Carlos Eduardo Pires de Camargo

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Carlos Eduardo Pires de Camargo

Semiótica da vida artificial

Doutorado em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital

São Paulo
2018
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP

Carlos Eduardo Pires de Camargo

Semiótica da vida artificial

Doutorado em
Tecnologias da Inteligência e Design Digital

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Tecnologias da Inteligência e Design
Digital, área de concentração Processos Cogni-
tivos e Ambientes Digitais, sob a orientação do
Prof. Dr. Winfried Nöth

São Paulo
2018
Banca Examinadora:
Para Marcia, Beatriz e Felipe
Esta tese teve o suporte da CAPES / PROSUC — Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior / Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comu-
nitárias de Ensino Superior –– mediante concessão de bolsa de Doutorado, modalidade
I, objeto do processo no 88887.149984/2017-00, o que permitiu a realização do curso de
Doutorado e a conclusão da Tese, que consolida a pesquisa realizada durante o curso.
Agradecimentos

Marcia, Beatriz e Felipe;

Maria José, Péres, Márcio e Rosa;

Professores Winfried Nöth e Ítalo Santiago Vega;

Professora Lucia Santaella;

Professores João José Neto, Sérgio Basbaum e Demi Getschko;

Professor Francisco Felinto Jr. e Edna Conti;

Amigos do TIDD e dos grupos de estudos Transobjeto e GEMS.


Resumo

Em meados da década de 1980 surgem várias abordagens bioinspiradas para o estudo


da inteligência artificial. Partindo-se deste contexto e dos autômatos celulares de von
Neumann, foi desenvolvido o campo da vida artificial com o objetivo de construir siste-
mas artificiais capazes de apresentar comportamentos semelhantes aos encontrados nos
fenômenos biológicos. Esta tese recupera a história da vida artificial e de sua relação
com a inteligência artificial, apresenta as dificuldades de seu desenvolvimento através de
posições baseadas no dualismo cartesiano, e demonstra a possibilidade de um caminho
mais adequado de pesquisa tendo como hipótese a continuidade entre mente e matéria,
própria da semiótica geral de Charles Sanders Peirce. Através da semiótica peirceana e
de fundamentos da biossemiótica, desenvolve-se a técnica de transposição semiótica, um
conjunto de operações diagramáticas para auxiliar o estudo da vida artificial. Esta técnica
realiza o levantamento dos processos semióticos subjacentes aos fenômenos biológicos para
que sejam criados, através de isomorfismo derivado da teoria das categorias, autômatos
finitos capazes de expressar, computacionalmente, certos aspectos dos processos biológi-
cos originais. Ao longo da pesquisa, foi utilizado o comportamento de aprendizagem e
memória de um molusco marinho, a Aplysia californica, como elemento auxiliar para a
formalização da transposição semiótica. Outros dois fenômenos biológicos — a tradução
gênica e a dinâmica da cadeia de vacância relativa ao caranguejo Pagurus longicarpus
— foram considerados para o estudo de casos que comprovam o caráter geral da trans-
posição semiótica. Conclui-se que o uso da teoria semiótica como fundamento para o
estudo da vida artificial constitui-se em instrumento efetivo para a criação de dispositivos
computacionais biologicamente inspirados.

Palavras-chave: vida artificial; semiótica; computação bioinspirada; inteligência arti-


ficial; transposição semiótica.
Abstract

In the mid 1980’s several bio-inspired approaches emerged to the study of artificial intel-
ligence. Starting from this context and from von Neumann cellular automata, the field of
artificial life was developed with the objective to construct artificial systems capable to
present similar behaviors to those found in biological phenomena. This thesis recovers the
history of artificial life and its relationship with artificial intelligence, presents the diffi-
culties of its development considering cartesian dualism, and demonstrates the possibility
of a more adequate way of research based on the hypothesis of continuity between mind
and matter, typical of the general semiotics of Charles Sanders Peirce. Through peircean
semiotics and using the fundamentals of biosemiotics, the semiotic transposition techni-
que is developed, a set of diagrammatic operations to support the study of artificial life.
This technique studies the semiotic processes underlying biological phenomena. Then, th-
rough isomorphism, derived from the category theory, a finite automata can be created to
computationally express certain aspects of the original biological processes. Throughout
the research, the learning and memory behavior of a sea slug species, Aplysia californica,
was used as an auxiliary element for the formalization of semiotic transposition. Two
other biological phenomena — the genetic translation and the vacancy chain dynamics
related to the Pagurus longicarpus, a species of crab — were considered as case studies to
demonstrate the general character of the semiotic transposition. It is concluded that the
use of semiotic theory as the basis for the study of artificial life constitutes an effective
instrument to the creation of bio inspired computational devices.

Keywords: artificial life; semiotics; bio inspired computing; artificial intelligence; semi-
otic transposition.
Lista de Figuras

1.1 Representação de uma máquina de Turing. Elaboração do autor com base


em Sipser (2006, p. 138). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

1.2 Esquema simplificado da arquitetura de von Neumann. Elaboração do


autor com base em Weber (2012, p. 49). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.3 Diagrama conceitual de um autômato auto-reprodutivo (kinematic model).


Elaboração do autor com base em Emmeche (1994, p. 55). . . . . . . . . . 21

1.4 O jogo da vida de Conway. Representação de uma tela com resultado típico
após certo número de interações do autômato celular. Imagem criada a
partir do aplicativo Conway’s Game of Life (Pelagic Games). . . . . . . . . 23

1.5 Metodologias da vida artificial e as áreas em que são tipicamente utilizadas.


Elaboração do autor com base em Kim e Cho (2006b). . . . . . . . . . . . 26

1.6 Representação da concepção de Langton sobre a vida artificial. A forma


lógica subjacente ao fenômeno em estudo é extraída do suporte biológico;
sendo considerada independente, a mesma forma lógica poderia ser imple-
mentada em qualquer outro suporte ou hardware. Elaboração do autor. . . 28

1.7 Representação do processo de transposição semiótica. Um diagrama se-


miótico (a ser desenvolvido no capítulo 3) abstrai as semioses subjacentes
ao fenômeno biológico em estudo através da potencialidade de manifesta-
ção da forma qualitativa dos signos envolvidos; suas partes são convertidas
por isomorfismo numa representação por diagrama de transição de estados
passível de ser implementada em meio computacional, respeitando as carac-
terísticas e capacidades interpretativas de cada um dos suportes envolvidos.
Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

2.1 O tripod. Representação da relação triádica irredutível do signo peirce-


ano: Representamen (o primeiro), Objeto (o segundo) e o Interpretante (o
terceiro). Elaboração do autor com base em Queiroz (2004, p. 53). . . . . . 37
2.2 A cadeia semiótica. O Interpretante I(n) da semiose S(n) coloca-se como
Representamen da semiose S(n+1) transformando-se em R(n+1) e, assim,
sucessivamente ad infinitum. Os Objetos (O) representados são objetos
imediatos, cada qual levemente diferente do anterior, mas todos se referindo
ao mesmo objeto dinâmico. Elaboração do autor com base em Queiroz
(2004 apud BALAT, 2000, p. 57). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

2.3 Primeira tricotomia - ponto de vista do representamen. Elaboração do autor. 40

2.4 Segunda tricotomia - ponto de vista das relações entre representamen e


objeto. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

2.5 Terceira tricotomia - ponto de vista das relações entre representamen e


interpretante. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

2.6 As dez classes de signos. Elaboração do autor com base em Queiroz (2004,
p. 89). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

2.7 Relações hierárquicas entre as dez classes de signos (setas com linhas cheias
representam inclusão e setas com linhas pontilhadas representam a ação de
governar). Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

3.1 Processo de pensamento diagramático. Elaboração do autor com base


em Stjernfelt (2011, p. 104). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

3.2 Animal acostumado aos estímulos de seu habitat. Elaboração do autor. . . 60

3.3 Animal percebe algo. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

3.4 Reconhecimento de eventos já experienciados, ou desconhecimento de novos


eventos. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

3.5 Processo de aprendizagem resultando em habituação ou encaminhamento


do momento V (sensibilização). Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . 63

3.6 Finaliza-se o processo de aprendizagem incorporando um novo hábito. Ela-


boração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

3.7 Círculo funcional. Elaboração do autor com base em Nöth (1995a, p. 158)
e Uexküll (1934) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
3.8 Diagrama semiótico do comportamento de aprendizagem da Aplysia cali-
fornica (nível focal: organismo). e1 a e5 representam as entradas, s1 a
s5 representam as saídas. P, S e T apontam, respectivamente, os estados
de primeiridade, secundidade e terceiridade. PR refere-se ao potencial de
repouso, PA ao potencial de ação e RMD à reação motora de defesa do
animal. Os outros elementos do diagrama representam as mesmas relações
evidenciadas no capítulo anterior “A semiótica geral de Peirce”. Elaboração
do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72
3.9 Relação entre as análises com foco organismo e com foco nas células. Ela-
boração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
3.10 Circuitos neurais mediador e modulatório esquemáticos da aplísia califór-
nica (F1 - fenda sináptica entre o neurônio sensor e o neurônio motor do
circuito mediador, presença de glutamato; F2 - fenda sináptica entre o
interneurônio facilitador do circuito modulatório e o neurônio sensor do
circuito mediador, presença de serotonina). Elaboração do autor com base
em (KANDEL, 2006, 249). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
3.11 Diagrama semiótico do comportamento de aprendizagem da Aplysia cali-
fornica (nível focal: células neurais, circuito mediador). e1 a e5 represen-
tam as entradas (inputs), s1 a s5 representam as saídas (outputs). P, S
e T apontam, respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade e
terceiridade. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
3.12 Diagrama semiótico do comportamento de aprendizagem da Aplysia cali-
fornica (nível focal: células neurais). i.1 a i.4 representam os inputs, o.1 a
o.4 representam os outputs. P, S e T apontam, respectivamente, os estados
de primeiridade, secundidade e terceiridade. CP refere-se ao processo de
curto prazo e LP ao processo de longo prazo. Elaboração do autor. . . . . 82

4.1 Representação do processo de transposição semiótica destacando os diagra-


mas constituintes de cada uma das etapas. Elaboração do autor. . . . . . . 86
4.2 Representação esquemática da ação dos signos: a. ordem interpretativa; b.
dinâmica de interpretação sígnica. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . 88
4.3 Representação genérica de uma categoria. Elaboração do autor com base
em MacLane (1948, 1998). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
4.4 Representação da categoria das semioses formalizada através da teoria das
categorias. Os quadros semióticos foram acrescentados apenas para expli-
citar a ação dos signos. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
4.5 Autômato finito determinístico com função de transição total. Elaboração
do autor com base em Neto, Vega e Ramos (2009, p. 153). . . . . . . . . . 97

4.6 Autômato finito não-determinístico. Elaboração do autor com base em Neto,


Vega e Ramos (2009, p. 157). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

4.7 Representação da categoria dos autômatos finitos formalizada através da


teoria das categorias. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

4.8 Diagrama semiótico simplificado referente à habituação de curto prazo e o


diagrama correspondente à categoria das semioses. Elaboração do autor. . 99

4.9 Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos, re-
sultando no seguinte mapeamento: M1 7→ E1, M2 7→ E2, M3 7→ E3, sa 7→
ta, si1 7→ ti1, sb’ 7→ tb’, sa’ 7→ ta’, si2 7→ ti2, sb 7→ tb, si3 7→ ti3, sc 7→ tc.
Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

4.10 Autômato finito derivado da categoria dos autômatos, onde: E1 → q0 , E2


→ q1 , E3 → q2 , ta → a, ti1 → b, tb’ → c, ta’ → e, ti2 → d, tb → f, ti3 →
h, tc → g. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

4.11 Diagrama parcial representando a categoria das semioses envolvida nos


momentos M1, M2 e M3, construído a partir dos elementos correspondentes
no diagrama semiótico. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

4.12 Diagrama parcial representando a categoria das semioses envolvida nos


momentos M1, M2, M4 e M5 construído a partir dos elementos correspon-
dentes no diagrama semiótico. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . 103

4.13 Diagramas correspondentes à categoria das semiose e à categoria dos autô-


matos finitos obtidos pela transposição semiótica. Elaboração do autor. . . 104

4.14 Autômato finito não-determinístico derivado da categoria dos autômatos.


Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

4.15 Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas na ação do


circuito mediador, obtido através do diagrama semiótico correspondente.
Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

4.16 Diagramas correspondentes à categoria das semiose e à categoria dos autô-


matos finitos relativos ao circuito mediador. Elaboração do autor. . . . . . 108

4.17 Autômato finito correspondente ao circuito mediador. Elaboração do autor. 108

4.18 Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas na ação do


circuito modulatório, obtido através do diagrama semiótico correspondente.
Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110
4.19 Diagramas correspondentes à categoria das semiose e à categoria dos autô-
matos finitos relativos ao circuito modulatório. Elaboração do autor. . . . 110

4.20 Autômato finito correspondente ao circuito modulatório. Elaboração do


autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

5.1 Diagrama semiótico do fenômeno de tradução gênica (nível focal: organe-


las). e1 a e5 representam as entradas, s1 a s5 representam as saídas. P, S
e T apontam, respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade e
terceiridade. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

5.2 Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas nos momen-


tos M1, M2, M3, M4 e M5, construído com base no diagrama semiótico
correspondente. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

5.3 Diagramas correspondentes às categorias das semiose e dos autômatos fi-


nitos obtidos pela transposição semiótica. Elaboração do autor. . . . . . . 120

5.4 Autômato finito não-determinístico relativo ao fenômeno de tradução gê-


nica, derivado da categoria dos autômatos. Elaboração do autor. . . . . . . 121

5.5 Esquema dos comportamentos assíncrono e síncrono do Pagurus longicar-


pus envolvido na dinâmica da cadeia de vacância. Elaboração do autor. . . 125

5.6 Diagrama semiótico da dinâmica da cadeia de vacância (nível focal: indi-


víduo). e1 a e4 representam as entradas, s1 a s4 representam as saídas. P,
S e T apontam, respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade
e terceiridade. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

5.7 Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas nos momentos


M1, M2, M3 e M4, construído com base no diagrama semiótico correspon-
dente. Elaboração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

5.8 Diagramas correspondentes às categorias das semiose e dos autômatos fi-


nitos obtidos pela transposição semiótica. Elaboração do autor. . . . . . . 130

5.9 Autômato finito não-determinístico relativo às dinâmicas assíncrona e sín-


crona da cadeia de vacância, derivado da categoria dos autômatos. Elabo-
ração do autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
Conteúdo

Introdução 1

1 O campo da vida artificial e o conceito de transposição semiótica 7

1.1 Computação, inteligência artificial e a origem da vida artificial . . . . . . . 9

1.2 Estabelecendo o campo da vida artificial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

1.3 Crítica à vida artificial e possibilidades da transposição semióticas . . . . . 27

1.4 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

2 A semiótica geral de Peirce 33

2.1 Fenomenologia peirceana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

2.2 Gramática especulativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

2.3 Lógica crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

2.4 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

3 Biossemiótica 55

3.1 O enfoque biossemiótico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

3.2 O caso da Aplysia californica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

3.3 Umwelt e os vários níveis biossemióticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

3.4 Diagramas semióticos desenvolvidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

3.4.1 Diagrama semiótico com foco no organismo . . . . . . . . . . . . . 69

3.4.2 Diagramas semióticos com foco nas células . . . . . . . . . . . . . . 73

A. Diagrama relativo à influência do circuito mediador: . . . . . . . 78

B. Diagrama relativo à influência do circuito modulatório: . . . . . 81

3.5 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
4 Autômatos finitos 85

4.1 Representando os signos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

4.2 Representando os processos semióticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

4.2.1 Teoria das categorias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

4.2.2 Categoria das semioses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

4.2.3 Categoria dos autômatos finitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

4.2.4 Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos 98

4.3 Autômatos finitos correspondentes aos diagramas semióticos completos . . 101

4.3.1 Nível focal: organismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

4.3.2 Nível focal: células . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107

4.4 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

5 Estudo de casos 113

5.1 Tradução gênica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

5.1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

5.1.2 Diagrama semiótico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

5.1.3 Autômato finito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118

Categoria das semioses para os momentos M1, M2, M3, M4 e M5 . 118

Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos 119

Diagrama de transição de estados do autômato finito correspondente 120

5.2 Cadeia de vacância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

5.2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

5.2.2 Diagrama semiótico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124

5.2.3 Autômato finito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

Categoria das semioses para os momentos M1, M2, M3 e M4 . . . . 128

Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos 129

Diagrama de transição de estados do autômato finito correspondente 130

5.3 Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

Conclusão 135
Introdução

Contexto da pesquisa

Esta tese investiga a teoria dos signos como suporte teórico/metodológico para o estudo
da vida artificial (VA), termo proposto por Langton (1986) e que diz respeito a um amplo
esforço multidisciplinar em busca da compreensão das propriedades gerais e essenciais dos
sistemas vivos com objetivo de sintetizar seus comportamentos: “[...] no estudo da vida
artificial, queremos tentar fazer a distinção entre os detalhes relevantes e os irrelevantes
da implementação bioquímica da vida com o intuito de revelar sua ‘lógica molecular’
intrínseca”1 .

Não se trata, portanto, de simulação dos comportamentos biológicos em termos con-


vencionais, cujo objetivo seria o de reproduzir factualmente todos e quaisquer aspectos
presentes nos organismos vivos. Ao contrário, trata-se de abstrair modelos que reprodu-
zam as relações lógicas envolvidas na interação bioquímica subjacente aos comportamentos
em questão. Os objetivos da VA podem ser atingidos através de software (VA do tipo
soft), hardware (VA do tipo hard) ou bioquímica (VA do tipo wet). A primeira destas
modalidades é o foco desta pesquisa e será referenciada daqui por diante simplesmente
como VA.

Nas duas últimas décadas, a VA se apresentou como estratégia para o desenvolvimento


da inteligência artificial (IA) através de técnicas bioinspiradas, tais como: algoritmos gené-
ticos, redes neurais, modelagem baseada em agentes e autômatos celulares, dentre outras.
Estas técnicas de VA apresentam alto grau de aplicabilidade nos mais variados ramos: do
controle de robôs e manufatura robótica à computação gráfica, da modelagem de fenô-
menos naturais à economia. No entanto, a VA diferencia-se da IA tradicional baseada
na hipótese do sistema de símbolos físicos que, desenvolvida por Newell (1980), adota
uma abordagem top-down com controle centralizado. A VA inverte este direcionamento
através de estratégias bottom-up baseadas em redes paralelas e distribuídas de agentes pri-
1
[...] In the study of artificial life, we want to try to distinguish between the relevant and irrelevant
details of life’s biochemical implementation in order to uncover the ’molecular logic’ of life.
mários com comportamentos bastante simples. A interação destas entidades individuais
de baixa complexidade proporciona a emergência de padrões comportamentais coletivos
mais complexos (KIM; CHO, 2006a; BANZHAF; MCMULLIN, 2012).

Reforçando o caráter multidisciplinar da VA, Emmeche (1991) procura evidenciar


suas conexões com a semiótica geral, apresentando novas possibilidades teóricas funda-
mentadas na obra de Charles Sanders Peirce cujas preocupações filosóficas conectam se-
miótica e lógica de maneira inseparável. Segundo Emmeche, as ideias de Peirce podem
contribuir para o avanço das áreas da ciência cognitiva, da IA e, consequentemente, da
própria VA.

A intersecção entre teoria semiótica e desenvolvimento de sistemas artificiais bioins-


pirados também é verificada no conceito de Transposição Semiótica (TS) (CAMARGO,
2014; CAMARGO; VEGA, 2014). A TS adota, como hipótese fundamental, a utilização
da teoria dos signos como campo intermediário entre os campos biológico e computacional
para a criação de algoritmos computacionais biomiméticos.

A estratégia geral da TS apoia-se no conceito de isomorfismo, tal qual descreve Hofs-


tadter (1979, p. 49). Neste contexto, existe isomorfismo quando duas estruturas com-
plexas podem ser mapeadas entre si, com suas partes correspondentes desempenhando
papéis semelhantes. A TS, portanto, procura reconhecer os processos semióticos que ope-
ram no campo biológico, abstraindo uma estrutura lógica. As partes desta estrutura, por
correspondência, são mapeadas no campo computacional, gerando um algoritmo que, em
certos aspectos, se relaciona isomorficamente com a estrutura original. Para cumprir sua
tarefa, além da teoria geral dos signos, a TS encontra fundamentação em três subcampos
da semiótica. Primeiro, apoia-se na biossemiótica para identificar os processos sígnicos
essenciais presentes em certo comportamento biológico. Segundo, considera a semiótica
computacional para investigar as possibilidades e limites da programação de computado-
res como técnica para sintetizar, em ambiente digital, tal comportamento. Finalmente,
utiliza-se da diagramatologia para representar o isomorfismo entre os comportamentos
natural e sintético.

Verifica-se nesta estratégia a presença de duas instâncias lógicas distintas a serem


conectadas por isomorfismo diagramático: há um ponto de partida que representa os pro-
cessos sígnicos presentes em certo fenômeno biológico (lógica semiótica) e há um ponto
de chegada que representa o desenvolvimento de um autômato finito (lógica computacio-
nal). Finalmente, a ponte de ligação entre esses dois pontos é construída utilizando-se a
teoria das categorias, de caráter essencialmente diagramático. Note-se que, o autômato
finito resultante é a implementação de um dispositivo computacional formal, podendo ser
utilizado, posteriormente, para o desenvolvimento de softwares. Limita-se, portanto, o

2
escopo desta tese à formalização de tais autômatos.
Deste contexto, surge a motivação para a realização desta pesquisa, cujo título “Se-
miótica da vida artificial”, aponta para alguns possíveis desdobramentos, dentre eles: 1. o
avanço no entendimento das diferenças e semelhanças entre sistemas naturais e artificiais;
2. a contribuição para o desenvolvimento de dispositivos computacionais bioinspirados; e
3. a investigação do alcance da teoria semiótica como fundamento para o desenvolvimento
de ambientes digitais.

Problema, questão e hipótese

Delineada na conferência de Dartmouth em 1956, a IA se apresentou com o objetivo de


desenvolver uma ciência que reproduzisse, em ambiente artificial, os aspectos superio-
res da inteligência humana (MCCARTHY et al., 2006). Ao longo do tempo, o grande
entusiasmo e expectativas iniciais foram substituídos pela descrença no modelo baseado
exclusivamente em representação e pensamento simbólico. Assim, a partir da década de
1980, novas abordagens foram agregadas ao estudo da IA, muitas delas de motivação bi-
oinspirada como a VA. Hoje, o campo da VA, além de procurar entender os mecanismos
básicos subjacentes aos organismos vivos, estuda estratégias para o desenvolvimento de
sistemas computacionais baseados em tais mecanismos.
Bedau et al. (2000), propõem a divisão das principais questões da VA em três gru-
pos compostos por alvos orientadores do seu desenvolvimento como disciplina. Segundo
Banzhaf e McMullin (2012), tais alvos continuam válidos, sendo que os dois destacados a
seguir exercem influência direta na definição da questão central desta tese: 1. Criação de
um framework formal para sintetizar hierarquias dinâmicas que funcionem independente-
mente de escala e 2. Desenvolvimento de uma teoria do processamento, fluxo e geração
de informação para os sistemas evolutivos.
Portanto, propõe-se aqui responder à seguinte questão: entendendo-se a transpo-
sição semiótica como uma técnica criada para apoiar o desenvolvimento de
dispositivos computacionais bioinspirados, e considerando sua fundamentação
na teoria geral dos signos, seria ela uma estratégia efetiva para o estudo da
vida artificial? Esta questão relaciona-se com os dois alvos apresentados por Bedau,
explicitamente com o primeiro e de maneira implícita com o segundo.
Há, no entanto, algumas premissas a serem consideradas. Primeira, que os seres vivos
estão envolvidos em processos sígnicos, tal premissa fundamenta-se na biossemiótica; se-
gunda, que é possível estabelecer algum nível de isomorfismo entre estruturas semióticas
abstraídas do mundo biológico e dispositivos computacionais, aqui a diagramatologia e a

3
semiótica computacional exercem influência decisiva; e terceira, que o pensamento diagra-
mático é uma forma efetiva de construção de conhecimento. Considerando tais premissas,
fica estabelecida a hipótese central desta tese, qual seja, a de que a transposição semiótica
pode se apresentar como uma ferramenta efetiva para o estudo da vida artificial.

Objetivos

Objetivo geral

• Estabelecer um framework baseado na transposição semiótica que colabore com a


compreensão das questões relacionadas com o campo da vida artificial, bem como,
com a busca de possíveis respostas a tais questões.

Objetivos específicos

• Rever a fundamentação teórica de transposição semiótica à luz da teoria geral dos


signos de Charles Sanders Peirce;

• Aplicar a transposição semiótica ao estudo de casos referentes à vida artificial para


investigar seu alcance, efetividade e generalização.

Estrutura da tese

Segue-se a esta introdução cinco capítulos conforme descrição abaixo:

Capítulo 1 - O campo da vida artificial e o conceito de transposição semió-


tica: onde é apresentado o contexto da pesquisa e os campos teóricos que a envolvem.
Realiza-se uma retrospectiva cronológica do desenvolvimento da ciência da computação,
da inteligência artificial e das conexões dessas disciplinas com a origem da vida artificial.
Delimita-se o campo da vida artificial a partir dos estudos de Christopher Langton base-
ados nos autômatos celulares de von Neumann. Desenvolve-se uma crítica à abordagem
dualista de Langton, considerando a ideia de sinequismo proveniente da semiótica geral
de Charles Sanders Peirce como uma alternativa mais adequada ao estudo da vida artifi-
cial. Finalmente, é apresentada a ideia de transposição semiótica como técnica capaz de
concretizar o desenvolvimento de dispositivos computacionais formais representativos da
vida artificial.

4
Capítulo 2 - A semiótica geral de Peirce: onde são apresentados os fundamentos
da teoria geral dos signos de Peirce, necessários para a realização da pesquisa. Alguns
dos principais conceitos da semiótica são abordados, dentre eles, os que se relacionam
com a fenomenologia peirceana, com a gramática especulativa e com a lógica crítica.
É desenvolvida uma representação diagramática para as classes de signos conforme a
classificação de Peirce. Esta representação é utilizada nos capítulos subsequentes, sendo
ela a primeira contribuição original desta tese.

Capítulo 3 - Biossemiótica: neste capítulo é desenvolvida a primeira etapa da trans-


posição semiótica cujo resultado é um conjunto de diagramas intuitivos e informais, funda-
mentados pela semiótica, que representam os processos sígnicos envolvidos nos fenômenos
biológico. Para tanto, os principais conceitos da biossemiótica são apresentados e re-
lacionados com a teoria geral dos signos. São introduzidos os conceitos de Umwelt e de
estruturalismo hierárquico, que também apoiam o estabelecimento da transposição semió-
tica. Como auxílio ao desenvolvimento deste capítulo, é apresentado o comportamento
de aprendizagem e aquisição de memória da Aplysia californica, molusco marinho utili-
zado em pesquisas de neurofisiologia. Os diagramas resultantes desta primeira etapa da
transposição semiótica, compõem o conjunto de contribuições originais da pesquisa.

Capítulo 4 - Autômatos finitos: capítulo responsável por desenvolver a segunda


etapa da transposição semiótica. Primeiramente, é estabelecida uma representação matri-
cial para os correlatos dos signos no mundo computacional. Essas matrizes, mais adequa-
das ao tratamento formal, são derivadas diretamente da representação sígnica do capítulo
2. Em seguida, através da teoria das categorias, é realizada a formalização diagramática
dos processos semióticos cujo resultado é o estabelecimento da categoria das semioses.
Então, introduz-se brevemente a teoria dos autômatos finitos e é apresentada a repre-
sentação desses dispositivos computacionais através da categoria dos autômatos, também
desenvolvida com apoio da teoria das categorias. Finalmente, por isomorfismo entre as
categorias das semioses e dos autômatos finitos, constrói-se o diagrama de transição de es-
tados que representa o autômato finito subjacente ao fenômeno biológico que o inspirou,
concluindo, assim, a transposição semiótica. Este capítulo também se apresenta como
contribuição originais da pesquisa.

Capítulo 5 - Estudo de casos: tendo sido estabelecida a transposição semiótica nos


capítulos 3 e 4, o capítulo 5 preocupa-se em verificar a possibilidade de sua generalização
através do estudo de casos de vida artificial. Para tanto, são considerados dois fenôme-
nos biológicos: a tradução gênica que tem o ribossomo como entidade interpretadora, e

5
a dinâmica da cadeia de vacância relacionada ao comportamento do caranguejo Pagu-
rus longicarpus. Esses casos são submetidos às duas etapas da transposição semiótica,
apresentando como resultado os respectivos diagramas de transição de estados.

Após o quinto capítulo seguem-se: a conclusão onde são comparados os resultados da


pesquisa com os objetivos geral e específicos; e a consideração final onde são apontados
caminhos futuros para a continuidade da pesquisa.

6
Capítulo 1

O campo da vida artificial e o


conceito de transposição semiótica

O termo vida artificial, como referência a um campo específico de pesquisa, foi utilizado
pela primeira vez por Langton (1986) ao desenvolver estudos inspirados pelos autôma-
tos celulares de von Neumann (1951, 1966c, 1966a, 1966b). Os esforços iniciais para
estabelecer as bases desta nova disciplina resultaram na organização do “Workshop In-
terdisciplinar sobre a Síntese e Simulação de Sistemas Vivos”1 , em setembro de 1987, em
Los Alamos, Novo México. Este workshop foi o embrião de duas séries de conferências
internacionais a respeito da vida artificial, a “Conferência Internacional sobre a Vida Ar-
tificial”2 e a “Conferência Europeia sobre Vida Artificial”3 , bianuais e intercaladas. Em
1993 surge o jornal “Vida Artificial”4 , do qual Langton é o primeiro editor. Tanto o jornal
quanto as duas conferências passam a ser formalmente coordenados pela Sociedade In-
ternacional para a Vida Artificial5 , estabelecida em 2001 (BEDAU et al., 2000; BEDAU,
2003, 2007; BANZHAF; MCMULLIN, 2012). Em 2018, as conferências foram unificadas
em um evento anual, a “Conferência sobre a Vida Artificial”6 cuja primeira edição ocorreu
em Tóquio, Japão (KNIBBE et al., 2017).
Banzhaf e McMullin (2012) recuperam o anúncio do workshop original que define o
novo campo da vida artificial como:

[...] O estudo de sistemas artificiais que apresentam características com-


portamentais dos sistemas vivos naturais. Isto inclui simulações com-
putacionais, experimentos biológicos e químicos, e tarefas puramente
1
Interdisciplinary Workshop on the Synthesis and Simulation of Living Systems.
2
International Conference on Artificial Life (ALIFE).
3
European Conference on Artificial Life (ECAL).
4
The Artificial Life Journal.
5
International Society for Artificial Life (ISAL) (http://www.alife.org).
6
Conference on Artificial Life.
teóricas. Processos que ocorrem em escala molecular, celular, neural,
social, e evolucionária são objetos de investigação. A meta final é ex-
trair a forma lógica dos sistemas vivos.7

A busca por uma base lógica característica dos sistemas vivos, que possa ser abstraída
e implementada através de outros meios, também aparece como preocupação premente
no artigo seminal de Langton:

Por sintetizar comportamentos ‘semelhantes à vida’ no estudo da vida


artificial, nós queremos tentar distinguir os detalhes relevantes dos irre-
levantes da implementação bioquímica da vida com o intuito de desvelar
sua ‘lógica molecular’. O objetivo final do estudo da vida artificial deve-
ria ser o de criar ‘vida’ em outros meios, idealmente em um meio virtual
no qual a essência da vida teria sido abstraída dos detalhes de sua im-
plementação, independentemente de qualquer hardware em particular.
Gostaríamos de criar modelos que sejam tão ‘semelhantes à vida’ que
deixam de ser modelos para se tornarem exemplos de vida. (LANGTON,
1986)8

Além do reconhecimento de que a origem da nova disciplina deveu-se em grande


parte aos estudos preliminares de von Neumann sobre os autômatos celulares, influências
e inspirações de outras áreas precursoras também se fazem presentes no conjunto de
estratégias que procuram decifrar os ‘elementos lógicos’ subjacentes aos sistemas vivos:
da cibernética de Wiener (1954, 1965) à autopoiese de Maturana e Varela (1973), da
teoria geral dos sistemas de Bertalanffy (1968) à teoria hierárquica de Pattee (1973). No
entanto, dentre todos os campos de influência, a ciência da computação e, especialmente,
sua sub-área da inteligência artificial (IA), merecem destaque já que, tanto a IA quanto
a VA, compartilham expectativas e metodologias, sendo ambas dependentes das mídias
digitais como elemento de suporte às suas implementações. Sendo assim, este capítulo
inicial procura traçar um panorama histórico da vida artificial, desde suas conexões com
o desenvolvimento da computação e da inteligência artificial, passando pelo trabalho de
Langton e seu estado-da-arte, e finalizando com considerações a respeito do uso da teoria
semiótica como possível abordagem para o seu desenvolvimento futuro.
7
[...] The study of artificial systems that exhibit behavior characteristic of natural living systems.
This includes computer simulations, biological and chemical experiments, and purely theoretical ende-
avors. Processes occurring on molecular, cellular, neural, social, and evolutionary scales are subject to
investigation. The ultimate goal is to extract the logical form of living systems.
8
By synthesizing ‘life-like’ behaviors in the study of artificial life, we want to try to distinguish between
the relevant and irrelevant details of life’s biochemical implementation in order to uncover the ‘molecular
logic’ of life. The ultimate goal of the study of artificial life would be to create ‘life’ in some other
medium, ideally a virtual medium where the essence of life has been abstracted from the details of its
implementation in any particular hardware. We would like to build models that are so life-like that they
cease to be models of life and become examples of life themselves.

8
1.1 Computação, inteligência artificial e a origem da
vida artificial

A corrente formalista da matemática tem em David Hilbert, analista alemão, seu criador
e principal representante. Ele assume, na década de 1920, o método axiomático como fun-
damento básico para o tratamento de questões matemáticas. Na concepção de Hilbert,
um sistema matemático satisfatório deve atender a três premissas: consistência, comple-
tude e decidibilidade. Por consistência, entende-se que um sistema não pode apresentar
contradições, não devendo, portanto, possibilitar a dedução conjunta de uma afirmação
e de sua negação; completude é a propriedade pela qual toda declaração verdadeira deve
ser produzida pelo sistema a partir, unicamente, de seus axiomas; e decidibilidade diz
respeito à capacidade do sistema em provar qualquer afirmação ou negação através de
um processo efetivo (mecânico), ou seja, de um algoritmo (GERE, 2002; SIPSER, 2006;
GOLDSTEIN, 2008; GLEICK, 2011). Os teoremas de Gödel (1931) derrubaram os dois
primeiros desses postulados ao demonstrar que: 1. toda axiomática consistente da arit-
mética é incompleta; e 2. a consistência de qualquer axiomática consistente da aritmética
não pode ser demonstrada através desta mesma axiomática (COSTA, 2008, pp.55-61).

Na década seguinte, Turing (1936) enfrenta a terceira premissa de Hilbert, o Problema


da Decisão9 . Em sua estratégia, ele apresenta um constructo matemático que formaliza
o conceito de algoritmo. Trata-se de uma espécie de máquina teórica composta por dois
dispositivos, uma fita de tamanho infinito dividida em células e um scanner capaz de se
mover ao longo da fita, ler e gravar símbolos em suas células (ver fig.1.1). Sipser (2006, p.
138) resume assim o funcionamento da máquina de Turing:

Inicialmente a fita contem apenas a cadeia de entrada [finita], sendo


vazia nas demais posições. Se a máquina precisa armazenar informação,
deve escrevê-la na fita. Para ler a informação que escreveu, a máquina
pode mover seu scanner sobre a fita. A máquina continua computando
até que decida produzir uma saída. As saídas aceita e rejeitada são
obtidas ao se entrar em estados designados de aceitação e rejeição. Se
estados de aceitação e rejeição não são atingidos a máquina continua
funcionando indefinidamente, nunca parando.10

9
Entscheidungsproblem.
10
Initiallly the tape contains only the input string and is blank everywhere else. If the machine needs
to store information, it may write this information on the tape. To read the information that it has
written, the machine can move its head back over it. The machine continues computing until it decides
to produce an output. The outputs accept and reject are obtained by entering designated accepting and
rejecting states. If it doesn’t enter an accepting or a rejecting state, it will go on forever, never halting.

9
Figura 1.1: Representação de uma máquina de Turing. Elaboração do autor com base
em Sipser (2006, p. 138).

Este dispositivo geral abstrato para tratamento de algoritmos tornou-se a base teórica
para a simulação de processos computacionais. Verifica-se, no entanto, que apenas nú-
meros computáveis podem se apresentar como saídas válidas em uma máquina de Turing
(saídas aceitas ou rejeitadas), ou seja, sem que a máquina entre em estado de loop infi-
nito. Neste ponto, surge uma questão: seria possível a existência de um algoritmo capaz
de identificar de antemão se certo programa chega a uma saída válida? A conclusão de
Turing reflete a impossibilidade de se responder positivamente a tal questão, provando
assim a condição de indecidibilidade da matemática e, consequentemente, contradizendo
a terceira premissa de Hilbert (TEIXEIRA, 1998; GERE, 2002; SIPSER, 2006; GLEICK,
2011; COPELAND, 2012). Praticamente ao mesmo tempo em que Turing apresentava o
resultado do seu estudo, Church (1936), de maneira independente, chegava a conclusões
semelhantes através de um sistema notacional chamado cálculo-lâmbda (cálculo-λ). As
duas definições de algoritmo, através de Turing e de Church, mostraram-se equivalentes e
a conexão entre a notação informal de um algoritmo e sua definição precisa passou a ser
chamada de tese de Church-Turing (SIPSER, 2006, p. 155).
Pouco tempo depois, dos esforços da equipe de Turing para decifrar os códigos ale-
mães durante a II Guerra Mundial, em Bletchley Park, surgiu o primeiro dispositivo
computacional eletromecânico operacional baseado na tese de Church-Turing, a máquina
eletromecânica de Robinson (1940). Em 1943, o mesmo grupo, comandado pelo enge-
nheiro Tommy Flowers, desenvolveu o Colossus, demonstrando, pela primeira vez, que a
computação eletrônica em larga escala era factível. Ao contrário do primeiro dispositivo,
construído exclusivamente para ser usado em criptografia, o Colossus destinava-se ao uso
geral (COPELAND, 2012, pp. 97-122). Na mesma época, outros projetos estavam em
desenvolvimento como o Z-3, primeiro computador programável operacional, criado pelo
engenheiro Konrad Zuse na Alemanha em 1941. Zuse também foi responsável pela criação
da primeira linguagem de programação de alto nível, Plankalkül. O primeiro computador

10
eletrônico, ABC, foi criado em 1940/1942 por Atanasoff e Berry na Universidade de Iowa
e o primeiro computador digital eletrônico de larga escala, o ENIAC 11 da Universidade
da Pensilvânia, entrou em operação em 1943 tendo sido concluído em 1946 (RUSSELL;
NORVIG, 2013, pp.15-16).

Em 1944, John von Neumann ingressou como consultor na equipe da Universidade


da Pensilvânia. Com o objetivo de melhorar o desenvolvimento de computadores, esta
equipe inicia discussões sobre como programas e dados podiam ser armazenados em forma
numérica. Isto dá origem a pesquisas fundamentais sobre o projeto de computadores,
culminando com o desenvolvimento do EDVAC 12 (NEUMANN, 1945) ainda na Universi-
dade da Pensilvânia e, posteriormente, do IAS 13 cujo desenvolvimento ocorreu em 1946
no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. O IAS estabeleceu o paradigma para a
construção de computadores que predomina até hoje, conhecido como arquitetura de von
Neumann (FONSECA FILHO, 2007, pp.104-122).

Um dos principais passos evolutivos ocorrido entre o ENIAC e o EDVAC deveu-se


à adoção do armazenamento de programas e dados na mesma unidade de memória, fa-
cilitando o processo de programação e permitindo ao programa modificar suas próprias
instruções. Além disso, adotou-se representação interna em binários e circuitos aritméticos
binários seriais, permitindo a entrada de dados em série. Antes do EDVAC, o armaze-
namento inicial de programas e sua alteração eram atividades extremamente cansativas.
No entanto, havia problemas de desempenho relativos ao tempo de acesso para leitura e
escrita de informações na memória, muito maior do que o tempo de processamento interno
da UCP 14 , este entrave é conhecido por “gargalo de von Neumann”. O desenvolvimento do
IAS trouxe alguns avanços tecnológicos relativos à alocação e gerenciamento de memória,
mas o gargalo de von Neumann ainda permanece como elemento intrínseco aos projetos
de computadores atuais, sua percepção, no entanto, tornou-se menos evidente devido ao
aumento exponencial da capacidade de processamento ocorrido nas últimas décadas. A
figura 1.2 representa de forma simplificada os elementos que constituem a arquitetura
de von Neumann baseada no projeto IAS: uma central de processamento composta por
uma unidade lógica e aritmética para executar operações e uma unidade de controle para
determinar o sequenciamento das instruções a serem executadas; uma unidade de me-
mória principal para armazenamento de dados e programas; e unidades de entrada e
saída (WEBER, 2012, pp.34-57).

O desenvolvimento da computação durante as décadas de 1940 e 1950, desde sua


11
Electronic Numerical Integrator Analyzer and Computer.
12
Electronic Discrete Variable Automatic Computer.
13
Institute for Advanced Studies.
14
Unidade Central de Processamento, do inglês Central Processing Unit (CPU).

11
Figura 1.2: Esquema simplificado da arquitetura de von Neumann. Elaboração do autor
com base em Weber (2012, p. 49).

fundamentação teórica através da tese Church-Turing até sua aplicação no desenvolvi-


mento de máquinas concretas baseadas na arquitetura de von Neumann, fez surgirem
teorias lógico-formais que procuravam investigar um possível paralelismo entre o proces-
sos computacionais em máquinas e os processos mentais em humanos. O próprio von
Neumann, inspirado pelo trabalho de McCulloch e Pitts (1943), descreveu vários meca-
nismos teórico-computacionais análogos ao sistema nervoso, considerando que poderiam
evoluir para algum tipo de extensão intelectual (FONSECA FILHO, 2007, p.122).

Com ideias semelhantes, Turing (1950) propôs um teste para investigar se uma má-
quina poderia pensar. O ambiente para o teste de Turing é composto por 3 salas isoladas.
A sala A é ocupada por uma pessoa com a função de formular questões direcionadas às
outras duas salas. As salas B e C são ocupadas, respectivamente e de maneira aleatória,
por outra pessoa e por uma máquina computacional, de maneira que a pessoa da sala
A não saiba quem ou o que está alocado em cada uma das outras duas salas. O teste
consiste em trocas de informações entre o interrogador e os ocupantes, ora da sala B,
ora da sala C. Se, após determinado tempo, o interrogador não puder afirmar onde está
o outro humano, a máquina passa no teste, podendo ser considerada, assim, como um
ser capaz de pensar, sob o ponto de vista do observador da sala A. Apesar das críticas
ao teste de Turing devido à ênfase exclusiva na simulação de aspectos comportamentais,
ainda hoje ele permanece vigente (TEIXEIRA, 1998), tanto que, em 2014, o chatterbot
Eugene Goostman, desenvolvido por em equipe russa de pesquisadores e programado para
simular um adolescente de 13 anos, foi considerado o primeiro dispositivo computacional
a passar em tal teste (An historic milestone in artificial intelligence, 2014).

Assim, do contexto científico-tecnológico da década de 1950, com a consideração de


computadores digitais como modelos para o estudo do funcionamento da mente humana
por meio de simulação, surgem os primeiros esforços para se estabelecer o campo da in-
teligência artificial (IA). O evento que marca o início desta disciplina ocorreu em 1956,

12
em Dartmouth (EUA)15 . Durante seis semanas, especialistas em ciência da computação e
outras áreas correlatas, reuniram-se para discutir e estabelecer as bases para o desenvol-
vimento de uma ciência que reproduzisse em ambiente digital os aspectos superiores dos
processo mentais humanos (TEIXEIRA, 1998; RUSSELL; NORVIG, 2013). O termo in-
teligência artificial foi criado por John McCarthy e aparece pela primeira vez na proposta
original desta conferência16 :

Propomos que um estudo sobre inteligência artificial de 2 meses, reu-


nindo 10 cientistas, seja conduzido durante o verão de 1956 no Dart-
mouth College em Hanover, New Hampshire. O estudo deve caminhar
com base na conjectura de que todo aspecto da aprendizagem ou qual-
quer outra característica da inteligência pode, em princípio, ser preci-
samente descrito de modo que uma máquina pode ser construída para
simulá-lo. Uma tentativa será feita para descobrir como fazer máquinas
usarem linguagem, formarem abstrações e conceitos, resolverem tipos de
problemas hoje reservados para humanos, e melhorarem a si próprias.
Acreditamos que um avanço significante possa ser alcançado em um ou
mais desses problemas se um grupo de cientistas cuidadosamente selecio-
nados trabalhar junto nessas questões durante um verão. (MCCARTHY
et al., 2006)17

Apesar do entusiasmo inicial e várias pesquisas bem sucedidas, o êxito da IA limitou-se


à solução de problemas relativamente simples. Destacam-se abaixo, de acordo com Russell
e Norvig (2013, pp. 18-22), as principais pesquisas e resultados alcançados nos primeiros
tempos da IA:

• Universidade Carnegie Mellon: Newell e Simon (1956) desenvolveram o Logic


Theorist, programa de raciocínio capaz de demonstrar a maioria dos teoremas do
Capítulo 2 do livro Principia Mathematica de Russel e Whitehead, inclusive tendo
criado, para um desses teoremas, uma prova mais elegante do que a apresentada
pelos próprios autores. Os pesquisadores prosseguiram com um novo desenvolvi-
mento, o General Problem Solver (GPS) (NEWELL; SIMON, 1961), provavelmente
15
Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence.
16
Propositores do Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence: Claude E. Shannon,
Marvin L. Minsky, Nathaniel Rochester e John McCarthy.
17
We propose that a 2 month, 10 man study of artificial intelligence be carried out during the summer
of 1956 at Dartmouth College in Hanover, New Hampshire. The study is to proceed on the basis of
the conjecture that every aspect of learning or any other feature of intelligence can in principle be so
precisely described that a machine can be made to simulate it. An attempt will be made to find how to
make machines use language, form abstractions and concepts, solve kinds of problems now reserved for
humans, and improve themselves. We think that a significant advance can be made in one or more of
these problems if a carefully selected group of scientists work on it together for a summer.

13
o primeiro programa a incorporar protocolos inspirados no processo de pensamento
humano. A pesquisa de Newell e Simon resultou na hipótese do physical symbol
system das décadas de 1970 e 1980, postulando que qualquer sistema humano ou
artificial que exiba inteligência deve operar manipulando estruturas de dados com-
postas exclusivamente por símbolos (NEWELL; SIMON, 1976; NEWELL, 1980).

• IBM18 : Nathaniel Rochester e equipe produziram os primeiros programas de IA


e Gelernter (1959) construiu o Geometry Theorem Prover, capaz de demonstrar
teoremas considerados complexos pela comunidade científica da época. Outro pes-
quisador, Samuel (1959, 1967), desenvolveu uma série de programas para jogo de
damas. Como tais programas eventualmente conseguiam jogar melhor do que seu
programador, Samuel considerou a possibilidade de computadores poderem realizar
tarefas para as quais não tenham sido intencionalmente programados.

• MIT19 : McCarthy, tendo mudado de Dartmouth para o MIT, contribuiu com algu-
mas realizações fundamentais, como o desenvolvimento da linguagem LISP20 , domi-
nante em IA e utilizada até hoje, e também com a publicação do artigo Programs
with common sense (MCCARTHY, 1968) que apresentou o Advice Taker, primeiro
sistema de IA a reunir a utilidade de uma representação formal e explícita do mundo
com a manipulação dessa representação através de processos dedutivos. No mesmo
MIT, enquanto McCarthy enfatizava a representação e o raciocínio em lógica formal,
Marvin Minsky pesquisava alternativas a tais sistemas. Minsky e equipe trabalha-
ram com problemas limitados cuja solução parecia exigir inteligência, os domínios
desses problemas foram denominados “micromundos”, dos quais, o mais conhecido
se referia à experiência de um robô capaz de organizar blocos multiformes sobre a
simulação de uma mesa. O mundo de blocos influenciou o desenvolvimento posterior
dos campos da visão artificial e do processamento de linguagem natural.

• Outros desenvolvimentos relevantes: podem ser citados também como pesqui-


sas fundamentais do início da IA o trabalho pioneiro de McCulloch e Pitts com as
redes neurais, mencionado anteriormente; as pesquisas de Rosenblatt (1957, 1960,
1961) com os perceptrons, que forneceu inspiração para a criação de algoritmos
de aprendizagem de máquina; e, finalmente, a concepção dos algoritmos genéticos,
chamados de evolução da máquina nos trabalhos pioneiros de Friedberg (1958) e Fri-
edberg, Dunham e North (1959), cujos experimentos baseavam-se na convicção de
que, ao se aplicar pequenas mutações em um programa em código de máquina, seria
18
International Business Machines.
19
Massachusetts Institute of Technology.
20
List processing.

14
possível gerar um programa mais desenvolvido que apresentasse melhor desempenho
em tarefas simples.

De maneira geral, o objetivo das pesquisas iniciais em IA era o de encontrar soluções


para problemas computacionais através de mecanismos genéricos capazes de implementar
passos lógicos elementares baseados no raciocínio humano. No entanto, se de certa ma-
neira esses sistemas eram bem sucedidos em aplicações relativamente simples, o mesmo
sucesso não se repetia quando o grau de dificuldade dos problemas tratados aumentava,
seja devido ao crescimento do volume de dados analisados, seja pelo aumento da com-
plexidade intrínseca dos problemas. Neste sentido, havia três dificuldades básicas que
impediam o avanço das pesquisas em IA: 1. os programas manipulavam sintaxes muito
simples, o que limitava o conhecimento que o sistema podia adquirir sobre o assunto tra-
tado; 2. os programas de IA resolviam seus problemas através de combinações de passos,
o que era adequado para o tratamento de micromundos que apresentavam poucos objetos,
mas isto se mostrava insuficiente quando os pesquisadores tentavam provar teoremas que
envolviam maior quantidade de fatos; e 3. havia limitações fundamentais nas estruturas
básicas que eram usadas para gerar comportamento inteligente. Desta forma, as aborda-
gens iniciais da IA ficaram conhecidas como métodos fracos pois, embora gerais, falhavam
quando ocorria o aumento de escala em problemas de maior complexidade (TEIXEIRA,
1998; RUSSELL; NORVIG, 2013). Segundo Russel e Norvig:

A alternativa para métodos fracos21 é usar um conhecimento mais amplo


e específico de domínio que permita passos de raciocínio maiores e que
possa tratar com mais facilidade casos que ocorrem tipicamente em es-
pecialidades estritas. Podemos dizer que, para resolver um problema [de
alta complexidade], praticamente é necessário já saber a resposta. (RUS-
SELL; NORVIG, 2013, p. 23)

A solução encontrada pelos pesquisadores recaiu no desenvolvimento de sistemas ba-


seados em conhecimento. Esses sistemas procuravam utilizar uma base de informação
mais ampla sobre um domínio específico, permitindo a adoção de passos de raciocínio
maiores no tratamento de casos em especialidades restritas. Nesta linha de desenvolvi-
mento, destacam-se os trabalhos desenvolvidos em Stanford: o DENDRAL (BUCHANAN;
SUTHERLAND; FEIGENBAUM, 1959), primeiro sistema bem-sucedido de conhecimento
21
A IA forte se refere à visão, segundo a qual, o computador adequadamente programado é uma mente
e reproduz estados mentais. Os programas não são meramente ferramentas que nos habilitam a testar
teorias acerca do funcionamento mental humano. Por outro lado, a IA fraca sustenta que a criação de
programas inteligentes é simplesmente um meio de testar teorias sobre como os seres humanos talvez
executem operações cognitivas (TEIXEIRA, 1998, p.167).

15
intensivo; o projeto Heuristic Programming Project (HPP), desenvolvido por Edward Fei-
genbaum e equipe, para estudar até que ponto a metodologia dos sistemas especialistas
poderia ser aplicada a outras áreas de conhecimento; e o MYCIN (SHORTLIFE, 1976),
para diagnosticar infecções sanguíneas. Os esforços acadêmicos no desenvolvimento de
produtos especialistas resultaram nos primeiros sistemas comerciais bem-sucedidos, como
o R1 da década de 1980, criado para atuar na configuração de pedidos pela Digital Equipa-
ment Corporation e, posteriormente, pela Du Pont. No entanto, os sistemas especialistas
eram muito rígidos e se saiam relativamente bem apenas quando enfrentavam problemas
rotineiros, diante de novas situações não encontravam soluções satisfatórias (TEIXEIRA,
1998; RUSSELL; NORVIG, 2013).

Com essas limitações, a partir da década de 1970, surgem questionamentos com rela-
ção à eficiência dos projetos de inteligência artificial. Segundo Teixeira (1998, pp.67-68),
as principais críticas decorreram dos trabalhos de Herbert Dreyfus, de John Searle e de
Roger Penrose. A primeira dessas críticas surgiu através do livro de Dreyfus, What com-
puters can’t do (DREYFUS, 1972), no qual é apontada a existência de características
não-programáveis em várias instâncias do comportamento humano, principalmente nas
que se relacionam com os aspectos contextuais da linguagem natural e da percepção vi-
sual. Searle (1980), por sua vez, apresenta a questão da intencionalidade como condição
necessária para um sistema simbólico ascender a uma dimensão semântica natural, o que
seria uma barreira intransponível para os sistemas artificiais. Mas é a crítica de Penrose
(1989) que toca no ponto fundamental para as ambições da inteligência artificial: seria
possível a um sistema formal baseado na máquina de Turing apresentar comportamentos
de sistemas naturais? Teixeira, apresenta a questão da seguinte forma:

Existe um problema que a máquina de Turing não pode resolver: saber


se outra máquina de Turing para ou não; reconhecer (mecanicamente)
se um problema matemático pode ou não ser resolvido através de um
procedimento efetivo (com número finito de passos) ou não. Isto só
pode ser realizado intuitivamente, é algo que requer uma inteligência
que não pode ser expressa de forma algorítmica. Assim sendo, as bases
da própria Ciência da Computação são muito mais movediças do que
se imagina, na medida em que [para problemas complexos] é somente
através da intuição que podemos saber se um determinado programa
vai parar ou não. Esta intuição marcaria uma diferença entre mentes e
máquinas. (TEIXEIRA, 1998, p. 74)

Assim, por volta da década de 1980, a GOFAI (Good Old Fashioned Artificial In-
telligence), encontrava-se mergulhada numa atmosfera de desafios e críticas. Apesar dos

16
esforços nos trinta anos anteriores, pouco progresso havia sido alcançado em direção ao seu
objetivo principal, o desenvolvimento da inteligência de nível humano através de progra-
mas computacionais. Neste contexto de desconfiança surgem iniciativas interessadas em
investigar os fundamentos biológicos da inteligência (BANZHAF; MCMULLIN, 2012).
Talvez, a consideração de aspectos mais básicos da inteligência em organismos ou em
entidades simples como células poderia indicar um caminho consistente para tirar a IA
da estagnação. É neste período que surgem, ou são retomadas, iniciativas bioinspiradas
para o estudo da IA, como as redes neurais através do processamento paralelo distribuído
de Rumelhart e McClelland (1986), a inteligência corporificada de Varela, Thompson e
Rosch (1992), a arquitetura de subsunção de Brooks (1985, 1990, 1991, 1999) e a própria
vida artificial, dentre outras. A ideia subjacente a tais iniciativas é resumida por Brooks:

[...] Comportamento direcionado à solução de problemas, linguagem,


conhecimento e aplicações especializadas, e razão, são simples desde que
a essência de existir e reagir [ao ambiente] esteja presente. Esta essên-
cia é a habilidade de se locomover em um ambiente dinâmico, sentindo
os arredores em grau suficiente para se atingir a manutenção necessária
da vida e da capacidade reprodutiva. Esta parte da inteligência é onde
a evolução concentrou seu tempo.[...] Acredito que mobilidade, visão
acurada e habilidade de levar adiante as tarefas relacionadas com a so-
brevivência em ambientes dinâmicos forneceu a base necessária para a
verdadeira inteligência. (BROOKS, 1991)22

Deste contexto, portanto, surge o interesse pelo estudo da vida artificial que pode ser
entendido como um dos resultados particulares da fragmentação do campo da inteligência
artificial na década de 1980 (BANZHAF; MCMULLIN, 2012), o que posiciona as duas
disciplinas em estreita conexão através de suas raízes comuns na ciência da computação.
Os assuntos da IA e da VA convergem em grande parte. Ambas têm como meta o estudo
de fenômenos naturais através de simulações computacionais, e buscam atingir tais metas
através de técnicas e algoritmos computacionais semelhantes (BEDAU, 2007). Segundo
Langton:

De muitas maneiras, o estudo da vida artificial é para a vida real o


que o estudo da inteligência artificial é para a inteligência real. Ambas
22
[...] Problem solving behaviour, language, expert knowledge and application, and reason, are all
pretty simple once the essence of being and reacting are avaivable. That essence is the ability to move
around in a dynamic envirorment, sensing the surroundings to a degree suficient to achieve the necessary
maintenence of life and reproduction. This part of intelligence is where evolution has concentrated its
time.[...] I believe that mobility, acute vision and ability to carry out survival related tasks in a dynamic
envirorment provide a necessary basis for the development of true intelligence.

17
envolvem o estudo de sistemas artificiais que exibem comportamentos
normalmente associados a sistemas naturais. Na verdade, o estudo da
vida artificial é realmente parte do estudo da vida natural e o estudo da
inteligência artificial é realmente parte do estudo da inteligência natu-
ral. (LANGTON, 1986)23

Pelo lado da IA, as principais técnicas adotadas derivaram dos avanços das redes
neurais e algoritmos genéticos. Em vários campos, esses desenvolvimentos já apresentaram
soluções com performance superior à humana. Se, na década de 1950, os algoritmos
de jogos de damas conseguiam vencer jogadores amadores, nos anos 2000, Schaeffer
et al. (2007) conseguiram produzir um programa que sempre responde com o melhor
movimento possível. Em jogos com dinâmica e regras mais complexas o mesmo caminho se
estabeleceu. No xadrez a primeira vitória registrada de um computador sobre um grande
mestre ocorreu em 1997 quando o Deep Blue da IBM (CAMPBELL; HOANE; HSU, 2002)
venceu Garry Kasparov que afirmou ter percebido certo nível de inteligência e criatividade
verdadeiras em alguns movimentos da máquina. No documentário Game Over: Kasparov
and the Machine (GAME. . . , 2003), a afirmação de Kasparov denota certa desconfiança
a respeito de uma possível intervenção humana nas decisões da máquina. Apesar da
polêmica, desde então, os algoritmos de xadrez continuam evoluindo (BOSTROM, 2014,
pp. 1-22). Considera-se, no entanto, que o jogo Go, por sua concepção extremamente
complexa e abstrata representaria o maior desafio dentre os jogos clássicos. Pela velocidade
dos avanços de programação, acreditava-se que um algoritmo capaz de vencer um grande
mestre de Go seria possível apenas na década de 2020, no entanto, tal feito já se fez
presente em 2016 (SILVER et al., 2016, pp. 1-22).

Os desafios superados na área dos jogos são relevantes e o caráter explicitamente abs-
trato dos problemas enfrentados colaborou com o desenvolvimento e/ou aprimoramento
de várias técnicas de aprendizado de máquina (machine learning) e aprendizado profundo
(deep learning), ambas derivadas das redes neurais e utilizadas em áreas relacionadas com
problemas humanos concretos.

Algumas dessas área são consideradas por Bostrom (2014, pp. 1-22) e Britz (2017).
Na engenharia, por exemplo, podem ser encontrados esforços em diversas sub-áreas. Em-
presas como Tesla, Uber, Google e Apple, dentre outras, preocupam-se com sistemas
de veículos autônomos de uso urbano e a dificuldade inerente à detecção de objetos tri-
dimensionais através da inteligência artificial (ZHOU; TUZEL, 2017; FRIDMAN et al.,
23
In many ways, the study of artificial life is to real life what the study of artificial intelligence is to
real intelligence. Each involves the study of artificial systems that exhibit behaviors normally associated
with natural systems. Actually, the study of artificial life is really part of the study of natural life and
the study of artificial intelligence is really part of the study of natural intelligence.

18
2017). Nas áreas de agricultura e mineração os avanços com veículos de trabalho autôno-
mos como tratores, colheitadeiras e transportadores prometem aumento de produtividade
e consequente otimização dos custos de produção (BATEY, 2018). Os ambientes in-
dustriais começam a se beneficiar do advento da indústria 4.0, ou Smart Factory 24 , que
representa a confluência de várias tecnologias como IIoT (Industrial Internet of Things)25 ,
Big Data Analylis 26 , Cyber-Physical Systems 27 e robótica industrial cuja integração é pro-
porcionada por algoritmos avançados de IA (MONOSTORI, 2014; LU, 2017).
Na Medicina, a inteligência artificial tem proporcionado avanços significativos, prin-
cipalmente nas atividades relacionadas ao diagnóstico de doenças como o câncer, à de-
finição de protocolos de tratamento, à interpretação de eletrocardiogramas e à robótica
médica (FARD et al., 2016; ESTEVA et al., 2017; NG et al., 2017).
Nas artes, incluindo-se aqui os jogos eletrônicos, relevantes avanços ocorrem através
da modelagem generativa de imagens, música, sketches e vídeos; exemplos de esforços
nesta área são encontrados nas pesquisas de Malik e Ek (2017) e Karimi et al. (2017).
Além das áreas destacadas acima, avanços significativos também podem ser confe-
ridos no processamento de linguagem natural através de técnicas estatísticas baseadas
em modelos de Markov, no reconhecimento facial que permite o desenvolvimento de sis-
temas de segurança e vigilância automatizados, no desenvolvimento da IoT (Internet of
Things28 ), nas pesquisas relacionadas ao conceito de smart city 29 e, finalmente, nos siste-
mas de busca, recomendações, reservas e agendamentos que são componentes essenciais
dos sistemas comerciais baseados na internet (BOSTROM, 2014, p. 16). Encerra-se, por-
tanto, a presente seção com esta breve apresentação dos avanços mais recentes no campo
da inteligência artificial. A próxima seção procura apresentar os desenvolvimentos que
ocorreram de forma paralela no campo da vida artificial.

1.2 Estabelecendo o campo da vida artificial

Quando se estabelece que o objetivo da vida artificial é extrair ou desvelar a lógica mo-
lecular subjacente à vida natural, e que esta lógica pode ser utilizada para a síntese de
comportamentos semelhantes em ambientes artificiais, a capacidade de auto-reprodução
dos sistemas vivos, a partir de materiais básicos, impõe-se como uma característica es-
sencial ou mesmo especial da vida que deve ser levada em conta. Assim, uma questão se
24
Fábrica Inteligente.
25
Internet das Coisas Industrial.
26
Análise de grandes volumes de dados.
27
Sistemas Ciberfísicos.
28
Internet das Coisas.
29
Cidade inteligente.

19
apresenta: considerando o ambiente computacional — limitado pelas implicações lógico-
matemáticas da tese de Church-Turing e operando sob uma arquitetura de von Neumann
— como substrato material para a implementação da lógica abstraída de sistemas vivos,
pode-se utilizar apenas considerações de ordem lógico-matemáticas para a abstração das
características biológicas relativas à capacidade de auto-reprodução? Os trabalhos de
von Neumann relativos aos autômatos celulares procuram justamente responder a esta
questão (EMMECHE, 1994, pp. 47-51). Assim, quando Langton apresenta seu artigo
original, deixa claro que os autômatos celulares teriam importância fundamental no de-
senvolvimento do campo da vida artificial:

Para simular a lógica molecular da vida de forma eficiente, precisamos de


computadores muito especiais.[...] Primeiro, a estrutura computacional
deve suportar paralelismo massivo. [...] Segundo, os vários elementos
computacionais precisam estar localmente conectados, já que pratica-
mente toda ação dos operadores moleculares são tomados unicamente
em resposta a condições locais. [...] Terceiro, como os operadores mo-
leculares dependem de estarem aptos a se moverem de modo relativa-
mente livre pelos vários compartimentos celulares para que encontrem
seus “operandos”, o computador deve apoiar a movimentação dos ope-
radores através do campo dos elementos de processamento. [...] Uma
arquitetura que satisfaz tais critérios foi proposta por John von Neu-
mann no início dos nos de 1950, baseado em sugestão de Ulam30 . Não é
mera coincidência que a arquitetura proposta por ele seria adequada para
a simulação da vida, já que ele estava procurando modelar o processo
natural de auto-reprodução quando a sugeriu. (LANGTON, 1986)31

O que von Neumann propõe, no final da década de 1940 é uma teoria geral e lógica
dos autômatos, definindo um automaton como qualquer máquina capaz de proceder lo-
gicamente através da combinação de sua programação com as informações provenientes
do ambiente (NEUMANN, 1951); ele também propõe uma máquina abstrata que seria
30
Stanislaw Ulam, colega de von Neumann no Laboratório Nacional Los Alamos. Foi Ulam quem
sugeriu a von Neumann utilizar um modelo discreto para tratar de forma reducionista os sistemas auto-
reprodutivos (SCHIFF, 2011, p.3)
31
In order to simulate the molecular logic of life efficiently, we need very special computers.[...] First,
the computer structures must support massive parallelism. [...] Second, the many computing elements
need only be locally connected, since almost all of the actions of molecular operators are taken solely in
response to local conditions. [...] Third, since molecular operators depend on being able to move around
relatively freely within the various compartments of the cell in order to encounter their ’operands’,
the computer must support the motion of operators through the field of processing elements. [...] An
architecture that satisfies these criteria was proposed by John von Neumann in the early 1950’s, based
on a suggestion from Ulam32 . It is not merely coincidental that the architecture he proposed should be
suitable to the simulation of life, for he was attempting to model the process of natural self-reproducton
when he suggested it.

20
capaz de auto-replicação (NEUMANN, 1966c). Como afirma Emmeche (1994, p. 51),
as palestras de von Neumann deixam clara sua crença de que a auto-reprodução seria a
característica definitiva de um organismo vivo. Como não se conhecia à época o fato de
que o DNA era efetivamente o material genético básico, a abordagem de von Neumann
apontava, involuntariamente, um caminho correto. Ele aborda o problema considerando
um experimento abstrato no qual um autômato flutua sobre um lago, com acesso aos
componentes necessários à auto-reprodução, bem como, com acesso a vários órgãos pre-
cisamente descritos, o autômato é batizado de kinematic model por Arthur Burks, aluno
de von Neumann; os componentes e as ações que tomam parte do processo de autorre-
produção no kinematic model são representados na fig. 1.3 e descritos abaixo:

Figura 1.3: Diagrama conceitual de um autômato auto-reprodutivo (kinematic model).


Elaboração do autor com base em Emmeche (1994, p. 55).

• O controlador lê uma instrução, a entrega ao duplicador e recebe em retorno


duas cópias idênticas da instrução original; então, entrega uma das cópias à fábrica
para que execute a instrução, construindo o produto descrito (a cópia é destruída
durante a construção, enquanto a instrução original é mantida intacta no processo de
cópia); finalmente, o controlador anexa a segunda cópia da instrução ao produto
fabricado e o libera.

• A fábrica é uma espécie de autômato-construtor; ela recebe a instrução do con-


trolador e produz uma saída do produto descrito, escolhendo os componentes ade-
quados disponíveis no lago por onde o autômato se movimenta.

21
• O duplicador é um autômato-copiador que, mediante uma instrução (I) como
entrada, retorna duas cópias (I1 e I2) como saída.

• A instrução é uma descrição que permite à fábrica construir um autômato exata-


mente igual ao original; a instrução é uma auto-descrição do autômato.

Von Neumann não se satisfez inteiramente com o kinematic model, pois ele não per-
mitia facilmente a elaboração de um conjunto simples de regras que explicassem sua ação;
mediante a sugestão do matemático Stanislaw Ulam, von Neumann passa a considerar
um modelo discreto, derivado do kinematic model, que passou a ser conhecido por autô-
mato celular, a primeira tentativa de criação de um sistema computacional inspirado
explicitamente em fenômenos biológicos, Ibid., p. 56.

Basicamente um autômato celular é composto por uma grade de células interligadas,


cada uma delas possuindo estados, regras de transição e uma localização relativa às célu-
las vizinhas. Em outras palavras, cada célula é um componente espacialmente demarcado
em um dispositivo maior e estático (um array, ou lista). Os autômatos celulares são
estruturas homogêneas, sendo cada célula um autômato finito equivalente com o mesmo
padrão de vizinhança. O estado das células varia dinamicamente no tempo e de acordo
com as interações com seus vizinhos. O autômato de von Neumann era bidimensional com
vinte e nove estados por célula, e influenciou toda pesquisa posterior na área. Mas sua
contribuição efetiva ao campo da vida artificial foi ter demonstrado, pela primeira vez,
uma prova matemática de que uma máquina abstrata poderia ser modelada de maneira
a apresentar comportamento de auto-reprodução (BANZHAF; MCMULLIN, 2012). Os
resultados alcançados pelos experimentos de von Neumann influenciaram pesquisas poste-
riores no campo dos autômatos celulares através de novos modelos que tentavam diminuir
o nível de complexidade original, dentre os quais, o jogo da vida de Horton Conway.

O Jogo da Vida33 foi criado no final da década de 1960 por Conway da Universidade de
Cambridge. Trata-se de um autômato celular cujas células possuem apenas dois estados
(viva ou morta), em vez dos vinte e nove estados do autômato de von Neumann. A
dinâmica inicia-se com uma configuração aleatória de células vivas, então são aplicadas
sucessivamente as “regras genéticas” (regras de transição) concebidas por Conway:

• toda célula com duas ou três vizinhas vivas sobrevive até a próxima geração;

• toda célula com menos de duas vizinhas (solidão) morre;

• toda célula com mais do que três (superpopulação) também morre;


33
Conway’s game of life.

22
• toda célula vazia (morta) adjacente a três vizinhas vivas torna-se uma célula viva
(nascimento).

Essas regras foram criadas por Conway após vários experimentos que o direcionaram
no estabelecimento das seguintes premissas:

• não deve haver um padrão inicial que leve as células vivas a crescer indefinidamente
sem limite;

• deve haver padrões iniciais que, aparentemente, façam a população crescer sem
limite;

• deve haver padrões iniciais simples que cresçam consideravelmente por certo tempo
até atingir um padrão final, com todas as células mortas, com células vivas estacio-
nárias ou com certo padrão oscilatório sem fim de dois ou mais períodos.

O resultado final, após n números de transições é imprevisível, ver fig. 1.4. O jogo da
vida de Conway demonstra como padrões intrincados podem emergir de condições iniciais
muito simples quando submetidas a algumas regras básicas (GARDNER, 1970).

Figura 1.4: O jogo da vida de Conway. Representação de uma tela com resultado típico
após certo número de interações do autômato celular. Imagem criada a partir do aplicativo
Conway’s Game of Life (Pelagic Games).

23
Outro experimento relevante com autômatos celulares é o Laço de Langton (1984)34 .
Este autômato desenvolvido por Christopher Langton, tem a forma de um loop que cresce
e se divide, o mesmo ocorrendo com os seus descendentes. O padrão de alterações no
ambiente do autômato cria uma espécie de colônia cujos indivíduos continuam a crescer
e a se multiplicar. A relevância do laço de Langton pode ser apreendida nas palavras de
Emmeche:

É instrutivo comparar o laço de Langton com uma célula viva. [...]


Alguém pode dizer que o modelo de Langton para a auto-reprodução
corresponde a afirmar que a informação contida no DNA não codifica
diretamente o fenótipo, mas sim os vários processos conjuntos que são
responsáveis pelo desenvolvimento subsequente das células-ovo (ou epi-
gênese) em embriões e, posteriormente em indivíduos adultos. Assim, é
tentador concluir que o modelo de Langton de fato realiza a vida num
sentido amplo, apesar das relações organismo-ambiente não estarem in-
tegradas no modelo. (EMMECHE, 1994, pp. 59-60)35

Dois anos após o experimento com o loop, Langton propôs os fundamentos da vida
artificial, indicando os autômatos celulares como dispositivos adequados à sua realização.
A abordagem que utiliza em seu estudo preliminar é bastante ambiciosa e compreende os
seguintes passos: 1. estabelecer algumas das principais funções inerentes às biomoléculas;
2. estudar como sistemas de moléculas interativas artificiais podem surgir espontanea-
mente das estruturas baseadas em autômatos celulares; 3. considerar essas moléculas
artificiais como autômatos “virtuais” e examinar seu potencial para desempenhar papéis
semelhantes aos das biomoléculas; e 4. apresentar exemplos de estruturas artificiais que
sustentem outros comportamentos semelhantes à vida. Langton argumenta que a dificul-
dade em se estudar a vida e a inteligência reside em dois fatores básicos, primeiro no fato
de que são ambos “fenômenos não lineares”, propriedades de outros sistemas que, divi-
didos em pequenas partes, perdem sua essência; segundo, todos os exemplos de sistemas
vivos são resultados da evolução ao longo de bilhões de anos e sob condições específicas,
dificultando a separação dos elementos essenciais dos detalhes circunstanciais. Mas, ele
conclui que a vida artificial pode abrandar as duas dificuldades, devido à sua estratégia
bottom-up através da qual a interação de estruturas simples pode gerar comportamentos
34
Langton’s Loop
35
It is instructive to compare Langton’s loop with a living cell. [...] One might say that Langton’s
model for self-reproduction corresponds to the fact that information contained in the DNA does not
directly code for the phenotype, but for the many process that together are responsible for the fertilized
egg cell’s subsequent development (or epigenesis) into an embryo and later into an adult individual. It
is therefore tempting to conclude that Langton’s model life indeed realizes life in a broader sense, even
though the organism-envirorment relation is not integrated into the model.

24
complexos, e devido à aproximação que o estudo da vida artificial pode trazer aos campos
da física e biologia teóricas (LANGTON, 1986).

Apesar dos esforços e publicações decorrentes das conferências ALife e ECAL dos anos
1990, à entrada do novo século, pouco havia sido realizado no sentido de desvelar a lógica
intrínseca à emergência comportamental e à evolução dos seres vivos, ao contrário do que
preconizava Langton. Assim, a sétima conferência ALife, realizada em agosto de 2000,
em Portland/OR, demonstrou um grande interesse da comunidade de pesquisadores da
vida artificial, agora em sua segunda geração, de formular um conjunto de desafios para o
campo. Esses desafios foram separados em três grandes questões: 1. Como a vida surge
a partir do não vivo? 2. Quais são os potenciais e limites dos sistemas vivos? e 3. Como
a vida se relaciona à mente, às máquinas e à cultura? (BEDAU et al., 2000). No mesmo
artigo, Bedau considera que a vida artificial é “acima de tudo um esforço científico e não
de engenharia” e que se “deveria enfatizar a compreensão em primeiro lugar e aplicações
em segundo lugar” — o que fica explicito nas questões levantadas —, mas o que realmente
ocorre é o contrário.

Enquanto a vida artificial procurava estabelecer suas bases e limites, o desenvolvi-


mento dos autômatos celulares continuava em franca ascensão, fazendo com que o dis-
positivo lógico-matemático imaginado por von Neumann excedesse o campo dos meros
experimentos abstratos, mostrando-se eficiente em aplicações de engenharia em diversas
áreas como fluidodinâmica, tráfico veicular e modelagem de ecossistemas (DORIN, 2014,
p.60). Isto acabou influenciando o rumo do desenvolvimento da vida artificial ao longo dos
anos 2000 de maneira mais impactante do que as questões levantadas na conferência ALife
VII. Mas, não apenas os autômatos celulares se apresentaram como técnicas computacio-
nais bioinspiradas eficientes para aplicações de engenharia, segundo Kim e Cho (2006b),
nesta época, os autômatos celulares já dividiam espaço nos campos da vida artificial e
inteligência artificial com outras metodologias bioinspiradas, tais como: computação evo-
lucionária que utiliza algoritmos genéticos, estratégias evolutivas, programação genética
e programação evolutiva; computação evolucionária interativa que é a tecnologia através
da qual a computação evolucionária otimiza os sistemas alvo de acordo com a avaliação
subjetiva humana; modelagem baseada em agentes que utiliza múltiplos agentes cujas
decisões são inteiramente baseadas em informações locais; e otimização tipo colônia de
formigas que utiliza insetos artificiais para encontrar soluções para problemas combina-
tórios complexos. A fig.1.5 relaciona algumas dessas metodologias com as áreas em que
são mais utilizadas.

Nos últimos cinco anos, a evolução dos experimentos sobre a vida artificial baseados
em metodologias computacionais bioinspiradas pode ser confirmada pelas publicações

25
Figura 1.5: Metodologias da vida artificial e as áreas em que são tipicamente utilizadas.
Elaboração do autor com base em Kim e Cho (2006b).

decorrentes das conferências ECAL e ALife, constituindo o estado-da-arte da pesquisa na


área. Constata-se que, apesar de trabalhos relativos a questões teóricas e filosóficas, o
viés dedicado às implementações de engenharia permaneceu preponderante ao longo do
tempo.
No campo dos autômatos celulares, Pavlic et al. (2014) fornecem evidencias de que
a dinâmica da auto-referência é crítica para a evolução da linguagem natural, enquanto
Bartlett e Bullock (2016) demonstram a emergência de regulação espontânea de tempe-
ratura pela ação conjunta de duas estruturas dissipativas.
Baseadas nos sistemas de colônia de formigas, Khaluf e Gullipalli (2015) desenvolvem
dois algoritmos para detecção de bordas em imagens que obtém melhores resultados com-
parativamente a sistemas semelhantes mais antigos, e Hauert (2017) investiga o uso de
engenharia de enxame na construção de micro-robôs com comportamento coletivo para
uso em medicina
No campo dos robôs e agentes, Wagy e Bongard (2014) demonstram que a performance
coletiva de um grupo de robôs pode ultrapassar o desempenho de robôs solitários na
tarefa de localização em espaços de busca hierárquicos. Cully et al. (2015) investigam a
possibilidade de robôs se adaptarem a situações em que sofrem algum tipo de dano, algo
comum dentre os organismos vivos; o experimento apresentou sucesso em cinco diferentes

26
situações de danos e os autores acreditam que este algoritmo vai permitir a construção
de robôs mais robustos. Sellers (2017) apresenta o ramo da paleontologia sintética que
representa tentativas de reconstruir fósseis através de robôs virtuais; e Kadihasanoglu e
Bingham (2017) investigam um modelo de robô evolucionário para a tarefa de frenagem
guiada por visão.

Na área das redes neurais e aprendizado de máquina, Lakhman e Burtsev (2014)


propõem um mecanismo de aprendizado baseado na inclusão gradual de novos grupos
funcionais de neurônios em redes neurais adaptativas para evitar falhas. O modelo pro-
curou integrar as fases evolucionária, de desenvolvimento e aprendizagem, demonstrando
a importância do papel do aprendizado no processo evolucionário.

A área das redes sociais também está presente nas preocupações dos pesquisadores da
vida artificial. Franks, Wood e Bode (2015) apresentam um resumo estendido a respeito
do comportamento de enxame (swarm behavior) em redes sociais.

De forma geral, o que apontam os anais dos congressos sobre vida artificial é que
o campo se tornou multifacetado, com os pesquisadores demonstrando interesses diver-
sos, em parte alinhados com os objetivos de Langton ao estabelecer a disciplina, em
parte alinhados com um posicionamento mais prático e voltado às possíveis aplicações
da computação bioinspirada. Esta mudança no escopo do campo da vida artificial, na
visão de Taylor (2014), ocorre por volta de 2004/2005, coincidindo com os avanços das
tecnologias Web. Segundo ele, o rápido desenvolvimento da rede e a disponibilidade de
um crescente número de tecnologias associadas, de novas API (Application Programming
Interfaces 36 ) a linguagens com foco da internet, ofereceram grande potencial para o de-
senvolvimento de uma nova abordagem da vida artificial, mais prática e voltada para
aplicações em problemas de engenharia.

1.3 Crítica à vida artificial e possibilidades da trans-


posição semióticas

Do ponto de vista da engenharia, a vida artificial alcançou resultados relevantes. Do


ponto de vista das ambições de Langton, no entanto, o caminho ainda se mostra longo e
árduo. Retomando o artigo original que dá nome à disciplina da vida artificial (LANG-
TON, 1986), seus objetivos podem ser resumidos de forma cristalina através de frases
como “[...] extrair a forma lógica dos seres vivos”, “[...] desvelar a lógica molecular para
sintetizar comportamentos semelhantes aos sistemas vivos”, [...] modelos tão semelhan-
36
Interfaces de Programação de Aplicativos

27
tes que deixam de ser modelos para se tornarem exemplos de vida”, “[...] criar vida em
outros meios”, e a “[...] essência da vida abstraída dos detalhes de sua implementação,
independentemente de qualquer hardware em particular”.

Disto, resultam duas questões. Existiriam essência e forma lógica no comportamento


dos seres vivos que sejam independentes da matéria que os constitui? Esta mesma matéria
seria composta por meros detalhes de implementação? Juntamente com essas questões,
contradições podem ser apontadas nas mesmas frases. Há grande diferença entre “desve-
lar” e “extrair” uma forma lógica, e entre “comportamentos [meramente] semelhantes à
vida” e “criar vida” ou “modelos tão semelhantes que deixam de ser modelos para serem
exemplos de vida”. O caminho que seguiu o viés da engenharia no campo da vida arti-
ficial está alinhado com os primeiros termos dessas contradições, ou seja, têm o objetivo
de desvelar ou reconhecer certa lógica intrínseca e construir artefatos que apresentam
comportamentos semelhantes à vida, indicando que a engenharia, neste caso, opera no
campo da inspiração. Ao contrário, o caminho que segue as ambições de Langton em
seu extremo, representadas pelos termos finais das contradições apontadas, considera a
possibilidade de se extrair a forma lógica para realmente criar vida, apontando para a
certeza de um dualismo intrínseco à vida, no qual, forma e essência de um lado e matéria
do outro seriam duas instâncias da realidade passíveis de serem isoladas e tratadas de
forma independente (ver fig. 1.6).

Figura 1.6: Representação da concepção de Langton sobre a vida artificial. A forma lógica
subjacente ao fenômeno em estudo é extraída do suporte biológico; sendo considerada
independente, a mesma forma lógica poderia ser implementada em qualquer outro suporte
ou hardware. Elaboração do autor.

28
Emmeche, em seu artigo A semiotical reflection on biology, living signs and artificial
37
life de 1991, apresenta a visão de Langton da seguinte forma:

Não está em questão a construção de organismos mecânicos ou robôs


capazes de reagir propositadamente a problemas particulares com base
em princípios gerais de orientação (o chamado método top-down da pes-
quisa clássica em IA). A posição de Langton — que podemos chamar
de versão forte da vida artificial — é que a vida pode ser estudada de
forma abstrata sem se atentar ao seu nível material, já que a vida é
essencialmente um agregado de funções que podem ser realizadas em
mídia computacional da mesma forma que acontece na mídia biológica
da vida conhecida [...]. No nível das células individuais há uma dife-
rença categórica: uma célula natural não é o mesmo que uma célula
simulada em computador (de fato, um autômato celular é um objeto
matemático). Ele existe apenas como uma estrutura de informação no
computador. Mas — e isto é decisivo, de acordo com Langton — em ní-
vel do comportamento coletivo, a interação entre as células naturais em
um organismo e a interação entre “células” em um computador são duas
instâncias do mesmo fenômeno: interações criadas por padrões (entre
células, mas também as relações entre o organismo como um todo em
um ecossistema pode ser modelado da mesma maneira). Vida é forma e
pode ser sintetizada como tal. (EMMECHE, 1991)38

No mesmo artigo, Emmeche, utilizando a filosofia de Charles Sanders Peirce, apresenta


dois comentários. Primeiro, de que a concepção de Langton de uma vida artificial forte
na qual suas funcionalidades podem ser descritas independentemente de sua realidade
material, aponta para um falso dualismo. Segundo que, apesar disto, seria possível de
fato estender as perspectivas da biologia teórica entendendo a vida não como ela é, e sim
como ela poderia ser. Para tanto, aponta a semiótica geral de Peirce como uma ferramenta
para se investigar as quasi-lógicas regularidades e leis que regem a vida:
37
Uma reflexão semiótica sobre biologia, signos vivos e vida artificial.
38
At issue is not the building of a mechanical organism or robot, able to react purposefully to particular
problems on the basis of general steering principles (the so-called “top-down” method in classical research
in AI). Langton’s point — which we might call the “strong version” of artificial life — is, that life can
be studied abstractly with no attention to the material levels, since life is essentially an assembly of
functions, which can be realised in the medium of the computer quite as well as in the biochemical
medium of known life [...]. On the level of individual cells there is a difference in kind: a natural cell
is not the same as the one simulated in the computer (in fact, a cellular automaton is a mathematical
object). These exist only as information structures in the computer. But — and this is according to
Langton the decisive point — on the level of the collective behaviour of many parts, the interplay between
natural cells in an organism and the interaction of “cells” in a computer are two instances of the same
phenomenon: pattern-creating interaction (between cells, but also the relations between whole organisms
in an ecosystem could be modelled in a similar way). Life is form and can be synthesised as such.

29
É especialmente importante compreender as restrições que subordinam
a evolução dos hábitos biológicos, químicos e físicos da natureza. Isto
está presente no que Peirce chamou de sinequismo, sua ideia de continui-
dade. A vida por nenhum meio existe como pura Terceiridade ou mera
“informação do universo” que passou a residir na matéria acidental; Ter-
ceiridade mantem e envolve Primeiridade e Secundidade — semiose pres-
supõe kinesis — e, menos metafisicamente, pode-se dizer que a evolução
expõe a interação mutual entre códigos analógicos e digitais. (Ibid.)39

A investigação da possibilidade de uma abordagem semiótica para a questão da vida


artificial através da filosofia de Charles Sanders Peirce como aponta Emmeche, torna-se a
motivação central desta pesquisa. Assim, o próximo capítulo tem a missão de apresentar
os principais conceitos da semiótica geral de Peirce para fundamentar o desenvolvimento
da tese, principalmente no que diz respeito aos subtemas da fenomenologia peirceana, da
gramática especulativa e da lógica crítica.

Antes, porém, cabe uma observação: o termo transposição, como utilizado nesta tese,
significa o ato de mover ou mudar algo para um outro local ou para uma forma dife-
rente 40 . Com base nesta definição, pode-se verificar em que se diferenciam as estratégias
de Langton e da presente pesquisa: na concepção de vida artificial de Langton, o “algo” a
ser movido é uma suposta forma lógica baseada em certo dualismo cartesiano; por outro
lado, a transposição semiótica, em acordo com a ideia de continuidade de Peirce, pretende
transpor o que será apresentado no próximo capitulo como forma qualitativa, referente
aos signos em geral e, consequentemente, aos signos envolvidos em fenômenos biológi-
cos. Esta dinâmica ocorre através do isomorfismo entre diagramas semióticos e diagramas
de transição de estados que implementam dispositivos computacionais conhecidos como
autômatos finitos. A forma qualitativa, neste contexto, não é algo a ser separado de um
suporte físico para ser movido de um local para outro, mas uma instância característica
da estrutura dos signos que se manifesta de acordo com a capacidade interpretativa de
diferentes suportes, portanto o que será transposto de um local para outro é apenas a
potencialidade de manifestação da forma qualitativa do signo. A peculiaridade da ma-
nifestação de fato desta forma qualitativa dependerá das características intrínsecas do
suporte a receber sua potencialidade, conforme esquema da fig. 1.7, e como ficará claro
39
It is especially important to understand the constraints that harness the evolution of Nature’s bi-
ological, chemical, and physical habits. This is present in what Peirce called synechism, his idea of
continuity. Life does by no means exist as pure Thirdness or mere "universes of information", that have
taken up residence in an accidental material; Thirdness keeps and encompasses Firstness and Secondness
— semiosis presupposes kinesis — and less metaphysically one could say that evolution exposes a mutual
interplay between analog and digital codes.
40
Segundo consta em https://www.oxfordlearnersdictionaries.com (Oxford Learners’s Dictionay, con-
sulta realizada em 04/04/2018.)

30
no decorrer da tese.

Figura 1.7: Representação do processo de transposição semiótica. Um diagrama semiótico


(a ser desenvolvido no capítulo 3) abstrai as semioses subjacentes ao fenômeno biológico
em estudo através da potencialidade de manifestação da forma qualitativa dos signos en-
volvidos; suas partes são convertidas por isomorfismo numa representação por diagrama
de transição de estados passível de ser implementada em meio computacional, respeitando
as características e capacidades interpretativas de cada um dos suportes envolvidos. Ela-
boração do autor.

Neste ponto, uma última palavra de Emmeche, ajuda a esclarecer o papel dos processos
semióticos no campo biológico:

Não se sugere que o conceito triádico da ação do signo — ou a totalidade


da semiótica de Peirce — possa, de qualquer forma, exaurir a complexi-
dade da biologia molecular, etologia ou linguística, ou que alguém possa
dispensar teorias mais específicas para compreender os fenômenos con-
cretos da natureza; a questão é metateórica: não há nada na semiótica
peirceana que restrinja a ação sígnica à cultura ou às práticas huma-
nas. (Ibid.)41

1.4 Resumo

Este capítulo apresentou o campo da vida artificial, desde suas origens na computação e
inteligência artificial, passando por seu estabelecimento como disciplina formal na década
41
This is not to suggest that the triadic concept of sign-action — or the whole semiotics of Peirce
— in any way exhausts the complexities of molecular biology, ethology or linguistics, or that one can
dispense with more specific theories in order to comprehend concrete phenomena of nature; the point
is metatheoretical: there is nothing in the peircean semiotics which restricts sign-actions to culture or
human practice.

31
de 1980, até seu estado-da-arte. Foram também apresentados uma crítica à vida artificial
no que diz respeito ao seu caráter dualista, e um possível caminho de desenvolvimento
através da semiótica geral de Peirce que será detalhada no próximo capitulo. Assim, em
resumo:

1. O campo da vida artificial tem suas raízes mais profundas na teoria da computação
decorrente da tese de Church-Turing, nos desenvolvimentos da inteligência artificial,
e na teoria dos autômatos celulares de von Neumann;

2. O estabelecimento da vida artificial como disciplina formal é devido a Christopher


Langton na década de 1980. Os objetivos gerais declarados por Langton em seu
artigo seminal apontam para a intenção de se estudar sistemas artificiais que apre-
sentem características comportamentais dos sistemas vivos naturais, incluindo-se,
simulações computacionais, experimentos biológicos e químicos, e tarefas pura-
mente teóricas. Sua meta específica é extrair a forma lógica dos sistemas vivos
para implementá-la computacionalmente;

3. A abordagem de Langton tem caráter dualista, acreditando ser possível estudar a


lógica dos fenômenos biológicos independentemente de sua implicação material;

4. Emmeche apresentou uma crítica consistente ao caráter dualista da proposta de


Langton, apontando a semiótica geral de Charles Sanders Peirce como uma possível
ferramenta para o desenvolvimento da vida artificial através de uma posição monista;

5. Finalmente, introduz-se brevemente o conceito de transposição semiótica como es-


tratégia de investigação para o caminho apontado por Emmeche.

32
Capítulo 2

A semiótica geral de Peirce

Semiótica, de raiz semeion (do grego = signo), denota o estudo dos signos e dos proces-
sos significativos (semioses) na natureza e na cultura (NöTH, 1995a, p. 19), tendo por
base uma fenomenologia na qual o papel mediador do signo é fator determinante para a
apreensão, pela mente, das coisas que lhe são externas.

No campo da semiótica moderna, Charles Sanders Peirce (1839-1914) é o precursor


de uma teoria geral dos signos, opondo-se às várias escolas que sugerem posições mais
restritas, inclusive as que limitam o estudo da semiótica às questões da comunicação
humana. Sua visão de um universo essencialmente semiótico considera que os signos
não são uma classe de fenômenos ao lado de outras entidades não semióticas. Em sua
interpretação, o estudo dos signos deve ser uma ciência universal cujo ponto de partida
é o axioma que considera a cognição, o pensamento e mesmo o homem como fenômenos
semióticos (NöTH, 1995a, pp. 39-41). Desta forma, como entidade experienciável, o
fenômeno (do grego, phaneron) seria qualquer coisa que aparece à mente, de devaneios a
odores, de sonhos a ideias científicas abstratas, não se restringindo a algo que se possa
simplesmente sentir, perceber ou localizar na ordem espaço-temporal que o senso comum
identifica como o “mundo real” (SANTAELLA, 2000, pp. 7-9).

A fenomenologia fornece as fundações das três ciências normativas (estética, ética e


lógica, que estão na base da metafísica) constituindo-se no alicerce da arquitetura filosófica
de Peirce. A estética visa o bem supremo e está na base da ética que se preocupa com
os conceitos que orientam as ações em direção aos ideais estéticos. Por sua vez, a lógica
baseia-se na ética e estuda as leis necessárias do pensamento e das condições para se atingir
a verdade, fornecendo os meios para se agir de forma razoável. No entanto, para Peirce,
não há pensamento (ou lógica) possível de se desenvolver apenas através de símbolos,
nem mesmo o raciocínio puramente matemático, levando-o a considerar uma concepção
de lógica que se estende em direção à semiótica geral. Assim, para que possa tratar das leis
do pensamento e das condições para se atingir a verdade, a lógica deve antes se preocupar
com os aspectos gerais dos signos (SANTAELLA, 2002, pp. 1-3).
A semiótica peirceana apresenta três ramos: gramática especulativa, lógica crítica e
metodêutica ou retórica especulativa. O primeiro desses ramos refere-se ao estudo das
formas de pensamento e da tipologia dos signos, bem como, das suas propriedades, dos
seus comportamentos e dos seus modos de significação, objetivação e significação. Assim, a
gramática especulativa pode ser entendida como uma teoria geral dos signos e está na base
da lógica crítica. Este segundo ramo, preocupa-se com o estudo dos tipos de inferência que
se estruturam através dos signos (dedução, indução e abdução). Finalmente, o terceiro
ramo, metodêutica, ocupa-se da análise dos métodos que originam cada um dos tipos de
raciocínio (Ibid., pp. 3-4).
A consideração de uma semiótica de caráter geral aponta, portanto, para conceitos
diversos e complexos refletindo parte significativa das preocupações filosóficas de Peirce,
cuja obra é essencial para a fundamentação teórica desta tese. O objetivo deste capítulo
é justamente apresentar tais conceitos, mais precisamente, aqueles que se referem à feno-
menologia peirceana, à gramática especulativa e à lógica crítica, e que servirão de base
para o desenvolvimento dos próximos capítulos.

2.1 Fenomenologia peirceana

Em sua obra, Peirce refere-se à fenomenologia como “doutrina das categorias” (CP 1.280)1 ,
ou como faneroscopia, delimitando-a como sendo a “descrição do faneron” que, por sua
vez, corresponde à “totalidade coletiva de tudo o que está de algum modo ou em algum
sentido presente à mente, independentemente se isto corresponde a qualquer coisa real ou
não” (CP 1.284)2 . Desta forma, o objetivo final da fenomenologia, ou faneroscopia, seria
estudar as categorias formais e universais dos modos como os fenômenos são apreendidos
pela mente (SANTAELLA, 2002, p. 7). Nas próprias palavras de Peirce:

[...] Faneroscopia é o estudo que, apoiado pela observação direta dos


fanerons e generalizando tal observação, aponta várias classes muito am-
plas de fanerons; descreve as características de cada uma delas; mostra
que, apesar de estarem tão inextricavelmente misturadas de tal modo
1
Nesta tese, as citações à obra de Peirce seguem seu formato característico, referenciando a obra
específica e o parágrafo em questão. Assim, em vez da forma (PEIRCE, 1931-58, p. 120-138) para
certa página dos Collected Papers of Charles Sanders Peirce, a citação aparecerá como CP x.y onde: CP
corresponde ao título da obra, x ao volume e y ao parágrafo.
2
Phaneroscopy is the description of the phaneron; and by the phaneron I mean the collective total of
all that is in any way or in any sense present to the mind, quite regardless of whether it corresponds to
any real thing or not.

34
que nenhuma pode ser isolada, mesmo assim fica claro que suas ca-
racterísticas são bem díspares; então prova, sem dúvida, que tal lista
muito pequena compreende todas essas categorias mais amplas de fa-
nerons existentes; e finalmente proceda à tarefa trabalhosa e difícil de
enumerar as principais subdivisões dessas categorias. (CP 1.286)3

Em seu empreendimento, Peirce concentra-se na busca dos “elementos logicamente


indecomponíveis” (CP 1.288) dos fanerons. Reconhecendo a impossibilidade de encontrar
diferenças em suas estruturas internas - devido justamente à sua indecomponibilidade -
limita-se à busca das diferentes características de suas estruturas externas, ou “estruturas
de seus possíveis componentes” (CP 1.289). Peirce constrói aqui uma analogia com o
conceito de valência, responsável por estruturar os elementos químicos de acordo com sua
capacidade de estabelecer ligações atômicas (CP 1.290). Assim, de acordo com suas con-
clusões, são estabelecidas três classes possíveis de elementos logicamente indecomponíveis
conforme as ligações entre seus componentes, ou valência:

Um estudo aprofundado da lógica das relações confirma as conclusões


a que cheguei [...]. Isso mostra que os termos lógicos são mônadas,
díadas ou políadas, e que estes últimos não apresentam nenhum elemento
radicalmente diferente daqueles encontrados em tríadas [...]. (CP 1.293)4

Com a definição das três classes de termos lógicos, Peirce reduz a variedade de fenô-
menos a apenas três categorias ontológicas, cada uma das quais correspondendo a uma
dessas classes e recebendo as denominações de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade:

• “A ideia pura de uma mônada não é a de um objeto” (CP 1.303), é mera possibili-
dade. Pertence, assim, à categoria da primeiridade que “é o modo de ser daquilo que
é tal como é, positivamente e sem referência a qualquer outra coisa”(CP 8.328). “As
ideias típicas da primeiridade são as qualidades de sentimentos, ou meras aparências,
[...] a qualidade ela mesma, independentemente de ser percebida ou lembrada” (CP
8.329). Relaciona-se, assim, com a ideia de simples potencialidade, possibilidade,
independência, um sentimento ainda não posto em reflexão, o vislumbre do mundo
físico ainda em estado de pura indeterminação.
3
[...] Phaneroscopy is that study which, supported by the direct observation of phanerons and ge-
neralizing its observations, signalizes several very broad classes of phanerons; describes the features of
each; shows that although they are so inextricably mixed together that no one can be isolated, yet it
is manifest that their characters are quite disparate; then proves, beyond question, that a certain very
short list comprises all of these broadest categories of phanerons there are; and finally proceeds to the
laborious and difficult task of enumerating the principal subdivisions of those categories.
4
A thorough study of the logic of relatives confirms the conclusions which I had reached [...]. It shows
that logical terms are either monads, dyads, or polyads, and that these last do not introduce any radically
different elements from those that are found in triads.

35
• A díada, por sua vez, pertence à categoria da secundidade que “é modo de ser
daquilo que é tal como é, com respeito a um segundo, mas sem considerar um
terceiro” (CP 8.328). “O tipo de uma ideia de secundidade é a experiência do esforço
que prescinde da ideia de um propósito” (CP 8.329). A categoria da secundidade
refere-se à experiência no tempo-espaço, à ação, à realidade da experiência, ao
fato, à ocorrência, ao mundo físico quando deixa de ser mero vislumbre e adquire
consistência perceptiva, mas ainda sem qualquer propósito.

• Finalmente, se “a ação bruta é secundidade, qualquer mentalidade envolve tercei-


ridade” (CP 8.331), correspondendo à tríada. “Um terceiro é algo que coloca um
primeiro em relação a um segundo” (CP 8.332), pertencendo, desta forma à catego-
ria da mediação, da lei e do hábito, do pensamento e continuidade. Na terceiridade,
a consistência segunda do mundo físico passa a ter um propósito ou juízo.

O reconhecimento e a definição das três categorias ontológicas foram essenciais para


o desenvolvimento da gramática especulativa, influenciando fortemente a investigação
dos tipos de signos e suas relações. Antes de prosseguir, no entanto, cabe um exemplo
elucidativo. Pignatari (2004, p. 46) resume a questão das categorias peirceanas da
seguinte forma:

Estou caminhando por uma via de um grande centro urbano, sem que
nenhuma ideia me ocupe a mente de modo particular e nenhum estímulo
exterior enrijeça a minha atenção; em estado aberto de percepção cân-
dida, digamos. Ou seja, em estado de primeiridade. Por um acidente
qualquer - um raio de sol refletido num vidro de um edifício - minha
atenção isola o referido edifício do conjunto urbano, arrancando-me da
indeterminada situação perceptiva do estado anterior, ancorando-me no
aqui-e-agora da secundidade. Em seguida, constato que esta construção
é um “arranha-céu de vidro”, que se insere no sistema criado por Mies
van der Rohe, nos anos 20, que Mies, por seu lado, nada mais fez que
desenvolver as possibilidades construtivas do aço e do vidro [...] etc. etc.
Este estado de consciência corresponde à terceiridade.

2.2 Gramática especulativa

Para Peirce, a relação triádica entre as categorias é irredutível, não existindo, portanto,
fronteira ou separação entre elas: “não apenas a terceiridade supõe e envolve as ideias
de secundidade e primeiridade, como também nunca será possível encontrar qualquer

36
secundidade ou primeiridade no fenômeno que não seja acompanhado por terceiridade”
(CP 5.90)5 . É deste quadro fenomenológico que surge a noção de signo6 genuíno, de caráter
essencialmente triádico e participante das três categorias: “um signo, ou representamen, é
um primeiro que está em uma relação tão genuína com um segundo, chamado seu objeto,
que é capaz de determinar um terceiro, chamado de seu interpretante, para se colocar na
mesma relação triádica com seu objeto ao qual ele próprio se posiciona. A relação triádica
é genuína, já que seus três membros estão unidos por tal relação de modo a não consistir
em qualquer relação diádica” (CP 2.274)7 . Queiroz (2004, p. 53) aponta que a figura do
tripod seria a melhor representação desta relação irredutível (ver fig. 2.1).

Figura 2.1: O tripod. Representação da relação triádica irredutível do signo peirceano:


Representamen (o primeiro), Objeto (o segundo) e o Interpretante (o terceiro). Elaboração
do autor com base em Queiroz (2004, p. 53).

Peirce ainda faz distinção entre dois tipos de objetos (imediato e dinâmico) e três tipos
de interpretantes (imediato, dinâmico e final). O objeto imediato é aquele que depende
da sua representação na composição triádica do signo, é o objeto dentro do signo, é a
representação mental independente da sua existência real; o objeto dinâmico, por seu
lado, diz respeito ao objeto em sua realidade, é o objeto fora do signo e que não pode ser
representado em seu todo. Do lado do interpretante, o dinâmico refere-se à potencialidade
semântica do signo na mente do intérprete, passando de imediato a dinâmico na medida em
que um efeito real é produzido; finalmente, o interpretante final está associado à terceira
categoria, à lei (ou hábito) que leva à interpretação verdadeira quando uma opinião final
é atingida (NöTH, 1995a, pp. 43-44).
5
Not only does Thirdness suppose and involve the ideas of Secondness and Firstness, but never will it
be possible to find any Secondness or Firstness in the phenomenon that is not accompanied by Thirdness.
6
Peirce utiliza a palavra signo com dois sentidos distintos ao longo de sua obra, ora para denotar a
relação triádica irredutível de objeto, representamen e interpretante, ora para denotar exclusivamente o
representamen desta mesma relação. Assim, deste ponto em diante, assumi-se: 1. para o texto geral da
tese, a palavra signo como referência à relação triádica e representamen como o elemento de primeiridade
desta relação; e 2. para as transcrições de trechos da obra de Peirce, a denotação para cada um dos
termos tal qual aparece no original.
7
A Sign, or Representamen, is a First which stands in such a genuine triadic relation to a Second,
called its Object, as to be capable of determining a Third, called its Interpretant, to assume the same
triadic relation to its Object in which it stands itself to the same Object. The triadic relation is genuine,
that is its three members are bound together by it in a way that does not consist in any complexus of
dyadic relations.

37
O signo peirceano plenamente desenvolvido pertence, então, à categoria da terceiri-
dade e sua ação triádica, como processo ativo, estabelece um efeito cognitivo na mente
do intérprete. A esse processo, Peirce dá o nome de semiose, descrevendo-o da seguinte
forma:

Um signo, ou representamen, é algo que representa alguém ou alguma


coisa em certo respeito ou capacidade. Ele afeta alguém, ou seja, cria
na mente desta pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais
desenvolvido. Este signo que foi criado eu chamo de interpretante do
primeiro signo. O signo representa algo, seu objeto. Ele representa tal
objeto, não com respeito à sua totalidade, mas com respeito a um tipo de
ideia, que chamei às vezes de representamen. “Ideia” deve ser entendida
aqui em certo sentido platônico [...]; Quero dizer no sentido em que um
homem capta a ideia de outro homem, em que dizemos que quando um
homem se lembra em que ele estava pensando num momento anterior,
sua lembrança é [a lembrança] da mesma ideia, e em que um homem
ao continuar pensando em algo, por digamos um décimo de segundo,
na medida em que o pensamento continua a concordar consigo mesmo
naquele tempo, [...], é a mesma ideia, e não a cada intervalo de tempo
uma nova ideia. (CP 1.144)

Para Peirce, o sentido de “continuidade” é prevalente e nenhuma ideia pode ser con-
cebida de forma autônoma, ao contrário, qualquer ideia só pode ser determinada, e fazer
sentido, se relacionada com outra ideia que a interprete. O sentido nunca é encontrado
num pensamento único, mas no processo contínuo que o produz. Desta forma, os fenôme-
nos mentais devem ser definidos formalmente e não com referência aos processos cerebrais
ou à consciência, cuja suposta dicotomia aponta diretamente ao dualismo cartesiano, cri-
ticado pelo próprio Peirce, para quem, mente não é uma substância, mas um processo que
podemos definir e estudar semioticamente (STEINER, 2013). Nas palavras de Peirce:

Uma sutil e indelével estreiteza na concepção das ciências normativas


atravessa quase toda a filosofia moderna fazendo-a relativa exclusiva-
mente à mente humana. [...] a filosofia moderna nunca foi suficien-
temente capaz de abalar a ideia cartesiana de mente, como algo que
“habita” - tal é o termo - na glândula pineal. Hoje, todos riem disso, e
mesmo assim, continuam a pensar na mente desta mesma forma geral,
como algo dentro desta ou daquela pessoa, pertencente a ela e correlato
ao mundo real. [...] Posso apenas sugerir que se você refletir sobre isto,
sem ser dominado por ideias pré-concebidas, cedo começará a perceber
que [esta] é um ponto de vista muito estreito. (CP 5.128)

38
Deixado de lado o dualismo cartesiano, e estendendo o conceito de mente para além
da consciência e do cérebro humanos, Peirce estabelece a ideia de um processo contínuo
ad infinitum determinado pela ação dos signos. Neste processo, não há um primeiro
nem um último signo, o que também não implica num círculo vicioso. Esta continuidade
refere-se, então, à ideia moderna de que pensamento ocorre na forma de diálogo, onde
um pensamento leva a outro, estabelecendo uma cadeia semiótica (ver fig. 2.2). Neste
fluxo, todo signo cria um interpretante que, por sua vez se coloca como representamen de
um outro signo. Esta cadeia pode ser eventualmente interrompida, mas, potencialmente,
nunca poderia ser finalizada (NöTH, 1995a, p. 43). Por sua vez, o objeto de cada tríade,
por estar “dentro” do signo, refere-se a diferentes objetos imediatos derivados de um único
objeto dinâmico (EL-HANI; QUEIROZ, 2007), assim o objeto do signo se altera e progride
à medida que o processo semiótico ocorre.

Figura 2.2: A cadeia semiótica. O Interpretante I(n) da semiose S(n) coloca-se como
Representamen da semiose S(n+1) transformando-se em R(n+1) e, assim, sucessivamente
ad infinitum. Os Objetos (O) representados são objetos imediatos, cada qual levemente
diferente do anterior, mas todos se referindo ao mesmo objeto dinâmico. Elaboração do
autor com base em Queiroz (2004 apud BALAT, 2000, p. 57).

Observadas as características dos signos e processos, pode-se neste ponto e ainda atra-
vés de Peirce, estabelecer uma série de classes para acomodar todas as possíveis ocorrên-
cias dos signos. Para tanto, Peirce elabora uma tipologia constituída por três tricotomias,
cada uma relativa a um dos elementos constituintes do signo (representamen, objeto e
interpretante) combinados com suas possíveis relações com as categorias de primeiridade,
secundidade e terceiridade. Primeiramente, do ponto de vista do representamen, os sig-
nos podem ser divididos em qualissignos, sinsignos (ou tokens) e legissignos (ou types);
de acordo com a relação do signo com seu objeto, podem ser ícone, índice ou símbolo;
e, finalmente, de acordo com a natureza do interpretante, dividem-se em rema, dicente e
argumento (ver tab. 2.1):

39
```
```
``` Tricotomias Representamen Relação ao Relação ao
```
Categorias em si Objeto Interpretante
```
```
`
Primeiridade Qualissigno Ícone Rema
Secundidade Sinsigno (token) Índice Dicente
Terceiridade Legissigno (type) Símbolo Argumento

Tabela 2.1: Tipologia peirceana para classificação dos signos

Da primeira tricotomia (ver fig. 2.3), da sua aparência ou do ponto de vista do repre-
sentamen, o signo em si mesmo pode ser:

• Qualissigno - “[...] é uma qualidade que é um signo. Não pode realmente agir
como signo até estar corporificado; mas a corporificação nada tem a ver com seu
caráter como signo” (CP 2.244).

• Sinsigno ou token - “[...] é uma coisa real existente ou evento que é um signo. Ele
pode ser apenas através de suas qualidades; desta forma ele envolve um qualissigno,
ou melhor, vários qualissignos” (CP 2.245).

• Legissigno ou type - “[...] é uma lei que é um signo. [...] Não é um objeto
único, mas um tipo geral [...]. Todo legissigno significa através de uma instância de
sua aplicação, o que deve ser chamada de sua réplica” (CP 2.246). Segundo Nöth
(1995b, pp. 79 - 80), na linguística, principalmente na área da linguística estatística,
o mais comum é a utilização do termo token no lugar de réplica.

Figura 2.3: Primeira tricotomia - ponto de vista do representamen. Elaboração do autor.

Da segunda tricotomia (ver fig. 2.4), das relações do representamen com seu objeto,
o signo pode ser:

• Ícone - “[...] é um signo que se refere ao objeto que ele denota meramente por
virtude de suas próprias características,[...], podendo tal objeto existir ou não” (CP
2.247).

40
• Índice - “[...] é um signo que se refere ao objeto que denota por virtude de ser
realmente afetado pelo objeto. [...] Como o índice é afetado pelo objeto, ele tem
necessariamente alguma qualidade em comum com o objeto (CP 2.248).

• Símbolo - “[...] é um signo que se refere ao objeto que denota por virtude de uma
lei, [...], que opera para fazer o símbolo ser interpretado como referência a tal objeto”
(CP 2.249).

Figura 2.4: Segunda tricotomia - ponto de vista das relações entre representamen e objeto.
Elaboração do autor.

Da terceira tricotomia (ver fig. 2.5), das relações entre representamen e interpretante
ou da natureza do interpretante, o signo pode ser:

• Rema - “[...] é um signo de possibilidade qualitativa” (CP 2.250).

• Dicente - “[...] é um signo, que, para seu interpretante, é um signo de real existência
(CP 2.251).

• Argumento - “[...] é um signo que, para seu interpretante, é um signo de lei.[...] É


um signo entendido como representante de seu objeto em seu caráter como signo”
(CP 2.252).

Figura 2.5: Terceira tricotomia - ponto de vista das relações entre representamen e inter-
pretante. Elaboração do autor.

Segundo Nöth (1995b, p. 93), como a constituição do signo requer a participação de


três elementos (representamen, objeto e interpretante) e considerando as três categorias
(primeiridade, secundidade e terceiridade), haveria a possibilidade combinatória de vinte e

41
sete classes distintas de signos (3 x 3 x 3 = 27). No entanto, por impossibilidade semiótica,
algumas dessas classes não podem existir. Um qualissigno, por exemplo, não pode ser
índice nem dicente, sendo sempre, necessariamente, icônico e remático. Da mesma forma,
um sinsigno não pode ser um símbolo e um índice não pode ser um argumento.
Com estas restrições, Peirce chega ao número de dez classes principais para acomodar
todas as ocorrências possíveis de signos (ver fig. 2.6)8 .

Figura 2.6: As dez classes de signos. Elaboração do autor com base em Queiroz (2004, p.
89).

Assim, da semiótica peirceana, obtêm-se as seguintes descrições para cada uma das
classes válidas de signos9 :
I. Qualissigno (icônico remático) é uma “qualidade qualquer, na medida em
que for um signo”. Como qualidade, pode apenas “denotar um objeto por [...]
similaridade”. Assim, só pode ser “um ícone” e, por ser “mera possibilidade
lógica”, deve ser, necessariamente, “interpretado como rema”. Exemplo: “uma sensação
de vermelho” (CP 2.254).
8
Entre parênteses, referências às categorias pressupostas nas outras categorias em negrito; a numeração
de I a X segue a mesma adotada por Peirce para designar as classes de signos.
9
Não obstante a efetividade do uso do tripod como representação das propriedades triádicas irredutíveis
do signo, adota-se nesta tese uma representação auxiliar para explicitar as composições possíveis entre
as tricotomias. Nesta moldura sígnica, as colunas representam respectivamente, da esquerda para a
direita, as tricotomias primeira, segunda e terceira, enquanto as linhas representam respectivamente, de
cima para baixo, as relações com as categorias da primeiridade, secundidade e terceiridade. As nove
marcações circulares representam os elementos dos signos: marcações não preenchidas (brancas) apenas
marcam posição no diagrama, marcações preenchidas (pretas) representam os elementos presentes naquela
classe de signos, sendo que, as marcações pretas mais baixas representam os elementos que dão nome à
classe, acima delas seguem as marcações que denotam envolvimento e governo.

42
II. Sinsigno icônico (remático) é todo fato ou ocorrência da experiência “na
medida em que alguma de suas qualidades faça-o determinar a ideia de um
objeto”. Sendo seu objeto um ícone, “só pode ser interpretado como um signo
de essência, ou rema”. O sinsigno icônico “envolve um qualissigno”. Exemplo: “um
diagrama individual” (CP 2.255).

III. Sinsigno indicial remático é todo evento ou objeto da “experiência


direta” que chama a atenção do intérprete para um “objeto pelo qual sua
presença é determinada”. Um sinsigno indicial remático “envolve [...] um
sinsigno icônico”. Exemplo: “um grito espontâneo” (CP 2.256).

IV. Sinsigno (indicial) dicente é todo evento ou objeto da “experiência direta


na medida em que é um signo”. Sendo assim, fornece “informação a respeito de
seu objeto” por ser efetivamente afetado por ele. Assim, é “necessariamente um
índice”. O sinsigno dicente envolve “um sinsigno icônico para corporificar a informação
e um sinsigno indicial remático para indicar o objeto” ao qual se refere a informação.
Exemplo: “um catavento” (CP 2.257).

V. Legissigno icônico (remático) é todo hábito, “tipo ou lei geral”, já que


“exige que cada um de seus casos corporifique uma qualidade definida que o
torna adequado para trazer à mente a ideia de um objeto semelhante”. O
“modo de ser” de um legissigno icônico “é o de governar réplicas, cada uma das quais
será um sinsigno icônico de um tipo especial”. Exemplo: “um diagrama, à parte sua
individualidade factual” (CP 2.258).

VI. Legissigno indicial remático é todo hábito, “tipo ou lei geral” que
exige que “cada um de seus casos seja realmente afetado por seu objeto”,
atraindo a atenção do intérprete para “esse objeto”. Cada uma das réplicas
de um legissigno indicial remático é “um sinsigno indicial remático de um tipo especial”
e seu interpretante “representa-o como um legissigno icônico”. Exemplo: “um pronome
demonstrativo” (CP 2.259).

VII. Legissigno indicial dicente é todo hábito, “tipo ou lei geral” que exige
que “cada um de seus casos seja realmente afetado por seu objeto de tal modo
que forneça uma informação definida a respeito desse objeto”. Um legissigno
indicial dicente “deve envolver um legissigno icônico para significar a informação e um
legissigno indicial remático para denotar a matéria dessa informação”. Suas réplicas são
“sinsignos dicentes de um tipo especial”. Exemplo: “um pregão de um mascate” (CP
2.260).

43
VIII. (Legissigno) símbolo remático é um signo que está conectado a seu
objeto “através de uma associação de ideias gerais de tal modo que sua réplica
traz à mente uma imagem” que “tende a produzir um conceito geral”. Isto se
deve a “certos hábitos ou disposições dessa mente”. Sua réplica é um “sinsigno indicial
remático de um tipo especial, pelo fato de a imagem que sugere à mente atuar sobre um
símbolo que já está na mente a fim de dar origem a um conceito geral”. Seu interpretante
“o representa como um legissigno indicial remático” e, às vezes, “como um legissigno
icônico”. Exemplo: “um substantivo” (CP 2.261).

IX. (Legissigno) símbolo dicente é “um signo ligado a seu objeto” por “uma
associação de ideias gerais e que atua como um símbolo remático, exceto pelo
fato de que seu pretendido interpretante representa o símbolo dicente como,
sendo, com respeito ao que significa, realmente afetado por seu objeto, de tal modo que
a existência ou lei que ele traz à mente deve ser realmente ligada com o objeto indicado”.
O símbolo dicente “envolve um símbolo remático [...] e um legissigno indicial remático”,
sendo que sua “réplica é um sinsigno dicente de um tipo especial” e seu interpretante o
“encara como um legissigno indicial dicente”. Exemplo: “uma proposição ordinária” (CP
2.262).

X. (Legissigno símbolo) argumento é “um signo cujo interpretante representa


seu objeto como sendo um signo ulterior através de uma lei, a saber, a lei
segundo a qual a passagem dessas premissas para essas conclusões tende a ser
verdadeira”. O objeto de um argumento “deve ser geral”, ou seja, o argumento “deve ser
um símbolo” e, como tal, “deve ser também um legissigno”. A réplica de um argumento
“é um sinsigno dicente” (CP 2.263). “O argumento é o signo do discurso racional, tal
como a forma prototípica de um silogismo” (NöTH, 1995b, p. 94).

Os termos governar e envolver utilizados por Peirce na descrição das dez classes
de signos indicam a possibilidade de uma interpretação hierárquica-estrutural de suas
relações e conexões. Nessa estrutura, signos de terceiridade podem governar signos de
secundidade através de leis gerais. Por outro lado, os signos de certas classes mais gerais
envolvem, ou incluem, signos de classes mais específicas (ver fig. 2.7).

A título de ilustração das relações entre as dez classes, pode-se revisitar o caso apre-
sentado por Pignatari. Naquele primeiro momento quando o autor caminha “sem que
nenhuma ideia lhe ocupe a mente de modo particular”, em “estado aberto de percepção
cândida”, ele está envolto em pura primeiridade sendo alcançado unicamente por qualis-
signos. Ao ter sua atenção apurada pelo raio de sol - sinsigno indicial remático por apontar
a existência de um anteparo que o reflete, envolve um sinsigno icônico remático caracte-
rístico da sua própria natureza como onda eletromagnética refletida - ele deixa o estado

44
Figura 2.7: Relações hierárquicas entre as dez classes de signos (setas com linhas cheias
representam inclusão e setas com linhas pontilhadas representam a ação de governar).
Elaboração do autor.

45
de primeiridade em direção ao “aqui-e-agora da secundidade”. Neste momento, o edifício
destacado do conjunto urbano se apresenta como um novo signo singular ancorando-o à
realidade - sinsigno indicial dicente por ser um dentre muitos e já incorporar alguma in-
formação a respeito de si. Sua atenção, no entanto, não permanece fixa por muito tempo
na simples percepção da singularidade e, finalmente, quando constata que a tal constru-
ção é um “arranha-céu de vidro” e que se insere num contexto arquitetônico específico,
sua mente engaja-se na terceiridade de uma cadeia semiótica de legissignos. Primeiro, o
arranha-céu de vidro que, sendo uma metáfora, é um legissigno icônico ou hipo-ícone (CP
2.276) que governa o sinsigno icônico que denota a própria construção; Segundo, o “sis-
tema criado por Mies van der Rohe, nos anos 20”, legissigno indicial dicente, pois aponta
um conjunto de leis que estabelecem o que pertence a esse contexto arquitetônico espe-
cífico; Terceiro, “que Mies, por seu lado, nada mais fez que desenvolver as possibilidades
construtivas do aço e do vidro”, legissigno símbolo argumento; e assim sucessivamente a
personagem vivencia o crescimento contínuo do signo original.

Ícone puro e hipoícone

Em várias passagens de sua obra, Peirce destaca um ou outro tipo de signo, aprofundando
certas relações entre as dez classes propostas. Para o andamento esta tese, a distinção
que ele faz entre o ícone puro e o que é denominado por hipoícone requer atenção.

Esta para os ícones se fez necessária pois, como um signo genuíno deve participar das
três categorias fenomenológicas, um ícone puro seria sempre uma mera possibilidade, ou
um signo não-comunicativo. Neste sentido, apenas serve para exibir a qualidade que o faz
significar, o que leva a um paradoxo: sendo um signo, necessariamente, deve participar da
tríade semiótica, sendo um ícone puro, participa apenas da primeiridade. Peirce descreve
esta questão como um caso de degeneração semiótica no qual, ao contrário dos signos
genuínos que participam da tríade completa, signos degenerados estariam reduzidos a
díadas ou mesmo a mônadas semióticas. Peirce considera tais casos como sendo modos de
semioticidade menos perfeitos. No entanto, como até mesmo os ícones “reais” apresentam
algum nível de convencionalidade sendo um fragmento de um signo mais completo e
influenciando a tríade semiótica, o campo da iconicidade não se restringe à degeneração
semiótica (NöTH, 1995a, pp. 121-127).

Para contornar este problema, Peirce desenvolveu o conceito de hipoícone para ca-
racterizar representações icônicas materiais que participam da realidade cotidiana. Esses
signos genuínos podem ser sinsignos icônicos ou legissignos icônicos. Peirce também uti-
liza as três categorias fenomenológicas para distinguir três modos de primeiridade com
base nos ícones, resultando em três graus de iconicidade e degeneração semiótica decres-

46
centes: quando o representamen do ícone é signo por mera qualidade, trata-se de uma
imagem; quando é signo devido às relações diádicas existentes entre suas próprias partes,
trata-se de um diagrama; e quando o representamen é signo porque mantem uma rela-
ção triádica em forma de paralelismo entre dois elementos constitutivos, trata-se de uma
metáfora (NöTH, 1995b, pp. 80-84).

Considerando a questão dos ícones puros e dos hipoícones, por motivo de simplifi-
cação ao longo da tese, não se fará distinção entre eles quando for utilizado o termo
qualissigno icônico remático, ou simplesmente qualissigno, que a rigor deveria ser utili-
zado exclusivamente para casos de iconicidade pura. Quando isto ocorrer, na verdade
tratar-se-á de uma referência genérica a certas característica dos processos perceptivos,
estando implicitamente considerada a questão da iconicidade exposta acima.

Por outro lado, levar em conta a diferenciação explícita entre ícones e hipoícones
se faz necessária na compreensão do que está em jogo na proposta de uma transposição
semiótica, ou mais precisamente, para se compreender o quê será transposto. Esta questão
é tratada a seguir.

Forma e significado

Na semiótica peirceana, preocupações com o conceito de forma recaem sobre a forma


dos signos, tema a ser considerado no contexto triádico do representamen (veículo do
signo), objeto (a quem o signo se refere) e interpretante (ideia invocada pelo signo). A
dicotomia tradicional entre forma vs. significado sugere que a forma se encontra apenas
no lado do representamen, no entanto, na moderna semiótica ela também é atribuída ao
objeto e ao interpretante. A definição de forma com relação ao significado pode levar
a três resultados: 1. forma qualitativa com significado, neste caso, forma e significado
são conceitos opostos complementares, pois ambos são necessários na constituição de um
signo, assim a forma designa o representamen, e significa o interpretante de um signo;
2. forma qualitativa sem significado, aqui forma e significado são opostos, mas a forma é
autônoma em relação ao significado já que ela pode existir como forma pura, uma forma
que não significa nada; e 3. forma semântica, em que forma e significado não se opõe, sendo
um termo mais geral que também é aplicável ao significado, ou seja, o significado possui
uma forma. Os dois primeiros casos se referem às características meramente materiais
de um fenômeno, enquanto o último se refere à forma do interpretante, à estrutura dos
conceitos. Dentre os três casos, o mais problemático é o segundo, pois a ideia de uma
forma pura sem significado, cria um paradoxo similar à questão do ícone puro: ou a forma
não tem significado e, consequentemente, não é um signo; ou é um signo, devendo ter um
significado (NöTH, 2002).

47
Na teoria peirceana, a solução para este novo paradoxo também passa pela questão
da iconicidade. Existe uma escala de iconicidade que vai do hipoícone, que compartilha
algumas características com seu objeto, ao ícone genuíno, similar ao seu objeto. Mas,
um ícone genuíno é mais do que meramente similar ao seu objeto, ele cumpre sua função
sígnica através de certas características que possui em si mesmo como objeto sensível,
ou seja, o ícone genuíno acaba sendo o seu próprio objeto, referindo-se a nada além
de si mesmo. Assim, a forma de um ícone genuíno também é seu objeto. Um ícone,
portanto, não diz respeito às formas que servem para representar objetos (referência), mas
ao fenômeno sígnico que evidencia as formas qualitativas (auto-referência). Iconicidade,
portanto, é uma questão de grau em que, entre o ícone puro e o hipoícone, a auto-
referencialidade está próxima do primeiro (Ibid.).

No caso da transposição semiótica, a forma possível de ser deslocada do campo bi-


ológico ao computacional diz respeito às formas qualitativas do fenômeno em sua po-
tencialidade, coincidindo com certo grau de auto-referencialidade e se aproximando dos
ícones puros. Por seu lado, a representação diagramática que será apresentada, carrega
elementos claros de significação genuína através de hipoícones.

Um intérprete para os signos

Neste ponto, tendo sido descritos o processo semiótico e a classificação dos signos, cabe
evidenciar que, para Peirce, as semioses não ocorrem de maneira independente. Para que a
ação do signo se estabeleça, faz-se necessária a presença de um intérprete, cuja mente seja
capaz de ser semioticamente afetada pelos signos. Mas, o que quer dizer Peirce quando
se refere a uma mente e, por consequência, ao pensamento? Uma primeira evidência de
sua posição não convencional pode ser constatada nesta passagem:

O pensamento não está necessariamente conectado a um cérebro. Ele


aparece no trabalho das abelhas, dos cristais e por todo o mundo pura-
mente físico; e ninguém pode negar que esteja realmente ali mais do que
as cores, as formas, etc., dos objetos realmente estão. [...] Não apenas
o pensamento está no mundo orgânico, como ali também se desenvolve.
Mas, assim como não pode haver um caso geral sem que instâncias o cor-
porifique, da mesma forma não pode haver pensamento sem signo.[...]
Admitindo-se que signos conectados devem ter uma quasi-mente, pode-
se ulteriormente declarar que não pode haver signos isolados. Além do
que, os signos precisam ao menos de duas quasi-mentes; um quasi-locutor
e um quasi-intérprete; e embora os dois sejam um (i.e., são uma mente)
no próprio signo, não obstante devem ser distintos. No signo eles estão ,

48
pode-se dizer,soldados. De modo semelhante, o fato de que toda evolu-
ção lógica do pensamento deve ser dialógica não é simplesmente um fato
da psicologia humana, mas sim uma necessidade da lógica. (CP 4.551)10

Assim, pensamento e mente não seriam atributos exclusivamente humanos, nem de-
veriam ser confundidos com consciência que, para Peirce, é nada além do que mero sen-
timento (feeling). Mente, para ele, é sinônimo de representação, e sua atuação sobre a
matéria ocorre por imposição de certas leis que ele chama de propósito, um tipo de causa-
lidade final que acaba sendo o cerne de seu conceito de mente. Existiriam, então, apenas
duas ações em todo o universo: uma ação diádica, mecânica ou dinâmica, e uma ação
triádica, inteligente ou sígnica. A primeira está relacionada diretamente à causalidade
eficiente, enquanto a segunda à causalidade final. Por fim, a causalidade final relaciona-se
diretamente com a tendência do universo em adquirir hábitos. Mas a causalidade final
não implica em ausência de causalidade eficiente, ao contrário, a primeira só pode ser
realizada através da segunda. Desta forma, onde quer que exista lei, regularidade e po-
tencialidade, existe também razão e racionalidade, e isto não deve pressupor consciência,
mas conhecimento incorporado. Neste contexto, o propósito humano seria apenas um
tipo específico de causalidade final (SANTAELLA, 1994)

Cabe aqui uma última observação, a ideia de causalidade final em Peirce, caracteri-
zada por aleatoriedade e irreversibilidade, difere radicalmente da metafísica Aristotélica11 ,
para a qual causalidade final estaria atrelada a certo propósito da natureza pautado pela
harmonia, perfeição ou “o bem”, e ambas não devem ser confundidas (HOFFMEYER,
2008, pp. 53-54):

Mas Aristóteles vê a própria causalidade formal como sendo guiada pela


causalidade final. E o que se evidencia aqui é uma metafísica de certo
modo questionável na qual o propósito da natureza é postulado como
harmonia, perfeição, ou o “bem”. [...] Na concepção peirceana de causa-
lidade final, não encontramos nada disto. Ao contrário, Peirce acredita
10
Thought is not necessarily connected with a brain. It appears in the work of bees, of crystals, and
throughout the purely physical world; and one can no more deny that it is really there, than that the
colors, the shapes, etc., of objects are really there. [...] Not only is thought in the organic world, but it
develops there. But as there cannot be a General without Instances embodying it, so there cannot be
thought without Signs. [...] Admitting that connected Signs must have a Quasimind, it may further be
declared that there can be no isolated sign. Moreover, signs require at least two Quasi-minds; a Quasi-
utterer and a Quasi-interpreter; and although these two are at one (i.e., are one mind) in the sign itself,
they must nevertheless be distinct. In the Sign they are, so to say, welded. Accordingly, it is not merely
a fact of human Psychology, but a necessity of Logic, that every logical evolution of thought should be
dialogic.
11
No sistema Aristotélico, quatro tipos de causas estão entrelaçadas e se complementam: causalidade
final (aponta uma meta ou objetivo), formal (define a essência das coisas), material (bases materiais) e
eficiente (causa ou origem do movimento) (LEROI, 2014, pp. 91-93).

49
no nível mais fundamental que aleatoriedade and irreversibilidade carac-
terizam a causalidade final. Assim sendo, a causalidade final peirceana
é algo bem diferente da causalidade final aristotélica, e não devem con-
fundidas.12

2.3 Lógica crítica

A lógica crítica tem como objeto de estudo os tipos de raciocínios. Tomando por base
as diferentes classes de signos, estuda as inferências ou argumentos que se estruturam
através dos processos semióticos totalizando três tipos de raciocínios: dedução, indução
e abdução13 (SANTAELLA, 2002, p. 3). Enquanto a dedução tem o caráter de uma
inferência necessária e a indução de uma inferência apenas provável, a abdução assume
o papel de uma mera possibilidade. De certa forma, indução (ou proposta de hipótese)
e abdução (testes empíricos desta proposta) seriam dois aspectos do que é considerado
tradicionalmente apenas por indução (STJERNFELT, 2011, p. 329). Tomando-se os
escritos de Peirce:

Existem outras subdivisões de, pelo menos, algumas das dez classes que
são de grande importância para a lógica. Um argumento é sempre enten-
dido por seu interpretante pertencer a uma classe geral de argumentos
análogos, tal classe, como um todo, tende para a verdade. Isto deve
ocorrer de três maneiras, dando origem a uma tricotomia de todos os
argumentos simples em deduções, induções e abduções. (CP 2.266)14

Sobre a dedução, Peirce esclarece que se trata de um argumento “necessário” cujo


“interpretante o representa como pertencendo a uma classe geral de argumentos possíveis
exatamente análogos” de tal forma que, se suas “premissas são verdadeiras”, terá “con-
clusões verdadeiras”; a dedução é “um método de produção de símbolos dicentes através
do estudo de um diagrama”; uma dedução “corolária” é aquela que “representa as condi-
ções da conclusão em um diagrama e retira da observação desse diagrama a verdade da
12
But Aristotle saw formal causation itself as guided by final causation. And at work here is a somewhat
questionable metaphysics in which natures’s purpose is posited as harmony, perfection, or the “good”. [...]
In the Peircean conception of final causes, we find none of this. Quite to the contrary, Peirce believes on
the most fundamental level that both randomness and irreversibility characterize final causes. Peircean
final causation therefore is a very different thing from Aristotelian final causation, and the two should
not be confused.
13
a abdução foi batizada alternativamente por Peirce como retrodução ou inferência hipotética (SE-
BEOK, 1983).
14
There are other subdivisions of some, at least, of the ten classes which are of greater logical impor-
tance. An Argument is always understood by its Interpretant to belong to a general class of analogous
arguments, which class, as a whole, tends toward the truth. This may happen in three ways, giving rise
to a trichotomy of all simple arguments into Deductions, Inductions, and Abductions.

50
conclusão”; uma dedução “teoremática”, por sua vez, é aquela que “realiza engenhosos
experimentos” no diagrama original, modificando-o e afirmando a “verdade da conclu-
são” pela observação do novo diagrama (CP 2.267). Importante notar que o conceito
de diagrama para Peirce refere-se a signos icônicos, ou seja, que preservam relações de
semelhança com seus objetos, o que não se resume apenas aos diagramas gráficos típicos
da engenharia, incluem-se aqui qualquer ícone cuja relação de semelhança com seu objeto
seja evidente (NöTH, 1995b, p.81), como numa equação algébrica. Peirce apresenta esta
questão da seguinte forma:

Todo raciocínio necessário é, sem exceção, diagramático. Ou seja, cons-


truímos um ícone de nosso estado hipotético das coisas e procedemos à
sua observação. Esta observação nos leva a suspeitar que algo é verdade,
o que podemos ou não formular com precisão, e passamos a indagar se
é verdadeiro ou não. Para este propósito é necessário fazer um plano de
investigação e esta é a parte mais difícil de toda a operação. Não apenas
temos de selecionar as características relevantes do diagrama passíveis
de observação, mas também é de grande importância retornar várias
vezes a certas características. De outra forma, mesmo que nossas con-
clusões possam estar corretas, elas não serão as conclusões particulares
que procuramos. Mas a maior habilidade consiste na consideração de
abstrações adequadas. Com isto, considero uma tal transformação dos
nossos diagramas que características de um diagrama podem aparecer
em outro como coisas. (CP 5.162)15

A indução se refere a um tipo de inferência que forma “símbolos dicentes relativos


a uma questão definida”; neste caso, o interpretante do argumento não é capaz de “pro-
porcionar, a partir de premissas verdadeiras, resultados aproximadamente verdadeiros na
maioria dos casos e no decorrer da experiência”; no longo prazo, porém, ao persistir esse
método, tende-se chegar à verdade ou “a um ponto sempre mais perto da verdade” (CP
2.269).
Finalmente, a abdução é um argumento que forma uma “predição geral sem nenhuma
certeza positiva de que ela se verificará”; justifica-se a abdução por ser a “única esperança
15
All necessary reasoning without exception is diagrammatic. That is, we construct an icon of our
hypothetical state of things and proceed to observe it. This observation leads us to suspect that something
is true, which we may or may not be able to formulate with precision, and we proceed to inquire whether
it is true or not. For this purpose it is necessary to form a plan of investigation and this is the most
difficult part of the whole operation. We not only have to select the features of the diagram which it
will be pertinent to pay attention to, but it is also of great importance to return again and again to
certain features. Otherwise, although our conclusions may be correct, they will not be the particular
conclusions at which we are aiming. But the greatest point of art consists in the introduction of suitable
abstractions. By this I mean such a transformation of our diagrams that characters of one diagram may
appear in another as things.

51
possível de regular nossa conduta futura” a partir de experiências anteriores bem sucedidas
(CP 2.270).
Peirce utiliza-se de um exemplo bastante significativo que demonstra das diferenças
fundamentais entre os três tipos de inferências expostas acima. Trata-se do caso dos sacos
de feijão que é enunciado da seguinte forma (CP 2.622-23):

• DEDUÇÃO - Inferência necessária


Regra: Todos os feijões deste saco são brancos.
Caso: Esses feijões são provenientes deste saco.
Portanto, resultado: Esses feijões são brancos.

• INDUÇÃO - Inferência apenas provável


Caso: Esses feijões são provenientes deste saco.
Resultado: Esses feijões são brancos.
Portanto, regra: Todos os feijões deste saco são brancos.

• ABDUÇÃO - Inferência meramente possível


Regra: Todos os feijões deste saco são brancos.
Resultado: Esses feijões são brancos.
Portanto, caso: Esses feijões são provenientes deste saco.

Qualquer argumento, para Peirce, é um legissigno simbólico. Neste caso, cada ar-
gumento é composto por três proposições: regra, caso e resultado. Cada uma dessas
proposições, no entanto, também é um signo (legissigno simbólico dicente). Permutando-
se essas proposições, chegam-se aos três argumentos acima. Assim, cada argumento,
manifestado como um silogismo, é um signo relacionado a uma lei geral que determina
que a passagem das premissas à conclusão tende à verdade (SEBEOK, 1983, p.9).

2.4 Resumo

Este capítulo buscou evidenciar alguns conceitos fundamentais da filosofia de Charles


Sanders Peirce que servirão de base teórica para o desenvolvimento dos próximos capítulos
sobre biossemiótica e autômatos finitos construídos por isomorfismo diagramático. Segue,
em resumo, o que se procurou evidenciar aqui, bem como, o modo pelo qual a teoria geral
dos signos direcionará a formalização da transposição semiótica:

1. O universo é permeado por signos que dependem de um intérprete para serem cor-
porificados. A mente interpretadora engaja-se em processos sígnicos (semioses),
corporificando tais signos e sendo afetada por eles.

52
2. Mentes não são atributos exclusivamente humanos, onde houver ação inteligente
(ação lógica resultante de hábitos adquiridos) haverá uma mente e, diferentes tipos
de mentes serão afetadas de maneira peculiar pelos signos.

3. A forma de ação dos signos é essencialmente triádica, o representamen é um primeiro


que representa algo - um segundo, seu objeto - para uma mente. Esta representação
é sempre parcial e provoca no intérprete um signo mais evoluído, o interpretante.

4. Há dez classes principais de signos possíveis, divididas em três categorias, primeiri-


dade (possibilidade), secundidade (instanciação) e terceiridade (lei geral).

5. Há três subcampos semióticos envolvidos nesta tese, cada um deles considera a ação
dos signos em diferentes tipos de mentes. Biossemiótica, refere-se aos processos
sígnicos presentes nos fenômenos biológicos; vida artificial do tipo soft, cuja mente
interpretativa é corporificada nos computadores modernos; e diagramatologia que
se refere à mente humana e sua capacidade de estabelecer conhecimento através de
diagramas lógicos.

6. Os diagramas lógicos que serão desenvolvidos nos próximos capítulos pretendem evi-
denciar algum tipo de isomorfismo entre biossemioses e constructos computacionais
para estabelecer o processo efetivo de transposição semiótica dos casos estudados
pela vida artificial. Cada um dos próximos capítulos tratará dos signos peculiares
de cada um desses sub-campos.

53
Capítulo 3

Biossemiótica

Este capítulo trata da primeira etapa da transposição semiótica, cujo objetivo é o de


representar diagramaticamente os processos biossemióticos envolvidos nos fenômenos bi-
ológicos. Segundo Stjernfelt (2011, 102-105), o processo de pensamento diagramático é
iniciado com a concepção de um primeiro diagrama que exibe as condições antecedentes
do objeto em estudo, determinando um “interpretante simbólico inicial”. Este primeiro
diagrama determina um estado de curiosidade no intérprete, levando-o à exploração de
novas possibilidades diagramáticas através da construção, observação e manipulação de
novos diagramas que refinam o diagrama inicial até atingir uma conclusão (ver fig.3.1).
Este processo envolve os três tipos de inferências lógicas, primeiro constituindo um núcleo
racional dedutivo; este núcleo, então, é submetido a um processo de tentativas e erros
baseados em abduções e testes indutivos.

Figura 3.1: Processo de pensamento diagramático. Elaboração do autor com base em St-
jernfelt (2011, p. 104).

Com relação ao objeto de estudo ao qual o pensamento diagramático será aplicado,


o termo biossemiótica teria sido criado por Friedrich S. Rothschild em 1962, porém a
definição deste campo de pesquisa se deve principalmente ao papel desempenhado por
Thomas A. Sebeok (KULL et al., 2011). A tese de Sebeok é de que os sistemas vivos são
constituídos como sistemas sígnicos, em outras palavras, que a semiose é o que distingue
tudo o que é animado do que é inanimado (KULL; EMMECHE; HOFFMEYER, 2011).
A tese de Sebeok alinha-se à concepção semiótica peirceana, pelo menos em parte, pois
não considera a possibilidade de sistemas fisiossemióticos que, necessariamente, deve fazer
parte de uma teoria geral dos signos. O escopo da biossemiótica para Sebeok pode ser
resumido da seguinte forma:

É importante perceber que apenas coisas vivas e suas extensões inani-


madas experimentam semioses, que assim se apresenta como atributo
necessário, se não suficiente, para a vida. “Coisas vivas” significam não
apenas os organismos pertencentes a um dos cinco reinos, consistindo
de Monera, Protista, Animal, Vegetal, e Fungi, mas também os seus
componentes desenvolvidos hierarquicamente, começando pelas células,
a unidade semiótica mínima, que se estima corresponder a algo em torno
de cinquenta genes, ou mais ou menos milhares de bilhões de átomos in-
trincadamente organizados. Os vírus foram omitidos pois não são células
nem tampouco agregados celulares. (SEBEOK, 1994)1

3.1 O enfoque biossemiótico

A hipótese teleológica, de raiz grega télos (finalidade, propósito), é tema controverso na


biologia contemporânea. Sua consideração irrestrita implicaria aceitar a ideia de processos
biológicos ocasionados por algum tipo de vitalismo. Hoffmeyer (2011) argumenta que a
solução encontrada pela filosofia da biologia recai no conceito de função:

[...] Obras foram produzidas para solucionar o problema de como justi-


ficar o conceito de função dentro de um enquadramento não-teleológico.
É aqui onde entra a seleção natural, pois ela tenderá a otimizar a ca-
pacidade das espécies de enfrentar os desafios funcionais de seus nichos
ecológicos. Funcionalidade é exatamente o que a seleção natural supos-
tamente produz.2
1
It is important to realize that only living things and their inanimate extensions undergo semiosis,
which thereby becomes uplifted as a necessary, if not sufficient, criterial attribute of life. By “living
things” are meant not just the organisms belonging to one of the five kingdoms, consisting of the Monera,
Protoctista, Animalia, Plantae, and Fungi, but also their hierarchically developed component parts,
beginning with a cell , the minimal semiosic unit, estimated to correspond to about fifty genes, or about
one thousand billion ( 1 012) intricately organized atoms. (Viruses are omitted because they are neither
cells nor aggregations of cells.
2
[...]Volumes have been produced to solve the problem of how to justify the concept of function inside
a non-teleological frame of understanding. And this is where natural selection comes in, for natural
selection will tend to optimize the capacity of species to meet the functional challenges of their ecological
niche conditions. Functionality is exactly what natural selection is supposed to produce.

55
Em seguida, Hoffmeyer procura demonstrar que o funcionalismo não resolve sufici-
entemente o problema pois, quando mudanças ambientais exigem a superação de novos
desafios por parte dos organismos, a suposta existência de mecanismos latentes que aten-
dem às eventuais novas funções acabam reforçando o caráter teleológico do processo. Os
darwinistas, no entanto, enfrentam este argumento afirmando que a adaptação não é ex-
plicada pelas consequências que acarretarão aos descendentes, mas pelas alterações que já
causaram às populações antecessoras, o que não estaria em conflito com o paradigma não-
teleológico. Mas, não seria este o caso de efeitos antecipando-se às causas? Neste ponto,
Hoffmeyer conclui que as funções biológicas são contextuais e atreladas a certa historici-
dade da vida na medida em que sua continuidade depende da habilidade de aprendizagem,
pois estratégias bem-sucedidas do passado devem ser “lembradas”, permitindo aos descen-
dentes lidarem com os mesmos desafios. Esta capacidade de aprendizagem, apesar de se
manifestar no indivíduo, é resultado das interações semioticamente controladas entre mi-
lhões e milhões de organismos, e entre estes e o meio ambiente, configurando um processo
de agenciamento interpretativo coletivo. Desta forma, a população é que seria a unidade
evolutiva, e a seleção natural não poderia explicar tal agenciamento, ao contrário, este é
que estaria na base da seleção natural.
Neste contexto, o aspecto coletivo da evolução seria reflexo da sucessão de gerações,
cada uma delas apresentando um conjunto de possibilidades genéticas (gene pools ou
kimfloks3 ). A reprodução, então, causaria alterações por recombinação genética nos in-
divíduos dando origem a novos conjuntos de possibilidades a cada geração. Quando o
ambiente mantem suas características, os indivíduos mais adaptados permanecem, re-
forçando o conjunto genético daquela geração; quando alterações ocorrem, os indivíduos
capazes de ações de aprendizagem em direção a novos hábitos (eventualmente, os mes-
mos indivíduos que sucumbiriam nas condições anteriores) teriam maiores probabilidades
de sobrevivência, alterando o conjunto genético da próxima geração. Assim, o aparente
aspecto teleológico mostra-se falso. O que existe, na verdade, é o resultado da ação
dos signos neste processo de aprendizagem no aqui e agora sem qualquer propósito fu-
turo (HOFFMEYER, 2008, pp. 115-117). Nas palavras de Hoffmeyer:

[...] A linhagem assim, através de seus kimfloks, incessantemente in-


vestiga as condições do nicho ecossemiótico e através dessa atividade
automaticamente provoca a formação de novos interpretantes na forma
de um padrão reprodutivo concreto como manifestado pelo kimflok da
nova geração.4
3
Do dinamarquês, kim=semente, flok=grupo.
4
[...] The lineage thus, by way of its kimfloks, incesantly scrutinizes the ecosemiotic niche conditions
and through this activity automatically brings about the formation of new interpretants in the form of a
concrete reproductive pattern as manifested by the next generation’s kimflok.

56
A abordagem biossemiótica deixa de considerar células e organismos como meros aglo-
merados moleculares complexos e os assume, primeiramente, como veículos dos signos em
processos de informação e interpretação (biossemioses) através de vários níveis de com-
plexidade (fenótipo, genótipo e ambiente). As biossemioses não podem ser reduzidas a
simples relações diádicas ou mecânicas (causalidade eficiente), seu caráter interpretativo
aponta, de fato, para relações triádicas (causalidade final). Assim, em última instância,
certamente os organismos são compostos moleculares, mas devem ser considerados além
de sua ação bioquímica (EMMECHE, 2011). Neste contexto, tanto o desenvolvimento dos
indivíduos (ontogênese) quanto a evolução das espécies (filogênese) dependem do fluxo de
informação no sistema, não no sentido matemático ou probabilístico, mas considerando-se
informação como o resultado da capacidade das entidades biológicas em responder sele-
tivamente às diferenças percebidas ao seu redor. Não apenas animais e plantas estariam
envolvidos em tal dinâmica, mas também órgãos, tecidos e células seriam veículos para o
processamento de informação (HOFFMEYER; EMMECHE, 1991).

Levando-se em conta as categorias peirceanas da primeiridade, secundidade e terceiri-


dade, uma entidade biológica imersa em seu ambiente “percebe” o entorno diferenciando
objetos de interesse (figuras) do emaranhado de outros objetos não relevantes (fundo).
No exato momento em que se dá a diferenciação entre figura e fundo, condição inicial
do processo de informação, ocorre a passagem da mera possibilidade da primeiridade
para o aqui e agora da secundidade. Ao final do processo, pode ocorrer a aquisição de
um novo conhecimento, novo hábito ou aprendizagem decorrente do fluxo informacional.
Este último efeito, então, seria uma ocorrência no âmbito da terceiridade.

3.2 O caso da Aplysia californica

A dinâmica de aprendizagem pode ser encontrada no comportamento de animais bas-


tante simples, como, por exemplo, no caso da Aplysia californica tal qual descrito por
Kandel (KANDEL et al., 1970; KANDEL, 2004; KANDEL; HAWKINS; BAILEY, 2006;
KANDEL; HAWKINS; COHEN, 2006). A aplísia é uma espécie de lesma marinha cujo
comportamento é controlado por um conjunto relativamente pequeno de células nervosas
(aproximadamente 20 mil, em sua maioria, situadas em nove gânglios). Os caminhos
neurais subjacentes à sua capacidade de aprendizagem e memória foram extensamente
estudados e mapeados por Kandel, principalmente com relação a dois processos inter-
conectados: habituação e sensibilização. Quando um animal imaturo é submetido a um
toque leve em seu sifão (órgão responsável por expelir água e resíduos), ele reage retraindo
sua guelra (órgão vital do processo respiratório), configurando uma reação de defesa. No

57
entanto, a repetição deste evento faz com que o animal aprenda que o leve toque não traz
ameaça efetiva, habituando-se a ele após certo tempo de treinamento. A memória deste
estado pode durar de poucas horas a vários dias, dependendo da dinâmica do experimento,
configurando modalidades de memória de curto e longo prazos.
Em seu habitat, este aprendizado permite ao animal concentrar-se nas atividades es-
senciais para sua sobrevivência, ignorando os “ruídos” do ambiente. Por outro lado,
animais experientes (habituados) quando expostos a um novo evento realmente traumá-
tico (em laboratório, um choque em sua cauda) voltam a reagir de maneira defensiva
a qualquer evento posterior, mesmo com relação aos mesmos eventos inócuos já experi-
enciados. Assim, ele altera seu estado de habituado para sensibilizado, o que permite
colocar-se em alerta mediante possibilidades de ameaça. Este padrão alternado entre ha-
bituação e sensibilização faz com que o animal desenvolva a capacidade de transitar pelo
ambiente, ora em estado de “distração” sem se preocupar com eventos insignificantes e
concentrando-se em atividades “produtivas” (alimentando-se, reproduzindo-se etc.), ora
em estado de alerta (defesa e fuga), ambos necessários à sua sobrevivência.
Neste ponto, considerando-se as dez classes de signos de Peirce apresentadas no capí-
tulo anterior, pode-se arriscar uma análise semiótica preliminar do processo de aprendiza-
gem da Aplysia californica, representando tal processo em alguns diagramas iniciais5 . A
classificação exata e inquestionável dos signos envolvidos apresenta certa dificuldade e não
deve ser a preocupação principal aqui. O que se busca, realmente, é encontrar elementos
suficientes para iniciar o processo de pensamento diagramático. Como o próprio Peirce
diz:

[...] É um problema interessante dizer a que classe pertence um dado


signo, visto que precisam ser levadas em consideração todas as circuns-
tâncias do caso. Mas raramente se exige grande exatidão, pois se não se
localiza com precisão o signo, facilmente se chega bastante perto de seu
caráter para qualquer propósito normal da lógica. (CP 2.265)6

A análise abaixo apresenta uma possível correspondência entre as dez classes de signos
de Peirce e os resultados alcançados pelos experimentos de Kandel. Consideram-se, aqui, o
5
Quando Kandel se refere aos processos de aprendizagem relativos à habituação e sensibilização da
aplísia, ele considera um tipo específico de conhecimento adquirido não relacionado com a memória cons-
ciente. Segundo ele (KANDEL, 2006, p. 151), o que usualmente se entende como memória consciente
é chamada de memória explícita (ou declarativa). A memória explícita é a recordação consciente de
pessoas, lugares, objetos, fatos e eventos. A memória inconsciente é chamada atualmente de memória im-
plícita (ou procedural). Essa é a memória que subjaz à habituação, à sensibilização e ao condicionamento
clássico
6
[...] It is a nice problem to say to what class a given sign belongs; since all the circumstances of the
case have to be considered. But it is seldom requisite to be very accurate; for if one does not locate the
sign precisely, one will easily come near enough to its character for any ordinary purpose of logic.

58
processo de habituação a eventos inócuos e a aprendizagem do caráter ameaçador de outros
eventos através da sensibilização. Desta forma, são identificados cinco momentos distintos
(ou estados) envolvidos na aprendizagem de um novo comportamento, ou mudança de
hábito, por parte da aplísia:

(I) Animal em estado de distração: neste momento, a aplísia transita pelo am-
biente sem que qualquer estímulo a distraia de seu propósito primário que pode ser, por
exemplo, o de encontrar alimento. Com exceção dos signos que atuam em conformidade
com este propósito, todo o restante ao seu redor apresenta-se em estado de primeiridade.
Inúmeros qualissignos formam um quadro de fundo indistinto, enquanto o animal, de certa
forma, permanece alheio a qualquer estímulo que possa desviá-lo da busca por satisfazer
sua necessidade premente (ver fig. 3.2);

Figura 3.2: Animal acostumado aos estímulos de seu habitat. Elaboração do autor.

(II) Percepção de um evento: Por algum motivo — uma diferença de tonalidade,


um ruído dissonante ou qualquer outro fato trivial — a atenção da aplísia é direcionada
a algo. O animal deixa o estado de primeiridade, entrando em secundidade, ou seja, uma
figura se destaca do fundo. Isto, deve ocorrer por ação de legissignos icônicos corporifica-
dos em suas réplicas (sinsignos icônicos). Esta percepção pode desencadear dois possíveis
efeitos (ver fig. 3.3). Primeiro, a causa do estímulo pode ser ignorada, simplesmente
por não ser responsável por um estímulo suficientemente relevante para que o animal o
reconheça, então, a aplísia retorna ao momento de distração anterior; segundo, o estímulo
pode merecer um esforço de reconhecimento, atingindo o momento III.

Figura 3.3: Animal percebe algo. Elaboração do autor.

59
(III) Reconhecimento de um evento: Neste momento, a figura destacada do
fundo pode ser reconhecida como algo inócuo ou ameaçador de acordo com as experiên-
cias prévias do animal. Neste caso, dois efeitos podem ocorrer, de acordo com o grau
de periculosidade que se apresenta. Sendo o encontro reconhecido como inofensivo, legis-
signos indiciais remáticos estariam envolvidos, atualizados em réplicas do tipo sinsigno
indicial remático, e o animal pode simplesmente ignorar o evento — considera-se aqui
que a ausência de um interpretante dicente aponta para a ausência de nova informação
denotando conhecimento prévio, e a ausência de relações simbólicas de periculosidade,
que teriam sido aprendidas anteriormente, denota tratar-se de algo inofensivo. Por outro
lado, tendo reconhecido o evento como ameaça, a ação de legissignos simbólicos remáticos,
também atualizados em sinsignos indiciais remáticos, faz-se presente. Neste caso, apesar
de nenhuma nova informação ser apresentada (ausência do caráter dicente), há o reco-
nhecimento simbólico de ameaça, relação estabelecida por experiências prévias, fazendo
o animal fugir. Porém, há uma terceira possibilidade: o evento pode não ser reconhecido,
tratando-se de um evento inédito. Neste caso, atinge-se o momento IV, ocasionando tam-
bém uma reação de fuga instintiva, mas uma fuga não decorrente do reconhecimento de
perigo, e sim pelo desconhecimento do que se apresenta (ver fig. 3.4).

Figura 3.4: Reconhecimento de eventos já experienciados, ou desconhecimento de novos


eventos. Elaboração do autor.

(IV) Aprendizagem: O momento quatro é atingido mediante um evento desconhe-


cido para o animal, uma diferença incomum na luminosidade, a presença de alguma nova
espécie no local, ou mesmo um toque mais acentuado no sifão causado por uma planta
marinha, semelhante aos estímulos impostos pelos experimentos de Kandel. A reação
imediata e instintiva para qualquer situação deste tipo é a fuga. Isto deve ocorrer pela

60
ação de legissignos indiciais dicentes ou legissignos simbólicos dicentes, ambos atualizados
em réplicas do mesmo tipo. A reação instintiva pode ser interpretada como: se há algo
novo (dicente), e não se sabe o que é (ausência de símbolos de perigo), melhor fugir. Se
este estímulo desconhecido não se repetir constantemente, a aplísia não aprenderá nada
a respeito dele e, no futuro, apresentará a mesma reação diante de uma eventual ocor-
rência semelhante. Isto acontece porque a reação decorrente do estímulo único deve-se
apenas às mudanças momentâneas na força sináptica dos neurônios envolvidos. Para que
haja um aprendizado duradouro (memória de longo prazo) é necessário que, além dessas
alterações, ocorra a síntese de novas proteínas, e este é um processo genético. Então,
considerando que o novo estímulo fará parte do cotidiano daquele ecossistema — devido
a alteração permanente da luminosidade, presença definitiva de novas espécies ou cresci-
mento de plantas marinhas —, sua repetição proporcionará, no princípio, a aquisição de
memória de curto prazo e, posteriormente, na sua atualização para uma memória de longo
prazo. Aqui, há dois resultados possíveis. Primeiro, se a fuga não for acompanhada por
sinais de confirmação do sentido ameaçador do evento, tem-se a ação de legissignos indi-
ciais dicentes, cujo caráter dicente enfraquecerá à medida que o evento se repete, levando
o animal a se habituar com este tipo de estímulo sem que qualquer aprendizado simbólico
se estabeleça. Segundo, se a fuga for acompanhada por algum sinal que reforce o caráter
ameaçador do encontro, tem-se a ação de legissignos simbólicos indiciais, cuja recorrência
levará à sensibilização e consequente finalização do processo de aprendizagem represen-
tado no momento V (ver fig. 3.5). Desta forma, a habituação se encerra no momento IV,
tornando-se um conhecimento tácito não mediado simbolicamente, enquanto a sensibili-
zação necessita de uma referência simbólica para ser concretizada. Isto ocorre pois, como
apresenta Hoffmeyer (1996, pp. 1-10), haveria uma impossibilidade na simbolização da
inexistência de algo, ou da ideia de “não”, no mundo biológico, podendo-se considerar que
apenas aspectos positivos seriam passíveis de simbolização por animais através de certos
aspectos da linguagem corporal. Em suas palavras:

A linguagem corporal pode rejeitar [...], ou pode dispensar [...], mas não
pode negar. Ela não pode expressar a ideia de que não está nevando,
que não está chovendo, de que não há um lesma [ou qualquer outra coisa
que denote, por exemplo, perigo], ou de que não existe um país chamado
Espanha [...]. (HOFFMEYER, 1996, p. 7)7 .

Portanto, considera-se, aqui, que apenas situações de perigo verdadeiro são simboli-
zados no processo de sensibilização, enquanto a situação de “não perigo” é aprendida por
7
Body language can refuse [...], or it can dismiss [...], but it cannot deny. It cannot express the idea
that it is not snowing, that it is not raining, that there is no snail, or that there is no country called
Spain [...].

61
ação de signos não simbólicos durante o processo de habituação.

Figura 3.5: Processo de aprendizagem resultando em habituação ou encaminhamento do


momento V (sensibilização). Elaboração do autor.

(V) Conclusão: finalmente, o processo é concluído e a aplísia aprende a lidar com o


novo estímulo, incorporando um novo hábito. Assim, quando houver um encontro futuro
com eventos do mesmo tipo, tendo sido ele simbolicamente incorporado ao conjunto de
eventos perigosos ou apenas tomado como algo inofensivo, entram em jogo as possibilida-
des apresentadas nos momentos I, II e III, acima. Os indivíduos mais capazes de realizar
o processo de aprendizagem adaptam-se às alterações ambientais, isto faz com que seus
genes tenham maior probabilidade de compor o conjunto genético da população futura.
(ver fig. 3.6).

Figura 3.6: Finaliza-se o processo de aprendizagem incorporando um novo hábito. Ela-


boração do autor.

Alguns termos utilizados nesta análise preliminar — aprendizagem, símbolo, argu-


mento, conclusão, dentre outras — remetem, de maneira geral e cotidiana, a ações e
elementos relacionados com a experiência humana. Desta forma, devem ser considerados
aqui num sentido bastante genérico apenas como correlatos de tal experiência. Obvia-
mente, ao se considerar que tenha ocorrido algum tipo de conclusão que levou a algum

62
grau de aprendizado no mundo da aplísia, e que relações simbólicas estejam envolvidas,
apenas se afirma que a ação de signos de certo tipo devem resultar em interpretantes
correspondentes, mas de acordo com as capacidades e peculiaridades do intérprete.
Uma outra observação necessária sobre termos utilizados refere-se à palavra informa-
ção. Nesta tese, ela é utilizada no sentido que Peirce a concebia:

[...] A teoria da informação de Peirce não considera informação em ter-


mos de probabilidade de ocorrência de sinais, palavras, ou sentenças em
declarações reais. Em vez de probabilidade, calcula-se as quantidades
lógicas de extensão e intensão de símbolos. Além disso, não apenas cal-
cula o valor da informação real convertida através de novas proposições
informativas, mas também da informação acumulada pelas implicações
que os símbolos adquirem ao longo de sua história. Portanto, é tanto
uma teoria da aquisição de conhecimento quanto uma teoria do cresci-
mento do símbolo.[...] Um termo tem tipicamente a forma gramática de
um nome ou de uma frase adjetiva. Ele denota uma classe (geral) de
objetos reais ou imaginários. Como os signos, cuja denotação é geral
referindo-se a classes de objetos, termos são símbolos. [...] A extensão
de um termo consiste nos objetos que denota. [...] Quantidade é uma
medida da extensão de um símbolo.[...] Qualidade relaciona-se com a
intensão de um símbolo.[..] Enquanto a intensão de um símbolo aumenta
com o número de características atribuídas a ele, sua extensão aumenta
com o número de coisas às quais o símbolo é aplicável. (NöTH, 2012)8

Assim, considerando-se o momento III, quando algo do mundo externo insiste em se


apresentar, as experiências anteriores vão determinar se aquilo será interpretado como algo
perigoso, neutro ou desconhecido, de acordo com o tipo de signo que mediará o encontro:
1. Sendo algo reconhecido como perigoso, pode-se entender que há um elemento simbólico
envolvido, uma marca, uma conduta etc, que tenha sido apreendido como representante
do fator de risco — neste caso, legissignos simbólicos remáticos estariam envolvidos; 2. O
8
[...]Peirce’s information theory does not conceive of information in terms of probabilities of the oc-
currence of signals, words, or sentences in actual utterances. Instead of probabilities, it calculates the
logical quantities of extension and intension of symbols. Furthermore, it does not only calculate the value
of the actual information conveyed through new informative propositions but also information as it has
accumulated through the implications that symbols acquire in the course of their history. It is, hence,
both a theory of knowledge acquisition and a theory of the growth of symbols.[...] A term has typically
the grammatical form of a noun or an adjective phrase. It denotes a (general) class of real or imaginary
objects. As signs, whose denotation is general, referring to classes of objects, terms are symbols. [...]
The extension of a term consists of the objects denoted by it. Its intension consists of the characteristics
ascribed to it in the form of predicates. [...] Quantity is a measure of the extension of a symbol.[...]
Quality is a matter of the intension of a symbol.[..] While the intension of a symbol increases with the
number of characteristics attributed to it, its extension increases with the number of things to which the
symbol is applicable.

63
reconhecimento da neutralidade, por seu lado, denota tanto a ausência do caráter dicente
quanto a ausência do caráter simbólico — encontro regido pela ação de legissgnos indiciais
remáticos; 3. Finalmente, sendo algo desconhecido, o caráter dicente está presente e o
simbólico ausente — ação de legissignos simbólicos remáticos. Em outras palavras, e
considerando o fluxo informacional, algumas ações comparativas devem ocorrer por ação
dos signos envolvidos, primeiro com relação à classe geral de objetos já conhecidos pela
aplísia, caracterizado por grande extensão e baixa intensão. Se esta primeira comparação
resulta em reconhecimento, significa que nenhuma informação real pode ser convertida e
uma nova comparação deve ocorrer, agora em busca do reconhecimento da existência de
alguma correspondência simbólica que denote perigo, uma classe de objetos mais restrita
do que a anterior, de menor extensão e maior intensão. Se este segundo reconhecimento
for positivo o animal foge. Finalmente, haveria uma terceira possibilidade quando a
primeira comparação resulta em desconhecimento, levando a aplísia ao momento IV de
aprendizagem através da conversão de informação real. Neste caso, ao final do processo,
a extensão da classe geral de objetos conhecidos teria aumentado e, caso a conclusão
fosse em favor da periculosidade do objeto, ocorreria o aumento da intensão da classe dos
objetos perigosos.

3.3 Umwelt e os vários níveis biossemióticos

A análise semiótica do fenômeno de aprendizagem da Aplysia californica coloca em evi-


dência o papel determinante da interface organismo-ambiente como iniciador do fluxo de
informação que leva à aquisição das memórias de curto e longo prazos. Na teoria bios-
semiótica de Jakob von Uexküll (1864-1944), ou teoria da significação biológica, o termo
Umwelt define tal relação, assumindo que o objeto de estudo da biologia não pode ser
considerado separadamente do seu segmento ambiental, metaforicamente, uma espécie de
bolha que envolve cada indivíduo e que determina todas as suas possibilidades de percep-
ção e atuação, segundo as capacidades específicas dos órgãos sensores e efetores de cada
espécie:

[...] Todos os animais, do mais simples ao mais complexo, estão ajus-


tados dentro de seus mundos únicos [Umwelts] com igual completude.
Um mundo simples corresponde a um animal simples, um mundo bem
articulado a um [animal] complexo. (UEXKüLL, 1934)9
9
[...] All animals, from the simplest to the most complex, are fitted into their unique worlds with equal
completeness. A simple world corresponds to a simple animal, a well-articulated world to a complex one.

64
O conceito de Umwelt aponta para uma abordagem sistêmica considerando a interação
do organismo com seu entorno como uma inter-relação em um todo maior, negando tanto
o objetivismo positivista quanto o subjetivismo idealista (UEXKüLL, 2004). O animal é,
portanto, uma entidade situada que corporifica, parcialmente, os signos provenientes dos
objetos presentes no ambiente segundo as características da sua espécie.

Uexküll (UEXKüLL, 1934, pp. 5-13), representa esta relação através de um diagrama
denominado círculo funcional. Nele, aparecem dois campos, o perceptual (perceptual
field) e o operacional (operational field). O objeto ou portador da significação (meaning-
carrier) e o sujeito ou receptor da significação (meaning-receiver) estão dinamicamente
inter-relacionados através desses dois campos. O objeto é tanto portador da pista per-
ceptual (perceptual cue carrier) quanto portador da pista operacional (operational cue
carrier). Assim, nesta dinâmica, o objeto fornece dois tipos de pistas, perceptiva (per-
ceptual cue) e operacional (operational cue) que atuam em seus respectivos campos. O
animal percebe o objeto através da captação de um sinal perceptivo (perceptual sign) que
é traduzido em pista para o seu órgão perceptual (perceptual organ). Este órgão está
conectado com seu órgão operacional (operational organ) atavés de uma “rede neuroló-
gica que guia os músculos dos órgãos efetores do sujeito tais como mãos, patas ou órgão
mastigatórios” (NöTH, 1995a, p.158). O sinal operacional (operational sign) captado e
traduzido em pista operacional para o órgão operacional extingue por completo a pista
perceptiva, completando o processo. Os sinais recebidos do objeto pertencem ao objeto,
enquanto as pistas que projeta são devidas às capacidades de percepção do animal, ou
seja, sinais são traduzidos em pistas, ver fig. 3.7.

Segundo Uexküll (1982), características do Umwelt também podem ser reconheci-


das em estruturas mais simples como plantas, fungos e mesmo células. Como exemplo
disto, ele apresenta o caso do Myxomyces, um tipo de fungo cujos esporos, em seu estado
inicial de desenvolvimento, são células com movimentos livres semelhantes a amebas,
alimentando-se de bactéria floral e totalmente alheias à presença de outros esporos. À
medida que se reproduzem, por divisão, o estoque de alimento diminui ao redor. Então, as
células se aglomeram em diferentes áreas de mesmo tamanho, em cada uma dessas áreas
movimentam-se em direção ao centro posicionando-se umas sobre as outras de maneira
que a primeira célula a chegar é transformada em apoio firme que serve de escada às outas
células. Quando a haste está pronta, as últimas células a chegar são transformadas num
pistilo contendo vários esporos vivos que são carregados pelo vento até uma nova área
rica em alimento. Nas palavras de Uexküll:

Somos forçados a atribuir um Umwelt, mesmo que limitado, às células-


fúngicas livres e vivas, um Umwelt comum a cada uma delas, no qual

65
Figura 3.7: Círculo funcional. Elaboração do autor com base em Nöth (1995a, p. 158) e
Uexküll (1934)

as bactérias contrastam com o entorno, como portadores de significação,


como alimento e, assim, o percebem e atuam sobre ele. Por outro lado,
o fungo, composto de muitas células unitárias, é uma planta que não
apresenta Umwelt animal - é apenas cercado por um tegumento-habitável
constituído de fatores de significação10

Desta forma, conclui-se que processos semióticos podem ser encontrados em sistemas
distribuídos por vários níveis hierárquicos. Para Thure von Uexkül (UEXKüLL, 1992),
essa hierarquia pode ser expressa em termos do usuário da significação (meaning-utilizer):
sistemas de signos intracelulares, no qual as organelas seriam meaning-utilizers; sistemas
de signos intercelulares, que corresponderiam à endossemiótica; sistemas de relações sígni-
cas entre animais ou zoossemiótica e sistemas sígnicos entre grupos sociais que interagem
através da linguagem humana, ou semiótica propriamente dita.

Essas relações entre níveis podem ser organizadas utilizando-se o conceito de estru-
turalismo hierárquico (SALTHE, 1985), um estudo de meta-teoria científica que pretende
10
We are forced to attribute an Umwelt, however limited, to the free living fungus-cells, an Umwelt
common to each of them, in which the bacteria contrast with their surroundings, as meaning-carriers, as
food and, in doing so, are perceived and acted upon. On the other hand, the fungus, composed of many
single cells, is a plant that possesses no animal Umwelt — it is surrounded only by a dwelling-integument
consisting of meaning-factors.

66
lidar com a representação dos processos naturais e das entidades que participam deles. O
estruturalismo hierárquico apresenta em sua concepção elementos triádicos de influência
peirceana. Ao se considerar certo sistema biológico, a eficaz descrição de suas inter-
relações requer primeiramente reconhecer os três níveis fundamentais envolvidos: nível
focal ou nível de interesse onde se localiza o fenômeno a ser estudado; nível superior ou
macro-semiótico onde se localizam as restrições de fronteira do fenômeno; e nível inferior
ou micro-semiótico onde podem ser encontradas as restrições referentes às possibilidades
do sistema, bem como, suas condições iniciadoras (EL-HANI; QUEIROZ, 2007). Nas
palavras de Salthe:

[...] Três níveis adjacentes podem fornecer uma descrição mínima de um


sistema diacrônico. Quero enfatizar que esta estrutura triádica não ape-
nas é suficiente para a tarefa, como é também necessária. [...] Em tal
sistema apenas as restrições do nível inferior têm a qualidade de serem
“criativas”. As possibilidades de ocorrências no nível focal são criadas
(geradas) no nível inferior. [...] O que as restrições do nível inferior
fazem? Elas tornam possível a ocorrência do fenômeno, elas o determi-
nam. [...] O suficiente foi dito para que possamos definir as restrições de
nível inferior, que devem ser chamadas de condições iniciadoras. Condi-
ções iniciadoras são restrições que surgem da interação de componentes
relevantes e fortes das entidades que interagem em certo processo em
observação no nível focal. Assim como as restrições do nível inferior,
elas [as restrições de nível superior, ou condições de fronteira] informam
e influenciam os processos no nível focal sem participar dinamicamente
deles. De onde surgem? Em geral, do ambiente do processo. Sem dú-
vida, todo “input” no sentido clássico tem origem em níveis mais altos
fora da caixa-preta do próprio sistema em nível focal. (SALTHE, 1985,
pp. 69-84)11

Assim, quando um fenômeno é analisado sob a ótica do estruturalismo hierárquico,


deve-se, primeiramente, definir o nível focal segundo os interesses do observador. O nível
11
[...] Three adjacents levels should provide for a minimal description of any diachronic system. I would
like to emphasize that not only is this triadic structure sufficent for the job, it is also necessary. [...] In
the present system only lower-level constraints have the quality of being “creative”. The possibilities
that may occur at the focal-level are created (generated) at the lower-level. [...] What do lower-level
constraints do? They make possible the phenomena to occur, they determine them; in fact they cause
them. [...] Enough has been said so that we can define lower-level constraints, which may be dubbed
initiating conditions. Initiating conditions are constraints that arise from interactions of strong relevant
components within entities that are interacting in an observed process at the focal-level. Like lower-level
constraints, they [the upper-level constraints or boundary conditions] inform and influence focal-level
processes without participating in them dinaamically. Where do they come from? In general, from the
envirorment of a process. Of course, all “input” in the classical sense would be from higher levels outside
the black box focal-level system itself.

67
focal, de certo modo, pode ser correlacionado com o Umwelt da entidade biológica em
análise. O nível imediatamente acima fornece as condições de fronteira através das quais
podem ser identificados os inputs do sistema que regulam os resultados dinâmicos do
nível focal; o nível imediatamente abaixo apresenta as condições iniciadoras segundo as
características do sistema, dando origem ao comportamento dinâmico no nível focal. De
modo panorâmico, diversos níveis hierárquicos podem ser reconhecidos na natureza: atô-
mico, molecular, organelas intracelulares, células, tecidos, órgãos, aparelhos, organismo,
nicho ecológico, ecossistema, meio-ambiente. De acordo com interesses específicos alguns
desses níveis podem ser condensados e outros suprimidos, por exemplo, ao se considerar o
nível focal como o do organismo, pode-se tomar como nível inferior aquele composto pe-
las células que determinam as potencialidades comportamentais do indivíduo; como nível
superior, pode-se considerar o ambiente no qual o indivíduo vai competir e que governará
as regras desta competição. Neste caso, estão suprimidos eventuais níveis intermediários
como tecidos e órgãos.

3.4 Diagramas semióticos desenvolvidos

Neste ponto, os diagramas semióticos referentes à análise do comportamento de apren-


dizagem da aplísia podem ser atualizados em dois diagramas mais desenvolvidos, incor-
porando o estruturalismo hierárquico e seu caráter diacrônico, e considerando dois níveis
focais distintos: do organismo e das células.

3.4.1 Diagrama semiótico com foco no organismo

Considerando-se o nível do ambiente como macrossemiótico, o nível celular como micros-


semiótico e o nível do organismo como o nível focal, a seguinte descrição apresenta as
relações envolvidas:

Nível macrossemiótico (condições de fronteira): nele podem ser verificadas as


entradas (inputs) e saídas (outputs) relacionadas aos estímulos ambientais e consequentes
reações. Deste ponto de vista, a aplísia pode ser entendida como uma caixa-preta pavlo-
viana que, no momento I, encontra-se mergulhada em seu habitat envolta por um fundo
indistinto composto por sensações neutras (e1) que não induzem reações específicas (s1).
No momento II, algo atrai sua atenção; não sendo um estímulo suficiente forte (e2), ela
simplesmente o ignora (s2), retornando ao estado ou momento I; sendo um estímulo forte
(e3), ocorre a transição do estado II para o estado III. Este novo estado exige o reconhe-
cimento do objeto causador da perturbação, o que pode resultar em reconhecimento de

68
algo inofensivo (s3) não resultando em reações específicas, ou pode ser reconhecido como
algo perigoso provocando sua fuga (s3’). No entanto, se o objeto não for reconhecido, o
estímulo em jogo (e4) leva a aplísia a uma reação instintiva de fuga (s4). A repetição
desta dinâmica, paulatinamente leva o animal a aprender a lidar com o novo objeto, seja
se habituando (objeto inofensivo), seja aprendendo sobre seu caráter ameaçador (objeto
perigoso). A conclusão do aprendizado ocorre no momento V através de um estímulo
final (e5) cujo resultado não se apresenta ao ambiente, mas apenas como representação
interna. Ver fig.3.8 (Ambiente).

Nível microssemiótico (condições iniciadoras): os experimentos com a A. cali-


fornica (descrição condensada em Kandel (2006)) permitiram aos pesquisadores “abrirem
a caixa-preta” e mapearem os caminhos neurais subjacentes à sua capacidade de aprendi-
zagem e aquisição de memória. Essas interações celulares constituem o nível microssemió-
tico desta análise. As leis biológicas que regem essas interações determinam, qualitativa
e quantitativamente, os eventos que tomarão parte no nível focal. No momento I, como
os estímulos do ambiente não exigem qualquer reação especial, os neurônios sensores res-
ponsáveis pela percepção do ambiente encontram-se em estado de potencial de repouso
(PR)12 . Quando, no momento II, um evento atrai a atenção do animal, os neurônios senso-
res envolvidos são excitados, mas sem que, inicialmente, o limiar de repouso seja atingido,
o que ocorre somente em duas situações: 1. no momento III quando há o reconhecimento
do caráter perigoso do encontro, ou 2. no momento IV diante de algo desconhecido.
Nesses dois casos, a excitação neural rompe o potencial de repouso fazendo com que um
potencial de ação (PA) se instale, propagando-se através do circuito neural até atingir os
neurônios motores responsáveis pela reação motora de defesa da aplísia (RMD). Com a
repetição do momento IV, a RMD começa a enfraquecer paulatinamente até que a reação
motora deixe de se efetivar para o caso de eventos não nocivos, levando à habituação;
ao contrário, para eventos ameaçadores, ocorre o fortalecimento das conexões neurais,
levando o animal à sensibilização que se concretiza no momento V. Assim, o novo com-
portamento observado no nível macrossemiótico ocorre devido à nova configuração neural
adquirida com o treinamento. O nível microssemiótico seria, então, o repositório das leis
e códigos biológicos que permitem a ocorrência dos eventos no nível focal que mediam os
eventos que tomam lugar na interface organismo/ambiente (nível macrossemiótico). Ver
fig.3.8 (Células).

Nível focal (nível de interesse): os processos semióticos deste nível são deter-
minados pelas condições de fronteira do nível macrossemiótico no qual o organismo está
12
Para a descrição das estruturas neurais e seus processos, utilizam-se, aqui e nas próximas páginas, os
termos apresentados por Lent (2001, pp.29-165). Nesta mesma obra, podem ser encontrados, em detalhes,
todos os processos neurobiológicos referidos nesta parte da tese.

69
inserido e pelas condições iniciadoras que disponibilizam certas possibilidades de acordo
com as características da espécie e do indivíduo. No momento I, apenas qualissignos estão
presentes na mente do intérprete, já que nada lhe chama a atenção em especial. O animal
encontra-se mergulhado no estado de primeiridade, seus órgãos perceptivos apreendem
certas qualidades dos objetos dinâmicos sem que qualquer figura ou fato se destaque do
fundo. Ocorrências são meras possibilidades. No momento II (percepção), algo excita os
órgãos sensores. A qualidade deste fato perceptivo determina um objeto por similaridade.
Isto ocorre por ação de sinsignos icônicos governados por legissignos também icônicos, pois
exigem que suas réplicas corporifiquem uma qualidade definida. Neste momento, uma fi-
gura se destaca do fundo: sendo ela irrelevante, nada ocorre além do retorno ao momento
I, sendo relevante, o momento III (reconhecimento) pode se estabelecer. No momento III,
sinsignos indiciais remáticos governados por legissignos do mesmo tipo ou governados por
legissignos simbólicos remáticos chamam a atenção do intérprete para o objeto imediato.
Isto pode indicar um objeto conhecido inócuo (determinado pelo caráter não dicente e não
simbólico do legissigno indicial remático), ou um objeto conhecido nocivo (determinado
pelo caráter simbólico e não dicente do legissigno simbólico remático). No primeiro caso,
nada ocorre e o animal retorna ao momento I, no segundo caso, o animal foge e, após
reconhecer que o perigo está afastado, retorna ao momento I. Uma terceira possibilidade
seria o não reconhecimento do objeto, o que provoca a fuga da aplísia, estabelecendo o
momento IV (aprendizagem). A aprendizagem ocorre pela repetição desta dinâmica: algo
não conhecido leva à fuga instintiva e à consequente constatação de que se trata de algo
inócuo ou nocivo. Sendo inócuo, o caráter dicente enfraquece, denotando a ausência de
informação real levando o animal a se habituar ao estímulo. Isto ocorre concomitante-
mente com o enfraquecimento das conexões neurais no nível microssemiótico e à reação
de defesa cada vez menos intensa no nível macrossemiótico. No entanto, se o encontro
apontar para a presença de um elemento nocivo, cresce o caráter simbólico juntamente
com o fortalecimento das conexões neurais no nível microssemiótico e reações compatíveis
com o estado de alerta no nível macrossemiótico. Há um momento, no entanto, em que
a repetição da experiência nociva leva o animal ao estado V, concluindo o processo de
sensibilização. Neste momento, uma nova configuração neural se fixou no nível microsse-
miótico. Com o processo de aprendizado o animal adquire um novo hábito, incorporando
o evento experienciado ao conjunto de ocorrências classificadas como inócuas (habitua-
ção) ou nocivas (sensibilização) fazendo com que, ao se deparar no futuro com o mesmo
evento, o resultado seja determinado pelas reações possíveis do momento III. Todos os
legissignos envolvidos, sendo hábitos ou leis gerais, estão, de algum modo, corporificados
nas leis biológicas presentes no nível macrossemiótico.13 . Ver fig.3.8 (Organismo).
13
Obviamente, o pesquisador não tem acesso ao Umwelt da Apysia californica para conhecer efetiva-

70
Figura 3.8: Diagrama semiótico do comportamento de aprendizagem da Aplysia califor-
nica (nível focal: organismo). e1 a e5 representam as entradas, s1 a s5 representam as
saídas. P, S e T apontam, respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade e ter-
ceiridade. PR refere-se ao potencial de repouso, PA ao potencial de ação e RMD à reação
motora de defesa do animal. Os outros elementos do diagrama representam as mesmas
relações evidenciadas no capítulo anterior “A semiótica geral de Peirce”. Elaboração do
autor.

71
No entanto, o diagrama semiótico da figura 3.8 não expressa as diferenças entre os
processos de habituação de curto e longo prazos. Sendo assim, diagramas complementares
se fazem necessários, agora considerando como nível focal as células neurais envolvidas no
processo e, consequentemente, tendo o nível do organismo como nível macrossemiótico e
o nível molecular como nível microssemiótico.

3.4.2 Diagramas semióticos com foco nas células

Segundo Kandel (2006, pp. 222-264), na habituação de curto prazo, a diminuição da


amplitude do reflexo de retração da guelra, que ocorre paralelamente ao enfraquecimento
progressivo das conexões sinápticas, são decorrentes de alterações funcionais nos neurônios
sensoriais levando à liberação de menor quantidade de neurotransmissores (glutamato)
na fenda sináptica entre os neurônios sensores e motores. Por seu turno, a habituação
de longo prazo apresenta alterações estruturais que determinam a retração de terminais
ativos dos neurônios sensoriais levando à paralisação quase completa da transmissão si-
náptica. Enquanto as alterações funcionais da habituação de curto prazo restringem-se ao
desempenho das células apenas como propagadoras de sinais eletroquímicos, as alterações
estruturais requerem a ação de processos genéticos. No caso da sensibilização, processos
semelhantes estão envolvidos, porém em sentido inverso, no curto prazo com o aumento
da concentração de glutamato nas conexões sinápticas e no longo prazo com o crescimento
de novos terminais ativos dos neurônios sensoriais.

Para expressar diagramaticamente as diferenças entre os processos de curto e longo


prazos, esta análise complementar procura representar os processos celulares funcionais
e genéticos que ocorrem de maneira simultânea e paralela ao comportamento do animal.
Esta mudança de foco pode ser entendida com o apoio da figura 3.9.

O nível focal se desloca do organismo para a célula, ou seja, a entidade interpretadora


passa a ser outra e, consequentemente, os signos envolvidos também são outros, agora,
relativos aos inputs e outputs provenientes dos potenciais de ação que percorrem os cir-
cuitos neurais e que afetam as células. Em resumo: o nível do organismo corresponde
ao nível macrossemiótico de onde surgem os potenciais de ação, o nível do metabolismo
intracelular corresponde ao nível microssemiótico que fornece as condições iniciadoras e,
finalmente, o nível celular corresponde ao nível focal ou nível de interesse.
mente o que sente o animal observado no nível focal. No entanto, os experimentos realizados delineiam
os eventos que tomam lugar nos níveis macro e microssemióticos, permitindo a descrição de uma cadeia
semiótica possível no nível focal. Esta cadeia semiótica, como possibilidade, vai orientar a transposição
semiótica. O resultado final da TS estará mais ou menos próximo da cadeia semiótica demonstrando se
as inferências do pesquisador foram adequadas.

72
Figura 3.9: Relação entre as análises com foco organismo e com foco nas células. Elabo-
ração do autor.

Nesta nova configuração, a dinâmica dos processos envolvidos ocorre através de dois
circuitos neurais distintos, mas estreitamente relacionados. De forma simplificada, o cir-
cuito mediador — formado pelos neurônios sensores que inervam o sifão, pelos inter-
neurônios mediadores e pelos neurônios motores que controlam a retração da guelra — é
responsável pela reação primária de defesa do animal que será mais ou menos acentuada
(até mesmo nula) dependendo da quantidade de glutamato despejado na fenda sináptica
entre o neurônio sensor do sifão e o neurônio motor da guelra; por seu lado, também de
maneira simplificada, o circuito modulatório — composto pelos neurônios sensores que
inervam a cauda e pelos interneurônios facilitadores — é responsável pelas descargas de
serotonina que promovem os ajustes funcionais e genéticos que levam, tanto ao aumento
da quantidade de glutamato na fenda sináptica, quanto ao crescimento ou retração das
conexões sinápticas entre o neurônio sensor do sifão e o neurônio motor da guelra. Assim,
enquanto a presença do glutamato, em certa concentração, será responsável pela reação
motora, a presença de serotonina ajusta a concentração de neurotransmissor e também
é responsável pelo encadeamento de reações químicas no interior da célula até que novas
proteínas sejam sintetizadas, segundo Kandel:

[...] O armazenamento da memória acontece em pelo menos dois está-


gios: uma memória de curto prazo que dura minutos converte-se — por
um processo de consolidação que requer a síntese de proteína nova —

73
numa memória estável, de longo prazo, que dura dias, semanas, ou um
período ainda maior de tempo. [...] Concentramos nossa atenção numa
sinapse decisiva, a sinapse entre o neurônio que transmite a sensação tá-
til e o neurônio cujos potenciais de ação levam à retração da guelra.[...]
Descobrimos que a mudança é totalmente unilateral: durante a habitua-
ção de curto prazo, o neurônio sensorial libera uma quantidade menor de
neurotransmissores, e durante a sensibilização de curto prazo ele libera
uma quantidade maior. Esse neurotransmissor, como viemos a descobrir
mais tarde é o glutamato, que é também o principal transmissor exci-
tatório no cérebro mamífero. [...] Descobrimos que os interneurônios
ativados por um choque na cauda da Aplysia liberam um [outro] neuro-
transmissor chamado serotonina. [...] Chamamos esses interneurônios li-
beradores de serotonina de interneurônios modulatórios, porque eles não
fazem a mediação do comportamento. Em vez disso, eles modificam a
força do reflexo de retração da guelra intensificando a força das conexões
entre o neurônio sensorial e o neurônio motor.[...] Os circuitos mediado-
res produzem o comportamento diretamente e são, portanto, kantianos
por natureza. Eles são os componentes neuronais do comportamento,
determinados geneticamente e pelo desenvolvimento, ou seja a arquite-
tura neuronal. [...] O circuito modulatório é lockeano por natureza. Ele
funciona como um professor. Não está diretamente envolvido na produ-
ção de um comportamento, mas faz delicados ajustes no comportamento
em resposta à aprendizagem, modulando — heterossinapticamente — a
força das conexões sinápticas entre o neurônio sensorial e o neurônio
motor. Ibid., pp. 246-248

Cabe destacar que, ao afirmar ser essa estrutura “geneticamente determinada”, Kan-
del se refere à atuação do genótipo característico da espécie na constituição de cada
indivíduo, enquanto a modulação através das descargas de serotonina promove a produ-
ção de novas proteínas que podem determinar alterações comportamentais individuais.
Assim, enquanto a estrutura geneticamente construída determina as capacidades básicas
e comuns a todas as aplísias — inclusive a capacidade de aprendizagem —, a atuação do
circuito modulatório ativa certas ações genéticas secundárias responsáveis pelo ajuste fino
no comportamento de cada indivíduo. Este ajuste fino, cujos efeitos podem ser quanti-
tativa ou qualitativamente diferentes em cada animal, acaba determinando as diferenças
individuais, o que resulta em uma população com representantes mais ou menos aptos
para realizar o aprendizado ou outra habilidade qualquer.
A figura 3.10 representa esquematicamente a estrutura descoberta por Kandel14 . Nela
14
Ao conceber a metodologia para sua pesquisa sobre aprendizagem e memória, Kandel opta por uma

74
se destaca a região das conexões sinápticas entre o neurônio sensorial e o neurônio motor.
Podem ser reconhecidas aqui as duas conexões sinápticas que participam ativamente da
dinâmica de aprendizagem e aquisição de memória: a fenda sináptica entre os neurônios
em questão que participam do circuito mediador, nesta fenda ocorre a descarga de glu-
tamato; e a fenda sináptica entre o interneurônio facilitador do circuito modulatório e o
neurônio sensor, nesta fenda ocorre a descarga de serotonina.

Figura 3.10: Circuitos neurais mediador e modulatório esquemáticos da aplísia califórnica


(F1 - fenda sináptica entre o neurônio sensor e o neurônio motor do circuito mediador,
presença de glutamato; F2 - fenda sináptica entre o interneurônio facilitador do circuito
modulatório e o neurônio sensor do circuito mediador, presença de serotonina). Elabora-
ção do autor com base em (KANDEL, 2006, 249).

A influência da serotonina na dinâmica de aprendizagem e aquisição de memória pela


Aplysia californica está relacionada com a ação de um conjunto de receptores de tipo
especial presentes na superfície do terminal sináptico do neurônio sensor, os receptores
abordagem essencialmente reducionista, concentrando esforços primeiramente no estudo dos compor-
tamentos mais simples de animais também simples e, em segundo lugar, tendo como foco as células
individuais. Obviamente, ao se considerar o sistema nervoso completo do animal, para qualquer compor-
tamento decorrente de estímulos ambientais, por mais simples que seja tal comportamento, inúmeros e
intrincados circuitos mediadores e modulatórios estariam envolvidos, atuando e se influenciando mutua-
mente. Da mesma forma, esta tese adota uma abordagem baseada em reduções. Quando se considera
a ação de signos determinando o comportamento de entidades interpretadoras — sejam elas organismos
ou células —, deve-se ter em mente que se trata, de fato, da ação de conjuntos de signos, tratados aqui
como signos individuais por questão de simplificação da análise.

75
metabotrópicos, bem como, com o consequente encadeamento de reações químicas poste-
riores ao estágio de recepção. Esta dinâmica é descrita por Kandel da seguinte forma:

[...] Uma região desses receptores se projeta para fora da superfície


externa da membrana celular e reconhece sinais das outras células, en-
quanto outra região se projeta do interior da membrana celular e se
liga a uma enzima. Quando esses receptores reconhecem e se ligam a
um mensageiro químico no exterior da célula [neste caso, serotonina],
eles ativam uma enzima no interior da célula chamada adenilciclase, que
forma o AMP cíclico15 .[...] O AMP cíclico então se liga a proteínas-chave
que disparam toda uma família de respostas por toda a célula. [...] O
aumento do AMP cíclico tem aproximadamente a mesma duração do po-
tencial sináptico lento, do aumento na força sináptica entre o neurônio
sensorial e o neurônio motor e da resposta comportamental intensifi-
cada do animal ao choque aplicado em sua cauda. [...] Como no animal
intacto, essa intensificação de curto prazo na força sináptica é uma mu-
dança funcional: ela não requer a síntese de novas proteínas. Ibid., pp.
252-255

Isto, considerando-se a memória de curto prazo. Com relação ao longo prazo, Kandel
avança em sua descrição:

[...] Descobrimos que, enquanto um único pulso de serotonina aumenta


a quantidade de AMP cíclico e de proteína quinase A principalmente na
sinapse, os repetidos pulsos de serotonina produzem concentrações ainda
mais altas do AMP cíclico, levando a proteína quinase A a se mover para
o interior do núcleo, onde ela ativa os genes. Estudos posteriores cons-
tataram que a proteína quinase A recruta outra quinase, chamada MAP
quinase16 igualmente associada ao crescimento sináptico e que também
migra para o núcleo. [...] Uma vez dentro do núcleo, [...] a proteína
quinase A ativa CREB-1 e a MAP quinase desativa CREB-217 . [...] A
ativação da CREB, por sua vez, conduz à expressão dos genes que modi-
ficam a função e a estrutura das célula [crescimento de novos terminais].
Desse modo, a facilitação de longo prazo das conexões sinápticas requer
não somente a ativação de alguns genes, mas também a desativação de
outros. [...] De fato, as ações regulatórias opostas das CREB fornecem
um limiar para o armazenamento de memória, presumivelmente para
15
Adenosina-Monofosfato-cíclico.
16
Mitogen Activated Protein.
17
cAMP Response Element-Binding.

76
garantir que apenas as experiências que se mostram importantes e úteis
à vida sejam aprendidas. Ibid., pp. 289-293

Desta descrição, pode-se desenvolver uma tabela para representar as relações entre as
quantidades dos elementos presentes em cada fase do processo de aprendizagem. Para a
fase de repouso, a concentração dos neurotransmissores glutamato e serotonina permanece
estável, o mesmo ocorrendo com a quantidade de terminais. Na fase de habituação de
curto prazo (Hab. CP), ocorre o aumento da concentração dos neurotransmissores, mas
sem alteração na quantidade de terminais ativos. Na fase de habituação de longo prazo
(Hab. LP) ocorre a diminuição acentuada dos neurotransmissores com a consequente
diminuição da quantidade de terminais ativos. Finalmente, as fases de sensibilização de
curto e longo prazos (Sen. CP e Sen. LP) seguem padrões inversos aos que ocorrem nos
respectivos processos de habituação (ver Tabela 3.1).
XXX
XXX Fases
XXX
XXX Repouso Hab. CP Hab. LP Sen. CP Sen.LP
Elementos XXX
Glutamato ⇔ ⇓ ⇓⇓ ⇑ ⇑⇑
Serotonina ⇔ ⇓ ⇓⇓ ⇑ ⇑⇑
Terminais ⇔ ⇔ ⇓ ⇔ ⇑

Tabela 3.1: Relação das quantidades dos elementos com os fases de aprendizagem.

Neste ponto, considerando-se a descrição dos processos de aprendizagem e aquisi-


ção de memória da aplísia, bem como, os diferentes níveis semióticos do estruturalismo
hierárquico, podem ser criados, finalmente, diagramas semióticos complementares para
representar os processos que ocorrem no terminal sináptico do neurônio sensor por in-
fluência dos circuitos mediador e modulatório, cada um dando origem a um diagrama
específico. A escolha deste terminal como a entidade interpretadora dos signos em ques-
tão se dá em virtude de Kandel apontar este terminal como a região efetivamente afetada
pelos processos que tomam parte nos dois circuitos. Mantem-se, aqui, a divisão dos pro-
cessos em momentos, ou estados, correspondentes aos diagrama anterior. Estes processos,
portanto, podem ser descritos da seguinte forma:

A. Diagrama relativo à influência do circuito mediador:

O circuito mediador, responsável direto pelo comportamento da aplísia, atua devido à


excitação do neurônio sensor que provoca o rompimento do potencial de repouso (PR),
estabelecendo o potencial de ação (PA) que se propaga até o terminal sináptico. A

77
presença do PA (objeto do signo) impõe uma nova configuração química no interior do
terminal (representamen), resultando na liberação das vesículas de glutamato na fenda
sináptica entre os neurônios sensor e motor (interpretante). A modulação das quantidades
de terminais ativos, de vesículas disponíveis em cada terminal ativo e de glutamato dentro
das vesículas não é responsabilidade do circuito mediador, portanto, aqui, apenas duas
possibilidades estão em jogo: a. PR → ausência de liberação das vesículas de glutamato;
b. PA → liberação das vesículas de glutamato. Isto resulta na seguinte descrição:

Nível macrossemiótico (condições de fronteira): o organismo constitui-se no


nível macrossemiótico, assim, nos momentos I, II e V (correspondentes aos momentos
de possibilidade, percepção e conclusão do diagrama da fig. 3.8), qualquer excitação nos
neurônios sensores não é suficiente para romper o limiar do potencial de repouso, conse-
quentemente, não gerando potenciais de ação (e1, e2 e e5). Na ausência de PA também
há ausência de liberação das vesículas de glutamato (s1, s2 e s5). No momento III (corres-
pondente ao momento de reconhecimento no diagrama da fig. 3.8), existem duas possibi-
lidades de ocorrência: para reconhecimento de um evento inócuo, repete-se o padrão dos
momentos anteriores (e3 e s3), para o reconhecimento de evento nocivo, estabelece-se um
potencial de ação e a consequente liberação do glutamato na fenda sináptica (e3’ e s3).
No momento IV (correspondente ao momento de aprendizagem no diagrama da fig. 3.8),
potenciais de ação estão presentes, portanto há também a descarga de glutamato na fenda
sináptica (e4 e s4). fig. 3.11 (Organismo).

Nível microssemiótico (condições iniciadoras): nível das estruturas internas das


células neurais (metabolismo intracelular). Nos momentos I, II e V, o metabolismo interno
permanece estável. No momento III, essa estabilidade permanece para eventos inócuos
e se altera para eventos nocivos de acordo com o encadeamento de reações químicas
características que vai resultar em descarga de glutamato no nível macrossemiótico, o
mesmo ocorrendo para o momento IV. Ver fig. 3.11 (Moléculas).

Nível focal (nível de interesse): nos momentos I, II e V, os ambientes interno


e externo ao terminal sináptico mantém um arranjo molecular estável, portanto, altera-
ções seriam meras possibilidades. Tal fato remete ao estado de primeiridade com a ação
exclusiva de qualissignos, o mesmo ocorrendo no momento III para eventos inócuos. No
momento III para eventos nocivos e no momento IV, a presença de legissignos indiciais
remáticos é determinada pelo potencial de ação. Legissigno pois se trata de uma lei bi-
ológica, indicial pois aponta para a presença do PA (extrapolando o caráter qualitativo,
mas não sendo um símbolo) e remático pois se apresenta ao interpretante como essencial.
Ver fig. 3.11 (Células).

78
Figura 3.11: Diagrama semiótico do comportamento de aprendizagem da Aplysia califor-
nica (nível focal: células neurais, circuito mediador). e1 a e5 representam as entradas
(inputs), s1 a s5 representam as saídas (outputs). P, S e T apontam, respectivamente, os
estados de primeiridade, secundidade e terceiridade. Elaboração do autor.

79
B. Diagrama relativo à influência do circuito modulatório:

O circuito modulatório, não participa diretamente do comportamento da aplísia. Seu


papel é o de ajustar as quantidades de glutamato disponíveis assim que o circuito medi-
ador seja ativado. Ainda considerando o terminal sináptico do neurônio sensor como a
entidade interpretadora, a presença de serotonina (objeto) na fenda sináptica desencadeia
o processo ao ser reconhecida pelos receptores metabotrópicos. No interior do terminal,
ocorre o ajuste das quantidades de proteínas quinase A e MAP quinase (representamen),
levando a dois resultados possíveis (interpretantes): a. serotonina → simples ajuste da
quantidade de glutamato disponível nas vesículas; b. serotonina → ajuste da quantidade
de terminais ativos. Esses processo são descritos a seguir:

Nível macrossemiótico (condições de fronteira): considera-se aqui que, durante


os momentos do tipo I, II II e V (correspondentes aos momentos de possibilidade, percep-
ção, reconhecimento e conclusão do diagrama da fig. 3.8), a concentração de serotonina
permanece constante já que, em nenhum desses casos, instalam-se processos de aprendi-
zagem (e1, e2, e3, e5). Consequentemente, não ocorre também qualquer ajuste tanto na
quantidades de glutamato disponíveis quanto na quantidade de terminais ativos (s1, s2,
s3, e s5). Diferentemente, no momento 4, ocorre um desequilíbrio da concentração de se-
rotonina para mais (sensibilização) ou para menos (habituação) (e4) acarretando o ajuste
interno da quantidade de glutamato (s4 - memória de curto prazo) ou na quantidade de
terminais ativos (e4 - memória de longo prazo). Ver fig .3.12 (Organismo).

Nível microssemiótico (condições iniciadoras): nos momentos I, II, III e V, o


metabolismo interno permanece estável, enquanto no momento IV, é alterado de acordo
com o encadeamento de reações químicas provocadas pelo ajuste na concentração das pro-
teínas quinase A e MAP quinase. Quatro resultados são possíveis: ajuste da quantidade
de glutamato para mais ou para menos (respectivamente sensibilização ou habituação
de curto prazo) e ajuste das quantidades de terminais ativos para mais ou para menos
(respectivamente sensibilização ou habituação de longo prazo). Ver fig. 3.12 (Moléculas).

Nível focal (nível de interesse): nos momentos I, II, III e V, o metabolismo do


terminal sináptico mantem-se estável com relação à presença de serotonina, portanto,
alterações seriam meras possibilidades fazendo com que o terminal permaneça em estado
de primeiridade com a ação exclusiva de qualissignos. No momento IV, para habituação
ou sensibilização de curto prazo, ocorre a ação de legissignos indiciais remáticos, legissigno
pois se trata de uma lei biológica, indicial pois aponta para o ajuste na concentração de
serotonina e remático pois apresenta-se ao interpretante como essencial. No entanto, para
habituação e sensibilização de longo prazo, o caráter simbólico do legissigno simbólico
remático se impõe devido à determinação genética do processo. Ver fig. 3.12 (Células).

80
Figura 3.12: Diagrama semiótico do comportamento de aprendizagem da Aplysia califor-
nica (nível focal: células neurais). i.1 a i.4 representam os inputs, o.1 a o.4 representam
os outputs. P, S e T apontam, respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade
e terceiridade. CP refere-se ao processo de curto prazo e LP ao processo de longo prazo.
Elaboração do autor.

81
Este último diagrama completa a análise pretendida neste capítulo. No entanto, cabe
uma última observação: considerando os diagramas semióticos propostos, a presença de
legissignos indiciais e legissignos simbólicos reflete o que Hoffmeyer e Emmeche (1991)
(Ver também Hoffmeyer (2008, pp. 80-109)) definiram como dualidade de códigos (code-
duality):

Em 1991, Claus Emmeche e eu sugerimos que a vida no nível mais fun-


damental pode ser caracterizada por um aspecto dinâmico que chamamos
de dualidade de códigos - i.e., uma troca recursiva e sem fim de men-
sagens entre superfícies de codificação digital e analógica. [...] Como
codificações analógicas, os organismos reconhecem e interagem entre si
no espaço ecológico, enquanto como codificações digitais (genoma), eles
são passivamente carregados adiante no tempo de geração em geração
[...]. Visto desta perspectiva, a vida pode ser entendida como sobrevi-
vência semiótica - sobrevivência através de uma dualidade de códigos
fundamental. (HOFFMEYER, 2008, p. 80)18

Os autores ressaltam que dualidade de códigos não implica num retorno à dualidade
cartesiana, os dois tipos de código, ao contrário, representariam dois aspectos da mesma
realidade. Semioticamente, os códigos analógicos mantém alguma relação de semelhança
com seu conteúdo, apoiando-se em signos indiciais e icônicos. Eles codificam ação e
estão baseados em algum tipo relação de continuidade espaço-temporal ou similaridade
do tipo parte-todo ou causa-efeito. Já os códigos digitais codificam memória e apoiam-se
em símbolos descontínuos em relação ao seu conteúdo. São baseados em tokens sígnicos
discretos (como o código genético) que mantém certa arbitrariedade na relação com sua
significação (arbitrariedade convencional, histórica ou de costume). A dinâmica entre os
códigos digital e analógico, segundo o autor, é justamente o que torna possível a evolução
de uma espécie (HOFFMEYER, 2008, pp. 78-89).

3.5 Resumo

Tendo concluído, aqui, as considerações que orientam a construção dos diagramas semió-
ticos (primeira etapa da transposição semiótica), a próxima seção realiza a análise desses
18
In 1991, Claus Emmeche and I suggested that life at the most fundamental level may be characterized
by a dynamic trait that we called code-duality - i.e, a recursive and unending exchange of messages between
analog and digital coding surfaces.[...] As analog codifications, organisms recognize and interact with each
other in ecological space, whereas as digital codifications (genomes), they are passively carried forward in
time from generation to generation [...]. Seen from this perspective, life must be understood as semiotic
survival - survival via a fundamental code-duality.

82
mesmos diagramas, procurando formalizar computacionalmente através de um autômato
finito (segunda etapa da transposição semiótica) as relações encontradas na análise semió-
tica de comportamento biológico em foco. Segue abaixo, em resumo, o que foi considerado
neste capítulo:

1. A biossemiótica apresenta correspondências com a teoria geral dos signos de Peirce


ao considerar que as entidades vivas estão envolvidas em processos semióticos. Esta
abordagem implica que as criaturas vivas não são meros sujeitos passivos em suas
relações com a natureza, ao contrário, comportam-se como “sistemas ativos de pro-
dução, medição e interpretação de signos” (KULL; EMMECHE; HOFFMEYER,
2011).

2. O enfoque da biossemiótica considera que os organismos e suas partes (células e


estruturas intracelulares) não são meros aglomerados complexos, assumindo que,
tais entidades, engajam-se em processos de informação e interpretação através de
vários níveis de complexidade (fenótipo, genótipo e ambiente). Disto decorre que
as biossemioses são expoentes de relações triádicas (conceito de causalidade final
segundo Peirce).

3. Foi apresentado o conceito Umwelt e sua representação através do circulo funcio-


nal desenvolvidos por Jakob von Uexküll, uma abordagem sistêmica que considera
o animal, e também outros sistemas biológicos menos complexas, como entidades
situadas que corporificam, parcialmente os signos ambientais de acordo com as ca-
pacidades de sua espécie.

4. O estruturalismo hierárquico, desenvolvido por Stanley Salthe, se apresenta como


um fator organizacional importante para o entendimento dos fenômenos que ocorrem
em certo nível focal, e que estão sujeitos às restrições de níveis superior e inferior.

5. Com apoio dos estudos de Kandel a respeito do fenômeno de aprendizagem e aquisi-


ção de memória da Aplysia californica, foi demonstrado um percurso possível para a
elaboração de diagramas semióticos que representam, de forma intuitiva e informal,
a dinâmica envolvida. Para isso, foram levados em conta os conceitos a semió-
tica peirceana apresentados no capítulo 1, bem como, os conceitos biossemióticos
expostos acima.

83
Capítulo 4

Autômatos finitos

O capítulo anterior apresentou alguns aspectos relevantes da biossemiótica utilizados como


base teórica para a efetivação da etapa inicial do processo de transposição semiótica, re-
sultando na proposta de um conjunto de diagramas, de caráter informal e intuitivo, capaz
de representar as semioses características de certo fenômeno biológico. Considerando que
o processo de transposição semiótica visa o o desenvolvimento de dispositivos teórico-
computacionais, este capítulo trata da formalização dos diagramas semióticos através da
teoria das categorias que mapeia as diferentes partes desses diagramas em autômatos
finitos, resultando em um novo conjunto diagramático, etapa final do processo.
Segundo Sloman (1995), a formalização do pensamento humano se beneficia da inter-
relação de diferentes formas de representação: das formas baseadas exclusivamente em
lógica simbólica às formas consideradas puramente analógicas. Para o autor, a repre-
sentação analógica (pictorial, icônica, diagramática, topológica, etc.) pode ser definida
como aquela que, ao invés de símbolos totalmente arbitrários, utiliza elementos icônicos
que denotam propriedades e relacionamentos para representar as mesmas propriedades
e relacionamentos presentes no fenômeno em análise, não significando, porém, que a to-
tal correspondência isomórfica entre objeto e representação deva estar necessariamente
presente de maneira sistemática e sem ambiguidades. Uma representação isomórfica, por-
tanto, seria um caso especial de representação analógica. Ainda, para Sloman, não existem
formas de representação que sejam superiores a outras, sendo que a simbiose entre as dife-
rentes maneiras de representar objetos e relações pode resultar numa maior compreensão
do problema em análise:

Representações analógicas (e.g., imagens e diagramas) podem ser muito


poderosas em alguns casos, [...] mas em outros casos [uma representa-
ção] lógica vence, especialmente onde informação disjuntiva, negativa,
condicional ou quantitativa estejam envolvida. [...] Bons matemáticos,
cientistas e engenheiros parecem alternar rapidamente entre diferentes
modos de pensar e raciocinar sobre números, funções numéricas e re-
lações. [...] Esta habilidade de combinar diferentes formas de repre-
sentação, incluindo representações espaciais estáticas e dinâmicas, é um
aspecto característico da inteligência humana. (Ibid.)1

Portanto, os diagramas semióticos desenvolvidos no capítulo anterior são representa-


ções analógicas das possíveis semioses. Deste ponto em diante e utilizando tais diagramas
como inspiração, busca-se a construção de novas representações que possam ser tratadas
computacionalmente. O termo “inspiração” é essencial aqui, pois, os autômatos fini-
tos resultantes — que podem ser entendidos como representações híbridas, parte lógico-
simbólicas, parte analógicas — não pretendem reproduzir no mundo computacional, toda
a complexidade semântica do mundo biológico. De forma ilustrativa, e recuperando a
proposta de transposição semiótica aplicada à vida artificial, a figura 4.1 atualiza a fi-
gura 1.7, destacando as duas etapas do processo com suas representações diagramáticas
características, diagramas semióticos na etapa inicial (desenvolvidos no capítulo anterior)
e diagramas de autômatos na etapa final (a serem desenvolvidos ao longo do presente
capítulo).

Figura 4.1: Representação do processo de transposição semiótica destacando os diagramas


constituintes de cada uma das etapas. Elaboração do autor.

1
Analogical representations (e.g., pictures and diagrams) can be very powerful in some cases, [...] but
in other cases logic wins, specially where disjunctive, negative, conditional, or quantified information is
involved. [...] Good mathematicians, scientists and engineers seem to switch rapidly between different
ways of thinking and reasoning about numbers, numerical functions and relationships. [...] This ability
to combine different forms of representation, including static and dynamic spatial representations, is a
characteristic feature of human intelligence.

85
4.1 Representando os signos

Uma primeira ação com o propósito de formalizar a transposição semiótica através dos
autômatos finitos deve ter como objetivo a própria formalização das unidades semióticas
básicas, os signos. No Capítulo 2, optou-se por uma representação analógica e informal
para denotar as possíveis composições triádicas dos signos. Esta representação é com-
posta por um quadro contendo três linhas e três colunas, referido, a partir deste ponto,
simplesmente como quadro semiótico. As posições de cada linha no quadro semiótico —
superior, centro e inferior — representam respectivamente as categorias da primeiridade,
secundidade e terceiridade, enquanto as posições das colunas — esquerda, centro e direita
— correspondem ao signo em si (uma qualidade, um existente ou uma lei), à forma como
o signo denota seu objeto (por similaridade, por relação de fato ou por hábito) e à forma
como o signo se apresenta ao seu interpretante (como essência, como informação real ou
como conclusão). Cada cruzamento entre linhas e colunas é ocupado por um círculo que
pode estar vazio (branco) ou preenchido (preto); os círculos vazios apenas marcam po-
sições possíveis, os preenchidos significam a presença de certa característica como parte
da composição de um signo. Há também algumas condições para a composição das dez
classes apontadas por Peirce. Primeiro, apenas tríades são consideradas, ou seja, um
signo deve ser composto necessariamente por, pelo menos, três círculos preenchidos, cada
qual correspondendo a um dos elementos da tríade representamen-objeto-interpretante.
Segundo, os três círculos preenchidos nas posições mais baixas de cada representação
correspondem aos elementos que dão nome à classe, acima deles seguem círculos preen-
chidos que denotam as relações de envolvimento e governo. Terceiro, os círculos devem
ser preenchidos de cima para baixo e da esquerda para a direita conforme o crescimento
dos signos, assim um qualissigno icônico remático seria o tipo de signo mais básico, à
partir do qual, outras configurações podem ser alcançadas, primeiramente em direção aos
sinsignos e legissignos, necessariamente nesta ordem; em seguida, dos ícones aos símbolos
passando pelos índices; e, finalmente, dos remas aos argumentos passando pelos dicentes.
Isto leva ao estabelecimento de uma ordem interpretativa capaz de expressar o eventual
crescimento do signo em direção ao tipo mais desenvolvido, dos argumentos (ver fig. 4.2.a).

A dinâmica interpretativa originada pela ação do signo na mente de um intérprete


depende das características deste intérprete. Mas, de maneira geral, esta dinâmica pode
ser representada pela figura 4.2.b, na qual se pode notar a grade com as linhas e colunas
descritas acima. Todos os círculos estão vazios apenas para marcar as posições, indi-
cando que todas as dez classes de signos podem ser representadas ali, do mais básico ao
mais desenvolvido. Desta figura, também depreende-se que certo intérprete (níveis focal e
microssemiótico) pode perceber parcialmente os objetos do ambiente (nível macrossemió-

86
tico); esta percepção é sempre parcial devido à distinção entre o objeto dinâmico — objeto
fora do signo e que não pode ser representado em sua totalidade —, e o objeto imediato
— objeto dentro do signo, como representação mental e independente da sua existência
real. Do lado do interpretante, a relação triádica estabelece o interpretante dinâmico que
se refere à potencialidade semântica do signo na mente do intérprete, ocasionando um
efeito real (reação); a repetição desta dinâmica tende ao interpretante final, associado à
categoria da terceiridade, à lei ou ao hábito.

Figura 4.2: Representação esquemática da ação dos signos: a. ordem interpretativa; b.


dinâmica de interpretação sígnica. Elaboração do autor.

Esta dinâmica se refere, genericamente, a qualquer intérprete envolvido em biossemio-


ses, então, considerando os objetivos da transposição semiótica, seria possível estabelecer
alguma correlação entre a biossemiose e a semiose de máquinas computacionais? Com
relação à possibilidade de máquinas envolvidas em processos semiótico, Nöth (2007) escla-
rece que nenhum dos critérios de semiose encontra-se completamente ausente no mundo
das máquinas e que as diferenças entre semiose de máquina e semiose humana — e, por-
tanto, animal — são uma mera questão de grau, mais perceptível ao se considerar a

87
característica da criatividade semiótica que, no mundo das máquinas, ainda se encontra
em estágio inicial.
O estabelecimento desta correlação passa, portanto, pela escolha de um sistema que
possa representar, no mundo computacional, as relações encontradas no mundo semiótico.
Considerando a representação analógica escolhida para denotar as relações biossemióticas,
na qual a interseção de linhas e colunas apontam para a existência de certas características
de acordo com a posição de cada cruzamento, chega-se, intuitivamente, a uma represen-
tação lógico-formal baseada em matrizes. Considerando-se dois números m e n naturais
e não nulos, uma matriz m x n é uma tabela formada por números reais distribuídos em
m colunas e n linhas; numa matriz qualquer M, cada elemento é indicado por aij , onde o
índice i indica a linha e j indica a coluna referentes à posição do elemento; as linhas são
numeradas de cima para baixo e as colunas da direita para a esquerda (IEZZI; HAZZAN,
2012, 36-D); uma matriz genérica pode ser representada por:

 
a11 a12 ... a1n
 
 a21 a22 ... a2n 
 
M=  
 ... ... ... ... 
 
 
am1 am2 ... amn

Assim, para representar os quadros semióticos em que certas propriedades estão pre-
sentes (círculos preenchidos) ou ausentes (círculos vazios), utiliza-se uma matriz 3 x 3,
cujos elementos são uns e zeros para representar, respectivamente, as condições de pre-
sença e ausência de certa característica. Como exemplo, as seguintes representações para
qualissignos icônicos remáticos e para legissignos indiciais remáticos são equivalentes,
sendo válido o mesmo tipo de correspondência para as outras oito classes de signos:
 
1 1 1
0 0 0 Matriz 3 x 3 equivalente ao diagrama
 

0 0 0

 
1 1 1
1 1 0 Matriz 3 x 3 equivalente ao diagrama
 

1 0 0

Tendo em vista a implementação computacional através de autômatos finitos, cabe,


neste ponto, algumas considerações a respeito de eventuais correspondências sintáticas e
diferenças semânticas entre o mundo biossemiótico representado pelo diagrama formado

88
por quadros e círculos e o mundo computacional que surge a partir da transposição semió-
tica e que utilizará a representação matricial para denotar o alfabeto de uma linguagem
de autômatos. Sendo que:

A sintaxe de uma linguagem [...] não leva em consideração qualquer


informação sobre o significado associado às mesmas. O significado que
se atribui a uma cadeia, ou conjunto de cadeias de uma mesma lingua-
gem, deriva do significado que se atribui às construções da linguagem,
ou seja, decorre diretamente de sua semântica. [...] Devido à sua com-
plexidade, muito maior que a da sintaxe, o estudo da semântica formal
das linguagens está bem menos desenvolvido. No entanto, consideráveis
progressos teóricos e práticos vêm sendo obtidos nas duas últimas déca-
das em semântica formal, configurando tema de estudos avançados na
área das linguagens formais. (NETO; VEGA; RAMOS, 2009, p. 90)

Desta forma, na transposição semiótica o “ato de transpor” baseia-se exclusivamente


na correspondência sintática estabelecida (quadros semióticos ↔ matrizes). Porém, tendo
sido apresentados os significados dos elementos que aparecem nos quadros semióticos
(qualidade, ícone, dicente, argumento, etc.), quais seriam os possíveis significados dos
seus correlatos matriciais no campo computacional? A análise dos elementos de cada
linha da matriz básica pretende responder a esta questão:
Linha superior da matriz: esta linha se apresenta numa posição análoga à ca-
tegoria da primeiridade no quadro semiótico, que diz respeito ao conjunto de todas as
possibilidades de ocorrências sígnicas no mundo dos seres vivos. No mundo computacio-
nal, o conjunto de possibilidades de ocorrências durante a execução de um programa pode
ser estabelecido através dos conjuntos domínio (A) e contradomínio (B) de uma função
matemática. Assim, a primeira linha da matriz aponta para a especificação do mundo do
dispositivo computacional, ou seja, de tudo o que este dispositivo pode “perceber” (acei-
tação de dados de entrada de acordo com o domínio considerado) e de tudo o que pode
ocorrer como consequência desta percepção (processamento e saída de dados de acordo
com o contradomínio), resultando em três elementos (a11 , a12 e a13 ) de valores 1 na linha
superior da matriz, onde a11 (correlato do qualissigno) representa qualquer elemento ge-
nérico do conjunto domínio, a12 (correlato do ícone) representa a relação com o próprio
conjunto A, e a13 (correlato do rema) representa a relação com o conjunto B; todos os ou-
tros elementos da matriz recebem o valor 0 (zero), pois esta é uma matriz que representa
apenas a possibilidade de ocorrência de computação. Estes três elementos necessários e
inseparáveis especificam o mundo do dispositivo computacional, sendo representado, aqui,
pela matriz S111 2 :
2
A escolha da letra S para designar as matrizes procura explicitar a correlação com os signos, e os índice

89
 
1 1 1
 
S111 = 0 0 0
 
 
0 0 0

Linha central da matriz: esta linha se apresenta numa posição análoga à categoria
da secundidade no quadro semiótico, dizendo respeito ao conjunto de todas as ocorrên-
cias factuais no mundo do animal. Computacionalmente, todos os acontecimentos reais
ocorrem em tempo de execução, ou runtime, sendo representados por valores 1 alocados
como os elementos a21 , a22 e a23 , onde: a21 (correlato do sinsigno) representa qualquer
valor específico a ser computado; a22 (correlato do índice) representa um valor submetido
a certa regra de restrição que indica um contexto específico do domínio; e a23 (correlato
do signo dicente), por sua vez, representa uma informação real (um fato inédito) derivado
do contexto em questão. Respectivamente, esses casos são representados pelas matrizes
S211 , S221 e S222 :
     
1 1 1 1 1 1 1 1 1
     
S211 = 1 0 0 , S221 = 1 1 0 e S222 = 1 1 1
     
     
0 0 0 0 0 0 0 0 0

Linha inferior da matriz: esta linha está localizada numa posição análoga à ca-
tegoria da terceiridade no quadro semiótico, que diz respeito aos signos de lei. Na linha
inferior, portanto, estariam presentes representações que apontam para a existência das
regras que resultam nas computações do sistema, dividindo-se em três grupos. Primeiro,
o grupo de regras que resultam nos casos a21 , a22 e a23 acima e que estabelecem tanto
uma simples regra de mapeamento (correlato do legissigno icônico que se materializa em
sua réplica, um sinsigno também icônico), quanto uma regra de restrição de domínio (cor-
relato do legissigno indicial remático que se materializa através de um sinsigno do mesmo
tipo), ou mesmo uma regra que verifica a existência de registros em memória (correlato do
legissigno indicial dicente, materializado em uma réplica do tipo sinsigno indicial dicente).
Todas as três são regras de verificação ou classificação, na medida em que comparam os
composto por três algarismos aponta para o tipo de signo original que inspirou cada uma das matrizes
de acordo com a tabela apresentada por Queiroz (2004, p. 88). Desta tabela, seguem: qualissigno (111),
sinsigno icônico (211), sinsigno indicial remático (221), sinsigno indicial dicente (222), legissigno icônico
(311), legissigno indicial remático (321), legissigno indicial dicente (322), legissigno simbólico remático
(331), legissigno simbólico dicente (322) e argumento (333).

90
valores de entrada com: 1. os valores aceitos pelo domínio; 2. com os valores restritos;
e 3. com eventuais incidências anteriores. Esses casos são representados pelas matrizes
S311 , S321 e S322 :

     
1 1 1 1 1 1 1 1 1
     
S311 = 1 0 0 , S321 = 1 1 0 e S322 = 1 1 1
     
     
1 0 0 1 0 0 1 0 0

O segundo grupo de regras resulta nos casos S221 e S222 acima e dizem respeito a regras
de ação executadas após a verificação e classificação dos valores de entrada, admitindo uma
relação simbólica ou arbitrária. Se o evento é recorrente, a ação resultante é representada
pelo valor 1 como elemento a32 e se aplica ao caso S221 (correlato do símbolo remático
que atua através de uma réplica do tipo sinsigno indicial remático); se o evento é inédito,
é representado pelo mesmo valor 1, na mesma posição a32 , porém, aplicado ao caso S222
(correlato do símbolo dicente, atualizado numa réplica do tipo sinsigno indicial dicente).
As matrizes S331 e S332 correspondem a esses casos:

   
1 1 1 1 1 1
   
S331 = 1 1 0 e S332 = 1 1 1
   
   
1 1 0 1 1 0

Finalmente, o terceiro grupo apresenta uma única matriz 3 x 3 com todas as posições
ocupadas por valores 1, constituindo na regra que classifica eventos inéditos segundo os
critérios que delimitam o contexto em análise. Esta matriz S333 tem caráter de conclusão
do processo computacional (correlato do argumento):

 
1 1 1
 
S333 = 1 1 1
 
 
1 1 1

Esta representação matricial tem por inspiração as representações por vetores de si-
nal propostas por Hinton, McClelland e Rumelhart (1986) — também conhecidas como
representações distribuídas — nas quais, certas propriedades estão presentes ou ausentes,
sendo expressas por uns e zeros. Neste tipo de representação cada objeto ou entidade

91
é representado por uma atividade distribuída por linhas de sinais e nós computáveis,
podendo cada conjunto de linhas e nós estar envolvido na representação de diversas enti-
dades, contrastando com representações locais em que cada sinal representa uma entidade
específica (RAIKONEN, 2007, p. 11). Este tipo de estratégia, podendo ser implementada
através de redes neurais associativas, é considerada uma estratégia efetiva no desenvol-
vimento de robôs envolvidos em cognição corporificada (Ibid., p. 179), tornando-se uma
opção atraente para a implementação física baseada em autômatos finitos inspirados em
fenômenos biológicos.

4.2 Representando os processos semióticos

Tendo sido estabelecida uma representação formal para os signos através de matrizes,
esta seção se preocupa com a construção de uma representação formal para os processos
semióticos ocasionados pela ação sígnica. Para tanto, utiliza-se a teoria das categorias de-
senvolvida por MacLane (1948, 1998) em meados do século XX. Este ramo da matemática
analisa possíveis relações isomórficas entre diferentes estruturas sistêmicas, formalizando
tais relações através do mapeamento entre suas partes. Segundo Vickers, Faith e Rossiter
(2013), a teoria das categorias nasceu com o propósito de demonstrar similaridades entre
diferentes campos da matemática, permitindo abstrações de transposições de uma área
para outra.

4.2.1 Teoria das categorias

A teoria das categorias sustenta que várias propriedades dos sistemas podem ser reduzidas
a relações diagramáticas. Cada diagrama é composto por um conjunto de nós e um
conjunto de arcos que os conecta (ver fig. 4.3). Assim, cada categoria é entendida como
a conjugação de um conjunto de objetos com um conjunto de relações (morfismos) que
ocorrem entre eles (KÖGLER JR, 2009; RAMISCH; HUDITA, 2008). Segundo Spivak
(2014) e também Leinster (2014), de maneira geral, as propriedades de uma categoria são
definidas pela 6-tupla C = (g0 , g1 , δ0 , δ1 , ι, ◦) onde:

• g0 = conjunto de nós (e.g., g0 = {1, 2, 3})

• g1 = conjunto de arcos (e.g., g1 = {a, b, c, i1 , i2 , i3 })

• δ0 = conjunto de funções de origem (e.g., δ0 = {a → 1, b → 1, c → 2, i1 → 1,

i2 → 2, i3 → 3})

92
• δ1 = conjunto de funções de destino (e.g., δ1 = {a → 2, b → 3, c → 3, i1 → 1,

i2 → 2, i3 → 3})

• ι = conjunto de funções de identidade (e.g., ι = {1 → i1 , 2 → i2 , 3 → i3 })

• ◦ = conjunto de funções de composição (e.g., ◦ = {(i1 , i1 ) → i1 , (i2 , i2 ) → i2 ,

(i3 , i3 ) → i3 , (i1 , a) → a, (a, i2 ) → a, (i1 , b) → b, (b, i3 ) → b, (i2 , c) → c,


(c, i3 ) → c, (a, c) → b})

Figura 4.3: Representação genérica de uma categoria. Elaboração do autor com base em
MacLane (1948, 1998).

Desta forma, uma categoria C é entendida como um gráfico reflexivo com uma fun-
ção de composição associada, do tipo ◦ : g1 X g1 → g1 , que respeita as propriedades
de identidade (I) e associatividade (A), garantindo, respectivamente, o isomorfismo de
cada objeto consigo mesmo e o morfismo composto entre dois objetos adjacentes com um
terceiro. Essas propriedades são representadas pelas seguintes expressões:

• ∀a ∈ g1, ι(n1 ) ◦ f = f ◦ ι(n2 ) = f (propriedade de identidade)

• ∀a1 : n1 → n2 , a2 : n2 → n3 , a3 : n3 → n4 ∈ g1 , a1 ◦ (a2 ◦ a3 ) = (a1 ◦ a2 ) ◦ a3 (propri-


edade de associatividade)

4.2.2 Categoria das semioses

Comparando-se a cadeia semiótica com a 6-tupla que define uma categoria, é possível
formalizar a categoria das semioses (CSem) como CSem = (g0 , g1 , δ0 , δ1 , ι, ◦) , onde:

• Cada nó M de g0 corresponde a um momento específico na vida do intérprete sob


ação dos signos ambientais (e.g., g0 = {M 1, M 2, M 3})

• Cada arco s de g1 corresponde a uma semiose, representando o efeito causado pela


ação do signo em certo momento (e.g., g1 = {sa, sb, sc, si1 , si2 , si3 })

93
• Funções origem são definidas de acordo com o arco correspondente (e.g., δ0 = {sa →

M 1, sb → M 1, sc → M 2, si1 → M 1, si2 → M 2, si3 → M 3})

• Funções destino também são definidas de acordo com o arco correspondente (e.g.,
δ1 = {sa → M 2, sb → M 3, sc → M 3, si1 → M 1, si2 → M 2, si3 → M 3})

• Identidade (I): considerando as semioses características de certo fenômeno bioló-


gico, uma função identidade corresponde à persistência da ação de certo signo (e.g.,
ι = {M 1 → si1 , M 2 → si2 , M 3 → si3 })

• Associatividade (A): representa os possíveis morfismos compostos por todas as semi-


oses de uma cadeia semiótica (e.g., ◦ = {(si1 , si1 ) → si1 , (si2 , si2 ) → si2 , (si3 , si3 )

→ si3 , (si1 , sa) → sa, (sa, si2 ) → sa, (si1 , sb), (sb, si3 ) → sb, (si2 , sc) → sc, (sc, si3 )
→ sc, (sa, sc) → sb})

A categoria das semioses, assim formalizada, pode ser representada pelo diagrama da
figura 4.4.

Figura 4.4: Representação da categoria das semioses formalizada através da teoria das
categorias. Os quadros semióticos foram acrescentados apenas para explicitar a ação dos
signos. Elaboração do autor.

4.2.3 Categoria dos autômatos finitos

Segundo Neto, Vega e Ramos (2009, pp. 92-192), os autômatos finitos são dispositivos de
aceitação de sentenças ou cadeias que, no estudo das linguagens formais, apresentam-se
como construções formadas pela justaposição de um número finito de símbolos proveni-
entes de um alfabeto, finito e não-vazio. Os autômatos finitos tornam possível a forma-
lização de linguagens regulares, podendo ser definidos pela conjugação de três tipos de
elementos: estados, funções de transição e um alfabeto de símbolos reconhecíveis. Autô-
matos finitos operam através de uma série de mudanças de estado que o levam de uma
configuração inicial a um estado final, podendo ser classificados como determinísticos

94
ou não-determinísticos. O primeiro caso compreende todos os autômatos que apresentam
uma única possibilidade de movimentação para todas as transições passíveis de serem exe-
cutadas; o segundo caso reúne os autômatos que apresentam mais de uma alternativa de
movimentação para, pelo menos, uma de suas configurações, assim, todas as possibilida-
des são consideradas legítimas e o autômato deve testar, de maneira sucessiva e aleatória,
todas as possibilidades até que um estado final seja obtido ou, após todas as tentativas,
nenhum estado final seja alcançado. Normalmente, os autômatos finitos determinísticos
são mais adequados para a computação serial, enquanto os não-determinísticos para a
computação paralela, porém, sempre existe um autômato determinístico equivalente para
qualquer autômato não-determinístico.
Ainda tendo como base os mesmos autores, um autômato finito determinístico D3
pode ser representado algebricamente como uma quíntupla do tipo D = (Q, Σ, δ, q0 , F ) ,
onde:

• Q = conjunto de estados

• Σ = alfabeto

• δ = conjunto de funções de transição

• q0 = estado inicial

• F = conjunto de estados finais

Como exemplo, considere-se a seguinte representação algébrica como definidora de


um autômato finito determinístico com função de transição total:

Q = {q0 , q1 , q2 }
Σ = {0, 1, 2}
δ = {(q0 , 0) → q0 , (q0 , 1) → q1 , (q0 , 2) → q2 ,
(q1 , 0) → q1 , (q1 , 1) → q1 , (q1 , 2) → q2 ,
(q2 , 0) → q2 , (q2 , 1) → q2 , (q2 , 2) → q2 }
F = {q2 }

Assim, obtém-se o diagrama de transição de estados da figura 4.5, uma representação


diagramática equivalente à notação algébrica na qual o estado inicial é identificado por
um arco sem ligação em sua extremidade inicial, e o estado final é identificado por um
círculo eclipsado.
3
Por questões práticas, utiliza-se, aqui, uma notação ligeiramente diferente da apresentada em Neto,
Vega e Ramos (2009, pp. 150-157), onde a letra M refere-se à identificação dos autômatos. Nesta tese,
utiliza-se D para autômatos finitos determinísticos e N para não-determinísticos.

95
Figura 4.5: Autômato finito determinístico com função de transição total. Elaboração do
autor com base em Neto, Vega e Ramos (2009, p. 153).

Como complemento, seja um exemplo de autômato finito não-determinístico N repre-


sentado pela quíntupla N = (Q, Σ, δ, {q0 }, F ) com a seguinte representação algébrica
definidora:

Q = {q0 , q1 , q2 }
Σ = {a, b, c}
δ = {(q0 , a) → {q1 , q2 }, (q1 , b) → {q1 , q2 }, (q2 , c) → {q2 }}
F = {q1 , q2 }

Para este autômato, também é possível ser estabelecida uma representação diagramá-
tica equivalente (ver fig. 4.6).

Figura 4.6: Autômato finito não-determinístico. Elaboração do autor com base em Neto,
Vega e Ramos (2009, p. 157).

Esta brevíssima introdução à teoria dos autômatos finitos no contexto das lingua-
gens formais, obviamente, não pretende esgotar a complexidade envolvida neste campo,
mas apenas apresentar alguns conceitos básicos necessários para o andamento desta pes-
quisa, o suficiente para que seja desenvolvida a ideia de categoria dos autômatos finitos,
estabelecida diagramaticamente como se segue.
Num primeiro passo, portanto, cabe associar os elementos de um autômato finito à
definição algébrica das categorias, resultando na categoria dos autômatos finitos, definida
através de uma 6-tupla do tipo CAut = (g0 , g1 , δ0 , δ1 , ι, ◦) — do mesmo modo que a
categoria das semioses —, onde:

96
• Cada nó E de g0 corresponde a um estado (e.g., g0 = {E1, E2, E3})

• Cada arco t de g1 corresponde a uma função de transição (t) (e.g., g1 = {ta, tb, tc, ti1 , ti2 , ti3 })

• Funções origem são definidas de acordo com o arco correspondente (e.g., δ0 = {ta →

E1, tb → E1, tc → E2, ti1 → E1, ti2 → E2, ti3 → E3})

• Funções destino também são definidas de acordo com o arco correspondente (e.g.,
δ1 = {sa → E2, tb → E3, tc → E3, ti1 → E1, ti2 → E2, ti3 → E3})

• Identidade: uma função de transição identidade apresentam o mesmo estado como


origem e destino. (e.g., ι = {E1 → ti1 , E2 → ti2 , E3 → ti3 })

• Associatividade: representa o morfismo composto entre funções de transição (e.g.,


◦ = {(ti1 , ti1 ) → ti1 , (ti2 , ti2 ) → ti2 , (ti3 , ti3 ) → ti3 , (ti1 , ta) → ta, (ta, ti2 ) → ta, (ti1 ,
tb) (tb, ti3 ) → tb, (ti2 , sc) → tc, (tc, ti3 ) → tc, (ta, tc) → tb})

A categoria dos autômatos finitos, assim formalizada, pode ser representada pelo
diagrama da figura 4.7:

Figura 4.7: Representação da categoria dos autômatos finitos formalizada através da


teoria das categorias. Elaboração do autor.

4.2.4 Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autô-


matos finitos

De acordo com Hofstadter (1979, p. 49), o termo isomorfismo é aplicado às situações nas
quais duas estruturas complexas podem ser mapeadas entre si, de maneira que, para cada
parte de uma dessas estruturas, exista uma parte correspondente na outra estrutura. A
ideia de isomorfismo entendida no âmbito da teoria das categorias remete ao conceito de
functor:

97
Uma das lições da teoria das categorias é que, quando nos deparamos
com um novo tipo de objeto matemático, devemos sempre perguntar se
há uma noção sensível de “mapa” entre tais objetos. Podemos fazer a
mesma pergunta a respeito das próprias categorias. A resposta é sim, e
um mapa entre categorias é chamado de functor. (LEINSTER, 2014, p.
17)4

Desta forma, o mapeamento — ou functor F — da categoria das semioses CSem


para a categoria dos autômatos finitos CAut deve preservar a estrutura das categorias
e associar seus objetos e seus morfismos, preservando as propriedades de identidade e
associatividade. Então, para investigar o isomorfismo entre as categorias das semioses e
dos autômatos, retoma-se, aqui, o exemplo do comportamento de aprendizagem e memória
da Aplysia californica, porém, de maneira restrita à habituação de curto prazo, suficiente
para o propósito deste momento.

Em resumo, portanto, recorda-se: um animal imaturo exibe reações exageradas para


qualquer estímulo proveniente do seu habitat, mesmo para os estímulos inofensivos; com
a repetição de tais estímulos, o animal aprende a ignorá-los, podendo dirigir sua aten-
ção para questões realmente importantes para a sua sobrevivência. A dinâmica deste
fenômeno, inspirada pelos diagramas semióticos do capítulo anterior, é representada pela
figura 4.8 que ilustra um modelo simplificado da habituação de curto prazo — nível focal:
organismo — e sua respectiva formalização através da categoria das semioses.

Figura 4.8: Diagrama semiótico simplificado referente à habituação de curto prazo e o


diagrama correspondente à categoria das semioses. Elaboração do autor.

Neste exemplo, M1 refere-se ao momento no qual atuam apenas qualissignos, e si1


indica a ação exclusiva desses signos, mantendo o animal em M1. Ao perceber um estímulo
desconhecido (sa), o animal altera seu comportamento colocando-se em atenção ou fuga,
4
One of the lessons of category theory is that whenever we meet a new type of mathematical object,
we should always ask whether there is a sensible notion of ‘map’ between such objects. We can ask this
about categories themselves. The answer is yes, and a map between categories is called a functor.

98
atingindo o momento M2; a cadeia semiótica responsável por este fenômeno pode encadear
vários tipos de signos5 , mas é determinante sua finalização pela réplica de um legissigno
indicial dicente, apontando uma informação real. O animal permanece no momento M2
até retornar ao momento M1 por ação de sa’, quando o evento não estiver mais presente.
Agora, apenas qualissignos voltam a atuar sem que qualquer signo de perigo tenha sido
presenciado. A repetição desta dinâmica leva à aprendizagem. Após a fixação da memória
deste evento não nocivo, na próxima repetição do estímulo, em vez da mudança de estados
de M1 para M2, ocorre a transição de M1 para M3 por ação de sb e influência de um
legissigno indicial remático, ou seja, sem a presença de informação real, afinal o evento
já não é mais desconhecido. O animal permanece neste estado até que uma de duas
situações ocorra: 1. a ausência prolongada do estímulo aprendido causa um efeito de
“esquecimento”, retornando para M1 através de sb’; ou 2. um estímulo do mesmo tipo,
porém mais acentuado e percebido novamente como possível perigo, faz o animal passar
de M3 diretamente a M2 através de sc, estabelecendo um novo ciclo de aprendizagem.
A categoria das semioses envolvidas neste comportamento pode, então, ser mapeada
isomorficamente numa categoria dos autômatos correspondente (ver fig. 4.9).

Figura 4.9: Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos, resul-
tando no seguinte mapeamento: M1 7→ E1, M2 7→ E2, M3 7→ E3, sa 7→ ta, si1 7→ ti1, sb’
7→ tb’, sa’ 7→ ta’, si2 7→ ti2, sb 7→ tb, si3 7→ ti3, sc 7→ tc. Elaboração do autor.

Isto ocorre através do functor F : CSem → CAut , para o qual:

• M 7→ F (M ), significando que, para cada objeto do tipo M ∈ CSem, existe um


objeto E ∈ CAut mapeado;

• f 7→ F (f ), ou seja, para cada morfismo M (s, s0 ) ∈ CSem, corresponde uma fun-


ção do tipo M (s, s0 ) → E(F (s), F (s0 )), que mapeia objetos do tipo E(t, t0 ) ∈ CAut;

• F (iM ) = iF (M ) , preservando a propriedade de identidade, para todo M ∈ CSem;


5
Por motivo de simplificação, nesta análise preliminar não estão presentes os vários signos interme-
diários que foram considerados nos diagramas semióticos desenvolvidos no capítulo anterior. Devido a
esta simplificação, a divisão em momentos considerada aqui não coincide, necessariamente, com a divisão
apresentada anteriormente.

99
• F = (gof ) = F (f ) ◦ F (g), para todo morfismo f : (s, s0 ) e g : (t, t0 ), respeitando a
propriedade de associatividade.

Em resumo, os momentos (M) considerados na categoria das semioses são mapeados


em estados (E), e as semioses (s) mapeadas em funções (t). Com isto, finalmente, pode-se
estabelecer um autômato finito derivado da categoria dos autômatos. A expressão deste
autômato ocorre através de um diagrama de transição de estados que mantem a notação
apresentada por Neto, Vega e Ramos (2009, pp. 153) com q0 inicial (correspondendo a
E1), conforme figura 4.10.

Figura 4.10: Autômato finito derivado da categoria dos autômatos, onde: E1 → q0 , E2


→ q1 , E3 → q2 , ta → a, ti1 → b, tb’ → c, ta’ → e, ti2 → d, tb → f, ti3 → h, tc → g.
Elaboração do autor.

4.3 Autômatos finitos correspondentes aos diagramas


semióticos completos

Tendo sido apresentado o exemplo simplificado do comportamento de habituação de curto


prazo da Aplysia californica, esta seção preocupa-se em efetuar a transposição semiótica
completa para os diagramas estabelecidos no capítulo anterior. Primeiramente, será tra-
tado o diagrama semiótico que tem o organismo como nível focal, logo após, o diagrama
semiótico que considera o nível celular como nível focal.

4.3.1 Nível focal: organismo

Considerando os momentos envolvidos, de M1 a M5, segue a análise de cada passagem de


momento, resultando em representações parciais da categoria das semioses envolvidas. Ao
final, os diagramas parciais são conjugados para formar o diagrama integral da categoria
das semioses.

100
Diagrama parcial 1 (M1, M2 e M3): Conforme a figura 4.11, em M1, o animal se
encontra em estado de primeiridade, sofrendo a ação exclusiva de qualissignos, represen-
tados pelo morfismo si1. A presença de legissignos icônicos, morfismo sa, leva o animal a
M2, lá permanecendo enquanto a ação destes signos persistir (si2). Não sendo um evento
relevante, ou seja, uma mera figura que se destacou do fundo mas sem qualquer importân-
cia naquele instante, ao encerrar a persistência de si2, ocorre o retorno para M1 através
do morfismo sa’. Porém, sendo um evento relevante (e.g. uma figura de certa dimensão
que exige uma consideração maior por parte da aplísia), indicando um contexto específico
(e.g. eventual ameaça), ocorre a mudança de M2 para um momento intermediário M2’
(morfismo sc). Este momento intermediário (si2’) é o limiar do reconhecimento ou não
do evento em questão. Sendo reconhecido, o morfismo sc leva de M2’ para M3, represen-
tando a ação de legissignos indiciais remáticos. Se apenas esta classe de signos estiver em
ação, sem qualquer simbolização de perigo, o estado é alterado de M3 para M1 através
de sd e o animal retorna ao estado de primeiridade. Porém, existindo um símbolo de
perigo por ação de legissignos simbólicos remáticos, ocorre a passagem de M3 para M3’,
permanecendo assim (morfismo si3’) enquanto persistir o perigo. Ao final, quando não
existir mais qualquer vestígio simbólico de um evento nocivo, a aplísia retorna ao estado
de primeiridade (morfismo sf ).

Figura 4.11: Diagrama parcial representando a categoria das semioses envolvida nos mo-
mentos M1, M2 e M3, construído a partir dos elementos correspondentes no diagrama
semiótico. Elaboração do autor.

Diagrama parcial 2 (M1, M2, M4 e M5): para esta parte do diagrama, as


transições entre os momentos M1, M2 e M2’ ocorrem como apresentado acima, assim,

101
conforme a figura 4.12, ao atingir o momento M2’, para o caso em que o evento em
questão não é reconhecido, a passagem ocorre de M2’ para M4, através do morfismo sg,
representando a ação de legissignos indiciais dicentes. Em M4, o morfismo si4 indica
a permanência momentânea ali até que seja identificada a existência de algum elemento
simbólico que caracterize perigo potencial — presença de legissignos simbólicos dicentes
—, representados pelo morfismo si e ocasionando a transição para M4’ (si4’ indica a
persistência do momento). Não ocorrendo qualquer evidencia de evento nocivo, atua
o morfismo sh, promovendo o retorno para M1. Estando em M4’, no entanto, duas
consequências podem ter lugar: 1. pelo morfismo sj, após constatar-se afastado o perigo,
ocorre a transição de M4’ para M1 sob ação de legissignos indiciais dicentes e sem que o
animal tenha ainda aprendido algo sobre este novo encontro; ou 2. Após certo número de
repetições deste evento, por ação de legissignos simbólicos argumentos, a aplísia “entende”
o caráter nocivo atrelado ao novo evento, realizando a transição de M4’ para M5 através
do morfismo sk. Finalmente, o estado M5 persiste enquanto durar a situação de perigo
(si5), após o qual, ocorre a transição para M1 pelo morfismo si, finalizando o processo
de aprendizagem.

Figura 4.12: Diagrama parcial representando a categoria das semioses envolvida nos mo-
mentos M1, M2, M4 e M5 construído a partir dos elementos correspondentes no diagrama
semiótico. Elaboração do autor.

Diagrama integral (M1, M2, M3, M4 e M5): cabe agora a união dos diagramas
parciais formando a categoria das semioses para o comportamento de aprendizagem da
Aplysia californica. A figura 4.13 apresenta o resultado e já acrescenta o diagrama re-
presentativo da categoria dos autômatos finitos correspondente, obtido pelo mapeamento
entre as partes como visto anteriormente. Por isomorfismo, recapitulando, momentos M
são transpostos em estados E, enquanto as semioses s são transpostas em transições t.

102
Figura 4.13: Diagramas correspondentes à categoria das semiose e à categoria dos autô-
matos finitos obtidos pela transposição semiótica. Elaboração do autor.

Finalizando o processo de transposição semiótica, um autômato finito não-determinístico6


pode ser construído a partir da categoria correspondente, conforme ilustrado pelo dia-
grama de transição de estados da figura 4.14 cuja notação algébrica definidora é estabe-
lecida por:

Q = {q0 , q1 , q10 , q2 , q20 , q3 , q30 , q4 }


Σ = {0, 1}
δ = {(q0 , 0) → {q0 }, (q0 , 1) → {q1 },
(q1 , 0) → {q0 }, (q1 , 1) → {q1 , q10 },
(q10 , 0) → {q2 }, (q10 , 1) → {q10 , q3 },
(q2 , 0) → {q2 , q0 }, (q2 , 1) → {q20 },
(q20 , 0) → {q0 }, (q20 , 1) → {q20 },
(q3 , 0) → {q0 }, (q3 , 1) → {q3 , q30 },
(q30 , 0) → {q0 }, (q30 , 1) → {q4 }}
F = {q0 }

6
Para seguir a nomenclatura de Neto, Vega e Ramos (2009) para os diagramas de transição dos
autômatos finitos que apresentam o estado inicial com índice 0 (q0 ), um leve deslocamento dos índi-
ces é necessário, assim E1 corresponde a q0 , E2 corresponde a q1 , e assim, sucessivamente até E5 que
corresponde a q4 .

103
Figura 4.14: Autômato finito não-determinístico derivado da categoria dos autômatos.
Elaboração do autor.

Nesta figura, as matrizes acrescentadas não fazem parte dos diagramas de transição
de estados convencionais. Neste caso, elas foram acrescentadas para indicar a matriz que
atua em cada momento e qual dos seus elementos determina a transição. A matriz básica,
de notação S111 , está presente no início indicando a especificação do “mundo perceptível”
do autômato (símbolo 1 nas posições a11 , a12 e a13 ). Assim, sucessivamente, os elementos
das matrizes se apresentam como valores de entrada para efetuar as transições de estados
segundo a sintaxe explicitada pelo autômato:

• Em q0 há um teste de validade para certa entrada de dados de acordo com o do-


mínio, 0 não satisfaz o domínio mantendo o autômato no estado inicial, enquanto
1 representa uma entrada válida fazendo o autômato transitar de q1 para q2 — no
mundo da aplísia, corresponderia à percepção de uma entidade qualquer, ou à pas-
sagem da primeiridade à secundidade através da presença de um legissigno icônico,
transpostos como matrize S311 ;

• Em q1 testa-se uma restrição de domínio sendo que 0 indica falha no teste e retorno
a q0 enquanto 1 indica sucesso e transição para q10 — para o animal, a falha no
teste significa o retorno à primeiridade efetuada pela ausência de elemento indicial

104
no legissigno icônico (S311 ), o sucesso, no entanto, significa que a atuação sígnica
passou a ocorrer pela ação de um legissigno indicial remático, transposto como
matriz S321 ;

• Em q10 , há um teste de reconhecimento, ou seja, já existe registro relativo ao evento


em questão no histórico de eventos? Ou trata-se de um evento inédito? A matriz
S321 indica um evento já experienciado promovendo a transição para q2 , enquanto
S322 indica um evento inédito ocasionado a transição para q3 — para a aplísia,
corresponde à ação de um legissigno indicial remático ou um legissignos indicial
dicente, respectivamente;

• Em q2 , há um teste de contexto. Certo fato (teste de domínio) é relevante (teste


de restrição) e conhecido (teste de reconhecimento), mas, de acordo com o contexto
atual, uma ação deve ser realizada ou não? Se não deve ser realizada, a transição
ocorre de q2 para q0 , finalizando o processo. Caso contrário, a transição ocorre de q2
para q20 , permanecendo neste estado até que o contexto se altere — esta sequência de
transições corresponde ao encontro da aplísia com um fato percebido, reconhecido
e relacionado com o contexto de periculosidade, fazendo com que o animal o ignore
(ação exclusiva de um legissigno indicial remático, transposto em S321 ) ou apresente
uma reação de defesa (ação de um legissigno simbólico remático, transposto em
S331 );

• Em q3 , há também um teste de contexto, mas para um evento não conhecido.


Então, certo fato (teste de domínio) é relevante (teste de restrição) e desconhecido
(teste de reconhecimento). Assim, além de uma eventual ação em concordância
com o contexto, o sistema deve ser capaz de classificar o evento inédito de acordo
com esse mesmo contexto. Esta classificação ocorre por repetição, de q3 para q0
quando satisfaz o contexto, ou de q3 para q30 quando não o satisfaz — no mundo
do animal isto corresponde justamente ao processo de habituação e sensibilização
para o contexto de perigo, com um legissigno indicial dicente transposto em S322
para o primeiro caso, ou um legissigno simbólico dicente transposto em S332 para o
segundo caso;

• Finalmente, em q30 e após certo número de repetições, ocorre a transição para q4 ,


finalizando o processo de classificação para o novo evento. O autômato permanece
neste estado até que o contexto se altere — para a aplísia, corresponde à finalização
da aprendizagem através de um legissigno simbólico argumento transposto em S332 .

105
4.3.2 Nível focal: células

Esta seção encerra o presente capítulo com a apresentação da transposição semiótica


considerando os diagramas relacionados às células como nível focal da análise. São apre-
sentados os autômatos finitos relacionados ao circuito mediador e circuito modulatório.

Circuito mediador: como visto no capítulo anterior, a ação de defesa da aplísia


ocorre devido ao aumento na concentração de glutamato na fenda sináptica entre os
neurônios sensor e motor. Nos momentos M1, M2 e M3 para eventos não nocivos a
quantidade de glutamato disponível não se altera. No entanto, em M3’ (ameaça conhe-
cida) e M4 (evento desconhecido), ocorre a descarga de glutamato responsável pela ação
motora. A figura 4.15 representa esta dinâmica. Nela, em qualquer momento entre M1
e M3, representado por M1/3, apenas qualissignos estão presentes, apontando para a
ausência de alterações celulares. Quando uma ameaça conhecida se apresenta, instala-se
o potencial de ação (legissigno indicial remático) responsável pela consequente descarga
de glutamato (morfismo sa), realizando a transição de M1/3 para M3’. O sistema per-
manece assim (si3’) até que o perigo se afaste, retornando a M1/3 por ação do morfismo
sa’). A transição para M4, por ação do morfismo sb ocorre de maneira semelhante. Para
a célula, não importa se o disparo do potencial de ação se dá pele presença de uma ameaça
conhecida ou pela presença de eventos desconhecidos. O sistema, então, permanece em
M4 (si4), e o retorno para M1/3 acontece em três situações: através do morfismo sb’
quando o evento desconhecido se mostrar inofensivo; através das transições sc e sf quando
o evento desconhecido se mostrar nocivo, porém sem que tenha ocorrido o aprendizado;
e através das transições sc, sd e se quando o evento nocivo for aprendido como tal.

Figura 4.15: Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas na ação do


circuito mediador, obtido através do diagrama semiótico correspondente. Elaboração do
autor.

106
A transposição semiótica para o circuito mediador ocorre, primeiramente, através
do isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos apresentado na
figura 4.16.

Figura 4.16: Diagramas correspondentes à categoria das semiose e à categoria dos autô-
matos finitos relativos ao circuito mediador. Elaboração do autor.

Finalmente, o estabelecimento do autômato finito correspondente, representado na


figura 4.17, encerra o processo para o circuito mediador.

Figura 4.17: Autômato finito correspondente ao circuito mediador. Elaboração do autor.

A notação algébrica definidora deste autômato é descrita como:

107
Q = {q0 , q1 , q2 , q20 , q3 }
Σ = {0, 1}
δ = {(q0 , 0) → {q0 }, (q0 , 1) → {q1 , q2 },
(q1 , 0) → {q0 }, (q1 , 1) → {q1 },
(q2 , 0) → {q0 }, (q2 , 1) → {q2 , q20 },
(q20 , 0) → {q0 }, (q20 , 1) → {q20 , q3 },
(q30 , 0) → {q0 }, (q30 , 1) → {q3 }}
F = {q0 }

Circuito modulatório: a dinâmica do circuito modulatório é semelhante à do cir-


cuito mediador, no entanto, apenas os momentos M4, M4’ e M5 estão ativos. A descarga
deste circuito é a serotonina que pode ocasionar duas reações: 1. alteração da quantidade
de glutamato disponível para o circuito mediador (memória de curto prazo) através do
aumento de vesículas e também da quantidade de glutamato em cada uma dessas vesícu-
las, e 2. alteração na quantidade de terminais ativos (memória de longo prazo), através
da migração das quinases ao núcleo da célula. O que vai determinar qual das ocorrências
vai tomar parte em certa ocasião é a frequência da repetição do evento em questão. Para
a memória de curto prazo, apenas alterações funcionais estão presentes — como visto no
capítulo anterior, pela ação de legissignos indiciais remáticos. Para a memória de longo
prazo, alterações estruturais tomam lugar — como também visto no capítulo anterior,
pela ação de legissignos simbólicos remáticos, pois se tratam de alterações mediadas pelo
código genético, portanto, com a presença de caráter simbólico. Disto, decorre um dia-
grama para representar a categoria das semioses que se apresenta muito semelhante ao seu
correspondente no circuito mediador (Ver Fig. 4.18). Assim, na ocorrência de um evento
desconhecido e “entendido” como não nocivo, ocorre a transição de E1/3 para E4 por
ação do morfismo ta (correspondendo à ação de um legissigno indicial remático), e retorno
para E1/3 por ação do morfismo ta’. Sendo percebido como nocivo, ocorre a migração
de E4 para E4’ e retorno para E1/3 quando a ameaça não for mais detectada. Esta
série se repete, aumentando a disponibilidade de serotonina e estabelecendo a memória
de curto prazo. No entanto, ao atingir certa quantidade de repetições, ocorre uma nova
transição, agora de M4’ para M5, ocasionada pelo morfismo sd, concretizando o processo
de aprendizagem através da memória de longo prazo. Como os diagramas apresentados
expressam, exclusivamente, preocupações com as questões sintáticas, tanto o processo de
habituação quanto o de sensibilização podem ser representados pelos mesmos diagramas.
As diferenças seriam apenas interpretativas, na habituação de curto prazo ocorre a di-
minuição da quantidade de neurotransmissores disponíveis, enquanto na sensibilização de
curto prazo ocorre o inverso; na habituação de longo prazo ocorre a diminuição do número

108
de terminais ativos entre os neurônios sensor e motor, enquanto na sensibilização de longo
prazo este número é aumentado.

Figura 4.18: Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas na ação do


circuito modulatório, obtido através do diagrama semiótico correspondente. Elaboração
do autor.

Da mesma forma que no circuito mediador, a transposição semiótica para o circuito


modulatório ocorre, primeiramente, através do isomorfismo entre as categorias das semi-
oses e dos autômatos finitos apresentado na figura 4.19

Figura 4.19: Diagramas correspondentes à categoria das semiose e à categoria dos autô-
matos finitos relativos ao circuito modulatório. Elaboração do autor.

Finalmente, o estabelecimento do autômato finito correspondente, representado na


figura 4.20, encerra o processo para o circuito modulatório.

109
Figura 4.20: Autômato finito correspondente ao circuito modulatório. Elaboração do
autor.

A notação algébrica definidora deste autômato é descrita como:

Q = {q0 , q1 , q10 , q2 }
Σ = {0, 1}
δ = {(q0 , 0) → {q0 }, (q0 , 1) → {q1 },
(q1 , 0) → {q0 }, (q1 , 1) → {q1 , q10 },
(q10 , 0) → {q0 }, (q10 , 1) → {q10 , q2 },
(q2 , 0) → {q0 }, (q2 , 1) → {q2 }}
F = {q0 }

4.4 Resumo

Este capítulo procurou formalizar computacionalmente, através de autômatos finitos, as


relações encontradas na análise semiótica do comportamento de aprendizagem e memória
da Aplysia californica decorrentes do capítulo anterior, finalizando, assim, o processo de
transposição semiótica. Abaixo, o resumo dos tópicos tratados:

1. Foi estabelecida uma representação dos signos baseada em matrizes 3 x 3. Cada


linha desta matriz mantém uma relação de correspondência com as categorias de
primeiridade, secundidade e terceiridade da teoria geral dos signos de Peirce. As

110
colunas, por seu lado, correspondem ao signo em si e sua relação com o objeto e
com o interpretante.

2. Apresentou-se a teoria das categorias como o ramo da matemática que analisa as


possíveis relações isomórficas entre diferentes estruturas sistêmicas, promovendo o
mapeamento entre as partes de tais estruturas.

3. Num segundo momento, estabeleceu-se a representação dos processos semióticos


através da teoria das categorias. As relações diagramáticas resultantes, compostas
por arcos e nós, determinaram a categoria das semioses.

4. Foi apresentada uma breve introdução ao conceito de autômatos finitos e, também


através da teoria das categorias, formalizou-se a categoria dos autômatos finitos.

5. Levado em consideração o conceito de functor da teoria das categorias, estabeleceu-


se, por isomorfismo, o mapeamento entre as categorias das semioses e dos autômatos
finitos.

6. Retomando o caso da Aplysia californica, foram desenvolvidos os autômatos finitos


decorrentes da aplicação da transposição semiótica a este fenômeno biológico.

111
Capítulo 5

Estudo de casos

Enquanto os capítulos 3 e 4 tiveram como preocupação a formalização do processo de


transposição semiótica utilizando o fenômeno de aprendizagem e memória da Aplysia ca-
lifornica como objeto de estudo para estabelecer um método ou procedimento adequado,
o presente capítulo procura verificar a possibilidade de generalização deste mesmo proce-
dimento através do estudo de dois casos. O primeiro desses casos trata do fenômeno de
tradução gênica, tendo o ribossomo como entidade interpretadora; o segundo caso trata
do comportamento de um caranguejo, o Pagurus longicarpus, envolvido numa dinâmica
econômica, a cadeia de vacância.

5.1 Tradução gênica

5.1.1 Introdução

Em genética, o ácido desoxirribonucleico (DNA) representa o genótipo, conjunto de in-


formações responsáveis pela replicação e procriação. Em genética, o ácido desoxirribonu-
cleico (DNA) representa o genótipo, conjunto de informações responsáveis pela replicação
e procriação. A proteína, por sua vez, representa o fenótipo de um indivíduo ou de uma
espécie, ou seja, relaciona-se com a química da vida, com a respiração, com o metabo-
lismo e com o comportamento. O ácido ribonucleico (RNA) é a substância química que
liga esses dois mundos: informação e expressão. Finalmente, tradução gênica é o nome
dado ao processo que, partindo da informação genética, fabrica as proteínas necessárias à
vida (RIDLEY, 1999, pp. 11-32).

Na tradução gênica, uma fita de RNA mensageiro (RNAm) é produzida no núcleo


celular, numa etapa inicial chamada de transcrição. Esta fita, então, migra para o cito-
plasma onde é acolhida pelo ribossomo. O ribossomo é uma estrutura bipartida composta
de RNA ribossômico (RNAr) que atua como uma máquina de tradução cujo resultado é
a fabricação de uma proteína, estrutura composta por uma ou várias cadeias de aminoá-
cidos. Primeiro, a fita se acopla ao ribossomo que convoca uma outra substância também
presente no citoplasma, o RNA transportador (RNAt), que é responsável por levar até o
ribossomo o aminoácido que inicia a tradução da mensagem do gene. Então, o ribossomo
se posiciona no início da cadeia que dará origem à proteína em questão. Após o início
do processo, uma cadeia de aminoácidos é formada pela convocação de outros RNAt que
transportam novos aminoácidos segundo a especificação da fita de RNAm (LODISH et
al., 2012, pp. 115-170).

Este processo ocorre guiado pelos códons, que são sequências de três bases hidrogena-
das. No RNA essas bases podem ser Adenina (A), Guanina (G), Uracila (U) e Citosina
(C). Uma fita de RNAm contém uma sequência de códons a ser traduzida pelo ribossomo.
O ribossomo, ao se mover ao longo da fita de RNAm, traduz cada códon encontrado em um
aminoácido específico dentre vinte verificáveis. Ao ler certo códon, o ribossomo convoca
o RNAt capaz de se acoplar a ele através de seu anticódon, sendo que, os acoplamentos
possíveis são A com U e G com C. Cada RNAt convocado transporta um aminoácido
específico. Após a leitura de todos os códons, forma-se uma proteína, ou seja, uma cadeia
de aminoácidos dobrada em uma forma distinta de acordo com sua sequência. Dentre os
vinte códons, a sequência AUG indica o início da mensagem a ser traduzida, e as sequên-
cias UAA, UAG e UGA indicam o final da mensagem. Assim, o códon inicial (AUG) só
poderá se acoplar a um RNAt que contenha o anticódon UAC (Ibid.).

O trabalho da máquina ribossômica de tradução ocorre de maneira precisa e rápida.


Percebe a presença de RNAm e, num primeiro momento, trabalha com o objetivo de
encontrar o início da mensagem; num segundo momento, ajusta seu comportamento para
a tradução propriamente dita. Assim, esta seção tem por objetivo aplicar a transposi-
ção semiótica ao fenômeno de tradução gênica, restringindo-se unicamente à atuação do
ribossomo, que se apresenta como a entidade interpretadora das semioses envolvidas. Pri-
meiro, será desenvolvido o diagrama semiótico característico, de acordo com os resultados
obtidos no capítulo 3. Segundo, será estabelecido um autômato finito que corresponda
ao diagrama semiótico, finalizando o processo de acordo com o que foi desenvolvido no
capítulo 4.

5.1.2 Diagrama semiótico

O nível focal adequado ao estudo da transposição semiótica do fenômeno de tradução


gênica é o nível das organelas celulares, sendo o ribossomo a unidade interpretadora em
questão. Consequentemente, o nível inferior ou microssemiótico, iniciador dos processos,

113
é o nível molecular das ligações genéticas possíveis, e o nível superior ou macrossemiótico,
que apresenta as restrições naturais, é o nível do citoplasma, ambiente onde se encontram
o ribossomo, a fita de RNAm e as moléculas de RNAt. Nesta análise, são considerados
cinco momentos distintos: I - ribossomo em estado de espera, II - identificação da fita de
RNAm ou acoplamento, III - busca pelo início da mensagem, IV - fabricação da proteína,
e V - fechamento da cadeia pela identificação do códon final. Assim, a seguinte descrição
pode ser estabelecida:

Nível macrossemiótico (condições de fronteira): este é o nível das entradas


(inputs) e saídas (outputs). No momento I, o ribossomo se encontra mergulhado no
citoplasma em estado de espera, aguardando alguma fita para ser traduzida, portanto,
a entrada (e1) e a saída (s1) são neutras, sem que qualquer ação ocorra. No momento
II, mediante a necessidade celular em fabricar certa proteína, a presença de uma fita
de RNAm provoca o início do processo de tradução gênica. Neste instante, ocorre o
acoplamento da subparte menor do ribossomo com o sítio de ligação da fita de RNAm
(e2). Após essa ligação, a subparte maior do ribossomo acopla-se a uma molécula de
RNAt que carrega uma unidade do aminoácido metionina (s2). O RNAt convocado deve
apresentar códon UAC, necessário para acoplamento ao códon AUG da fita de RNAm que
é indicativo do início da mensagem. No momento III, após o acoplamento entre a subparte
maior do ribossomo e o RNAt (UAC), o ribossomo se desloca para o primeiro códon —
deste momento em diante, apenas processos internos ao ribossomo tomam parte, não
havendo novas entradas provenientes do ambiente. Então dois resultados são possíveis:
se este códon for do tipo AUG, ele se acopla ao RNAt (UAC) produzindo a metionina na
subparte maior do ribossomo (s3) e o sistema passa para a análise do próximo códon, caso
contrário, o ribossomo se desloca adiante, códon após códon, permanecendo na atividade
de busca até encontrar o início da mensagem. No momento IV, tendo identificado o início
da mensagem contida na fita de RNAm com a consequente fabricação da metionina, o
ribossomo se posiciona sobre o próximo códon e produz o aminoácido correspondente
(s4). O ribossomo reproduz esse comportamento de forma recursiva (s4’, s4”,...) até que
encontre um códon de fechamento, passando para o próximo momento. No momento V,
ao encontrar um dos códons de fechamento (UAA, UAG ou UGA) o ribossomo “desliga”
a máquina de fabricação sem agregar nenhum novo aminácido, liberando no citoplasma a
proteína fabricada. Ver fig.5.1 (Citoplasma).

Nível microssemiótico (condições iniciadoras): no momento I, não existe qual-


quer estímulo para o início da ação do ribossomo (ausência de fitas de RNAm para serem
traduzidas), portanto, o nível microssemiótico permanece estável sem que qualquer reação
química ocorra. No momento II, a presença de uma fita de RNAm provoca reações quí-
micas compatíveis com os acoplamentos da fita de RNAm e do RNAt (UAC) que auxilia

114
a busca pelo início da mensagem no momento seguinte. Realizados os acoplamentos, no
momento III ocorre a busca pelo início da mensagem, o ribossomo percorre a fita até que
uma reação química ocorra entre o códon AUG e o anticódon UAC, apenas esta reação
química é possível neste momento. Tendo sido encontrado o início da mensagem, no
momento IV tomam parte uma sequência de novas reações químicas para a formação da
cadeia de aminoácidos de acordo com o código presente na fita de RNAm. Finalmente, no
momento V, ao encontrar um códon específico que indique o final do processo de tradução,
ocorre a última reação química que fecha a cadeia, liberando a proteína fabricada. Ver
fig.5.1 (Moléculas).

Nível focal (nível de interesse): de maneira semelhante ao fenômeno de apren-


dizagem da aplísia, os processos semióticos que tomam parte neste nível também são
determinados pelas condições de fronteira do nível macrossemiótico e pelas condições
iniciadoras do nível microssemiótico. No entanto, tendo o ribossomo como entidade inter-
pretadora, as possibilidades de ocorrências de semioses dependem das reações químicas
possíveis. Assim, no momento I, apenas qualissignos atuam sobre o intérprete, já que
nenhuma fita de RNAm está presente para tradução. Pode-se deduzir que o ribossomo
se encontra em estado de primeiridade, no qual, ocorrências são meras possibilidades.
No momento II (acoplamentos), uma fita de RNAm é acoplada à subparte inferior do
ribossomo e um RNAt que contenha o anticódon UAC é acoplado à subparte superior do
ribossomo. Esses acoplamentos ocorrem por reações químicas específicas, sem que haja
necessidade de interpretações simbólicas. Pode-se considerar, portanto, que isto ocorre
por ação de sinsignos icônicos governados por legissignos também icônicos. No momento
III (Busca pelo início da mensagem), o ribossomo procura unicamente pelo códon AUG,
indicador do início da mensagem, assim, sinsignos indiciais remáticos governados por le-
gissignos do mesmo tipo estariam envolvidos. O ribossomo é mantido neste estado de
busca até que a o encontro entre o códon AUG com o anticódon UAC aconteça, levando
o sistema ao momento IV relativo à tradução. No momento IV, ocorre a “leitura” e
consequente tradução da fita de RNAm. Neste caso, não há apenas uma possibilidade de
resultado, pois, tal resultado depende da interpretação do código genético pelo ribossomo.
Pode-se considerar, portanto, que está em questão a presença de certo caráter simbólico
representado pelo código genético, cuja ação se dá através de legissignos simbólicos remá-
ticos. Este momento se prolonga recursivamente até que o ribossomo encontre o códon
final, provocando o fechamento da cadeia de aminoácidos e liberando a proteína. No mo-
mento V, da mesma forma que no momento III, estariam envolvidos legissignos indiciais
remáticos, pois existe aí um indicador de finalização. Ver fig.5.1 (Organelas)

115
Figura 5.1: Diagrama semiótico do fenômeno de tradução gênica (nível focal: organelas).
e1 a e5 representam as entradas, s1 a s5 representam as saídas. P, S e T apontam,
respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade e terceiridade. Elaboração do
autor.

116
5.1.3 Autômato finito

Tendo sido construído o diagrama semiótico para o fenômeno de tradução gênica, esta
seção tem como meta a construção do autômato finito correspondente. Considerando os
momentos envolvidos, de M1 a M5, segue a análise de cada passagem de momento. Em
ordem, obtém-se: a categoria das semioses envolvidas, a categoria do autômato finito (por
isomorfismo entre as categorias) e o diagrama de transição de estados deste autômato.

Categoria das semioses para os momentos M1, M2, M3, M4 e M5

Conforme a figura 5.2, no momento M1, o ribossomo se encontra envolto pelo citoplasma
e em estado de primeiridade, sem que qualquer fita de RNAm esteja presente, portanto,
sofre apenas a ação de qualissignos icônicos remáticos, representados pelo morfismo si1.
A presença de uma fita de RNAm (legissignos icônicos remáticos) provoca o morfismo
sa, levando o ribossomo ao momento M2, onde permanece (si2) até que os acoplamentos
sejam efetuados: entre a subparte inferior do ribossomo e a fita de RNAm, e entre a
subparte superior do ribossomo e o RNAt que transporta o aminoácido referente ao códon
UAC, necessário para o início do processo de tradução gênica.

O próximo passo exige a identificação do início da mensagem genética contida na fita


de RNAm. Este início é indicado pela presença do códon AUG na fita. Desta forma,
o sistema transita do momento M2 para o momento M3 pela ação do morfismo sb,
permanecendo ali até que o início da fita seja encontrado (si3). Ao passar sobre o códon
AUG (legissigno indicial remático), encontra-se o início da mensagem o que provoca a
transição para o momento M4 através da ação do morfismo sc. Os momentos M4 e
M4’ alternam-se por ação dos morfismos sd e sd’ de maneira recursiva, representando,
respectivamente, as ações de legissignos simbólicos remáticos (devido ao caráter simbólico
de cada códon) e legissignos indiciais remáticos (indicando o final da leitura de cada
códon).

As transições recursivas entre os momentos M4 e M4’ se repetem até a leitura do


último códon relevante, então, pela ação de legissignos icônicos remáticos (devido a ausên-
cia de novos símbolos a serem lidos, mas sem que ainda tenha sido identificado o final da
mensagem), o sistema transita para M5 através do morfismo (se), permanecendo ali até
identificar um códon de fechamento (legissigno indicial remático), encerrando o processo
e liberando a proteína fabricada. Uma última transição (sf ) ocorre levando o ribossomo
de volta ao momento M1 onde aguarda uma nova fita ne RNAm para tradução.

117
Figura 5.2: Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas nos momentos
M1, M2, M3, M4 e M5, construído com base no diagrama semiótico correspondente.
Elaboração do autor.

Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos

A figura 5.3 apresenta os diagramas correspondentes às categorias das semioses e dos


autômatos finitos. O segundo diagrama foi obtido por isomorfismo através do mapeamento
da categoria das semioses na categoria dos autômatos finitos. Como visto anteriormente,
momentos M são transpostos em estados E, enquanto as semioses s são transpostas em
transições t.

118
Figura 5.3: Diagramas correspondentes às categorias das semiose e dos autômatos finitos
obtidos pela transposição semiótica. Elaboração do autor.

Diagrama de transição de estados do autômato finito correspondente

Finalmente, o autômato finito correspondente ao fenômeno de tradução gênica pode ser


construído a partir da categoria correspondente, sendo ilustrado pelo diagrama de tran-
sição de estados da figura 5.4, cuja notação algébrica definidora é estabelecida por:

Q = {q0 , q1 , q2 , q3 , q4 , q40 , q5 }
Σ = {0, 1}
δ = {(q0 , 0) → {q0 }, (q0 , 1) → {q1 },
(q1 , 0) → {q2 }, (q1 , 1) → {q1 },
(q2 , 0) → {q2 }, (q2 , 1) → {q3 },
(q3 , 0) → {q3 , q4 }, (q3 , 1) → {q30 },
(q30 , 0) → {q3 }, (q30 , 1) → {q30 },
(q4 , 0) → {q4 }, (q4 , 1) → {q0 }}
F = {q0 }

119
Figura 5.4: Autômato finito não-determinístico relativo ao fenômeno de tradução gênica,
derivado da categoria dos autômatos. Elaboração do autor.

Deste diagrama de transição de estados, a seguinte descrição pode ser estabelecida:

• Em q0 está presente a matriz básica S111 indicando a especificação do mundo per-


ceptível do autômato (símbolo 1 nas posições a11 , a12 e a13 ). Da mesma forma que
apresentado no capítulo 4, em q0 ocorre o teste de validade para a entrada de dados
de acordo com o domínio, 0 não satisfaz o domínio mantendo o autômato no estado
inicial, enquanto 1 representa uma entrada válida provocando a transição de q0 para
q1 — na tradução gênica, corresponderia à presença de uma fita de RNAm, fazendo o
ribossomo passar da primeiridade para a secundidade; ação de um legissigno icônico
remático, transpostos como matrize S311 ;

• Em q1 há duas possibilidades: primeiro, o símbolo 1 mantem o sistema em q1 ;


segundo, o símbolo 0 promove a transição para q2 — considerando o ribossomo, 1
representa a presença da fita de RNAm, enquanto 0 (ausência do caráter indicial
em S311 ) denota a necessidade de busca pelo início da mensagem, promovendo a
transição para q2 (ainda ação de um legissigno icônico remático).

• Em q2 , ocorre um teste de restrição. Havendo uma fita de RNAm (teste de domínio),


deve haver um códon AUG indicando o início da mensagem (teste de restrição),
assim a transição ocorre de q2 para q3 . Enquanto a restrição não for satisfeita, o
sistema permanece em q2 — esta transição corresponde ao encontro do início da

120
mensagem (ação de um legissigno indicial remático, transposto em S321 ), enquanto
o sistema permanece em q2 o ribossomo continua a busca (ação de um legissigno
icônico remático, transposto em S311 );

• Em q3 e q30 , o sistema entra em operação recursiva alternando entre esses estados.


Em q3 o símbolo 1 representa algum valor aceito de acordo com certo contexto,
enquanto 0 mantem o sistema em q3 ou promove a transição para q4 ; em q30 , o
símbolo 0 é responsável pelo retorno a q3 , enquanto 1 mantem o sistema em q30
— com relação ao ribossomo esta alternância entre estados representa a leitura de
cada um dos códons após o início da mensagem. Cada códon válido corresponde a
um legissigno simbólico dicente transposto em S331 , ao final da leitura de um códon
válido, o início da leitura do próximo códon se dá pela ausência do caráter simbólico
num legissigno indicial remático transposto em S332 , indicial pois indica o final de
um códon válido, posicionando o sistema para aleitura de outro códon em q3 . Caso
não haja mais códon para leitura, o sistema alterna para q4 para fazer a leitura do
códon de finalização.

• Por fim, em q4 o símbolo 0 mantem o sistema em q4 , enquanto o símbolo 1 promove a


transição para o estado q0 , terminando o processo — para o ribossomo, corresponde
à finalização do processo de tradução gênica legissigno indicial remático transposto
em S321 , indicial, pois indica o término da fita de RNAm.

121
5.2 Cadeia de vacância

5.2.1 Introdução

Em economia, cadeia de vacância é o nome dado ao conjunto de trocas sequenciais que


beneficiam vários indivíduos sucessivamente. Como exemplo, no mercado imobiliário,
a aquisição de uma casa nova por alguém propagará uma série de trocas secundárias
que tendem a melhorar a situação de moradia de outros indivíduos. Os recursos que
são afetados por esse fenômeno apresentam certas características em comum: devem ser
desejados e relativamente difíceis de serem conseguidos, só podem ser ocupados por um
único indivíduo de cada vez e só podem ser ocupados se estiverem vazios (CHASE, 2012).
Este tipo de fenômeno é também percebido no comportamento de alguns animais,
dentre os quais, o Pagurus longicarpus, uma espécie de caranguejo comum na costa leste
da América do Norte. Esses animais utilizam conchas como abrigos e as carregam consigo.
Conforme crescem, os paguros procuram por abrigos maiores e melhores, abandonando
suas antigas conchas que são utilizadas por animais mais novos e menores, desencadeando
uma série de trocas vantajosas para todos (Ibid.).
Descobriu-se recentemente que os paguros usam dois tipos de cadeia: assíncrona e
síncrona. Na cadeia do primeiro tipo, apenas um caranguejo por vez participa do processo
ao encontrar uma concha vazia que tenha dimensões mais adequadas do que a concha em
uso naquele momento, fazendo com que o animal realize a troca. Na cadeia síncrona, por
sua vez, vários animais fazem fila, por ordem de tamanho, atrás do indivíduo que estiver
examinando a concha vazia. Neste segundo caso, quando o primeiro caranguejo da fila
se acomoda nesta nova concha, o próximo indivíduo ocupa a concha abandonada pelo
caranguejo anterior, desencadeando trocas sucessivas que acabam beneficiando todos os
indivíduos participantes (Ibid.).
O estudo da cadeia de vacância no campo biológico através da implementação por
autômatos finitos desenvolvidos por transposição semiótica, além de exemplificar um caso
de vida artificial, pode também trazer inúmeros insights para soluções de problemas huma-
nos, desde o ajuste de oferta e demanda no mercado imobiliário até a simples organização
de filas de atendimento em corporações dos setores público e privado. No caso dos pagu-
ros, existe um único fator (tamanho) responsável pela organização, mas nada impede de
serem considerados conjuntos de fatores como organizadores da cadeia de vacância. Por
exemplo, o atendimento preferencial em bancos e outras organizações, pode ser resolvido
aplicando-se não apenas o critério de idade e outras características perceptíveis, mas tam-
bém outros fatores não aparentes e que podem constar como informação relevante nos
prontuários dos clientes.

122
O comportamento sofisticado dos Pagurus longicarpus é mais explícito na modalidade
síncrona das trocas de conchas. Afinal, mediante a vacância percebida numa concha
atraente — intacta e de bom tamanho —, o que se poderia esperar de um animal de
cérebro relativamente pequeno e simples seria a competição acirrada pelo novo abrigo.
No entanto, o que se observa é um comportamento orquestrado, sugerindo a presença de
cognição social sofisticada.

No comportamento assíncrono, dois subcomportamentos estão presentes, primeiro o


animal procura por uma nova concha, então, pode ocupá-la mediante a simples consta-
tação de sua adequação. Busca e ocupação ocorrem de maneira serial. Mas, no compor-
tamento síncrono, entre a busca e a ocupação, surge um terceiro subcomportamento: a
espera em fila.

5.2.2 Diagrama semiótico

O nível focal adequado para o estudo da cadeia de vacância no comportamento dos pa-
guros é o nível do indivíduo. Consequentemente, o nível inferior ou microssemiótico,
iniciador dos processos, é o nível dos processos neurais e o nível superior ou macrossemió-
tico, que apresenta as restrições naturais, é o nível ecológico de seu relacionamento com
outros indivíduos. Aqui, existe uma sutil diferença com relação ao caso do fenômeno de
aprendizagem e memória da Aplysia californica. No caso da aplísia, foram considerados
dois níveis focais — organismo e células — resultando em dois conjuntos de diagramas, no
caso do paguro, apenas o nível do organismo está em jogo, pois a preocupação é analisar
somente a interação social que ocorre entre os indivíduos. Aqui, portanto, o paguro é con-
siderado como uma caixa preta, e apenas seu comportamento como indivíduo é levado em
conta. Desta forma, um esquema preliminar relativo ao comportamento assíncrono pode
ser estabelecido. Nele podem ser constatados quatro momentos distintos: momento I -
animal distraído, momento II - encontro com uma concha vazia, momento III - verificação
de adequação de tamanho e momento IV - decisão pela troca de concha ou permanência
com a concha antiga. A este esquema, considerando-se o comportamento síncrono, pode
ser agregada uma bifurcação no momento de encontro. Agora este encontro se dá não
apenas com a concha, mas também com outros indivíduos (momento II’), o que acarreta
uma nova etapa de verificação de tamanho (classificação), não mais com relação à concha,
mas com relação aos outros indivíduos (momento III’), resultando no posicionamento em
fila de acordo com o tamanho de cada caranguejo, do maior para o menor. Depois de
certo tempo de espera, cada indivíduo pode fazer a verificação da adequação da concha
vazia (momento III) e, finalmente, proceder à decisão de utilizar a concha vazia ou não
(momento IV). Este esquema pode ser visualizado na figura 5.5, cuja descrição segue

123
abaixo:

Figura 5.5: Esquema dos comportamentos assíncrono e síncrono do Pagurus longicarpus


envolvido na dinâmica da cadeia de vacância. Elaboração do autor.

Nível macrossemiótico (condições de fronteira): este é o nível das entradas


(inputs) e saídas (outputs). No momento I, o paguro se encontra em estado de distração,
sem que nada em particular lhe chame a atenção, existem apenas possibilidades. Este
momento caracteriza a categoria de primeiridade, assim, entradas (e1) a saídas (s1) são
neutras. À medida que ocorre o crescimento do animal, a concha em que habita se torna
pequena demais, desta forma, a percepção de uma concha vazia provoca o início do pro-
cesso da cadeia de vacância e o paguro, predisposto a ocupar a nova concha, é impelido
ao momento II, passando da categoria de primeiridade para a categoria de secundidade.
A partir deste momento, existem duas possibilidades de ocorrências. Primeiro, pela dinâ-
mica assíncrona, mediante o encontro de uma concha vazia (e2) que pode servir de novo
abrigo e sem que haja outros indivíduos interessados, o caranguejo toma a decisão de
verificar sua adequação (s2), passando ao momento III, no qual as dimensões verificadas
(e3) servirão de dados de entrada para a decisão final pela troca efetiva ou desistência
(s4), portanto, no momento III as saídas para o ambiente são neutras, o mesmo ocorrendo
para as entradas no momento IV. Segundo, conforme a dinâmica síncrona, quando além de
uma concha vazia (e2) também existem outros indivíduos interessados (e2’), neste ponto,
antes de verificar a adequação da concha, o caranguejo encontra o momento III’, no qual

124
faz uma outra verificação de dimensões (e3’) com um efeito classificatório (s3’), ou seja,
coloca-se em fila de acordo com a ordem de tamanho dos indivíduos, chegando sua vez,
passa ao momento III e o fluxo segue da mesma forma que na dinâmica assíncrona. Ver
fig.5.6 (Ecossistema).

Nível microssemiótico (condições iniciadoras): por se tratar de uma análise


limitada aos aspectos sociais dos Pagurus longicarpus, para este caso, considera-se apenas
que, no nível microssemiótico, as disposições de ação e reação do animal são suportadas
pelas configurações neurais subjacentes aos órgãos sensores e motores característicos da
espécie. Ver fig.5.6 (órgãos).

Nível focal (nível focal): também neste exemplo, os processos semióticos verifica-
dos no nível focal são determinados pelas condições de fronteira do nível macrossemiótico
e pelas condições iniciadoras do nível microssemiótico. A entidade interpretadora é o
indivíduo e as possibilidades de ações sígnicas dependem das pré-disposições sociais da
espécie expressas por influência do seu fenótipo. No momento I, enquanto certo indivíduo
transita livremente sem que nada lhe chame a atenção, apenas qualissignos estão atu-
ando (primeiridade). No momento II, a presença de uma concha vazia (legissigno icônico
remático corporificado em suas réplica, um sinsigno do mesmo tipo) capta a atenção do
indivíduo, promovendo a transição entre os estados de primeiridade e secundidade. Então,
seguem-se as duas dinâmicas possíveis. Primeiramente, não existindo outros indivíduos,
a dinâmica assíncrona se instala, levando o animal ao momento III em que ele realiza
a verificação das dimensões da concha com relação ao seu próprio corpo. Considera-se,
aqui, a ação exclusiva de legissignos icônicos remáticos, pois há uma relação direta entre
corpo e receptáculo, algo da ordem do caber (corforto) ou não caber (desconforto), sem
espaço para índices ou dicentes. Após a verificação, a decisão final ocorre também de
maneira direta, conforto leva à aceitação da nova concha, desconforte à recusa. Portanto,
a dinâmica assíncrona seria regida completamente por legissignos icônicos. Por outro
lado, a presença de outros indivíduos no momento II leva a uma bifurcação em direção
ao momento II’ por ação de legissignos indiciais remáticos. O caráter indicial refere-se à
necessidade de se formar uma fila, ação que não pode ser entendida considerando-se ex-
clusivamente a ação de ícones. Assim, para se formar a fila de espera, ocorre a transição
para o momento III’ para que outro tipo de verificação aconteça, ou melhor, uma classi-
ficação. Agora não se trata da comparação do corpo do intérprete com um espaço, mas
uma comparação com outros corpos, exigindo a capacidade de interpretação de legissignos
indiciais remáticos, pois indicam uma posição relativa. Assim, pode-se estabelecer que a
bifurcação síncrona ocorre por ação de legissignos indiciais remáticos. Então, tendo sido
construída a fila de espera, o sistema volta às mesmas condições da dinâmica assíncrona,
passando, sequencialmente, pelos momentos III e IV. Ver fig.5.6 (Indivíduo).

125
Figura 5.6: Diagrama semiótico da dinâmica da cadeia de vacância (nível focal: indiví-
duo). e1 a e4 representam as entradas, s1 a s4 representam as saídas. P, S e T apontam,
respectivamente, os estados de primeiridade, secundidade e terceiridade. Elaboração do
autor.

126
5.2.3 Autômato finito

Esta seção tem como meta a construção do autômato finito correspondente às dinâmicas
assíncrona e síncrona referentes à cadeia de vacância do comportamento de troca de
conchas do Pagurus longicarpus. Considerando os momentos envolvidos, de M1 a M4,
a análise desses momentos leva ao estabelecimento da categoria das semioses envolvidas,
da categoria do autômato finito (por isomorfismo entre as categorias) e do diagrama de
transição de estados deste autômato.

Categoria das semioses para os momentos M1, M2, M3 e M4

Conforme a figura 5.7, no momento M1, o indivíduo se encontra em estado de primeiri-


dade, sob ação exclusiva de qualissignos icônicos remáticos, representados pelo morfismo
si1. O encontro com uma concha vazia, (legissigno icônico remático corporificado em sua
réplica do tipo sinsigno icônico remático) provoca o morfismo sa, levando o caranguejo
ao momento M2, onde permanece (ação do morfismo si2) até que se defina o tipo de
dinâmica envolvida — legissigno icônico remático (representado pelo morfismo sb) para
a dinâmica assíncrona e legissigno indicial remático (representado pelo morfismo se) para
a dinâmica síncrona.

Na ausência de competidores, ocorre, portanto, a dinâmica assíncrona, ainda sob ação


de um legissigno icônico representado pelo morfismo sb, levando o animal ao momento
M3, permanecendo ali até que a verificação das dimensões da concha termine (morfismo
si3 que representa outro legissigno icônico remático). Após a verificação, ocorre o mo-
mento de decisão, para isto, o sistema transita de M3 para M4 (ação do morfismo sc
também representando um legissigno icônico remático). Então, tendo sido tomada uma
decisão, o sistema retorna ao início por ação do morfismo sd, voltando à ação exclusiva
de qualissignos icônicos remáticos (morfismo si1).

Se houver outros competidores, ocorre a dinâmica síncrona. Agora, por ação de um


legissigno indicial remático ocorre a transição de M2 para M2’ sob ação do morfismo se,
permanecendo ali por ação do morfismo si2’ que representa o mesmo legissigno indicial re-
mático. Então, uma nova transição ocorre, agora de M2’ para M3’ sob ação do morfismo
sf que representa outro legissigno indicial remático. O paguro, então, permanece em fila
(morfismo si3’) até chegar a sua vez de experimentar a concha, retornando ao percurso
assíncrono através do morfismo sg que representa um legissigno icônico remático.

127
Figura 5.7: Diagrama representando a categoria das semioses envolvidas nos momentos
M1, M2, M3 e M4, construído com base no diagrama semiótico correspondente. Elabo-
ração do autor.

Isomorfismo entre as categorias das semioses e dos autômatos finitos

A figura 5.8 apresenta os diagramas correspondentes às categorias das semioses e dos


autômatos finitos para o caso da cadeia de vacância do Pagurus longicarpus. Da mesma
forma que ocorreu nos exemplos anteriores, o segundo diagrama foi obtido por isomorfismo
através do mapeamento da categoria das semioses na categoria dos autômatos finitos.
Novamente, momentos M são transpostos em estados E, enquanto as semioses s são

128
transpostas em transições t.

Figura 5.8: Diagramas correspondentes às categorias das semiose e dos autômatos finitos
obtidos pela transposição semiótica. Elaboração do autor.

Diagrama de transição de estados do autômato finito correspondente

Neste ponto, o autômato finito correspondente às dinâmicas assíncrona e síncrona da ca-


deia de vacância pode ser construído a partir da categoria correspondente, sendo ilustrado
pelo diagrama de transição de estados da figura 5.9, cuja notação algébrica definidora é
estabelecida por:

Q = {q0 , q1 , q10 , q2 , q20 , q3 }


Σ = {0, 1}

129
δ = {(q0 , 0) → {q0 }, (q0 , 1) → {q1 },
(q1 , 0) → {q2 }, (q1 , 1) → {q1 , q10 },
(q2 , 0) → {q2 }, (q2 , 1) → {q3 },
(q3 , 0) → {q0 }, (q3 , 1) → {q3 , },
(q10 , 0) → {q20 }, (q10 , 1) → {q10 },
(q20 , 0) → {q2 }, (q20 , 1) → {q20 }}
F = {q0 }

Figura 5.9: Autômato finito não-determinístico relativo às dinâmicas assíncrona e síncrona


da cadeia de vacância, derivado da categoria dos autômatos. Elaboração do autor.

Deste diagrama de transição de estados, a seguinte descrição pode ser estabelecida:

• Em q0 está presente a matriz básica S111 indicando a especificação do mundo per-


ceptível do autômato (símbolo 1 nas posições a11 , a12 e a13 ). Seguindo as mesmas
operações dos exemplos anteriores, em q0 ocorre o teste de validade para a entrada
de dados de acordo com o domínio, 0 não satisfaz o domínio mantendo o autômato
no estado inicial, enquanto 1 representa uma entrada válida provocando a transição
de q0 para q1 — neste caso, o símbolo 1 corresponde à presença de uma concha
vazia, fazendo o paguro passar da primeiridade para a secundidade por ação de um
legissigno icônico remático, transpostos como matrize S311 ;

130
• Em q1 estão presentes três possibilidades: primeiro, o símbolo 0 faz o sistema tran-
sitar para q2 , enquanto o símbolo 1, ou mantem o sistema em q1 , ou promove a
transição para q10 — considerando o mundo do animal, 0 representa a ausência
de outros competidores, enquanto 1 representa tanto a presença da concha (S311 )
quanto a presença de outros competidores S321 .

• Em q2 , ocorre um teste de domínio. O paguro cabe ou não cabe na concha vazia.


Independentemente do resultado, ao terminar a verificação, o símbolo 1 promove
a transição para q3 , enquanto o símbolo 0 mantem o sistema em q3 — o estado q2
corresponde ao tempo utilizado pelo caranguejo para verificar a adequação da concha
vazia, ao término deste período ocorre a transição para o momento de decisão sobre a
torca ou permanência com a concha antiga (ação de um legissigno icônico remático,
transposto em S321 );

• No estado q10 , o símbolo 1 mantem o sistema no mesmo estado, enquanto o rece-


bimento do símbolo 0 acarreta a transição para q20 — para o animal, significa a
necessidade de verificação do seu tamanho em comparação aos outros competidores,
ação de um legissigno indicial remático transposto numa matriz S321 .

• No estado q20 , o símbolo 1 mantem o sistema no mesmo estado, enquanto o símbolo


0 promove a transição para q3 — isto significa que, após um período de espera,
chega o momento do indivíduo testar a concha vazia, ação denotada pela ausência
de um índice no legissigno icônico remático transposto em S311

• Em q3 o símbolo 1 mantem o sistema em q3 , enquanto o símbolo 0 promove a


transição para o estado q0 , terminando o processo — para o paguro, corresponde à
finalização do processo através do retorno do animal à primeiridade.

5.3 Resumo

Este capítulo final da pesquisa tratou de duas aplicações da transposição semiótica com
intuito de verificar a possibilidade de generalização deste procedimento para o estudo de
casos relativos à vida artificial. Em resumo:

1. O primeiro caso tratou do fenômeno de tradução gênica, tendo como foco o nível
das organelas celulares, mais especificamente, adotando o ribossomo como entidade
interpretadora.

2. O segundo caso preocupou-se com as dinâmicas assíncrona e síncrona da cadeia de


vacância relativa ao comportamento de troca de conchas do Pagurus longicarpus.

131
3. Nos dois casos, foram apresentados os seguintes diagramas: diagrama semiótico
representativo do fenômeno em questão, diagramas das categorias das semioses e
dos autômatos finitos e diagramas de transição de estados correspondentes a cada
um dos fenômenos.

132
Conclusão

A questão fundamental desta pesquisa foi apresentada da seguinte forma: entendendo-


se a transposição semiótica como uma técnica criada para apoiar o desenvolvimento de
dispositivos computacionais bioinspirados, e considerando sua fundamentação na teoria
geral dos signos, seria ela uma estratégia efetiva para o estudo da vida artificial? Em
síntese, o que se expressa aqui é: através da semiótica, seria possível estabelecer correlações
adequadas entre os mundos biológico e computacional?

A hipótese de uma resposta afirmativa para esta questão baseou-se nas considera-
ções de Emmeche sobre o sinequismo de Peirce, contrário à concepção de Langton de
que uma vida artificial poderia ser desenvolvida independentemente da materialidade que
a suporta. Assim, como primeiro passo, foram apresentados os principais conceitos da
semiótica peirceana e suas relações com a biossemiótica e com o estruturalismo hierár-
quico, contribuindo para o fortalecimento dos fundamentos da transposição semiótica e,
consequentemente, alcançando o primeiro dos objetivos específicos propostos. Duas con-
tribuições originais da pesquisa podem ser depreendidas desta fase: a concepção de uma
nova representação diagramática para os signos apresentada como um quadro semiótico
no qual as posições dos elementos invocam suas possíveis relações; e o desenvolvimento
de diagramas semióticos capazes de expressar as relações sígnicas subjacentes aos fenô-
menos biológicos, tais diagramas foram apresentados como resultado da primeira etapa
da transposição semiótica.

Ainda nesta fase, encaminhou-se o cumprimento do segundo objetivo específico, já


que a revisão dos fundamentos da transposição semiótica ocorreu, concomitantemente,
ao estudo do fenômeno de aprendizagem e aquisição de memória da Aplysia californica
que, em seguida, tornou-se o primeiro caso de vida artificial efetivado pela pesquisa.
Dois outros casos foram considerados posteriormente: a tradução gênica e a dinâmica de
cadeia de vacância relativa ao comportamento do Pagurus longicarpus. Os três exemplos,
em conjunto, demonstraram o caráter geral e a efetividade da transposição semiótica,
apontando para um amplo potencial de aplicações, a ser verificado em pesquisas futuras.

Após a fase de criação dos diagramas semióticos, apresentou-se a fase de transpo-


sição propriamente dita. Nesta etapa que concluiu o processo, utilizou-se a teoria das
categorias como suporte teórico. Com isto, os processos semióticos foram transpostos
em entidades computacionais correlatas, expressas diagramaticamente por autômatos fi-
nitos: dispositivos computacionais representados por diagramas de transição de estados.
Os diagramas semióticos e os diagramas de transição de estados, apesar de apresentarem
alto grau de isomorfismo, respeitam as possibilidades e peculiaridades de seus campos de
origem. Duas outras contribuições originais podem ser destacadas desta fase da pesquisa:
a transposição das representações sígnicas em representações matriciais, mais adequadas
ao tratamento computacional; e a transposição das semioses em transições de estados dos
autômatos finitos, resultado final do processo de transposição semiótica.

Cabe destacar uma última contribuição, de caráter geral e levada a cabo de maneira
colateral: o desenvolvimento da tese se apoiou fortemente no pensamento diagramático,
sendo que as características qualitativas dos resultados alcançados decorreram diretamente
desta escolha. Assim, tendo o pensamento diagramático, ou diagramatologia, influenci-
ado decisivamente o avanço da pesquisa, certamente a própria pesquisa contribuiu para
demonstrar o potencial dos diagramas como elementos de auxílio à cognição humana.

Finalmente, além de terem sido alcançados os objetivos específicos, considera-se tam-


bém alcançado o objetivo geral, pois a transposição semiótica, como foi concebida, apresenta-
se naturalmente como um framework capaz de lidar com as questões propostas. Con-
sequentemente, comprova-se sua efetividade no estudo da vida artificial e, portanto, a
própria efetividade da semiótica no tratamento das questões apresentadas.

Desenvolvimento futuro

Normalmente, os resultado obtidos numa pesquisa científica têm caráter provisório. En-
contrar respostas para algumas questões implica, necessariamente, em se deparar com
novas indagações que exigem esforços complementares. Desta forma, esta seção tem por
finalidade apontar possíveis desdobramentos que podem surgir a partir deste ponto.

Sobre a transposição semiótica

A ideia de transposição semiótica é anterior a esta tese, tendo sido concebida como um mé-
todo para o desenvolvimento de softwares biomiméticos (CAMARGO, 2014; CAMARGO;
VEGA, 2014). Naquela época, os resultados obtidos, apesar de adequados quando com-
parados ao escopo proposto, apontaram a necessidade de uma fundamentação semiótica
mais consistente. Esta tese buscou, portanto, satisfazer esta necessidade através do estudo
da obra de Charles Sanders Peirce. No entanto, ainda longe de esgotar esta questão, a

134
obra peirceana, vasta e complexa, apresenta-se como um instrumento inesgotável para o
contínuo desenvolvimento da transposição semiótica. Neste contexto, um dos pontos que
podem ser destacados diz respeito à precisão na identificação da classe a que pertencem
os signos envolvido em certo fenômeno biológico. Apesar da afirmação de Peirce de que
raramente se exige exatidão na definição da classe à qual pertencem os signos, e de que,
de certo modo, sempre se chega bastante perto do caráter sígnico para qualquer propósito
normal da lógica (CP 2.265), no caso da transposição semiótica, quanto mais precisa for
esta classificação, mais adequado deverá ser o autômato finito correspondente.

Além das questões relativas à fundamentação semiótica, o próprio aprofundamento na


teoria dos autômatos finitos aponta caminhos para futuros desenvolvimentos, principal-
mente se forem considerados os autômatos adaptativos, um tipo especial de dispositivos
computacionais cujo formalismo subjacente é um autômato finito ou, alternativamente,
um autômato de pilha. Neste sentido, autômato adaptativo é um formalismo auto modi-
ficável dirigido por regras com funções especiais de transição e representado por A(σ) .
O parâmetro σ representa o símbolo de entrada associado à transição que invoca uma
função de transição A, permitindo três possíveis operações: consulta, adição ou remoção
de transições (NETO, 1994; NETO; VEGA; RAMOS, 2009). Como fenômenos biológicos
também apresentam características de adaptatividade, ou seja, alguns comportamentos
podem ser suprimidos sob certas circunstâncias em favor de outros comportamentos mais
apropriados para aquele momento (estados são suprimidos e outros são acrescentados),
torna-se bastante atrativa a escolha dos autômatos adaptativos como tecnologia de imple-
mentação de softwares bioinspirados merecendo, portanto, atenção especial nas pesquisas
futuras.

Ainda com relação aos fundamentos da transposição semiótica, vale explorar, de ma-
neira mais completa, todo o potencial da teoria das categorias, além de investigar outros
campos da matemática e dos sistemas formais. Inclusive, é importante mencionar os
trabalhos de Peirce a respeito dos grafos existenciais, sistema lógico-diagramático com
potencial de expressão equiparado aos sistemas simbólicos da lógica clássica.

Sobre aplicações em sistemas de software

Como visto no capítulo 1, a partir da década de 2000, o rumo da pesquisa em vida


artificial voltou-se fortemente para as aplicações de engenharia, reforçando seu enfoque
prático. Com isto, os autômatos celulares passaram a dividir espaço com uma vasta gama
de técnicas computacionais bioinspiradas, algumas compartilhadas com a inteligência ar-
tificial. Dentre este conjunto de técnicas, destacam-se: a computação evolucionária (CE)
que utiliza algoritmos genéticos (AG), estratégias evolutivas (EE), programação genética

135
(PG) e programação evolutiva (PE); a computação evolucionária interativa (CEI) que é a
tecnologia na qual a CE otimiza os sistemas alvo de acordo com a avaliação subjetiva hu-
mana; modelagem baseada em agentes (MA) que utiliza múltiplos agentes cujas decisões
são inteiramente baseadas em informações locais; e a otimização tipo colônia de formigas
(OCF) que utiliza insetos artificiais para encontrar soluções para problemas combinatórios
complexos (KIM; CHO, 2006b).

Neste contexto, a transposição semiótica se apresenta como uma alternativa para o


desenvolvimento de sistemas inteligentes, de maneira autônoma ou em conjunto com as
técnicas mencionadas acima. Esta pesquisa limitou-se a explorar a construção de dispo-
sitivos computacionais formais, mantendo seus resultados no campo teórico, no entanto,
desenvolvimentos futuros que utilizem como base os autômatos finitos bioinspirados deri-
vados da transposição semiótica podem alcançar resultados práticos relevantes nas mais
diversas áreas da engenharia, como robótica, internet das coisas, indústria 4.0, dentre
outros. Valendo, assim, o empenho na continuidade desta pesquisa também pelo viés das
aplicações de engenharia.

Neste ponto, portanto, tendo sido analisados os resultados da pesquisa, apresenta-


das suas contribuições originais, e apontados possíveis caminhos para sua continuidade,
conclui-se.

136
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