Diário de Uma Criança Durante A Grande Guerra
Diário de Uma Criança Durante A Grande Guerra
Diário de Uma Criança Durante A Grande Guerra
(1914-1918)
Estamos em 1914. Rose vive no norte de França, numa zona invadida pelo exército alemão,
e tem de atravessar o país para se refugiar no Sudoeste.
♦♦♦♦♦
1 de julho de 1914
Chamo-me Rose…
Fiz hoje 9 anos e resolvi começar a escrever o meu diário. A minha professora disse que a
melhor forma de nos prepararmos para o ditado e para a redação do exame era escrever um pouco
todos os dias. Vou tentar.
2 de julho de 1914
Embora venha a ser, de certeza, a única pessoa a ler este diário, vou apresentar-me. Chamo-
me Rose, tenho um irmão mais velho, o Jean, e um outro mais novo, o René. Moramos em Lens,
numa rua de casas todas iguais. A nossa casa, como todas as outras, pertence à Companhia das Minas
de Lens, onde o meu pai trabalha como empregado de escritório.
A nossa mãe nasceu numa quinta em Meurchin, a uma dezena de quilómetros de Lens. De
vez em quando, fazemos uma visita aos nossos avós maternos. A nossa avó paterna vive connosco.
Quando tirar o meu curso, poderei vir a trabalhar num escritório como o meu pai. A minha mãe diz
que, quando eu for grande, vou casar-me e ocupar-me da casa e dos filhos, como ela. Mas eu vi que
havia mulheres a trabalhar com o meu pai e que a tia Jeanne, a irmã da minha mãe também trabalha.
Então, porque não hei de eu trabalhar também?
A mobilização
1 de agosto de 1914
2 de agosto de 1914
Às 3 e meia da tarde, os sinos começaram a tocar com força. A minha mãe disse: «Estão a
tocar a rebate. Deve ser algo grave». Fui com ela à câmara e vimos a ordem de mobilização geral
afixada. Quando voltámos para casa, o meu pai já lá estava. Tinha nas mãos uma guia de marcha,
que o carteiro acabava de entregar. No domingo, tem de se apresentar em Béthune, para se juntar
ao seu regimento.
3 de agosto de 1914
Li no jornal a seguinte frase: «Mobilização não é guerra.» A minha mãe disse ao meu pai que
talvez não chegasse a haver guerra, mas ele sacudiu os ombros, enquanto virava costas. Atrevi-me a
perguntar-lhe por que motivo era preciso fazer uma guerra. Ele olhou-me nos olhos e disse que
ninguém podia explicá-lo. A guerra era um dever que tinha de ser cumprido.
4 de agosto de 1914
A Alemanha declarou-nos guerra ontem! De tarde, o meu pai vestiu o fato de domingo,
pegou na mala que a minha mãe lhe preparou e fomos acompanhá-lo à estação. Pelo caminho,
cruzámo-nos com muitas famílias iguais a nós, e alguns pais já levavam a farda vestida. No cais,
havia uma multidão imensa e muito barulho. Depois do comboio partir, ficou tudo em silêncio.
5 de agosto de 1914
Este é o primeiro serão sem o meu pai. Não consigo perceber o porquê desta guerra. O Jean
é o único que não parece triste e explica-me que estamos ao lado dos Russos e dos Ingleses contra
os Austríacos e os Alemães. Sobretudo contra estes. A minha mãe disse que todos os exércitos
tinham armas tão poderosas que a guerra não poderia durar muito, o que me tranquilizou um pouco.
O meu pai recomendou-me que lesse o jornal todos os dias para encontrar respostas para as
minhas perguntas. Fiquei a saber que a Inglaterra declarou guerra à Alemanha. Segundo diz o Jean,
isso é bom, porque as tropas inglesas vêm acompanhadas de faquires das Índias. Os faquires podem
atravessar arame farpado sem se ferirem e até comer as balas dos alemães. Tudo isto me parece
muito estranho. Nunca se sabe se o Jean está a falar
verdade.
6 de agosto de 1914
9 de agosto de 1914
12 de agosto de 1914
Pobre mãe: tem de ocupar-se de tudo! Eu ajudo-a o mais que posso. O Jean passa o dia a
lamentar-se por ser demasiado novo e não poder alistar-se para ir “defender a civilização contra os
bárbaros”, como ele diz. A minha avó, que normalmente não para de dar ordens a toda a gente,
passa o dia a rezar, de terço na mão. A tia Jeanne veio ver-nos e pediu ao Jean que parasse com os
seus discursos e que ajudasse a família, em vez de se armar em fanfarrão. E está cheia de razão!
18 de agosto de 1914
Normalmente, a minha mãe proíbe-nos de sairmos, mas hoje, enquanto foi às compras, fui
dar uma volta. Passei diante da minha escola, que está transformada em enfermaria, e vi homens
feridos à espera no pátio: uns sentados sobre palha, outros deitados em macas. Pareceu-me ver o
meu pai, mas não era ele. Há duas semanas que partiu e que estamos sem notícias dele.
O Jean levou-me a ver um desfile de soldados que vão para a frente de batalha: vi cavaleiros
magníficos, soldados marroquinos e uma companhia de militares montados em bicicletas. Ao longe,
ouviam-se tiros de canhão.
12 de setembro de 1914
Esta manhã, por volta das sete horas, fomos acordados por um ruído horrível. A casa em
frente à nossa desmoronou-se. Agora, já só resta uma parede.
4 de outubro de 1914
A noite passada, o Jean veio acordar-me e, da janela, vimos cavaleiros armados de lanças a
deslizarem como sombras. Avançavam pelas ruas desertas, sem fazer barulho. Mais tarde, pela
manhã, os soldados alemães chegaram. Batiam a todas as portas e, se ninguém respondia, entravam
nas casas e nas lojas e saíam carregados com todo o tipo de coisas.
14 de outubro de 1914
Estou a escrever de Paris! Depois da chegada dos Alemães, a minha mãe e a tia Jeanne
decidiram que devíamos partir. A minha mãe reuniu roupa e tudo o que tivesse valor, como talheres
de prata e joias. Juntámo-nos a uma coluna de refugiados belgas e uma família até quis levar a minha
avó e o René na carroça. Pelo caminho, dormimos em casas abandonadas. Chegámos esgotados a
casa da nossa tia-avó Louise.
17 de outubro de 1914
Andei a passear em Paris com o Jean e cruzámo-nos com uma multidão de gente! As ruas
estão cheias de carros e o rio Sena é tão largo que mal se veem as pessoas na outra margem.
27 de outubro de 1914
Estamos instalados numa nova casa, em Gers, muito longe de Lens e de Paris. Desta vez,
pudemos apanhar um comboio, que estava repleto de refugiados como nós. Não podíamos ficar em
Paris, porque não havia lugar em casa da tia Louise. Então, ela recomendou-nos a uma amiga que
podia acolher-nos.
Enquanto a minha mãe nos foi registar n câmara, a amiga da minha tia, a Senhora de
Laubadère, ajudou-nos a instalar na sua casa magnífica. Reservou um andar só para nós, onde cada
um tem o seu quarto!
28 de outubro de 1914
O carteiro trouxe-nos as primeiras notícias do meu pai. Vejo que faz os possíveis por nos
sossegar.
30 de outubro de 1914
Dormi até ao meio-dia. A Senhora de Laubadère deu-me uma tesourinha para colher os
últimos cachos de uvas. O René passou o tempo todo a olhar para uma fila de patinhos que
caminhavam atrás da mãe pata.
1 de novembro de 1914
12 novembro 1914
A Victorine veio buscar-me esta manhã para irmos apanhar trufas. Fomos para a floresta e
levámos connosco uma porca que, com o focinho, revolvia o solo e desenterrava as trufas. Antes da
guerra, vendiam-se as trufas a 30 francos o quilo. Agora, como os ricos já não podem pagar tanto, o
nosso lucro mal chega aos 40 cêntimos.
25 de dezembro de 1914
É o primeiro Natal que passamos longe da nossa casa e do nosso pai. Na missa, o padre pediu
que rezássemos pelos soldados. Chorei em silêncio, mas acho que ninguém me viu.
14 de fevereiro de 1915
Meus queridos
Há já algumas semanas que não nos mexemos. Não fazem ideia do estrondo que os obuses
fazem. Bombardeamos os Alemães com canhões grandes, que estão escondidos na aldeia vizinha. A
linha da frente fica a três quilómetros da aldeia. As nossas trincheiras distam apenas duzentos metros
das deles. Quem se levantar tem azar!
Beijos para todos.
O vosso pai
3 de março de 1915
Habituei-me bem à minha nova vida. Depois da escola, faço as compras todas da casa e vou
tirar água do poço. Quando o sol se põe, vou buscar erva para os coelhos e depois volto a trazer água
fresca para a ceia. O Vítor ensinou-me a fazer a engorda dos patos: seguram-se entre os joelhos e
mete-se-lhes um funil no bico. Depois, deita-se milho cozido no funil e empurra-se a comida para
dentro da boca do pato com toda a força. Aquilo faz engordar o fígado do pato, e com ele faz-se um
paté muito bom.
9 de maio de 1915
9 de setembro de 19 15
Há já muito que não escrevo por falta de tempo! Durante duas semanas, estivemos a ceifar
o trigo nas searas, juntamente com todos os habitantes da aldeia. Deram-nos foices e tivemos de
ficar dobrados durante horas. Felizmente que alguns operários espanhóis vieram ajudar-nos.
17 de setembro de 1915
22 de setembro de 1915
A Senhora Laubadère é muito simpática. É certo que a nossa companhia também a distrai e
impede-a de ficar a cismar nos dois filhos que foram para a guerra e dos quais não recebe notícias.
Ajuda-nos muito, mas a minha mãe diz que não podemos viver à custa dos outros. Como as nossas
economias já acabaram, vendeu as joias e os talheres.
A minha mãe é tão corajosa! Todas as tardes, vai tratar dos feridos convalescentes na
enfermaria instalada no castelo. A tia Jeanne também dá provas de uma grande energia. Encontrou
trabalho em Toulouse e fabrica pólvora para obuses.
25 de setembro de 1915
O conselho municipal aprovou as verbas para a compra de vestuário quente de Inverno para
os nossos soldados. Tentamos arranjar todos os farrapos que podemos e aproveitamos para fazer
pensos com as tiras. O Jean não gosta deste trabalho porque acha que não é tarefa para um rapaz.
26 de setembro de 1915
Afixaram, na câmara, a lista dos “mortos no campo de honra”, e dos “desaparecidos”. A lista
não para de aumentar. Quando o René me pergunta para onde foram todos aqueles soldados, não
sei que responder.
29 de setembro de 1915
Arranjámos uma grande encomenda para mandar ao nosso pai: caixas de patê, doces, tabaco,
ceroulas e uma camisa de flanela para ele se agasalhar. A minha mãe acrescentou figos secos, porque
ele nunca provou e ela acha que ele que vai gostar.
30 de setembro de 1915
Há quase um ano que chegámos aqui e tenho de fazer um esforço para me recordar da nossa
vida em Lens, tão distante me parece. Agora calço tamancos que um
vizinho me fez, para não gastar os sapatos. A princípio, magoavam-me
um pouco, mas acabei por me habituar. Quando está frio mete-se
palha lá dentro. A Victorine explicou-me que a guerra também veio
alterar muitas coisas na aldeia. Já não há muitos homens, são quase só
mulheres. Como muitos cavalos foram requisitados para o exército,
ficaram apenas alguns para puxar as charruas na altura de lavrar os
campos. Os caçadores partiram e a floresta está cheia de esquilos e de
lebres. O Jean, desde que aprendeu a armar laços para os caçar, passa
lá o tempo. A minha mãe receia que ele um dia encontre um javali…
1 de outubro de 1915
É o meu segundo regresso às aulas; a Menina Clément é a nossa nova professora. Desde que o
noivo morreu que se veste toda de preto. Contudo, na aldeia, dizem que é mais uma “viúva branca”,
porque não teve tempo de se casar. Mete-nos um pouco de medo. Logo no primeiro dia, pediu-nos
que aprendêssemos todos os versos do nosso hino nacional, “A Marselhesa”.
3 de outubro de 1915
Hoje é dia de mercado e vai haver discussão pela certa. Às vezes, os comerciantes juntam
água ao leite e a farinha é cinzenta, cheia de farelo.
Apesar de tudo, temos muita sorte: não passamos nem muito frio, nem muita fome. O meu
primo Charles, que ficou em Lens, está pior do que nós. Parece que têm de comer carne enlatada
que a Cruz Vermelha lhes envia, e que fazem farinha com toda a espécie de grãos que consigam
arranjar, moídos num moinho de café. E já lhes falta o carvão para se aquecerem.
7 de outubro de 1915
O jornal diz que, neste verão, os deputados votaram uma lei para permitir aos soldados virem
trabalhar para junto da família. A minha mãe explicou-me que era preciso gente que soubesse
fabricar armas. O meu pai não é abrangido por esta lei, porque trabalhava num escritório.
14 de outubro de 1915
Que horror! A professora disse-nos que Miss Cavell, uma enfermeira inglesa que tratava dos
feridos, foi fuzilada pelos Alemães, em Bruxelas!
15 de novembro de 1915
O Jean está contente: recebeu um novo episódio das aventuras do seu herói, Marcel Dunot,
o rei dos boxistas, o homem que as balas não queriam, o “derrubador de boches”. Agora que arranjou
amigos da sua idade aqui na aldeia, passa o tempo com eles em vez de ajudar em casa.
24 de novembro de 1915
A Menina Clément pediu que decorássemos um poema de Victor Hugo chamado Glória à
nossa França eterna. Acho-o muito bonito, mas faz-me chorar.
Fico triste sempre que penso no meu pai. No entanto, na última carta que nos escreveu,
contou-nos que tinha amigo que lhe davam coragem para lutar e que o ajudavam a vencer o
desânimo durante os longos momentos de espera.
15 de dezembro de 1915
A nossa professora dá-nos todos os dias uma frase para nos motivar. Hoje, a frase era “O
trabalho é patriotismo, a preguiça é cobardia” e a de ontem era “Fazer os deveres é cumprir o dever.”
3 de janeiro de 1916
A câmara decretou uma nova requisição de cavalos. Vou à praça com a Victorine levar a sua
velha égua ao ferrador. Ainda bem que não a quiseram, pois já coxeia. Assim vai continuar connosco!
5 de fevereiro de 1916
Meu querido diário, sei que te abandono com frequência, mas bem sabes que tenho muito
que fazer em casa! À noite, quando o René está na cama e todos dormem, leio os livros que a
professora me empresta: os contos de Alphonse Daudet e de Guy de Maupassant, e os romances de
Alexandre Dumas e de Victor Hugo, o meu preferido.
20 de fevereiro de 1916
Desta vez, foi o cão de guarda da quinta da Victorine que foi requisitado. Li no jornal que
usavam muito os cães para transportar macas, fazer de sentinela ou levar mensagens. Acompanhei
a minha amiga até à câmara e vimos partir todos aqueles pobres animais presos por trelas. Alguns
uivavam. Sinto-me incapaz de confortar a Victorine. O cão tinha a mesma idade que ela. Agora vai
ter medo da noite, porque vive sozinha com a mãe numa quinta muito grande.
27 de fevereiro de 1916
Na encomenda que mandámos ao meu pai, coloquei um cachecol que consegui tricotar
sozinha e uma carta onde lhe contei o que se passa na escola. Falei-lhe da nossa professora e do caso
do cão da Victorine.
10 de março de 1916
O meu pai já respondeu. Explicou-me que os cães são uma boa companhia para os soldados
e que o dele o ajuda a caçar os ratos da trincheira. Pobre pai!
A vida não é nada fácil para ele. Escreveu-nos uma frase que revela bem que é infeliz: “Quem
pode estar contente quando anda sujo, com a barba por fazer, cheio de piolhos, e tem de usar roupa
rota durante duas semanas?”
Espero que ele tenha uma licença em breve.
15 de março de 1916
O jornal diz que se está a travar uma grande batalha à volta de Verdun e cita lugares que nos
são desconhecidos como se toda a gente os conhecesse. Talvez o meu pai esteja nesta batalha,
embora não possa revelá-lo nas cartas.
12 de abril de 1916
A Menina Clément mandou-nos copiar o apelo de 10 de Abril do general Pétain, que termina
com as palavras “Coragem…Venceremos!”
É pena que a Menina Clément tenha de ir para outra escola. Sabe incutir-nos esperança.
12 de julho de 1916
Sei que ajudas muito a tua mãe e que vais muito bem na escola. Não te preocupes comigo. Com
a ajuda de uns amigos, construí uma cabana com materiais das casas destruídas da aldeia vizinha.
Tem porta, janelas e uma chaminé. Também temos uma mesa e cadeiras.
Já que gostas muito de notícias, aqui te envio mais algumas. Nas trincheiras construímos
abrigos. Para comer temos latas de carne de conserva e guisado de arroz com carne de vaca; bebemos
vinho ou aguardente. E depois há piolhos às dezenas…
Um beijo grande, minha Rose. Passa um bom aniversário com a tua mãe e com os teus irmãos.
O teu pai.
14 de julho de 1916
23 de julho de 1916
26 de julho de 1916
Encontrámos raparigas de uma escola religiosa de Toulouse que vinham ao castelo durante
as férias para serem úteis e ajudar os feridos. Contaram-nos como vivem no pensionato, onde só há
raparigas. Andam de uniforme e as professoras são todas religiosas. Aprendem formação feminina e
a ser obedientes. À despedida, deram-nos a cada uma de nós uma imagem da Virgem Maria, com
uma oração escrita no verso.
5 de agosto de 1916
Chegou o tempo das ceifas. Este ano há de novo operários espanhóis, que vieram ajudar-nos.
O Verão aqui é muito quente e difícil de suportar.
3 de setembro de 1916
O meu pai está em casa! Quando chegou, nem o reconheci, de tal maneira o uniforme estava
coberto de lama. O René começou a chorar e correu a esconder-se. O meu pai passou quase toda a
manhã a lavar-se e nós passámo-la a lavar a roupa dele. Por fim, a farda acabou por recuperar a sua
cor azul-escura. Depois de lavado, o papá apertou-nos a cada um contra o coração, durante longos
minutos.
4 de setembro de 1916
A minha mãe está toda sorridente. Há muito que não a via assim, quase há dois anos! O meu
pai ralha-nos, a brincar, porque estamos a mimá-lo de mais.
5 de setembro de 1916
O meu pai quer que lhe contemos a nossa nova vida. É com dificuldade que esconde a sua
preocupação. Sorri, mas parece distante, perdido nos pensamentos. Enquanto dormia a sesta no
jardim, fiquei a observá-lo durante muito tempo. Queria imprimir o seu rosto na minha memória.
6 de setembro de 1916
O Jean passa o tempo a fazer perguntas sobre a guerra, mas o que o nosso pai lhe conta está
bem longe do que ele imaginara. Parece que os soldados aproveitam qualquer promoção para
abusarem do seu poder.
Um dia, durante uma marcha de treino, alguns soldados caíram na valeta da estrada, sem
forças. O coronel disse que os sacos estavam demasiado pesados e mandou tirar tudo o que não era
do regulamento: as peúgas, as luvas, as proteções do nariz… todas carinhosamente tricotadas.
Depois, ordenou que lhe pegassem fogo.
Penso que o meu pai quis dar uma lição ao Jean e mostrar-lhe que a guerra não é um jogo.
10 de setembro de 1916
Esta manhã, mal o dia acabara de nascer, ouvi passos. Pela janela vi o meu pai a sair de casa
a passos largos. Fui até à cozinha e encontrei a minha mãe a chorar baixinho. Segundo o jornal, os
soldados da frente de combate têm sete dias de licença cada quatro meses. Resta-nos esperar pela
próxima.
1 de outubro de 1916
Outra vez uma professora nova! Chama-se Menina Paulhan e decidiu escrever o nome dos
mortos e dos prisioneiros da aldeia num quadro ornado de bandeiras e coroas de visco.
3 de novembro de 1916
A vitória de Verdun não mudou nada: a guerra continua. O inverno é muito duro e a lareira
não chega para aquecer a casa. É preciso poupar os cavacos porque muita da lenha que temos é
requisitada para o exército.
14 de janeiro de 1917
Acabam de chegar mais feridos. A minha mãe disse que já sou suficientemente crescida para
suportar a visão de todos aqueles soldados. Assim, este domingo acompanhei-a até ao castelo. Os
nossos pobres soldados estão num estado lastimoso: uns sem pernas e sem braços, outros com o
rosto horrivelmente deformado. Chamam-lhes “caras desfeitas”. Tenho de lhes levar água e tudo
aquilo de que possam necessitar. Ao sair do castelo, a minha mãe começou a ficar muito pálida e
desmaiou. As enfermeiras vieram imediatamente em seu socorro.
15 de janeiro de 1917
A minha mãe contou-me que está grávida de quatro meses. É por isso que tem um ar tão
cansado! O René está muito contente por ir ter uma irmãzinha ou um irmãozinho, mas não
conseguimos ficar muito felizes, porque não vemos o fim desta guerra horrível.
11 de fevereiro de 1917
O meu pai está encantado com a notícia. Sente-se muito orgulhoso de ter uma família
grande...
12 de junho de 1917
Nasceu a Louise! Nas últimas semanas, a minha mãe já estava demasiado cansada para se
poder levantar e as irmãs do hospital ajudaram-na muito. Eu nem sequer tive um minuto para
escrever neste diário. Tive de tratar do René, da casa, sem esquecer o meu trabalho escolar. Sinto-
me sem forças para mais nada.
Esta Primavera, no início do mês de abril, os Americanos declararam guerra aos Alemães.
Vão vir combater ao nosso lado.
23 de junho de 1917
O nosso pai nunca mais vai voltar! Estávamos à mesa esta noite quando o guarda florestal e
o presidente da câmara bateram à porta. Mal
entraram, toda a gente percebeu. A minha mãe ficou
branca e ouvi-a dizer entre dentes “Chegou a nossa
vez”. Nunca poderei esquecer as palavras do
Presidente da Junta: “Morto em combate, morto no
campo de honra”. Quando foram embora, a minha
mãe pediu que fôssemos para a cama. Ouvi-a chorar,
embora ela tentasse abafar os lamentos.
26 de junho de 1917
A minha mãe tem o rosto fechado. Não larga a Louise e aperta-a contra o coração. Ninguém
fala, nem sequer o René. Não consigo chorar. Não consigo adaptar-me à ideia de que o meu pai
nunca mais vai voltar.
1 de julho de 1917
Ontem, o carteiro veio entregar-nos uma caixa com os objetos pessoais do nosso pai: o
relógio, a aliança, a insígnia militar e um maço de cartas que nós lhe tínhamos enviado. Estavam
atadas com uma fita, todas dobradas, manchadas e amarrotadas de tanto terem sido lidas.
15 de julho de 1917
Quando regressei do campo com o Jean, a minha mãe estava sentada na cozinha,
adormecida. Uma carta tinha-lhe caído das mãos. Uma carta do nosso pai, a sua última carta…
Meus queridos
A minha secção está na primeira linha. Verdun não me faz esquecer os que me são queridos: é
por vós que combato, meus queridos. Tu, Jean, não acredites nos que te falam de glória e de heroísmo,
porque os jornais estão cheios de mentiras. A verdade é que temos muitas vezes medo. Rose, sei que
posso contar contigo. René, porta-te sempre bem. Tenho pressa de ver a nossa Louise. E tu, minha
mulher, penso sempre em ti porque sei que me amas. Ao teu fiel amor, o meu coração responde da
mesma forma.
O vosso pai.
2 de novembro de 1917
Hoje, não há escola: é o dia dos defuntos. A tia Jeanne chegou de Toulouse para descansar e
falou-nos do seu trabalho. Fabrica pólvora para canhões. Parece que os contramestres dizem
constantemente às operárias: “Um minuto perdido é mais uma morte na frente de combate.” No
entanto, um dia, todas as mulheres fizeram greve para exigirem comida para matar a fome.
Chamaram-lhes «as malucas da fábrica da pólvora», mas elas mantiveram-se firmes e
ganharam. O salário passou de 6 francos para 12. O que só dá para comida e alojamento, de tal modo
subiram os preços.
17 de novembro de 1917
O Jean está doido: quer alistar-se na aviação para matar “os Alemães que nos roubaram o
nosso pai”. A minha mãe nem quer ouvir falar de tal coisa.
20 de novembro de 1917
A minha mãe mandou-me buscar o Jean, que fica cada vez mais no «café», a conversar com
os soldados que regressam da frente e que estão num triste estado! Quando cheguei, um deles,
amputado de uma perna e razoavelmente embriagado, dizia-lhe à parte:
— Vi chegar caloiros como tu, que ao fim de dois dias estavam desiludidos! E tudo isso
porquê? Por causa das emboscadas! Não vês que vamos ficar lá todos até ao último?
O Jean saiu comigo, muito acabrunhado, sem dizer palavra. Ao chegar a casa, fechou-se no
quarto. Percebi que já não sabia o que pensar.
23 de novembro de 1917
Li no jornal o discurso de Clemenceau, o novo Presidente do Conselho.
Espero que a guerra acabe. Já passaram cinco meses desde que soubemos da morte do nosso
pai.
25 de novembro de 1917
O meu primo Charles chegou com a mãe e com o Louis, o irmãozito. Desde o início da guerra
que nunca tinham saído de Lens. Contaram-nos como é a vida na cidade, ocupada pelos Alemães.
A casa deles e todas as outras daquela rua foram destruídas. Toda a gente vive em caves. As crianças
podem sair uma ou duas horas por dia. Há muito pouca coisa para comer. De tempos a tempos,
recebem pacotes de alimentos da Cruz Vermelha.
Um dia, os Alemães obrigaram-nos a ir embora. Em plena noite, embarcaram num comboio
de mercadorias que ia para a Bélgica, atravessaram a Alemanha, a Suíça, e chegaram a França, a
Évian, à beira de um lago magnífico. Uma fanfarra esperava-os na estação. No hotel, a cama estava
coberta com um enorme edredão de plumas… Que rica vida! Pelo contrário, em Lens, parece que os
Alemães roubaram e destruíram tudo. Pergunto-me o que iremos encontrar da nossa bela casa.
25 de dezembro de 1917
Desde que o Charles chegou que passou a haver de novo vida na nossa casa. É um autêntico
moinho de palavras! Já recuperou cor e forças e depressa fez amigos. Na escola, a professora tem
muita dificuldade em mantê-lo sossegado. Aliás, muitas crianças já não vão à escola e ficam a
vaguear pela aldeia.
5 de março de 1918
O jornal diz que os Russos deixaram de combater! O novo líder, Lenine, assinou o armistício
de Brest-Litovsk com os Alemães, que agora vão virar-se contra nós! Mas o armistício não é a paz: é
apenas o cessar dos combates.
21 de março de 1918
Os Alemães foram atacar outra vez a Picardia! Paris está a ser bombardeada por um enorme
canhão, a “Berta Gorda”, instalado numa floresta a mais de 100 quilómetros. Desde os finais de
janeiro que o pão está racionado na capital.
24 de março de 1918
O Jean foi esta manhã alistar-se no regimento. Prometi à minha mãe trabalhar muito para
tirar o curso e poder ajudá-la, caso ele venha ferido.
3 de junho de 1918
18 de junho de 1918
1 de julho de 1918
Parece que a guerra nunca mais vai acabar. Faço hoje 13 anos. A avó quase há um ano que
não fala e a minha mãe chora com frequência: a guerra levou-lhe o marido e, ainda por cima, viu
partir um filho.
15 de setembro de 1918
Tem feito muito calor este verão e muitas pessoas estão exaustas. Os jornais falam de uma
epidemia de “gripe espanhola”. Não sei bem o que isso é, mas parece-me que é uma doença muito
grave.
10 de novembro de 1918
12 de novembro de 1918
A GUERRA ACABOU! Ontem, a notícia rebentou como uma bomba e os sinos tocaram com
toda a força. Toda a gente veio para a rua rir e cantar. O presidente da câmara proibiu os bailes por
respeito aos mortos. À décima primeira hora do dia onze do mês onze foi assinado O ARMISTÍCIO!
Após 1562 dias de guerra!
14 de novembro de 1918
Parece que, em Paris, a multidão saiu à rua durante três dias para festejar a vitória. A minha
mãe decidiu que voltaríamos para a nossa casa. Partimos amanhã, sem sabermos o que vamos
encontrar. Passámos a tarde a passear pela aldeia com a Victorine. Conseguimos não chorar.
25 de dezembro de 1918
Tivemos de parar em Paris porque não há comboio para Lens. A minha tia-avó organizou
um banquete, mas nós estamos um pouco tristes porque o Jean ainda não regressou da frente da
batalha. Ontem vi na rua uma mulher muito elegante. Trazia um vestido curto e na cabeça um
chapéu muito engraçado, que parecia um sino. Toda a gente olhava para ela, mas ela nem se dava
conta.
13 de março de 1919
O Jean foi desmobilizado no dia 15 de fevereiro e está agora connosco em Paris. Veio
diferente. Ontem houve uma manifestação contra a absolvição de Raoul Villin, o homem que matou
Jean Jaurès. Lembro-me de que o meu pai me falou disso, já lá vão 5 anos.
28 de junho de 1919
Cinco anos exatos após o assassinato do Arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo, foi
assinada a paz em Versalhes. Os Alemães tiveram de devolver-nos a Alsácia e a Lorena, e já só têm
um pequeno exército. Têm de nos dar carvão e muito dinheiro, e até os segredos do fabrico de
medicamentos como a aspirina. Seja como for, duvido que possam pagar tudo o que fizeram… Sem
contar com os mortos, que nunca mais voltarão.
30 de novembro de 1920
11 de novembro de 1920
Um soldado desconhecido foi sepultado sob o Arco de Triunfo. Será que lutou contra o meu
pai? Pobre pai! O René quase não se lembra dele e a Louise nunca chegou a conhecê-lo.
15 de novembro de 1920
A Sociedade das Nações esteve reunida em Genebra. Foi o presidente americano, Wilson,
quem teve a ideia. É composta por diplomatas de todos os países e tem por fim impedir uma nova
guerra. Talvez esta guerra seja a última, a “derradeira”, como diz o Jean.
Thierry Aprile
Le journal d’un enfant pendant la Grande Guerre
Paris, Gallimard Jeunesse, 2004
(Tradução e adaptação)