ARTIGO 3 Corpo, Saúde e Sociedade de Consumo 2019

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Corpo, saúde e sociedade de consumo: a

construção social do corpo saudável1


Body, health, and consumer society: the social construction
of a healthy body

Manoel Antônio dos Santosa Resumo


https://orcid.org/0000-0001-8214-7767
E-mail: [email protected] Ainda que a articulação entre corpo, saúde e
Vitor Hugo de Oliveiraa contexto político-econômico seja extremamente
https://orcid.org/0000-0001-9321-0397 complexa e mediada por processos heterogêneos,
E-mail: [email protected] é possível problematizar o discurso produzido
Rodrigo Sanches Peresb pela mídia sobre corpo e saúde. Este estudo teve
https://orcid.org/0000-0002-2957-7554 por objetivo apresentar algumas reflexões sobre
E-mail: [email protected] os discursos e práticas contemporâneos acerca
Eduardo Name Riska da saúde, com enfoque nos aspectos corporais e
https://orcid.org/0000-0001-7290-2597 na relação entre estética corporal e bem-estar do
E-mail: [email protected] indivíduo. A linha argumentativa desenvolvida
Carolina Leonidasc preconiza que, na rede discursiva que se propaga
https://orcid.org/0000-0002-6558-3943 pelas grandes mídias, cria-se uma concepção
E-mail: [email protected] de saúde intimamente atrelada ao mercado
Érika Arantes de Oliveira-Cardosoa de consumo. Neste ensaio, alguns discursos
https://orcid.org/0000-0001-7986-0158 midiáticos sobre saúde são analisados, tendo em
E-mail: [email protected] vista compreender aspectos do mercado simbólico
que se organiza calcado nos signos-saúde. A
a
Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e construção do “corpo saudável” é tematizada
Letras de Ribeirão Preto. Departamento de Psicologia. Ribeirão e problematizada por meio do percurso teórico
Preto, SP, Brasil.
empreendido. No novo ideal apolíneo emergente
b
Universidade Federal de Uberlândia. Instituto de Psicologia.
na contemporaneidade, o corpo é um objeto
Uberlândia, MG, Brasil.
moldável a ser cultivado por meio de dietas e
c
Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Instituto
de Educação, Letras, Artes, Ciências Humanas e Sociais. hábitos alimentares espartanos, educado em
Departamento de Psicologia. Uberaba, MG, Brasil. sessões exaustivas de exercícios físicos, modelado
por substâncias anabolizantes, corrigido por
cirurgias plásticas com finalidade estética e
regulado por padrões socioculturais que almejam
alcançar a imortalidade mascarada no mito da
eterna juventude. Para aprimorar os cuidados em
saúde, os profissionais devem compreender as
Correspondência
transformações que incidem na imagem do corpo
Manoel Antônio dos Santos
Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
que tem sido valorizada na era contemporânea.
de Ribeirão Preto. Departamento de Psicologia. Av. Bandeirantes, Palavras-chave: Corpo; Saúde; Publicidade;
3.900. Ribeirão Preto, SP, Brasil. CEP 14.040-901. Capitalismo; Identidade.

1 Este estudo contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

DOI 10.1590/S0104-12902019170035 Saúde Soc. São Paulo, v.28, n.3, p.239-252, 2019 239
Abstract Introdução
Although the articulation between body, health, Este estudo teve por objetivo apresentar algumas
and the political-economic context is extremely reflexões sobre os discursos e práticas vigentes
complex and mediated by heterogeneous processes, acerca da saúde, com enfoque nos aspectos corporais
it is possible to problematize the discourse on body e na relação entre estética corporal e bem-estar do
and health produced by mass media. The purpose indivíduo, a partir do pensamento sociológico de
of this study was to present some reflections Baudrillard e de Bauman, que se propõem a analisar
on contemporary discourses and practices criticamente o contemporâneo. Essa reflexão
about health, focusing on body aspects and the se justifica pela relevância de compreender as
relationship between body aesthetics and the transformações na imagem valorizada do corpo na
individual’s well-being. The argumentative line sociedade atual, a partir de estudos que abordam a
to be developed advocates that, in the discursive problemática na pós-modernidade, considerando
network disseminated by the great media, the a aproximação que habitualmente se faz entre
concept of health is intimately tied to the consumer os padrões corporais, o estilo de vida e o ideal
market. In this essay, some media discourses on contemporâneo de saúde.
health are analyzed, in order to understand aspects A articulação entre corpo, saúde e contexto
of the symbolic market that is organized based social, político e econômico é extremamente
on health signs. The construction of the “healthy complexa e mediada por processos heterogêneos.
body” is thematized and problematized through No entanto, é possível recortar o discurso produzido
the chosen theoretical route. In the new Apollonian pela mídia sobre corpo e saúde. Ao discorrer
ideal emerging in contemporaneity, the body is sobre essa articulação, não pretendemos discutir
a moldable object, to be cultivated by Spartan diretamente as pesquisas e proposições científicas
diets and eating habits, educated in exhaustive acerca da saúde, mas atentar para o discurso
sessions of physical exercises, modeled by anabolic constituído nesse campo. Esse discurso, que muitas
substances, corrected by plastic surgery with vezes apenas resvala no rigor científico, propaga-se
aesthetic purpose, and regulated by sociocultural pelas grandes mídias criando uma noção de saúde
standards that aim to achieve the immortality atrelada ao mercado de consumo. Assim, em vez
masked in the myth of eternal youth. To improve de defender uma postura crítica em relação aos
health care, professionals must understand the estudos inseridos na discussão e que versam sobre
transformations that affect the image of the body diversos aspectos da saúde psíquica, pretendemos
valued in the contemporary era. apontar um limite e um risco aos discursos médico e
Keywords: Body; Health; Advertising; Capitalism; psicológico quando expostos à dinâmica do mercado
Identity. simbólico. Para compreender essas características
discursivas, apoiamo-nos nos conceitos de “signo”
e de “sociedade de consumo”, tais como trabalhados
por Baudrillard (1996, 2007).
Para assegurar o rigor analítico, torna-se
necessário operar uma contextualização teórica dos
conceitos utilizados. O pós-modernismo é visto por
Baudrillard (2007) como a época da emergência da
sociedade de consumo. Nela o indivíduo se insere
como consumidor, e o movimento produtivo cria e
recria nichos de mercado, por meio da padronização
das formas de relações entre os sujeitos, graças aos
discursos subjetivantes. Por exemplo, associado ao
processo de maior visibilidade da comunidade de

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lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, garantir o contínuo direcionamento das massas pelas
com suas bandeiras e demandas sociais específicas, forças econômicas e políticas.
surgiram produtos específicos (cruzeiros marítimos A teoria proposta por Baudrillard parte da
frequentados exclusivamente por homens gays, abertura que a sociologia de Bourdieu (2001) operou
moda e revistas voltadas preferencialmente para a respeito dos “capitais”, ou seja, do mercado de
esse nicho de mercado, hotéis gay friendly, entre valores que não é somente econômico, mas também
outros), que não só tentam suprir necessidades simbólico. Os signos atribuídos aos produtos são
socialmente produzidas como sendo específicas da marcas intangíveis de status ou índices identitários.
“cultura gay”, como criam padronizações culturais Sob a influência desses marcadores identitários,
e identitárias associadas a tais produtos. o indivíduo “é” e tem seu valor reconhecido de
Em outras palavras, o consumo massificado exige acordo com as mercadorias que possui e ostenta
uma padronização de relações e a entronização de no intercâmbio com os outros. Nesse movimento,
certos discursos sobre si. As mercadorias, portanto, a produção econômica, que opera por meio desse
não são marcadas simplesmente por seu valor de mercado simbólico, é a base do sistema cultural.
uso ou por seu valor de troca (Marx, 1996). Elas Percebe-se que o surgimento das massas
têm conexões imaginárias e simbólicas que causam silenciosas, como propõe Baudrillard (1985,
fascínio e as tornam mais atraentes (Thiry-Cherques, p.  16), levou a uma mudança substancial nas
2010). São “mercadorias-signo”, que valem mais pela relações produtivas: “Antigamente bastava ao
diferenciação que marcam em relação aos outros capital produzir mercadorias, o consumo sendo
signos do que pelo uso possível que involucram. mera consequência. Hoje é preciso produzir os
Apenas a título de ilustração, é o que se passa com consumidores, é preciso produzir a própria demanda
a “competição” entre os vários tipos e marcas de e essa produção é infinitamente mais custosa do que
escovas de dentes, cada uma supostamente capaz a das mercadorias”. Assim, mais do que produzir
de remover mais bactérias e alcançar mais lugares mercadoria, é preciso produzir incessantemente
recônditos da cavidade bucal do que as concorrentes, consumidores, devido a essa tendência neutralizante
e assim poderíamos elencar outros tantos exemplos que percorre as massas. A fim de coordenar essa
ad nauseam e de forma ilimitada, como um moto maioria neutralizada, constantemente se cria e se
perpétuo. Para a sociedade de consumo, como recria a sociedade de consumo.
veremos adiante, nem mesmo o “céu é o limite”. A expressão “sociedade de consumo” designa uma
A fim de compreender como o processo de sociedade característica do mundo desenvolvido,
constituição de identidades modernas está atravessado no qual a oferta geralmente excede a demanda, os
pela organização social contemporânea, é importante produtos são normalizados, e os padrões de consumo
entendermos como a sociedade é atualmente definida, são massificados. A sociedade de consumo surge
tanto pelas leis do consumo como por um processo nos Estados Unidos logo após o término da Primeira
de massificação. A sociedade de massas tem sido Guerra Mundial, muito embora o mundo do consumo
conceituada como aquela que se encontra em uma tenha sido criado bem antes, com a sociedade
etapa avançada de desenvolvimento industrial industrial, lembrando que a Revolução Industrial
capitalista, caracterizada pelo consumo massivo de constituiu um marco crucial na modernização
bens e serviços, disponíveis devido ao incremento ocidental (Barbosa, 2004). A noção de sociedade de
exponencial da produção. O conceito de massa, segundo consumo está vinculada ao conceito de economia
Baudrillard (1985), é demarcado principalmente pelo de mercado e, portanto, ao capitalismo, entendendo
caráter de inércia e neutralidade social e política, por economia de mercado aquele sistema que busca
cujos direcionamentos subjetivos são determinados assegurar o equilíbrio entre oferta e demanda por
principalmente do exterior pelas formas do mercado meio da livre circulação de capitais, produtos e
de consumo que lhe incidem. Entretanto, devido à indivíduos, sem intervenção estatal.
tendência à neutralidade e à perda de interesse, as O surgimento da sociedade de consumo decorre
forças que lhe incidem devem ser constantes, a fim de diretamente do desenvolvimento industrial, que a

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partir de certa altura da história levou a uma situação Nesse modo dito “avançado” de organização social
tal que se tornou mais difícil vender os produtos e da produção, o indivíduo consome não o que
serviços produzidos do que fabricá-los. Esse excesso necessita para assegurar sua subsistência, mas o
de oferta, aliado a uma enorme profusão de bens que é propagado na mídia e o que está na moda,
colocados no mercado, acarretou o desenvolvimento como forma de buscar sua integração social. Assim,
de estratégias de marketing extremamente a tendência ao consumismo se instala.
agressivas e sedutoras. Concomitantemente, o Incidindo na época contemporânea, as novas
sistema financeiro, graças às crescentes facilidades tecnologias são responsáveis pela expansão do
de crédito, começou a irrigar o sistema de produção, consumo em uma escala nunca antes vista na
distribuição e consumo (Barbosa, 2004; Santos; história da humanidade. Os aparatos tecnológicos
Banuth; Oliveira-Cardoso, 2016; Santos; Diez-Garcia; criam novas formas de exacerbação do consumo,
Liotino-Santos, 2015). com produtos facilmente acessíveis a todos os
Nesse cenário, a publicidade, uma das molas segmentos sociais, com a queda progressiva das
propulsoras da sociedade de consumo, propõe-se a barreiras que definiam o que era permitido, ou não,
influenciar as escolhas dos indivíduos. Os produtos a determinados grupos sociais. Hoje o estilo de
são embalados e filtrados pela publicidade que vida está acessível independentemente da posição
apresenta, classifica e hierarquiza os bens e serviços que o indivíduo ocupa na hierarquia social, pois na
de que todos passam a sentir necessidade. A função sociedade contemporânea o que passa a valer é o
da publicidade é persuadir as pessoas a ter um critério da individualidade na escolha dos bens de
consumo dirigido. Para aquecer as vendas, o mercado consumo (Bauman, 2008).
empenha-se arduamente em convencer o consumidor Se é verdade que o incremento da renda permite
acerca da imperiosa e irresistível necessidade de que um contingente cada vez mais expressivo de
adquirir produtos supérfluos. “A publicidade nos indivíduos se torne consumidor e adquira bens cada
faz desejar o que não temos e desprezar aquilo que vez mais diversificados, como pacotes de valores
já desfrutamos. Ela cria e recria a insatisfação e a agregados, por outro lado, é ilusória a impressão
tensão do desejo frustrado” (Latouche, 2009, p. 18). de que, ao facilitar o acesso a maior quantidade
Na voragem consumista que se instaura, objetos são e qualidade de produtos por parte de segmentos
descartados com a mesma velocidade com que são crescentes da sociedade, se está assegurando maior
produzidos e distribuídos, antes mesmo de terem igualdade social. A era das massas é pródiga em
esgotado sua vida útil. O apetite do capitalismo para produzir miragens, como a ilusão de que quanto
a destruição é inesgotável. mais avançado e acelerado for o consumo, mais
A sociedade se especializa em criar uma massa próximos estaríamos da igualdade social (Bauman,
de consumidores, que podem ser manipulados e 2008; Giddens, 1991).
influenciados por eficientes técnicas de marketing. O Bauman (1999) atribui ao consumismo um caráter
advento da publicidade cria outro mercado poderoso, negativo, erigindo-o como um elemento destrutivo
que se encarrega de reforçar a criação de falsas que conduz à desagregação social. O consumismo
necessidades, embaladas e vendidas em campanhas designa um tipo de consumo conspícuo, com base
publicitárias, na qual a propaganda é considerada em um comportamento impulsivo, descontrolado e
a “alma do negócio” sem alma. ecologicamente irresponsável. Consumo conspícuo
Revisando as origens históricas da sociedade de (ou consumo ostentatório) é um termo geralmente
consumo e as mudanças observadas em diferentes empregado para descrever os gastos em bens e
períodos históricos, nota-se que a atividade de serviços que o indivíduo adquire especialmente com
consumir para fins de satisfação de necessidades o propósito de mostrar aos outros sinais de riqueza
supérfluas passa a ser priorizada em relação às aparente. Portanto, essa exibição superficial tem
necessidades básicas (Barbosa, 2004). Quando os por propósito conquistar uma posição ou manter
padrões de consumo se tornam massificados, o um status social perante o grupo. É o grupo social
consumo assume as feições de consumo de massas. que determina o valor simbólico relativo de bens e

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objetos, a partir do qual se classifica o indivíduo que recusando a produção de bens duráveis e reutilizáveis
os detém segundo critérios de status mais elevado ou (Mészáros, 1989). Por essa razão, argumenta
mais baixo, a depender das aquisições conquistadas. Mészáros, o capitalismo atual opera com uma lógica
Com isso se determina uma classificação da destrutiva e predatória, pois se move apenas e tão
condição social com base em bens adquiridos e, somente pela cega necessidade de expansão do
principalmente, exibidos pelos indivíduos. capital, que não respeita a necessidade de proteção
O consumo irracional é aquele que se do meio ambiente e dos recursos não renováveis.
submete apenas às forças do sistema capitalista,
desconsiderando as bases sociais e culturais. É um Capitais e marcadores identitários: a
consumo predatório e destrutivo. Os indivíduos se gestão do corpo-fetiche no mercado
comportam mais como consumidores do que como
cidadãos e, assumindo essa condição, tornam-se dos signos
altamente vulneráveis aos produtos postos ao seu
alcance (Bauman, 1999). Barbosa (2004) ressalta a necessidade de se
Compreende-se, assim, que a relação entre a tornar clara a distinção entre teorias sobre a
massificação do consumo e seu impacto ambiental se sociedade e a cultura de consumo, pois as teorias da
deve ao papel de reconstrução sígnica que o mercado sociedade permitem definir e analisar o porquê do
opera a fim de manter a roda-viva do processo de consumo se tornar tão importante. Para essa autora,
consumo – mais do que construir identidades, cria-se as teorias sobre a produção do consumo elucidam os
uma hiperrealidade, conceito de Baudrillard (1991) processos subjetivos que conduzem a determinadas
que designa uma reconstrução da realidade sem que práticas de consumo, permitindo compreender quais
se tenha, na verdade, qualquer referência ao real. os desejos e mediações que o ato de consumir cumpre
Aqui é pertinente retomarmos o papel da publicidade na vida das pessoas. Jean Baudrillard emerge, na
e o conceito-chave de Latouche (2009, p. 18) de que concepção da pesquisadora, como um dos autores
“a publicidade nos faz desejar o que não temos e mais representativos das teorias sobre a produção do
desprezar aquilo que já desfrutamos”. consumo, enquanto outros se dedicaram a desvendar
A publicidade é um dos alicerces que dão os modos de consumo, como Bourdieu. Apesar de o
sustentação à sociedade de consumo. É um processo consumo não ser foco de suas análises, que eram
incessante de produção, seleção e reelaboração de mais voltadas às relações sociais, este teórico atém-
imagens, que são colocadas no lugar do mundo se às práticas de consumo como fontes de criação
real como se fossem o mundo real. A realidade e manutenção das relações sociais de dominação e
substitutiva que é mostrada se propõe a ser um sujeição. Um aspecto importante a ser destacado
reflexo dos desejos individuais, mas as imagens não no pensamento desse autor é o que denomina de “o
passam de um pastiche, uma narrativa estereotipada conhecimento pelo corpo” (Bourdieu, 2001), que se
que cria um paraíso tão mirabolante quanto refere a uma apropriação imediata da relação com o
inacessível. Seguindo a lógica dessa economia do mundo por meio de um sistema de disposições, isto
engano, o triunfo do mercado publicitário é criar é, de estruturas sociais subjetivamente incorporadas
necessidades, que já nascem pasteurizadas e que direcionam os costumes, valores e visão de
padronizadas para atender o gosto médio do público. mundo. Nesse sentido, o indivíduo adquire, graças às
O apelo da publicidade leva o indivíduo a relações de sociabilidade e ao montante de capitais
adquirir produtos que jamais serão utilizados ou por ele incorporado (econômico, social, cultural,
que rapidamente vão se tornar desnecessários escolar), disposições e compleição corporal que
e obsoletos, sobretudo em uma sociedade que refletem tendências socialmente presentes.
privilegia a descartabilidade e a rápida reposição Segundo Castro (2003), o culto contemporâneo
daquilo que perdeu o valor de troca (Latouche, 2009). devotado ao corpo deve ser compreendido à luz da
Essa é a lógica que move um sistema econômico sociedade e da cultura de consumo, atentando-se
que se baseia na larga oferta de produtos efêmeros, também ao papel da mídia e dos estilos de vida.

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O corpo não sai ileso do processo de massificação. exemplo, masculino/feminino), que se cristalizam
Torna-se o objeto mais investido, não apenas “no exercício de um modelo sexual atestado por um
libidinalmente, mas também econômica, cultural dado órgão sexual e fechando o jogo dos significantes
e simbolicamente. Desconstruído e reconstruído do corpo” (Baudrillard, 2007, p. 158). A partir dessa
incessantemente, trabalhado a partir das marcas base binária estrutural, realiza-se a primazia da
sígnicas de status, o corpo entra no mercado genitalidade, que funda um princípio de equivalência
simbólico. O corpo-fetiche, a partir da lei do valor, é geral que tem o falo como “significante absoluto com
negado em sua materialidade orgânica e virtualizado relação ao qual vem se avaliar e se organizar, vem
por meio de procedimentos variados: intervenções se abstrair e se equivaler, todas as possibilidades
cirúrgicas, implantação de próteses, lipoescultura, erógenas” (Baudrillard, 2007, p. 158). O equivalente
procedimentos estéticos, bodybuilding, entre outros geral da sexualidade torna-se também equivalente
(Santos; Diez-Garcia; Liotino-Santos, 2015). São geral das virtualidades simbólicas de troca, de modo
procedimentos que visam construir um hipercorpo: que o corpo e a sexualidade como discurso acabam
não mais o corpo contingente, suscetível à passagem por remeter à norma da economia política.
do tempo, aos acidentes materiais e ao infortúnio Nessa acepção, a nudez é vista por Baudrillard
da doença, mas um corpo coletivizado, que se (1996) não como a exposição crua da verdade do
artificializa e que se inclui no fluxo de produtos que corpo, pois esse corpo nu o é enquanto libertação,
passam a fazer parte de sua composição: cremes ou seja, sobre a pele inscrevem-se os signos contra
cosméticos, filtros protetores solares, próteses a repressão sexual e corpórea maciça. Vista dessa
de silicone, suplementos alimentares e infinitas perspectiva, a nudez equivale a uma segunda pele.
intervenções cirúrgicas para correção estética. Cabe Esses signos repetem uma “operação metafísica do
ao indivíduo a tarefa de integrar esses elementos sujeito da consciência” (Baudrillard, 1996, p. 141),
como parte da constituição de sua subjetividade. que nada mais são do que a ilusão de um sujeito
Segundo Oliveira (2010), na atualidade o consciente e dono de si, versão triunfante do cogito
indivíduo é forçado a investir em seu próprio corpo. cartesiano. Sobre essa função especular, Baudrillard
Assim, o corpo tornado funcional é regido por uma (1996, p. 141) escreveu:
espécie de narcisismo. Porém, esse narcisismo deve
ser compreendido Fechamento do espelho, duplicação fálica da
marca: nos dois casos, o sujeito seduz a si mesmo.
em decorrência de estar situado sob o signo do valor. Ele seduz seu próprio desejo e o conjura em seu
É um narcisismo dirigido, uma exaltação dirigida próprio corpo duplicado pelos signos. Por trás da
e funcional da beleza a título de avaliação e troca troca de signos, por trás do trabalho do código, que
de signos. Essa auto-sedução só tem de gratuita funciona como fortificação fálica, o sujeito pode
a aparência; na verdade, todos os detalhes dela furtar-se e recuperar-se: furtar-se ao desejo do
recebem a forma final de uma norma de gestão outro (à sua própria falta) e, de alguma maneira,
ótima do corpo no mercado dos signos. (Oliveira, ver (ver-se) sem ser visto. A lógica do signo une-se
2010, p. 149-150) à lógica da perversão.

Baudrillard (2007) parte dos conceitos marxistas Além do valor de uso, a mercadoria realiza seu
e afirma que o corpo pode ser analisado nos valor de troca por meio das associações imaginárias
termos de valor de uso e de troca (Marx, 1996), e simbólicas atribuídas ao produto. Torna-se,
ou pelo regime entre significado e significante. assim, uma mercadoria-signo lançada em um
A sexualidade, nesse sentido, passa a ser vista mercado simbólico. Se na economia o dinheiro é
como uma função, um “elemento da economia do o representante geral no sistema de valor de troca
sujeito” (Baudrillard, 2007, p. 158). Por meio dessa da sociedade capitalista, o falo faz o mesmo papel
funcionalização e espetacularização, a sexualidade enquanto equivalente geral da sexualidade no jogo
passa a se estruturar em termos de oposições (por de valores simbólicos do corpo. Ou seja, a produção

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de uma corporeidade visa à aquisição de atributos identidades. Identidades multifacetadas, abertas e
fálicos, que são signos de status. reconfiguráveis, com fronteiras quase tão porosas
Na teoria psicanalítica, o objeto do fetiche é um como as das nações dóceis ao fluxo de capitais.
substituto fálico que tampona a imagem da mãe O sujeito pós-moderno pode assumir diferentes
castrada, na tentativa de escapar ao complexo de identidades em momentos diversos, pois elas
castração (Freud, 1996; Roudinesco; Plon, 1998). O não são unificadas ao redor de um “eu” coerente,
fetichista associa seu prazer sexual a um objeto que podendo inclusive ser contraditórias e impeli-lo a
o faz remontar ao período mítico de união imaginária se movimentar em direções distintas. Deslocadas
com a mãe (Safatle, 2010). O corpo-fetiche permite de seu eixo de gravidade, as identificações são
“esquecer” – ou melhor, desmentir – a imagem da continuamente colocadas à prova, de modo que a
castração, da contingência e da finitude. Desse modo, ideia de uma identidade estável, contínua e coerente,
assegura-se imaginariamente a continuidade dos que nos acompanha desde o nascimento até a morte,
corpos, tamponando o abismo que os separou com não passa de uma ficção (Hall, 2006). Cai por terra
o advento do nascimento. As imagens-ícones, como a noção de uma referência segura em que se possa
o corpo fetichizado, pleno e autossuficiente (pois apoiar, na medida em que não há um “eu” confiável,
não castrado), retratam a época em que vivemos, completo, inalterável e durável.
lembrando que o fetiche é o paradigma da perversão. A pós-modernidade solicita a vigência de
Tomada no diapasão da lógica de mercado, a identidades plásticas e flexíveis. No novo regime de
fetichização do corpo é uma estratégia de integração produção e consumo, o que conta é a celeridade e a
da subjetividade nos processos de produção fluidez efêmera das identidades engendradas pelas
econômico-simbólica, utilizando-se da mesma novas formas de consumo. As fronteiras entre as
lógica na qual o corpo e seus “anexos” (os produtos nações ficam porosas porque a globalização preza
que o atravessam) tornam-se um símbolo fálico e pelo livre fluxo de bens e pessoas. Outra mudança
remontam a essa satisfação imaginária. Não é sem importante nos modos de consumo, segundo Barbosa
razão que o corpo é fetichizado. Bauman (2008, (2004), deu-se com a passagem da cultura da tradição
p. 23) aponta que, se o fetichismo da mercadoria para a moda, caracterizada pela efemeridade e
significava ocultar do olhar “a substância individualidade. Mas o mercado globalizado e a
demasiado humana” do que era produzido por sociedade de consumo estão longe de representar a
uma sociedade de produtores, o fetichismo da solução para os problemas e contradições colocados
subjetividade tem o papel de escamotear a realidade pelo mundo contemporâneo. Basta lembrar que a
da sociedade de consumidores. alimentação e saúde da população dos países mais
pobres amargam condições precárias.
A pós-modernidade solicita O mercado faz com que a maioria dos seus
identidades plásticas e flexíveis recursos seja destinada a satisfazer os países
industrializados. A sociedade de consumo de massa
A expansão do capital, tal como a vemos converte os indivíduos em meros consumidores
acontecer na etapa contemporânea, exige a inconsequentes, que se satisfazem com o prazer
derrubada de barreiras para que prevaleça a imediato da posse do produto, sem real desejo de
porosidade das fronteiras dos Estados, por onde usufruí-lo, tal como Don Juan com suas conquistas
bens e mercadorias possam se movimentar e em série de mulheres, com as quais nunca se vincula
transitar livres de constrangimentos e embaraços. de fato. Essa ambivalência, presente na dinâmica
O livre trânsito dos produtos pelas veias abertas no conquista-rechaço, reflete-se inclusive em alguns
atual modelo econômico não tem impacto apenas quadros de transtornos alimentares contemporâneos,
sobre a dinâmica de produção, distribuição e como a bulimia nervosa, em evidência na atualidade,
consumo das mercadorias no marco do capitalismo em que pacientes devoram grandes quantidades de
transnacional, mas também nas tramas da vida social alimento em um período curto de tempo e depois
e nos processos de subjetivação e constituição de recorrem a manobras purgativas para se livrar do

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excesso ingerido, seja induzindo vômito ou abusando singulares e efêmeros – seja a Copa do Mundo, que
de laxantes (Leonidas; Santos, 2014, 2015). Além nos torna supostamente pertencentes a uma nação
da esfera oro-alimentar, esses indivíduos também que pulsa “como um só coração”, seja uma disputa
podem apresentar compulsões em outras áreas, tais política, ou mesmo a final da mais nova temporada
como compulsão por compras, sexo e jogo patológico. de um reality show. Assim que o evento finda, cada
A cultura do consumo ostentatório, resultante indivíduo apanha seu casaco, e as comunidades se
das sociedades industrializadas, também mitifica o desfazem, para serem logo retomadas em novos
efêmero, uniformiza atitudes e padroniza valores. A momentos fugazes.
sociedade capitalista, que criou o mercado de consumo, Com a morte da ilusão de que existe uma
é também responsável pela desorganização dos laços identidade fixa, coesa, unificada, estável e duradoura,
sociais, já que os cidadãos são apartados da sociedade decretada pelos estudos culturais (Hall, 2006),
e permanecem separados uns dos outros, segregados somos confrontados por uma miríade de identidades
em seus nichos de consumo, o que intensifica seu possíveis, cambiantes e mutáveis, com as quais
isolamento e sua vulnerabilidade. A família se ressente podemos nos identificar, pelo menos provisoriamente,
desse insulamento, perdendo claramente uma parte das em diferentes momentos de nossa trajetória
suas funções consagradas, como preparar o indivíduo existencial. Se admitimos como razoável que há
para viver em sociedade e conectar-se em redes de múltiplas facetas e alternativas para construirmos
trabalho cooperativo e solidário. nossas identificações, então o que há de mais seguro,
As identidades contemporâneas que advêm com confiável e permanente nas sociedades modernas é
a sociedade de consumo podem ser compreendidas a a própria experiência da transformação incessante.
partir das análises de Bauman (2005), que associa ao Em outras palavras, o que há de mais estável, fixo e
Estado moderno a crescente perda dos laços sociais garantido é que tudo na vida está permanentemente
de pertencimento, tornando a identidade social, que em movimento – é a própria mudança.
antes era compreendida como algo natural, uma A passagem das sociedades tradicionais para
problemática geradora de insegurança e que motiva as sociedades modernas instaura a marca da
a busca incessante por novas formas de subjetivação transitoriedade. Para Giddens (1991), na pós-
e processos identificatórios. Essas novas formas, modernidade ou, nos termos do autor, modernidade
mais frágeis e instáveis, seriam preferíveis, pois tardia, as sociedades contemporâneas são, por
podem ser facilmente substituídas. definição, sociedades de mudanças constantes,
aceleradas e frenéticas, que exigem do indivíduo
Buscamos, construímos e mantemos as referências a gestão da incerteza, do provisório, do instável
comunais de nossas identidades em movimento – e do precário. A constante mudança, que impõe o
lutando para nos juntarmos a grupos igualmente convívio com a imprevisibilidade das transições
móveis e velozes que procuramos, construímos e incertas, colocaria em causa a nossa preparação
tentamos manter vivos por um momento, mas não para confrontar desafios.
por muito tempo. (Bauman, 2005, p. 32, grifo nosso) A mídia torna-se a grande produtora e
propagadora dessas identidades temporárias.
Essa espécie de nomadismo compulsório Por meio dos discursos inflamados que a mídia
acarreta fragilidade identitária que, segundo espalha de forma endêmica, os indivíduos são
Bauman (2005), porta uma ambivalência, pois, por persuadidos a adotar determinadas práticas e a
um lado, estar identificado a determinado grupo consumir produtos que estão em conformidade
traz segurança; entretanto, essa segurança tem com tais signos-mercadorias. Produtos que são
como preço a liberdade, já que não há controle total consumidos porque agregam ao consumidor marcas
sobre as mutações que determinadas ideologias ou identificatórias. O sentimento de pertencimento a
comunidades podem desenvolver. Surgem, assim, as uma comunidade, ainda que provisório, faz-se por
“comunidades guarda-roupa” (Bauman, 2005, p. 37), meio do consumo desses símbolos. Aprofundaremos
processos identificatórios em torno de acontecimentos essa discussão na sequência, tomando como objeto

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de análise os discursos sobre a saúde, que se utilizam O receituário da saúde para assegurar a
especialmente do discurso científico como signo de conquista da longevidade com saúde plena é claro e
status social, sendo apropriados pela publicidade transparente: todos nós sabemos que é preciso comer
na proposição de uma reconstrução de um corpo com moderação, fazer uma dieta saudável e exercitar-
concebido como “saudável”. se regularmente. O posicionamento científico, ao
ser traduzido pelo mercado de consumo, apresenta
Comer pouco, malhar muito: adestrando esse receituário em poucas palavras: comer pouco,
subjetividades insubmissas malhar muito. O discurso biomédico, fundamentado
em uma racionalidade científica que se apresenta
O consumo pessoal e familiar desempenha um como um valor universal e inquestionável, não
papel central no processo de subjetivação no mundo deixa margem a problematizações epistemológicas.
contemporâneo. Vistos de perto, os diversos bens Pelo contrário, institui um regime de verdade que
adquiridos – educação, saúde, informação, cultura, neutraliza possíveis inteligibilidades alternativas.
lazer, moda – são menos utilitários do que simbólicos. Indivíduos que não conseguem se adequar à norma
Eles são revestidos de significação cultural, como da boa forma e das práticas alimentares legitimadas
apontou Diez-Garcia (2003) ao discutir os reflexos como saudáveis são relegados à categoria de
da globalização na cultura alimentar, em particular rebeldes, não colaboradores e negligentes em
as mudanças ocorridas nas últimas décadas na termos de autocuidado. Desse modo, são colocados
alimentação urbana. à margem, como desviantes da norma, dissidentes
Uma discussão bem fundamentada sobre o sistema do corpo idealizado em sua condição naturalizada.
alimentar global e o processo de massificação e Esses sujeitos são vistos como desajustados e
transformação do alimento em mercadoria pode intratáveis, e tendem a ser marginalizados e
ser encontrada no estudo de Machado, Oliveira e ridicularizados pelo grupo social. Se são crianças
Mendes (2016). Os autores mostram que a dinâmica e adolescentes, sofrem bullying e, quando crescem,
do capitalismo contemporâneo e sua profunda crise continuam a ser alvo de estigmatização (Schvey;
têm impactado o sistema alimentar, constrangendo Puhl; Brownell, 2011), o que resulta em problemas
o Estado brasileiro no seu dever constitucional de de ajustamento social do indivíduo. No setor saúde,
garantir a segurança alimentar e nutricional e o são conhecidos como pacientes insubordinados,
direito humano à alimentação. Nessa direção, o estudo refratários aos tratamentos e prescrições, e avessos
preconiza que é preciso aprofundar a discussão sobre a às recomendações dos educadores em saúde (Santos;
construção do controle social do Estado e do mercado, Diez-Garcia; Liotino-Santos, 2015).
de modo que respondam realmente aos interesses do Como individualidades insubmissas, na
bem comum e da coletividade, e que busquem de fato perspectiva dos profissionais de saúde, esses
assegurar o ideal da justiça social. É preciso que essa pacientes necessitam ser “trabalhados”, “colocados
discussão seja ampliada e que a alimentação seja na linha”, “enquadrados” ou, na melhor das
vista, sobretudo, como um ato político. hipóteses, conquistados, disciplinados, adestrados e
O binômio formado pelas práticas alimentares dobrados à norma. Em uma palavra, necessitam ser
e atividade física emerge como determinante catequizados, para que aceitem a verdade revelada
do crescimento da epidemia de sobrepeso e pela ciência contemporânea como uma norma de bem
obesidade no Brasil (Mendonça; Anjos, 2004). Os viver. Todo profissional que atua na saúde conhece
dados epidemiológicos mostram que a obesidade bem os pacientes que desviam do que se considera
tem se configurado como um dos problemas ser o “bom caminho”; muitas vezes, são pessoas
nutricionais mais preocupantes da atualidade, com diagnósticos de doenças crônicas de elevada
com maior prevalência em mulheres com baixo prevalência na população, como hipertensão arterial,
nível socioeconômico, em razão do estilo de vida. diabetes mellitus e obesidade. São aquelas pessoas
Constatou-se que 22,2% tinham obesidade e 31,9% frequentemente taxadas de difíceis e resistentes
estavam com sobrepeso (IBGE, 2010). às abordagens que requerem mudanças de atitude,

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de comportamento e de estilo de vida. Do ponto de de que, no discurso largamente disseminado
vista de uma parcela dos profissionais de saúde, o e naturalizado sobre o corpo, ocorre tanto a
ideal é que se convertam por si mesmos, de modo a metaforização como o uso da metonímia, mediante
aceitarem que, se não se emendarem e mudarem seus a qual se pode tomar a parte pelo todo. Ambos os
hábitos de vida, estão fadados a ter uma trajetória mecanismos estão presentes na ilustração (Figura 1),
breve e um final de vida extremamente sofrido e em que exibe uma peça de propaganda extraída de
condições degradantes. uma revista direcionada ao público feminino, com
A prática em saúde segue uma ética o título: os “seus pés podem ser sexys também”.
normatizadora, naturalizada na formação A fotografia que ilustra a propaganda explora a
acadêmica e consolidada na atuação profissional. ambiguidade obtida pela visão parcial da junção de
Por exemplo, quando ouvimos a frase: “são vários os dois tornozelos de uma mulher, que no ângulo em
prejuízos à saúde causados pelo consumo excessivo que foram fotografados se assemelham às nádegas
de açúcar”, imediatamente identificamos sua expostas por um minúsculo fio-dental.
relação com um discurso perfeitamente inteligível
e o legitimamos como um problema a ser combatido Figura 1 – Propaganda da marca Via Uno na Venezuela:
nas práticas desenvolvidas com a população “Seus pés podem ser sexys também”
vulnerável à obesidade e diabetes mellitus. Mais
do que tudo, a conscientização das pessoas quanto
aos seus erros e excessos alimentares torna-se
um ideal altamente desejável, sendo a mudança
de comportamento a meta a ser alcançada.
Pouco importa se os valores, crenças e atitudes
que o indivíduo traz em sua bagagem cultural o
predispõem a pensar que o melhor é comer de tudo,
evitando a todo custo o desperdício, como é bastante
disseminado nas camadas populares (Silva, 2008),
ou que uma refeição rica em calorias é a que
realmente “sustenta” e satisfaz suas necessidades
diárias. Também é completamente ignorado o
fato de que os avanços tecnológicos instituíram
mudanças de hábito que favoreceram um estilo de Fonte: Campanha para coleção de verão da Via Uno (2002)
vida e uma cultura que marcha na contramão do que
os vigilantes da boa saúde preconizam. Há um claro Como mencionado, o mercado sígnico corporal
estímulo ao sedentarismo e ao consumo de produtos alimenta de múltiplas maneiras o narcisismo, já
alimentícios pouco saudáveis – com caloria zero, que, em decorrência dos processos de subjetivação
adição de conservantes, sem mencionar o regime contemporâneos, o indivíduo sente necessidade de
de sono cada vez mais reduzido, para que se invista investir constantemente em seu próprio corpo e em
mais tempo no ato de produzir e consumir sem sua imagem naturalizada. Espetacularizado, exposto
cessar. Em vez de consumir para viver, o lema é nas relações dos diferenciais sígnicos, o corpo
viver para consumir. vale na comparação/oposição com outros corpos,
confrontando os símbolos de status atribuídos a
Identificando os signos-saúde e a cada um. Ao se encontrar “sob o signo do consumo”
exposição do corpo como mercadoria (Toaldo, 1997), o corpo encarna status, necessidades
e estilos de vida específicos, que são promovidos em
Na sequência, utilizaremos algumas peças detrimento de outros.
publicitárias, recolhidas aleatoriamente na mídia, Partindo desse quadro conceitual, é possível
apenas com o intuito de ilustrar nosso argumento examinar os discursos produzidos sobre a saúde na

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mídia como integrantes desse mercado simbólico. A e logo ficam “enfastiados” com as atrações já obtidas
cultura do consumo, quando toma o corpo, também (Bauman, 1999, p. 92). Longe de ser um acidente, a
o converte em signo partícipe desse mercado. Mais insaciabilidade é uma característica estrutural da
do que mentes sãs em corpos sãos, o que se almeja forma de consumo que vigora na atualidade.
é a glorificação da imagem que habita a superfície Pode-se perceber esse esquema de construção
rasa dos corpos. do corpo por meio dos “signos-saúde” no exemplo
De acordo com Rabello e Camargo Junior (2012), o destacado na Figura 2, na qual se pode vislumbrar
marketing busca construir marcas fortes e duráveis, uma peça de propaganda do que se supõe ser uma
vinculando as mercadorias a determinados contextos academia (“one corpo”). De fato, segundo a peça de
e estilos de vida. Esse valor simbólico atravessa o propaganda, investe-se na “escultura do corpo”,
corpo tal como ele se manifesta a cada sujeito na que daria origem a um corpo feminino novo, a ser
era contemporânea. Não basta somente consumir o esculpido com base no tríptico “estética + fitness +
produto, ele tem de ser incorporado, tornar-se índice nutrição”. Nessa lógica, o menos é mais. Sugere-se
subjetivante. Não só o produto representa status, como que a mulher deve almejar a redução de medidas (o
também promete tornar o corpo mais “competitivo” “menoscorpo”) para poder se sentir “mais” mulher.
no mercado simbólico. Seja na indústria farmacêutica Aparentemente, a epidemia atual de fitness (Bastos
ou nos planos de saúde, seja na cosmética e em outros et al., 2013) está longe de significar apenas que temos
produtos relacionados à aquisição de saúde e bem- maior consciência das necessidades de saúde.
estar (academias, recreação e lazer, entre outros), o
que se destaca é o valor simbólico que tais produtos Figura 2 – Propaganda de um método de escultura do
e serviços agregam ao corpo. corpo: “Com mais você fica menos”
Assim, é possível verificar a ênfase dos “signos-
saúde” no mercado simbólico. Nomeiam-se assim
os elementos significantes, discursivos, práticos
e materiais – levando em consideração o poder
semiótico dos objetos, tal como analisado por
Baudrillard (2006) –, que se referem ao corpo,
atribuindo-lhe o sentido de “saudável”. Parte-se da
ideia de que tal mercado compreende a saúde como
um diferencial que agrega valor ao corpo. Verifica-se
a existência de várias publicações voltadas à busca
de um “corpo saudável”, de práticas de exercícios que
prometem emagrecimento cada vez mais rápido e de
produtos alimentícios, suplementos e novíssimas
dietas quase nunca embasadas em princípios
nutricionais cientificamente comprovados.
Juntamente com a emergência de tais discursos e
práticas, são agregados os mais diversos produtos
para consumo: alimentos saudáveis, substâncias que
prometem resultados miraculosos com dispêndio
Fonte: Abreu (2011)
de um mínimo de esforço e disciplina espartana,
roupas e acessórios que modelam os seios e
glúteos, entre inúmeras novidades que se sucedem O que se percebe é que o signo “saudável” atribuído
vertiginosamente. ao corpo acrescenta uma mais-valia – aqui o conceito
Bauman (1999) reconhece a fragilidade e a marxista é ressignificado por Baudrillard (2007) –
transitoriedade das práticas de consumo. Os associada ao ganho de saúde. O corpo mais saudável
consumidores estão “sempre ávidos” por novas atrações também adquire capital erótico (Hakim, 2012),

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atributos estéticos que o valorizam quanto mais esse práticas destinadas a alcançar o modelo de corpo
corpo segue o modelo valorizado socialmente. Estar socialmente valorizado.
em “boa forma”, portanto, termina por adquirir o No contexto de uma sociedade regulada pela
duplo significado de ser saudável e belo. Tomemos, medicalização de toda sorte de problemas e pela
como exemplo desse fenômeno, a capa da revista mercantilização da saúde (Rabello; Camargo Junior,
Men’s Health (Figura 3), publicação voltada ao público 2012), a obesidade é tratada como uma excrescência
masculino e que explora temas como fitness, sexo, que se incrusta e se apodera indevidamente do corpo,
relacionamento, nutrição, estilo de vida, entre outros, que em sua essência natural deveria ser esbelto e
sempre enfeixados na temática geral “saúde”. A maior saudável. O corpo desviante, o corpo insurgente
parte da capa é ocupada pela ilustração da compleição é o solo propício para que os vícios e excessos
física que representa o ideal de consumo do público alimentares germinem e a adiposidade se instale.
masculino e suposto deleite do público feminino (“que
vai deixá-las babando”). Considerações finais
Figura 3 – Capa da edição da revista Men’s Health O presente estudo oferece alguns insumos
teóricos que podem ser valiosos para qualificar
o trabalho dos profissionais de saúde, além de
contribuir com subsídios para a formulação de
políticas públicas em saúde que sejam culturalmente
sensíveis e contemplem a complexidade das relações
entre corpo, saúde e cenário social. Neste estudo
examinamos algumas das vicissitudes do corpo como
mercadoria. A mercadoria se insere em um sistema
de trocas simbólicas, marcado pela diferenciação
valorativa do produto diante de outros, mediante
os signos de status que comporta.
Arrematando as reflexões apresentadas neste
estudo, podemos afirmar que a ideia de corpo
como mercadoria demanda um processo crítico
de desconstrução e reconstrução corpórea, a
partir das determinações do corpo-fetiche e do
hipercorpo. Isso requer a tomada em consideração do
atributo fálico do corpo. Pense-se no dinheiro como
representante geral no sistema de valor de troca da
sociedade capitalista e no falo como equivalente
geral da sexualidade no jogo de valores simbólicos
do corpo. Nessa vertente, a fetichização do corpo
Fonte: Men’s Health (2010)
é uma estratégia de integração da subjetividade
nos processos de produção econômico-simbólica.
De acordo com Santos, Banuth e Oliveira-Cardoso Já a noção de signo-saúde involucra a saúde como
(2016), a entronização de determinado ideal de peso signo de diferenciação do sujeito no jogo de trocas
e formato corporal é fruto do culto apolíneo do corpo simbólicas. A posse do signo-saúde é marca de um
como reflexo da sociedade contemporânea. Por diferencial que valoriza o sujeito em relação aos
ora é importante destacarmos o fato de que uma outros, relacionando-se com a sexualidade e os
profusão de serviços é criada no campo da medicina, relacionamentos afetivos.
nutrição, educação física, estética e cosmetologia, Turbinado, inflado e maximizado em suas
instaurando uma implacável mercantilização das potencialidades, multiplicado em seus sortilégios e

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potencializado em seus prodígios, mais do que nunca DIEZ-GARCIA, R. W. D. Reflexos da globalização
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Contribuição dos autores


Santos e Oliveira conceberam e desenharam o estudo, delinearam
suas concepções teórico-metodológicas e redigiram a versão inicial
do artigo. Peres, Risk, Leonidas e Oliveira-Cardoso contribuíram na
análise dos dados e na redação da versão subsequente do artigo,
bem como auxiliaram na revisão do texto final.

Recebido: 25/07/2018
Aprovado: 23/05/2019

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