Sem Familia - Hector Malot
Sem Familia - Hector Malot
Sem Familia - Hector Malot
Sem Família
Hector Malot
Título original
SANS FAMILLE
HECTOR-HENRI MALOT
HECTOR MALOT
SEM Família
Romance
Adaptação de
M. F.
PORTUGáLIA EDITORA
LISBOA
Índice
I. Na aldeia........................11
II. Um pai adoptivo..................19
III. A companhia do Signor Vitalis....28
IV. Deixando a casa..................39
V. A Caminho.........................48
VI. A minha estreia..................54
VII. Aprendo a ler..................65
VIII. Por montes e vales.......................72
IX. Encontro o gigante das botas de sete léguas75
X. Perante a justiça.................81
XI. Em barco.........................92
XII. O meu primeiro amigo...........110
XIII. Enjeitado.....................121
XIV. Neve e lobos...................129
XV. O Senhor Joli-coeur.............146
XVI. Chegada a Paris................158
XVII. As pedreiras de Gentilly......164
XVIII. Lise.........................170
XIX. Jardineiro.....................182
XX. Dispersão da família............189
Segunda parte
I. Para a frente....................207
II. Uma cidade enfarruscada.........226
III. Aprendiz.......................233
IV. A inundação.....................238
V. Na ladeira.......................250
VI. Libertação......................259
VII. Uma lição de música............271
VIII. A vaca do Príncipe............281
IX. A mãe Barberin..................299
X. A antiga e a nova família........313
XI. Barberin........................319
XII. Investigações..................331
XIII. A Família Driscoll............343
XIV. Honrarás pai e mãe-............355
XV. «Capi» prevertido...............364
XVI. As belas roupinhas enganam.....370
XVII. O tio de Artur................376
XVIII. Vésperas de Natal............381
XIx. Os receios de Mattia...........386
XX. Bob.............................403
XXI. O cisne........................412
XXII. As belas roupinhas falaram
verdade..............422
XXIII. Em família...................432
I
CAPÍTULO 01.
NA ALDEIA.
Sou enjeitado. Mas até aos oito anos Imaginei ter mãe como
as outras crianças, pois,- quando eu chorava, uma
mulher me estreitava nos seus braços, embalando-me
com tanta ternura que as minhas lágrimas deixavam de correr.
Nunca me deitava na cama sem que essa criatura me viesse
beijar, e, quando o vento de Dezembro arrojava a neve contra
os vidros embaciados, aquecia-me os pés ao calor das suas
mãos, enquanto trauteava uma canção, de cuja música e letra me
recordo ainda.
Nas ocasiões em que eu apascentava a nossa vaca
ao longo dos caminhos arrelvados ou nas charnecas,
e que era surpreendido pela chuva, corria ela ao meu
encontro e forçava-me a abrigar sob a saia de lã,
que arregaçava, e com que me cobria a cabeça e os
ombros.
,Por tudo Isto e muito mais coisas ainda, pela maneira
como me falava, pelas suas carícias e pela
forma como olhava para mim, pela doçura, dos
ralhos, eu imaginava que era minha mãe.
Eis como cheguei a saber a verdade:
A minha aldeia, ou, para melhor dizer, a aldeia
onde fui criado-porque eu não tinha terra natal,
como não tinha pai nem mãe - a aldeia enfim onde
passei a infância, chama-se Chavanon; é uma das
mais pobres do centro da França.
O solo não é profundo, e, para produzir boas
colheitas, seriam precisos adubos ou substâncias que
faltam na terra. Por isso há (ou pelo menos havia
na época de que falo) um diminuto número de campos cultivados,
ao passo que se vêem por toda a parte extensas charnecas onde
só crescem urzes e giestas.
Quem poderia ser àquela hora? Talvez uma vizinha para nos
pedir lume. Não me preocupei com isso, porque a mãe
Barberin, que mergulhara a colher no tacho, acabara de deitar
na frigideira um pedaço da massa, e não era
altura própria de haver distracções.
Alguém bateu com um pau na porta, que, a seguir,
se abriu bruscamente.
- Quem é? - perguntou a mãe Barberin, sem se voltar.
Um homem entrara, e a claridade das chamas,
incidindo nele, mostrou-me que estava vestido com
uma camisa branca e que tinha na mão um grosso cajado.
CAPÍTULO 02.
UM PAI ADOPTIVO.
- Não.
- Pois bem! Vai-te deitar, e trata de dormir já,
senão zango-me.
A mãe Barberin lançou-me uma olhadela em que
me aconselhava a obedecer sem replicar. Mas esta
recomendação era inútil, pois eu não pensava em revoltar-me.
Como na maioria das casas dos camponeses, a
cozinha servia também de quarto de dormir. Junto
da lareira estava tudo o que era preciso para comer:
a mesa, a arca do pão, o aparador; na outra extremidade, o
necessário para dormir; num ângulo, a cama da mãe Barberin; no
canto oposto, a minha,
que se achava numa espécie de armário rodeado
duma cortina de linho vermelho.
Despi-me rapidamente e deitei-me. Mas dormir,
isso era outra coisa.
Não se dorme para obedecer a uma ordem: dorme-se porque
se tem sono e porque se está tranquilo. Ora, eu não tinha
sono e não estava tranquilo.
Sentia-me terrivelmente atormentado e ainda por
cima muito infeliz.
convidou-o a entrar.
Este, agarrando-me pela orelha, fez-me Ir à sua
frente, e, uma vez dentro do estabelecimento, fechou
a porta.
Senti-me aliviado; o café não me parecia um
lugar perigoso; e, além disso, sempre era uma casa
onde há muito tempo eu tinha desejos de penetrar.
O café, o café da estalagem Notre-Dame! Que
poderia ser aquilo?
Quantas vezes fizera a mim mesmo esta pergunta!
Vira gente sair dali, de cara avermelhada e pernas
trémulas; ao passar em frente da porta ouvira, em muitas
ocasiões, gritos e canções que faziam
estremecer os vidros.
Que faziam lá dentro? Que acontecia por detrás
Daquelas co rtinas vermelhas?
Ia sabê-lo.
Enquanto Barberin se instalava a uma mesa do
café com o dono, que o convidara a entrar, fui sentar-me perto
do fogão e olhei em redor. No canto oposto àquele que
ocupava, achava-se
um velho alto de barba branca, vestido de forma tão
estranha como eu nunca vira.
Sobre os cabelos, que tombavam em compridas
madeixas até aos ombros, tinha um chapéu de feltro
cinzento, de copa alta e guarnecido de penas verdes
e vermelhas. Envolvia-lhe o busto uma pele de carneiro, cuja
lã estava para o lado de dentro. Esse abafo não tinha
para o asilo. Sabe muito bem que um monstro tem valor e que se
pode tirar proveito dele, explorando a própria monstruosidade.
Mas este não é anão nem monstro; tem uma figura como toda a
gente e portanto não serve para nada.
- Serve para trabalhar.
- É muito débil para isso.
- Ele, débil! Ora adeus! Repare, veja as pernas:
já viu algumas mais direitas?
E Barberin arregaçou-me as calças.
- Excessivamente delgadas - replicou o velho.
- E os braços? - continuou Barberin.
- São como as pernas; poderá resistir a uma vida
normal, mas não resistirá à fadiga e à miséria.
- Ele, não resistir?! Mas apalpe-o, ande, apalpe-o.
O velho passou-me a mão descarnada nas pernas,
tacteando-as, sacudindo a cabeça e fazendo uma
careta.
- Ponha quarenta.
- Não, pelos serviços que me prestará, Isso não é
possível.
- E que espécie de serviços quer o senhor que ele
lhe faça?
O Interpelado olhou para Barberin com ar finório,
e, esvaziando o-copo aos golinhos, disse:
- Será meu companheiro; sinto-me velho, e, às
vezes, depois de um dia de fadiga, quando o tempo
está mau, assaltam-me ideias tristes; o petiz distrair-me-á.
- Lá para esse fim, as pernas serão bastante
sólidas.
- Talvez não muito, pois terá de dançar, saltar
e caminhar; em suma, fará parte da companhia do
signor Vitalis.
- E onde está essa companhia?
- O signor Vitalis sou eu, como já deve ter calculado; os
actores, vou-lhos apresentar, visto desejar conhecê-los.
Dizendo isto, abriu a pele de carneiro e agarrou
num animal estranho que tinha sob o braço esquerdo,
de encontro a si.
Aquele bicho é que fazia levantar frequentemente
a pele de carneiro; mas não era um eãozinho como
eu pensara.
Ignorava o nome daquele animal esquisito que eu
via pela primeira vez e para quem olhava com estupefacção.
Estava vestido com uma blusa vermelha debruada
de galão dourado, mas os braços e as pernas mostravam-se nus,
pois pareciam realmente braços e pernas o que ele tinha, e não
patas; mas a pele era negra em vez de branca e rosada. Possuía
uma cabeça também preta, do tamanho do meu punho fechado, face
curta e larga, nariz arrebitado de narinas afastadas
e lábios amarelos; mas o que mais me impressionou
foram os olhos, muito próximos um do outro, duma
grande mobilidade, brilhantes como espelhos.
CAPÍTULO 04.
DEIXANDO A CASA.
- A mamã?
- Foi à aldeia e só regressará depois do meio dia.
Sem saber porquê, aquela ausência inquietou-me.
Ela não me dissera na véspera que ia sair. Por que
razão não esperara para nos acompanhar, visto que
devíamos ir à aldeia de tarde?
O coração oprimiu-se-me com um vago receio.
Barberin contemplava-me com ar pouco tranquilizador;
querendo escapar a esse olhar, fugi para o quintal.
O quintal, que não era grande, tinha para nós um
valor considerável, pois, à excepção do trigo, fornecia-nos
quase todo o alimento: batatas, favas, couves, nabos,
cenouras. Não havia um bocado de terreno
perdido. Mas a mãe Barberin reservara-me um cantinho no qual
eu reunira uma infinidade de plantas, arrancadas, de manhã, na
orla dos bosques, ou ao
longo das sebes, enquanto a vaca pastava, e metidas
depois à terra, no meu jardim.
Estava ajoelhado no chão, quando ouvi uma voz
rude chamar por mim.
Era Barberin.
Apressei-me a entrar em casa.
Qual não foi a minha surpresa ao ver, em frente
da chaminé, Vitalis e os cães!
Instantâneamente compreendi o que queria Barberin de mim:
Vitalis vinha buscar-me, e, para que a mãe Barberin não
pudesse defender-me, Barberin
mandara-a de manhã à aldeia.
Sentindo que não tinha a esperar socorro nem
piedade de Barberin, corri para Vitalis:
- Oh! meu senhor - exclamei eu-, por amor de
Deus não me leve consigo!
Desatei em soluços.
- Vamos, meu rapaz - disse-me ele com brandura. - não
serás infeliz comigo. Não bato em crianças, e além disso,
terás a companhia dos meus actorzinhos que são muito
divertidos. De que podes ter saudades?
A CAMINHO.
CAPÍTULO 06.
A MINHA ESTREIA.
ia fornecer?
Era só Isto que eu procurava: o resto, torreões,
ogivas, colunas, não tinha interesse para mim.
Por isso a única lembrança que me ficou de Ussel
foi a de uma loja sombria e denegrida pelo fumo,
situada ao pé do mercado. Tinha na montra espingardas velhas,
um casaco agaloado com dragonas de prata, muitas lâmpadas, e,
em cestos, ferros velhos,
principalmente cadeados e chaves enferrujadas.
Foi preciso descer três degraus para entrar, e
então, encontrámo-nos numa quadra vasta, onde seguramente a
luz do sol nunca penetrara desde que o telhado fora posto
sobre a casa.
Como é que uma coisa tão bela como sapatos se
podia vender num recinto tão pavoroso!
Porém Vitalis sabia o que fazia ao vir àquela loja,
e bem depressa,tive a felicidade de calçar sapatos
ferrados que pesavam dez vezes mais do que os meus
tamancos.
A generosidade do meu patrão não ficou por ali;
depois dos sapatos, comprou-me um casaquinho de
veludo azul, umas calças de lã e um chapéu de feltro; enfim,
tudo o que me prometera. Veludo para mim, que nunca usara
senão linho;
sapatos; um chapéu, quando eu até ali apenas tivera
os cabelos a cobrirem-me a cabeça! Decididamente,
era o melhor homem do mundo, o mais generoso
e rico.
É verdade que o veludo estava amarrotado, é verdade que a
lã estava coçada; é também verdade que seria muito difícil
saber qual a cor primitiva do feltro, de tal maneira apanhara
chuva e poeira; mas, deslumbrado por tamanhos esplendores,,
pela inquietação.
Do que me lembro, é que Vitalis abandonara o
pífaro e substituíra-o por um violino com que acompanhava os
exercícios dos cães, ora com músicas de dança, ora com
melodias suaves e doces.
A multidão apinhava-se contra as cordas, e,
quando eu olhava em redor, maquinalmente, via uma
infinidade de pupilas que, fixadas em nós, pareciam
lançar faíscas.
Finda a primeira peça, Capi segurou, entre os
dentes, uma bandeja e, caminhando nas patas traseiras,
aproximou-se do «respeitável público». Quando as moedas não
caíam no prato, detinha-se e, poisando-o no interior do
círculo fora do alcance das mãos colocava as patas dianteiras
no espectador recalcitrante, ladrava duas ou três vezes, e
batia pancadinhas sobre a algibeira que pretendia abrir.
Então na assistência havia exclamações, gracejos
e zombarias:
- Olha a esperteza do cão, como conhece os que
têm a bolsa recheada!
- Vá, mete a mão na algibeira!
- Dá!
E a moeda era finalmente arrancada das profundezas onde
se escondia. Entretanto, Vitalis, sem dizer palavra, mas
sem
perder de vista a bandeja, Ia tocando árias alegres
no violino.
Bem depressa Capi voltou para junto do dono,
trazendo orgulhosamente o prato cheio.
assoei-me.
Ao -ver isto o general torceu-se a rir e Capi caiu
de costas, confundido com a minha estupidez.
CAPÍTULO 07.
APRENDO A LER
CAPÍTULO 08.
CAPÍTULO 09.
atrás de mim.
Já nem respirava, sufocado pela angústia e pela
doida correria; então fiz um derradeiro esforço e vim
cair aos pés do meu mestre, enquanto os três cães,
que se haviam erguido bruscamente, ladravam com
todas as forças.
Só pude dizer estas duas palavras, que repeti
maquinalmente:
- O animal! O animal!
No meio da vozearia dos cães, ouvi de repente
uma estrondosa gargalhada. Ao mesmo tempo, Vitalis,
pousando-me a mão no ombro, obrigou-me a virar.
- Animal és tu - dizia-me ele rindo. - Repara
nele, se é que tens ânimo para Isso.
o riso, mais do que as palavras, chamaram-me à
razão; afoitei-me a abrir os olhos e a seguir a direc
ção da mão de Vitalis.
A aparição que tanto me aterrorizara detivera-se
e conservava-se imóvel a meio da estrada.
Seria um bicho?
Seria um homem?
De homem, tinha o corpo, a cabeça, os braços.
De bicho, uma pele felpuda que o cobria inteiramente, e
duas patas compridas e magras que o sus tinham.
Se bem que houvesse Já anoitecido, eu percebia
estes pormenores, pois a sua sombra alta desenhava-se a preto,
contornando-se no céu onde numerosas estrelas derramavam uma
claridade pálida.
Eu ficaria provavelmente muito tempo Indeciso a
cogitar nas minhas dúvidas, se Vitalis não tivesse
dirigido a palavra à aparição.
- Poderá dizer-me se estamos muito longe de
uma aldeia? -perguntou.
Mas Por única resposta só ouvi um riso
áspero, semelhante a um grito de ave.
Era então um animal?
Entretanto o meu mestre continuou as mil
perguntas, o que me pareceu absolutamente despropositado.
Qual não foi o meu espanto quando o bicho disse
que não havia casas nos arredores, mas apenas um
curral, aonde ele nos propunha
conduzir-nos. Se ele falava, como é que tinha
patas?
Se me atrevesse, aproximar-me-ia dele,
para-ver como eram feitas aquelas patas, mas,
se bem que me não parecesse um ente mau, não
tive coragem; agarrando no meu saco, segui
Vitalis sem nada dizer.
- Vês agora o que te causou tão grande medo? -
perguntou-me ele pelo caminho.
- Vejo, mas não sei o que é; então há gigantes
nesta terra?
- Há, sim, quando estão em cima de andas.
E explicou-me como os habitantes das Landas,
para atravessarem os terrenos areentos ou pantanosos sem
enterrarem as pernas até às coxas, se servem de
dois paus compridos guarnecidos de um estribo que amarram aos
pés
- E aqui está como se tornam no gigante das botas de sete
léguas para crianças medrosas.
CAPÍTULO 10.
PERANTE A JUSTIÇA.
CAPÍTULO 11.
EM BARCO.
CAPÍTULO 12.
CAPÍTULO 13.
ENJEITADO.
CAPÍTULO 14.
NEVE E LOBOS.
teriam saído.
Vitalis dirigira-se para a cabana e eu seguia-o,
olhando para trás de mim a cada passo e parando
para escutar; mas nada via além da neve, nada ouvia
CAPÍTULO 15.
O SENHOR JOLI-CoeUR.
CAPÍTULO 16.
CHEGADA A PARIS.
Vitalis prosseguiu:
- Em Paris, separar-nos-emos.
Instantâneamente fez-se noite, e deixei de ver as
árvores de ouro.
Voltei os olhos para Vitalis. Ele também me
olhava, e a palidez do meu rosto, a tremura dos lábios,
disseram-lhe o que se passava em mim.
- Estás inquieto e desgostoso, parece. Pobre pequeno!
Estas palavras, e sobretudo o tom com que foram
pronunciadas, fizeram-me vir lágrimas aos olhos:
havia tanto tempo que eu não ouvia uma frase carinhosa!
Ah! Como o senhor é bom! - exclamei.
Tu és bom, um bom rapaz, um coraçãozinho
às direitas. Quando tudo corre bem, seguimos na vida
sem pensar muito em quem nos acompanha, mas
quando surge a Infelicidade, quando nos sentimos
tristes, sobretudo se somos velhos, isto é, sem termos
fé no dia de amanhã, há a necessidade de nos
apoiarmos naqueles que nos rodeiam e achamo-nos
contentes de os ter junto de nós. Que eu me apoie
em ti, parece-te espantoso, não é verdade? E, no
entanto, é assim mesmo. E sinto"me consolado por
teres lágrimas nos olhos ao ouvires-me, só por isso.
Porque eu também, meu filho, estou cheio de tristeza.
Mais tarde, quando amei alguém, é que compreendi bem a
exactidão daquelas palavras.
- A pior desgraça - continuou Vitalis. - é que é
sempre preciso separarmo-nos justamente na ocasião
em que desejaríamos aproximar-nos mais.
- Mas - disse eu timidamente - não quer abandonar-me em
Paris, pois não?
- claro que não te quero abandonar. Que farias
sozinho em Paris, pobre criança? E além disso, não
tenho o direito de te abandonar, reflecte nisto. No
dia em que não quis entregar-te àquela boa senhora
que desejava encarregar-se de ti e educar-te como
CAPÍTULO 17.
AS PEDREIRAS DE GENTILLY.
ENQuANTo percorremos a rua, onde havia gente, VItalis
caminhou sem nada dizer, mas depressa nos encontrámos numa
travessa deserta; então sentou-se num marco e passou várias
vezes a mão pela testa, o que nele era sinal de atrapalhação.
- será talvez muito bonito escutar a voz da generosidade -
disse ele como se falasse consigo próprio. - mas por causa
disso eis-nos no meio de Paris.. sem um soldo na algibeira,
sem um bocado de pão no estômago. Tens fome?
- Não comi mais nada depois do pedacinho de pão que me
deu esta manhã.
- Pobre pequeno! Estás arriscado a deitar-te esta
noite sem Jantar; ao menos, se soubéssemos onde
passar a noite! Enfim, é preciso ir. Avante, meus filhos!
Era a sua frase de bom-humor dirigida aos cães
e a mim; mas nessa tarde disse-a tristemente.
Nessa noite pusemo-nos a caminho, pelas ruas de
Paris. A noite estava escura e o gás, cuja chama vacilava
CAPÍTULO 18.
LISE.
a fraqueza.
Se me atrevesse, pediria um prato de sopa. Mas Vitalis
não me ensinara a esmolar e a natureza não
me fizera mendigo.
A rapariguinha de olhar estranho, aquela que não falava
e a quem o pai chamara Lise, estava na minha frente, e, em vez
de comer, contemplava-me sem baixar ou desviar os olhos. De
súbito, ergueu-se da mesa, e, agarrando no seu prato cheio de
sopa, trouxe-mo e colocou-mo sobre os joelhos.
Fiz um gesto lento com a mão para lho agradecer, pois eu
não tinha forças para falar, mas o pai
interrompeu-me:
- Aceita, meu rapaz - disse ele. - O que Lise dá
é bem dado: e, se o estômago te pedir, depois desse, mais
outro.
Se o estômago me pedia! Engoli tudo em poucos segundos.
Quando pousei a colher, Lise, que se pos tara defronte de mim,
olhando-me fixamente, deu um gritinho que desta vez não era um
suspiro mas uma exclamação de regozijo. Em seguida tirou-me
o prato e apresentou-o ao pai para que o enchesse de novo, e
depois veio-me trazê-lo com um sorriso tão doce, tão animador,
que, apesar da fome, fiquei um momento sem pensar em segurar o
prato. Como antes, a sopa desapareceu num instante; já não era
CAPÍTULO 19.
JARDINEIRO.
Para ser franco, devo dizer que nem tudo era trabalho e
fadiga; tínhamos também as nossas horas de repouso e prazer,
curtas, já se sabe, mas precisamente por isso mais apreciadas.
Ao domingo de tarde, reuníamo-nos sob uma latada que
ficava junto da casa; eu desprendia a harpa do prego onde ela
ficara dependurada toda a semana,
e executava músicas para os dois Irmãos e irmãs
dançarem. Quando se cansavam de dançar, pediam-me que cantasse
todo o meu repertório, e a canção napolitana produziu sempre o
seu Irresistível efeito em Lise:
CAPÍTULO 20.
DISPERSãO DA FAMíLIA.
- E eu?
- Tu, não és da família.
- Trabalharei para si.
- Não és da família.
- Pergunte a Aleixo, a Benjamim, se não tenho
coragem para trabalhar.
- E para comer também, não é verdade?
- Sim, sim, é da família - disseram eles todos.
Lise avançou e juntou as mãos em frente da tia
com um gesto mais eloquente do que grandes discursos.
- Minha pobre filha - disse a tia Catarina -,
compreendo-te, queres que ele venha contigo, mas,
na vida, não se faz tudo o que se quer. Tu, és minha
sobrinha, e quando chegarmos a casa, se o marido me
disser qualquer coisa, ou mostrar má cara ao Ir para
a mesa, posso bem responder: «É da nossa família,
quem terá piedade dela se não formos nós?» A gente
aceita os parentes, mas não recebe estranhos; o pão
é pouco para a família, quanto mais para os outros!
Percebi perfeitamente que nada tinha a fazer,
nada a ajuntar. «Eu não era da família».
A tia Catarina jamais adiava a execução -das suas
resoluções: preveniu-nos que a nossa separação teria
lugar no dia seguinte, e, com Isto, mandou-nos deitar.
CAPÍTULO 21.
SEGUNDA PARTE
PARA A FRENTE.
- PARA a frente!
Antes de me lançar na estrada que se abria
perante mim, quis ver aquele que, nos últimos anos,
fora para mim um pai; se a tia Catarina não me
levara com os filhos para lhe dizer adeus, eu devia
ir sozinho abraçá-lo.
Sem nunca haver estado na prisão por dividas,
ouvira falar tanto dela naqueles derradeiros dias que
tinha a certeza de a encontrar. Seguiria o caminho
da Madeleine que conhecia bem, e aí pediria qualquer
indicação. Visto que a tia Catarina e os pequenos
haviam podido ver o pai, consentiriam certamente
que eu também o visitasse: era, ou antes, fora seu
filho, e ele estimara-me.
Não me atrevia a atravessar Paris com Capi atrás
de mim. Que responderia aos polícias, se por acaso
me interpelassem? De todos os receios que a experiência me
inspirara, o da esquadra era o maior: não esquecera Toulouse.
Amarrei Capi com uma corda, o
que pareceu ferir vivamente o seu amor próprio de
cão instruído e bem educado; depois, levando-o pela
trela, pusemo-nos a caminho da prisão de Clichy.
Parei um instante antes de me atrever a entrar,
como se receasse que me retivessem lá dentro; parecia-me que
aquela porta, aquela horrível porta, uma vez fechada atrás de
mim, jamais se tornaria a abrir.
Achava difícil sair da cadeia, mas não sabia que
também era difícil entrar nela. Soube-o à minha custa.
Finalmente, não consentindo que me repelissem
nem me expulsassem, consegui chegar junto daquele
que eu vinha ver.
Fizeram-me entrar num parlatório, onde não
havia grades como eu imaginara, e, pouco depois,
chegou Acquin, que não vinha algemado.
- Esperava-te, meu Remi - disse-me ele. - Ralhei com
Catarina por não te haver trazido com os pequenos.
Desde manhã que eu me sentia triste e acabrunhado;
aquelas palavras reanimaram-me.
- A sr.a, Catarina não quis levar-me consigo.
- Isso não era possível, meu pobre rapaz; neste
mundo não se faz o que se quer. Tenho a certeza que
trabalharias bastante para ganhar a tua vida, mas
Suriot, o meu cunhado, não poderia dar-te trabalho;
ele é vigia das represas do canal de Nivernais, e,
sabes tu, um homem com essa profissão não precisa
de contratar jardineiros. Os pequenos disseram-me
que desejavas voltar a ser cantor ambulante. Esqueceste então
que quase morrias de frio e de fome à nossa porta?
- Não, não o esqueci.
- E, nessa altura, não estavas só, tinhas alguém
para te guiar. É muito grave, meu rapaz, isso que
queres empreender, na tua idade, sózinho, pelas estradas...
Escuta, meu rapaz, se fosses prudente, empregavas-te. Já és um
bom trabalhador; valia
mais do que andar pelos caminhos, o que é um ofício
de preguiçoso.
presente.
Havia um que mais do que qualquer outro a tornaria feliz,
não só na hora presente, mas por toda a velhice: uma vaca que
substituísse a pobre Ruça.
Que alegria para a mãe Barberin se eu lhe pudesse dar uma
vaca, e que alegria para mim.
Antes de chegar a Chavanon compraria uma vaca,
e Mattia, levando-a presa por uma corda, fá-la-ia
entrar no pátio da mãe Barberin. O marido, já se
sabe, não estaria lá. «Minha senhora», diria Mattia,
«aqui tem uma vaca que eu lhe trago.» - «Uma vaca!
Estás enganado, rapaz!» (Diria isto, suspirando). «Não
senhora; pois não é a Senhora Barberin, de Chavanon? Pois bem!
É à sua casa que o príncipe (como nos contos de fadas) me
ordenou que trouxesse esta vaca oferecida por ele». - «Qual
príncipe?» Eu então apareceria, lançando-me nos braços da mãe
Barberin, e, depois de nos havermos abraçado fortemente,
faríamos coscorões e sonhos, para nós três comermos, e não
Barberin, como naquela terça-feira de Entrudo em que ele
voltara para esvaziar a frigideira e gastar a manteiga na sua
sopa de cebolas.
Que lindo sonho! o pior é que, para o realizar,
seria preciso que eu pudesse comprar uma vaca.
Quanto custaria um bicho desses? Não fazia a
menor Ideia. Muito caro, sem dúvida. Caríssimo.
E então?
O que eu desejava não era uma vaca muito,
muito grande. Em primeiro lugar porque, quanto
maior fosse a vaca, mais cara seria. Depois, quanto
maiores elas são, de mais alimento necessitam, e eu
não queria que o meu presente fosse motivo de des
pesas para a mãe Barberin.
O essencial, por enquanto, seria conhecer o preço
das vacas, ou antes, de uma vaca tal como eu ambicionava
comprar. Felizmente, Isto para mim não era difícil. Na
nossa
vida errante, nas noites passadas nos albergues,
CAPÍTULO 22.
CAPÍTULO 23.
APRENDIZ.
CAPÍTULO 24.
A INUNDAÇãO.
No dia seguinte voltámos à mina.
Quando eu ia pela terceira vez com o meu
carrinho aos poços de Saint-Alphonsine, ouvi desse
lado um ruído formidável, um rumor pavoroso como
nunca ouvira desde que trabalhava na mina. Seria
o desmoronar de qualquer coisa, um desabamento
geral? Escutei; o barulho continuava, repercutindo-se de todos
os lados. Que queria aquilo significar? O primeiro sentimento
foi de terror, e pensei fugir
pelas escadas.
CAPÍTULO 25.
NA LADEIRA.
CAPÍTULO 26.
LIBERTAÇãO.
CAPÍTULO 27.
CAPÍTULO 28.
A VACA DO PRíNCIPE.
CAPÍTULO 29.
A MãE BARBERIN.
comovido.
Enquanto Íamos falando assim e andando a passos largos,
chegáramos ao alto da colina onde começa a encosta que em
ziguezagues conduz a Chavanon e passa mesmo em frente da casa
da mãe Barberin.
Mais uns metros e atingíamos o sítio onde eu
pedira licença a Vitalis para me sentar no muro a
fim de contemplar a habitação que Imaginara nunca
mais ver.
- Segura na corda - disse eu a Mattia.
E, num salto, subi para o parapeito. Nada mudara
no valezinho; apresentava o mesmo aspecto. Entre
os dois maciços de árvores, distingui o tecto da casa
da mãe Barberin.
- Que tens? - perguntou Mattia.
- Olha! Ali! ali!
Veio ele para o meu lado, mas sem subir o muro,
cuja erva a vaca principiou logo a comer.
- Repara para onde estou a apontar. Lá está a
minha casa, a pereira, o meu jardim.
Mattia, a quem as recordações não o ajudavam
como a mim, pouca coisa via, mas não fez comentários.
CAPÍTULO 30.
pobreza.
Foi uma boneca que comprámos em Deeize; por
felicidade, custava mais barato do que uma vaca.
A partir de Crátillon, seguimos pelas margens do
anal, e aquelas ribas arborizadas, aquela água tranquila,
aquelas embarcações que deslizavam lentamente puxadas por
cavalos fizeram-me saudades dos tempos felizes em que, com a
senhora Milligan e Artur, eu navegara assim no Cisne. Onde
estariam agora? Quantas vezes, ao passar por um canal,
perguntara se teriam visto um barco de recreio que, pela sua
varanda, pelo seu luxo, não se podia confundir com
outro! Certamente a senhora Milligan regressara, à
Inglaterra com o filho, já curado. Era Isto o mais
lógico, o mais sensato de Imaginar; todavia, ao
costear as margens do canal do Nivermais, perguntei
em frequentes ocasiões a mim próprio, ao ver um
barco conduzido por cavalos, se não seria o Cisne que
vinha a aproximar-se.
CAPÍTULO 31.
BARBERIN.
Se eu não tivesse pressa de chegar a Paris, ficaria
muito, muito tempo com Lise; havia tanta coisa
a dizer, e tão pouco podíamos conversar com a linguagem que
empregávamos!
Lise contou-me a sua instalação em DreUzy, como
caíra em graça a seu tio e sua tia, cujos cinco filhos
se haviam Ido todos embora - infelicidade muito vulgar nas
Famílias de Nièvre, onde as mulheres abandonam os próprios
filhos para serem amas em Paris. Disse-me como eles a tratavam
muito meigamente;
como vivia, quais as ocupações, quais os seus jogos
e prazeres: pesca, excursões em barco, passeios pelas
florestas, tudo coisas em que empregava todo o tempo,
visto não poder frequentar a escola.
E eu, por meu lado, tive de contar-lhe o que me
acontecera desde a nossa separação: como estivera
quase a morrer na mina em que Aleixo trabalhava,
e como, ao chegar a casa da mãe Barberin, soubera
que a minha Família me procurava, o que me Impedira de visitar
Estefânia, como era meu desejo.
Claro que foi a minha Família o grande assunto
das nossas conversas, a minha Família endinheirada,
e eu repetia a lise o que jà dissera a Mattia, Insistindo
sobretudo nas minhas esperanças de riqueza, que, se se
realizassem, nos permitiriam ser felizes:
o pai, os irmãos, e ela, principalmente ela. Lise, que
não adquirira a precoce experiência de Mattia, e não
estivera felizmente para ela) na escola de Garofoli,
sentia-se disposta a admitir que as pessoas ricas nada
têm a fazer senão andarem satisfeitas neste mundo,
e que o dinheiro era um talismã que, como nos contos de fadas,
dava instantaneamente tudo o que se podia desejar.
Não era só a conversar em frente da represa, ao
som da água precipitando-se nas comportas, que passávamos o
tempo; passeávamos também todos três, Lise, Mattia e eu,
sempre acompanhados do senhor
Capi e da menina boneca..
À noite, quando a humidade não era excessiva,
sentávamo-nos defronte da casa, ou instalávamo-nos
em volta da lareira se havia muito nevoeiro; para
maior prazer de Lise, eu tocava harpa e Mattia tocava violino
ou cornetim;, mas Lise preferia a harpa, o que me tornava
orgulhoso a valer. Antes de nos
separarmos para dormir, Lise pedia-me que cantasse
a canção napolitana e eu fazia-lhe a vontade.
No entanto, apesar de tudo, foi-nos forçoso partir.
Por mim, a separação não me custou muito; acalentara
tanto os meus sonhos de riqueza que acreditava, não que um dia
chegaria a ser rico, mas que o era já, é que só precisava
formular um desejo para
o realizar num futuro próximo, muito próximo, quase
Imediato.
As últimas palavras que dirigi a Lise farão compreender,
melhor do que longas explicações, como era sincero na minha
Ilusão.
- Virei buscar-te numa carruagem puxada por
quatro cavalos - disse-lhe.
CAPÍTULO 32.
INVESTIGAÇõES.
Barberin.
bastante picado.
De súbito, Mattia, que já não falava há bocado,
levantou-se bruscamente.
- Que tens? - perguntei-lhe.
- É que isto está a dançar muito e eu tenho náuseas.
- É o enjoo.
- Isso sei eu.
Alguns minutos depois correu a encostar-se à
amurada do navio.
Quando amanheceu, -uma manhã pálida, enevoada e sem sol -
viam-se altos penedos esbranquiçados, e aqui e ali
distinguiam-se barcos imóveis e sem velas. Pouco a pouco o
balanço diminuiu e o
nosso navio flutuou na água tranquila quase tão
docemente como num canal. Já não estávamos no
mar, e de cada lado, muito ao longe, percebíamos
margens arborizadas através da névoa matinal;
entráramos no Tamisa.
- Eis-nos na Inglaterra - disse eu a Mattia.
Ele porém recebeu mal esta boa nova e deitou-se
ao comprido no convés, replicando:
- Deixa-me dormir.
Como eu não enjoara durante a travessia, não
tinha vontade de descansar; acomodei Mattia para
que ele estivesse ali o melhor possível e, trepando
para os caixotes, sentei-me no mais elevado com Capi
sobre os Joelhos.
De lá eu dominava o rio e podia ver para todos os lados;
à direita estendia-se um grande banco de
areia que a espuma franjava de branco, e à esquerda
parecia que se ia entrar de novo no mar.
CAPÍTULO 33.
A FAMíLIA DRISCOLL.
resposta a Isso.
- Não sabes Inglês? - Indagou meu pai.
- Só sei francês e também italiano por o ter
aprendido com um mestre a quem Barberin me alugou.
- Vitalis?
- Pois sabe?
- Foi Barberin que me disse o seu nome, quando
há tempos fui a França para te procurar. Mas deves
estar cheio de curiosidade por saber a razão pela qual
não fizemos buscas para te encontrar durante treze
anos e de repente tivemos a Ideia de procurar Barberin.
- Oh! Estou muito curioso, sim senhor, muito curioso.
- Anda para junto do lume, que eu vou contar-te Isso.
Ao entrar, encostara a harpa à parede; desafivelei
o saco e fui tomar o lugar que me haviam indicado.
Então, como estendía as pernas Belas de lama e
molhadas em frente do lume, o avô fungou para o
meu lado sem dizer nada, mais ou menos como um
gato encolerizado; não precisei de outra explicação
para perceber que o Incomodava, e então retirei as pernas.
- Não faças caso - aconselhou meu pai - o velho
não gosta que se coloquem defronte do seu braseiro
mas, se tens frio, aquece-te. Ninguém se Incomode
por causa dele.
Fiquei espantado de ouvir falar assim daquele
ancião de cabelos brancos; parecia-me que, a fazer
caso de alguém, devia ser precisamente dele; conservei, pois,
as pernas debaixo da cadeira.
- És o nosso filho mais velho - disse-me meu pai.
- e nasceste um ano depois do meu casamento com
tua mãe. Quando casei com ela, havia uma rapariga
que se lhe meteu na cabeça que eu a tomaria por
mulher e a quem o meu casamento inspirou um ódio
feroz contra aquela que ela considerava como rival.
Foi para se vingar que no próprio dia em que fizeste
seis meses ela te raptou e levou para França, onde
te abandonou numa rua de Paris. Fizemos todas as
buscas possíveis, mas sem irmos a Paris, pois nunca
podíamos supor que te haviam levado para tão longe.
Não te encontrámos, e imaginávamos-te morto, perdido para
sempre, quando, há três meses, a tal mulher, atingida por uma
doença mortal, revelou toda a verdade antes de morrer. Parti
logo para França e
fui ao comissariado de polícia do bairro onde foras
abandonado. Lá disseram-me que tinhas sido adoptado por um
operário de Dreuse, o mesmo que te encontrara na rua, e
então dirigi-me a Chavanon. Barberin Informou-me que te
alugara a Vitalis, um músico ambulante, e que percorrias a
França com este. Como eu não podia ficar em França a
Investigar onde estava Vitalis, encarreguei disso Barberin e
dei-lhe dinheiro para Ir a Paris. Na mesma ocasião
recomendei-lhe que avisasse os meus advogados,
Greth e Galley, se por acaso te encontrasse. Se lhe
não dei este endereço é porque só habitamos Londres
no Inverno; durante o Verão andamos pela Inglaterra
e pela Escócia, por causa do nosso comércio ambulante, com os
carros que temos e toda a família. Compreendo que te aches
aqui estranho porque não
nos conheces e não nos entendes, como também não
percebemos o que dizes; mas espero que te habituarás depressa.
Certamente me habituaria; não era uma coisa
natural, visto que estava no seio da família, e que
todos aqueles com quem Ia viver eram meu pai, minha mãe e meus
Irmãos?
As belas roupinhas não haviam dito a verdade;
para a mãe Barberin, para Lise, para o pai Acquin,
para os que me haviam socorrido, era uma Infelicidade; eu não
podia realizar o que Idealizara, porque mercadores ambulantes,
e em especial os que moram
num barracão, não devem ser muito ricos; mas, no
fim de contas, Isso pouco importava; eu tinha família; fora um
sonho Infantil Imaginar que seria rico. a ternura vale mais do
que a riqueza; não era de
dinheiro que eu precisava, mas sim de afeição.
CAPÍTULO 34.
CAPÍTULO 35.
«CAPI» PERVERTIDO.
canção napolitana.
- Bem, bem - comentou meu pai. - E Mattia que sabe?
Mattia tocou também um trecho de música no
sabem fazer.
Meu pai traduziu as minhas palavras em inglês, e
pareceu-me que acrescentava quaisquer frases que
não compreendi mas que fizeram rir toda a gente,
até o avô que me piscou o olho várias vezes e exclamou: Fíne
dog, o que significa «belo cão». Mas Capi não ficou orgulhoso
por isso.
- Sendo assim - continuou meu pai -, proponho
o seguinte... Mas antes de tudo é preciso que Mattia
declare se lhe convém ficar em Inglaterra, e se quer
morar connosco.
- DeseJo ficar com Remi - respondeu Mattia, que
era muito mais esperto do que parecia e até do que
ele mesmo pensava.
a tua ama.
Viúva Barberin.
CAPÍTULO 37.
O TIO DE ARTUR.
CAPÍTULO 38.
VÉSPERAS DE NATAL.
CAPÍTULO 39.
VÉSPERAS DE NATAL.
CAPÍTULO 40.
OS RECEIOS DE MATTIA.
O policeman aproximou-se:
- Este cão pertence-lhe, não é verdade?
- É meu, sim.
- Então está preso.
E a mão dele agarrou-me no braço fortemente.
As palavras e o gesto do guarda fizeram levantar
Bob, que avançou para nós:
- E porque é que prende este rapaz? - perguntou ele.
- É Irmão dele?
- Sou amigo
- UM homem e um pequeno, entraram esta noite
na igreja de Saint George por uma janela, com o
auxílio duma escada; tinham consigo este cão para
lhes dar sinal se alguém aparecesse e os descobrisse,
o que aconteceu; na precipitação da fuga não levaram, nem
tiveram tempo de levar o cão com eles pela Janela onde se
safaram, e o animal, como os não pudesse seguir, foi
encontrado na igreja; eu tinha a certeza de descobrir os
ladrões por meio do cão. Um Já cá está. Onde está o pai?
Compreendi o que se passara; ou pelo menos,
adivinhava. Não era para ficar de vigia aos carros
que Capi fora requisitado. Era porque tinha o ouvido
apurado e poderia advertir aqueles que estariam a
roubar a igreja. E não fora só pelo prazer de Ir pernoitar ao
Albergue do Carvalho Alto que Driscoll partira ao anoitecer.
Se ele não estava nessa estalagem é porque o roubo tinha sido
descoberto e porque precisava de fugir o mais depressa
possível. Não devia pensar nos culpados, mas sim na minha
pessoa; quaisquer que fossem eles, eu podia defender-me, e,
sem os acusar, provar a minha Inocência; apenas tinha que
dizer o que fizera nessa noite.
Enquanto eu raciocinava assim, Mattia, que ouvira
o polícia ou o clamor que se elevara, saiu do carro e,
coxeando, aproximou-se de mim.
- Diga-lhe que não sou culpado - disse eu a Bob - visto
que fiquei consigo até à uma hora da manhã.
Em seguida estive no Albergue do Carvalho Alto onde falei ao
estalajadeiro e voltei logo para aqui.
Bob traduziu as minhas palavras ao policeman;
mas este não pareceu convencido como eu esperara,
antes pelo contrário:
- Foi à uma hora e um quarto que se Introduziram na
igreja - disse ele. - Se este garoto partiu daqui à uma hora
ou alguns minutos antes, como ele pretende, podia estar na
igreja à uma e um quarto com os gatunos.
- Leva-se mais dum quarto de hora daqui à cidade -
retorquiu Bob.
- Oh! A correr, chega-se depressa -
replicou o guarda. - Além disso, quem me prova que ele saiu
daqui à uma hora?
- Eu, que o juro - exclamou Bob.
- Oh! Você! Ainda se está para ver o que vale o
seu depoimento.
Bob zangou-se.
- Lembre-se que sou um cidadão inglês - disse
ele com grande dignidade.
O polícia encolheu os ombros.
- Ele me insulta - replicou Bob - escreverei para
o Times.
- Entretanto, levo o rapaz comigo e ele explicar-se-á em
presença do magistrado.
Mattia lançou-se-me nos braços e imaginei que
era com o fim de me beijar: porém Mattia era mais
prático do que sentimental, ou antes, deixava o sentimento
sempre para o fim.
- Coragem - disse-me ele ao ouvido. - Não te
abandonaremos.
E só depois é que me beijou.
- Prende Capi - disse eu em francês a Mattia.
- Não, não - disse ele-, - eu fico com o cão. Fez-me
encontrar este, também fará descobrir os outros.
A prisão onde me encarceraram não era uma
prisão a fingir como a outra que tínhamos encontrado
atulhada de cebolas; era uma verdadeira prisão
com grossos ferros na janela, e cuja vista matava
logo pela raiz qualquer projecto de evasão. O mobiliário
compunha-se de um banco e de uma cama. Deixei-me cair
sobre o banco e fiquei para ali a
pensar na minha triste situação, mas sem resolver
nada, pois não estava em estado de juntar duas ideias
e passar de uma a outra.
Como o presente era terrível, como o futuro se
apresentava assustador!
«Coragem», dissera-me Mattia, «não te abandonaremos»; mas
que podia uma criança como Mattia? Que podia um homem como
Bob, se este estivesse na
disposição de ajudar Mattia?
Fui até à janela e abri-a para observar os varões
de ferro que se cruzavam pelo lado de fora: estavam
chumbados na pedra; examinei as paredes, tinham
perto de um metro de espessura; o chão era coberto
de grandes lajes; a porta, via-a eu forrada de uma
chapa de ferro.
Voltei à janela: dava para um patiozinho estreito
e comprido, limitado por um muro que tinha pelo
menos quatro metros de altura.
Evidentemente ninguém se escapava daquele cárcere, mesmo
com a ajuda de amigos devotados. Que pode a dedicação, a
amizade, contra a força das
coisas? A dedicação não fura as paredes.
Ser-me-ia possível defender sem lançar as culpas
sobre aqueles que eu não queria, que não devia
acusar?
Esta angústia, juntamente com todas as outras
que eu sentia, impediram-me de dormir, embora me
sentisse ainda fatigado da véspera; Impediram-me
de tocar nos alimentos que me trouxeram; mas, se
pus de lado a comida, outro tanto não aconteceu com
a água, pois tinha uma sede ardente. Durante todo
o dia recorri à bilha de quarto a quarto de hora, bebendo
grandes goladas, sem conseguir matar a sede nem diminuir o
gosto a fel que me enchia a boca.
BoB.
CAPÍTULO 42.
O CISNE.
CAPÍTULO 43.
CAPÍTULO 44.
EM Família.
PASSAraM-SE anos - muitos mas rápidos, visto
serem preenchidos de dias felizes e agradáveis.
Habito neste momento na Inglaterra, em Milligan-Park, o
solar de meus pais. A criança sem família não só tem
agora mãe e
Irmão que a estimam e a quem ama, mas também
tem antepassados que lhe legaram um nome honrado no seu país
e uma grande riqueza. O pequeno miserável, que tantas
noites dormiu
nos celeiros, nos estábulos, ou ao relento no canto
de um bosque, é presentemente o herdeiro de um
velho castelo histórico que os curiosos visitam e os
guias recomendam.
Fica situado a umas vinte léguas a oeste do local
onde embarquei, perseguido pela polícia, na meia
encosta de um vale muito arborizado apesar da
vizinhança do mar.
É neste velho solar de Milligan-Park que vivemos
todos em família, minha mãe, meu irmão, minha
mulher e eu.
Há seis meses que nos Instalámos aqui.
Vamos baptizar o nosso primeiro filho, o meu
filho, o pequeno Mattia, e por ocasião desse baptismo,
reunirei no solar de meus pais todos aqueles que
foram meus amigos dos maus dias passados.
Só um faltará a esta festa-pois por muito
grande que seja o poder da riqueza, ela não pode dar
vida aos que morreram. Pobre e querido velho mestre, como eu
ficaria feliz em te assegurar o descanso na velhice! Em Paris,
no cemitério Montparnasse, o
nome de Carlo Balzani está inscrito no jazigo que
a minha mãe, a meu pedido,,ergueu para ti; e o busto
de bronze, esculpido conforme os retratos publicados
no tempo da tua celebridade, recorda a tua memória
àqueles que te aplaudiram. Não te esqueci, nem esquecerei
jamais, tem a certeza disso. E durante a festa o teu lugar
será piedosamente reservado: se não me vês, ver-te-ei eu.
Aí vem minha mãe que avança na galeria dos
retratos; continua tal e qual como quando me apareceu a
primeira vez na varanda do Cisne, com o seu ar nobre, tão
cheio de doçura e de bondade; mas a
melancolia, que então lhe sombreava o rosto, desvaneceu-se
completamente. Chega apoiada no braço de Artur, pois
agora já
não é a mãe que sustém o filho débil e cambaleante,
é o filho, que se tornou num belo e vigoroso rapaz,
quem, com afectuosa solicitude, oferece o braço à
mãe; pois ao contrário do prognóstico de meu tio
James Milligan, o milagre realizou-se: Artur venceu
a doença.
Alguns passos atrás deles vejo aproximar-se uma
mulher velha, vestida como uma camponesa de
França, que trás nos braços uma criancinha embrulhada numa
capa branca; a velha camponesa é a mãe Barberin e o nené é o
meu filho, o meu pequeno
Mattia.
Depois de encontrar minha mãe, quis que a mãe
Barberin ficasse connosco; não aceitou a proposta,
dizendo-me nessa ocasião:
- Não, meu querido Remi, o meu lugar não é em
casa de tua mãe. Deixa-me voltar para Chavanon,
o que não quer dizer que a nossa separação seja
eterna. Vais crescer, casar, e hás-de ter filhos. Então,
se quiseres, e se eu ainda for viva, voltarei para
junto de ti para ajudar a criar os teus filhos. Não
poderei ser ama deles como fui tua, pois nessa altura
serei velha, mas a velhice não Impede de cuidar bem
de uma criança.
Fez-se o que a mãe Barberin desejava: pouco
tempo antes do nascimento do meu filho, foram
buscá-la a Chavanon, e ela abandonou tudo - a casa dela, os
amigos, a vaca, filha da outra que lhe oferecêramos -para vir
viver connosco. O nosso pequeno Mattia é amamentado pela mãe,
mas
quem cuida
dele, quem, o diverte e lhe faz mimos é a mãe Barberin, que
declara a toda a gente que nunca viu criança tão linda como
aquela.
Artur traz na mão um número do Times; coloca-o
na minha mesa de trabalho e pergunta-me se já o li.
Perante a resposta negativa aponta com o dedo uma
notícia do correspondente de Viena, que eu traduzo:
«Dentro de alguns dias, Londres receberá a visita
de Mattia; apesar do extraordinário êxito que a
série dos seus concertos obteve aqui, ele deixa Viena,
chamado à Inglaterra por compromissos a que não
pode faltar. Já aqui falámos dos seus concertos; produziram
grande sensação, tanto pela originalidade e poder de expressão
do virtuoso, como pelo talento
do compositor; para dizermos tudo em poucas palavras, do
violino.» Mas, Mattia é o Chopim, não tenho necessidade deste
artigo para saber que o pequeno músico das ruas, meu camarada
e aluno, se tornou num grande artista.
Neste momento um criado entrega-me um telegrama que
acabam de trazer.
«Esta é talvez a travessia mais curta, mas não a
mais agradável. Aliás, haverá alguma agradável por
mar? Seja como for, estive tão enjoado que só em
Red-Hill arranjei forças para te prevenir. Passei em
Paris e trouxe Cristina. Chegaremos a Chegford às
quatro horas e dez minutos. Manda uma carruagem
ao nosso encontro.
Mattia.»
FIM
***
EM FAmílIA
HECTOR MALOT
PORTUGáLIA EDITORA
LISBOA
Data da Digitalização