade para a cultura, corroborando com o que reza a expressão popular:
“não existe o velho sem o novo; é com o velho que podemos fazer o hoje”. Ao contar
histórias, os anciãos disseminam, de um modo particular e interativo, ensinamentos para as
novas gerações, de modo que essas possam compreender e respeitar a sua cultura nativa.
A importância das narrativas produzidas pelos anciãos Fulni-ô pode ser melhor
compreendida se se leva em conta o saber desses indivíduos, que deriva, por sua vez, da
transmissão oral. Trata-se de um conhecimento totalmente repassado por atitudes de
sabedorias ancestrais, o qual permanece na atualidade dentro da cultura Fulni-ô. É
fundamental, portanto, que uma merecida atenção seja dada a essa pratica desses membros da
comunidade, mediante o seu registro adequado, o que fortalecerá a permanência da tradição
oral no mundo contemporâneo dos Fulni-ô. Além disso, é extremamente importante
salvaguardar esses registros e possibilitar a sua disseminação dentro da comunidade, de
maneira que seja usado futuramente para estudos diversos pelos próprios indígenas do povo.
11

Assim, será possível propor futuramente, caso seja necessário, métodos de revitalização do
ato de contar histórias em Yaathe.

1.3 Documentando Narrativas dos Anciãos Fulni-ô: A Relevância de Documentar a


Língua e a Cultura de Nosso Próprio Povo

A relevância de um trabalho como este é indiscutível quando constatamos que a


comunidade encontra-se inserida em um contexto no qual se fazem bastante fortes as
influências não indígenas, algo que sabidamente vem desconstruindo e extinguindo culturas e
línguas indígenas no mundo. Nesse contexto, documentar histórias narradas pelos anciãos em
sua própria língua, o Yaathe, herdada dos seus ancestrais, é também demonstrar
reconhecimento de sua singularidade. Ações como esta de documentação de histórias e
palavras do idioma que estão deixando de ser usadas pelos jovens, mas que ainda ocorrem na
fala usada por anciãos, são necessárias e urgentes para a preservação da língua e da cultura de
nosso povo. O presente trabalho constitui uma contribuição neste sentido.
Grande parte dos conhecimentos científicos em relação aos povos indígenas, vem de
um olhar de outras culturas, isto é, de uma perspectiva não-índia. São estudos acerca de vários
aspectos desses povos: a relação que eles têm com a Terra, suas cultuas, suas línguas, enfim,
produção de conhecimento que, se por um lado explica a realidade dessa diversidade
indígena, em muitos casos dissemina ideias que não condizem com a realidade dos povos
indígenas. Um bom exemplo que temos atualmente são os livros didáticos, que muitas vezes
distorcem a imagem do índio, fazendo crer que todos os índios vivem apenas na mata,
acreditam em Tupã e têm uma cultura estática. A criança da cidade que irá aprender sobre a
realidade indígena com esse material vai erroneamente concluir, entre outras coisas, que todo
índio tem a mesma cultura, o que é evidentemente algo extremamente equivocado e
potencialmente perigoso.
Aponto essa relação de pesquisas que já foram feitas com os índios do Brasil, em
alguns trabalhos científicos, o que implicou em caminhos distorcidos da realidade histórica
indígena. Dispomos agora da oportunidade de desmistificar algumas problemáticas que foram
disseminadas no passado por estudiosos que não assimilaram bem certos conceitos indígenas.
É possível que algumas dessas práticas estejam relacionadas à opressão cultural, que resultava
no ocultamento da expressão indígena.
Uma nova ótica que tem ganhado bastante aceitação entre os povos indígenas é pensar
também pesquisas desenvolvidas pelos próprios índios, a exemplo do que tem acontecido com
12

o povo Fulni-ô. É importante ressaltar que vários trabalhos importantes para a cultura e a
causa indígenas foram realizados por pesquisadores não índios. Assim, por exemplo, na área
da linguística, há um número razoável de trabalhos importantes que foram realizados ao longo
das últimas décadas por não indígenas. Poucos têm sido ainda os trabalhos levados a cabo
pelos membros das comunidades estudadas.
Hoje, frutos de pesquisas feitas por nós indígenas estão cada vez mais presentes na
academia, historicamente centrada em temas estrangeiros à realidade e às necessidades dos
povos indígenas. Pesquisar o seu próprio povo significa abrir um leque de oportunidades não
apenas para o pesquisador em si, mas também para outros membros da comunidade, que
poderão eventualmente tornar-se pesquisadores.
Nos governos anteriores essa prática de índios serem inseridos na academia era
altamente descartada. As hipóteses de incentivos políticos, uma política que só era
centralizada na obscuridade, favorecida aos gananciosos de herança colonial. A realidade de
índios nas Universidades estava tendo um êxito significativo, mas foi ameaçada com o golpe
de 2016, que, em muitos sentidos, têm apresentado e aprovado propostas de retrocessos
consideráveis. Os golpistas, que infelizmente ainda estão no poder na altura em que escrevo
este trabalho, defendem a preconceituosa ideia de que as minorias não necessitam de políticas
públicas que as incentivem a ter acesso ao conhecimento científico. Esse retrocesso constitui
grave ameaça para os direitos indígenas já conquistados. Além disso, diz respeito ao próprio
fazer acadêmico, que precisa ser menos amordaçante, abrigando perpectivas e discursos que,
embora sejam poucos comuns, são pertinentes para o trabalho realizado por membros de
comunidades indígenas.
O presente trabalho constitui, portanto, um importante passo não apenas para o seu
autor, como também para o povo Fulni-ô. Existem poucos registros de narrativas dos Fulni-ô.
O produto desta dissertação poderá ser relevante para o estudo de vários aspectos da cultura e
da língua dos Fulni-ô. Desse modo, consideramos que o trabalho que aqui se apresenta
constitui-se, de uma maneira geral, como uma contribuição para o conhecimento da
diversidade indígena no Brasil. Em particular, procura ampliar os horizontes de entendimento
da singularidade étnica e linguística dos índios Fulni-ô contemporâneos.


13

SEÇÃO 2: AS BASES TEÓRICAS DA DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA

2.1 Documentação Linguística: O Que É e Para Que Serve

A adoção de procedimentos para salvaguardar registros de línguas minoritárias é algo


que está sendo cada vez mais difundido na contemporaneidade. Decorrente do conhecimento
e do reconhecimento do perigo de extinção que correm muitas línguas do mundo, essa prática
é bastante recente, mas também urgente. Isso significa dizer que é preciso documentar essas
línguas em um período curto de tempo, antes que elas venham a desaparecer. Por conta dessa
situação, tem-se tido uma preocupação muito grande, principalmente por partes dos linguistas,
em documentar línguas em perigo de extinção.
Mas o que é documentar línguas? Qual é o sentido de documentar línguas?
Para responder a essas perguntas, precisamos dedicar atenção ao fenômeno da
extinção de uma língua, sobretudo no que diz respeito ao que ele significa para as
comunidades afetadas. Essa deve ser uma reflexão a ser trabalhada com a comunidade, com o
propósito de ter bem clara a finalidade do registro de materiais linguísticos e culturais. É
preciso que os membros dessas comunidades estejam conscientes das perdas significativas do
ponto de vista cultural e linguístico, para assim compreenderem e valorizarem o trabalho de
documentação linguística.
Como sabemos, a língua é o condutor de saberes ancestrais. É nela que uma cultura
pode ser manifestada de várias maneiras: os valores, o modo de conduta de uma comunidade,
a transmissão de conhecimentos. A língua cumpre esse importante papel em uma sociedade.
Apesar do aumento populacional de comunidades cujas línguas estão em perigo de extinção, o
processo de perda e redução de uso das línguas só tem aumentado, como afirma Drude (2006,
p. 29):
Esta drástica redução exemplifica o segundo ponto, pois apesar da recuperação
demográfica, as línguas continuam desaparecendo, no mundo e no Brasil, e isto até
num ritmo cada vez mais acelerado. Já agora há muitas línguas que não se passam
mais para a próxima geração, e várias se usam somente em situações restritas, como
em certos rituais.

De certo modo, isso é nítido quando olhamos para o panorama das línguas à beira da
extinção. Ler esses trabalhos que descrevem essa situação de enfraquecimento da diversidade
linguística mundial é algo angustiante. Por conseguinte, é de extrema urgência documentar
essas línguas e, em alguns casos, trabalhar em sua revitalização para que elas consigam
chegar a atingir as novas gerações de grupos a que elas pertencem. A “morte” dessa riqueza é
14

algo que se caracteriza como um dano para uma comunidade, pois a visão de mundo e
conhecimentos advindos de uma língua podem ser perdidos. Em outras palavras, domínios
que só podem ser adequadamente compreendidos no idioma podem deixar de ser acessados
por parte dos seus membros. Além disso, o conhecimento linguístico por si só deixa de ser
investigado e a própria linguística corre o risco de não ter a oportunidade de desvendar as
várias características e estilo da fala de um povo.
De acordo com a UNESCO, a língua Yaathe encontra-se em risco de iminente
extinção. Uma maneira de minimizar este risco é intensificar os registros linguísticos, como é
o que propõe Drude (2006, p. 30) para línguas em risco de extinção:
Algo que pode ser feito, no entanto, é documentar línguas enquanto ainda são usadas
ou lembradas. A mesma época que vê o desaparecimento da diversidade também
nos fornece a tecnologia necessária para criar acervos abrangentes de línguas e
culturas – hoje existe a possibilidade de fazer gravações digitais em áudio e vídeo de
alta qualidade para custos acessíveis no ‘campo’, nos lugares onde as línguas e
culturas são vividas no dia-a-dia.

O objetivo central da documentação linguística na atualidade é criar um corpus de


uma língua, utilizando todos os meios tecnológicos que hoje possibilitam fazer gravações de
áudio e vídeo, em formato digital. Com esses dados primários, pode-se, no mínimo, fazer
transcrições e tradução desse material coletado. Esse material ancora ou dá suporte a diversos
tipos de análises, proporcionando também a construção de materiais didáticos para o ensino e
a aprendizagem dessas línguas. Hoje, esse procedimento vem ganhando atenção entre
linguistas, que estão sendo treinados para a tarefa de documentação. Mesmo assim, ainda o
cenário não é ideal, e poucos linguistas têm a sensibilidade e o interesse de ajudar
comunidades afetadas. (DRUDE, 2006).
A necessidade de documentar línguas minoritárias em perigo de extinção tornou-se
alvo da atenção dos linguistas, de forma mais expressiva, durante os anos 90. Isso ocorreu
porque admitiram que as línguas no contexto global estavam desaparecendo.
O desaparecimento de línguas parece ser inevitável, principalmente por questões como
o fato de um grupo social sobressair-se a outro politica e economicamente. Assim, as línguas
ditas inferiores há muito tempo estão em um processo de extinção e assim correndo risco de
desaparecerem. Os próprios falantes, por conta da opressão cultural e política, são
influenciados e criam uma barreira, achando que suas línguas são mesmo inferiores às outras,
tal como observa Silva (2002, p. 68):
Uma consequência do processo de ''mudança linguística abrupta'' observado em
línguas em extinção é o fato de que os pais geralmente deixam de falar a língua
minoritária com os filhos. Portanto, as gerações mais novas não se tornarão falantes
fluentes da língua ameaçada de extinção. Assim, em algumas gerações a língua
15

desaparecerá, uma vez que o vocabulário e certas construções gramaticais deixam de


ser utilizadas.

Existem diversas causas do não uso de uma língua, podendo ocorrer quando um grupo
se sobrepõe ao outro, por questões culturais ou até mesmo econômicas. A língua Inglesa, por
exemplo, pode ser considerada uma língua de prestígio, sendo usada em diversos espaços, e
por consequência “triturando” diversas expressões linguísticas no mundo.
Os falantes dessas línguas inferiorizadas são atraídos por esse modelo universal, e
deixam de usar os seus próprios idiomas, interferindo na transmissão de sua língua nativa para
as novas gerações, como apontado acima. Então, se faz necessário refletir sobre esses casos,
criando maneiras sistemáticas que facilitem a revitalização da língua para esses grupos
minoritários. A documentação linguística pode ser um passo nesse sentido.
Outro ponto importante que justifica o esforço de documentação, é, segundo
Himmelmann (2006, p. 5), a economia de pesquisa: “A criação de documentações de línguas
que são adequadamente arquivadas e tornadas acessíveis aos pesquisadores interessados é
também de interesse para a economia de pesquisa”.
A seguir, abordaremos alguns procedimentos a serem observados para proceder a uma
documentação linguística satisfatória.

2.2 Como se Faz Documentação Linguística

2.2.1 O corpus de dados linguísticos primários

Documentação Linguística surge no campo de investigação da linguagem humana


com o objetivo de compilar dados de fala de variados aspectos em uma comunidade de fala –
linguísticos, sociolinguísticos, culturais – procurando destacar eventos de falas. Esses dados
podem ser amplamente difundidos para análises no meio científico, mas são extremamente
importantes para a própria comunidade de fala.
A documentação linguística procura registrar uma variedade de fenômenos
linguísticos que constituirão um corpus de dados primários. Esses dados, em princípio, devem
ser passíveis de serem utilizados para análises não apenas do ponto de vista do pesquisador
que os coletou, mas potencialmente de acordo com qualquer perspectiva teórica. A
recomendação é que todos os dados sejam gravados em áudio e vídeo e sejam armazenados
juntamente com anotações: transcrições (fonética, ortográfica), traduções e também
informações sobre a coleta (dados dos informantes, do conteúdo, do lugar, etc.), que são
16

denominadas metadados. Fazer um registro de uma língua requer um enorme empenho na


coleta de dados e em todo o processamento do material para arquivo.
Os procedimentos são as bases para se chegar ao que objetiva o pesquisador linguista
ao dar os primeiros passos em direção a uma documentação linguística satisfatória. Com isso,
avança-se pela concepção da instrução de documentar que requer, além disso, seleção das
ocorrências de formas de falas que serão incluídas na documentação. Ou seja, antes de se
propor a esse trabalho, o documentador tem de conhecer os elementos com os quais ele irá
trabalhar, como, por exemplo, a comunidade, seus falantes, os fenômenos de fala que ali
ocorrem naturalmente e seu contexto cultural.
Isso será feito de acordo com cada propósito temático das pesquisas em
documentação, o que permitirá a obtenção de coleta de dados primários, que é o centro de
uma documentação de língua. Assim, de acordo com Himmelmann,
Os dados primários que constituem o núcleo de uma documentação de língua
incluem registros em áudio ou vídeo de um evento comunicativo (uma narrativa,
uma conversa, etc.), mas também incluem as anotações feitas em uma sessão de
elicitação, ou uma genealogia escrita por um falante nativo letrado. Esses dados
primários são compilados em um corpus estruturado. (...) Uma documentação
linguística é um registro duradouro, multiuso de uma linguagem. (HIMMELMANN,
2006, p. 2).

Existem pesquisas que apontam hoje para uma vasta diminuição de línguas em uso
pelo globo. A própria Unesco divulga esse cálculo. Segundo essa instituição, 50% das línguas
faladas no mundo estão em perigo de extinção. (UNESCO, 2017). Esse alto índice por si só
justifica a importância da documentação. Da mesma forma, existe atualmente a preocupação
de apoiar e dar bases sustentáveis para salvaguardar essas línguas minoritárias. Compreende-
se, como posto acima, que essas línguas têm um significado relevante para a elaboração de
conhecimentos e aplicação de análises linguísticas sob diversas perspectivas.

2.2.2 O papel da comunidade de fala

Para se conduzir uma produção de um corpus linguístico mais aceitável, tanto to ponto
de vista científico, quanto do ponto de vista cultural, é de suma importância a colaboraçãi da
comunidade em todas as etapas do processo de aquisição de informação de suas línguas.
Como essas comunidades detêm os conhecimentos culturais relevantes de muitos aspectos da
documentação, são elas que poderão definir o que pode ser documentado em suas culturas. Se
não se leva em consideração o papel da comunidade de fala na documentação linguística, é
17

impossível construir um conhecimento participativo das línguas minoritárias, como bem


coloca o documento do IPHAN:
Não é possível, por exemplo, produzir conhecimento e documentar uma língua sem
mobilizar a comunidade linguística, pois inventário pressupõe a participação efetiva
dos falantes, tanto na produção de conhecimento como na definição daquilo que
querem mostrar da sua cultura, do modo como desejam caracterizar e representar a
sua língua. De forma semelhante, a documentação não pode prescindir dos
processos de pesquisa e de participação da comunidade, inclusive na validação dos
registros realizados. (IPHAN, 2014, p. 30).

É importante nos trabalhos de documentação permitir que as comunidades participem


da construção do conhecimento linguístico de seu povo, pois isso possibilitará uma dinâmica
relacionada à junção de vários conhecimentos: o conhecimento tradicional de cada povo e
suas práticas culturais, algo que poderá ser reforçado pelo apoio documental em meio às
novas tecnologias. Essa relação entre o conhecimento da língua e dos saberes tradicionais de
um povo, em conjunto com os conhecimentos técnicos e metodológicos da documentação,
constituem uma ferramenta bastante poderosas para manter vivas as línguas ameaçadas de
extinção.
Em muitos casos, o perigo de extinção é expressivo, e os falantes têm a consciência do
ritmo de perda de suas línguas. Por isso, salienta-se que as comunidades, cooperando e
atuando nessas atividades, devem apresentar o que pode ser documentado: suas manifestações
artísticas, sociais, linguísticas e comportamentais originárias. Nessa mesma ordem, os
projetos de documentação linguística têm de possibilitar o engajamento dos próprios falantes
de cada povo. Então, o trabalho de revitalização das línguas minoritárias pode, assim, ser mais
adequado para salvar as línguas que estão em perigo. Himmelmann (2006) enfatiza essa
relação:
De fato, experiências recentes tornam claro que encorajar falantes nativos a tomar
uma parte ativa na determinação dos conteúdos de uma documentação aumenta
significantemente a produtividade de um projeto de documentação.
Consequentemente, um modelo teórico para documentação linguística deve dar
espaço para a participação ativa de falantes nativos. Embora a participação de
falantes nativos e outros fatores específicos de um dado contexto não sejam
completamente imprevisíveis, isso limita claramente o nível de detalhes de um
modelo geral de documentação linguística que pode ser explorado proveitosamente
em termos puramente teóricos. (HIMMELMANN, 2006, p. 4).

Hoje, o que parece mais produtivo em uma pesquisa de documentação é deixar que as
comunidades afetadas sejam envolvidas no trabalho de documentação. Afinal, são as línguas
delas que estão em perigo. Elas devem acompanhar o registro de suas culturas, pois
atualmente a teoria que norteia os conceitos e procedimentos investigativos da documentação
permite fazer inicialmente a coleta dos dados primários, associando os falantes dessas línguas.
18

Esses registros na documentação poderão ser acessados pela comunidade de fala e por
futuras gerações da comunidade, por serem depositados também em bancos de dados
especializados em manter dados atualizados. Assim, poderão ser utilizados para auxiliar a
manutenção dessas línguas para as futuras gerações, que inclui a noção de revitalização.
Então a teoria pode obter novas formas de produção de conhecimento No registro de línguas
indígenas, já que inovações nessa área, como por exemplo a participação das comunidades
afetadas, tem um papel riquíssimo para a ciência. Essa nova conceituação está sendo
introduzida nas pesquisas de línguas em riscos de desaparecimento.
É evidente que toda ciência vive de experimentos. A documentação linguística não se
distingue nesse aspecto. Para produzir algum tipo de conhecimento algo tem que ser testado,
se se pretende ter êxito nas pesquisas, o que resulta na combinação de uma fórmula que
determina que, incluir as comunidade de fala, tornar indígenas pesquisadores só pode
melhorar o desenvolvimento das línguas para humanidade. O conhecimento científico sobre
essas línguas, então, é torna-se mais adequado ao que é mais funcional. Assim, as pesquisas
podem ser praticadas e refeitas. Ou seja, o que é conceito hoje pode ser reinventado em breve.
Nesse caso, a documentação linguística no futuro pode ter outro modelo de registro acelerado
e eficaz que possa ajudar mais rápido na segurança concreta que evite significativamente o
desaparecimento das línguas do mundo. Isso, porém, depende fortemente de uma ideologia e
de políticas favoráveis, já que, atualmente, a situação é desfavorável para os falantes nativos
que enfrentam essa realidade em seus cotidianos.
A utilidade prática da documentação escrita ou gravada pode ser verificada, por
exemplo, no fato de alguns grupos nativos norte-americanos estarem utilizando material
escrito dos séculos passados, e gravações feitas no início deste século. (MOORE e GABAS
JR, 2009). Assim, pesquisas feitas no passado, até sem nenhum objetivo prévio de
revitalização, podem agora ser incorporadas para manutenção de idiomas nativos. Na
atualidade a documentação é dirigida, entre outras coisas, para a revitalização de línguas que
estão no processo de extinção. É incalculável o dano que a perda de várias línguas causou
para a ciência, e, principalmente, para as comunidades. Uma infinidade de conhecimentos
pode desaparecer no globo. Eberhard (2013) faz um levantamento dessas perdas.
• A perda de um vocabulário rico em domínios de conhecimento cultural,
incluindo conhecimentos medicinais e biológicos, de flora e fauna. O nosso
conhecimento do mundo (a ciência) perde.
• A perda de uma cosmovisão única, com perspectivas sobre o mundo que
também são únicas. O nosso conhecimento das culturas humanas
(antropologia) perde.
19

• A perda de um sistema linguístico único, que nunca mais será repetido


(sem ele a tarefa de descrever as línguas humanas fica empobrecida pela
falta de diversidade). Nosso conhecimento da linguagem humana perde.
• A perda de identidade histórica, deixando um povo sem o seu passado, sem
as suas raízes (o resultado disso pode ser visto nas etnias onde os jovens
estão sofrendo uma crise de suicídios, vivendo numa sociedade desligada
com seu passado e sem esperança para o futuro). O povo perde.
• A perda de oportunidades para o povo ser multilíngue. O povo perde de
novo. (EBERHARD, 2013, p. 6).

Muitos especialistas em linguística já difundem, embora há pouco tempo, essa


problemática. As perdas são irrecuperáveis. As ciências podem perder a chance de
sistematizar conhecimentos, de maneira geral, já que tudo começa da investigação dos
conhecimentos empíricos.
O ato de documentar línguas minoritárias, podendo deixá-las em um estado de
equilíbrio entre os seus falantes e as futuras gerações, é, portanto, de fundamental
importância. Na documentação, os registros são feitos para serem duradouros, usando-se
tecnologia de ponta, registrando-se eventos de fala em áudio/vídeo. Os registros feitos pela
documentação são conservados para uma multiplicidade de estudos científicos, com maior
ênfase nos estudos linguísticos. Os trabalhos realizados hoje com essa tecnologia têm,
portanto, criado acervos digitais que guardam as riquezas da diversidade cultural do mundo.

2.2.3 As bases técnicas e tecnológicas da documentação linguística

Há pouco tempo, a ciência linguística ganhou um aliado significativo, com o novo


conceito de documentar línguas no mundo. Por meio da tecnologia, isso permitiu que os
registros pudessem ter uma adequada manutenção em depósitos digitais, o que foi muito
importante, considerando-se o número de registro e dados linguísticos já coletados em
tecnologias não apropriadas. Diante dessa nova fase das pesquisas em documentação
linguística, muitos pesquisadores vieram a se envolver com esse novo conhecimento. Assim,
“documentar significa criar acervos sustentáveis digitais que registram o uso da língua”. A
partir da construção desses acervos, o registro e o estudo de uma língua podem ser feitos de
maneira mais eficiente, permitindo desenvolver os mais diversos tipos de pesquisas. Muitos
dos registros feitos em projetos de documentação são depositados em bancos de dados, o que,
como já dissemos, garante a utilização desse material por futuras gerações.
Hoje em dia, os métodos de documentação de uma língua estão mais acessíveis.
Antes, a precariedade de se trabalhar nesse espaço era muito grande. Existem registros de
20

línguas indígenas brasileiras, por exemplo, desde a época dos missionários antigos que
descreviam as línguas minoritárias de maneira tradicional, em registros que não garantiam um
estudo dos sons da fala. Hoje, a documentação de uma língua como ela é usada de fato está
sendo possível por conta da tecnologia disponível, que permite captar esses eventos da
linguagem de uma comunidade.
Neste trabalho, não nos afastamos da noção de como se forma esse corpus
digitalmente organizado, de onde partem todos esses conjuntos de registros de uma língua. É
preciso que se entenda que documentação linguística é uma árdua tarefa, pautada em
procedimentos teóricos e metodológicos específicos, constituindo-se assim como um
empreendimento científico.
No trabalho de campo, a documentação linguística, a coleta de dados primários
geralmente ocorre fora dos ambientes controlados de laboratórios ou bibliotecas, os quais são
do domínio de muitos cientistas: biólogos, geólogos, antropólogos, assim como linguistas.
Tradicionalmente, o trabalho de campo tem se estabelecido na maior parte em elicitação e
observação, com objetivo de produzir gramáticas, dicionários e textos. O linguista pode usar
uma lista de palavras ou questionário, sondar para julgamentos gramaticais, ou solicitar
traduções. Isto é frequentemente acompanhado de exploração de textos, ou seja, narrativas de
falantes, para exemplos naturalísticos. Este tipo de dados esclarece recursos lexicais e
construcionais dentro da língua, suas propriedades formais, os tipos de expressões que
ocorrem, e assim por diante.
A realidade que move a empreitada de trabalho de campo se justifica pela investigação
que em seguida produzirá sobre uma língua alvo, descrevendo seus mecanismos estruturais
em forma de gramáticas, por exemplo, que explicitam essa estrutura. O objetivo primordial é
apoiar essas línguas, é construir diferentes tipos de instrumentos, materiais sobre a língua de
uma dada comunidade de fala, auxiliando em vários aspectos para que elas não sejam
extintas. A documentação em si é viabilizada pelos estudos sistemáticos com registros das
línguas dos grupos humanos.
Vamos focar inteiramente no campo de documentação com essas novas maneiras que
possibilitam levantar hipóteses de estruturas das línguas humanas que vêm ganhando o campo
de investigação linguística. O registro de eventos linguísticos, como relacionei acima, com
gravações em vídeo e áudio, tem que seguir uma série de medidas e requisitos propostos pelos
teóricos da documentação linguística e adotados pelos bancos de dados linguísticos atuais,
como afirmam os autores Silva, Costa e Oliveira Jr. (2010), referindo-se aos cuidados que
eles próprios tiveram com a montagem do banco de dados do Yaathe:
21

Os dados de áudio e vídeo serão gravados e arquivados respeitando todas as medidas


e indicações propostas pela E-MELD School of Best Practice, que vem sendo
adotadas em projetos de documentação de línguas indígenas internacionalmente,
pelo Open Archival Information System (OAIS), que é um modelo de referência,
com padrão ISO (14721:2003), adotado pelos bancos de dados linguísticos mais
recentes, e anotados seguindo os preceitos do Metadata Encoding and Transmission
Standard (METS), também adotados por bancos de dados internacionais. (SILVA,
COSTA E OLIVEIRA JR, 2010, p. 7).

Da mesma maneira, os próprios equipamentos de captação de imagem e áudio têm que


obter uma qualidade expressiva do material coletado, como, por exemplo, o som da fala, que
vão ser utilizados em estudos dos fenômenos da língua documentada. Assim, todos os
procedimentos de coleta de dados visam obter um padrão de qualidade do registro que
permitam o seu mais variado e adequado uso.
Desse modo, para garantir a durabilidade e a qualidade do material coletado, deve-se
seguir regras recomendadas para documentação, possibilitando que os dados sejam usados
para diversas tipos de estudos, linguísticos ou não. Feita a coleta, o armazenamento seguro e
identificado os dados, procede-se à importante etapa de transcrição simples e fonética,
juntamente com a tradução e demais tipos de anotação. Além disso, devemos ter em mente
que uma boa documentação é aquela destinada também à comunidade de fala. Idealmente, e a
depender da comunidade, os dados devem ser disponibilizados para a comunidade científica.
Isso se justifica porque novos dados linguísticos são importantes para uma melhor
compreensão de fenômenos da linguagem. Daí a importância de um corpus bem anotado e
estruturado.

2.3 Documentação das Línguas Indígenas Brasileiras: O Estado da Arte

2.3.1 As línguas indígenas brasileiras em geral

Se olharmos para os estudos históricos em relação às estimativas de massacres que


aniquilaram várias populações indígenas e suas línguas, é sem dúvida alarmante o resultado
que vamos encontrar. Essas estimativas, obviamente, não estão difundidas para todas as
camadas da população brasileira.
“Estima-se que havia cerca de três milhões de índios quando os portugueses aportaram

em território brasileiro” (ATHIAS, 2005, p. 1), com um número aproximado de 1.300 línguas
diferentes. O extermínio de vários povos originários dessas terras resultou na redução desses
22

números, tanto em termos de povos quanto, consequentemente, de línguas. A extinção se deu


por diversos métodos, tais como a exploração de mão de obra indígena, os massacres
praticados a cada nova empreitada dos colonizadores, as epidemias trazidas pelo europeu.
Uma forma importante de extermínio das populações indígenas foi também o conjunto
das mudanças resultantes do contato entre missionários e índios. Os missionários conduziam
os indígenas, tendo como argumento colonizador a imposição da fé crista nessa época, o que
fazia com que essas nações perdessem sua identidade indígena.
Essas formas de extermínio e as sequelas delas originadas duraram por muito tempo e
perduram até hoje. Um dos resultados foi o desaparecimento de muitas línguas e a diminuição
do valor das línguas que sobreviveram, o que coloca todas as línguas indígenas em risco de
extinção, como argumentam Moore, Galúcio e Gabas Jr. (2008, p. 38 ): “(…) enquanto todas
as línguas indígenas estão em risco de extinção, é útil, com base no levantamento
apresentado, chamar atenção para os casos de línguas que correm risco de desaparecimento no
futuro próximo’’.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), restam
apenas cerca de 896,9 mil índios integrantes de 305 etnias, das quais a maior é a Tikuna, com
46.045, ou seja, 6,8% da população indígena brasileira. Dessa maneira, os cálculos de línguas
existentes é uma soma constante, não existindo um calculo exato, Assim mesmo, isso
demonstra que essa soma atualmente é muito mais inferior de que na época colonial, que
hoje em dia chega a 180 ou 274, segundo os estudiosos de línguas indígenas, isso sem
mencionar os índios isolados na Amazônia. De todo modo, é assustadora a redução dos índios
e suas diversidades étnicas e culturais. Todavia, ainda existe no país uma diversidade de
culturas indígenas que deve ser preservada de forma urgente. É nesse sentido que Silva (2009,
p. 1) afirma:
Apesar dos números “alarmantes” e da situação de risco de extinção de muitas
línguas indígenas, o Brasil ainda tem uma riqueza linguística admirável quando
comparado com muitos outros países. Tal diversidade linguística tem chamado a
atenção de diversos pesquisadores no mundo todo. É importante mencionar também
que o número de comunidades indígenas interessadas em ter suas línguas e culturas
documentadas tem aumentado.

A riqueza da diversidade linguística indígena no Brasil precisa de um apoio acelerado


no sentido de documentar essas culturas, até porque os povos indígenas estão tendo uma
aceitação dessa causa para poderem proteger seus contextos culturais de certa forma.
Entretanto, tem de existir uma política de Estado que favoreça um envolvimento significativo
na questão da documentação. Embora, atualmente, existam agências internacionais, ou até
23

nacionais, que elaboram projetos de documentação e que também reconheçam essa situação
de desaparecimento de línguas indígenas, é necessário um incentivo maior para que o Brasil
venha a se tornar um país que mantém uma política consistente na conservação da diversidade
linguística dos povos originários.
O contexto em que sobrevivem as línguas indígenas brasileiras é muito desfavorável.
Por conta disso, a abertura para pesquisadores linguistas estrangeiros e nacionais nos
territórios indígenas com línguas ameaçadas é cada vez mais frequente. Já existem algumas
pesquisas de documentação linguística de uns anos para cá. Porém os povos indígenas estão
convencidos da urgência dessas ações e estão optando por apoiar esses estudos em suas áreas
para fortalecer os seus idiomas nativos, de forma que não venham a sumir. É tanto que Silva
(2009, p. 02) descreve essa situação.
Tais grupos estão também interessados em revitalizar e preservar suas línguas,
procurando, assim, reverter a situação de perigo de extinção em que suas línguas se
encontram. Preocupado com as línguas indígenas ameaçadas, o Museu do Índio,
órgão científico-cultural sediado no Rio de Janeiro (com o apoio da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), da Fundação Banco do Brasil e da UNESCO), iniciou
neste ano um grande projeto voltado à documentação de línguas indígenas
brasileiras que está sendo desenvolvido com pesquisadores brasileiros de diversas
instituições.

De alguma forma, algo está sendo feito a respeito para evitar o risco de extinção das
línguas indígenas. Na verdade, essa ação está progredindo em comparação a outros tempos,
mesmo que a empreitada no país seja impulsionada, principalmente, por agências
internacionais. Contudo, “América Latina e especialmente o Brasil têm contribuído para a
documentação linguística em posição de destaque”. (DRUDE, GALUCIO e GABAS JR.,
2007, p. 3 ). A situação de trabalho é enfrentada pelos linguistas que adentram os territórios
indígenas, em busca de suas pesquisas para a documentação. Assim sendo, informam aos
governos e à população em geral o trabalho que está sendo feito para revitalização dos
idiomas, caso a comunidade use com frequência suas línguas no cotidiano, ou apenas em
certos contextos culturais. Igualmente, apresentam os riscos de desaparecimento de uma
língua.
A tarefa de documentação tem mantido práticas bem-sucedidas, fazendo uso de um
aparato tecnológico cada vez mais apropriado para o registro linguístico e cultural de um
povo. Este aparato tornou-se familiar para as sociedades indígenas, que objetivam não apenas
a documentação, mas também a proteção dos bens culturais, como enfatizam Fernandes e
Costa (2015, p. 49-50):
Para muitas pessoas a tecnologia pode ser um verdadeiro sofrimento, quem nunca
teve dificuldade em se adaptar a novos computadores (…), quando finalmente nos
24

acostumamos às novidades, a tecnologia se torna nossa aliada na busca de soluções


de problemas cotidianos e até sociais. É exatamente neste ponto em que as
problemáticas convergem para a união entre tecnologia e preservação de línguas
indígenas, a informação fará com que as pessoas possam ter acesso a dados que
antes eram desconhecidos e isso pode trazer mudanças de atitudes por parte da
sociedade.

Por conta mesmo dessa problemática, as comunidades indígenas estão abrindo as


portas de suas aldeias, de pouco tempo atrás para cá, para poderem ter um suporte mais
efetivo para a preservação e a revitalização de suas línguas e de suas culturas.
Sabemos, de todo modo, que a tecnologia ainda é um dos problemas contemporâneos
que afetam as culturas nativas, como é o caso das TVs instaladas nas aldeias, que vêm
transformando negativamente as vidas dos indígenas no território brasileiro. Mesmo assim,
muito indígenas vêm se familiarizando com alguns meios tecnológicos. São, agora,
pesquisadores de suas próprias culturas, ficou para trás a ideia de que os povos indígenas só
são “objetos de estudos”; eles pesquisam, estão sendo treinados, usam as tecnologias em
benefício próprio.
No Brasil, a documentação das línguas indígenas, feita a partir de metodologias
recentes que envolvem o registro digital de dados está ainda em sua fase inicial, sobretudo no
que diz respeito à participação de membros dessas comunidades linguísticas no processo de
documentação. Este trabalho, portanto, é uma contribuição para esse importante processo. É
evidente que a visão da documentação se amplia e a sua relevância caminha para abarcar o
conhecimento das línguas indígenas em sua totalidade, levando-se em conta o fato de que os
índios estão atuando nas pesquisas de documentação.
Na verdade, isso é uma conquista diante dos tempos anteriores. Os próprios índios
participam desse processo, o que garante ao mundo cientifico a descoberta adequada do modo
linguístico e das práticas culturas das comunidades indígenas na sua essência, posto que eles
são os que mais conhecem de seu mundo.
O apoio da documentação para revitalizar e fortalecer as línguas dos índios brasileiros
é uma tarefa que deve atingir todo o território nacional e é uma tarefa urgente. Essas línguas
que estão em perigo de extinção apresentam um quadro em que o número de falantes é
pequeno, os velhos estão morrendo e o repasse da cultura desses povos para novas gerações
não está mais sendo feita. Desse modo, o conhecimento não só da língua de uma comunidade,
mas de todos os meios tradicionais não têm chance de serem estudados pela ciência. Os
autores Moore, Galúcio, Gabas Júnior analisam essa questão.
Essa situação é ainda mais preocupante porque justamente as línguas mais
ameaçadas são, provavelmente, aquelas com maiores chances de serem ainda
25

desconhecidas pela ciência. Apesar do avanço dos estudos lingüísticos de línguas


indígenas nas últimas décadas, levantamentos revelam que essas línguas são
conhecidas apenas em parte, e que sobre a maioria há pouco ou quase nenhum
estudo (…). (MOORE, GALUCIO, GABAS JÚNIOR, 2006, p. 40)

Na próxima seção, apresentaremos os trabalhos que já foram feitos sobre a língua


Yaathe, não apenas em termos de documentação propriamente dita, mas tentando dar uma
amostra representativa dos trabalhos de registro da língua – e assim, também da cultura – já
efetuados e publicados.


26

SEÇÃO 3: METODOLOGIA

Para uma pesquisa de qualidade, é preciso seguir o processo metodológico adotado


pela área de documentação linguística. Isso faz parte de todo trabalho científico: seguir
métodos sistematicamente testados e validados para a área com que se trabalha. A
documentação linguística não poderia ser diferente: o pesquisador tem que observar os
métodos e recomendações propostas para a tarefa de documentação, procurando intervir
quando possível para que sejam adaptados quando julgar necessário.
Se não seguir uma metodologia adequada, o documentador acabará por produzir uma
documentação com qualidade insuficiente para potenciais estudos científicos acerca da língua
documentada, o que é um dos objetivos da documentação. Assim, os dados de pesquisa
perderão credibilidade nesses espaços, onde se difundem trabalhos acadêmicos resultantes de
projetos de documentação.
Portanto, exige-se uma prática planejada de estudos de campo que os pesquisadores
têm que observar em seus trabalhos, informando a realidade da comunidade estudada e
seguindo a ética da pesquisa, imprescindível em toda a construção do conhecimento
científico. Entretanto, sabemos que a metodologia empregada nessas tarefas pode apresentar
características distintas e o pesquisador tem que estar atento a essas questões.
Descrevemos a seguir o caminho metodológico percorrido no trabalho com as
narrativas dos anciãos Fulni-ô.
A princípio, essa pesquisa científica está norteada por metodologias e teorias próprias
da documentação, que é um campo da linguística. Neste caso, esse conceito de registro das
línguas minoritárias vem se afirmando sistematicamente com a produção de corpora
línguisticos. Os dados para este trabalho foram registrados mediante técnicas contemporâneas
nessa área, atentando para as práticas de coleta de dados digitais, com objetivo de obter
material de altíssima qualidade frente à perspectiva da documentação.
Onze idosos, seis homens e cinco mulheres, foram os informantes. Durante a seleção
destes, coube analisar a função social de cada um deles dentro do povo e em suas vidas
pessoais. Utilizamos para esse trabalho esses critérios de seleção de informantes, realizando o
registro das narratvas de acordo com o papel dos informantes na comunidade.
A coleta de dados foi organizada e executada utilizando-se de equipamentos
apropriados para coleta de som profissional: um gravador digital de flash Marantz PMD661 e
um microfone tipo headset DPA Headband 4066. A gravação dos dados foi feita com o
27

monitoramento do gravador, através de um Fone de Ouvido Sennheiser HD 280.


Respeitamos também neste trabalho as normas e limites que são exigidos na captação da
gravação do falante, como a distância em que o microfone pode estar fixado em relação à
boca do falante, que é recomendado em torno de 5 a 10 centímetros.
Para uma boa produção de corpus de fala, a aplicação das técnicas da coleta de dados
em campo, deixou-me vigilante ao monitoramento dos eventos de fala. Na pesquisa de
campo, o áudio captado foi da mais alta qualidade possível, tal como recomendado por
especialistas: utilizamos taxas de 24--bit/96kHz. Seguimos todo o processo metodológico
recomendado pela área.
Todos os momentos da coleta de dados foram momentos únicos, não apenas no que
diz respeito ao processo de documentação em si, mas também do ponto de vista pessoal,
cultural e afetivo. O diálogo com os anciões da comunidade deu-me a oportunidade de
observar de perto o processo de transmissão de conhecimento e de características orais
envoltas no ato de contar histórias do passado e de experiências vividas. Os cuidados técnicos
foram constantemente observados. Caso a tecnologia viesse a falhar, marcávamos uma outra
hora com o informante. Importante observar que prezávamos sempre pela espontaneidade.
Portanto, em situações de falha técnica, continuávamos a conversa. Nessas raras ocasiões,
pediámos que os anciões recontassem as histórias não registradas, mesmo em detrimento da
espontaneidade da primeira versão.
A coleta de dados foi feita tendo como norte o registro de narrativas semi-espontâneas.
Utilizamos o termo “semi-espontâneo” porque fazíamos algumas sugestões sobre o tópico
para podermos iniciar a gravação. Foi solicitado que os informantes narrassem uma história
da tradição oral Fulni-ô ou uma história de suas próprias vidas, lendas, mitos, etc. Em geral,
essas solicitações eram feitas depois de um preâmbulo, em que conversávamos com os
informantes. Este método foi utilizado para garantir a maior espontaneidade possível.
Antes de iniciar a coleta, foi selecionado o que poderia ser posto nesse trabalho.
Assim, por fazer parte do mesmo grupo indígena, tivemos a oportunidade de antes de começar
os trabalhos, iniciar uma conversa sobre o conhecimento que eles tinham de determinadas
histórias, uma vez que cada uma desses velhos de nossa etnia conservavam na sua memória
determinados fatos que remetem ao contexto cultural atual, transmitido da nossa
ancestralidade. Fizemos, então, uma sondagem das narrativas que fazem parte agora deste
trabalho, mas é claro que na coleta de dados não tivemos total domínio dos tópicos abordados.
Embora tivéssemos selecionado determinados temas para o registro, os velhos voltavam ao
passado, suspiravam pelo presente, relatavam as suas insatisfações e tentavam orientar o
28

povo. Com isso, alguns relatos paralelos fluíram espontaneamente em meios às narrativas
propostas.
Procuramos, na maioria da coleta de dados, deslocar alguns para um local apropriado
que não apresentasse ruídos artificiais produzidos por motos, carros, som de músicas, enfim,
fugir de tudo que prejudicaria a coleta. O mais oportuno foi levá-los justamente para o
território onde passamos três meses em retiro religioso, nos arredores do Ouricuri, pois nesse
período das coletas estávamos em outra localidade: na aldeia sede Yatilha4. Logo, foram
definidos os espaços para o registro de dados: residência dos velhos e extensões do seu
território, a Terra Indígena Fulni-ô.
A ideia original era fazer algumas coletas na mata, onde as narrativas ocorressem em
conexão com a harmonia da natureza. O ambiente propício junto às arvores da caatinga trouxe
uma tranquilidade para os anciãos, que narraram suas vivências e histórias de seus
antepassados a partir de sua visão de mundo. Outras coletas de dados foram executadas na
Aldeia sede devido à impossibilidade de alguns velhos se deslocarem, não estando, nesses
dias de coleta, dispostos para saírem de suas casas e preferiram ser entrevistados nas mesmas.
No nosso trabalho de campo, para garantir um material de alta qualidade, utilizamos
alguns equipamentos que causaram estranheza nos informantes. Tivemos o cuidado de
informar para que servia cada equipamento, procurando minimizar os impactos causados nas
entrevistas com esses mecanismos tecnológicos, e, assim, tranquilizando-os. Observamos os
preceitos labovianos, segundo os quais a tarefa do documentador é também estar preparado
para possíveis problemas na coleta de dados, uma vez que o aparato tecnológico pode causar
impacto nas entrevistas.
De acordo com Labov (1972), pode levar em torno de 5 minutos para que o vernáculo
venha a aflorar. Como o nosso objetivo era registrar dados de fala espontânea, apenas
utilizamos em nossa documentação dados registrados após 5 minutos de conversa preambular.
Apenas em poucos casos o microfone saiu do limite imposto pelas recomendações feitas por
especialistas. Houve algum desconforto de um participante com o microfone, o que demandou
uma realocação do mesmo. Isso, todavia, não prejudicou a qualidade do material coletado.
Todo o material coletado nas entrevistas semi-espontâneas com os velhos foi
devidamente organizado e, em seguida, aberto no aplicativo Praat (BOERSMA & WEENIK,
2007), para ser transcrito e traduzido. A transcrição foi feita, inicialmente, em grafia
atualmente utilizada para o Yaathe na Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon.

4
Nome da morada dos índios Fulni-ô, onde todo grupo habita na mesma localidade, próximo à cidade de Águas
Belas.
29

Para a transcrição fonética, foi utilizada a fonte Unicode 6.2 (v1.5) MAC. A tradução foi feita
pelo autor. No final, tivemos três fiadas de transcrições:
• Linha 1: Transcrição Fonética (TF);
• Linha 2: Texto, que é a transcrição ortográfica (TEX);
• Linha 3, Tradução para o Português (TRA).
Anotados no Praat, esses dados servirão potencialmente para diversas pesquisas sobre
o Yaathe. Como é sabido, o aplicativo também pode ser utilizado para realizar análises
acústicas, por exemplo. Os dados anotados facilitarão o trabalho de foneticistas interessados
em realizar análises com dados espontâneos do Yaathe.
Os dados de áudio e vídeo gravados serão depositados no banco de dados do projeto
Documentação da Língua Indígena Brasileira Yaathe (Fulni-ô), que se encontra arquivado
em https://corpus1.mpi.nl/ds/asv/?0, obedecendo aos mesmos cuidados seguidos pelos
pesquisadores que desenvolveram o projeto supramencionado, ou seja, respeitando todas as
medidas e indicações propostas pela E-MELD School of Best Practice5, que vem sendo
adotadas em projetos de documentação de línguas indígenas internacionalmente, pelo Open
Archival Information System (OAIS)6, que é um modelo de referência, com padrão ISO
(14721:2003), adotado pelos bancos de dados linguísticos mais recentes, e anotados seguindo
os preceitos do Metadata Encoding and Transmission Standard (METS)7, também adotados
por bancos de dados internacionais. (SILVA, 2016).
Na seção de descrição das narrativas, descrevemos o formato e o conteúdo de cada
uma delas e tecemos comentários, buscando observar como a transmissão dos conhecimentos
acumulados na memória desses anciãos pode ter um impacto para as gerações vindouras.
Além disso, criamos um tema central para cada texto analisado. Essa concepção de se
criar um tema serviu como base para a produção de um livro das narrativas orais dos índios
velhos de nosso povo, que estava proposto em um dos objetivos do projeto de pesquisa, já que
uma das finalidades deste trabalho é a salvaguarda do idioma nativo Yaathe.
O objetivo central dos comentários é a observação de como são narrados os
conhecimentos do povo Fulni-ô, destacando-se cada relato oral, histórias passadas, mitos e
lendas do povo. Em muitos trabalhos coletados, alguns anciãos combinavam e acrescentavam


5
E-MELD School of Best Practice (http://www.emeld.org/school/).
6
Consultative Committee for Space Data Systems, Reference Model for an Open Archival Information System
(OAIS), CCSDS 650.0-B-1 Blue Book January 2002 (Washington, DC: CCSDS Secretariat, 2002). Disponível
online: http://public.ccsds.org/publications/archive/650x0b1.pdf.
7
Library of Congress, “METS: Metadata Encoding & Transmission Standard” (2007),
http://www.loc.gov/standards/mets/.
30

algumas narrativas, falavam sobre entidades da mata e água, juntamente com suas
experiências de vida. Nesses comentários, além de expormos a importância desses velhos para
a disseminação da cultura Fulni-ô, observamos que seria substancial apontarmos que eles têm
todo envolvimento com a transmissão da cultura, direcionam seus saberes para povo.
Apresentamos nos comentários feitos acerca das narrativas um breve histórico de cada
informante, como eles se organizam no seu cotidiano familiar, quais foram seus trabalhos
anteriores, atuais, ou seja, quais são os seus papeis na comunidade.
Nomeamos cada pasta com as iniciais dos nomes dos participantes, com este padrão:
“ABS_NAR_001”. As três letras iniciais indicam o nome e sobrenome dos participantes,
NAR indica que o texto em questão é uma narrativa; isso serve para uma boa identificação
quando da inserção desses dados no banco de dados do projeto de Documentação de Língua
Indígena Brasileira (Yaathe). As narrativas/relatos obtidos também foram transformados em
registros escritos, adaptados na forma de textos contínuos. Esses textos estão escritos em
Yaathe e traduzidos para o português e para o inglês. Constituirão uma coletânea de textos,
como mencionado acima.
Na seção seguinte, traremos uma amostra de cada narrativa, com uma descrição do
processo de documentação e comentários do seu conteúdo.
31

SEÇÃO 4: DOCUMENTAÇÃO DAS NARRATIVAS DOS ANCIÃOS FULNI-Ô

Nesta documentação de narrativas de anciãos Fulni-ô, desfrutamos os conhecimentos


veiculados nas narrativas produzidas, muitas oriundas de seus antepassados, assim como de
práticas históricas de suas vidas. Fomos compelidos pelos enredos narrados, que nos
posicionou dentro do imaginário da lembrança ancestral desses veneráveis índios. É sabido
que o ato de contar histórias é uma tradição cultural milenar, cuja transmissão contribui para a
manutenção de uma tradição oral. (ALCÂNTARA, 2014, Página).
Mesmo sendo um trabalho acadêmico, ou precisamente por conta disso, muitas vezes
a viagem pela memória nos remetia a entender como de fato esses narradores, conscientes de
seu cotidiano, narram conhecimentos históricos e vivências, buscando sempre pela pedagogia
da oralidade nativa, cultivar e espalhar “sementes” de instrução, revelando a importância de
se viver no mundo presente sem desprezar o passado. Ao fazê-lo, demonstram ser excelentes
contadores de história oral. Em concordância com Delgado (2003, p. 22,23).
Os melhores narradores são aqueles que deixam fluir as palavras na tessitura de um
enredo que inclui lembranças, registros, observa- ções, silêncios análises, emoções,
reflexões, testemunhos. São eles sujeitos de visão única, singular, porém integrada
aos quadros sociais da memória e da complexa trama da vida. A história oral é uma
metodologia primorosa voltada à produção de narrativas como fontes do
conhecimento, mas principalmente do saber.

Nas suas narrativas, eles disponibilizam o seu saber para os jovens, mostrando como
sobreviveram a várias estratégias de aniquilamento, como foi o seu convívio com os não
índios, o valor da cultura e das tradições dos nossos ancestrais. Também nos conduzem a
acreditar, entre outras coisas, que são capazes de sobreviver numa relação íntima com a
natureza sagrada. Os anciãos recorrem à cosmologia e à ascendência étnica para
estabelecerem em suas narrativas o vínculo que levará o ouvinte a ter uma conexão com o seu
universo indígena. Fazendo uso dessa prática, o ancião retorna ao tempo passado. Seguindo a
viagem de cada narrativa e suas recordações, mergulhamos nos eventos passados que se
refletem em suas histórias de vida. Conforme Carvalho (2012),
Ao narrar percebemos o ancião envolto nas lembranças que o tempo lhe conferiu
como título. Em cada narrativa, uma viagem diferente por entre os rios, a terra dos
mortos e dos vivos, no cheiro trazido pelo vento, a floresta e os animais, a lua, o sol
e as estrelas, que são como o espelho fiel que reflete as histórias de vida, ou histórias
da vida. (CARVALHO, 2012, p. 28).

De certa forma, sentir essas histórias narradas desse modo acaba por ser uma viagem
importante para nós indígenas termos uma percepção plural dos espaços onde vivemos. Isso
32

ocorre com a colaboração desses velhos, que retornam no tempo quando narram essas
lembranças, em um desempenho simbólico e educativo na construção de valores
fundamentais para as sociedades indígenas. Quem descreve essa relação é Macedo (2013)
As narrativas na sociedade Krahô, como nas demais sociedades de tradição oral
desempenham uma função educativa, pois por meio delas se ensina e se preconiza
valores fundamentais das tradições desse povo. Geralmente são os mais velhos os
incumbidos de contar as histórias, sejam elas acontecimentos reais como conflitos e
dificuldades vivenciadas, ou fictícias como os mitos, as lendas. Os velhos são uma
espécie de guardiões da memória do povo, e têm portanto, a função de conservar e
transmitir essa memória.

Já apontamos aqui a importância dos velhos para a tradição oral e a conservação da


riqueza cultural Fulni-ô, que está guardada na memória deles. São eles os transmissores da
cultura e dos valores de nosso povo. No que diz respeito a esses valores, cada narrativa
transmitida tem um objetivo de aprendizagem dentro do grupo.
Podemos agora, como parte da tarefa de documentação do Yaathe, contribuir com
essas narrativas, que serão depositadas em bancos de dados linguísticos, podendo ser
utilizadas para análises diversas. Acreditamos que isso também contribui para a preservação
da cultura Fulni-ô.
A seguir, exploraremos os conteúdos dessas narrativas, de maneira que também
possamos compreender um pouco a vida dos anciãos da comunidade indígena Fulni-ô. “Ao
narrar, ele as transforma em produto cultural, tornando-as experiências também daqueles que
estão ouvindo. Assim ocorre a transmissão de conceitos, representações e conhecimentos”.
(ALCÂNTARA, 2014).
O que faremos na próxima seção, além de descrever como foi registrada, anotada e
armazenada cada uma dessas histórias, é comentar os eventos narrados. Desse modo,
realizamos comentários gerais, a partir da ótica do povo Fulni-ô.
Muitos velhos narraram episódios de privação, característica daquela época, focando
sobretudo na insuficiência de alimentos, o que acarretou na fome do povo. Na época, os
obstáculos eram enormes. Superar as dificuldades da vida cotidiana e conseguir adquirir a
subsistência sociocultural, estando muito próximos à cultura dominante, era o lema dos índios
Fulni-ô daquela época. Mas, mesmo assim, com todas as dificuldades, a partilha era muito
mais vivenciada no convívio das gerações deste período.
Nos registros que fizemos da fala de anciãos Fulni-ô, foram observados os métodos
que já apresentamos nas seções precedentes. Para cada uma das gravações, foi criada uma
pasta da qual constam: i) os registros originais em áudio e video; ii) um arquivo no formato
33

TextGrid (anotação do Praat), com transcrição ortográfica, transcrição fonética e tradução


livre; e iii) um arquivo de metadados.
Cumprimos, assim, um dos principais objetivos da pesquisa proposta, que foi garantir
a preservação desses dados, de acordo com as propostas estabelecidas por especialistas em
preservação de dados digitais.
Sobre as falas de cada participante, teceremos comentários acerca do gênero de suas
produções, uma vez que nem sempre tivemos narrativas propriamente, mas relatos gerais de
vida, procurando sempre compreender a importância dessa tradição oral para a cultura Fulni-
ô, uma vez que vários assuntos da oralidade possuem uma funcionalidade na construção
ideológica do grupo: narrativas históricas, lendas, entidades inerentes das matas e água,
relatos e experiências de vida, etc. Assim, estamos procurando compreender cada narrativa
registrada, os seus espaços e sua relação com o mundo.

4.1 Listas de Arquivos e duração


Os arquivos no formato para documentação estão nomeados da seguinte forma:
povo_informante_gênero_número do arquivo. O arquivo da narrativa 001, por exemplo, está
assim identificado: FUN_ABS_NAR_001, que corresponde a Fulni-ô, Abdon dos Santos,
narrativa 001.
A seguir, listamos os arquivos.
1) Narrativa 1: FUN_ABS_NAR_001; duração: 12m26s de gravação; Autor: Abdon
dos Santos.
2) Narrativa 2: FUN_ROB_NAR_002; duração: 06m02s de gravação; (Autor,:
Romildo Barbosa de Lima)
3) Narrativa 3: FUN_RIM_NAR_003; duração: 06m04s de gravação; Autora: Rita de
Matos
4) Narrativa 4: FUN_JOL_NAR_004; duração: 18m31s de gravação; Autor: João
Lúcio Cassimiro
5) Narrativa 05: FUN_AGF_NAR_005 duração: 04m12s de gravação; Autor: Agenor
Ferreira de Sá
6) Narrativa 6: MAC_NAR_006: FUN_MAC_NAR_006; duração: 05m54s de
gravação; Autora: Maria Brasilina de Amorim Ferraz
7) Narrativa 07: FUN_ELC_NAR_007; duração: 13m17s de gravação; Autor: Eloi
Lúcio Cajueiro de Amorim
34

8) Narrativa 08: FUN_TEE_NAR_008; duração: 13m09s de gravação; Autora: Teresa


Maria do Espirito Santo
9) Narrativa 9: FUN_ARL_NAR_009; duração: 03m012s de gravação; Autor: Aristide
Leite
10) Narrativa 10: FUN_IVL_NAR_010; duração: 10m35s de gravação; Autora:
Vanilde Lúcio Ribeiro
11) Narrativa 11: FUN_MAL_NAR_011; duração: 04m47s de gravação; Autora:
Maria de Lurdes de Lima

A seguir, apresentamos uma janela de transcrição de um dos arquivos no PRAAT,


como amostra do resultado final do trabalho de documentação. Todos os arquivos estão
registrados e anotados dessa forma.

Figura 1. Trecho da narrativa ABS_NAR_001, mostrando a onda sonora, o espectrograma e as transcrições


efetuadas. Linha 1: Transcrição Fonética; Linha 2: Transcrição Ortográfica; Linha 3: Tradução para Português.

Na subseção que segue tratamos de comentar cada uma das narrativas registradas.

4.2 Narrativas: Descrição e Comentários

4.2.1 Narrativa 1: FUN_ABS_NAR_001

O primeiro arquivo de registros de narrativas foi nomeado FUN_ABS_NAR_001.


Trata-se do registro da fala do ancião Abdon dos Santos, do sexo masculino, com idade de 66
35

anos. Este índio atualmente é monitor mestre de língua nativa Yaathe, na escola Estadual
Indígena Fulni-ô Marechal Rondon. Mas, antes de ser empossado como monitor nessa escola,
já vinha desenvolvendo em sua trajetória habilidades de compor cânticos no próprio idioma
nativo como proposta de manutenção da língua e de fortalecimento de sua cultura. Fez isso
por meio da formação de um grupo indígena chamado Unakesa, que, além de difundir os
cânticos com versos no idioma na aldeia, saíam para a capital, Recife, para exibir uma
amostra da cultura e dos seus cânticos. Esse velho observou que a língua de sua comunidade
estava vulnerável ao enfraquecimento e trouxe para sua cultura as expressões da língua que
foram incluídas em seus cânticos. Antes, os Fulni-ô só manifestavam as canções em forma
melódica como, por exemplo, o Toré8.
O registro foi feito na mata do Ouricuri, território Fulni-ô, em 17/05/2015, 11:30h.
Compõe-se de 12m26s de gravação, em áudio e vídeo. Em seguida, os dados de áudio foram
abertos no aplicativo Praat e fizemos as transcrições e a tradução.
O texto FUN_ABS_NAR_001 é uma narrativa, com um tema central “Ooya Txtxoso”
(A Mãe da D’água), mas intercalada por outras narrativas, bem como perpassada pela
memória das vivências dos Fulni-ô em épocas passadas.
Nas narrativas desse índio, a presença dessa entidade do sexo feminino é uma
retomada de uma presença forte na cultura indígena local. Ela seria uma guardiã das águas
doces que existem no mundo. Quando ele era menino, foi em suas andanças com suas avós
paterna e materna. Saíram para os lagos da região em busca de água para o banho. É nesse
cenário que o velho disse que quando era criança viu a primeira aparição de uma mulher na
beira do lago. Logo, ele informa as suas avós e elas passaram a ignorá-lo, achando que ele
estava mentindo. Mas ele tinha convicção que estava vendo essa mulher e disse: “Não é
mentira. Vá! Olhe!”. Quando elas olharam o espírito da Mãe D’água se jogou no lago. Então,
elas passaram a acreditar na criança e informam a ele que é a “Ooya Txtxoso”.
Apresentamos aqui um trecho dessa narrativa em Yaathe com sua tradução em
Português.

I kone thliman khia, i ho khiakahe yake fekhlaxkya sato eethe susoma


txfalte. Nema nekawde ke i satkhalaykya nokase de yaathelha ke. Nema i
tiaman hle, i ho khiaka i thokhethanelha sato nanisene sato lay, tha tole.


8
Toré dança tipica e cântico Fulni-ô, onde mulheres aconpanham dois homens no ritimo da maraca e na dança
que é tocada por outros dois homens que tocam dois instrumentos chamdo búsio, feito de madeira oca e o seu
som é extraído da taquara ou taquari.
36

Thoosedey, tatxhante, tha lkinte thooman, djo khiaka tha tole. Se takewa
tsote thookhiakke. Neknay hle, fekoman hle, ya nankya owa ooya teeke txay
fthone ewlidjonkya taka salkinte. Nema i tookhethane ke i neka hle de.
_I sa, kane, efnixi txay fthone kinse!
Nema hle:
_ Unke, yaadedwa? A winkya teka, mahe?
_I wiidode. Kane! Fnite!
E fniman hle txhutsa txay sate ooya teeke. Ama ekhde? Txhuuuuu…
Nema hle:
_ Senenkya hesa, ka! Awtsa txayhe ooya txtxoso, ooya tookhethane,
tha nese. Awtosa, ama kefe?

Quando eu era menino, eu andava com os velhos, escutando as


conversas deles. Assim, eu pensava muito na nossa língua. Quando cresci,
eu andava com as minhas avós também, com elas. Por onde quer que elas
andassem, pegando lenha, quando elas iam tomar banho, eu ia com elas.
Porque elas iam lavar roupa. Numa dessas vezes, quando nós demos fé, nós
vimos dentro d’água uma mulher de cabelos compridos tomando banho. Aí
eu já disse a minha avó:
_ Minha mãe, cuidado, olhe uma mulher sentada!
Então:
_ Onde, menino? Você está mentindo, não é?
_ Não é mentira. Vá! Olhe!
Quando ela olhou, aquela mulher se jogou dentro d’água. Sabe?
Tchuuuuu… Então:
_ Que coisa, filho! Essa mulher é a mãe d’água, mãe d’água, como
dizem. Aquela, Está ouvindo?

Observa-se que, nesse tempo, quando esse velho era criança e conheceu essa história
da Mãe D’água, eles viviam em uma busca constante por alimentos, pois novamente voltaram
ao rio em busca de peixes para poder se alimentar. A narrativa continua. As avós e um primo
na época foram pescar. O enredo se torna mais interessante quando observamos que é a Mãe
D’água, outra vez, que está presente na narrativa oral desse ancião. Ela era a guardiã dos
37

peixes de que eles tanto necessitavam. Nesse caso, ela passou a escondê-los. Isso ocorreu
quando seu tio invadiu o espaço dela dentro da água, na parte profunda do rio, que, no
entanto, segundo o velho narra, estava totalmente seco.
Logo, temos em mente que foram os sortilégios da Mãe D’água que possibilitaram ao
seu tio, embaixo da água, entender que se encontrava enxuto, que era parte ilusória por efeito
dessa entidade. Mas quando ele acordou do encanto, dentro da água, passou as mãos nas
brechas das pedras e sem entender bem o que estava acontecendo colocou a mão no peito
desse ser, pois ela a partir disso concedeu os peixes para eles.
Pelo conteúdo da primeira parte das narrativas de lendas, de que a comunidade se
apropria através dessas histórias contadas de pai para filho ou em rodas de fogueiras, vê-se
que são os velhos que difundem entre os membros da comunidade as riquezas inerentes à
cultura deste povo.
Na história contada no arquivo ABS_NAR_001, outras personagens também são
apresentadas, frutos da mesma forma de experiências de vida desse velho com suas avós. Ele
coloca suas próprias lembranças vividas no meio das lendas dos Fulni-ô.
Nessa mesma ordem, segue na memória desse ancião, a história de duas índias que,
segundo as lendas do povo, sumiram na mata e pelas serras que circulam o território desse
grupo. Uma delas sumiu, aparecendo morta nos arredores da serra. Nesse registro não temos
informação sobre qual foi a causa da morte dessas índias.
Na sequência, o ancião certifica-se de ter adquirido a totalidade de ensinamentos que
foi repassado pelos seus antepassados. Por isso, esse sábio absorveu variadas formas de
histórias permanecendo com os seus familiares idosos. No geral, destaca-se o papel das
mulheres, sobretudo das avós, na criação e educação de crianças e jovens e na transmissão da
língua. Geralmente um dos costumes na aldeia, sempre que um casal de índios vive nos lares
dos pais, é que a tarefa de educar essas crianças é de responsabilidade dos avós. Assim,
praticamente todas as crianças assimilam muitos dos conhecimentos desses velhos.

4.2.2 Narrativa 2: FUN_ROB_NAR_002

Passaremos agora a comentar segundo relato oral do arquivo FUN_ROB_NAR_002.


Ele aponta a experiência de vida do ancião Romildo Barboza de Lima, com a idade de 73
anos, do sexo masculino. Na cidade de Águas Belas, trabalhou por muito tempo pela
Compesa, cuidando doss mananciais de água na serra do Comunati em tempos de água na
serra. Por ser membro do povo, foi conduzido a trabalhar na aldeia, onde era designado a
38

distribuir por encanação a água para as ruas do aldeamento. Mesmo com seu ofício, que
garantia o sustento de sua família, nunca deixou de exercer o seu papel de índio semeador de
de conhecimentos ancestrais. Sendo um dos sábios da cultura Fulni-ô, mantém-se disposto a
repassar o que aprendeu de seus velhos, desde que os jovens tomem a iniciativa de procurá-lo
e incentivá-lo a narrar suas histórias.
A coleta de dados foi executada frente a sua casa no Ouricuri, território Fulni-ô, em
09/05/2015, 16:08h. Compõe-se de 06m03s de gravação, em áudio e vídeo. Posteriormente,
os dados de áudio foram abertos no aplicativo Praat, onde fizemos as transcrições e a tradução
do material.
Nomeamos a narrativa deste registro como “Yooxto Toonawa Sayonte” (Vamos
trocar algo). Neste relato, o ancião relata o modo como os seus antepassados vivenciavam a
ideia de partilha e reciprocidade em toda a comunidade.
Na sequência, um trecho da narrativa traduzida em seguida para o Português.

Tha txi khiaka he, tha xi khiaka de towe txke satxhikhe sondoma,
nema otxhaytowa lefetia ewlinho txi khiaka de.
- Setsotwa, wootakma etsafane fthone setxhi kite?
Nema ya ke khlatkwa sato ne khiaka:
- Yooxto, yaadetwa, aoke owa se thuline. Nema i tole tkano yaadedwa
tkano i takkahe de luxtutwa theetxhitote.
Ufa ya txman lefetia thdonkyake ya txman. Yawka hle de luxtutwa tsa
sakanete. Ya txaka hle de luxtutwa sake nete txhutsa ekhdewna sema thlete
ya keekawate. Nema neho satoman etxtxo kaka khia, ya txtxo kakdode
khiaka. Nema nekdey tha txhufnide khiaka. Utxi lay tha txma, ta txi khiaka:
- Woxtey, neho ke nete ya khdenkya.

Eles vinham e estavam de manhã junto ao fogo, aí os brancos que


criavam gado chegaram.
- Índios, vocês querem tirar o couro de uma vaca?
Então os nosso velhos disseram:
- Vamos, meninos aí! Cortando pela estrada do mato. Vou levar
comigo dois meninos para espantar os urubus.
39

Quando nós chegamos lá, a vaca estava morta. Nós andávamos junto
com os urubus para tomar a carne deles para comer. O modo deles, era
bom, mas nossa vida não era boa. Eles não vendiam. Quando chegavam
com a carne, eles ficavam e diziam:
- Vão dizer aos outros para nos ajudar!

O texto toma a forma de um relato de vida, perpassando dois tempos: o passado, como
viviam coletivamente, e como os tempos eram difíceis; e o presente, onde a vida está mais
fácil, mas perdeu-se o espírito de coletividade. Ele faz um relato da vivência no passado, do
momento presente, e faz disso o seu ensinamento. As cenas são vívidas, representam a
retomada dos fatos que ilustram a memória – a busca da rês morta, a pescaria coletiva – e dos
discursos diretos, intercalados com a expressão de suas emoções.
O ancião demonstra ter um sentimento que afeta os seus princípios por conta de alguns
costumes terem sido modificados. Isso desagrada profundamente a esse velho. Ele lembra o
sofrimento daquela época e a escassez de alimentos de que seus familiares necessitavam.
Mesmo assim, independentemente de o povo viver em um meio em que os recursos da fauna
e da flora eram inteiramente escassos, pouco conseguindo, eles permaneciam na igualdade da
partilha, que definia as alianças dos antigos e permitia conviverem entre si harmonicamente.
O espírito coeso entre eles era a virtude da comunidade. Isso resultava em ensinamentos, isto
é, a norma dos seus antepassados, que era passada para outras gerações.
Esse ancião intercala em seu relato o afeto dessa vivência até os tempos dos seus avós.
Porque anteriormente tudo que eles conseguiam dividiam e trocavam com todos: “Se eles
arrumassem peixe, trocavam com os outros que tinham a farinha, ou até presenteavam os que
não saíam para buscar os seus alimentos para poder comer”. Até mesmo quando os brancos se
apropriaram de seus territórios e por eventualidade morria uma rês, os índios iam expulsar os
urubus para tomar deles a rês morta. E assim repartiam para toda a aldeia. Além disso, os seus
antepassados apreciavam mesmo o convívio social, como se fossem crianças inofensivas.
Com o contato com os não índios, há apenas pouco tempo que a situação econômica
dos Fulni-ô melhorou. A vida, que sempre foi sofrida, passou a ter uma nova perspectiva de
melhorias, com comida fácil, vestimentas e outros bens necessários à sobrevivência. Mas,
conforme Romildo Barbosa, nossa sociedade foi infectada pelo maléfico costume “branco”.
Inveja, ambição, ciúme e olho grande arruinaram o nosso modo de vida. A diferença dos
hábitos em relação aos seus antepassados, esse ancião sente na atualidade. Os jovens
adquiriram os costumes dos não índios, porque nesse sistema de convívio só querem as coisas
40

para si. Uma vida que possibilitou mais facilidade permitiu que alguns absorvessem essa
prática desconhecida na coletividade e isso foge aos princípios de nossos antigos.
Observa-se que na narrativa há um relato de indignação. Essa indignação estava
impregnada na consciência desse velho. A ocasião torna-se, assim, uma oportunidade de se
expressar em seus relatos, de desabafar para os jovens. Ele deseja que eles reconheçam que as
práticas e costumes dos outros são incompatíveis com os nossos. Mas é notório que o fato de
um costume ser trocado por outro só poderia causar estranhamento nas vidas desses idosos.

4.2.3 Narrativa 3: FUN_RIM_NAR_003

O terceiro arquivo, FUN_RIM_NAR_009, traz o registro da fala da anciã Rita Maria.


Essa anciã se encontra, na ocasião da gravação, com a idade de 76 anos. O registro dessa
narrativa foi realizado em 09/08/2015, às 14:15 horas, na Aldeia Fulni-ô/ sede. A duração da
captura de áudio e vídeo é de 06m04s. Assim, como todos os outros casos, o registro em
áudio foi aberto no aplicativo Praat para ser transcrito. Intitulamos essa narrativa de “Setxtxo
Duti Khia” (Era Uma Vida de Pobreza).
Rita, como todos os outros velhos que participaram deste estudo, atualmente se
encontra aposentada. A aposentadoria de idosos é algo relativamente recente na comunidade,
devido a um conjunto de ações assistencialistas implementadas pelo governo eleito do Brasil
antes do golpe de 2016. Essa velha índia, no entanto, nasceu e se criou em tempos de
sofrimento. Na mocidade trabalhava na roça com sua família, gostava muito de trabalhar com
a palha do coqueiro Ouricuri. Até chegou um dia em que se desgostou dessa atividade por
conta das perdas de seus pais.
Aqui damos um trecho do seu relato:

Ta seetadwa khla ewlinelha khiaka mas era ketite lahele. Fathowa lha
txman: A neholha khofean setadwa fthone futxina teeite sati ke. Neso khia.
Não era nada ta txhufnite, era ketihanate khia. Sa hle khia setxtxose neka.
Mukãwa teekhla wati nelhaka setitxtxose. I kfalse txhaka exmane do ithlo
wati. Teewkya sesa khnan, nesoga sasey etxkyase saske. Teetkha quase
aniwa nikase, poy sasey etkyase saske txtxaya so ke.
- Tote ithlo ewka hle?
- To saxidjoa hlehe ewdonkya?
Theesniknokase teekte. Poy sasey txtxaya so ke etxkyase.
41

Tha ne khia. Efewde teewlinelhaka.

Ela criava muita galinha, mas era para dar. Quando chegava uma
pessoa, ela dizia:
- Eita!
Pegava uma galinha para ela comer na casa dela. Era isso. Não era
nada para vender. Já ele, meu pai, fazia vassoura. Em um instante ele fazia
vassoura. Que eu ainda me lembro da cachorra que ele tinha. Ele matou a
cachorra e depois de morta ela voltou para a casa dele de novo. Ele quase
esbagaçou a cabeça dela, pois ela voltou de novo no outro dia. Que
cachorra é essa que anda por aí? Eles iam puxando, pois a cachorra depois
de morta voltou. Eles faziam isso. De tudo eles criavam.

A anciã relata o sentimento dos tempos passados, quando a pobreza era extrema e os
índios não obtinham alimentos em fartura para se sustentarem. A procura naquela época era
constante quando eles saíam em busca de alimentos para dividir com as famílias e vencerem
os obstáculos diários. O trabalho dos seus pais era só procurar o que comer e sustentar seus
familiares.
As casas eram feitas de palmas do coqueiro ouricuri: tarefa de homens e mulheres.
Com as palhas dessa palmeira fabricavam esteiras, vassouras, entre outros utensílios, os quais
não tinham um destino certo de comércio. O ritmo incansável à procura dos meios de
sobrevivência dos índios daquela época emblematizava a realidade enfrentada por muitos
deles. Ela fala, principalmente, que o pouco que sua mãe tinha só era para compartilhar com
seus parentes, principalmente sua vizinha e comadre. Elas eram tão amigas que, para não
ficarem sem se ver, tiveram que abrir uma janela na divisão das paredes de casas de barro.
Vejamos um trecho dessa história, em que Rita quando narra esse acontecimento.

Tha wenekase. Fathone khayxi khlokkwa kleynima, tha satilhaka. Ou


asi ou isa tha fthodeke kelha thoododete sa janela tha sakho.
- Dixone, ta saxi hle do i kafe! – sondoma nelhaka.
Nexi hle uni vizinho:
- Que qui há, neho? Edwa hle do.
42

May txhiwa thwa khia de. Tha weneka hle de thasdey txhua sasa tha
ketite tha tkanewa. Nema asi txhua Kudo khia hle de ya vizinhane
klehenese.

Elas abriram uma janela grande. Quando elas começavam a


cozinhar, elas se chamavam, sua avó, minha mãe porque elas eram
solidárias. Pra elas não irem longe, elas abriram uma janela para se
verem.
- Comadre, meu café já ferveu! – elas diziam de manhã.
Diga se tem um vizinho que faça isso hoje. Mas elas faziam. Elas
abriram uma janela na parede de suas casas para compartilhar as suas
coisas. Sua bisavó essa Kudo foi a nossa primeira vizinha.

O fato ilustra uma solidariedade muito grande entre as pessoas, que tudo
compartilhavam. Por essa razão o que ela criava em sua casa dividia com seus semelhantes. A
fala ilustra o convívio recíproco desses antigos velhos, onde o pouco que tinham se tornava
muito e o grande espírito da caridade sorria com esses hábitos que embelezavam a
comunidade.
No relato dessa anciã, aparecem duas histórias intrigantes que chamam a nossa
atenção. São duas pequenas narrativas. Em uma delas, ela conta que seu pai, nas suas
andanças, criava uma cachorra, e por algum motivo teve que matá-la. O fascínio pela história
se torna maior quando ela narra a gravidade do ato de seu pai. Depois, a cachorra voltou para
a sua casa. O velho estranhou e tornou a executá-la, mas ela retornou de novo ao seu local.
A outra trata da morte da mãe dessa anciã. Como os seus pais criavam de tudo, no
velório de sua mãe uma gata não arredava o pé do caixão. Na caminhada para o enterro, a gata
seguiu o cortejo e depois desapareceu sem voltar mais para a casa que a acolhia.
Iremos encontrar nos comentários desses textos orais uma vasta possibilidade de
eventos inusitados narrados por estes idosos. São pequenos fatos do cotidiano que voltam às
suas memórias e podem, em conjunto, retratar a visão de mundo do povo. Isso contribuirá
bastante para estudos de cunho sociológico e ou antropológico sobres o povo Fulni-ô.

4.2.4 Narrativa 4: FUN_JOL_NAR_004


43

Esse registro foi feito nos arredores do Ouricuri, local onde existe um riacho seco com
árvores ao redor, em 09/05/2015, às 15:30h. Foram 18m31s de gravação em áudio e vídeo.
Os dados de áudio foram abertos no aplicativo Praat, onde foram feitas as transcrições.
Esta narrativa é uma história de vida do índio João Lúcio, do sexo masculino, 74 anos
de idade.
Quando era menino, ele saía com os velhos à procura de caça para poder se alimentar
e na fase adulta foi agricultor e por muito tempo trabalhou com os brancos nos armazéns da
cidade. Também trabalhava abatendo animais como gado e carneiro dos brancos que eram
comercializados na feira livre da cidade. O título dado à narrativa é “Setxfonse” (A caçada).
Entretanto, ela inclui também uma lembrança da história vivida por João Lúcio, junto a sua
mãe e sua tia.
Quando esse velho era criança, um membro do seu povo chamado Maxi, que faleceu
há muito tempo, foi convidá-lo em uma determinada ocasião para ajudar na caça. Sem
nenhum conhecimento do que seria a tarefa de caçar, logo quando ele era menino, saiu com
Maxi, sem comunicar a sua mãe, em busca de animais para alimentar os seus parentes. Essa
história da caça de teiú é curiosa, na medida que Maxi tinha o conhecimento de como capturar
os lagartos que vivem nos buracos do chão nas matas. Além disso, ele entendia sobre quem na
verdade dispõe da guarda desses animais da caatinga, que é um ser de forma humana
representada por uma suposta mulher, figura representada nos contos brasileiros como a
“Caipora”, que vem de origem indígena.
Na cultura Fulni-ô, acredita-se que essa divindade está presente nos matos. Se um ou
outro ambiente for invadido por estranhos, ela dará respostas inesperadas, confundindo os
índios dentro do mato, atordoando-os para que eles venham a se perder. Para que isso não
acontecesse, e para que ela pudesse disponibilizar os animais da floresta para a caça, os índios
tinham que dispor de fumo, fabricar um cachimbo no interior da caatinga e colocar tudo isso
em uma pedra para ela poder se alimentar com a fumaça do cachimbo feito de galhos de
árvores.
Vejamos um tercho da narrativa de João Lúcio:

Nema noka hle. I efnimã noka hle de txhleka txhana ke fthowa thulti.
Nema taka hle de ekhatxha kite txhua pinhão pedasowa khatxha kite thlowa
te txhua txhleka eethe.
Nemano ta i unika hle de:
- Djokahe hle ufa nema a takahe de aoke. A elka dãw!
44

- Anhan. I eldodene do.


Ta sedaya khane hle txhua oosea fthanewa ta tetkya txhana pinhão ke,
pinhão gayo te. Nemano ta sedaya khane hle teeke. Nema i naaka de tkooka
se teeke. Djaka de. Txhua parane hle. Awa neho kesman ta txhutsa oosea
neka hle de, txhua txhleka tsawa. Nema taka hle de txhuuke txhuuke toonã
suso nite txhuuke. Nema i naadodwa. Nema, ta esusnisesde, etxaka hle de
sedaya pedasowa thulti fowa fthane thake khante.
Nema i unika hle de owe hle ufnana:
- Tokeke, Txo Maxi, txhua sedaya pedasowa khane hle txhutsa fowa
thake?
Nemano ta esusnisesde, etxkya noka hle.
- Txo Maxi, ama toona nahase, wey?
- I nahase, wey.
- Ke tosekehe, Txo Maxi? Ke kaypolawa sehe?
- Kaypola, anhan. Djokase take oosea, ta ooseakake lahe, nema i
sedaya pedasowa tkase de fowa thake, que é taksasa, teekawate.

Então quando eu olhei, ele já tinha ido cortar pau de pinhão.


Ele tirou a casca, pedaços de casca de pinhão, com a faca para ela
comer.
Aí ele disse:
- Eu vou lá e você fica aí. Não tenha medo!
- Sim. Eu não vou ter medo.
Ele botou fumo naquele cachimbo que ele fez naquele pinhão, com o
galho de pinhão. Ele colocou fumo no cachimbo que fez com o galho do
pinhão e eu o vi entrar dentro do mato. Eu fiquei. Ele parou. Aí eu olhei
para as costas dele, enquanto ele entrava pelo mato. Foi por conta disso
que ele fez um cachimbo daquele pau. Ele estava ali, como se estivesse
fumando. Eu não via nada. Então, depois que ele fumou, ele já chegou
cortando um pedaço de fumo para colocar em cima de uma pedra. Aí eu
logo me perguntei:
- Por que o velho Maxi colocou aquele pedaço de fumo naquela
pedra?
45

Depois que ele fumou, ele veio chegando.


- Velho Maxi, você viu alguma coisa?
- Eu vi, rapaz.
- O que foi, velho Maxi? Foi a caipora?
- Caipora, sim. Eu fui dar o cachimbo para ela, ela fumar também. Eu
deixei uma pedaço de fumo em cima da pedra, que é dela, para ela poder
comer.
- Velho Maxi, por que você fez isso para ela?
- Você não sabe, menino?
- Eu não sei.
Aí ele disse assim:
- Olhe, a caipora, rapaz, é a dona da caatinga. Quando eu venho
caçar, ela mostra muitas caças. Mato teiú, mato tatu, mato camaleões. É
aquela caipora que me dá. Por isso que todo dia eu venho caçar. Você está
vendo? Depois que eu cacei, eu fui para a aldeia levando o meu bornal
cheio. Por quê? Porque a caipora deixa para mim. Nós damos fumo para
ela poder fumar cachimbo, para ela fumar.

Nesse cenário vivido por João Lúcio, na conduta de criança, o velho Maxi mostrou
como se caçava, expôs os seus conhecimentos de caça. João Lúcio não acreditava como Maxi
sabia que dentro de um buraco poderia ter alimento para eles. Esse antigo mestre Maxi, com a
sua prática de caça, relatava como capturar determinados animais e falava de seu cotidiano
com os mais antigos. De certa forma, isso veio de seus antepassados, essa troca de saberes.
Assim, Maxi, de acordo o relato de João, teve a iniciativa de ver se naquele buraco havia um
lagarto e acabou por encontrar uma moradia de lagartos: um casal de teiús macho e fêmea,
que estava acuado em sua própria habitação. Primeiro procurou um material natural, vara de
pau, que apontou para iniciar a trabalho de pegar os bichos. João Lúcio pergunta a ele como é
que ele sabia que tinha naquele local dois teiús. Maxi responde e passa a cavar o buraco,
pedindo para João tirar as terras. João logo expressa medo, dizendo que colocou a mão em
uma coisa mole, idêntica ao corpo de uma cobra. Mas o ancião, com atitude de certeza da
existência dos lagartos, passa a contestá-lo: “Não é cobra, não! É teiú menino!”
Antes de relatar a captura os dois lagartos, a história começa a tomar outro rumo. O
relato agora desloca-se para um período anterior. Nessa época, João não sabia quem protegia
os bichos das matas. Um dia João, na sua inocência, escuta o som da quebrada de matos vindo
46

em sua direção. Maxi, conhecedor dos segredos e mistério das matas, entende a razão e fala
com João para não ter medo. É a Caipora que se apresenta, mostrando que está por perto,
provavelmente descontente, porque viu que esses índios estavam saqueando os seus animas.
Maxi, para poder agradá-la, sai rumo aonde estava vindo o som e faz um cachimbo de árvore
de pinhão e coloca na pedra com o fumo. João se pergunta o que Maxi foi fazer dentro do
mato. Quando Maxi volta, ele informa que era uma Caipora e descreve, diante da pergunta de
João, como é a aparência dessa entidade: “Ela é do sexo feminino, tem o cabelo grande
chegando nos joelhos”. Por Maxi ter feito um contato harmonioso com a Caipora, ele atribuiu
a isso outros achados de animais e assim ele voltam para a aldeia com as mochilas (lixwa),
cheias de animas.
Nessa narrativa, somos conduzidos a compreender que todo sistema indígena é
totalmente integrado ao seu universo, nada se separa, tudo está conectado. Com o triunfo da
caçada, João e Maxi, em um sistema de reciprocidade, começam a dividir as caças, levando
para a aldeia. João leva a caça que adquiriu do velho índio Maxi e relata o ocorrido de sua
vivência. Nesse período na aldeia, o enfrentamento por busca de alimentos fazia parte do
cotidiano do povo. João informa à sua mãe que foi caçar e que o velho Maxi compartilhou a
caça com ele, mas ela fica preocupada porque não têm farinha para comer com a caça. João
diz que, pelo menos, eles podem beber o caldo da caça. A mãe lembra que sua tia, a velha
Arcina possuía farinha e pediu para que ele fosse ver se ela podia ceder um pouquinho para
que eles conseguissem comer. A velha gentilmente o recebe e João passa a inteirar da situação
a sua tia Arcina. Com isso, ela cede uma quantia razoável para eles. Observando esse fato,
entendemos que nesse tempo, quando uns obtinham alguma coisa que garantia suas refeições,
os outros compartilhavam tudo o que conseguiam.

4.2.5 NARRATIVA 05: FUN_AGF_NAR_005

O quinto arquivo de registros de narrativas orais dos velhos é o que foi nomeado
FUN_AGF_NAR_004.
A narrativa que compõe o arquivo FUN_AGF_NAR_004 é de autoria de Agenor
Ferreira de Sá, com idade de 86 anos, sexo masculino. A coleta foi realizada em 16/05/2015,
às 16 horas, na TI Fulni-ô/ Ouricuri. O registro tem a duração de captura de áudio e vídeo de
04m12s. O registro em áudio foi aberto no Praat para ser transcrito.
Para nos informarmos sobre quem está por trás dessa narrativa, que é um relato de
experiência de vida, precisamos entender um pouco do histórico desse velho. Agenor é um
47

dos anciãos da família Ferreira, que é uma das maiores famílias na comunidade. Os seus
antepassados já são há muito tempo liderança na comunidade.
Agenor, em sua adolescência, trabalhava para ajudar a sua família. Caçou por muito
tempo e ajudou na roça. Na sua mocidade, trabalhou com os brancos e aprendeu a fazer
sapatos, um ofício que durou e que manteve sua família. Ainda na sua velhice, para ter uma
renda extra, produzia diferentes artes, como machada de pedra, arco e flecha, maracá, entre
outros; atividade com que se identificava muito, mas que não durou muito porque a cada ano
a sua velhice o impedia de fazer determinados trabalhos árduos, como ir à serra atrás de
matérias primas para a fabricação de artesanato.
Vejamos um trecho da narrativa.

Awa se teeke ke toona elkanse. Nema hle de ya sa lhawa tkha


thoxanse. Netxante. May neho yasa futxkya hle de. Fthea khethama yawka
hle de ya aldeya ke. Ya tilhawa ke ya txman hle ya eldjo khla lay hle.
Nekdey xoa, fekhia, fekhya, khdelmalka, que é o sardão.
Peteka fthonewa lwa doa khiaka. Ya khodjo khia thloa tkawa. Se não,
baduki fthonewa, makhay fthoa ya tafia futxite. Yatlife kaka khiaka de
etxfonte. Nema setxfonse khla khiaka de se ke. Netxante ya keha khiaka de
txtxaya dey. Yakhodjo dwa. Ya feetonse dwa. Sekefe etxkya etxhaman, ya ho
khiaka fonte ftheasa. Ya ho khiaka yalkinte, nekdey ya ho khiaka ya elkinte,
nekdey ya txidjo futxi khiaka.

Também dentro desse mato tem coisa ruim. Aí a gente ficou com a
cabeça confusa de repente, mas pelo menos pegamos alguma coisa. No
começo da noite, nós já tínhamos chegado na aldeia. Quando nós
chegávamos com muitas coisas de novo: teiú, cambambá, camaleão,
sardão.
Até uma peteca nós não tínhamos. O nosso trabalho era com faca
pequena, não com um bodoque, com uma flecha para pegar preá. Os nosso
cachorros eram bons para caçar e tinha muita caça no mato. Assim, a gente
comia todo dia. Não tínhamos trabalho. A gente não tinha trabalho mesmo.
Quando chegávamos da roça, a gente ia pescar à noite. Toda vez que a
gente tomava banho, pegava peixe.
48

No tempo em que a sobrevivência dos Fulni-ô dependia dos rios e das matas da região,
os índios falavam desses eventos, falavam de fatos vivenciados por eles, nos quais os seres da
natureza têm uma relação íntima com suas vidas. Nas suas idas e vindas, procurando algo da
natureza para sobreviver, encontravam também os seres fantásticos das matas e dos rios,
coisas às vezes incompreensíveis, que os deixavam confusos nesses lugares. Mas eles
entendiam que isso era o que fazia o controle do que poderia ser adquirido com a caça e a
pesca para eles se alimentarem.
É disso que trata a história de velho índio Agenor, com o tema “Yatkha Thoxankya
Hle de Se Teeke” (A Coisa que Já Atordoava A Gente Dentro do Mato). Em sua vida, passou
por muitas dessas situações quando andava em busca de alimento para sustentar sua família,
pescando e caçando. Deparou-se com momentos de até se atordoar no rio e nas matas da TI
Fulni-ô. Esse velho sabia também que, para levar a sua mochila cheia de coisas como caças e
pesca, teria que ofertar algo para esses seres deixarem tudo sair tranquilo e assim eles
poderem concretizar as suas práticas da caça e pesca. Nessa situação, antes da ida à caça já
saiam organizados e preparados com essa oferta. Precavidos, levavam um pouquinho de
fumo. Caso aparecesse uma situação estranha, colocariam fumo na pedra para a Caipora
fumar. Mas se eles não levassem essa oferenda, poderiam passar por situações desagradáveis
na mata, chegando até a se perder.
É notável nessa narrativa o relato de quando ele e os amigos deparam-se com esse ser
na mata. Indagado acerca de como a caipora fuma, o velho nos leva ao encanto da história, no
ambiente da caça com os cachorros. Eles pressentiram uma coisa estranha dentro da mata,
julgando haver coisa ruim no mato. Era a Caipora que estava levando-os a confundir suas
ideias naquele momento. Até os cachorros bons de caça começaram a ficar quietos. Todos
quietos e atordoados, mas mesmo assim tinham algo nas suas mochilas para levarem para a
aldeia. Deste modo, esperaram o momento de lucidez voltar para poderem sair daquela
situação aterradora rumo às suas moradas.
De acordo com as narrativas de Agenor, de tudo eles traziam para suas famílias,
apesar desses eventos envolvendo mitos e lendas presentes na cultura do povo Fulni-ô. Temos
que ter em mente que isso faz parte da cosmologia indígena, entender esses aspectos
carregados de significados de sobrevivência, onde é preciso interagir com esses seres das
matas e rios para viver. De acordo com o relato de Agenor, para sobreviver ele só possuía
uma faca pequena e um bodoque.
Nesse período, narrado nessa história de vida, as pessoas não tinham trabalho
remunerado. É verdade: todas as atividades indígenas do povo Fulni-ô, visando a procurar
49

meios de se alimentar, são consideradas como um trabalho, embora não sejam remunerados.
Apesar de serem mínimos os recursos naturais nesse tempo, mesmo assim garantiram a sua
sobrevivência. Todos viviam felizes com o que lhes era concedido.

4.2.6 Narrativa 06: FUN_MAC_NAR_006

O sexto arquivo de registros de narrativas é o que foi nomeado


FUN_MAC_NAR_008. Ele contém o registro da fala da anciã, Maria Brasilina de Amorim
Ferraz, do sexo feminino, com idade de 65 anos. A coleta dos dados foi efetuada em
02/08/2015, às 13:20 horas, na Aldeia Fulni-ô/sede. Os registros de captação de imagem e
som tiveram uma duração de 05m54s. Em seguida foram abertos para serem transcritos no
Praat.
Essa velha índia é descendente dos Fowklasa, subgrupo dos Carnijós. Identificamos
isso porque o seu povo vivia próximo à serra dos Cavalos. Ela já informou, em relatos
anteriores, que faz parte desse grupo. É raro hoje termos uma definição de quem pertence a
qual dos grupos que se fundiram e formaram o povo Fulni-ô, mas essa índia informa
categoricamente que a sua ascendência pertencente mesmo ao grupo dos Fola, uma das
maiores famílias no passado. Aqui vai um trecho de sua história:

I exinekahe senenkya nandudya Fola eetxhi sato de. Tha


fentookhettotwa satosey, tha exineka txkyãy saayo sato ke. Nema txo
Koheya eka tkanonkyase. Nema tha tkano samakman, tha hiamana sato, txo
Koheya exinekase owa senenkya tha tkano ke. Nede txo Koheya de ufnana i
exinekahe ta exineka txtxose saayo sato ke.
Txo Koheya exinekase tha tkano owa txtxo ke:
- I wa tetfenkyase ooke i wake exinete senenkya fthowa itfe
exinedwase ike. Nema ta ike deminkyase i exinekama wake wa hiamana sato
nede tha ke i exinedete.

Eu vou contar a história que vocês nunca ouviram da família dos


Fola. Desde seus antepassados, eles vêm contando aos filhos deles.
O velho Koheya teve dois filhos. Quando os dois filhos dele se
casaram, só quando eles tiveram filhos, o velho Koheya contou essa
50

história para os dois. A partir do velho Koheya, eu vou contar do jeito que
ele contou aos filhos dele.
O velho Koheya contou a eles dois desse jeito:
- Eu mandei chamar vocês aqui para eu contar a vocês uma história
que meu pai me contou. Ele me pediu para eu contar a vocês só quando
vocês tivessem filhos e para eu não contar a eles.

Na narrativa que gravamos para este trabalho, ela narra como, desde criança, em sua
andança como seus pais e irmãos, trabalhava duro com a extração da palha. Aprendeu a viver
em meio aos costumes étnicos de seus familiares. Hoje é mãe de oito filhos. Trabalhou duro
para criá-los em meio à dura falta de oportunidade durante os tempos idos. Atualmente ela
procura incentivar os jovens da comunidade a praticar os nossos costumes, uma tarefa que ela
faz por paixão, pensando na formação dessas novas gerações.
Chamanos a narração “Ifenkhettotwa Sato Dotka ke I Sawlinsese” (Eu me Criei no
Meio de Meus Troncos). Assim, no começo da tarde, colhemos a narrativa da anciã Maria
Brasilina. Logo no início, sua residência, começou dizendo que sentia muito por nós, por
conta da situação de enfraquecimento do idioma Yaathe em nosso povo. Disse ter até pena da
gente devido ao fato de estarmos enquadrados nesse contingente de jovens que buscam um
aprendizado da língua. Mas declarou o que poderia sair desse encontro serviria para a gente
colocar na consciência e levar para vida toda: os seus conhecimentos. A análise da narrativa
dessa velha nos leva a concluir que há índios na comunidade que se opõem veementemente à
cultura alheia, isto é, à cultura dos não índios. A razão para isso, de acordo com esses índios,
é o fato de essas culturas enfraquecerem a do nosso povo, com pensamentos que não fazem
parte de nossos princípios.
Ela desde pequena foi introduzida na cultura Fulni-ô: nasceu e se criou no meio dos
costumes de sua ascendência. Conviveu com pessoas que a conduziram ao enfrentamento da
vida e conheceu muito sobre ela. Mesmo com as dificuldades da vida em seu cotidiano, pôde
superar os obstáculos que lhe eram postos. E esses sofrimentos não se resumiam apenas à lida
do dia. Também à noite lidava com problemas: tinham de enfrentar uma dormida totalmente
desagradável, com cama de vara, o que lhe causou dores em suas costas. Essa velha aconselha
e pede para que nós nunca caiamos em uma situação como aquela pela qual ela passou.
Lamenta seu sofrimento, mas aconselha-nos a procurarmos meios para sustentar a nossa
riqueza cultural. Porque a palavra dela se fixará nesse registro, a gente poderá no futuro guiar-
se por aquilo que fala.
51

Na apreciação de seu conhecimento de vida, ela informa que foi Deus que dadivou a
sua palavra. Diz isso a respeito de seus saberes, incluindo a língua como esteio máximo, algo
que nós nunca poderíamos vendê-la aos brancos. Assim, ela retoma as idas na busca da
extração de palha para fazer os seus trabalhos, mas que na época tinham um preço que não era
bom. Diante disso, ela deixou esse trabalho para trás, argumentando também que os brancos
de Águas Belas, além de não gostar do nosso povo, desvalorizavam tudo o que produzíamos.
Nessa lembrança, ela faz uma reflexão crítica sobre os nossos vizinhos brancos, que querem
saber de nossos costumes étnicos, de nossa língua e nossa religião. Entendemos esse trecho
como refletindo um sentimento de proteção cultural da nossa tradição, sobretudo no que diz
respeito ao ritual indígena que dura três meses, no qual os brancos são impossibilitados de
participar.
Além do posto acima, essa velha índia demonstra uma estratégia de como nosso povo
pode sobreviver à malícia dos brancos: “Para a gente conseguir sobreviver, nós vamos usar a
mesma malícia contra eles, nós vamos ser iguais a eles também”. Nesse caso, ela exemplifica
que alguns brancos fingem que gostam dos Fulni-ô. Igualmente, de acordo com os relatos de
Brasilina, também nós fingiremos que gostamos deles. Isso é uma questão de sobrevivência
de um povo que por muito tempo sofreu perseguição vinda de outro povo, de outra cultura.
Ela sente na pele o enfraquecimento que isso causou, fica aflita e pensa muito na perda da
cultura. Por isso, incentiva os jovens a seguirem com os costumes e tradições do nosso povo.
A língua, na narrativa de Brasilina, é um bem sagrado deixado por Deus aos seus
antepassados. Ela pede aos jovens que tenham empenho e possam aprendê-la. A anciã faz
esses comentários em seu relato e pede que todos nós reflitamos sobre essa realidade do
Yaathe. Mesmo contando suas lembranças, faz um grande esforço para prender a nossa
atenção em relação à língua.
Depois, ela retoma as suas lembranças de criança, quando dormiam sem cobertor e
sua alimentação era feita sem sal, tudo ao natural. De acordo com ela, não existia sal nesse
tempo; no entanto, tudo que eles comiam não prejudicava, enquanto que as comidas da
atualidade podem prejudicá-la. Por isso, ela mesma procura se afastar dessas comidas novas
que apareceram e que permanecem na geladeira para não se estragar. Ela afirma evitar esses
costumes novos. Quando é preciso comprar algo para se alimentar junto a sua família, reza
para não adoecer e pede para que tudo ocorra bem com ela e seus filhos.
Na narrativa dessa anciã, ela descreve sua história e torna a repeti-la novamente no
final, justamente para prender a atenção de quem está ouvindo. Cremos que essa é uma
estratégia comum no discurso de todos os anciãos.
52


4.2.7 Narrativa 07: FUN_ELC_NAR_007

O sétimo arquivo de registros de narrativas é do ancião Eloi Lúcio Cajueiro de


Amorim, de 78 anos de idade, do sexo masculino. A gravação foi realizada no dia
28/07/2015, ás 15:40 horas. O arquivo tem duração total de de 03m e 17s, e foi nomeado
FUN_ELC_NAR_007. Como muito outros, foi registrado na TI Fulni-ô/ Ouricuri. Chamamos
essa narrativa “I Holha Khiaka I Txfonte Imtiwa Tole” (Eu Andava Caçando Com Meu
Amiguinho).
Antes de começarmos a comentar o relato de Eloi, descrevemos aqui a sua função
como membro do povo Fulni-ô, e em especial sua vida com sua família. Esse velho aprendiz
da prática de armadilhas de caça, em sua vida como caçador, foi ensinado a obter meios para
capturar os animais para alimentar os seus parentes. Caçou por muito tempo, o que, aliás, era
uma das atividades a que tinha mais afeição, preferindo caçar na calada da noite, prática
chamada de “fachear”. Esse grande caçador, também para prestar apoio aos seus familiares,
trabalhava na roça nos tempos de chuva. Atualmente vive na aldeia, mas ainda tem prazer de
sempre estar comendo caça. Ele sempre encomenda a alguns índios para trazer alguns dos
bichos que ele tanto pegava. Hoje esse ancião se encontra mais quieto, vivendo a sua velhice
que o impede de praticar o que mais gostou na vida.
O texto desta narrativa de vida de Eloi ilustra para a gente uma passagem quando
todos os Fulni-ô passavam boa parte de suas vidas à procura de alimentos para sobreviver na
mata, ou também próximo aos brancos, que vivem no município de Águas Belas. A vida
nesse período era difícil e havia escassez de alimentos, o que muitas vezes fazia com que
alguns índios saíssem de sua aldeia a procurar de caça nos seus territórios. Nessa época o
trabalho se resumia apenas na luta pela sobrevivência e não no acúmulo de riquezas. Nesse
tempo, pais, filhos e amigos saíam à procura de caça para se manter. É sobre essa vida que
Eloi conta: quando era frangote, ele se deslocava com seu amigo Estendelau, mestre na arte
das armadilhas de caça.
Vejamos um trecho da narrativa.

I mtiwa khiahe Estendelau ya tsfonte ya ho lha khiaka. Ewlisia,


ewlisiandowa wey. Nema ya fehiawa txhaxte hele, fekhiawa yeetixte,
tafiawa, thialha sato. Nema sotxa ke ya txma, ya fthone xoawa setxhi
yeekilha khiaka ya txhufnite eyawa ke, may ya vivene lha khiaka. Ya ke
53

khlatwa sato puline lha khiaka. Nema sa txidodwa lha khia hle. Uunima ta
nede. Ya txika hle toonãwa ya sa i khlemã. Neka tempo ke, ya sa ke txi
khiakake toonãwa. Flidjwa khiwa, xoawa, tafiawa, kheytxi lha khiaka. Yasa
khoflewa khia. Efewde txtxaya dey, anhan, txtxaya fthoana dodwa khia.
Txtxaya dey yoo lha khiaka ya txfonete toonawa keeka wati. Nema hle fela
txtxaya ke:
- Yooxte hle txhua xoawa setxhi te txhufnite, toonawa kitxhia eynite.

Quando nós andávamos caçando, meu amigo era Estenderlau. Eu era


frangote. Aí nós matávamos camaleão, pegávamos camaleão, preá, saguis.
Quando nós chegávamos de tarde, nós tirávamos o couro de um teiú pra
gente vender barato. Mas nós vivíamos desse jeito. Os nossos velhos eram
pobres. Ninguém se ajudava (acudia) naquele tempo. Hoje, não. Nós já
ajudamos às vezes quando a gente arruma alguma coisa. Porque naquele
tempo nós compartilhávamos as coisas. Até piaba, teiú, preá, a gente
dividia. A gente se alimentava um pouco. Era todo dia, sim, não era só um
dia não. Todo dia nós andávamos caçando coisinhas para poder comer. Aí
no dia da feira:
- Vamos vender o couro daquele teiuzinho pra comprar farinha.

Eloi foi instruído pelo seu amigo, que o preparou para essas atividades provavelmente
desde quando ele era criança. Os dois traziam muitas caças para suas famílias: gambá, préa,
teiú, camaleão, entre outros. Suas famílias ficavam felizes com o dia de fartura. Eles não
guardavam para deixar para outro dia, até porque iria estragar no outro dia esses alimentos.
Dia a dia, eles caçavam. Quando chegavam dessas vivências com alguns animais, eles tiravam
o couro para vender depois para comprarem farinha nas mercearias dos brancos. Tudo que
eles conseguiam era bem dividido com os outros. Eloi relata que eles viviam assim: os velhos
eram pobres e ninguém se acudia10, às vezes só arrumavam o que comer, quando encontravam
era a felicidade de todas as famílias. Nessa expressão, os antigos eram pobres. O pouco que
tinham compartilhavam com todos. Mesmo assim, muitos, pelo motivo de não terem
condições econômicas igual aos brancos, não tinham opção de melhorar suas vidas. É
justamente devido a esse fato que Eloi usa o termo “acudir”.

10
“Se acudir” é uma expressão da fala Fulni-ô que significa “ajudar uns aos outros” ou “se servir de algo para
resolver um problema”.
54

Nessa narrativa, a história reflete as questões de tarefa de sobrevivência, um relato de


um índio que vivenciou muitos obstáculos de vida. Quando eles arrumavam coisas pra comer,
a nostalgia tomava conta dessas famílias. Em períodos de chuva, que também ainda hoje dura
poucos meses, plantavam para se alimentar. Eloi, nas suas lembranças, descreve quando se
tornou rapaz, namorou, casou, pôde cuidar de sua roça. Já era responsável para ter uma
família. Esse índio velho foi ensinado pra conseguir ter condições de sobreviver.
Esse ancião faz uma reflexão importante que nos chama atenção para esse fato vivido
na sua velhice: “Minha vista está ficando curta como a de uma jiboia, hoje eu ando todo à toa
como um menino”. Desse modo, o velho para ele é igual ao menino, vê pouco, no sentido de
que menino depende dos adultos para viver, mas que também o coração dele sente as coisas e
vê, mas o seu corpo não responde aos comandos do coração, só o coração dele que está dando
sinais de vida ativa. Esse grande sábio em sua vida por muito tempo praticou as atividades de
caça, e assim, em meio ao seu descontentamento, sente a senilidade própria da vida.

4.2.8 Narrativa 8: FUN_ARL_NAR_008

O oitavo arquivo de registros de narrativas, nomeado FUN_ARL_NAR_010, traz a


fala do ancião Aristide Leite Machado, do sexo masculino, com idade de 73 anos. Esse
registro foi coletado em 14/08/2015 às 14:39 horas, na Aldeia Fulni-ô/sede, com tempo de
03m12s.
Aristides Leite Machado era um dos melhores cantadores da aldeia. Há alguns anos
também saía para a capital do Estado de Pernambuco, com um grupo de índios Fulni-ô, para
apresentar mostras dos cânticos do povo. Todo ano, essa era uma das atividades em que boa
parte da comunidade saia nesse destino, isso para poderem de certo modo comercializar os
seus artefatos indígenas. No princípio, por muito tempo, trabalhou na roça e na fabricação de
tijolos. Era também responsável por tirar lenha para queimar os tijolos. Agora encontra-se
aposentado, mas não dos seus saberes, pois pratica a difusão dos conhecimentos do povo para
os jovens.
No trecho a seguir, ele dá uma amostra do seu bom humor e conta sobre os seus
saberes de cantor.

Khonefãw tha i txinekteka ooke i txite saathekhyante, kasne. Nema


fetala khla sdey tha i txinekteka de fetala i lete. Nema i kkawkasey i kfelnete
waka dehe yaadetwa tole. Nema i wake nete: ike txhinke i khletxase neske
55

khiwa efewde ke i khletxhakahe i satwinikakke. Nema i ekhde, i khletxaka


txtxowde i eekhdeka. Otxhaytowalha i txine thwakahe i tle i khletxhate. Tha
ike txhinke kfale ekhdekke ike txhinke kakka. Nema yaadetwa ooke i txine
thwaka dehe djote feetonte. Nema i feetonse sesa ya khletxhaka hle de,
yooka hle ya khletxhate, feetonte ya holha khiaka dehe.

Mas eles me chamaram aqui para eu falar, disseram. Aí eles me


chamaram aqui para um monte de formigas, para a formiga me morder.
Quando eu era pequeno eu brincava na lagoa com os meninos. Então eu
digo a vocês que eu cantava, que eu digo que talvez eu cante tudo porque eu
sou atrevido. Então eu sei, eu canto, eu sei todos os cânticos. Os brancos
me chamavam para eu cantar porque eles sabiam que minha voz era boa.
Aí os meninos aqui me chamavam para ir trabalhar. Então depois que eu
trabalhava nós já cantávamos, nós andávamos cantando, eu andava
trabalhando.

O texto narrativo de Aristides é um relato de experiência da sua jornada como sábio


dos cânticos. Intitulamos a sua narrativa de “I Khletxhaka Txtxode I Ekhde” (Eu Sei Cantar
Todos os Cânticos). Próximo ao final da tarde, convidamos esse velho para fazer alguns
cânticos dentro de uma casa na aldeia. Antes de fazermos os cânticos, queríamos que ele
contasse sua história de vida. Ficamos em baixo de uma árvore. Em um tom meio de
brincadeira, ele diz que o trouxemos para cima das formigas para elas mordê-lo. De fato,
fomos obrigados a incomodar as formigas e fomos surpreendidos pela sua hostilidade! A
narrativa é curta, mas apresenta a história desse grande cantador, que revela sua experiência
de um dos excelentes cantadores do povo Fulni-ô. Desde criança, ele andava brincando com
os amigos e sabia cantar algumas canções de etnia, sabia cantar todos os cânticos do povo.
É interessante quando ele diz que até os brancos naquela época o chamavam para
cantar para eles, sabiam que a voz desse mestre era uma das melhores vozes da aldeia. Os
meninos na época o chamavam pra trabalhar e depois dos trabalhos eles saíam para as
cantorias. Isso ainda hoje é um exercício. Os cânticos de povo fortalecem e aliviam a alma do
indígena e transmite ensinamentos simbólicos que seguem pela vida.
Esse velho faz, em seu discurso, uma comparação da saúde dele com a dos amigos.
Um dos seus amigos possivelmente tinha uma alguma fragilidade. Ele diz: “Meus amigos,
metade deles, se separaram. Que eles eram fracos”. Acredito que ele fala assim porque muitos
56

já se foram e ele agradece por estar ainda vivo, e por Deus ter lhe dado uma resistência a mais
para ele poder chegar até essa idade. Ele permanece vivo, apesar das barreiras enfrentadas na
velhice, forte em nosso meio.
A fala desse mestre dos cânticos é resumida. Ele diz que só é isso que ele sabia falar.
Nesse momento, pergunta a nós, que estávamos a sua volta dele, quem seriam as pessoas que
iriam cantar com ele. Em meio a essa narrativa, lembramos a ele como era o convívio dele
com o seu pai.
Como toda a tradição dos Fulni-ô, a maioria dos índios saíam nos arredores da serra
do Cumunaty e outras serras vizinhas à procura de palha, fibra de caroá para fazer suas artes.
Então, é nessa parte que entra a história do velho pai de Aristides, em suas andanças por esse
mundo. Quando fala, ele diz que o velho pai tirava palha para fazer os seus artefatos e vender
na feira local. Por todo canto nessas serras eles andavam a pé, passavam muitas dias e noites
fora da aldeia para extrair essas matérias primas, antes muito abundante na região. Nessas
viagens, caçavam viado e comiam com feijão de corda, abóbora que existia nos roçados
vizinhos. É uma retomada ao passado desse ancião que demostra a ligação com seu o pai. A
tarefa de seu pai, chefe de família nesse tempo, era se deslocar de sua moradia para poder
recolher coisas da natureza e fazer seus trabalhos e assim tentar comercializá-los na cidade
para, por fim, sustentar sua família. O velho Aristide diante de toda essa vivencia, agradece a
Deus por estar aqui contando essa história no meio de nós. É um agradecimento pela sua
longevidade.

4.2.9 Narrativa 09: FUN_TEE_NAR_009

O nono arquivo com registro de narrativas é o que foi nomeado FUN_TEE_NAR_009,


e refere-se ao registro da fala da anciã Teresa Maria do Espirito Santo, do sexo feminino, com
idade de 67 anos. A coleta de dados foi realizadoa em 17/05/2015, às 11 horas da manhã, no
Território Fulni-ô/ Ouricuri. O tempo de captação de áudio e imagem é de 13 minutos e nove
segundos. Os dados de áudio foram transportados para serem transcritos no Praat. Os arquivos
de áudio e vídeo foram sincronizados no aplicativo ELAN.
Teresa Maria no passado era mãe solteira. Lutou muito para criar os seus dois
primeiros filhos, trabalhou na roça e na arte do trançado de fabricação de esteiras, bolsas e
vassouras. Nos tempos de extração da matéria prima, a palha, chegava também até a dormir
nos locais das serras que se encontram na TI Fulni-ô para extrair uma quantidade de feixes de
palha para transportarem para a aldeia. Mas não só ela era designada a essa tarefa. Vários
57

grupos de homens e mulheres se organizavam rumo à “tiragem de palha”. Depois dessas


atividades, mesmo com tantas dificuldades, eles voltavam para as suas casas alegres por terem
conseguido realizar esse trabalho, um dos fatores de mudanças econômicas na aldeia que
permitia a eles comercializar. Ainda que não houvesse muita procura por esses artesanatos,
conseguiam vender mesmo que pouco para assegurar algo para suas famílias. Nesse tempo, a
saída deles era na madrugada de terça feira. O resto da semana rasgavam as palhas, secavam,
produziam vários tipos de artefatos da sua cultura.
Teresa Maria é mestra nos cânticos do Toré. Desde sua adolescência, foi instruída
pelas velhas com as melodias do Toré. Nos anos 90 ela, junto com seu parceiro Abdon dos
Santos, o criador do grupo cultural Unakesa, saíam com aproximadamente 30 índios Fulni-ô
para disseminar amostras de cânticos e danças típicas da cultura nativa em espaço culturais e
escolas da região do Recife. Nesses eventos, além de poderem disseminar o entendimento
sobre a cultura do nosso povo entre os não índios, obtinham cargas de alimentos para ajudar
muitas famílias na aldeia.
Veremos agora, na visão de Teresa Maria, os comentários da sua narrativa cheia de
sentimentos da nova realidade do povo, os seus agradecimentos por ter superado os entraves
durante sua vida com os velhos do passado, e ter conseguido chegar até nas melhorias e
mudança do povo Fulni-ô.
Como tantas outras que compõem esse trabalho, criamos um tema central de acordo
com a sua história de vida, também voltando a suas lembranças dos velhos do passado.
O nome dado ao relato de Teresa Maria é “Yatxtxo Khiahe” (Nossa vida era assim).
Refere-se aos tempos que viviam na região de Águas Belas, cercados pelos brancos. A vida
era simples, viviam do pouco que conseguiam pra sobreviver. Nesse período ainda não
existiam tantas facilidades que hoje existem na aldeia Fulni-ô. Um exemplo disso é a própria
forma da educação e a espontaneidade de aprender o idioma, sem esforço de ir à escola. O
exercício da oralidade nativa era predominante nesse tempo. Ela lembra e informa dentro
deste trabalho que já pequena falava Yaathe. A língua estava mais ativa mesmo com toda a
presença dos não índios e as truculências do passado colonial que afetou o nosso povo. A
curiosidade de menina na época ganhou posteriormente na sua adolescência a ideia de
entender o que as velhas de sua família falavam. No seu percurso com essas velhas, ela
conseguiu reunir conhecimentos relacionados à realidade do seu povo. O mundo à sua volta
foi explicado em concordância com os ensinamentos das anciãs do seu passado.
Em todas as narrativas, demonstrou-se a afirmação dos velhos do passado. Eles são
declarados o esteio da cultura do povo Fulni-ô. Assim, muito do que se tem visto no espaço
58

cultural indígena é fruto da formação em um meio social particular. Existe o caminho dos
saberes que têm que ser assimilados pelos aprendizes do grupo para dar conta de viver a vida
na aldeia. Isso fica claro quando Tereza Maria expõe nesse trecho o seu esforço e dever das
velhas para garantir a formação dessa índia.

Nema i sesa etho klilane fliawa sato ke i txhatnelhaka de Yaathelha


saathethite.

Eu vivia procurando os que tinham mais conhecimento do que eu da


língua. As velhas me ensinaram a falar a língua.

É incomum, para Teresa Maria, essa nova forma de os jovens adquirirem um novo
hábito, o de focar sempre nos estudos dos não índios e absorver uma educação que se
distancia da forma vivida por ela. Ela mostra, de certo de modo, os dois contextos, a educação
de antes e agora. Os jovens estão influenciados por esse novo modo de pensar dos outros, os
estudos e língua dos não índios fazem com que esqueçam os repasses da cultura nativa. Isso
na verdade se configura com o contato negativo da cultura Fulni-ô, que está sendo
pressionada por outra cultura. Ou seja, a cultura de nosso povo, por muito tempo veio
perdendo espaço para português. Muitos velhos na aldeia estranham esse costume alheio. Mas
ela garante que ao buscar a auto-afirmação, o Yaathe, a língua dos Fulni-ô, pode fluir dentro
dos jovens, que poderão aprender o idioma. Isso vai depender do esforço coletivo, procurando
os conhecimentos do povo.
Conforme observamos na narrativa de Teresa Maria sobre a igualdade e humildade
dos velhos do passado, era uma dura tarefa sobreviver em meio às dificuldades intensas do
sertão onde eles viviam. Depreciados pelos ditos civilizados de Águas Belas, buscavam nesse
meio sobreviver e tentar arranjar algo pra vestir. As velhinhas conseguiam, mesmo com esses
entraves, arranjar algo para vestir suas crianças, rapazes e moças. Às vezes descosturavam
suas próprias roupas para poderem se cobrir. Tudo que conseguiam era dividido entre eles. A
partilha era mais envolvente e efetiva nesse tempo. Vemos abaixo um trecho desta narrativa
de Teresa Maria, quando fala nos velhos do passado:

Nema txhana sokhlokodonkyalha, oote tetxdjonkyalha sato, yake


fekhlatwa holhaka de sake xinitey i kexalha so toonawa saekhlete. Ya
toonawa, tha txhua toonawa te tha saekhleka takanema, txhua edutiwa sato
59

ke tha koxte khia. Nema nehode, nehodeke, unilhaka dehe, ama ekhde?
Nema i nelhaskawdotkya hle de. Nehodeke i tha yoonelhaka teka de.

Aqueles tempos passados, aqueles que passaram, os velhinhos,


andavam em vários lugares para conseguir algo. Quando conseguiam
alguma coisa, eles dividiam com os outros necessitados. Eles faziam assim,
sabe? Eles não faziam as coisas só para si. Eu agradeço tudo isso que vi
dos meus antigos. Nós não somos como os privilegiados. Nós não somos.
Porém estamos melhor agora, graças a Deus.

As adversidades nesse tempo levavam muitos velhos a se desdobrarem para conseguir


sobreviver em meio à seca e ao pouco que a natureza oferecia a eles. Teresa Maria retorna ao
seu passado, junto a sua irmã mais velha, que não se encontra mais viva, e ao velho Vicente.
Eles saíam pelo mato para observarem os urubus que posteriormente iriam levá-los aos
alimentos. Era um costume entre eles olhar para o céu para ver se o tempo iria oferecer algo
pra eles, no caso as reis mortas que os brancos posseiros criavam na TI Fulni-ô, e que
morriam por causa da seca. Isso era o que possibilitava que eles tivesem carne na
alimentação. Os urubus garantiam a comida do povo. Era uma festa quando o céu estava
repleto de urubus, pois era sinal de fartura, ou melhor, era garantia de comida nas casas da
aldeia. Todos repartiam essa comida. Teresa Maria vê que muita coisa foi mudada durante os
tempos, o costume às vezes de só pensar nas coisas pra si é fato, um vírus da ganância do
homem branco que atingiu algumas pessoas na aldeia.
Nas lembranças dessa índia, vemos que a sua narrativa é carregada de seu passado,
que é contraposto a esses novos tempos. Ela teve pai mas não foi ele que a criou, foi criada
junto com sua irmã pelo companheiro de sua mãe, Finda. E a sua velha avó ajudou a criar as
duas, junto com seu parceiro. Na vida dela junto aos seus parentes predominava um ritmo
harmônico e tranquilo, sendo a única preocupação o seu sustento. Mesmo os que não
conseguiam algo para sobreviver, recebia parte do que era conseguido, por meio de partilha
entre eles. Ninguém poderia negar algo nessa época. Era uma regra de união que fazia parte
do modo simples, tornando-os iguais dentro da coletividade.
É uma mensagem que muitos velhos, como Teresa Maria, destinam aos jovens que
buscam entender os costumes dos nossos antepassados. A orientação que observamos nessa
narrativa pode iluminar as mentes de muitos índios na aldeia, com discursos que carregam um
sentimento de que falta algo entre nós, que podemos buscar e descartar esses atos estranhos
60

que predominam nas mentes influenciadas pela cultura não índia. Hoje a cultura do branco de
certa forma é chamativa, atrai outros povos, podendo ter efeitos negativos no futuro de uma
comunidade.
Vemos boa parte dos povos indígenas trabalhar para revitalizar suas tradições e língua.
É nesse caminho que Maria Teresa e muitos velhos prende a nossa atenção em seus relatos
para termos consciência do perigo em que estamos no que diz respeito ao enfraquecimento do
Yaathe.

4.2.10 Narrativa 10: FUN_ IVL_NAR_010

O décimo arquivo de registros de narrativas foi nomeado FUN_IVL_NAR_011 e


apresenta o registro narrativo da anciã Ivanilde Lúcio Ribeiro, do sexo feminino, com idade
de 63 anos. Foi gravado na Aldeia Fulni-ô/Sede, na Escola Indígena Fulni-ô Marechal
Rondon, em 28 de agosto de 2015, às 13 horas e dez minutos, com uma duração de 10
minutos e 35 segundos.
Ivanilde, uma das índias consagradas na educação escolar indígena do povo Fulni-ô,
faz parte de equipe pedagógica na escola, é coordenadora pedagógica do Yaathe, língua
materna. Anteriormente, passou em um concurso na prefeitura e começou a lecionar nas
escolas da cidade. Com o repasse da oferta da educação escolar indígena para o Estado,
começou a sua experiência em atuar em seu próprio povo. Ela trabalhou duro para conquistar
os seus objetivos.
No trecho que transcrevemos a seguir, ela fala também dessa época de vida dura.

Anin… Yatxtxo, yakhtowa txtxo khia teya. Ya dutilhakke khia. Nema


itxtxo khiahe osohe iso sato yakhtowahe, wintowa sato. Winkya dodwahe
toona xinete, ya khtowa tai. Nema oso de uxine tha khtowa ke. Nema
ikkalhama khia, itookhethawa tole itookhethane thoolhakase kefe tuy. Nema
iso sato wapela thatti, djokahe unima wapela thatti. Nema tha uni
itookhetha nelhaka de: Aosehe wapela thatti owa lay, laladonkya ekhoho ke
tha khanelhaka ta feetone ya kefe ksahehe, nawde te ekhdesehe. Nemahle
ikkalhakke khia isi tuy tha ikhanelhaka. Djolhaka. Nema isi nelhaka de:
Ooke akindodete awde oode thaa kte, aokahe wapela thatti. Nema djolhaka.
61

Itookhetha sato, itkha ke djaka iilhaka, dilhaka tha ilne sakhninte.


Nemahle itkha kilkya noma hle, setsnehe tuy djoka otxhaytowa dotka te
wapela ekhdesehema. I seya neknoman, i ekhdeka ta ilne tsa dodwase.
Unima itxtxo itxasehema ta ixilhaka. Itkha kilman hle wapela ehesa te i
saykhleman, ikhlankya noknoman nema ikhlankya noknoman. Unima hle i
feytonkya, anin, sekeyniho sato, sakeyniso sato de Yaathelha te tha tkhante.
Ieekhdeka nawde te nelhawa doddohe. Thake i plendenkya lahele tha tle.

É... Nosso jeito, o jeito de nós todos era difícil. Porque éramos muito
pobres. Então minha vida e a de todos os meus irmãos, somos sete irmãos.
Não é mentira a palavra que estou dizendo, a quantidade. Eu sou a caçula
deles. Aí quando eu era pequena, meu pai junto com minha mãe, eles iam
para a roça. E meus irmãos diziam: hoje eu vou estudar. Aí meu pai dizia
assim: Você vai estudar mas vai colocar enchada na mão para trabalhar
também é na roça, que você vai saber de tudo. Aí porque eu era pequena
me colovavam para a casa de minha avó. Eu ia. Aí minha vovó dizia: para
você não ficar sentada aí, vá para a escola. Aí eu fui.
Meus pais, eu tinha raiva e pensava que eles estavam me fazendo o
mal eu me afeiçoar. Assim, quando eu fui me desenvolvendo, fui estudar e
aprender em outras cidades no meio dos brancos. Quando eu fui ficando
moça, eu sei que isso não me fez o mal. Hoje eu estou aqui, para chegar
onde eu cheguei. Quando eu avancei com os estudo mais graduados, fui
ficando velha. Hoje mesmo eu trabalho com professores e professoras, com
o nosso idioma, sou a coordenadora deles. Eu não vou dizer que sei de
tudo. Eu aprendo com eles também.

Hoje mantém-se ainda no cargo, o que fez por merecer, diante de seu empenho com o
desenvolvimento pedagógico do ensino da língua. Sempre orientou os seus professores a
virem efetivar uma metodologia especifica para o ensino do Yaathe Fulni-ô. A língua Yaathe
encontra-se atualmente na matriz curricular das escolas da aldeia Fulni-ô, tendo sido
reconhecida pelos órgãos educacionais do Estado de Pernambuco.
No texto FUN_IVL_NAR_011, “Yatxtxo khia Teya” (O Nosso Jeito Era Apertado),
ela relata que muito antes a vida dos Fulni-ô era apertada, o sofrimento, por causa das
questões econômicas, frustrava a vida dos indígenas, dentro da aldeia sede, e em torno do seu
62

território, onde também se localiza o Ouricuri. Os índios passavamn três meses de retiro
religioso e não tinham meios o suficiente para se manter diante de algumas estiagens
prolongadas. Mas no ano bom de chuva os o Fulni-ô podiam fazer os seus roçados e garantir
os seus alimentos. Com isso, muitas famílias passavam por aflição e insuficiência de
alimentos. É angustiante nos depararmos com essa lembrança de Ivanilde e sua família de sete
irmãos. Ela via seus pais e seu irmão em tempos de chuva saírem para fazer os seus roçados.
A tarefa nessa época era de todos. Quem tinha mais filhos na família, era de certa forma
muito vantajoso trabalhar na roça. No entanto, para alimentar a todos, o trabalho tinha que ser
duplicado.
Quando a anciã era criança, tinha que ficar na casa dos avós. Seus irmãos maiores
tinham de dar duro e alguns até, quando seus pais chamavam para o trabalho, falavam que
iam estudar. Mas o pai seguia dizendo que os filhos poderiam estudar, mas tinham que
também trabalhar com a enxada. Nas suas lembranças, Ivanilde reflete sobre a dureza de seu
pai e de sua mãe. Eles tinham que conciliar e manter a educação e compromisso de trabalho
entre seus filhos, visto que, para seu pai, trabalhando na roça eles iriam obter o conhecimento,
no sentido de dar o sustento aos seus futuros filhos. A regra era posta para eles seguirem em
frente com seus trabalhos. Mesmo ainda pequena, na casa, sua avó, para ela não ficar sentada
sem fazer nada, levava ela à escola para aprender a ler.
Vanilde se irritava com a atitude do pai quando ele a deixava na casa de sua avó por
ser mais nova, mas foi isso que conduziu sua história de vida, no desenvolvimento dos
estudos. Estudou em outras cidades, junto com os brancos. Assim, ela viu que os estudos não
lhe fizeram um bem em sua trajetória. Conquistou uma vida diferente de seus irmãos, pôde
trabalhar por muito tempo como professora, sendo remunerada pelo seu trabalho. Atualmente
ele é coordenadora de ensino da língua Yaathe, repassa as orientações aos seus professores e
tem um relacionamento bem forte com seus colegas e com a própria instituição Escola
Indígena Fulni-ô Marechal Rondon, considerando a escola como sua segunda casa.
Nos momentos de estresse em sua residência, como considera a escola sua segunda
casa, segue para uma “salinha” de coordenação para aliviar seus pensamentos e pedir a Deus
para chegar com muita saúde a sua velhice.
A história de vida no relato de Ivanilde nos faz compreender o seu passado com seus
familiares e os seus antigos parentes.
Pergunto também a Ivanilde se ela já teve um envolvimento com o trabalho de palha.
Ela informa lembrando que se sentava na esteira com sua mãe no começo da noite e faziam
essas tarefas, produziam diversos trabalhos de palha e outros artefatos de madeira e sementes.
63

Atualmente a sua vida como coordenadora impossibilita de fazer esses trabalhos com o
artesanato, isso por conta do seu tempo estar totalmente dedicado à educação. Além disso, a
sua condição de idade não permite que acompanhe todas essas atividades, mas carrega ainda
em sua memória essa prática nativa.
Relembrando o seu passado com sua família na casa de sua mãe, ela conta que os
brancos de fora chegavam em sua casa para olhar os seus trabalhos e comprar. Era sinal de
que as coisas estavam melhorando, que eles poderiam garantir outras rendas com as vendas
dos artefatos. A vida de lá até aqui foi mudando e eles, com pensamento de melhorias,
puderam se organizar, diante dos trabalhos da roça e as vendas de suas artes, apesar de não ter
um comércio certo. Essas duas rendas garantiram o sustento de muitas famílias nessa época.
Hoje em dia, em comparação oo passado, a vida foi melhorando, estamos bem.
O relato dessa mãe, índia e profissional da educação Fulni-ô, rememora os passados
vividos de sofrimentos de seus parentes. Doi em sua alma falar sobre esse assunto, pois eles
viviam sofrendo, segundo as histórias de sua avó: “Aí os brancos davam roupas, aquelas
velhas, em cada uma delas, aí eles corriam para o Ouricuri”. Nesse trecho, ela informa que
andavam muito pelas cidades vizinhas, sofreram por nós. Dentro do sofrimento nunca
deixavam as práticas do ritual do Ouricuri de lado. Isso é muito significativo dentro dos
relatos de Ivanilde. Mesmo com todos os entraves da vida dos nossos antepassados, eles
mantinham suas tradições. Hoje o Ouricuri é fruto da sua manutenção e preservação por
várias gerações.
A transformação de modo de vida amarga, de antes e agora, ligada às melhorias da
comunidade, não afetaram a figura dos índios Fulni-ô, resistiram aos tempos sofridos e as
tentativas de massacres de sua cultura. Pelo empenho de equilibrar o sustento de sua cultura
étnica desde o passado, asseguraram os seus custumes, mesmo com a presença próxima da
cultura não indígena local. Desse modo, para se assegurar culturalmente, conservaram dentro
de suas memórias uma especie de “fronteira cultural”. Só os membros do grupo podem
transitar nesse espaço. Isto é, ocultaram boa parte de suas práticas ancestrais dentro do
Ouricuri. Isso permitiu que eles confrontassem toda a realidade vivida.

4.2.11 Narrativa 11: FUN_ MAL_NAR_011

Apresentamos o décimo primeiro registro de narrativa, que foi nomeado


FUN_MAL_NAR_011.
64

Este registro contém a narrativa da anciã Maria de Lurdes de Lima, do sexo feminino,
com idade de 60 anos. Foi coletado na na Aldeia Fulni-ô/ Sede, em 22/03/2016, às 15:20 hs,
e teve uma duração de 04m47s.
Iremos, antes de analisar o relato histórico de Maria de Lurdes Lima, comentar acerca
de sua função social no povo, da sua luta como trabalhadora. Desde algum tempo, ela
contribui para o povo como voluntária da rádio Fulni-ô FM, com o programa indígena Fulni-
ô. É uma comunicadora excepcional do idioma Yaathe. Fazem parte de seus comunicados
histórias, orientações e conselhos para o seu povo. Ela mantém a prática do uso da língua
Yaathe, atendendo aos que a procuram para conversar e manter, assim, a língua viva. Ela
sempre fez isso na sua própria casa, mas descobriu o rádio como uma ferramenta fundamental
para que todos pudessem podiam ouvi-la, conseguindo assim atingir o seu objetivo de
difundir a sua riqueza cultural, poder tocar na consciência de toda a comunidade. Por conta
disso, sua fala multiplicou, alcançou a maioria das casas diante, praticamente todos ouvem o
seu programa e é bem aceito na aldeia Fulni-ô.
Esa índia está presente na vida de boa parte do povo. Maria de Lurdes Lima teve
ensinamentos de seus pais e avós. Formada nos saberes do povo Fulni-ô, tem conhecimentos
que ultrapassam as nossas expectativas. A sua fala descreve a sabedoria que foi obtida de seus
ancestrais.
Intitulamos esta narrativa de “Uunima yake dwawa dwaskalha khahlede” (Hoje não
falta nada pra gente). Identificamos como relato que percorre sua trajetória de vida, nas fases
de criança, jovem e adulta. A narrativa de Maria de Lurdes de Lima mostra a realidade da
vida do povo Fulni-ô, que hoje está mais facíl. A melhoria dessa fase foi conquistada em
paralelo ao tempos anteriores, na região do município de Águas Belas. Sobreviver nesse
tempo era verdadeiramente complicado por muitas questões.
A anciã Maria de Lurdes de Lima lembra deste período onde a insuficiencia de
sustento inquietava todas as famílias, mas a sua família tinha um diferencial a respeito disso:
seu pai era policial em outra cidade. Conseguia mantê-los enviando recurso para sua família
se sustentar. Mesmo assim, Maria de Lurdes e sua mãe, para contribuir com a incumbência de
seu pai, ajudavam a completar o que era necessário. Trabalhavam fazendo artes do trançado
da palha.
Vejamos um trecho da sua narrativa.

Ya txtxo khyankyake klila. Klila wati lha khiaka he tha ho lha khia
foway khoxkya txti. Away tha holha khia txhua tha khodjo te sayonte
65

seekhama otxhaxkya dwalha khiakke. Uunima yake dwawa dwaskalha


khahlede. Ya khtoawankyake ta ke otxhaxkyanse. Oso lwa ta ke
otxhaxkyanse. Nema i djoa hankya de futxia hante txhua setutxialha hesa
ke. Yaadedwa yasa sitha ke kindoa lwa he ta ke otxhaxkya twa hle. Ta
netnelhake txhana ya ke hesalha. Nema yawka de eetea nidwa ke, ya
kehawte. Ya ho lha khiake saahnite. Ooya dwa lha khia, ya ho lha khia
uliay, ooya fliwa sakhleka yooate.

Nossa vida era dura. Era mesmo duro, pois eles andavam pela serra
tirando palha. Eles andavam por aí com aquele trabalho deles, trocando
por comida porque não tinham dinheiro. Hoje não falta nada pra gente. E
todos nós temos dinheiro. Até eu tenho dinheiro. Então agora eu só vou ao
banco pegar dinheiro. Até a criança na barriga da gente já tem dinheiro.
Isso é uma graça de Deus. Aí nós andamos no fácíl, comendo. Que a gente
andava no sacrifício. Não tinha água, a gente andava pelas cacimbas para
conseguir um pouquinho de água.

Verificamos na história narrada por Maria de Lurdes que uma das apreensões maiores
dos antepassados era claramente matar a fome. Lógico que se alimentar é esencial aos animais
e ao próprio ser humano, mas às vezes, nesta região, a problemática de seca impossibilitava
que eles conseguissem até isso, ainda mais porque os brancos ocupavam seus territórios, as
nascentes das serras. Uma série de fatores fazia com que os nossos antigos não melhorassem
de vida. Os trabalhos que faziam trocavam por alimentos. Atualmente, segundo a anciã, essa
situação vem mudando significantemente em termos econômicos. No seu relato, ela afirma
que “temos inclusive dinheiro nos dias atuais”. Ela observa que “até a criança na barriga da
gente já tem dinheiro”, melhoria que chegou na aldeia através dos programas assistêncialistas
do antigo Governo Federal.
No relato de Maria de Lurdes, encontramos histórias correlacionando a dura vida dos
nossos antepassados com as facilidades que a aldeia Fulni-ô tem hoje. Ela descreve em seu
relato de experiência que, de certa forma, o fato de o povo ter sido beneficiado está sendo
apreciado pelos jovens, pois não está faltando nada pra eles. Antes tinham que batalhar para
comer e beber, saindo para as cacimbas em busca de água. O trajeto era difícil, pois tinham
que andar quilômetros para encontrar água, distante da aldeia sede e do Ouricuri. Mas essa
66

mudança deu-se por muitas lutas do povo no seu espaço territorial, sempre procurando
afirmar sua identidade étnica.
As transformações dos Fulni-ô, de acordo com o relato de Maria de Lurdes, nos
mostram a persistencia dos nossos ancestrais em vencer as barreiras encontradas pela vida,
conquistando a serenidade que tanto lhes faltava. Nesse caso, ficaram para trás a agonia de ter
que andar à procura de alimentos, o qual também não era fácil de encontrar. O contraste entre
essas épocas é grande, como vemos nesse trecho dessa anciã: “A gente comia comida ruim.
Hoje vocês escolhem. Eu só quero comer isso, eu só quero comer aquilo”.
Antes eles não tinham a opção pelo termo preferir, não tinham escolha de comida em
comparação aos jovens de agora. A vaca morta que encontravam no mato, quando os
posseiros de suas terras criavam gado, era o alimento comum. Eles achavam e dividiam como
todos. Sofriam, se medicavam de acordo com seus conhecimentos de cura, porque a
alimentação era desfavorável. Assim, muitos andavam na época do SPI nos médicos, mas
nunca dispensavam a riqueza da medicina tradicional que os velhos praticavam. Essa relação
é inerente e faz parte do contexto sociocultural dos Fulni-ô.
O mais interessante nas narrativas são os conteúdos que elas transmitem. Também é
importante que essas narrativa desses anciãos tenham sido registradas e possam ser
submetidas à análises de estrutura, até mesmo em trabalhos de comparação com outras
culturas, o que não é o objetivo do presente trabalho.
Entretanto, um objeto fascinante de observação nos textos é a própria língua, ou seja,
os modos de dizer, a forma como a fala se organiza, as estruturas qeu não percebemos sem
um estudo mais aprofundado. Embora não tenhamos selecionado um aspecto específico da
língua para estudar mais profundamente, levantamos e listamos alguns fenômenos que
consideramos. por um lado, bastante interessantes quando refletimos sobre eles e, por outro,
válidos de estudos mais esclarecedores sobre suas funções, estrutura e uso.
Esse o assunto da nossa próxima seção.


67

SEÇÃO 5: OBSERVAÇÕES SOBRE A LÍNGUA: ESTRUTURA, FUNÇÃO E USOS

Nesta seção, levantamos alguns fatos da língua Yaathe observados na fala dos anciãos
e os comentamos. Não nos deteremos em uma análise aprofundada dos aspectos levantados,
mas acreditamos estar contribuindo dessa forma para posteriores pesquisas sobre a língua.
Esses fatos aqui observados são principalmente aqueles ainda não descritos em
trabalhos anteriores. Listamos os fatos, damos exemplos e fazemos observações sobre eles,
levantando, sempre que possível, hipóteses que poderão ser testadas posteriormente.

5.1 Gramática

- [ˈhe]
Na fala dos anciãos Fulni-ô, notamos a presença de uma forma [he] que não
corresponde ao morfema de tempo futuro homônimo porque ocorre depois de uma forma
verbal que significa aspecto imperfeito no passado.
Apresentamos a seguir os exemplos. O primeiro exemplo é uma sentença em que [he]
é morfema de tempo futuro e já está descrito em vários trabalhos sobre a lingua. No segundo
exemplo, temos uma sentença no passado imperfeito, encontrada na fala de um ancião.11
1)
[tʰa tʃkʲaˈhe jaˈtʃtuj ˈke]
Tha txkyahe yatxtuy ke.
Eles virão para nossa casa.
(ROB)

2)
[tʰa tʃi kʰiaˈka ˈhe tʰa ˈʃi kʰiaˈka toˈwe tʃikˈke saːʃikˈte sõːdõˈmãwa]
Tha txi khiaka he tha xi khiaka towe txikke saaxikte sondomawa.
Eles vinham e ficavam se aquecendo junto do fogo de manhãzinha.
(ROB)
Observa-se uma diferença entre o morfema /-he/ que marca futuro e o morfema /ˈhe/
que ocorre depois de uma forma no imperfeito passado em termos de distribuição, mas


1111
Seguimos aqui a transcrição fonética, incluindo acento de palavra, proposta em SILVA (2016). A escrita
ortográfica segue os padrões propostos pelos professores de Yaathe da Escola Estadual Indígena Fulni-ô
Marechal Rondon, que se baseiam nos tabalhos de COSTA (1999) e SILVA (2011, 2013, 2016).
68

também em relação ao significado, pois os mesmos anciões não fornecem um significado para
essse elemento.
Uma possibilidade de atribuir significado a esse /ˈhe/ seria considerá-lo como um
marcador de focalização, conforme exemplo a seguir, onde ele ocorre com uma forma verbal,
mas sem valor de futuro.
3)
[nekeˈsade tʃtʃajaˈdej i tʃkʲaˈhe i ˈtsfõːte]
Nekesade txtxayadey i txkyahe i tfonte.
Por isso que eu venho todo dia caçar.
(JOL)

Na fala de uma anciã, aparece uma forma de expressar futuro com o sufixo /-he/
reduplicado. Essa forma é consistente durante toda a fala dessa anciã.
4)
[ˈnẽma itookʰɛˈtʰa neˈka ˈʎa ˈde aoseheˈhe waˈpɛla tʰatˈti oˈwa ˈlaj lalaˈdõːkʲa
ekʰoːˈke ta ˈkʰãne ˈʎa ta fejtoneˈte ja ˈkefe ksaheˈhe naˈde ˈte ekʰdeseˈhe]
Nema itookhetha nekalha de: Aosehe wapela thatti owa lay. Laladonkya ekhoho
ke ta khanelhaka ta feytonete ya kefe ksahe nawde te ekhdesehe.
Então meu pai dizia: Você vai estudar, mas vai botar enxada na mão para
trabalhar na roça, que você vai saber de tudo.
(VAL)

Parece, porém, que essa forma duplicada de [-he] é, na verdade a junção de dois
morfemas distintos: [he] de futuro, como já vimos, e um outro [he] que indica determinação e
que seria a forma reduzida de [heno].

- /ˈde/
As formas [de] – ou [ˈdehe] ocorrem também na fala desses anciãos sem que se
determine um significado para ele.
Sua distribuição é a mesma, basicamente, que a do morfema [de], posposição que
indica posterioridade quando segue um verbo e fonte quando segue um nome, conforme
exemplo a seguir, retirado de Costa (2013, p. 14).

4)
[ˈnẽma jaˈʧkja ˈhle ˈde hĩˈnũ ˈde]
69

Nema ya txkya hle de hinun de.


Então, depois que nós vínhamos de lá...
(ROB)

Já no exemplo 5), abaixo, o significado desse morfema permanece sem explicação


5)
[ˈnẽma lefeˈtia ewˈlĩːho ˈtʃi kʰiaˈka de]
Nema lefetia ewlinho txi khiaka de.
Aí os brancos que criavam bois vinham.
(ROB)

[de] também ocorre depois de outra forma aspectual também com valor passado, ou
seja, acabado.
6)
[ˈjawka ˈhle de]
Yawka hle de.
Nós já fomos/ íamos.
(ROB)

Observamos isso só nas falas dos mais velhos do nosso povo, de modo que os jovens
não utilizam esses dois morfemas no final.
Já [-de] no meio de uma palavra indica negação.
7)
[dʒodeˈka]
Djodeka.
Eu não vou.
(ELF)

Uma forma negativa também é [ˈdode], como em 8), abaixo.


8)
[ja ˈtʃtʃo kakˈdode kʰiaˈka]
Ya txtxo kakdode khiaka.
Nossa vida não era boa.
(ROB)
70

De toda forma, na narrativa desse sábio e dos outros velhos existe uma vasta
oportunidade de estudos linguísticos a serem realizados.

- /ˈhɛ/
Na fala de João Lúcio, bem como nas demais falas de anciãos, observamos algumas
características que nos chamaram a atenção e nos levaram a investiga-las mais
profundamente, do ponto de vista linguístico. Também, a partir dessas observações, pudemos
explicar alguns fatos da língua que não foram ainda descritos.
Na fala de João Lúcio, por exemplo, observamos que ele usa um elemento [ˈhɛ],
conforme exemplo 9), a seguir.
9)
[i ˈtʃo maˈʃi iʃˈtɔla i eʃineˈkaj ˈhɛ]
I txo Maxi ixtola i exinekay he.
Eu contar uma história do velho Maxi, viu?
(JOL)

Esse elemento [ˈhɛ] é uma partícula com valor de marcador conversacional. Ele é
diferente de [he], que é um sufixo e marca o futuro, como demonstrado em 10).
10)
[i ˈtʃo maˈʃi iʃˈtɔla i eʃĩnekaˈhe]
I txo Maxi ixtola i exinekahe.
Eu vou contar uma história do velho Maxi.
(JOL)

É importante observar que o sufixo [he], morfema de futuro, ocorre de duas formas:
[j], como em 9); [he], como em 10). O fato de ele ocorrer como [j] antes de [hɛ] leva a propor
que [ˈhɛ] é uma palavra autônoma, conforme apontado em Silva (2016, p. 113-115).

- [ˈhá̃na]
O morfema [há̃na] ou [há̃ː] acrescenta ao que está sendo dito o significado que pode
traduzido como rapidamente.
11)
71

[jeːˈsese ˈhá̃na khiaˈka]


Yeesese hana khiaka.
Em um instante, escolhíamos.
(AGF)

O que observamos de interessante a respeito desse morfema é que ele pode ser
utilizado de dois modos.
Em 11) acima, ele se comporta como uma palavra autônoma. Segundo Silva (2016, p.
84),
[...] os nomes em Yaathe, do ponto de vista gramatical, são constituídos por uma
base mais afixos. Algumas classes de nomes devem ser, obrigatoriamente,
precedidas por um clítico, que é um índice de posse. Assim podemos dizer que uma
palavra é autonôma quando ele não sofre alteração de outros agentes foneticos ou
fonemas.

Em 12) abaixo, o mesmo morfema realiza-se como uma forma presa, um sufixo
derivacional. “Os sufixos derivacionais são, basicamente, modificadores adverbiais. Eles
preenchem a posição imediatamente seguinte à raiz, modificando o sentido dessa raiz de
formas diversas, acrescentando informação nova.” (SILVA, 2016, p. 23).
12)
[a kfafˈhá̃ːkʲa ˈhle]
A kfaf’hankya hle.
Num instante, você dorme. (AGF)

- [ˈkʰiwa]
O morfema [ˈkʰiwa], ainda não registrado em trabalhos anteriores, indica uma
incerteza do falante em relação ao que ele está enunciando.
13)
[i kʰlɛˈtʃase ˈkʰiwa]
I khletxase khiwa.
Se for para eu cantar. (ARL)

- gênero gramatical
Um ponto da gramática do Yaathe que ainda precisa ser melhor observado diz respeito
à categoria gênero, sobretudo devido à diferença com o Português. Muitas vezes,
72

principalmente porque a língua não dispoõe de determinantes numerais ou nominais que


indiquem o gênero – à exceção de alguns demonstrativos –, só se identifica o gênero se o
qualificativo adjetival for flexionado.
14)
[maˈkʰaj] arco/flecha [makʰaj ftʰoˈa] um arco/flecha (MAS)

mas

15)
[baˈduki] bodoque [baˈduki ftʰoˈnẽwa] um bodoque (FEM)
(AGF)

Na gramática – assim como no léxico, como veremos adiante – há muitos


fenômenos que merecem estudo detalhado, tais como os que aqui listamos, a
partir de nossas obsevações dos textos dos anciãos.
- [sa] como em [ftʰeaˈsa] ‘à noite’;
- [ne], que ocorre tanto como raiz verbal quanto como sufixo, podendo exercer
várias funções, desde que é uma espécie de ‘cover’ na língua, bem como realizar-
se de diferentes formas, obedecendo a imposições de diferentes ordens –
fonológica, morfológica, prosódica;
- [tsa] já descrita em trabalhos anteriores como posposição, mas sem que a sua
função tenha sido identificada com clareza;
- [ma] morfema de interrogação, extremamente fluido em relação a que posição
ocupar na palavra, no sintagma e na sentença;
- negação, outro aspecto muito variável da língua, tanto em forma quanto em
conteúdo;
- processos de formação de palavras e seu uso na criação de palavra da língua a
partir de uma base do Português;
- expressões comparativas.

5.2 Variação

Há muita variação interna no Yaathe quando falado pelos nativos. A seguir,


apresentamos e discutimos alguns casos.
73

- pronúncias diferentes
[ˈtfõːte] ou [ˈtsfõːte] ou [ˈtʃfõːte]

Os exemplos de 17) e 18) são extraídos da narrativa de um mesmo falante. Isso mostra
que a variação é livre.
16)
[jaːˈdedwej awˈʃo joːˈte tʃʰuːˈke ja ˈtsfõːte]
Yaadedwa, wey, awxo yoote txhuuke ya tsfonte.
Ei, menino, venha aqui para nós irmos ali caçar.
(JOL)

17)
[ˈnẽma ˈhle kasˈke joːˈka ˈhle ˈde ja ˈtʃfõːte]
Nema hle kaske yooka hle de ya txfonte.
Aí novamente nós íamos caçar.
(AGF)

18)
[nekeˈsade tʃtʃajaˈdej i tʃkʲaˈhe i ˈtfõːte]
Nekesade txtxayadey i txkyahe i tfonte.
Por isso que eu venho todo dia caçar.
(AGF)

- [ˈlʷa] ou [ˈla]
O morfema [ˈlʷa] ou [ˈla] tem o significado de inefetividade. Dito de forma mais
direta, esse morfema muda o valor de uma expressão, indicando a sua não efetuação,
conforme podemos ver na comparação entre os exemplos a seguir.

19)
[oˈwe i kfafdotˈkʲa]
Owe i kfafdotkya.
Eu não dormi.
74

(ELF)

20)
[oˈwe ˈlʷa i kfafdotˈkʲa]
Owe lwa i kfafdotkya.
Apesar de não ter dormido.
(ELF)

Na fala do ancião, o morfema é realizado como [ˈla]


21)
[ta iˈtʰlo ˈla tʰoʃãːkʲa kʰiˈa]
Tha ithlo lwa thoxankya khia.
Até os cachorros ficaram atordoados.
(AGF)

- nawde te ou nade te
Enquanto na fala dos jovens, de modo geral, ouve-se [nawˈde ˈte] “com tudo”, na fala
de uma anciã a pronúncia é [naˈde ˈte] com tudo.

- apagamentos de vogais e de sílabas


Observamos muitos apagamentos de vogais e de sílabas. Veremos aqui alguns
exemplos em relação a isso:
22)
[ikʰowˈte]
/i ˈkʰoho ˈte/
com a minha mão
JOL

23)
[i saˈkʰow kʰaˈmã]
/i sa ˈkʰoho kʰaˈmã/
quando eu coloquei a minha mão JOL
75

- [ˈnẽma] ~ [ˈnẽwa] e, então


A realização desse morfema como duas formas diferentes parece apontar para uma
evolução histórica em que /m/ ® [w] deixando a nasalização sobre a vogal precedente, o que
não é esperado antes de [w].
Há muita variação interna no Yaathe, tanto fonológica, quando diz respeito a
mudanças de sons em ambientes que favorecem a alternação, quanto fonética, regida por
fatores externos, como postulado pela Sociolinguística. Esta é, portanto, uma área de estudos
do Yaathe que se apresenta como muito proveitosa para futuros estudos.

5.3 Vocabulário

Existem diferenças notáveis no vocabuário. Abaixo apresentaremos brevemente


alguns exemplos.

- uso de palavras diferentes


Há palavras que só são usadas pelos mais velhos. Afirmamos isso com base em que só
as notamos mais claramente quando examinamos de forma sistemática as falas registradas
para esse trabalho.
24)
a) [tʰuja] thuya pequeno
b) [tlifi] tlifi animal (qualquer animal criado por eles)
c) [jaˈlidʒo] yalidjo coisa, algo
(AGF)

- diferenças entre fala masculina e fala feminina


No léxico e na gramática da língua ocorrem diferentes formas de falar a mesma coisa,
dependendo se o falante é do sexo masculino ou do sexo feminino.
25)
Masculino Feminino
a) [kʰdõneˈfãw] [kʰdõnehleˈfãw] porém, aí, mas
(ARL) (TEE)

b) [kʰdõnehleˈfãw] [nkᵈõnehleˈfa] porém, aí, mas


76

(ELF) (MAL)

É interessante notar que a forma masculina em a) apenas foi encontrada na fala de um


ancião, enquanto a forma masculina em b) e todas as formas femininas são faladas em toda a
aldeia.
Em relação ao léxico, ainda é possível se fazer um trabalho de cunho linguístico
semântico e também antropológico, uma vez que há uma gama ampla de palavras para
designar uma mesma entidade ou conceito. Alguns exemplos desses são: comer, beber, água,
frutas, animais da caatinga, marcadores de interação, marcadores de atitudes do falante,
expressões locativas, etc.

5.4 Expressões

É muito fértil a criação de expressões na língua Yaathe, da qual podemos dizer que é
uma língua com uma riqueza metafórica.
Vejamos essa variedade de expressões para falar sobre o passado, para falar do tempo
em que eles eram crianças.
26)
[i tkamãˈʎa kʰiˈa ˈhe]
I tkamanlha khia he.
Quando eu era pequena.
(MAC)
27)
[jaːdedõːkʲamãˈʎa kʰiˈa]
Yaadeonkyamanlha khia.
Quando eu era menina.
(MAL)

28)
[i kkawkaˈsej]
I tkakawsey.
Eu era pequeno. / Eu era pequena.
(ARL)
29)
77

[jaːdedʷãːdoˈa]
Yaadedwandoa.
Eu era menino.
(JOL)
30)
[jaːdedõːkʲãːdoˈa]
Yaadedonkyandoa.
Eu era menina.
(TEE)
31)
[i kkaˈsej ˈhɛ]
I kkasey, he.
Eu era pequeno, hein? / Eu era pequena, hein?
(TEE)
32)
[i kkaˈʎãma kʰiˈa]
I kkalhama, khia.
Eu era pequena.
(IVL)

Dessas formas, apenas aquelas com a base [jaːˈdedʷa] flexionam-se em gênero:


masculino (29)) e feminino (30)). Essa observação nos leva a pensar em uma distinção que se
pode fazer entre formas verbais e formas nominais, mesmo quando a expressão está
verbalizada. Também aproxima os adjetivos mais dos verbos do que dos nomes.
Uma expressão para “ficar velha” é veiculada de duas formas. Enquanto alguns dizem
como em 33), outros enunciam como em 34).

33)
[i ˈkʰlãːkʲa nokˈno ˈhle]
I khlankya nokno hle.
Eu já fui ficando velha.
(IVL)
78

34)
[i ˈfliw noknoˈka ˈhle]
I fliwa noknoka hle.
Eu já fui ficando velha.
(IVL)

A forma em 33) só aparece na fala de uma anciã, enquanto que a forma em 34) é a
mais comun de se ouvir na aldeia.

5.5 Onomatopeias ou Iconicidade

Na expressão linguística de muitos povos indígenas, vemos formas onomatopeicas.


No nosso povo não é diferente.
Onomatopeias são palavras que lembram de alguma forma como os sons são
produzidos.
Encontramos algumas dessas palavras nos ralatos coletados.
35)
[ˈdʒõma kʰiˈa ʃdiˈʃdi ˈke ˈnẽma ˈtʃʰua muˈtʃãmtʃa ˈke i tʃaˈmã]
Djoma khia Xdixdi ke, nema txhua mutxamxa ke, i txaman…
Quando eu cheguei no Escorrega (riacho), aí naquele alagado, quando eu
cheguei…

36)
[malˈtʃi kʰiˈa ˈhe iˈsi tʃufniˈdʷa kʰiˈa ˈneho toːˈte
Maltxi khia he isi txufnidwa khia neho toote.
Era milho torrado que minha mãe pisava naquele pilão.

Na primeira sentença vemos que a palavra [ʃdiˈʃdi] representa o som de água


deslizando nas pedras. Isso fazia com que os índios escorregassem para brincar.
Em relação a [muˈtʃãmtʃa], acreditamos que também se trata de uma palavra
onomatopeica, pois se refere a um alagado, um lugar com lama. Assim, o som pode ser
produzido quando a pessoa pisa numa poça de lama, o que a impede de caminhar
normalmente.
79

Na segunda sentença, Maria de Lurdes reproduz o som da mão de pilão: [toːˈte]. Ao


pisarem milho no pilão, o som é feito pela força de quem soca a mão do pilão, que é uma
feita de madeia roliça no próprio pilão. Quando a mão de pilão bate nos grãos, produz o som
[to], criando assim a raiz para uma palavra, que pode ser nome ou verbo dependendo do uso e
da forma morfológica que acompanha a raiz.

5.6 Empréstimos

Na pesquisa realizada com os anciãos sobre suas narrativas, foi coletado dados
relevantes para diversos estudos: históricos, culturais, etnográficos e principalmente
referentes à língua Yaathe. Nesse caminho, lançamos um olhar para identificar algumas
palavras que caracterizam o empréstimo linguístico no Yaathe.
Silva (2009) afirma que “os indivíduos frequentemente carregam traços de sua língua
materna, ou L1, para a segunda língua, ou L2, que venha a adquirir” e acrescenta que isso na
verdade ocorre com a aproximação das línguas. Quando não existem determinados sons, a
tendência é o falante trazer alguns aspectos da L2 para a L1. Mas será que uma língua pode
tomar o espaço de outra? Ou essas modificações de termos linguísticos entre as línguas é
causado pelo contato de uma língua não dispor de formas novas na sua gramática? São muitas
as indagações sobre como acontece esse processo e, assim, trazemos essa discussão para o
campo da língua de nosso povo a partir do contato com português.
Quando analisamos os conteúdos das narrativas dos anciãos, percebemos muitos
exemplos de empréstimos na fonologia, na morfologia, na sintaxe e no léxico. De acordo com
Santos (2009).
O Contato Linguístico é comprovadamente um motivador para mudanças no sistema
linguístico das línguas que por alguma razão estão, ou estiveram, em situação de
contato. Essas mudanças podem ocorrer na fonologia, na morfologia, na sintaxe e no
léxico. O quanto uma língua irá sofrer modificações ou imporá mudanças na outra
dependerá do tempo de contato e de fatores externos como importância econômica e
política de um dos povos ou Nação. (SANTOS, 2009, p.14).

O que pretendemos neste ponto é apresentar esse processo de contato da língua


indígena Yaathe com a língua portuguesa e os empréstimos que a primeira recebeu da
segunda.
Alguns exemplos serão apresentados a seguir.
1) Nomes próprios
80

Antes os nossos ancestrais eram nomeados com nomes simbólicos da língua Yaathe.
Por ocasião do contato, passamos a ter no povo Fulni-ô vários nomes dados pelos
missionários: Maria, José, Antônio.
A forma dos nomes foi alterada por conta de não constar alguns sons da língua
portuguesa no Yaathe. Então o nome era modificado foneticamente: Maria passa a ser
pronunciado [maˈli] ou [maˈlia]. Tal alteração se dá por não haver no Yaathe o fonema /ɾ/ do
Português.
José passa a Xicê. Temos aqui duas alterações principais, baseadas também na
ausência no Yaathe de fonemas correspondentes aos fonemas do Português /ʒ/ e /z/. Esses
fonemas são substituídos nos empréstimos pelos fonemas semelhantes existente em Yathe /ʃ/
e /s/. Outras alterações são resultados de diferenças na estrutura da sílaba e da palavra, da
distribuição dos fonemas. (GUSSENHOVEN e JACOBSON, 2002).
Há uma série de nomes próprios que são adaptação de empréstimos da língua
Portuguesa ao sistema fonológico da língua Yaathe.
Sobre os empréstimos, dispomos de padrão de uma língua fonte e de uma língua
receptora, como explica Silva (2009): “no caso do léxico o item que passa da língua fonte
para a língua receptora, sofre um processo de re-análise, uma adequação ao padrão silábico ou
uma adaptação fonológica, na língua receptora é chamado de empréstimo”.
Eventualmente por fazer parte de um contexto onde a língua majoritária ganhou
espaço no território brasileiro, os velhos necessitam de se comunicar, estão no meio onde
termos novos da língua são cada vez mais frequentes, procuram atualmente adaptar-se a essas
novas realidades. Além disso, os velhos Fulni-ô no passado foram imprensados pela cultura
não indígena. Por isso, nos dados das narrativas, vemos que os velhos Fulni-ô trouxeram da
língua portuguesa empréstimos e os adaptaram ao sistema da língua materna, no léxico, na
gramática. Em concordancia com Gonçalves (2007),
As sociedades indígenas, por viverem num país onde a língua oficial não é a sua,
necessitam adquiri-la ou dela se apropriarem, porque a necessidade de comunicação,
seja com poderes públicos, com vizinhos e empregadores, com órgãos de
comunicação social, grupos religiosos, nas relações comerciais e mesmo na escola,
fazem com que os membros dessas comunidades precisem “entender” os vários
discursos da sociedade que os envolve. (GONÇALVES, 2007, p. 259).

Os membros de uma língua indígena, por vários motivos, tiveram que absorver
expressões línguísticas de outros grupos também indígenas, mesmo se eles estevesem
encurralados pelo português. É uma necessidade dos grupos humanos tomar como
empréstimos determinadas nomes de objetos e expressões linguística, faz parte da dinamica
81

de interação sociocultural. Santos e Albuquerque (2013, p. 8) afirmam que, “a língua é


aglutinante e dinâmica dada sua propriedade de dar significados a partir dos elementos que
precisam ser designados com o advento de novas palavras, novos elementos culturais em
contato”.
Em relação em tomar como auxílio outra língua, notamos nas falas dos velhos, dentro
de suas histórias orais, que em vários momentos traziam formas emprestadas do português,
pois se a maior parte do que se diz em Português pode ser traduzida para Yaathe, numerosas
formas não têm a tradução para a língua não indígena e tinham que ser emprestadas do
Português e adaptadas aos sons do Yaathe. Essa observação nos aproximou, digamos, da
origem do surgimento de nosso bilinguismo, a nossa atenção foi voltada para analizar a
realização do léxico do Yaathe emprestado do português. Relacionamos exemplos delas
abaixo.
1) palavras de função colocadas no meio da sentença em Yaathe
37)
[maj] mas
(IVL e AGF)

Nesse exemplo, vimos a palavra em português é modificada foneticamente, apagando-


se o [s] no final da palavra, uma realização bastante comum na fala dos Fulni-ô quando
utilizando o Português.

2) itens lexicais do português mais palavra funcional do Yaathe


38)
[alˈdeja ke] na aldeia
(AGF)

39)
[neˈka tẽːpu ˈke] naquele tempo
(ELC)

40)
[viˈzĩȷũ̃ ˈke] no vizinho
(RIM)
82

Nos exemplos acima, os sintagmas são formados por um nome emprestado mais a
posposição do Yaathe /ˈke/ ‘Locativo’.

3) empréstimo de itens lexicais

41)
[baˈduki] bodoque/badoque
(AGF)

42)
[ˈfela] feira
(ELC)

43)
[buˈlakʊ] buraco
(JOL)

44)
[kajˈpɔla] caipora
(JOL)

45)
[iʃˈtɔla] história
(ABS)

4) expressões do Português usadas dentro de um texto em Yaathe


46)
[nũ ˈɛɾa] Não era?
(RIM)

5) itens lexicais modificados tanto fonológica quanto morfologicamente


47)
[likuˈliʎa] /likuli-ʎa] ouricuri-sagrado Ouricuri
(RIM)
48)
[pĩˈȷã̃ wa] /pĩˈɲãw-wa] pinhão-DIM pinhãozinho
(JOL)
83

49)
[pɛdaˈsowa] /pɛˈdaso-wa/ pedaço-DIM pedacinho
(JOL)
50)
[ɔˈlãːkʲa] /ɔɾa-ne-ka/ hora-FAC-IND tem hora
(MAC)

Seguramente, há muitos fenômenos interessantes em termos dos empréstimos da


língua portuguesa pela lingua Yaathe, durante um convívio de quase séculos de uma história
bastante conflituosa. O que é mais importante aqui não é que a língua Yaathe tenha tomado
emprestadas palavras do Português para expressar coisas da cultura do não índio, mas que não
tenha deixado de ser falada em todo a sua própria riqueza, emprestando muitas vezes o léxico
da língua, mas adaptando-o à sua gramática.
Os empréstimos, ou o processo de nativização desses empréstimos, podem explicar
muito sobre a estrutura da língua. E por isso é um ponto que levantamos aqui para futuras
pesquisas, como fizemos com todos os aspectos apontados nesta seção.


84

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A minha relação com a trajetória de trabalhos acadêmicos em relação às pesquisas se


deu a partir do interesse de pesquisar os velhos de meu povo, isso porque eu também já tinha
um convívio com muitos deles. Procurei registrar, mediante utilização de métodos e práticas
modernas de documentação linguística, como os detentores da cultura Fulni-ô transmitem os
seus conhecimentos. Para além da documentação, que por si só constitui um trabalho de
pesquisa acadêmica, também procurei tecer comentários acerca dos registros feitos, tanto do
ponto de vista cultural quanto do ponto de vista linguístico, sob a perspectiva de membro do
grupo étnico estudado.
De início, a partir de uma perspectiva acadêmica, tive a possibilidade, em um trabalho
anterior a este, de fazer estudos de registros das memórias, pela oralidade, de membros de
meu povo, com o objetivo de observar a concepção desses membros sobre a origem de nosso
povo. O resultado deste estudo está no trabalho intitulado “História e memória oral do povo
Fulni-ô: o reconhecimento de nossa identidade”, realizado na UFPE em 2012.
No entanto, comecei a perceber que não era suficiente realizar trabalhos baseados em
documentos. Desse modo, parti para realização de produtos audiovisuais, dentro do prisma
indígeno. Utilizando o cinema como meio de expressão nesta nova etapa, conseguimos formar
na nossa aldeia o Coletivo Fulni-ô de Cinema. Atualmente coordeno a equipe de jovens deste
Coletivo e dirijo os filmes sobre o meu povo, no intuito de poder registrar e disseminar nossa
cultura para as gerações vindouras. Juntos, produzimos até o momento três documentários:
Yoonahle: a palavra dos Fulni-ô (2013); Ihiato: narrativas dos anciãos Fulni-ô (2015) e
Tedyasese: superamos os tempos (2017).
O presente trabalho sugiu de dupla necessidade: (i) aprender técnicas adequadas de
documentação linguística, para poder não apenas documentar a minha língua, a partir da
perspectiva de membro do grupo em que é falada e (ii) refletir sobre aspectos culturais e
linguísticos de fenômenos presentes em narrativas contadas por quem consideramos os
guardiões de nossa língua: os velhos Fulni-ô.
Trabalhar com os velhos da minha comunidade foi muito enrequecedor, pois ao
registrar, transcrever e comentar seus relatos e histórias, abriu-se a minha visão sobre a
construção da identidade étnica do meu povo e sobre uma série de características da língua
em si sobre as quais eu nunca havia considerado antes. Mesmo que estejamos em uma época
de grande perigo para a preservação de nossa língua e de nossa cultura – ou precisamente por
conta disso –, nosso mantém ações de resistência, algo extremamente importante para nós.
85

Contar história é uma dessas ações. Afinal, como sabemos, o ato de contar histórias não
apenas é útil para preservar diversos aspectos culturais de um povo, mas serve também para
disseminar o vernáculo.
Essa pesquisa teve por objetivo central registrar narrativas orais contadas por anciãos
da comunidade Fulni-ô, salvaguardando-as para futuras gerações. Nessas narrativas, o saber é
transportado pela língua que herdamos dos nossos ancestrais. Assim, é a partir do modo da
expressão desses velhos que podemos desvendar o nosso mundo Fulni-ô, adentrando no
imaginário das histórias narradas do nosso passado. Com isso, além de conhecermos o
passado, podemos perceber as regras de conduta de nossa cultura e o que rege a formação
social de nosso povo, uma estratégia de resistência nativa concebida pelo comprometimento
de repasse de saberes tradicionais, intitulados de sabedoria ancestral.
O aprendizado de técnicas de documentação permitiu registrar adequadaente essas
histórias narradas pelos velhos e salvaguardá-las em bancos de dados que permitirão a sua
preservação para futuras gerações. Acreditamos que esses registros serão muito úteis para
estudos diversos sobre a língua e a cultura de nosso povo. A partir disso, será possível, por
exemplo, distinguir formas de Yaathe faladas apenas pelos mais velhos e detectar mudança de
falas entres esses falantes em comparação com as gerações atuais Fulni-ô. Entendemos que a
cultura é dinâmica, do mesmo modo que a língua. No que diz respeito à língua
especificamente, podemos perceber que entre a fala dos velhos e a fala dos jovens existem
diferenças tanto fonéticas quanto morfológicas, lexicais e sintáticas. Evidentemente essas
observações precisam ser validadas futuramente em um estudo dedicado a essas questões.
Pensamos também que o presente trabalho poderá ser importante para a elaboração de
materiais didáticos, que poderão ser utilizados de diversas maneiras em nossa escola indígena.
Com transcrições das narrativas dos velhos, diversos trabalhos podem ser realizados, tanto do
ponto de vista do estudo da língua, quanto do ponto de vista do estudo da cultura do povo
Fulni-ô.
Os resultados deste trabalho, como em todo e qualquer trabalho de documentação
linguística de línguas minoritárias, tem que ser direcionado para própria comunidade e não só
ficar depositado em algum banco de dados para servir como estudos e análises linguísticas
realizadas por membros externos à comunidade. Dessa maneira, estamos seguros de ter
contribuído, com este trabalho, para a área da linguística documental, de uma maneira geral, e
para o nosso povo Fulni-ô, em particular. O registro de narrativas como forma de transmissão
de conhecimentos é essencial para que a comunidade possa se nutrir delas de várias formas, a
fim de assegurar o repasse de saberes do povo.
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Além disso, mas não menos importante, elaboramos um livro como fruto do presente
trabalho. Trata-se de uma obra trilíngue, feita a partir de todos os dados coletados para o
presente estudo. Assim, além de o povo Fulni-ô ser diretamente beneficiado com os
resultados desta pesquisa, outras pessoas de outras línguas também ganham: poderão ter
conhecimento acerca de aspectos diversos de nossa cultura e de nossa língua através deste
livro, que deverá ser publicado muito brevemente. Terão, dessa maneira, como transitar em
nosso universi, através das histórias vividas por índios Fulni-ô. É importante que se diga aqui
que, para além de nossas expectativas, além da tradução do livro em Yaathe para o português,
prevista desde o início, conseguimos também apresentar versões em Inglês de todas as
narrativas, o que dará ao volume alcance internacional.
O estudo das disciplinas de linguística em geral, e de documentação de línguas, em
particular, durante todas as etapas desse meu período de formação, foi extremamente
importante, pois foi construindo em mim uma apreciação, permitindo que eu conhecesse
métodos adequados e realizasse as tarefas relacionadas ao trabalho com segurança.
Documentando, analisando e comentando os registros das narrativas, passei a olhar e
pensar com outra ótica a minha língua, agora também como pesquisador. Refiro-me aqui
essencialmente a um aprendizado que consegui assimilar por esforço individual e por apoio
comunitário. Como consequência deste trabalho, pude fazer uma imersão em minha própria
língua e em minha própria cultura, observando sons, significados de várias palavras,
expressões linguísticas, gestos, discursos contagiantes, etc. Como acontece com o verdadeiro
conhecimento, a oportunidade que me foi dada para realizar este trabalho colocou-me a frente
de diversas portas, que desejo abrir com entusiasmo.
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