A Criança e A Morte Anunciada

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Dossiê

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Resumo A CRIANÇA E A
O artigo expõe um percurso de
elaboração que advém da escuta “MORTE ANUNCIADA”:
de crianças em instituições de
saúde – de modo particular, CONSIDERAÇÕES
instituições de tratamento on-
cológico – interrogadas funda- SOBRE A ESCUTA
mentalmente a respeito de sua
experiência diante da morte. ANALÍTICA NA
Problematizando as incidências
do discurso médico na expe- ONCOLOGIA
riência da criança e os aportes
ofertados pela escuta analítica, PEDIÁTRICA
o artigo visa contribuir para a
interlocução entre a psicanálise e
o campo da saúde, sustentando o
olhar para o que é da ordem do
singular, em especial no contexto Flora Corrêa Guimarães
da “morte anunciada”, em detri- Caciana Linhares Pereira
mento do sujeito doente tomado
puramente como organismo
biológico.
Descritores: psicanálise;
hospital; discurso médico;
criança; morte. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i2p242-261.

Introdução

Este artigo interroga como o discurso médico,


atravessado pela lógica de mercado e cientificista
da sociedade moderna, implica um embate com
a vivência da criança diante de seu adoecimento
e, mais especificamente, diante da morte. Expõe
um percurso de elaboração teórica que advém da
escuta de crianças em instituições de saúde, de modo

■ Psicanalista. Membro do Corpo Freudiano Escola de


Psicanálise – Seção Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil.
■■ Professora do Departamento de Psicologia e do Programa
de Pós-graduação em Psicologia na Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.

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particular, crianças em tratamento oncológico. Nesse
campo de experiência, que abarca a escuta em setores
de cuidados paliativos, a interrogação se dirige de modo
fundamental à experiência da criança mediante a morte,
buscando recolher aspectos da escuta empreendida
nestes setores e articulá-los a contribuições aportadas
por psicanalistas que também se voltaram para a proble-
mática da escuta psicanalítica de crianças em contextos
institucionais – de modo específico, onde a possibilidade
da morte comparece para a criança, para os pais e para
a equipe de saúde. Partindo de uma discussão mais geral
sobre o discurso médico, segue-se com a problematização
desse discurso no campo da experiência institucional da
criança e de suas incidências subjetivas. O confronto
com a morte produz efeitos na equipe e nos pais, que
implicam em seus modos de escutar a criança. A escuta
sustentada pela ética analítica permite levantar questões
importantes nesse campo transferencial que indicou
o efeito de solidão e desamparo experienciados pela
criança diante de um tratamento que passa a valorizar
o corpo em sua dimensão biológica em detrimento de
uma escuta que possa acolher a marca singular de toda
experiência subjetiva.
Desse modo, a reflexão busca contribuir para a
interlocução entre a psicanálise e o campo da saúde,
sustentando a tensão necessária entre uma perspectiva
que funda sua intervenção a partir do estabelecimento
do que é comum, partilhável entre os indivíduos, e outra
que privilegia o que é da ordem do singular, portanto,
da ordem do sujeito. É diante desses questionamentos
que se pode pensar nos efeitos produzidos diante do
adoecimento da criança e de sua hospitalização e apontar
para novas dimensões que o adoecer também implica.
Quer dizer, tendo em vista as possibilidades curativas da
doença – almejadas na instituição hospitalar – e a busca
incessante para sua cura, os sujeitos envolvidos nesse
contexto também podem deparar com seu contrário, que
é a experiência da morte. E o mais importante: essa expe-
riência se articulará ao que há de singular para cada um.
Sendo a morte uma experiência propriamente humana

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– compondo um núcleo real a partir que aquele não se permite ouvir os
do qual o símbolo se produz – de que significados atribuídos aos sintomas
modo o deparar-se com a morte é descritos.
vivido no contexto dos serviços que Tendo em vista que a dinâmica do
lidam com ela diariamente? hospital envolve a urgência fisiológica
da doença e o tempo cronológico
diante desta e da internação, obser-
A instituição hospitalar, vam-se intervenções que acabam por
seus discursos e a escuta privilegiar o atendimento pontual
psicanalítica diante daquilo que emerge aos “olhos
e ouvidos” de todos nas enfermarias.
Isso quer dizer que as ações são
No tocante ao discurso cientí- pautadas em reações conscientes
fico e ao saber médico, Jorge (1983) dos pacientes e dos acompanhantes
afirma que esses, identificados com perante a doença e o momento vivido,
o discurso do Mestre, conceituado em busca do bem-estar destes sobre
por Lacan em sua teoria dos quatro aquilo que eles se queixam. Nessa
discursos, desconsideram a subjetivi- premissa de supressão do mal-estar,
dade tanto daquele que fala quanto as intervenções psicológicas são dire-
daquele que escuta. A objetividade cionadas e incidem sobre o sujeito
preconizada pela ciência médica sub- do conhecimento, que diz saber de
trai qualquer proximidade do agente si e que pede para que algo que inco-
com o sujeito adoecido, resultando moda seja mais bem “administrado”.
na inexistência da relação médico- Então, assim como “o saber médico
-doente. Assim, operando sob o pré-estabelece os passos que guiam o
paradigma biomédico e sustentado na profissional a elaborar um diagnós-
cientificidade do saber, a emergência tico objetivo e indicar o tratamento
do sujeito – ou mesmo dos sujeitos, mais eficaz para a cura da doença”
agente e outro – fica restrita (Costa & (Almeida, 2011, p. 48), a abordagem
Szapiro, 2016), isto é, “ele [o médico] psicológica parece caminhar no
se anula enquanto sujeito perante a mesmo sentido, visando eliminar o
exigência de objetividade científica. que o paciente indica como sintoma
O médico só se autoriza por não e mal-estar emocional ou psíquico.
ser ele próprio, por ser ele próprio Dessa forma, percebe-se que essa
o menos possível” (Clavreul, 1977 abordagem pode coincidir com o dis-
citado por Jorge, 1983, p. 11, grifos do curso do Mestre, assim como a pró-
autor). A desconsideração da palavra pria ordem médica firmada na institui-
do paciente afasta o médico – e seu ção hospitalar. O sujeito internado se
consequente diagnóstico – da histó- encontra submetido a uma dimensão
ria de vida e clínica do doente, visto imperativa inteira e completa, e o

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significante-mestre age, mediante a sugestão, sobre o outro enquanto saber. É
um discurso que alimenta a crença da completude e a possibilidade de satisfação
da demanda do sujeito (Jorge, 2006). Como Jorge (1983) declara, “converter,
convencer, vencer são tarefas próprias ao discurso do Mestre” (p. 14). Em con-
trapartida, a psicanálise privilegia o lugar de não saber – ou de suposto saber,
para o analisante – para que, a partir deste, o sujeito possa enunciar os próprios
significantes de que é efeito (Jorge, 2006) e isso é possível mesmo no contexto
hospitalar. Esse discurso é o único que permite que o sujeito esteja localizado
na posição do outro, sendo o psicanalista um “mero objeto a” (Alberti, 2000,
p. 46, grifo do autor).

A morte

Na Idade Média, a morte era um tema mais aberto e presente, assim como o
morrer era um evento público e que envolvia a todos – adultos e crianças – em
rituais menos privatizados e mais familiares (Elias, 1982/2001). Ainda que não fosse
pacífica – contando com epidemias e guerras –, ela era presente e menos oculta, já
que aspectos da vida humana, como o nascimento e a morte, eram fenômenos mais
compartilhados e sociáveis. A diferença entre esses tempos é também destacada
por Elias (1982/2001) mediante a presença dos outros na morte de um indivíduo,
pois “era muito menos comum que as pessoas estivessem sozinhas” (p. 25). Isso
indica o afastamento do outro diante do moribundo, fato que se evidencia hoje
nos hospitais. Assim, o hospital surge como um espaço que promove a distância
entre o vivo e o doente, privando-o do ambiente familiar que antes detinha junto
aos seus conhecidos, e afastando os vivos dessa experiência irremediável, mas
insuportável. Isso quer dizer que “a morte, tanto como processo quanto imagem
mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o
impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles também
são empurrados para os bastidores, são isolados” (Elias, 1982/2001, p. 19).
Com base em Freud (1915/2010), temos a compreensão de que imaginar
a própria morte – ainda que ela seja inevitável e natural aos seres vivos – é
impossível, pois se está sempre como um espectador; ela não é encarada de
frente, é sempre percebida a partir da morte do outro. Quer dizer, “a morte é
um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas” (Elias, 1982/2001, p.
10). Portanto, ter ciência da morte do outro é deparar com a possibilidade da
sua própria e é isso que causa temor aos homens – é o seu conhecimento que
se torna um problema (Elias, 1982/2001). Por isso, estar junto a um moribundo,
ajudando-o em seu processo de finitude e fazendo-o valer enquanto sujeito, é

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tão custoso. Outro aspecto para o qual é possível apontar
esse distanciamento, cada vez mais presente atualmente, é
o controle sobre a vida, intentado pelas ciências médicas,
na busca incessante pelo adiamento da morte. Segundo
Elias (1982/2001), “a vida é mais longa, a morte é adiada.
O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais
fácil de esquecer a morte no curso normal da vida” (p.
15). Hoje, esse fato é ainda mais expressivo e frustrante,
uma vez que o saber médico depara com seu “fracasso”.
Logo, defrontar-se com a morte de um paciente é também
esbarrar-se com seu insucesso, e isso incide, diretamente,
no despreparo ao cuidado do sujeito em terminalidade.
Por conseguinte, é diante dessa lógica que Fuks (1995)
denuncia o lugar que o sujeito passa a ocupar quando
está morrendo:

A ciência, preocupada apenas em construir uma cultura de


medicalização da morte, torna os idosos, assim como o doente
incurável em estado terminal, seres mudos e impotentes. Ao
reprimir a subjetividade de seus pacientes, os médicos acabam
por privá-los do direito de morrer com dignidade, isto é, como
falantes. (p. 10, grifos do autor)

Essa conjuntura chega à criança de modo ainda


mais contundente, uma vez que sua experiência diante
da morte tem sido, também, cada vez mais encoberta.
Conforme Freud abordou, a criança recebe o estatuto
de representação narcísica dos pais e da cultura, lugar de
realização do que aqueles não fizeram, de prevenção e
de ortopedia em direção ao ideal da civilização (Vorcaro,
1999). Portanto, os pais, diante de seus filhos doentes,
também sofrem diretamente os impactos do adoeci-
mento, seja social ou psiquicamente, pois são convocados
a abdicar de suas vidas pessoais para se dedicar à vida
daqueles (Góes, 2013), nos quais depositaram aspirações
e idealizações. Costa (2009) também indica que, perante
uma criança com câncer, as relações entre os membros
da família se modificam significativamente, tendo em
vista que questões ligadas ao narcisismo e à castração são
evocadas mediante o contexto da doença e a proximidade
com a morte. O câncer adentra a história familiar, para

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além da história médica, pois o lugar de cuidados paliativos anuncia um
que a criança doente ocupa no ima- conflito entre o curar a doença, tratar
ginário e no desejo de cada membro os sintomas e a consideração dos
delineará as formas de enfrentamento sujeitos envolvidos. Ela revela: “às
e as reações de cada um diante do vezes a gente até esquece da criança
adoecimento, assim como a atitude na hora do comunicado de cuidados
tomada pela criança dentro desse paliativos e, na enfermaria, às vezes
contexto refletirá nas respostas daque- esquecemos da família”. Isso eviden-
les (Almeida, 2011). Além disso, de cia, novamente, a desconsideração da
acordo com Góes (2013), “a morte criança enquanto sujeito que merece
de uma criança resgata nos pais seus saber sobre si, nesse caso, do ponto
próprios mitos infantis sobre a origem de vista clínico e, ainda, a criança que,
e sobre a morte, material psíquico posteriormente, poderá ser olhada
que afeta aquilo que eles transmitem apenas como um corpo a ser cuidado,
a seus filhos com psiquismo ainda em sem que haja espaço para o respeito e
formação” (p. 98). a consideração à família que também
Em outro contexto, da “comu- sofre.
nicação de más notícias” – como Todavia, tais atitudes também
frequentemente é designado o pare- denotam a dificuldade dos profis-
cer de cuidados paliativos, ou seja, sionais em se envolverem com o
o cuidado de um paciente com uma paciente e sua família, e mais, em
doença sem possibilidade curativa –, lidar com a possível morte daquele.
o que aparece de incômodo nesse Pois, como Carvalho (2011) aponta,
novo momento, além da necessidade a morte evidencia a castração da
de elaborar o luto – em virtude da equipe médica, fazendo-a confrontar
possibilidade de morte do filho amado com a problemática do luto e de suas
–, é o “ouvir direto” sobre a situação limitações técnicas. É por isso que seu
da criança, o “falar direto” da equipe afastamento lhes parece necessário.
que causa mal-estar aos pais. Ainda Para alguns profissionais, é preciso
que a reafirmação dos profissionais “fugir” desse envolvimento, mudando
de que não há mais terapia curativa de leito ou realizando apenas os pro-
seja apoiada na garantia de que serão cedimentos-padrão na criança, uma
proporcionados conforto e qualidade vez que, diante da morte, a equipe
de vida à criança, a renovação desse de saúde se sente impotente por
discurso, por vezes, se torna nefasto não poder prolongar a vida de seus
para quem o escuta. É diante deste pacientes. Sua primeira reação parece
que surge a declaração de uma mãe: ser esquivar-se dela, escondendo-se da
“é muito difícil ficar ouvindo isso família (Mannoni, 1995b), ou mesmo
toda hora”. E é nesse mesmo cenário do paciente em processo de termina-
que a fala de uma médica da equipe lidade. Quer dizer, “o encontro com

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algo que foge ao controle do sujeito ratifica sua condição de assujeitado na vida”
(Ferreira & Castro-Arantes, 2014, p. 59). E isso transcende à experiência dos
pais e dos pacientes, que se deparam com a doença e a possibilidade da morte
iminente, pois também afeta a equipe de saúde para a qual se apresentam seus
próprios limites em relação à cura. Assim,

é bastante difícil para o médico ter que desviar o foco de sua atenção da cura para a pers-
pectiva da morte. Ele é um profissional que está comprometido com a cura, e a incapacidade
de alcançar tal objetivo corresponde a um fracasso de sua parte. (Gonçalves, 2001, p. 35)

Outra experiência que acontece com os profissionais da saúde diz respeito a


situações em que a equipe solicita a intervenção do profissional “psi” para a reso-
lução de possíveis problemas psíquicos dos pacientes ou de seus acompanhantes,
que podem interferir em seu trabalho. Góes (2013) afirma que, muitas vezes,
esse pedido inclui o tamponamento da angústia dos próprios profissionais que
demandam, sem que a criança enderece alguma questão. Daí a sinalização de uma
profissional da saúde ao afirmar que a equipe que lida diretamente com os pacien-
tes “precisa ter o tempo dela, um momento para falar sobre ela”. São demandas que dizem
respeito, muitas vezes, à sua relação com a morte, como a enfermeira que diz: “ela
[a criança] não quer ir agora”, “vou segurar [não deixar morrer] ela até de noite”, mas que,
em contrapartida, a médica surpreende ao se opor a essa atitude, reconhecendo os
limites de seu exercício – e os seus próprios – ao afirmar “não, deixa ela ir”. Também
aparecem falas que expressam diretamente a relação dos profissionais com a morte
e com a sua inevitabilidade, como: “ai, deve ser horrível saber que vai morrer”, “é difícil a
gente dizer que não vai dar certo, que não tem cura” e até mesmo a frustração ao
reconhecer que existe uma “dificuldade dos médicos em prever a morte”. Sobre isso, como
Mannoni (1995b) bem sublinha, “atualmente, o homem que conseguiu dominar o
nascimento deseja ter o direito de dominar a morte” (p. 74).
Escutam-se, ainda, falas que indicam atitudes de enfrentamento e afasta-
mento da finitude por parte dos profissionais, como a enfermeira que afirma:
“numa hora de emergência, a gente quer é salvar”, ou a confissão da médica, de
que “a maioria [da equipe] ali atende porque quer a cura” ou, ainda, o profissional
que declara “não tem mais o que fazer”, diante de uma criança em terminalidade
de vida. Esta última fala, que surge insistentemente nesse contexto, pode indicar
uma postura que aceita o processo da finitude no que se refere a sua prática, que
tudo o que era possível já fora feito, e o profissional pode se agarrar à ideia de
que a família “viveu a pior parte da vida de forma tranquila e segura”. Ou seja,
a garantia imaginária de que tudo fora feito e os pais vivenciaram de maneira
“não sofrida” a morte do filho evidencia um bom trabalho realizado pela equipe.
Entretanto, ela também pode designar o seu oposto, sendo um discurso revelador

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de que a impossibilidade de cura
resulta na “falta do que fazer” – pois
seu trabalho é “inútil” a partir desse
ponto, já que a morte é inevitável.
Mais uma vez, evidencia o limite das
técnicas, produz uma ferida narcísica
nos profissionais, revela a castração
de cada um. Mas, nesse momento, é
possível interrogar: não há o que se
fazer em relação à morte, mas e em
relação à vida que ali ainda existe? Será
que a morte anunciada não impõe a
sentença de que a criança não tem
mais uma palavra a ser ouvida? Será
que, posto isso, ela não deixa de ser
considerada sujeito de desejo para ser
um corpo à espera da morte, com o
qual os profissionais têm dificuldade
de lidar e estar junto? E como essa
criança se sustenta nesse tempo? Ou
melhor, ela consegue se sustentar
diante desse outro que parece não
mais vê-la e escutá-la?
À vista disso, percebe-se que há
um sentido comum produzido na
instituição hospitalar, de modo que os
profissionais trabalham “em prol do
mesmo objetivo”: a cura da doença.
Assim, estar diante de algo sem ins-
crição psíquica, como a morte, e que
ainda revela o limite de cada um, é
desafiador para os que lá atuam e
para aqueles que estão envolvidos nos
cuidados, como a família e o próprio
paciente. É assim que ela é posta de
lado, numa tendência a eliminá-la da
vida e reduzi-la ao silêncio, pois “no
fundo ninguém acredita na própria
morte” (Freud, 1915/2010, p. 230),
inconscientemente, cremos em nossa

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imortalidade. É o deparar-se com a morte e com suas repercussões, paralelamente
ao desejo de cura, que as atitudes do adulto diante da criança podem fazê-lo
esquecer das particularidades que cada uma apresenta perante seu adoecimento
e sua história. É por isso que Carvalho (2011) também afirma que “significantes
como morte e doença mexem com o imaginário das pessoas e emergem em
forma de angústia, embotando os discursos” (p. 11, grifos do autor). Há um
perigo em querer apenas manter a criança viva, na tentativa de evitar uma perda
ou a interrupção de algo que se supunha ter o controle, pois a consideração da
criança enquanto sujeito desejante pode ser reduzida a um corpo doente que
deve ser tratado e cuidado.
Portanto, para a equipe de saúde, a revelação da morte tão próxima e real
comparece em sua postura diante dos pacientes em fim de vida. Manter esse
distanciamento parece ser vital para os profissionais como uma defesa da morte,
resultando na instrumentalização do corpo e no não envolvimento com o
paciente e com sua família que sofrem. Ou seja, os profissionais “tendem a lidar
com isso por meio de um distanciamento do paciente, criando um ambiente de
conspiração de silêncio” (Gonçalves, 2001, p. 35). Silêncio este que não permite
mais – se é que antes era possível – que a criança enderece sua palavra e simbo-
lize o momento que está vivendo. Nesse instante atentamos que não há mais a
palavra do outro para a criança – apenas sobre ela – e ela também não vê mais
espaço para a sua própria, restando-lhe, como reposta ao silêncio produzido,
sua demissão, seu abandono à própria morte. Ao tratar dessa questão, Mannoni
(1995a) se refere a casos em que o olhar da mãe sobre um bebê, quando vazio
afetiva e simbolicamente, acaba por provocar sua demissão psíquica. Ou seja,
esses bebês com aparência depressiva parecem não mais reagir ao outro, devido
à falta de trocas emocionais de outrora. Assim, é possível pensar que essa con-
dição de demissão subjetiva pode ser transposta para o que aqui se discute em
situações de adoecimento e da morte anunciada, mediante a falta de proposta
curativa da doença da criança, já que o sujeito doente se cala, pois se recusa a
ser olhado como moribundo. Isto é, “se a criança não encontra ninguém capaz
de ir ter com ela, se só depara com o silêncio ou a mentira, também ela se cala”
(Raimbault, 1979, p. 19).

A criança, a “morte anunciada” e seus efeitos

É no corpo da criança que os profissionais de saúde percebem sinais e


sintomas que indicam sua finitude e tais marcas refletem diretamente no olhar
do outro sobre ela. Esse fato se anuncia a partir da fala de uma médica sobre

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seu paciente, ao constatar que ele sensação de solidão, em seu sentido
“já tá começando a ficar diferente, simbólico, afetivo e social. No tocante
como acontece com as crianças em a esse fenômeno, Mannoni (1995b)
terminalidade”. No entanto, parece afirma que “tem-se a tendência fre-
que não é só a criança que fica “dife- quente, nesse momento, a considerar
rente”, mas os adultos que a veem o doente apenas como objeto de cui-
assim também se colocam em outra dados, quando é essencial para ele que
posição, diferente da anterior, quando se privilegiem os momentos em que
a criança ainda dispunha de sua saúde pode, enquanto sujeito, permanecer
a ser reestabelecida. Além disso, as interpelável como tal” (p. 49). E é jus-
“crianças em terminalidade” passam tamente em relação a esse tempo que
a ser um todo, generalizáveis em seus Elias (1982/2001) declara: “se uma
“sintomas de morte”, sendo mais um pessoa sentir quando está morrendo
momento em que se perde a singula- que, embora ainda viva, deixou de ter
ridade de cada uma. Mais uma vez o significado para os outros, essa pessoa
corpo é percebido como sinalizador está verdadeiramente só” (p. 75).
de disfuncionalidades e categorizado. Muitas vezes, a morte da criança
Nesse momento, ele não pode mais no hospital é perpassada pelo seu
ser alvo de medidas curativas, mas o silêncio antecipado, pois é somente a
controle da dor e do desconforto res- partir do olhar e da voz do outro ende-
piratório, por exemplo, são atendidos reçados a ela – que nesse momento
prontamente, pois esses são sinais que não comparecem – que a criança
os profissionais tentam apaziguar no pode se sustentar enquanto sujeito
“momento mais difícil da vida”. Ainda (Mannoni, 1995b). Nesse sentido,
que se reconheça a importância de “quando a única prescrição é ‘obede-
fazê-lo, promovendo-se um ato de cer ao doutor’, o paciente desaparece,
sensibilidade para com o outro que e uma violência cega (gerada pelo
sofre – fisicamente, nesse caso –, medo de fazer mal) se exerce: . . . o
atenta-se para o encobrimento que doente se torna aquele de quem se
a atitude do puro controle de sin- fala, não mais é escutado” (Mannoni,
tomas envolve, a partir da qual não 1995b, p. 127). Logo, o seu silêncio
se permite acessar a criança em sua pode não se dar unicamente como
totalidade e restringe-se aos procedi- uma resposta ao momento da fini-
mentos-padrão. Isso quer dizer que o tude, por sua elaboração do luto, mas
que resvala para o sujeito dessa expe- também como resultado da atitude do
riência tão radical muitas vezes não outro diante dela. A “insignificância
é escutado, pois ele é escamoteado de seu caso” o deixa desamparado,
em prol das atitudes emergenciais do já que os adultos agem como se não
corpo (Ferreira & Castro-Arantes, houvesse nada, já que ele vai mesmo
2014). Prevê-se então, uma “dupla” morrer; e o médico se afasta, pois ele

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também se constrange (Mannoni, 1995b). Assim, con-
forme destaca Raimbault (1979),

o silêncio é a máscara da condição e da função do moribundo,


criança ou adulto, em relação aos desejos dos vivos. Todo diálogo
autêntico mostra-se insustentável, ninguém é capaz de ouvir o
depoimento do condenado, ninguém pode responder-lhe. Ele
está obrigado a um silêncio oficial que prefigura o silêncio da
sua própria morte. (p. 18)

No entanto, também há casos em que a criança insiste


em saber seu estado, em se fazer valer enquanto sujeito,
possivelmente porque sente que “algo está diferente”
– em seu corpo e mediante os outros. A tentativa de
quebrar o silêncio produzido entre os pais e a instituição
é atravessada pela angústia desses diante da possível des-
coberta ou da necessidade de sua comunicação. Os pais
são os primeiros a saberem sobre o estado de seu filho,
e só então será considerado falar ou não para a criança,
principalmente quando se trata de uma comunicação
de “prognóstico restrito”, sem possibilidade curativa.
Escutam-se falas dos pais e dos médicos que versam
sobre a inquietação que causa esse anúncio, como “temos
que começar a conversar com ela”, “ele não sabe”, “a mãe está sem
saber como falar com o filho, e ele está querendo saber, porque está
perguntando”. Quanto a isso, Elias (1982/2001) declara que

a dificuldade está em como se fala às crianças sobre a mor-


te, e não no que lhes é dito. Os adultos que evitam falar a seus
filhos sobre a morte sentem, talvez não sem razão, que podem
transmitir a eles suas próprias angústias. (p. 26)
Ademais, a sensação – imaginária – de que o saber da
criança sobre a morte pode prejudicá-la resulta na ocul-
tação de fatos simples da vida, que ela terá de conhecer
para então compreendê-los (Elias, 1982/2001). Todavia,
de acordo com Góes (2013), é possível – e necessário –
incluir a criança em seu tratamento e fazê-la participar
dos momentos de sua doença, atentando-nos para as
diferenças na constituição psíquica do sujeito, em seus
tempos de desenvolvimento.

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Percebe-se, também, que é diante auxiliado pelo analista a se sustentar
da proximidade da morte que o sujeito em sua posição desejante, mesmo
doente pode se questionar sobre sua diante da terminalidade (Baroni &
vida, sobre o que foi experienciado Kahhale, 2011). Segundo Raimbault
e o que ainda deseja viver. Isso quer (1979), “a única ajuda que podemos
dizer que pode haver a antecipação dar à criança moribunda é mostrar-lhe
de questões subjetivas até então que temos vontade de permanecer
não acessadas, ou seja, “a morte com ela até o fim” (p. 50). No entanto,
próxima precipitou algo” (Baroni permanecer com a criança aqui não
& Kahhale, 2011, p. 71), pois “é o deve significar a mera presença e os
corte  .  .  . da morte que lhe traz a cuidados físicos dos adultos mediante
urgência” (Castro-Arantes, 2016, p. aquela que morre, mas, sobretudo,
640). Isto é, a morte precipitou o falar seu comparecimento simbólico, pois,
e o desejo de significação do que se considerando sua palavra, considera-a
está vivendo. Mas a simbolização e também enquanto sujeito. Para tanto,
a criação de novos sentidos diante Gonçalves (2001) ainda acrescenta: “é
desse momento só são possíveis se preciso que haja desejo de estar-com
a escuta do sujeito é privilegiada, de a criança na vivência de sua doença
modo a fazê-lo percorrer por sua terminal, mesmo que este estar-com
cadeia significante e propiciar um con- seja através da linguagem do silêncio”
torno ao processo traumático, pois é (p. 36).
justamente o seu contrário – a falta Por outro lado, o trabalho do
de contorno e de palavra – que pode analista também pode ser o de faci-
fazê-lo calar-se e viver sua finitude de litar uma mudança de posição dos
modo angustiante (Ferreira & Castro- adultos diante da criança, do campo
Arantes, 2014). Portanto, “o trabalho da impotência ao da impossibilidade
analítico estaria então em encontrar, (Carvalho, 2011), já que o primeiro
junto com o paciente, recursos que o pode remetê-los à culpabilização
sustentem, para suportar a vida – e (Castro-Arantes, 2016) por algo que
a finitude” (Castro-Arantes, 2016, p. não foram capazes de “dar conta”,
647). Em se tratando de crianças, essa que, nesse caso, diz respeito à morte.
experiência não difere totalmente. Ela Rodrigues (2006) ainda ressalta que,
conta com particularidades quanto à “para um ser pensante, não é a morte,
sua elaboração em comparação ao categoria geral e indefinida, que
adulto, mas isso não lhe tira o direito coloca um problema, mas o fato de
da palavra e a possibilidade de fazê-la, que ele, sujeito pensante, morre – o
se assim desejar e for escutada. Ou fato de que ‘eu’ morro” (p. 17). E
seja, a clínica em psicanálise é a clínica estar na presença de uma criança que
do desejo e é por isso mesmo que o morre é ter a consciência de que se
sujeito – que não tem idade – deve ser é também mortal, uma vez que “a

253
criança hospitalizada nos confronta com esse real de que a morte não é o fim
da vida, mas o que estabelece o fim à vida” (Carvalho, 2011, p. 7).
Uma outra situação que chama atenção no contexto hospitalar é quando
crianças com doenças crônicas – mais “fatais”, como o câncer –, convocam a
equipe assistente e outros adultos a sentirem “pena” e a dar tudo o que elas
pedem, e mesmo o que não pedem. Tudo isso numa tentativa imaginária de
ajudar essas crianças a passar pelo momento do adoecimento de maneira mais
agradável, quando, na verdade, as enxurradas de brinquedos visam tamponar,
antes, uma falta daqueles que os fornecem e não uma necessidade das crianças.
Segundo Castro-Arantes e Lo Bianco (2013), “há na pena o desdém e o des-
prezo, daquele que, defendido, se crê inteiro frente ao outro mutilado (às vezes
literalmente)” (p. 2521). Ou seja, esse é um mecanismo que o sujeito encontra
para poder se sustentar e se perceber inteiro diante do outro que revela um real
insuportável. Todavia, Góes (2013) destaca que estar com a criança e considerá-la
enquanto sujeito, inclusive quando diante da certeza da morte, parece ser mais
fundamental e estruturante do que carregá-la de presentes.
Diante da criança doente, também se percebe que há um perigo circundando
o processo de constituição do sujeito, pois, muitas vezes, os adultos – inclusive
os pais – acabam isentando-a de suas ordens. Mediante o sentimento de pena e
pressupondo um sofrimento em consequência da doença, tentam compensá-la
de outras formas, não impondo limites e oferecendo presentes, por exemplo.
Por vezes, até esquecem as demandas da criança, que podem, inclusive, não dizer
respeito ao seu adoecimento.
Outra cena que chama atenção é a do adulto que parece querer suprir a
criança que morre, a partir de objetos que poderiam amenizar sua – a do adulto
e a da criança – angústia, pela busca de satisfação de “desejos” da criança, como
o pedido de um carrinho de controle remoto ou o querer conhecer um per-
sonagem famoso. Essa ação surge apenas quando a equipe de saúde sabe que
não há mais cura para a doença da criança, ou seja, é preciso supri-la de alguma
outra forma, já que “não resta mais o que fazer”. Passa a ser uma corrida contra
o tempo, pois a morte pode estar próxima – nunca se sabe com precisão, para
a frustração dos médicos. Tais posturas podem indicar, novamente, mais uma
posição dos adultos perante a dificuldade de lidar com a doença na criança e
as repercussões psíquicas nela envolvidas. A ilusão de que um objeto ajudará
no enfrentamento da criança, ou mesmo pôr fim ao seu possível sofrimento, e
a sensação de bem-estar causada nos adultos por essa atitude não é, por vezes,
da mesma forma significado pela criança. É inegável a satisfação dela ao ganhar
um presente – afinal, quem não gosta de ganhar presente? –, porém, o lugar
em que ela pode se situar no momento em que isso acontece não é o que ela
quer estar para os adultos. Isso indica que a criança quer ser considerada um

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sujeito ainda vivo e cheio de possibi- do sujeito, que será lembrado mesmo
lidades – ainda que limitadas –, não depois de sua morte. Quer dizer, estar
uma pessoa com uma doença que a diante da morte iminente da criança
remete à fragilidade para o adulto e pode fazer que o outro “acorde”
no qual opera sentimentos de pena e busque fazer valer seus desejos
e temor à morte. Quanto a isso, ainda em vida, e mais, pode permitir
Castro-Arantes e Lo Bianco (2013) que a criança, de fato, viva. Mas é
apontam que “expressar pena cala o preciso atentar para que esse olhar
sujeito porque fecha qualquer espaço não seja acompanhado pelo silêncio
de construção de fala, que toque no e pela angústia diante da morte que
real do que experimenta” (p. 2521). se aproxima, mas que seja legítimo
Exemplo disso: uma criança fala que e a favor da criança e da vida que ela
não gostaria que as pessoas de sua ainda dispõe.
cidade a vissem doente – de máscara Além disso, a relação da criança
hospitalar e careca –, ainda que já com a morte, por vezes, é falada por
soubessem de seu adoecimento. Tal ela de modo mais “natural”, menos
situação poderia localizá-la em um camuflado. Como exemplo, um
lugar não desejado, lugar este que garoto com o diagnóstico de leuce-
poderia comprometê-la diante de mia fez um desenho quando estava
suas demandas e experiências, que internado e contou a seguinte história
vão além do acometimento orgânico. sobre a flor que desenhara: “um dia
Por conseguinte, conforme Mohallem um homem quis plantar uma flor. Ele
(2003) declara, “torna-se fundamental tinha umas sementes e plantou. Ela
ter um outro que continue apostando se chamava rosinha. Todos na cidade
na pessoa, que ela possa continuar achavam ela muito bonita e muito
tendo um lugar no desejo do Outro” cheirosa. Ela cresceu, mas ficou no
(p. 29). sol e começou a murchar. Aí o homem
No entanto, também é possível pegou ela e botou pra dentro de casa,
considerar essa cena a partir de um mas ela ficou triste porque queria ficar
outro olhar. Escutar a criança em no sol, porque era o lugar dela. Aí o
fim de vida desejando algo particular homem botou ela no sol de novo e
dá voz ao seu último desejo, o qual ela morreu”. Como uma leitura do
poderá ser considerado pelo outro que fora dito por essa criança, nota-se
e lembrado posteriormente, como a que o desejo da rosa – de voltar ao seu
criança que queria conseguir pintar lugar, no sol – deveria ser escutado e
novamente ou ir à praia. Realizar esse a dificuldade do homem em lidar com
último desejo, então, de acordo com esse processo inevitável da morte,
as possibilidades e sua viabilidade, querendo evitá-lo, revela um registro
pode imprimir para os adultos envol- de sentido que difere do da criança.
vidos algo da ordem de uma marca

255
Há casos em que as crianças deparam com a morte,
fazendo questões a ela, no momento em que seus vínculos
são rompidos mediante a perda de um familiar ou mesmo
de um amigo, também paciente oncológico. Ou seja, é
diante da morte do outro que a possibilidade da própria
morte se apresenta ao sujeito. Diante dessa morte, aliás,
por se tratar de crianças envolvidas – a que foi e a que ainda
vive – o não-dito prevalece, numa nova tentativa de evitá-la
por parte dos adultos. Assim, a criança fica alheia à morte
de seu amigo ante uma causa defendida por aqueles que
referem proteção, para a criança e para si, ao não querer
entrar em contato com esse conteúdo. Contudo, aqui cir-
cunda uma questão ética, pois, em alguns casos, a criança
já sabe da morte e não pode ou não consegue falar dela,
não sendo possível significá-la. Nesse caso, o trabalho do
psicanalista será outro. Se a palavra da criança lhe é ende-
reçada, não se pode negar sua escuta, ainda que os pais
acreditem imaginariamente que “é melhor ela não saber”,
pressupondo seu desconhecimento. Portanto, conforme
destaca Gonçalves (2001), a oferta de escuta proporciona
uma abertura para os não-ditos ou “mal-ditos”, “isto é,
dar ao paciente a oportunidade de falar sobre coisas que
são omitidas ou distorcidas no contexto do “lugar para a
cura”, que é a instituição hospitalar” (p. 36).

Considerações finais

Freud (1914/2004) ressaltou que, em situações de


adoecimento orgânico, o desinvestimento no mundo
externo não é incomum, consistindo, na verdade, como
essencial ao doente. Isso quer dizer que os que estão
internados podem voltar-se para si e não mais para o
externo, para o outro, e é natural considerar que “o sujeito
atormentado por uma dor orgânica e por incômodos
diversos deixe de se interessar pelas coisas do mundo
exterior que não digam respeito ao seu sofrimento”
(Freud, 1914/2004, p. 103). Tal atitude pode ser neces-
sária para que o sujeito encontre o equilíbrio, a fim de

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que ele possa investir novamente a
sua libido no mundo externo, após
a cura. Entretanto, tal inversão se
torna patológica na medida em que
o doente não consegue sair desse
estado, tornando-se engessado e sem
condições de investimento para além
de si mesmo, voltando seus investi-
mentos libidinais somente para o Eu
(Freud, 1914/2004).
Observa-se que em alguns pacien-
tes, quando estão em processo de
morte e internados, o desinvestimento
externo se torna ainda mais expres-
sivo, causando dificuldade ao pro-
fissional da saúde em lidar com esse
afastamento. Essa recusa do paciente
à presença do outro incomoda a
equipe a ponto de questionarem o
que ainda pode ser feito quando há
certeza da morte, baseados na pre-
missa de que ajudá-lo a passar por esse
momento é preciso – entendendo,
aqui, morrer de forma “tranquila e
sem sofrimento” e “sem perturbar a
ordem” –, ou acabam por julgar como
uma recusa à pessoa do profissional
e ao seu trabalho. Não se dão conta
de que a nova postura adotada diante
do paciente que está morrendo tem
incidências no seu endereçamento
diante dele e, consequentemente, tam-
bém pode ocorrer o seu contrário. Ou
seja, olhar para o sujeito que morre,
muitas vezes, o coloca na posição de
“já morto” para a equipe, tendo em
vista que não parece haver mais inves-
timento subjetivo e simbólico para
com esse sujeito – inclusive clínico,
perante a perspectiva curativa.

257
Desse modo, imersos na rotina do ambiente hospitalar e tratados como
objetos, corpos a serem curados, o sujeito entra em estado de omissão, de possi-
bilidade de ser consigo e com o outro. Isso acontece, também, em casos de longa
internação, nos quais o quarto do hospital se torna sua casa, as vestes e a comida,
bem como as pessoas que ali estão, se transfiguram, involuntariamente, como
parte de seu dia a dia, o que pode culminar em uma demissão física e subjetiva.
Desse modo, quem era antes, sua casa, sua escola e suas relações podem se perder
se não surge alguém sensível que possa “recuperar” essas dimensões subjetivas
essenciais ao sujeito – essenciais, inclusive, para seu reestabelecimento físico.
No caso de crianças, essa dimensão pode tomar uma proporção ainda maior,
tendo em vista que são sujeitos cuja experiência é marcada por sua dependência
do outro. Referimo-nos aqui ao aspecto destacado por Wallon (1968, 1971) e
Lacan (1998), quando falam da especificidade da espécie humana no que tange
ao tempo em que vivem na total dependência do outro; dependência articulada
à linguagem, ao fato de que o corpo, no caso do humano, terá que ser tomado
pela linguagem. Nesse campo, circunscreve-se o amor, que se instalará nessa
fronteira entre linguagem e desejo – desejo de que o outro esteja ali. É por isso
que Freud (1914/2004) aponta que “um forte egoísmo protege contra o adoe-
cimento. Mas, no final, precisamos começar a amar para não adoecer, e iremos
adoecer se, em consequência de impedimentos, não pudermos amar” (p. 106).
É nesse instante que o comparecimento de um terceiro, como o psicanalista,
pode ser importante, pois poderá promover o endereçamento da palavra, que até
então estava apagada pelas rotinas médicas e pelo próprio padecimento orgânico.
Portanto, contata-se, a partir da escuta do sujeito, que o não falar sobre a
hospitalização ou sobre a doença não necessariamente indica um não-saber
sobre o que está acontecendo, mas, antes, pode indicar que essa fala – que às
vezes a equipe cobra que seja pronunciada – não é solução para o que ele está
vivendo. Logo, o sujeito traz aspectos de sua vida justamente porque ele não
quer perdê-la. Diante disto, entende-se que não se pode ter a pretensão de que o
sujeito saiba tudo e fale sobre o seu adoecimento e os procedimentos médicos,
porque falar “só” disso – experiência na qual já se está imerso e que está fora de
seu controle – pode ser insuportável para sua própria realidade psíquica. Uma
escuta vazia de saber prévio é então privilegiada, pois deixar que o sujeito fale
livremente, a partir de seu próprio desejo inconsciente, é fundamental. E con-
forme Melo (2014) assinala, “oferecer um lugar de palavra não é pouca coisa.
A escuta convoca o sujeito em meio ao tratamento orgânico, considerando o
campo do desejo em jogo sempre, inclusive durante todo o tratamento, fazendo
valer seu direito” (p. 27). Logo, é pela promoção do endereçamento da palavra,
para além das rotinas institucionais e médicas, que a criança pode recuperar seu
posto de sujeito e de saber que estavam subjugados a um outro.

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THE CHILD AND THE “ANNOUNCED DEATH”:
CONSIDERATIONS ABOUT ANALYTICAL LISTENING IN
PEDIATRIC ONCOLOGY
Abstract
The article presents a process of elaboration that comes from listening to children
in health institutions – in particular, cancer treatment institutions – fundamentally
questioning the child’s experience of death. By problematizing the incidences of
medical discourse in the child’s experience and the contributions offered by analytical
listening, the article aims to contribute to the interlocution between Psychoanalysis
and the field of Health, sustaining a look at what is singular, especially in the
context of “announced death”, to the detriment of the sick subject taken purely
as a biological organism.
Index terms: psychoanalysis; hospital; medical speech; child; death.

EL NIÑO Y LA “MUERTE ANUNCIADA”:


CONSIDERACIONES SOBRE LA ESCUCHA ANALÍTICA EN
LA ONCOLOGÍA PEDIÁTRICA
Resumen
El artículo expone un camino de elaboración que viene de la escucha de niños
en instituciones de salud – especialmente, instituciones de tratamiento oncológico
– interrogando fundamentalmente la experiencia del niño frente a la muerte.
Discutiendo las repercusiones del discurso médico en la experiencia del niño y
los aportes ofrecidos por la escucha analítica, el artículo objetiva contribuir a la
interlocución entre el psicoanálisis y el campo de la salud, sosteniendo la mirada
hacia lo que es del orden de lo singular, en particular en el contexto de la “muerte
anunciada”, en detrimento del sujeto enfermo tomado puramente como organismo
biológico.
Palabras clave: psicoanálisis; hospital; discurso médico; niño; muerte.

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Recebido em fevereiro/2018.
Aceito em setembro/2018.

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