(2023) Relatório Direito À Comunicação No Brasil 2022

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DIREITO À

COMUNICAÇÃO
NO BRASIL 2022
I NTERVOZES / C O L E T I VO B R A S I L D E C O M U N I C AÇ ÃO S O C I A L

O que vem depois da terra arrasada? Construindo políticas de comunicação


no Brasil pós-Bolsonaro.

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Conselho Diretor do
Intervozes 2022-2023
Aline Braga
André Pasti
Iago Vernek Fernandes
Iano Flávio
Iraildon Mota
Mônica Mourão
Tâmara Terso

Cordenação Executiva
Ana Claudia Mielke
Gyssele Mendes
Iara Moura
Olívia Bandeira
Pedro Ekman
Pedro Vilaça
Viviane Tavares
Ramênia Vieira

Autores
Alex Pegna Hercog
Ana Maria Conceição Veloso
Eduardo Amorim
Iago Vernek Fernandes
Iury Batistta
Mabel Dias
Mônica Mourão
Nataly Queiroz
Patrícia Paixão de O. Leite
Paulo Victor Melo
Ramênia Vieira
Raquel Baster
Sheley Gomes
Viviane Tavares

Coordenação, Edição e Apresentação


Ana Maria Conceição Veloso
Patrícia Paixão de O. Leite
Paulo Victor Melo

Revisão Técnica
Gyssele Mendes e Olívia Bandeira

Revisão
Nathália Cardoso

Projeto gráfico e diagramação


Yasmin Menezes

Apoio
Ford Foundation e Luminate

/intervozes
@intervozes
@intervozes
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https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/
Sumário
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................... 07

A ENCRUZILHADA DA COMUNICAÇÃO PÚBLICA E OS CAMINHOS DA EBC


ALEX PEGNA HERCOG ............................................................................................................................ 12

ATAQUES A JORNALISTAS DERAM A TÔNICA EM ANO ELEITORAL


IURY BATISTTA ........................................................................................................................................ 19

A POLÍTICA DO ÓDIO E A RESISTÊNCIA DO POVO NAS RUAS E NAS REDES


NATALY QUEIROZ .................................................................................................................................... 26

ELEIÇÃO DE CANDIDATOS POLICIALESCOS E DONOS DE MÍDIA PREJUDICA A


DEMOCRACIA
MABEL DIAS ............................................................................................................................................. 32

DESINFORMAÇÃO, DESERTOS DE NOTÍCIAS E OS IMPACTOS NA AMAZÔNIA


RAQUEL BASTER E VIVIANE TAVARES .................................................................................................... 39

FUTEBOL, DIREITO DE TRANSMISSÃO E DIVERSIDADE: DA TV AO STREAMING, DO


ACESSO À ACESSIBILIDADE
IAGO VERNEK FERNANDES .................................................................................................................... 46

PLATAFORMIZAÇÃO DO ACESSO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS APROFUNDOU


DESIGUALDADES HISTÓRICAS
PAULO VICTOR MELO ............................................................................................................................. 54

A ERA BOLSONARO FOI TRÁGICA PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA


MÔNICA MOURÃO ................................................................................................................................... 61

PLATAFORMAS DIGITAIS NO CENTRO DAS ATENÇÕES: REGULAR PARA AVANÇAR


SHELEY GOMES, RAMÊNIA VIEIRA E VIVIANE TAVARES ........................................................................ 68

NEGACIONISMO ESTATÍSTICO E APAGÃO DE DADOS NO ÚLTIMO ANO DO GOVERNO


DA DESINFORMAÇÃO
EDUARDO AMORIM ................................................................................................................................. 74

“O ANO PASSADO EU (QUASE) MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO”: O FIM DE
UM CICLO E UMA ESPERANÇA DE DEMOCRACIA
ANA MARIA CONCEIÇÃO VELOSO, PATRÍCIA PAIXÃO DE O. LEITE E PAULO VICTOR MELO .............. 80

RECOMENDAÇÕES .................................................................................................................... 87

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES..................................................................................... 98


INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

Apresentação
Ana Maria Conceição Veloso, Patrícia Paixão de O. Leite e Paulo Victor Melo

O fato de marcar o bicentenário da Independência já tornava o ano de


2022, em si, extremamente significativo. Isso porque, para além dos discur-
sos oficiais, é preciso questionar em que medida o processo ocorrido em 7
de setembro de 1822 – independência formal do Brasil – foi acompanhado
de políticas estruturais que garantissem também direitos fundamentais,
participação social e cidadania ativa. Ou, então, qual o sentido de falar em
independência de um país se não forem assegurados direitos de viver bem,
mecanismos de participação nas decisões do país e possibilidades de exer-
cício cidadão às suas populações?
Mas 2022 se tornou um ano ainda mais relevante porque, pouco mais de
um mês após os 200 anos da Independência, o povo teve a possibilidade
de redefinir rotas na condução política do país. Ao final de dois turnos, a
opção escolhida pela maioria foi dar um fim ao governo Bolsonaro. Pode-se
afirmar que em raros momentos da história brasileira viu-se uma coalizão
tão ampla e diversa – reunindo partidos e setores das esquerdas, do centro
e da direita liberal – em torno de um objetivo comum: derrotar o fascismo
à brasileira. Sim, fascismo. Afinal, como alertado por Ana Julia Bernardi e
Jennifer Morais, “a ideologia fascista não acabou após a Segunda Guerra
Mundial. Ela permaneceu nas sociedades contemporâneas como um vírus
pronto para atuar novamente em situações de crise econômica e, até mesmo,
de valores democráticos” (2021, p. 321).
Por meio da análise de conteúdo de pronunciamentos do ex-presidente
depois do segundo turno das eleições de 2018, portanto logo após eleito, as
autoras evidenciam o emprego de um discurso fascista que, entre outras táti-
cas, apelava à construção social de um “inimigo comum”, no caso, todos(as)
que se colocassem críticos ao governo.
E não foi, vale enfatizar, apenas um discurso fascista. Em verdade, o dis-
curso esteve a serviço de uma política igualmente fascista, de exacerbação
sem precedentes na nossa história do genocídio, do colonialismo, da lógica
escravocrata, do racismo e da misoginia, violências fundantes do Brasil,
legitimadas e autorizadas pelo Executivo Federal.
Dito de outra maneira, estamos falando de um governo que, entre 2019 e
2022, utilizou-se de uma dupla tática: aprofundou as violências estruturais
do nosso país e, ao mesmo tempo, promoveu uma verdadeira destruição
das inaugurais conquistas democráticas e políticas públicas que o Brasil
produziu, por processos de mobilização popular, desde a Constituição de
1988 e, mais efetivamente, a partir de 2003.
Aumento da fome em larga escala. Empobrecimento das famílias. Enri-
quecimento da própria família e dos amigos. Desvalorização do serviço
público. Negligência com a situação de saúde de milhões de brasileiros e
brasileiras. Piada em transmissão ao vivo – e desassistência – com pessoas
infectadas pelo coronavírus. Desmatamento recorde em todos os biomas.
Boiada passando. Agrotóxicos contaminando solos e contaminando crianças,
adultos e idosos. Favorecimento do crime organizado e das milícias. Armas
liberadas para matança generalizada. Homenagens a ditadores. Persegui-
ção a organizações coletivas. Recursos para educação, saúde e assistência

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social cortados. Relações diplomáticas esfaceladas.


No campo das comunicações, essa devastação também teve as suas
matizes, inclusive com a conivência de grande parte do empresariado do
setor, que flertou com o governo do genocídio em diversos momentos. Pro-
gramas policialescos seguiram violando direitos de negras(os), mulheres,
pessoas LGBTQIA+, crianças e adolescentes. Jornalistas e comunicado-
res(as) populares foram vítimas de ataques, sobretudo do ex-presidente,
dos seus familiares e apoiadores(as). O acesso à informação pública, que
está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Constituição
Federal e na Lei de Acesso à Informação, foi sistematicamente negado pelos
antigos ocupantes do governo federal.
A desinformação foi legitimada. A Amazônia e os seus povos, silencia-
dos. Enquanto isso, a mineração e o garimpo ilegal avançavam. As plata-
formas digitais seguiram com uma política permissiva de desinformação e
de exacerbação dos discursos de ódio, e, por outro lado, apagaram pautas
fundamentais de direitos humanos. Excluídos(as) digitais, que, não por coin-
cidência, são também os historicamente apartados do acesso a direitos,
foram ainda mais segregados pela opção estatal de transpor políticas sociais
para o digital, num país que nega o direito de conectividade aos grupos mais
vulnerabilizados.
Políticos com mandato seguiram contrariando a Constituição Federal e
comandando emissoras de rádio e televisão. Ainda na radiodifusão, houve
aumento do financiamento estatal proporcional à propaganda escancarada
do governo Bolsonaro. A comunicação, que deveria ser pública, foi tudo,
menos pública. Aparelhamento e censura deram a tônica na Empresa Brasil
de Comunicação (EBC). Nem mesmo a “paixão nacional”, o futebol, escapou
das lógicas dominantes: a relação entre mídia e futebol (como mercadoria)
é emblemática dos inúmeros problemas de concentração e desigualdades
na comunicação no Brasil.
Mas nem tudo foi desertificação. Houve resistências. E muitas. Movimen-
tos sociais e populares reagiram ao avanço do fascismo no país. Porque,
como escreveu Nêgo Bispo (2019), “mesmo que queimem a escrita, não
queimarão a oralidade. Mesmo que queimem os símbolos, não queimarão
os significados. Mesmo queimando o nosso povo, não queimarão a nossa
ancestralidade”. Ou, parafraseando Conceição Evaristo (2014), se eles com-
binaram de nos matar, a gente combinamos de não morrer.
Em verdade, lamentavelmente muitos dos nossos morreram. Morreram,
não, foram mortos, assassinados. Marielle Franco e Anderson Gomes, Moa
do Katendê, Marcelo Arruda, Antônio Carlos Silva de Lima, Pedro Henrique
Dias Soares… Mas aqui estamos por eles, por elas, por nós e pelos que virão.
“Queimaram Palmares, nasceu Canudos” (Nêgo Bispo, 2019). E estamos
aqui na tarefa precípua de reconstrução democrática de um país que, na
realidade, sequer experimentou três décadas consecutivas de democracia
(para falar apenas em termos formais).
Analisar esse cenário, olhando para a nossa história, é fundamental na
projeção de um futuro em que democracia, diversidade, pluralismo, liberdade
de expressão e respeito aos direitos humanos sejam centrais no ambiente
midiático. É isso que propõe a edição 2022 do Relatório Direito à Comuni-
cação no Brasil, iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação
Social, que, com edição de Ana Maria Conceição Veloso, Patrícia Paixão
de O. Leite e Paulo Victor Melo, apresenta dez reportagens e um conjunto
de recomendações que contribuem para a ampliação do debate público
sobre o setor das comunicações e os desafios para a materialização do tão
necessário direito humano à comunicação.
Na primeira reportagem, Alex Pegna Hercog fala sobre as encruzilha-
das da comunicação pública no Brasil e evidencia como trabalhadores e

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

trabalhadoras da Empresa Brasil de Comunicação foram alvo de censura


e cerceamento do trabalho jornalístico, uma das facetas, nas palavras do
autor, do “sequestro e aparelhamento promovidos pelo governo federal”. Vale
mencionar, porém, que, no momento de fechamento deste texto (final de
abril de 2023), alguns dos desafios apontados por entidades que reivindicam
a democratização das comunicações ainda não avançaram, a exemplo do
restabelecimento do Conselho Curador.
O segundo texto, de Iury Batistta, não deixa dúvidas de que, na estratégia
do governo anterior de definição de inimigos, os(as) jornalistas estiveram
entre os mais ameaçados. A partir de dados do Relatório da Violência con-
tra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2022 (publicado pela
Federação Nacional dos Jornalistas) e da análise de ativistas e especialistas
no tema, Iury costura que o enfrentamento a esse tipo de prática requer um
conjunto de ações, “sendo preciso calibrar estratégias e políticas públicas
que operem no campo da educação midiática, na proteção dos jornalistas
e comunicadores no exercício de suas funções, bem como na regulação
das grandes plataformas de redes sociais para, desse modo, poder dar
respostas de longo prazo”.
Na reportagem “A política do ódio e a resistência do povo nas redes e
nas ruas”, a terceira deste Relatório, Nataly Queiroz aprofunda um tema já
citado nesta apresentação – a violência política – e demonstra como “as
redes sociais e os aplicativos de mensageria, pelas suas estruturas e gramá-
ticas, possibilitaram o compartilhamento de discursos de ódio, assim como a
criação e o fortalecimento de grupos identificados com ideais antidemocrá-
ticos”. Dando como exemplo ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, dos Povos Indígenas e do Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto, entre outros, Nataly diz que a resistência ao ódio “lançou luzes para a
comunicação como elemento político central de intervenção sobre o real”.
Um fenômeno que é marca da história das comunicações no Brasil e que
implica negativamente na democracia – o uso de meios de comunicação
como trampolim político – é analisado por Mabel Dias na quarta reportagem.
Tanto proprietários de radiodifusão quanto pessoas ligadas aos programas
policialescos (apresentadores, repórteres etc.) seguem se aproveitando da
conivência entre Estado e Comunicação para, à custa de violações de direitos
humanos e de desrespeito à Constituição Federal, conquistar bases eleito-
rais sólidas. E Mabel lembra que, como ministro das Comunicações, “quem
assumiu o cargo foi um político aliado a velhas oligarquias, pertencente a um
partido da direita brasileira, o União Brasil, que conta com radiodifusores em
seus quadros”, o que, certamente, fragiliza qualquer perspectiva de mudança
estrutural nessa relação entre o poder político e o setor das comunicações.
No quinto texto, Raquel Baster e Viviane Tavares alertam que a desin-
formação e os desertos de notícias são questões graves na Amazônia, com
impactos no direito à comunicação dos povos e comunidades tradicionais,
já violentados pelo avanço do garimpo ilegal e do desmatamento. Elas dizem
que “numa democracia, o governo não pode ser a única fonte para colaborar
com o debate público sobre a pauta do desmatamento. Além do problema da
negação da existência das mudanças climáticas, há como agravante o uso
da ciência e suas evidências para desinformar tanto formadores de opinião
quanto o público em geral”.
Em reportagem sobre direitos de transmissão do futebol, a sexta do Rela-
tório, Iago Vernek Fernandes aponta que a relação das instituições de futebol,
tanto com empresas de radiodifusão quanto com plataformas digitais, é mar-
cada pela concentração. Com uma narrativa sustentada em depoimentos de
diferentes segmentos envolvidos no futebol e com o acúmulo da experiência
de acompanhamento dessa pauta, Iago discute não apenas questões de
direitos de imagem, mas também desigualdades e opressões no futebol, a

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

exemplo do racismo, do machismo e do capacitismo, entre outras.


No texto seguinte, Paulo Victor Melo aborda como a plataformização do
acesso a serviços e políticas públicas em áreas como assistência social,
saúde e identificação civil – uma tendência dos últimos anos – tem resultado
no aprofundamento de desigualdades no país. Paulo entrevista três espe-
cialistas que indicam, de forma consensual, a necessidade de uma nova
relação entre políticas de internet, tecnologias digitais e cidadania, como
forma de promoção da conectividade digital e do acesso a outros direitos.
O título da oitava reportagem sintetiza, de forma enfática, o que é confir-
mado em informações e análises de pesquisadoras(es) e organizações da
sociedade civil: “a era Bolsonaro foi trágica para a democratização da mídia”.
Ao indicar um alinhamento de diversas emissoras ao bolsonarismo, com a
radiodifusão servindo à manutenção do ideário neoliberal, Mônica Mourão,
que assina o texto, diz que “os quatro anos de governo fascista distanciaram
o país da comunicação pública e de políticas para a regulamentação da
radiodifusão; a comunicação comunitária foi desprezada”.
No texto nove, Sheley Gomes, Ramênia Vieira e Viviane Tavares discutem
um dos desafios mais expressivos dos tempos atuais: a necessidade de
regulação democrática das plataformas digitais. Circulação de conteúdos
de desinformação, políticas de moderação de conteúdos e outros temas são
tratados pelas autoras, que apresentam, ainda, um panorama dos debates
no Legislativo, no Judiciário e no âmbito da sociedade civil organizada.
A décima reportagem, de Eduardo Amorim, trata de casos do chamado
“apagão de dados” e dos seus impactos no direito de acesso à informação,
demonstrando como o negacionismo estatístico em áreas como saúde e
controle de agrotóxicos foi uma tônica não apenas em 2022, mas nos quatro
anos do governo Bolsonaro. O desrespeito aos prazos do Censo do IBGE é
outro exemplo, segundo o autor, do desprezo da gestão anterior do governo
federal com o controle social por meio de plataformas de dados e pesquisas.
Todos esses temas dizem respeito diretamente às nossas vidas, têm
implicações no nosso cotidiano e falam sobre que país temos hoje e que
país precisamos construir. Por isso, o nosso convite à leitura das reporta-
gens que compõem este Relatório e das recomendações que se seguem.
Também fazemos um convite à participação nas mobilizações e lutas para
a efetivação de uma comunicação verdadeiramente democrática.
Como é possível perceber, o foco do Relatório é analisar o cenário das
comunicações em 2022, entendido como emblemático de todo o período
de governo Bolsonaro. Já estamos em 2023. Olhar para trás é essencial.
Seja para termos dimensão dos desafios que estão colocados, seja para
entendermos quais erros não devem ser repetidos. Mas olhar para trás como
Sankofa; portanto, andando para frente, resistindo no presente, rumo ao
futuro, na luta para a construção de políticas de comunicação democráticas.
É com esse objetivo que convidamos à apreciação das reportagens e das
recomendações que se seguem.

Boa leitura e boas lutas!

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

A encruzilhada da comunicação pública e


os caminhos da EBC
Comunicação pública enfrentou censura e ataques antidemocráticos
em 2022, com foco no cerceamento da liberdade de imprensa e no
assédio aos servidores da EBC

Alex Pegna Hercog

Crédito: Thyago Nogueira.

O ano de 2022 começou sob a regência de Exu e Iemanjá. É atribuída à


“rainha das águas” a simbologia da “grande mãe”, sempre atenta aos filhos.
Já Exu é o orixá da Comunicação, que está lá e cá, levando e trazendo, brin-
cando, brincando com o caos, no caos, entre o fim e o começo. Segundo
o religioso, músico e historiador Etemí Dofono Hunxi, “Èsù é o mensageiro
dos ebós” e nas encruzilhadas “ele estará lá, para orientar e mostrar todas
as melhores possibilidades de escolhas direcionais”.
Como não poderia deixar de ser, 2022 teve na comunicação um elemento
central diante do contexto político brasileiro que prometia para outubro o
caos: o fim de um ciclo ou a continuidade de um processo imprevisível. A
certeza era de que a comunicação seria estratégica para incidir no resultado
das eleições presidenciais e no seu desdobramento. No seio da comuni-
cação pública, diversas denúncias revelavam o quanto a Empresa Brasil de
Comunicação (EBC) sucumbia ao sequestro e ao aparelhamento promovido

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

pelo governo federal, ainda sob ameaça de privatização.


Dessa forma, organizações e movimentos envolvidos na luta em defesa
da comunicação pública apostaram suas expectativas em outubro de 2022.
O resultado eleitoral poderia significar mais um passo rumo à destruição da
EBC e do projeto público para as comunicações ou poderia pôr fim ao ciclo
iniciado com o golpe de 2016 e suas primeiras medidas que desfiguraram
a empresa, iniciando o desmonte da comunicação pública no país.

Caminhos fechados

Criada em 2007, durante o segundo mandato do governo Lula, a EBC era


a materialização de propostas acumuladas pelos movimentos em defesa
da democratização da comunicação em torno de um projeto para o sis-
tema público. Princípios como autonomia política, controle social e interesse
público eram alguns dos nortes defendidos pelas representações da socie-
dade civil. Contribuições importantes foram incorporadas à Lei 11.652, de
2008, que regulamentou a EBC.
Esse ciclo de construção de um projeto de comunicação pública no país
foi encerrado em 2016, após o golpe que levou ao impeachment de Dilma
Rousseff (PT). Durante o período Temer (MDB), os mandatos dos conselhei-
ros e conselheiras da EBC foram cassados e o Conselho Curador extinto,
o presidente eleito foi destituído, funcionários demitidos e rádios públicas
extintas. Além disso, as ameaças de privatização da empresa pública tive-
ram início.
Já sob a presidência de Jair Bolsonaro (eleito pelo PSL, atualmente no
PL), as ameaças permaneceram e a EBC chegou a ser incluída no Programa
Nacional de Desestatização. O aparelhamento e o esvaziamento do controle
social também se intensificaram e minaram o caráter de interesse público da
empresa. Os anos de Bolsonaro na presidência foram marcados por denún-
cias de censura nas redações, perseguição aos profissionais, aparelhamento
de militares e diversos casos de assédio.
De acordo com Juliana Cézar Nunes, jornalista da EBC e coordenadora-
-geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal (SJPDF),
permaneceram os casos de perseguição dentro da empresa. “Em meio às
eleições, houve um recrudescimento da censura e do assédio moral nas
redações e também a EBC acabou sendo utilizada pelo governo Bolsonaro
para difusão de mensagens contra o sistema eleitoral”, lembra.
Casos como esses constam na quarta edição do Dossiê de Censura e
Governismo na EBC, lançado em agosto de 2022 pela Comissão de Empre-
gados da EBC, pela Ouvidoria Cidadã da EBC, pelos Sindicatos dos Jorna-
listas do Distrito Federal (DF), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ) e pelos
Sindicatos dos Radialistas do DF, SP e RJ. O documento traz 64 casos de
censura, 228 casos de governismo e 245 de coberturas de pautas irrele-
vantes envolvendo as redes e mídias da EBC.
A Agência Brasil, por exemplo, foi palco para a reprodução de narrativas
governistas e discursos do presidente. Além disso, veículos da empresa
realizavam coberturas de pautas como Dia da Batata Frita ou Dia da Coxinha,
enquanto questões mais relevantes vinham sendo discutidas em outros
meios. Tudo fez parte de uma estratégia para blindar o governo da exposição
a pautas negativas. Outro tipo de censura imposta, como relata o jornalista da
EBC Gésio Passos, foi o silenciamento de discussões relacionadas sobretudo
aos direitos humanos.
Ainda de acordo com o jornalista, que também é membro do Intervozes
e da diretoria executiva do SJPDF, os problemas se intensificaram durante
o período eleitoral. “Antes da eleição, por exemplo, não podia falar nada
relacionado ao PT, ao Lula”, cita. Já durante o processo eleitoral, foi evidente

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

o alinhamento partidário dos veículos da EBC com o candidato e presidente


Bolsonaro, que, em entrevista, já chegou a se referir à TV Brasil como “TV
minha”. Artigo publicado pelo Intervozes destacou um caso emblemático,
que foi a cobertura do “7 de Setembro” pela Agência Brasil, data oficial que
foi utilizada por Bolsonaro como palanque eleitoral e promoção de mani-
festações golpistas, transmitida com a cumplicidade da chefia da agência.
Segundo Venício Lima, professor de Ciências Políticas e Comunicação da
Universidade de Brasília (UnB), uma das razões para esse aparelhamento é
a ausência do Conselho Curador da EBC, extinto durante o governo Temer.
Para Lima, que teve o mandato de conselheiro cassado, a participação social,
diversa e representativa era fundamental “para fiscalizar e garantir que a EBC
cumprisse seu papel legal, ser uma alternativa tanto à comunicação estatal,
quanto à comunicação comercial, que é predominante”.
O uso governista da comunicação pública não passou apenas pela pro-
moção de Bolsonaro e aliados, mas também envolveu o uso político e eco-
nômico da empresa. Além de empregar militares e seus parentes, o governo
federal deu continuidade à contratação de produções antigas da RecordTV.
Após a aquisição de duas novelas em anos anteriores, a TV Brasil exibiu em
2022 “A Terra Prometida”, cuja licença foi comprada por aproximadamente
R$ 4 milhões.
Segundo a jornalista Rita Freire, que também teve seu mandato de con-
selheira cassado, a utilização da máquina da EBC resultou na “‘militarização’
na ocupação dos cargos, programas alusivos às corporações em lugar dos
de interesse público, uso proselitista partidário e religioso e a compra de
conteúdos velhos e datados de empresas próximas ao governo. Mas tudo
foi possível pelo que começou no governo Temer ao tirar da empresa sua
camada protetora - mandatos e Conselho Curador”.

Abre caminho...

A série de abusos e ilegalidades cometidas dentro da EBC mobilizou


seus profissionais, que seguiam denunciando, mesmo sob ameaça. Jorna-
lista concursada da empresa há mais de 10 anos, Kariane Costa, represen-
tando os trabalhadores, encaminhou à Ouvidoria um dossiê contendo 35
depoimentos de funcionários, que denunciavam casos de assédio moral e
censura. O processo foi apresentado ainda em 2021 e teve seu conteúdo
vazado para os diretores.
Assim, a trabalhadora passou de denunciante a denunciada, após aber-
tura de um processo interno que lhe acusava de cometer injúria, calúnia e
difamação contra 12 gestores da empresa. Durante todo o ano ela foi inves-
tigada e, em setembro de 2022, a Comissão de Sindicância Interna da EBC
recomendou a demissão de Kariane por justa causa. A perseguição causou
revolta, e as mobilizações impediram que a jornalista fosse demitida.
A atuação de profissionais e entidades tem sido um fator fundamental
para resistir aos desmontes da EBC e acenar para uma reconstrução, como
pontua a jornalista Akemi Nitahara. Conselheira cassada e trabalhadora da
EBC, Akemi destaca a atuação da Ouvidoria Cidadã, criada em 2020 pela
Frente em Defesa da EBC e da Comunicação Pública, articulação que reúne
dezenas de organizações e movimentos. De acordo com a jornalista, que
também integra a Frente, uma ação importante tem sido a realização dos
dossiês com denúncias e a promoção de debates em torno da defesa e
reconstrução do projeto de comunicação pública para o país.
Fruto desse debate foi o “Caderno de Propostas: reconstrói EBC e a
comunicação pública”, lançado pela Frente em abril de 2022, durante o
seminário Reconstrói EBC. O documento defende a imediata revogação
da Lei 13.417, do período Temer, e reúne uma série de recomendações, a

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

exemplo da criação de mecanismos para garantir autonomia financeira, de


gestão e de conteúdo. As entidades proponentes também denunciaram
“o sequestro da EBC” e seu impacto no conteúdo produzido que teriam
afetado “as pautas de combate ao racismo e à LGBTQIAP+fobia, a visibili-
dade às PcD e pessoas com doenças raras, os temas relativos à juventude,
movimentos sociais e sindicais, pautas de violações a Direitos Humanos,
enfim, tudo relativo a comunidades já invisibilizadas e estigmatizadas pela
mídia hegemônica”.

Trabalhadores da EBC recebem prêmio. Crédito: Alice Vergueiro/IVH.

A mobilização dos profissionais da EBC rendeu, em 2022, o Prêmio Espe-


cial Vladimir Herzog de Contribuição ao Jornalismo. O troféu, concedido ao
coletivo de trabalhadores da empresa, foi uma forma de reconhecimento aos
esforços em defesa da comunicação pública e de resistência aos recorrentes
casos de assédio no trabalho, que, como destaca Akemi, afetaram e vêm
afetando a saúde mental desses profissionais.

Deixa Exu passar

Outubro de 2022 e o Brasil estava em uma encruzilhada. A reeleição


de Lula fez o país olhar para as políticas do passado; o bolsonarismo ainda
violento faz olhar com cautela o presente; e o acúmulo dessas experiências
trouxe a missão de construir o novo caminho que pavimentará este novo
ciclo para a democracia brasileira.
Em relação à EBC, o professor Venício Lima destaca que o golpe de 2016
interrompeu um projeto em andamento. “Ele não era um projeto consoli-
dado, nem pronto. Haviam muitos problemas, mas havia um caminho que
se tentava trilhar com base no espírito da Lei 11.652. É importante frisar isso,
para não idealizar um passado como se tudo estivesse resolvido”, conclui.
Para Rita Freire, é preciso recuperar fontes de financiamento e investir em
jornalismo e programação cultural. “Precisa incluir a produção regional e
periférica e refletir a sociedade na governança. Precisa enegrecer a EBC,
feministizar a EBC. Não se trata simplesmente de enegrecer a tela, mas a
gestão e a política editorial”, afirma a jornalista.
Esse desafio de reconstrução, no entanto, ainda esbarra em heranças do
governo Bolsonaro. Um exemplo é a atual Ouvidoria da EBC, sob o comando

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

do coronel Cristiano Mendonça Pinto. Sem qualificação para o cargo, nem


experiência em redação, sua nomeação causou revolta entre os trabalhado-
res. Em nota, a Ouvidoria Cidadã classificou como “escárnio” o uso político
da função. Nomeado há três meses do fim do governo Bolsonaro, Cristiano
possui um mandato de 2 anos.
De acordo com Rita Freire, esses são fatos políticos, e não administrativos,
fruto da mistura entre o governamental e o público. “A democracia pede
muita clareza nessa separação”, afirma. Ela defende a retomada e o forta-
lecimento de mecanismos para a participação da sociedade civil na política
de comunicação. “Não adianta transformarmos a EBC em uma empresa de
boas práticas. Para fazer comunicação pública, precisa ter a sociedade civil
na governança. Ou é perfumaria”, destaca.
Diante desse novo ciclo que vem sendo construído, o professor da UnB
Fernando Oliveira Paulino afirma que “a vontade e a necessidade de um
serviço público de comunicação continuam ainda mais vivas”. Paulino, que
também preside a Associação Latino-americana de Investigadores da Comu-
nicação (ALAIC), destaca que “não há países com indicadores democráti-
cos que tenham prescindido de uma comunicação pública e de incentivo à
diversidade e liberdade de expressão”. Para garantir o caráter público, ele
cita a importância da sustentabilidade financeira e do fortalecimento de
canais como o Conselho Curador e as Ouvidorias.
Com a mudança de governo, o professor Venício Lima afirma ter uma
“esperança contida” por ver no poder “pessoas que compreendem a dife-
rença entre a comunicação estatal e a pública, a importância da comuni-
cação pública num país democrático e que seu fortalecimento favorece o
regime democrático”. O professor também destaca que esse novo projeto
para a comunicação pública não pode ser visto isoladamente e deve ser
complementado por medidas que hoje estão sendo discutidas em todo o
mundo, a exemplo das big techs, tanto do ponto de vista das políticas públi-
cas quanto do da regulação. “Questões que se colocam como desafio para
a comunicação pública deveriam ser questões que desafiassem também
a comunicação privada. Porque o que está em jogo é a sobrevivência da
democracia”, defende Lima.

Laroiê!

Em meio ao caos que apontava para novos rumos, 2022 também foi
marcado pelos trabalhos que foram abrindo os caminhos desse novo projeto.
Algumas propostas foram apresentadas ao então candidato Lula, a exem-
plo do documento “8 pautas prioritárias das e dos jornalistas brasileiros”,
produzido pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e que defende a
“recuperação da EBC e ampliação do sistema público de comunicação”, além
de cobrar o “reestabelecimento das relações de trabalho com funcionários
da EBC, interrompendo o período que vem desde 2020 sem celebração do
Acordo Coletivo de Trabalho com os sindicatos”.
Já o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), em
sua carta-compromisso entregue aos candidatos, também defendeu a recu-
peração do caráter público da EBC, reestabelecendo o Conselho Curador,
definindo critérios para a escolha da presidência, desvinculando a empresa
pública da Secretaria de Comunicação e regulamentando a contribuição
para o fomento da comunicação pública.
Após o caos, portanto, profissionais e movimentos voltam a sonhar com
a construção de um novo projeto para a comunicação pública, a partir de
2023. O ano, inclusive, será novamente regido por Exu e, também, por Oxum
e Oxóssi. De acordo com o Etemí Dofono Hunxi, “acreditar que um ano será
caminhos múltiplos de possibilidade, saber que onde caminhos se cruzam

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

não significa dúvidas, mas sim múltiplas possibilidades de escolhas”.


A respeito do papel da comunicação para abrir os novos caminhos, ele
destaca que “Èsù é a própria oralidade e dela dependemos para fazer qual-
quer tipo de política”. O religioso afirma que “mesmo que o meio de comu-
nicação seja um e-mail, uma carta, um recado, no final sempre precisamos
do hálito para potencializar”.
Assim, após a ressaca da encruzilhada eleitoral de 2022, uma nova
possibilidade se abriu. Ao final de um ciclo de desmontes e destruição, a
sociedade civil tem a possibilidade de participar novamente de espaços de
construção de políticas públicas, e o direito à comunicação tem a oportu-
nidade de se destacar na agenda nacional, sob o risco de assistirmos a um
novo ciclo de autoritarismo no Brasil. É preciso vontade política e mobilização
social para que um novo capítulo na história da comunicação pública brasi-
leira comece a ser escrito. Um outro caminho se abre. Laroiê!!!

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

Ataques a jornalistas deram a tônica em


ano eleitoral
Em 2022, Bolsonaro e seus seguidores foram responsáveis pela
maior parte dos casos de ataques à imprensa

Iury Batistta

Crédito: Thyago Nogueira.

Após a confirmação da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições
presidenciais de 2022, uma profusão de vídeos em que pessoas celebravam
por todo o país o resultado das urnas passou a circular nas redes sociais.
Entre eles, um em particular chamou a atenção e viralizou. Na redação da
maior emissora de televisão do país, a Rede Globo, jornalistas se abraçavam
euforicamente e comemoravam em tom de alívio a derrota do candidato de
extrema-direita Jair Bolsonaro (PL) à reeleição.
Esse fato insólito ilustra a realidade do exercício da atividade jornalística
brasileira durante a gestão Bolsonaro, marcada pela intoxicação do debate
público e pelo estímulo, por parte dos apoiadores do ex-presidente, ao sen-
timento de desconfiança e suspeição em relação à imprensa, situação que
resultou, não raro, em ataques verbais e físicos a jornalistas e comunicadores/
as. Sem falar na redução da regra de transparência de atos públicos, que
resultou em empecilhos ao escrutínio das ações (e omissões) do governo por
parte da mídia. A exemplo do que ocorreu nos países que experimentaram

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

a ascensão de governos autoritários, criou-se um caldo social de ódio à


imprensa brasileira, reiteradamente acusada de “comunista”.
O ano de 2022 foi particularmente difícil para as instituições democráti-
cas brasileiras diante do aumento da temperatura política provocada pelas
eleições, tornando o ambiente ainda mais tóxico e belicoso. Consoante a
tendência de aumento da violência política contra profissionais de comuni-
cação, as tentativas de redução do espaço democrático atingiram em cheio
os jornalistas em seu trabalho de informar a população, a ponto de o Brasil
alcançar a ignominiosa marca de um caso de violência contra jornalistas por
dia, com 376 casos de agressões, de acordo com o Relatório da Violência
Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil – 2022, publicado pela
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).
A tipologia das agressões ocorridas em 2022 contempla um arco
variado de violações dos direitos fundamentais de liberdade de expressão
e imprensa, que vão do envio de mensagens de ódio às redes sociais de
jornalistas e grupos de mídia ao cometimento de agressões físicas. Para a
presidenta da Fenaj, Samira de Castro, essas violências foram estimuladas
– quando não raro cometidas – pelo ex-presidente Bolsonaro; sua postura
agressiva no relacionamento com a imprensa foi a senha para mobilizar ata-
ques de grupos bolsonaristas radicalizados e inseridos em uma visão alter-
nativa da realidade compartilhada nas redes sociais. “A gente compreende
tudo isso como uma tática da extrema-direita mundial para tentar desacre-
ditar as instituições e fazer prevalecer a sua narrativa mentirosa e golpista.
Nós, jornalistas, entramos nesse contexto de perseguição, seguido à risca
por Bolsonaro aqui no Brasil. O que a gente não esperava é que houvesse
uma adesão tão forte da sociedade a esse tipo de comportamento”, afirma.
O relatório aponta que no último ano houve uma redução de 12,56% no
número de casos, passando de 430 em 2021, ano em que se observou
um número recorde de agressões, para 376 em 2022. A queda dos índi-
ces de ataques poderia ser comemorada; no entanto, a análise qualitativa
dos dados revela uma piora do quadro. A redução ficou restrita aos casos
de “descredibilização da imprensa”, que passou de 131 para 87 atentados
(queda de 33,59%), e de “censura” (redução de 54,96%). Por outro lado,
cresceram em todas as regiões do país as agressões diretas a jornalistas,
especialmente as “ameaças, hostilizações e intimidações”, que aparecem
em segundo lugar com 77 casos, um aumento de 133,33% no número de
ocorrências em relação a 2021.
As “agressões verbais” chegaram a 46 casos, 20,69% a menos se compa-
ramos aos do ano anterior. Por outro lado, o número de casos de “agressões
físicas” mais que dobrou, passando de 26 para 49, com aumento de 88,46%.
O mesmo se deu em relação aos “impedimentos ao exercício profissional”,
categoria em que o número de casos saltou de 7 para 21, crescendo 200%.
Houve, ainda, crescimento no campo dos “ataques cibernéticos” a veículos
de comunicação, indo de 4 para 9 casos, registrando um aumento de 125%.
Quando se toma o recorte por região, percebe-se que a violência con-
tagiou todo o país. Dos 27 estados da federação (incluindo o Distrito Fede-
ral), somente Sergipe e Roraima não apresentaram nenhum caso. Houve
crescimento da violência no Sudeste (28,47% dos casos), no Norte (13,2%),
no Nordeste (12,15%) e no Sul (12,15%). A região Centro-Oeste, responsável
por 34,03% das ocorrências, observou uma queda no número de casos;
entretanto, seguiu na dianteira como a mais perigosa para o exercício do
jornalismo no Brasil.
Os números revelam que as ameaças verbais se converteram mais regu-
lamente em agressões físicas. Gradativamente, a violência do mundo digi-
tal migrou para o mundo real. Segundo Artur Romeu, diretor do escritório
regional da Repórteres Sem Fronteiras para a América Latina, as agressões

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

contra jornalistas e comunicadores não são uma novidade. Contudo, o que


vemos agora é uma agudização do fenômeno com contornos nunca vistos
na história brasileira. “O Brasil é um país violento não só para jornalistas e
comunicadores, mas para qualquer pessoa que exerce uma atividade de
enfrentamento ou denúncia do poder constituído. Nos últimos anos, o que a
gente viu foi a institucionalização dessa violência, no sentido em que o mais
alto escalão do governo passou a tratar a imprensa em geral, e os jornalistas
em específico, como inimigos públicos”, diz.
Para ele, a origem militar de Bolsonaro, conjugada ao receituário estraté-
gico de líderes autoritários e autocráticos mundiais em atacar a credibilidade
do jornalismo enquanto atividade democrática, ajuda a explicar seu com-
portamento. “Os militares, tradicionalmente, têm uma ojeriza à transparência
pública, ao acesso à informação e à prestação de contas à sociedade daquilo
que está sendo feito”, complementa.

Mulheres jornalistas: o violador é Bolsonaro

Em Como enfrentar um ditador: a luta pelo nosso futuro, a jornalista filipina


Maria Ressa, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2021, destaca como as
mulheres jornalistas se tornaram vítimas contumazes de governantes auto-
ritários. Segundo ela – que foi perseguida pelo regime de Rodrigo Duterte
–, a violência de gênero que acomete mulheres em posição de destaque
possui impacto real, visto que representa uma ameaça à continuidade de
suas atividades e visa desencorajar o protagonismo de outras profissionais.
No ano em que Jair Bolsonaro tentou se reeleger presidente, o país
testemunhou agressões contra mulheres jornalistas proferidas por ele em
plena cadeia de televisão. Esses casos ganharam repercussão na sociedade
por meio das redes sociais e aumentaram a percepção sobre a misoginia
impressa no temperamento de Bolsonaro. Naquela altura, ele já estava mal
avaliado entre as mulheres e sua campanha se esforçava em conquistar o
voto feminino.
O caso mais emblemático ocorreu na noite do dia 28 de agosto, durante
o primeiro debate entre os presidenciáveis, promovido pela Rede Bandeiran-
tes. Em sua intervenção no debate, a jornalista Vera Magalhães perguntou
ao candidato Ciro Gomes (PDT) acerca dos efeitos da campanha de desin-
formação a respeito das vacinas contra a covid-19, promovidas pelo então
presidente, e sobre a baixa cobertura vacinal de outras doenças que o país
enfrentava. Bolsonaro havia sido escolhido pela jornalista para comentar a
resposta; no entanto, utilizou seu tempo para atacá-la. Bolsonaro a chamou
de “mentirosa” e afirmou que ela era “uma vergonha para o jornalismo bra-
sileiro”; não satisfeito, debochou da jornalista, dizendo que ela havia sido
“fantástica” por ter dado a ele a oportunidade de “dizer um pouco de verdade
sobre você”.
Na ocasião, Bolsonaro ainda atacou outra mulher, a então candidata
Simone Tebet (MDB), ao afirmar que ela era “uma vergonha para o Senado
Federal”. Ele ainda se defendeu das acusações de atacar mulheres, classi-
ficando aquilo de “historinha” e acusando-as “de se vitimizar [sic]”.
No dia 6 de setembro, Bolsonaro esteve presente no programa Sabatina,
do canal Jovem Pan, veículo que se tornou a voz do bolsonarismo e ao
qual o ex-presidente concedeu inúmeras entrevistas exclusivas ao longo
do mandato. Nem mesmo em um órgão de imprensa considerado “chapa
branca” o então presidente conseguiu esconder sua hostilidade à função
jornalística, e reincidiu no ataque a mulheres jornalistas. A vítima dessa vez
foi Amanda Klein, que havia questionado o presidente sobre a suspeita da
compra de imóveis em dinheiro vivo por seus familiares. Bolsonaro a cha-
mou de “leviana”, descredibilizou o jornal Folha de S.Paulo e indagou se

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ela acreditava na imprensa. “Você acredita em você, olhando no espelho,


Amanda? [sic]”, insistiu o ex-presidente.
No dia 13 de setembro, o então deputado estadual Douglas Garcia (Repu-
blicanos/SP), conhecido pela defesa enfática do ex-presidente e de suas
pautas, também atacou a jornalista Vera Magalhães. Ele esteve presente
no debate dos candidatos ao governo do estado de São Paulo promovido
pela TV Cultura, órgão em que Vera trabalha, a convite da campanha do
candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), que viria a ser
eleito governador.
Durante a intimidação, ele repetiu por cinco vezes a mesma frase pro-
ferida por Bolsonaro duas semanas antes, de que ela seria “uma vergonha
para o jornalismo brasileiro”. Esse caso robusteceu a tese de que Bolsonaro,
além de agressor, seria o principal incentivador para que seus seguidores
atacassem jornalistas, comunicadores e órgãos de imprensa. O relatório da
Fenaj contabilizou 570 ataques de Bolsonaro a veículos de comunicação e
a jornalistas entre os anos de 2019 e 2022, o que significa um atentado à
imprensa a cada dois dias e meio.
A violência contra mulheres jornalistas extrapolou as fronteiras nacionais.
No dia 18 de setembro, a repórter Laís Alegretti – em companhia do repórter
cinematográfico Giovanni Bello –, da BBC Brasil em Londres, estava cobrindo
a passagem de Bolsonaro pela capital inglesa, em razão do funeral da rainha
Elizabeth II, quando foi cercada e intimidada por um grupo de bolsonaristas.
Um homem gritou a palavra “lixo” em direção aos jornalistas, enquanto outro
perguntava o que eles estavam fazendo ali. “Vocês não são bem-vindos”,
ameaçou. Diante do ambiente hostil, Alegretti e Bello recolheram seus equi-
pamentos e deixaram o local sob vaias.
De acordo com Samira de Castro, a camada de ódio despejada pelo bol-
sonarismo sobre mulheres jornalistas ocorre em função da condição feminina
dessas profissionais. “Essas mulheres não são atacadas por suas qualidades
enquanto jornalistas, mas sim em razão desse forte componente que nós
temos no Brasil de machismo e misoginia. Esses ataques, coordenados
principalmente nas redes sociais, tentam desqualificar aquela profissional
acima de tudo como mulher”, observa.
Em junho de 2022, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a conde-
nação de Bolsonaro e decidiu, por 4 votos a 1, aumentar o valor referente à
indenização por danos morais que havia sido conferida à jornalista Patrícia
Campos Mello, da Folha de S.Paulo, em decisão de primeira instância. O
valor passou de R$ 20 mil para R$ 35 mil. Em fevereiro de 2020, Bolsonaro
insultara a jornalista com um comentário de cunho sexual para seguidores
que o acompanhavam em Brasília.

“Eles vão sentir saudades da gente”

Não foram apenas os jornalistas da grande mídia que sofreram algum tipo
de violência; representantes do jornalismo independente também experi-
mentaram tentativas de impedimento de atuação profissional. Foi o caso de
Leandro Demori, ex-editor-executivo do The Intercept Brasil. Às vésperas do
primeiro turno eleitoral, ele deixou o Brasil acompanhado de sua família em
razão dos recentes “episódios de violência”, como revelou em seu canal no
Youtube. Demori, que ganhou projeção após as reportagens da “Vaza-Jato”,
já havia sofrido um caso de violência; em janeiro de 2022, ele foi perseguido
e intimidado por um homem enquanto passava férias em Balneário Camboriú
(SC) – câmeras de segurança registraram o ocorrido.
Defensor de uma política antiaborto, o governo Bolsonaro investiu contra
o site The Intercept Brasil e o Portal Catarinas por terem revelado o episó-
dio de uma menina de 11 anos que havia engravidado após um estupro e

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

sido pressionada pela juíza responsável pelo caso a não abortar, embora o
aborto para esse tipo de situação esteja amparado na legislação brasileira.
Atendendo ao pedido do então presidente, o antigo Ministério da Mulher, da
Família e dos Direitos Humanos fez representação junto ao Ministério Público
para a abertura de investigações contra os veículos de mídia. Em 2019, a
pasta havia encaminhado denúncia parecida ao MP contra reportagem da
revista AzMina sobre a realização de aborto seguro e legal.
Monitoramento da Repórteres Sem Fronteiras, em parceria com o Labo-
ratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do
Espírito Santo (Labic/UFES), nas contas de 120 jornalistas no Twitter durante o
período eleitoral (16 de agosto a 30 de outubro), revelou a cifra estratosférica
de 2.929.986 postagens contendo termos ofensivos e insultos direciona-
dos à imprensa (os números são preliminares). Entre os dez jornalistas mais
atacados, seis são mulheres.
Dois dias após a derrota no segundo turno das eleições, Bolsonaro fez
um breve pronunciamento ao lado de ministros e políticos de sua base. Ao
chegar ao local onde iria discursar, diante de um batalhão de repórteres que
o aguardava, ele voltou-se para o então ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira,
e comentou em tom de desfaçatez: “eles vão sentir saudades da gente”.

Bolsonaro em coletiva de imprensa. Crédito: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.

Após esse evento, Bolsonaro submergiu, permanecendo recluso e em


silêncio por quase dois meses. Nesse período, milhares de bolsonaristas
fecharam rodovias e montaram acampamentos antidemocráticos em frente
a quartéis e sedes do Exército por todo país, inconformados com a vitória do
presidente Lula e pedindo intervenção militar. Durante a cobertura desses
eventos golpistas, foram registrados 63 casos de agressão contra jornalistas,
mais de um ataque por dia. Em 2022, Bolsonaro e seus seguidores foram,
juntos, responsáveis por 184 casos de ataques à imprensa.

Desafios

A partir de 2019, o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos


Humanos (PPDH), por meio do Decreto nº. 9.937 do governo federal, passou
a abranger ambientalistas e comunicadores, alterando sua nomenclatura
para Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comu-
nicadores e Ambientalistas. A inclusão de comunicadores no rol dos con-
templados pelos mecanismos de proteção se deu a partir da mobilização de
entidades de representação de classe, ativistas e organizações em defesa

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

dos direitos humanos. Paradoxalmente, a inclusão se deu sob o governo


Bolsonaro, embora as articulações que culminaram no decreto já estivessem
em discussão antes de sua eleição.
Conforme análise da RSF, até julho de 2022 somente seis dos 650 bene-
ficiários atendidos pelo PPDH pertenciam à categoria de comunicadores. O
baixo número resulta de alguns fatores; entre eles, a limitação do alcance da
cobertura do programa àqueles profissionais de comunicação que atuam
diretamente na defesa dos direitos humanos, bem como o desconhecimento
dos comunicadores sobre a existência do programa. O quadro se torna com-
plexo quando se observa a dificuldade que os comunicadores tiveram nos
últimos quatro anos em acessar um sistema de medidas de proteção que
estava sob o comando de um governo que ameaçava e perseguia a quem
deveria proteger, comprometendo a eficácia da política pública.
Tanto o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) quanto a Rede
Nacional de Proteção de Jornalistas e Comunicadores têm apresentado uma
série de recomendações em seus relatórios para o funcionamento devido e
efetivo do PPDH. Destacam que as medidas não devem inviabilizar a expres-
são dos comunicadores, como nos casos de afastamento dos mesmos de
determinadas coberturas, da retirada de seus territórios em casos de ameaça
– implicando sobretudo a atuação de comunicadores populares que falam
sobre e a partir desses lugares – ou da saída dos ambientes digitais, como
as redes sociais, que são fundamentais para o exercício da comunicação.
No dia 30 de dezembro de 2022, durante uma live, em seu último pro-
nunciamento como mandatário, Bolsonaro se dirigiu a seus seguidores como
um perseguido pela imprensa. “A imprensa, sempre ávida para pegar uma
palavra errada minha, uma frase fora de contexto, para criticar”, afirmou.
Mas, durante a sua gestão, a desinformação, a violência e o ódio se torna-
ram políticas públicas promovidas através de uma comunicação intensa,
direta e sistemática. Sem ele no poder, mas com o espectro do bolsonarismo
rondando, impõe-se ao novo governo, à própria imprensa e à sociedade
civil organizada a dura tarefa de restabelecer a confiança da população
nos fatos e no entendimento da importância da atividade jornalística para
a democracia.
Tanto Castro como Romeu convergem na interpretação de que não há
uma bala de prata que resolva esses problemas de imediato, sendo preciso
calibrar estratégias e políticas públicas que operem no campo da educação
midiática, na proteção dos jornalistas e comunicadores no exercício de suas
funções, bem como na regulação das grandes plataformas de redes sociais
para, desse modo, poder dar respostas de longo prazo.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

A política do ódio e a resistência do povo


nas ruas e nas redes
A era Bolsonaro impulsionou a violência como dispositivo político,
sobretudo em 2022, ano eleitoral no país, mas não sem enfrentar
ações de resistência

Nataly Queiroz

Crédito: Thyago Nogueira.

Durante o governo Bolsonaro, e particularmente em 2022, o ódio cimen-


tou a plataforma política do então candidato à reeleição, com discursos
e ações que incitaram a violência simbólica e material contra adversários
ideológicos. A política do ódio recriou inimigos, resgatando o fantasma de um
suposto comunismo latino-americano, e se valeu do ideário colonial, ainda
vigente no imaginário social, que aponta seus canhões contra a diversidade,
os grupos historicamente excluídos e os movimentos sociais. Falamos tam-
bém de um perverso e multifacetado processo que ressemantizou a palavra
“liberdade”, tornando-a, paradoxalmente, aliada da subjugação humana,
econômica, política e religiosa.
Para o antropólogo e professor Roberto Éfrem, no cerne do que se inti-
tula de política de ódio estão as relações desiguais de poder produzidas e
reproduzidas por agentes políticos. “Isso que estamos chamando de ódio
consiste em um momento de relações de poder muito desiguais, profundas

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

e perversas com as quais convivemos há muito tempo e nos constituem


historicamente. O ódio teve bastante capilaridade no contexto eleitoral de
2022. Nele, as relações de poder muitíssimo desiguais, que nos formam
como nação, que limitam a nossa experiência democrática, puderam se
expressar a partir de certos sujeitos que vinham operando para produzir e
reproduzir essas relações. Não estou dizendo que estamos apenas obser-
vando a reprodução do velho. Tudo isso tem algo novo que tem a ver com o
modo como essas relações de poder estão sendo reviradas e reinventadas
a partir de novas estratégias, tecnologias e com a constituição de novos
agentes políticos”, afirma.
Em uma arena pública ampliada, em que as vidas on-line e off-line têm
fronteiras cada vez menos definidas, as redes sociais e os aplicativos de
mensageria foram espaços por excelência de disseminação dos discur-
sos de ódio. Segundo a organização SaferNet, 2018, 2020 e 2022 foram
os anos eleitorais em que as denúncias de discursos de ódio aumentaram
significativamente em relação aos anos anteriores. Entre 1º de janeiro e 31
de outubro de 2022, foram recebidas 39,3% mais denúncias do que no
mesmo período de 2021.
Os três tipos de crime de discurso de ódio mais denunciados em 2022
foram xenofobia (ódio a imigrantes estrangeiros ou a pessoas de algumas
regiões do país), cujo aumento foi de 821% em relação a 2021, seguido de
intolerância religiosa, com crescimento de 522%, e de misoginia, ampliada
em 184%. Os outros quatro crimes de discurso de ódio na internet mais
denunciados foram: apologia a crimes contra a vida, LGBTQIA+fobia, neo-
nazismo e racismo. Excetuando-se o neonazismo, que apareceu fortemente
no ano passado, a pesquisa da Safernet identificou um padrão semelhante
de crescimento dos demais discursos de ódio nas últimas três eleições.
As redes sociais e os aplicativos de mensageria, pelas suas estrutu-
ras e gramáticas, possibilitaram o compartilhamento de discursos de ódio,
assim como a criação e o fortalecimento de grupos identificados com ideais
antidemocráticos. “Eu fico pensando naquela cena de pessoas com celu-
lares para cima pensando que estão falando com extraterrestres. Falou-se
em surto coletivo, mas como aquilo é possível? Aquilo é possível porque é
compartilhado. Aqueles sujeitos não estão sós, existe uma unidade, uma
coesão, a produção de uma identidade política. A fé, a crença absoluta só
é possível quando é compartilhada. A internet, as redes sociais garantem
esse compartilhamento”, avalia Éfrem.
O ódio enquanto política se valeu das novas estruturas comunicacionais
também para criar seus representantes, lideranças que disputam a política
institucional a partir de uma agenda neoconservadora e, em diversos pontos,
fascista. “A mobilização de pânicos morais e de narrativas conservadoras
constitui sujeitos a ponto de eles se fazerem sujeitos a partir delas. Não à
toa, durante as eleições, Jair Bolsonaro o tempo inteiro leva seu discurso à
direita, porque a extremização é uma forma de constituição de sujeitos. No
limite, pode significar que o que se está chamando de ódio é uma forma de
constituição de sujeitos políticos”, destaca o antropólogo.

Entre falácias e performances

É fato que houve o uso das estruturas comunicacionais para a desde-


mocratização. A vigilante economia informacional movida pelas plataformas
digitais e os dispositivos simbólicos empregados para desinformar aparecem
no centro das estratégias desdemocratizantes. As narrativas que ancoraram
os discursos antidemocráticos, ao longo do ano de 2022, não se colocaram
como tal. Falaciosamente, se valiam de performances e jargões salvacio-
nistas, patrióticos, de defesa da família tradicional heteronormativa e pela

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

liberdade de mercado como garantidora de melhorias para a população.


Não à toa o lema do bolsonarismo nas eleições girou em torno da tríade
Deus-Pátria-Família.
“O chamado discurso do ódio parte de uma consideração totalmente
inversa. Toma-se como pressuposto, absolutamente irreal, que a sociedade
capitalista é justa e pacífica e que alguns indivíduos e grupos são violentos
e querem excluir direitos de minorias”, analisa Renata Rolim, professora de
Sociologia Jurídica do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba.
A docente destaca o papel central dos monopólios e oligopólios midiáti-
cos, não só enquanto meios de fortalecimento da política do ódio e de seus
agentes, mas como seus produtores. No pano de fundo desse processo
estão os interesses de mercado perpetrados por empresas do setor, as quais
incidem no imaginário social e na política institucional, como forma de repro-
duzir lógicas capitalistas as quais, em países como o Brasil, retroalimentam
as desigualdades estruturais de classe, gênero e raça.
“Além de ter partidos políticos, a burguesia controla os principais mono-
pólios da comunicação no país e no mundo. Com esse monopólio, ela pro-
cura convencer a maior parte da população a aderir à sua política. Durante
a campanha eleitoral, vimos esse monopólio [da mídia tradicional] agir para
defender a ampliação das privatizações, o controle dos gastos públicos em
benefício dos banqueiros e a autonomia do Banco Central”, afirma Rolim.
As redes sociais, por sua vez, não romperam com essa lógica concen-
tradora de poder. “As plataformas digitais são poderosos monopólios que
acumulam grandes fortunas a partir da violação dos direitos de privacidade
dos usuários e mantêm articulações políticas estreitas com a espionagem
dos países imperialistas. Edward Snowden e Julian Assange denunciaram
corajosamente essa articulação e até hoje pagam muito caro por isso”,
complementa.
A pesquisadora reforça, ainda, que os discursos de ódio, disseminados na
rede mundial de computadores, fazem parte de um modus operandi histórico
dos grandes conglomerados da mídia tradicional nacional, aliados ao capital
na defesa do Estado mínimo. “Para enfrentar o ódio como política teríamos
que começar cassando as concessões públicas dos principais monopólios
de imprensa do país. São eles que apoiam e buscam legitimar a matança de
nossos jovens, negros e pobres, pela polícia militar. Não existe discurso de
ódio mais potente que esse! Talvez o que considere que as pessoas precisam
morrer de fome para garantir o pagamento de uma dívida aos banqueiros
especuladores. E essa é uma pauta da qual a imprensa monopolista não
abre mão”, pontua.
Apesar do rolo compressor antidireitos, Renata Rolim também destaca
as vitórias nas disputas simbólica e institucional vivenciadas ao longo do
ano passado. “Tivemos uma grande vitória contra a imprensa monopolista
e as forças repressivas que em 2016 perpetraram um golpe de Estado e,
em seguida, colocaram na prisão o líder mais popular que o país já teve nas
últimas décadas, Luiz Inácio Lula da Silva. A ascensão política da extrema
direita foi o resultado dessa política reacionária e também derrubamos, até
o momento, essa tendência. Somos, sem dúvida, um grande exemplo para o
restante da América Latina e para todos os países do mundo que estão pas-
sando por questões semelhantes com o avanço político da extrema direita.
Essa força política só pode ser superada com as amplas massas e com uma
política que as mobilize”, avalia.

Contra o ódio e o medo, as resistências nas ruas e nas redes

Na mira do arsenal bélico (simbólico e material) da política do ódio, lide-


ranças políticas de esquerda e movimentos sociais articularam ações nas

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

ruas e nas redes para enfrentar o ideário antidemocrático e fortalecer a luta


por direitos e o respeito à diversidade. Rud Rafael, coordenador nacional do
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e integrante da Frente Povo
Sem Medo, avalia que a ativação do medo foi um dos principais recursos
usados pelos agentes da política do ódio ao longo de 2022.
“O elemento que mobiliza a política da extrema direita é o ódio, que
tem o medo como sua principal interface. Eles mobilizaram o sentimento
de medo de destruição da família, da propriedade e de Deus, assim como
foi na ditadura, para justificar a eliminação dos seus adversários políticos.
Foi com essa lógica que eles foram produzindo inimigos num contexto de
crise social e política expressiva na nossa sociedade, difundindo as mentiras
mais escabrosas nos meios de comunicação de que eles dispunham. Esse
discurso foi ganhando diversas formas políticas. Desde a elevação da vio-
lência contra defensores de direitos humanos, como nos diversos casos de
violência política que vivenciamos nos últimos anos, e tem no assassinato
de Marielle Franco um dos seus principais símbolos, até o fortalecimento de
militarização das periferias e de uma política armamentista”, articula Rud.
Representantes de segmentos da população historicamente excluída
presentes nos espaços da política institucional sentiram na pele o projeto
de aniquilação da diversidade. “Em relação às eleições de 2022, nós perce-
bemos um aumento da violência política racial e de gênero contra mulheres
negras. É importante destacar que, logo após as eleições de 2018 e 2020
também, houve vários casos de parlamentares eleitas, cis e trans negras,
ameaçadas de morte por Whatsapp ou e-mail, de parlamentares que tiveram
suas casas atingidas por tiros ou pichadas, recebendo mensagens que des-
crevem seu cotidiano, que horas saem de casa, onde as crianças estudam,
onde mora a família dela”, relembra Mônica Oliveira, integrante da Rede de
Mulheres Negras de Pernambuco.
Diante das múltiplas facetas e sujeitos da política do ódio, as estratégias
dos movimentos também foram multifacetadas. Mônica destaca que as
mulheres negras se organizaram em coletivo, desenvolvendo campanhas
para redes sociais e outras mídias, a fim de sensibilizar e denunciar a vio-
lência contra esse segmento da população. Elas também desenvolveram
parcerias estratégicas com os tribunais eleitorais como forma de fortalecer
as mulheres negras candidatas.
O MTST aliou ações de escracho, mobilizações nas periferias e produção
de conteúdo de forma criativa e estratégica. “As ações de escracho reali-
zadas na Bolsa de Valores, na mansão de Flávio Bolsonaro, em shoppings
e em lugares de referência dos golpistas, produziram efeitos simbólicos
importantes. A imagem de sem-tetos dentro da Bolsa com a bandeira do
Brasil escrito ‘Fome’ ilustrou várias matérias e artigos que colocavam em
debate questões sensíveis para a população brasileira. A experiência do
‘Gabinete do Amor’, que surgiu no contexto das eleições de 2020, para
criar um contraponto ao ‘Gabinete do Ódio’ bolsonarista também foi uma
experiência que rendeu bons frutos em relação à disputa das redes sociais,
assim como a formação de grupos de ação no Whatsapp”, destaca Rud.
O Movimento Sem Terra (MST), historicamente criminalizado pela mídia
tradicional, sofreu severos ataques aos seus acampamentos e assentamen-
tos. Um deles aconteceu no final de 2022, quando o Centro de Formação
Paulo Freire, localizado no assentamento Normandia, no agreste pernam-
bucano, foi invadido, depredado e pichado com suásticas e com a palavra
“mito”. O MST, que vem ampliando suas ações de comunicação em rede,
apostou na solidariedade e no trabalho de base como meios de resistência.
“O MST, por mais que tenha sido atacado, saiu fortalecido porque foi um
bastião da esperança, sendo quase um farol da resistência. O MST girou a
sua vida para o que chamamos de isolamento produtivo. A orientação era

29
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

que cada assentado fosse para dentro dos seus lotes e produzisse comida
saudável durante a pandemia e durante esse período de ódio. Chegamos a
mais de 12 mil toneladas de alimentos doados, produzidos pelo MST, e quase
três milhões e meio de marmitas e tantas outras ações de solidariedade que
foram acontecendo durante o ano. Então, mobilizamos gente, mobilizamos
esperança para essa luta e para a construção da solidariedade”, afirma Paulo
Mansan, da direção do MST-PE.
Os povos indígenas, alvos de diversos ataques de caráter genocida des-
velados mais fortemente desde o ano passado, fizeram história mobilizando
ações de pressão junto aos poderes do Estado. “Os povos indígenas esti-
veram em Brasília, em 2021 e em 2022, impulsionando o maior movimento
de mobilização já feito pelos indígenas no Brasil. Nenhum direito foi retirado.
Essa mobilização, inclusive, proporcionou colocarmos em pauta o julgamento
do recurso extraordinário que discute a nefasta tese do Marco Temporal [no
STF]. Fizemos uma articulação permanente com vários organismos inter-
nacionais e nos somamos a outros movimentos aqui no Brasil, que perma-
neceram atentos e lutando junto com os povos indígenas. Fruto disso foi a
nossa vitória, em termos [no novo governo Lula] um Ministério dos Povos
Indígenas e os povos indígenas administrando a Funai [Fundação Nacional
dos Povos Indígenas] e a Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena]. Isso
vai fazer com que os povos indígenas sejam protagonistas na política indi-
genista oficial do governo”, avaliou Eduardo Cerqueira, secretário executivo
do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
A juventude indígena também fez história nesse processo, articulando,
em rede, a produção e circulação de conteúdos a partir de seus territórios
para se opor ao massacre dos povos indígenas e à política do ódio. “A juven-
tude indígena, com maior conhecimento sobre os meios de comunicação,
as novas tecnologias, se fez protagonista nesse processo de repercutir a
luta dos povos indígenas a partir das suas aldeias, dos seus locais. Diaria-
mente recebíamos, por parte desses comunicadores indígenas, conteúdos
importantes e impactantes com relação ao dia a dia dessas comunidades.
A resistência da juventude esteve presente em todos os processos de mobi-
lização, tanto em nível local como regional e nacional”, lembra Cerqueira.
O ódio como política desvelou, por um lado, os mecanismos presentes na
cultura política do país os quais lhe permitiram existir e se espraiar, e houve o
agravamento da sua utilização como dispositivo político nos quatro anos de
governo Bolsonaro, coincidindo com retrocessos que fragilizaram o estado
democrático de direito no país. Por outro lado, também lançou luzes para a
comunicação como elemento político central de intervenção sobre o real.
Em um país com marcantes brechas digitais, fragilidades democráticas e
flertes de grupos conservadores com projetos extremistas, o caminho da
resistência em 2022 enlaçou territórios e redes, acendendo o sinal de alerta
em relação à necessidade de regulação das plataformas digitais e das con-
cessões públicas de radiodifusão. A continuidade desse enfrentamento deve
ser pauta dos próximos anos, sob o risco do fantasma do horror ressurgir.

30
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

31
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Eleição de candidatos policialescos e


donos de mídia prejudica a democracia
A mídia é usada como trampolim político e contribui para a eleição
de perfis que se valem da visibilidade que adquirem por meio da tela
da TV ou das ondas do rádio

Mabel Dias

Crédito: Thyago Nogueira.

Pesquisa realizada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação


Social em 2022 identificou o crescimento de candidaturas ligadas aos pro-
gramas policialescos nas eleições daquele ano. O monitoramento, que faz
parte do projeto Mídia sem Violações de Direitos, mapeou 43 candidaturas
em 14 estados brasileiros (BA, PB, CE, PI, AM, RR, MT, MG, ES, SP, RJ e
PR) e no Distrito Federal aos cargos de governador, deputados federal e
estadual, senador e suas suplências. O perfil dos políticos-apresentado-
res, repórteres e comentaristas mapeados pela pesquisa é de homens
(há apenas uma mulher na lista), sendo 50% brancos, e quase todos com
larga experiência em eleições. Dos 43 candidatos, 9 foram eleitos, e outros
ganharam a suplência.
A pesquisa analisou programas policialescos das dez maiores cidades
brasileiras em número de habitantes em cada estado. Os dados encontrados
pelas/os pesquisadoras/es identificaram 27 candidatos a deputado estadual,

32
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

11 candidatos a deputado federal, 4 candidatos a governador e 1 candidato


ao senado. Em quatro anos (2018 a 2022), o monitoramento registrou o
crescimento de quase 100% desse tipo de candidatura. Boa parte desses
programas e de seus apresentadores foi alvo de ações dos Ministérios Públi-
cos Federal e Estadual, em diversos estados brasileiros, como Paraíba, Ceará
e Pernambuco. Eles foram denunciados por crimes de racismo, LGBTfobia,
misoginia, violações dos direitos de crianças e adolescentes e da legislação
brasileira, como a Constituição Federal.

Tabela 1 - Candidaturas de programas policialescos eleitas.

Mesmo assim, as atrações permanecem na grade de programação das


principais emissoras brasileiras, em âmbito nacional e regional, com índi-
ces significativos de audiência, colaborando para que os apresentadores
de policialescos saiam na frente dos demais candidatos durante o pleito
eleitoral. Nesse sentido, a mídia tem sido utilizada como trampolim político
e contribui para a eleição de tais perfis, que se valem da visibilidade que
adquirem por meio da tela da TV ou das ondas do rádio.

Candidatura de policialescos prejudica a democracia e os direi-


tos humanos

Entre os candidatos identificados pelo monitoramento do Intervozes


está o apresentador Evaldo Costa, do policialesco Cidade 190, exibido
pela TV Cidade, no Ceará, afiliada à RecordTV. Evaldo é vereador pela
cidade de Fortaleza e foi candidato a deputado estadual nas eleições
de 2022 pelo Republicanos, ficando na suplência. O programa que ele
apresenta desde 2009 registra inúmeras violações aos direitos humanos.
Uma delas aconteceu em 2014, quando transmitiu, ao meio dia, cenas
de violência sexual contra uma criança de apenas nove anos de idade.
O caso gerou repercussão nacional e diversas entidades que atuam na
defesa dos direitos humanos acionaram o Ministério das Comunicações
(MiniCom), que aplicou uma multa no valor de R$ 23 mil contra a emissora.
O MiniCom considerou que a empresa violou o Regulamento dos Serviços
de Radiodifusão (Decreto nº 52.795/63), legislação que regula rádio e TV
no Brasil, ao transmitir cenas que atentaram contra o sentimento público,
“expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em cons-
trangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (artigo 28, 12b).
Outro candidato que comanda um policialesco, e que conseguiu se
reeleger no pleito de 2022, foi o deputado federal, pelo Republicanos
do Espírito Santo, Amaro Neto. Ele é apresentador do programa Balanço
Geral ES, na TV Vitória, afiliada à RecordTV, desde 2009, e é conhecido
por julgar e condenar as pessoas suspeitas que aparecem no programa e

33
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

fazer espetacularização dos casos de violência contra crianças e adoles-


centes. O deputado é favorável à redução da maioridade penal para 16 anos
e diz não ver problema em conciliar as atividades de político e comunicador.
Dessa forma, o parlamentar aumenta seu potencial eleitoral no estado
que representa, ao utilizar a televisão como aliada em seu crescimento
como político e na difusão de pautas conservadoras e contra os direitos
humanos.
De fato, não há impedimento legal para que apresentadores, repórteres
e comentaristas de programas de rádio e TV apresentem candidatura e se
elejam para qualquer cargo público. Porém, o tempo que ocupam à frente
desses programas e a visibilidade alcançada auxiliam ainda mais suas
campanhas. A professora Janaine Aires, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), explica que a legislação brasileira relacionada
à regulamentação da comunicação é falha.
“No caso dos comunicadores-políticos, apresentadores, comentaris-
tas e repórteres, o que a gente identifica é que a legislação eleitoral, que é
a aplicada nesses casos, não é suficiente, porque ela tem uma temporali-
dade, ela está ali marcada no contexto de início das campanhas políticas,
que são em torno de três meses. Os apresentadores se descompatibilizam
[nesse período]; no entanto, a campanha política já se iniciou ou ela nunca
cessou. O que a gente identifica é que essas regras não conseguem dar
conta da complexidade desse fenômeno, pois a construção da imagem
do apresentador candidato se inicia muito antes disso”.

Policialescos donos de mídia: uma prática ilegal

Outra problemática identificada pela pesquisa Mídia sem Violações de


Direitos é a candidatura de políticos apresentadores de policialescos que
são donos de empresas de mídia. Alguns foram denunciados por má gestão
e prática de crimes contra o serviço público, como o governador Wilson
Lima, reeleito pelo Amazonas, e o deputado estadual Mário César Rodri-
gues Balduino, ambos do União Brasil, mesmo partido do atual ministro das
Comunicações do governo Lula, Juscelino Filho.
Wilson Lima foi apresentador do programa policialesco Alerta Amazonas,
transmitido pela TV A Crítica, deixando a função para se candidatar nas
eleições de 2018, quando foi eleito governador do estado do Amazonas pela
primeira vez. Quem assumiu seu lugar como apresentador foi Sikêra Júnior,
que também é réu em diversos processos no Judiciário brasileiro. Em abril de
2023, a Rede TV! anunciou a demissão de Sikêra Júnior do Alerta Nacional.
Já Mário César apresentou o programa Alô, Amazonas, também na emis-
sora de TV A Crítica. Ambos declararam ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
que são proprietários de empresas de publicidade, o que não é ilegal, mas
pode apresentar riscos de propaganda e visibilidade indevidas.
Em abril de 2022, o deputado estadual Mário César Rodrigues Balduino
foi acusado pela mídia local de distribuir cestas básicas compradas com
recursos públicos de um programa do governo do estado do Amazonas.
Segundo a oposição local, essa prática beneficiou a campanha do gover-
nador Wilson Lima e a própria candidatura de Mário César. O estado do
Amazonas esteve no centro da pandemia da covid-19, em 2021, quando
protagonizou uma crise sanitária no combate ao vírus, com a superlotação
de hospitais e a falta de oxigênio para os pacientes graves da doença. Nesse
período, o governador Wilson Lima foi incluído no relatório da CPI da Covid,
instalada pelo Congresso Nacional, acusado de desviar recursos públicos
na compra dos respiradores.
No Paraná, outro caso de apresentador de policialesco é o do candidato
a deputado estadual pelo PDT Homero Barbosa Neto, que nas eleições de

34
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

2022 ficou na suplência do cargo. Homero Neto já ocupou a vaga de depu-


tado estadual entre 2002 e 2007, foi deputado federal entre 2007 e 2009
e prefeito de Londrina de 2009 a 2012. Ele apresenta o programa Balanço
Geral Londrina, da RIC TV, afiliada à RecordTV, e administra a Rádio Brasil Sul,
emissora de propriedade de sua família, onde atua como sócio-proprietário.
Nesse caso, a prática contraria o artigo 54 da Constituição Federal, uma
vez que políticos não podem explorar serviços de radiodifusão. Durante a
campanha eleitoral em 2022, ele continuou participando da programação da
rádio Brasil Sul, comandando o programa Barbosa Neto, que tinha o slogan
“Emoção, fé e a comunicação verdadeira do jornalista Barbosa Neto”.
Além dos policialescos que possuem negócios na mídia, a pesquisa Mídia
sem Violações de Direitos identificou 45 candidatos donos de mídia, sendo
18 candidatos a deputado federal, 13 a deputado estadual, 6 ao Senado e 1 à
suplência do Senado, 5 ao cargo de governador e 2 ao de vice-governador.
Das candidaturas analisadas, mais da metade são homens (38), brancos
(33) e milionários (33). Dos 45 candidatos, 25 foram eleitos.
Na tentativa de acabar com tais ilegalidades, em 2015 o PSOL entrou
com duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental da
Constituição (ADPFs) no Supremo Tribunal Federal exigindo o cumpri-
mento da Constituição Federal. Em 2021, uma nova petição foi enviada ao
STF, pedindo celeridade no julgamento contra políticos donos da mídia.

Tabela 2 - Propietários de mídia eleitos.

* Flávia Francischini e Felipe Francischini, do Paraná, e Mário César Balduíno e Wilson Lima, do Amazonas, não
são concessionários de radiodifusão, mas foram incluídos no levantamento por serem sócios e proprietários
de empresas do setor da comunicação. Ainda que a posse de agências de comunicação não configure como
infração ao artigo 54 Constituição Federal, ela aponta para as relações de influência entre o sistema político e os
sistemas de comunicação.

35
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

O fenômeno dos comunicadores-políticos e a ligação com a


extrema direita

Na Paraíba, a pesquisa do Intervozes identificou duas candidaturas de


policialescos (o primeiro é apresentador e o segundo é repórter): Nilvan Fer-
reira, filiado ao PL e candidato ao governo do estado, e Emerson Machado,
candidato a deputado estadual pelo PSD. Ambos não conseguiram se eleger.
Contudo, Nilvan, que também se candidatou ao cargo de prefeito da capital
da Paraíba em 2020, chegou ao segundo turno com um significativo capital
político. Nilvan e Emerson fazem parte do mesmo programa policialesco, o
Correio Verdade, exibido pela TV Correio, afiliada à RecordTV. Assim como
o apresentador e o repórter, o programa acumula diversas denúncias por
violação a direitos. Em 2011, o MPF na Paraíba ajuizou uma ação civil pública
contra a TV Correio e contra o apresentador da época, Samuka Duarte,
pela exibição das cenas do estupro de uma adolescente. O órgão pediu,
inclusive, a cassação da concessão da emissora. No entanto, a juíza do
caso, Cristina Garcez, acatou apenas um dos pedidos do MPF e multou a
emissora em R$ 200 mil.
Nilvan Ferreira e Emerson Machado são apoiadores do ex-presidente
Jair Bolsonaro e respondem a processos por danos morais, difamação, cri-
mes contra a honra, direito de imagem e atentado contra a lei de imprensa.
Nilvan Ferreira também foi denunciado ao Ministério Público do Estado na
Paraíba por receber vantagens políticas, através de sua esposa, Fernanda
Gonçalves Bernardino, acusada de ser funcionária fantasma em pelo menos
quatro prefeituras municipais. Ele foi um dos comunicadores-políticos que
estimularam a tentativa de golpe de Estado, no dia 8 de janeiro de 2023, em
Brasília, quando um grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro
(PL) invadiu a Praça dos Três Poderes e depredou os prédios do Executivo,
do Legislativo e do Judiciário.
O fenômeno dos comunicadores-políticos não é algo novo. Como explica
a professora Janaine Aires, da UFRN, a prática começou em 1982, com
nomes como os de Silvio Santos, apresentador de programas de auditório
de sua própria emissora, o SBT; Carlos Massa, o Ratinho, que hoje é apre-
sentador de programas de rádio e TV e possui sua própria empresa de
comunicação; e Afanázio Jazadji, apresentador de programas policiais em
rádios de São Paulo, eleito seis vezes deputado estadual.
“Esse número se amplia no ano de 2022 muito em virtude do contexto
político em que houve, pelo governo federal, pelos movimentos de extrema
direita, muita organização, partindo desses espaços. Foram esses programas
que receberam entrevistas exclusivas do presidente da República. Foram
esses programas que, de certa forma, capturaram bastante verba pública do
governo federal, e também tiveram uma relação muito forte com as pautas
que foram levantadas em 2018, que fortalecem a criminalização da pobreza,
a pauta do porte de armas, que estão relacionadas à diminuição da maiori-
dade penal, à ampliação das regras do punitivismo, e assim sucessivamente”,
explica Janaine.
Os principais discursos abordados nesses programas são a redução da
maioridade penal, o vigilantismo, o endurecimento das leis como meio de
combate à violência e até a defesa da pena de morte. O fenômeno da vio-
lência é visto de maneira superficial pelos policialescos, sendo oferecidas
soluções instantâneas e simplistas para problemas complexos. Ao assumirem
cargos políticos, esses apresentadores têm a possibilidade de colocar em
prática seus discursos, que podem vir a ser transformados em projetos de lei.
A agência de notícias Andi - Comunicação e Direitos realizou em 2015 um
monitoramento histórico, em que identificou as principais violações dos direi-
tos humanos praticadas na mídia brasileira pelos policialescos. A pesquisa

36
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

foi realizada em parceria com o Intervozes, o MPF e a Artigo 19, e identificou


nove tipos de violações de direitos provocadas por esse tipo de programa:
1) desrespeito à presunção de inocência; 2) incitação ao crime e à violência;
3) incitação à desobediência às leis e às decisões judiciárias; 4) exposição
indevida de pessoas; 5) exposição indevida de famílias; 6) discurso de ódio
e preconceito de raça, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação
sexual ou procedência nacional; 7) identificação de adolescentes em conflito
com a lei; 8) violação do direito ao silêncio; 9) tortura psicológica e tratamento
desumano ou degradante. Também foi identificado que os policialescos
infringiram dispositivos legais brasileiros e a legislação multilateral, como a
Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, a Convenção sobre os
Direitos da Criança e a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Quais as saídas para uma mídia sem violações de direitos?

A advogada Ana Potyara, que integra a ANDI, defende que o Judiciário


compreenda a gravidade das violações e os danos causados à sociedade
pelos policialescos. Em relação aos apresentadores-políticos, ela afirma
que as emissoras precisam ser responsabilizadas, pois são concessões
públicas e devem cumprir o que determina a legislação em relação às TVs
comerciais. “Não é possível que esses programas continuem servindo de
palanque eleitoral. É preciso identificar as violações, os crimes cometidos,
e que tanto as emissoras quanto os apresentadores sejam processados”.
Mesmo com a atuação da sociedade civil e do MPF no combate às viola-
ções aos direitos causadas pelos policialescos, elas continuam acontecendo.
Janaine Aires ressalta que a sociedade e o Estado devem atuar em duas
frentes: “A primeira delas, obviamente, é reivindicar o fortalecimento das
regras que regem a mídia, a comunicação no Brasil, é preciso ter controle
social sobre essa atividade. Essa reivindicação não pode estar apartada de
um processo de conscientização sobre a necessidade, ou sobre a importân-
cia do direito à comunicação. As pessoas precisam entender a importância
da comunicação para a garantia dos demais direitos.”
Para a professora e pesquisadora Ticianne Perdigão, autora da tese Fisca-
lização estatal sobre o conteúdo televisivo: violação de direitos em programas
policiais na televisão, que analisou o policialesco paraibano Correio Verdade,
o Estado brasileiro tem sido ineficiente para fiscalizar esses programas. Ela
acredita que a atualização da legislação que regula os meios de comuni-
cação é apenas um dos caminhos para coibir as violações. “Esta pode ser
galgada através de debates públicos, da mobilização da justiça, através de
ações e dos movimentos sociais. Outra maneira de coibir a transmissão de
violações que tem se demonstrado mais rápida e eficaz é desestabilizar a
forma de financiamento privado provindo dos comerciais e patrocínios”,
avalia.
Com a chegada ao Poder Executivo de um governo progressista, havia
esperança, por parte do movimento pelo direito à comunicação no Brasil,
de que o MiniCom pudesse atuar de maneira mais eficaz em relação aos
programas policialescos, às emissoras e aos apresentadores e repórteres
que violam direitos. Porém, logo após o anúncio do nome que comandaria
a pasta, houve uma frustração. Quem assumiu o cargo foi um político aliado
a velhas oligarquias, pertencente a um partido da direita, o União Brasil, que
conta com radiodifusores em seus quadros. Ticianne acredita que o movi-
mento pelo direito à comunicação deve continuar mobilizando a sociedade
em relação a essa pauta e que o governo federal aceitou a indicação de
Juscelino Filho em prol da governabilidade. “O Ministério das Comunicações
faz parte desse jogo. A política é um ambiente contraditório. A ação política
social é diária e deve responder a essa conjuntura. A mudança de realidade
vai além de nossos desejos”.

37
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

38
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

Desinformação, desertos de notícias e os


impactos na Amazônia
Ausência ou concentração de cobertura jornalística limita o direito à
informação em comunidades das regiões Norte e Nordeste do país

Raquel Baster e Viviane Tavares

Crédito: Thyago Nogueira.

A maior parte das comunidades tradicionais que fazem parte da Reserva


Extrativista de Tapajós – Arapiuns, em Santarém, no Pará, não tem energia
elétrica. Quem dispõe, recorre ao famoso “gatão”, como costumam deno-
minar a tarefa árdua de passar dias na mata para abrir pico para linhão
passar com o fio de energia. Contudo, a comunicação entre os territórios é
feita principalmente por rádios-poste. Elas funcionam a partir de um motor
gerador, que é ligado quando há mutirão para compra de combustível. São
13 mil moradores em 75 comunidades, sendo 26 em aldeias indígenas, que
utilizam desse tipo de mídia para receber e transmitir informações.
A conexão de internet também é precária, e, muitas vezes, os moradores
ficam sem acesso porque a antena de telefonia sofre algum tipo de dano.
Mas, ainda assim, o rádio é fundamental porque “os principais assuntos
tratados são avisos comunitários, vindas e atendimentos do barco-hospi-
tal, os cuidados com o igarapé, com o lixo e a manutenção da unidade de

39
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

conservação”, descreve Henrique Ferreira, indígena Tapajós e morador da


Resex, representante do Coletivo Jovem Tapajônico. A rádio Mosquito, nome
dado ao veículo construído pelos jovens, é um exemplo de resistência aos
desertos de notícia, termo criado a partir do projeto Atlas da Notícia, que tem
como objetivo mapear veículos jornalísticos de cobertura local que trabalhem
com pautas de interesse público.
Quando “municípios não dispõem de veículo ou informação jornalística
são considerados um deserto de notícias”, explica Jéssica Botelho, jornalista
e pesquisadora do Atlas da Notícia na região Norte do Brasil. O censo Atlas
da Notícia é um projeto do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo
(Projor) em parceria com o Volt Data Lab e inspirado no projeto America’s
Growing News Desert, da revista Columbia Journalism Review, que realizou
um levantamento sobre a presença de jornais nos Estados Unidos. A inicia-
tiva brasileira teve sua primeira edição em 2017 e já registrou mais de 13 mil
veículos jornalísticos, dos quais 1.106 estão distribuídos entre os sete esta-
dos da região Norte, que está em primeiro lugar no país quando se trata de
desertos de notícias, com 63,1% do seu território sem cobertura jornalística.
Isso significa que, do total de 450 cidades nortistas, 284 não têm nenhum
veículo local cobrindo pautas e produzindo conteúdo de interesse público.
“Os desertos de notícias são esses lugares em que não há uma cobertura.
Então, as pessoas ficam mais vulneráveis à desinformação que recebem
por grupos de mensageria sobre as questões de sua cidade. O WhatsApp
funciona muito como esse canal de trocas de mensagens, que muitas vezes
não são apuradas e verificadas, quando não há uma produção jornalística
local”, complementa Mariama Correia, jornalista e também pesquisadora do
Atlas da Notícia no Nordeste, atualmente a segunda região brasileira com
maior deserto de notícias, com 62,4% dos municípios sem informação local.
Populações alijadas do exercício do direito à informação não estão restri-
tas somente aos municípios de pequeno porte, como o de Henrique Ferreira
e dos moradores da Resex Tapajós – Arapiuns. “Muitas vezes, os municípios
das regiões metropolitanas são desabastecidos de jornalismo local muito
pela concentração dos veículos nas capitais. Ficando muito dependente
desse olhar, sabendo que esses jornais, sobretudo os impressos que tinham
suas redações nas capitais, vêm perdendo equipes, enxugando seus qua-
dros, fechando sucursais, essa lacuna de cobertura se agravou nos últimos
anos”, reforça Mariama.
Nos estados do Norte e do Nordeste, veículos on-line e rádios são os
que mais contribuem para robustecer a cobertura noticiosa de proximidade
e reduzir desertos de notícias, como mostra, ainda, o último Atlas da Notícia
(2021). “A diminuição se deve principalmente à internet. Veículos nativos
digitais têm mais facilidade de serem criados e com bem menos recursos
e burocracia. A radiodifusão precisaria de uma concessão e infraestrutura”,
compara Jéssica Botelho. Quem também constata essa realidade é Jesse
Barbosa, fundador do Ubíqua, instituto que realiza formação de comuni-
cadores em comunidades vulneráveis no Piauí e integrante da Associação
Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc). “No lugar que tem deserto de
notícias, tem fake news. E aí, encontramos um oásis”, afirma.
Jesse comprovou o fenômeno quando visualizou os dados da pesquisa
Hábitos de uso da comunicação digital e offline, realizada em 2022 com
trabalhadores da Cooperativa dos Produtores Rurais da Chapada Vale do
Rio Itaim – Coovita, que têm em sua maioria o ensino médio incompleto e até
um salário mínimo de renda mensal. Praticamente todos os trabalhadores
acessam a internet via celular (95,7%) e se informam via redes sociais, seja
pelo Facebook (52%) ou por grupos de mensageria, como o WhatsApp (82%).
“Quando começamos nossa trajetória, ainda no início dos anos 2000, tínha-
mos a rádio como principal fonte de informação, depois da televisão, que é

40
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

mais comum nos lares brasileiros. Hoje, essa realidade mudou. As pessoas
têm se informado pelo que chamamos de micromeio, que são os grupos de
WhatsApp, por isso resolvemos atuar nesse lugar”, explica.
Com base nos dados, a Ubíqua criou, então, a plataforma educacional
Nestante, que informa de maneira mais direta aos trabalhadores rurais locais.
“Procuramos ir além de combater o deserto de notícias, porque sabemos
que ele não é deserto de informação. As informações são muitas vezes
de má qualidade e com objetivos escusos. E o deserto das notícias é um
deserto útil à manutenção de poder. É claro que ainda atuamos em formação
de rádio, porque ainda há o deserto digital, mas ainda assim, o que temos
experimentado hoje é que as pessoas querem ter acesso à internet. E pre-
cisamos disputar esse espaço”, avaliou.
Para a pesquisadora Ana Regina Rego, fundadora da Rede Nacional do
Combate à Desinformação (RNCD), o Brasil tem peculiaridades muito com-
plexas, por isso o deserto de notícias possui dois vieses: o deserto de notícias
mais tradicional, com ausência de veículos locais, e aquele provocado pela
falta de credibilidade dos meios de comunicação tradicionais nas redes
digitais. “E é nessa questão de entrar com os aplicativos de mensageria onde
ocorre muita desinformação. A gente percebe que [os veículos tradicionais]
não entram nessas esferas. Primeiro, porque já houve ali um movimento de
desqualificar o papel da imprensa a priori e porque, assim como pesquisas
já mostraram, as pessoas evitam as notícias. Podemos, portanto, ver no
aspecto geográfico, mas também aqueles em que os meios não conseguem
entrar porque outras informações estão tomando aquele espaço com outros
interlocutores”, avalia.

O perigo da verdade única para pautas ambientais

Outra consequência dos desertos de notícias e/ou coberturas concen-


tradas é a falta de acesso a informações diversas e plurais sobre pautas
complexas. Jéssica Botelho, durante pesquisa que realizou em 2022 para o
projeto Mentira tem Preço – monitoramento sobre desinformação socioam-
biental nas plataformas digitais, identificou narrativas enviesadas sobre des-
matamento. “Os veículos aqui em Manaus costumam reproduzir releases da
Agência Amazonas, que acaba por reproduzir os releases sobre a Amazônia
do governo federal. Então, tivemos uma série de informações sobre des-
matamento, sem apresentar dados em cada localidade, sem demonstrar
as consequências e impactos às populações ribeirinhas e tradicionais, sem
mencionar o desequilíbrio ambiental, sem trazer as atividades ilegais que
promovem desmatamento”, analisa.
Numa democracia, o governo não pode ser a única fonte para colaborar
com o debate público sobre a pauta do desmatamento. Além do problema da
negação da existência das mudanças climáticas, há como agravante o uso
da ciência e suas evidências para desinformar tanto formadores de opinião
quanto o público em geral. “Você tem um escopo bem vasto de desinforma-
ção climática que não se prende só em negar a influência humana sobre o
aquecimento global. Tem certa sofisticação que vai além da negação pura
e simples do problema”, afirma Meghie Rodrigues, jornalista e doutoranda
do Programa do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Uni-
versidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A pesquisadora tem se dedicado a estudar o negacionismo científico a
partir dos vídeos do Youtube, a plataforma de vídeo mais assistida no Brasil
de acordo com estudo da Kantar Ibope Media. Segundo Meghie, a desin-
formação climática é exemplificada por várias categorias, desde o discurso
anti-globalista que fala de climatismo (entendido como a apropriação na
lógica negacionista de pautas relativas ao clima) e é usado bastante pela

41
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

extrema-direita e por parte da esquerda, passando por crítica às soluções de


adaptação e mitigação com o pretexto de que ou vão prejudicar a economia
ou simplesmente não vão funcionar, até por um discurso de base religiosa
que afirma: “Deus quis assim”.
E é exatamente nesse volume e audiência das mídias digitais que a desin-
formação sobre as questões climáticas tem encontrado eco e estratégias
com interesses econômicos. “O setor do agronegócio faz uma campanha
onde insere dúvidas sobre se as atividades do setor têm relação direta com
as mudanças climáticas. Dessa forma, você evita discutir a regulação des-
ses setores e passa o máximo de boiada para que as pessoas continuem
lucrando”, destaca Meghie.
Na pesquisa Amazônia Livre de Fake, realizada pelo Intervozes com mais
oito organizações da Amazônia Legal, foram identificadas 18 figuras públicas
de representação política que propagam notícias falsas através de seus
perfis nas plataformas digitais, e com recorrência de violação de direitos.
Alguns deles são parlamentares, inclusive reeleitos nas eleições de 2022, e
outros que tentaram pela primeira vez o pleito, o que acende um alerta para
o período eleitoral municipal em 2024.

Site da pesquisa Amazônia Livre de Fake.

Outro monitoramento que, desde 2016, apresenta relatórios mensais


sobre a infodemia socioambiental é o do laboratório Netlab, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De acordo com os estudos, as principais
narrativas utilizadas por políticos e influenciadores em 2022 endossaram as
teorias negacionistas, exaltaram o agronegócio e defenderam as ações do
ex-governo Bolsonaro em torno das questões ambientais.
Temos, como exemplos, a mobilização do significante “Amazônia” atre-
lado a imaginários patrióticos, como nação e riqueza brasileiras, ou, ainda, a
linguagem de marketing que é utilizada para convocar a ideia de desenvol-
vimento e mercado: “agro é pop”, “agro é tudo”, “a Amazônia é nossa”. Em
2022, canais oficiais do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sua família se
destacaram por disseminar desinformação e pautar esse tipo de discurso
em diversas redes, como Twitter, Facebook e Telegram.
Os relatórios do Netlab apontam caminhos para combater a desinfor-
mação ambiental. Entre as reivindicações do grupo, direcionadas a diferen-
tes agentes públicos e privados, estão: o levantamento e fornecimento de
informações confiáveis à população sobre o extrativismo que acaba com
a floresta Amazônica e com a população indígena, quilombola e ribeirinha;
a ocupação dos desertos de notícias na Amazônia Legal; a mitigação da
desinformação; a disseminação de contranarrativas na mídia comercial; e a

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

amplificação da visibilidade de lideranças e organizações socioambientais


junto à defesa da justiça social.

O jornalismo local como base para a educação midiática

As iniciativas que já realizam o que os relatórios da NetLab recomendam


necessitam de apoio financeiro para manter suas atividades e ampliar o
debate acerca da regulação da radiodifusão e das plataformas digitais. O
Tapajós de Fato é um exemplo disso. Criado em Santarém, no Pará, tem o
intuito de descentralizar a comunicação regional e trazer pautas sobre a
Amazônia para dentro dela. O jornal, em formato de site, tem perfis em redes
sociais e podcast, possui uma equipe de redação formada por extrativistas,
quilombolas, indígenas, pessoas que vivem os impactos e a realidade dire-
tamente de dentro de suas comunidades.
“Resolvemos fundar um veículo que pudesse contar nossas histórias
para conectar o Tapajós ao mundo, mas também conosco mesmo, mas foi
na pandemia que passamos a pautar a falta de medicamentos, depois dos
projetos de mineração que não cessavam, além de outros projetos como a
São Luiz do Tapajós, que é uma hidrelétrica. Assim, nós reafirmamos e enten-
demos que esse era nosso lugar de atuação como veículo de enfrentamento
de grandes corporações exploradoras de nossos territórios e recursos”,
explica o comunicador popular Marcos Wesley Pedroso, um dos fundadores
da iniciativa.
Em janeiro de 2021, a equipe do jornal realizou a primeira grande série de
reportagens que denunciava o rompimento da barragem de uma mineradora
na cidade de Juruti, onde os moradores tiveram suas roças soterradas, iga-
rapés assoreados, e foi “a partir daí que gente começou a se entender de
falar sobre o contexto ambiental também”, avalia Wesley. O fundador acre-
dita que é importante manter a pluralidade de vozes, mas que é necessário
apoio para isso. “Muitas das vezes gravamos um programa em pen-drive,
enviamos a uma comunidade por barco, eles recebem na comunidade e de
lá é disparado ou o inverso. Mas é importante garantir essa comunicação
com os territórios, entendendo as limitações, entendendo a ausência da
democracia na Amazônia e contar para outros lugares que não têm essa
visão daqui”, explica.
A educação midiática é outro jeito encontrado por jovens jornalistas de
Manaus para combater a desinformação e os desertos de notícias. Dife-
rentemente dos checadores ou investigadores, a Abaré Escola de Jorna-
lismo, criada em 2020, realiza formações junto a diversos públicos, mas,
principalmente, comunidades escolares. “Apesar de a Educação Midiática
já estar incluída na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não é sempre
que ela é tratada nas salas de aula. Recentemente, promovemos na Escola
Petrônio Portela uma oficina com professores, e eles multiplicaram os con-
teúdos para outros educadores e alunos”, informa Julie Pereira, jornalista e
cofundadora da Abaré.
A educação midiática vai ser incorporada pelas escolas brasileiras em
articulação com a sociedade civil, segundo Victor Pimenta, diretor do depar-
tamento de Direitos na Rede e Educação Midiática, criado na gestão Lula.
A pasta integra a Secretaria de Políticas Digitais, que, por sua vez, compõe
a Secretaria de Comunicação da Presidência. “Como forma de articulação
nessa implementação como ‘vacina’ para a desinformação e discurso de
ódio, estamos em parceria com o Ministério da Educação e da Saúde para
pensar formas de como inseri-la nas políticas públicas de ambos os setores”,
afirma Pimenta.
Outro beneficiário da medida será o público idoso. De acordo com uma
pesquisa realizada em 2021 pela Confederação Nacional de Dirigentes

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em par-


ceria com a Offerwise Pesquisas, o percentual de pessoas com mais de 60
anos no Brasil usando a internet é de 97%, o que exige, de fato, um trabalho
de educação midiática com esse segmento.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Futebol, direito de transmissão e


diversidade: da TV ao streaming, do
acesso à acessibilidade

Relação entre grupos de mídia, plataformas digitais e instituições do


futebol é caracterizada pela concentração de lado a lado

Iago Vernek Fernandes

Crédito: Thyago Nogueira.

“Eu costumo acompanhar os jogos do Palmeiras com o meu pai, pelo


rádio ou pela TV. Em jogos decisivos, eu ligo a TV e a cada lance é uma
emoção diferente. Minha experiência no estádio é muito recente. Dia 4 de
fevereiro deste ano, no Morumbi. No terminal João Dias, peguei o 5119 [uma
das linhas de ônibus que circulam na capital paulista] com um tantão de pal-
meirense até uma altura da [avenida] Giovanni Gronchi e desci o resto a pé
até o portão 5B. Entrei no estádio no mesmo instante em que os jogadores
estavam entrando no campo. A Mancha [uma das torcidas organizadas do
Palmeiras] fazia a festa. O estádio inteiro cantava. Era nítido que todos os
extratos sociais estavam representados ali, muito pelos ingressos a preços
populares. Ganhamos de 3 a 1. A volta foi algazarra, os torcedores cantando
no ônibus até o terminal”.
O relato acima foi escrito por André Alcântara, em entrevista concedida

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

a para esta reportagem. Publicitário e palmeirense, André é uma pessoa


com deficiência (PcD). A sua emoção de comparecer ao estádio em uma
partida do seu time do coração nos motiva a escrever sobre o futebol, nos
múltiplos aspectos que envolvem esse esporte, sobretudo em sua relação
com a mídia.
Diante dos dilemas relacionados à democratização das comunicações,
reivindicação que está na origem do Intervozes, buscamos ampliar os deba-
tes sobre os direitos de transmissão do futebol no Brasil. Em 2017, abordamos
os escândalos de propina na FIFA (caso conhecido como “Fifagate”) e o
monopólio da Globo. No ano seguinte, tratamos dos grupos de comunica-
ção internacionais que avançavam sobre o território nacional. Em 2020, a
comunicação pública e os negócios da mídia na radiodifusão, bem como as
disputas políticas envolvendo cartolas, governo e meios de comunicação,
foram objetos de nossas inquietações. Por fim, em 2021, trouxemos um
panorama sobre os monopólios digitais e os conglomerados de mídia no
futebol.
Nesse percurso de análises e escritas, percebemos uma série de per-
calços que se desdobram em questões estruturais da sociedade brasileira.
Nosso desafio neste texto será, para além dos direitos de imagem, enun-
ciar problemáticas igualmente relevantes, como o sexismo, o machismo e
os desafios das mulheres atletas de futebol, o racismo, o capacitismo e a
acessibilidade nos jogos e a desigualdade socioeconômica e regional nos
campeonatos.

Campeonatos regionais, nacionais e internacionais: dos conglo-


merados de mídia aos monopólios digitais

Há muitos anos, conglomerados nacionais e internacionais de mídia


alternam forças na transmissão do futebol no Brasil. A fim de entender essa
situação, considerando o período entre 2012 e 2022, fizemos um levanta-
mento sobre a exibição dos principais torneios europeus (Champions League
e Europa League), sul-americanos (Copa Libertadores da América e Copa
Sul-Americana), nacionais (Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil), regio-
nais (Copa do Nordeste e Copa Verde), estaduais e de seleções (Copa do
Mundo, Copa América e Eurocopa), exibidos em território nacional, via TV
aberta, fechada e streaming.
Em geral, é possível perceber que alguns agentes globais vêm aumen-
tando sua atuação no mercado interno, o qual parece se diversificar, impul-
sionado pelo avanço das plataformas digitais. Em contrapartida, destaca-
-se a relevância do grupo Globo, que mantém há décadas o monopólio da
transmissão do futebol nacional. A empresa, que costuma ter seus interesses
comerciais favorecidos pelas instituições reguladoras do esporte, chegou a
controlar quase metade das exibições entre 2016 e 2017. Apesar de romper
alguns contratos recentes, a Globo assegurou, com exclusividade, o tele-
visionamento da Copa do Mundo de 2022, além de voltar a exibir a Copa
Libertadores em 2023.
Entre estratégias de cooperação e competição, a Globo se mantém acima
de seus concorrentes nacionais. O modelo oferecido pela emissora à Rede
Bandeirantes até 2015, ao repassar a licença de transmissão de alguns cam-
peonatos nacionais e sul-americanos visando diluir custos de produção, é
reformulado neste momento de avanço dos grupos estrangeiros. Por outro
lado, em 2018, após um recuo da Band, o SBT retornou aos gramados para
transmitir a Copa do Nordeste, acirrando a disputa nos anos seguintes pela
exibição dos principais campeonatos.
Se os grupos nacionais dominam a audiência em TV aberta, na rede por
assinatura alguns conglomerados globais marcaram presença constante. No

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ano de 2012, o Esporte Interativo (EI), canal brasileiro que surgiu em 2004,
passou ao controle da Turner, empresa estadunidense dona dos canais TNT
e Space. Após transações polêmicas, o grupo foi vendido para a gigante
americana AT&T, detentora da Sky, Time Warner e Discovery. Devido a
questões comerciais, o EI Plus, plataforma de streaming pioneira no Brasil,
foi substituído pelo Estádio TNT Sports e pela HBO Max. Para completar a
história, no ano de 2019, a Disney, detentora dos canais ESPN, concluiu a
compra da 21st Century Fox, adquirindo todo o conteúdo de esporte do
grupo, reunido na plataforma Star+.

Tabela 1: Emissoras e direitos de transmissão.

Emissoras com direitos de transmissão de campeonatos nacionais e internacionais. Crédito: Iago Vernek
Fernandes.

Em um contexto de convergência e hibridização entre diferentes plata-


formas, o Facebook anunciou, na primeira metade de 2018, os direitos de
transmissão da Copa Libertadores da América, UEFA Champions League e
World Surf League. No mesmo período, a Amazon anunciou a exibição dos
jogos da Premier League, a liga inglesa de futebol, e, em 2022, da Copa do
Brasil. No mesmo ano, o TikTok passou a transmitir a Copa do Nordeste.
Na Copa do Mundo do Catar, o Youtube, em parceria com a produtora Live
Mode, fechou o primeiro contrato de transmissão de um mundial de sele-
ções na internet. Atraindo diversas marcas patrocinadoras, o influenciador
Casimiro Miguel atingiu a marca de 5,5 milhões de espectadores conectados
durante a partida entre Brasil e Croácia, derradeira para a seleção canarinha,
que viria a ser desclassificada nos pênaltis.
Como alternativa aos monopólios digitais, em 2019, chegou ao Brasil a
DAZN, adquirindo os direitos de exibição da Copa Sul-Americana, Série A
(campeonato italiano) e Ligue 1 (campeonato francês). Por causa dos pre-
juízos financeiros relacionados à pandemia, a empresa inglesa renunciou,
no ano seguinte, a boa parte do seu catálogo. Por fim, outro movimento
interessante nesse setor tem sido a transmissão das próprias confederações,
a exemplo da Conmebol TV, que vem exibindo os jogos da Copa Sul-Ame-
ricana e da Libertadores da América desde 2019 e 2020, respectivamente.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

Campeonatos estaduais: da concentração da mídia aos desertos


de notícias

Em meio às infindáveis discussões a respeito dos campeonatos esta-


duais, o monopólio da mídia segue ditando as regras do jogo. Isso quando
há retorno financeiro e viabilidade política para a exibição dos jogos. Caso
contrário, os torneios são esquecidos pela mídia comercial e relegados aos
esforços de governos locais. De acordo com Anderson Santos, professor da
Universidade Federal de Alagoas, “a concentração dos meios de comunica-
ção, especialmente no formato de rede de afiliadas, é uma marca importante
para que os campeonatos do Norte e Nordeste demorem até três décadas
para começar a ter jogos transmitidos em audiovisual quando comparados
a Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente. Além disso, há o formato da
programação, que limita a possibilidade de horários para transmissão de
jogos, dada a prioridade de audiência a partir da cabeça de rede”.
Autor do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de
Futebol”, publicado em 2019 pela Editora Appris, Anderson relembra alguns
casos que exemplificam essa desigualdade regional nas transmissões.
Enquanto, sozinha, a Globo domina a exibição em sete estados, Record (3),
Band (2) e SBT (2) controlam, juntas, a transmissão de outros sete torneios
locais. Nos estados onde há pouca concorrência, “a mídia público-estatal
se destaca como pioneira – TVE na Bahia e TV Cultura no Pará; em Per-
nambuco, a TV Universitária transmite algumas partidas, algo semelhante
ao Campeonato Sergipano com a TV Aperipê”, conta o pesquisador. Em
Roraima, Tocantins e Paraná, as partidas são exibidas pela TV Assembleia;
já no Mato Grosso do Sul e Espírito Santo, a transmissão é da TV Educativa,
afiliada à TV Cultura.

Mapa 1 - Emissoras e direitos de transmissão regionais.

Mapa das transmissões de torneios locais. Crédito: Iago Vernek Fernandes.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Abocanhados pelos meios de comunicação privados ou relegados à


comunicação público-estatal, que é pouco valorizada por diferentes gover-
nos, os territórios da mídia no Brasil estão associados à formação de cen-
tralidades econômicas e demográficas, que se dispõem como nós da rede
de produção e circulação de notícias. Se, por um lado, a FIFA, a nível global,
arbitra e conduz os rumos do esporte, há uma dependência dos pequenos
e médios veículos de comunicação em relação aos grandes conglomerados
midiáticos. Nesse sentido, a diversidade cultural que fundamenta a capila-
rização do futebol, quando transformada em mercadoria pela mídia, acaba
por enterrar o potencial esportivo dos lugares.
Ampliando o escopo da análise, Mariane Pisani, professora doutora na
Universidade Federal do Piauí, diz que “para além da mídia e dos problemas
da televisão e rádio, a gente tem um investimento ainda muito precário no
futebol de mulheres nas regiões Norte e Nordeste. O que não é visto, não
é lembrado. O que não é transmitido, não pode ser consumido. Então, pre-
cisamos de políticas públicas para transmissão dessa modalidade de uma
forma mais espraiada”.
No início de 2023, o Atlhético deu um bom exemplo no sentido de valori-
zar a cultura do futebol. Após punições relacionadas a conflitos entre torce-
dores, o clube do Paraná reverteu uma decisão judicial de jogar com portões
fechados e colocou cerca de 32 mil mulheres e crianças nas arquibancadas
da Arena da Baixada, em partida contra o Foz do Iguaçu.
Na Argentina, a Ley de Medios, legislação nacional para o setor das comu-
nicações, promulgada no governo Kirchner, no âmbito do programa Fútbol
para Todos, estatizou as transmissões do futebol, reconhecendo-o como
patrimônio cultural e ampliando a exibição das partidas na TV, no rádio e
na internet. Como detalha Eduardo Covalesky Dias, doutor em Ciências da
Comunicação, a medida “fortaleceu os meios públicos de comunicação da
Argentina, além de ter encontrado grande popularidade entre os torcedores.
A agenda de jogos da Primera Nacional, a “Série A” argentina, foi remanejada,
e todos os jogos eram transmitidos em horários alternados em TV aberta,
uma revolução para aquele momento, já que a TV fechada controlava os
jogos transmitidos”. Apesar de revogada no governo Macri, justamente por
afrontar os interesses comerciais do principal grupo de comunicação do
país, os argentinos demonstraram que é possível enfrentar esse debate.

Por uma outra comunicação no futebol: acesso, acessibilidade e


mídia alternativa

Longe de alterar por completo a estrutura desigual que caracteriza o


futebol e a comunicação no Brasil, a mídia alternativa tem realizado um tra-
balho de resistência. É o caso do Observatório da Discriminação Racial no
Futebol, criado com o intuito de discutir o racismo no esporte. De acordo
com Marcelo Carvalho, diretor e cofundador do projeto, “não se trata da
possibilidade de acabar com o racismo no futebol, mas sim utilizar essa
plataforma de grande alcance para falar sobre racismo com a sociedade”.
Anualmente, o Observatório publica relatórios com os casos de racismo e
seus desdobramentos. “Esse documento hoje é a principal referência sobre
racismo no futebol brasileiro para clubes, CBF e jornalistas”, conta.
Ainda sobre o papel da mídia alternativa, Anderson Santos destaca a
importância dos canais Ludopédio e Trivela. O primeiro, diz ele, “é o principal
portal sobre pesquisa em futebol da América Latina, coadunando diversas
ciências, fotografias, crônicas e ensaios, uma boa fonte de investigação de
artigos científicos, monografias, dissertações e teses”. Já o segundo, con-
forme o pesquisador, “trata-se de um jornalismo esportivo de qualidade e
com um fôlego impressionante, produção de podcasts/videocasts e espaço

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

para diferentes pautas e colaborações a partir de determinadas colunas”.


Ressaltando o futebol praticado por mulheres, Mariane Pisani, em entre-
vista concedida ao podcast O jogo é hoje, diz que o “trabalho dessa mídia
não hegemônica é importante para sustentar e bancar que esse esporte
continue na visibilidade”. A professora lembra, também, o preconceito e
o estigma que as mulheres futebolistas sofreram e ainda sofrem na mídia
comercial, como ilustra uma matéria de teor racista publicada em 1983 pela
antiga Revista Placar e resgatada pelo canal Dibradoras: a jogadora branca
chamada de “A Bela” e as negras representadas como “feras”. No texto, há
referências a atletas “selvagens”, “perigosas”, que têm que “voltar para a
jaula” (sic).
Para além do racismo e do machismo no futebol, há problemas relacio-
nados ao capacitismo e à acessibilidade, tanto na transmissão das partidas
quanto nos estádios. Como resume André Alcântara, com quem iniciamos
esta reportagem, “a sociedade de uma maneira geral negligencia muito
esse aspecto. O futebol, por estar inserido nesse contexto, reflete o mesmo
cenário. As novas arenas são bastante acessíveis, foram construídas com
esse intuito. Mas o caminho até os estádios não apresenta a mesma acessi-
bilidade, muito pela omissão do poder público. São calçadas esburacadas,
desniveladas, sem caminho tátil para cegos”.
André enfatiza, ainda, que “outra questão da acessibilidade é o valor
do ingresso, que faz com que o futebol seja inviável para as camadas mais
pobres da população. Isso afasta ainda mais as pessoas com deficiência dos
estádios, que, mesmo com o benefício da meia-entrada, não conseguem
pagar, visto que o mercado de trabalho reserva cargos mais operacionais e
com salários menores. Por ora, os espaços não são para todos, é um privi-
légio o que é direito, garantido pela Constituição”.
Na mesma linha, “mas do outro lado do campo”, Mariana Lima, corintiana
e mãe de um garoto com paralisia cerebral, comenta a experiência do filho:
“diante da deficiência do Pedro, ele tem baixa visão. Geralmente durante os
jogos na televisão, ele acaba sendo mais ouvinte. Ele ouve a narração do
jogo, a torcida e o pai torcendo. Na hora do gol, ele fica feliz e empolgado”.
Mariana lembra, também, a emoção da família ao comparecer à Neo Quí-
mica Arena (estádio de propriedade do Sport Club Corinthians Paulista) com
Pedrinho e outras crianças com deficiência. Além de incentivar a presença
de pessoas com deficiência no estádio, o Corinthians ostenta a primeira
torcida formada por pessoas com autismo no Brasil, os Autistas Alvinegros.
Segundo Cristiana Mello Cerchiari, pesquisadora sobre formação de pro-
fessores para alunos com deficiência visual, “o futebol mundial está dando
passos importantes rumo ao acesso a conteúdos com acessibilidade. Prova
disso é a transmissão dos jogos da Copa do Catar e do Campeonato Paulista
(2023) pelo Youtube com audiodescrição”.
Entretanto, apesar da intenção de ampliar a acessibilidade no mundial
de seleções, a FIFA ofereceu uma “inclusão maquiada”. É o que conclui
Iraildon Mota, fundador da Comradio, escola de comunicação que abriga o
projeto Mulheres de Visão, o qual, desde 2019, tem o objetivo de empode-
rar e ampliar a renda de mulheres cegas e com baixa visão. “Imagina uma
pessoa com deficiência visual que assiste à abertura da Copa com alguns
elementos de audiodescrição, mas sem o contexto sobre o país onde a
Copa foi realizada. Ou seja, é como passar tinta d’água na parede cheia de
fissuras profundas”.
De acordo com Iraildon, que também é membro do Conselho Diretor do
Intervozes, “do ponto de vista da acessibilidade, foi relatado [por pessoas
com deficiência que compõem o projeto Mulheres de Visão] que diversas
imagens importantes deveriam ser audiodescritas e não foram. Isso prejudica
o entendimento completo do conteúdo”. Conforme adverte Cristiana, para

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

além das ferramentas de acessibilidade, “precisamos garantir que essas


iniciativas sejam rotineiras e se realizem em todos os jogos e programas
esportivos, não só de futebol, mas também de esportes olímpicos e para-
límpicos. É um trabalho gigantesco, mas há muitos profissionais – com e
sem deficiência – capacitados para isso”.
A fim de alcançar a democratização do futebol e da mídia, seria impor-
tante efetivarmos mecanismos que estimulem a diversidade e a pluralidade.
E isso não ocorre sem a redução do poder da FIFA e demais confederações,
bem como dos conglomerados de mídia e das plataformas digitais. Nesse
sentido, a ampliação do acesso às tecnologias da informação e a multipli-
cação de veículos de comunicação, com posições políticas diversificadas e
representatividade social (de classe, gênero, raça, sexualidade, pessoas com
deficiência etc.), fortaleceria a democracia e a cidadania. A sua ausência,
no entanto, tende a rebaixá-las.

52
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Plataformização do acesso às políticas


públicas aprofundou desigualdades
históricas

Na área das políticas sociais, dos serviços de saúde e até mesmo


na identificação civil, priorização do digital impactou com mais
gravidade segmentos já vulnerabilizados

Paulo Victor Melo

Crédito: Thyago Nogueira.

Entre as parcelas mais empobrecidas da população brasileira – aquelas


que estão nas chamadas classes D/E – quase 40% não têm conexão regular
à internet e apenas 10% dispõem de computador nos locais em que vivem,
conforme revelado na mais recente edição da TIC Domicílios, pesquisa que
mapeia o acesso às tecnologias digitais de informação e comunicação nos
domicílios urbanos e rurais do país e as suas formas de uso por indivíduos
a partir dos 10 anos de idade.
Pouco mais de três anos após o início de uma pandemia que teve a
transferência do acesso a diversas políticas públicas para o ambiente digital
dentre as suas principais consequências, quais as implicações na obtenção
de direitos, e no exercício da cidadania, por esses grupos? Ao final de um

54
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

ciclo de governo – e início de outra gestão, que constantemente se afirma


preocupada com a redução das desigualdades – esse é um questionamento
que deve ser feito.
Um anúncio oficial, em 13 de maio de 2021, segundo ano de pandemia de
Covid-19, foi revelador de uma lógica que estruturou algumas das ações da
última gestão presidencial. Naquele dia, em discurso no estado de Alagoas,
Jair Bolsonaro publicizou a pretensão de determinar a inclusão das famílias
candidatas ao recebimento do Bolsa Família exclusivamente por meio de um
aplicativo digital. Se a mudança não foi concretizada, a emenda foi pior que o
soneto: além de acabar com um dos maiores programas de transferência de
renda do mundo (recriado pela gestão atual), a gestão Bolsonaro conseguiu
concretizar essa prática em outras áreas.
Dois exemplos nessa direção foram a criação do aplicativo Meu INSS
e a Lei 14.176/2021, que, dentre outras mudanças, estabeleceu novos cri-
térios para acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). “Desde a
implantação do aplicativo Meu INSS, por meio do qual é feito o agendamento
e atendimento digital na instituição, o acesso ao BPC tem se tornado cada
vez mais difícil, em razão da desigualdade e do precário acesso à internet
pela população”, foi o alerta feito pelo Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS), em nota pública divulgada em julho de 2021.
Uma das alterações da nova lei do BPC foi a autorização, em caráter
excepcional, da teleavaliação como forma de atendimento para fins de ava-
liação psicossocial. Se na aparência a medida foi apresentada como solução
para agilizar a longa fila de solicitações de benefício que aguardam decisão
do INSS, na essência, para o Conselho, há uma série de problemas, desde
a eficácia em relação ao problema das filas até a questão da proteção dos
dados dos usuários.
Também em nota pública, o CFESS enfatizou que “a teleavaliação não vai
diminuir a fila de solicitações represadas, não garante o sigilo e a privacidade
no atendimento, compromete a qualidade da avaliação social, podendo
resultar na negação de um direito, e sem contar que enfraquece o serviço
social do INSS”.
A assistente social Emilly Marques, primeira-secretária do CFESS, chama
a atenção para um duplo obstáculo na relação entre públicos potencialmente
beneficiários do Benefício de Prestação Continuada e o digital: ausência de
conectividade e dificuldades de uso. “Pessoas requerentes do BPC, cuja
renda per capita é inferior a um quarto do salário mínimo e em situação de
extrema pobreza, podem não ter recursos para possuir um celular ou com-
putador com internet. Muitas utilizam somente algumas redes sociais ou
aplicativos de mensagens. Ademais, tem a barreira da informação, as pró-
prias habilidades para mexer nessas plataformas, e até mesmo um reforço de
barreiras geracionais, considerando que pessoas mais idosas podem não ter
facilidade com essas tecnologias e por vezes dependem do apoio de alguém
para garantir esse acesso. Nem todos contam com esse ‘alguém’”, lembra.
A preocupação expressa por Emilly tem, inclusive, um exemplo bastante
recente na história brasileira, considerando que, de acordo com um levan-
tamento realizado pela Universidade de São Paulo, mais de sete milhões de
pessoas elegíveis para receber o auxílio emergencial, no início da pandemia
de Covid-19, não tinham como acessar o aplicativo da Caixa Econômica
Federal por viverem em domicílios sem conectividade digital.
Se, à época do auxílio emergencial, o resultado foi inúmeras filas nas
portas de agências bancárias da Caixa de pessoas em busca de informações
sobre como utilizar o aplicativo, no caso das mudanças no BPC, segundo
Emilly, “as dificuldades de acesso podem sobrecarregar outros serviços
presenciais, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS),
ou ainda empurrar para contratação de intermediários para ter orientações.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Com isso, o INSS deixa de fazer sua função de orientar sobre os direitos
previdenciários e benefícios que operacionaliza e a população fica à mercê
de estratégias individualizadas para alcançar o que seria direito garantido”.

Filas nas agências da Caixa Econômica Federal durante a pandemia. Crédito: Sindicato dos Bancários de
Conquista e Região.

Identificação Civil Nacional: entre a visibilidade e a exclusão

Outra iniciativa relativa à plataformização, inaugurada ainda no período


Michel Temer e aprofundada na gestão Bolsonaro, foi a Identificação Civil
Nacional, estabelecida pela Lei nº 13.444/2017, que tem a sua base de dados
como principal fonte para autenticação de usuários na plataforma gov.br,
portal do Governo Federal, no acesso a serviços públicos.
Sem desconsiderar a importância de universalização do registro de iden-
tificação civil, enquanto mecanismo de afirmação da cidadania, organizações
da sociedade civil atentam para os riscos à privacidade e à exacerbação de
desigualdades históricas. Em relatório divulgado no ano passado, a Asso-
ciação Data Privacy Brasil de Pesquisa concluiu que “diante de um contexto
brasileiro marcado por profundas desigualdades socioeconômicas e regio-
nais, a formulação de políticas públicas que tenham por objetivo a univer-
salização do registro civil e a ampliação do acesso a serviços públicos – ou,
em outras palavras, que tornem todos os cidadãos visíveis ao Estado –, é
essencial. Ao mesmo tempo, se exacerbada, tal visibilidade pode recair em
práticas vigilantistas e potencialmente discriminatórias. E não apenas: expe-
riências internacionais mostram que iniciativas de centralização de sistemas
de identificação civil, atreladas à plataformização de serviços públicos, ao
contrário do que se propõem, podem aprofundar a exclusão de pessoas e
grupos já vulnerabilizados”.
No que diz respeito a abusos na utilização dos dados pessoais, a Data
Privacy identifica como possíveis riscos, dentre outros: usos secundários
e compartilhamentos das informações constantes na base de dados da
Identificação Civil Nacional com órgãos que possuem finalidades distintas;
incidentes de segurança, visto que há, atualmente, dados biométricos (sen-
síveis), de mais de 110 milhões de brasileiros e brasileiras; e inviabilização do
exercício dos direitos dos titulares, considerando não haver um canal direto

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

e adequado em que os cidadãos possam solicitar o acesso aos seus dados


tratados e a retificação de dados incorretos ou desatualizados.
Já a exclusão de cidadãos e cidadãs do acesso a políticas e serviços
públicos pode ocorrer, de acordo com a Data Privacy, nas seguintes situa-
ções: pessoas que não possuem qualquer documento de identidade; pes-
soas que possuam algum tipo de inadequação em seus documentos de
identidade; públicos de sujeitos hipervulneráveis, como crianças, adoles-
centes, idosos e pessoas com deficiência; e pessoas sem acesso à internet.

Saúde como área prioritária da digitalização

Um setor que, inegavelmente, mais tem sido transformado pela digitaliza-


ção dos serviços é a saúde. Atendimentos médicos, consultas psicológicas e
prescrição de receitas mediadas por tecnologias digitais são procedimentos
cada vez mais comuns, além da existência de uma profusão de aplicativos
para controle e monitoramento de glicemia, ciclos menstruais e até qualidade
do sono. Essas e outras mudanças, que seguem uma tendência global, exi-
gem uma série de cuidados com a privacidade, tanto dos usuários quanto
dos profissionais envolvidos na prestação dos serviços.
Ao entrevistar gestores públicos, trabalhadores(as) da saúde e usuários, a
pesquisa Proteção de Dados em Serviços de Saúde Digital, coordenada pela
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Intervozes - Coletivo Brasil de Comunica-
ção Social e Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) forneceu importantes
apontamentos sobre esse cenário.
“Muitos serviços de saúde digital acabam sendo oferecidos através de
plataformas já utilizadas pelas pessoas, como Zoom e WhatsApp, de maneira
informal. Inclusive para os mais velhos, o uso das ligações de WhatsApp
parecia ser uma opção mais viável. Isso está mais presente no serviço pri-
vado. Os aplicativos de celular são outras ferramentas muito utilizadas”, relata
Mariana Martins, coordenadora-geral da pesquisa.
Ainda que esse não tenha sido o foco do estudo, Mariana frisa que não
foram negligenciadas as assimetrias de conectividade digital, já que, no
entendimento dela, “as desigualdades de acesso à internet de qualidade
ainda são muito grandes, tanto entre as áreas urbanas e as áreas rurais
quanto entre as diferentes classes sociais. E isso não pode ser ignorado
quando falamos de acesso aos serviços digitais de uma forma geral”.
Nas entrevistas do projeto, muitos dos usuários expressaram uma preo-
cupação com a proteção dos seus dados, mas, ao mesmo tempo, manifes-
taram um sentimento de impotência frente a uma espécie de naturalização
do uso indevido dos dados, que vai desde a pergunta “CPF na nota?”, feita
em caixas de farmácias, até o compartilhamento com grandes plataformas
digitais, operadoras de planos de saúde e redes de farmácias.

Geografias (e outras dimensões) da desigualdade

Uma questão presente nas mudanças em políticas sociais, na Identifica-


ção Civil Nacional e na Saúde Digital, é que a plataformização das políticas
públicas não afeta de modo igual todas as brasileiras e brasileiros. Ao con-
trário, os locais de moradia, o gênero, a raça e a condição de deficiência
– além da classe socioeconômica, como já apontado no início do texto –
incidem diretamente sobre o grau de dificuldades na conexão à internet e,
por conseguinte, na garantia de direitos que têm o acesso assentado em
aplicativos. Números da TIC Domicílios confirmam isso: considerando a
população usuária de internet que vive em áreas rurais, apenas 57% utili-
zaram o chamado “governo eletrônico” e somente 27% compraram produ-
tos e serviços pela internet, nos 12 meses anteriores à pesquisa. Dentre as

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

pessoas que vivem nas zonas urbanas e têm internet, os índices foram de
72% e 49%, respectivamente.
Uma pesquisa realizada por três organizações da sociedade civil – Inter-
vozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e Movi-
mento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR/NE) – apresenta
resultados também relevantes para a observação do cruzamento entre
desigualdades e internet: 41,24% das famílias quilombolas e rurais que têm
acesso à internet gastam entre R$ 51 e R$ 200 por mês com o serviço, sendo
que 56,2% possuem renda mensal inferior a um salário mínimo e outras 16%
não têm qualquer remuneração fixa.
A professora Ivonete Lopes, do Departamento de Economia Rural da
Universidade Federal de Viçosa (UFV), que desenvolve trabalhos de pes-
quisa e extensão junto a comunidades rurais e quilombolas, traduz algumas
dessas problemáticas: “nos territórios rurais a internet chega com preço
mais elevado e com qualidade inferior ao serviço prestado na área urbana.
Isso foi verificado sobretudo na comunidade quilombola [participante de um
dos projetos coordenados por ela], que fica a menos de 15 km do centro da
cidade. As moradoras têm renda que as colocam em situação de pobreza e
ainda assim precisam pagar mais caro para ter internet em casa”, diz.
Confirmando a relação direta entre raça, gênero e outras categorias
sociais com as desigualdades de conectividade digital, Ivonete narra que
“entre as assentadas e as agricultoras de Viçosa, as mulheres negras (pretas
e pardas) eram as que tinham acesso mais precarizado às TICs. Isso mostra
a relevância de pesquisas com abordagem interseccional para captar as
diferenças que podem existir dentro do mesmo grupo social. Raça e faixa
etária são duas variáveis que se destacam e sobrepõem para aumentar a
desigualdade digital”.
Ao mencionar um outro projeto, intitulado “Dos quilombos às favelas:
mulheres negras, interseccionalidade e acesso às TICs”, com financiamento
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
Ivonete qualifica como “geografia da desigualdade” a existência de dispa-
ridades na conexão à internet mesmo dentro de uma única cidade. “Temos
como hipótese que embora essas mulheres estejam inseridas em diferentes
territórios rurais (quilombolas) e urbanos (mulheres de favela), há uma rela-
ção entre território, renda, classe, raça e exclusão digital que as colocam
em situação de similaridade em relação à desigualdade de acesso e apro-
priação das TIC. Essa hipótese é baseada em pesquisas, como as do CGI
[Comitê Gestor da Internet no Brasil], que apontam haver uma geografia da
desigualdade em relação ao acesso às tecnologias. Mesmo morando na
mesma metrópole, a exemplo de São Paulo, há significativa desigualdade
de acesso entre o centro e as áreas periféricas”, ressalta.

Da potência e do limite do “se virar” às necessárias políticas


públicas

Todo esse contexto de dificuldades no acesso à internet e às tecnologias


digitais de informação e comunicação tem, de imediato, uma resposta rápida:
a auto-organização das comunidades, sobretudo as mais vulnerabilizadas,
na busca por alternativas. A professora Ivonete Lopes conta que, no caso do
auxílio emergencial, por exemplo, a população precisou “achar o seu jeito”
para obter o benefício e garantir a sobrevivência na pandemia.
“Quando eu falo eu dar o ‘seu jeito’, isso mostra como as lideranças femi-
ninas quilombolas, por exemplo, se organizaram e negociaram uma internet
mais barata para a comunidade, adotaram estratégias de compartilhamento
da rede Wi-Fi e dos dispositivos”, diz. Porém, a própria Ivonete adverte que

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

“não podemos ‘romantizar’ a resiliência sem problematizar a ausência de


políticas públicas para universalização da internet”.
Nesse sentido, a professora acredita que “precisamos de políticas públi-
cas que universalizem o acesso à internet e que sejam capazes de contem-
plar as especificidades do território brasileiro. O primeiro passo é facilitar a
entrada no mundo digital com dispositivos (celular, tablet e/ou computador)
e internet. Entretanto, uma política que possa facilitar de fato o acesso aos
direitos tem o desafio de proporcionar maior letramento digital, sobretudo
às mulheres”.
Em perspectiva semelhante, Emilly Marques, do CFESS, acentua que
“promover mais portas de entrada para acessos a direitos e benefícios pode
auxiliar, mas não adianta a criação de ‘mais portas’ que resultam somente em
filas virtuais, mais seletivas e focalizadas e que nos retiram a possibilidade
de articulação coletiva”. Por isso, nas palavras dela, “o Serviço Social se
coloca na defesa de uma sociedade livre e radicalmente democrática e na
luta pela comunicação como um bem público e, justamente por isso, deve
estar a serviço da sociedade, não das classes dominantes, que tão somente
visam ao lucro e à reprodução dos seus interesses”.
Mariana Martins, da pesquisa Proteção de Dados Pessoais em Serviços
de Saúde Digital, corrobora com esse pensamento, ao dizer que “a internet
precisa ser tratada como um bem público, que deve estar acessível a todos,
sem que dependam de planos específicos e da prática de zero rating, que na
verdade mais exclui e limita o acesso e ainda causa uma falsa ideia de inclu-
são. O acesso deve ser uma prioridade, seguido de políticas de diversificação
de canais de atendimento que possam também considerar as dificuldades
geracionais e as desigualdades sociais de um país como o Brasil”.
As reflexões dessas três especialistas são trilhas possíveis para uma
nova relação entre políticas de internet, tecnologias digitais e cidadania no
Brasil. Ao governo que se iniciou em 1º de janeiro de 2023, está lançado
o desafio de, enquanto exigência democrática, promover o acesso digital
como um direito humano e, ao mesmo tempo, como facilitador do acesso
a outros direitos.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

A era Bolsonaro foi trágica para a


democratização da mídia
Os quatro anos de governo fascista distanciaram o país da
comunicação pública e de políticas para a regulamentação da
radiodifusão; a comunicação comunitária foi desprezada.

Mônica Mourão

Crédito: Thyago Nogueira.

Numa pequena cidade do interior do Ceará, ponto de parada na estrada


de uma viagem mais longa, a família que vendia doces estava de olhos
e ouvidos muito ligados na televisão. Segundo a pesquisa TIC Domicílios
2019, em 95% das casas brasileiras existe aparelho de televisão, sendo 92%
na área rural e 96% na urbana. Naquela casa, um senhor interagia com a
tevê, xingando o atual presidente Lula, pois agora, segundo suas palavras,
a família brasileira ia acabar: era homem com homem, mulher com mulher,
pai com filha...
O caso é um exemplo tanto da penetração da televisão na vida de brasi-
leiras e brasileiros quanto do ideário bolsonarista, reforçado nos últimos anos
com dispositivos e estratégias de desinformação. Algumas delas, inventadas
para fomentar o ódio à grande mídia comercial e esconder que Bolsonaro,
apesar do discurso, não deixou de contemplá-la com verbas publicitárias.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Em vídeo que viralizou nas redes sociais, a jornalista Carla Cecato dizia,
em recorte de entrevista que deu à Jovem Pan News, que as emissoras de
tevê só falavam mal de Bolsonaro porque ele deixou de “jorrar dinheiro” na
imprensa. Na ocasião, Carla Cecato já havia sido demitida da RecordTV.
Numa coisa a jornalista bolsonarista tinha razão: Bolsonaro, de fato, foi
muito criticado pela Rede Globo. Segundo levantamento do projeto Manche-
tômetro, o Jornal Nacional fez majoritariamente menções negativas ao então
presidente. A única exceção é o período eleitoral, em que há um pico de
menções neutras. Segundo o pesquisador João Feres Júnior, coordenador
do projeto, a legislação eleitoral, que exige equilíbrio entre a cobertura das
diferentes candidaturas, pode ser uma explicação para isso. Porém, mesmo
se posicionando contra o projeto de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT),
a mídia seguiu firmemente contrária a Jair Bolsonaro até o fim das eleições.
O Manchetômetro é um projeto do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera
Pública (LEMEP), sediado no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
“Nossos estudos do Manchetômetro mostram que, ao longo do mandato
inteiro do Bolsonaro, a TV Globo e o jornal O Globo foram bastante críticos
à figura do Bolsonaro, mas bastante lenientes à figura do Paulo Guedes e
à agenda de reformas neoliberais ou fiscalistas. Existe essa tensão: Bolso-
naro era tratado de uma forma predominantemente negativa, enquanto a
agenda econômica dele e o Paulo Guedes eram tratados de maneira neutra
ou positiva”.
A pesquisadora Eula Dantas Taveira Cabral, coordenadora do grupo Eco-
nomia Política da Comunicação e da Cultura (EPCC), da Fundação Casa de
Rui Barbosa, avalia que, depois de muitos conflitos, o governo levantou a
bandeira da paz. “A Globo, mesmo com todos os entraves, manteve a maior
audiência. Isso em um país onde a TV aberta impera, como ainda é cons-
tatado pelas pesquisas de mercado. Nenhum político consegue abafar por
muito tempo um grupo poderoso e resolve tentar trazê-lo para seu lado”,
afirmou.
A professora Janaine Aires, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN) e integrante do Grupo de Pesquisa em Economia Política do
Audiovisual (EPA!), avalia que os empresários de radiodifusão deram grande
apoio ao ex-presidente, desde antes de ser eleito. Mais dependentes de
publicidade oficial que a Globo, os grupos Record, Band e, especialmente,
Rede TV, “permitiram que Bolsonaro aparecesse com muita frequência, que
estivesse constantemente sendo entrevistado, que pudesse falar coisas
muito polêmicas que facilitariam a reverberação do discurso e da imagem
de Bolsonaro em outros suportes, como os grupos de Facebook, YouTube,
nas mensagens instantâneas e assim sucessivamente”.
Desse modo, a estruturação das redes de desinformação bolsonaristas
passou também pela radiodifusão. “Foi a partir dessas emissoras que diver-
sas fake news que circulavam nas redes sociais, nos grupos que o gabinete
do ódio sustentava, ganhou credibilidade. A gente teve o caso das fake news
que diziam que os caixões estavam sendo enterrados vazios, nos momentos
mais graves da pandemia, que foi transmitida no Brasil Urgente, do Datena.
O caso de um homem de Pernambuco que teria morrido vítima de explo-
são de um pneu, e não de covid-19, foi contado pelo próprio Bolsonaro em
entrevista ao vivo a Sikêra Jr. A história foi desmentida pela Secretaria de
Saúde”, contou Janaine. Além disso, houve também o apoio através de ver-
bas publicitárias. A pesquisadora lembra que o programa Brasil Urgente, no
momento mais crítico da pandemia, tinha quadros específicos patrocinados
pelo Ministério da Cidadania, de Onyx Lorenzoni, com participação diária do
staff do governo federal.
Numa análise de cobertura sobre o 7 de setembro de 2022, data

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

sequestrada pelo governo Bolsonaro, pode-se ter uma ideia do tom das
emissoras de TV. Em texto no blog do Intervozes na CartaCapital, Gyssele
Mendes, Iara Moura, Olívia Bandeira, Ramênia Vieira e Sheley Gomes ana-
lisaram telejornais das emissoras Globo, Record e SBT. A diferença foi gri-
tante. Enquanto o Jornal Nacional criticou o uso eleitoral do Bicentenário
da Independência, os demais funcionaram como linha auxiliar do governo.
No SBT Brasil, houve uma matéria de 2min sobre o Grito dos Excluídos,
que trouxe diferentes vozes dos movimentos sociais, enquanto, na Record,
a manifestação não foi mencionada. A emissora do bispo Edir Macedo deu
destaque aos atos cívico-militares e àqueles em apoio ao então presidente
durante todo o dia, que chegou a ser chamado pela apresentadora Mariana
Godoy, do Fala Brasil, como “um dia de festa”. A emissora mostrou e ouviu
principalmente mulheres com crianças, focando justamente na fatia de elei-
torado que tinha maior rejeição a Bolsonaro. Também foi enfatizado que as
manifestações não eram violentas. A Record não fez nenhum contraponto
às matérias positivas a Bolsonaro, não deu espaço para nenhum outro can-
didato nem para ninguém que denunciasse o caráter eleitoreiro dos atos
daquele dia. Vale lembrar que no primeiro 7 de setembro como presidente,
em 2019, Bolsonaro convidou os radiodifusores Edir Macedo e Silvio Santos
e representantes da Band e da Rede TV para assistirem com ele o tradicio-
nal desfile do Dia da Independência. Janaine Aires considera o caso, que
ganhou destaque no Relatório Direito à Comunicação 2019, muito simbólico
da relação entre a radiodifusão e o então presidente.

Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei

A suposta perseguição sofrida por Bolsonaro pela Rede Globo era revi-
dada por ele em lives (transmissões ao vivo pelo canal do ex-presidente no
Youtube) desde 2019, com a ameaça de não renovar a concessão: “Temos
uma conversa em 2022. Eu tenho que estar morto até lá. Porque o processo
de renovação da concessão não vai ser perseguição. Nem pra vocês nem
pra TV nem rádio nenhuma. Mas o processo tem que estar enxuto, tem
que estar legal. Não vai ter jeitinho pra vocês”, disse, em outubro de 2019,
numa das lives. O ano da renovação finalmente chegou e, como se sabe, as
ameaças não se concretizaram. No apagar das luzes de 2022, no dia 20 de
dezembro, Bolsonaro publicou o decreto de renovação das cinco emissoras
da Rede Globo (no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte
e Recife). Também foram renovadas as concessões da Rádio e Televisão
Bandeirantes de Minas Gerais e da Rádio e Televisão Record, em São Paulo.
Até setembro de 2022, prazo para que a Rede Globo solicitasse a reno-
vação, a possibilidade de perseguição parecia concreta. O site Na Telinha
noticiou que a estratégia do presidente seria, no mínimo, tumultuar o pro-
cesso. Ele enviaria um relatório contrário à emissora ao Congresso Nacional,
onde as concessões são definidas, com posterior sanção presidencial. Em
setembro, quando a emissora deu entrada no pedido de renovação, o mesmo
site lembrou que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, genro de Silvio
Santos, fundador e proprietário do SBT, também usou um discurso legalista
ao afirmar que o critério seria “100% técnico”. Em maio de 2022, a Rede
Globo já tinha emitido a seguinte nota sobre o tema: “Esse assunto não se
dá por decreto presidencial. A Globo seguirá os prazos estabelecidos com
a tranquilidade de cumprir e de sempre ter cumprido todas as obrigações
legais para a renovação da concessão”.
Na ocasião da renovação das cinco emissoras da Rede, o então pre-
sidente também editou oito decretos tornando sem efeito concessões de
TV educativa, pois as entidades requisitantes não teriam enviado os docu-
mentos corretos. Não foi informado quais entidades foram essas, num

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

gesto corriqueiro no governo Bolsonaro: a ausência de informações e de


transparência.

Bolsonaro e seus ministros visitam Silvio Santos. Crédito: Reprodução/Redes sociais de Fabio Faria.

Por outro lado, vale lembrar que, durante três dos quatro anos do governo,
a TV Escola manteve contrato com a produtora de direita Brasil Paralelo. O
contrato data de 28 de novembro de 2019, primeiro ano do governo Bolso-
naro. De acordo com o documento, a produtora cedia o direito não exclusivo
de exibição, de forma gratuita, da série “Brasil: a última cruzada”.
Levantamento que fiz para a elaboração do artigo “A verdade da direita:
a produção audiovisual de memória sobre a ditadura de 1964”, publicado
na edição de 2019 da Avanca Cinema International Conference, mostra que
a forma de financiamento da produtora é um mistério: dificilmente eles con-
seguiriam realizar suas produções apenas com o dinheiro de assinaturas e
venda de cursos, como afirmam. A lista desses assinantes não é divulgada
por eles. Apesar da falta de informações sobre as fontes de recursos, é
possível vislumbrar, a partir da escolha dos entrevistados para os docu-
mentários produzidos, que existe relação entre a produtora e think tanks de
direita, como Instituto Liberal, Instituto Millenium, Instituto Von Mises Brasil,
Instituto Liberdade e Instituto Atlas.
Assim como os outros conteúdos da Brasil Paralelo, a série tem caráter
revisionista e olavista, inclusive com entrevistas com o guru do grupo, o
hoje falecido extremista Olavo de Carvalho. Um dos diretores da Associação
Roquette Pinto seria uma indicação olavista: Eduardo Melo, que Carvalho
gostaria que tivesse sido ministro. A Associação gere a TV Escola com recur-
sos repassados pelo Ministério da Educação (MEC).
Segundo a pesquisadora Eula Cabral, “esse governo de extrema direita
tentou impor suas posições e tirar do mapa todos que podiam atrapalhá-
-lo. No caso da Rede Globo, durante um bom tempo foi abafada e perdeu
publicidade governamental. Enquanto isso, SBT, do sogro do ministro das
Comunicações, e Record, empresa ligada à Igreja Universal que elegeu o
presidente, além da Bandeirantes e Rede TV!, ligadas a empresários que
apoiaram o governo, foram totalmente beneficiadas, inclusive com permissão
de ‘arrendamento’ de horários”.
O arrendamento é a venda de espaço televisivo para terceiros,

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

responsáveis pela produção do conteúdo daqueles horários, algo ilegal,


mas comumente feito para televendas ou congregações religiosas. Em julho
de 2022, o então presidente sancionou, sem vetos, a Lei 14.408/22, que
permite às emissoras de rádio e televisão transferir, comercializar ou ceder o
tempo total de programação para terceiros. Até então, só era possível a venda
de 25% da programação, considerado o teto para inserções publicitárias.
Essa foi apenas uma das interferências de Jair Bolsonaro nas regras para a
radiodifusão. Levantamento feito pelas pesquisadoras Ana Carolina de Melo
Souto e Nelia Rodrigues Del Bianco, respectivamente mestranda e professora
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de
Brasília (UnB), identificou 98 normas, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021,
que mudaram as obrigações a serem cumpridas pelos radiodifusores. Elas
avaliam que esses dispositivos infralegais estão ancorados no discurso de
“desburocratização” e de estímulo ao ambiente de negócios no país.
Segundo Oscar Cowley Forner e Almudena Muñoz Gallego, respectiva-
mente mestrando e professora visitante no Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEM/
UFRN), “trata-se de uma estratégia político-eleitoral que se sustenta por meio
da tentativa de passar a ideia de defesa de uma mídia livre, mais competitiva
e sem censuras, como assim consta na proposta de governo no slide dedi-
cado ao tema da comunicação, denominado ‘Imprensa livre e independente’.
Mas, na verdade, promove a aliança entre grupos políticos e midiáticos que
alimentam a prática do clientelismo”.
Integrante do Grupo de Trabalho das Comunicações durante o governo
de transição (para a nova gestão de Lula como presidente), o Secretário
Geral da Rádio Ferrabraz FM, Alan Camargo, que é também integrante do
Movimento Nacional de Rádios Comunitárias, destaca a mudança estrutural
feita por Bolsonaro para que o fluxo de verbas ficasse sob o controle dele,
ao extinguir o Ministério das Comunicações e depois retomá-lo, desta vez
ligando-o à Secretaria de Comunicação (Secom), diretamente subordinada
à Presidência da República. “Eles fizeram uma bagunça, então uma fatia do
bolo ficou para o grupo ligado a Fábio Faria. Bolsonaro deixou no Ministério
da Ciência e Tecnologia apenas aquela parte da malha cartorial exatamente
para organizar o dinheiro. Em algum momento, grupos medianos, como o
Massa, e a Record, operaram a distribuição dos recursos diretamente com
o Palácio. E esses que sustentaram o bolsonarismo levaram muito dinheiro”,
avalia.

A comunicação comunitária: um problema histórico que se agravou

Quanto à comunicação comunitária, Alan Camargo apresenta dados


impressionantes que mostram o descaso com o setor há sete anos. Segundo
ele, “o número de cerca de 5 mil emissoras comunitárias outorgadas se
mantém desde 2016. Desde então, até novembro do ano passado, inclusive,
não havia publicação de editais para novos municípios. O último foi o Edital
nº 172, de 25 de novembro de 2022, lançado ainda no governo Bolsonaro,
para 71 municípios”.
O número, além de pequeno, deixa de fora comunidades indígenas,
quilombolas, bairros e vilas de grandes cidades que já foram contempla-
das anteriormente com apenas uma rádio. Isso porque só é permitida uma
outorga por município. “O movimento de rádios comunitárias considera que
o Marco Legal de Radiodifusão Comunitária, a Lei 9.612, de 1998, reprimiu
as emissoras. A projeção, naquele ano, era de 25 mil rádios comunitárias.
Hoje há apenas 4.800. Boa parte delas, pela dificuldade de sustentabilidade,
foi parar sob a influência de igrejas evangélicas e de prefeitos de pequenos
municípios”, explica Camargo.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Segundo ele, hoje tramitam 40 mil processos de outorga ou renovação


no Ministério das Comunicações. Entre eles, de rádios que existem há 20
anos e não conseguem ser renovadas. “Nós apresentamos no Grupo de
Trabalho a regulamentação da Lei 9.612. É preciso aplicar o que é previsto
no artigo 5º, de que em caso de inviabilidade técnica deve ser oferecido
um canal alternativo para atender à comunidade. Pedimos o fim do plano
nacional de outorgas, que é muito burocratizado. O processo técnico não
pode continuar sendo a primeira etapa para se conseguir as outorgas, já
que é impeditivo para a maioria das rádios”.
Ele lembra que mesmo nos governos Lula e Dilma o tema não foi enfren-
tado. Segundo Geremias dos Santos, presidente da Associação Brasileira
de Rádios Comunitárias (Abraço Brasil), a morosidade na tramitação dos
processos de outorga para a comunicação comunitária “faz parte de uma
estratégia, porque quem manda no setor de comunicação do Brasil é a Asso-
ciação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e a Associação
Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), inclusive indicam ministros e diri-
gentes no Ministério das Comunicações. Eles dominam quase a totalidade
dos 25 integrantes titulares da Comissão da Ciência Tecnologia e Inovação
da Câmara (CCTCI)”.
A pesquisadora Eula Cabral concorda: “No caso das rádios comunitárias,
nem no governo da esquerda nem no governo da direita foram beneficia-
das. Os grupos midiáticos, que têm como meta o lucro, não permitem que
sejam mantidos os comunitários e continuam perseguindo a sociedade civil
e evitando que sejam organizados conselhos de comunicação e criadas
políticas públicas em prol da população que tem direito à comunicação, à
informação e à cultura”.
Assim, historicamente entregue aos interesses do empresariado, com
uma maioria de emissoras alinhadas ao bolsonarismo, a radiodifusão segue
funcionando majoritariamente como instrumento estratégico na manuten-
ção de ideais neoliberais e conservadores. Como o personagem do início
desta reportagem, a maioria da população brasileira conhece o mundo não
só pela internet, mas também pela tevê e o rádio – e Bolsonaro soube bem
utilizá-los de forma associada à difusão on-line de ódio e desinformação.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Plataformas digitais no centro das


atenções: regular para avançar

Regulação brasileira caminha para consenso, mas as plataformas


resistem, trazendo entraves

Sheley Gomes, Ramênia Vieira e Viviane Tavares

Crédito: Thyago Nogueira, com cartaz de Pedro Mandi.

2022 ainda parece um ano que não acabou. Mesmo com as experiências
vividas em anos anteriores, o processo político foi um dos mais intensos e
complicados das últimas décadas no Brasil, especialmente no que se refere
aos abusos de poder, à desinformação e ao desrespeito às regras do jogo
democrático.
Os problemas da desinformação e do poder das plataformas digitais na
construção do debate político estão sob os holofotes desde que Donald
Trump chegou à presidência dos Estados Unidos, em 2016, valendo-se de
uma campanha permeada por fake news e estratégias de segmentação de
conteúdos para públicos mapeados, a partir do uso ilegal dos dados pessoais
dos usuários de redes sociais.
Essas estratégias foram observadas também no Brasil, sobretudo nas

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

eleições de 2018, que levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República,


impulsionado por disparos de mensagens em massa e mentiras. Apesar
dos escândalos e das cobranças por parte de autoridades e organizações
da sociedade civil às plataformas digitais que sustentam as principais redes
sociais, as medidas tomadas por elas têm sido insuficientes para enfrentar
concretamente o problema.
Em 2022, se por um lado as plataformas digitais não avançaram em
medidas para coibir a disseminação de desinformação, discurso de ódio e
conteúdos ilegais, por outro, agiram para impedir o avanço da legislação
que pretende regular o setor no Brasil. As big techs atuaram agressivamente
em detrimento da primeira grande tentativa de regulação dessas empresas.
Mobilizada por Google e Meta (holding do Facebook) nos principais veículos
de comunicação do Brasil e em suas próprias plataformas, a campanha con-
tra o PL 2630/2020 (o “PL das Fake News”), que visa instituir a Lei Brasileira
de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, evidenciou a
pouca disposição dessas megacompanhias transnacionais de tecnologia
em aderir a uma proposta democrática de regulação, que objetiva mais
transparência em sua relação com o Estado brasileiro e seus cidadãos.
Assim como nos Estados Unidos e na União Europeia, onde existe um
forte lobby das big techs contra legislações que estabeleçam critérios míni-
mos de atuação dessas empresas e mais transparência na internet, no Brasil
houve uma campanha nas redes em que os usuários recebiam recomenda-
ções de leitura de uma carta em que, de acordo com as empresas signa-
tárias, a versão do projeto aprovado no Grupo de Trabalho da Câmara dos
Deputados, em dezembro de 2021, sob relatoria do deputado Orlando Silva
(PCdoB-SP), poderia “desestimular as plataformas a tomar medidas para
manter um ambiente saudável online”. A mobilização se estendeu, ainda,
para anúncios em jornais de grande circulação em todo o país, além de notas
dos presidentes das big techs no Brasil em seus respectivos blogs. A ação
das plataformas mostra que a regulação é urgente, já que elas se utilizam
do seu espaço privilegiado no ambiente digital para seguir desinformando
sobre a real proposta contida no documento.
Para Samara Castro, diretora do Departamento de Promoção da Liber-
dade de Expressão da Secretaria de Políticas Digitais, que compõe a Secre-
taria de Comunicação Social da Presidência da República, sem regulação
não há enfrentamento das big techs. “Já consensuamos entre ministérios
de governo, pesquisadores e sociedade em geral que precisamos de uma
regulação da atuação das plataformas. O que precisamos agora definir é o
modelo, juntar forças para amarrar os consensos”, avalia, e acrescenta: “Os
episódios das eleições de 2022 e o atentado à democracia no 8 de janeiro
[de 2023] mostram como essa história ainda não terminou. Precisamos
enfrentar as plataformas, que não à toa se posicionaram contra o PL 2630,
quando ele podia ser votado com urgência”.

O Projeto de Lei como um marco da regulação

Após um ano e meio de tramitação entre Senado Federal e Câmara dos


Deputados, e com a realização de uma série de audiências públicas para
debater diferentes itens do projeto com representantes da sociedade civil,
da academia e também das empresas, o PL 2630/2020 transformou-se num
esboço de um marco decisivo para a regulação das plataformas digitais e
o enfrentamento da desinformação no Brasil. O que era antes chamado de
“PL das Fake News”, hoje traz um texto mais robusto e contempla, de fato,
parte da regulação do setor.
Com muito esforço da sociedade civil organizada, especialmente da
Coalizão Direitos na Rede (CDR), que reúne mais de 50 organizações, o

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

PL apresentado em 2022 atingiu um texto compatível com o combate às


engrenagens das máquinas de desinformação e ódio, sem ferir a privacidade,
a proteção de dados pessoais e a liberdade de expressão dos usuários.
Para a CDR, houve conquistas no relatório apresentado pelo deputado
Orlando Silva, com a previsão de mecanismos de transparência das ações de
moderação por parte das plataformas, a exigência de publicação de relató-
rios periódicos, além do empoderamento do usuário por meio do instrumento
do devido processo, em casos de remoção de conteúdo ou suspensão de
contas. O documento busca estabelecer garantias para um funcionamento
mais isonômico das redes, de modo a inibir a influência desproporcional do
poder econômico que financia a distorção do debate público e avança em
direção a um ambiente digital que proteja os cidadãos e cidadãs, além de
assegurar alguns direitos.

Debate da regulação no mundo

O primeiro instrumento legal que serviu como marco para iniciar o debate
sobre o ambiente digital foi o Communications Decency Act (CDA), nos Esta-
dos Unidos, mais precisamente a seção 230, em 1996. Ele determina que
provedores de serviços na internet não podem ser tratados como porta-vo-
zes do que é publicado por terceiros. Ele foi tido como referência, inclusive,
para a constituição do Marco Civil da Internet brasileiro, mais especifica-
mente, o artigo 19, instituído em 2014. O texto do CDA é dividido em duas
seções que tratam sobre a responsabilização das plataformas e a moderação
de conteúdos.
Na União Europeia, o pontapé para instituir regras para o funcionamento
de serviços on-line foi a Diretiva de Comércio Eletrônico. O texto também
trata da responsabilidade de terceiros, quando as plataformas podem ser
responsabilizadas por conteúdos, mas também estabelece regras como
requisitos de transparência e informação para fornecedores de serviços
on-line, comunicações comerciais, contratos eletrônicos e limitações de
responsabilidade dos prestadores de serviços intermediários.
Mais recentemente, em 2020, a União Europeia apresentou o Digital Ser-
vices Act, que atualiza muitas das diretrizes apresentadas na legislação
anterior e que representa um marco na governança da internet e na regu-
lação de plataformas em todo o mundo. O regulamento estabelece novas
regras sobre responsabilidade de intermediários, publicidade, transparência,
remoção de conteúdo, entre outros temas. O novo regulamento aplica-se
a todos os intermediários que prestam serviço on-line na União Europeia:
os que oferecem infraestrutura de rede; os serviços de hospedagem, como
computação em nuvem; os sistemas de pesquisa on-line que atingem mais
de 10% dos 450 milhões de consumidores na União Europeia; as plataformas
on-line que reúnem vendedores e consumidores, como marketplaces; e
redes sociais com um alcance superior a 10% dos 450 milhões de consu-
midores da União Europeia.

Outras iniciativas de regulação

Em julho de 2022, Frances Haugen, cientista de dados e ex-funcionária


do Facebook, veio ao Brasil e, em audiência pública na Câmara dos Depu-
tados, alertou sobre os impactos da moderação de conteúdo da rede social
no Brasil. Para ela, as ações contra fake news no país eram “negligenciadas”.
A cientista atuou na rede social no setor que analisou a derrubada de con-
teúdos impróprios durante a eleição nos Estados Unidos, em 2016, mas saiu
da empresa em março de 2021 e, a partir de outubro, começou a denunciar
que o sistema adotado pela empresa favorece o compartilhamento de con-
teúdos “raivosos”, que promovem polarização e, por isso, mais engajamento.
Na ocasião, ela afirmou que o Facebook sabia de muitas intervenções

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

que deveriam ser feitas, porém escolhia não fazê-las, porque isso impactaria
seu lucro. E alertou para a falta de transparência da plataforma em relação
a quantas pessoas na empresa estavam olhando para a eleição brasileira
com o objetivo de barrar conteúdo inapropriado ou de coibir a criação de
contas falsas. “Até mesmo deixar de responder perguntas simples, como
quantos moderadores trabalham em português, mostra uma falta de respeito
ao processo eleitoral brasileiro”, destacou Haugen.

Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook, em audiência pública na Câmara dos Deputados brasileira.
Crédito: Billy Boss/Câmara dos Deputados.

A regulação dessas empresas globais, no entanto, é um processo com-


plexo. Como regular nacionalmente plataformas que possuem sedes nos
países do Norte Global? Que especificidades os países do Sul enfrentam
quando comparados aos países do Norte? Há parâmetros válidos para todos
os contextos e que respeitem os documentos internacionais de liberdade
de expressão e de direitos humanos?
Na busca para estabelecer um texto que abarque as complexidades em
regular as big techs, tentativas de formular diretrizes gerais ou parâmetros
que orientem futuras legislações vêm sendo feitas. Em um processo ini-
ciado em 2019, diversas organizações da América Latina, em conjunto com
acadêmicos, e com o apoio do Intervozes, lançaram o documento intitulado
“Padrões para uma regulação democrática das grandes plataformas que
garanta a liberdade de expressão online e uma internet livre e aberta”, que
apresenta “recomendações sobre princípios, padrões e medidas de cor-
regulação e regulação pública para proteger as liberdades de expressão,
informação e opinião dos usuários de plataformas e garantir uma Internet
livre e aberta. A proposta inclui tanto limitações ao poder das grandes plata-
formas de Internet (tais como redes sociais e mecanismos de busca) como
proteções para dotar os intermediários de instrumentos adequados para
facilitar o exercício da liberdade de expressão”.
Em processo similar, a Organização das Nações Unidas para a Educa-
ção, a Ciência e a Cultura (Unesco) iniciou em 2022 um processo de con-
sulta pública para estabelecer um documento que sirva como diretriz para a
construção de futuras regulações. O texto, intitulado “Guia para a regulação
das plataformas digitais: uma abordagem multissetorial para salvaguardar
a liberdade de expressão e o acesso à informação”, passou por diferen-
tes períodos de sugestões e chegou a ser discutido em uma conferência
realizada na sede da Unesco, em fevereiro de 2023, na qual o Intervozes e

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

outras organizações brasileiras estiveram presentes. O documento segue em


consulta pública e deve ter uma versão finalizada em setembro deste ano.
Ainda que a pertinência do tema seja inegável, e que a construção de
marcos regulatórios que abarquem as plataformas seja urgente, muitas
discussões têm sido feitas de maneira apressada e sem o devido espaço
para uma construção cautelosa e multissetorial. Além disso, algumas des-
sas propostas de regulação – inclusive o PL 2630 – não abarcam a crítica
feita por parte da sociedade civil latino-americana de que o processo de
moderação de conteúdo está relacionado a estruturas e políticas de funcio-
namento das próprias plataformas. A estrutura algorítmica, o lucro através
do engajamento, o mercado de dados e a captura da atenção são fatores
que afetam diretamente a maneira pela qual as plataformas irão estabelecer
suas políticas de moderação de conteúdo.
Nesse sentido, ainda que com uma legislação bem construída, o pro-
blema que está sendo discutido parece que não irá se encerrar se o modelo
de negócios das plataformas não for repensado. As legislações atuais ou os
documentos de diretrizes que focam apenas na moderação de conteúdos
não são suficientes. Complementar a isso, é necessária uma regulação que
exija uma maior transparência algorítmica, para que a sociedade entenda
como e por que a moderação é ou não realizada em cada caso, além da
regulação econômica, e que estabeleça parâmetros para os modelos de
negócios que respeitem a privacidade e os dados pessoais dos usuários e
impeça que a internet seja dominada por monopólios digitais globais.

A REGULAÇÃO DAS
PLATAFORMAS
EM 2023
Após os ataques antidemocráticos em
8 de janeiro de 2023, o governo Lula reto-
mou o debate em relação à regulação das
plataformas. O governo elaborou uma
proposta que obrigaria as redes a remo-
verem material que incite golpe de Estado
e encaminhou para o deputado Orlando
Silva, relator do Projeto de Lei 2630/2020.
Orlando Silva aceitou parte das propos-
tas, porém manteve mecanismos para que
o dever de cuidado não fosse utilizado
como justificativa das plataformas
para cercear o debate nas redes sociais
e reiniciou a articulação na Câmara dos
Deputados para a votação da urgência,
que foi aprovada no dia 25 de abril de 2023.
Na semana seguinte, as plataformas lan-
çaram uma ofensiva contra o PL 2630, o
que comprometeu a base de votação favo-
rável ao projeto e fez com que a votação
do mérito da proposta fosse adiada. Este
será um dos principais temas da agenda do
direito à comunicação em 2023.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

73
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Negacionismo estatístico e apagão


de dados no último ano do governo da
desinformação

Nova gestão no governo federal levará anos para reconstruir


sistemas de informação em áreas como a saúde e o controle de
agrotóxicos

Eduardo Amorim

Crédito: Thyago Nogueira.

Uma das questões mais simbólicas e, ao mesmo tempo, perigosas dei-


xadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro é o fato de ele ter escondido o seu
cartão de vacina, alvo de investigação pela Polícia Federal em um suposto
esquema de falsificação. A vida pessoal de qualquer cidadão merece ser
respeitada, mas seria possível um gestor público enfrentar uma pandemia e
evitar um grande número de mortes sem utilizar do exemplo que podemos
dar através dos nossos atos e gestos? A morte por covid-19 de quase 700
mil brasileiras e brasileiros durante a gestão de Bolsonaro, segundo os dados
oficiais, deixou marcas dolorosas em famílias e comunidades de todo o país.
Esconder o seu documento vacinal não foi, porém, uma atitude isolada
de Bolsonaro. O desrespeito com os sistemas de informação, de um modo
geral, foi a tônica do governante anterior, parte de uma verdadeira “política

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

de desinformação” estabelecida durante os seus quatro anos de mandato.


Vale mencionar, por exemplo, que o Grupo de Transição para o atual governo
Lula denunciou ter recebido dados confusos e incompletos, inclusive do
Ministério da Saúde. O fato é que a gestão que se encerrou em 2022 foi
negligente com a questão da informação em diversas áreas, incluindo a
vacinação, política em que o Brasil costumava ser exemplo mundial, gerando
um verdadeiro “apagão de dados”.
“É preciso criar uma política pública mais ampla de transparência com
financiamento do Estado e o reinvestimento nas políticas setoriais. Como
houve um desfinanciamento sistemático de todas as políticas públicas de
interesse social nos últimos anos, a tendência é que as plataformas fiquem
desatualizadas, os websites fiquem desatualizados, até mesmo saiam do
ar... Porque essas plataformas de dados, como praticamente toda forma de
tecnologia, é uma coisa que você precisa ir atualizando sempre e, conforme
também o acesso vai se dando, o aperfeiçoamento tecnológico é necessá-
rio e isso tem um custo para a administração pública. Acaba que são fases
da política pública de sistematização e organização de dados que perdem
prioridade quando você tem muitos cortes acontecendo, então é uma ques-
tão também de desenho orçamentário, implementação e avaliação para
aperfeiçoar progressivamente”, explica Carmela Zigoni, assessora política
no Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e integrante do Fórum de
Direito de Acesso às Informações Públicas.
Outro exemplo do desprezo com o controle social por meio de platafor-
mas de dados e pesquisas foi o desrespeito dos prazos do Censo 2022,
realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tradicio-
nalmente, o maior levantamento sobre a população brasileira é divulgado
nos anos terminados em zero, mas o atraso tem ocasionado que diversas
decisões políticas, inclusive referentes à distribuição de recursos públicos,
sejam realizadas com números antigos e, provavelmente, defasados.
Apenas no dia 28 de fevereiro de 2023, o IBGE encerrou a cobertura
da coleta domiciliar do Censo 2022. Segundo o instituto, foram recensea-
das 189.261.144 pessoas, o que representa 91% da população estimada do
país, considerando o divulgado em 28 de dezembro de 2022. A partir de
então, o órgão iniciou “Ações de Mobilização” em áreas específicas, como
favelas e condomínios de alta renda, ainda em curso no fechamento desta
reportagem, em paralelo à apuração dos dados. Há ainda a possibilidade
de que domicílios que não foram recenseados façam contato com o IBGE
para agendar visitas. “Essas tarefas implicam alguns retornos a campo,
ou seja, alguns domicílios ainda vão receber visitas de recenseadores ou
supervisores. A divulgação dos primeiros resultados do Censo Demográfico
está prevista para o final de abril”, informava o IBGE em seu site, no mês de
março, logo após a finalização da fase de coleta.
Importa lembrar que o último Censo foi realizado em 2010, portanto o
mais recente deveria ter acontecido em 2020. O Governo Bolsonaro, entre-
tanto, utilizou a pandemia para justificar o atraso, e a pesquisa foi postergada
para 2022, ainda assim sendo finalizada apenas no ano seguinte.
Mas, segundo o alerta de especialistas e instituições da sociedade civil,
a crise sanitária não foi o único motivo para o atraso. “Nesse contexto de
guerra contra o funcionalismo público, o presidente Bolsonaro também, já
em abril de 2019, por várias vezes, veio a público criticar os dados do IBGE
sobre o emprego e o desemprego. Ele não tinha nenhum pudor em dizer
que o IBGE produziu índices feitos para enganar a população, que essas
estatísticas eram uma farsa. Sem nenhuma base, ele questionava as técnicas
de cálculo”, disse o professor Fabio Betioli Contel, em artigo publicado no
site da Universidade de São Paulo (USP).
O pesquisador nomeia essas atitudes como um “negacionismo estatís-
tico”, em que o desinvestimento, por meio de cortes orçamentários, também
é uma das ações. Em 2021, mais de 90% do orçamento destinado ao Censo,

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

que era cerca de R$ 2 bilhões, foi cortado. O impacto disso foi não apenas
um desmonte da instituição, mas também a impossibilidade de cogitar o
início da execução da pesquisa naquele ano.
Mesmo em 2022, os números de trabalhadores empregados no recen-
seamento ficaram abaixo do esperado, houve desistência pelos baixos valo-
res pagos às equipes de recenseadores e foi necessário rever o processo
para atender populações e locais específicos. Em Roraima, por exemplo, foi
preciso criar uma força-tarefa para buscar os dados dos Yanomami, mesmo
depois do encerramento da coleta domiciliar.
Questionada sobre o Censo 2022, Conceição Silva, que representa a
União de Negros pela Igualdade (Unegro) no Conselho Nacional de Saúde
(CNS), lembra que “você não tendo uma segurança de dados, fica muito
difícil trabalhar para promover política pública e sobretudo nos repasses
que o Ministério [da Saúde] faz para os estados e municípios. Muitas difi-
culdades, muitas reclamações, mas também todas as ações [de denúncia]
foram expostas ali no Conselho Nacional de Saúde através de um conjunto
imenso de notas públicas, recomendações, com relação à própria questão
do financiamento”.

Plenária Ampliada da Conferência Municipal de Saúde de Recife. Crédito: Divulgação/CNS.

Um exemplo das ações do CNS foi, no início de 2022, o questionamento


feito ao então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e a reivindicação por
transparência e inclusão da sociedade civil no debate do compartilhamento
de dados. Em relação a esse caso, o CNS se posicionou contra uma plata-
forma chamada Open Health, criada para reunir dados de usuárias(os) de
planos privados de saúde, possibilitando o compartilhamento das informa-
ções entre empresas do setor para a oferta de produtos personalizados.
Para o Conselho, a consolidação da saúde digital no Brasil deve ser uma
prioridade do Ministério da Saúde, porém a medida deve ter como objetivos a
priorização do SUS, fortalecendo o sistema público e universal, e a proteção
dos dados pessoais das suas usuárias(os), tanto contra vazamentos quanto
ao uso indevido das informações pelo setor privado.
Essa preocupação com a privacidade e os dados pessoais – seja de usuá-
rias(os), seja de profissionais – motivou a realização de uma pesquisa, coor-
denada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pelo Intervozes – Coletivo

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

Brasil de Comunicação Social e pelo Instituto de Defesa do Consumidor


(Idec), que aponta, como indicado no Sumário Executivo do estudo, que
“o uso das novas tecnologias de informação e comunicação no campo da
saúde trazem oportunidades, mas também riscos no que se refere à proteção
de dados pessoais que precisam ser mais bem investigados para que boas
práticas sejam construídas”.
A existência de boas práticas demanda participação social. “É essencial
aprofundar e ampliar a questão democrática neste momento civilizatório de
grande impasse político. ‘Saúde é democracia, democracia é saúde’ sem-
pre foi o lema que norteia nossas atividades. Portanto, neste momento de
virada da sociedade brasileira, de recuperação e afirmação da democracia, é
importante que contemple, de forma radical, um controle da sociedade sobre
as políticas e as ações de saúde, com orçamento participativo e territórios
organizados produzindo vida em todo o Brasil”, escreveu a presidenta do
Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), Lucia Souto, em editorial
da revista Saúde em Debate, edição de Julho/Setembro de 2022.

Um caso emblemático

Criado em 1980, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacoló-


gicas (Sinitox) é responsável pela coleta, compilação, análise e divulgação
dos casos de intoxicação e envenenamento, através de dados registrados
pela Rede Nacional de Centros de Informação e Assistência Toxicológica
(RENACIAT), nos estados e no Distrito Federal. Apesar do papel de fornecer
informação e orientação sobre o diagnóstico, prognóstico, tratamento e
prevenção das intoxicações, assim como sobre a toxicidade das substâncias
químicas e biológicas e os riscos que elas ocasionam à saúde, a ferramenta
está desatualizada e os últimos números disponíveis são de 2017.
Naquele ano, conforme estudo realizado por pesquisadores brasileiros,
o Sinitox registrou 2.548 casos de contaminação por agrotóxicos no Brasil.
Os pesquisadores denunciam que, considerando o fato de as intoxicações
por agrotóxicos não serem notificadas compulsoriamente no país (con-
forme a Portaria nº 777/GM, de 28/04/2014), e de que o próprio Ministério
da Saúde estima 50 não notificações para cada ocorrência registrada, os
casos humanos de intoxicação por agrotóxicos são um problema de saúde
alarmante e, ao mesmo tempo, negligenciado no país.
Mesmo que o Sinitox e os outros sistemas que registram intoxicações
estivessem atualizados, muitos casos de intoxicação jamais chegariam ao
poder público, simplesmente porque os sujeitos afetados não têm o menor
conhecimento sobre o que está acontecendo ou sobre como buscar ajuda.
A falta de dados, a desatualização das informações e a sistemática política
de desinformação acabam agravando a situação. Estudiosos do campo da
agricultura, por exemplo, reclamam da falta de dados nacionais que possam
demonstrar através dos receituários agronômicos quais agrotóxicos estão
sendo mais vendidos por cidade e região, já que sem esses números é
difícil entender como enfrentar os problemas de saúde e socioambientais
nas regiões específicas.
Parece fazer sentido, de uma maneira bastante perigosa, que populações
como os indígenas Yanomami e os trabalhadores assalariados no campo
sejam os sujeitos que acabam sendo subnotificados ou estejam de fora das
estatísticas. Nesse sentido, serão necessários muitos esforços para que a
nova gestão do governo federal enfrente uma política genocida, que tinha
como uma das bases da sua estratégia violenta dificultar o entendimento da
sociedade sobre essas populações historicamente marginalizadas.
A representante da Unegro no Conselho Nacional de Saúde, Concei-
ção Silva, considera importante, como estratégia para repensar o controle
social, a retomada das conferências nacionais, estaduais e municipais do
setor. Além de iniciativas como o IdeiaSUS, que é um banco de dados sobre

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

iniciativas em saúde e ambiente, Conceição vive a expectativa da realização


da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental e da 17ª Conferência Nacional
de Saúde, que terá o mote “Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a
democracia - Amanhã vai ser outro dia”.
Carmela Zigoni, do INESC, lembra que a Constituição Federal prevê que
além do voto o cidadão pode contar com diversas estratégias de parti-
cipação: plebiscitos, audiências públicas, conselhos e conferências. “Os
conselhos e conferências devem ser retomados, sim, e reabertos e mais
democratizados e participativos do que eram neste primeiro ciclo também”,
afirma. Ela considera que os conselhos reproduziam internamente relações
de desigualdade de gênero e de raça. “No âmbito municipal o controle
social de conselhos implica também a aprovação de contas públicas, então
também é necessário rever o papel dos conselhos, para que sejam mais
deliberativos e que tenham competências técnicas de acordo com o perfil
dos conselheiros. No caso das conferências, elas continuam sendo super
importantes, precisam ser retomadas, mas também é importante lembrar
que existe um acúmulo do período anterior de conferências de deman-
das que nunca foram implementadas e que seguem sendo demandas dos
movimentos sociais. Então, até por ser um período de redução de recur-
sos, crise econômica e de reconstrução de todas as políticas públicas que
foram desmontadas nos últimos quatro anos, é importante que o governo
priorize verificar também os acúmulos das conferências. Mas elas também
são espaços importantes de construção participativa”, diz a integrante do
Fórum de Direito de Acesso às Informações Públicas.
Ainda não foi possível dimensionar integralmente as consequências para
o conjunto da população brasileira de quatro anos de uma gestão que foi
criminosa também quando o assunto é acesso à informação pública. Mas,
certamente, será necessária muita pressão social para que o governo Lula
seja obrigado a investir e melhorar as plataformas ou mesmo criar políticas
fundamentais, como a de controle nacional dos receituários agronômicos,
tendo como princípio o direito humano ao acesso às informações de caráter
público.

78
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

“O ano passado eu (quase) morri, mas


esse ano eu não morro”: o fim de um ciclo
e uma esperança de democracia

A era Bolsonaro minou o país com devastações de toda ordem,


inclusive nas comunicações; com novo governo eleito, precisamos
construir as críticas necessárias e apontar urgências de políticas
públicas verdadeiramente inclusivas e democráticas

Ana Maria Conceição Veloso, Patrícia Paixão de O. Leite e Paulo Victor Melo

Crédito: Thyago Nogueira.

Neste texto final do especial Comunicação Pós-Bolsonaro, que faz um


balanço sobre o fim da era Bolsonaro no poder central do país e a retomada
dos rumos democráticos de um Brasil que tenta colar os cacos de tantos
retrocessos vividos, pretendemos pontuar momentos críticos no campo das
comunicações nos primeiros meses do governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), com o objetivo de defender necessidades de ajustes e sugerir políticas
públicas para a nova gestão. Afinal, a constituição de uma nação pautada
pelo Direito Humano à Comunicação não se dá com omissões ou recuos,
mas na construção coletiva.
A era Bolsonaro foi caracterizada por reiteradas tentativas de destruição
– muitas, infelizmente, com êxito – de direitos da população brasileira, por
opressões simbólicas e materiais contra os povos tradicionais, intensas

80
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

ameaças e práticas de censura às(aos) jornalistas e desmonte da comunica-


ção pública. Sem contar a institucionalização da desinformação, permeada
de discursos de ódio, quando agentes governamentais e da base de apoio
político do então presidente criaram e disseminaram mentiras para tumul-
tuar as eleições presidenciais de 2022 e, inclusive, sabotar os resultados
das urnas. A desordem informativa também buscou minar organizações
científicas, universitárias e de comunicação, em um momento crítico de
pandemia em que a informação de qualidade poderia ter salvado milhares
de vidas. Isso tudo tendo como pano de fundo o fascismo que emergiu com
mais força no país graças ao período Bolsonaro.
Essa visão panorâmica do que foram os últimos quatro anos do Brasil,
esmiuçada nos dez textos que compõem o especial, já dão indicativos do
tamanho do esfacelamento político, econômico e social do país – que, diga-
-se, é proporcional às responsabilidades e tarefas gigantescas que estão
no colo do novo governo Lula. E um dos pontos nevrálgicos, lugar em que o
novo governo ainda está patinando, é a comunicação. Sempre ela. Depois
do exercício de poder afrontoso de Bolsonaro e sua turma à autonomia da
Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com o sequestro da programação
das emissoras e a ocupação dos cargos de gestão por militares e apadri-
nhados do poder, havia a expectativa da sociedade civil organizada em
vivenciar uma guinada no novo governo eleito.
Mas os erros vieram da raiz, ou seja, começando na cúpula do Ministério
das Comunicações (MiniCom). O MiniCom foi “rifado” para o União Brasil,
partido conservador que, até “ontem” (nas eleições de 2022), deu susten-
tação a Bolsonaro e fez campanha para a permanência dele na presidência.
A legenda possui políticos que trabalham para a manutenção da primazia
do empresariado, dos “coronéis eletrônicos” – que fazem uso político de
emissoras de rádio e TV para benefício das elites locais e regionais – e dos
políticos donos de mídia, o que contraria o artigo 54 da Constituição Federal.
Do ninho do União Brasil foi indicado para o ministério um político que não
tem nem currículo, nem envergadura para atuar à frente, por exemplo, das
discussões democráticas sobre a regulação da radiodifusão ou para imple-
mentar projetos voltados ao enfrentamento da exclusão digital brasileira.
Infelizmente, não foi a primeira gestão do petista que privilegiou interesses
políticos e comerciais na liderança do MiniCom. Fazem parte deste rol as
gestões do político de carreira Miro Teixeira (PDT), entre 2003 e 2004, do
empresário agropecuarista Eunício Oliveira (MDB), entre 2004 e 2005, e do
ex-repórter da Rede Globo Hélio Costa, que ficou mais tempo como ministro
das Comunicações, entre 2005 e 2010.
O fato é que, para amenizar o estrago, o governo Lula concentrou uma
parte das políticas democráticas de comunicação sob a gerência da Secre-
taria de Comunicação Social (Secom), capitaneada pelo jornalista e ex-de-
putado federal Paulo Pimenta. A pasta, com status de ministério, tem a res-
ponsabilidade de coordenar as ações de comunicação do governo, com
o olhar para a promoção de políticas digitais e de divulgação de conteúdo
audiovisual, entre outras atribuições.
Contudo, uma das discussões mais pulsantes no mundo, a regulação
das plataformas digitais, está, no governo Lula, fatiada entre o Ministério da
Justiça e a Secom, o que tem gerado descompassos quanto às estratégias
governamentais em torno da votação do Projeto de Lei 2630/2020, conhe-
cido como o “PL das Fake News”, que tramita no Congresso Nacional. A
despeito de setores mais progressistas do governo, que pretendem esta-
belecer modelos de funcionamento e proteger os cidadãos das investidas
de redes de extrema-direita na internet – que correm soltas por conta da
desregulamentação das ações das big techs –, ainda há muitos ruídos inter-
nos que atrapalham uma atuação robusta para o enfrentamento da questão,
além de problemas de fundo na proposta do governo.
Entendemos como urgente que o Executivo ( junto com o Poder

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Legislativo) envolva a sociedade civil nas discussões sobre o PL 2630, além


de implementar formas mais amplas de regulação das plataformas digitais.
Compreendemos que é preciso avançar no debate sobre a regulação eco-
nômica das plataformas digitais e combater os monopólios digitais, assim
como deve ser feito nos demais sistemas de comunicação, fazendo cumprir
o artigo 220 da Constituição Federal.
A Secom também passou a cuidar da Empresa Brasil de Comunicação.
Inicialmente, a medida foi comemorada por entidades que defendem a auto-
nomia e o caráter público da EBC. Enganou-se, porém, quem pensava que
seria a vez da implantação do projeto de “enegrecimento” da empresa, que
postulava a ascensão de pessoas negras aos cargos de direção do projeto
de comunicação pública do país.
Além disso, e na contramão das recomendações do grupo de transição e
de inúmeros documentos da sociedade civil acerca da importância do forta-
lecimento da EBC para a democracia brasileira, o governo seguiu ignorando,
pelo menos até maio de 2023, a retomada do Conselho Curador (cassado
em 2016). A existência e a atuação da instância são condições para que o
atual governo se arvore no direito de afirmar que pretende respeitar um dos
pilares para a existência de uma comunicação verdadeiramente pública: a
participação social.
E, temos, nos primeiros cem dias de governo, pelo menos dois episó-
dios que saltaram aos olhos: a permanência da interrupção da grade da
TV Brasil para pronunciamentos e atos do governo Lula e a participação da
primeira-dama na live “Papo de respeito”, junto com a Ministra da Mulher,
gravada no estúdio (via contrato da Secom) da TV Brasil, veiculada pelas
redes sociais da emissora como TV BrasilGov via YouTube.
Em outro episódio, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH),
a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e o Sindicato dos Jornalistas
Profissionais do Distrito Federal (SJPDF) emitiram nota de repúdio ao que
classificaram de “assédio moral de diretora de jornalismo da EBC contra o
diretor do SJPDF”. Segundo o CNDH e as demais entidades, um sindica-
lista sofreu assédio por parte da gestora da entidade em maio deste ano.
Segundo informações trazidas pela nota, o sindicalista havia se posicio-
nado publicamente contra o encerramento das atividades de noticiários da
empresa, contra a demissão de trabalhadores(as) que colocavam os jornais
no ar e sobre o que caracterizou como assimetria entre as divisões dos seg-
mentos público e estatal, com maior estrutura sendo direcionada ao último.
A diretoria da EBC divulgou nota lamentando a situação e classificando o
ocorrido como “uma discussão acalorada entre colegas” de trabalho.
Pelo visto, a tão esperada separação entre as perspectivas pública e
estatal, dentro da estrutura da EBC, bem como o respeito à liberdade de
expressão, ainda segue como desafio da administração petista. E vai deman-
dar vigilância, posicionamento crítico, maior organização e pressão política
de entidades da sociedade civil que atuam no campo da democratização
das comunicações. Afinal, às vezes é preciso olhar para “o passado como
uma roupa que não nos serve mais” e abrir espaço para “uma nova mudança
[que] em breve [precisa] acontecer”.

Demandas urgentes: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e


algum modo de dizer não, eu canto”

Para que o governo Lula empreenda uma guinada rumo à efetivação do


Direito Humano à Comunicação, vai ser preciso recalcular a rota da gestão.
E pode começar com a demissão do atual ministro das Comunicações,
como já reivindica o movimento de comunicação, e posterior nomeação
de um(a) gestor(a) qualificado(a) e sensível às pautas da democratização
da comunicação.
Entre elas, não dá para pensar em um país mais democrático sem a

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

criação de uma política de financiamento e apoio às mídias populares, inde-


pendentes, comunitárias e alternativas, com editais públicos e fomento à
criação e desenvolvimento de novos meios.
Outra demanda urgente é o pleno funcionamento da EBC, que deve
ser reestruturada materialmente e no seu papel de empresa pública, com
orçamento adequado e respeito a um modelo de gestão que viabilize sua
independência e autonomia, incluindo o restabelecimento das funções do
Conselho Curador, cassado em 2016. Além disso, é preciso implementar
as agendas da campanha “enegrecer a EBC”, para garantir a participação
de pessoas negras e pardas nas diversas funções do órgão, inclusive nos
cargos de gestão e nas decisões estratégicas.
No campo da inclusão digital, é essencial a garantia do acesso à internet
a toda a população, de forma gratuita, como política de Estado. A política
de universalização deve ser realizada visando ao interesse público, garan-
tindo a autonomia decisória e respeitando as especificidades de Povos e
Comunidades Tradicionais e territórios periféricos. É preciso que o governo
federal dê uma mensagem nítida nas políticas desse campo de que o acesso
à internet é direito, e não moeda de troca usada no avanço do colonialismo
de dados, como aponta o interesse de Elon Musk de “conectar a Amazô-
nia”. É necessário e urgente a ampliação de programas de conectividade
domiciliar às populações de baixa renda, em regime público, enfrentando
também a desigualdade de acesso às infraestruturas de internet e às Tecno-
logias de Informação e Comunicação (TICs). Na paralela, é urgente ampliar o
acesso em espaços públicos, especialmente escolas, bibliotecas e centros
comunitários, incorporando a temática da educação em direitos humanos
e educação para a mídia nesses programas.
O governo federal também deve assumir, como prioridade, envolver
representações da sociedade civil nas discussões sobre a “plataformi-
zação” das políticas públicas em áreas diversas como saúde, educação,
assistência social e lazer, bem como sobre as ferramentas adequadas para
dar à população o acesso a esses direitos e à proteção de dados pessoais,
tendo como pilar o respeito a todas as diversidades, de raça, gênero, etnia
e territorialidade.
As discussões – necessárias – em torno da regulação das plataformas
digitais ofuscaram, por enquanto, os debates sobre a Regulamentação dos
Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 52.795/1963) – reivindicação histó-
rica da sociedade civil. É fundamental que se retome esse debate, inclusive
para que se condicione a renovação das outorgas de radiodifusão à reali-
zação de audiências públicas e à avaliação do cumprimento da legislação
em vigor e dos contratos de concessão, durante o período de exploração
do serviço, com a perda da licença, em caso de descumprimento. E que
um novo Ministério das Comunicações cumpra o seu papel de fiscalizar as
empresas de radiodifusão.
Ainda sobre a radiodifusão e a inibição necessária do “coronelismo ele-
trônico”, propõe-se que o Estado brasileiro cumpra a vedação constitucional
de que políticos em exercício de mandato sejam concessionários de serviços
de radiodifusão (Art. 54), estendendo na legislação a vedação também a
seus familiares.
Em tempos de disseminação de discursos de ódio e desinformação, vale
uma atenção especial à criação de campanhas educativas, a serem elabo-
radas pelo MiniCom, para orientar a sociedade sobre os limites da liberdade
de expressão, evitando que violações ocorram sob o pretexto desse direito.
Nesse sentido, é importante também que o governo se comprometa a não
alocar verbas públicas em programas de rádio e TV que violem direitos
humanos, como os programas policialescos.
A educação para a mídia, do mesmo modo, não deve ficar de fora.
Recomendamos que a Educomunicação seja contemplada nas diferentes
áreas do Poder Executivo, incluindo a leitura crítica da mídia nas escolas,

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

estimulando a formação de um público apto a questionar os conteúdos


midiáticos, em geral, e jornalísticos, em particular, além dos modelos de
negócios dos meios de comunicação e das plataformas digitais.
Depois de quatro anos de aumento de violência contra comunicado-
res(as), é importante que o Estado brasileiro fortaleça as políticas de apura-
ção e recebimento de denúncias de violência praticada contra jornalistas e
demais trabalhadores(as) da área durante o exercício da sua atividade profis-
sional, como o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos,
Comunicadores e Ambientalistas.

“O novo sempre vem”?

A vitória Lula, e sua “frente ampla”, veio com o prenúncio, desde os pri-
meiros discursos, de que o governo iria trabalhar para toda a população, e
não apenas para a maioria que o elegeu. Isso já demonstrava que os ares
republicanos estavam de volta aos parques e ruas brasileiras. O processo
de transição, com a organização de grupos de trabalho congregando espe-
cialistas em vários setores, como os ligados à radiodifusão, às telecomuni-
cações, à regulação da internet, às políticas culturais e às de comunicação
pública e comunicação comunitária, por exemplo, foram fundamentais para
a geração de documentos que poderiam nortear as necessárias políticas
para tais setores.

Lula sobe a rampa do Palácio do Planalto no dia 1º de janeiro de 2023. Crédito: Tânia Rego/Agência Brasil.

Além disso, a revogação de ações do governo Bolsonaro, como o decreto


que permitia maior acesso da população às armas, o sigilo em torno das
informações públicas e as medidas voltadas à privatização dos Correios,
da EBC e do Conab, por exemplo, e, ainda, o retorno às atividades de con-
selhos de participação social foram determinantes para a instauração das
condições objetivas para a volta da população aos fóruns de debate sobre
a gestão do Estado.
A formação dos ministérios, mesmo que sem a esperada paridade de
gênero e com sub-representatividade da população negra (ainda que nunca
tenhamos tido tantas mulheres e negros/as em posição de primeiro escalão),
demonstrou um aceno aos ideários históricos do Partido dos Trabalhadores,
com o retorno de ministérios como os da Igualdade Racial, das Mulheres e
da Cultura e, ainda, a criação do Ministério dos Povos Originários.
Mas há muito por fazer. Quando a asfixia da democracia denunciava
uma “página infeliz da nossa história”, à luz do dia, as redes privadas de

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

radiodifusão contraditoriamente sustentaram, e ainda continuam susten-


tando, a sanha destruidora das liberdades de expressão e de imprensa,
com a reiterada exibição de programas policialescos e o apoio à projeção
de apresentadores transgressores dos direitos humanos. Eles permanecem
realizando linchamentos públicos da população pobre e negra, sob o abrigo
de palanques eletrônicos, digitais e virtuais, condutores a vagas em câmaras
municipais, assembleias legislativas e ao Congresso Nacional.
Também notamos que, apesar da eleição de mulheres, parlamentares
negros e LGBTQIA+ notadamente do campo progressista, o Congresso
Nacional ainda é composto, quase que majoritariamente, por segmentos
fundamentalistas, armamentistas e ligados ao agronegócio. E é com tais
bancadas que o governo vai ter que negociar em várias instâncias.
Diante de tal cenário, a defesa intransigente da comunicação como um
direito humano vai exigir qualificação, construção de novas estratégias,
vontade política, escuta e diálogo das forças progressistas que compõem o
Executivo Nacional com movimentos sociais que se articulam com a popu-
lação e que devem contribuir com pressão social para o avanço da pauta
da comunicação. Algo que, pelo menos nos primeiros 100 dias de governo,
ainda não foi alcançado.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

Recomendações

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

TELECOMUNICAÇÕES E INTERNET

01 Recomenda-se ao Estado brasileiro a garantia do acesso à internet


a toda a população, de forma gratuita, como política de Estado, para
universalizar o direito à conectividade digital.

02 Recomenda-se que o Poder Executivo amplie programas de


inclusão digital para populações de baixa renda, em espaços públicos,
especialmente escolas, bibliotecas e centros comunitários, incorporando a
temática da educação em direitos humanos nesses programas.

03 Recomenda-se que o Poder Executivo garanta que os recursos


do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust)
sejam repassados a estados, Distrito Federal e municípios, conforme o
que estabelece a Lei nº 14.172/2021, para que se oferte acesso à internet e
dispositivos digitais a estudantes e professoras/es de escolas públicas da
rede básica de educação.

04 Recomenda-se que o Poder Executivo crie um órgão similar à


antiga Telebrás, cuja função seja a de instrumento público de garantia da
universalização do acesso à internet.

05 Recomenda-se que o Estado brasileiro tenha rigor na fiscalização


do cumprimento do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), para
efetivar o direito de acesso à internet a todas as pessoas, além de garantir
a neutralidade de rede em todos os serviços, incluindo a proibição do zero
rating por operadoras e empresas de tecnologia.

06 Recomenda-se que o Poder Executivo incentive, por meio de


políticas públicas, a autorização de licenças para a instalação de redes
locais e comunitárias de internet, sobretudo em comunidades tradicionais
e áreas periféricas, garantindo assessoria técnica gratuita para os territórios
e contribuindo com a sustentabilidade de pequenos provedores locais de
internet.

07 Recomenda-se que o Estado brasileiro garanta a ampla participação


da sociedade civil em consultas livres e prévias, visando à definição das
metas do 5G, da Inteligência Artificial (IA), da “internet das coisas” e de
outras políticas que impactam o acesso à internet.

08 Recomenda-se que o Poder Executivo assuma como prioridade


envolver representações da sociedade civil nas discussões sobre a
“plataformização” das políticas públicas para a internet, tendo como pilar
o respeito a todas as diversidades, o direito de acesso pleno à internet e o
direito à proteção dos dados pessoais.

09 Recomenda-se ao Sistema de Justiça brasileiro a criação de


mecanismos contra as violências de gênero e raça praticadas por meio da
internet, coibindo perseguições, ameaças, invasão de privacidade, entre
outras formas de violência, conforme o já previsto na legislação brasileira, e

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

que se aplica também à internet.

10 Recomenda-se aos Poderes Executivos, em âmbito federal e


estadual, como Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania e secretarias estaduais de Segurança
Pública, que capacitem agentes estatais para acolher as vítimas de
violência de gênero e raça on-line, criando canais oficiais de recebimento
de denúncias, além de produzir dados estatísticos sobre violência on-line.

11 Recomenda-se a criação de leis, pelos Poderes Legislativos e


Executivos, de forma tempestiva, para coibir a disseminação de discursos
de ódio na internet por agentes públicos, sempre ouvindo a sociedade
civil, inclusive para evitar campanhas de ódio por canais institucionais ou
pessoais na internet.

12 Recomenda-se aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, nos


três níveis federativos, que apoiem a difusão de estratégias de alfabetização
digital, uso crítico da internet e segurança digital destinada a grupos
vulnerabilizados e incentivem iniciativas de formação que dialoguem com
a academia e entidades da sociedade civil, e não com big techs.

13 Recomenda-se ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo envolver


a sociedade civil nas discussões sobre o Projeto de Lei nº 2630/2020, o
chamado “PL das Fake News”, que pode ser um marco decisivo na regulação
das plataformas digitais e no enfrentamento da desinformação no Brasil,
desde que utilizando parâmetros construídos há anos por entidades do
campo da Comunicação como Direito, como a Coalizão Direitos na Rede
(CDR), que representa cerca de 50 organizações, no intuito de regular
sem ferir a privacidade, a proteção de dados pessoais e a liberdade de
expressão de usuários/as.

14 Recomenda-se ao Estado brasileiro a instituição de um amplo


debate envolvendo sociedade civil, empresas de tecnologia, universidades
e órgãos públicos com vistas à formulação de políticas públicas que
coíbam os monopólios e oligopólios digitais, regulem o mercado de dados
pessoais e favoreçam o pluralismo e a diversidade na internet.

15 Recomenda-se que o Estado brasileiro invista no fomento


ao desenvolvimento de tecnologias não proprietárias brasileiras, em
especial aquelas que objetivem facilitar o acesso a políticas públicas e
ao desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da extensão, e que tenham
como princípio a justiça socioambiental e o respeito aos dados pessoais
enquanto direito fundamental.

16 Recomenda-se que o Estado brasileiro invista no desenvolvimento


de data centers com base nacional, a partir da criação de um programa com
esta finalidade junto às universidades e institutos federais de educação.

17 Recomenda-se ao Poder Judiciário, ao Poder Legislativo e aos


órgãos de fiscalização que desenvolvam instrumentos para garantir que
os sites registrados no Brasil e as plataformas digitais sejam acessíveis a
pessoas com deficiência.

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

18 Recomenda-se que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados


investigue se entes públicos e privados cumprem com o que prevê a Lei
Geral de Proteção de Dados, no que diz respeito à proteção dos dados
pessoais e à privacidade de todas as pessoas.

19 Recomenda-se que o Poder Executivo resguarde o Comitê


Gestor da Internet (CGI.br) em suas autonomia e viabilidade financeira,
garantindo-lhe condições de funcionamento adequadas e independentes
de ingerências externas, com participação paritária e multissetorial.

RADIODIFUSÃO

01 Recomenda-se que o Poder Executivo cumpra o Regulamento


dos Serviços de Radiodifusão (Decreto nº 10.405/2020) e condicione a
renovação das outorgas de radiodifusão à realização de audiências públicas
e à avaliação do cumprimento da legislação em vigor e dos contratos de
concessão durante o período de exploração do serviço, com a perda da
licença em caso de descumprimento.

02 Recomenda-se que o Estado brasileiro cumpra a vedação


constitucional de que políticos em exercício de mandato sejam
concessionários de serviços de radiodifusão (Art. 54), estendendo na
legislação a vedação também a seus familiares.

03 Recomenda-se a alteração do Regulamento de Sanções


Administrativas, pelo Ministério das Comunicações, a fim de prever
punições gradativas às emissoras de radiodifusão que descumprirem suas
obrigações, inclusive violarem direitos humanos, difundirem desinformação
ou propagarem discursos de ódio, estabelecendo penas mais altas em
caso de reincidência.

04 Recomenda-se ao Poder Legislativo Federal que, por meio de um


debate público amplo, envolvendo os diferentes segmentos da sociedade
brasileira, avance na formulação de uma lei que volte a coibir a proibição
dos arrendamentos e transferências de outorgas de radiodifusão, incluindo
as que envolvam igrejas e organizações religiosas. Caso essa prática seja
identificada, recomenda-se ao Estado brasileiro a retomada da outorga e a
abertura de novo processo de licenciamento.

05 Recomenda-se ao Estado brasileiro aprovar uma nova legislação


para a radiodifusão, ouvindo a sociedade civil, para que se limite o número
de concessões por grupos econômicos, proibindo, ainda, a formação de
monopólios e oligopólios de mídia, fazendo cumprir a Constituição Federal
do Brasil (Art. 223), além de instaurar uma “autoridade independente” de
composição multissetorial, responsável por analisar possíveis violações.

06 Recomenda-se que os órgãos competentes fiscalizem os


conteúdos dos programas de rádio e TV, sobretudo os chamados
“policialescos”, por reconhecidamente violarem direitos e previsões legais,

91
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

e apliquem as sanções e responsabilizações cabíveis, cobrando promoção,


proteção e reparação de direitos humanos.

07 Recomenda-se que as empresas de radiodifusão revejam


conteúdos, critérios e formatos de programas “policialescos”, tendo como
parâmetro o respeito aos direitos humanos, à diversidade, às instituições
democráticas e à inclusão, de modo a reformular o gênero “programa
policial”, inclusive, promovendo formações internas para todos os/as
profissionais do setor sobre direitos humanos.

08 Recomenda-se que o Estado brasileiro construa, junto com


representações da sociedade civil, normas que explicitem as políticas de
fiscalização e apuração das violações de direitos humanos praticadas pelos
concessionários de radiodifusão; crie espaços colegiados multissetoriais
independentes que contribuam no acompanhamento de conteúdos;
instaure canais de denúncias a respeito de violações; publicize, de forma
ampla e transparente, as sanções aplicadas às empresas; e estimule boas
práticas entre as emissoras.

09 Recomenda-se aos órgãos públicos municipais, estaduais e


federais, bem como às empresas e autarquias a estes ligadas, não veicular
publicidade institucional, nem de utilidade pública, em programas que
violem direitos humanos, seja como cota de patrocínio, seja nos intervalos
comerciais ou por meio de merchandising.

10 Recomenda-se às empresas privadas não concederem verbas,


auxílios, patrocínios ou subvenções de qualquer espécie ou sob qualquer
pretexto a veículos de comunicação que divulguem, de forma recorrente
em sua programação, condutas, discursos, práticas ou situações contrárias
aos direitos humanos.

11 Recomenda-se que o Conselho Nacional do Ministério Público


(CNMP) oriente os órgãos estaduais a abrirem ações relativas à veiculação
da publicidade de órgãos públicos e empresas estatais em programas
violadores de direitos humanos, seja como cota de patrocínio, seja nos
intervalos comerciais ou por meio de merchandising.

12 Recomenda-se que o CNMP oriente os Ministérios Públicos


estaduais a instaurarem inquéritos civis e públicos para analisar denúncias
de veiculação de programas de rádio e TV que violarem direitos humanos,
bem como a adoção de providências legais pertinentes à responsabilização
das emissoras e o ajuizamento de ações de reparação de danos morais
coletivos eventualmente ocorridos.

13 Recomenda-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) oriente


os órgãos do Poder Judiciário sobre o julgamento prioritário de ações
sobre violações de direitos humanos na mídia e a aplicação de sanções
administrativas e multas dissuasivas de forma célere.

14 Recomenda-se à Defensoria Pública da União (DPU), dos estados


e do Distrito Federal que proponham ações judiciais contra concessionários
de radiodifusão que eventualmente provocarem dano moral coletivo, para

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

assegurar indenização e/ou “direito de resposta” pelos agravos, nos casos


de violação de direitos humanos, assim como em outros casos de violações
que venham a ocorrer.

15 Recomenda-se que as empresas de radiodifusão e suas entidades


representativas exerçam a sua responsabilidade social, respeitando os
direitos humanos e cumprindo a legislação vigente.

16 Recomenda-se às empresas de radiodifusão que instituam e


consolidem políticas de ações afirmativas para grupos historicamente
sub-representados, visando à ampliação da diversidade em seus produtos
(jornalismo, entretenimento, educação etc.) e à construção de um ambiente
social menos violento e discriminatório contra estes grupos.

17 Recomenda-se ao Estado brasileiro que implemente políticas de


incentivo à garantia da diversidade e do pluralismo na programação das
emissoras de radiodifusão, em consonância com o previsto no Capítulo V
da Constituição Federal de 1988.

COMUNICAÇÃO PÚBLICA E COMUNITÁRIA

01 Recomenda-se que o Estado brasileiro garanta o pleno


funcionamento da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no sentido
de ser reestruturada materialmente e de cumprir seu papel de empresa
pública, com orçamento adequado e respeito às estruturas de gestão que
viabilizem sua independência e autonomia, incluindo aí a reestruturação e
o restabelecimento das funções do Conselho Curador da EBC, cassado em
2016.

02 Recomenda-se que o Estado brasileiro respeite as recomendações


das entidades da sociedade civil que reivindicam “enegrecer a EBC”,
no sentido de ampliar a participação de pessoas negras e pardas nas
diversas funções do órgão, inclusive nos cargos de gestão e nas decisões
estratégicas.

03 Recomenda-se às diferentes esferas do Poder Executivo criar


uma política de financiamento e apoio às mídias populares, comunitárias e
alternativas, com editais públicos e fomento à criação e ao desenvolvimento
de novos meios.

04 Recomenda-se ao Poder Legislativo a regulamentação, em


definitivo, do Art. 223 da Constituição Federal, delimitando percentuais
equivalentes entre os sistemas público, privado e estatal na radiodifusão
e garantindo autonomia, financiamento e mecanismos de participação
popular no sistema público.

05 Recomenda-se que o Poder Judiciário determine o acesso à


Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, como medida
necessária para garantir estabilidade e continuidade dos serviços
desempenhados pela EBC.

93
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

06 Recomenda-se que o Poder Legislativo estabeleça uma nova lei


de fomento à comunicação pública, com financiamento obtido a partir da
cobrança de taxas a empresas que operam no sistema comercial e em
outros sistemas de exploração do serviço audiovisual, do pagamento de
outorgas pelas emissoras privadas, de recursos advindos da Contribuição
de Intervenção de 3% sobre a receita obtida com publicidade veiculada
nas emissoras privadas, além de garantir recursos à comunicação pública
provenientes da publicidade oficial.

07 Recomenda-se que o Ministério Público Federal, no uso de suas


prerrogativas, combata a utilização dos veículos públicos para proselitismo
político e religioso, garantindo a autonomia deste sistema de comunicação.

08 Recomenda-se ao Poder Legislativo a reforma da Lei nº 9.612/1998,


a partir de amplas consultas às rádios comunitárias, visando principalmente
à redução das barreiras para a autorização e para o funcionamento das
mesmas e à ampliação dos mecanismos de fomento e fortalecimento do
setor.

09 Recomenda-se ao Estado brasileiro apoiar as rádios comunitárias,


com a criação de um fundo para distribuição de verbas destinadas a
oferecer todo tipo de suporte necessário ao seu pleno funcionamento.

10 Recomenda-se ao Estado brasileiro – especialmente o Poder


Executivo federal, dos estados e municípios – que promova iniciativas
para a garantia de sustentabilidade das rádios comunitárias, fortalecendo-
as enquanto expressão popular do direito à comunicação, e não como
moedas de troca político-eleitoral, a exemplo de editais, prêmios e outras
iniciativas de valorização de rádios comunitárias.

11 Recomenda-se que o Poder Executivo garanta apoio técnico e


atue para simplificar a documentação necessária no caso de solicitações
de rádios comunitárias em territórios indígenas, quilombolas e de outros
povos e comunidades tradicionais.

12 Recomenda-se que o Poder Executivo incentive o financiamento


público para a criação de iniciativas de comunicação plurais e diversas,
sobretudo geridas por instituições da sociedade civil, em áreas consideradas
“desertos de notícias”.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO

01 Recomenda-se que o Estado brasileiro escute as representações


da sociedade civil e as entidades de direitos humanos quando buscar
leis e dispositivos para combater a proliferação de discursos de ódio, a
disseminação de desinformação e os crimes cometidos na internet, a
fim de não implementar ações limitadoras ao exercício da liberdade de
expressão, entendendo, ainda, que o Poder Judiciário possui meios para

94
DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

aplicar a legislação vigente, sempre considerando o necessário equilíbrio


entre a liberdade de expressão e os demais direitos humanos.

02 Recomenda-se que o Poder Executivo, em especial a Secretaria


de Comunicação Social da Presidência da República e o Ministério dos
Direitos Humanos, crie campanhas educativas explicando os limites da
liberdade de expressão, informando à sociedade que discursos de ódio e
violações de direitos humanos não podem ser justificados em nome dessa
liberdade, já que os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes.

03 Recomenda-se que os departamentos de comunicação de


Instituições de Ensino fortaleçam suas disciplinas de Ética no Jornalismo,
discutindo casos atuais sobre violações de direitos na mídia, à luz das leis
vigentes, da Constituição Federal e do Código de Ética dos Jornalistas
Brasileiros, a fim de preparar os/as futuros/as comunicadores/as.

04 Recomenda-se que o Estado brasileiro respeite as obrigações


internacionais a respeito dos direitos humanos, determinadas nos tratados
dos quais é signatário, e garanta a efetividade dos dispositivos previstos
no artigo 5º da Constituição Federal, que dizem respeito ao direito à livre
manifestação e associação.

05 Recomenda-se que o Estado brasileiro investigue e puna os


responsáveis por casos de violência e perseguição a comunicadores/
as e defensores/as de direitos humanos, assim como ofereça proteção
imediata às vítimas de ameaças, mantendo e fortalecendo os programas
de proteção.

06 Recomenda-se o monitoramento e a notificação, pelo Supremo


Tribunal Federal (STF), de casos de violência política e opressão ao livre
direito de expressão dos cidadãos e cidadãs, sobretudo em períodos
eleitorais, encaminhando-os às autoridades e órgãos competentes.

07 Recomenda-se que o Poder Judiciário e os órgãos de fiscalização


acolham e encaminhem as denúncias da sociedade civil organizada sobre
violações à liberdade de expressão ocorridas nas redações de empresas
jornalísticas ou no ambiente digital, garantindo-se sanções às práticas de
censura e reparações aos/às profissionais.

08 Recomenda-se ao Estado brasileiro o reconhecimento da


constitucionalidade do Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que preza pela irrestrita liberdade de expressão de todas as
pessoas, incluindo a dos/as jornalistas em seu exercício profissional dentro
e fora das redações de grupos de mídia.

LIBERDADE DE IMPRENSA

01 Recomenda-se aos/às jornalistas e demais profissionais da


comunicação que, quando forem vítimas de censura interna nas redações,

95
INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

formalizem denúncias aos sindicatos de jornalistas nos estados ou regiões


ou à Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas
(Fenaj).

02 Recomenda-se que o Sistema de Justiça brasileiro atue na


apuração, na reparação e na possível punição quando houver cerceamento
da liberdade de imprensa por parte de entes públicos ou privados,
incluindo parlamentares ou gestores públicos, acolhendo e encaminhando
denúncias recebidas pelo Observatório Nacional da Violência contra
Jornalistas e Comunicadores, órgão vinculado ao Ministério da Justiça.

03 Recomenda-se que o Estado brasileiro instaure canais oficiais para


a apuração e o recebimento de denúncias de violência praticada contra
jornalistas e demais comunicadores/as durante o exercício da sua atividade
profissional, entendendo que a violação da liberdade de imprensa abala
um dos pilares da democracia.

04 Recomenda-se que o Estado brasileiro reconheça a atuação da


comunicação comunitária e da mídia independente como essenciais à
democracia, as quais, portanto, devem ter direito ao exercício pleno da
liberdade de imprensa.

05 Recomenda-se que o Estado brasileiro, em diálogo com as


entidades representativas dos/as jornalistas, elabore e implemente uma
legislação que garanta a liberdade de expressão e de imprensa dos/as
jornalistas face ao crescimento da prática de assédio judicial que visa à
intimidação dos/as profissionais. Que tal legislação, além de salvaguardar
o direito dos/as profissionais, promova a juntada de processos e seja capaz
de impedir, quando for o caso, a adoção de indenizações superiores aos
ganhos salariais dos réus.

EDUCAÇÃO PARA A MÍDIA

01 Recomenda-se, às diferentes esferas do Poder Executivo,


contemplar a Educação para a Mídia, englobando a leitura crítica da mídia
nas escolas, estimulando a formação de um público apto a questionar os
conteúdos midiáticos, em geral, e jornalísticos, em particular, a que tem
acesso, assim como os modelos de negócios dos meios de comunicação
e das plataformas digitais.

02 Recomenda-se aos Poderes Executivos que invistam em programas


curriculares e extracurriculares nas escolas municipais e estaduais para a
criação de canais de comunicação internos, envolvendo corpo docente e
alunos/as, investindo numa comunicação decolonial, antirracista e laica,
com respeito a todas as diversidade.

03 Recomenda-se aos Poderes Executivos que insiram, nas escolas


municipais e estaduais, assim como nas instituições de ensino superior e
técnico, o tema da desinformação nas grades curriculares, a fim de educar
a sociedade para combater discursos e conteúdos intencionalmente

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DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2022

manipulados para alterar conceitos, informações e orientações, inclusive


sobre saúde pública.

04 Recomenda-se aos Poderes Executivos que insiram, nas escolas


estaduais e municipais, em suas atividades curriculares, a realização de
oficinas teórico-práticas para orientar crianças e adolescentes no uso de
perfis em redes digitais e em aplicativos de mensageria no que diz respeito
ao combate de discurso de ódio, ao cuidado com o vazamento de dados
privados e à prevenção do negacionismo científico.

05 Recomenda-se que as universidades federais invistam, sobretudo


nos cursos de Comunicação, em disciplinas voltadas à preparação de
estudantes acerca da importância da leitura crítica da mídia/ educação
midiática, como parte das suas grades curriculares.

06 Recomenda-se que o poder público, especialmente os órgãos


dos Executivos nacional, estaduais e municipais, acolha propostas de
educação para a mídia das universidades e entidades da sociedade civil
independentes em detrimento de programas das próprias plataformas
digitais, que, inclusive, podem atuar com base em conflitos de interesse.

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INTERVOZES | COLETIVO BRASIL DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

Sobre as autoras e o autor

Alex Pegna Hercog - É baiano, comunicador social e integrante do


Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Ana Maria Conceição Veloso - É jornalista, professora do Centro de


Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Integrante
do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Eduardo Amorim - É jornalista, doutor em Comunicação pela


Universidade Federal de Pernambuco e integrante do Intervozes – Coletivo
Brasil de Comunicação Social.

Iago Vernek Fernandes - É professor da rede pública e membro do


Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Iury Batistta - É pesquisador, mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela


Universidade Federal da Bahia e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de
Comunicação Social.

Mabel Dias - É jornalista feminista, mestra em Comunicação pela


Universidade Federal da Paraíba e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil
de Comunicação Social.

Mônica Mourão - É jornalista, professora do Departamento de


Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e integrante
do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Nataly Queiroz - É jornalista, doutora em Comunicação, professora


universitária e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação
Social.

Patrícia Paixão de O. Leite - É jornalista, doutora em Comunicação pela


Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora no campo do Discurso,
Mídia e Decolonialidade e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de
Comunicação Social.

Paulo Victor Melo - É professor e pesquisador de Políticas de


Comunicação em universidades no Brasil e em Portugal. Integrante do
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Ramênia Vieira - É jornalista e integrante da Coordenação Executiva do


Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Raquel Baster - É jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade


Federal da Paraíba e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de
Comunicação Social

Sheley Gomes - É cientista política pela Universidade de Brasília (UnB)


e mestranda em Mídia e Estudos de Área pela Charles University Praga.
Integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Viviane Tavares - É jornalista e integrante da Coordenação Executiva do


Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

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