70 Anos Coloridos em Gis

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PREFÁCIO

Quando aceitei o desafio de revisar e complementar esse livro,


juntamente com a minha irmã, não tinha a dimensão da
aventura na qual estava embarcando.
Há 10 anos atrás, ela começou a escrever suas memórias em um
caderno, alimentando o sonho de um dia torná-las públicas em
forma de livro. Enquanto escrevia sobre o seu passado, os anos
foram passando, e o caderno começou a se assemelhar a um
diário. Ao se aproximar a chegada dos seus 70 anos de vida, ela
passou a buscar um escritor que pudesse transcrever sua
história, e eu então me ofereci, como forma de agradecer a ela
por todo amor, entrega e dedicação que sempre ofertou a mim e
a toda a nossa família.
O que vocês irão ler a seguir é a história real de uma mulher
incrível, uma guerreira, que dedica a sua vida em prol das
pessoas que passam pelo seu caminho. Uma mulher que não
mede esforços para ver o sorriso no rosto do próximo, seja um
parente, um amigo, ou mesmo um mero desconhecido.
É uma história linda, e que descreve as suas aventuras e
desventuras ao longo de 70 anos, vividos de uma forma tão
peculiar, que só quem a conhece pode entender.
Entre erros e acertos, sorrisos e lágrimas, eu convido a vocês a
entrarem no mundo dessa personagem, a quem eu dedico tudo
o que está escrito e compartilho toda a minha admiração e
respeito.
Geraldo Giammarino Ottoni
DEDICATÓRIA

Dedico esse livro de memórias, a todos os velhinhos do Serro,


que durante a minha infância me abençoaram. E aos meus
velhinhos da América, que eu cuidei e cuido, pois todas as
bênçãos que eu recebo me vêm através de seus sorrisos.

Gislene Ottoni
SETENTA ANOS COLORIDOS EM GIS

Esta obra é uma história verídica. Alguns nomes foram mudados


para preservar a privacidade das pessoas.

AUTORA: Gislene Ottoni


COAUTOR: Geraldo Giammarino Ottoni
CAPA: Luciano Barboza
SETENTA ANOS COLORIDOS EM GIS

Não posso partir desse mundo maravilhoso antes de contar


minhas tantas e lindas histórias, as fases da minha vida, as
experiências que tive. Quero deixá-las registradas para as
gerações que vêm depois de mim. E, tenho certeza, vocês vão se
apaixonar.
Era uma quinta-feira, dia seguinte do aniversário do meu tio Luiz,
no qual minha mãe que não tinha costume exagerou na cerveja.
Por volta do meio dia, começaram a contrações, chamaram um
táxi e a levaram para o Hospital São Francisco, em Belo
Horizonte. Avisaram meu pai, e assim que ele chegou ao
hospital, ela já estava na sala de parto. Era o dia 19 de outubro
de 1953. Eu estreava nessa vida!
A enfermeira avisou ao meu pai que tudo tinha corrido bem e
que ele era pai de uma linda menina. Ele agradeceu, entregou-
lhe uma sacola com roupas e se foi. Nem mesmo pediu para
conhecer a filha, o que sempre me fez pensar que ele esperava
por um menino. Apesar dessa dúvida, no sábado ele foi me
conhecer e nos buscar. Queria que eu me chamasse Clemilda,
porém minha mãe não colocou esse nome. Eles me batizaram
com o nome de Gislene.
Meu pai e eu nos conhecemos após três dias do meu
nascimento, mas para minha felicidade, passei a ser sua
princesinha. Ele não saia para trabalhar sem antes ir até o berço
e me dar um beijo. E da mesma forma, quando chegava, a
primeira coisa que fazia era ir me ver. Ele me deu apenas o
sobrenome Otoni e não quis colocar o Giammarino.
Dizia que quando as mulheres se casam tiram um nome e
colocam o do marido, e assim eu teria que manter o sobrenome
do qual ele tinha muito orgulho.
Meu pai nasceu e foi criado em uma pequena cidade chamada
Serro, onde nasce o Rio Jequitinhonha, cercada de lindas
montanhas e berço de muitos heróis. Meu avô era um alfaiate
muito conhecido na cidade. Assim, ele aprendeu a profissão com
o pai e se mudou com um irmão para São Paulo, para ganhar a
vida, como muitos assim o faziam. Sempre foi um homem
incrível, honesto, generoso, pontual, responsável. Era para mim
um verdadeiro herói. Contudo tinha suas manias. Não aceitava
mentiras, possuía poucos amigos, escolhidos a dedo. Era um
ótimo filho. Cuidava da sua mãe com todo zelo e carinho. Ia vê-la
todos os dias. Ele quem cuidava do dinheiro dela. Era também
muito orgulhoso, digamos que um defeito que herdei dele.
Parou de ir à casa da madrinha por ela ter mandado que ele
tirasse o sapato, certa vez que foi visitá-la. De outra vez,quando
eu ainda era criança e morávamos com a vovó, meu tio me bateu
e ele ficou furioso, não mais falou com o irmão.
Parou também de falar com sua irmã mais velha por um bom
tempo, por não ter aprovado o casamento dela. Contudo quando
ela passava por dificuldades, ele sempre ajudava.
Era um homem muito respeitado no Serro. Fora covidado várias
vezes para ser vereador, porém nunca quis se envolver na
política. Mas foi eleito para ser o Juiz de Paz da cidade, cargo
esse que se manteve por muitos anos.
Não era um homem ambicioso, mas conseguiu criar seus dez
filhos com todo zelo e amor à maneira dele. Defendia a todos
como um leão à sua cria.
Certa vez pegou o revólver e queria acertar as contas com um
rapaz que havia destratado meu irmão.
Com ele aprendi os conceitos e preceitos mais importantes da
vida. Dizia sempre nunca dê um passo maior que suas pernas,
não tenham os olhos maiores que a barriga, não ponha o chapéu
onde sua mão não possa alcançar, não faça cortesia com o
chapéu dos outros. Eram alguns bordões que ele sempre repetia.
Minha mãe era uma mulher única. Bonita, elegante, tinha os
olhos verdes. Era muito inteligente. Adorava ler, era generosa.
Tinha uma imaginação fértil. Criava histórias de pessoas
desconhecidas que via pela rua. Ela teria sido uma grande
escritora se tivesse tido a oportunidade de estudar por mais
tempo.
Para ela, seria necessário um livro inteiro para resgatar as
lembranças de um coração tão manso e bom. Nunca deixou que
algum pedinte saísse lá de casa com as mãos vazias. Mesmo
sabendo que tínhamos pouco, ela tirava um pouquinho do que
tínhamos e dava. Certa vez, vindo de Belo Horizonte, conheceu
uma senhora que havia perdido o ônibus em Conceição do Mato
Dentro. Sem pensar duas vezes, trouxe a senhora para dormir
em nossa casa. Meu pai ficou bravo, mas no fundo compreendia
as ações dela.
Quando mais tarde, ela já morava sozinha em Belo Horizonte,
surpreendeu um senhor roubando o botijão de gás que ficava do
lado de fora. Ela o convidou para entrar e ofereceu café,
indagando o motivo daquele ato. O moço lhe explicou que era
pedreiro, estava passando por dificuldades, e pediu perdão.
Minha mãe conseguiu com toda a vizinhança alguns bicos para
ele, que acabou se tornando um amigo e pedreiro de todos na
região.
Adorava festas, vivia cercada de amigos, colecionava fotos
autografadas de jogadores de futebol.
Começou a trabalhar muito cedo, mas era obrigada a repassar o
dinheiro para meu avô. Ela conta que separava escondido um
pouco para comprar cigarro.
Quando ela conheceu pai, ela já tinha um namorado. Ficou
namorando escondido com os dois, para se certificar com qual
iria ficar. Porém meu pai descobriu e a fez escolher.
Ela era muito romântica e sonhadora. Sonhava em se casar com
um homem rico, com uma rua cheia de casas. E sua irmã Amélia
desejava se casar com um homem humilde, mas que a amasse
incondicionalmente. Por ironia do destino tudo se deu ao
contrário.
Minha mãe sempre foi uma esposa dedicada e amorosa. Quando
viajávamos de férias ela deixava separadas as camisas que meu
pai iria usar. Uma para cada dia da semana. E em cada bolso, um
bilhetinho com palavras de amor.
Havíamos ganhado do meu avô um fogão a gás. Porém meu pai
preferia a comida feita no fogão a lenha. Muitas vezes ela fazia a
comida no fogão novo e meia hora antes da chegada de pai, ela
colocava as panelas no fogão a lenha.
Alguns anos depois, quando Gismar já morava em Belo
Horizonte, mandou para ela uma televisão de presente. Mãe
adorava seguir as novelas e assistir filmes. E quantas vezes meu
pai, que tinha o hábito de se deitar cedo, levantava e desligava a
televisão sem dar satisfação. Ela não brigava, ia se deitar.
Escrevia poesias. Adorava fazer acrósticos com o nome das
pessoas. Tinha uma atenção e amor especial para cada filho. E
viveu a vida inteira dedicada e eles.
Como meu pai era muito rigoroso, colocava horário para que os
filhos voltassem para casa à noite. Ela muitas vezes atrasava o
relógio dele para que não brigasse. Não tinha voz ativa com ele.
Quando pedia algo para os filhos, como ir a festas, algum
passeio, sempre ouvia dele N Ã O.
Minha saudosa mãe foi para mim, uma amiga, confidente, irmã,
já que só fui ter irmãs depois de muito tempo. Eu sempre tive
total confiança nela, e por muitas vezes entendi que ela não
podia ficar do meu lado para não contrariar meu pai. Ele gostava
de jogar cartas à noite com uma turma de amigos, e por vezes
exagerava na bebida. Ela com toda paciência cuidava dele. À
medida que fui crescendo, ele resolveu não mais beber e nem
jogar, como exemplo para os filhos.
Quando meu pai partiu dessa vida, anos depois, eu imaginava
que ela não saberia viver sem ele. Porém ela deu a volta por
cima, e refez a vida, entrou para o SESC, viajou bastante, fez
teatro, vivia rodeada de amigos, pois era muito cativante,
sempre pronta a ajudar a todos. Viveu por oitenta e sete anos,
nunca teve inimizades e realizou todos os sonhos que lhe foram
de certa forma, negados enquanto cuidava da família.
Ela sempre teve um sonho de ter uma festa de 15 anos. Então
nos seus 70 anos, eu fiz uma festa linda para ela, com tudo que
tinha direito. Balões, bolo, valsa, e como ela imaginava, eu
cheguei de surpresa na hora dos parabéns. Eu sempre
comemorei os aniversários dela, a cada ano de maneiras
diferentes. Mandava cantores irem se apresentar para ela, carro
de som com o disk alegria, festa em sítio. E nos oitenta anos, eu
e meus irmãos fizemos uma grande festa, com música ao vivo,
cantamos a música de Roberto Carlos, Lady Laura,mudando o
refrão para mãe querida. Ela lançou seu segundo livro de
poesias. O primeiro, intitulado Minha,Sua,Nossa Mãe," havia sido
lançado , nos 75 anos,e o segundo, “O trem da vida,
comemorando os 80 anos.
Nesse tempo de solidão, ela conheceu um Sr nas aulas de dança
do sesc, e voltou a sonhar. Eles se encontravam no ônibus e
fingiam não se conhecerem, e em todas as vezes eles se
apresentavam usando nomes diferentes , como se fosse a
primeira vez.Ele foi o alento da vida dela até os seus últimos dias.
Obrigada Sr Vantuil.
Vou contar um pouco sobre meus avós paternos e maternos
para vocês entenderem como se deu o encontro do meu pai e
minha mãe, e naturalmente como minha família e minhas
histórias aconteceram.
Meu avô paterno, Acelino de Oliveira Ottoni, tinha descendência
portuguesa e italiana, e carregava no nome um brasão muito
importante. Era da oitava geração de Teófilo Ottoni, um político
muito famoso na época do império. Esse nome lhe dava muito
orgulho. Ele era muito inteligente, fazia charadas e levava à tarde
na praça da cidade para seus amigos decifrarem. Fazia também
casquetes que eram como bonés de soldado e deixava na janela
da casa para vender. Outra particularidade do meu avô era
escrever cartas a pedido das pessoas que não sabiam escrever e
precisavam se comunicar com os filhos e parentes que moravam
fora. Assim ele ganhava um pouco aqui, outro ali para
sobreviver.
Já minha avó, Efigênia de Ávila Ottoni, era de origem indígena,
criada com remédios caseiros, era simples, mal sabia escrever o
nome. Mas sabia fazer contas muito bem. Ela fazia colchões de
capim, com uma máquina de costurar a mão herdada de sua mãe
que também fora uma ótima costureira.
Os colchões de capim eram bastante usados naquela época.
Minha avó comprava o capim de algumas senhoras que
moravam na parte ainda mais baixa da cidade. Essas senhoras
cortavam o capim, deixavam secar e depois faziam um feixe,
amarrando os montes e levavam para ela. Já aconteceu de sair
uma cobra viva no meio dos feixes. Na porta da cozinha, que era
de madeira preta, vovó escrevia o nome de cada uma e o tanto
de capim que traziam, assim no final de cada mês pagava o valor
devido.
Embaixo da casa, no sobrado, havia oito tamboretes, onde ela
colocava a lona cortada pelo meu avô, e assim ia enchendo a
lona e dando os pontos, para depois costurar e vender. Esses
colchões eram muito bem feitos e confortáveis, além de durarem
bastante tempo.
Meus avós paternos queriam se mudar para a capital, pois
tinham já duas filhas que haviam se casado e estavam morando
lá. Sendo assim, como pai que era o mais velho de nove irmãos,
sendo cinco homens e quatro mulheres, e já estava trabalhando
em São Paulo, conseguiu alugar uma casa em Belo Horizonte que
era vizinha à casa de minha mãe.
Meu avô materno, Paschoal Giammarino, era filho de italianos,
trabalhava como maquinista na Rede Ferroviária, e morava em
um bairro onde quase todos eram trabalhadores da Rede. Minha
bisavó, Maria Stanciiolle que viera para o Brasil em um navio de
imigrantes, ainda era viva e morava também próxima a ele.
Ele era gordo, de olhos claros, não quis aprender a ler e nem
escrever. Mas se tinha uma paixão na vida, era comer bem e
beber cerveja. Adorava cães, e tudo que comprava para comer,
dividia com seus cães como se fossem filhos.

Quando íamos passar férias com eles, ele pegava nossas bolas e
dava para o cachorro brincar.
Ele comprava duas latas grandes de goiabada, comia uma inteira
e a outra dividia com a família. Adorava uma mesa farta. Como
não sabia que tinha diabetes, nunca fez controle, partiu dessa
vida com a idade de 57 anos. Foi muito triste, a funerária não
encontrava um caixão que coubesse o corpo dele. Era uma sexta-
feira e somente na segunda-feira conseguiram o caixão. Meu avô
tinha um coração de ouro.
Quando recebia seu salário, sempre comprava coisas para doar
para os mais necessitados, dessa forma o velório foi muito
movimentado.
Ele tinha muita compaixão das pessoas que não tinham moradia
e ficavam na rua. Assim, comprava cobertores, agasalhos. Ele
deixava que muitas delas montassem acampamento em frente à
sua casa, existia um grande muro feito de metal, que dividia a
rede ferroviária da rua. E lá, esses sem teto ficavam por dias e
dias, ele ajudando na alimentação e o que mais precisassem.
Certa feita ele colocou fogo no quintal do vizinho, porque ele não
havia votado no Getulio Vargas, de quem meu avô era fã. De
outra vez, minha avó o encontrou rindo bastante sozinho, e ao
indagar o motivo, ele explicou que outro vizinho queria bater no
seu cachorro e ele havia jogado pedras no telhado do mesmo.
Parecia uma criança grande.
Minha avó materna, Alice Gonçalves Giammarino, era uma
senhora também de descendência simples, e viera ainda nova de
Bom Despacho.
Tinham cinco filhos, sendo quatro mulheres e um homem. Nessa
época, um primo do meu avô que era mais abastado, e tinha
uma fábrica de sapatos, precisava de uma babá para a filha
recém-nascida, e vovô tirou minha mãe da escola com treze anos
para cuidar dessa menina. Mãe cuidou dela até completar
dezoito anos e depois foi trabalhar na fábrica de sapatos. Lá ela
aprendeu a fumar, vício que só deixou aos 80 anos. Mesmo a
contra gosto do meu pai, que proibia e ela fumava escondida.
Assim, aconteceu que meu pai e seu irmão vieram a Belo
Horizonte para conhecer a casa onde meus outros avós já
estavam instalados. Pai conheceu minha mãe e o irmão dele, Tio
Bieco, conheceu uma prima de mãe.
Eles se apaixonaram e tanto meu pai como meu tio passaram a
ir e vir de São Paulo com mais frequência, e se correspondiam
com as meninas através de cartas apaixonadas.
Depois resolveu se estabelecer de vez em Belo Horizonte. Pediu
a mão de minha mãe em casamento, e meu avô consentiu com a
condição de que meu pai não a levasse para o Serro, promessa
essa que não foi cumprida. Meu pai passou a morar em uma
pensão até o dia do casamento, porque seus pais haviam
retornado para o Serro.
Os dois irmãos se casaram no mesmo dia.
Pai havia alugado um pequeno barracão com piso de tijolos
vermelhos, e no dia do casamento ele entrou com minha mãe no
colo. Um Mês após, minha mãe engravidou.

Havia uma senhora, nossa vizinha de nome Nair que me


amamentou por algum tempo, porque tinha pouco leite. Eu a
chamava de mamãe Nair. Com um ano de vida, eu tive uma
doença que se chama crupe e essa senhora ajudou a me cuidar.
Apesar de ser ainda tão novinha, pois moramos dois anos e meio
nesse barracão, guardo nitidamente em minha memória, o
quarto com um guarda roupa e uma boneca linda que ficava em
cima, com uma roupa cor de rosa, que eu tentava alcançar e
nunca conseguia, até que um dia, puxei com uma vassoura e ela
caiu e se quebrou. Ela era de porcelana, e mãe fez um rosto para
ela, usando uma meia fina e branca,e bordou a boca e os olhos.
Antigamente, os maços de cigarros vinham embrulhados em
papel brilhante. Durante o namoro pai e mãe juntavam os papéis
e fizeram uma grande bola que enfeitava a mesa da sala.
Quando eu completei dois anos e oito meses de idade, pai
resolveu voltar para o Serro e fomos morar na casa dos meus
avós. A situação estava difícil, e mesmo minha mãe ajudando,
trazendo sapatos da fábrica para terminar em casa, a solução foi
voltar para o interior.
Minha mãe, criada na capital, torcedora do Atlético, gostava de
passear, ler bastante, teve de se acostumar a uma vida
completamente diferente, pois naquela época o Serro era pouco
desenvolvido, e não oferecia nenhum tipo de conforto para
quem não estava acostumado. Ela não sabia cozinhar, então
vovó fazia a comida e ainda trabalhava com os colchões. E mãe
ajudava mantendo a casa arrumada.
Pai abriu junto com seu irmão uma alfaiataria, e mãe se sentindo
incomodada em não poder ajudar, aprendeu a fazer bordados,
tricô e crochê. Logo engravidou novamente e no mês de
novembro trouxe ao mundo meu segundo irmão, Gismar.
Eu me lembro até hoje da alegria de pai ao saber que era um
menino. E chorei de ciúme no colo da vovó e quando eles
chegaram do hospital, aproveitei uma distração da minha mãe e
corri até o quarto onde ele estava, fechei a porta e já ia entrar no
berço, quando meu tio chegou de repente.
O ciúme que eu sentia perdurou por toda a nossa infância, o
chamávamos de o predileto, mas assim mesmo sempre nos
amamos muito. Ele tem os olhos claros igual o de mãe, sempre
foi muito emotivo e também carinhoso com todos.
Se por algum motivo pai queria me bater, Gismar entrava na
frente para me defender e no final apanhávamos os dois.
Tinha uma senhora chamada Marianinha, que era viúva e nunca
teve filhos. Ela gostava muito dele e guardava guloseimas para
ele. Ela o tratava como um filho, tinha muitos gatos e o Gismar,
brincando na areia da casa dela, pegou uma enfermidade que é
transmitida por eles,que se chama toxoplasmose,e por isso
perdeu uma das vistas.
Após três anos, veio a terceira gravidez. Desta feita o parto foi
em casa, um costume da época, para as pessoas que tinham
poucas condições financeiras e não podiam pagar hospital.
Existiam as parteiras oficiais. Na parte baixa da cidade era Dona
Didica, e na parte alta, Dona Ana Borba.
Eu tinha seis anos e Gismar três, e assim que a parteira chegou,
colocou água para ferver. Eu como sempre muito curiosa,
perguntei para que a água quente, e me disseram que era para
lavar o bebê que chegava muito sujo da viagem. E eu acreditei,
assim como acreditei em papai Noel até os treze anos de idade.
Em pouco tempo escutamos o choro do bebê.
Pai abria e fechava a janela, fazendo um barulho que imitava o
voo da cegonha, para dizer que ela tinha trazido mais um
homenzinho para a família. Foi batizado com o nome de Gerdal.
Queria contar para todo mundo que a cegonha trouxera mais
uma criança para nossa casa. Um dia, cheguei da escola, e
caladinha fui até o quarto, peguei meu irmão e saí mostrando
para os vizinhos. Tentando fazer isso com pressa por saber que
era errado, o deixei cair no chão e foi aquela confusão.
Assim ganhei minha primeira surra. Quando crescemos e o
Gerdal fazia alguma loucura, eu ficava me perguntando se não
seria pela queda.
A segunda surra foi porque eu via onde vovó guardava o dinheiro
dos colchões, dentro de uma caixinha que ficava junto ao
oratório de Nossa Senhora do Carmo.
Caladinha, fui até lá e peguei algumas moedas. Saindo na porta
da rua, vi que uma das senhoras que trazia o capim estava
descalça e indaguei porque ela não estava calçada. E ofereci o
dinheiro para que ela pudesse comprar um sapato. Ela,
imaginando o que eu tinha feito, pegou o dinheiro e devolveu à
minha avó. E depois, foram tantas outras traquinagens e surras
que perdi a conta. Eu realmente não era fácil.
O Jardim de Infância era no colégio das freiras vicentinas. Como
eu era muito falante, logo ganhei a estima das irmãs,
principalmente da irmã Helena que era a diretora. Assim, quando
meu pai, que me buscava todos os dias, atrasava, ela me levava
no colo e me deixava dormindo em sua cama. Algumas vezes,
quando meu pai chegava, eu fingia ainda dormir, só para voltar
nos braços dele.
Eu amamentei no peito da minha mãe praticamente até a
chegada do meu primeiro irmão. E mãe colocou um curativo nos
dois peitos, dizendo que estavam machucados, e foi assim que
eu larguei o peito.

Na casa da minha avó, eu tive uma das melhores infâncias que


qualquer menina adoraria ter. Nas férias vinham todos os primos
que moravam na capital, e nos divertíamos muito. Eu me lembro
de que, no fundo do quintal havia uma pedra grande e do outro
uma fonte de água cristalina. Todos comentavam que debaixo da
pedra morava a cobra grande. Sempre brincávamos receosos,
mas na verdade não acreditávamos. Pensávamos que era uma
lenda. Certa feita eu, Daninho meu primo , e outros dois que
vieram passar as férias, filhos da tia Dora, Mares e Maguito,
estávamos brincando de casinha. Eles fizeram uma tenda de pita.
Eu e Ba, como a chamamos, estávamos costurando roupinhas de
boneca dentro da tenda,quando de repente ouvi um ruído de
algo se arrastando. Eu olhei da janelinha e a cobra já contornava
quase toda a casinha.
Eu perdi a voz, mas consegui puxar a minha prima e arrebentar a
parte de trás da tenda. Subimos o mais rápido que pudemos e
depois desse dia, nunca mais passamos nessa parte do terreno,
até matarem ela algum tempo depois.
A casa ao lado dos meus avós era bem velhinha, e os donos
haviam falecido. Mãe, já envergonhada de estar morando na
casa dos sogros, escreveu uma carta para seu pai dizendo que a
casa estava à venda por trinta mil réis.
Assim, meu avô e meu tio Sílvio mandaram uma quantia de vinte
e sete mil reis e meu pai conseguiu o valor restante, comprando
assim a casa. Era uma casinha bem modesta, com um quarto
grande, um corredor e outro quarto menor. A frente era no nível
da rua e embaixo tinha um sobrado com banheiro.
Nessa época não havia água encanada. Tinha uma pequena
varanda nos fundos, onde certa feita eu prendi minha cabeça
entre as madeiras. Foi preciso chamar um marceneiro para serrar
e me tirar de lá.
Minha avó era muito trabalhadeira, uma guerreira. Referência
para mim ate os dias de hoje. Comprou uma caixa de água bem
grande, para facilitar as tarefas do dia a dia.
Tínhamos o costume de passar as férias escolares em Belo
Horizonte. O Sr. Alcindo, dono do Hotel Glória, possuía um Jeep,
e meu avô pagava a ele para nos buscar. E algumas vezes íamos
de ônibus. Como eram todos conhecidos, meu pai pedia ao
motorista para parar algumas vezes para a criançada fazer xixi, o
que ele prontamente atendia.

Em uma dessas viagens, minha mãe levou apenas Gismar e


Gerdal e eu fiquei. Era o casamento das duas irmãs dela que se
casaram no mesmo dia. Mãe me escreveu uma carta. Eu tinha
apenas seis anos de idade então minha tia, esposa do tio Bieco
abriu a carta e a leu para mim. Pai chegou a tarde e eu fui logo
contar.
Ele perguntou quem havia aberto a carta e eu disse que fora a tia
Terezinha. Ele a chamou e perguntou se era o nome dela que
estava no envelope. Ela disse não, mas eu ainda não sabia ler.
Ele respondeu que, independente do motivo, nunca se deve
abrir uma correspondência que não esteja no nosso nome.
A quarta gravidez foi um tanto complicada. Minha mãe gostava
muito de ler romances e historias de livros que seu pai mandava.
E teve um pesadelo, onde o bebê nascia com duas cabeças.
Quando chegou o dia do nascimento, meu irmão que recebeu o
nome de Gesner estava virado no útero. O trabalho de parto
durou quase toda a madrugada, pois a parteira teve que virar ele
dentro ainda da barriga. E minha mãe a ouviu dizer que fosse
feita a vontade de Deus. E minha mãe pensando que o pesadelo
era realidade, e já sem forças para expelir a criança, gritava por
socorro e podíamos ouvir pela casa.
Enfim nasceu nosso irmão, porém como foi longo o trabalho de
parto, ele nasceu roxinho e inerte. Pensaram que estava morto.
Meu avô logo trouxe uma bacia com água morna e o colocou
dentro. Logo se pode ouvir o choro, para alívio e alegria de
todos. Essa alegria ficou refletida no rostinho dele, que até hoje,
sempre nos olha sorridente.
Para o batizado, vieram de Belo Horizonte, meus avós maternos
e minha bisavó, que foi a madrinha junto com meu avô. Como
meu avô era muito gordo e achava desconfortável viajar de
ônibus, ele normalmente alugava um carro para a viagem.
Adorava comer, cozinhava uma dúzia de ovos e comia tudo
sozinho. Mãe não gostava de feijão preto, e nessa ocasião no
Serro só se encontrava esse feijão. Então ele comprava sacas
inteiras de feijão roxinho para ela.
Quando eles iam ao Serro, nós, as crianças, dormíamos na casa
da vovó. Eu adorava porque ela mandava fazer quitandas, fazia
vários tipos de doces. Deixava cachos de banana pendurados na
varanda para amadurecer.
Como ela tinha um quintal muito grande, possuía vários tipos de
árvores frutíferas, como abacate, laranja, pêssego e limão.
Tinham também pés de café. Quando maduros, ela pagava as
mesmas senhoras que traziam o capim para os colchões, para
colher o café. Elas enchiam os aventais com os grãos e os traziam
para o sobrado. Minha avó fez para mim um pequeno avental
para que eu pudesse ajudar e deixava secando. Ela dava para
cada, uma porção de grãos. Sinto até hoje o cheiro daquele café
torrando, do mingau de milho verde que ela fazia. Nunca mais
provei igual. Assim como o cuscuz de milho que ela fazia e servia
com queimadinho, leite fervido com açúcar queimado.
Havia caído um barranco atrás da casa. Fizemos uma escada para
subir e depois pular sobre o monte de terra que ficou embaixo.
Gismar, muito medroso nunca tinha coragem de pular. Eu então,
certa vez o empurrei e ao cair, machucou por dentro, afetando
os rins, e teve uma inflamação chamada de nefrite. Assim teve
que passar por uma dieta, comendo apenas frutas.
Como no Serro só se encontrava frutas da época, minha tia
Amélia mandava vir de Belo Horizonte, toda semana, as mais
variadas frutas. Uma tia, irmã de pai, tia Geralda havia ficado
viúva nessa ocasião, e estava grávida de Salete. Infelizmente
precisou deixar os filhos com parentes por um tempo. Élida, a
mais velha, carinhosamente chama de Iaiá, foi morar no Rio de
Janeiro, Dulcina foi morar com minha tia Dora, que tinha uma
língua afiada, que me deixou como herança. Pai, como era
padrinho de Ciro, o trouxe para morar conosco por um tempo.
Quando as frutas chegavam, eu e Ciro ficávamos atentos para
ver o que Gismar não queria comer, para que pudéssemos
saboreá-las, especialmente as maçãs, que eram verdadeiras
iguarias para nós.
Vovó era muito religiosa, rezava o terço todas as tardes. Ela tinha
um terço lindo, com contas pretas enormes, que pareciam
jabuticabas. Fruta que até hoje eu adoro.
Na época das jabuticabas, íamos aos quintais vizinhos onde havia
pés, e nos fartávamos com aquela delícia. Os mais antigos diziam
que era preciso comer três cascas inteiras para não ficar
encalhado, que significa ficar com intestino preso.
Ela ia à missa todo sábado e domingo, e participava de uma
reunião toda primeira sexta feira do mês, da Irmandade do
Carmo. Tinha uma veste de cor escura, da irmandade, que
deixava sempre guardada, pois queria ser enterrada com ela
quando morresse. E seu desejo foi cumprido.
Minha mãe engravidou novamente. E nessa ocasião perdemos
nosso querido vovô Paschoal. Infelizmente ela perdeu o bebê,
talvez pela tristeza da partida do pai. Ele fazia controle do
coração, e em uma das consultas, descobriu que tinha diabetes.
E como nunca controlou, passando mal, saiu da consulta e foi
direto em um bar, pediu dois choops grandes, apesar de toda
recomendação médica. Disse que era uma despedida. De fato,
após duas semanas ele partiu.
A minha mãe tinha uma vontade enorme de conhecer o Rio de
Janeiro. Então em uma dessas viagens de férias, meu tio a levou
para o Rio. Eu saí correndo atrás chorando, e meu avô me pegou
a força, soltou o cachorro e me prendeu na corrente. Fiquei
presa até que minha avó chegasse para me soltar.
Minhas duas tias mais novas, irmãs de mãe, iam ficar noivas no
final desse ano. A casa já estava cheia de engradados de bebida.
Tia Irani e Tia Ivone. As duas tinham uma diferença de idade de
dez anos. Tia Irani com sua mania de limpeza passava o pano na
casa a todo instante, e tia Ivone, que era a caçula, era também
muito mimada, quando íamos passar férias na casa deles, ela
adorava que eu ficasse penteando seus longos cabelos.

E o irmão da minha mãe, Paschoal Giammarino Filho, conhecido


como Lobo, que também trabalhava na rede ferroviária,
construiu uma casa nos fundos. Ele era soldador e tinha um bom
salário, mas bebia muito. Sua esposa, tia Rosa, era carioca, muito
brava por sinal. Minhas primas Andréia e Amanda foram as
primeiras netas da família.
Meu tio Paschoal Filho que era espírita, duas semanas após a
partida do vovô reuniu a família e disse que havia conversado
com ele. E deixou um recado dizendo para pararem de chorar e
chamar por ele, porque isso estava atrapalhando a passagem
dele para o outro plano.
Na rua em que moravam, havia um chafariz onde todos iam
buscar água. A casa era nos fundos do vovô Paschoal e tinha um
quintal com muitas frutas. Tinha também um banquinho onde
meu avô adorava ficar assentado e sempre acompanhado do seu
cachorro. Sempre teve cachorro da raça pastor alemão.
A vida prosseguia. Voltando ao Serro após a passagem do meu
avô, minha mãe mandou fazer roupas de luto, preta para ela e
para mim. Para os meninos preto e branco. Mãe nunca superou
a perda do pai. Sempre que se lembrava dele, chorava.
Aos sábados e domingos, havia banda de música na praça, e pai
nos levava. Na praça principal havia um coreto lindo, que hoje
não existe mais.
As apresentações da banda de música era um espetáculo
maravilhoso. Sr.Aristeu, que era sapateiro, tocava o trombone,
Gentil, Zé Nonato e outros.
Íamos à missa pela manha, almoçávamos macarronada e frango,
e à noite, assistíamos a apresentação da banda.

Um ano após a morte do meu avô, nova gravidez. Minha mãe


trouxe ao mundo mais um lindo menino, nasceu grande,
saudável. Mãe queria batizá-lo com o nome do pai dela, mas os
nomes todos começavam com a letra G. Sendo assim, meu pai
deu a ele o nome de Gerson Paschoal, atendendo o desejo de
mãe. Foi um dos bebês mais bonitos que nasceu lá em casa.
Tinha os cabelos cacheados e pai deixou crescer até os dois anos.
Eu adorava mostrá-lo para as pessoas.
Até nessa época, mãe ainda não havia aprendido a cozinhar
muito bem. Assim, meu pai com toda paciência ia ensinando aos
poucos. Para fazer o angu, pai fez duas luvas para ela, porque ela
se queimava toda vez que fazia.
Enquanto nós éramos três, meu pai pagava duas irmãs gêmeas
para ajudar no cuidado com os filhos. Maria Vera e Vera Maria.
Uma era branquinha e a outra mais moreninha, que se
revezavam no nosso cuidado. A irmã delas também trabalhava
na casa da irmã do meu pai, tia Theresa, que era conhecida com
Tia Leleu. Uma criatura doce, calma, até na fala. Não gostava de
sair de casa, exceto para ir à missa.
Pai sempre fez questão de ensinar aos filhos o devido respeito às
pessoas, sobretudo as mais velhas. Desse modo, eu chamava a
todos de vovô ou vovó. Eu fui uma criança abençoada, pois a
cidade era tão pequena, e todos conhecidos. Eu saia de casa e ia
pedindo a benção a todos os avós que imaginava ter: vó Stael, vó
Inhá, vó Cecília, vó Tandunga, e assim por diante.
Na minha Primeira Comunhão, como não tinha fotógrafo no
Serro, mãe levou o vestido para mim e eu tirei a foto em Belo
Horizonte.
Depois do nascimento de Gérson, um casal de amigos do meu
pai, pediu para a filha deles, que morava na roça, morar em
nossa casa durante o ano letivo. Ela se chama Florinda.
Era professora, e precisava fazer um curso especializado para se
formar em Conselheiro Mata. Meu pai consentiu e assim ela
dormia comigo no meu quarto. Nos finais de semana os pais a
buscavam a cavalo e muitas vezes meu pai me deixava ir com
eles. Eles me adoravam e eu então, ficava encantada com a vida
na roça.
Todos riam com minhas travessuras. Certa vez um empregado da
fazenda me disse que para eu aprender a nadar, bastava engolir
um peixinho vivo. Eu de pronto, engoli logo uns dez. Em um
desses finais de semana, o irmão da Florinda veio buscá-la de
carro e ela convidou minha mãe para ir junto. Assim mãe pediu a
Gismar que avisasse meu pai que ainda não havia chegado do
trabalho. Antes mesmo de esperar a resposta, porque meu pai
era muito sistemático, ela deixou a comida pronta e quando já
estávamos prontos para partir, meu pai chegou, e de súbito,
mandou que todos descessem do carro. Senti a tristeza na face
da minha mãe, e desde então prometi a mim mesma que nunca
aceitaria um homem que mandasse em mim.
Um fato interessante que sempre me vem à memória, é que meu
pai, apesar de muito duro e austero com os filhos, e se
preocupar muito em nunca incomodar as pessoas, não gostava
dos filhos enfiados na casa de vizinhos; mas sempre me deixava
passear na fazenda Aurora, que era do padrinho dele, em finais
de semana, ou até mesmo passar dias e dias de férias.
Eles me tratavam como uma princesa. Isabel era uma empregada
da fazenda e dormia no quarto junto comigo, porque eu tinha
medo do escuro.
Eu me levantava cedinho com ela, íamos tratar das galinhas e
dos patos. Quando o leite era tirado, o sobrinho dela levava uma
parte para a escola que havia na fazenda.
A professora se chamava Efigênia, era uma sala bem grande
onde funcionava da seguinte forma: eram quatro fileiras onde
cada uma correspondia a serie escolar. Na verdade, a professora
muito dedicada, ministrava as quatro séries ao mesmo tempo,
ainda fazia almoço para as crianças. Ela se tornou uma grande
amiga minha e quando cresci, conheci toda a família dela.
Os filhos do meu “avô”, dono da fazenda, tiravam o leite para
fazer queijo, faziam rapadura e fubá. Gostavam muito de fazer
brincadeiras comigo. Tinha uma vaca muito brava, que se
chamava Aliança. Ás vezes eles soltavam Aliança só para me
verem correndo de medo. Na verdade não deixavam que nada
de mal acontecesse comigo.
Era um tempo mágico, não havia televisão e a luz era com
lamparinas de querosene. Ao anoitecer, sentávamos todos na
grande varanda que tinha, para ouvir os causos que o Sr. Tote
contava. Eram historias muitas vezes verdadeiras e na maioria
criadas por ele, causos de assombração, das pessoas antigas,
enfim momentos que jamais esqueci. Aprendi a batizar os
patinhos. Quando nasciam, jogávamos dentro do lago com uma
peneira e fazíamos uma oração para que não morressem.
Quando acabavam as férias, voltava à rotina na cidade. Nossa
casa, muito simples e velha, possuía muitas goteiras quando
chovia. Pai havia feito um chiqueirinho, era como chamávamos
uma espécie de caixa grande para que os bebês ficassem seguros
enquanto ainda não aprendessem a andar. Esse chiqueirinho foi
usado por quase todos os outros filhos.
Gerson, ainda pequeno, era o dono da vez do chiqueirinho. Mãe
me pediu para tomar conta dele certa vez enquanto lavava
roupas. E disse para não sair de perto dele. Foi a mesma coisa de
dizer o contrário, pois assim que ela se afastou, desci ao quintal
para apanhar laranjas,que de tão maduras e docinhas, parece
que me convidavam a ir até elas. Não demorou dois minutos e
ele caiu do chiqueirinho, começando a chorar intensamente.
Mãe, ao vê-lo no chão, veio brava e no susto me empurrou com
força, e eu bati a cabeça na quina de um armário que havia lá.
Deu um corte e saiu muito sangue. Tenho essa cicatriz até hoje
que me faz lembrar. Minha avó ao ver o sangue saindo, queria
me levar ao hospital. Porém meu avô pegou um punhado de
açúcar e colocou sobre o corte. Ao chegar do trabalho a noite,
pai ficou irritado com minha mãe, mas também comigo.
Meu tio Joaquim, que era marido da tia Leleu possuía um
açougue na cidade. O pai dele tinha um matadouro onde havia
uma grande bica de água. Então o boi era abatido ali mesmo. Ele
comprou um terreno grande que pertencia à Irmandade do
Rosário, e fez um loteamento.
Minha mãe novamente engravidou. A família crescendo, fez-se
necessário que mudássemos para uma casa maior. Assim, meu
tio vendeu um dos lotes para o meu pai, permitindo que ele
pagasse em suaves prestações.
Três casas acima de onde morávamos, havia duas irmãs, Júlia e
Preta, que eram solteiras, mas tinham criado um filho que já
estava crescido e morando no Rio de janeiro. A Júlia trabalhava
em um lactário, nome dado a um lugar que distribuía leite para
as pessoas carentes. E a Preta ficava em casa. Vendia as frutas da
época, expondo-as na janela da casa, como era um costume da
época. Como elas estavam bem velhinhas, o filho veio buscá-las
para morar com ele.
Pai então alugou a casa. Guardaram os moveis todos em um
quarto. A casa possuía mais quartos.
Mais uma vez, minha mãe trouxe ao mundo outro rapazinho,
nascia Giovanni, um menino lindo, forte, moreninho que chegou
para alegrar ainda mais nossa família.
Desde o ocorrido com Gesner, pai não mais permitiu partos em
casa. Ele se esforçava para que nascessem em segurança no
hospital.
A Preta morreu no Rio de Janeiro nessa ocasião. Em uma noite
chuvosa, escutamos um barulho estranho no quarto que ficava
trancado. Por acaso, no outro dia recebemos a noticia da morte
dela e pai nos disse que ela tinha vindo avisar na noite anterior.
A partir desse dia, morríamos de medo de passar em frente ao
quarto.
Meu pai começou a preparar o lote para ir construindo nossa
casa. O lote ficava em um barranco, e tivemos que ajudar para
retirar terra e nivelar.
A velha Julia veio morar conosco a pedido do filho, mas
infernizava nossa vida. Era muito implicante, brigava conosco a
todo instante. Por vezes colocava a perna na frente quando um
de nós ia passando, para que caíssemos no chão.
Minha mãe já não tinha mais paciência para tanto incômodo, e
pedia ao meu pai para que construísse logo a casa no lote.
Com a venda da outra casa, ele começou a construção da nossa
casa. Assim que levantou a paredes e fez o telhado, nos
mudamos. Paredes sem reboco, chão grosso, sem água e sem
luz. Mas uma alegria imensa no coração por saber que
estávamos debaixo no nosso teto.
Tomávamos banho de bacia, com a água que buscávamos na
bica do matadouro. Pai pagava uma senhora para lavar as
roupas.
Não poderia deixar passar em branco a presença de Dona
Cesária, que foi para nós como uma segunda mãe. Ela entregava
carne em uma gamela grande. Era uma senhora preta, muito
forte e de coração enorme. Passava lá em casa e pegava Giovani,
para ir distribuir as carnes. Dizia para todos que era filho dela.
Dona Cesária foi ama de leite de alguns dos meus irmãos
menores. Quando perguntavam a Giovani porque ele era assim
moreninho, ele respondia que era por causa do leite dela. Ele
tinha uma maneira diferente de chorar, e quando eu saia na rua
com ele, às vezes dava um beliscão para que as pessoas o vissem
chorando.
Dona Cesária, mais tarde se tornou uma figura importante no
Serro, pois a devoção a Nossa Senhora do Rosário é muito
grande até hoje lá. Todos os anos, no primeiro final de semana
de julho, é comemorado a Festa do Rosário. Festa essa que é
tradicional e muito famosa, com suas barraquinhas, novena e o
congado.
Dona Cesária foi coroada Rainha Conga, reverenciada todos os
anos por ocasião da festa. Sua morte foi muito sentida na cidade
e até os dias de hoje ela é lembrada e homenageada.
Como já disse, e repito, eu era muito levada. Certa vez, fui ajudar
uma vizinha, Dona Teresinha, a descascar amendoins, que ela
torrava e colocava dentro de pequenos cones feitos de papel. Eu
e minhas amigas cantávamos enquanto fazíamos o trabalho. E
mãe me chamou várias vezes, precisando de alguma coisa. Eu
continuei cantando e fingindo que não estava ouvindo. Cheguei
mais tarde em casa, e caladinha fui me deitar. Acordei assustada
com mãe em cima de mim, me dando tapas. Outra vez, minha
mãe estava torrando também amendoins para fazer pé-de-
moleque. Eu e meu pai a todo instante íamos até a panela e
apanhávamos um bocado. Mãe já havia pedido para não
pegarmos, pois era a conta certa do doce. Mas não escutamos e
continuamos. Ela então, de repente agarrou nossos braços e
chegou bem perto do fogo, quase nos queimando.
Minha infância foi muito alegre. Todas as tardes, brincávamos na
rua. Eu, os filhos de dona Teresinha, Rui e Ruth, dona Gininha,
Dorinha, Íris, Toninho, os netos de dona Stael, Lucinha,
Renegilson, Vilma. Éramos uma turma boa, fazíamos roda
ciranda, passa anel, esconde-esconde, jogávamos queimada.
Fazíamos também teatrinho no Arraial de Baixo, na casa do Sr.
Zeca Batista, que tinha uma filha que cantava, já estava
acostumada a fazer peças de teatro. Então fazíamos um palco,
encenávamos peças, essa foi também uma parte muito preciosa
da minha infância e adolescência.
Brincávamos todos os dias após a escola e ao chegarmos a casa
no finalzinho da tarde, tínhamos que lavar os pés antes de nos
deitar. Nessa época não havia celular, não tínhamos televisão.
Dormíamos cedo e também cedinho acordávamos. Minha mãe
sempre já de pé na primeira hora do dia.
Em uma excursão da escola, fomos a um sitio, onde avistamos
um grande formigueiro. Um colega desafiou a todos para ver
quem tinha coragem de se sentar em cima. Eu logo me
apresentei, dizendo que se alguém viesse comigo, eu sentaria.
Uma colega se prontificou e assim o fizemos. Após alguns
minutos, fomos picadas pelas formigas.
Eu me lembro de haver pedido uma boneca de presente ao meu
pai. Na farmácia havia uma parte que era uma pequena loja. E
chegaram ao Serro três bonecas que estavam na moda. O
prefeito comprou uma para a filha, o Sr. Nilton, proprietário da
farmácia comprou a outra e para minha felicidade, pai comprou
a terceira para mim. Meu pai, apesar de pouco estudo, lia muito,
era muito inteligente e sabia apreciar coisas boas.
Guardei essa boneca por muitos anos. Uma vez emprestei para
uma professora de educação física, e ela não me devolveu. Fiquei
triste, mas nunca fui apegada a bens materiais.
Eu já estava estudando no Grupo Escolar João Pinheiro, no
prédio antigo. A diretora era Dona Edelwais Coutinho e a minha
professora, irmã dela, se chamava Dona Desirré Coutinho,
carinhosamente conhecida como Dona Petite. Como eu já entrei
alfabetizada para a primeira série, ela me mandava ficar na
diretoria para não atrapalhar os colegas, como eu sempre fui
muito falante.
Dona Lourdes Pires, trabalhava na biblioteca e me dava livros
para ler e passar o tempo. Isso me ajudou muito durante toda a
vida, pois a cada dia eu aprendia mais coisas e sempre ávida a
absorver todo tipo de cultura.
Na segunda série foi Dona Emir Madureira minha professora.
Muito austera, mas gostava de mim, ás vezes me convidava para
visitar sua casa. Na terceira série estudei com Dona Socorro,
pessoa calma, tinha uma maneira carinhosa de ensinar.
Tinha um filho chamado Ramon que estudava na mesma classe
e também frequentava a casa dela, para estudar com o filho.
Dona Eimee Coutinho foi minha professora da quarta série,
morava perto do grupo. Sempre me convidava para alguma
apresentação nas datas comemorativas. Seu sobrinho Paulo
Roberto, estudava na nossa sala, e todas eram apaixonadas por
ele, por ser um menino muito bonito.
No beco em frente à casa de dona Eimee, morava uma família
que viera de uma cidade chamada Mãe dos Homens. Era um
sargento aposentado, Sr. José Mourão e sua esposa dona Neli.
Tinham onze filhos, sendo nove mulheres, todas com o nome
Maria, e dois homens. Dizíamos que era a casa das Marias.
Geralda, que tinha a mesma idade minha, era minha colega de
escola. Nós a chamávamos de Bulanda. Dona Neli reformava as
roupas usadas que eu ganhava das minhas primas de Belo
Horizonte, e eu em troca, fazia o almoço ou o jantar para eles,
dependendo do dia. O Sr. José Mourão passava em frente à
minha casa e dizia que comprara um lombo de porco, pedindo
que eu fosse preparar. E dessa maneira fui aprendendo a
cozinhar. Pai não me deixava aprender em casa, por causa do
cabelo grande, com medo de que caísse na comida.
Quando mãe viajava, as minhas primas, filhas da tia Leleu vinham
cozinhar para nós.
Houve uma linda festa no laticínio da cidade, na verdade um
rodeio. Disse a pai que iria estudar com a Bulanda e com Wânia,
filha de Sr. Zico. Na verdade, chegando à casa das meninas, vesti
uma roupa emprestada da Wânia e fomos com o pai dela para a
festa. Não tinha como esconder do meu pai. Chegando lá, o vi de
longe e me escondi.
O Sr.Zico ria às gargalhadas da situação. Foram duas grandes
amigas da minha vida.

Já no ginásio fiz grande amizade com Maria Ducarmo


Dayrell.Onde estava uma a outra estava atrás.
A cidade do Serro é de uma grande importância na história de
Minas e do Brasil, por ser um dos berços da mineração do ouro.
Existiam muitas lendas e histórias da época do império, da
escravidão e outras. Vó Stael sabia de todas as histórias, e eu
adorava ir até a casa dela, pedindo para que me contasse. Uma
história que eu sempre pedia para repetir era da noiva da rua de
baixo. Ela com toda paciência contava que a filha do José Batista
morrera no dia do casamento, e fora enterrada com o vestido de
noiva. Nas noites de lua cheia, quem estivesse na rua,
encontrava uma mulher linda, vestida de noiva. De tão alta,
parecia estar com pernas de pau. Aparecia e sumia ao chegar de
frente a casa dela.
Outra história interessante era de uma interna do Colégio. Havia
um passadiço entre o colégio e a Santa Casa. Dizem que ela havia
se suicidado e de madrugada muitas pessoas a viam chorando,
andado pra lá e pra cá nesse passadiço. Confesso que mesmo
depois de grande, eu tinha medo de passar sozinha na rua de
baixo.
Também tinha uma história, que mais tarde descobri que era
uma lenda do folclore brasileiro. Era de uma senhora que tinha
muitos filhos, e todos raquíticos. Moravam em uma casa de
madeira. Certo dia descobriu-se que uma grande sucuri vinha
todas as noites, colocava o rabo na boca das crianças e mamava
todo o leite da mãe. Quando a mataram, saiu litros e litros de
leite de sua barriga.
No Serro tinha também muitas figuras interessantes. Favico, filho
de Dona Mariquinha, colocava a calça muito alta e saia à rua
gritando: Favico rem rem rem.
Se alguém dizia algo, ele ficava bravo. Tito, ou Expedito doido
que saia à rua, brigando com todo mundo à toa. Maria sem
Braço, que diziam haver perdido o braço por ter traído o marido.
Juquinha três três, tinha uma mão que não abaixava, porque
havia batido na mãe. Chiquinha doida que morava em um
barraco de um cômodo todo coberto de galhos e caixa de
papelão. Luiz Mendes que chamava a todos de padrinho. Vinha
da roça trazendo mandioca e frutas para vender e trocava tudo
por cachaça. Voltava pra roça todo sujo. Era uma criatura doce,
porém quando ele bebia, as pessoas o chamavam de apelidos
para o verem falar palavrões. Luiz Paletó que consertava guarda
chuvas. Podia estar fazendo o maior calor, lá vinha ele com seu
paletó, contando as novidades da cidade. Parecia um jornal
ambulante. Maria Bicicleta, Maria três pulinhos, e vários outros
que também fazem parte da minha linda história no Serro.
Dois meses antes de nos formarmos, fora inaugurado o prédio
novo do Grupo João Pinheiro e a festa foi lá. Dona Lourdes
assumiu a diretoria, na qual ficou por muitos anos.
Duas professoras que também marcaram muito minha vida
foram Dona Laura Moreira e Dona Teresinha Barbosa. Elas
trabalhavam com as crianças repetentes, com dificuldades de
aprendizado e faziam verdadeiros milagres com toda dedicação e
carinho que nutriam pela educação.
Meu pai foi à festa de formatura, pois mãe estava com filho
pequeno e não pode comparecer. Eu me lembro de Vasti
declamando a poesia Barcos de Papel. Eu gostava de declamar
Deus, de Casimiro de Abreu.
Naquele tempo existia uma prova de admissão para ingressar
para o quinto ano. Pai conseguiu uma bolsa de estudos para
mim, no Colégio das Irmãs Vicentinas, que era o melhor da
região.
Ele se chama Colégio Nossa Senhora da Conceição e na
atualidade é uma extensão da PUC, universidade muito famosa
em Minas Gerais.
Nesse colégio havia o chamado internato, assim vinham filhas de
pessoas mais abastadas de toda região, para morar e estudar.
Era o único internato que existia na época, e por isso muito
procurado e disputado.
Minha prima Efhigenia Rita, carinhosamente conhecida como
Vorita, pois tinha o nome das duas avós,queria estudar junto
comigo. Meu tio não queria deixar e ela não conseguiu passar no
teste de admissão.
Minha ida para o colégio foi um marco em minha vida. Tínhamos
aulas de Francês e música, com a Irmã Maria de Lourdes que
viera da França, retiros espirituais, inclusive fomos a um com o
Padre Zezinho, muito famoso no Brasil, sendo um dos
precursores de Padres cantores. O capelão do colégio era o
padre Geraldo Lúcio, muito sério, mas tinha uma pregação muito
bonita.
Lá tive muitas amizades, as irmãs Garcia, Maria, Geralda,
Cordélia, as irmãs Tomás, Marisa e Miriam.
O vigário da cidade era o Cônego Júlio Gomes de Oliveira. Não
aceitava crianças chorando na igreja, não permitia roupas muito
curtas. Caso alguém chegasse à fila da comunhão com uma
roupa indiscreta, ele não oferecia a hóstia. Foi um santo homem,
e deixou também seu nome registrado na história do Serro,
mesmo não tendo nascido lá.
Em frente à casa de Gentil, havia duas senhoras velhinhas que
ensinavam o catecismo. Pai me levou para frequentar as aulas e
fazer a primeira comunhão.
Elas nos ensinavam da maneira que aprenderam. Diziam que se
comungava com pecado, a hóstia caia no chão. Se casássemos
sem ser virgem, a hóstia iria sangrar e eu acreditava em tudo
isso.
Eu e minhas amigas tínhamos muita curiosidade de saber se as
irmãs eram carecas, pois viviam com aquele lenço característico
na cabeça. Assim, combinei com duas colegas uma armação para
descobrirmos. Na hora de bater o sino da capela, a irmã Eugênia
pedia para subirmos em uma escada para alcançar a corda. A
combinação era uma empurrar a outra e puxar o lenço. Eu subi a
escada, uma me empurrou e ao cair, puxei o lenço. Para nosso
espanto, ela não era careca. Tinha o cabelo bem curtinho. Com
isso ganhamos três dias de suspensão.
No terceiro ano de colégio, eu já estava mocinha e querendo
namorar. No dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, eu coloquei
pela primeira vez, sutiã e salto alto. Usei um vestido lindo,
modelo redingote, amarelo e branco feito por Dona Expedita de
Estael. Eu estava no auge, com catorze anos, alta, cabelos pretos
lisinhos. Fui à procissão e lá conheci o sobrinho de vó Jovelina
que estava de férias no Serro. Fiquei encantada com ele.
Carregando uma vela, íamos conversando durante o trajeto. Ele
me disse que eu era a moça mais linda do Serro. No dia seguinte,
fez uma serenata para mim, cantando uma musica de Renato e
seus Blue Caps.
Mas ele pensava que eu morava com minha avó, e fez a serenata
na janela da casa dela. Eu só fiquei sabendo no dia seguinte.
Quando ele voltou para a capital, me escreveu uma carta linda
que começava em inglês. Eu mostrei a carta para todas as
minhas colegas.
Na semana santa ele retornou ao Serro, e nos encontramos por
acaso, quando eu estava buscando água na bica do matadouro.
Como de costume, na ultima ida à bica, eu lavava meus cabelos.
Ele parou na minha frente, e quase derrubei a água. Ele queria ir
até minha casa para conversar com pai e me pedir em namoro.
Eu pedi que não fosse ainda. Mas na próxima vez, porque pai
ainda não permitia que eu namorasse.
À noite, fui até a casa da vó Jovelina, e ele cantou algumas
músicas para mim. Depois disso, ele só voltou no final do ano e
seria a formatura do meu primo Thingo, filho da tia Leleu. Minha
vó Alice estava passando uns dias no Serro. Ainda não tínhamos
luz elétrica em casa. Eu estava me aprontando para ir à
formatura, quando de repente ele bateu na porta e meu pai
abriu. Ouvi a voz dele dizendo boa noite. Pai perguntou
prontamente, a quem devo a honra. E ele respondeu dizendo
que se chamava Wellington, filho de Tatá ferreira, que por sinal
era padrinho do meu pai. E completou dizendo que estava lá
para pedir permissão para namorar comigo.
Meu pai quase caiu da cadeira, me chamou indagando se eu
conhecia aquele rapaz, pois ele estava querendo namorar
comigo. Respondi que sim. Meu pai se virou para o Wellington e
disse que eu não tinha idade para namorar.
Mas se quisesse, era para sair da escola e casar logo. Eu
respondi que não iria sair da escola e ele assustado, deu boa
noite e virou as costas, indo embora, e pai não deixou que eu
fosse à formatura.
Mesmo assim não desistimos do namoro. Ele continuou a me
escrever e combinamos de nos encontrarmos no feriado
próximo. Pedi a ele que me encontrasse na porta do colégio.
Pensando que ia ganhar um beijo, pois na carta ele disse que ia
me fazer um pedido, escovei os dentes umas trinta vezes.

Voltei por um caminho que não passava muita gente. Quando


nos encontramos, ele me pediu um retrato, e me deu uma foto
dele com os dizeres no verso: “longe dos olhos, perto do
coração”. Fiquei decepcionada.
Nas férias, meu pai me deixou passar com minhas tias em Belo
Horizonte. Lá nos encontramos e fomos um dia ao cinema
assistir “ Dio como Te Amo”. Minha tia Lilica foi de
acompanhante. Eu notei que estava mais alta do que ele.
Quando fomos embora, ele me deu o primeiro beijo na porta da
casa da minha tia.
Na semana seguinte, era carnaval e eu fui para Contagem, ficar
com minha tia Geralda. Ela fez uma fantasia linda para mim, de
índia. Wellington , sabendo que eu estava na casa dela, apareceu
sem avisar, mas eu me escondi e pedi à minha prima que
dissesse que eu não estava em casa. Ele se foi, e o romance
terminou.
Quando ele voltou ao Serro, pedi a um amigo, Idaçuile, que
fingisse ser meu namorado. Naquela época, chamávamos de
footing, ficar andando na praça pra lá e pra cá. Seja com amigos,
ou com algum namorado, até mesmo com parentes.
Comecei a namorar o Paulinho, que era filho do prefeito. Ele
trabalhava em um supermercado, junto com Idaçuile, que servia
de pombo correio para nós. Levava e trazia recados e
bilhetinhos. Paulinho chegou a me acompanhar até em casa
certa vez, e me deu um beijo no rosto ao chegarmos.
Nessa ocasião, meu irmão Gerson estava com bronquite,
Giovanni ainda pequeno e mãe novamente grávida. Pai foi à
farmácia buscar um remédio e me recomendou que não saísse
de casa por nada. Mas eu já havia marcado um encontro.
Há dois meses antes eu havia me operado de uma hérnia, e
estava ainda de repouso, não podia usar salto alto.
Desobedecendo a ordem de pai, fui até a porta da igreja depois
da missa, e assim que o rapaz parou na minha frente, e pra
minha infelicidade, pai estava passando na rua de cima, e de lá
me viu e desceu furioso, e me bateu na frente de todas as
pessoas que estavam no local. Assim era meu saudoso e amado
pai. Eu saí correndo para casa e morrendo de vergonha, fiquei
uma semana sem ir ao colégio.
Logo veio a festa do queijo, até hoje, tradicional no Serro. Nesses
dias, o homem pisou na lua pela primeira vez. Nossa vizinha Rita
de Preto, que era uma exímia costureira, reformou para mim um
vestido rosa, lindo, que eu ganhara da minha prima Élida. No
baile do queijo, conheci um rapaz que se chamava Pedro
Barroso, que era fazendeiro. Ele me pediu em namoro e me
acompanhou até em casa depois do baile. No caminho
encontramos meu pai. Pedro então pediu o consentimento do
meu pai, que para minha surpresa, disse sim, que poderíamos
namorar em casa aos finais de semana.
Eu fiquei toda feliz, ele vinha uma vez por mês e ficávamos
conversando na porta de casa. Como não havia luz elétrica, meu
pai fazia questão de estarmos sempre à vista dele.
Em uma das vindas dele, era mês de setembro. Ele me deu uma
linda pulseira de ouro como presente de aniversário,
esquecendo que eu faria no mês seguinte. Eu me desencantei
com ele e terminei. Ele disse que havia uma supertição de que,
quando o namorado oferece uma joia de presente, o namoro
acaba.
Eu comecei a me aproximar mais do Idaçuile. Morando em uma
casa simples, sem banheiro, sem pintura, aos poucos fui me
encantando com ele, que por sinal sempre foi muito bom de
conversa. Ele começou a fazer promessas, me propondo
casamento.
Dizia que eu teria uma vida melhor, me ajudaria a estudar, me
levaria para conhecer o mar. E realmente ele cumpriu quase
todas as promessas.
Na gravidez do meu irmão Geraldo, percebeu-se que ele estava
virado no útero. A cada gravidez, eu sonhava em ter uma irmã, e
dessa vez, como a barriga estava diferente, eu estava certa de
que viria uma menina.
O parto foi feito em Belo Horizonte, devido à posição do bebê.
Era mês de outubro, de 1968, ano esse em que eu completaria
quinze anos. No dia oito de outubro minha mãe trouxe ao
mundo mais um rapazinho para a família. Meu pai de imediato
não quis me contar que havia nascido mais um homem. Descobri
no dia seguinte, pois ele tinha nascido no dia de São Geraldo, e
eu ouvi minha avó sugerir o nome.
Mãe havia me prometido uma festa de quinze anos. Mas como
estava na capital, carinhosamente, apesar do resguardo,
preparou junto às minhas tias, os ingredientes necessários para
fazer docinhos e um bolo, e mandou para o Serro.
Eu já sabia fazer alguns doces e aprendi com Dona Edir, nossa
visinha, a fazer uma torta de sardinha e bolo.
Assim fizemos uma festa, convidei meus colegas de escola. Eu
estava estudando no Ginásio, pois havia perdido a bolsa do
colégio.
Os amigos trouxeram vinho, pai ficou de chegar mais tarde.
Idaçuile emprestou um toca discos e ao som da jovem guarda,
comemorei meus quinze anos, bem vividos e repletos de doces
recordações.
O Ginásio, que antes era frequentado apenas por rapazes,
passou a ser misto. Era dirigido pelo querido e saudoso Adelmo
Batista Lessa.
Nessa ocasião o Serro recebeu pela primeira vez a famosa Tocha
Olímpica. Foram escolhidas as moças mais bonitas e altas da
cidade para participarem do desfile com a Tocha.
Eu estava entre as escolhidas e junto estavam Dayse Miranda,
Sálvia, Lucinha de Conceição, Çãosinha, Isaurinha e Lucinha de
Dininho, Rosangela e Neide. Fizemos uma pirâmide humana
durante o desfile, eu e Sálvia fazíamos a base e as outras subiam
sobre nós.
Esse evento foi lindo, todas vestidas de preto, correndo e
revezando a Tocha. Dentro da cidade as moças e na entrada do
Serro os rapazes. A tocha não podia ser levada no carro, assim
sendo, íamos trocando. O evento compreendia o Serro e as
cidades vizinhas. Nossa turma ficou encarregada de conduzir a
Tocha até a cidade de Sabinópolis, onde passamos a noite na
casa das gêmeas Eliane e Elânia, que receberam a Tocha.
No ano seguinte meus avós paternos comemoraram bodas de
ouro e toda a família que morava na capital, veio para a festa.
Em meio a tudo isso, meu namoro começou a ficar sério com o
Idaçuile, e ao descobrir, meu pai ficou furioso e ameaçou me
mandar para morar em Belo horizonte.
Ao ouvir os conselhos dos amigos ele desistiu desse intento, mas
parou de falar comigo. Contudo não deixou de se preocupar e
até mesmo fazer minhas vontades. Havia chegado um sapato
lindo numa loja. Logo que vi, fiquei com desejo de comprar. Pedi
à mãe que falasse com ele, mas ela já me desanimou dizendo
que na certa ele não compraria. Para minha alegria e surpresa,
no dia do meu aniversário, ganhei o sapato. Eu tomava-lhe a
bênção todos os dias. Nunca desisti de estar em paz com ele.

Embora não aprovasse meu namoro, pai permitiu que Idaçuile


viesse até a porta de casa e ficasse de sete a nove horas. E me
disse que daria um ano para que eu me casasse com ele, já que
tinha feito a minha escolha.
Nesses dias um palestrante que não tinha os braços nem as
pernas, foi visitar o Serro para ministrar duas palestras. Uma no
colégio e a outra na praça da cidade.
Fomos assistir à palestra na praça, porém eu já havia assistido no
colégio. Assim combinei com o Idaçuile de encontramos na rua
de baixo e disse ao meu pai que ficaria na frente para ouvir
mehor.
Mas pai, que de bobo não tinha nada, desconfiou que algo
estaria errado. E quando eu já estava com o Idaçuile no lugar
combinado, só ouvi dona Laura gritando que tinha boi na linha, e
sai correndo para me esconder atrás da porta da casa do
Sr.Raimundo.
Meu pai passou como um vendaval, mas não me viu. Eu dei a
volta pela rua de cima e cheguei em casa com a cara de inocente
e comentando sobre a palestra. Meu pai fez uma cara de quem
tinha se enganado e não falou nada.
Minha mãe engravidou novamente, e para minha felicidade, veio
a tão esperada irmã com a qual eu sempre sonhara. Quando nos
avisaram que o bebê havia nascido, saí correndo descalça para o
hospital. Ao chegar, vi a enfermeira limpando e notei que as
perninhas estavam roxas, perguntei o que havia acontecido. Ela
explicou que minha irmã estava virada e nasceu pelas pernas.
Eu fiquei brava e disse ao médico, que se algo acontecesse com
ela, ele iria se ver comigo. Minha irmã veio ao mundo no dia 25
de maio, e recebeu o nome de Gilmara.
Foi uma alegria enorme o nascimento dela. Infelizmente eu não
aproveitei muito o convívio com ela, pois ela nasceu em 1970 e
eu me casei em 1972.
Naquela época era costume a igreja apregoar todos os
casamentos com três meses de antecedência. Apregoar era
anunciar no alto falante da igreja o nome de todas as pessoas
que iriam se casar. Como meu pai não aprovava o casamento
conseguiu uma maneira para que o meu não fosse anunciado.
No dia do casamento, ele viajou para Belo Horizonte e proibiu
minha mãe e meus irmãos de irem à igreja. Ele se dizia
decepcionado comigo. Que tinha outros sonhos para o meu
futuro.
Em contra partida, vieram meus tios da capital e minha avó
materna. Meu tio Tinoco, casado com a tia Bela entrou comigo
na igreja. O meu primo Ciro e Ione foram meus padrinhos. Tia
Geralda já estava pronta para vir, quando pai chegou a casa dela
em Belo Horizonte. Ela prontamente escondeu a mala e não
disse que pretendia ir.
Pai a pediu que o levasse até a igreja onde eu havia sido
batizada. Durante o meu casamento no Serro, ele permaneceu
na igreja do Horto, rezando por minha felicidade.
Da minha casa só levei a roupa do corpo. Idaçuile comprou para
mim todo o enxoval e roupas para depois do casamento. Tia
Amélia mandou fazer o meu vestido de noiva com uma modista
muito conhecida. Eu aproveitei uma excursão que faríamos em
João Monlevade, e fiquei em Belo Horizonte sem que pai
soubesse, para tirar as medidas. E me aprontei sozinha e vovó
Alice colocou o véu na minha cabeça. Eu me lembro de Gesner
chorando em um cantinho quando saí.
Pedi ao meu tio Tinoco que passasse antes na casa da vovó
Efigênia para que ela me visse e me abençoasse. Ela disse que eu
estava linda.
Minha amiga Glorinha de Teco cantou lindamente a Ave Maria, e
Dona Rita pediu para que descessem o órgão que ficava no
segundo piso da igreja, pois não mais aguentava subir escadas, e
tocou a marcha nupcial.
A igreja esta repleta. Eu, como não fora preparada por mãe para
o casamento, só pensava em como seria a primeira noite.
Naquele tempo, certos assuntos eram proibidos de se falar, e
muitas como eu, se casavam com tamanha inocência que se
transformava em temor.
Gerdal, desobedecendo à ordem do meu pai, foi ao casamento
escondido de todos. Meu tio Tinoco nos deu de presente uma
viagem de núpcias em um lindo hotel na Serra do Cipó. Na época
ainda era pouco desenvolvido o turismo naquele local. No hotel
passava o rio Cipó, com uma linda correnteza. Por lá havia uma
ponte, único acesso para ir e voltar da capital.
Na segunda noite de núpcias, a janela do quarto estava aberta e
durante a madrugada, uma vaca chegou e enfiou a cabeça por
ela. Como estava escuro, eu levei o maior susto e saí correndo,
quase pelada, gritando pelo corredor afora, achando que era
uma assombração. Foi motivo de risos durante muito tempo.
Para mim, tudo era novidade. Uma pena foi que o meu pai
passou no ônibus quando voltava para o Serro e me avistou. Ele
me olhou com um semblante tão triste que me doeu o coração.
Idaçuile já havia alugado uma casa ao lado da praça de esportes,
no Largo da Igreja do Bom Jesus do Matozinhos, onde fica
também o Museu da Família Ottoni. No fundo da casa tínhamos
uma nascente com uma bica feita de bambu. Comprou uma
geladeira usada, e a pintou de amarelo. Ficou linda.
A casa tinha seis quartos, fizemos os dois da frente de sala, e
outro para os hóspedes. Mandou fazer uma porta vai e vem para
dividir a sala de jantar. Preparou nosso quarto e deixamos um
reservado que mais tarde serviu para a empregada.
A cozinha era grande, com uma mesa ao meio e fogão a lenha.
Meu sogro fez uma horta linda no quintal, onde tinha variedades
de hortaliças.
De início, não consegui me adaptar bem na cozinha. Deixava
queimar a comida. Tentei fazer uma rosca no forno, que de tão
dura, meu cunhado Ildeu, único irmão do meu marido, disse que
se poderia quebrar a cabeça de alguém com ela.
Tínhamos uma vizinha, Dona De Lourdes que gostava muito do
Idaçuile, e me ensinou muitas coisas. Estávamos estudando à
noite no curso Científico que havia estreado no Serro.
A vida a dois era para mim uma novidade intrigante. Não
recebíamos informações e conselhos de como seria a vida de
casado. A minha família não frequentava a minha casa por
proibição de pai. Assim, eu às vezes me sentia muito só, e dormia
na casa da dona Neli, a senhora que foi madrinha de casamento
e costurava para mim. Eu amava, pois lá era uma casa cheia de
mulheres, e ficávamos conversando até tarde da noite.
Meu irmão Gesner começou a me visitar com frequência sem
que pai soubesse. Eu sempre mandava verduras para mãe e
minha avó. Meu cunhado morou conosco por um tempo.
No mês da festa do Divino, a minha avó e minha tia, que iam
todos os dias na novena, entravam na minha casa, tomavam
café, sempre elogiando. Já minha mãe nunca conheceu essa
casa.

Eu me casei em janeiro, e no mês de maio me engravidei. Como


sempre fui muito agitada, eu subi um dia na escada para pintar a
parede, que sempre ficava preta com a fumaça do fogão a lenha,
eu cai e tive um aborto.
Durante esse ano, eu estudava, aprendi a costurar, aprendi a
dirigir. Certo dia, passando de carro pela rua, eu cruzei com meu
pai, que fingiu não me ver.
Em abril de 1973, engravidei novamente. E mãe também estava
grávida. Ela deu a luz ao meu nono irmão, George, e a pedido de
mãe, pai deixou que eu e Gismar batizássemos o bebê, na
intenção de que nos reaproximássemos.
Meu marido jogava em um time de futebol da cidade e assim
comecei a passar os domingos na casa dos meus pais. Eu como
de costume lhe pedia a benção e ele não respondia. Aos
domingos era costume comer frango e macarronada. Quando
era ainda pequena, tínhamos um casal de frangos garnizés em
casa. Tinham até nome, Juquinha e Julinha. Um dia, Juquinha
desapareceu e quando estávamos almoçando, pai brincou
dizendo que eu estava comento a perna dele. Eu quase vomitei e
nunca mais comi frango. Então pai mandava comprar carne e
também manteiga, pois eu não comia margarina.
Era a época das jaboticabas, e eu subi em um pé que estava tão
carregado de frutas, e acabei ficando presa entre duas galhas.
Tiveram que cortar a galha para que eu pudesse sair.
À medida que a barriga ia crescendo, ficava mais difícil
permanecer na sala de aula. Então o Dr.Walter, que era médico e
também professor de química, me dispensou o restante do ano e
eu completei o curso no ano seguinte.
Em dezembro do mesmo ano, nascia meu primeiro filho, Allan.
Nasceu muito grande e eu tive que ser anestesiada. Foi retirado
com fócepes.
Quando acordei, meu cunhado estava no quarto, e a felicidade
dele era tamanha, parecia que era o pai. A noiva dele que era
enfermeira, ajudou no trabalho de parto. Minha falecida sogra,
dona Suzete, entrou no quarto dizendo que ele se chamaria
Inumero Primeiro, já que era o primeiro neto das duas famílias.
Eu prontamente disse que não. E já tinha escolhido o nome do
meu filho.
Allan Dayvisson Andrade. Ela não gostou e meu cunhado disse
que o filho era meu, eu quem deveria escolher o nome. Eu não
cabia em mim de tanta felicidade.
Eu preparei o enxoval dele, bordado à mão com ponto paris,
pintei as fraldinhas com carinhas de animais. Compramos um
berço em Belo Horizonte, tudo escolhido com o maior carinho.
Com um mês de vida, ele fez a cirurgia de circuncisão.
Chegado o dia do batizado, o Cônego Júlio se recusou a fazer o
batismo, alegando que Allan era o nome do fundador do
espiritismo. Quem batizou meu filho foi o capelão da santa casa,
Padre Trombert.
Quando terminamos o curso científico, eu e meu marido fizemos
uma especialização em educação física. Idaçuile fez um ano antes
de mim e começou a lecionar no ginásio. E eu no ano seguinte fiz
e também me tornei professora. Comecei a trabalhar aos
dezenove anos e nunca parei.
A primeira secretária do lar que tive bebia muito, mas dava conta
do serviço. Assim ela se ocupava dos serviços domésticos e eu
comecei a lecionar no colégio das Irmãs e à tarde no ginásio.
Minha mãe engravidou novamente, fato esse que descobri por
intermédio de uma querida vizinha nossa, dona Doraci, que era
cantineira no ginásio.
Eu fiquei perplexa, imaginando que ela não teria mais filhos.
Para nossa, e especialmente minha alegria, veio ao mundo nossa
caçulinha, que recebeu o nome de Ginamara.
E assim se formou minha família, dez irmãos, todos muito bem
criados. Cada um do seu jeito. Uma mistura abençoada do
caráter do meu pai, e do coração amoroso da minha mãe.
Sempre estivemos juntos, unidos, nas alegrias e diversidades.
Nós sempre nos tratávamos com apelidos. Eu era Thiole ou
Nena. Mais tarde virei Gis. Gismar era chamado de Mamá.
Gerdal era Dal, Gesner sempre foi chamado de Zé ou Zezinho,
por se parecer muito com pai,quando pequeno. Gerson era
Onha, porque não conseguia falar unha. Giovanni até hoje eu
chamo de Pretinho, por ser moreninho. Geraldo virou Gegê, mas
eu o chamo de Branquinho, por ser o mais clarinho de todos.
Gilmara, Mamara, George virou Joca e Ginamara virou Gininha.
Quando Allan completou dois meses, eu o levei para passar o
domingo na casa dos meus pais. Pai tinha o hábito de se deitar
após o almoço para fazer a cesta. Eu entrei no quarto sem dizer
nada, e deitei meu filho ao lado do avô. Ele não disse nada.
Meses depois, quando Allan já estava se sentando sozinho,
novamente o coloquei perto do meu pai. E foi a primeira vez que
pai brincou e sorriu para ele. Disse que ele era bonitinho,mas
não como eu.
Assim que venceu o contrato de aluguel da casa, meu marido
disse que estava comprando uma casinha na subida do morro
chamado Botavira. Eu não entendia nada de finanças, mas fiquei
contente por não termos mais que pagar aluguel.
Ele arranjou a casa, colocou esteira no teto, eu plantei rosas na
entrada. Como não tinha água encanada, meu sogro fez uma
cisterna nos fundos. Eu, como já trabalhava, comprei uma
bomba para jogar a água da cisterna para a caixa.
Idaçuile havia comprado um fusca vermelho, novinho. Colocou
um laço e me deu de presente de aniversario.
Com meu primeiro pagamento, eu comprei um conjunto de sala
para mãe. Era um sonho antigo dela, ter uma mesa e um armário
de cozinha. Meu marido chegou em casa e perguntou onde
estava o cheque do meu pagamento. Eu disse que havia pagado
uma prestação do armário, comprado uma cama para o Allan e
uma enceradeira.
Ele ficou furioso, dizendo que havia comprado o carro para eu
pagar. Ele havia pagado apenas a entrada. Eu fiquei muito
decepcionada, pois pensei que o carro era um presente.
Certa ocasião, uma tia do meu marido que sofria de diabetes
precisou vir passar uma temporada conosco, para fazer
tratamento medico. Não havia ainda teste de glicose. Eu aprendi
a aplicar injeção de insulina. Ela ficava muito debilitada. Então
conseguimos uma menina para ajudar nos cuidados do meu
filho. Allan era bem forte, e a menina, que se chamava Leda, era
muito magrinha, pensávamos que ela não daria conta. Ela ia à
escola de manha e na parte da tarde cuidava do Allan. Ficou
conosco por quatro anos, e quando me mudei para Belo
Horizonte, ela foi conosco. Mas não quis permanecer com
saudades da mãe. Eu me lembro dos olhinhos dela, encantada
quando conheceu o mar pela primeira vez.
Tenho por ela uma eterna gratidão por ter sido a primeira babá
do meu filho.
Nessa mesma ocasião, meu marido foi jogar bola na cidade de
Alvorada de Minas e uma senhora conhecida nos pediu para que
deixássemos a filha dela morar conosco para estudar. Nicoleta
da Conceição, que chamávamos de Çãosinha, morou conosco um
bom tempo e também me ajudava nos cuidados com meu filho.
Antes de mudar para essa casa nova, e como já disse, eu tinha
uma horta bem grande, sempre mandava verduras para vovó e
para mãe.
Um dia eu mesma fui levar e fazer uma visita para minha avó, e
ao chegar a casa dela, meu avô disse que ela amanheceu
passando mal, ainda não havia levantado da cama. Eu me
assustei, pois ela nunca tinha adoecido, corri para o quarto dela.
Ela se queixava de uma dor muito forte na barriga.
Eu fui rapidamente ao consultório do Dr. Geraldo e pedi a ele
que me acompanhasse para ver minha avó.
O médico em uma rápida consulta, disse que seria necessário
levá-la para o hospital.
Eu e Daninho meu primo, que era o xodó da minha avó fomos
com ela até o hospital. Era uma segunda feira, dia em que pai
normalmente viajava para Belo Horizonte a serviço da
cooperativa onde trabalhava.
O médico diagnosticou uma peritonite aguda, e disse que
precisava operar imediatamente, pois ela estava perdendo
sangue com uma hemorragia interna. A notícia logo se espalhou
e várias pessoas foram até o hospital para doar sangue. Minha
avó era muito querida no Serro.
A cirurgia foi demorada, por vezes o médico vinha até a sala
onde estávamos aguardando, balançava a cabeça e voltava. Ao
término da cirurgia, o médico disse que ela iria dormir. Pediu que
eu fosse descansar e minha tia Angela ficou no hospital. Meu pai
chegou terça feira pela manhã e foi direto vê-la. Chegamos
juntos e parecia que ela estava apenas esperando por ele. Ao vê-
lo, ela deu o ultimo suspiro e partiu.
Até hoje eu me recordo do semblante de pai, e a dor que ele
sentiu. Essa dor foi tão grande, que também eu, parecia estar
perdendo a minha mãe.
A partir desse dia, meu pai passou a ser mais amável com os
filhos. Ele normalmente era muito formal. Meus tios vieram da
capital, alguns netos. Meu avô ficou desolado, andava de um
lado para outro e repetia, porque ela foi embora sem nem se
despedir de mim. Foi muito triste.
Como meu avô nunca tinha morado sozinho, foram casados por
cinquenta e três anos, ficou decidido que ele iria morar com a
filha, tia Leleu. Mas ele começou a apresentar sinais de
demência, e achava que minha mãe que era a filha dele. Passou
a morar na casa dos meus pai
Apesar de não ser uma situação engraçada, meus pais e meus
irmãos viveram muitas estórias inusitadas com ele durante o
período em que viveu lá.
Ele tirava a carne do prato dos meninos e saia correndo. Todos
os dias ele colocava o chapéu e dizia que iria visitar sua mãe.
Os meninos davam uma volta com ele pelo quarteirão e
voltavam para casa. Ele entrava, pedia benção a minha mãe,
pedia um café. Depois se despedia, e os meus irmãos entravam
com ele pela outra porta. E assim se repetia quase todos os dias.
Só comia se minha mãe servisse o prato para ele.
Meu avô partiu dessa vida no dia sete de setembro de 1977. Ele
sempre dizia que quando morresse queria uma banda de música.
A cidade já estava se preparando para os desfiles do dia da
independência e meus irmãos nem puderam participar devido ao
falecimento dele.

No ano em quem minha avó faleceu, meu marido decidiu que


iríamos mudar para Belo Horizonte. Como nós dois éramos
professores, ele foi antes, no mês de novembro e eu fiquei para
terminar o ano letivo e também substituí-lo nas aulas de
recuperação.
Em janeiro do ano seguinte, eu partia para a capital. Dentro do
fusca vermelho, eu e um amigo que me ajudou a dirigir, atrás o
meu filho com a babá e ainda levei um fogão a gás. Meu marido
estava morando em uma república com meu irmão Gismar e
mais dois amigos, e não tinham fogão.
Eu fiquei por um tempo na casa da tia dele. E não perdemos
tempo, vimos uma oferta de emprego no Colégio Pitágoras.
Chegamos cedo para a entrevista e quando chegou a minha vez,
o Diretor Júlio Kamisuka, uma pessoa extraordinária que nunca
me esquecerei dele, começou a conversar comigo.
Eu sempre muito falante, parecia que era a entrevistadora.
Contei toda a história, as dificuldades e o motivo pelo qual
estávamos recém-chegados à capital. Ele era de uma cidade
chamada Guanhães, vizinha do Serro e se compadeceu da minha
narrativa, nos contratando de imediato.
Começamos a procurar uma casa para alugar. Eu consegui uma
casa pequena no bairro onde minha tia Geralda morava. Mas
meu marido queria uma casa maior, e necessitava de um avalista
e documentos. Dessa forma, o diretor do Pitágoras que eu
mencionei acima, aceitou ser nosso avalista.
Eu engravidei novamente, bem no começo do ano letivo.
Tivemos que vender o carro para começar a nova vida, assim
íamos e voltávamos de ônibus para o trabalho.
Eram duas conduções para ir e duas para voltar. Eu dormia
durante o trajeto.
O bairro Cidade Jardim, onde ficava o colégio estava em plena
expansão, dessa forma os ônibus sempre estavam repletos de
trabalhadores da construção civil.
Um dia, eu me assentei do lado de um senhor que trazia dentro
de sua bolsa, uma marmita. Eu, já cansada de comer repetidas
vezes, arroz e linguiça, ao sentir o cheirinho da comida dele, me
deu água na boca, e um desejo indescritível de provar. Eu não
tinha vergonha de nada. Perguntei a ele se aceitaria trocar a
marmita dele pela minha. Esse senhor com toda humildade, me
disse que ele tinha apenas arroz, feijão e ovo frito. E fizemos a
troca.
Na hora do almoço, a marmita dele tinha feijão, arroz, bata doce
e dois ovos fritos. Esse sabor ficou gravado em minha memória.
Minha barriga cresceu pouco. Assim, esperei passar o período de
experiência para comunicar sobre a gravidez no colégio. Eu
desejava ter uma menina. Não tínhamos ultrasom naquele
tempo, e eu havia passado por um aborto antes. Foi uma
gravidez sofrida, eu trabalhava longe, a perda do vovô, a vida
nova e diferente da capital.
Gerdal veio morar comigo e também Ruth, que era prima do
meu marido. Ajudavam nas despesas. Eu morava em uma rua
paralela a da tia Geralda, e minha prima Élida, duas ruas abaixo.
Nos finais de semana íamos para casa da tia. Ela sempre me
tratou de uma forma especial, tanto carinho que me confortava
nos momentos difíceis.
Eu trabalhei até o dia vinte de outubro. No domingo, dia vinte e
dois, meu marido, que já não trabalhava mais no colégio, estava
jogando bola em uma cidade vizinha.
O INPS fazia o parto de graça, porém a anestesia tinha que ser
paga. Ele havia levado o dinheiro no bolso.
As contrações começaram e eu estava sozinha com Allan dentro
de casa. Não tive outra solução a não ser pedir ao meu filho de
apenas quatro anos para ir correndo chamar minha tia. Meu
primo, que estava na porta lavando o carro, ao ver o Allan
sozinho, correu para junto dele.
Élida foi comigo até o hospital Santa Lúcia. Eu já não aguentava
mais de dor. Na hora do parto, não tinha o dinheiro para a
anestesia.
Para minha felicidade, dei a luz a uma linda menininha. Nasceu
vermelhinha, parecia uma boneca. Eu que já a amava antes de
nascer, quando a vi nos braços da enfermeira, com o cabelinho
todo em pé e aquele rostinho lindo olhando para mim, não
resisti e chorei.
A enfermeira havia sido muito delicada comigo, apertava minha
barriga para ajudar no nascimento. Eu com tamanha dor e
nervosismo a mordi no braço. Quando meu marido chegou, eu
pedi a ele que comprasse flores e dei a enfermeira em sinal de
gratidão.
Minha prima Élida foi o meu amparo no nascimento da minha
filha. Assim pedi a ela que aceitasse ser a madrinha junto com
Gismar. Assim minha linda menina, libriana como eu, recebeu o
nome de Gisele Bruna Andrade.
Eu tinha três meses de licença maternidade. Minha sogra
conseguiu uma babá no Serro, que se chamava Elenise. Ela
trabalhava em uma carvoaria, e tinha o rosto todo queimado. Era
muito novinha, e percebi que teria mais trabalho com ela, decidi
mandá-la de volta.
Passado o período da licença, minha cunhada veio passar um
tempo em nossa casa, com sua filha Micheline de três meses.
Certo dia ela me ligou no trabalho dizendo que a Bruna estava
tendo convulsões e tinha sido internada no hospital.
Fiquei louca. E mais uma vez o diretor, que foi um anjo em
minha vida, pediu a seu motorista que me levasse até o hospital.
Passado o susto, a médica me chamou para uma conversa e disse
que ela precisaria de um cuidado especial. Caso eu parasse de
trabalhar e me comprometesse com esse cuidado, não
recomendaria medicamentos. Caso contrário, iria receitar um
remédio. Infelizmente eu não podia deixar de trabalhar.
Uma vizinha me indicou uma moça que acabei contratando de
imediato, sem checar as referências.
Pela manhã, eu retirava o leite do peito, enchia as mamadeiras e
a noite, quando retornava ela mamava no peito.
A babá, certo dia esqueceu a mamadeira fora da geladeira, e deu
o leite já azedo para minha filha. Ela teve uma gastroenterite
fortíssima, e mais uma vez teve que ser internada.
Quando retornamos no dia seguinte para casa, para nossa
surpresa a babá tinha sumido e levado junto o que encontrou de
valor dentro de casa.
Dessa forma eu preferi me desligar do trabalho para cuidar da
minha princesinha. Por essa ocasião, meu sogro foi
diagnosticado com câncer na garganta. Ele e minha sogra vieram
para nossa casa, e permaneceram durante o tratamento. Assim
me ajudavam também nos cuidados com a Bruna, e consegui um
trabalho em uma loja, por indicação da Dorotéia, minha
cunhada. Os patrões eram judeus. O proprietário se chamava
Moisés e seu filho Israel. Trabalhava como secretária.
Meu marido estava trabalhado em um emprego melhor, na
Copasa. Lá ele conheceu uma colega que havia conseguido uma
casa popular em um bairro novo de Contagem. O bairro se
chama Conjunto Água Branca. Eu havia tentado conseguir uma
casa lá, porém não havia sido sorteada.
Ela nos ofereceu a casa, pois não pretendia morar lá. E caso
permanecesse fechada, corria o risco de perdê-la.
Era uma casa de dois quartos em uma avenida. Não tinha forro e
o piso era de cimento. Mas eu não pensei duas vezes e nos
mudamos para lá. Gerdal ainda morava conosco e também meu
irmão Gesner havia se mudado e veio morar na casa. O bairro
ainda não tinha linha de ônibus, e a rua era de terra.
Tínhamos que descer até a avenida próxima, onde passava o
ônibus do Bairro Água Branca. Nos dias de chuva, era uma luta.
Eu consegui um trabalho no bairro Amazonas em um colégio
onde a diretora era tia das minhas primas. No Conjunto Água
branca não havia escola. Formamos uma associação de
moradores, onde nos reuníamos para buscar soluções para a
melhoria do bairro. Eu, juntamente com outros professores que
ali moravam.
Nós fomos de casa em casa, e conseguimos um abaixo assinado
pedindo a implantação de uma escola. Conseguimos a liberação
do espaço da associação para a escola. Eu trabalhava pela manhã
no bairro Amazonas e na parte da tarde comecei a lecionar
Educação Artística na nova escola que recebeu o nome de
Catarina Jorge Gonçalves.
Compramos um fusca verde, e nos finais de semana, eu e a
Teresinha, minha prima íamos a Divinópolis para comprar roupa
jeans e revender em Belo Horizonte.
Encontramos duas casas à venda no Conjunto. Uma tinha dois
quartos e a outra três. Eu chamei a Teresinha, que morava de
aluguel para tentarmos comprar as casas. Fomos até a Empresa
responsável, na época COHAB, e para nossa surpresa, o diretor
era serrano. Ele nos apresentou os valores das casas e as
condições de compra.
Assim realizamos a compra, eu fiquei com a casa de dois quartos
e minha prima com a outra de três. Nós tínhamos um parente
que possuía uma loja de azulejos.
Fomos até lá e compramos aqueles pisos que já haviam saído de
linha que eram mais baratos. Aos poucos fomos ajeitando a casa.
Fizemos um muro com pedra à vista, chaminé na sala, vidros em
estilo gótico.
Eu comecei a fazer viagens para o Paraguai, para comprar e
revender mercadorias. Naquele tempo, essa prática de negócios
virou uma febre no Brasil. Gerdal já havia se mudado, e meu
irmão Gerson veio morar comigo. Construímos mais um quarto,
aumentamos a cozinha, e dessa forma tive a alegria de me sentir
pela primeira vez em uma casa realmente minha.
Sempre tive o espírito livre, não suportava injustiças. Então me
juntei aos professores que faziam movimentos de greve, para
melhorar o salário.
Entrei para a classe política e me filiei ao Partido dos
Trabalhadores. Eu ficava pouco tempo em casa, fui eleita
secretária da associação de professores de Contagem. Meu
marido começou a sentir ciúmes, e nosso relacionamento foi se
deteriorando gradativamente.
Eu participava ativamente das reuniões, que começaram a
ganhar força. Eu descobri meu lado político, e não podia ser
diferente. Está no sangue dos Ottoni.
Passei a chegar tarde em casa, para fugir das brigas e discussões
na frente dos filhos e irmãos. Eu sempre me interessei bastante
pela história, não somente do Brasil, mas de todo o mundo.
Colonização, escravidão, o avanço das políticas públicas. Enfim,
me tornei uma aliada nas causas sociais.
Eu tinha um sonho de ser jornalista, cheguei a me matricular em
uma faculdade de comunicação, porém meu marido me
desencorajou, alegando que eu tinha uma família para cuidar.
Acabei trocando pelas artes, e fiz muitos amigos, em especial
Ana Helena, que além de ser muito parecida comigo, do mesmo
signo e coração bondoso.
Aos finais de semana, íamos as duas ao Ceasa para arrecadar
alimentos que contribuíam na refeição das crianças na escola do
nosso bairro.
A Ana havia se casado com um senhor que morava no Barreiro, e
andava desconfiada que ele ainda estava se relacionando com
sua ex-mulher e estava voltando aos poucos para a casa dela.
Um dia, eu e ela resolvemos segui-lo, eu estava de moto e não
tinha carteira. Na volta, avistamos uma blits, e eu desesperada
disse a ela para que se segurasse bem. Eles me abordaram, e eu
parei e no mesmo instante, acelerei a moto. Eles vieram atrás de
mim.
Ao passar por uma oficina mecânica, eu entrei como uma louca,
e pedi para que fechassem a porta, pois a policia estava me
perseguindo. O mecânico, no susto, fechou a porta. Eu
imediatamente tirei o capacete e a jaqueta de couro. Depois
saímos andando como se nada tivesse acontecido.
Ao passar por nós, um policial perguntou se havíamos visto uma
moto com duas pessoas passando naquele local. Eu respondi que
vimos uma moto passando muito rápido em direção à avenida
principal. E eles foram atrás.
Eu pedi ao meu irmão que fosse buscar a moto depois.
Ela nunca mais quis andar de moto comigo.
A história de como ganhei a moto, foi mais uma daquelas,
resultado das minhas peraltices.
Um dia, meu irmão Gesner chegou com uma moto emprestada
de um amigo. Ele deixou a moto na rua enquanto tomava um
banho para sair novamente.
Eu nunca havia guiado uma moto, e aproveitando que ele estava
no banho, montei em cima dela, liguei e arranquei. Por sorte,
havia um monte de areia em frente, e eu fui com tudo, caindo
em cima desse monte. Meu irmão saiu louco, gritando que a
moto não era dele.
Quando se aproximou o dia das mães, meu marido chegou com
uma caixa de sapatos e deu para meus filhos para que me
entregassem. Disse que era uma surpresa.
Eu abri a caixa, e havia outra caixa dentro, e depois outra, e
outra, até que por último, encontrei um envelope contendo um
dinheiro para eu comprar uma moto. Ele me abraçou e disse,
está aí um presente para suas aventuras.
Assim, encontramos uma moto anunciada em Sete Lagoas e com
um preço bom. O meu vizinho Sr. Jonas se ofereceu para ir
comigo, ele era um motoqueiro experiente. Era um policial
aposentado e sempre teve moto.
Quando chegamos perto da cidade, ele tentou se desviar de um
caminhão, e caímos. Ele se machucou, precisou fazer uma
cirurgia na cabeça e ficou por mais de um ano com sequelas
desse acidente.
Eu comprei a moto e vim guiando sozinha até minha casa. E para
completar, bati em um carro já bem pertinho de casa e quebrei o
nariz.
A minha moto era 125 cilindradas, cor laranja e eu a apelidei de
Corisca. À noite ia com ela para trabalhar no colégio, e o diretor
sempre me pedia que ligasse para ele quando chegasse.
Em uma dessas noites, eu tive outro acidente com a moto e caí.
Quando eu acordei, estava no hospital, com meu marido e meus
irmãos ao lado da cama. E o nariz quebrado pela segunda vez.
Eu conhecia um senhor que havia morado nos Estados Unidos de
nome Carlinhos. Eu tinha um fusca mais velho e a moto, e estava
querendo comprar um carro mais novo.
Ele me disse que tinha facilidade em conseguir um carro zero
através de consórcio, e isso me interessou.
Eu combinei com ele de nos encontrarmos no Rio de Janeiro,
onde ele estava residindo.
Chegando ao Rio, consegui através de um senhor português
amigo dele, uma carteira de habilitação. Durante todos os anos
que morei em Belo Horizonte, usei essa carteira. Mas sempre
ficava apreensiva quando era abordada pela polícia. Fomos a
uma reunião de consórcio e na hora de dar os lances, ele colocou
um dinheiro no envelope, fazendo a proposta, que foi aceita.
Eu voltei do Rio de Janeiro com um chevette azul, novinho.
Aos finais de semana, eu gostava de me reunir com minhas
amigas no Redondo, um bar muito conhecido na região da
Pampulha. E sempre que eu ia, um garoto conhecido como Pelé,
se prontificava a ficar vigiando os carros, e no final, dávamos
uma gorjeta para ele.
Certa noite de inverno, ao sair do bar, eu me deparei com o Pelé
dormindo dentro do meu carro. Aquela cena me cortou o
coração. Não consegui acordá-lo e resolvi levá-lo para a minha
casa.
Ele dormia tão profundamente, que pedi aos meus irmãos que
me ajudassem a colocá-lo na cama. Era praticamente uma
criança ainda.
Pela manhã, eu o levei para cortar o cabelo, comprei roupas
novas para ele. Na hora do café, servi pão com manteiga, e ele
disse sem cerimônia que não comia pão no café da manhã.
E que estava acostumado com suco, ovos mexidos, resumindo,
café de gente rica.
Eu achei engraçado a sua espontaneidade, já que vivia em uma
região nobre, mesmo morando na rua, ele, com o dinheiro que
arrecadava durante a noite, estava acostumado a comer bem.
Eu disse a ele que poderia ficar morando na minha casa, eu iria
fazer uma viagem e quando retornasse iríamos resolver a
situação dele.
Perguntei o que ele gostaria de presente, e ele me pediu um
relógio. Eu já estava pensando em matriculá-lo na escola, mas
com uma semana, ele não se adaptou à vida em família e se foi.
Durante o tempo em que vivi no Conjunto Água Branca, formei
uma grande família. Minhas vizinhas mais próximas, Dona
Oneida e Seu Jonas do lado esquerdo, que me protegia como
uma mãe, e do lado direito Cida e Maurício, que sempre que
faziam alguma comida gostosa, me ofereciam.
Em frente à minha casa, João e Mariinha, ele me emprestava
dinheiro e sempre me ajudava nos momentos de aperto.
O Sr. Antonio e dona Maria, levavam meus filhos em todos os
passeios que faziam. Dona Toninha, um amor de pessoa, Dona
Maria e Seu Zé, sempre sorridentes. Dona Dalva e seu marido Zé,
eram sempre muito prestativos. Dona Zeni e Seu Vanderlei, que
se vestia de Papai Noel nos natais. Em uma esquina, Dona Ceida
e Seu Enéias, que eu já conhecia da época em que era motorista
de ônibus. E na outra esquina, Angela e Seu Antonio.

Quando chegavam as comemorações juninas, enfeitávamos a


rua e fazíamos barraquinhas, e muitas pessoas vinham
comemorar conosco. Foi um tempo mágico o que vivi na Rua X,
52 do Conjunto Água Branca.
Apesar de trabalhar bastante, sempre procurei reservar um
tempo para me dedicar aos meus filhos. Viajava com eles nas
férias, levava para assistir peças de teatro.
Quando veio a Belo Horizonte, a famosa Boneca Humana, que
podíamos entrar dentro para conhecer a estrutura do nosso
corpo, eu os levei para ver. Também para conhecer a turma do
Peter Pan que vieram fazer um show e a Ticiane chorou com
medo do Capitão Gancho.
Mandei a Bruna para conhecer a Cidade da Criança em São
Paulo, e levei todos os três em uma das viagens ao Paraguai e
Argentina.
Sempre comemorei os aniversários de cada um deles, com um
tema que eles mesmos escolhiam e eram feitos por mim. Eu
mesma gostava de preparar dos comes e bebes até a decoração.
Os saquinhos de lembrancinhas, eu mesma desenhava
personalizando com o nome de quem iria receber.
No período em que exerci a função de secretária da APC, passei a
fazer muitas viagens, participando de congressos e reuniões da
classe. Fui a Caldas Novas, depois em Vitória. Estive em São
Paulo por ocasião da fundação da CUT.
Tivemos um congresso em Natal, na praia de Ponta Negra, e à
medida que a classe trabalhadora, em geral, ia tomando força no
Brasil, no sentido de reivindicar os direitos e melhorias, eu
também ia amadurecendo. Conheci pessoas incríveis, com a
cabeça voltada para ajudar na valorização e reconhecimento dos
profissionais de diversas áreas.
Fazíamos passeatas, promovíamos greve. O Brasil ainda estava
em plena ditadura, então era comum sermos perseguidos e
oprimidos pela polícia. Em uma dessas passeatas, eu e mais três
colegas estávamos correndo da polícia, eu havia quebrado o
salto do sapato e entramos em uma casa no bairro Floresta.
A Casa da Zezé, como era conhecida na época, era muito famosa
por funcionar como um estabelecimento comercial, onde o
comércio era o corpo.
Entramos desatinadas, com a polícia atrás jogando água, tinha
uma escada enorme, na qual subimos sem pestanejar. No topo
da escada, estava uma senhora elegante, bem vestida, que
apesar do espanto, manteve o sorriso e a delicadeza que, dizem,
lhe era peculiar. Ela nos perguntou o que estava acontecendo, e
ao se inteirar da situação, rapidamente nos abrigou em um dos
quartos da casa, onde ficamos por algumas horas.
Também durante esse período, conheci um professor que havia
deixado a psicologia para lecionar. Ele participava ativamente
junto conosco de todos os movimentos. Eu cresci na política
aprendendo com ele, como lutar e reivindicar sem perder a
generosidade, sem ódio e agressão.
Ele foi para mim um verdadeiro herói e exemplo. Infelizmente
ele foi assassinado na Bahia durante um movimento onde ele
defendia outra causa, não menos importante. Seu nome era
Marcos Vinícius, carinhosamente chamado por todos de
Matraca. Eu deixo aqui uma homenagem especial a esse homem
incrível, que espero, tenha deixado muitos seguidores.
Eu logo consegui uma escola e um trabalho para o Gerson.
Aconteceu que, quando estávamos fazendo o terceiro quarto na
casa, ele quebrou o braço enquanto ajudava os pedreiros. E foi
passar um tempo no Serro, para se recuperar.
Era mês de janeiro, e meus tios Silvio e Amélia me convidaram
para um passeio em Cabo Frio, no Rio de Janeiro.
Caminhando pela praia com Allan e Bruna, meu tio me olhou de
uma maneira diferente. Logo me disse que eu estava grávida
novamente. Eu ri para ele e disse que não fazia sentido, meu
relacionamento não estava bem e eu e meu marido quase não
ficávamos mais juntos.
Chegando a Belo Horizonte, fiz o exame, e para minha surpresa,
eu estava realmente grávida de três meses. No início, chorei,
pois já estava decidida a me separar. Contudo agradeci a Deus, e
pedi que me desse um filho saudável e abençoado. Fiz todo o
prénatal com o mesmo médico que fez o da Bruna.
Nesse mesmo tempo, minha melhor amiga também engravidou
do seu ex- marido, minha vizinha de frente também grávida, e
minha cunhada.
Minha casa estava em obra, e eu trabalhava um pouco distante.
Havia combinado com uma colega de pintarmos o muro da
escola com motivos infantis. E eu, já com a barriga crescida,
subia e descia a escada, e com alegria cumprimos o combinado.
O muro ficou lindo, recebemos vários elogios.
O meu parto estava previsto para o mês de julho. Ainda não
existia ultrassonografia. Como em julho era férias escolares, eu
ficaria de licença maternidade durante os próximos três meses.
O mês passou e meu bebê não nasceu. Assim, acabaram as férias
e eu voltei a trabalhar até o dia sete de agosto. Nossa casa ainda
estava em reforma e o pedreiro, como morava longe, ficava lá
durante a semana e ia para a casa dele aos finais de semana.
No dia onze de agosto, era o dia limite marcado pelo médico
para o nascimento. Eu então chamei minha prima Teresinha para
me acompanhar até o hospital.
Ao examinar, o médico constatou que eu já estava com dois
centímetros de dilatação, e mandou que eu fizesse a ficha de
internação.
Quando o médico saiu da sala, eu disse a minha prima que não
poderia ficar internada ainda, pois necessitava organizar como
seria com meus outros filhos. Eu já havia planejado de deixá-los
com Élida e ainda me preocupei em deixar comida pronta para o
pedreiro, como fazia de costume.
E assim, contrariando o pedido do médico, saí do hospital.
Durante o trajeto, dentro do ônibus, a minha bolsa estourou. Eu
me levantei e permaneci de pé com a roupa e sapatos todos
molhados. Cheguei em casa, tomei um banho, ajeitei as crianças,
fiz a comida. Esperei meu marido chegar e fomos direto para o
hospital.
Ao chegar, meu médico já estava na porta me aguardando, e
disse brincando que iria puxar minha orelha. Foi o tempo exato
de chegar, e já entrei em trabalho de parto. Eles me aplicaram
uma injeção anestésica e eu, sentada na ponta de uma banheira
grande, dei a luz a uma linda menina. Ela nasceu enorme, com o
rostinho redondinho, pesou quatro quilos e meio. Foi amor à
primeira vista. Uma emoção indescritível.
No dia seguinte o pai veio nos ver. Eu sempre muito impaciente,
queria a todo custo tomar um banho, pois sentia minha cabeça
coçando de forma a me incomodar, e as enfermeiras não
apareciam.
Então me levantei sozinha e fui para o banheiro. Quando meu
marido entrou no quarto e viu a cama vazia, levou um grande
susto. Eu saí do banheiro com o cabelo molhado e logo vimos
piolhos andando no travesseiro. Foi uma loucura. Precisei
colocar remédio na cabeça e permanecer durante três dias com
uma touca.

Ao receber alta do hospital, Ana Helena me levou para casa dela


e me cuidou como uma mãe. O filho dela já estava com três
meses, Emanuel. Não precisei comprar quase nada para o
enxoval da minha filha, pois tanto ela quanto minhas vizinhas
que haviam dado a luz, me ofertaram o que eu necessitava.
Assim nasceu minha caçulinha Ticiane.
Quando terminou o meu resguardo, eu fui com meus filhos para
o Serro. Eu fiz uma prova no Instituto de Educação para concluir
o curso Normal, e precisava ter calma para estudar. Minha irmã
Gilmara cuidava da Ticiane enquanto eu ia para o colégio. Tirava
ás vezes o leite e deixava em uma mamadeira. Meus irmãos,
ainda pequenos, quiseram provar o gosto do leite materno. E
quando provaram, não gostaram.
Durante o tempo em que fiquei no Serro, deixei meu vizinho
João ficar com a família em nossa casa, para que ele pudesse
colocar laje na casa dele. Meu marido e meu irmão ficaram na
casa também.
Voltando para Belo Horizonte, fiz a prova e fui aprovada. Eu me
tornei professora P1A e passei a ter um salário melhor.
Enquanto estive no Serro, fiquei preocupada com a situação
financeira na casa dos meus pais. Então fiquei buscando uma
ideia para ajudá-los.
Perguntei a minha mãe se ela gostaria de vender bijouterias a
domicilio. Nessa época, uma novela chamada Feijão Maravilha
estava fazendo muito sucesso e eu me lembrei de que os brincos
feitos de feijão estavam vendendo muito em Belo Horizonte.
Minha mãe resolveu experimentar, e eu comprei uma boa
quantidade de produtos e mandei entregar no Serro.
Em uma semana, ela vendeu tudo e me mandou o dinheiro
dobrado.
A partir daí, ela não parou mais de trabalhar e passou a ter uma
independência que mudou a história dela e de toda nossa
família.
Para voltar a dar aula, eu precisava de alguém para cuidar das
crianças.
O ano letivo começou e eu trabalhava em uma classe de crianças
especiais. Tive uma reunião com os pais para explicar que não
poderia continuar acompanhando essa classe, pois estava sem
uma babá. Uma mãe se levantou nesse instante dizendo que de
forma alguma, pois o meu trabalho e dedicação com a classe
estava fazendo a diferença. As crianças me adoravam e estavam
tendo uma evolução espantosa. Assim se dispôs a deixar que
uma filha dela que já havia se formado tomar conta dos meus.
Dessa maneira a filha dela, Rosana, entrou em nossas vidas e
conviveu conosco por quase oito anos e praticamente acabou de
criar a Ticiane. Eu sempre tenho ela em minhas orações.
Sempre fui muito positiva. Tudo que eu pensava ou desejava
fazer, de uma maneira ou de outra, eu fazia.
Certo dia disse brincando ao meu pai, que um dia iria aparecer
em um programa de televisão. E de fato, existia na época um
programa durante a tarde, de debates e entrevistas.
Os professores foram convidados a participar de um debate no
programa Dirceu Pereira na TV Itacolomi, com o então prefeito
de Contagem, que depois se tornou governador.
Eu fui representando a classe. E pedi que avisassem ao meu pai,
que ao assistir, ficou muito orgulhoso em me ver pela TV.
De outra feita, ao assistir uma reportagem sobre a morte do
então presidente dos EUA, John Kennedy, disse a mim mesma
que um dia iria conhecer aquele lugar bonito que mostravam na
reportagem.
E de fato eu já fui várias vezes, ele foi enterrado no Cemitério
Nacional de Arlington, Virginia.
Voltando do Serro, Ticiane já estava com dois meses.
Infelizmente, meu casamento estava se desfazendo a cada dia.
Para aumentar a renda em casa, passei a tirar licença da escola e
a trabalhar com turismo. De quinta a domingo, eu levava grupo
de pessoas para Manaus pela Vasp. E sempre que era solicitada,
viajava para o Paraguai de ônibus, levando pessoas que iam fazer
compras. Eu trabalhava de free lancer pela Globotur, e
posteriormente eu fui contratada pela empresa Minas Turismo.
Eu estava em Manaus em uma noite onde fui convidada para
uma festa de casamento muito chick. Tudo corria bem, quando
ouvi alguém dizendo que a sopa servida era de tartaruga. Eu fiz
um escândalo e fui embora imediatamente.
Em outra ocasião, eu e a Mariângela, companheira de viagem
nos hospedamos em um hotel em Foz do Iguaçú. Ao notar que o
porteiro estava chorando, quis saber o motivo e ele nos contou
que o filho havia sido assassinado no Paraguai.
Nós duas saímos para curtir a noite e resolvemos passar no
velório. Chegando lá eu notei que haviam colocado uma bacia
com água embaixo do caixão, e muito curiosa como sempre, quis
saber o que significava. Eles me disseram que era um costume
entre eles, para purificar e lavar a alma antes do defunto subir.
Eu não me contive e comecei a rir. Foi um infeliz impulso, e
tivemos que sair do local.
Eu tinha um cliente que sempre me encomendava whisky. Ele
tinha um Gol, e certa vez me pediu para levar o carro para o
Paraguai para vendê-lo por lá. Eu fui dirigindo o carro e levei
duas amigas.
Quando estávamos atravessando a ponte da divisa entre Brasil e
Paraguai, fomos parados pela polícia. Um deles começou a gritar
dizendo que era um cabrito, e eu assustada respondia que era
um carro.
Então veio outro policial que falava português, mandou que
tirássemos nossos pertences do carro, pois se tratava de um
veiculo roubado. Tivemos que ir até o posto policial, e com muito
custo, expliquei que o carro não era meu, e que estava fazendo
um favor para um amigo.
O carro ficou detido, e quando eu liguei para o cliente, ele não se
mostrou surpreso. Foi aí que eu entendi que ele havia me usado
para fazer essa trapaça.
Eu, apesar de já estar experiente em viagens de turismo, era
muito inocente quando se tratava de golpes e tantas coisas fora
da lei que se passavam entre o Brasil e Paraguai.
Em outra ocasião, fui até São Paulo onde comprava roupas na 25
de março para revender em Belo Horizonte. Lá eu encontrei um
caminhoneiro que viajava sempre com meu grupo para Manaus.
Ele me pediu para levar uma encomenda para Belo Horizonte,
pois não poderia viajar aquela semana. E disse que alguém
estaria esperando por ela na primeira parada do ônibus, antes de
chegar até a rodoviária, e me deu duas caixas de bombons de
presente para meus filhos.
Acontece que esse amigo não estava no lugar combinado e eu
segui o meu destino.
No outro dia, eu liguei para o número de telefone que ele havia
me dado, mas o número não existia.
Eu fiquei curiosa e acabei por abrir a encomenda. Para minha
surpresa, nesse pacote havia mais de um quilo de cocaína.
Eu entrei em desespero e resolvi ligar para o Dr.Waldir, que era o
delegado amigo da minha família. Ele me acalmou e disse que eu
não me preocupasse, pois eles não tinham o meu endereço. E
que provavelmente o rapaz deveria ter sido preso. E eu
entreguei o pacote para ele.
Na cidade de Nova Lima, que faz parte do entorno de Belo
Horizonte, morava uma dentista de crianças, que se tornou
minha amiga, a Rita, e eu me ofereci para pintar as paredes da
clínica dela com os personagens da Turma da Mônica.
Eu fiz uma linda gravura, onde o Cebolinha entregava uma
escova de dente para a Mônica através de uma janela, vestidos
de Romeu e Julieta. Ela em troca cuidou dos meus dentes.
Uma noite ela fez uma grande festa na casa dela e meus filhos
estavam no Serro. Eu fui de moto, uma casa grande, muito
bonita, várias pessoas interessantes. Já era madrugada, e muitos
convidados já tinham ido embora. Um pequeno grupo estava no
jardim e começaram a fumar um cigarro de maconha.
Eu resolvi experimentar, pois os meus irmãos sempre fumaram e
eu tinha muitos amigos que fumavam. Quis conhecer o efeito
desse cigarro que fazia as pessoas rirem.
Como eu não tinha o hábito de fumar cigarro, eu tentei tragar a
fumaça, estava com uma dor de cabeça que por incrível que
pareça, passou logo.

Depois resolvi ir embora, pois o dia já estava quase


amanhecendo. A Rita não deixou que eu fosse de moto. Assim eu
fiz, e chegando ao ponto do ônibus, resolvi passar na padaria e
comprar uma rosca de pão para o café da manhã.
Era o último ônibus da madrugada e lá estava o meu vizinho
Nelson, que era policial.
Enquanto esperávamos a chegada do ônibus, eu comecei a
comer a rosca, e quando olhava para a rua, tinha a impressão de
que ela estava fazendo ondas como se fosse o mar. E continuei
comendo a rosca sem mesmo notar.
Quando entramos no ônibus, já não tinha sobrado quase nada da
rosca, e o Nelson ficou rindo, e disse que realmente eu deveria
estar muito faminta.
O cheiro do Lança perfume, eu gostava de sentir. Era muito
comum comprarmos no Paraguai para vender em Belo
Horizonte. Algumas vezes eu cheirei no quarto do hotel, após um
dia inteiro de trabalho.
Em uma dessas noites, estávamos muito felizes, pois o dia tinha
sido muito produtivo. A turma estava bebendo, rindo e
conversando. Começaram a cheirar um vidro de Lança perfume e
passaram para mim. Eu cheirei, e de repente comecei a morder o
dedo da Mariângela tão forte que a machuquei.
Eu refleti e disse a mim mesma que drogas não faziam parte da
minha vida.
Foram muitas aventuras durante o tempo de guia turística.
O proprietário, Sr. Ataíde, que sempre fora uma pessoa muito
generosa, se afeiçoou a mim.

A antiga funcionária da agência ia regularmente nos visitar, e


nos tornamos grandes amigas. Através dela, conheci o Sr.
Klinger, que possuía também uma empresa do ramo de turismo.
Eu fui convidada por ele para gerenciar sua empresa, a Klintur
Turismo.
Finalmente, após quinze anos eu me separei do Idaçuile. Ele foi
morar em Bom Despacho, pois havia conseguido um bom
emprego por lá. E eu continuei na casa.
Durante minhas tantas viagens ao Paraguai, conheci um rapaz
que morava na fronteira, em Fóz do Iguaçu. Ele era paraguaio e
se chamava Chico. Possuía uma boate por lá e começamos a
namorar. Chegou a me pedir em casamento, porém eu não havia
me divorciado ainda e não aceitei. Vivemos bons momentos
juntos.
Ele quis ir até Belo horizonte e levou um casal de amigos. Esse
amigo sempre estava agarrado a um ursinho de pelúcia. E aquilo
me deixava intrigada.
Na divisa de São Paulo com Minas, a polícia nos parou e mandou
que descêssemos do carro. Nesse momento a namorada do
rapaz pegou o ursinho e ficou abraçadinha com ele.
Eles revistaram o carro e nos liberaram em seguida.
Ao chegarmos à minha casa, ela nos contou que o ursinho estava
recheado com maconha. Eu quase sofri um ataque cardíaco.
Nesse período, eu passei por momentos delicados de saúde.
Gerson me colocou como dependente dele no plano de saúde.
Meus filhos foram passar uma temporada com o pai, enquanto
eu me reestabelecia.
O jardim Escolar onde ticiane estudava, era perto da casa. Eu me
ofereci para pintar todo o muro com motivos infantis, para a
comemoração do dia dos pais. Meu namorado era muito bonito.
E no dia da festa, minha filha levou o retrato dele ao invés de
levar o do pai. Meu ex-marido ficou muito decepcionado, mas
criança é assim mesmo, têm ações inesperadas.
Meu relacionamento com o Chico não durou muito, pois a
distância era grande e nossas realidades muito diferentes.
Conheci outro rapaz de nome Gilberto, em uma festa na
Pampulha. Ele marcou muito a minha vida.
Meu pai nunca aceitaria que eu me envolvesse com outra
pessoa. Apesar de não ter sido a favor do meu casamento, ele
era contra o divórcio. Nas palavras dele, casou, tinha de aguentar
até o fim. Ainda que a cruz fosse pesada.
Em um passeio ao Serro, fui com meu pai assistir à missa em uma
pequena capela onde o Bispo Dom José Pedro Costa, que se
aposentara e voltara para o serro havia construído. Na hora da
comunhão, eu me levantei para receber a hóstia e meu pai me
puxou e disse baixinho que mulher separada não poderia se
comungar.
Eu me tornei grande amiga da Maria, a moça que trabalhava com
turismo. Certo dia ele me fez um convite que mudaria toda a
minha vida.
Ela me chamou para irmos morar nos Estados Unidos. A princípio
eu pensei que seria uma loucura. Por outro lado, fiquei
imaginando o futuro melhor que poderia oferecer a meus filhos,
e também na liberdade de viver sem o olhar reprovador do meu
pai.
Eu fiquei muito tentada com essa oportunidade. Ela me disse
que iria participar de um curso de turismo, três dias no Rio de
Janeiro e uma complementação em Nova York. Ela já tinha
pagado a inscrição.
Eu peguei a inscrição dela e fiz uma cópia, mudando o nome e
colocando o meu. Eu conhecia um senhor que trabalhava com
emissão de vistos. Ele me passou a relação de documentos
necessários e o meu patrão fez para mim uma carta onde dizia
que eu iria fazer um curso de turismo a pedido da empresa.
Os meus comprovantes de renda eram insuficientes para que o
consulado me desse o visto. Porém eu pedi a Deus, que se fosse
para eu ir, que tudo desse certo.
Eu liguei para minha mãe e pedi a ela que acendesse uma vela
para Nossa Senhora do Rosário, e durante nove dias intercedesse
por mim para a obtenção do visto, que sempre foi e ainda é até
hoje, muito difícil de conseguir.
Eu também, da mesma forma, acendi uma vela durante os nove
dias. No novo dia a vela teria que ficar acesa até terminar.
Para minha alegria, no nono dia, recebi o comunicado de que
meu visto fora concedido. Imediatamente liguei para o Serro,
contando a novidade.
Nesse período, notei que o Gilberto estava agindo de maneira
diferente e descobri que estava reatando o casamento. Assim
decidi terminar com ele.
Eu resolvi ir sozinha, desbravar a América. Esperei pelo
casamento do meu irmão Gerson, que estava próximo.
O Dr. Waldir Madureira, além de conterrâneo do meu pai, era
um grande amigo meu. Ele me emprestou dois mil dólares. E eu
ganhei um AD 75, nome dado a uma ajuda que as empresas de
aviação davam para os trabalhadores de turismo que batiam
uma quantidade de cotas de vendas estabelecidas por elas.
Na verdade essa ajuda equivalia a setenta e cinco por cento do
valor da passagem. Eu havia conversado com meu pai a respeito
da viagem.
Ele conseguiu para mim uma família inteira que queria viajar e
compraram as passagens comigo. Dessa forma eu consegui
estabelecer a meta e obter o desconto.
Eu pedi ao meu ex- marido que me ajudasse, cuidando dos
nossos filhos no tempo da minha ausência, um tempo que nem
eu mesma jamais imaginaria quanto seria. Assim, ele voltou a
morar na nossa casa, e alguns irmãos que ainda moravam
comigo ajudariam nas despesas até que as coisas se arranjassem.
O Sr. Ataíde me propôs sociedade na agência. Ele me disse que
ficasse lá por seis meses e juntasse uma quantia para que nos
tornássemos sócios. E também pediu a uma amiga, que morava
já nos EUA que me recebesse na casa dela e me abrigasse por
algum tempo. Eu vendi o meu carro e meu telefone.
Fiz uma compra bem grande para casa, comprei roupas,
utensílios domésticos, e tudo o que fosse necessário para o
tempo em que eu estivesse fora.
Na noite anterior a minha partida, fizeram uma bela despedida
para mim. E dois dias antes, também recebi uma bela
homenagem dos meus amigos do turismo, do Dr. Waldir e
demais amigos, uma bela festa na Pampulha, que nunca mais
esqueci.
Era o dia 1º de agosto de 1988. Eu partia para uma das maiores
aventuras da minha vida. Um novo ciclo se iniciava, um
recomeço que mudou a minha história e de tantas outras
pessoas que conviviam comigo.
Eu me despedi de todos e meu coração ficou partido ao meio, ao
ver meus filhos chorarem no momento que sai.

No aeroporto estava o D. Athaide, o Sr. Paulinho, proprietário da


Mangabeira Turismo e a Maria José minha amiga. Ele pediu ao
Paulinho que me ajudasse no que fosse necessário ao
desembarcar nos EUA.
Eu chorei durante todo o voo de Belo Horizonte até o Rio de
Janeiro. Estava acostumada a fazer viagens, isso fazia parte da
minha rotina. Porém nunca tinha ido tão longe e com a incerteza
do que me aguardaria.
Comprei roupas para a viagem a prestação, também um enxoval
para minha empregada que estava grávida. Teria dois meses
para pagar as dividas. Matriculei meus filhos no Instituto Santa
Inês, que era um colégio particular reconhecido em BH.
O avião estava bem vazio no trajeto até Nova York. Chorei tanto
que acabei por adormecer, e no começo da manhã chegamos ao
meu destino.
Pensei comigo, agora é levantar a cabeça, arregaçar as mangas e
partir para a luta.
Ao desembarcar, a senhora que estaria me aguardando não
estava lá. O Paulinho ligou para a casa dela e ninguém atendia.
Um primo do Paulinho estava aguardando alguns repórteres que
iriam para a Suiça cobrir os jogos de verão.
Ele se chamava Toninho, e nos convidou para irmos para a casa
dele, junto com a equipe de reportagem.
Eu fiquei um pouco embaraçada, mas ele com toda sua
gentileza, disse que sua casa era como um coração de mãe.
Caberia todo mundo.
Chegando a casa dele, em State Island, o táxi tinha ficado em
60,00 dólares. Eu, como não entendia de valores americanos, a
pedido dele, passei os 70,00 que eu tinha no bolso.
Depois percebi que havia sido passada para trás pela primeira
vez, já que o valor teria que ser divido por todos.
A esposa do Toninho nos recebeu bem. Ela me convidou para
ajudá-la a fazer o almoço, e assim o fiz. Eles moravam no terceiro
andar. Naquele mesmo dia, tentamos ligar para a senhora que
me acolheria, mas o telefone nunca atendia.
Para meu espanto, o Sr. Paulinho disse aos demais, que eu havia
tomado os clientes dele na ultima semana de trabalho. E sendo
assim, ele iria me deixar na porta da casa da senhora até que ela
pudesse me receber. Eu comecei a chorar, de medo e decepção.
Mas a dona da casa interveio a meu favor e disse que não
colocaria ninguém para fora da casa dela. Essa atitude me
confortou um pouco.
E quando eu abri minhas malas, ela ficou encantada com os
jogos de roupa intimas que eu havia comprado. Eu disse a ela
que poderia escolher o que ela quisesse, seria um presente pela
acolhida.
Também estava usando uma joia de prata e quatro anéis feitos
por um amigo do Brasil, Gilbertinho. A Carmem, dona da casa,
não ia ao Brasil já há mais de dez anos. Como ela também gostou
das joias, eu a dei de presente os dois anéis. Nunca tive apego a
nada material.
O Toninho foi até a varanda, e ao avistar um rapaz que morava
no andar de baixo, gritou para ele, dizendo que haviam chegado
duas lindas moças brasileiras.
Esse rapaz, com o nome de Paulo, veio até nós, com uma camisa
azul, óculos escuros e me perguntou o que eu fazia no Brasil.
Respondi que era professora, mas estava disposta a trabalhar no
que fosse preciso.
A Maria José disse que era cabeleireira. E o rapaz a pediu que
cortasse o cabelo dele. Descemos até embaixo e ela cortou o
cabelo dele. Ganhou 20 dólares, e pulando de alegria, gritou que
havia ganhado seu primeiro dinheiro na América.
No momento em que eu fui apresentada a esse rapaz, Paulo, que
já morava nos EUA e era paranaense, me veio à memória um
encontro que eu havia tido com uma amiga de Pará de Minas, a
Mariângela, há uns seis meses antes. Ela havia me pedido para
levá-la a uma cartomante no bairro Venda Nova. Eu não queria
ir, pois nunca acreditei nessas histórias. Ela insistiu e fomos. A
consulta com a tal cartomante custava 30,00 e ela pagou duas.
Ela entrou e permaneceu durante duas horas mais ou menos
conversando com a mulher, enquanto eu aguardava na varanda
da casa.
Quando ela saiu, toda sorridente, ficou elogiando, se dizendo
encantada com as palavras da cartomante. Chegou a minha vez,
e eu entrei mais por curiosidade e por já estar lá.
A mulher começou a me fazer perguntas, querendo saber o que
eu estava desejando, e por qual motivo estava lá. Ela também
me perguntou sobre as mudanças que eu estava querendo para
a minha vida, e até então, eu ainda não tinha planos de morar
fora do país.
Ela citou alguns nomes de pessoas e me questionou quem eram
eles na minha vida. Ela me perguntou quem era Geraldo, e eu
respondi que tinha meu ex-marido, Geraldo Idaçuile, e meu
irmão que também se chamava Geraldo. Ela perguntou quem era
Márcio, e no momento eu não me recordei de ninguém com esse
nome que significava algo para mim. E depois perguntou quem
era Paulo. Eu, pensando no Paulo da agência, disse que era um
colega de trabalho, e que por sinal era muito chato, pegava no
pé de todo mundo e não tinha tanta importância para mim.
A cartomante me olhou fixamente nos olhos e disse de uma
maneira bem direta, que Paulo era a pessoa que iria transformar
a minha vida completamente e que eu iria encontrá-lo bem
longe, do outro lado do oceano. Eu saí da consulta rindo, e disse
para a minha amiga que ela não havia dito nada.
Voltando no momento em que fui apresentada ao Paulo, eu
imediatamente me lembrei das palavras da cartomante. Eu fiquei
sorrindo e as pessoas a minha volta sem entender qual o motivo
do meu riso. Eu estava pensando comigo mesma, se seria aquele
Paulo, o grande transformador da minha vida.
Até hoje eu me recordo disso, pois a cartomante estava
completamente certa.
O Paulo foi um divisor de águas em todos os sentidos. Foi o anjo
da guarda que Deus reservou para mim, naquele momento,
naquela situação, e principalmente em um lugar tão distante e
estranho para mim.
A Maria logo que terminou de cortar o cabelo dele, saiu com um
rapaz que já haviam combinado. Ela saiu para acertar um
trabalho de babá que já estava arranjado. O Toninho me disse
que ele e a esposa, juntamente com o Paulo, trabalhavam em
um restaurante no Brooklyn. Ele trabalhava em um restaurante,
mas recebeu uma oferta melhor.
Eu havia chegado nos EUA no dia 2 de agosto. E no dia seguinte
era aniversário do meu irmão Gerson. A sua filha nascera no
mesmo dia do mês. A dona da casa, a meu pedido, me deixou
que ligasse para felicitá-lo pelo aniversário e pelo nascimento da
filha.
Assim que eu comecei a falar com ele, não me contive e chorei.
Eu estava com um turbilhão de sentimentos e incertezas, a
cabeça estava a mil.
Nesse momento, o Paulo percebeu a minha emoção, e se
aproximou muito educadamente, me dizendo para não chorar.
Nessa noite, a banda Scorpions iria tocar em uma cidade vizinha.
Eles já haviam combinado de ir, e o Paulo gentilmente me
convidou para ir com eles. Eu disse que não, que nem sabia
dançar, e ele sempre gentil, me disse que isso não importaria,
pois ele poderia me ensinar.
Assim nós fomos. A Carmen participou de um desfile das
brasileiras mais elegantes. Eu emprestei para ela um vestido
lindo que havia levado, e ela realmente ficou muito bonita.
No dia oito, o Paulo estava fazendo aniversário, e iria comemorar
em um barsinho que frequentavam. Ele e um amigo, Carlos Bel,
que fazia imitação do Roberto Carlos e era muito conhecido por
lá. Se você fechasse os olhos podia ver o próprio Roberto na sua
frente. Ele me convidou para ir com eles. Começaram a beber e a
um determinado momento, o Carlos mencionou ir embora, e
Paulo disse que ficaria mais um pouco e depois me
acompanharia até em casa.
Eu nunca fui habituada a beber, a não ser uma taça de vinho de
vez em quando. E acompanhando os rapazes, acabei ficando
tonta. O Paulo me acompanhou até a porta do meu quarto, e nos
beijamos. Só me lembro de ter acordado pela manhã, vestida e
inclusive com sapatos.
Quando fui para os EUA, me pediram que levasse um dinheiro
para um rapaz de nome Sérgio, que trabalhava em um
restaurante em Nova Jersey. Por coincidência, o Paulo conhecia
o rapaz, já haviam trabalhado juntos e se dispôs a me levar. Eu
fiquei muito feliz e assim, fomos na segunda feira.
Saímos cedinho, pegamos um ônibus, depois um ferry boat e um
trem.
O Paulo me disse que já tinha avisado que iríamos. E que ele
havia combinado de um dia levar a esposa dele para apresentar
aos antigos colegas de trabalho. E me perguntou se poderia me
apresentar como sua esposa. Eu disse que tudo bem.
Assim que chegamos à cidade de Perth Amboy, que fica no
estado de Nova Jersey, fomos até o restaurante Portuguese
Manor, onde o Paulo havia trabalhado e era o local onde
entregaria o dinheiro.
Os amigos dele logo perguntaram se a esposa dele que era loira
e do sul, de repente havia se transformado em uma linda
mineira, de cabelos longos e pretos. Todos riram.
O proprietário do restaurante convidou o Paulo para voltar a
trabalhar com eles, pois ele era muito querido e sempre foi
muito responsável no trabalho, além de ser um ótimo chef de
cozinha.
Eu o aconselhei a voltar para o restaurante.
Nesse mesmo dia, fui até a casa da senhora que iria me esperar
no aeroporto. Ela me explicou que estava com a mãe internada
no hospital, e se desculpou por não ter avisado. Ela me convidou
para o aniversário da filha dela que seria no final do mês. Ela me
arranjou uma pensão de uma brasileira que era casada com um
espanhol, amigos dela.
Era um quarto onde dividia com uma portuguesa, chamada
Lúcia. Mas antes disso, a Carmem havia conseguido uma
entrevista para mim com um senhor responsável pela entrega de
carnes no restaurante onde ela trabalhava.
No dia da entrevista, chamaram um táxi para mim e eu fui. Era
uma família indiana, a esposa estava grávida, e tinha cinco filhos.
Eles falavam um pouco de espanhol, o que me facilitou na
entrevista.
Eu achei tão estranho, logo de inicio a senhora me pediu para
abrir a boca e conferiu todos os meus dentes. E prontamente me
disse que eu tinha alguns dentes estragados, então não poderia
usar os copos da casa. Somente descartáveis, passar álcool no
vaso sanitário todas as vezes que usasse. Eu teria de começar o
serviço à 7:00 horas da manhã e não tinha horário para deixar o
trabalho.
No primeiro mês teria que trabalhar direto, sem folgas, pois não
tinha ninguém para cobrir e ainda, a sogra iria passar um mês
com eles, e eu teria que dormir no corredor. Nunca beijar a
crianças, fazer todo o serviço de limpeza, cozinhar, passar e
cuidar dos filhos.
Outra regra importante seria nunca levar comida da rua. Eu teria
de comer somente o que tivesse na casa. Receberia $ 150,00
dólares por mês, o que equivaleria ao preço que teria de pagar
na pensão.
Eu confesso que voltei para casa tão assustada com aquela
situação, eu sempre tratei minhas empregadas como se fossem
da família. Eu me senti tão frágil e indefesa, e chorava a todo
instante. O Paulo, mais uma vez, como meu anjo da guarda, me
perguntou se eu levara algum dinheiro, e respondi que sim.
Então ele me disse que não fosse trabalhar nessa casa. Ele me
aconselhou a esperar mais um pouco que logo iria aparecer algo
melhor.
Dois dias antes do aniversário que eu fui convidada, fui cedinho
para a casa da senhora, ajudei a preparar a festa, fiz uma
variedade enorme de docinhos. Fiz também bolinho de feijão
fradinho, que todos adoraram e elogiaram bastante.
Nesse dia conheci uma brasileira chamada Adriana, que levara a
filha para a festa. Ela se identificou comigo e me ofereceu um
trabalho em um bar. Eu aceitei imediatamente.
Estava saindo todos os dias cedinho para procurar trabalho e não
conseguia. O dinheiro já estava acabando e eu preocupada com
as dívidas e com os meus filhos no Brasil.
Naquele tempo ainda não existia celular e a tecnologia ainda não
era tão avançada como hoje, então eu gastava muito comprando
cartões de telefone, pois todos os dias eu ligava para minha
família.
A Adriana me buscou no dia seguinte e levou até o bar que havia
falado. A proprietária se chamava Margarida, mas todos a
tratavam de Mag. A Adriana me ofereceu para substituí-la em
algumas noites durante a semana para ela trabalhar em outro
local.
Porém a Mag me olhou de cima embaixo e disse em espanhol,
que eu estava velha para trabalhar para ela. Ela preferia moças
novas para chamarem a atenção dos clientes. Mais uma vez, uma
tristeza invadiu meu coração.
Mas a Adriana me encorajou e me alertou que era normal. Ela
me levou em outro bar de um conhecido dela, um senhor de
nome Roger, juntamente com seu sócio, me deram emprego.
Ela me ensinou como cobrar, o preço das bebidas e as que eram
mais vendidas. Nos EUA é muito comum receber gorjetas. E
todas as vezes que eu recebia, separava e mandava para o meu
pai no Brasil. Assim foi o meu primeiro emprego na América.
A Adriana me levou em um hotel que estava contratando
arrumadeiras. Nós duas fizemos a entrevista e ela me disse que
iria pegar o trabalho, me ensinar tudo e depois sairia, dizendo
que morava longe. E assim, eu comprei um carro mais velho por
$ 700,00, tirei minha licença para dirigir.
No hotel onde eu trabalhava, tive a felicidade de ter como
gerente, um senhor muito atencioso.
Como ele sabia que eu não dominava a língua, ele deixava
pregado nas paredes da lavanderia, as palavras escritas em
português, espanhol e inglês. E sem que eu soubesse, ele ficava
observando pelas câmeras.
Eu com a mesma vontade de aprender que sempre tive, ficava
lendo e decorando, palavras necessárias do dia a dia como,
quem, porquê, onde, e demais expressões que eram usadas.
Eu, normalmente quando terminava o meu trabalho e batia o
cartão de ponto, se via algo que ainda estava por fazer, não
pestanejava e ia arrumar. Se eu via um vidro mal limpo, pegava
os produtos na lavanderia, voltava e limpava. Não me importava
se já havia vencido meu horário, gostava de perfeição.
Quando eu notava que os cinzeiros da portaria estavam cheios e
sujos eu limpava um por um.
Na verdade eu nem imaginava que estava sendo observada, e
quando ele saiu do hotel, me ofereceu uma promoção para ser a
responsável pelas outras meninas que trabalhavam na limpeza.
Eu seria como uma sub gerente. Esse cargo já era ocupado por
uma americana que trabalhava há muitos anos no hotel. E para
não causar insatisfação, ele deixou a nós duas, cada uma em
metade da semana, para realizar a função.
Então, eu com apenas três meses de trabalho já havia sido
reconhecida e isso me deixou muito feliz.
Ele me disse que sempre notava como eu chegava sorrindo, e da
mesma forma, sorrindo ia embora. Que eu nunca reclamava do
serviço, de cansaço ou qualquer outra coisa.
Em sua maioria, as moças que trabalhavam no hotel, eram
mexicanas. E aos poucos eu fui levando brasileiras conhecidas,
sempre que aparecia alguma oportunidade de trabalho.
As mexicanas ficavam fazendo corpo mole, como ganhávamos
por hora de trabalho, elas não rendiam. E eu, terminava os meus
quartos o mais rápido que podia, e ia procurar, por conta
própria, o que mais havia para fazer. Eu dobrava roupas de cama,
limpava os corredores e ele sempre fazendo atenção no meu
trabalho.
As mexicanas então começaram a se incomodar com a minha
forma de agir. Consegui para uma prima do Paulo que se
chamava Mariângela, para a mãe dela e ate mesmo o Paulo, aos
finais de semana, ia nos ajudar e ganhava também pelo trabalho
que executava.
Eu consegui trabalho para a irmã de um grande amigo do Paulo,
que se chamava Nonô, todos dois já são falecidos. Para uma
senhora portuguesa chamada Maria, que também não sabia falar
o inglês. Eu dizia a ela, para deixar um x nos quartos que já
estavam limpos e um traço nos que ainda estavam por limpar.
Nós tínhamos como regra, bater o cartão sempre às 16 horas,
porque o hotel não gostava de pagar hora extra. Certo dia o
gerente me chamou e me indagou o motivo de uma mexicana
que trabalhava conosco estar saindo todos os dias às 17 horas. E
eu, sem entender, disse que saíamos todas juntas. Como eu era a
responsável, ele me pediu para checar direito, pois algo estava
errado.
Assim descobrimos que ela ficava esperando pelo namorado, e
fingia ter batido o cartão, quando na verdade ela o fazia uma
hora depois. Ela batia às 16 na parte de trás do cartão, para que
ninguém notasse. E mais tarde ela retornava e batia no lugar
correto.

Outro fato interessante que acontecia, era que a americana que


já trabalhava antes de mim, enchia os bolsos de arroz e jogava
nos cantos dos quartos para depois verificar se estávamos
realmente limpando tudo. Às vezes ela marcava com um x, os
lençóis para ver se realmente estávamos trocando, pois no hotel
havia muitos hóspedes que vinham transferidos de outra cidade
temporariamente. E normalmente eles não ficavam nos finais de
semana, pois iam visitar a família. Mas tínhamos que trocar a
roupa de cama todos os dias.
As mexicanas, muitas vezes apenas entravam nos quartos, e
como notavam que estava tudo arrumado, não limpavam.
O Paulo havia aceitado o convite para voltar a trabalhar no
restaurante e alugou um apartamento. Ele me ofereceu $ 40,00
para limpar o apartamento e se eu o levasse todos os dias para o
trabalho, pagaria o seguro do carro.
Assim aconteceu, ele se mudou para Nova Jersey e eu fui morar
na pensão, mas todas as noites, ele saia do restaurante e ia me
chamar para dormir no apartamento. A dona da pensão
namorava um rapaz que ouvia música alta até muito tarde, e eu
não conseguia descansar.
No dia de haloweem, a Mag, dona do bar, foi visitar o pai. E a
Adriana me ensinou a usar uma meia de pressão para aliviar as
dores das varizes. Ela fez para mim um arranjo bonito no cabelo,
me deu uma saia mais curta e coloquei um chapéu de bruxa. Por
acaso, nos encontramos com a Mag, que me olhou novamente
de cima embaixo e me convidou para trabalhar para ela. Eu
respondi que já havia estado no bar e ela não quisera me
contratar por causa da idade. Ela disse que não se lembrava, e
que nunca havia me visto antes. Eu estava bem produzida e ela
não me reconheceu.
Eu aceitei o convite. Comecei a trabalhar no bar dela, e antes de
começar no hotel, consegui outro bar para trabalhar durante o
dia. Então estava com três empregos.
Esse bar era de dois portugueses e ficava em um local um tanto
perigoso. Um dos proprietários me levava até o carro todos os
dias. Quando o meu carro quebrou, ele me vendeu um Dayatson
x, que era um carro melhor. E eu pagaria por semana.
Nesse meio tempo, fui me envolvendo com o Paulo, até que
certo dia ele me convidou para morar com ele no apartamento.
Ele me disse que seria sem compromisso, pois ainda estava
casado no Brasil. Ele tinha combinado que a esposa viria morar
nos EUA.
Mas ele descobriu através de um primo, que a esposa havia
arranjado outro companheiro. A partir daí, nos envolvemos
ainda mais e de certa forma eu o ajudava a esquecer da esposa.
Ele havia ficado muito abalado e triste com a descoberta.
A vida ia seguindo, e aos poucos eu começava a me adaptar à
rotina na América. Mas a saudade e angústia por estar longe dos
meus filhos era um fantasma que me atormentava dia e noite.
Ao mesmo tempo em que eu ficava contente por estar dando
conta de pagar minhas dívidas e cumprir com meus
compromissos assumidos, o meu coração se entristecia pela
distância.
O Allan começou a se envolver com más companhias, as meninas
faltavam de aula. O pai não conseguia cuidar de tudo sozinho e
achou melhor voltar para o Serro, onde sua família junto da
minha poderiam ajudar.
No dia em que eles se mudaram novamente para o Serro, eu
chorei por toda a noite, e na minha cabeça, eu achava que estava
perdendo meus filhos.
Uma colega de trabalho, que era psicóloga me confortava
sempre, com palavras otimistas, e dizia que eu sempre seria mãe
deles.
Eu consegui mais um trabalho nos intervalos, que era entrega de
jornais. Fizesse chuva, sol ou neve, eu me levantava às 4 horas da
manhã e tinha que dar conta da minha rota. Às 7 horas eu
terminava as entregas, pegava um lanche bem rapidinho em
uma lanchonete e ia comendo enquanto me dirigia para o hotel.
Ficava a uma meia hora de onde eu morava, e eu começava a
trabalhar às 8 horas. Eu tinha meia hora para lanchar e quando
saia do hotel já eram 16 horas da tarde. Eu dava carona para três
brasileiras e uma cubana que eu havia conseguido trabalho para
elas.
Eu chegava ao apartamento, e por muitas vezes cochilava na
banheira enquanto tomava banho para começar o trabalho no
bar. Às 19:30 eu pegava o serviço e terminava normalmente às
1:00 da madrugada. Dessa forma eu conseguia dormir três horas
por noite.
Eram tantos os compromissos no Brasil, que eu não dispensava
nenhuma oferta de trabalho. Eu consegui duas casas para limpar
durante os finais de semana.
Uma era de um dentista que tinha três filhos, e a outra um
médico que tinha dois filhos. Eles saiam e deixavam as chaves
debaixo do tapete.
Certa vez, eu sem querer, quebrei uma lâmpada com a vassoura.
Fiquei desesperada, e como não sabia falar o inglês, eu desenhei
uma lâmpada e pendurei o desenho na parede. Deixando a
quebrada em cima da mesa para que eles pudessem ver.

A esposa do dentista achou tão engraçado, e inocente ao mesmo


tempo, que assim que viu aquela cena, me ligou e disse rindo
muito, que não havia problema algum. E assim nos tornamos
amigas.
De outra feita, ela deixou uma carne cozinhando em uma panela.
Essa carne deveria ficar o dia inteiro cozinhando aos poucos. Eu,
como não sabia como funcionava essa panela, e pensando que
ela havia esquecido, desliguei. Quando ela chegou a casa, a
comida estava crua.
E assim, passei por várias situações parecidas, por não conhecer
a língua e os costumes do país. Eu me esforçava mais e mais a
cada dia para me adaptar e ia aprendendo aos poucos a me
comunicar.
Em uma das vezes em que o Paulo foi até o escritório que estava
cuidando da documentação dele, eu pedi para ver o andamento
do processo, peguei o número e depois liguei para o consulado
no Brasil. Eles me informaram que o caso estava parado.
Então eu pedi gentilmente à atendente que desse uma atenção
especial, pois já haviam se passado três anos que ele estava
aguardando.
Dessa forma, logo recebemos um comunicado dizendo que ele
poderia ir ao Brasil para pegar os documentos que tinham ficado
prontos.
O Paulo viajou e aproveitou a oportunidade para se divorciar.
Quando retornou, nos mudamos para outro apartamento que
ficava em frente ao restaurante onde ele trabalhava.
O Paulo, sempre muito correto, somente tirou sua licença de
dirigir quando já estava de posse do seu greencard. Ele já sabia
dirigir, pois sempre manobrava o meu carro, ou guardava para
mim na garagem.
Eu e o Paulo havíamos nos mudado para uma casa de um cliente
do bar, que era de Porto Rico. Ele resolvera retornar para o seu
país e nos disse que a casa estava com a prestação paga por três
meses. Ele chegou ao bar oferecendo se alguém queria algo da
casa, mobília, vasilhas. O meu patrão pediu um fogão, pois ele
alugava casas e seria interessante para ele. Esse senhor nos
explicou que se alguém quisesse morar na casa, poderia ficar até
que os agentes imobiliários resolvessem pedir a casa. E ainda
que, a pessoa que fosse morar, poderia continuar pagando
somente água e luz.
A casa era pequena, tinha somente um quarto. E o senhor havia
começado a construir um segundo quarto para visitas.
O meu patrão havia alugado uma casa para mim e para a Valéria
e sua amiga Rosinha. Eu normalmente dormia com o Paulo, mas
ajudei a mobiliar a casa e contribuía no aluguel.
Uma vez que aceitamos morar na casa que o senhor havia
oferecido, eu e o Paulo ajeitamos tudo e ela ficou bem
confortável. Nós moramos nessa casa por cerca de um ano.
Nós recebemos uma proposta do banco para comprar essa casa.
O preço não era tão alto. Mas não a compramos, e nos
arrependemos depois.
Quando o Paulo foi ao Brasil para resolver sua documentação, a
Tãnia que era nossa amiga comprou para ele roupas novas,
conseguiu uma casa no Rio de Janeiro para ele ficar.
Inocentemente ele deixou sua casa para a ex- mulher.
Como o Paulo estava agora morando legalmente, de posse dos
documentos, o seu patrão lhe disse que teria que mudar a forma
de pagamento. Ele explicou que de posse do grincard, ele teria
direito a um salário maior, e o patrão não poderia pagar. Dessa
forma o Paulo saiu do restaurante.
Eu contei ao meu patrão do bar, que ele havia saído do trabalho,
porém não expliquei o motivo.
Então o meu patrão, que era muito bem relacionado, me disse
que arranjaria um trabalho no restaurante Costa Verde, que era
também de portugueses amigos seus.
O Paulo começou a trabalhar no novo restaurante, como sub-
chef. Ele já era conhecido de muitos portugueses e todos
gostavam da comida dele.
Porem no quarto dia de trabalho, o restaurante recebeu uma
encomenda de uma festa de casamento. E nessa festa, o Paulo
caiu na escada, quebrando o Cox.
Ele teve que ficar por cerca de seis meses sem trabalhar. Mas os
donos do restaurante não sabiam que ele já estava legalizado e
tiveram que pagar depois o valor referente aos meses em que
ele ficou afastado.
Com esse dinheiro, nós trocamos de carro e ele me deu o
restante de presente para que eu pudesse ir para o Brasil de
férias.
Na época em que eu me mudei para os Estados Unidos, eu havia
combinado com o Sr. Athaide, que era dono da agência de
turismo onde tinha trabalhado, que iria comprar metade da
empresa e seria sócia dele, após dois anos de América.
Porém nesse intervalo, ele adoeceu e ficou incapacitado para o
trabalho. Sua esposa então resolveu vender a agência.
Eu já não aguentava mais de tanta saudade dos meus filhos e a
vontade enorme de rever meus pais e meus irmãos.

Eu então resolvi ir ao Brasil, e consegui um mês de férias dos


meus trabalhos. O Paulo me deu de presente o restante da
indenização que ganhara, e eu juntei mais um pouco. Era
próximo do natal.
Não consigo descrever a felicidade tamanha que invadiu meu
coração, quando cheguei ao meu país. Minha família e amigos
todos me aguardando no aeroporto, com uma faixa linda de
boas vindas, flores, abraços, declarações de amor. Tudo isso
misturado às lagrimas que ninguém conseguia conter.
Com o dinheiro que eu trouxe, comprei móveis novos para a
casa, aluguei um carro e viajei com meus filhos para uma praia.
O meu patrão ligava todos os dias com medo de que eu não
retornasse. Com apenas três meses de hotel, ele me dera o cargo
de gerente, e como gostava muito do meu trabalho, ficou
pensando que eu ficaria no Brasil.
Foi aí que ele me contou das câmeras no hotel, de onde ele me
observava todos os dias. Ele me disse que nunca antes, ele
conhecera alguém que trabalhasse com tanto amor e dedicação
como eu fazia, sem me importar com horários e ganhos. E o que
mais o encantava era o meu semblante sempre alegre e
sorridente.
Fui ao Serro para ver o meu pai. Era próximo da formatura da
Bruna, e não encontrávamos passagem de ônibus. Como era a
época das chuvas, os ônibus não estavam circulando devido às
más condições das estradas.
Eu resolvi pedir ajuda ao meu velho amigo, o Dr.Waldir, que
prontamente conseguiu uma viatura da polícia para nos levar.
Fomos eu, Gina, Allan e Bruna com ele. Minha mãe ficou ainda
em Belo Horizonte com Gilmara e Ticiane.
Paramos na estrada, compramos manga, caqui. Quando
chegamos ao Serro, pai veio com o semblante assustado ao ver o
carro da polícia na porta de casa. Então expliquei para ele o
motivo.
Um grande amigo de pai, José Antonio, ao passar em frente a
casa, parou também assustado e perguntou o motivo pelo qual a
polícia estava na porta.
Meu pai respondeu bem humorado, que eu viera escoltada pela
polícia porque estava trazendo uma fortuna em dólares.
Nesse dia eu abracei o meu pai com tanta emoção como há anos
não fazia. E ele retribuiu o meu abraço. Eu chorei de emoção,
mal sabendo que seria um dos últimos abraços que daria nele.
A noite seria a formatura da Bruna e eu havia prometido de ir. A
professora me chamou muito contente e disse que minha filha
havia se esforçado e tirado boas notas justamente por causa da
minha presença.
Antes de eu voltar para Belo Horizonte, pai me entregou um
envelope contendo $300,00 em notas pequenas e me disse que
era o dinheiro que eu havia pedido para ele guardar para mim.
Eu lhe respondi que não, esse dinheiro eu havia mandado para
ele. E pedi que ele fizesse um belo natal com o dinheiro. Eram as
gorjetas que eu ganhava e mandava para ele todos os meses. Eu
me despedi do meu pai, como na chegada, com um abraço
afetuoso e correspondido. Esse abraço para mim significou
muito, pois era sinal de que estávamos em paz.
A volta para Belo Horizonte foi uma loucura. Tive que pegar um
ônibus até a cidade de Gouveia e depois um taxi até a capital,
senão perderia o voo.
Nessa ida ao Brasil, também tive a oportunidade de ir até o
estado do Paraná para conhecer a família do Paulo.
A família estava muito desunida, o pai dele, Sr. Nagib não via a
filha Marlene há muitos anos. Eu consegui aproximá-los e nos
poucos dias em que fiquei lá, acredito que deixei um laço de
união entre eles.
Os irmãos dele, Marisa, Luciano, Karine, Marcelo e Indianara.
Consegui também matricular meus filhos em uma escola melhor
e assim, pude voltar com o coração mais tranquilo.
O mês passou muito rápido e eu tive que voltar para os Estados
Unidos.
Ao chegar, fui barrada na imigração. Eles alegaram que eu havia
ficado além do tempo permitido.
Eu estava com um escapulário de Nossa Senhora do Carmo, que
pertencera a minha avó. O tempo todo eu ficava com a mão no
peito, e pedindo a Deus e a Nossa Senhora que me desse uma
direção.
O agente da imigração citou três cidades e me indagou se eu
havia estado nelas. Mas quando ele falou Dallas, eu prontamente
respondi que nunca havia estado lá. Ele mandou que eu
aguardasse, e já haviam se passado mais de uma hora sem que
me dessem uma solução.
O Paulo aguardava desesperado do lado de fora. Eu estava com
fotos da família dele que eu havia ido conhecer no Paraná.
Quando o agente retornou, ele me perguntou o motivo da minha
viagem. Eu rapidamente pensei e respondi que iria batizar a filha
de uma grande amiga, e que inclusive estava com as fotos da
família dentro da minha bolsa.
Na verdade eles me liberaram por eu realmente não ter estado
em Dallas. Dessa maneira eles imaginaram que haviam se
enganado.
Quando eu passei pela imigração agradeci a Deus, pois acreditei
que foi mesmo pelas minhas orações que eles me permitiram
entrar novamente no país.
O mês de agosto de 1991 foi muito difícil. O meu amado pai
adoeceu e precisou fazer uma cirurgia. Ele se internou e ficou
aguardando o dia marcado para colocar uma prótese da veia
arterial.
O Paulo havia sonhado com a morte dele, e eu achei ruim. Mas o
Paulo sempre teve alguns presságios que sempre se
concretizavam.
O meu pai sempre teve um gênio muito forte, e nunca aceitara o
meu casamento e consequentemente nunca mais teve
relacionamento com o Idaçuile. E também não aceitou o
casamento de Gina por ter se casado com um homem
divorciado. Porém na semana em que ia se operar, ele aceitou a
visita dos genros e os recebeu com toda educação no hospital.
Para minha tristeza, meu pai não resistiu à cirurgia e partiu desse
mundo com a idade de 68 anos. Eu estava com muita esperança
de que ele iria se recuperar. Então, quando recebi a notícia, perdi
o meu norte. A angústia por estar tão longe, e não poder me
despedir do homem que para mim, significava tudo, o motivo da
minha existência, me abalou profundamente.
Quando me ligaram, o meu gerente imediatamente me
dispensou por sete dias. Eu dirigia uma vã para levar e buscar as
moças que trabalhavam comigo. Eu me lembro que entrei na vã,
e no percurso até em casa, eu gritava, chorava. Não sei como
consegui chegar até lá.

Eu conversei com mãe no Brasil e ela me pediu que fosse


encontrar com Gismar, pois éramos os únicos que na época
morávamos nos EUA.
Então o Paulo comprou para mim uma passagem de avião, e eu
fui para Hyannis, cidade onde meu irmão reside. Lá moram
muitos brasileiros conterrâneos nossos, que conheciam o meu
pai.
Durante o velório e o enterro, fomos até uma igreja,
conversamos com o padre local e ele celebrou uma missa na
intenção dele. Muitos conhecidos compareceram e nos
aguardaram ao final da celebração para nos cumprimentar.
O meu pai era uma pessoa muito estimada no Serro. Sua morte
foi muito sentida.
Eu havia feito tudo o que estava ao meu alcance. Mandei uma
prótese arteriana que não existia no Brasil. Já estava
providenciando uma cadeira de rodas, caso ele não conseguisse
mais andar. Deus sabe como foram sofridos esses dias.
Eu me lembro de que na primeira Semana Santa em que passei
nos Estados Unidos, comprei bacalhau e uma garrafa de campari
e consegui mandar para o Serro.
Normalmente meu pai, com todas as dificuldades, sempre
comprava um pouco, como é de costume comer na Sexta Feira
Santa. Mas esse pouco tinha que ser dividido com todos, e
éramos uma família grande.
Ele ficou feliz com o presente. Mãe separou uma parte para fritar
para ele e o restante ela fez com abóbora.
Um amigo do meu pai passou para chamá-lo para ir para a
fazenda, e meu pai brincou dizendo que não poderia ir. Que iria
saborear um bacalhau especial vindo da América.
Na noite seguinte à morte de pai, eu sonhei com ele. Eu
perguntei para mãe se ele havia sido enterrado de terno, e ela
respondeu que sim. Mas no sonho ele estava vestido com uma
camisa cinza que eu havia dado de presente, e com as mangas
dobradas até o cotovelo.
Eu liguei para o Brasil para saber como tinha sido. E para minha
surpresa, o terno dele havia ficado no Serro, e ele fora enterrado
com essa mesma camisa, dobrada do jeitinho que ele costumava
usar. Eu acredito que ele realmente foi até mim para se despedir.
Alguns dias antes, eu havia pedido a Gismar que fosse ao Brasil
para estar com nossa família, mas não foi possível a ida dele.
Também não imaginávamos que o pior iria acontecer.
No mês de setembro, o hotel onde eu trabalhava pegou fogo. O
Paulo foi treinar um cozinheiro na Flórida, e eu aproveitei para ir
com ele, para tentar afugentar a tristeza da minha perda.
Lá conheci uma grande amiga, Benedita. Ela conseguiu para mim
um trabalho temporário no hotel onde ela trabalhava
Com esse trabalho, consegui mandar o dinheiro para a festa de
15 anos da minha princesa Bruna. A Élida, minha prima, ajudou
nos preparativos e fizeram uma linda festa em um clube da Fiat.
Quando chegou o mês de novembro, recebemos a carta do
banco, oferecendo para comprarmos a casa por um preço bem
em conta. Nós decidimos não comprar. Eu já não estava mais
trabalhando nos bares.
Eu passei a limpar casas e oficinas durante a noite para
complementar a renda.
O Paulo recebeu uma oferta de trabalho em Connecticuti. Ele
aceitou e foi na frente, alugou um Stúdio e eu continuei
trabalhando de segunda a sábado.
Nos finais de semana eu ia de trem para ficar com ele e ajudar
no serviço. Voltávamos no domingo à noite para Nova Jersey e
ele retornava na terça feira.
A distância dos meus filhos era um fantasma que nunca me
abandonava. Eu cheguei ao meu limite, e apesar de ter a
consciência que financeiramente, a vida nos Estados Unidos era
muito mais compensatória, eu decidi voltar para o Brasil.
Eu passei todas as minhas limpezas para uma senhora, esposa de
um Pastor conhecido nosso.

O Allan havia se tornado pai, e eu não conhecia o Patrick, meu


primeiro neto. Eu havia mandado todo o enxoval e o dinheiro
para comprarem um berço. E comprei um carrinho lindo de
bebê.
Com um aperto no coração, eu disse ao Paulo que estava indo de
volta para o Brasil. Caso eu conseguisse trazer os meus filhos
comigo, eu voltaria, mas se não conseguisse, eu ficaria por lá.
Eu voltei para o Brasil no mês de outubro. Logo comecei a mexer
com a documentação para tirar o visto para os meus filhos.
Como não conseguia ficar sem trabalhar, comecei a dar aulas na
escola perto da minha casa.
O meu ex-marido não tinha como comprovar renda suficiente
par a demanda do visto. Então eu comprei uma loja de laticínios
e coloquei em nome dele, para dar seguimento a documentação.
Eu mesma preparei boa parte da papelada e marquei a
entrevista no consulado americano. Chegando lá, expliquei que
já havia estado por duas vezes nos Estados Unidos, e gostaria de
levar minha família para conhecer. Meu divórcio ainda não tinha
sido homolado, então eu usava ainda o sobrenome do pai deles.
Deus, sempre generoso comigo, me permitiu conseguir o visto.
Quando o agente indagou ao pai dos meus filhos o motivo da
viagem, e o que ele fazia, ele respondeu que era proprietário de
uma loja de laticínios, onde vendia derivados do leite.
Apresentou os documentos e sem mais questões, o agente
desejou boa sorte e concedeu o visto para ele e meus filhos.
Mais uma vez, senti uma enorme alegria em meu coração e
agradeci a Deus por tantas bênçãos.

Como o meu irmão Gismar havia se mudado sozinho para os


Estados Unidos e deixado a sua família no Brasil, eu, quando vi a
situação da minha cunhada e sobrinhos, longe do pai, decidi
ajudá-los para que também pudessem ir para lá. Conversei com a
Dorotéia, minha cunhada e ela disse que gostaria sim, de ter a
oportunidade de ir.
Eu então peguei a certidão de óbito do meu pai, e usando uma
fita duréx, substitui o nome de pai pelo do meu irmão. Fiz isso
sem falar nada com ninguém. Ela foi ao consulado com o
passaporte dela e dos três filhos, levando uma cópia da certidão.
Com a minha orientação, ela disse ao agente que havia ficado
viúva ha pouco tempo, e como os filhos estavam muito tristes,
gostaria de levá-los à Disney. Quando o agente viu a foto das
crianças, ele se apiedou da situação, dizendo que era triste ver os
filhos tão pequenos e sem o pai. Dessa forma, concedeu o visto
para ela e as crianças.
Isso fez com que meu irmão ficasse um bom tempo sem
conversar comigo. Eu sempre agi com o coração e com o impulso
de ajudar. E nunca me senti culpada por nada.
Eu a perguntei se queria vir comigo e depois levar os filhos, mas
ela disse que só iria com os filhos. E que iria aguardar uma
oportunidade.
E assim, um vizinho meu do Brasil, que já estava estabelecido nos
Estados Unidos e havia se separado da esposa, se ofereceu para
trazê-la juntamente com os filhos e ajudar a cuidar deles.
A minha cunhada ficou apreensiva sem saber se estaria agindo
correto, e eu a aconselhei de aceitar, por ela e pelos filhos, pois
estavam vivendo uma situação difícil no Brasil. Meu irmão já
havia feito outra família, e desse modo, ela acabou concordando
e com três meses se mudou para a América. Ela conseguiu os
documentos legais antes mesmo de mim.
Muitas vezes, por caminhos que parecem tortos, temos a
oportunidade de transformar nossa vida e das pessoas que
queremos bem. Esse sempre foi o meu lema. Ajudar sem pedir
nada em troca. E assim, até hoje, recebo de Deus toda a sorte de
bênçãos e acredito firmemente que Ele aprova as minhas ações e
decisões.
No dia 21 de janeiro de 1993, eu embarquei com minhas filhas
para os Estados unidos. O Allan não foi junto conosco, pois
estava com um filho ainda pequeno.
Deixei para ele uma Enciclopédia Barsa para ele vender, e um
lote que eu tinha em Mateus Leme.
Havia se passado dois anos e quatro meses que não via meus
filhos. Em 1991 eu fiz uma canção para eles, mandei um vídeo
cassete e paguei um fotógrafo para filmar o dia a dia deles para
mim. Quando eu tive a oportunidade de ver a fita, pensei em pai
não imaginava que nunca mais iria vê-lo.
O Paulo, que sempre me incentivou a levar os meus filhos, me
mandava sempre um dinheiro para que eu pudesse cobrir
minhas despesas, enquanto eu estava no Brasil. E para o meu
retorno, fomos de ônibus até São Paulo e de lá embarcamos.
A minha felicidade ainda não estava completa, pois havia
deixado o meu filho, mesmo que por pouco tempo.
O dinheiro para a viagem era tão pouco, que desembarcamos em
Miame, e como as passagens para Connecticut estavam muito
caras, fomos de trem. Eu comprei três cachorros quentes par
comermos durante a viagem.
Ao chegarmos até estação, liguei para o Paulo e disse que havia
pedido um taxi que ele pagaria quando chegássemos.

Era mês de janeiro, e nevava muito. Estávamos em pleno


inverno. O Paulo levou comida do restaurante para comermos
em casa. Como ele havia pedido um adiantamento para enviar
para mim o dinheiro para a viagem, estava sem nenhum no
bolso.
E para piorar a situação, o patrão havia dispensado ele. O
cunhado do dono do restaurante, que gostava muito do Paulo,
ficou indignado e para nos ajudar, ofereceu uma casa maior para
nos alugar, e explicou que ela não tinha ainda aquecimento. Mas
que dentro de uma semana iria arrumar.
Nós nos mudamos para essa casa, e durante a semana,
dormíamos todos juntinhos para nos aquecermos.
Eu não havia pensado no inverno, e não levei roupas adequadas
para as meninas. Então peguei o cofrinho, onde sempre juntava
moedas, e comprei luvas e gorros.
Era necessário vacinar as meninas para ingressarem na escola.
A minha amiga Maria, a mesma que tinha vindo comigo da
primeira vez, me ligou par saber se tudo tinha corrido bem. Ela
havia se casado com um senhor mais velho e já estava morando
legalmente no país.
Ela tinha um bom emprego em um salão de beleza. Quando eu
contei toda a história, ela imediatamente me mandou um
dinheiro para que eu vacinasse as meninas e assim pude
matriculá-las na escola.
No domingo seguinte, eu, que já estava procurando trabalho, vi
um anuncio de uma senhora precisando de uma arrumadeira.
Imediatamente fui até o endereço e nesse mesmo dia, já fiquei
para trabalhar. No final do dia, ela veio me pagar e eu contei a
minha situação, já chorando pensando em como seriam os
próximos dias.
Essa senhora se compadeceu da minha história, me perguntou
qual a profissão do meu marido, e eu respondi que era chef de
cozinha.
Ela me disse que no sobrado havia muitos móveis e utensílios, e
que eu poderia levar tudo que precisasse.
Eu, muito agradecida, peguei roupas, vasilhas e mais algumas
coisas. Com o dinheiro que havia ganhado, fiz uma compra. Eu
cheguei até em casa com a van cheia. E quando anoiteceu a
senhora me ligou e disse para o meu marido procurar o
restaurante italiano, que se chamava Ninos, no centro da cidade.
Assim, no dia seguinte o Paulo foi até esse restaurante, que para
nossa surpresa, para não dizer, mais uma benção de Deus, o
proprietário era esposo dessa senhora. E assim ele contratou o
Paulo como chef.
Essa senhora foi uma verdadeira benção em minha vida. Ela
conseguiu mais casas para eu limpar. Consegui um trabalho aos
finais de semana em um hotel.
Uma das senhoras que eu trabalhava, libanesa, me disse ter um
genro que trabalhava em padaria, poderia conseguir algum
trabalho para mim. Eles faziam um pão sírio muito requisitado.
Dessa forma eu começava às 5 horas da manhã na padaria.
Depois ia para as casas, tirava um tempo para buscar as meninas
na escola.
Eu não tinha ainda casas suficientes para limpar. Então consegui
um trabalho em uma companhia chamada Sérvice Master, que
limpava casas enfumaçadas pelas lareiras no inverno.
Com o dinheiro que o Allan conseguiu na venda do lote e da
Enciclopédia, o pai dele veio com a esposa para os Estados
Unidos. Dois meses depois eu consegui mandar o dinheiro da
passagem e meu filho veio para junto de nós.
No dia da sua chegada, eu estava trabalhando e as meninas na
escola, então o Paulo foi buscá-lo no aeroporto. Quando eu
cheguei e pude abraçar o Allan, me senti completa e feliz, mas
nesse meio tempo, entrou um ladrão em nossa casa e levou os
aparelhos eletrônicos.
Conseguimos um trabalho para ele à noite, mas com uma
semana, tivemos uma desavença, pois ele se recusou a trabalhar
dizendo que não queria trabalhar durante a madrugada.
O senhor que nos arranjou esse trabalho, havia dispensado um
empregado para contratá-lo. Eu expliquei para o Allan que ele
não poderia sair assim, sem avisar. Caso contrário, eu teria que
fazer o trabalho no lugar dele. E realmente eu tive que ir, até que
conseguissem outra pessoa, pois o Allan foi irredutível, e não
quis.
Eu peguei a mochila dele e joguei para fora de casa. Eu nunca
havia feito isso, mas não me arrependi, pois naquele dia,
acredito que ele se tornou um homem de verdade.
Quando o Paulo chegou do trabalho e se deparou com a
situação, teve pena dele, pois ainda não havia completado duas
semanas da sua chegada.
Então levou meu filho para Nova Jersey, para a casa de um amigo
dele, e conseguiu um trabalho em um restaurante onde ele havia
trabalhado.
O Paulo, durante o trajeto, foi conversando e aconselhando,
explicando como era a vida na América, e o quanto eu vinha
lutando para tê-los comigo.
Esse fato foi bem marcante para o Allan, pois ele se viu sozinho
em um país estranho, não sabia falar a língua e havia deixado um
filho no Brasil. Assim, ele pegou firme no trabalho até o mês de
setembro.
Nesse mês, ele me disse que precisava ir ao Brasil para o
aniversário de um ano do filho. E não havia juntado dinheiro
suficiente para isso.
No dia da viagem, ele foi se despedir de mim.
Eu comprei a passagem e presentes para ele levar. Porém mal
chegou ao Brasil e já queria voltar. Como o pai dele lhe devia um
dinheiro, mandou a passagem. E assim ele retornou novamente
para os Estados Unidos.
O Allan estava sentindo falta da então namorada e do filho. E
isso o estava entristecendo. Ele sempre me pedindo para ajudá-
lo a trazer os dois para junto dele.
Assim, recomeçamos nossa vida na América, sempre com muita
luta, mas sempre amparados pelas mãos de Deus.
Nessa mudança para Connecticut, eu conheci uma senhora
brasileira, de Belém do Pará. Ela era baixinha, cabelos pretos
lisos, parecia uma índia. Ela era casada com um americano. Essa
senhora também foi muito especial na minha vida. Ela me levava
para limpar casas com ela, me ajudou na adaptação à nova vida.
Arrumava algumas casas para a Bruna limpar. Quando ela dava
alguma festa na casa dela, me pagava para limpar, quando ela
sabia que eu estava sem dinheiro, ela me emprestava sem que
eu pedisse.
Inclusive, a minha vinda para a Carolina do Sul, se deu através
dela, que me convidou para conhecer uma casa que ela tinha em
Hilton Head e me disse que era um lugar muito bom para se
viver, onde ofereciam bons salários.
Até hoje nós nos falamos, ela não teve filhos, mas nutre um
amor muito grande pelos sobrinhos, tem um coração de ouro.
Ela se chama Rosa.
Nesse período, as meninas se adaptaram muito bem na escola. A
Ticiane entrou para a natação, e a Bruna para o Voleybool.
A primeira coisa que fizeram quando chegaram do Brasil, foi
pedir para fazer um book, e as fotos ficaram muito bonitas. A
Ticiane então foi convidada para participar do concurso de Miss
Brasil América, e representou a cidade que morávamos,
Waterbury.
Ela não ganhou, mas era uma das mais bonitas.
O Allan e um casal amigo nosso, Willian e Kátia, vieram de Nova
Jersey para prestigiar o desfile, que me deixou muito orgulhosa.
Também durante esse período eu comecei a ajudar as pessoas
que não tinham a licença para dirigir, a conseguirem, deixando
que usassem o meu endereço.
Uma manhã, o Paulo ainda não havia saído para o trabalho. Ele
não gostava muito que eu desse o nosso endereço. Então chegou
um carro com seis ocupantes, que eu já havia prometido de
ajudar. Quando chamaram, o Paulo, que já estava pronto para
sair, abriu a porta. Quando viu aquele tanto de gente, fechou a
cara e disse para todos irem embora, que não tinha mais essa
historia de endereço.
Mas eu esperei ele sair, e liguei para a turma dizendo que
poderiam vir, que eu os ajudaria.
Também consegui trabalho para a Flávia Campos, filha de
Norma.
De outra feita, estava nevando muito e o namorado da Ticiane
estava em nossa casa. Ela nos pediu para que ele pudesse dormir
lá, mas o Paulo não permitiu.
Assim, ele teve que deixar o carro em nossa garagem e caminhou
até o hotel mais próximo.

O Paulo já se tornara cidadão americano. Quando chegou a


formatura da Bruna, ela pediu que eu me casasse com ele. E
disse que tinha vergonha de contar para as colegas que a mãe
tinha um namorado.
Assim, no dia seguinte da formatura, eu e o Paulo nos casamos.
Nós já estávamos juntos há seis anos. Então eu já me
considerava casada com ele.
Durante o período em que trabalhei na Service Master, passei
por alguns episódios interessantes. Eu me tornei responsável por
um grupo de pessoas. Uma portuguesa e um chinês que tinha 72
anos, um brasileiro e dois americanos. Éramos seis comigo.
A companhia nos mandava para Nova York, para limparmos
mansões enormes e lindas. Eu adorava o trajeto em que
tínhamos que percorrer. No outono as estradas ficavam lindas,
parecia um quadro pintado por um excelente pintor. O senhor
chinês sempre trabalhava rápido e sempre com um semblante
alegre.
Eu ficava admirada com a energia dele, apesar da idade
avançada. Ele me dizia que tomava dois comprimidos de tylenol
todos os dias, e nada lhe doía.
Certa vez fomos limpar um enorme galpão. Todas as vasilhas
tinham que ser lavadas e os moveis tinham que estar limpos.
Porem nós encontramos várias peças de roupas que seriam
descartadas. Eu levei todas essas roupas para casa. Elas tinham
um cheiro muito forte de fumaça, mas eram praticamente novas.
Colcha, cobertores e varias roupas de cama.
Na casa em que estávamos morando, existia um porão enorme
que não era utilizado, e eu passei a guardar tudo o que ganhava
nele.
Eu havia conhecido um grupo de brasileiros na igreja da cidade
mais próxima à nossa. Começamos então a nos reunir toda
semana, na minha casa. Eram reuniões de oração e onde
aproveitávamos para nos conhecer melhor e nos inteirarmos da
situação dos nossos conterrâneos que por algum motivo
necessitavam de ajuda.
Na cidade onde eu morava ainda não havia uma igreja católica.
Então fizemos um abaixo assinado e conseguimos junto à
paróquia vizinha, uma igreja para nossa cidade.
Eu fazia uma lista de utensílios que eu tinha guardado, e assim
conseguíamos ajudar os brasileiros que haviam recém chegados
e não tinham nada.
O padre pegava a lista, anunciava na igreja e deixava meu nome
e telefone para quem precisasse.
Eu conheci uma irmã de caridade que residia na cidade onde
Gismar morava. Ela havia morado muitos anos no Brasil e falava
bem o português.
Certo dia ela ligou para o meu irmão, dizendo que os pais haviam
morrido e ela iria vender a casa deles. E que havia muitos móveis
para doar.
Eu consegui alugar um caminhão, e pedi ao padre que me
arrumasse dois homens fortes para me ajudarem. Assim, eu fui e
buscamos tudo o que havia dentro da casa. Ao chegarmos a
nossa cidade, parei o caminhão em frente à igreja e o padre
começou a anunciar com o microfone que a Dona Gislene estava
com bastante móveis e utensílios domésticos para doar.
Em pouco tempo, a rua estava cheia de gente. Parecia uma festa,
todos querendo pegar primeiro o que era melhor, pessoas
brigando por roupas.
Eu me sentia útil, e era uma maneira de agradecer a Deus por
tantas bênçãos que Ele me concedia a cada dia.
Eu dei ao Paulo como presente de aniversário, um bebê
cachorrinho, da raça Rusk Siberiano. Ele sempre falava de
cachorro, e do quanto gostaria de ter um. Eu me lembrei disso e
o presenteei com o filhote, no qual colocamos o nome de Joly.
Ele era lindo, tinha um olho azul e outro verde.
O Paulo se encantou com o cachorro.
Acontece que, morávamos na casa do dono do restaurante onde
ele trabalhava. E é costume nos Estados Unidos, de os
proprietários terem sempre uma cópia da chave de seus imóveis,
ainda que estejam alugados. E irem algumas vezes, para checar
se tudo esta dentro do combinado.
Um dia a esposa do patrão, que morava embaixo, entrou em
nossa casa e viu o cachorrinho mordendo e puxando as beiras do
carpete. Ela colocou uma agulha dentro da salsicha e deu para
ele comer.
Ele engoliu e se feriu por dentro. O veterinário tentou operá-lo,
mas infelizmente ele não resistiu. O Paulo ficou muito
entristecido com isso, chorou por uma semana.
Tudo isso aconteceu quando ainda morávamos em Nova Jersey.
E aconteceu de eu estar me dirigindo para o hotel, e uma gatinha
atravessou na frente do carro. Eu quase a atropelei.
Imediatamente eu desci do carro para verificar se ela estava bem
e a peguei no colo. Ela se agarrou ao meu uniforme. Era um
bebezinho. Eu a levei para casa, e mostrei ao Paulo. Ela dormiu
toda a noite agarradinha a ele. Então combinamos de levá-la ao
amanhecer para um local de doação. Na verdade, não tivemos
coragem de levar. Ao contrário, fomos até uma clinica
veterinária, onde ela recebeu vacinas e cuidados.
Nós a chamamos de Dayse, que no português significa
Margarida, e era o nome da mãe do Paulo.
Foi como uma homenagem à memória da mãe dele, que
infelizmente tirou a própria vida com 42 anos de idade. O Paulo
estava no exército na época e tinha apenas 18 anos, essa
tragédia sempre mexeu muito com ele.
A Dayse nasceu em Nova Jersey, se mudou conosco para
Conecticutti, depois quando nos mudamos para a Carolina do
Sul, ela também foi.
Nós a levávamos para onde quer que fossemos, e se tornou um
membro da família. Viajava sempre de primeira classe e conviveu
conosco por 15 anos. Ela teve um câncer e tivemos que fazer
uma eutanásia.
Nós tínhamos também um aquário bem grande, com aqueles
peixes que limpam de dentro para fora.
Quando minhas filhas chegaram do Brasil, elas me pediram uma
gatinha. E um colega meu do Service Master, que estava dando
aulas de reforço para a Bruna, tinha uma gata que havia parido
quatro filhotes, e nos deu um. Eu trouxe para casa pensando ser
uma fêmea e as meninas a chamaram de Ivy. A Dayse ficou
muito enciumada e os dois não se combinavam.
Após quatro meses, recebemos a visita de um casal americano,
amigos nossos, e a esposa nos perguntou o motivo de darmos
um nome feminino para um gato. Só então percebemos que era
na verdade um macho, e porque ele sempre se impunha sobre a
Dayse.
Eles eram muito espertos. Certa vez, o Paulo ligou e como não
havia ninguém em casa, o Ivy apertou o botão da secretaria
eletrônica e ficou miando, como se dissesse, eu estou aqui.
O patrão do Paulo ficou encantado, e disse que não acreditaria
se não estivesse presenciando aquela cena.
Em outra ocasião, a Ticiane resolveu matar aula, e se escondeu
debaixo da cama. Eu subi a escada para conferir se ela já tinha
ido. A cama estava vazia, mas a Dayse começou a miar sem
parar, olhando em direção à cama. Eu havia acabado de chegar
da padaria, e pensei que não tinha ninguém. Ela continuou
miando sem parar e eu fui verificar, pensando que poderia ser
um rato. Era a minha ratinha caçula, Ticiane, que estava
escondida.
Ela olhou para a Dayse e sorrindo a chamou de fofoqueira. Eu
fiquei brava e lhe dei um puxão de orelha. Ela logo começou a
chorar. Então a gatinha começou a lambê-la como se estivesse
consolando-a.
Quando descobrimos o sexo do gato, trocamos o nome para
Vivinho. Ele comia de tudo que o Paulo comia. Ficava esperando,
toda vez que ele ia comer alguma coisa, pois sabia que iria
ganhar um pouco. Até sorvete ele tomava.
Ele teve diabetes, passou a tomar insulina e viveu conosco por 12
anos.
E tivemos também o Junior, uma tartaruga que a Ticiane ganhou
de presente quando começou a namorar o Fábio, que hoje é seu
marido.
Quando o Paulo recebeu a cidadania americana, ele fez o que
chamamos de aplicação, o que significa que ele deu entrada com
o pedido do greencard para mim e para os meus filhos. Eu
mesma fiz toda a documentação com a ajuda de uma amiga
portuguesa que trabalhava em uma agência de passagens.

O Allan já havia retornado, e me pedia todos os dias que o


ajudasse a trazer a Patrícia e o Patrick, pois para ele estava muito
difícil viver longe deles. Eu entendia perfeitamente, como já
passara pela mesma situação. Sendo assim resolvi ir ao Brasil
para resolver isso, mesmo correndo um risco, pois minha
documentação estava em trâmite no consulado americano.
Eu levei uma televisão de encomenda, pela qual recebi um valor
para ajudar na passagem.
Era uma quarta feira. Eu fui até a Polícia Federal, juntamente
com minha mãe e minha grande amiga Ana Helena para fazer os
passaportes. O agente disse que o prazo seria de quinze dias.
Mas como eu tinha pressa, eu consegui convencê-lo com uma
nota de 100 dólares dentro do passaporte e como sempre, Deus
me abençoou. Saímos de lá nesse mesmo dia com quatro
passaportes na mão. O da minha nora, do meu neto e de mãe e
da Ana.
À noite fomos para o Rio de Janeiro, e nos hospedamos na casa
da irmã da Ana. Logo pela manhã nos dirigimos até o consulado.
Lá estava cheio e as pessoas que estavam na nossa frente, em
sua maioria saíram frustradas, pois estavam negando
praticamente todos os pedidos de visto.
Chegando a minha vez, eu me apresentei e disse que já havia
estado duas vezes nos Estados Unidos e gostaria de levar a
minha mãe, minha nora e meu neto para conhecerem.
O senhor perguntou apenas qual era a minha profissão, e eu
respondi que era professora em um colégio particular.
Ele concedeu os vistos sem indagar mais nada, e nos desejou
uma boa viagem.
Foi uma grande benção, pois o meu neto era ainda muito
novinho para conhecer a Disney, que normalmente era a
desculpa que todos usavam para o motivo da viagem.
Saindo do consulado, liguei para o Allan dizendo que tudo dera
certo, e que ele trabalhasse ao menos por três meses, para
conseguir levar a família.
Eu embarquei de volta no dia seguinte, e provavelmente cruzei
com o meu filho no ar, pois ele não me ouviu e partiu para o
Brasil no mesmo dia em que eu embarcava para a América.
Dessa forma ele ficou por quase dois meses no Brasil, até que eu
e o pai dele conseguíssemos o dinheiro para as passagens.
Quando eles, enfim conseguiram vir para os Estados Unidos,
ficaram em Miami junto com o pai. Isso foi em 1995, quando eu
completaria 42 anos de idade.
Aproximando o dia do meu aniversário, eu e Gismar mandamos a
passagem para nossa mãe. Era para mim um sonho poder
comemorar meu aniversário tendo a presença dela.
Gismar veio na véspera da chegada dela, para que pudéssemos
buscá-la juntos, trazendo sua nova família, a Cida e o Nathan. O
Paulo fez para mim um lindo bolo de aniversário. Enquanto
íamos ao encontro de nossa mãe, minhas filhas prepararam um
lindo café da manhã. A mesa estava farta, repleta de guloseimas.
Difícil descrever a alegria de ver a minha mãe, que sempre fora
uma guerreira e passou tantos apuros na vida para criar os filhos,
tendo a oportunidade de conhecer os Estados Unidos.
Eu estava aérea de tanta felicidade. Fui mostrar a casa, e o
porão onde guardava os utensílios que eu guardava para doação.
Ao subir as escadas, o Vivinho, nosso gato cruzou pelas minhas
pernas, e eu, ao tentar impedir que ele descesse, para não sujar
as roupas, acabei sofrendo uma queda.
Eu tive uma fratura no braço esquerdo, os ossos da tíbia ficaram
triturados, e o meu dedo mindinho ficou pendurado. A dor era
tanta que de repente parei de sentir. A ambulância chegou
rápido, e no hospital disseram que seria necessário uma cirurgia
imediata. Eu estava com o estomago cheio e não poderia ser
anestesiada.
Foi necessário colocar uma peça de platina para restaurar o osso.
A cirurgia ocorreu na manhã do dia seguinte. Eu não possuía
seguro de saúde e não podia acionar o seguro da casa, uma vez
que a alugamos sem seguro.
Eu teria que fazer várias sessões de fisioterapia, porém só fui a
primeira e prestei bastante atenção para depois fazer eu mesma
em casa.
Mãe ia comigo para ajudar na limpeza das casas. E ficava
admirada ao perceber como era dura a vida que tínhamos lá, e
do meu sacrifício em ter de continuar trabalhando com o braço
na tipoia.
A partir desse episódio ela não deixava que ninguém ficasse me
pedindo ajuda, pois sabia que eu não conseguia negar.
Sem que eu soubesse, minha mãe trouxe as certidões de
nascimento do Allan e da Patrícia, que ele a pediu.
Eu havia prevenido o Allan para que não se casasse até que a
documentação de legalidade ficasse pronta, caso contrário, ele
perderia o direito.
Mais uma vez ele não me ouviu e se casou sem me avisar. Mas
aqui o controle de imigração sabe de tudo que se passa com as
pessoas.
E quando chegaram os documentos do consulado, o pedido dele
foi indeferido, por ele ter se casado, exatamente como eu havia
dito.
Nessa mesa época, eu tive uma grande tristeza. Minha filha mais
nova completou 18 anos em agosto, e resolveu sair de casa para
morar com uns amigos. Ela alegou que eu era uma mãe muito
dura. Ela não conseguia compreender que amor de mãe nem
sempre pode ser doce. E na verdade, eu tinha muitos planos e
sonhos para ela, e isso me fez muito mal.
Eu sabia que ela iria se virar sozinha, mas queria planejar o
casamento dela, já havia conversado com um amigo que tinha
uma casa grande e muito bonita, e pensava em realizar a festa
nessa casa. Ela já estava quase completando os estudos e
sempre dizia que seria dentista como o padrinho dela.
Eu sonhava em vê-la vestida de noiva e participar de tudo.
Eu fui até o colégio onde ela estudava, para saber como havia
conseguido a transferência. Então o diretor me explicou que na
América era normal que os filhos saíssem de casa aos 18 anos, e
que isso deveria ser um motivo de orgulho para mim.
Ela ficou morando com as amigas até o mês de dezembro, e
depois se casou com o Fábio. Ela me ligou convidando e pedindo
a minha benção. Mas sem sentir, eu acabei repetindo o ato do
meu pai e fiquei sem conversar com ela por quase um ano, e
também não fui ao casamento.
O greencard do Allan foi indeferido, mas ele nunca precisou dele,
pois já tinha o Social Security, que lhe dava condições de
trabalhar legalmente. E também o nome dele, como é bem
americano, Allan Dayvison, sempre o ajudou bastante,
principalmente para a renovação da licença de dirigir. Ele só
recebeu o greencard anos depois, quando a filha dele que
nasceu nos Estados Unidos, aplicou , quando completou 21 anos.

A Bruna, logo que a irmã saiu de casa, também resolveu se


mudar para a casa do pai. Eu sempre tive vontade de trabalhar
como cuidadora de idosos, interna, que é um trabalho muito
bem remunerado aqui na América.
Então eu e o Paulo resolvemos procurar um emprego desse tipo.
Fomos para a Carolina do Sul. Eu consegui um trabalho em um
hotel e o Paulo em um restaurante.
Então voltamos para casa apenas para buscar a mudança, e dar
um tempo no trabalho até que conseguissem outra pessoa.
Eu fiquei sabendo através de uma amiga, que a Ticiane estava
passando um pouco de dificuldades, assim passei minhas
limpezas para ela.
Também aconteceu comigo, alguns dias antes de nos mudarmos,
um acidente de carro. Eu limpava casas a mais ou menos 40
minutos de onde morava. Nessa época tínhamos um jeep
cherokee. Normalmente eu limpava de 3 a 4 casas por dia. Como
as meninas haviam se mudado, eu ia sozinha. Nesse dia, limpei
um restaurante de um senhor que eu já limpava a casa dele, e
ele estava fechando o restaurante.
Ele me ofereceu umas caixas de copos. Eu, nesse dia estava com
uma enorme dor de cabeça, e na última casa que limpei, tomei
um analgésico. Na volta para casa, adormeci ao volante e só
acordei com o barulho dos copos quebrando. O carro ficou
pendurado em um barranco, mas eu, felizmente e pela graça de
Deus, não tive nada.
No domingo seguinte, quando fui à missa, pedi ao padre que
benzesse o carro para mim. Ele me respondeu que não seria
necessário.
E que toda vez que eu entrasse no carro, fizesse uma oração e
segurasse na mão de Deus, e Ele estaria comigo a todo instante.
Antes de nos mudarmos, resolvi ir ao Brasil com o Paulo. Fomos
até Belo Horizonte e depois ao Paraná. Nessa ocasião, minha
irmã Gilmara estava atravessando um momento difícil no seu
casamento. Eu sempre tive em mente, reunir todos os meus
irmãos nos Estados Unidos, pensando sempre em lhes
proporcionar uma melhor condição de vida.
Eu a convidei para voltar conosco. Preparamos o passaporte
dela, e ela foi até o consulado americano. Eu a aconselhei a levar
uma foto de uma de nossas sobrinhas e dizer que era filha dela.
Isso tornaria mais fácil a conseguir o visto.
Tudo aconteceu como eu previ e ela obteve a permissão de
viajar. E voltou comigo e o Paulo para a América.
No inicio ela foi morar com a Dorotéia, na Virgínia e depois foi
para a Carolina do Sul, onde eu já estava morando.
Nunca tive medo de recomeços. Eu e o Paulo alugamos um
trailer em uma pequena cidade chamada Braftwon, que fica a 30
minutos da ilha.
Além do hotel, consegui algumas casas para limpar durante os
finais de semana, e o Paulo conseguiu um trabalho nos correios.
Em pouco tempo, eu já tinha tantas casas para limpar, que
resolvi deixar o trabalho no hotel. As pessoas saiam das casas às
10 horas e normalmente retornavam às 16 horas.
Aos finais de semana eu fazia limpezas em casas de veraneio.
Minha irmã veio morar conosco, e já havia aprendido o serviço.
Assim ela trabalha comigo durante a semana, e nos finais de
semana o Paulo também nos ajudava.

Carregávamos sacolas enormes e pesadas, com roupas de cama


para lavar e trocar, e tudo isso tinha que ser feito com rapidez.
As pessoas deixavam sempre muitas coisas nas casas de fim de
semana, como comidas, frutas e bebidas. Isso nos ajudava
bastante.
Eu matriculei minha irmã em uma escola noturna para aprender
o inglês.
Nessa escola ela conheceu um rapaz vindo da República Theca
chamado Libor, que atualmente é o marido dela.
Nós trabalhávamos para um casal durante três dias na semana. E
aconteceu do marido falecer e a senhora resolver se mudar para
Nova York.
Eu a pedi que me fizesse uma carta de recomendação dizendo
que tínhamos experiência em trabalhos com casais. Ela então fez
essa carta e me entregou.
Com essa carta, começamos a deixar nossos currículos em
agencias de emprego. Nós fomos ate a Flórida para fazermos
uma entrevista para trabalhar como casal.
Na terceira entrevista, os filhos do casal em questão, já tinham
entrevistado seis casais antes de nós. E para nossa alegria, fomos
contratados. Seria para trabalhar seis meses na Flórida e seis em
Michigan.
Uma semana antes, outro irmão meu, o Gerson, veio também
morar nos Estados Unidos. Então eu passei as limpezas para ele e
para a minha irmã. E isso me deixou mais tranquila, pois estava
preocupada em deixar a Gilmara sozinha.
Meu irmão Giovanni também havia se mudado para cá, e estava
trabalhando com o Allan fazendo mudanças. Estávamos na época
dos terríveis furacões que sempre nos assustam até hoje.
Dessa maneira, aconteceu de ele passar em nossa casa, indo
para Nova York. Eu aproveitei para pedir a ele que levasse
algumas coisas no caminhão, pois quem mora em trailer tem de
sair quando algum furacão está ameaçando e ficar em um
abrigo.
Eu, ao invés de pedir a ele que levasse os meus documentos,
entreguei uma caixa com louças antigas, que eu havia ganhado
de uma senhora para quem eu trabalhava.
Eu, o Paulo e a Gilmara fomos para o abrigo, levando nossos
gatos. Eu e a minha irmã fomos com o carro dela, e o Paulo foi
com o nosso Jeep. Esse abrigo era uma escola grande á cinco
horas de distância. Eu deixava o Jeep em frente à porta de onde
ficávamos, e o deixava ligado toda a noite para abrigar nossos
gatos.
Como tinha uma máquina fotográfica profissional, que depois foi
roubada, eu passava tirando fotos de toda aquela cena, barracas
montadas pelo exército, das pessoas que estavam na área de
recreação da escola.
Eu quis registrar tudo, com a intenção de fazer uma reportagem
no futuro.
Depois que tudo passou, e voltamos para casa, que graças a Deus
não sofreu nenhum dano, curiosa em ver como ficaram as fotos,
ao abrir a máquina, descobri que havia me esquecido de colocar
o filme.

Chegou o dia em que fomos conhecer o casal para o qual iríamos


trabalhar. Iríamos substituir um casal de portugueses que haviam
conseguido outro emprego. A esposa portuguesa, ao me passar
todo o serviço, e explicar a rotina da casa, me disse que a idosa
estava começando a sofrer de Alzheimer, mas o marido não
aceitava. Ela me disse que o trabalho era muito estressante e
que eu teria de ter muita paciência e coragem para encará-lo.
Contudo eu não me intimidei. Ao ser apresentada a eles, eu me
mostrei disposta e sorridente, transmitindo simpatia e
contentamento.
Ela era baixinha, com os cabelos branquinhos, e tinha cara de
brava. O marido era bem alto e muito branco, tinha uma
aparência russa.
Nós começamos a trabalhar no estado de Michigan. A filha deles
nos buscou no aeroporto e quando chegamos, ela me passou
todas as tarefas, me levou para conhecer o salão onde a mãe
frequentava, me apresentou os médicos que cuidavam deles, e
nos deixou a par de tudo o que deveríamos desempenhar no
nosso novo trabalho.
Assim começamos um novo ciclo nos Estados Unidos. Usávamos
uniforme e tínhamos um pequeno apartamento no sobrado
onde nos instalamos.
Na noite do primeiro dia de trabalho, o Sr. King bateu em nossa
porta às nove horas da noite e me disse que havia dispensado a
enfermeira que cuidava da esposa, e me pediu para subir para o
quarto dela e acompanhá-la por toda a noite. Eu não tive outra
opção a não ser atendê-lo.
Logo que amanheceu, eu liguei para a filha e relatei o que havia
acontecido, e que eu passara toda a noite acordada, sentada em
uma cadeira ao lado da mãe.
Assim, uma neta se prontificou para cuidar dela durante o dia, e
me explicou que, caso acontecesse novamente, que eu não
subisse.
Assim, eu combinei com a enfermeira, que todas as vezes que
ele a dispensasse, que ela me aguardasse no carro e voltasse
após o senhor dormir.
Eu passei a desempenhar o papel de três pessoas, como se
fossem personagens. Pela manhã, eu vestia um uniforme
amarelo, e com os cabelos soltos e a senhora me recebia com
alegria. Ela me chamava de Maria e dizia que a outra estava
maltratando muito ela.
Por volta das onze horas, ela já começava a ficar nervosa e me
mandava embora. Eu pedia ao Paulo para ficar um pouco com
ela, descia ao meu quarto e vestia outro uniforme rosa, prendia
os cabelos e subia. Novamente ela me recebia contente, me
chamava novamente de Maria e repetia a mesma história. Dizia
que a moça da manhã era malvada, que não queria fazer nada e
não a obedecia.
Às quatro da tarde, ela já estava impaciente, me empurrava e
me mandava embora. Eu então descia novamente e vestia outro
uniforme e assim, fazíamos todos os dias.
Na primeira semana, ela pegou na fruteira, duas bananas e deu
uma para mim e outra para o Paulo. Depois nos convidou para
darmos uma volta pelo jardim.
Eu e meu marido saímos na frente, e ela fechou a porta com
força e a trancou. De repente ela começou a gritar por socorro,
dizendo aos vizinhos que nós estávamos querendo roubá-la.
No mesmo instante uma vizinha que estava também do lado de
fora veio até nós para se inteirar do que estava acontecendo. A
senhora então apontou para as bananas que estavam conosco.
Por sorte, estávamos com os uniformes, pois ninguém sabia que
ela estava com problemas. Os filhos preferiram preservá-la e não
contaram aos vizinhos.
A vizinha entendeu de imediato o que realmente estava
acontecendo e ligou para a neta da senhora. Quando ela chegou,
abriu a casa e nos pediu desculpas pelo ocorrido.
O marido também passou a ficar impaciente comigo, dizia que
meu inglês era péssimo, que não entendia o que eu falava. Mas
com o tempo, ele passou a notar o meu carinho para com a sua
esposa, e a minha maneira de agir e contornar as situações.
Assim, ele passou a gostar de mim.
Sempre que eu precisava sair, eu a levava junto comigo, às vezes
para resolver alguma coisa, em outras para passear apenas. Eu
me lembro de que ela não desgrudava da minha mão, mesmo
enquanto eu dirigia o carro, ela não soltava a minha mão.
Foi então que eu me lembrei das palavras do padre, quando me
disse que em todas as vezes que eu entrasse no carro, era para
eu agarrar nas mãos de Deus. Na minha cabeça eu comecei a
imaginar um livro que pretendia escrever com o nome: Vi Deus
na face do Alzheimer.
Na casa em Michigan havia muitas escadas. Da primeira vez em
que fomos com eles para a Flórida, viajamos de primeira classe,
contudo a senhora não conseguia ficar quieta. Muito nervosa,
queria andar de um lado para o outro dentro do avião, e foi uma
viagem tensa.
Ao chegarmos, eu conversei com a família dela, e disse que só
continuaria cuidando deles se fosse para ficar na casa da Flórida.
Expliquei a eles, que achava muito perigoso continuar em
Michigan, devido à idade avançada dos pais e da condição da
mãe. Eles concordaram e eu continuei.
Da última vez em que a levei ao salão de beleza, onde ela
normalmente ficava de costas para o espelho, ela pediu que a
virassem. Quando ela viu sua imagem refletida, começou a gritar
e chamar pela mãe, pensando que ela estava do outro lado do
espelho. Ficou muito agitada, quebrou algumas peças do salão e
assim resolvemos não mais levá-la. E ela passou a ser atendia em
casa.
No supermercado, quando ela me acompanhava, queria comprar
tudo o que via pela frente. Tudo que eu pegava, ela também
pegava igual, repetindo os meus gestos. Assim, ao chegar ao
caixa, eu separava o que realmente iria comprar.
Em casa não podíamos deixá-la sozinha um só instante na
cozinha. Enquanto o Paulo cozinhava, em uma pequena
distração ela colocava mais tempero na comida, muitas vezes
colocava açúcar e assim era a nossa rotina. Parecíamos cuidar de
um bebê.
Hoje, ao me recordar, muitas vezes me pego sorrindo e com
saudades dela, porém foi um tempo difícil, um trabalho que
exigia muito de nós.
Ganhávamos um bom salário, mas vivíamos tensos e muitas
vezes, dava vontade de desistir.
A esposa do meu ex-marido, juntamente com a minha filha
Bruna passaram a nos ajudar a cuidar deles.
Eles tiveram cinco filhos, mas apenas duas eram ainda vivas, e
moravam na Flórida. Ela já quase não saia de casa. Antes, era de
costume os dois irem a restaurantes, pois o Sr. King adorava
jantar fora.
Mas ela não conseguia mais frequentar lugares públicos, assim
quando ele saia para jantar, ia com o Paulo ou com a secretária
dele.
E eu ficava cuidando dela. Na casa da flórida, nosso apartamento
ficava em cima da garagem. O Paulo fez uma portinha na escada,
para que os nossos gatos pudessem entrar e sair. O Vivinho era
tão grande, que quando passava por entre as pernas do senhor,
ele achava que era um cachorro.
A sua secretaria também, que tinha o hábito de ir até a casa
para levar documentos e correspondências, como o senhor tinha
uma empresa financeira, mas não ia mais ao escritório, também
achava que era um cachorro. Ela sempre dizia que adorava o
nosso cachorro.
Às vezes, quando eu estava vendo televisão com ela ao lado, e
precisava sair por alguns instantes, pedia o Paulo que sentasse
no meu lugar. A senhora então, começava a passar as mãos pelas
pernas dele e ele me chamava como se pedisse socorro. Eram
muitas situações engraçadas.
E eu passei a sentir por ela uma ternura, e a cuidava como se
fosse minha avó.
No segundo ano de trabalho, fomos ao Brasil. E já no terceiro,
queríamos fazer um cruzeiro.
Nós organizamos tudo para a viagem que seria em maio.
Nesse período ela já estava mais debilita, quase não reconhecia
mais as pessoas. Ela chamava a mim e ao marido de papi e
mami.
A senhora já quase não saia da cama, tivemos que comprar um
colchão especial, e ela nitidamente encolheu, comia muito
pouco.
Uma semana antes da nossa viagem, eu a chamei e disse que iria
viajar por uns dias e voltaria para continuar cuidando dela. Ela
fez uma carinha de choro e me dizia que eu não iria.
Eu disse a ela, que a mamãe iria ficar fora por apenas uma
semana, e que ela seria muito bem cuidada, mas ela insistia em
dizer para eu não ir.
Dois dias antes da viagem, como se ela realmente tivesse
previsto, ela passou muito mal e teve que ser internada.
E no exato momento em que iríamos pegar o navio, ela partiu.
Foi uma cena muito triste. No hospital, colocaram uma cortina
para dar privacidade à família, como uma forma de despedida.
As filhas me chamaram para que eu estivesse junto a eles, pois já
me consideravam como membro da família. A filha que me
contratou, disse para eu não cancelar a viagem, pois não poderia
fazer nada.
Contudo eu preferi não viajar. Queria estar presente na
despedida, pois eu cuidei dela por tanto tempo. O Sr.King entrou
e fez um pequeno discurso ainda no hospital, que comoveu a
todos nós. Ele a chamava de sweet pie, e em suas breves
palavras, disse a ela que fosse descansar em paz, que viveram
juntos por mais de setenta anos, comemoraram todas as bodas.
Disse ainda que ele tinha apenas quinze anos e ela dezessete
quando se casaram.
Ele se sentou em uma cadeira, e eu, as filhas e a médica que
cuidava dela, ficamos ao lado da cama. Ela foi fechando os
olhinhos devagar, e calmamente foi parando de respirar.

Foi uma cena muito marcante, o marido se levantou da cadeira e


começou a gritar, indo em direção à cama, pedindo que ela não
o deixasse, e para o espanto de todos, ela retomou a respiração
e sobreviveu ainda por mais de uma hora. Ela ouviu os gritos
dele, e adiou a partida por algum tempo.
Eu e a médica, ficamos segurando a boca dela, para que se
mantivesse fechada, pois normalmente os serviços funerários
quebram o queixo da pessoa quando morre com a boca aberta.
Na volta para casa, eu fui conduzindo o carro com ele ao lado,
ele me pediu para continuar cuidando dele. Eu disse que não
poderia mais, que estava muito cansada. Ele insistiu e me disse
que iria passar a casa para o meu nome. Uma casa que valia mais
de dois milhões de dólares.
Eu sabia que ele já não assinava mais nada. Fiquei com um
sentimento de pena ao vê-lo tão indefeso, e sentindo que
comigo estaria seguro.
Enquanto eu seguia o percurso de volta para casa, fiquei
refletindo o quanto era desgastante aquele serviço. Quantas
noites eu chorei ao me deitar, pensando em sair correndo e
deixar tudo para trás. Eu me lembrei da antiga cuidadora que
havia me falado exatamente isso, que às vezes dava vontade de
bater a cabeça na parede.
Certa vez, eu que nunca tive o hábito de beber, pedi ao Paulo
que me levasse até um bar para que eu tomasse um copo de
vinho, para conseguir relaxar e dormir.
O enterro seria em Michigan e as filhas prepararam tudo,
compraram passagens para todos nós.
Pela manhã, eu fui até o quarto dele para acordá-lo e preparar
para viajarmos. Ele se levantou e me perguntou onde estava a
esposa.
Eu respondi serenamente que ela havia ido até Michigan, pois o
corpo tinha que ir antes para a organização do funeral.
Ele assustou e me indagou que corpo, quem havia morrido.
Queria ver a esposa a todo custo. Eu disse a ele que ela havia
morrido e ele não aceitava. Não se lembrava do ocorrido.
Eu então percebi que a demência dele havia piorado a partir
desse dia. Até então ele tinha um controle financeiro na cabeça.
Tinha uma memória muito boa.
Certa vez, ao irmos a uma consulta médica, ele ficou bastante
atento quando o doutor foi medir sua pressão. Eu havia notado
que o aparelho do médico era igual ao que tínhamos em casa.
Na volta, ele me interpelou no meio do trajeto e me pediu para
voltarmos até o consultório, pois havíamos esquecido o aparelho
de medir a pressão deles. Eu expliquei que não era o dele, o
médico é quem tinha um aparelho igual. Ele não aceitou a minha
explicação e continuou dizendo que eu havia esquecido o
aparelho. Eu naquele momento tive a sabedoria de lhe fazer uma
proposta. E disse, vamos até em casa, e caso o aparelho dele não
estivesse lá, voltaríamos para pegar com o médico.
Eu disse a ele, que se encontrássemos o aparelho em casa, ele
teria que me dar cem dólares. E se não estivesse, eu daria a ele
dez dólares.
No mesmo instante, ele concordou em irmos embora.
Chegando a Michigan, participamos do velório. O casal era judeu,
e a cerimônia foi muito bonita. Eles têm o costume de fazer o
caixão com pequenas gavetas onde os filhos e parentes colocam
cartas de despedida, para que eles possam ler do outro lado, e
jogam um pouquinho de terra de Israel. Eu e o Paulo fomos
convidados a colocar nossa cartinha assim como os familiares.
E outra coisa interessante é que não vestem o corpo da pessoa.
Eles enrolam com faixas assim como eram feito com as múmias.
E depois engomam para o tecido endurecer.
O funeral estava cheio de amigos. Eles eram muito queridos em
Michigan, faziam doações consideráveis para o hospital, e a
partida dela foi muito sentida por todos.
Eles haviam perdido uma filha com a idade de 38 anos, que
faleceu de câncer. A filha havia recebido um diagnóstico errado,
e quando descobriu a doença, já era tarde para obter uma cura.
Assim os pais entraram com uma ação judicial contra o hospital
que havia cometido o erro, e ganharam uma quantia alta de um
milhão de dólares.
Esse dinheiro eles doaram para um pequeno hospital que se
transformou em um hospital grande e referência em doenças do
câncer.
Na entrada, existe ainda hoje uma placa com o nome deles.
Passado o funeral, nós pedimos dois meses de férias, para nos
refazermos e decidirmos se continuaríamos ou não a cuidar do
Sr.King.
Nesse período fomos ao Brasil, alugamos o apartamento onde
meu irmão Geraldo morava, pois ele estava passando uma
temporada na Bahia. E o apartamento ficava pertinho da casa da
minha mãe.
Foram dois meses maravilhosos, no qual nós passeamos
bastante, eu fiquei mais próxima da minha família, levei o Paulo
para conhecer as cidades históricas de Minas Gerais.
Nesse período, o meu sobrinho Rodrigo esta passando por um
faze muito ruim. Ele estava andando com pessoas perigosas,
guardando arma de fogo dentro de casa e por pouco não
entraria para a vida do crime.
Porém ele estava namorando a Valéria, que hoje e sua esposa.
Ela, uma pessoa muito centrada, de boa índole, foi o anjo que
surgiu na vida dele.
Eu fui até a casa deles, ela me entregou as armas, que eu joguei
no lago da casa onde trabalhava e dei muitos conselhos a ele.
Hoje tenho orgulho em dizer que ele é um excelente pai de
família, muito responsável e trabalhador.
Nessa mesma época, eu senti que a Bruna estava fora do peso e
com a altoestima muito baixa.
Então passamos 10 dias em um SPA muito famoso em São Paulo,
onde frequentavam muitos artistas famosos. Minha mãe, o
Giovanni e a Karla foram passar um final de semana conosco.
E ao retornamos para casa, eu não tive coragem de abandonar o
Sr.King. Decidi, junto ao meu marido a continuar no trabalho.
Sem a esposa, o trabalho se tornou mais leve, diminuímos o
número de pessoas. O Paulo passou a cuidar dele durante a
noite, eu cuidava durante o dia. Nós passamos a dormir na casa,
e colocamos um aparelho de monitoramento no quarto dele
durante a noite.
Aos finais de semana, vinha a Zenaide para ficar com ele e assim
nós passamos a ter um pouco mais de tempo para descansar.
Contudo, ele começou a ficar mais debilitado após a morte da
esposa. A sua demência sofreu um aceleramento considerável e
ele perguntava a todo instante onde estava ela estava. E passou
a agir de maneira mais agressiva.
Na hora do café, ele queria saber o que ela havia tomado. Na
hora do almoço ele perguntava se ela já havia almoçado, e o que
ela comeu. Eu respondia que ela estava sendo muito bem
cuidada no céu, e fingia ligar para perguntar como ela estava.
Eu fazia de conta que estava falando com Deus, e perguntava
tudo o que ele queria saber. Eu muitas vezes desenhava um
túmulo, a entrada do cemitério e mostrava para ele. Mas ele não
entendia, e não aceitava. E ficava pedindo que o levássemos até
onde ela estava.
O Sr.King viveu exatamente um ano, um mês e um dia e seis
horas após a partida da esposa.
Ele havia ficado internado durante uma semana.
E ao retornar, precisamos contratar um fisioterapeuta para
ajudar nos cuidados dele. O rapaz indagou sobre o horário em
que ele deveria ir todos os dias, e ele respondeu que quem
decidia era eu e o Paulo. Assim nós combinamos como deveria
ser.
Nessa época, o Paulo havia entrado para uma universidade e
estava fazendo um curso de justiça criminal. Ele já estava no
segundo período. E então, eu ficava encarregada de colocá-lo na
cama.
E o interessante, é que na noite da partida dele, a filha caçula
que morava também na Flórida, ia fazer uma viagem durante a
madrugada e resolveu passar para se despedir do pai. Quando
ela se foi, eu o acomodei em sua cama e lhe desejei boa noite.
Ele me respondeu com um adeus. Eu repeti boa noite e ele
novamente disse adeus.
Ao me deitar, eu lembrei que havia me esquecido de retirar o
aparelho de surdes que ele usava, e fui novamente ao quarto
dele. Quando ele me viu entrando, me chamou de sweetheart,
como fazia sempre. Ele se sentou na cama, eu retirei o aparelho
e ao sair eu desejei mais uma vez boa noite, e a reposta dele foi
um adeus.
Nessa noite, ele que normalmente tinha um sono agitado, falava
muito enquanto dormia, dizia palavrões terríveis que me faziam
rir, ficou muito quieto.
Depois começou a dialogar com um amigo imaginário, e eu
ouvindo através do aparelho de monitoramento.
Eu consegui entender algumas coisas, e ele parecia ter se
encontrado com um antigo sócio, e conversava a respeito de
negócios. Eu não sabia se era sonho, ou se ele estava realmente
vendo esse amigo. A filha ligou mais tarde para ter noticias, e eu
disse a ela, que ele não estava agitado como de costume, mas
estava tendo uma longa conversa com alguém chamado Sam.
O Paulo chegou mais tarde da universidade essa noite, porque
tinha se encontrado com Allan para repassar uma quantia que
demos a ele, para que ele comprasse um trailer. Ele atrasava o
pagamento do aluguel todos os meses, e isso me incomodava.
Ele chegou e me perguntou como tinha sido durante o período
em que estava fora. E eu contei que algo estava diferente
naquela noite. Contei sobre o adeus que o Sr.King repetira várias
vezes, sobre a longa conversa dele com o Sam, e também que
não houvera palavrões.
Nós dormimos, e outra coisa nos chamou a atenção. Através do
aparelho de monitoramento, em todas as noites podíamos ouvir
os roncos e a agitação dele. Por volta das cinco horas da manhã,
o Paulo me acordou e se mostrou preocupado com o silêncio do
quarto, e foi até lá para ver como ele estava.
De repente, o Paulo começou a gritar, dizendo que o nosso
velhinho estava morrendo. Eu me levantei assustada e fui até o
quarto. Liguei imediatamente para a ambulância que tínhamos
no condomínio, e ao ligar para a filha dele, que já estava no
aeroporto e pronta para o embarque, eu não conseguia falar em
inglês.

É normal acontecer isso, quando falamos em uma língua, que


não seja a materna, em momentos de apuros não conseguirmos
nos comunicar. Eu dizia, volta que seu pai esta morrendo, e ela
não entendia nada.
O Paulo tentava a todo custo, desenrolar a língua dele, para que
ele conseguisse respirar.
Por fim consegui dizer e nesse intervalo, a ambulância já havia
chegado e os paramédicos não conseguiram reanimá-lo.
Nós comunicamos á polícia, o que é de praxe quando acontece
uma morte em casa. Estávamos no quarto, eu, a filha e a
Zenaide, quando os policiais chegaram. E eles nos pediram
licença, para as formalidades legais, e constatarem a causa da
morte.
A filha dele me disse que na crença deles, quem ajuda a lavar o
corpo de um judeu para o sepultamento, recebe bênçãos por
toda a vida.
Eu já me considero abençoada por Deus, todos os dias. E então,
recebi a missão como uma forma de agradecimento.
Seguindo o protocolo, os policiais aguardam a confirmação do
médico. E ele explicou que o coração do Sr.King estava muito
fraco, e que isso iria acontecer a qualquer momento.
Eu fiquei muito abalada com a partida dele. No início, passei a
me sentir culpada por não estar do lado dele, ou não ter
permanecido no quarto aquela noite.
Conversei com o médico dele, e ele me confortou dizendo que
nada impediria a morte dele. Eu cheguei a fazer algumas sessões
de análise para me conscientizar de que, na verdade, cuidei dele
com todo o carinho e respeito durante todos aqueles anos.
O Sr.King partiu em um mês de junho. A esposa havia partido no
mês de maio do ano anterior.
O funeral dele foi um evento, que apesar de triste, foi
maravilhoso. Ele se dizia rei, brincando. Mas vinha da
descendência do Rei Davi, então as filhas mandaram buscar uma
porção de terra do túmulo dele para que fosse jogada no caixão
do pai.
Assim, em cada pacotinho estava escrito: Terra do túmulo do Rei
Davi. O rabino fez um discurso muito comovente, um caixão
lindo que foi carregado pelos netos até a sepultura. Ele tinha
comprado um túmulo bem grande, com doze compartimentos,
onde estava enterrada a esposa e as filhas já falecidas.
A família deixou que continuássemos morando na casa durante o
resto do ano, e recebemos o salário por seis meses.
Eu e o Paulo aproveitamos para realizar um antigo sonho de
conhecer a Europa.
Nós fomos até Roma, conhecemos o Vaticano e toda a beleza
daquela cidade. Fomos até a igreja onde está enterrado o corpo
de São Pedro. E mesmo o Paulo, que não tem apego à religião, se
sentiu tocado, ao estar em frente ao túmulo do Santo.
Depois fomos à Espanha, Portugal. Não fizemos roteiro,
decidíamos para onde ir e viajávamos de trem. E somente
quando chegávamos ao lugar, é que íamos procurar
hospedagem.
Em Portugal, tinha um senhor bem em frente à estação de trem,
oferecendo pousada e alimentação com preços interessantes.
Era um pequeno hotel, com um restaurante em baixo.
Não nos demos conta da diferença das horas. E descemos para
almoçar, pensando que era 11 horas, o horário da America.
A senhora, muito gentil, nos serviu um caldo muito gostoso, e
sorridente, nos informou os horários em que serviam as
refeições.
Tínhamos uma amiga em Portugal, que havia trabalhado comigo
na America, e ao se aposentar, tinha voltado para casa.
Então entrei em contato com ela, que ficou muito feliz ao nos
rever. De imediato, nos convidou para ficar na casa dela, e foi
nos buscar no hotel.
Ela morava em uma praia, próxima a Nazaré, chamada San
Martin. Ela havia levado o carro que tinha nos Estados Unidos,
porque só sabia dirigir carro automático. No percurso até sua
casa, ela corria tanto, e o Paulo ficava apreensivo, dizendo a ela
que não precisava pressa.
A casa era maravilhosa, ficava em um monte em frente à praia,
com 3 andares. Como ela havia levado muitos pertences da
America, ela usava muita naftalina, e o cheiro forte me deu uma
crise de alergia tremenda. Eu dormia na varanda. Contudo, foi
muito bom ter passado alguns dias com ela.
Aproveitamos para conhecer o santuário de Fátima que foi muito
emocionante. Diante dos túmulos dos pastores, sentimos uma
energia divina, que é difícil de explicar.
Na Espanha, fomos a vários restaurantes para apreciar a comida
deles, fomos ao cinema, teatro. Assistimos a uma tourada e
ficamos encantados com tudo o que vimos.
Nós retornamos e quando chegou o dia de abrirem o
testamento, para minha surpresa, ele havia deixado um presente
de 30 mil dólares.

Na época em que ele fez o testamento, ele era mais próximo a


mim, por isso o cheque estava em meu nome. Assim, quando a
filha dele me passou o cheque, ela fez questão de explicar que
era um presente para mim e para o Paulo, como forma de
gratidão por tudo o que havíamos feito por eles.

Para a sua secretária particular, que era alemã, ele deixou a


soma de 100 mil dolares. Ela se chamava Inga e havia trabalhado
para ele durante 50 anos. Ela passou a me considerar como sua
melhor amiga. Nós demos a ela um cachorrinho de presente, no
qual ela colocou o nome de Gigi, em minha homenagem.
A senhorita Inga, após a partida do patrão, vendeu o
apartamento que tinha e comprou outro em um Assisted Living.
É um sistema muito interessante que existe aqui nos Estados
Unidos. A pessoa compra um apartamento, em um condomínio
que oferece todo tipo de assistência para as pessoas idosas.
Quando a pessoa falece, o apartamento fica para o condomínio,
como forma de pagamento pelos cuidados e assistência para a
pessoa.
E a partir do momento em que ela se mudou para lá, como
também já estava idosa, eu consegui que a Bruna ficasse
trabalhando para ela. Ela era uma pessoa muito sistemática, fria
como são os alemães. Porém eu me afeiçoei muito a ela e
gostava de verdade.
Nos finais de semana, eu normalmente ia visitá-la, cuidava do
cabelo dela, algumas vezes eu a levei para minha casa para que
ela passasse o final de semana conosco.
Ela sempre me perguntava o motivo de tanto amor que eu
dedicava a ela, mesmo sabendo que ela era uma pessoa que
nunca demonstrava afeto. E eu dizia que simplesmente nós
nascemos com esse dom. E que eu a cuidava, como se estivesse
cuidando da minha própria mãe.
Quando ela partiu dessa vida, deixou para mim uma quantia em
dinheiro e o cachorro para que eu cuidasse dele.
Dessa forma encerramos nosso trabalho, e considero como uma
dádiva de Deus, todos os anos que passamos junto a essa família.
Apesar de tantas lutas, do desgaste físico e emocional, tivemos
uma grande lição de vida. Pudemos presenciar um amor que
durou por 75 anos, uma troca de carinho e de ensinamentos e
uma experiência que jamais será esquecida.
Nós começamos a procurar um novo trabalho, e fizemos uma
aplicação em uma agência. O proprietário, ao checar nosso
currículo, nos disse que, se conseguimos ficar tanto tempo na
casa dos King, teríamos capacidade de trabalhar em qualquer
emprego. Ele já conhecia a alta rotatividade de casais que
passaram por lá e desistiam.
Assim, ele nos conseguiu um trabalho para um casal que fazia
shows com cavalos. Esse casal possuía uma casa na Flórida e ao
norte de Nova York, uma propriedade imensa. Na verdade era
uma fazenda, onde criavam os cavalos.
Nessa propriedade, havia um grande lago ao meio, onde ficava
uma casa para hóspedes e familiares, quando eles estavam por
lá. Eles ficavam na casa principal, e em uma pequena ilha que
existia na propriedade, tinha uma casa dos hóspedes.
Durante o inverno, era possível ir andando até essa casa. Porém
no verão, somente de barco.
O lugar era muito lindo, ficava na divisa com o Canadá, e
constantemente eu e Paulo, passeávamos em Toronto.
O casal era muito simpático, nos recebeu muito bem, permitiu
que levássemos nossos gatos.
Nós nos instalamos em uma casa bem na entrada da
propriedade. E todas as manhãs, íamos caminhando por 15
minutos até a casa principal, para trabalhar.
Era uma cidade pequena, onde todos se conheciam, onde se
podia fazer compras e anotar no caderninho.
Foi uma experiência muito boa para nós. Porém o destino
acabou me pregando uma peça.
A Bruna estava grávida, e era uma gravidez de risco. E o Paulo
estava querendo ir ao Brasil para a formatura de uma sobrinha.
No Brasil, o Paulo teve um envolvimento com uma colega de
trabalho da irmã. E ao retornar para casa, ele, que é uma pessoa
muito sincera, não conseguiu esconder isso de mim. Eu já tinha
percebido que ele tinha voltado com a cabeça muito diferente.
Ao me contar, a minha reação foi um tanto fria. Eu me propus
até mesmo a ajudá-lo a trazer a tal moça, que tinha quinze anos
a menos do que ele.
Mas passado alguns dias, a situação começou a me incomodar.
Eu resolvi ligar para uma amiga minha, que é psicóloga, e contei
toda a história.
Ela, muito experiente, me deu muitos conselhos e me disse que
era uma paixão passageira, e que eu não deveria acabar com um
relacionamento tão bonito quanto o nosso.
Disse ainda, que o meu relacionamento era de 17 anos e que ele
teve 17 horas com essa moça.
Ela me alertou, dizendo que isso iria passar, e ele me pediria
desculpas. Que muitas vezes isso é normal em um
relacionamento longo.

Continuando, minha amiga me abriu não apenas os olhos, mas


meu coração também. E eu concordei com ela, não havia
chegado até aqui, para deixar que uma estranha arruinasse a
minha vida.
Foi assim que eu me dei conta de que amava o Paulo de verdade
e com tamanha intensidade.
Eu pensava que sentia por ele uma enorme gratidão pela força
que me deu para eu trazer os meus filhos, e por tantas outras
coisas que fazia por mim. Eu sabia dos cuidados e do carinho
dele, foi uma das primeiras pessoas que eu conheci na America.
Parece que o céu caiu na minha cabeça. Parecia que eu estava
sabendo naquele momento do envolvimento dele com a moça.
Resolvi dar a volta por cima e lutar por ele. Fui até o pequeno
apartamento onde morávamos e peguei os dois passaportes do
Paulo. Rasguei todos os dois em pedacinhos tão pequenos, que
significavam o tamanho contrário da raiva que estava sentindo.
Passaporte é um documento que demora muito para fazer a
segunda via.
Fui até a agência bancária, onde tínhamos uma conta conjunta, e
retirei o restante do valor que recebemos da herança. Eu deixei
apenas mil dólares.
Eu estava muito magoada e triste. Respirei fundo e chamei o
Paulo para conversar. Comecei dizendo a ele, que não iria ajudar
a trazer a moça. Que iríamos nos separar e eu ficaria na casa.
Disse que havia retirado o dinheiro da conta e ele que se virasse
sozinho com a amante. Ela que começasse lavando banheiro
como eu comecei.
Que era muito fácil, chegar e achar tudo pronto, um príncipe
encantado que ela conheceu no Brasil, gastando dinheiro à
vontade como se fosse milionário.
Nesse momento, eu já estava em lágrimas, na verdade não
queria perdê-lo. A reação do Paulo foi surpreendente. Nós
sempre nos tratamos de Tesouro até hoje. E ele me disse que
achava que eu não o amava, que quando nós brigávamos, eu
sempre dizia que ele era uma pedra no meu caminho.
Ele continuou dizendo que jamais teria a intenção de me magoar
e me fazer sofrer. E ligou no mesmo instante para o Brasil
dizendo para a moça que não queria mais contato com ela.
O Paulo me pediu perdão, e eu vi sinceridade nos olhos dele.
Como a minha neta estava para nascer, eu estava muito
envolvida com as possíveis complicações do parto, e isso me
ajudou a relevar, e eu o perdoei e continuamos nosso
casamento.
O nascimento da minha neta foi um tanto complicado, mas
graças ao bom Deus tudo acabou bem. Eu sugeri à Bruna que a
chamasse de Victória. Como símbolo por ela ter chegado a esse
mundo em perfeitas condições de saúde.
Após o nascimento da minha neta Victória, eu decidi ir ao Brasil,
para rever minha família, e arejar a cabeça.
No Brasil, em uma determinada manhã, eu me olhei no espelho
e disse para mim mesma, que iria me cuidar, e que ao invés de
colocar os problemas dos outros na frente, iria me amar
primeiro.
Na verdade, nunca consegui ouvir meus próprios conselhos, pois
acho que vim ao mundo com a missão de ajudar.
Mesmo assim, procurei uma clínica, e com o dinheiro que havia
tirado do banco, fiz uma cirurgia bariátrica, emagreci um pouco,
me refiz psicologicamente, e voltei pronta para continuar minha
vida.
Nesse retorno, o Giovanni e sua esposa Karla vieram comigo e
ela começou a me ajudar no trabalho.
Voltando alguns anos no tempo, após a partida da Sra.King, eu e
o Paulo compramos uma casa em um terreno bem grande,
parecia um sitio.
Nesse terreno, havia um lago no fundo e eu comecei a plantar
todas as variedades de árvores frutíferas que eu gostava. Plantei
jabuticaba, cana, manga, limão, laranja, pêssego. Construímos
uma piscina, mudamos o piso, que era de cimento grosso, e
substituímos por tijolinho vermelho.
Ficou muito lindo. Quando meus netos vinham passar, diziam
que estavam na roça da vovó. Nós íamos para lá apenas aos
finais de semana. E o Giovanni e a Karla, no inicio ficaram
morando nessa casa, e assim cuidavam dos nossos gatos e
minhas plantas.
Também nessa época, o casal que havia me recebido em Nova
York quando cheguei aos Estados Unidos, veio nos visitar.
O Toninho nos apresentou a Lou, esposa do primo dele e eu a
incentivei a fazer um curso para cuidar de idosos. Assim, ela
parou de trabalhar com limpeza e nos tornamos grandes amigas.
Ela também me ajudou quando trabalhei para a Mrs.Flor.
Quando ela recebeu o greencard, me pediu que a levasse em um
cruzeiro. Foi muito divertido. Na comemoração dos 70 anos dela,
eu, a Loura, que era outra amiga e os dois filhos, fizemos uma
linda festa. E nesse ano, as duas vão comemorar os meu 70 anos
também em um cruzeiro.
Na época em que eu trabalhava para o casal King ,conheci o
irmão caçula dela. Ele se chamava Mr.Pepe e ela Mrs.Duly. Era
um casal muito simpático, com cinco filhos.
Dois que haviam adotado por pensarem que não poderiam ter
filhos, e três que vieram depois.
Ele sempre me dizia, que quando eu parasse de trabalhar para a
irmã, que ele gostaria muito de ser cuidado por mim. Ele dizia
isso como brincadeira. Eu os reencontrei quando a irmã faleceu,
depois na despedida do Sr.King, e depois perdemos o contato.
Ele também pensava que eu havia voltado para o Brasil.
Aconteceu que ele sofreu uma queda e havia quebrado o fêmur.
E suas filhas começaram a procurar um casal para cuidar dele e
da esposa, que também já estava bem idosa e debilitada.
Ele então, se lembrou de mim, e disse às filhas que só aceitaria
se elas encontrassem a mim e ao Paulo e aceitássemos morar
com eles.
Elas nos localizaram e começaram a nos ligar todos os dias,
pedindo que aceitássemos trabalhar para os pais.
Como nós já tínhamos trabalho, elas foram fazendo ofertas e
aumentando até que nos convenceram a aceitar.
A oferta era muito tentadora. E eu estava pensando em sair da
Flórida por um tempo. Treinei um casal para ficar no meu
emprego e fomos trabalhar com eles.
A casa era muito boa, a esposa dele muito amável. Nós tínhamos
um apartamento na parte de baixo bastante confortável. Móveis
de couro, televisão, todo equipado.
Acontece que, quando conseguimos organizar toda a casa deles
que estava muito bagunçada, tudo fora de lugar, ela era
acumuladora e não se dava conta de tanto entulho que colocava
dentro de casa.
Mas ao contrário da esposa, o marido tinha um gênio terrível, e
nos tratava como se fôssemos escravos.
Nos dias do pagamento, ele ficava demorando até que fôssemos
pedir a ele. Quando o pagamento caia em finais de semana, ele
esperava até a segunda feira para pagar, para que ficássemos lá.
Foi um tempo muito difícil para nós dois. O que nos mantinha
era a doçura da senhora. Apesar de ela estar muito mal de
saúde, os seus rins já quase não funcionavam direito, ela
mantinha uma amabilidade no olhar, gostava de sair, ir ao teatro
e gostava de viver.
Ela passou a fazer hemodiálise e as filhas pagaram para mim, um
curso para que pudéssemos realizar o procedimento em casa.
Ela adorava a minha companhia e nesse período, eu me lembro
de haver assistido a todas as peças de teatro e a muitos filmes no
cinema.
Nós viajamos com ela para Las Vegas, onde conhecemos os
cassinos e passamos a gostar. Ela adorava jogar, e pagava para
que pudéssemos jogar também.
Assim nós começamos a tomar gosto pelos jogos de cassino.
O marido sempre intolerante nunca tinha paciência conosco nem
com a esposa. Eles tinham um apartamento na Flórida, alugaram
outro do lado ao deles para nós.
Nesse meio tempo, a Bruna já tinha seu segundo filho, Vícktor,
com menos de um ano de diferença da Victória, e o marido dela
resolveu voltar para o Brasil, pois já havia comprado uma
fazenda, e ele usava um nome falso, Marcelo, quando na
verdade se chamava Wilson. E por isso não podia se casar na
América.
A Bruna não queria de forma alguma ir para o Brasil, mas eu a
aconselhei a acompanhar o marido. E disse que assim que
resolvessem os documentos, ela poderia voltar.
Assim ela resolveu ir, porém estava muito infeliz. A Ticiane me
pedia que a buscasse, e eu acabei decidindo ir também para
trazê-la de volta, pois o casamento dela estava no fim.
Em um final de semana eu embarquei para o Brasil, consegui
uma moça para me substituir, fui até Governador Valadares
onde ela estava morando e a trouxe junto com os filhos.
Eu fui em uma sexta feira e na segunda já estávamos de volta.
De início, ela ficou morando com a Tiçiane, e eu consegui uma
senhora conhecida, Celma, que era minha conterrânea para ficar
com os meus netos enquanto a Bruna saia para trabalhar.
O carro que ela tinha antes de ir para o Brasil, havia ficado com o
irmão do Wilson, e ele devolveu quando ela voltou.
Um dia a Celma me ligou dizendo que não tinha fraldas para o
Vícktor. Eu pedi à minha patroa para ir ao supermercado para
comprar algumas coisas. E eu fui rápido. Com a pressa e já
preocupada com a situação, ao descer do carro um senhor já
bem idoso me atropelou. Quebrei o meu pé, o meu tornozelo e
eu, com tamanha dor, comecei a gritar em português, chamando
pelo meu marido.
Como eu disse antes, na hora do desespero agente fala na língua
materna, e ninguém conseguia entender o que eu gritava.
Por sorte, uma senhora portuguesa que presenciou o acidente,
entendeu o que eu estava dizendo, e assim, chamaram uma
ambulância, e ligaram para o Paulo.
Eu precisei usar uma bengala, fiz uma cirurgia no pé e 40 dias de
fisioterapia. Mesmo assim continuei trabalhando, e com a ajuda
do Paulo, conseguimos dar conta de tudo.
Como eu já disse anteriormente, o que me prendia nesse
trabalho era a simpatia da nossa patroa.
Depois do acidente, embora eu continuasse fazendo o serviço
mesmo usando uma muleta, o Mr.Pepe pagou somente a parte
do Paulo, e disse que eu não estava rendendo o suficiente.
Voltamos para a casa deles em Michigan e estava se
aproximando os dias em que sairíamos de férias.
Dessa vez, convidamos minha mãe para vir e fazermos um
cruzeiro. Mãe já estava na Flórida nos esperando. E na véspera
da nossa viagem, as três filhas deles nos deram um envelope
com uma quantia em dinheiro e nos desejaram boa viagem,
agradeceram pelos cuidados e carinho com os pais e elas se
organizaram para que um irmão dormisse com eles e uma
enfermeira iria cuidar da mãe.
O cruzeiro que fizemos foi uma delícia. Eu estava duplamente
feliz, pelo passeio e principalmente por poder propiciar à minha
amada mãe, a oportunidade de uma diversão, um luxo, que ela
mais do que merecia.
Fomos às Bahamas, tiramos muitas fotos, eu de bengala, e minha
mãe se encantava com tudo, para ela era novidade. Comemos
bastante, engordamos, rimos. No navio, tinha todo tipo de
diversão que se possa imaginar. Peças de teatro, música,
exercícios matinais guiados, cassino, parecia uma cidade
flutuante, ela dizia.
Nós pagamos para fazer uma excursão de submarino no fundo
do mar, que durava uma hora. É maravilhoso, o fundo do oceano
é um mundo à parte do nosso. Foi muito engraçado, porque mãe
dormiu durante quase todo o tempo. E quando voltamos, ela
ficava perguntando como tinha sido.
Paramos em Cozumel, e lá tinha uma variedade enorme de
iguanas, que o Paulo resolveu fazer fotos. De repente, uma delas
começou a correr atrás dele, ele largou a câmera no chão e saiu
correndo de medo.
Quando retornamos do passeio, eu deixei minha mãe na casa da
Gilmara e já tinha combinado de levá-la para conhecer nossos
patrões, inclusive eu encomendei um presente do Brasil, que
mãe trouxe para entregar para a esposa.
Eu liguei para saber como estavam as coisas e como havia se
passado durante nossa ausência. Porém a filha que me atendeu
disse que não mais precisariam do nosso serviço, explicando que
a mãe havia caído durante a noite, e o irmão não cuidou direito.
Disse que ela havia quebrado o fêmur e estava em uma casa de
recuperação e completou dizendo que não precisaríamos voltar
lá.
Foi uma situação desconfortável, pois nós tínhamos pertences lá,
nossas coisas, o meu endereço era lá, e já se haviam passado
quase três anos que trabalhávamos com eles. Eu disse a ela que
não estava correto nos dispensar assim, sem um aviso ao menos.
Eu tinha recebido uma quantia em dinheiro do seguro de saúde,
em consequência do acidente que tive. Tirei uma parte para
pagar a cirurgia, outra para o advogado.
Paguei também pela fisioterapia. E um mês antes do cruzeiro,
recebi um cheque restituindo parte do valor da cirurgia.
Eu pensei que se deixássemos o dinheiro no banco, gastaríamos
tudo. E nessa época começaram a aparecer muitas ofertas de
imóveis com um preço razoável.
Conversando com o Paulo, decidimos comprar uma pequena
casa, para passarmos os finais de semana. Nos nossos dias de
folga em Michigan, era impossível ficar perto do casal, pois o
senhor nos incomodava bastante e normalmente nós íamos para
um hotel.
Ele ligava a máquina de lavar, começava a mexer nos guardados
ao lado do apartamento, tudo para nos incomodar.
Na verdade ele queria que ficássemos trabalhando nos dias de
descanso, sem remuneração.
Até mesmo as milhas do carro, ele anotava toda vez em que
saiamos. Ele era terrível.
Como a filha havia nos dispensado de maneira tão inesperada e
grosseira, resolvi ir direto para lá. A pequena casa que havíamos
comprado, já estava mobiliada. Eu não imaginava que seriamos
dispensados após o retorno das férias.
Então, a casa foi muito útil, pois se não a tivéssemos comprado,
ficaríamos praticamente sem teto naquele momento.
Ao chegar até a casa em que trabalhava, notei que o patrão
havia mudado o código de entrada do portão da garagem. Isso
me deixou ainda mais decepcionada. Tivemos que passar pela
cerca e eu notei que já havia alguém usando o apartamento.
Eu voltei para a minha casa, deixei a minha mãe, e fui até o
hospital onde a patroa estava.
Ao chegar, ela, que não sabia de nada, me recebeu com toda a
doçura. E me disse que estava feliz em me ver, e que até aquele
momento não havia tomado o medicamento.
Eu perguntei a ela, quem estava cuidando e ela me apontou para
uma moça que estava no quarto. E falei sobre o apartamento.
Ela imediatamente indagou à moça se ela estava usando o
apartamento, e a mesma respondeu que sim, por ordem da filha
dela.
A minha até então patroa, ficou enfurecida, dizendo que isso não
estava certo, que ninguém tinha o direito de invadir o espaço
que já era ocupado.
Eu então resolvi contar a ela que as filhas haviam me dispensado,
e que eu já havia me instalado na casa que tinha comprado.
Então a Mrs.Duly, pediu para a moça sair do quarto, e me disse
quase implorando que não a deixasse no hospital, me pedindo
para levá-la para casa. Eu chamei o médico responsável por ela, e
perguntei a ele se era necessário realmente que ela continuasse
internada. Ao que ele me respondeu que não, e se ela tivesse
alguém para cuidar, fazendo a fisioterapia todos os dias e tomar
os medicamentos, poderia ficar em casa, com toda a certeza.
Assim, eu liguei para a filha, dizendo que tinha ido até o hospital
junto da mãe, e contei o que o médico havia dito.
E inocentemente, disse que poderíamos levá-la para casa e que
eu iria todos os dias para medicar e levá-la para a fisioterapia.
Mal sabia eu, que na verdade, os filhos não a queriam em casa.
O marido da filha me ligou furioso, dizendo que eu estava
proibida de ir até o hospital, e que eu não e aproximasse dela.
Pois eles haviam decido mantê-la internada, porque não queriam
vê-la sofrendo em casa. Resumindo, eles queriam mesmo ficar
livre da mãe.
Eu tentei argumentar, dizendo que ela queria ver as netas,
queria voltar para a casa.
O genro foi irredutível, e ainda me deu um prazo de 24 horas
para retirar todos os meus pertences do apartamento, caso
contrário iriam lacrar o local e chamar a polícia.
Essa situação foi para mim, umas das piores que eu passei na
America. Eu tinha consciência de haver cumprido meu dever, e
sabia que não havia feito nada que justificasse essa reação da
família. Isso me deixou muito chocada e triste.
Em um momento eu era o anjo dos pais, e em outro me
transformei em demônio.
Eu não consegui engolir esse destrato. Fui até o departamento
de polícia e relatei todo o acontecido.
O policial que me atendeu me deu toda a razão, e disse que eu
havia agido corretamente ao procurá-los. E disse que existe uma
lei, com um prazo legal para dispensar qualquer funcionário que
não tenha cometido nada errado.
E assim, ele se dispôs a nos acompanhar até a casa, no horário
determinado pelo genro.
Eu já estava em frente da casa, com o Paulo e o policial, quando
meu telefone tocou. Era o marido da filha, esbravejando do
outro lado, dizendo que havia vencido o prazo para eu retirar as
minhas coisas.
Parecia uma cena de filme. Eu respondi a ele que esta já
esperando do lado de fora. E que eu mesma havia chamado a
policia, para poupar-lhe o trabalho.
Ele, que era muito branco, saiu para o lado de fora, vermelho,
levantando as calças, e ao constatar que o policial estava
realmente lá, imediatamente mudou o tom.
E disse ao policial, que tudo isso era um engano, que eu não
entendia direito o inglês, e que não seria necessária a presença
dele. O policial perguntou se havia acontecido algum incidente, e
se nós havíamos feito algo de errado, o que ele respondeu que
não.
Nesse momento, ele disse que a lei tinha que ser cumprida, e
que nós tínhamos o direito e o tempo que precisássemos para
retirar nossas coisas.
Disse ainda que nós tínhamos um prazo de até dois meses para
nos organizarmos e se quiséssemos poderíamos continuar no
apartamento durante esse período.
Eu agradeci, dizendo que tinha uma casa, e queria apenas pegar
o que era meu.
O Paulo sempre foi muito organizado e sempre que
comprávamos algo para o apartamento, ele colava uma
plaquinha atrás, com a data.
E quando ele subiu com uma televisão, que na verdade era muito
melhor do que a que havia na casa, o neto perguntou se a TV era
nossa. O Paulo, calmamente e com ironia, disse que o avô era
tão pão duro, que jamais iria gastar dinheiro com um aparelho
daqueles. E mostrou a etiqueta pregada na parte traseira da
televisão, e assim, ele havia feito com todos os pertences que
eram nossos.
O policial balançou a cabeça, com um sorriso no rosto, como
quem diz, que ótima resposta. E perguntou se havíamos retirado
tudo.
Como já estava tarde, eu respondi que não, e prontamente o
genro interveio, dizendo que deixaria o apartamento aberto, e
que poderíamos ficar à vontade para entrar e sair, até que
terminássemos de retirar tudo.
Eu tenho plena convicção de que as coisas que acontecem na
minha vida são guiadas pelas mãos de Deus.
No dia seguinte, enquanto nos dirigíamos para o apartamento
para retirar o restante das coisas, eu dizia ao Paulo que
deveríamos procurar o departamento responsável pela mudança
de endereço, pois tudo estava registrado no local de trabalho.
Nós estávamos aguardando a documentação do Allan, a nossa
licença de dirigir era registrada naquele endereço. Enfim,
precisávamos nos organizar.
E nesse trajeto, eu me deparei com uma placa em um prédio,
onde dizia ser um escritório de advocacia trabalhista.
Eu não pensei duas vezes, e pedi ao Paulo que parasse diante do
local. Como eu não havia recebido devidamente o meu salário, e
o patrão não quis oficializar a dispensa, eu precisava dar entrada
no seguro desemprego a que tinha direito.
Fomos recebidos por uma senhora muito distinta, que era uma
das advogadas do escritório, e eu relatei toda a situação.
No dia seguinte, ela já entrou em contato com o genro do nosso
patrão, que muito surpreso, não contava com isso.
Ele me ligou querendo fazer um acordo. E eu me recusei, e disse
que iria prosseguir com a ação para receber tudo que eu tinha
direito.
Tudo isso aconteceu no mês de setembro e ela viveu ainda por
cinco meses. Partiu no mês de fevereiro do ano seguinte.
É realmente muito triste quando vemos filhos querendo que os
pais morram para se apossarem da herança. Eu presenciei
situações como esta por muitas vezes.
Nós trocamos o nosso endereço, e eu liguei para a sobrinha dele,
que na verdade era filha do primeiro casal para quem
trabalhamos e ela me disse que tinha um afilhado casado com a
sobrinha de uma senhora muito importante, diretora da
companhia Vigilantes do Peso e que sempre estavam
contratando pessoas.
Eu liguei para ela no sábado, e já no domingo, recebemos uma
ligação dessa senhora marcando uma entrevista para a segunda
feira próxima.
Na segunda fomos para a entrevista e imediatamente já fomos
contratados.

Em todos esses trabalhos, desde o ano de 1999, nós vivemos a


vida dos milionários americanos. Durante o inverno
trabalhávamos na Flórida, onde o clima é sempre bom. E no
verão íamos para o norte. Assim nunca passávamos muito frio e
tampouco um calor muito forte.
Vou chamar nossa nova patroa de Mrs.Flor. Para ela trabalhamos
durante nove anos. Durante os meses de maio a setembro,
íamos para a casa em Omena, em frente ao lago Michigan. Lá
havia uma tribo indígena, plantação de cerejas. Era um
verdadeiro paraíso.
No mês de outubro, tirávamos férias e de novembro a maio,
ficávamos na Flórida, onde ela possuía uma mansão maravilhosa,
com dez quartos e onze banheiros.
Ela nos aconselhou a vender a casa que havíamos comprado, que
por sinal já estava linda, com o quintal cheio de plantas como
disse anteriormente. Segundo ela, não precisaríamos dela,
porque poderíamos desfrutar de tudo o que tinha na mansão.
Ela reservou um belo apartamento separado da mansão, para
que eu e o Paulo pudéssemos ter todo o conforto.
Ainda não havíamos vendido a casa, e o Giovanni continuava
morando lá.
Em uma época dos furacões, fomos alertados de que uma
tormenta enorme e muito forte estava se aproximando da
Flórida. Era previsto passar no domingo. Nós chegamos lá na
parte da tarde e vimos que nosso vizinho mais próximo havia
coberto todas as janelas da sua casa com madeira e nos
perguntou se não iríamos cobrir a nossa.
Ele nos deu o restante da madeira dele que havia sobrado e
ainda ajudou meu irmão e o Paulo a cobrirem a parte da frente
da nossa casa.
A eletricidade acabou e o tempo começou a fechar. O meu
vizinho ficou preocupado por não termos coberto a parte de trás
da casa. Eu disse a ele que Deus iria cobrir para mim. E que eu
tinha muita fé na proteção divina.
Nós nos recolhemos dentro de casa e ficamos ouvindo através de
um rádio a pilha, as notícias. A chuva começou e uma ventania
muito forte parecia que iria levar nossa casa.
É impressionante a força da natureza. O barulho da ventania, os
animais gritando do lado de fora. E nossos corações acelerados lá
dentro, imaginando o que poderia estar acontecendo.
Então começamos a cantar, contar histórias e no meio da
madrugada, pensando que já estava mais calmo, abrimos a porta
para ver a situação. O vento nos empurrou a todos para dentro,
com uma violência tamanha que não consigo descrever.
Era impossível fechar a porta novamente. O Paulo teve a ideia de
empurrar um móvel pesado e assim conseguimos fechá-la.
Quando amanheceu, e pudemos sair, para nossa alegria, tudo
estava intacto. Nossa casa não sofrera dano algum.
O meu vizinho veio até nós e disse que durante a noite, ele
olhava pelas frestas da janela, e que as árvores se dobravam e
protegiam a nossa casa. E olhando diretamente para mim, ele
disse que realmente o meu Deus havia nos protegido.
Por ocasião da crise imobiliária que acometeu os Estados Unidos,
nós vendemos a casa, algo do qual eu sempre me arrependi.
Durante os anos em que trabalhamos para a Senhora Flor, nós
tivemos a oportunidade de conhecer quase todo o país.
Subíamos da Flórida até Michigan de carro, indo e voltando, sem
data marcada de chegada. E a cada vez, fazíamos um trajeto
diferente.
Nós conhecemos todos os estados da Flórida, de norte a sul, e
leste a oeste.
Certa vez, alugamos um moto home e subimos todo o litoral, até
as montanhas e chegamos à fronteira com o Canadá. Isso foi por
ocasião de uma de nossas férias e foi maravilhoso.
Em outra ocasião, minha mãe veio passar as férias conosco e
novamente alugamos um moto home. Desta feita, fomos da
Califórnia ao Arizona, paramos em Las Vegas, conhecemos o
Gran Canion , visitamos quase todos os cassinos, e também foi
uma bênção poder proporcionar à minha mãe aventuras
maravilhosas.
Durante os anos em que trabalhei para a Mrs.Flor, eu tive a
oportunidade de obter um aprendizado muito importante para
minha vida. Ela, uma senhora muito rica, muito bem relacionada
e muito querida por todos nos Estados Unidos.
Era uma pessoa de fibra, fazia caminhada todos os dias e fazia
questão de manter a saúde em dia.
Durante esse período, eu ia ao Brasil três vezes ao ano, para ver
minha mãe, levar fraldas e cremes que são melhores aqui. Em
uma dessas viagens, eu me sentei ao lado de uma jovem muito
simples. Era loira, muito bonita e simpática e estava indo para
Orlando para uma reunião de trabalho.
Eu disse a ela que trabalhava em uma casa muito grande, e caso
ela precisasse, poderia se hospedar lá.
Voltando de Orlando, ela me ligou dizendo que iria pernoitar no
aeroporto. E eu disse que iria buscá-la, pois quando a convidei,
estava fazendo de coração.
Ficamos muito amigas e eu até dei a ela, algumas roupas usadas
da minha patroa.
Na próxima vez que eu fui ao Brasil, ela foi me buscar no
aeroporto e o marido foi junto. Qual foi a minha surpresa ao ver
que, ela esta em um carro importado, e o marido veio em outro
do mesmo estilo que era para me emprestar.
É como diz aquele ditado, que a capa do livro não mostra o que
tem dentro.
Essa moça se chama Andréia e seu marido Teko. São dois
grandes amigos que também fazem parte da minha vida.
Em 2009, o Paulo completou 50 anos de idade e eu resolvi dar a
ele de presente, uma linda festa no Brasil.
Assim, pedi a minha patroa, uma semana de folga e já havia
combinado com a Marisa, irmã dele para alugar uma casa em
Ponta Grossa, a cidade natal deles.
A festa foi maravilhosa, parte da minha família veio de Minas e
consegui novamente reunir a família do Paulo para celebrar o
aniversario.
A mansão era frequentada por muitas celebridades, dentre as
quais, James Taylor, Tim Halen, que tivemos a honra de
conhecer.
Todos os feriados do dia 4 julho, em que se comemora a
independência dos Estados Unidos, ela fazia um desfile onde
convidava todos os moradores da vila para participarem e servia
comida, tinha música ao vivo.
Ela contratava outros chefs de cozinha para auxiliarem o Paulo,
assava peru em grande quantidade, cachorro quente, bebidas.
Isso se tornou um evento na localidade.
Os convidados se reuniam na quadra de tênis, cantavam todos os
hinos da America.
Eu e o Paulo, tanto na casa em Michigan quanto na Flórida,
tínhamos total liberdade. Podíamos receber nossas visitas, meus
parentes. A Gilmara passou um final de semana conosco com a
família, o Gerson, Giovanni, meus filhos, exceto a Bruna.
Minhas amigas puderam conhecer a propriedade. O Lago
Michigan é enorme, parece o mar. Muitos turistas
experimentavam a água, para comprovar que era salgada. Os
índios pescavam salmão fresco e vendiam. Existe um cassino
lindo ao lado. Passeios de Jet Sky.
Minhas netas adoravam passear de Jet Sky com o Paulo.
Podíamos nadar, pois além de limpa, a água era bem clara.
Em meados do mês de julho, juntávamos areia na beira do lago e
fazíamos de conta que estávamos na praia.
Uma funcionária que fazia a manutenção da casa se engasgou
certa vez com um chocolate e morreu nessa casa. Contam que o
espírito dela ficava vagando pela propriedade. E certa vez o
Paulo sentiu a presença dela e aconteciam alguns fenômenos
paranormais que nos assustavam.
A nossa patroa não ficava por muito tempo nas propriedades,
que na verdade eram casas de férias, e ela viajava muito,
fazendo palestras, e tocando a empresa.
Desse modo, tínhamos a total liberdade para receber pessoas,
comemorar aniversários, enfim, éramos os moradores oficiais.
Nós tínhamos uma relação muito afetuosa com nossa patroa, e
durante todo esse tempo nos sentíamos como parte da família.

No ano de 2016, na época do feriado, o Paulo subiu em uma


escada para decorar a fachada da casa, com as bandeiras de
todos os estados. Todos se vestiam com as cores do país, até
mesmo os cachorros.
Por infelicidade, nesse dia a escada se fechou e ele caiu de uma
grande altura. Como ele já havia quebrado o cókis há anos atrás,
dessa vez ele teve uma fratura na coluna. Mesmo sentindo muita
dor, ele terminou de fazer a comida e tivemos que levá-lo para o
pronto-socorro.
A Mrs.Flor era uma pessoa muito centralista. Seus pedidos eram
sempre uma ordem e tinham que ser cumpridos à risca. Ela não
aceitava não como resposta, e muitas vezes ela ficava irritada
quando se sentia contrariada.
Certa vez ela chegou a apertar os meus braços com força, porque
iria receber uns convidados, amigos íntimos dela e do marido. Ela
já estava no terceiro casamento.
Tudo era minuciosamente planejado antes, os quartos onde cada
um iria ficar, o menu para o final de semana. E aconteceu que,
uma das convidadas queria ficar em um quarto maior, onde tinha
vários espelhos, porque usava perucas e eu já havia acomodado
outra pessoa antes.
Eu argumentei que a convidada havia escolhido o tal quarto, mas
ela ficou irredutível e apenas respondeu que quem dava as
ordens era ela e ponto final.
Ao chegar, a convidada resolveu que não queria o quarto. E eu,
sem saber como agir, disse a ela que conversasse com a patroa.
A Mrs.Flor estava na academia que era em um compartimento
da casa, e assim, fomos, eu e a convidada para resolver o
problema.
Eu fiquei bastante chateada e não me contive. Disse a ela que
me devia um pedido de desculpas e ela se desculpou.
Voltando ao acidente com o Paulo, ele fez a primeira cirurgia e
nós nos hospedamos na casa dela da cidade, onde fomos muito
bem tratados. O hospital era de primeira classe, e ela tinha uma
cota da sociedade.
O Paulo foi operado pelo melhor ortopedista do hospital. Porém
houve um erro durante a cirurgia e operaram as vértebras
erradas.
Quando ele saiu do hospital, não se aguentava de tanta dor, e
não conseguia andar.
Assim, voltamos imediatamente para o hospital, onde foram
necessárias mais duas cirurgias.
Apesar das cirurgias, ele não conseguia andar normalmente
como antes, precisava do auxilio de uma muleta, e às vezes um
andador. E sentia muitas dores na coluna.
O médico informou que seria necessário fazer bastante
fisioterapia e que com o tempo tudo voltaria ao normal.
Nós continuamos a trabalhar, porém o Paulo ficou um pouco
limitado e a patroa começou a treinar um novo casal na outra
casa sem nos comunicar o motivo.
Nós voltamos para Michigan no mês de junho, arrumamos a
praia, cuidamos do jardim, como fazíamos normalmente.
Ela veio passar alguns dias conosco, e nós notamos que ela
estava fria, e o tratamento estava diferente. Ela, que sempre nos
abraçava, beijava, nos chamava de amores, já não conversava
olhando nos olhos.
Eu tinha como hábito, colocar uma toalha quente nas costas dela
sempre que ela saia do banho, porém ela começou a se recusar.
E normalmente, eu ajeitava a bolsa dela combinando com a
roupa que iria usar. Ao ajeitar a bolsa, me deparei com um
cheque assinado por ela, em meu nome e do Paulo, no valor de
cinco mil dólares.
Eu pressenti que algo estava para acontecer. Conversando com o
Paulo, disse que achava que seriamos despedidos.
Como eu sabia que havia uma funcionária nova na casa principal,
liguei para ela pedindo o telefone da companhia que a havia
contratado. Eu disse ainda que sabia que seria dispensada e
precisava me atualizar no sentido de encontrar outro trabalho.
E a moça, inocentemente me disse que o marido dela é quem
sabia os detalhes, pois eles tinham sido contratados a pouco
tempo.
Foi uma decepção muito grande. Eu chamei a patroa para
conversar, e fui bem direta dizendo que já sabia da intenção
dela. Eu disse que era muito injusto, ela fazer as coisas
escondido, que eu me senti apunhalada pelas costas.
Ela sempre nos dizia que ficaríamos trabalhando com ela até nos
aposentarmos. Eu vendi nossa casa e nosso carro confiando nas
palavras dela
Toda a segurança que ela nos havia passado durante esses anos,
se desmoronou naquele instante.
Mas os americanos são por excelência, muito frios e diretos.
Eles não dizem que vão te mandar embora. Eles dizem que vão
nos deixar ir, como uma forma educada de dispensar a pessoa.
Ela simplesmente respondeu que seria apenas por um tempo,
enquanto o Paulo se recuperava e que eu poderia passar mais
tempo com minhas netas.
E eu, muito triste, disse que não aceitaria mais voltar a trabalhar
com ela, caso ela nos chamasse, como tinha o costume de fazer
com os outros funcionários.
Foi uma das situações mais tristes que eu passei na América.
Assim, ela nos permitiu de continuar na casa da Flórida por dois
meses, até que pudéssemos reorganizar nossa vida. E também
nossos pertences estavam todos lá.
Eu ainda tinha um pouco de dinheiro guardado, o que recebi da
Inga, e já estávamos planejando comprar uma casa nova.
Como a Bruna havia retornado com os filhos e sem o pai, eu
queria que ela morasse em uma área boa, com mais facilidade
para trabalhar e cuidar das crianças.
Então compramos uma casa, e mais um carro financiado, pois
ainda estávamos registrados no trabalho. O Allan também teria
uma entrevista para conseguir os documentos e eu precisava
provar que estava trabalhando, como garantia. Infelizmente
ainda não foi desta vez que ele conseguiu.
O consulado americano exigiu que ele fosse ao Brasil, para
primeiro regularizar a documentação.
O Allan não quis ir, com medo de não conseguir mais entrar nos
Estados Unidos, e ele tinha razão, muitas pessoas que estavam
em uma situação parecida com a dele, foram ao Brasil e não
conseguiram retornar.
Nós retornamos para a Flórida e decidimos ir para Conecticutti,
onde já havíamos morado e tínhamos muitos amigos por lá.
O ex- patrão do Paulo, dono do restaurante sempre convidava
ele para retornar. Eu liguei para ele e resumi a situação, dizendo
que o Paulo estava com problemas de locomoção, mas que
conseguia trabalhar, se tivesse um ajudante.
De imediato ele deu uma resposta positiva e nos disse para ir.
E assim fizemos, deixamos um carro na Flórida, instalamos a
Bruna e os meus netos na casa e subimos.
Ao chegarmos a Conecticutti, ficamos em um hotel, e o meu
irmão Gismar, que morava a 4 horas de lá, me ligou convidando
para irmos para a casa dele.
Meu irmão me emprestou uma quantia em dinheiro, para que eu
alugasse um apartamento. Então, eu fiz o depósito de locação e
o Paulo começou a trabalhar no restaurante. Eu comecei a
procurar algo para também começar logo a trabalhar.
Procurei as casas em que havia trabalhado antes, e ao chegar à
casa da senhora libanesa Mrs. Bebe, uma antiga patroa, ela me
recebeu com tanta alegria, que fiquei emocionada.
Ela me disse que havia mandado um passarinho me procurar,
pois havia caído, e quebrado a bacia, e estava em um momento
delicado, precisando de alguém para cuidar dela. E que ela só
pensava em mim o tempo todo.
Eu deixei a Dilsinha que é muito católica e sempre presente,
cuidando de algumas casas para mim. E quando eu voltei, fui até
a igreja para participar de uma novena. Lá tive a felicidade de
conhecer a Ângela, que se tornou também uma grande amiga.
Foi amor à primeira vista e ela me deu muita força durante os
primeiros meses do retorno a Conecticutti.
Para mim, foi gratificante ouvir essas palavras, pois era como um
certificado, um diploma de bons serviços prestados.
Eu fiquei cuidando dela até que se recuperasse, mas deixei que a
minha amiga Dilsinha, que eu havia indicado antes, continuasse
com os trabalhos da casa.
Eu ia fazer a lavanderia para ajudar, e aos poucos fui
conseguindo mais casas para limpar, e como já tinha experiência
em cuidar de idosos, pude conciliar os dois tipos de trabalho.
Conheci um senhor de 84 anos, Mr.Edu, que estava sofrendo de
demência. Ele ficava sentado o dia inteiro, com um lindo sorriso.
Sua esposa, Mrs.Dara, muito sistemática, era um casal de
Ucranianos.
Ele era um engenheiro muito conceituado, dava aulas na
universidade quando ainda trabalhava. A esposa começou a
notar que ele estava mudando os hábitos, se esquecendo das
coisas. Às vezes abria o computador e ficava por mais de uma
hora olhando a mesma tela.
Ela fazia questão de vesti-lo todos os dias como se fosse sair para
trabalhar. Ele começou a se esquecer das pessoas e lembrava
praticamente da esposa e da filha. Por vezes eu achava que ainda
se lembrava de mim.
Mr.Edu já quase não falava mais. Contudo, eu ficava
conversando com ele, dançava, cantava musicas brasileiras.
Um dia, ele olhou fixamente para mim e disse o nome do meu
país, Brasil. Eu disse para a esposa, que ele ainda se lembrava de
algumas coisas. Eu sempre tive o hábito de cantar músicas
brasileiras enquanto trabalhava.
Pela manhã ela o vestia, e nós o levávamos para uma poltrona,
onde ele ficava olhando para a TV.
Eu ajudava no banho, dava comida na boca. Cuidei dele por mais
ou menos dois anos, sempre das 7 às 14 horas. Depois eu saia
para cuidar de outros idosos.
O cuidado de idosos era um trabalho que muito me aprazia. Eu
sempre tive muito carinho e fazia com amor e dedicação.
Quantas vezes eu ficava ali, imaginando como o tempo
transforma as pessoas, quanta história não estaria guardada
dentro daquelas cabeças grisalhas e indefesas.
E posso dizer com toda a certeza e experiência, que mesmo
sendo um trabalho remunerado, o retorno que eu sempre tive,
em bênçãos e alívio no coração após cada dia, ou dia a dia, não
tem como medir.
Além do Sr.Edu, eu cuidava de uma senhora, descendente de
italianos, muito alegre. A filha até hoje me dá noticias dela.
Depois que o Sr.Edu partiu, a esposa continuou morando na
casa, e a moça que me ajudava a cuidar dele, continuou
trabalhando, limpando a casa, fazendo compras.
Porém a Sra.Dara, ainda hoje é um pouco ativa, gosta de ajeitar o
jardim, cuidar de flores. Ela tinha dois anos a menos do que o
marido, e contava como tinha sido a história deles, que por sinal
é muito bonita.
Ela tinha nascido no Canadá, mas era filha de ucranianos. E o
marido veio com cindo anos da Ucrânia.
Como eram conhecidas, as famílias estrangeiras normalmente
vinham em um numero maior, e muitas vezes faziam o que
chamamos de colônia, um lugar comum onde vivem perto uns
dos outros, parentes ou não.
Ela dizia que estava no berço, e ele sempre que a via, a chamava
de meu bebê. Ele havia trazido uma sacola cheia de bolinhas de
gude da Ucrânia. E à medida que foram crescendo,
frequentavam a escola juntos, ele adorava brincar com essas
bolinhas mesmo já sendo um rapaz.
Quando ele veio para os Estados Unidos, para estudar, ele a
pediu que guardasse as bolinhas para ele.
Eu falava pra ela, em tom de brincadeira, que realmente ela
havia guardado bem as bolinhas dele. Ela ria bastante.
Ela era afilhada dos pais dele, e ele, afilhado dos pais dela. E
aconteceu que, quando ele se formou, a família dela e a dele
vieram para a festa de formatura, e eles começaram a namorar e
logo se casaram.
Foi uma amizade que se transformou em amor. E tiveram uma
história bonita.
A outra senhora que eu cuidava, era viciada em jogos de cassino,
raspadinhas e todo tipo de loteria. Ela certa vez, ganhou mais de
10 mil dólares. Tinha uma vida confortável, mas adorava ir ao
comércio todos os dias. E eu a acompanhava. Acontece que ela
tinha cleptomania, e roubava pequenos itens nas lojas, e enfiava
nos bolsos.
Sempre que chegávamos a casa, ela dizia que tinha um presente
para mim, ou para as filhas, como brincos, batons, artigos muitas
vezes sem muito valor.
Eu nunca tinha presenciado coisa parecida, e chamei a filha,
dizendo que poderíamos ser presas a qualquer momento, e
expliquei o que a mãe fazia.
Para minha surpresa, a filha já sabia e me disse que já havia sido
repreendida duas vezes por isso.
Então, eu comecei a observar tudo o que ela pegava escondido,
e assim que saia da loja, eu pegava e devolvia. Muitas dessas
lojas, já sabiam do problema dela, até porque, existem câmeras
para todo lado.

Em meio a todas essas mudanças, nós descobrimos um professor


de ortopedia na universidade, que era muito famoso, e diziam
que operava verdadeiros milagres em suas atuações.
E posso dizer que, literalmente as duas palavras se encaixaram
diretinho, operação e milagre.
Ele realizava cirurgias duas vezes na semana, intercalando com o
trabalho de mestre da universidade.
Foi mais uma das tantas bênçãos recebidas por Deus. Ele operou
o Paulo, e a cirurgia foi um sucesso. O Paulo parou de sentir as
dores, voltou a andar normalmente, sem precisar de muleta, e
voltou a sorrir de novo, pois passou muito tempo com o
incômodo das dores.
Ele entrou com uma demanda na justiça, pedindo uma
indenização.
Na verdade a demanda era para que ele recebesse pelo tempo
em que ficou impossibilitado de trabalhar. Ele recebeu uma boa
quantia, se aposentou e eu também entrei com um pedido de
aposentadoria antecipada.
Eu estava pagando um consórcio de um carro no Brasil, e passei
a sentir uma vontade imensa de voltar para o meu país, de
recuperar o tempo em que fiquei distante da minha mãe.
A Gilmara estava morando na República Tcheca nessa ocasião e
o Giovanni morando na Itália. Assim, decidimos fazer um tour
pela Europa, visitar meus irmãos, me certificar de que estavam
bem. A minha mãe ficava muito preocupada, querendo noticias
deles.

E assim, partimos rumo à Europa. Chegamos à Itália, onde


alugamos um carro e junto com o Giovanni e família,
percorremos vários países. Fomos à Suíça, Alemanha, visitamos a
Gilmara, depois fomos para Praga, onde por sinal me encantei ao
entrar em uma igreja e me deparar com a imagem de Nossa
Senhora Aparecida, bem destacada em um altar, com motivos
brasileiros. Eu não imaginaria nunca encontrar um altar dedicado
à nossa padroeira, em um país tão distante.
Nós retornamos para a casa da Gilmara, onde ficamos por sete
dias maravilhosos. Fizemos comida brasileira, biscoito de goma,
relembramos muitas histórias, rimos e nos divertimos bastante.
Saindo de lá, entramos na Áustria e ficamos um dia em Viena.
Seguimos de volta para a Itália, fomos até Verona, visitamos a
praça onde tem as estátuas de Romeu e Julieta, fomos também a
Veneza, e ainda pudemos conhecer um pouquinho da divisa
entre Itália e frança, um lugar conhecido como Vale de Aosta,
maravilhoso.
A entrada para a França estava bloqueada por uma greve e não
pudemos atravessar.
Mas fomos até Chamonix, uma cidade linda, que fica aos pés de
um monte conhecido como Agulha do Meio Dia, onde a neve é
permanente. É uma estação de esqui muito famosa na França.
Terminando esses dias encantados na Europa, era hora de
retomar a vida. Eu despachei tudo o que tinha em Conecticutti
para a minha casa na Flórida, onde a Bruna estava morando.
Na Flórida, passei a noite de natal com meus filhos, eu e o Paulo
viemos em um carro, cheio de coisas, e o outro eu vendi.

Compramos a passagem para o Brasil para o dia 25 de dezembro,


dessa forma, passei a noite com meus filhos e no dia seguinte
passei o resto do natal com minha querida mãezinha, e essa
felicidade ficou eterna dentro de mim, pois não imaginava que
ela não ficaria por muito tempo entre nós.
Eu havia comprado a passagem com retorno para dois meses,
pois ainda precisava resolver a documentação da minha
aposentadoria, entre outras coisas que ficaram pendentes.
Foram dias maravilhosos também no Brasil. Eu aluguei um carro,
e levei minha mãe para passear onde ela desejava. Nós visitamos
uma prima em Curvelo, fomos ao Serro, visitamos todas as
amigas dela.
A minha mãe adorava falar bobagens, saber de nossas histórias
íntimas, gostava de ouvir os detalhes.
Então, todos os sorrisos e gargalhadas durante esse período, são
para mim, um bálsamo que me ajuda a superar a saudade dela.
Uma mulher única, que merece um livro para contar todas as
aventuras que teve.
Nós tínhamos ainda no Serro, a casa que meu pai havia
construído. E junto com meus irmãos, decidimos vendê-la para
que, com o dinheiro, nossa mãe pudesse desfrutar do que pai
deixara para ela.
Para que vocês entendam melhor, a minha mãe foi acometida de
um tumor na coluna, e ao fazer a cirurgia para retirada, uma vez
que não era maligno, ela ficou parcialmente incapacitada.
Durante cinco anos, nós cuidamos dela, como todo carinho e
atenção que ela merecia. Mas ela não conseguia mais andar,
necessitava de uso de fraldas.

Nós decidimos em comum acordo, que Gesner deixasse o


emprego no Serro, onde estava morando, para ficar cuidando
dela. Alugamos uma casa grande, acertamos com ele um salário
mensal e nos responsabilizamos pelas despesas da casa. E a cada
final de semana, um dos irmãos ficava com ela, para que ele
pudesse descansar.
Todos os irmãos contribuíam mensalmente, e pudemos dar a ela
todo conforto possível, durante esses anos de convalescência.
Cada um, à sua maneira e disponibilidade, se dedicou aos
cuidados da nossa mãe, e enquanto ela esteve conosco, recebeu
todo amor e carinho, todos os cuidados necessários, e foi tratada
como uma rainha, o que realmente ela sempre representou para
nós.
Eu retornei para os Estados Unidos, e meu irmão Gismar estava
no Brasil. Eu já havia feito mil planos com mãe, quando
retornasse.
Na páscoa, mandei chocolates que ela adorava.
O meu irmão Geraldo, que cuidava da logística e tudo o que
envolvia a enfermidade da minha mãe, me ligou dizendo que ela
não estava bem.
Ela começou a ter muita dificuldade para respirar e que ele havia
resolvido interná-la.
Eu então, não pensei duas vezes e comprei uma passagem para o
dia seguinte e voltei para o Brasil.
Quando cheguei, senti uma tristeza muito grande, pois ela já
estava no CTI, e estava respirando através de aparelhos.
Eu pedi para a médica retirar o tubo de oxigênio, mas ela
explicou que minha mãe não estava conseguindo respirar
sozinha, e que precisávamos aguardar o efeito da medicação.
A nossa mãe fumou durante muitos anos, e eu sempre a pedia
que parasse. E segundo os médicos, por ela ter usado fogão a
lenha por muito tempo, também contribuiu para a deficiência
dos pulmões.
Nós íamos todo dia visitá-la no hospital. Giovanni também estava
no Brasil.
No décimo dia de internação, eles retiraram o tubo, para fazer
uma experiência. Eu já estava descendo as escadas para ir
embora, quando a médica mandou me chamar.
Todos ficaram impressionados, pois ela conseguiu conversar
normalmente minutos depois da retirada do aparelho.
A primeira coisa que ela disse foi que estava morrendo de fome,
e foi falando um monte de coisa que queria comer.
A médica explicou que ainda não poderia comer nada. Meu
coração doeu, pois uma das coisas que ela mais gostava era
comer, não negava o sangue italiano.
Pedi para a médica deixar que ela comesse. Já estávamos
pressentindo que não a teríamos por muito tempo. Essa médica
que estava cuidando dela era um amor de pessoa. Mesmo
contrariando as regras, trouxe uma pequena xícara de café e um
pedaço de pão. Era para molhar o pão e deixar que ela chupasse
para sentir o gostinho do café.
Minha mãe, com uma avidez gigante, abocanhou todo o pão e o
comeu com uma satisfação tão grande, que nós todos ficamos
boquiabertos.
Ela não estava totalmente lúcida, devido a tanta medicação. Mas
quando me viu, ficou feliz, me pediu que dormisse com ela, e
não a deixasse sozinha. Ela dizia que estavam se aproveitando
dela durante a noite.
Na verdade, não se deu conta de que estava usando sonda, e a
equipe de enfermagem vinha para trocar e limpar.
Eu olhei para a médica e pisquei os olhos, dizendo que iria
dormir com ela, sem problemas. Para passar segurança e ela ficar
mais tranquila.
A médica me ajudou dizendo que eu teria que passar em casa
para me trocar e retornaria.
Ao descer, pedi a minha irmã Gina se ela conseguiria dar uma
banana amassada para ela. É muito triste a situação de uma
pessoa em um CTI, e a vida se esvaindo.
Quando se trata de alguém tão importante, tão necessária, tão,
tão tudo em nossa vida, é impossível descrever.
Quando minha irmã subiu, ela já não queria mais comer, disse
que estava em uma festa, ouvindo uma música e que já tinha
comido tanta coisa gostosa, e estava satisfeita.
Minha mãe não saiu com vida do hospital. Ela voltou a respirar
com aparelho e partiu, serenamente, dormindo, com um
semblante tranquilo.
A partida da minha mãe deixou um vazio tão grande dentro do
meu coração, eu pensei que não suportaria viver sem ela.
Nós fizemos uma cerimônia linda, com balões brancos, música,
havia muita gente, ela sempre foi muito querida, tinha muitos
amigos.
À medida que o caixão foi descendo, os balões subiam em
direção ao céu. E começamos a aplaudir.
Meus planos com ela se acabaram naquele dia. Eu pedi muito a
Deus que me ajudasse a seguir em frente.
Naquele momento eu estava deixando não somente a minha
mãe, mas a minha melhor amiga, minha confidente.
Foi especialmente por ela, que eu me aventurei tantas vezes,
que eu vim parar na América, sempre pensando em dar a ela um
mundo inteiro.
Eu ligava para ela todos os dias, pedia conselhos, contava minhas
histórias. Ela me dizia para parar de trabalhar, que eu já podia
descansar. E eu dizia, que anda não podia.
Minha mãe partiu na semana em que comemoramos o dia das
mães. Eu voltei para os Estados Unidos, onde o Paulo e meus
filhos me esperavam no aeroporto.
Nós nos abraçamos e choramos juntos. Ainda choro sempre que
me recordo. A felicidade que guardo comigo, é a de ter podido
proporcionar a ela tudo o que me foi possível. E tenho a plena
certeza de que lá de cima, ela me olha, me cuida e me ama.
A vida continuou menos colorida, menos alegre. Eu tentei e até
hoje tento suprir a falta dela, cuidando dos meus irmãos. Eu
havia feito uma promessa de cuidar especialmente do Gerdal e
do Gesner, que eram os que mais necessitavam naquele
momento.
Eu não consegui cumprir a promessa totalmente, pois dois anos
depois, o nosso irmão Gerdal partiu, prematuramente, com um
infarto fulminante.
Assim, eu converso com ela até hoje, e explico que ainda
trabalho, para cuidar dos filhos que ela me deixou.
Comecei a cuidar de uma senhora judia, chamada de Mrs.Di. Ela
tinha 92 anos e vivia em uma casa de repouso muito bonita. Com
ela eu só consegui ficar 6 meses, pois ela era muito arrogante e
muito exigente.

Através da agência em que eu estava inscrita, fui trabalhar para


um senhor, Mr.Jordan. A moça que eu iria substituir me explicou
como era o trabalho. Eu não o conhecia. E estávamos novamente
na época dos furacões.
Então o filho dele me perguntou se eu gostaria de ir para a casa
dele, assim ele se sentiria mais seguro tendo o pai por perto.
Mas o pai não concordou em ir. Eu trabalhava somente durante
o dia, mas nesse, em especial, me pediram para pernoitar.
Assim, ele me deu a chave do carro e me pediu muito cuidado
para que o pai não a pegasse.
Depois que o filho se foi, começou a chover. O senhor me
chamou e pediu que eu pegasse o jornal que sempre era jogado
do lado de fora da casa.
Eu saí inocentemente, e o senhor fechou a porta da garagem. Eu
fiquei presa do lado de fora, debaixo de chuva, sem telefone.
Eu não sabia o que fazer, até que decidi bater à porta da vizinha
para pedir socorro.
Ela me atendeu com delicadeza, dizendo que a esposa dele
morava no mesmo condomínio, porém em outra casa. Os filhos
decidiram assim, por causa do alzheimer que estava avançando.
E ele se esquecia de que era casado, brigava com ela, colocando-
a para fora de casa, como fez comigo.
A vizinha ligou para a esposa, que veio no mesmo instante, me
pediu desculpas e me ensinou uma entrada que havia nos fundos
da residência.
Esse senhor havia sido embaixador da África do Sul em Londres.
Eu não sabia praticamente nada da vida deles.

Depois desse incidente, ele me chamou, com uma passagem de


avião nas mãos, e disse que na segunda feira teria que fazer uma
viagem para Londres. E me orientou que assim que eu chegasse,
ela já estaria me esperando, para que eu o levasse ao aeroporto.
Quando eu digo que a minha vida é feita de aventuras, eu não
exagero. Foram, e ainda são, tantas as situações inusitadas pelas
quais eu passo que seria necessário um segundo capítulo para
compartilhar.
Eu pensei comigo mesma, eu vou levá-lo ao aeroporto, dar uma
volta e retornar para casa.
Na segunda feira, ele já estava me esperando, muito bem vestido
e com uma pequena bolsa nas mãos. Segui para o aeroporto e
assim que parei o carro, ele desceu tão rápido que não consegui
contê-lo.
Ele pediu uma cadeira de rodas e me disse para voltar e guardar
o carro na garagem. Eu fui até ele e disse que o passaporte dele
estava vencido e que ele não poderia viajar nesse dia.
Mr.Jordam, ficou furioso e começou a gritar diante de todos que
estavam por perto. Em um segundo, os agentes do aeroporto
vieram ver o que se passava. Mas o senhor se antecipou e disse
aos agentes que estava sendo sequestrado por mim. Disse ainda,
que eu havia entrado na casa dele sem autorização e disse que
era dona do lugar.
Ele continuou, dizendo que trabalhava em Londres e precisava
embarcar imediatamente.
Naturalmente os agentes perceberam que ele não estava lúcido,
e me pediram que entrasse em contato com a família, ao que eu,
prontamente atendi.
Um dos agentes, mais velho, se achegou até o Mr.Jordam, e
disse que naquele dia os voos haviam sido cancelados por
medida de segurança, em consequência dos furacões.
Com muita dificuldade e destreza, consegui fazer com que ele
entrasse no carro e retornamos para casa.
Eu passei a não mais sair de carro com ele. Aos poucos ele
começou a aceitar a minha presença. Não gostava de tomar
banho, passava uma pequena toalha úmida e dizia que já havia
se banhado. Ele ainda tomava banho sozinho, mas usava fraldas.
Geralmente ele usava duas, mas depois cortava uma, escondido,
e a retirava.
Ele tinha uma ferida na perna que não cicatrizava. E eu notei que
estava aumentando, apesar do medicamento ministrado.
Mas ele não aceitava ir ao hospital. Assim, eu tirei uma foto da
ferida e mostrei para ele, conseguindo assim, convencê-lo a me
acompanhar até lá.
Ao chegarmos, ele mesmo se adiantou e, sozinho, preencheu a
ficha corretamente. Os filhos, que já queriam a tempos que ele
fizesse um check-up, ficaram muito felizes, me agradeceram e
elogiaram.
Quando ele foi atendido, os médicos disseram que ele ficaria
internado por alguns dias. Ele não queria ficar dê jeito algum,
mas acabou achando que era um hotel, e ele ficaria hospedado
lá.
Ele tinha momentos de lucidez e não queria aceitar usar a
camisola do hospital.
Eu pedi aos filhos que o acomodassem em um quarto particular,
onde ele ficaria mais confortável. Ele tinha muita dificuldade
para dormir. Então, eu revezava com outra moça. Eu ficava
durante o dia e a outra passava a noite com ele.
Quando eu comecei a cuidar dele, eu e o Paulo já havíamos
combinado de fazer uma viagem. Eu ja havia dito aos filhos. Era
uma cidade nova no estado do Mississipi, com muitos cassinos e
estava fazendo muito sucesso na ocasião.
O Paulo sempre ganhava algumas promoções para a viagem.
Então, já tínhamos o voo e hotel pagos.
Quando chegou perto de viajarmos, comuniquei aos filhos, que
me desejaram um bom passeio e até mesmo me presentearam
com uma quantia a mais. Ficamos por uma semana.
Durante essa semana, o Mr.Jordam teve uma melhora
considerável, e os filhos o levaram para um centro de
reabilitação. Ele não gostou de lá, e começou a notar que os
filhos não queriam levá-lo de volta para casa. Ficava repetindo
que não queria aquele hotel e pedia para voltar para Londres.
Na verdade ele estava em um daqueles condomínios que citei
anteriormente onde a Inga ficou morando.
O filho que havia me contratado me ligou, e me colocou a par da
mudança, e pediu para que eu continuasse a cuidar dele, nesse
condomínio.
Acontece que, quando eu voltei, ele havia dormido com as
janelas abertas e adoeceu. Ele precisou ficar novamente
internado.
Então, quando eu cheguei, ele já estava no hospital. E estava
muito debilitado. Eu fui até lá para ver como ele estava, e
quando ele me viu, com um sorriso, me disse que haviam
transferido ele de hotel sem consultá-lo. E me pediu para tomar
providências a esse respeito.
Mr.Jordan era por natureza, uma pessoa muito refinada, falava o
inglês mais puxado para o londrino, e adorava coca cola.
No segundo dia, quando eu cheguei ao hospital, ele disse que
Jesus havia visitado ele durante a noite. Como os judeus não
acreditam que Jesus já veio ao mundo, eu indaguei como Jesus,
se ele não acreditava.
Eu tinha o costume de rezar sempre junto com ele. Nesse
momento um enfermeiro entrou no quarto para ajudar a trocá-
lo, e ficou parado na porta escutando ele contar a história.
Eu, interessada como sempre, perguntei como tinha sido a visita.
E ele disse que Jesus não estava na cruz. De repente o quarto
iluminou e Jesus ficou acenando para ele, como se dissesse que
ele ficasse tranquilo, que tudo ia acabar bem. E assim como
chegou, se foi, e o quarto escureceu.
Eu lhe disse que isso era ótimo, pois era um sinal de que ele
estava salvo.
Ao longo desse dia, o estado dele piorou, ele não quis comer
nada. Eu trouxe aveia, ele comeu só um pouquinho.
Os médicos o examinaram e disseram que o organismo dele já
não estava respondendo e que teriam que transferi-lo para uma
espécie de CTI. Nos Estados Unidos é chamado de HOSPICE. É um
quarto tranquilo, que não lembra quarto de hospital. Nesse
quarto, vem músicos com instrumentos toda tarde, para tocar
alguma melodia, normalmente uma TV e poucos móveis. Ele
relutou em ir, não queria de jeito nenhum.
Mas de toda maneira, teve que ir. Eu fui acompanhando a
ambulância. Antes de sairmos, ele me pediu uma coca cola.
Como eu parei para comprar, cheguei pouco depois da
ambulância, e quando lhe mostrei, ele já não quis mais.

Ele, apesar de bastante fraco e da demência, tinha momentos de


lucidez incríveis. Um dia, ele me chamou pertinho do ouvido e
disse que os filhos não queriam mais ele. E me contou que vivera
toda a vida pelos filhos.
E que e uma ocasião, o Pelé estava hospedado em um hotel, e
como os filhos eram fãs dele, ele os levou para passar dois dias
nesse hotel.
Não bastante, conseguiu conversar com o Pelé, conseguiu
autografo para os filhos e ainda tiraram fotos juntos.
Sua voz estava embargada, triste, pois não queria ir para
hospital, e muito menos para essa casa de repouso.
Ele havia escrito um livro, que estava por lançar. As caixas
chegaram até a casa, antes de ele adoecer, para que o livro fosse
editado e lançado. Ele me deu um exemplar, com uma linda
dedicatória, ainda no esboço do livro. E eu fui a única a ter essa
dedicatória.
Ele era um advogado famoso, e o livro, pelo que eu senti,
contava um pouco da história dele. Era um romance, contando a
história de um judeu, advogado, muito rico, que possuía muitas
obras de arte famosas e que foram confiscadas pelos nazistas.
Ele não chegou a lançar o livro.
Depois que nós chegamos ao HOSPICE, eu fui me despedir, pois a
moça iria pernoitar e eu voltaria pela manhã.
Ela me disse que estava apreensiva, achando que ele partiria
aquela noite. E eu disse que não, ele iria me esperar. E olhando
para ele, mandei um beijo e disse para que ele me esperasse. Ele
apenas olhou.
Pela manhã, quando eu cheguei, ele ainda estava vivo. Eu me
sentei junto dele, peguei sua mão e comecei a cantar para ele.
Vi uma médica passando, e a chamei para que me ajudasse a
virá-lo, pois ele estava respirando muito forte.
Ela veio me ajudar e me disse que ele estava partindo.
Então, eu fiquei conversando com ele, e rezando, mesmo
sabendo que ele não estava ouvindo. Eu ainda liguei para o filho
pedido para que viesse, mas ele chegou depois que o pai partiu.
Eu já havia passado por isso, então fiquei segurando a boca para
que não o machucassem depois. A esposa também chegou, e me
ajudou a manter a boca fechada.
O funeral aconteceu dois dias depois. Os filhos me convidaram
para participar e no final, um deles me chamou, agradecendo
pelo imenso carinho que eu sempre tive com ele.
E me passou um cheque, com um valor expressivo, me pedindo
que mantivesse em sigilo, pois apesar de eu ter sido a pessoa
que trabalhou menos tempo com eles, fora a que o pai mais
havia gostado.
Após encerrar o trabalho na casa dos Jordans, com a partida
dele, a agência me mandou para o mesmo condomínio onde eu
havia trabalhado por nove anos com a Mrs.Flor.
Eu comecei a cuidar de um senhor que morava um pouco a
frente da casa dela.
Esse senhor estava com um câncer terminal, mas tinha muita
esperança que iria se curar. Ele começou um tratamento a base
de cannabidiol, que é um óleo retirado do caule da planta da
maconha, e estava começando a ser usado para vários fins.
Ele se chamava Charles e sua esposa Charlote. Ele tinha um casal
de filhos, sendo que a filha morava em outra cidade próxima, e o
filho, que tinha HIV e havia perdido a visão.
Era um rapaz muito bonito. E ainda uma filha, que na verdade
era da segunda esposa, mas ele a considerava como sua.
Era um senhor muito carinhoso e amável. Eu passei a cuidar dele
durante o dia e a noite, uma enfermeira jamaicana, de nome
Mary ficava com ele.
Eu chegava bem cedinho, sorridente como sempre. Ele também
me recebia com um semblante calmo. Eu dizia que iríamos
começar a nossa rotina, levantar da cama, tomar um banho,
trocar a roupa de cama. Às vezes ele dizia, vamos deixar isso
para amanhã, queria ficar quietinho. Mas sempre aceitava a
rotina, sem problemas. A esposa pouco ficava na casa. Sempre
tinha algo para fazer na rua, compras, salão, ou ia visitar alguém.
Eu sempre fazia o possível para tornar os dias dele mais leves.
Cantava, deixava que ele assistisse TV, contava minhas histórias,
que muitas vezes o fazia rir.
O filho morava em Miami e às vezes vinha visitá-lo. Ele tinha um
apartamento separado na entrada da residência para receber
visitas.
Certo dia ele chegou, e a moça que limpava a casa estava de
férias no Brasil. Então eu consegui outra moça, também
brasileira, que era recém- chegada. Eu ficava ajudando ela a
limpar, conversando e explicando como era a vida na América.
Aconteceu que, eu deixei o Mr.Charles sentado no alpendre em
uma cadeira de balanço. Enquanto a moça estava limpando o
apartamento, eu precisei ir ao banheiro, e disse a ele para não se
mover, que ficasse bem quietinho me aguardando por alguns
minutos.
O alpendre ficava em frente a um lago muito bonito. Eu escutei
um barulho e voltei correndo para ver o que havia acontecido e
me deparei com ele caído no chão.
Havia sangue saindo da cabeça, isso me deixou desesperada. Ele
era alto, e eu busquei forças não sei de onde para levantá-lo.
Ele notou o meu desespero e tentou me acalmar, dizendo que
estava bem, me tranquilizando. Eu fiz uma compressa de gelo,
limpei a cabeça dele. Eu tentava a todo custo falar com a esposa
dele pelo celular. Ela demorou muito para atender, e quando
respondeu, eu disse o que havia acontecido, e pedi a ela que
viesse o mais rápido possível para lavarmos ele para o hospital.
Eu me sentia tão culpada que chorava a todo instante. Ele,
calmamente dizia que a culpa era dele, e que eu havia
recomendado que ele ficasse quieto, mas ele não ficou.
A esposa não tinha paciência com ele, e ao invés de acalmar a
situação ficava dizendo que ele deveria fazer mais atenção, que
eu não poderia levá-lo junto comigo ao banheiro, e coisas assim.
Eu não conseguia conter a minha sensação de decepção comigo
mesma.
Ela não gostava de ser incomodada. Gostava de ter as tardes
livres, para sair, beber alguma coisa.
No hospital, deram ponto na ferida, e constataram que não era
nada grave.
Em uma das consultas de praxe, o médico que sempre o atendia,
perguntou a ele como estavam as coisas, perguntou se ele estava
sentindo algum efeito do tratamento e ainda se gostaria de
continuar fazendo a radioterapia. Ele estava com 88 anos.
Ele respondeu que gostaria de parar com todo o tratamento, que
já havia vivido o suficiente, realizado todos os sonhos e queria
descansar.
Assim a família resolveu atender o desejo dele e montaram um
HOSPICE dentro de casa.
Montaram uma cama de hospital para facilitar o nosso trabalho,
ele já não queria mais se levantar. Eu o trocava na cama, dava
banho. Nós continuamos a cuidar dele com todo o carinho. Toda
tarde vinha algum músico, e tocava para ele. Quando o paciente
chega nesse estágio de precisar do HOSPICE, eles deixam as
injeções de morfina, para aliviar a dor da pessoa, e para que a
partida seja mais leve.
Apesar de ser comum esse tipo de tratamento, que na verdade
não é tratamento, mas um paliativo para atenuar a dor da
partida, eu pedi a sua esposa que não deixasse que aplicassem as
injeções nele. Ela ficou sem entender, e eu, com toda delicadeza,
tentei explicar a ela o que eu achava daquilo. Que a impressão
era de que estavam apressando a morte. E me dispus a
intensificar os cuidados com ele, para que ele pudesse partir
naturalmente.
Assim, combinei com a moça que ficava durante a noite, e eu
contei as injeções. Pedi para minha companheira que também
contasse e ficasse sempre observando.
Passaram-se três semanas de HOSPICE, e eu comecei a notar que
ele já não estava aceitando nem a alimentação. Eu gostava de
dar cereais, frutas picadas e comida mais leve. Continuava a
conversar com ele, mesmo ele não respondendo.
Eu contava as injeções, e acho que realmente a esposa atendeu
ao meu pedido, pois elas continuaram guardadas como vieram.
Eu lia a bíblia para ele, colocava a TV em um canal que ele
gostava muito.
Em uma manhã, quando eu cheguei, notei que ele havia feito um
cocô muito escuro, o que normalmente era um sinal de que já
estava chegando a hora dele. Eu perguntei para a Mary como ele
tinha passado a noite e ela me disse que ficou muito quieto.
Ela me disse que ele não havia dormido quase nada, porém havia
ficado sossegado. Já estava muito magro, fazia dó.
Lá pelas 3 horas da tarde, eu estava sentada do lado dele, de
mãos dadas. Eu estava falando ao celular, quando de repente
notei que ele começou a ficar agitado. Eu deixei o celular e
comecei a conversar com ele. Ele chamou pela esposa e ela não
quis vir até o quarto.
Eu então comecei a falar com ele, bem tranquilamente, dizendo
que ele havia sido uma boa pessoa, que partisse em paz, sua
missão havia sido cumprida. Ele foi soltando a minha mão bem
devagar e virou a cabeça de lado.
Eu gritei pela esposa, dizendo que ele estava partindo. Assim, ela
veio correndo, e ao deparar com o marido morto, começou a
fazer um drama, chorando, dizendo que gostaria de estar com
ele no momento da partida. Eu, prontamente respondi que a
havia chamado e ela não veio.
O filho apenas piscou para mim, como quem diz, quanta
falsidade.
Eu chamei a enfermeira da noite, disse o que havia se passado e
a pedi que viesse mais cedo, para aguardar o serviço funerário.
Eu o havia limpado a poucos minutos antes, e a equipe do
HOSPICE ficou admirada, me agradeceram, dizendo que era raro
encontrar uma pessoa assim, que cuidava com carinho.
E o pessoal do serviço funerário chegou, juntamente com um
médico para assinar o óbito. E levaram o corpo dele para a
preparação do enterro.
Ele era judeu, e o enterro é feito normalmente no outro dia. Eu
não sabia que ele havia sido militar, embora notasse que ele
possuía muitas medalhas de honra ao mérito, e outras com
motivos militares.
Quando eu cheguei no dia seguinte, vi o caixão coberto com a
bandeira dos Estados Unidos, e um coronel que estava presente
fez um discurso muito comovente, dizendo que ele havia sido um
oficial da marinha americana de alta patente.
Depois do sepultamento eles fazem uma reunião em casa,
convidam parentes e amigos, e a esposa fez questão da presença
minha e da Mary.
Essa reunião, que eles chamam de Shivas, é uma tradição entre
eles. Encomendam comidas em um restaurante, contratam
manobristas para os carros dos convidados, e é uma maneira de
despedir com alegria do ente que partiu.
Nesta reunião, eu tive a oportunidade de conhecer a filha da
esposa dele, a irmã da primeira esposa dele, o filho trouxe o seu
amigo, e conheci o restante da família.
Fui para casa nessa noite, com uma sensação de mais um dever
cumprido, mas também com uma tristeza no coração, pois me
dei conta de que já era a quarta pessoa que partia do meu lado,
em condições parecidas.
No dia seguinte, eu liguei para a agência, e pedi que não me
mandassem mais para cuidar de pessoas em estado terminal,
porque isso estava me desgastando muito.
Eles me disseram que os clientes deles tinham, em sua maioria, o
mesmo perfil. Mas que iriam me mandar para cuidar de uma
mulher mais nova, sem doença grave, mas que não era muito
bem de cabeça.
E assim fui eu, para a casa da Mrs. Lenny. Ela era uma senhora de
meia idade, muito bonita, loura, morava em uma cobertura
muito bonita. Eu cheguei para uma entrevista com ela, para ver o
grau de empatia, tanto da minha parte quanto da dela, o que era
normal no meu tipo de trabalho.
Eu me simpatizei com ela, não notei nada de anormal.
Ela me passou as instruções, dizendo que me passaria a chave e
o código de entrada. Que todos os dias ao chegar, eu deveria
esperar em silêncio até que ela acordasse, pois não gostava de
ser incomodada pela manhã.
Esta senhora tinha um cachorrinho, e tinha uma moça que vinha
pela manhã para passear com o pet.
Eu cheguei cedinho, e como previsto, a moça chegou para levar o
cachorro. Eu fiquei esperando, como havia combinado com ela.
Mas como não consigo ficar quieta, recolhi a louça que estava
suja, coloquei na máquina e continuei aguardando.
Ela acordou às 11:00 horas, e levantou gritando perguntando
quem estava lá. Quando me viu, eu me apresentei novamente, e
fiquei apreensiva e até mesmo curiosa para saber o que estava
por vir.
Ela me disse que não estava de bom humor aquele dia, e me
pediu que fizesse uma massagem para ela relaxar um pouco. Eu
fiz a massagem, ela me pediu que lavasse algumas roupas,
separou aquelas que deveriam ser lavadas à mão, dizendo que
eu não deveria estragar nenhuma, cheia de recomendações.
Depois me pediu um café da manhã. E quando eu perguntei o
que ela gostaria de comer, ela me respondeu que fizesse uma
surpresa para ela.
Eu preparei panquecas, ovos mexidos e um suco. Ela comeu os
ovos e disse que panqueca jamais, porque engorda. E olha que
ela era bem gordinha.
No dia seguinte, que seria sábado, ela me disse que receberia a
visita do ex-marido, que a visitava de vez em quando. E me
mostrou um quarto fechado, dizendo que era o quarto da filha, e
que eu não entrasse nele, a não ser que ela me pedisse.
Eu, depois, descobri que ela havia se casado com um senhor
muito rico, e que ele tinha comprado aquele apartamento de
presente para ela. Ela não gostava de trabalhar, talvez pela
depressão.
O ex-marido veio realmente, e foi muito simpático.
Ela me pediu para não chegar muito cedo no dia seguinte, pois o
ex gostava de preparar o café da manhã para ela.
Assim, eu cheguei mais tarde, os dois se levantaram, haviam
dormido no mesmo quarto.
Passado uma semana, ela me disse que receberia a visita de um
amigo, e que eu poderia chegar mais tarde. Eu trabalhei para ela
durante três meses, e essa cena se repetiu outras vezes.
Certo dia, eu li um anúncio no grupo de brasileiros da Flórida,
onde uma moça brasileira procurava alguém para cuidar da
sogra.
Eu liguei para o número, e a moça disse que a sogra iria chegar
na semana seguinte e era americana.
Como eu já estava com desejo de deixar a agência, porque eles
exigiam muito e não pagavam bem, eu resolvi aceitar esse
trabalho.
Conheci o casal, que tinha uma filha, o marido americano era
muito simpático e me explicou que a mãe tinha 95 anos de
idade, que o pai já havia falecido há muitos anos e que perderam
um irmão, que havia se suicidado.
Ele completou dizendo que a mãe não foi mais a mesma depois
do acontecido com o filho, e que estava muito debilitada. Como
ele não queria se mudar para Nova York, havia decidido fazer um
quarto na garagem e trazer a mãe para junto dele.
Mas enquanto o quarto não ficasse pronto, ela ficaria no quarto
da filha deles, Zoe.
Ele precisava de alguém que se ocupasse da mãe na parte da
manhã, com a higiene pessoal, alimentação e a tarde seria livre.
Mas que a pessoa voltasse à noite para preparar a mãe para
dormir, e que a alimentasse e desse banho.
A senhora se chamava Kate, e era um amor de pessoa. Eu me
identifiquei muito com ela, era filha de italianos, adorava falar
bobagens, me lembrava da minha mãe.
Ela tomava quatro cálices de vinho todas as noites, antes de
dormir. Ela quase não tomava medicamento. Todas as manhãs,
ela acordava toda molhada, ela era uma senhora gorda e pesava
muito. Apesar de muito exaustivo e requerer muita força, eu
trabalhava com satisfação, pela simpatia dela e da família.
O filho transformou a garagem em um quarto bem
aconchegante, como havia me dito. Mobiliou tudo bem bonito,
ele tinha uma banda, era guitarrista. Então quando saia do
trabalho, muitas vezes ia tocar em algum lugar à noite.
Ele deixou as guitarras penduradas na parede, como decoração.
Mas na verdade, ele usava a garagem como Studio antes.
Toda a reforma ele fez escondido dela, e queria que ela visse
somente depois de pronto. Fez também uma pequena cozinha,
para que pudesse ficar independente da casa.
Assim, eu entrava, tinha um banheiro, a pequena cozinha e o
quarto bem espaçoso.
O filho fez com tanto amor, que a reação dela ao entrarmos foi
muito desagradável para todos. Ela disse aos berros que era
inaceitável ele retirá-la do quarto e acomodá-la em uma
garagem, com chão frio.
Ela disse que estava deixando a casa confortável dela, para ser
tratada como um animal. E ele ainda venderia a casa dela para
ficar com todo o dinheiro.
Ele saiu com a cabeça baixa, e eu fui acalmando ela aos poucos,
dizendo que a intenção dele era a melhor possível, que não
gostaria de vê-la em uma casa de idosos.
Ela acabou aceitando e assim, continuei minha rotina com ela. Eu
ia pela manhã, durante a tarde eu fazia outros trabalhos, e
voltava à noite para finalizar com ela.
Em um desses dias, quando cheguei até minha casa pela tarde, o
Paulo já tinha feito o almoço. Eu me sentei para ver minhas
mensagens no celular e me deparei com uma, que não consigo
expressar em palavras a dor e o impacto que me causou.
No grupo de Wats App dos irmãos, Gismar escreveu: Gerdal
morreu. No primeiro instante eu imaginei que ele estava
perguntando a Gerdal se alguém conhecido havia morrido. Mas a
resposta de George foi positiva, dizendo que sim, e que estavam
indo para a casa dele.
Gesner havia ligado para uma amiga dele e assim teve a terrível
confirmação, acabávamos de perder nosso irmão Gerdal. Ela
relatou que foi até a casa dele levar uma comida, porque ele iria
trabalhar dentro de algumas horas. Mas chamou várias vezes e
ele não respondeu.
Um rapaz que estava trabalhando no condomínio onde ele
morava, subiu através de uma escada, e pela janela viu que ele
estava caído na cama, imóvel.
Gerdal era o terceiro irmão da nossa família, tinha 60 anos de
idade. Vivia a vida intensamente, sempre de bom humor, muito
inteligente, adorava ler. Ele devorava um livro por semana.
Estava trabalhando de segurança para a Prefeitura de Contagem.
Nesse dia, ele tomou um banho, já vinha reclamando de uma dor
no braço. E teve um infarto fulminante.
Eles arrombaram a porta do apartamento, e ele já estava morto,
com o celular e uma garrafa de água do lado. Chamaram a
ambulância, mas os paramédicos confirmaram o óbito.
Foi uma perda inesperada, e eu, mais uma vez não estava no
Brasil, até hoje fico imaginando que ele ainda está vivo, e que
ainda vou reencontrá-lo.
Ele estava aguardando a tão sonhada aposentadoria, mas foi
chamado antes pelo Criador.
Eu fiquei dois dias sem conseguir trabalhar, com uma dor
dilacerante que me apertava o peito.
Meu irmão foi cremado, fizeram uma linda homenagem, porém
foi na época da pandemia de covid, e os velórios eram muito
restritos. Eu acompanhei por vídeo- chamada.
A partida precoce do meu irmão deixou um vazio inexplicável
dentro do meu peito. Ele era uma pessoa doce, carinhosa, nós
dizíamos que era o louco da família. Um louco à moda dele, que
fazia todos rirem, tinha um coração enorme, totalmente
desapegado de bens materiais. Gostava da vida como ela era, e
era desprovido de maldade.
A cada perda, a vida vai perdendo seu colorido, e nós vamos
seguindo, cada um tentando cumprir a sua missão.
Eu e o Paulo recebemos uma proposta de trabalhar interno
novamente. Como somente eu estava trabalhando, o Paulo
começou a se sentir mal, sem produzir, ficava muito sozinho em
casa.
Eu me interessei, até mesmo para me ocupar mais e tentar
preencher o vazio que a perda do meu irmão havia causado.
Assim eu passei o meu trabalho para a Bruna e outra amiga e
aceitamos a proposta.
Esse trabalho era na Geórgia, em uma propriedade muito
famosa, que havia pertencido a uma celebridade americana
chamada Paula Deen, que tem um programa de culinária na TV.
Ela havia vendido a propriedade para um casal de chineses.
Nessa propriedade, onde eu trabalho até os dias de hoje, tem
muitos animais, o que tem feito muito bem para o Paulo.
Temos um lago com peixes, tartarugas, temos galinhas,
cuidamos dos cachorros.
A propriedade fica de frente para o rio Wilmington, muito
famoso, que na verdade é um braço do mar. Podemos avistar
golfinhos, que dão um verdadeiro show em suas idas e vindas.
Nós fizemos a entrevista pela internet, e quando nos mudamos,
conhecemos a filha e a ex- esposa do patrão.
Depois de um mês, Mr.Sioko veio com a atual esposa, que
também é chinesa, mas nasceu em Cuba. Ele fuma charuto e
assim que chegou, disse que precisava de um lugar para fumar.
Eu com toda a minha inocência, mostrei a ele um local em frente
à entrada da casa, que é um jardim enorme, coberto com uma
grande tenda, sofás e até mesmo cinzeiros grandes com o fundo
de areia, próprios para os fumantes.
Eu imaginei que ele estava perguntando onde era a área de
fumantes e indiquei o local. O patrão respondeu de forma direta
que estava na casa dele e fumaria onde quisesse.
Felizmente a esposa interveio, explicando a ele, que o que eu, na
verdade estava dizendo, é que iria conduzi-lo até um local mais
agradável para que ele fumasse.
Eles compraram a propriedade sem mesmo conhecê-la.
A primeira impressão não foi das melhores, mas com o passar
dos dias, ele passou a me compreender melhor e nos damos
bem.
Um casal de amigos deles veio passar um final de semana na
propriedade, e foram muito recomendados, pois se tratava de
um antigo sócio dele, e que deveriam ser muito bem recebidos.
Eu tinha comprado shampoos para cada suíte da mansão, e
encontrei um onde no rótulo estava escrito dois em um. Achei
bom, pensando na economia.
Pela manhã, o casal entrou rindo na cozinha, e ela dizendo que o
marido havia lavado os cabelos com shampoo de cachorro. Eu
não havia prestado atenção no desenho das patas do cachorro. E
sorrindo também, me desculpei.
Já são quase três anos trabalhando para eles. Eu já me aposentei
aqui na América, mas o dinheiro ainda não é suficiente para ter
uma vida tranquila. Por vezes, me pergunto se esse será o meu
ultimo trabalho aqui. Não sei responder.
O meu patrão, apesar das manias e da cultura tão exótica que é
peculiar dos chineses, se afeiçoou a mim, e hoje consegue sorrir
e até mesmo se permitir fazer algumas brincadeiras.
A sua ex-esposa frequenta a propriedade quando a atual está
viajando. E quando nenhuma delas estão, ele brinca dizendo que
eu sou a terceira esposa.
Para completar a minha alegria, há quinze anos atrás eu havia
aplicado o pedido de residência legal para os meus irmãos
Giovanni e Gilmara. E nesse ano, todos os dois receberam o
greencard e hoje, moram legais na América.
No dia em que a Gilmara ia chegar, eu tive mais um livramento.
Sofri um acidente com a minha caminhonete, que tombou e
virou três vezes na estrada, ficando de cabeça para baixo.
Mas Deus é tão grande, que perdi o carro, mas não tive nem um
arranhão.
Esse é um resumo possível da minha vida até os dias de hoje.
Posso dizer que sou uma mulher realizada, sempre trabalhei
duro para proporcionar conforto e alegria para todos que me
rodeiam. Sei que seria presunção da minha parte, eu mesma me
elogiar, mas sempre deito com a cabeça e coração tranquilos, a
cada noite que Deus me concede. E ao me deitar e conversar
com Ele, eu sinto que sorri para mim e me abençoa.
Essa é a resposta que eu recebo, e que sempre vem através de
bênçãos.
Próxima de completar meus 70 anos de idade, olho para trás sem
arrependimentos e sem mágoas. Vivo uma vida dentro dos
princípios que aprendi com meus pais, e a cada dia, me disponho
a melhorar como pessoa, a ajudar a quem precisar e me sinto
feliz pela minha trajetória.
Eu sempre coloquei a minha família como prioridade.
Meus três filhos, que são a melhor parte de mim, vivem nos
Estados Unidos e cada um deles, com seus erros e acertos,
guardam em sua essência os bons ensinamentos e a educação
que receberam ao longo da vida.
O meu primogênito Allan é casado com a Patrícia, trouxe o filho
do Brasil, Patrick, e aqui na América tiveram mais duas filhas.
Tricia e Shara. Ele educou os seus filhos dentro da fé cristã. O
Patrick, meu primeiro neto, se casou com uma americana
chamada Victória, e têm um casal de filhos, meus bisnetos Kairos
e Falyn.
A minha neta Trícia se casou com um americano, Jay. Ela passou
por sérios problemas de saúde, mas com a graça de Deus se
recuperou e também me presenteou com um casal de bisnetos,
Alhya e Jeremias.
Shara ainda vive com os pais, trabalha, e é uma linda moça.
Minha segunda filha, Bruna, que nasceu no mesmo mês que eu,
e tem uma personalidade forte, como a minha, tem um coração
de ouro, vive para os filhos e não mede esforços para vê-los bem.
Ela é casada com o Luis, tem três filhos lindos. Dois do seu
primeiro casamento, Victoria e Vicktor e a Valentina, com o Luis.
A minha neta Victoria, muito inteligente, adora ler. O Vicktor é
um rapazinho lindo, de coração manso, carinhoso e se parece
muito com a mãe. E a Valentina, uma criança linda, esperta,
encanta a todos.
Eu brinquei com meus filhos, dizendo que se houvesse mais uma
gravidez eu me mudaria para a China. E quando a Bruna me ligou
dizendo para eu comprar a minha passagem, eu fiquei muito
chateada.
Porém hoje, quando olho para essa bonequinha, digo que a
Valentina é umas das maiores alegrias que tenho.
A minha caçula, Ticiane, se casou com um brasileiro, Fábio. Eles
têm três filhos lindos, Lucas, Fabiane e Noha, todos criados
dentro da fé cristã, assim como os do Allan e os da Bruna. Ela é
uma mãe muito dedicada, de coração e fala mansa.
O Lucas é um presente de Deus, pois a Ticiane demorou seis
meses para conseguir engravidar, e é um rapazinho lindo e doce.
A Fabiane se parece muito com o pai, adora esporte e joga voley
no time da escola.
Noha é muito inteligente e fala coisas que muitas vezes nos
surpreendem.
Os meus filhos são, sem sombra de dúvidas, a maior prova do
amor de Deus para comigo. São três partes do meu coração
batendo fora do peito.
Por eles, eu me sacrifiquei, deixei meu país e mudei totalmente o
rumo da minha vida, sempre na intenção de vê-los bem e perto
de mim.
Eu tenho a convicção plena de que, muitas vezes falei coisas que
não devia, briguei em momentos errados, mas se errei, foi
querendo acertar. Se me excedi, foi por amor. E tenho uma
felicidade enorme e um grande orgulho de dizer que tenho os
melhores filhos do mundo.
Os meus irmãos, que sempre foram para mim uma extensão da
minha alma, completam a minha existência e por eles, me
desdobro e continuo lutando, para que vivam bem e felizes,
tentando continuar a missão da nossa mãe.
Gismar, o chorão.
Gerdal, o maluco beleza.
Gesner, o risonho.
Gerson, o cômico.
Giovanni, o profeta.
Geraldo, o letrado.
Gilmara, a sistemática.
George, o político.
Ginamara, a sapeca.
E eu, como a implicante, digo que abaixo de Deus e dos meus
filhos e netos, eles sempre serão os meus eternos amores.
Todos os amigos e pessoas especiais que de alguma forma, em
algum momento, passaram pela minha vida, eu os guardo no
coração de forma carinhosa e sou grata por tudo o que aprendi
com cada um.
O Paulo, meu marido, o príncipe encantado que encontrei já na
meia idade, eu tinha 34 anos e ele 25. Somos tão diferentes e tão
parecidos ao mesmo tempo. Com ele eu aprendi a viver a vida
sem me preocupar com o amanhã, a não me importar com a
opinião alheia. Aprendi a saborear uma boa mesa, a comer tudo
o que tiver vontade.
Paulo chegou a minha vida, no momento exato em que eu mais
precisava de um ombro amigo, em um momento de fragilidade e
medo do desconhecido. Eu não tenho palavras para significar o
quão importante ele é para mim. E como me sinto segura
estando ao lado dele.
Espero que possamos caminhar já velhinhos, de mãos dadas em
alguma praia ou nos cassinos da vida. E que estejamos juntos até
o fim de nossa jornada.
O Idaçuile, pai dos meus filhos, teve um papel muito importante
na minha história. Sempre gentil, me ensinou boas maneiras, me
abriu as portas para o mundo que existia além da casa dos meus
pais. Ele me proporcionou e incentivou a terminar meus estudos,
me deu os três maiores tesouros da minha vida e sou grata por
convivermos até os dias de hoje, com respeito e amizade.
Ele sempre foi um exemplo de pai, e me deu uma linda princesa,
que considero como minha neta. Ela me chama de vovó.
Yasmim, filha do seu segundo casamento.
Chegando ao final das minhas aventuras, e me aproximando de
completar 70 anos de vida, eu só tenho uma palavra no coração.
E GRATIDÃO é o nome certo para resumir tudo o que aqui está
escrito.
Peço a Deus que na hora de minha partida, que Ele me leve no
meu sono e que dele eu passe sem incomodar ninguém.
Que os meus órgãos possam ser aproveitados para salvar vidas.
Assim continuarei por aqui em pedaços de mim dentro de outras
pessoas e também no coração de todos que amo.
Tenho como lema, que nessa vida, o importante não é o que
ajuntei, mas sim, tudo o que espalhei.

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