Ninguém É Tão Perfeito Que Não Precise Ser Editado

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

Psicologia USP, 2020, volume 31, e190113 1-9

1
Artigo
Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado:
fetiche e busca do corpo ideal
Bianca Bulcão Lucena *
Cristiane Marques Seixas
Francisco Romão Ferreira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo: Este artigo problematiza o aspecto fetichista da imagem do corpo ideal a partir da discussão do calendário
de uma clínica de nutrição e estética. Discute-se a dinâmica de formação de massas, conforme a teoria freudiana, para
pensar como um padrão de corpo perfeito pode ser eleito como ideal a ser alcançado por indivíduos nas sociedades
contemporâneas. A lógica do mercado sustenta a imagem dos corpos ditos perfeitos na posição de fetiche e oferece
acesso a essa suposta conquista por meio de produtos e serviços que trariam plenitude. Tal estratégia busca velar
a castração oferecendo um substituto palpável que nega a falta e afirma a completude do outro, sustentando uma
legião de pessoas que se envolve numa busca quase compulsiva pela realização desse ideal.

Palavras-chave: corpo ideal, imagem do corpo, fetiche, formação de grupos, redes sociais.

Os séculos XX e XXI têm como um de seus marcos “escolhas”. O mercado, enquanto esfera precípua da
a reconfiguração dos espaços sociais proporcionada sociabilidade humana na ordem capitalista, ocupa lugar
por avanços tecnológicos inéditos. Com a disseminação de destaque neste cenário, e a imagem do corpo ou a
de uma nova maneira de explorar o planeta e de nos construção identitária que decorre dela dialoga com
relacionarmos com humanos e não humanos, transitamos as mudanças tecnológicas e com lógica narcisista e
entre o mundo “real” e o “virtual” habitando um espetacularizada das redes sociais.
ciberespaço inimaginável há poucos anos. Este artigo problematiza a questão do ideal da
Os avanços da biotecnociência, da nanotecnologia imagem do corpo perfeito, sua suposta oferta enquanto
e da indústria de fármacos produziram transformações mercadoria e os mecanismos envolvidos na formação de
sociais e em nossos corpos. O aumento da longevidade, uma legião de pessoas que se envolve numa busca quase
o crescimento da medicina estética e a preocupação compulsiva pela realização desse ideal. Considerando o
com alimentação saudável também incorporaram excesso de imagens de corpos que permeiam nossa vida
elementos tecnológicos nos “cuidados” com o corpo, diária com promessas abusivas e irreais na busca do
concebidos quase sempre a partir de uma perspectiva corpo dito perfeito, pretendemos discutir o papel dessas
mercadológica. A transformação dos corpos acontece imagens e como elas figuram em nossa vida, isto é, como
tanto no nível biológico quanto no âmbito da cultura, e elas capturam nossos anseios e desejos.
o senso comum já não percebe nossa estrutura corporal
como uma fatalidade da natureza: o corpo começa a Imagens e corpo
ser transformado e sua imagem pode ser modificada
de acordo com o interesse e a necessidade do sujeito A fluidez e rapidez de informações têm a imagem
(Le Breton, 2003). como facilitador. É possível, fácil e desejável utilizar uma
Ainda que muitas de nossas relações sejam imagem para sintetizar um conjunto de ideias. Em certos
mediadas por aparatos tecnológicos e por novas maneiras aplicativos, a comunicação, no sentido de “transmissão”
de interagir, preservamos características destacadas por de informação por parte do usuário para seus seguidores,
Freud (1921/2006) em seu estudo sobre a formação de é feita quase exclusivamente por meio de imagens.
grupos sociais. No meio do mar de informações e imagens, Ao prescindir de palavras, a imagem ocupa lugar de
nos dividimos em adoradores ou haters1, definindo assim destaque e ganha poder de comunicação e captação
nossas tribos e conferindo uma identidade a partir dessas de adoradores, tornando-as potencial instrumento de
angariação do desejo. Na sociedade de consumidores,
* Endereço para correspondência: [email protected] é preciso se transformar em um produto comprável e
1 Termo usado na internet para classificar pessoas que postam comentários desejável, e, para isso, a “embalagem” é fundamental
de ódio ou crítica sem muito critério, com conteúdo agressivo ou ofensivo. (Bauman, 2008).

http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e190113
Bianca Bulcão Lucena, Cristiane Marques Seixas& Francisco Romão Ferreira
2
Uma das faces desse fenômeno imagético e atribuída a ela? Partimos do pressuposto de que as bases
mercadológico é a noção de “corpo perfeito”. Imagens dessa felicidade são frágeis e a perfeição, inalcançável.
de corpos modelares são propagadas pela mídia e têm Sempre haverá um detalhe no corpo a ser “melhorado”,
aparição expressiva nas redes sociais. Nas bancas de por meio de dietas, treinos ou cirurgias, e no momento
jornal, inúmeras capas de revista exibem fotos das seguinte à transformação começará a busca por outro
barrigas enxutas modeladas no Photoshop, assim como no detalhe a ser modificado, deslocando o sentido da vida
mundo virtual são ostentadas imagens que nos mostram para uma busca narcísica pela perfeição.
corpos ditos perfeitos, incontáveis exemplos de “antes e
depois” do emagrecimento ou da cirurgia, levando-nos Clínica MetaFísicos
a acreditar em promessas que oferecem atalhos para a
realização do corpo ideal. “Quando a beleza desperta desejo pode atingir
Por meio de publicidade, serviços, próteses e o nível superior de uma obra de arte: nossa Meta,
cirurgias, o mercado fornece a ilusão de um corpo perfeito seu Físico”3. É com essa frase de efeito que a clínica
passível de ser conquistado, o qual, por suposto, não é MetaFísicos se apresenta em seu site. Trata-se de um
senão uma idealização. E, mesmo sabendo que atingir a time de dez profissionais, entre eles educadores físicos,
completude de um corpo dito ideal é impossível, muitas cirurgião plástico, psiquiatra, dermatologista, equipe
pessoas investem tempo, dinheiro e energia libidinal de anamneses e exames antropométricos, liderados por
tentando alcançar o que eles mesmos, de um modo ou um nutricionista, com pós-graduação em Autogestão em
outro, sabem ser inalcançável (Ferreira, 2011). Saúde, e um cirurgião plástico, formado no Hospital de
Ou seja, ao mesmo tempo que há a percepção Defeitos da Face.
dessa idealização e de sua impossibilidade, há a Em busca do sucesso atrelado à realização das
busca desmedida por ela e uma negação das possíveis metas baseadas em intervenções nutricionais, cirúrgicas
consequências dessa busca. Opera-se um deslocamento e psíquicas, o cliente conta com uma cartela de serviços
da realidade para o imaginário, outro mundo, feito de diversificada, tais como: rejuvenescimento facial;
formas, ideias e corpos perfeitos no qual devemos malhar, toxina butolínica; preenchimentos; projeções de queixo
fazer dieta ou cirurgias plásticas. e mandíbula; bichectomia; lifting de braço, coxa e púbis;
Mesmo o conteúdo de sites e blogs, que aparentemente cirurgia íntima; laser de CO2; lipoaspirações; inclusões de
promovem a mudança para um estilo de vida mais saudável, próteses de silicone; gluteoplastia; tratamento de gordura
pode conter mensagens que induzem à construção da localizada; entre muitos outros.
imagem do corpo, associando a prática de exercícios e dietas Um aspecto relevante do site MetaFísicos é a
ao corpo dito perfeito. Pesquisas analíticas de conteúdos ideia de gestão oferecida pela equipe: sugere-se que há
recentes sobre blogs de vida saudável (Boepple, Ata, Rum, uma gestão possível para o corpo como se este fosse
& Thompsom, 2014) levaram os pesquisadores a concluir uma máquina ou uma empresa na qual é possível
que a maioria das mensagens encontradas nesses blogs calcular riscos e custos, propor investimentos e cortes,
normaliza a alimentação restritiva, a culpa baseada em e planejar metas e lucros a serem alcançados. A ideia
alimentos, os comportamentos de exercícios exagerados, de um empreendedorismo corporal aparece, aqui,
a objetificação do corpo, a estigmatização do excesso de como se o corpo pudesse ser administrado por regras
peso e o elogio ao corpo magro idealizado. Outro aspecto e comportamentos análogos ao de uma corporação
relevante do consumo de imagens em rede social apontado empresarial, que tem no mercado, por óbvio, seu habitat
por Tiggemann (2015) é que elas estão primordialmente de sobrevivência. O corpo ideal é assim apresentado à
atreladas ao processo de “comparação social” (social medida que, como qualquer mercadoria, é “bem aceito”
comparison), o que leva a um elevado grau de insatisfação. no mercado, tornando bem-sucedidos mutuamente seus
Neste trabalho daremos ênfase à comercialização produtores e consumidores.
desse sonho à luz de conceitos psicanalíticos para Na linha dessa concepção de empreendedorismo
compreender o que permite o crescimento vertiginoso corporal, o mais interessante que encontramos no site,
desse tipo de fenômeno. Como pano de fundo de nossa levando em conta nosso interesse pelas imagens, é o
discussão, destacaremos um produto digital veiculado Calendário MetaFísicos. Trata-se de uma publicação virtual
no site de uma clínica situada em Brasília, denominada que constitui um verdadeiro cartão de visitas ou portfólio
MetaFísicos2, em que figuram imagens de corpos perfeitos da empresa. Assim como em competições de fisiculturismo,
utilizadas pela equipe na produção de seu calendário anual podemos notar que, nas imagens do calendário MetaFísicos,
cujo objetivo final seria a venda de um corpo ideal. há uma preparação dos modelos com exercícios abdominais
Quais são as portas de entrada para esse fenômeno e flexões nos minutos que antecedem as fotos, para que
de fascínio por uma imagem tomada como meta de muitos no momento de captura da imagem os músculos estejam
indivíduos e quais são os efeitos obtidos nesse percurso em seu melhor desempenho. As poses não são aleatórias
em busca da silhueta perfeita e da felicidade plena e remetem à transcendência dos corpos como das estátuas
2 Recuperado de https://bit.ly/2Sxy6O7. 3 (http://www.metafisicos.com.br/site/, 2019)

2 Psicologia USP I www.scielo.br/pusp


Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado: fetiche e busca do corpo ideal
3
gregas e repetem o princípio das poses das competições No site, podemos contemplar vídeos e fotos
de bodybuilding. Com ares de Olimpo, os pacientes que do making of e testemunhos dos participantes.
apresentaram as melhores performances no ano anterior Os patrocinadores, em sua maioria, representam a
emprestam suas imagens – as imagens de seus corpos – indústria de manipulação farmacêutica e de suplementos.
para ilustrar o catálogo anual da empresa. São eles: Adaptogen, Biomundo, Farma Diet, Vico Farma,
A mídia “calendário” com fotos de corpos Vitale, Nutricorpus, entre outras. São empresas que, em
ilustrando os meses do ano tem como ponto de partida uma palavra, vendem serviços cujo resultado é você.
o catálogo mais famoso do mundo, o Calendário Pirelli, A clínica e seus parceiros produzem corpos que assumem
lançado em 1964. Na ocasião, o catálogo The Cal foi ares de deuses gregos e sustentam, assim, uma aparência
criado como uma inovadora estratégia de marketing de completude, sucesso e felicidade.
para a marca e, ao longo desses mais de cinquenta anos, Os pacientes que chegam à clínica buscam um
transformou-se esteticamente. Sempre com renomados corpo que obedeça ao planejamento e chegue ao resultado
fotógrafos e mulheres maravilhosas em paisagens pré-estipulado. Essa peregrinação atrás de uma imagem
estonteantes, o catálogo esteve atento às modificações digna de uma estátua grega parece não ter fim: adentra-se
sociais e fatos relevantes culturalmente, sendo um ícone uma série de “mais um ajuste e mais outro e ainda não
cult antenado às mudanças dos tempos. ficou bom”, que visa a chegar ao corpo dito ideal. Contudo,
Seguindo essa lógica, a cada ano a empresa no mundo dos corpos humanos reais, os elevados índices
MetaFísicos elege um tema para retratar seus ilustres clientes. de obesidade, os insucessos dos programas dietéticos e
Em 2019, a clínica apresenta o calendário Neon, que faz os fracassos das cirurgias plásticas nos colocam diante
um revival dos anos 1980, remetendo ao ritmo frenético do impasse da desobediência do corpo. O corpo humano
da ginástica de academia, com muita acrobacia, como era é muito mais que a soma ou conjunto de órgãos que
comum àquela época. Retrata em seus meses os corpos de funcionam numa lógica puramente organicista. Ele está
23 pacientes (onze mulheres e doze homens) em minúsculas submetido à nossa humanidade, às palavras, aos desejos
roupas de cores vibrantes, cenários marcados por luz neon e e ao inconsciente.
embalados por músicas famosas do período referido. O título deste artigo, “Ninguém é tão perfeito que
Em 2018, na sexta edição do calendário, o tema não precise ser editado”, foi uma frase escutada na clínica
adotado para sua produção foi os signos do zodíaco. particular, dita por uma paciente de vinte anos que divide
Consta na ficha técnica: sua vida com muitos seguidores no Instagram. A fala nos
sugere não somente o uso de inúmeros filtros e ajustes
O calendário MetaFísicos apresenta sua edição aplicados nas fotos, como também nos faz pensar onde está
para o ano de 2018 exibindo os pacientes que essa perfeição. Afinal, que corpo é esse? Quem o forjou?
apresentaram as melhores performances em 2017: Um objeto ou ideia para que tenha um alcance de tamanha
Ilustra trajetórias de comprometimento, foco e abrangência e força que possui este ideal do corpo perfeito
superação, articulando as bases da clínica de saúde, na atualidade precisa de algo que dê a liga, que sustente
atividade física, beleza e envelhecimento bem- e mova um conjunto de pessoas que, ofuscadas por essa
sucedido. . . . Essa é a motivação: nossos pacientes, promessa, se ofereçam como seguidores.
nossos modelos. Nossa meta, seu físico. Um 2018
MetaFísicos! Para o alto e avante! Positividade!4 A pregnância da imagem na atualidade

No ano de 2017, o calendário “Terra de Gigantes!” Estamos constantemente influenciados por


homenageou Brasília, cidade-sede da empresa, para inúmeras tecnologias que enaltecem as imagens e que,
mostrar que “a capital não se resume à política e celebra de certa forma, alimentam o que somos, achamos que
os traços monumentais do arquiteto Oscar Niemeyer nos somos e, sobretudo, o que queremos ser: filmes, anúncios,
corpos de seus cidadãos”5. TV, design, moda, compartilhamento digital de fotos e
O ano de 2016 homenageou as Olimpíadas que aplicativos como Facebook, Twitter e Instagram. Todas
ocorreram no Rio de Janeiro e, em 2015, foi a vez do as imagens que consumimos expressam em si mesmas a
céu de Brasília, tendo como locação o heliponto do hotel visão de mundo ou interesse de seu autor/difusor (Rose,
Meliá Brasília, do Complexo Brasil XXI. O de 2014, 2016). Um anúncio de grife de roupa ou perfume em uma
por sua vez, teve como tema a Copa do Mundo realizada revista, por exemplo, costuma se resumir a uma foto e
no Brasil e, como cenário, o Estádio Nacional de Brasília uma assinatura. Tal foto comumente nos oferece um
“Mané Garrincha”. O primeiro da série, lançado em 2013, universo de informações como o que é ser um consumidor
teve como tema ou uma comemoração referente a cada daquela marca, daquele cheiro. Sintetiza em si infinitas
mês (como Natal em dezembro) ou temas clichês como mensagens. Ao consumirmos o dito perfume, acreditamos
noivas, cowboy, Natal, mágico e assistente etc. fazer parte daquele perfumado mundo constituído pelos
modelos, hábitos e valores da propaganda visual: é como
4 Recuperado de https://bit.ly/3flPi2y se fôssemos, um pouquinho que seja, parte daquela casta.
5 Recuperado de https://bit.ly/3fj8Ip6 Desperta-se, assim, o desejo de determinado número de

Psicologia USP, 2020, volume 31, e190113 3


Bianca Bulcão Lucena, Cristiane Marques Seixas& Francisco Romão Ferreira
4
pessoas que passam a consumir não só o produto, como psíquicos individuais e sociais coletivos permitem que
também um estilo, um ethos, um modo de ser. esse poder seja atribuído a determinado tipo de imagem,
Essas imagens que exibem corpos ideais, esperados ainda que essas imagens sejam substituídas de tempos
e desejados se tornam, para alguns dos seguidores, uma em tempos (Seixas & Lucena, 2016).
meta única que guia a vida em suas variáveis extensões. Nascido no contexto de uma tentativa de desvendar
Provocam, entretanto, uma fragilização do pensar e da o progresso das crenças religiosas, o conceito de fetiche
capacidade de elaborar, pois a ideia do uso da imagem está vinculado à crença em objetos materiais divinizados
como metáfora dos valores atribuídos a ela faz que ela cujo estágio mais rudimentar é o fenômeno religioso
sintetize tudo o que uma pessoa deseja para sua vida, (Fleck, 2015). O conceito ganha uso revolucionário tanto
representando o objeto do desejo que, quando alcançado, na teoria marxista quanto na teoria freudiana, já que,
realizaria o sonho da plenitude e felicidade. apesar de ser cunhado para definir o indivíduo “não
O que se apresenta nesse jogo não é somente o civilizado” que acredita no poder miraculoso de certos
corpo, mas certamente o que tê-lo significa. Em meio à objetos divinizados, é passível de ser aplicado também ao
realimentação da ideia do self-made man, do homem que comportamento dos indivíduos “esclarecidos europeus”
deve supostamente inventar a si próprio na tentativa de das sociedades urbanizadas e industrializadas. Neste
não ser simplesmente uma figura a mais do rebanho, o artigo, o conceito de fetiche colabora para o entendimento
corpo do indivíduo se torna um produto para dar conta do da lógica que opera na formação de seguidores do site
“como eu quero que as pessoas me vejam”, fortalecendo MetaFísicos ou tantos outros espaços sociais, virtuais ou
uma ideologia da estética corporal. não, em que a imagem do corpo se tornou um fetiche.
A imagem que se presta a meta, guia, foco Na teoria marxista, ao ser analisado o modo
e objetivo que a clínica MetaFísicos fornece tem por capitalista de produção, o conceito de fetiche aparece
consequência uma eterna peregrinação por parte do associado a três entidades: a mercadoria, o dinheiro
consumidor em busca da realização de uma meta de e o capital. Para Fleck (2015), essas entidades têm
perfeição que, por se tratar de uma imagem, é sempre em comum o fato de “serem, ao mesmo tempo, algo
ilusória. A enorme aderência a essa busca por uma sensível e suprassensível, físico e metafísico, ou, mais
mesma representação do corpo que seria ideal pode ser precisamente, serem coisas que servem de suporte para o
considerada por mais de um viés, pois o corpo “perfeito” valor” (p. 47). A mercadoria teria em si um duplo valor,
muda com o tempo. tanto de troca como de uso, sendo o valor de uso aquele
A apropriação do discurso da saúde é o xeque- que se agrega ao produto por ser desejado e atender a
mate. A hegemonia do discurso do saudável é taxativa e uma necessidade, mesmo que esta seja uma fantasia.
se mostra em certos estilos discursivos recorrentes que O valor de troca de determinada mercadoria, por outro
compõem uma retórica que privilegia tanto a exacerbação lado, pode aparecer incorporado no dinheiro ou, ainda,
do cuidado com a saúde quanto a comercialização de em outra mercadoria. Pode, assim, ser percebido em
um ideal de saúde perfeita (Sfez, 1996) que, no caso, características creditadas como propriedades inerentes
vincula-se ao corpo magro e definido por exercícios aos objetos materiais e determinadas pelas relações
físicos. Com todo o avanço científico e tecnológico, sociais em vigor, como se o valor de certo objeto ou
podemos nos questionar quais são os limites na busca mercadoria fossem valores naturalmente pertencentes
disso que falta – desses músculos, da barriga “negativa” a eles (Marx, 1867/2013). Assim, “as coisas tornam-se
ou de qualquer outra falta – a partir da qual a equipe portadoras de uma característica social historicamente
da referida clínica se propõe, ano a ano, a vender um específica” (Bottomore, 1988, p. 150) e carregam em si
produto que recubra. muito mais do que genuinamente são. Engendram desejos
e fomentam a possibilidade de satisfação prometida pela
Corpo, mercadoria e fetiche mercadoria no mundo capitalista.
Esse fenômeno, que aqui nomeamos como o
Conforme explicitou Guy Debord (1997), o fetiche do corpo perfeito, está presente em diferentes
espetáculo se tornou o novo laço social. No caso em tela, a discursos, da ciência ao senso comum, passando pelos
protagonista do espetáculo é a imagem do corpo, um ícone profissionais de saúde e os meios de comunicação em
que carrega consigo uma série interminável de crenças, massa. Nesses discursos há também uma profusão de
apostas, valores e desejos. Esses corpos materializam sentidos que se mesclam à – e ajudam a configurar a –
normas, códigos e projetos a serem executados e atuam ideologia dominante, a qual difunde valores sociais e
como controladores do comportamento (Coutinho, morais hegemônicos. A ideologia, conceito marxiano, é
2017). Apesar de serem entendidas como a expressão concebida como representação “invertida” da realidade
das escolhas próprias e objeto de marketing pessoal, essas no plano da consciência oriunda de uma “inversão” da
imagens de corpos ditos perfeitos são verdadeiros fetiches: própria realidade, como podemos observar nas sociedades
objetos materiais tributários de poderes mágicos e de um capitalistas voltadas para a produção de mercadorias, e
imaginário que os elevam e sustentam no lugar de objetos não para as necessidades humanas propriamente ditas.
do desejo. Interessa-nos entender quais mecanismos É remetendo a essa “inversão” existente no âmbito

4 Psicologia USP I www.scielo.br/pusp


Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado: fetiche e busca do corpo ideal
5
produtivo capitalista – no qual os valores de uso se que traria satisfação está desde sempre perdido. O falo
subordinam aos valores de troca e o produtor parece se como significante do desejo se exclui da série de objetos
curvar ao seu produto – que Marx explica as “inversões” imaginários e se torna o padrão simbólico que possibilitará
existentes na subjetividade humana (Larrain, 1988). que quaisquer objetos sexuais sejam equivalentes, isto
As formas ideológicas têm por faculdade é, estabelece a castração como referência fundamental
obscurecer as contradições existentes no plano real, para o desejo do sujeito.
proporcionando assim uma representação deformada da Na concepção psicanalítica, o fetiche como substituto
realidade na subjetividade do sujeito, representação esta do falo velaria a castração, oferecendo um substituto palpável
que surge como algo isento dessas mesmas contradições que nega a falta e afirma a completude do outro, fixando
reais que produziram a deformação. Assim, ao projetar a satisfação a um único objeto. Se no fetichismo esse
na consciência dos indivíduos uma representação mecanismo é estruturante do psiquismo, Freud (1905/2006)
distorcida da realidade, as ideologias funcionam enquanto afirma que, em certa medida, ele está presente no amor
legitimadoras dessa mesma realidade que não apreendem objetal dito normal, já que oferece um objeto de satisfação
em sua essência. possível ou um padrão de escolha objetal.
Nesse sentido, a imagem do corpo dito perfeito
assume a forma de uma mercadoria cujo valor de uso se A situação só se torna patológica quando o
encontra subordinado ao valor de troca, fazendo as relações anseio pelo fetiche passa além do ponto em que
sociais que subjazem a ela serem obscurecidas. A ideologia é meramente uma condição necessária ligada
da estética corporal, propagadora do ideal de corpo perfeito, ao objeto sexual e efetivamente toma o lugar do
não só não escapa a essa dimensão fetichista – na qual as objetivo normal, e, mais, quando o fetiche se desliga
relações entre pessoas aparecem como a relação entre coisas – de um determinado indivíduo e se transforma no
como a evidencia. Por meio de tal ideologia, a perspectiva único objeto sexual. (p. 140)
de um corpo verdadeiramente saudável, de um corpo como
“valor de uso”, por assim dizer, é subordinada pelos sujeitos Assim como uma negação à castração, e à não
ao “valor de troca” de tal corpo, a saber, à mercadoria “corpo completude característica do humano, a busca da perfeição
perfeito” supostamente acessível via mercado. lança o sujeito em uma eterna peregrinação rumo ao Eu
Compreender o corpo ideal como fetiche nos habilita idealizado, que seria dotado de todos melhores atributos e
a avançar no que diz respeito ao que captura o sujeito completude. Os objetos superinvestidos, objetos libidinais
na trama dessas imagens para além da macroestrutura aos quais são atribuídas propriedades além de seu valor
econômica, como podemos entender a partir de uma usual, ganham o caráter de fetiche para a psicanálise
leitura sociológica do fetiche. Embora de modo diverso ao representarem a possibilidade de satisfação total
ao de Marx, outro autor que faz o uso revolucionário desse num processo de negação à falta originária instaurada
conceito é Freud, ao propor uma leitura do fetiche a partir no psiquismo humano e possibilitadora de toda sua
de teoria da sexualidade. Para Freud (1927/2006), trata-se engrenagem desejante.
de definir uma patologia (o fetichismo) que elege o fetiche A ideia de um corpo ideal e sua completude
como objeto sexual em função de uma impossibilidade de colocada no lugar de fetiche apazigua a angústia diante
reconhecimento da castração. Essa construção teórica se dá do vazio, recobrindo-o. Faz pessoas que o elegem
no seio dos desenvolvimentos freudianos acerca da teoria como ideal, como meta de vida, agirem de maneira
da libido e de suas fases do desenvolvimento cujo curso peculiar. Mesmo sabendo que a imagem compartilhada
“normal” seria o reconhecimento da castração, ou da sua virtualmente provavelmente foi editada e os músculos
ameaça, que se articularia ao complexo de Édipo, levando dispostos de maneira precisa para simular uma perfeição,
à regulação dos impulsos sexuais incestuosos. Entretanto, essa promessa de êxito atua sobre os indivíduos elidindo
ao analisar essa patologia, Freud identifica um mecanismo a dimensão consciente de suas escolhas. O filósofo Zizek
de defesa que consiste numa recusa (Verleugnung) do (1996) expande ainda mais essa ideia e engloba todo o
indivíduo em reconhecer a realidade da castração, cuja contexto social:
percepção se torna traumatizante.
Para Freud, o complexo de castração está há uma nova maneira de ler a fórmula marxista
relacionado a todos os desdobramentos psíquicos “disso eles não sabem, mas o fazem”: a ilusão não
posteriores. Trata-se de uma operação que permite ao está do lado do saber, mas já está do lado da própria
sujeito articular simbolicamente a perda primordial realidade, daquilo que as pessoas fazem. O que elas
enquanto falta simbólica. Ou seja, o complexo de não sabem é que sua própria realidade social, sua
castração instala uma dicotomia fálico/castrado, em que atividade, é guiada por uma ilusão, por uma inversão
a menina fica indelevelmente marcada pela inveja do fetichista, o que desconsideram, o que desconhecem,
pênis (penisneid), enquanto o menino, pela ameaça da não é a realidade, mas a ilusão que estrutura sua
castração; ambos circunscritos ao campo da falta fálica realidade, sua atividade social. Eles sabem muito bem
(Freud, 1924/2006). Dessa forma, fica definida uma como as coisas realmente são, mas continuam a agir
impossibilidade de satisfação total, uma vez que o objeto como se não soubessem. (p. 316)

Psicologia USP, 2020, volume 31, e190113 5


Bianca Bulcão Lucena, Cristiane Marques Seixas& Francisco Romão Ferreira
6
Esse “objeto” que cada um elege como especial das moças do pensionato, quando uma delas recebe uma
no intuito de dar conta da própria existência não é, carta de amor e todas as outras adoecem como ela por
dialeticamente, senão a expressão pura da falta. O fato identificação. Neste caso, o mecanismo da identificação ao
de sermos seres essencialmente faltosos é o que nos desejo (identificação histérica) desenvolvido por uma das
impele a forjar algo que possa dar conta desse furo, dessa moças opera sobre a base de poder ou querer colocar-se
ausência, e assim investimos sucessivamente em novos na mesma situação. Trata-se de uma identificação parcial
objetos de desejo. (o desejo de estar na mesma posição da moça que recebe
a carta, a partir do qual se desdobra a identificação) que
Corpo ideal, efeito de grupo aponta para uma coincidência entre os dois “eus” e indica
a Freud o caminho para compreender os fenômenos
Além da ideia de fetiche em Marx e Freud, vale de identificação nas massas ou grupos. Analisando os
nos perguntarmos por que acontece de muitas pessoas exemplos do exército e da igreja, Freud chega à conclusão
viverem a atribuir valor excessivo a certas coisas com que, nessas massas altamente organizadas, o que opera
as quais outros pouco se importam. Ou seja, o que leva como elo entre os indivíduos não é o laço entre eles, e sim
determinado grupo (e não todo ser humano) a essa o laço identificatório que cada um, um a um, estabelece
atitude de adoração e submissão ao objeto desejado que com o líder. Para Freud, o líder colocado no lugar de ideal
tem por efeito a formação de verdadeiros coletivos que do eu carrega o traço que une os indivíduos e fazem que
compartilham esse ideal? eles sucumbam a uma atitude devotada.
Para Freud, esse efeito pode ser entendido por meio de Uma das instâncias psíquicas propostas por Freud
um conceito-chave: a identificação e seu efeito coletivo que ao longo de sua teoria e utilizada no referido texto para o
se expressa na constituição das massas ou de grupos. Apesar entendimento das diferentes formas de identificação é o
de tratar da identificação desde seus primeiros trabalhos, ideal do eu. Para Freud (1914/2006), o ideal do eu contém
só em 1921 Freud (1921/2006) aprofunda sua teoria acerca uma parcela individual e uma social que pode corresponder
desse conceito num texto em que elenca tipos distintos de ao ideal comum de uma família, um grupo ou até mesmo
identificação e que é referência para o entendimento das de uma nação. Trata-se de uma instância psíquica cuja
formações de grupos nas sociedades humanas. função é, ao mesmo tempo, regular o eu, fornecendo uma
Se inicialmente olhamos para o fenômeno social medida em relação ao ideal perdido e inalcançável, e guiar
que ocorre ao consumirmos massivamente o ideal de o sujeito em direção ao seu desejo. É também essa instância
corpo perfeito, podemos pensar concomitantemente como psíquica, o ideal do eu, que opera de modo determinante
isso se dá de forma individual, pois, como nos diz Freud nas formações de massas ou grupos, pois, nesse caso, um
(1921/2006), a psicologia individual não está apartada do objeto é alçado ao lugar do ideal do eu marcando um ponto
meio social. A própria psicologia individual trabalha a de convergência de diferentes “eus”, alinhando seu desejo
partir de laços sociais e constitui um caminho legítimo pelo ideal. Daí resulta o efeito de hipostasia e fascinação
para compreendermos a sociedade. A maneira como em diversos indivíduos, independentemente da relação
os indivíduos se agrupam e formam uma “massa” e as que estabeleçam entre si.
consequências dessa coesão que transforma os indivíduos E quando um corpo dito ideal ou a imagem do
em prol de suas bandeiras de grupo são objeto de seu estudo. corpo dito ideal é alçado ao lugar do ideal do eu? Podemos
O efeito de fascinação que a ideia de corpo ideal pensar que ele, em forma de imagem, torna todos os
exerce sobre determinados grupos merece aqui atenção aspectos relacionados a esse ideal em algo palpável,
especial, uma vez que ganha contornos peculiares. passível de medidas, quiçá alcançável? Para aquele que
Segundo o psiquiatra e arqueólogo francês Gustave não o tem e o deseja, ele se torna uma mercadoria a ser
Le Bon (1954), o grupo nos coloca numa espécie de comprada e usufruída. As imagens do calendário a que
“mente coletiva” que nos faz pensar, agir e sentir de esse trabalho se refere encarnam a ideia de completude,
modo diferente do que faríamos individualmente. Somos plenitude, felicidade e sucesso. A satisfação com essa
tomados de poder e impulsos que não sustentaríamos mercadoria requer que o indivíduo possa se olhar após as
de forma isolada. Le Bon propõe também a ideia de um inúmeras transformações e se entender perfeito e pleno,
fenômeno de contágio, que faz sentimentos e atos serem velando toda “falta”, própria de nossa humanidade.
contagiosos quando o indivíduo está no grupo, o que seria Se Freud se dedicou a entender as mais relevantes
um efeito da sugestionabilidade. É possível também que formações de massas de sua época (o exército e a Igreja),
o interesse coletivo sobressaia ao interesse individual, o atualmente não podemos nos furtar a refletir sobre a
que seria um caráter hipnótico de grupo. expansão desse efeito em tempos de prevalência da
Esse fenômeno do contágio ou do laço hipnótico realidade virtual. Em todas as novas modalidades de
descrito por Le Bon interessa a Freud à medida que formação de grupos virtuais, os indivíduos almejam algo
lança luz sobre o fenômeno da identificação. Dentre em comum: seja um traço, um desejo, um mesmo líder ou
as diferentes nuances da identificação trabalhadas por o interesse por um mesmo objeto. Segundo Peixoto (2014),
Freud (1921/2006), destacamos aqui a terceira forma de redes sociais digitais se caracterizam pela construção de
identificação, apresentada por ele a partir do exemplo agrupamentos de indivíduos que produzem e reproduzem

6 Psicologia USP I www.scielo.br/pusp


Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado: fetiche e busca do corpo ideal
7
identidades para fins de associação e afinidade no O corpo humano, marcado pela palavra, não
ambiente on-line. A dinâmica de grupo se expande no se esgota em imagens. Faz uso delas, é verdade, mas
ambiente virtual ainda que preserve os princípios que sempre as extrapola. Ainda que, como resultado de uma
regem o que vem a ser a formação de massas ou grupos. intervenção estética, um corpo se encaixe nas medidas
A fluidez do ambiente virtual e a quantidade de estipuladas por um programa, a equivalência disso com
membros que interagem e se manifestam simultaneamente a felicidade não está garantida. Esperamos que ainda
ou em breve temporalidade fornecem novas marcas nos falte alguma coisa, que a falta opere e o objeto mude,
grupos e em seus membros. O novo modo de encontrar seja substituído e, assim, a vida siga com suas nuances,
pares afins foi fortemente alterado, por exemplo, curvas e rugas em consonância com o deslizamento
no Facebook ou no Instagram, pelo algoritmo EdgeRank6, desejante. Do contrário, a “adesividade da libido”
que, a partir de dados pessoais e histórico de navegação na busca da concretização do ideal, continuando o corpo
dos usuários, direciona as postagens que supostamente dito perfeito a ser indiscutivelmente a meta final, nos
mais os agradarão. Terão minimamente afinidade com chega em forma de fetiche.
algum traço do usuário daquele perfil, reforçando o As escolhas do sujeito, as afinidades e,
efeito de sugestionabilidade entre os membros de um principalmente, o compartilhamento de um ideal tão
grupo pela repetição das atitudes de outros membros. tirânico quanto o do corpo perfeito têm inevitavelmente
A partir do momento que seus relacionamentos on-line rastro social. Charles Melman (2008) sugere que há uma
são ditados por afinidades, observa-se que “O único som “nova economia psíquica” com base em fatos sociais e
que escutam é o eco de suas próprias vozes” (Bauman, econômicos da contemporaneidade. São efeitos como o que
2016, p. 19). Os grupos se tornam uníssonos, e a diferença acabamos de mencionar que afetam o social e individual em
é tratada a partir da exclusão. um mesmo golpe. Efeitos em que o mercado aparece como a
Essa característica de grupo, em que crenças e esfera única de sociabilidade, fazendo até mesmo o sujeito se
valores individuais ficam à sombra do valor “maior” que ver como mercadoria. Consumimos tudo, até a nós mesmos.
une aqueles indivíduos enquanto grupo, gera uma espécie Trocamos nossas vidas por uma imagem no lugar do Ideal
de apagamento das individualidades. Segundo Bedran pelo qual possamos nos avaliar e nos validar. O autor retoma
(2014), em grupo aceita-se exaltar um mesmo objeto como a formulação de Marcel Gauchet em La religion dans la
hipnotizado pela ideologia, pelas ideias e pelos ideais démocratie: “É a uma verdadeira interiorização do modelo
comuns, e a aceitação e o pertencimento que os grupos do mercado que estamos assistindo – um acontecimento
corroboram. Uma das consequências desse apagamento de consequências antropológicas incalculáveis, que mal
e massificação do pensamento é a vulnerabilidade que começamos a entrever” (Gauchet, 1998, p. 87).
o grupo encontra mediante o manejo e a manipulação. Da mesma maneira, José Paulo Netto (2011) trabalha
Ao se questionarem e irem – na contramão da massificação – a questão da “captura” dos espaços privados pela lógica
de encontro ao seu próprio desejo, os sujeitos podem particular do capitalismo, que tenderia a adentrar todos os
vislumbrar uma saída para a homogeneização característica setores, não somente a vida pública, mas, igualmente, a
da cultura de massa. Em nosso caso, consideravelmente privada. Há, assim, uma espécie de dominação sobre os
mais corriqueiro, um site oferece um produto que indivíduos, seus possíveis consumos, seus gostos.
mercadologicamente conquistou um exército de seguidores
insaciáveis: o corpo dito ideal com recheio de completude, Aqui é o inteiro cotidiano dos indivíduos que tende a
felicidade e sucesso que, no final, constitui uma recusa da ser administrado, um difuso terrorismo psicossocial
dimensão faltosa e desejante do humano. se destila pelos poros da vida e se instila em todas
as manifestações anímicas e todas as instâncias
Uma nova economia psíquica? que outrora o indivíduo podia reservar-se como
áreas de autonomia (a constelação familiar, a
Por seu caráter pulsional, o humano não vive em organização doméstica, a fruição estética. . .)
uma relação clara e direta com um objeto específico, convertem-se em limbos programáveis como áreas
à maneira dos animais com seus instintos. Vivemos de valorização potencial do capital monopolista.
referenciados, pelo contrário, a uma perda, à falta de um Uma mercantilização universal das relações sociais.
objeto tão predeterminado quanto perdido. Assim, esse (Paulo Netto, 2011, p. 39)
objeto pode ser chamado de “objeto causa de desejo”
(Lacan, 2005), algo que pode estar sempre em falta e Enquanto alvos da cultura midiática e de propaganda,
nos coloca em eterna busca, um objeto perdido que se nós, ao tomarmos os produtos oferecidos como objetos
presta a ser qualquer um, desde que eleito pelo desejo. de desejo comum em lugar dos gostos particulares, nos
convertemos em massas sociais manipuláveis e acabamos
por propagar mais ainda os ideais propostos por essa
6 O EdgeRank é o mecanismo que permite filtrar as publicações que indústria. Consequentemente, a ideia de ter ou poder ter
surgem no seu mural de acordo com três critérios: afinidade, relevância
e tempo. Quanto mais interação entre os perfis ou páginas do Facebook, acesso a isso que apazigua a angústia, por meio da oferta
maior é a afinidade. de produtos e soluções que deem conta das falhas e da falta,

Psicologia USP, 2020, volume 31, e190113 7


Bianca Bulcão Lucena, Cristiane Marques Seixas& Francisco Romão Ferreira
8
no ser ou no corpo, nos enquadra em uma equação que quilos a mais ou a menos. Tal busca envolve uma maneira
encobre o desejo. Nossa subjetividade é peça fundamental de ver, de ser e de ser visto, determinando como uma pessoa
de uma engrenagem bilionária e nós, em nossa ávida busca se encaixa no jogo de sua vida. Há, portanto, uma questão
por uma felicidade plena e garantida, nos oferecemos como ética na relação com os objetos do desejo, uma vez que
peões nessa lógica fetichista. só há sujeito enquanto for possível a dimensão subjetiva
Entretanto há sempre um “a mais” nessa busca, pois da falta. Se na fantasia tudo podemos, quem ainda impõe
esse ideal engloba muito mais do que a variação de alguns um limite é o corpo, o biológico, que se põe a adoecer.

No one is so perfect that they need not be edited: Fetish and the search of the ideal body

Abstract: This article analyzes the calendar of a nutrition and aesthetics clinic to discuss the fetishistic aspect of the ideal body
image. We verify the dynamics of mass formation, according to Freudian theory, to posit how a perfect body pattern can be
elected as the ideal to be achieved by individuals in contemporary societies. The logic of the market sustains the image of the
so-called perfect bodies in the position of a fetish, offering access to this supposed conquest through products and services that
would lead to fulfilness. This strategy aims to veil castration by offering a palpable substitute that denies the faults and affirms the
completeness of others, sustaining a legion of people engaged in an almost compulsive quest towards accomplishing this ideal.

Keywords: ideal body, image of the body, fetish, mass movements, social networks.

Personne n’est si parfait qu’il n’a pas besoin d’être édité : Fétiche et la recherche du corps idéal

Résumé: Cet article questionne l’aspect fétichiste de l’image du corps idéal par l’analyse du calendrier d’une clinique de nutrition
et d’esthétique. Nous discutons de la dynamique de la formation de masse, selon la théorie freudienne, pour réfléchir comment
un modèle corporel parfait peut être élu comme idéal à atteindre par les individus dans les sociétés contemporaines. La logique
du marché soutient l’image des corps dits parfaits comme un fétiche et permet d’accéder à cette supposée conquête à travers
des produits et services qui en apporteraient la plénitude. Cette stratégie vise à assurer la castration en offrant un substitut qui
nie le manque et affirme la perfection de l’autre, soutenant une légion de personnes qui se lancent dans une quête compulsive
pour la réalisation de cet idéal.

Mots-clés: corps idéal, image corporelle, fétiche, formation de groupe, réseaux sociaux.

Nadie es tan perfecto que no necesita ser editado: fetiche y búsqueda del cuerpo ideal

Resumen: El presente artículo problematiza el aspecto fetichista de la imagen del cuerpo ideal a partir del análisis del calendario de
una clínica de nutrición. Se discute la dinámica de formación de masas, según la teoría freudiana, para pensar cómo un patrón de
cuerpo perfecto puede ser elegido como lo ideal a ser alcanzado por individuos en las sociedades contemporáneas. La lógica del
mercado sostiene la imagen de cuerpos perfectos en fetiches y ofrece acceso a esa supuesta conquista por medio de productos y
servicios que traerían la plenitud. Tal estrategia pretende velar la castración, ofreciendo un sustituto que niega la falta y afirma la
completud del otro, lo que sostiene una legión de personas involucradas en una búsqueda casi compulsiva para concretizar ese ideal.

Palabras clave: cuerpo ideal, imagen del cuerpo, fetiche, formación de grupos, redes sociales.

Refêrências

Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: a transformação Bottomore, T. (1988). Dicionário do pensamento marxista.
das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
Bauman, Z. (2016). As redes sociais são uma armadilha. Coutinho, C. O. (2017). “Não existe gosto melhor do que o
El País. Recuperado de https://bit.ly/2WcYI81 gosto de ser magra”: o controle nos blogs pró-anorexia
Bedran, C. K. (2014). Da homogeneidade das massas ao e pró-bulimia (Dissertação de mestrado). Universidade do
singular do desejo. Ide, 36(57), 133-148. Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.
Boepple, L., Ata, R., Rum, R., & Thompson, J. (2014). Strong Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de
is the new skinny: a content analysis of fitspiration Janeiro, RJ: Contraponto.
websites. Body Image, 17, 1740-1445.

8 Psicologia USP I www.scielo.br/pusp


Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado: fetiche e busca do corpo ideal
9
Ferreira, A. B. H. (1999). Novo Aurélio século XXI: o Marx, K. (2013). O capital, livro I: crítica da economia
dicionário da língua portuguesa (3a ed.). Rio de Janeiro, política. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original
RJ: Nova Fronteira. publicado em 1867)
Fleck, A. (2015). De meios que se tornam fins: o conceito de Melman, C. (2008). O homem sem gravidade: gozar a
fetichismo na obra de Theodor W. Adorno. Dissertatio: qualquer preço. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de
Revista de Filosofia, 42, 45-61. Freud.
Freud, S. (2006). Tres ensayos de teoria sexual. In Obras Paulo Netto, J. (2011). Capitalismo monopolista e serviço
completas (Vol. VII, pp. 109-223). Buenos Aires: Amorrortu social. São Paulo, SP: Cortez.
Editores. (Trabalho original publicado em 1905) Peixoto, Z. (2014). O Facebook para além da rede social. O
Freud, S. (2006). Introducción del narcisismo. In Obras usuário como consumidor-mercadoria. In C. Porto & E.
completas (Vol. XIV, pp. 65-98). Buenos Aires: Amorrortu Santos (Orgs.), Facebook e educação: publicar, curtir,
Editores. (Trabalho original publicado em 1914) compartilhar (pp. 221-236). Campina Grande, PB:
Freud, S. (2006). Psicologia de las masas y análisis del yo. In EDUEPB.
Obras completas (Vol. XVIII, pp. 63-127). Buenos Aires: Rose, G. (2016). Visual methodologies: an introduction to
Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1921) researching with visual materials (4a ed.). Los Angeles:
Freud, S. (2006). El sepultamiento del complejo de Edipo. In Sage.
Obras completas (Vol. XIX, pp. 177-187). Buenos Aires: Seixas, C. M. & Lucena, B. B. (2016). O mundo não é um
Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1924) spa. In S. D. Prado, L. Amparo-Santos, L. F. Silva, M.
Freud, S. (2006). Fetichismo. In Obras completas (Vol. XXI, G. Araniz, & M. L. M Bosi, Estudos socioculturais em
pp. 143-152). Buenos Aires: Amorrortu Editores. alimentação e saúde: saberes em rede (pp. 279-296).
(Trabalho original publicado em 1927) Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ.
Gauchet, M. (1998). La religion dans la démocratie. Paris: Sfez, L. (1996). A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia.
Gallimard. São Paulo, SP: Loyola.
Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia, 1962- Tiggemann, M. & Zaccardo, M. (2004). “Exercise to be
1963. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. fit, not skinny”: the effect of fitspiration imagery on
Larrain, J. (1988). Ideologia. In T. Bottomore, Dicionário women’s Body Image. Body Image, 15, 61-67.
do pensamento marxista (pp. 184-187). Rio de Janeiro, Zizek, S. (1996). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, RJ:
RJ: Zahar. Contraponto.
Le Bon, G. (1954). Psicologia das multidões. Rio de Janeiro, RJ:
F. Briguet & Cia. (Trabalho original publicado em 1895)
Le Breton, D. (2003). Adeus ao corpo: antropologia e Recebido: 03/11/2019
sociedade. Campinas, SP: Papirus. Aprovado: 09/04/2020

Psicologia USP, 2020, volume 31, e190113 9

Você também pode gostar