Sobre A Língua Yaathê
Sobre A Língua Yaathê
Sobre A Língua Yaathê
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA
ELVIS FERREIRA DE SÁ
Maceió/2017
ELVIS FERREIRA DE SÁ
Maceió/AL
2017
Termo de Aprovação
Defesa de Dissertação
Banca Examinadora:
______________________________________________________________
Prof. Dr. Miguel Oliveira Jr (orientador)
______________________________________________________________
Prof. Dra. Januacele da Costa (co-orientadora)
______________________________________________________________
Profa. Dra. Stella Telles
______________________________________________________________
Prof. Dr. Jair Barbosa da Silva
______________________________________________________________
Profa. Dra. Fábia Fulni-ô (Suplente)
______________________________________________________________
Prof. Dra. Luciana Lucente (Suplente)
Às três pessoas que me incentivaram desde o início da
minha caminhada acadêmica. Tatiana pelo carinho,
tranquilidade e por ter também compartilhado comigo
as noites mal dormidas, quando ia seguir na
madrugada rumo a viagem a Maceio. A meus pais,
Acione Ferreira de Sá pelo incentivo repleto de orgulho,
por eu estar conquistando meu espaço e a Marinilde
Leite (in memoriam), pelo amor desde a minha
infância.
A Januacele, pelo apoio e pela sensibilidade de
encorajar-me a seguir os estudos, onde depositou toda
sua confiança em mim nesse trajeto.
AGRADECIMENTOS
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................. 1
SEÇÃO 1: FULNI-Ô, A VOZ DA RESISTÊNCIA .............................................................. 5
1.1 UM FIO DE HISTÓRIA ........................................................................................................ 5
1.2 GUARDIÕES DE UM TESOURO LINGUÍSTICO-CULTURAL .................................................... 9
1.3 DOCUMENTANDO NARRATIVAS DOS ANCIÃOS FULNI-Ô: A RELEVÂNCIA DE
DOCUMENTAR A LÍNGUA E A CULTURA DE NOSSO PRÓPRIO POVO ....................................... 11
SEÇÃO 2: AS BASES TEÓRICAS DA DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA .............. 13
2.1 DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA: O QUE É E PARA QUE SERVE ....................................... 13
2.2 COMO SE FAZ DOCUMENTAÇÃO LINGUÍSTICA ................................................................ 15
2.2.1 O corpus de dados linguísticos primários .............................................................. 15
2.2.2 O papel da comunidade de fala .............................................................................. 16
2.2.3 As bases técnicas e tecnológicas da documentação linguística ............................. 19
2.3 DOCUMENTAÇÃO DAS LÍNGUAS INDÍGENAS BRASILEIRAS: O ESTADO DA ARTE ........... 21
2.3.1 As línguas indígenas brasileiras em geral .............................................................. 21
SEÇÃO 3: METODOLOGIA ............................................................................................... 26
SEÇÃO 4: DOCUMENTAÇÃO DAS NARRATIVAS DOS ANCIÃOS FULNI-Ô........ 31
4.1 LISTAS DE ARQUIVOS E DURAÇÃO................................................................................... 33
4.2 NARRATIVAS: DESCRIÇÃO E COMENTÁRIOS ................................................................... 34
4.2.1 Narrativa 1: FUN_ABS_NAR_001 ......................................................................... 34
4.2.2 Narrativa 2: FUN_ROB_NAR_002 ........................................................................ 37
4.2.3 Narrativa 3: FUN_RIM_NAR_003 ......................................................................... 40
4.2.4 Narrativa 4: FUN_JOL_NAR_004 ......................................................................... 42
4.2.5 NARRATIVA 05: FUN_AGF_NAR_005 ................................................................. 46
4.2.6 Narrativa 06: FUN_MAC_NAR_006 ..................................................................... 49
4.2.7 Narrativa 07: FUN_ELC_NAR_007 ...................................................................... 52
4.2.8 Narrativa 8: FUN_ARL_NAR_008 ......................................................................... 54
4.2.9 Narrativa 09: FUN_TEE_NAR_009 ....................................................................... 56
4.2.10 Narrativa 10: FUN_ IVL_NAR_010 ..................................................................... 60
4.2.11 Narrativa 11: FUN_ MAL_NAR_011 ................................................................... 63
SEÇÃO 5: OBSERVAÇÕES SOBRE A LÍNGUA: ESTRUTURA, FUNÇÃO E USOS 67
5.1 GRAMÁTICA .................................................................................................................... 67
5.2 VARIAÇÃO ...................................................................................................................... 72
5.3 VOCABULÁRIO ................................................................................................................ 75
5.4 EXPRESSÕES .................................................................................................................... 76
5.5 ONOMATOPEIAS OU ICONICIDADE ................................................................................... 78
5.6 EMPRÉSTIMOS ................................................................................................................. 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 84
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 87
1
APRESENTAÇÃO
§ 1.º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
2
§ 4.º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§ 5.º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o
risco.
§ 6.º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação
de boa-fé.
§ 7.º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3.º e 4.º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério
Público em todos os atos do processo.
( CF. C VIII, 1988).
social, costumes, crença e sua língua; enfim, tudo que foi totalmente negado desde o início da
empresa colonial dos aldeamentos, conforme executado pelos missionários.
Esse novo horizonte de conquistas dos povos indígenas veio dar voz às suas lutas
históricas, pois por muito tempo o genocídio desses povos vinha sendo velado e negado
categoricamente. Só há pouco tempo emergiu a ação do reconhecimento dos povos
originários na efetivação de direitos e respeito à diversidade cultural no país. Apesar da não
aceitação do outro, o índio, ou até mesmo os afro-descendentes, estão conquistando seus
espaços, digamos com muitas lutas. É nítido hoje, no sistema acadêmico, as “vozes
indígenas” que estão sendo representadas nos trabalhos científicos, em pesquisas de cunho
indígena, espaços esses que só eram postos para as elites dominantes até muito recentemente.
Representamos uma minoria que antes era tida como incapaz, devido a uma crença racista e
preconceituosa.
O objetivo do presente trabalho é apresentar resultados de um projeto de ocumentação
da língua indígena brasileira Yaathe. Especificamente, o projeto visou documentar narrativas
de anciões da comunidade Fulni-ô. O trabalho teve apoio financeiro da agência internacional
Gesellschaft für bedrohte Sprachen – GBS (http://www.uni-koeln.de/gbs/e_index.html), que
vêm se comprometendo em apoiar significativamento os registros das línguas minoritárias no
mundo, bem como do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), que concedeu uma bolsa de estudo para o seu desenvolvimento.
A importância de um trabalho como este é indiscutível, sobretudo quando constatamos
que a comunidade encontra-se inserida em um contexto no qual se fazem bastante fortes as
influências não indígenas, algo que sabidamente vem desconstruindo e extinguindo culturas e
línguas indígenas no mundo. Nesse contexto, documentar histórias narradas pelos anciões em
sua própria língua, o Yaathe, herdada dos seus ancestrais, é também demonstrar
reconhecimento de sua singularidade e afirmação étnica. Ações como esta de documentação
de historias e palavras do idioma que estão deixando de ser usadas pelos jovens, mas que
ainda ocorrem na fala usada por anciões, são necessárias e urgentes para a preservação da
língua e da cultura de nosso povo. O presente trabalho constitui uma contribuição neste
sentido.
A seguir, apresentamos a estrutura do trabalho.
Na seção 1, apresentamos um resumo da história dos Fulni-ô, falamos da sua língua, o
Yaathe, enfatizando a importância do registro de narrativas como forma de preservação dos
modos de fala dos mais velhos na nossa língua de herança, bem como da importância de essa
documentação estar sendo feita por um indivíduo que é membro da comunidade.
4
O que sabemos da trajetória dos Fulni-ô, aldeados desde o início da década de 1920
em terras do antigo aldeamento do Panema, remonta ao contato com os primeiros
missionários na região, ainda no século XVII.
Os registros históricos mostram que nessa localidade habitava uma nação Tapuia
subdivididas em diferentes grupos étnicos. Essas notícias dão conta, segundo Dantas (2010),
de acordo com os documentos históricos investigados, das primeiras missões religiosas na
capitania de Pernambuco. As primeiras informações sobre o aldeamento tratam de quando o
capuchinho francês Frei José de Bluerme, no final do século XVII, empreendeu a
catequização desses indígenas. Os grupos indígenas da região de Águas Belas citados por essa
época são dois, habitando duas aldeias: a aldeia de índios Carapotó, na serra do Comunati, e a
aldeia de índios Xocó, situada no vale do Rio Ipanema.
A aldeia da serra do Comunati, habitada pelos Karapotó, foi administrada pelo
capuchinho francês José de Bluerme de 1681 a 1688. A esse respeito, Pereira da Costa (1951,
p. 363) escreveu:
O nome dessa tribo de tapuias, como se colige do escrito de Elias Herckman a
respeito (1639), vem de Karapotó, seu rei ou chefe, que então a governava. Pelos
anos de 1681 a 1685 foram os Carapotós reduzidos à fé católica pelo missionário
capuchinho francês Fr. José de Bluerme (...)
Da aldeia dos Xocó, localizada no vale do Rio Ipanema, não são encontradas maiores
informações.
Porém acreditamos que, para o convívio e manutenção das suas relações sociais, os
autóctones então nômades – Carapotó, Carnijó e Xocó – nessa época remota, buscavam
lugares adequados para possibilitar a reprodução cultural e física dos seus membros. Esse
assunto é de fato uma proposta que objetiva o registro onde se discute a primeira aparição das
1
Essas interpretações dos nomes de lugares não devem ser levadas a sério sem uma análise mais aprofundada.
6
aldeias fundadas pelos missionários, as quais também, nesse caso, não foram permanentes no
rio Ipanema e na serra do Comunati, por conta da instituição de extinção dos aldeamentos em
1875 com o objetivo de fazer com que toda presença indígena desaparecesse, conforme era a
política do Governo imperial.
Mesmo assim, a interação e conflitos dos grupos indígenas na localidade por território
provavelmente eram constantes, como também a unificação dos grupos étnicos que conduziu
à formação dos subgrupos nativos. Por conta desses grupos habitarem na mesma região, eles
se refugiavam muitas vezes às escondidas para não serem apreendidos pelos brancos2. Assim,
o processo de aglomeração desses índios deu-se com mais rapidez diante da aparição
desastrosa do homem branco nesse espaço, que dizimou grande parte e conduziu outra parte
ao confinamento forçado nos aldeamentos missionários.
A história documental não narra precisamente a unificação dos grupos indígenas desse
século e nem informa como ela se deu, diante da dinâmica opressora de colonos e
missionários. Dantas (2010) afirma que foram constituídas essas aldeias na Serra do
Comunati e no Rio Ipanema entre fins do século XVII e início do XVIII.
O Aldeamento do Ipanema foi constituído a partir de fluxos diversos de populações
que habitavam a região entre a Serra do Comunati e o rio Ipanema, sendo
estabelecido a partir de duas aldeias ali existentes em meados do século XVIII,
ambas de índios Carnijó. Antes dessas aldeias, foi fundada uma aldeia de índios
Carapotó no Comunati, entre 1681 e 1685, e outra de índios Xocó na ribeira do
Ipanema, 1688. Embora não tenhamos dados para elucidar de que forma ocorreu a
junção das duas aldeias de índios Carnijó e as dos Carapotó e Xocó, podemos inferir
que, devido à proximidade dessas aldeias com outras em áreas muito próximas, e
também ao contato estabelecido com missionários, vaqueiros e escravos na região,
essas populações vivenciavam relações de trocas e conflitos num constante fluxo
entre as fronteiras das missões, das fazendas e dos povoados. (DANTAS, 2010, p.
24).
De acordo com a literatura, nesse contexto regional e histórico diversos grupos étnicos
viviam muito próximos, provavelmente por questões de semelhanças culturais, de certo modo.
E diante da ação dos não índios, que aprisionaram muitos deles, surgiu, assim, a fusão de
grupos nativos remanescentes de forma a agrupar todos e com isso miscigená-los mais tarde.
É nesse tempo que dois grupos de Carnijós, o grupo da Serra dos Cavalos e o grupo da
Serra do Comunati, surgem na história e na memória dos anciãos da comunidade, atualmente.
De acordo com a tradição oral, mais tarde esses dois grupos se unificaram em um só povo.
2
Os termos “branco” e “homem branco” serão utilizados aqui neste trabalho para se referir a não índios. Trata-se
de um termo que embora hoje em dia não seja muito acurado para descrever o não índio, o foi durante o maior
período de dizimação dos povos indígenas brasileiros. O termo ainda é bastante empregado por indígenas no
Brasil.
7
Segundo o relato de Ostílio Marques, ancião de nosso povo com seus 86 anos de
idade, sua família se denominava Fola, os Carnijó que residiam na Serra dos Cavalos. Esse
grupo veio a se unificar aos outros Carnijó da Serra do Comunati, por conta mesmo do
processo acima citado de miscigenação. Esses índios passaram, posteriormente, a formar um
só povo.
Ainda conforme os relatos desse velho, esses grupos de Carnijós passaram muito
tempo em conflitos, por conta de um jovem Carnijó da Serra do Comunati, em seu percurso
de caça, ter entrado no território dos Carnijó da Serra dos Cavalos. O jovem tinha se
afeiçoado a uma jovem dos Fola e a carregou para a sua aldeia.
Na literatura, esse episódio de roubo da jovem não é retratado como as causas dos
conflitos desses dois grupos de Carnijó. Melo (1929) e Pinto (1955), em seus estudos, por
exemplo, descreveram esse episódio como apenas uma conturbação na história dos antigos
Fulni-ô. Portanto, essas informações agrupadas à memória e história oral servem como base
para contextualizar a nossa pesquisa.
No cenário de vestígios da extinção do aldeamento, mais tarde os Fulni-ô foram
novamente impostos a outra reformulação de acordo com o Diretório dos Índios, com a
estratégia pombalina ainda no século XVIII. Por conta das misturas entre colonos e índios, a
presença indígena, antes mesmo da extinção dos aldeamentos, já vinha sendo contestada,
como informa Santana (2011):
A partir de 1835, passou-se a negar a existência de índios e ganharam vulto os
conflitos, tendo como causa a presença de posseiros brancos e negros. As
autoridades são dúbias, ora negando, ora atestando existir “um pequeno número de
índios” completamente civilizados e misturados com a população. (SANTANA,
2011, p. 2)
3
A publicação consultada é de 1927, mas Branner esteve em Águas Belas, entre os Fulni-ô, por volta de 1886.
8
Parece ser possível dizer que hoje todos os remanescentes desses povos são
reconhecidos pelo nome dado aos que permaneceram junto do Rio Ipanema, ou seja, os Fulni-
ô, que podem ter herdado muitos traços culturais dos Tarairiú, uma nação indígena que
habitava o sertão do Nordeste, do Rio Grande do Norte até Pernambuco, no início da
colonização.
9
Foi dessa maneira que se manteve por muitos anos a difusão de conhecimentos: no
meio da noite, com narração de histórias e práticas dos seus rituais. Assim, passavam a
impressão para os ditos civilizados que os Fulni-ô já estavam entregues à cultura dominante.
10
Assim, será possível propor futuramente, caso seja necessário, métodos de revitalização do
ato de contar histórias em Yaathe.
o povo Fulni-ô. É importante ressaltar que vários trabalhos importantes para a cultura e a
causa indígenas foram realizados por pesquisadores não índios. Assim, por exemplo, na área
da linguística, há um número razoável de trabalhos importantes que foram realizados ao longo
das últimas décadas por não indígenas. Poucos têm sido ainda os trabalhos levados a cabo
pelos membros das comunidades estudadas.
Hoje, frutos de pesquisas feitas por nós indígenas estão cada vez mais presentes na
academia, historicamente centrada em temas estrangeiros à realidade e às necessidades dos
povos indígenas. Pesquisar o seu próprio povo significa abrir um leque de oportunidades não
apenas para o pesquisador em si, mas também para outros membros da comunidade, que
poderão eventualmente tornar-se pesquisadores.
Nos governos anteriores essa prática de índios serem inseridos na academia era
altamente descartada. As hipóteses de incentivos políticos, uma política que só era
centralizada na obscuridade, favorecida aos gananciosos de herança colonial. A realidade de
índios nas Universidades estava tendo um êxito significativo, mas foi ameaçada com o golpe
de 2016, que, em muitos sentidos, têm apresentado e aprovado propostas de retrocessos
consideráveis. Os golpistas, que infelizmente ainda estão no poder na altura em que escrevo
este trabalho, defendem a preconceituosa ideia de que as minorias não necessitam de políticas
públicas que as incentivem a ter acesso ao conhecimento científico. Esse retrocesso constitui
grave ameaça para os direitos indígenas já conquistados. Além disso, diz respeito ao próprio
fazer acadêmico, que precisa ser menos amordaçante, abrigando perpectivas e discursos que,
embora sejam poucos comuns, são pertinentes para o trabalho realizado por membros de
comunidades indígenas.
O presente trabalho constitui, portanto, um importante passo não apenas para o seu
autor, como também para o povo Fulni-ô. Existem poucos registros de narrativas dos Fulni-ô.
O produto desta dissertação poderá ser relevante para o estudo de vários aspectos da cultura e
da língua dos Fulni-ô. Desse modo, consideramos que o trabalho que aqui se apresenta
constitui-se, de uma maneira geral, como uma contribuição para o conhecimento da
diversidade indígena no Brasil. Em particular, procura ampliar os horizontes de entendimento
da singularidade étnica e linguística dos índios Fulni-ô contemporâneos.
13
De certo modo, isso é nítido quando olhamos para o panorama das línguas à beira da
extinção. Ler esses trabalhos que descrevem essa situação de enfraquecimento da diversidade
linguística mundial é algo angustiante. Por conseguinte, é de extrema urgência documentar
essas línguas e, em alguns casos, trabalhar em sua revitalização para que elas consigam
chegar a atingir as novas gerações de grupos a que elas pertencem. A “morte” dessa riqueza é
14
algo que se caracteriza como um dano para uma comunidade, pois a visão de mundo e
conhecimentos advindos de uma língua podem ser perdidos. Em outras palavras, domínios
que só podem ser adequadamente compreendidos no idioma podem deixar de ser acessados
por parte dos seus membros. Além disso, o conhecimento linguístico por si só deixa de ser
investigado e a própria linguística corre o risco de não ter a oportunidade de desvendar as
várias características e estilo da fala de um povo.
De acordo com a UNESCO, a língua Yaathe encontra-se em risco de iminente
extinção. Uma maneira de minimizar este risco é intensificar os registros linguísticos, como é
o que propõe Drude (2006, p. 30) para línguas em risco de extinção:
Algo que pode ser feito, no entanto, é documentar línguas enquanto ainda são usadas
ou lembradas. A mesma época que vê o desaparecimento da diversidade também
nos fornece a tecnologia necessária para criar acervos abrangentes de línguas e
culturas – hoje existe a possibilidade de fazer gravações digitais em áudio e vídeo de
alta qualidade para custos acessíveis no ‘campo’, nos lugares onde as línguas e
culturas são vividas no dia-a-dia.
Existem pesquisas que apontam hoje para uma vasta diminuição de línguas em uso
pelo globo. A própria Unesco divulga esse cálculo. Segundo essa instituição, 50% das línguas
faladas no mundo estão em perigo de extinção. (UNESCO, 2017). Esse alto índice por si só
justifica a importância da documentação. Da mesma forma, existe atualmente a preocupação
de apoiar e dar bases sustentáveis para salvaguardar essas línguas minoritárias. Compreende-
se, como posto acima, que essas línguas têm um significado relevante para a elaboração de
conhecimentos e aplicação de análises linguísticas sob diversas perspectivas.
Para se conduzir uma produção de um corpus linguístico mais aceitável, tanto to ponto
de vista científico, quanto do ponto de vista cultural, é de suma importância a colaboraçãi da
comunidade em todas as etapas do processo de aquisição de informação de suas línguas.
Como essas comunidades detêm os conhecimentos culturais relevantes de muitos aspectos da
documentação, são elas que poderão definir o que pode ser documentado em suas culturas. Se
não se leva em consideração o papel da comunidade de fala na documentação linguística, é
17
Hoje, o que parece mais produtivo em uma pesquisa de documentação é deixar que as
comunidades afetadas sejam envolvidas no trabalho de documentação. Afinal, são as línguas
delas que estão em perigo. Elas devem acompanhar o registro de suas culturas, pois
atualmente a teoria que norteia os conceitos e procedimentos investigativos da documentação
permite fazer inicialmente a coleta dos dados primários, associando os falantes dessas línguas.
18
Esses registros na documentação poderão ser acessados pela comunidade de fala e por
futuras gerações da comunidade, por serem depositados também em bancos de dados
especializados em manter dados atualizados. Assim, poderão ser utilizados para auxiliar a
manutenção dessas línguas para as futuras gerações, que inclui a noção de revitalização.
Então a teoria pode obter novas formas de produção de conhecimento No registro de línguas
indígenas, já que inovações nessa área, como por exemplo a participação das comunidades
afetadas, tem um papel riquíssimo para a ciência. Essa nova conceituação está sendo
introduzida nas pesquisas de línguas em riscos de desaparecimento.
É evidente que toda ciência vive de experimentos. A documentação linguística não se
distingue nesse aspecto. Para produzir algum tipo de conhecimento algo tem que ser testado,
se se pretende ter êxito nas pesquisas, o que resulta na combinação de uma fórmula que
determina que, incluir as comunidade de fala, tornar indígenas pesquisadores só pode
melhorar o desenvolvimento das línguas para humanidade. O conhecimento científico sobre
essas línguas, então, é torna-se mais adequado ao que é mais funcional. Assim, as pesquisas
podem ser praticadas e refeitas. Ou seja, o que é conceito hoje pode ser reinventado em breve.
Nesse caso, a documentação linguística no futuro pode ter outro modelo de registro acelerado
e eficaz que possa ajudar mais rápido na segurança concreta que evite significativamente o
desaparecimento das línguas do mundo. Isso, porém, depende fortemente de uma ideologia e
de políticas favoráveis, já que, atualmente, a situação é desfavorável para os falantes nativos
que enfrentam essa realidade em seus cotidianos.
A utilidade prática da documentação escrita ou gravada pode ser verificada, por
exemplo, no fato de alguns grupos nativos norte-americanos estarem utilizando material
escrito dos séculos passados, e gravações feitas no início deste século. (MOORE e GABAS
JR, 2009). Assim, pesquisas feitas no passado, até sem nenhum objetivo prévio de
revitalização, podem agora ser incorporadas para manutenção de idiomas nativos. Na
atualidade a documentação é dirigida, entre outras coisas, para a revitalização de línguas que
estão no processo de extinção. É incalculável o dano que a perda de várias línguas causou
para a ciência, e, principalmente, para as comunidades. Uma infinidade de conhecimentos
pode desaparecer no globo. Eberhard (2013) faz um levantamento dessas perdas.
• A perda de um vocabulário rico em domínios de conhecimento cultural,
incluindo conhecimentos medicinais e biológicos, de flora e fauna. O nosso
conhecimento do mundo (a ciência) perde.
• A perda de uma cosmovisão única, com perspectivas sobre o mundo que
também são únicas. O nosso conhecimento das culturas humanas
(antropologia) perde.
19
línguas indígenas brasileiras, por exemplo, desde a época dos missionários antigos que
descreviam as línguas minoritárias de maneira tradicional, em registros que não garantiam um
estudo dos sons da fala. Hoje, a documentação de uma língua como ela é usada de fato está
sendo possível por conta da tecnologia disponível, que permite captar esses eventos da
linguagem de uma comunidade.
Neste trabalho, não nos afastamos da noção de como se forma esse corpus
digitalmente organizado, de onde partem todos esses conjuntos de registros de uma língua. É
preciso que se entenda que documentação linguística é uma árdua tarefa, pautada em
procedimentos teóricos e metodológicos específicos, constituindo-se assim como um
empreendimento científico.
No trabalho de campo, a documentação linguística, a coleta de dados primários
geralmente ocorre fora dos ambientes controlados de laboratórios ou bibliotecas, os quais são
do domínio de muitos cientistas: biólogos, geólogos, antropólogos, assim como linguistas.
Tradicionalmente, o trabalho de campo tem se estabelecido na maior parte em elicitação e
observação, com objetivo de produzir gramáticas, dicionários e textos. O linguista pode usar
uma lista de palavras ou questionário, sondar para julgamentos gramaticais, ou solicitar
traduções. Isto é frequentemente acompanhado de exploração de textos, ou seja, narrativas de
falantes, para exemplos naturalísticos. Este tipo de dados esclarece recursos lexicais e
construcionais dentro da língua, suas propriedades formais, os tipos de expressões que
ocorrem, e assim por diante.
A realidade que move a empreitada de trabalho de campo se justifica pela investigação
que em seguida produzirá sobre uma língua alvo, descrevendo seus mecanismos estruturais
em forma de gramáticas, por exemplo, que explicitam essa estrutura. O objetivo primordial é
apoiar essas línguas, é construir diferentes tipos de instrumentos, materiais sobre a língua de
uma dada comunidade de fala, auxiliando em vários aspectos para que elas não sejam
extintas. A documentação em si é viabilizada pelos estudos sistemáticos com registros das
línguas dos grupos humanos.
Vamos focar inteiramente no campo de documentação com essas novas maneiras que
possibilitam levantar hipóteses de estruturas das línguas humanas que vêm ganhando o campo
de investigação linguística. O registro de eventos linguísticos, como relacionei acima, com
gravações em vídeo e áudio, tem que seguir uma série de medidas e requisitos propostos pelos
teóricos da documentação linguística e adotados pelos bancos de dados linguísticos atuais,
como afirmam os autores Silva, Costa e Oliveira Jr. (2010), referindo-se aos cuidados que
eles próprios tiveram com a montagem do banco de dados do Yaathe:
21
em território brasileiro” (ATHIAS, 2005, p. 1), com um número aproximado de 1.300 línguas
diferentes. O extermínio de vários povos originários dessas terras resultou na redução desses
22
nacionais, que elaboram projetos de documentação e que também reconheçam essa situação
de desaparecimento de línguas indígenas, é necessário um incentivo maior para que o Brasil
venha a se tornar um país que mantém uma política consistente na conservação da diversidade
linguística dos povos originários.
O contexto em que sobrevivem as línguas indígenas brasileiras é muito desfavorável.
Por conta disso, a abertura para pesquisadores linguistas estrangeiros e nacionais nos
territórios indígenas com línguas ameaçadas é cada vez mais frequente. Já existem algumas
pesquisas de documentação linguística de uns anos para cá. Porém os povos indígenas estão
convencidos da urgência dessas ações e estão optando por apoiar esses estudos em suas áreas
para fortalecer os seus idiomas nativos, de forma que não venham a sumir. É tanto que Silva
(2009, p. 02) descreve essa situação.
Tais grupos estão também interessados em revitalizar e preservar suas línguas,
procurando, assim, reverter a situação de perigo de extinção em que suas línguas se
encontram. Preocupado com as línguas indígenas ameaçadas, o Museu do Índio,
órgão científico-cultural sediado no Rio de Janeiro (com o apoio da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), da Fundação Banco do Brasil e da UNESCO), iniciou
neste ano um grande projeto voltado à documentação de línguas indígenas
brasileiras que está sendo desenvolvido com pesquisadores brasileiros de diversas
instituições.
De alguma forma, algo está sendo feito a respeito para evitar o risco de extinção das
línguas indígenas. Na verdade, essa ação está progredindo em comparação a outros tempos,
mesmo que a empreitada no país seja impulsionada, principalmente, por agências
internacionais. Contudo, “América Latina e especialmente o Brasil têm contribuído para a
documentação linguística em posição de destaque”. (DRUDE, GALUCIO e GABAS JR.,
2007, p. 3 ). A situação de trabalho é enfrentada pelos linguistas que adentram os territórios
indígenas, em busca de suas pesquisas para a documentação. Assim sendo, informam aos
governos e à população em geral o trabalho que está sendo feito para revitalização dos
idiomas, caso a comunidade use com frequência suas línguas no cotidiano, ou apenas em
certos contextos culturais. Igualmente, apresentam os riscos de desaparecimento de uma
língua.
A tarefa de documentação tem mantido práticas bem-sucedidas, fazendo uso de um
aparato tecnológico cada vez mais apropriado para o registro linguístico e cultural de um
povo. Este aparato tornou-se familiar para as sociedades indígenas, que objetivam não apenas
a documentação, mas também a proteção dos bens culturais, como enfatizam Fernandes e
Costa (2015, p. 49-50):
Para muitas pessoas a tecnologia pode ser um verdadeiro sofrimento, quem nunca
teve dificuldade em se adaptar a novos computadores (…), quando finalmente nos
24
26
SEÇÃO 3: METODOLOGIA
povo. Com isso, alguns relatos paralelos fluíram espontaneamente em meios às narrativas
propostas.
Procuramos, na maioria da coleta de dados, deslocar alguns para um local apropriado
que não apresentasse ruídos artificiais produzidos por motos, carros, som de músicas, enfim,
fugir de tudo que prejudicaria a coleta. O mais oportuno foi levá-los justamente para o
território onde passamos três meses em retiro religioso, nos arredores do Ouricuri, pois nesse
período das coletas estávamos em outra localidade: na aldeia sede Yatilha4. Logo, foram
definidos os espaços para o registro de dados: residência dos velhos e extensões do seu
território, a Terra Indígena Fulni-ô.
A ideia original era fazer algumas coletas na mata, onde as narrativas ocorressem em
conexão com a harmonia da natureza. O ambiente propício junto às arvores da caatinga trouxe
uma tranquilidade para os anciãos, que narraram suas vivências e histórias de seus
antepassados a partir de sua visão de mundo. Outras coletas de dados foram executadas na
Aldeia sede devido à impossibilidade de alguns velhos se deslocarem, não estando, nesses
dias de coleta, dispostos para saírem de suas casas e preferiram ser entrevistados nas mesmas.
No nosso trabalho de campo, para garantir um material de alta qualidade, utilizamos
alguns equipamentos que causaram estranheza nos informantes. Tivemos o cuidado de
informar para que servia cada equipamento, procurando minimizar os impactos causados nas
entrevistas com esses mecanismos tecnológicos, e, assim, tranquilizando-os. Observamos os
preceitos labovianos, segundo os quais a tarefa do documentador é também estar preparado
para possíveis problemas na coleta de dados, uma vez que o aparato tecnológico pode causar
impacto nas entrevistas.
De acordo com Labov (1972), pode levar em torno de 5 minutos para que o vernáculo
venha a aflorar. Como o nosso objetivo era registrar dados de fala espontânea, apenas
utilizamos em nossa documentação dados registrados após 5 minutos de conversa preambular.
Apenas em poucos casos o microfone saiu do limite imposto pelas recomendações feitas por
especialistas. Houve algum desconforto de um participante com o microfone, o que demandou
uma realocação do mesmo. Isso, todavia, não prejudicou a qualidade do material coletado.
Todo o material coletado nas entrevistas semi-espontâneas com os velhos foi
devidamente organizado e, em seguida, aberto no aplicativo Praat (BOERSMA & WEENIK,
2007), para ser transcrito e traduzido. A transcrição foi feita, inicialmente, em grafia
atualmente utilizada para o Yaathe na Escola Estadual Indígena Fulni-ô Marechal Rondon.
4
Nome da morada dos índios Fulni-ô, onde todo grupo habita na mesma localidade, próximo à cidade de Águas
Belas.
29
Para a transcrição fonética, foi utilizada a fonte Unicode 6.2 (v1.5) MAC. A tradução foi feita
pelo autor. No final, tivemos três fiadas de transcrições:
• Linha 1: Transcrição Fonética (TF);
• Linha 2: Texto, que é a transcrição ortográfica (TEX);
• Linha 3, Tradução para o Português (TRA).
Anotados no Praat, esses dados servirão potencialmente para diversas pesquisas sobre
o Yaathe. Como é sabido, o aplicativo também pode ser utilizado para realizar análises
acústicas, por exemplo. Os dados anotados facilitarão o trabalho de foneticistas interessados
em realizar análises com dados espontâneos do Yaathe.
Os dados de áudio e vídeo gravados serão depositados no banco de dados do projeto
Documentação da Língua Indígena Brasileira Yaathe (Fulni-ô), que se encontra arquivado
em https://corpus1.mpi.nl/ds/asv/?0, obedecendo aos mesmos cuidados seguidos pelos
pesquisadores que desenvolveram o projeto supramencionado, ou seja, respeitando todas as
medidas e indicações propostas pela E-MELD School of Best Practice5, que vem sendo
adotadas em projetos de documentação de línguas indígenas internacionalmente, pelo Open
Archival Information System (OAIS)6, que é um modelo de referência, com padrão ISO
(14721:2003), adotado pelos bancos de dados linguísticos mais recentes, e anotados seguindo
os preceitos do Metadata Encoding and Transmission Standard (METS)7, também adotados
por bancos de dados internacionais. (SILVA, 2016).
Na seção de descrição das narrativas, descrevemos o formato e o conteúdo de cada
uma delas e tecemos comentários, buscando observar como a transmissão dos conhecimentos
acumulados na memória desses anciãos pode ter um impacto para as gerações vindouras.
Além disso, criamos um tema central para cada texto analisado. Essa concepção de se
criar um tema serviu como base para a produção de um livro das narrativas orais dos índios
velhos de nosso povo, que estava proposto em um dos objetivos do projeto de pesquisa, já que
uma das finalidades deste trabalho é a salvaguarda do idioma nativo Yaathe.
O objetivo central dos comentários é a observação de como são narrados os
conhecimentos do povo Fulni-ô, destacando-se cada relato oral, histórias passadas, mitos e
lendas do povo. Em muitos trabalhos coletados, alguns anciãos combinavam e acrescentavam
5
E-MELD School of Best Practice (http://www.emeld.org/school/).
6
Consultative Committee for Space Data Systems, Reference Model for an Open Archival Information System
(OAIS), CCSDS 650.0-B-1 Blue Book January 2002 (Washington, DC: CCSDS Secretariat, 2002). Disponível
online: http://public.ccsds.org/publications/archive/650x0b1.pdf.
7
Library of Congress, “METS: Metadata Encoding & Transmission Standard” (2007),
http://www.loc.gov/standards/mets/.
30
algumas narrativas, falavam sobre entidades da mata e água, juntamente com suas
experiências de vida. Nesses comentários, além de expormos a importância desses velhos para
a disseminação da cultura Fulni-ô, observamos que seria substancial apontarmos que eles têm
todo envolvimento com a transmissão da cultura, direcionam seus saberes para povo.
Apresentamos nos comentários feitos acerca das narrativas um breve histórico de cada
informante, como eles se organizam no seu cotidiano familiar, quais foram seus trabalhos
anteriores, atuais, ou seja, quais são os seus papeis na comunidade.
Nomeamos cada pasta com as iniciais dos nomes dos participantes, com este padrão:
“ABS_NAR_001”. As três letras iniciais indicam o nome e sobrenome dos participantes,
NAR indica que o texto em questão é uma narrativa; isso serve para uma boa identificação
quando da inserção desses dados no banco de dados do projeto de Documentação de Língua
Indígena Brasileira (Yaathe). As narrativas/relatos obtidos também foram transformados em
registros escritos, adaptados na forma de textos contínuos. Esses textos estão escritos em
Yaathe e traduzidos para o português e para o inglês. Constituirão uma coletânea de textos,
como mencionado acima.
Na seção seguinte, traremos uma amostra de cada narrativa, com uma descrição do
processo de documentação e comentários do seu conteúdo.
31
Nas suas narrativas, eles disponibilizam o seu saber para os jovens, mostrando como
sobreviveram a várias estratégias de aniquilamento, como foi o seu convívio com os não
índios, o valor da cultura e das tradições dos nossos ancestrais. Também nos conduzem a
acreditar, entre outras coisas, que são capazes de sobreviver numa relação íntima com a
natureza sagrada. Os anciãos recorrem à cosmologia e à ascendência étnica para
estabelecerem em suas narrativas o vínculo que levará o ouvinte a ter uma conexão com o seu
universo indígena. Fazendo uso dessa prática, o ancião retorna ao tempo passado. Seguindo a
viagem de cada narrativa e suas recordações, mergulhamos nos eventos passados que se
refletem em suas histórias de vida. Conforme Carvalho (2012),
Ao narrar percebemos o ancião envolto nas lembranças que o tempo lhe conferiu
como título. Em cada narrativa, uma viagem diferente por entre os rios, a terra dos
mortos e dos vivos, no cheiro trazido pelo vento, a floresta e os animais, a lua, o sol
e as estrelas, que são como o espelho fiel que reflete as histórias de vida, ou histórias
da vida. (CARVALHO, 2012, p. 28).
De certa forma, sentir essas histórias narradas desse modo acaba por ser uma viagem
importante para nós indígenas termos uma percepção plural dos espaços onde vivemos. Isso
32
ocorre com a colaboração desses velhos, que retornam no tempo quando narram essas
lembranças, em um desempenho simbólico e educativo na construção de valores
fundamentais para as sociedades indígenas. Quem descreve essa relação é Macedo (2013)
As narrativas na sociedade Krahô, como nas demais sociedades de tradição oral
desempenham uma função educativa, pois por meio delas se ensina e se preconiza
valores fundamentais das tradições desse povo. Geralmente são os mais velhos os
incumbidos de contar as histórias, sejam elas acontecimentos reais como conflitos e
dificuldades vivenciadas, ou fictícias como os mitos, as lendas. Os velhos são uma
espécie de guardiões da memória do povo, e têm portanto, a função de conservar e
transmitir essa memória.
Na subseção que segue tratamos de comentar cada uma das narrativas registradas.
anos. Este índio atualmente é monitor mestre de língua nativa Yaathe, na escola Estadual
Indígena Fulni-ô Marechal Rondon. Mas, antes de ser empossado como monitor nessa escola,
já vinha desenvolvendo em sua trajetória habilidades de compor cânticos no próprio idioma
nativo como proposta de manutenção da língua e de fortalecimento de sua cultura. Fez isso
por meio da formação de um grupo indígena chamado Unakesa, que, além de difundir os
cânticos com versos no idioma na aldeia, saíam para a capital, Recife, para exibir uma
amostra da cultura e dos seus cânticos. Esse velho observou que a língua de sua comunidade
estava vulnerável ao enfraquecimento e trouxe para sua cultura as expressões da língua que
foram incluídas em seus cânticos. Antes, os Fulni-ô só manifestavam as canções em forma
melódica como, por exemplo, o Toré8.
O registro foi feito na mata do Ouricuri, território Fulni-ô, em 17/05/2015, 11:30h.
Compõe-se de 12m26s de gravação, em áudio e vídeo. Em seguida, os dados de áudio foram
abertos no aplicativo Praat e fizemos as transcrições e a tradução.
O texto FUN_ABS_NAR_001 é uma narrativa, com um tema central “Ooya Txtxoso”
(A Mãe da D’água), mas intercalada por outras narrativas, bem como perpassada pela
memória das vivências dos Fulni-ô em épocas passadas.
Nas narrativas desse índio, a presença dessa entidade do sexo feminino é uma
retomada de uma presença forte na cultura indígena local. Ela seria uma guardiã das águas
doces que existem no mundo. Quando ele era menino, foi em suas andanças com suas avós
paterna e materna. Saíram para os lagos da região em busca de água para o banho. É nesse
cenário que o velho disse que quando era criança viu a primeira aparição de uma mulher na
beira do lago. Logo, ele informa as suas avós e elas passaram a ignorá-lo, achando que ele
estava mentindo. Mas ele tinha convicção que estava vendo essa mulher e disse: “Não é
mentira. Vá! Olhe!”. Quando elas olharam o espírito da Mãe D’água se jogou no lago. Então,
elas passaram a acreditar na criança e informam a ele que é a “Ooya Txtxoso”.
Apresentamos aqui um trecho dessa narrativa em Yaathe com sua tradução em
Português.
8
Toré dança tipica e cântico Fulni-ô, onde mulheres aconpanham dois homens no ritimo da maraca e na dança
que é tocada por outros dois homens que tocam dois instrumentos chamdo búsio, feito de madeira oca e o seu
som é extraído da taquara ou taquari.
36
Thoosedey, tatxhante, tha lkinte thooman, djo khiaka tha tole. Se takewa
tsote thookhiakke. Neknay hle, fekoman hle, ya nankya owa ooya teeke txay
fthone ewlidjonkya taka salkinte. Nema i tookhethane ke i neka hle de.
_I sa, kane, efnixi txay fthone kinse!
Nema hle:
_ Unke, yaadedwa? A winkya teka, mahe?
_I wiidode. Kane! Fnite!
E fniman hle txhutsa txay sate ooya teeke. Ama ekhde? Txhuuuuu…
Nema hle:
_ Senenkya hesa, ka! Awtsa txayhe ooya txtxoso, ooya tookhethane,
tha nese. Awtosa, ama kefe?
Observa-se que, nesse tempo, quando esse velho era criança e conheceu essa história
da Mãe D’água, eles viviam em uma busca constante por alimentos, pois novamente voltaram
ao rio em busca de peixes para poder se alimentar. A narrativa continua. As avós e um primo
na época foram pescar. O enredo se torna mais interessante quando observamos que é a Mãe
D’água, outra vez, que está presente na narrativa oral desse ancião. Ela era a guardiã dos
37
peixes de que eles tanto necessitavam. Nesse caso, ela passou a escondê-los. Isso ocorreu
quando seu tio invadiu o espaço dela dentro da água, na parte profunda do rio, que, no
entanto, segundo o velho narra, estava totalmente seco.
Logo, temos em mente que foram os sortilégios da Mãe D’água que possibilitaram ao
seu tio, embaixo da água, entender que se encontrava enxuto, que era parte ilusória por efeito
dessa entidade. Mas quando ele acordou do encanto, dentro da água, passou as mãos nas
brechas das pedras e sem entender bem o que estava acontecendo colocou a mão no peito
desse ser, pois ela a partir disso concedeu os peixes para eles.
Pelo conteúdo da primeira parte das narrativas de lendas, de que a comunidade se
apropria através dessas histórias contadas de pai para filho ou em rodas de fogueiras, vê-se
que são os velhos que difundem entre os membros da comunidade as riquezas inerentes à
cultura deste povo.
Na história contada no arquivo ABS_NAR_001, outras personagens também são
apresentadas, frutos da mesma forma de experiências de vida desse velho com suas avós. Ele
coloca suas próprias lembranças vividas no meio das lendas dos Fulni-ô.
Nessa mesma ordem, segue na memória desse ancião, a história de duas índias que,
segundo as lendas do povo, sumiram na mata e pelas serras que circulam o território desse
grupo. Uma delas sumiu, aparecendo morta nos arredores da serra. Nesse registro não temos
informação sobre qual foi a causa da morte dessas índias.
Na sequência, o ancião certifica-se de ter adquirido a totalidade de ensinamentos que
foi repassado pelos seus antepassados. Por isso, esse sábio absorveu variadas formas de
histórias permanecendo com os seus familiares idosos. No geral, destaca-se o papel das
mulheres, sobretudo das avós, na criação e educação de crianças e jovens e na transmissão da
língua. Geralmente um dos costumes na aldeia, sempre que um casal de índios vive nos lares
dos pais, é que a tarefa de educar essas crianças é de responsabilidade dos avós. Assim,
praticamente todas as crianças assimilam muitos dos conhecimentos desses velhos.
distribuir por encanação a água para as ruas do aldeamento. Mesmo com seu ofício, que
garantia o sustento de sua família, nunca deixou de exercer o seu papel de índio semeador de
de conhecimentos ancestrais. Sendo um dos sábios da cultura Fulni-ô, mantém-se disposto a
repassar o que aprendeu de seus velhos, desde que os jovens tomem a iniciativa de procurá-lo
e incentivá-lo a narrar suas histórias.
A coleta de dados foi executada frente a sua casa no Ouricuri, território Fulni-ô, em
09/05/2015, 16:08h. Compõe-se de 06m03s de gravação, em áudio e vídeo. Posteriormente,
os dados de áudio foram abertos no aplicativo Praat, onde fizemos as transcrições e a tradução
do material.
Nomeamos a narrativa deste registro como “Yooxto Toonawa Sayonte” (Vamos
trocar algo). Neste relato, o ancião relata o modo como os seus antepassados vivenciavam a
ideia de partilha e reciprocidade em toda a comunidade.
Na sequência, um trecho da narrativa traduzida em seguida para o Português.
Tha txi khiaka he, tha xi khiaka de towe txke satxhikhe sondoma,
nema otxhaytowa lefetia ewlinho txi khiaka de.
- Setsotwa, wootakma etsafane fthone setxhi kite?
Nema ya ke khlatkwa sato ne khiaka:
- Yooxto, yaadetwa, aoke owa se thuline. Nema i tole tkano yaadedwa
tkano i takkahe de luxtutwa theetxhitote.
Ufa ya txman lefetia thdonkyake ya txman. Yawka hle de luxtutwa tsa
sakanete. Ya txaka hle de luxtutwa sake nete txhutsa ekhdewna sema thlete
ya keekawate. Nema neho satoman etxtxo kaka khia, ya txtxo kakdode
khiaka. Nema nekdey tha txhufnide khiaka. Utxi lay tha txma, ta txi khiaka:
- Woxtey, neho ke nete ya khdenkya.
Quando nós chegamos lá, a vaca estava morta. Nós andávamos junto
com os urubus para tomar a carne deles para comer. O modo deles, era
bom, mas nossa vida não era boa. Eles não vendiam. Quando chegavam
com a carne, eles ficavam e diziam:
- Vão dizer aos outros para nos ajudar!
O texto toma a forma de um relato de vida, perpassando dois tempos: o passado, como
viviam coletivamente, e como os tempos eram difíceis; e o presente, onde a vida está mais
fácil, mas perdeu-se o espírito de coletividade. Ele faz um relato da vivência no passado, do
momento presente, e faz disso o seu ensinamento. As cenas são vívidas, representam a
retomada dos fatos que ilustram a memória – a busca da rês morta, a pescaria coletiva – e dos
discursos diretos, intercalados com a expressão de suas emoções.
O ancião demonstra ter um sentimento que afeta os seus princípios por conta de alguns
costumes terem sido modificados. Isso desagrada profundamente a esse velho. Ele lembra o
sofrimento daquela época e a escassez de alimentos de que seus familiares necessitavam.
Mesmo assim, independentemente de o povo viver em um meio em que os recursos da fauna
e da flora eram inteiramente escassos, pouco conseguindo, eles permaneciam na igualdade da
partilha, que definia as alianças dos antigos e permitia conviverem entre si harmonicamente.
O espírito coeso entre eles era a virtude da comunidade. Isso resultava em ensinamentos, isto
é, a norma dos seus antepassados, que era passada para outras gerações.
Esse ancião intercala em seu relato o afeto dessa vivência até os tempos dos seus avós.
Porque anteriormente tudo que eles conseguiam dividiam e trocavam com todos: “Se eles
arrumassem peixe, trocavam com os outros que tinham a farinha, ou até presenteavam os que
não saíam para buscar os seus alimentos para poder comer”. Até mesmo quando os brancos se
apropriaram de seus territórios e por eventualidade morria uma rês, os índios iam expulsar os
urubus para tomar deles a rês morta. E assim repartiam para toda a aldeia. Além disso, os seus
antepassados apreciavam mesmo o convívio social, como se fossem crianças inofensivas.
Com o contato com os não índios, há apenas pouco tempo que a situação econômica
dos Fulni-ô melhorou. A vida, que sempre foi sofrida, passou a ter uma nova perspectiva de
melhorias, com comida fácil, vestimentas e outros bens necessários à sobrevivência. Mas,
conforme Romildo Barbosa, nossa sociedade foi infectada pelo maléfico costume “branco”.
Inveja, ambição, ciúme e olho grande arruinaram o nosso modo de vida. A diferença dos
hábitos em relação aos seus antepassados, esse ancião sente na atualidade. Os jovens
adquiriram os costumes dos não índios, porque nesse sistema de convívio só querem as coisas
40
para si. Uma vida que possibilitou mais facilidade permitiu que alguns absorvessem essa
prática desconhecida na coletividade e isso foge aos princípios de nossos antigos.
Observa-se que na narrativa há um relato de indignação. Essa indignação estava
impregnada na consciência desse velho. A ocasião torna-se, assim, uma oportunidade de se
expressar em seus relatos, de desabafar para os jovens. Ele deseja que eles reconheçam que as
práticas e costumes dos outros são incompatíveis com os nossos. Mas é notório que o fato de
um costume ser trocado por outro só poderia causar estranhamento nas vidas desses idosos.
Ta seetadwa khla ewlinelha khiaka mas era ketite lahele. Fathowa lha
txman: A neholha khofean setadwa fthone futxina teeite sati ke. Neso khia.
Não era nada ta txhufnite, era ketihanate khia. Sa hle khia setxtxose neka.
Mukãwa teekhla wati nelhaka setitxtxose. I kfalse txhaka exmane do ithlo
wati. Teewkya sesa khnan, nesoga sasey etxkyase saske. Teetkha quase
aniwa nikase, poy sasey etkyase saske txtxaya so ke.
- Tote ithlo ewka hle?
- To saxidjoa hlehe ewdonkya?
Theesniknokase teekte. Poy sasey txtxaya so ke etxkyase.
41
Ela criava muita galinha, mas era para dar. Quando chegava uma
pessoa, ela dizia:
- Eita!
Pegava uma galinha para ela comer na casa dela. Era isso. Não era
nada para vender. Já ele, meu pai, fazia vassoura. Em um instante ele fazia
vassoura. Que eu ainda me lembro da cachorra que ele tinha. Ele matou a
cachorra e depois de morta ela voltou para a casa dele de novo. Ele quase
esbagaçou a cabeça dela, pois ela voltou de novo no outro dia. Que
cachorra é essa que anda por aí? Eles iam puxando, pois a cachorra depois
de morta voltou. Eles faziam isso. De tudo eles criavam.
A anciã relata o sentimento dos tempos passados, quando a pobreza era extrema e os
índios não obtinham alimentos em fartura para se sustentarem. A procura naquela época era
constante quando eles saíam em busca de alimentos para dividir com as famílias e vencerem
os obstáculos diários. O trabalho dos seus pais era só procurar o que comer e sustentar seus
familiares.
As casas eram feitas de palmas do coqueiro ouricuri: tarefa de homens e mulheres.
Com as palhas dessa palmeira fabricavam esteiras, vassouras, entre outros utensílios, os quais
não tinham um destino certo de comércio. O ritmo incansável à procura dos meios de
sobrevivência dos índios daquela época emblematizava a realidade enfrentada por muitos
deles. Ela fala, principalmente, que o pouco que sua mãe tinha só era para compartilhar com
seus parentes, principalmente sua vizinha e comadre. Elas eram tão amigas que, para não
ficarem sem se ver, tiveram que abrir uma janela na divisão das paredes de casas de barro.
Vejamos um trecho dessa história, em que Rita quando narra esse acontecimento.
May txhiwa thwa khia de. Tha weneka hle de thasdey txhua sasa tha
ketite tha tkanewa. Nema asi txhua Kudo khia hle de ya vizinhane
klehenese.
O fato ilustra uma solidariedade muito grande entre as pessoas, que tudo
compartilhavam. Por essa razão o que ela criava em sua casa dividia com seus semelhantes. A
fala ilustra o convívio recíproco desses antigos velhos, onde o pouco que tinham se tornava
muito e o grande espírito da caridade sorria com esses hábitos que embelezavam a
comunidade.
No relato dessa anciã, aparecem duas histórias intrigantes que chamam a nossa
atenção. São duas pequenas narrativas. Em uma delas, ela conta que seu pai, nas suas
andanças, criava uma cachorra, e por algum motivo teve que matá-la. O fascínio pela história
se torna maior quando ela narra a gravidade do ato de seu pai. Depois, a cachorra voltou para
a sua casa. O velho estranhou e tornou a executá-la, mas ela retornou de novo ao seu local.
A outra trata da morte da mãe dessa anciã. Como os seus pais criavam de tudo, no
velório de sua mãe uma gata não arredava o pé do caixão. Na caminhada para o enterro, a gata
seguiu o cortejo e depois desapareceu sem voltar mais para a casa que a acolhia.
Iremos encontrar nos comentários desses textos orais uma vasta possibilidade de
eventos inusitados narrados por estes idosos. São pequenos fatos do cotidiano que voltam às
suas memórias e podem, em conjunto, retratar a visão de mundo do povo. Isso contribuirá
bastante para estudos de cunho sociológico e ou antropológico sobres o povo Fulni-ô.
Esse registro foi feito nos arredores do Ouricuri, local onde existe um riacho seco com
árvores ao redor, em 09/05/2015, às 15:30h. Foram 18m31s de gravação em áudio e vídeo.
Os dados de áudio foram abertos no aplicativo Praat, onde foram feitas as transcrições.
Esta narrativa é uma história de vida do índio João Lúcio, do sexo masculino, 74 anos
de idade.
Quando era menino, ele saía com os velhos à procura de caça para poder se alimentar
e na fase adulta foi agricultor e por muito tempo trabalhou com os brancos nos armazéns da
cidade. Também trabalhava abatendo animais como gado e carneiro dos brancos que eram
comercializados na feira livre da cidade. O título dado à narrativa é “Setxfonse” (A caçada).
Entretanto, ela inclui também uma lembrança da história vivida por João Lúcio, junto a sua
mãe e sua tia.
Quando esse velho era criança, um membro do seu povo chamado Maxi, que faleceu
há muito tempo, foi convidá-lo em uma determinada ocasião para ajudar na caça. Sem
nenhum conhecimento do que seria a tarefa de caçar, logo quando ele era menino, saiu com
Maxi, sem comunicar a sua mãe, em busca de animais para alimentar os seus parentes. Essa
história da caça de teiú é curiosa, na medida que Maxi tinha o conhecimento de como capturar
os lagartos que vivem nos buracos do chão nas matas. Além disso, ele entendia sobre quem na
verdade dispõe da guarda desses animais da caatinga, que é um ser de forma humana
representada por uma suposta mulher, figura representada nos contos brasileiros como a
“Caipora”, que vem de origem indígena.
Na cultura Fulni-ô, acredita-se que essa divindade está presente nos matos. Se um ou
outro ambiente for invadido por estranhos, ela dará respostas inesperadas, confundindo os
índios dentro do mato, atordoando-os para que eles venham a se perder. Para que isso não
acontecesse, e para que ela pudesse disponibilizar os animais da floresta para a caça, os índios
tinham que dispor de fumo, fabricar um cachimbo no interior da caatinga e colocar tudo isso
em uma pedra para ela poder se alimentar com a fumaça do cachimbo feito de galhos de
árvores.
Vejamos um tercho da narrativa de João Lúcio:
Nema noka hle. I efnimã noka hle de txhleka txhana ke fthowa thulti.
Nema taka hle de ekhatxha kite txhua pinhão pedasowa khatxha kite thlowa
te txhua txhleka eethe.
Nemano ta i unika hle de:
- Djokahe hle ufa nema a takahe de aoke. A elka dãw!
44
Nesse cenário vivido por João Lúcio, na conduta de criança, o velho Maxi mostrou
como se caçava, expôs os seus conhecimentos de caça. João Lúcio não acreditava como Maxi
sabia que dentro de um buraco poderia ter alimento para eles. Esse antigo mestre Maxi, com a
sua prática de caça, relatava como capturar determinados animais e falava de seu cotidiano
com os mais antigos. De certa forma, isso veio de seus antepassados, essa troca de saberes.
Assim, Maxi, de acordo o relato de João, teve a iniciativa de ver se naquele buraco havia um
lagarto e acabou por encontrar uma moradia de lagartos: um casal de teiús macho e fêmea,
que estava acuado em sua própria habitação. Primeiro procurou um material natural, vara de
pau, que apontou para iniciar a trabalho de pegar os bichos. João Lúcio pergunta a ele como é
que ele sabia que tinha naquele local dois teiús. Maxi responde e passa a cavar o buraco,
pedindo para João tirar as terras. João logo expressa medo, dizendo que colocou a mão em
uma coisa mole, idêntica ao corpo de uma cobra. Mas o ancião, com atitude de certeza da
existência dos lagartos, passa a contestá-lo: “Não é cobra, não! É teiú menino!”
Antes de relatar a captura os dois lagartos, a história começa a tomar outro rumo. O
relato agora desloca-se para um período anterior. Nessa época, João não sabia quem protegia
os bichos das matas. Um dia João, na sua inocência, escuta o som da quebrada de matos vindo
46
em sua direção. Maxi, conhecedor dos segredos e mistério das matas, entende a razão e fala
com João para não ter medo. É a Caipora que se apresenta, mostrando que está por perto,
provavelmente descontente, porque viu que esses índios estavam saqueando os seus animas.
Maxi, para poder agradá-la, sai rumo aonde estava vindo o som e faz um cachimbo de árvore
de pinhão e coloca na pedra com o fumo. João se pergunta o que Maxi foi fazer dentro do
mato. Quando Maxi volta, ele informa que era uma Caipora e descreve, diante da pergunta de
João, como é a aparência dessa entidade: “Ela é do sexo feminino, tem o cabelo grande
chegando nos joelhos”. Por Maxi ter feito um contato harmonioso com a Caipora, ele atribuiu
a isso outros achados de animais e assim ele voltam para a aldeia com as mochilas (lixwa),
cheias de animas.
Nessa narrativa, somos conduzidos a compreender que todo sistema indígena é
totalmente integrado ao seu universo, nada se separa, tudo está conectado. Com o triunfo da
caçada, João e Maxi, em um sistema de reciprocidade, começam a dividir as caças, levando
para a aldeia. João leva a caça que adquiriu do velho índio Maxi e relata o ocorrido de sua
vivência. Nesse período na aldeia, o enfrentamento por busca de alimentos fazia parte do
cotidiano do povo. João informa à sua mãe que foi caçar e que o velho Maxi compartilhou a
caça com ele, mas ela fica preocupada porque não têm farinha para comer com a caça. João
diz que, pelo menos, eles podem beber o caldo da caça. A mãe lembra que sua tia, a velha
Arcina possuía farinha e pediu para que ele fosse ver se ela podia ceder um pouquinho para
que eles conseguissem comer. A velha gentilmente o recebe e João passa a inteirar da situação
a sua tia Arcina. Com isso, ela cede uma quantia razoável para eles. Observando esse fato,
entendemos que nesse tempo, quando uns obtinham alguma coisa que garantia suas refeições,
os outros compartilhavam tudo o que conseguiam.
O quinto arquivo de registros de narrativas orais dos velhos é o que foi nomeado
FUN_AGF_NAR_004.
A narrativa que compõe o arquivo FUN_AGF_NAR_004 é de autoria de Agenor
Ferreira de Sá, com idade de 86 anos, sexo masculino. A coleta foi realizada em 16/05/2015,
às 16 horas, na TI Fulni-ô/ Ouricuri. O registro tem a duração de captura de áudio e vídeo de
04m12s. O registro em áudio foi aberto no Praat para ser transcrito.
Para nos informarmos sobre quem está por trás dessa narrativa, que é um relato de
experiência de vida, precisamos entender um pouco do histórico desse velho. Agenor é um
47
dos anciãos da família Ferreira, que é uma das maiores famílias na comunidade. Os seus
antepassados já são há muito tempo liderança na comunidade.
Agenor, em sua adolescência, trabalhava para ajudar a sua família. Caçou por muito
tempo e ajudou na roça. Na sua mocidade, trabalhou com os brancos e aprendeu a fazer
sapatos, um ofício que durou e que manteve sua família. Ainda na sua velhice, para ter uma
renda extra, produzia diferentes artes, como machada de pedra, arco e flecha, maracá, entre
outros; atividade com que se identificava muito, mas que não durou muito porque a cada ano
a sua velhice o impedia de fazer determinados trabalhos árduos, como ir à serra atrás de
matérias primas para a fabricação de artesanato.
Vejamos um trecho da narrativa.
Também dentro desse mato tem coisa ruim. Aí a gente ficou com a
cabeça confusa de repente, mas pelo menos pegamos alguma coisa. No
começo da noite, nós já tínhamos chegado na aldeia. Quando nós
chegávamos com muitas coisas de novo: teiú, cambambá, camaleão,
sardão.
Até uma peteca nós não tínhamos. O nosso trabalho era com faca
pequena, não com um bodoque, com uma flecha para pegar preá. Os nosso
cachorros eram bons para caçar e tinha muita caça no mato. Assim, a gente
comia todo dia. Não tínhamos trabalho. A gente não tinha trabalho mesmo.
Quando chegávamos da roça, a gente ia pescar à noite. Toda vez que a
gente tomava banho, pegava peixe.
48
No tempo em que a sobrevivência dos Fulni-ô dependia dos rios e das matas da região,
os índios falavam desses eventos, falavam de fatos vivenciados por eles, nos quais os seres da
natureza têm uma relação íntima com suas vidas. Nas suas idas e vindas, procurando algo da
natureza para sobreviver, encontravam também os seres fantásticos das matas e dos rios,
coisas às vezes incompreensíveis, que os deixavam confusos nesses lugares. Mas eles
entendiam que isso era o que fazia o controle do que poderia ser adquirido com a caça e a
pesca para eles se alimentarem.
É disso que trata a história de velho índio Agenor, com o tema “Yatkha Thoxankya
Hle de Se Teeke” (A Coisa que Já Atordoava A Gente Dentro do Mato). Em sua vida, passou
por muitas dessas situações quando andava em busca de alimento para sustentar sua família,
pescando e caçando. Deparou-se com momentos de até se atordoar no rio e nas matas da TI
Fulni-ô. Esse velho sabia também que, para levar a sua mochila cheia de coisas como caças e
pesca, teria que ofertar algo para esses seres deixarem tudo sair tranquilo e assim eles
poderem concretizar as suas práticas da caça e pesca. Nessa situação, antes da ida à caça já
saiam organizados e preparados com essa oferta. Precavidos, levavam um pouquinho de
fumo. Caso aparecesse uma situação estranha, colocariam fumo na pedra para a Caipora
fumar. Mas se eles não levassem essa oferenda, poderiam passar por situações desagradáveis
na mata, chegando até a se perder.
É notável nessa narrativa o relato de quando ele e os amigos deparam-se com esse ser
na mata. Indagado acerca de como a caipora fuma, o velho nos leva ao encanto da história, no
ambiente da caça com os cachorros. Eles pressentiram uma coisa estranha dentro da mata,
julgando haver coisa ruim no mato. Era a Caipora que estava levando-os a confundir suas
ideias naquele momento. Até os cachorros bons de caça começaram a ficar quietos. Todos
quietos e atordoados, mas mesmo assim tinham algo nas suas mochilas para levarem para a
aldeia. Deste modo, esperaram o momento de lucidez voltar para poderem sair daquela
situação aterradora rumo às suas moradas.
De acordo com as narrativas de Agenor, de tudo eles traziam para suas famílias,
apesar desses eventos envolvendo mitos e lendas presentes na cultura do povo Fulni-ô. Temos
que ter em mente que isso faz parte da cosmologia indígena, entender esses aspectos
carregados de significados de sobrevivência, onde é preciso interagir com esses seres das
matas e rios para viver. De acordo com o relato de Agenor, para sobreviver ele só possuía
uma faca pequena e um bodoque.
Nesse período, narrado nessa história de vida, as pessoas não tinham trabalho
remunerado. É verdade: todas as atividades indígenas do povo Fulni-ô, visando a procurar
49
meios de se alimentar, são consideradas como um trabalho, embora não sejam remunerados.
Apesar de serem mínimos os recursos naturais nesse tempo, mesmo assim garantiram a sua
sobrevivência. Todos viviam felizes com o que lhes era concedido.
4.2.6 Narrativa 06: FUN_MAC_NAR_006
história para os dois. A partir do velho Koheya, eu vou contar do jeito que
ele contou aos filhos dele.
O velho Koheya contou a eles dois desse jeito:
- Eu mandei chamar vocês aqui para eu contar a vocês uma história
que meu pai me contou. Ele me pediu para eu contar a vocês só quando
vocês tivessem filhos e para eu não contar a eles.
Na narrativa que gravamos para este trabalho, ela narra como, desde criança, em sua
andança como seus pais e irmãos, trabalhava duro com a extração da palha. Aprendeu a viver
em meio aos costumes étnicos de seus familiares. Hoje é mãe de oito filhos. Trabalhou duro
para criá-los em meio à dura falta de oportunidade durante os tempos idos. Atualmente ela
procura incentivar os jovens da comunidade a praticar os nossos costumes, uma tarefa que ela
faz por paixão, pensando na formação dessas novas gerações.
Chamanos a narração “Ifenkhettotwa Sato Dotka ke I Sawlinsese” (Eu me Criei no
Meio de Meus Troncos). Assim, no começo da tarde, colhemos a narrativa da anciã Maria
Brasilina. Logo no início, sua residência, começou dizendo que sentia muito por nós, por
conta da situação de enfraquecimento do idioma Yaathe em nosso povo. Disse ter até pena da
gente devido ao fato de estarmos enquadrados nesse contingente de jovens que buscam um
aprendizado da língua. Mas declarou o que poderia sair desse encontro serviria para a gente
colocar na consciência e levar para vida toda: os seus conhecimentos. A análise da narrativa
dessa velha nos leva a concluir que há índios na comunidade que se opõem veementemente à
cultura alheia, isto é, à cultura dos não índios. A razão para isso, de acordo com esses índios,
é o fato de essas culturas enfraquecerem a do nosso povo, com pensamentos que não fazem
parte de nossos princípios.
Ela desde pequena foi introduzida na cultura Fulni-ô: nasceu e se criou no meio dos
costumes de sua ascendência. Conviveu com pessoas que a conduziram ao enfrentamento da
vida e conheceu muito sobre ela. Mesmo com as dificuldades da vida em seu cotidiano, pôde
superar os obstáculos que lhe eram postos. E esses sofrimentos não se resumiam apenas à lida
do dia. Também à noite lidava com problemas: tinham de enfrentar uma dormida totalmente
desagradável, com cama de vara, o que lhe causou dores em suas costas. Essa velha aconselha
e pede para que nós nunca caiamos em uma situação como aquela pela qual ela passou.
Lamenta seu sofrimento, mas aconselha-nos a procurarmos meios para sustentar a nossa
riqueza cultural. Porque a palavra dela se fixará nesse registro, a gente poderá no futuro guiar-
se por aquilo que fala.
51
Na apreciação de seu conhecimento de vida, ela informa que foi Deus que dadivou a
sua palavra. Diz isso a respeito de seus saberes, incluindo a língua como esteio máximo, algo
que nós nunca poderíamos vendê-la aos brancos. Assim, ela retoma as idas na busca da
extração de palha para fazer os seus trabalhos, mas que na época tinham um preço que não era
bom. Diante disso, ela deixou esse trabalho para trás, argumentando também que os brancos
de Águas Belas, além de não gostar do nosso povo, desvalorizavam tudo o que produzíamos.
Nessa lembrança, ela faz uma reflexão crítica sobre os nossos vizinhos brancos, que querem
saber de nossos costumes étnicos, de nossa língua e nossa religião. Entendemos esse trecho
como refletindo um sentimento de proteção cultural da nossa tradição, sobretudo no que diz
respeito ao ritual indígena que dura três meses, no qual os brancos são impossibilitados de
participar.
Além do posto acima, essa velha índia demonstra uma estratégia de como nosso povo
pode sobreviver à malícia dos brancos: “Para a gente conseguir sobreviver, nós vamos usar a
mesma malícia contra eles, nós vamos ser iguais a eles também”. Nesse caso, ela exemplifica
que alguns brancos fingem que gostam dos Fulni-ô. Igualmente, de acordo com os relatos de
Brasilina, também nós fingiremos que gostamos deles. Isso é uma questão de sobrevivência
de um povo que por muito tempo sofreu perseguição vinda de outro povo, de outra cultura.
Ela sente na pele o enfraquecimento que isso causou, fica aflita e pensa muito na perda da
cultura. Por isso, incentiva os jovens a seguirem com os costumes e tradições do nosso povo.
A língua, na narrativa de Brasilina, é um bem sagrado deixado por Deus aos seus
antepassados. Ela pede aos jovens que tenham empenho e possam aprendê-la. A anciã faz
esses comentários em seu relato e pede que todos nós reflitamos sobre essa realidade do
Yaathe. Mesmo contando suas lembranças, faz um grande esforço para prender a nossa
atenção em relação à língua.
Depois, ela retoma as suas lembranças de criança, quando dormiam sem cobertor e
sua alimentação era feita sem sal, tudo ao natural. De acordo com ela, não existia sal nesse
tempo; no entanto, tudo que eles comiam não prejudicava, enquanto que as comidas da
atualidade podem prejudicá-la. Por isso, ela mesma procura se afastar dessas comidas novas
que apareceram e que permanecem na geladeira para não se estragar. Ela afirma evitar esses
costumes novos. Quando é preciso comprar algo para se alimentar junto a sua família, reza
para não adoecer e pede para que tudo ocorra bem com ela e seus filhos.
Na narrativa dessa anciã, ela descreve sua história e torna a repeti-la novamente no
final, justamente para prender a atenção de quem está ouvindo. Cremos que essa é uma
estratégia comum no discurso de todos os anciãos.
52
4.2.7 Narrativa 07: FUN_ELC_NAR_007
khlatwa sato puline lha khiaka. Nema sa txidodwa lha khia hle. Uunima ta
nede. Ya txika hle toonãwa ya sa i khlemã. Neka tempo ke, ya sa ke txi
khiakake toonãwa. Flidjwa khiwa, xoawa, tafiawa, kheytxi lha khiaka. Yasa
khoflewa khia. Efewde txtxaya dey, anhan, txtxaya fthoana dodwa khia.
Txtxaya dey yoo lha khiaka ya txfonete toonawa keeka wati. Nema hle fela
txtxaya ke:
- Yooxte hle txhua xoawa setxhi te txhufnite, toonawa kitxhia eynite.
Eloi foi instruído pelo seu amigo, que o preparou para essas atividades provavelmente
desde quando ele era criança. Os dois traziam muitas caças para suas famílias: gambá, préa,
teiú, camaleão, entre outros. Suas famílias ficavam felizes com o dia de fartura. Eles não
guardavam para deixar para outro dia, até porque iria estragar no outro dia esses alimentos.
Dia a dia, eles caçavam. Quando chegavam dessas vivências com alguns animais, eles tiravam
o couro para vender depois para comprarem farinha nas mercearias dos brancos. Tudo que
eles conseguiam era bem dividido com os outros. Eloi relata que eles viviam assim: os velhos
eram pobres e ninguém se acudia10, às vezes só arrumavam o que comer, quando encontravam
era a felicidade de todas as famílias. Nessa expressão, os antigos eram pobres. O pouco que
tinham compartilhavam com todos. Mesmo assim, muitos, pelo motivo de não terem
condições econômicas igual aos brancos, não tinham opção de melhorar suas vidas. É
justamente devido a esse fato que Eloi usa o termo “acudir”.
10
“Se acudir” é uma expressão da fala Fulni-ô que significa “ajudar uns aos outros” ou “se servir de algo para
resolver um problema”.
54
já se foram e ele agradece por estar ainda vivo, e por Deus ter lhe dado uma resistência a mais
para ele poder chegar até essa idade. Ele permanece vivo, apesar das barreiras enfrentadas na
velhice, forte em nosso meio.
A fala desse mestre dos cânticos é resumida. Ele diz que só é isso que ele sabia falar.
Nesse momento, pergunta a nós, que estávamos a sua volta dele, quem seriam as pessoas que
iriam cantar com ele. Em meio a essa narrativa, lembramos a ele como era o convívio dele
com o seu pai.
Como toda a tradição dos Fulni-ô, a maioria dos índios saíam nos arredores da serra
do Cumunaty e outras serras vizinhas à procura de palha, fibra de caroá para fazer suas artes.
Então, é nessa parte que entra a história do velho pai de Aristides, em suas andanças por esse
mundo. Quando fala, ele diz que o velho pai tirava palha para fazer os seus artefatos e vender
na feira local. Por todo canto nessas serras eles andavam a pé, passavam muitas dias e noites
fora da aldeia para extrair essas matérias primas, antes muito abundante na região. Nessas
viagens, caçavam viado e comiam com feijão de corda, abóbora que existia nos roçados
vizinhos. É uma retomada ao passado desse ancião que demostra a ligação com seu o pai. A
tarefa de seu pai, chefe de família nesse tempo, era se deslocar de sua moradia para poder
recolher coisas da natureza e fazer seus trabalhos e assim tentar comercializá-los na cidade
para, por fim, sustentar sua família. O velho Aristide diante de toda essa vivencia, agradece a
Deus por estar aqui contando essa história no meio de nós. É um agradecimento pela sua
longevidade.
4.2.9 Narrativa 09: FUN_TEE_NAR_009
cultural indígena é fruto da formação em um meio social particular. Existe o caminho dos
saberes que têm que ser assimilados pelos aprendizes do grupo para dar conta de viver a vida
na aldeia. Isso fica claro quando Tereza Maria expõe nesse trecho o seu esforço e dever das
velhas para garantir a formação dessa índia.
É incomum, para Teresa Maria, essa nova forma de os jovens adquirirem um novo
hábito, o de focar sempre nos estudos dos não índios e absorver uma educação que se
distancia da forma vivida por ela. Ela mostra, de certo de modo, os dois contextos, a educação
de antes e agora. Os jovens estão influenciados por esse novo modo de pensar dos outros, os
estudos e língua dos não índios fazem com que esqueçam os repasses da cultura nativa. Isso
na verdade se configura com o contato negativo da cultura Fulni-ô, que está sendo
pressionada por outra cultura. Ou seja, a cultura de nosso povo, por muito tempo veio
perdendo espaço para português. Muitos velhos na aldeia estranham esse costume alheio. Mas
ela garante que ao buscar a auto-afirmação, o Yaathe, a língua dos Fulni-ô, pode fluir dentro
dos jovens, que poderão aprender o idioma. Isso vai depender do esforço coletivo, procurando
os conhecimentos do povo.
Conforme observamos na narrativa de Teresa Maria sobre a igualdade e humildade
dos velhos do passado, era uma dura tarefa sobreviver em meio às dificuldades intensas do
sertão onde eles viviam. Depreciados pelos ditos civilizados de Águas Belas, buscavam nesse
meio sobreviver e tentar arranjar algo pra vestir. As velhinhas conseguiam, mesmo com esses
entraves, arranjar algo para vestir suas crianças, rapazes e moças. Às vezes descosturavam
suas próprias roupas para poderem se cobrir. Tudo que conseguiam era dividido entre eles. A
partilha era mais envolvente e efetiva nesse tempo. Vemos abaixo um trecho desta narrativa
de Teresa Maria, quando fala nos velhos do passado:
ke tha koxte khia. Nema nehode, nehodeke, unilhaka dehe, ama ekhde?
Nema i nelhaskawdotkya hle de. Nehodeke i tha yoonelhaka teka de.
que predominam nas mentes influenciadas pela cultura não índia. Hoje a cultura do branco de
certa forma é chamativa, atrai outros povos, podendo ter efeitos negativos no futuro de uma
comunidade.
Vemos boa parte dos povos indígenas trabalhar para revitalizar suas tradições e língua.
É nesse caminho que Maria Teresa e muitos velhos prende a nossa atenção em seus relatos
para termos consciência do perigo em que estamos no que diz respeito ao enfraquecimento do
Yaathe.
É... Nosso jeito, o jeito de nós todos era difícil. Porque éramos muito
pobres. Então minha vida e a de todos os meus irmãos, somos sete irmãos.
Não é mentira a palavra que estou dizendo, a quantidade. Eu sou a caçula
deles. Aí quando eu era pequena, meu pai junto com minha mãe, eles iam
para a roça. E meus irmãos diziam: hoje eu vou estudar. Aí meu pai dizia
assim: Você vai estudar mas vai colocar enchada na mão para trabalhar
também é na roça, que você vai saber de tudo. Aí porque eu era pequena
me colovavam para a casa de minha avó. Eu ia. Aí minha vovó dizia: para
você não ficar sentada aí, vá para a escola. Aí eu fui.
Meus pais, eu tinha raiva e pensava que eles estavam me fazendo o
mal eu me afeiçoar. Assim, quando eu fui me desenvolvendo, fui estudar e
aprender em outras cidades no meio dos brancos. Quando eu fui ficando
moça, eu sei que isso não me fez o mal. Hoje eu estou aqui, para chegar
onde eu cheguei. Quando eu avancei com os estudo mais graduados, fui
ficando velha. Hoje mesmo eu trabalho com professores e professoras, com
o nosso idioma, sou a coordenadora deles. Eu não vou dizer que sei de
tudo. Eu aprendo com eles também.
Hoje mantém-se ainda no cargo, o que fez por merecer, diante de seu empenho com o
desenvolvimento pedagógico do ensino da língua. Sempre orientou os seus professores a
virem efetivar uma metodologia especifica para o ensino do Yaathe Fulni-ô. A língua Yaathe
encontra-se atualmente na matriz curricular das escolas da aldeia Fulni-ô, tendo sido
reconhecida pelos órgãos educacionais do Estado de Pernambuco.
No texto FUN_IVL_NAR_011, “Yatxtxo khia Teya” (O Nosso Jeito Era Apertado),
ela relata que muito antes a vida dos Fulni-ô era apertada, o sofrimento, por causa das
questões econômicas, frustrava a vida dos indígenas, dentro da aldeia sede, e em torno do seu
62
território, onde também se localiza o Ouricuri. Os índios passavamn três meses de retiro
religioso e não tinham meios o suficiente para se manter diante de algumas estiagens
prolongadas. Mas no ano bom de chuva os o Fulni-ô podiam fazer os seus roçados e garantir
os seus alimentos. Com isso, muitas famílias passavam por aflição e insuficiência de
alimentos. É angustiante nos depararmos com essa lembrança de Ivanilde e sua família de sete
irmãos. Ela via seus pais e seu irmão em tempos de chuva saírem para fazer os seus roçados.
A tarefa nessa época era de todos. Quem tinha mais filhos na família, era de certa forma
muito vantajoso trabalhar na roça. No entanto, para alimentar a todos, o trabalho tinha que ser
duplicado.
Quando a anciã era criança, tinha que ficar na casa dos avós. Seus irmãos maiores
tinham de dar duro e alguns até, quando seus pais chamavam para o trabalho, falavam que
iam estudar. Mas o pai seguia dizendo que os filhos poderiam estudar, mas tinham que
também trabalhar com a enxada. Nas suas lembranças, Ivanilde reflete sobre a dureza de seu
pai e de sua mãe. Eles tinham que conciliar e manter a educação e compromisso de trabalho
entre seus filhos, visto que, para seu pai, trabalhando na roça eles iriam obter o conhecimento,
no sentido de dar o sustento aos seus futuros filhos. A regra era posta para eles seguirem em
frente com seus trabalhos. Mesmo ainda pequena, na casa, sua avó, para ela não ficar sentada
sem fazer nada, levava ela à escola para aprender a ler.
Vanilde se irritava com a atitude do pai quando ele a deixava na casa de sua avó por
ser mais nova, mas foi isso que conduziu sua história de vida, no desenvolvimento dos
estudos. Estudou em outras cidades, junto com os brancos. Assim, ela viu que os estudos não
lhe fizeram um bem em sua trajetória. Conquistou uma vida diferente de seus irmãos, pôde
trabalhar por muito tempo como professora, sendo remunerada pelo seu trabalho. Atualmente
ele é coordenadora de ensino da língua Yaathe, repassa as orientações aos seus professores e
tem um relacionamento bem forte com seus colegas e com a própria instituição Escola
Indígena Fulni-ô Marechal Rondon, considerando a escola como sua segunda casa.
Nos momentos de estresse em sua residência, como considera a escola sua segunda
casa, segue para uma “salinha” de coordenação para aliviar seus pensamentos e pedir a Deus
para chegar com muita saúde a sua velhice.
A história de vida no relato de Ivanilde nos faz compreender o seu passado com seus
familiares e os seus antigos parentes.
Pergunto também a Ivanilde se ela já teve um envolvimento com o trabalho de palha.
Ela informa lembrando que se sentava na esteira com sua mãe no começo da noite e faziam
essas tarefas, produziam diversos trabalhos de palha e outros artefatos de madeira e sementes.
63
Atualmente a sua vida como coordenadora impossibilita de fazer esses trabalhos com o
artesanato, isso por conta do seu tempo estar totalmente dedicado à educação. Além disso, a
sua condição de idade não permite que acompanhe todas essas atividades, mas carrega ainda
em sua memória essa prática nativa.
Relembrando o seu passado com sua família na casa de sua mãe, ela conta que os
brancos de fora chegavam em sua casa para olhar os seus trabalhos e comprar. Era sinal de
que as coisas estavam melhorando, que eles poderiam garantir outras rendas com as vendas
dos artefatos. A vida de lá até aqui foi mudando e eles, com pensamento de melhorias,
puderam se organizar, diante dos trabalhos da roça e as vendas de suas artes, apesar de não ter
um comércio certo. Essas duas rendas garantiram o sustento de muitas famílias nessa época.
Hoje em dia, em comparação oo passado, a vida foi melhorando, estamos bem.
O relato dessa mãe, índia e profissional da educação Fulni-ô, rememora os passados
vividos de sofrimentos de seus parentes. Doi em sua alma falar sobre esse assunto, pois eles
viviam sofrendo, segundo as histórias de sua avó: “Aí os brancos davam roupas, aquelas
velhas, em cada uma delas, aí eles corriam para o Ouricuri”. Nesse trecho, ela informa que
andavam muito pelas cidades vizinhas, sofreram por nós. Dentro do sofrimento nunca
deixavam as práticas do ritual do Ouricuri de lado. Isso é muito significativo dentro dos
relatos de Ivanilde. Mesmo com todos os entraves da vida dos nossos antepassados, eles
mantinham suas tradições. Hoje o Ouricuri é fruto da sua manutenção e preservação por
várias gerações.
A transformação de modo de vida amarga, de antes e agora, ligada às melhorias da
comunidade, não afetaram a figura dos índios Fulni-ô, resistiram aos tempos sofridos e as
tentativas de massacres de sua cultura. Pelo empenho de equilibrar o sustento de sua cultura
étnica desde o passado, asseguraram os seus custumes, mesmo com a presença próxima da
cultura não indígena local. Desse modo, para se assegurar culturalmente, conservaram dentro
de suas memórias uma especie de “fronteira cultural”. Só os membros do grupo podem
transitar nesse espaço. Isto é, ocultaram boa parte de suas práticas ancestrais dentro do
Ouricuri. Isso permitiu que eles confrontassem toda a realidade vivida.
Este registro contém a narrativa da anciã Maria de Lurdes de Lima, do sexo feminino,
com idade de 60 anos. Foi coletado na na Aldeia Fulni-ô/ Sede, em 22/03/2016, às 15:20 hs,
e teve uma duração de 04m47s.
Iremos, antes de analisar o relato histórico de Maria de Lurdes Lima, comentar acerca
de sua função social no povo, da sua luta como trabalhadora. Desde algum tempo, ela
contribui para o povo como voluntária da rádio Fulni-ô FM, com o programa indígena Fulni-
ô. É uma comunicadora excepcional do idioma Yaathe. Fazem parte de seus comunicados
histórias, orientações e conselhos para o seu povo. Ela mantém a prática do uso da língua
Yaathe, atendendo aos que a procuram para conversar e manter, assim, a língua viva. Ela
sempre fez isso na sua própria casa, mas descobriu o rádio como uma ferramenta fundamental
para que todos pudessem podiam ouvi-la, conseguindo assim atingir o seu objetivo de
difundir a sua riqueza cultural, poder tocar na consciência de toda a comunidade. Por conta
disso, sua fala multiplicou, alcançou a maioria das casas diante, praticamente todos ouvem o
seu programa e é bem aceito na aldeia Fulni-ô.
Esa índia está presente na vida de boa parte do povo. Maria de Lurdes Lima teve
ensinamentos de seus pais e avós. Formada nos saberes do povo Fulni-ô, tem conhecimentos
que ultrapassam as nossas expectativas. A sua fala descreve a sabedoria que foi obtida de seus
ancestrais.
Intitulamos esta narrativa de “Uunima yake dwawa dwaskalha khahlede” (Hoje não
falta nada pra gente). Identificamos como relato que percorre sua trajetória de vida, nas fases
de criança, jovem e adulta. A narrativa de Maria de Lurdes de Lima mostra a realidade da
vida do povo Fulni-ô, que hoje está mais facíl. A melhoria dessa fase foi conquistada em
paralelo ao tempos anteriores, na região do município de Águas Belas. Sobreviver nesse
tempo era verdadeiramente complicado por muitas questões.
A anciã Maria de Lurdes de Lima lembra deste período onde a insuficiencia de
sustento inquietava todas as famílias, mas a sua família tinha um diferencial a respeito disso:
seu pai era policial em outra cidade. Conseguia mantê-los enviando recurso para sua família
se sustentar. Mesmo assim, Maria de Lurdes e sua mãe, para contribuir com a incumbência de
seu pai, ajudavam a completar o que era necessário. Trabalhavam fazendo artes do trançado
da palha.
Vejamos um trecho da sua narrativa.
Ya txtxo khyankyake klila. Klila wati lha khiaka he tha ho lha khia
foway khoxkya txti. Away tha holha khia txhua tha khodjo te sayonte
65
Nossa vida era dura. Era mesmo duro, pois eles andavam pela serra
tirando palha. Eles andavam por aí com aquele trabalho deles, trocando
por comida porque não tinham dinheiro. Hoje não falta nada pra gente. E
todos nós temos dinheiro. Até eu tenho dinheiro. Então agora eu só vou ao
banco pegar dinheiro. Até a criança na barriga da gente já tem dinheiro.
Isso é uma graça de Deus. Aí nós andamos no fácíl, comendo. Que a gente
andava no sacrifício. Não tinha água, a gente andava pelas cacimbas para
conseguir um pouquinho de água.
Verificamos na história narrada por Maria de Lurdes que uma das apreensões maiores
dos antepassados era claramente matar a fome. Lógico que se alimentar é esencial aos animais
e ao próprio ser humano, mas às vezes, nesta região, a problemática de seca impossibilitava
que eles conseguissem até isso, ainda mais porque os brancos ocupavam seus territórios, as
nascentes das serras. Uma série de fatores fazia com que os nossos antigos não melhorassem
de vida. Os trabalhos que faziam trocavam por alimentos. Atualmente, segundo a anciã, essa
situação vem mudando significantemente em termos econômicos. No seu relato, ela afirma
que “temos inclusive dinheiro nos dias atuais”. Ela observa que “até a criança na barriga da
gente já tem dinheiro”, melhoria que chegou na aldeia através dos programas assistêncialistas
do antigo Governo Federal.
No relato de Maria de Lurdes, encontramos histórias correlacionando a dura vida dos
nossos antepassados com as facilidades que a aldeia Fulni-ô tem hoje. Ela descreve em seu
relato de experiência que, de certa forma, o fato de o povo ter sido beneficiado está sendo
apreciado pelos jovens, pois não está faltando nada pra eles. Antes tinham que batalhar para
comer e beber, saindo para as cacimbas em busca de água. O trajeto era difícil, pois tinham
que andar quilômetros para encontrar água, distante da aldeia sede e do Ouricuri. Mas essa
66
mudança deu-se por muitas lutas do povo no seu espaço territorial, sempre procurando
afirmar sua identidade étnica.
As transformações dos Fulni-ô, de acordo com o relato de Maria de Lurdes, nos
mostram a persistencia dos nossos ancestrais em vencer as barreiras encontradas pela vida,
conquistando a serenidade que tanto lhes faltava. Nesse caso, ficaram para trás a agonia de ter
que andar à procura de alimentos, o qual também não era fácil de encontrar. O contraste entre
essas épocas é grande, como vemos nesse trecho dessa anciã: “A gente comia comida ruim.
Hoje vocês escolhem. Eu só quero comer isso, eu só quero comer aquilo”.
Antes eles não tinham a opção pelo termo preferir, não tinham escolha de comida em
comparação aos jovens de agora. A vaca morta que encontravam no mato, quando os
posseiros de suas terras criavam gado, era o alimento comum. Eles achavam e dividiam como
todos. Sofriam, se medicavam de acordo com seus conhecimentos de cura, porque a
alimentação era desfavorável. Assim, muitos andavam na época do SPI nos médicos, mas
nunca dispensavam a riqueza da medicina tradicional que os velhos praticavam. Essa relação
é inerente e faz parte do contexto sociocultural dos Fulni-ô.
O mais interessante nas narrativas são os conteúdos que elas transmitem. Também é
importante que essas narrativa desses anciãos tenham sido registradas e possam ser
submetidas à análises de estrutura, até mesmo em trabalhos de comparação com outras
culturas, o que não é o objetivo do presente trabalho.
Entretanto, um objeto fascinante de observação nos textos é a própria língua, ou seja,
os modos de dizer, a forma como a fala se organiza, as estruturas qeu não percebemos sem
um estudo mais aprofundado. Embora não tenhamos selecionado um aspecto específico da
língua para estudar mais profundamente, levantamos e listamos alguns fenômenos que
consideramos. por um lado, bastante interessantes quando refletimos sobre eles e, por outro,
válidos de estudos mais esclarecedores sobre suas funções, estrutura e uso.
Esse o assunto da nossa próxima seção.
67
Nesta seção, levantamos alguns fatos da língua Yaathe observados na fala dos anciãos
e os comentamos. Não nos deteremos em uma análise aprofundada dos aspectos levantados,
mas acreditamos estar contribuindo dessa forma para posteriores pesquisas sobre a língua.
Esses fatos aqui observados são principalmente aqueles ainda não descritos em
trabalhos anteriores. Listamos os fatos, damos exemplos e fazemos observações sobre eles,
levantando, sempre que possível, hipóteses que poderão ser testadas posteriormente.
5.1 Gramática
- [ˈhe]
Na fala dos anciãos Fulni-ô, notamos a presença de uma forma [he] que não
corresponde ao morfema de tempo futuro homônimo porque ocorre depois de uma forma
verbal que significa aspecto imperfeito no passado.
Apresentamos a seguir os exemplos. O primeiro exemplo é uma sentença em que [he]
é morfema de tempo futuro e já está descrito em vários trabalhos sobre a lingua. No segundo
exemplo, temos uma sentença no passado imperfeito, encontrada na fala de um ancião.11
1)
[tʰa tʃkʲaˈhe jaˈtʃtuj ˈke]
Tha txkyahe yatxtuy ke.
Eles virão para nossa casa.
(ROB)
2)
[tʰa tʃi kʰiaˈka ˈhe tʰa ˈʃi kʰiaˈka toˈwe tʃikˈke saːʃikˈte sõːdõˈmãwa]
Tha txi khiaka he tha xi khiaka towe txikke saaxikte sondomawa.
Eles vinham e ficavam se aquecendo junto do fogo de manhãzinha.
(ROB)
Observa-se uma diferença entre o morfema /-he/ que marca futuro e o morfema /ˈhe/
que ocorre depois de uma forma no imperfeito passado em termos de distribuição, mas
1111
Seguimos aqui a transcrição fonética, incluindo acento de palavra, proposta em SILVA (2016). A escrita
ortográfica segue os padrões propostos pelos professores de Yaathe da Escola Estadual Indígena Fulni-ô
Marechal Rondon, que se baseiam nos tabalhos de COSTA (1999) e SILVA (2011, 2013, 2016).
68
também em relação ao significado, pois os mesmos anciões não fornecem um significado para
essse elemento.
Uma possibilidade de atribuir significado a esse /ˈhe/ seria considerá-lo como um
marcador de focalização, conforme exemplo a seguir, onde ele ocorre com uma forma verbal,
mas sem valor de futuro.
3)
[nekeˈsade tʃtʃajaˈdej i tʃkʲaˈhe i ˈtsfõːte]
Nekesade txtxayadey i txkyahe i tfonte.
Por isso que eu venho todo dia caçar.
(JOL)
Na fala de uma anciã, aparece uma forma de expressar futuro com o sufixo /-he/
reduplicado. Essa forma é consistente durante toda a fala dessa anciã.
4)
[ˈnẽma itookʰɛˈtʰa neˈka ˈʎa ˈde aoseheˈhe waˈpɛla tʰatˈti oˈwa ˈlaj lalaˈdõːkʲa
ekʰoːˈke ta ˈkʰãne ˈʎa ta fejtoneˈte ja ˈkefe ksaheˈhe naˈde ˈte ekʰdeseˈhe]
Nema itookhetha nekalha de: Aosehe wapela thatti owa lay. Laladonkya ekhoho
ke ta khanelhaka ta feytonete ya kefe ksahe nawde te ekhdesehe.
Então meu pai dizia: Você vai estudar, mas vai botar enxada na mão para
trabalhar na roça, que você vai saber de tudo.
(VAL)
Parece, porém, que essa forma duplicada de [-he] é, na verdade a junção de dois
morfemas distintos: [he] de futuro, como já vimos, e um outro [he] que indica determinação e
que seria a forma reduzida de [heno].
- /ˈde/
As formas [de] – ou [ˈdehe] ocorrem também na fala desses anciãos sem que se
determine um significado para ele.
Sua distribuição é a mesma, basicamente, que a do morfema [de], posposição que
indica posterioridade quando segue um verbo e fonte quando segue um nome, conforme
exemplo a seguir, retirado de Costa (2013, p. 14).
4)
[ˈnẽma jaˈʧkja ˈhle ˈde hĩˈnũ ˈde]
69
[de] também ocorre depois de outra forma aspectual também com valor passado, ou
seja, acabado.
6)
[ˈjawka ˈhle de]
Yawka hle de.
Nós já fomos/ íamos.
(ROB)
Observamos isso só nas falas dos mais velhos do nosso povo, de modo que os jovens
não utilizam esses dois morfemas no final.
Já [-de] no meio de uma palavra indica negação.
7)
[dʒodeˈka]
Djodeka.
Eu não vou.
(ELF)
De toda forma, na narrativa desse sábio e dos outros velhos existe uma vasta
oportunidade de estudos linguísticos a serem realizados.
- /ˈhɛ/
Na fala de João Lúcio, bem como nas demais falas de anciãos, observamos algumas
características que nos chamaram a atenção e nos levaram a investiga-las mais
profundamente, do ponto de vista linguístico. Também, a partir dessas observações, pudemos
explicar alguns fatos da língua que não foram ainda descritos.
Na fala de João Lúcio, por exemplo, observamos que ele usa um elemento [ˈhɛ],
conforme exemplo 9), a seguir.
9)
[i ˈtʃo maˈʃi iʃˈtɔla i eʃineˈkaj ˈhɛ]
I txo Maxi ixtola i exinekay he.
Eu contar uma história do velho Maxi, viu?
(JOL)
Esse elemento [ˈhɛ] é uma partícula com valor de marcador conversacional. Ele é
diferente de [he], que é um sufixo e marca o futuro, como demonstrado em 10).
10)
[i ˈtʃo maˈʃi iʃˈtɔla i eʃĩnekaˈhe]
I txo Maxi ixtola i exinekahe.
Eu vou contar uma história do velho Maxi.
(JOL)
É importante observar que o sufixo [he], morfema de futuro, ocorre de duas formas:
[j], como em 9); [he], como em 10). O fato de ele ocorrer como [j] antes de [hɛ] leva a propor
que [ˈhɛ] é uma palavra autônoma, conforme apontado em Silva (2016, p. 113-115).
- [ˈhá̃na]
O morfema [há̃na] ou [há̃ː] acrescenta ao que está sendo dito o significado que pode
traduzido como rapidamente.
11)
71
O que observamos de interessante a respeito desse morfema é que ele pode ser
utilizado de dois modos.
Em 11) acima, ele se comporta como uma palavra autônoma. Segundo Silva (2016, p.
84),
[...] os nomes em Yaathe, do ponto de vista gramatical, são constituídos por uma
base mais afixos. Algumas classes de nomes devem ser, obrigatoriamente,
precedidas por um clítico, que é um índice de posse. Assim podemos dizer que uma
palavra é autonôma quando ele não sofre alteração de outros agentes foneticos ou
fonemas.
Em 12) abaixo, o mesmo morfema realiza-se como uma forma presa, um sufixo
derivacional. “Os sufixos derivacionais são, basicamente, modificadores adverbiais. Eles
preenchem a posição imediatamente seguinte à raiz, modificando o sentido dessa raiz de
formas diversas, acrescentando informação nova.” (SILVA, 2016, p. 23).
12)
[a kfafˈhá̃ːkʲa ˈhle]
A kfaf’hankya hle.
Num instante, você dorme. (AGF)
- [ˈkʰiwa]
O morfema [ˈkʰiwa], ainda não registrado em trabalhos anteriores, indica uma
incerteza do falante em relação ao que ele está enunciando.
13)
[i kʰlɛˈtʃase ˈkʰiwa]
I khletxase khiwa.
Se for para eu cantar. (ARL)
- gênero gramatical
Um ponto da gramática do Yaathe que ainda precisa ser melhor observado diz respeito
à categoria gênero, sobretudo devido à diferença com o Português. Muitas vezes,
72
mas
15)
[baˈduki] bodoque [baˈduki ftʰoˈnẽwa] um bodoque (FEM)
(AGF)
5.2 Variação
- pronúncias diferentes
[ˈtfõːte] ou [ˈtsfõːte] ou [ˈtʃfõːte]
Os exemplos de 17) e 18) são extraídos da narrativa de um mesmo falante. Isso mostra
que a variação é livre.
16)
[jaːˈdedwej awˈʃo joːˈte tʃʰuːˈke ja ˈtsfõːte]
Yaadedwa, wey, awxo yoote txhuuke ya tsfonte.
Ei, menino, venha aqui para nós irmos ali caçar.
(JOL)
17)
[ˈnẽma ˈhle kasˈke joːˈka ˈhle ˈde ja ˈtʃfõːte]
Nema hle kaske yooka hle de ya txfonte.
Aí novamente nós íamos caçar.
(AGF)
18)
[nekeˈsade tʃtʃajaˈdej i tʃkʲaˈhe i ˈtfõːte]
Nekesade txtxayadey i txkyahe i tfonte.
Por isso que eu venho todo dia caçar.
(AGF)
- [ˈlʷa] ou [ˈla]
O morfema [ˈlʷa] ou [ˈla] tem o significado de inefetividade. Dito de forma mais
direta, esse morfema muda o valor de uma expressão, indicando a sua não efetuação,
conforme podemos ver na comparação entre os exemplos a seguir.
19)
[oˈwe i kfafdotˈkʲa]
Owe i kfafdotkya.
Eu não dormi.
74
(ELF)
20)
[oˈwe ˈlʷa i kfafdotˈkʲa]
Owe lwa i kfafdotkya.
Apesar de não ter dormido.
(ELF)
- nawde te ou nade te
Enquanto na fala dos jovens, de modo geral, ouve-se [nawˈde ˈte] “com tudo”, na fala
de uma anciã a pronúncia é [naˈde ˈte] com tudo.
23)
[i saˈkʰow kʰaˈmã]
/i sa ˈkʰoho kʰaˈmã/
quando eu coloquei a minha mão JOL
75
5.3 Vocabulário
(ELF) (MAL)
5.4 Expressões
É muito fértil a criação de expressões na língua Yaathe, da qual podemos dizer que é
uma língua com uma riqueza metafórica.
Vejamos essa variedade de expressões para falar sobre o passado, para falar do tempo
em que eles eram crianças.
26)
[i tkamãˈʎa kʰiˈa ˈhe]
I tkamanlha khia he.
Quando eu era pequena.
(MAC)
27)
[jaːdedõːkʲamãˈʎa kʰiˈa]
Yaadeonkyamanlha khia.
Quando eu era menina.
(MAL)
28)
[i kkawkaˈsej]
I tkakawsey.
Eu era pequeno. / Eu era pequena.
(ARL)
29)
77
[jaːdedʷãːdoˈa]
Yaadedwandoa.
Eu era menino.
(JOL)
30)
[jaːdedõːkʲãːdoˈa]
Yaadedonkyandoa.
Eu era menina.
(TEE)
31)
[i kkaˈsej ˈhɛ]
I kkasey, he.
Eu era pequeno, hein? / Eu era pequena, hein?
(TEE)
32)
[i kkaˈʎãma kʰiˈa]
I kkalhama, khia.
Eu era pequena.
(IVL)
33)
[i ˈkʰlãːkʲa nokˈno ˈhle]
I khlankya nokno hle.
Eu já fui ficando velha.
(IVL)
78
34)
[i ˈfliw noknoˈka ˈhle]
I fliwa noknoka hle.
Eu já fui ficando velha.
(IVL)
A forma em 33) só aparece na fala de uma anciã, enquanto que a forma em 34) é a
mais comun de se ouvir na aldeia.
36)
[malˈtʃi kʰiˈa ˈhe iˈsi tʃufniˈdʷa kʰiˈa ˈneho toːˈte
Maltxi khia he isi txufnidwa khia neho toote.
Era milho torrado que minha mãe pisava naquele pilão.
5.6 Empréstimos
Na pesquisa realizada com os anciãos sobre suas narrativas, foi coletado dados
relevantes para diversos estudos: históricos, culturais, etnográficos e principalmente
referentes à língua Yaathe. Nesse caminho, lançamos um olhar para identificar algumas
palavras que caracterizam o empréstimo linguístico no Yaathe.
Silva (2009) afirma que “os indivíduos frequentemente carregam traços de sua língua
materna, ou L1, para a segunda língua, ou L2, que venha a adquirir” e acrescenta que isso na
verdade ocorre com a aproximação das línguas. Quando não existem determinados sons, a
tendência é o falante trazer alguns aspectos da L2 para a L1. Mas será que uma língua pode
tomar o espaço de outra? Ou essas modificações de termos linguísticos entre as línguas é
causado pelo contato de uma língua não dispor de formas novas na sua gramática? São muitas
as indagações sobre como acontece esse processo e, assim, trazemos essa discussão para o
campo da língua de nosso povo a partir do contato com português.
Quando analisamos os conteúdos das narrativas dos anciãos, percebemos muitos
exemplos de empréstimos na fonologia, na morfologia, na sintaxe e no léxico. De acordo com
Santos (2009).
O Contato Linguístico é comprovadamente um motivador para mudanças no sistema
linguístico das línguas que por alguma razão estão, ou estiveram, em situação de
contato. Essas mudanças podem ocorrer na fonologia, na morfologia, na sintaxe e no
léxico. O quanto uma língua irá sofrer modificações ou imporá mudanças na outra
dependerá do tempo de contato e de fatores externos como importância econômica e
política de um dos povos ou Nação. (SANTOS, 2009, p.14).
Antes os nossos ancestrais eram nomeados com nomes simbólicos da língua Yaathe.
Por ocasião do contato, passamos a ter no povo Fulni-ô vários nomes dados pelos
missionários: Maria, José, Antônio.
A forma dos nomes foi alterada por conta de não constar alguns sons da língua
portuguesa no Yaathe. Então o nome era modificado foneticamente: Maria passa a ser
pronunciado [maˈli] ou [maˈlia]. Tal alteração se dá por não haver no Yaathe o fonema /ɾ/ do
Português.
José passa a Xicê. Temos aqui duas alterações principais, baseadas também na
ausência no Yaathe de fonemas correspondentes aos fonemas do Português /ʒ/ e /z/. Esses
fonemas são substituídos nos empréstimos pelos fonemas semelhantes existente em Yathe /ʃ/
e /s/. Outras alterações são resultados de diferenças na estrutura da sílaba e da palavra, da
distribuição dos fonemas. (GUSSENHOVEN e JACOBSON, 2002).
Há uma série de nomes próprios que são adaptação de empréstimos da língua
Portuguesa ao sistema fonológico da língua Yaathe.
Sobre os empréstimos, dispomos de padrão de uma língua fonte e de uma língua
receptora, como explica Silva (2009): “no caso do léxico o item que passa da língua fonte
para a língua receptora, sofre um processo de re-análise, uma adequação ao padrão silábico ou
uma adaptação fonológica, na língua receptora é chamado de empréstimo”.
Eventualmente por fazer parte de um contexto onde a língua majoritária ganhou
espaço no território brasileiro, os velhos necessitam de se comunicar, estão no meio onde
termos novos da língua são cada vez mais frequentes, procuram atualmente adaptar-se a essas
novas realidades. Além disso, os velhos Fulni-ô no passado foram imprensados pela cultura
não indígena. Por isso, nos dados das narrativas, vemos que os velhos Fulni-ô trouxeram da
língua portuguesa empréstimos e os adaptaram ao sistema da língua materna, no léxico, na
gramática. Em concordancia com Gonçalves (2007),
As sociedades indígenas, por viverem num país onde a língua oficial não é a sua,
necessitam adquiri-la ou dela se apropriarem, porque a necessidade de comunicação,
seja com poderes públicos, com vizinhos e empregadores, com órgãos de
comunicação social, grupos religiosos, nas relações comerciais e mesmo na escola,
fazem com que os membros dessas comunidades precisem “entender” os vários
discursos da sociedade que os envolve. (GONÇALVES, 2007, p. 259).
Os membros de uma língua indígena, por vários motivos, tiveram que absorver
expressões línguísticas de outros grupos também indígenas, mesmo se eles estevesem
encurralados pelo português. É uma necessidade dos grupos humanos tomar como
empréstimos determinadas nomes de objetos e expressões linguística, faz parte da dinamica
81
39)
[neˈka tẽːpu ˈke] naquele tempo
(ELC)
40)
[viˈzĩȷũ̃ ˈke] no vizinho
(RIM)
82
Nos exemplos acima, os sintagmas são formados por um nome emprestado mais a
posposição do Yaathe /ˈke/ ‘Locativo’.
41)
[baˈduki] bodoque/badoque
(AGF)
42)
[ˈfela] feira
(ELC)
43)
[buˈlakʊ] buraco
(JOL)
44)
[kajˈpɔla] caipora
(JOL)
45)
[iʃˈtɔla] história
(ABS)
49)
[pɛdaˈsowa] /pɛˈdaso-wa/ pedaço-DIM pedacinho
(JOL)
50)
[ɔˈlãːkʲa] /ɔɾa-ne-ka/ hora-FAC-IND tem hora
(MAC)
84
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Contar história é uma dessas ações. Afinal, como sabemos, o ato de contar histórias não
apenas é útil para preservar diversos aspectos culturais de um povo, mas serve também para
disseminar o vernáculo.
Essa pesquisa teve por objetivo central registrar narrativas orais contadas por anciãos
da comunidade Fulni-ô, salvaguardando-as para futuras gerações. Nessas narrativas, o saber é
transportado pela língua que herdamos dos nossos ancestrais. Assim, é a partir do modo da
expressão desses velhos que podemos desvendar o nosso mundo Fulni-ô, adentrando no
imaginário das histórias narradas do nosso passado. Com isso, além de conhecermos o
passado, podemos perceber as regras de conduta de nossa cultura e o que rege a formação
social de nosso povo, uma estratégia de resistência nativa concebida pelo comprometimento
de repasse de saberes tradicionais, intitulados de sabedoria ancestral.
O aprendizado de técnicas de documentação permitiu registrar adequadaente essas
histórias narradas pelos velhos e salvaguardá-las em bancos de dados que permitirão a sua
preservação para futuras gerações. Acreditamos que esses registros serão muito úteis para
estudos diversos sobre a língua e a cultura de nosso povo. A partir disso, será possível, por
exemplo, distinguir formas de Yaathe faladas apenas pelos mais velhos e detectar mudança de
falas entres esses falantes em comparação com as gerações atuais Fulni-ô. Entendemos que a
cultura é dinâmica, do mesmo modo que a língua. No que diz respeito à língua
especificamente, podemos perceber que entre a fala dos velhos e a fala dos jovens existem
diferenças tanto fonéticas quanto morfológicas, lexicais e sintáticas. Evidentemente essas
observações precisam ser validadas futuramente em um estudo dedicado a essas questões.
Pensamos também que o presente trabalho poderá ser importante para a elaboração de
materiais didáticos, que poderão ser utilizados de diversas maneiras em nossa escola indígena.
Com transcrições das narrativas dos velhos, diversos trabalhos podem ser realizados, tanto do
ponto de vista do estudo da língua, quanto do ponto de vista do estudo da cultura do povo
Fulni-ô.
Os resultados deste trabalho, como em todo e qualquer trabalho de documentação
linguística de línguas minoritárias, tem que ser direcionado para própria comunidade e não só
ficar depositado em algum banco de dados para servir como estudos e análises linguísticas
realizadas por membros externos à comunidade. Dessa maneira, estamos seguros de ter
contribuído, com este trabalho, para a área da linguística documental, de uma maneira geral, e
para o nosso povo Fulni-ô, em particular. O registro de narrativas como forma de transmissão
de conhecimentos é essencial para que a comunidade possa se nutrir delas de várias formas, a
fim de assegurar o repasse de saberes do povo.
86
Além disso, mas não menos importante, elaboramos um livro como fruto do presente
trabalho. Trata-se de uma obra trilíngue, feita a partir de todos os dados coletados para o
presente estudo. Assim, além de o povo Fulni-ô ser diretamente beneficiado com os
resultados desta pesquisa, outras pessoas de outras línguas também ganham: poderão ter
conhecimento acerca de aspectos diversos de nossa cultura e de nossa língua através deste
livro, que deverá ser publicado muito brevemente. Terão, dessa maneira, como transitar em
nosso universi, através das histórias vividas por índios Fulni-ô. É importante que se diga aqui
que, para além de nossas expectativas, além da tradução do livro em Yaathe para o português,
prevista desde o início, conseguimos também apresentar versões em Inglês de todas as
narrativas, o que dará ao volume alcance internacional.
O estudo das disciplinas de linguística em geral, e de documentação de línguas, em
particular, durante todas as etapas desse meu período de formação, foi extremamente
importante, pois foi construindo em mim uma apreciação, permitindo que eu conhecesse
métodos adequados e realizasse as tarefas relacionadas ao trabalho com segurança.
Documentando, analisando e comentando os registros das narrativas, passei a olhar e
pensar com outra ótica a minha língua, agora também como pesquisador. Refiro-me aqui
essencialmente a um aprendizado que consegui assimilar por esforço individual e por apoio
comunitário. Como consequência deste trabalho, pude fazer uma imersão em minha própria
língua e em minha própria cultura, observando sons, significados de várias palavras,
expressões linguísticas, gestos, discursos contagiantes, etc. Como acontece com o verdadeiro
conhecimento, a oportunidade que me foi dada para realizar este trabalho colocou-me a frente
de diversas portas, que desejo abrir com entusiasmo.
87
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