Romance Chiquinho
Romance Chiquinho
Romance Chiquinho
CHIQUINHO
Autor: Baltasar Lopes
© Edições Calabedotche – S. Vicente
Composição: Burótica de S. Vicente, Lda
Impressão e Encadernação: Gráfica do Mindelo, Lda
Tiragem: 3.000 exemplares
CHIQUINHO
BALTASAR LOPES
CHIQUINHO
Romance
À memória dos meus pais
e do meu irmão Augusto
Corpo, qu’ê nêgo, sa ta bai;
Coraçom, qu’ê fôrro, sa ta fica…
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Conheci bem Papai em casa, apesar de ele ter embarcado pela
primeira vez para a América andava eu por cinco anos. Mesmo
depois de ausente, ele era uma presença constante na nossa casa.
Bastava olharmos para a mobília americana, o gramofone, os
quadros na parede, para sentirmos Papai assistindo connosco,
embora tão longe. Mamãe dizia-nos que Papai não pensava em
embarcar:
— Não sei como lhe deu aquilo na cabeça...
Foi quando da seca de novecentos e quinze. Os sequeiros não
deram nada e no regadio a água quase secou. Ao tempo éramos só
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dois filhos, eu e Lela, porque Nina que era depois de mim, morreu
com três anos. Lela era menino de mão quando Papai embarcou.
Mamãe lamentava sempre a morte daquela única filha:
— Hoje eu teria quem me ajudasse no governo da casa.
Quando Papai viu o tempo tão ruim, disse à minha mãe:
— Maria, eu preciso dar uma ordem na vida. Este tempo não
está capaz...
— Ordem de que maneira, criatura?
— Estou pensando em embarcar para a América.
Mamãe quis dissuadi-lo.
— Não, menina. Precisamos criar esses meninos. Hortas não
estão dando nada.
O grande amigo de Papai era nhô Roberto Tomásia. Nhô
Roberto concordou:
— Eu também, se fosse como você, embarcava, António
Manuel... Felizmente não tenho filhos...
Todo o mundo dizia que Papai era um chefe de família
exemplar. E todos da casa muito unidos. Apenas com titio Joca,
Papai teve durante algum tempo seus dares e tomares por causa de
uma horta que titio licitava quando, muito mais tarde, combinaram
partir a herança do meu avô materno. Mamãe contava que viveu
mortificada por ver aquela zanga do irmão com Papai, tudo por via
de uns casais de terra.
— Partilha dá sempre agravo.
Mas quando foi da grande doença de Papai, titio levantou-se
da Praia Branca e não largou a cabeceira do doente, dando ordens
como o único homem da casa. A zanga acabou-se.
Mamãe referia constantemente:
— António Manuel é um burro de trabalho.
Papai andava sempre para riba e para baixo, ora no trabalho
das hortas, ora no trafêgo da vida, conforme Deus fosse servido.
Rico não era porque não estava na linha do destino, mas, na
filosofia de Mamãe-Velha, maior ainda que as riquezas do mundo
era a consolança de sentir o coração limpo e a cabeça livre de
pensamentos de maldade. Quando voltava das hortas, de tardinha,
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A noite tinha para nós o atractivo das histórias. Depois da ceia,
Mamãe arrumava tudo e lavava a cara a Lela e Nanduca. Já não
havia o receio de sairmos para a cabritagem da rua. Àquela hora
tolhia-nos o medo do escuro. A cena era sempre a mesma. Mamãe-
Velha postava-se diante do altarinho armado ao canto da casa, e ali
desfiava as suas orações. Não esquecia nunca dois Padre-Nossos
pela segurança dos que andam sobre as águas do mar, a trabalhar no
braço da Virgem Maria, e três Padre-Nossos e dois Gloria-Patri por
alma do irmão, morto na flor da idade, de uma dor posteimosa que
não cedera nem ao leite de figueira brava nem ao cáustico
confortativo. A data da morte era lembrada num quadro orlado de
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Pitra Marguida era o homem e o palhaço da casa. Cabriolava,
ágil como um gato. Mamãe fechava os olhos quando Pitra
começava a mostrar as suas habilidades, o corpo todo
contorcionando-se.
— Faz aflição, Pitra, pareces uma cobra, Deus te salve, com
esse corpo todo dobregado...
Mas Pitra continuava, como se nada tivesse ouvido. Quando
queríamos divertimento, subornávamos Pitra com tabaco que íamos
furtar na despensa. Titio Joca, as vezes que vinha ao Caleijão,
entretinha-se com as suas ginásticas. Pitra era tratado como família.
Afilhado de Papai, estava em nossa casa há muitos anos, desde que
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Pitra foi para casa da dona de Tói Mulato. Vi-o nos dias seguintes
sentado nos lugares de conversa, mudo e com ar de pássaro
dado-de-fogo. Dias depois Mamãe mandou-o chamar outra vez para
casa.
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Grande amigo nosso, nhô Chic’Ana. Seu corpo esguio e
balançante era vulto familiar em nossa casa. Ficava de conversa
pegada com Mamãe-Velha, ambos perdidos nas recordações dos
tempos antigos. Nhô Chic’Ana saboreava lentamente o café da hos-
pitalidade. O cachimbo sempre aceso. Todo ele era solicitude pelos
interesses da minha gente: notícias de Papai, quando é que ele
voltava para as ilhas.
Nhô Chic’Ana trabalhava uma horta nossa na Chã de Marcela.
Apesar de velho não desperdiçava um dia de trabalho no tempo das
águas. Na época seca não deixava que as freiras invadissem a
hortinha. Nos seus braços descarnados ainda havia força para
manejar o ferro das roçadas. Mamãe não queria outro trabalhador
para a horta:
— Não é por você estar presente, mas tomara que todos
tivessem tanto luxo em trabalhar uma horta, nhô Chic’Ana.
Mamãe insistia por que ele tomasse também de-meias o
tapadinho de baixo. Mas nhô Chic’Ana recusava sempre. Dois
casais de terra eram muita horta para um velho como ele, que só
contava com a filha e com uma ou outra pessoa que ela ganhasse
em mão-trocada. Nhô Chic’Ana queixava-se da escassez. Tanto
trabalho, e no cabo só se colhetavam alguns leios e balaios de
milho solto, que não botavam fora direitamente todo o tempo seco.
Arrependia-se de não ter continuado a vida de marinheiro. Eu tinha
sempre interesse em ouvi-lo falar das terras que conhecera.
— Por que é que você largou o mar?
— Já não podia ver as águas chegando e eu no mar, menino.
Era marinheiro enquanto não via as rochas das ilhas pintadas de
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branco. Largava tudo e vinha fazer as águas. Até que me casei com
Nhanha e vim morar de vez na casinha do Campo.
Mas o velho agora arrependia-se:
— Fiz mal em não seguir os conselhos de Totone Menga-
Menga...
— Que lhe dizia Totone?
— Totone dizia-me que desembarque é que matou embarque.
— Ainda hoje, se você encontrasse jazigo, embarcava outra
vez...
— Já não tenho pernas para aqueles caminhos, rapaz... Mal
que eu fiz em não ouvir o que Totone me dizia...
Nhô Chic’Ana esquecia o cachimbo pensativamente. Os seus
olhos fechavam-se, morrendo com o lume do seu canhoto. O
mistério que envolvia Totone Menga-Menga adensava-se na minha
imaginação. Era sempre com gravidade que falavam no velho
Menga-Menga.
— Você fala muito com Totone?
— Há tempo como areia que o não vejo. Eu não posso mais ir
no Chamiço, e Totone nunca sai da sua casa.
A minha curiosidade irrompia de súbito:
— Explique quem é Totone, nhô Chic’Ana...
— Ninguém sabe, Chiquinho... Ele próprio não diz nada à
gente. Ninguém lhe conhece parentes.
— Qualquer dia, Mamãe dá-me licença e eu vou com Tói
Mulato ver Totone Menga-Menga...
— Se é para o explorares não vás, que Totone lê no coração da
criatura. Se queres ir, para ele te dar bons conselhos, então sim,
porque as palavras de Totone tornam clara a alma da gente.
Apesar do respeito quase supersticioso que eu tinha pelo nome
lendário do velho Totone, esbocei uma dúvida. Nhô Chic’Ana
sentenciou:
— Olhos de lagarto da terra nunca podem receber a bênção do
nosso papai sol...
Mamãe-Velha repreendeu-me:
— Totone Menga-Menga é um sábio. Seu coração é muito
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Tói Mulato era o mais puro de todos nós. Na escola, a cada
momento, aparecia um a conclusar o companheiro ao Sr. Carvalho:
— Professor, Joca Cuscús está-me fazendo cócegas, não me
deixa acabar a cópia...
Todos pediam constantemente licença para irem lá fora fazer
um serviço. Tói Mulato não. Nas nossas questões, ele era sempre o
mais velho. Pegávamos queda, brigávamos de boca, mas ao chegar
Tói Mulato acabava tudo.
— Porquê vocês estão brigando?
E bastava a sua presença para irmos muito amigos, esquecendo
a guerra, jogar a reianata. Algumas vezes, Tói Mulato aparecia com
um brilho estranho no olhar. Já sabíamos que ele tinha estado a
ouvir nhô João Joana falar das terras longe por onde o velho
marinheiro navegara. E nas nossas corridas de barcos de purgueira
no tanque de António Gegê, a sua galera “Valkária” é que chegava
aos portos mais distantes, de gentes cujas mulheres tinham os olhos
verdes como o limo do mar e cabelos que se aloiravam à lua, como
as sereias que se penteiam nos fios de chuva peneirados por entre o
sol. Tói queria é que alguém lhe tatuasse no peito uma moça-do-
mar igual àquela que nhô João Joana tinha no braço.
Às vezes, nas noites de lua, fugíamos à vigilância da casa e
íamos vaguear pelo Campo da Preguiça. Eu largava para trás as
histórias da velha Calita. O luar dissipava a cortina de medo que me
trancava dentro de casa ao ouvir os casos tenebrosos de feiticeiras e
de velhas que engordavam meninos em caixas de madeira, para os
comerem.
— Meu netinho, deita o dedo mindinho de fora para eu ver se
estás gordinho...
E havia mocinhos sabidos que botavam de fora um rabo de
lagartixa. Logo a velha acreditava na magreza do netinho:
— Ui, meu netinho, estás magro como cação! Come e
engorda, Pelamba...
Tói Mulato não queria que fôssemos desmamar os bezerros
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Algumas vezes, depois da ceia, quando Mamãe-Velha estava
de maré e o seu cabecear sonolento tardava em vir, revezava com
nha Rosa Calita e contava coisas e loisas que tinha visto e ouvido.
Serviam-lhe de pontos de referência o ano da Ventona e a Cólera.
— Naquele ano encheram-se os cemitérios e tiveram de fazer
enterros fora do sagrado.
Ela era ainda menininha, mas tinha na lembrança os horrores
daquela quadra maldita da Cólera. Na mesma casa morriam três e
quatro pessoas num dia. Não havia lei, nem rei, nem roque. Os
homens sãos tinham-se tornado verdadeiras feras sem entranhas.
Alguns, quando iam enterrar os mortos, levavam logo de uma vez
os moribundos e os sepultavam, para pouparem o trabalho de lhes
irem dar terra no dia seguinte. Assim, muita gente foi enterrada
viva. Os que tinham posses fugiam da Estância para os pontos do
interior onde supunham estar mais a salvo da moléstia. Saíam à
noite, para evitarem os ardores do sol, e era uma verdadeira
procissão — homens, mulheres, crianças transidas de medo, e as
sombras silenciosas dos negros com a carga à cabeça. Muitos ne-
gros foram feitos forros então. Cheios de pavor perante a ideia da
morte, os senhores livraram-nos dos trabalhos suados nas planta-
ções de milho e hortas de mandioca.
Grande negreiro era nhô Maninho Bento, capitão de navios de
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Meu tio Joca era uma espécie de filósofo, que vivia lá para a
Praia Branca, com uma lojinha. De tempos a tempos, aparecia-nos
ele no Caleijão com uma barba de meter-menino-medo. Assim que
chegava, sentava-se à porta da casa e pedia logo um seca-suor.
Mamãe-Velha brigava sempre:
— Joca, quando é que deixas esse vício da bebida?
Mas titio não se ralava. Ouvia pacientemente os ralhos de
Mamãe-Velha e por fim levantava-se e ia ele mesmo buscar a
garrafa no armarinho. Mamãe vivia apoquentada por ver o irmão
cair tão frequentemente na bebida. Pedia-lhe por tudo que não
abusasse, para não estragar a saúde e mortificar os parentes.
Uma ocasião titio trouxe consigo um rapazotinho dos seus dois
anos:
— Mamãe, eu trouxe você este menino para você abençoar...
— Quem é a gente dele?
— É seu neto...
Mamãe-Velha fartou-se de desonrar tio Joca por se estar a
encher de filhos naturais.
— É planeta que está mandando, mamãe... Dê a sua bênção ao
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menino...
Titio Joca, desta vez, resolveu passar alguns dias connosco.
Mamãe gostou do rapazotinho e ofereceu-se para o criar.
— Ao menos, este há-de crescer entre gente, há-de ter modos,
e não estar com os teus maus exemplos nos olhos...
Um dia titio apanhou uma grande fusca com os amigos na
Água-do-Canal. Chegou em casa numa grande cantarola. Já mesmo
antes de ele entrar no portal ouvimos a sua voz desafinada que
procurava acertar uma cantiga qualquer.
— Pronto, lá vem Joca a andar no arame...
Mamãe deu-lhe uma chícara de café forte com sal. Titio
dormiu como um justo. Quando acordou pediu um grogue.
— Tens coragem de beber mais depois daquele naufrágio,
Joca?
Chegou nhô Roberto Tomásia, que foi direito ao quarto onde
titio estava deitado ainda. Mamãe e Mamãe-Velha conferenciavam
lá fora. Momentos depois apareceram com o copito de aguardente.
Tio Joca bebeu; mas dali a nada estava ele todo ansiado, dizendo
que tinha o estômago revolto. Depois vomitou as tripas da barriga.
Ficou furioso quando percebeu que lhe tinham posto coisa no
grogue para o tirarem da bebida. Foi um levante dos diabos. Tia
Joca, de ordinário tão bonacheirão, nem parecia a mesma pessoa.
Sarou logo da bebedeira. Vestiu-se e, sem uma palavra de
despedida, pegou o filho e abalou na mulinha para Praia Branca.
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Além de outras cabeças largadas na Galhana e na Praia dos
Garfos, tínhamos sempre vacas paridas no Campo da Preguiça. Eu
é que as ia arrelhar. Era trabalho de menino, arrelhar. Pitra
Marguida ficava para outros serviços. Íamos para o Campo em
bando. Cada qual levava o seu farnel de farinha-de-pau, milho
aliado ou batata assada. No campo os animais pastavam dispersos,
conforme as conveniências do pasto escasso de mané-gatinho e
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Quando caíam as chuvas, acabava-se para nós a vida boa de
malandrear pelo Caleijão depois das horas de aula. A terra exigia o
seu tributo desde os primeiros anos. Gozávamos largamente a nossa
liberdade no tempo seco, porque já sabíamos que nas as-águas o dia
todo era para as hortas. A enxada esperava gulosamente os seus
párias. Enxadinha curta encabada em ramo de laranjeira, lá tinha a
meninência com que se entreter o dia todo, puxando ao sol como os
mais velhos.
O trabalho mais leve era a guarda do corvo. Eu, que não
lombava na enxada, tinha também de ir para a guarda. O dia todo,
enchíamos o ar com os nossos gritos, espantando as aves. Os
mocinhos gozavam aquela liberdade, na antecipação dos trabalhos
pesados mais para diante.
Quando caía molha boa, a terra renascia no verde das
plantações. A erva tenra encabritava-se na pressa de aproveitar a
humidade. A vitalidade renascente da terra acordava a bicharada do
seu torpor dos meses da estação seca. Rasteiras, alapardadas entre
as ervas e moitas da lantuna, as codornizes orquestravam o seu
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Uma rapariga da Praia Branca chegou com um recado de tio
Joca para se mandar gente assistir à colheita de milho na horta da
Covoadinha. Mamãe-Velha decidiu que era melhor eu ir com Pitra
Marguida, e passar uns tempos com meu tio. Precisava de mudar de
ares, a ver se ganhava mais carnes no corpo. Além disso, a minha
ida era uma mensagem de reconciliação.
Tenho ainda presente na minha retina aquela paisagem agreste
do Canal da Fragata, a terra coberta de barba-de-bode, os picos das
rochas a quererem cair sobre a cabeça da gente. Pitra ia-me
indicando os lugares, com os casos que se ligavam a cada um deles:
— Neste fundo uma mula espantou-se por causa de um
cachorro mau, e arrastou o homem por toda a ladeira. Quando o
apanharam já não tinha figura de gente.
Pitra levava um bilhete para tio Joca, em que Mamãe lhe pedia
que não me desse maus exemplos e me pusesse na escola para
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— Vocês leiam!
Toda a classe leu em voz alta. O joão-da-câmara tinha trechos
muito bonitos. O Sr. José Martins ficava de pé no estrado, com o
ponteiro encostado ao ombro, a ouvir a leitura em coro.
— Dick, estás lendo com a voz muito fina. Um homem deve
ter voz de homem...
A sala era pequena e não chegava para tanta gente. Eu, como
era novo na classe, ficava com os outros junto da porta, quase na
rua.
— Maninho, não sabes ainda a lição que te passei anteontem.
Seis palmatoriadas. Nasolino foi cumprir a ordem do
professor. Os rapazes da 3a classe faziam-nos biôco, a troçar da
nossa leitura. Um garoto veio condenar um companheiro que lhe
estava tirando penicos nas pernas. Quatro palmatoriadas. Nasolino
cumpriu. Os decuriões foram tomar lição aos mais atrasados.
— Sr. José, dá licença para eu ir fazer um serviço na rua?
Os alunos do 1.° grau estão em classe. Quando um erra uma
resposta e outro mais para o rabo emenda trocam as colocações.
— O que é o metro?
Um menino foi apanhado por Nasolino a furtar batata assada
da bolsa de um aluno da Ribeira dos Calhaus. O ladrão foi chamado
à presença do professor.
— Menino sem vergonha!
A carinha magra dele torna-se mais miúda perante o exame da
meninência. Doze palmatoriadas.
Mano vai ler. É aluno do 2o grau e tem um joão-da-cambrona
já muito usado. O Sr. José:
— Faz favor de forrar este livro! Menino impossível! É a
terceira vez que te faço esta recomendação! Parece um rolo de
contas em papel de embrulho...
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Depressa arranjei as minhas novas amizades. Tio Joca, apesar
de tão bonacheirão, obrigava-me a ter disciplina. Fez um horário
para distribuição do meu tempo depois de vir da aula, ao meio-dia.
E eu era obrigado a ficar em casa amarrado à mesa a estudar
enquanto ouvia lá fora os meus companheiros assobiando ao
Fragatinha. Tio Joca vinha tomar-me as lições. Eu gostava da sua
leitura, com voz cheia, de nasais muito abertas. Sentia gosto em
ouvi-lo a corrigir-me a pronúncia do meu nome:
— Fràncisco! Assim é que o cónego Coimbra pronunciava...
— Titio, você tem uma leitura muito bonita...
E ele contou-me que tinha sido um bom aluno do Seminário.
Aprendeu a pronunciar com o Cónego Coimbra. Não era para se
gabar, mas como ele não havia para reconhecer e classificar as
figuras da estilística. Os companheiros até lhe puseram o nome de
Joca Metonímia.
— O Cónego Silva era nosso professor de Latim. Sabia o
Virgílio de cor. Quando alguém dava uma silabada ou errava na
tradução, o Cónego Silva arrepelava-se: «Tá quieto, Virgílio! Oh
menino, cuidado! Virgílio está debaixo da mesa a puxar-me pelas
calças... Tá quieto, Virgílio!».
Meu tio entusiasmava-me quando recordava os seus tempos de
latinidade. Ia buscar um virgílio muito bem conservado e
mostrava-me versos.
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O meu horário marcava em grandes letras, para depois da
merenda: RECREIO. Era a minha hora de brincar com os
companheiros na Lajinha. Fazíamos reianata. Escondíamo-nos atrás
dos pés-de-mato e depois fugíamos fazendo ziguezagues, a evitar o
toque que nos mataria. Não gostávamos de Mano, que no dia
seguinte nos ia acusar ao Sr. José:
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Quase todas as noites havia grande jogatina em casa do meu
tio Joca. Nhô José Francês era rixado com titio no jogo:
— Joca, tu roubas de mais...
O gorita-e-pau jogava-se com mais compostura. O jogo exigia
lealdade. Ninguém podia procurar enganar os adversários, senão a
partida era nula. Havia um homem de cara bexiguenta, muito
sorteado no 31. Quando batia as cartas na mesa e dizia
triunfantementes «três reis», eu sentia uma grande raiva dele a
ganhar ao tio Joca.
Nos dias em que não havia jogo e meu tio saía, eu aproveitava
para ir com os companheiros mamar as vacas no campo da Boca da
Ribeira. José Zeferino tinha uma vaca muito leiteira chamada
Brasina. Depois deitávamo-nos de barriga para o ar, namorando o
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Fui à Ribeira da Prata assistir a um casamento para que titio
fora convidado. Ribeira da Prata! Este nome soava dentro do meu
coração como um presságio aziago. Era um grito em noite escura
que eu sentia quando evocava os casos que na ilha contavam
daquela ribeira povoada de feiticeiras. Quando disse que tinha
medo de ir, meu tio garantiu-me que tudo eram histórias. Ele, que
já andara ceca e meca, nas horas minguadas da noite, nunca
encontrara coisa ruim. As palavras cépticas do meu tio não conse-
guiram desagregar da minha alma o maravilhoso com que as
contadeiras de histórias povoavam o meu mundo.
Titio Joca foi de véspera para aproveitar o batuque. E com ele
quase todas as famílias conhecidas da Praia Branca. O batuque
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Do Caleijão escreveram bilhete ao tio Joca, pedindo para eu
regressar. Mamãe-Velha não deixou que eu completasse os três
meses previstos da minha estadia na Praia Branca. Tio Joca bem
queria que eu ficasse mais, com certeza pela variante que levara à
sua vida. Dizia-me ele às vezes:
— Ao menos, estando tu cá, entretenho-me a tomar-te as
lições. Assim fico com a certeza de que ainda sei ler...
Era de facto sem horizontes a vidinha que meu tio levava na
Praia Branca, diluindo a sua antiga ilustração, adquirida no
Seminário, na chateza de um viver em que só entravam as partidas
de gorita-e-pau, o movimento da lojinha e as mulheres parideiras
que o enchiam de filhos. Não era sem melancolia e uma rude
censura por si mesmo que meu tio me comentava a sua degradação
actual:
— Fui obrigado a enfurnar-me aqui. Antigamente eu sentia
gosto em ler, tinha a impressão de que o futuro me pertencia.
Gostava de me vestir bem. Andava atrás das raparigas para
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Chegaram navios baleeiros na terra. Correu logo a notícia.
Navio-de-baleia era fartura para a ilha. Os rapazes alvoroçaram-se,
porque todos tinham vontade de ser recrutados. Começaram a
chover pedidos aos encarregados do engajamento, pois o número de
tripulantes de que os navios careciam era menor do que o dos
pretendentes. Desembarcaram para ver a família muitos rapazes que
faziam parte das tripulações. Mas não eram rodeados da admiração
que cercava os americanos de verdade, que voltavam das fábricas e
plantações da América com a algibeira pesada de dólares. Rapaz-
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Chico Zepa, trancador da barca “Wanderer”, veio ao Caleijão
visitar a mãe. Todo o mundo foi salvar Chico. Ele falava muito,
dando gargalhadas altas. A todo o momento metia palavras
americanas na conversa. Chico Zepa fez uma grande festa a nhô
Roberto, que lhe pediu o avacote que Chico lhe tinha prometido.
— Está a bordo...
— Com certeza? Olha que sempre faltaste no estreito ao que
prometeste no largo...
— Juro! nha Guida, como está? e nha Iria, nhô Luís, toda
aquela velhada?
— Rebolando...
Para nha Tudinha:
— Vi seu filho em Providence, Rhode Island. Está bom.
Parece que vem em Outubro.
Nhô João Joana informou-se da América:
— Ainda tem light ship à entrada de Betfete?
— Ainda. Mas agora governo mandou pôr uma bóia de sino
perto do Stream, you know...
— Quando eu assistia por aquelas paragens, era preciso olho
muito aberto. Mas nunca me aconteceu nada, porque o capitão Luís
conhecia toda a costa como a palma das suas mãos.
— Aquilo hoje está muito mudado... Há quanto tempo você
esteve por lá, nhô João?
— Há anos como areia, rapaz. Com certeza ainda não eras
nascido...
— Oh Gee!...
Dei as mantenhas da casa e perguntei notícias do meu pai.
Ganhei uma grande admiração pelos modos desembaraçados de
Chico Zepa, que lhe davam superioridade sobre os outros rapazes.
O que eu sabia da sua infância confirmava esse prestígio que o dis-
tinguia dos moços de enxada. Chico não queria saber de
disciplinas. Não aturava desaforos. Luta em que entrasse, era dele a
vitória. Dizia sempre que não estava disposto a consumir a vida
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Fomos dez que o professor deu para o exame do 2o grau. Tói
Mulato era o primeiro e eu o segundo da aula. O Sr. Carvalho
disse-nos:
— Vão com sossego para o exame, que vocês dois têm
obrigação de apanhar uma distinção.
Tói Mulato andava muito triste por não ter fato novo para
vestir no dia do exame, na Vila. Ele mesmo botou umas chapas nas
calças de cotim militar. Nos últimos dias o professor dava-nos aulas
extraordinárias à tarde, intensificando a nossa preparação em Arit-
mética e História. Levei para Estância calção azul e blusa branca,
em que Mamãe bordou os emblemas da Fé, Esperança e Caridade.
Todos os meus companheiros se reuniram em nossa casa para
irmos juntos para a Vila. Os pais dos alunos connosco. Vestiam os
seus trajos de Domingo, os homens de fatos de casimira, vindos da
América. O meu vizinho demente Cabeça-de-gato-totonha tinha
uma cara triste. Ao irmão de Pimpinha não era dado sentir a nossa
alegria.
À saída da casa, Mamãe-Velha não pôde reprimir uma lágrima
comovida. Jesus, como o tempo se parece com pano-de-pente,
mergulhado em pote de tinta! Agora é uma listra verde, logo
esbranquiçada, tirante a clara de ovo, a seguir afirmando-se para o
azul ferrete do céu depois de chuvada de Setembro.
— Parece que ainda ontem tive Chiquinho nas mãos, nu como
a graça do Altíssimo o mandou para este mundo. Tão miúdo, não
excedia duas mãos-travessas...
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O meu desejo de conhecer Totone Menga-Menga ia
realizar-se. O mistério que o rodeava aguçara a nossa curiosidade
de conhecermos aquele velho, que sentíamos diferente do resto da
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Vivíamos todos na esperança das as-águas. Depois das
colheitas limpavam-se as hortas da palha de milho e dos feijoeiros
já secos. Em alguns lugares mais frescos invernavam as
aboboreiras. Ficavam de ano a ano, parindo os botões mais cedo,
sem a preocupação da capadura justamente na época em que a
monda ocupa todo o mundo. Com Abril chegava o tempo de brocar
e assentar covas. A época seca permitia pouco lazer. Trocava-se a
enxada pelo ferro das brocas e roçadas de freira. Mamãe-Velha não
largava Pitra da mão:
— Pitra, precisas arranjar gente para assentar covas em Trás de
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Picos...
— Lá tem trabalho feito outrano, nha Júlia. Estou pensando
que é melhor abrir mais horta na Portela...
— Faz o que eu digo, atrevido! Eu é que mando!
Mamãe-Velha não queria convencer-se de que não era com as
suas descomposturas que o trabalho se fazia. Não abandonava os
seus gritos de dono autoritário. Não tinha brincadeira com a horta
de Trás de Picos. Para ela todo o nosso esforço agrícola se
concentraria lá. Volta e meia estava ela a dizer, com o braço
estendido:
— Aquela horta é sagrada... Foi comprada com dinheiro ganho
de-riba da água do mar...
Em matéria de trabalho só ouvia com nhô Roberto Tomásia.
Caturravam se se devia fazer isto, se aquilo. Nhô Roberto ouvia
pacientemente as razões de Mamãe-Velha, mas, no fim, a sua
opinião acabava por vencer. Mamãe consentia sem resistência
aquela autoridade aparente. Deixava que a mãe ordenasse tudo, e ao
cabo dava contra-ordem. Minha avó não dava por isso. Ela
precisava apenas daquela ilusão de actividade.
Logo no mês de Julho começavam as sementeiras em seco.
Semeava-se o milho com pedras arrumadas sobre as covas para
impedir que os corvos fossem desencovar. Nas terras altas o milho
nascia mais cedo, com os primeiros borrifos. Nhô João Joana tinha
uma horta na Cruzeta. No terreno fresco, os coquinhos-de-milho
vinham mais depressa. Dias depois das sementeiras passava ele
pela nossa porta.
— Que tal Cruzeta, nhô João?
— Milhinho bonito. Não é para me gabar, mas como Cruzeta
não tem. Nossenhor andou por lá...
Nhô João animava todo o mundo. A chuva geral não tardaria
nas baixadas. A névoa já tinha guindado no Morro Bissau.
— Chuva está de-riba de nós...
Dava uma semana para cair uma boa rega. Tanto mais que a
linha do mar estava clara. E nhô João dizia que quando era
marinheiro conhecia chuva nas terras das ilhas só pela clareza do
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CHIQUINHO
mar:
— Mar branco e névoa no céu como algodão sujo é vestir o
avacote, que a chuva não tarda em molhar o convés.
Nhô João não era capaz de falar sem meter o mar nas suas
conversas. Tinha-lhe um amor quase supersticioso. Abaixava a
cabeça e dizia, de braços estendidos em direcção ao mar:
— Não tenho brincadeira com aquele tanque grande...
E explicava que quase tudo o que tinha comprara com as
soldadas ganhas no mar.
— Dinheiro sagrado, velha...
— Eu sei, nhô João. O falecido foi assim que adquiriu o que
nos deixou.
— Moço direito, velha. Encontrámo-nos uma vez em Oeste
Índia. Estávamos perdidos do companheiro havia um ror de tempo.
Não calcula a alegria que a gente sente quando encontra um filho-
das-ilhas nessas terras longe. A gente sente uma saudade... Também
não queira saber o batifundo que fizemos ambos dois. Você não
tem ciúmes, não, nha Júlia?
E nhô João ficou rindo.
— Não tenho, não. Ele nunca me faltou com nada. Pena ter
morrido tão novo, sem gozar direitamente o seu trabalho.
— Estou-me lembrando, velha. Eu estava a pescar baleia no
sul. Quando voltei para a América soube que o navio dele tinha
desaparecido em viagem para as ilhas. Aquele ano foi mortal para
os filhos-das-ilhas. Caiu um tempo medonho no golfo. Outro navio
que tinha saído para Cabo Verde, cheio de passageiros e carga,
nunca mais apareceu.
Era a figura do meu avô que ressurgia. Sem o ter conhecido,
tocava muito de perto o meu coração. Gostaria de ser como ele, e
sair a percorrer mares na pesca da baleia, conhecendo terras.
Admirava a sua vida heróica. Havia em casa um quadro que
representava uma cena da pesca da baleia. O mar coalhado daqueles
bicharões e uma canoa investindo a remos. Na proa um homem de
arpão, com o corpo tendido no esforço preparatório do arremesso.
Como aquele avô heróico me parecia diferente dos homens que eu
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BALTASAR LOPES
24
Bibia Ludovina estava com alma. Logo depois da ceia, eu e a
restante meninência ouvíamos na Agua do Canal a conversa dos
maiores quando Pedro Xamento chegou dando a notícia. Bibia
trabalhava na roupa. De repente parou, ficou a bater com os braços
e começou a gritar. Só sabia dizer que a queriam matar.
— Será mesmo alma? — duvidou nhaRosa Calita
Pedro Xamento garantiu. Aquilo era alma, tão certo ele ser
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CHIQUINHO
filho de sua mãe. A voz que falava em Bibia não era de Bibia. Era
uma voz grossa, de homem, e com um tom zangado de capitão por
força. Nhô João Joana veio em reforço de Pedro Xamento. Chegava
mesmo da casa de Bibia, e largou logo a novidade:
— Espírito ruim está cangado em Bibia Ludovina...
— Explique como foi...
— Não estão vendo, gente? O espírito, quando o corpo morre,
deixando alguma culpa ou promessa por cumprir, volta penando.
— Fina Canda morreu de espírito — lembrou nha Rosa. — O
falecido, que Deus haja, viu à hora da morte da Fina um grande
avejão branco levando a alma dela.
Nhô João Joana sabia exortar espíritos. Explicou:
— A vida da criatura é uma luta entre espirituais e corporais.
Espirituais de maldade cativaram os corporais de Bibia Ludovina.
Pediram-lhe pormenores.
— Este que cangou em Bibia não é de brincadeira. Só quer
gritar e descompor toda a gente.
A conversa seguiu no assunto que mais me interessava, almas
do outro mundo. Não que eu fosse destemido, pelo contrário, ficava
cheio de medo quando contavam histórias de finados. Mas sedu-
zia-me o mundo desconhecido que vivia nessas histórias, o
pitoresco aziago das correntes arrastadas, gritos angustiados, choros
alta noite, pedindo orações. Veio-se a falar de uma casa grande em
ruínas que havia no Salto. De memória dos mais velhos, já ela
estava assim abandonada, as telhas de madeira voando ao vento, e
as paredes cobertas de S. Caetano no tempo das águas. Contavam
dela casos tão terríveis, que era o meu maior desejo conhecê-la.
Uma vez que Pitra Marguida ia de jornada para Juncalinho, fui com
ele de propósito para a espiar. Cheguei a sonhar com ela. A casa
cresceu para mim. O seu vulto aumentou do tamanho de um
gigante. Os buracos no telhado eram olhos, negros e medonhos. O
vulto avançou para mim feito um monstro da altura de uma rocha.
Quis correr, mas as pernas ficaram crã, sem obedecer à minha ânsia
de fugir ao abraço terrível. A figura avançava cada vez mais. Eu
sentia a respiração do monstro vassoirar-me o rosto como uma lixa.
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BALTASAR LOPES
25
O que eu via à minha volta não era de molde a reprimir em
mim os gritos da natureza. O amor era assunto que todos tratavam
com um realismo desabrido, sem eufemismos. Izé da Silva, Joca
Cuscús; Mané Pretinho foram os meus professores, em con-
secutivas lições, que eu não aplicava na prática, mas cujos
pormenores perseguiam a minha imaginação. Tornava-me
olheirento. O meu buço despontava atrapalhadamente, como grama
em horta de milho. Com vidro raspava a minha madrugada de
barba. Mamãe-Velha preocupava-se com a minha magreza.
Atribuía aos estudos. Tanta coisa a meter na cabeça. Eu espigava
em altura. Volta e meia, lá tinha Mamãe de botar abaixo as bainhas
das calças e dos casacos. Mamãe-Velha:
— Este moço precisa botar corpo...
E a minha pele se arroxeava das ventosas que me deitavam
para pegar o corpo. Os meus olhos começaram a crescer para as
formas sólidas de Tanha. Eu arranjava sempre pretexto para estar
emburlado nela. Mesmo na cozinha ia chaleirá-la, sentir seu corpo
bem presente, sem coragem para lhe falar francamente. Quando ela
ia levar comida no trabalho, procurava acompanha-la. Não me
faltava justificação:
— Preciso de ver como Pitra está espiando os trabalhadores.
Um dia, num fundo, tive coragem para lhe pegar na barra da
saia. Ela melindrou-se toda:
— Tira a mão! Menino de não-sei-que-diga!
Depois pôs-se a rir. Mas logo a seguir, depôs o balaio na
parede, chegou-me a si e começou a fazer movimentos de quem
dança o S. João. Nessa mesma noite fui pé ante pé ao quarto dela.
Tanha mostrou-se surpreendida. Mandou-me embora:
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BALTASAR LOPES
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Quando chegavam cartas da América eu era requisitado para a
leitura. A minha fama de bom aluno do Seminário fazia de mim o
confidente necessário das intimidades dos emigrados. Eu ia assim
conhecendo a saudade crioula dos filhos-das-ilhas. Tão variadas as
cartas, mas todas elas revelavam a voz do arquipélago chamando
tenazmente os emigrantes para o canto do mundo donde partiram.
Cartas para os pais e procuradores, para comprarem a trincha de
horta em que se havia de levantar a casa coberta de telha de
Marselha e ornada de retratos e óleogravuras com o presidente
Wilson, e a bandeira americana, de 48 estrelinhas paradas ao canto;
cartas para os compadres recomendando os filhos largados na graça
de Deus e na cachupa dos padrinhos; cartas para as namoradas,
mandando o sinal-de-amor que traduzia a esperança do casamento
no ano seguinte, para as novidades. Vinham também retratos para a
ornamentação das paredes e das mesinhas americanas. Eram grupos
em que os crioulos apareciam janotas nos seus fatos de casimira,
grossos anéis nos dedos e cadeia de relógio em curva, sobre o
colete. Geografia sentimental, que situava a América bem perto de
mim. Ela não era a terra que fica lá longe. A América estava ao
alcance da minha mão. As distâncias quase que se anulavam para
aquela intimidade que as cartas estabeleciam com a ilha. Ir para a
América era um passo natural que os filhos das ilhas tinham de dar
para se vestirem com fatos de bom pano, terem relógios e sapatos, e
ganharem dólares para a compra de trinchas de horta e da mulinha
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CHIQUINHO
resistente de jornada.
Assim, a pouco e pouco, ia a distância entrando na minha vida.
Distância tão pouco misteriosa, tão tocada de intimidade, que me
parecia que a minha ilha não parava nos rifes da Ponta da
Vermelharia, antes continuava para além do mar, até abranger a
América toda, reduzida, no sentimento crioulo, à rua onde se
preparava o conchego carinhoso de cada lar.
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Com as aulas no Seminário era cerceada a minha liberdade.
Tinha de ir logo de manhãzinha cedo para a Vila, donde só podia
voltar à tarde, ao lusco-fusco. As obrigações da minha nova vida de
estudante liceal traziam-me um sentimento de restrição, como se a
Vila fosse para mim um lugar de degredo. Parecia-me que eu me ia
separar para sempre daquele mundo que até então enchera a minha
alma. Já não poderia mais sair pelos campos logo de madrugadinha,
como de antes. Àquelas horas, ainda os grilos enchiam o campo
com o seu cri-cri metálico. Enquanto eu esperava o café, sentia uma
vontade desesperada de ir espreitar as codornizes despertarem com
o seu palparate característico da antemanhã:
Pedro Piedade, Pedro Piedade,
béu, béu...
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BALTASAR LOPES
velho tão velho só sabia sair da sua modorra de caduco para nos
contar como se fazia na guerra do Paraguay.
Nhô Loca não falava connosco. Monologava somente. Quando
a sua cabeça caía no assunto que lhe bulia, podíamos fazer tudo,
que ele não dava por nada. Tirante a guerra do Paraguay, o que
sabíamos da sua vida era contado pelos outros. Para o resto o velho
era uma sombra muda.
Ainda muito novo, saiu de S. Nicolau num navio-de-baleia,
para a pesca no sul. Anos como areia andou lá fora. Um dia,
quando já ninguém se lembrava dele, surdiu na ilha, curvado pelos
anos, e com um saco de roupa e uma espingarda velha. Ganhou
fama de maçónico. Quase não falava. A quem o interrogasse só
respondia que voltara para morrer na sua terra. Dava grandes
passeios pensativos, e parecia arrastar no seu passo lento um grande
segredo. Agora era encarregado da criação do Seminário. Questão
de ele se entreter, que o bispo gostava daquelas maneiras apagadas
do velho. À tarde ele era certo atravessando o alto da Cancela, por
cima da Coima, com um grande ar indiferente às coisas desta vida.
Geralmente, às nossas perguntas, só respondia resmungando não se
sabe o quê. Mas bastava falar-lhe na guerra do Paraguay para ele
sentir sangue novo no corpo de velho. Narrava como para si
mesmo, esquecido de que tinha ouvintes. Evocava. Porque tinha
sido voluntário na guerra. Na sua voz de solilóquio passavam todos
os pormenores da luta:
— Naquele dia matei dois paraguaios, pode ser que tenha
matado mais, dois tenho certeza...
A troco de um palmo de tabaco de rolo, passava ele longo
tempo na sua narrativa pegada, esquecido da velhice, e o pito do
cachimbo entalado ao canto da boca.
Eu bebia as palavras de nhô Loca. Quando regressava ao
Caleijão, no desamparo do crepúsculo, as piteiras da Ladeira da
Lapa aprumavam-se ante a minha imaginação, como soldados em
formatura. E à noite sonhava.
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Com o mês de Agosto, derramava-se todo o mundo nas
sementeiras gerais. Quando a chuva de verdade tardava nas
baixadas, o bicho-de-chão dava cabo do milho que rebentara com
os primeiros borrifos. De pais a filhos ia-se transmitindo aquela
esperança sempre renascente no ano agrícola. As as-águas não
deram nada no ano anterior, mas assim que caíam as chuvas não
ficava um palmo de terra por semear. Eu não compreendia aquela
resistência ao desânimo. Para nós os mocinhos, era um trabalho
obscuro, que não tinha a beleza das aventuras que povoavam a
nossa cabeça. De quem gostávamos não era de Mané Péta,
Antoninho Bia e dos outros que lombavam o dia todo no rabo da
enxada. Era de Chico Zepa, o marinheiro, que não queria passar a
sua vida perguntando ao céu se a chuva viria cedo aquele ano.
Todos tinham os seus casais de terra. Trabalhavam nas hortas
dos companheiros, que, em troca, lhes dariam os mesmos dias de
trabalho. Era assim, assistindo-se mutuamente, no sistema de mão-
trocada, que de geração em geração iam aguentando o cativeiro,
levando sempre açoites de Nhanha Terra, dona de uma grande
escravatura. Todos nós éramos escravos. Para ser escravo, bastava
prantar a enxada no chão e partir em viagem para a época das
as-águas com uma grande fé em Deus:
— Nossenhor nos ajude e nos dê boas as-águas...
Vinha o mês das colheitas e quando, quase sempre, Nhanha
Terra não mandava comida bastante para a sua escravatura,
ninguém se revoltava. Nunca morria no coração aquela luzinha que
anunciava que o ano seguinte seria farto. Enquanto não vinham as
colheitas prometidas pelo Lunário, todos se sujeitavam
gostosamente ao alimento de milho aliado e café de milho
queimado. E havia sempre disposição no corpo para dançarem,
tocarem violão e cavaquinho, e amigarem-se, as mulheres parindo
todos os anos nas camas de finca-pé.
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Minha querida irmã do meu coração Ger-
trudes Ana Duarte, S. Nicolau,
Caleijão
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Pela cara que levava, o ano seria de fome. Eu devia andar
pelos meus catorze anos, e não me lembrava de ver tanta miséria
estampada na cara de todo o mundo. Sempre havia falta. Passado o
mês de Fevereiro, era niclitar conforme fosse possível. Os leios de
milho e os balaios de feijão quase nunca botavam fora o tempo
seco. A criatura tinha de apertar o cordel na cintura e arranjar
coragem para encarar o tempo, muito feliz se pudesse ter uma
reserva para os meses das as-águas, enquanto a favinha inglesa não
pintava.
O mês de Setembro, passados os borrifos certos por Nossa
Senhora da Lapa, esteve sem um pingo de água. Com o mês de
Outubro nem contar, que chuva nele é rara como ambargrise. Nhô
João Joana, de ordinário tão animado, abanava a cabeça:
— A coisa está feia...
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Ausente meu pai, nha Nené tratava Mamãe de dinha. Não saía
sem levar alguma coisa para ajuda da comida dos meninos. As
nossas roupas usadas eram para ela enjeitar nos seus filhos. Juloca
estimava-me muito. Da mesma idade que eu, queria que eu fosse
seu padrinho.
— Padrinho como, Juloca, se já és baptizado?
— Padrinho de estimação, Chiquinho...
Nha Nené morava sozinha com os filhos, no Morrinho. Juloca
era o mais velho. Ela não se casou. Mas só conhecera um homem.
— Juloca desgraçou-me. Fez-me os filhos e foi correr mundo.
Nem mantenha nos manda...
Mamãe consolava-a:
— Hás-de ser feliz com os teus meninos. Eles hão-de ser o
amparo da tua velhice...
Apesar de ainda nova, nha Nené parecia ter mais de 50.
— Estás ficando velha cada dia mais, Nené...
— Cuidados do mundo. Se soubesse, dinha, a vida apertada
que eu levo...
E ela, coitada, não descansava. Trabalhava de tudo, consoante
as necessidades.
— O que me consola, dizia nha Nené, é que posso ter a cara
levantada. Ninguém pode dizer tantinho assim de mim... Não
enjeito trabalho nenhum que me dê um auxílio para a criação
desses anjinhos-de-Cristo.
Quando pegava em algum dinheiro, fazia pão, batanca,
fonguinho, e punha os filhos na venda com os tabuleiros. O seu
trabalho de rendas era perfeito.
— Muito mal empregada, a Nené, dizia Mamãe. Tem mãos de
fada.
Juloca não se misturava nas nossas brincadeiras. Não tinha
tempo. Se não saía na palha, para a venda na Vila, cuidava dos
irmãos.
Nha Nené esteve um ror de dias sem nos aparecer. Mamãe:
— Nené deve estar com a irmã no Morro. Como terá ela
passado este tempo ruim?
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Passei cinco anos estudando no Seminário as matérias do
Liceu. Estava com o 5º ano. Latim, História, Geografia, Ciências
Naturais, tudo isto procurava iniciar-me nos segredos da vida que
homens que eu não conhecia criavam fora das pontas e dos rifes da
minha ilha. Fui descobrindo que o mundo não se limitava ao
universo de nha Rosa Calita e à lenda misteriosa do velho Totone
Menga-Menga. Mas continuava extraordinário o seu poder de atrac-
ção. O Chiquinho que a cultura liceal ia modelando não era
substancialmente diferente daquele que namorava as estrelas, pedia
varinhas-de-condão à Lua e desejava ter o braço tatuado, como nhô
João Joana. Eu era matéria plástica que se submetia a todas as
experiências. E todas iam-me deixando seu depósito de sabedoria e
perversão.
O amor, para mim, não passava ainda do apelo físico das
Pimpinha e Nina Zepa, que namorei. Meu coração era como a
menina de cabelos cor de luar que, na história de nha Rosa Calita,
jazia adormecida à espera do príncipe andante que a iria acordar
num dia em que as chuvas caíssem em cordas nutridas, à
semelhança de punho de homem, e os trovões estivessem estalando
grosso, que nem as trombetas do fim do mundo.
Agora eu seguiria para S. Vicente estudar o 6º e o 7º ano no
Liceu. Papai deu ordem e Mamãe e Mamãe-Velha concordaram.
Era justo aproveitar a minha boa cabeça. Em S. Vicente ficaria em
casa de uma nha Cidália em quem nunca tinha ouvido falar.
Mamãe-Velha disse, com o seu abundante recheio de autem genuit,
que nós ainda éramos parentes.
Ficavam-me para trás os campos em que me criei e os
companheiros da minha infância. Mas tinha vontade de conhecer S.
Vicente. Era a ilha que eu sentia da Praia Branca, quando estive
com meu tio para além da cintura do mar. S. Vicente era para mim
a terra em que a civilização do mundo passa em desfile. Estava
farto de ouvir falar no Porto Grande, no seu movimento, nos
vapores de trânsito, nas imagens da Europa que passeiam pela
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S. VICENTE
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Fiquei hospedado em casa de nha Cidália. Ela também me
garantiu que éramos parentes:
— Minha avó era de S. Nicolau. E Eusébio é da tua terra,
apesar de ter vindo criança para S. Vicente.
Gostei da casa, situada no Alto de Miramar. Era um
espectáculo quase novo para mim esse do mar sempre à vista. Eu
vinha de uma ilha em que o trabalho da terra não deixa ver o mar
direito.
Nha Cidália tinha em casa a irmã e os seus três filhos.
Mostrou-me o retrato do marido, tirado na Argentina:
— Repara que Nuninha é a cara do pai. O nariz, então, e a
boca são de Eusébio...
Nené perguntou-me se não lhe trazia nada:
— Dizem que em S. Nicolau tem bananas, mangas, goiabas de
mundo...
— Larga Chiquinho da mão! Não repares. Nené foi sempre
assim ardigado. Agora, então, está impossível. Mas deixa estar que
o vou entoar. Vou mandá-lo para escola. Enquanto ele lá estiver
não nos anda a apoquentar a vida.
Apresentou-me à irmã:
— Alzira, este é Chiquinho. Dizem que é rapaz esperto.
Chiquinho, espero que tu farás muitas leituras a Alzira. Ela gosta
muito de ler, mas Andrezinho não tem paciência, diz que não está
para aturar coisas de outro tempo.
Andrezinho:
— Oh, rapaz, se tu dás muita trela, ganhas com certeza uma
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Caminho do Liceu, era certa aquela vista quotidiana do Sr.
Cecílio Firmino regando umas túlipas que não floriam nunca. Tinha
a cara pergaminhada, talhada de rugas, mas os olhos eram de uma
vivacidade extraordinária O velho pegou-me de simpatia quando
soube que eu era de S. Nicolau.
— Terra de agricultura, vizinho. Gosto muito de plantas. Eu
devia ter ficado a cultivar a terra, em vez de me meter na vida
parasita do funcionalismo. Você para lá caminha, vizinho... Liceu,
e depois lá está o emprego público. Se topar, claro está...
Prometi-lhe pedir para S. Nicolau uns pés de quatro-horas que
me disse desejava tentar.
— Isto é só para matar o vício, que jardim em S. Vicente não
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Entrei em contacto com o grupo de que Andrezinho me falara.
O programa era ambicioso e seduziu-me pelo que revelava de
insatisfação e desejo de evasão das realidades circunstantes. Ele
despertava em mim o Chiquinho que em S. Nicolau sonhava com
aventuras longínquas por esses mares e terras de Cristo, lutando
com gigantes, e tomava partido por Chico Zepa, o marinheiro. O
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Eu estava mas era gostando de Nuninha. Ela era outra,
diferente das labregas que eu tinha cobiçado no Caleijão. Calê Nina
Zepa! Faltavam-lhe os modos estilados de Nuninha, os seus
sapatos-sandálias, tão elegantes, os seus olhos morridos, que me
faziam sonhar com cenas que não se fixavam bem na minha
imaginação. Nina Zepa, Pimpinha, guardando vacas e pondo feixes
de lenha à cabeça para irem vender na Vila. A hora das refeições
era sempre esperada ansiosamente por mim. Nha Cidália e
Andrezinho sentavam-se às duas cabeças da mesa. Dos lados,
Nuninha e Nené, eu e tia Alzira. Nuninha defronte de mim. E eu me
esmerava em maneiras civilizadas. Punha em evidência o comer à
inglesa. De quando em quando surpreendia Nuninha espiando-me.
Mas logo ela baixava os olhos para o prato. O meu sólido bom
apetite sacrificava-se à sereia de olhos negros que se sentava em
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Nónó tinha uma morna muito certa:
Amor ê suma passadinha azul
sentado na rama di jamboêro...
Olhá-l, dixá-l cantâ, dixá-l boâ...
Si bô pegá-l êl ta chorâ,
Si bô dixá-l êl ta cantâ
e di note êl tâ ninábo bô sono...
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Quando voltei do Grémio para me deitar, dei com Nuninha no
meio da escada. Não tive dúvidas de que ela me estava esperando.
Vivemos colados um ao outro uma eternidade de segundos. Ela
tinha a cabeça derrubada para trás, os olhos pasmados, só se vendo
o branco. Saí com a sensação humilhante de não ter sabido saborear
o beijo completo que Nuninha me ofereceu. Eu vinha de S.
Nicolau, habituado ao amor bruto do dedo mindinho estortegado
até obter sim. Mas sentia-me plenamente feliz. O meu amor
próprio, que Nuninha beliscara com Humberto, estava vingado. Via
bem que Nuninha me pertencia completamente. Nónó percebeu no
dia seguinte o meu estado de felicidade:
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Chiquinho:
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O nosso Grémio ia-se corporizando. Alugámos um quarto à
Fonte de Cónego, para discussões e leituras. Numa das nossas
reuniões, resolvemos publicar um jornal que fosse o órgão do
grupo. Divergimos longamente sobre o título. Humberto propôs que
a nossa folha se intitulasse “Renovação — jornal irreverente da
mocidade”. Achei a designação pretensiosa, mas com um conteúdo
generoso de entusiasmo. Todavia, para contemporizar com Nónó,
que lembrava que não devíamos ferir demasiadamente a
susceptibilidade ronceira do público patrício, resolvemos
acrescentar ao título apenas: “folha académica”. Andrezinho era o
director; eu, Nónó e Humberto os redactores.
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Tratámos de distribuir as matérias para o primeiro número do
jornal.
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Humberto estava com uma dakariana. Não nos acompanhava
nas nossas excursões nocturnas, que, a demais, serviam a
Andrezinho de fontes para o «inquérito social» a que andava
procedendo, em vista da elaboração de uma tese do Grémio para o
Congresso.
Largo da Salina. À porta das lojas, grupos de homens e
mulheres. Dentro das tabernas a luz de petróleo desenha figuras
estranhas nas paredes. O largo está mergulhado em sombra. Os
coqueiros semelham gente, com o seu corpo dobregado, a abanar.
No esteirado de cricket há silhuetas de raparigas. Sons apagados de
violão e cavaquinho.
— Psiu...
— Larga-me da mão...
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— Vamos!
— Eu não! Vocês do Liceu são muito abusados, não pagam...
— Juro que pago...
— Deixa-me ver o dinheiro...
— Tu és novinha de mais...
— Adá! Eu sou mocrata, moço...
Nhola arranjou-nos conhecimento com Armanda. É um quarto
térreo, separado em dois por um biombo de cana. Armanda reina
sobre o seu grupo de mocratas. Recebe o dinheiro e garante-lhes
casa e comida. As mocratas vivem felizes naquele albergue em que
recolheram a sua infância cheia de fome. Atendem aos fregueses de
Armanda e em troca comem duas refeições ao dia e têm um
colchão de coco de milho para se deitarem.
— Quem te desonrou?
— Foi o Sr. Carlos Gomes...
Armanda lamenta-se:
— Isto não está dando nada...
Nha Marilisa aparece para conversar. Quase sempre arranja
fregueses para Armanda. Ultimamente levou-lhe a pequena
Lucinda, cuja honra vendeu ao comerciante Joaquim Silva por cem
escudos. Armanda não quer mais gente. Isto de mocratas não está
rendendo. Os bons fregueses escasseiam. Falta de dinheiro. Quase
sempre só aparecem rapazes que vão chaleirar e deixam um pataco
furado. Nem com menininhas de leite os homens. se estão tentando.
Mocratas arranjam-se por aí em qualquer parte. Os polícias,
também, estão abusados. Querem tudo de graça, senão no dia
seguinte põem uma pessoa com a caderneta na mão, o que é uma
desgraça. Acarreta logo as inspecções aos sábados, no Hospital. E
todos fogem de menina de caderneta. Armanda:
— Qualquer dia liquido e vou para donde minha irmã, na
Praia. Você quer ficar com esses meninos, nha Maria?
Humberto esteve um ror de tempo sem aparecer à noite no
Grémio. Passava até alta noite em casa de Zefinha.
— Que andas fazendo até tão tarde?
— Gozando.
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Bia:
— Já tenho anos no corpo, mas tenho uma experiência,
menina... Ensino-te coisas que não sabes... O francês fica gostando
mais de ti...
— Velho chaleira!
— Ouve, menina. Sei uma coisa que o sueco me ensinou.
Mostro-te e dás trinta escudos. Não quero mais...
— Vá cozer a bebedeira na cama com a sua mulher. Ela que o
ature. Ainda por cima, basofaria! Vá para casa, chaleira!
O mulato claro empurrou Zeca Araújo, que caiu de borco, e
ficou estendido no chão, na dogadura da bebedeira.
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A crise estava apertando. Havia dias em que não entrava um
vapor no porto. E quando entrava, era quase sempre vapor de óleo,
que não deixava nada. Nha Cidália nunca vira coisa assim.
— S. Vicente está uma saudade. Antigamente esta terra tinha
movimento... Alzira, ouviste falar da Guerra do Transval... Oh
rapaz, as libras andavam atrás da gente... Não sei como se está
vivendo nesta terra. Cá em casa, o que vale é a mesada que Eusébio
manda, senão tínhamos de sair pedindo por caridade.
Lembrava os bons tempos em que só com o serviço da costura
sustentava a casa.
— Hoje nem um vestido se aparece para a gente coser... Parece
que todo o mundo anda nu...
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BALTASAR LOPES
Tia Alzira:
— Se eu não fosse casada, saía para qualquer parte. Ia, por
exemplo, para a Argentina, para donde Eusébio...
— Casada? Podes dizer que és casada? Estás é amarrada a um
pau bichado. O que é que o casamento te tem rendido?
— Nada absolutamente...
— Estás vendo... Nunca gostei da cara daquele ranhoso. Não
sei porque não tratas do divórcio. Vai ter com advogado, já te tenho
dito tantas e tantas vezes...
— Divórcio é coisa feia, mana; demais não sei direitamente
onde Amâncio mora hoje.
— Não tem importância. Dizem que estando o marido ausente
não é preciso ele dar assinatura no divórcio. Ana de Brito ganhou o
divórcio assim. Terias a tua liberdade. Não é que nos estejas
pesando, bem sabes que não. Mas é triste ver uma pessoa sem uma
esperança na vida. Ainda és nova, apesar de estares amarrada há
tantos anos àquele ranhoso..
Andrezinho escreve. Os óculos dão-lhe um ar de pessoa velha.
Nha Cidália repreende:
— Já te disse tantas e tantas vezes que faz mal estar
escrevendo depois da comida. E, depois, sabes que a tua vista não é
muito católica...
— Você largue-me da mão, mamã; você não pode deixar uma
pessoa trabalhar com sossego?
— Pensas que já não sei açoitar de lato, atrevido? Deixa estar
que qualquer dia te ponho na ordem...
— Deixe-o, por favor, está escrevendo para o jornal...
— Ainda vocês estão com essa ideia do jornal? Para quê
jornal, Chiquinho?
— Serve para muito... A gente defende os interesses da terra. É
sempre uma força...
— Agora é força... No tempo do Sr. Augusto Ferro não havia
jornal, mas esta terra conseguia tudo o que queria. E ele não tinha
mais que o 2º grau. Vocês aprendem hoje tanta coisa, e no cabo não
servem para nada. Eles não falavam tanto, davam uma saltada em
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CHIQUINHO
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BALTASAR LOPES
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Zeca Araújo angariaria assinaturas para a “Renovação” na
cidade. Contávamos muito com Santo Antão e Praia. Para Santo
Antão escolhemos como representante Joca Pires, que no ano
anterior completara o Liceu e agora era professor de posto no Paul.
Ele estenderia a rede de assinaturas pela ilha toda.
Zeca Araújo é que se ofereceu:
— Garanto que vos arranjo mais de duzentas assinaturas.
— Não aspiramos a tanto. Umas cem chegariam...
— Arranjo mais, moço, olá se arranjo! Vocês não me
conhecem. Tive pouca escola, mas língua doce na boca, como eu,
há poucos...
— O que não impediu que você desse com o negócio em
pantanas...
— Azares... Qualquer está sujeito... Negócio é fêmea, rapaz.
Estive bem, vocês devem ter ouvido falar. Mas depois veio a crise e
lambeu-me tudo. O que vale é que não dou parte de fraco. Haja
alegria e tudo vai bem... Aqui onde me vêem para riba dos
cinquenta, estou em tudo como se tivesse vinte...
— Deve ser basofaria...
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— Juro!
— Palavra de honra?
— Palavrinha escorrida... Tenho muita experiência no lombo...
Humberto:
— Mas vamos aos pormenores. Você arranja as assinaturas: e
a percentagem que leva?
— Deixo isto na vossa consciência...
— Mas diga sempre, homem...
— Vocês são rapazes, dinheiro não tem. Eu levo pouco. Só
preciso trabalhar. Apesar de ter sido dos primeiros negociantes da
terra, não enjeito trabalho que me dê dois vinténs...
— Para terminar: 10%. Valeu?
— Valeu. Não paga o castigo, mas vocês são bons rapazes.
Agora uma patrícia para tio Zeca, vocês sabem, não há nada como
um grogue para abrir as ideias. Quando bebo dois cacos, até me
sinto orador...
— Lábia você tem...
— Não é para me gabar, mas é deveras. Vocês não reparem eu
pedir-vos uma patrícia. Podia ser vosso pai, mas façam de conta
que sou um tio mais velho. Dêem-me a groguinha, rapazes. Depois
titio faz vocês um brinde bonito pela felicidade do jornal. Então,
entendido. 10%. Eu pego. Entretém, e demais a mais é sempre bom
ajudar a rapaziada...
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— O homem chega amanhã...
— O homem? Qual homem?
— Deves ser a única pessoa que não sabe quem é; Sexa,
rapaz...
— Vens logo dizer «o homem»... Não adivinho...
— Eu era capaz até de dizer que não te interessa a chegada de
Sexa...
— Interesse imediato não vejo...
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O carvoeiro João Col há muito que não consegue trabalho. Os
filhos andam na gandaia, esmolando. Outras vezes vão mergulhar
lá fora, junto dos paquetes, para pegarem as moedas que os
passageiros atiram.
— Give me one pêní...
Têm a carapinha aloirada da água do mar.
João Col passa o tempo na muralha espiando o mar. Sinal no
Ilhéu anunciando vapor do Norte ou do Sul, é baque no seu
coração. Os vapores passam o Canal sem entrarem na baía. Há mais
uma ilusão que foge da alma de João Col. O filho mais velho, vinte
anos batidos de fome e venéreo, fugiu a bordo de um vapor grego.
Badala o sino na ponte de uma companhia carvoeira.
— Oh-na-mar!
O sino alvoroça os lares de todos os trabalhadores da baía. O
sino chama-os para o trabalho suado das lanchas e das bunkers.
— Hardwick Grange, rapaz, canudo preto com cintura
encarnada...
— Aquele é West Africa Line. Não estás enxergando aquele
letreiro grandão no costado?
João Col regressa ao Monte cabisbaixo. Não apanhou trabalho.
Eram precisos só quinze homens e o Sr. Goodson teve de partir
mais de trinta. Robertina anda pelas ruas vendendo rebuçados e
açucrinha de uma loja da Salina. Bia, treze anos esmirrados, é
mocrata. Caiu na vida. João Col não pegou trabalho. A mulher está
sentada à porta da casa de madeira.
— Trabalho não tem, menina...
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freguês de Armanda.
João Col rezou o Angelus:
— Nessenhor nos dê boa tarde!
— Bô tarde...
Cai um silêncio pesado. João Col vai entrar para dentro. Há
um foguete que estoira no ar. João Col volta a cara para a mulher,
que continua sentada na parede:
— Nossenhor há-de olhar para a pobreza.
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Foi constituída uma comissão para organizar e executar o
programa da recepção ao governador. Por outro lado, a comissão
estaria em contacto com as forças vivas, a fim de se fixarem os
pontos sobre que incidiriam as reclamações. Primeiramente haveria
festas. Os assuntos graves ficariam para as conversas demoradas no
gabinete. O desembarque seria às oito horas.
O governador vinha no “Moçambique”. Na baía haveria
cortejo de vaporinhos embandeirados, cedidos pelas companhias
inglesas. Estaria na ponte a Banda Municipal. Todo o elemento
oficial foi convidado para o desembarque. A recepção oficial seria
na Câmara. Para o sábado, grande baile na Associação Comercial,
oferecido pelo comércio. Convidados, todos os funcionários de
categoria, forças vivas, elementos da primeira sociedade e colónias
estrangeiras. Consertou-se a escadinha de desembarque, na ponte,
que estava sem dois degraus. Todo o trajecto até o palácio, com
escala pela Câmara Municipal, foi brunido. O carro das águas da
Câmara saiu a passear, acalmando a poeira. O “Moçambique”,
segundo aviso da Agência, ancoraria às seis. Mas o desembarque
era às oito. Quando o paquete fundeasse, a cidade seria avisada com
dois tiros de peça. Meia hora antes do desembarque, um tiro no
Fortim. A camionete da Câmara trouxe da Ribeira de Julião e da
Chã do Madeiral cargas de ramos de tarafe para ornamentação dos
postos de luz eléctrica e mastros que especialmente se plantaram.
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A «jornada da mocidade» de Andrezinho morreu logo nesse
dia. A massa académica não se interessou pelo plano do “Erudito”.
— Nem com esporas esta malta se mexe...
— Já te dizia. Não lhes interessa nada disto...
— Se os convidássemos para um baile, não faltariam,
garanto...
A sala de jantar de nha Cidália recolhe a nossa decepção.
Tínhamos marcado reunião no Grémio, à noite, para fixarmos o
programa da jornada, mas, perante o fracasso, mandámos
contra-aviso aos camaradas. Andrezinho, furioso, mal jantou:
— No dia em que se verificar de vez que nesta terra não há
energia para proclamarmos uma elementar vontade de viver, o que
restará é uma obra de engenharia colossal: pôr uma bomba de
dinamite na base da ilha e mandar isto para os ares!
— Não te apoquentes, meu filho, não endireitas o mundo. Por
causa destas e de outras é que não conseguiste ser nomeado
professor de posto o ano passado...
— Mamã, por amor de Deus, você não fale nestas coisas, você
não pode entender! Mamã só pode compreender que uma pessoa
trabalhe para um fim cuja utilidade imediata se veja. Você não tem
culpa, assim é que a fizeram...
Tia Alzira costura em silêncio. Trabalha muito chegada à
lâmpada, por causa da vista, que já está falhando. Algumas vezes
pede os óculos a nha Cidália, mas não pode aguentar:
— São muito fortes, faz dor de cabeça...
Nuninha examina com curiosidade algumas peças de costura
que tia Alzira está fazendo. São roupas de um enxoval para
casamento. Néné aplica-se a copiar as letras de um cartão que lhe
deram na escola. Nha Cidália:
— Não sei como há gente com coragem para casar num tempo
destes...
— Jeremias já chegou, — disse Andrezinho.
Tia Alzira não suspende os olhos da costura. Quando ela
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Parafuso esteve um ror de tempo sem aparecer no Liceu.
Manuel fazia-nos muita falta, principalmente por causa do Latim.
Nónó dizia-lhe sempre:
— Bem que te puseram o nome de Parafuso... Latim é madeira
rija, mas parafusas nele de verdade...
Volta e meia, lá estava ele de cabeça tomada entre as mãos,
tremendo de sezões.
— Parafuso, vem ensinar-me a tradução...
— Oh, rapaz, larga-me da mão... Pega de cábula e traduz.
Aquilo é só saber ler...
— Então o exercício de aplicação...
E Parafuso não descansava, enquanto não mondasse os nossos
temas dos erros de gramática, que pululavam.
Monte Sossego. A casa de Parafuso é uma peça só, que a mãe
dividiu em dois com tábuas de caixote de petróleo. Nela dormem o
pai, nha Noca, Parafuso e os seus três irmãos.
Quando, ao cabo de alguns dias, o vi sem aparecer nem no
Liceu nem no Grémio, fui à tarde ao Monte Sossego. Um menino
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BALTASAR LOPES
me ensinou o caminho.
— Onde é a casa de Manuel de Brito?
— Manuel de Brito? Não sei quem é...
— Um rapaz alto, magro, que anda no Liceu... Manuel de
Brito, que todo o mundo chama Parafuso...
A casa ficava no extremo do Monte Sossego, quase no
caminho de Fernando Pó. A mãe estava à porta, estendendo roupas
a secar na mormaça da tarde. Olhou para mim admirativamente. A
mãe de Parafuso vê-se que não estava habituada a receber visita de
gente calçada.
— Dá licença? Aqui é que mora Manuel de Brito?
— É, é aqui, moço...
Os olhos dela estão medentos. Será que nha Noca pensa que eu
sou enfermeiro da visita sanitária? Ela dá uma ordem em voz baixa
a um garoto dos seus doze anos. Dali a nada oiço uns grunhidos
abafados de porco.
— Desculpe, mas quem é você?
— Sou camarada de Manuel. Somos condiscípulos no Liceu.
— Ah, você é companheiro de Manuel? Muito contente... Oh
Antoninho, vai dizer a Parafuso que está cá um amigo dele.
Parafuso não está nada. Febres não querem largá-lo. Sempre a
tremer. Sou a mãe de Parafuso... Guidinha, traz um banco para esse
moço se sentar.
— Não se incomode. Não mande chamar Manuel cá fora, pode
fazer-lhe mal. Quero só saber como está ele...
— Parafuso, chame-lhe Parafuso... É nome que todo o mundo lhe
dá. Não me zango...
— Sim, mas estou bem, não o incomode...
— Incomoda nada. Febre precisa ser venteada. Já disse àquele
moço que faz mal estar sempre dobrado no conchego da dormida.
Assim o corpo não esperta nunca.
Eu não quero ver Parafuso. Tenho uma pena imensa da miséria
em que o meu camarada vive. Parafuso, tão orgulhoso, a ponto de
recusar a nossa merenda, quando os seus olhos estão gritando mas é
fome.
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Nha Noca:
— Pena que Fernando não esteja, você sabe hoje ele pegou
serviço na Shell. Chegou um tanca para descarregar muito óleo.
Antoninho volta lá de dentro.
— Não, menino, vai dizer a Manuel que se deixe estar. Vim só
saber como passa. Desejo-lhe melhoras.
De trás do tabuado uma voz diz:
— Olá Chiquinho, já vou... Como estás, rapaz? Espera só um
bocadinho.
A mãe de Parafuso vai falando comigo. Pena, de facto, que o
marido não esteja. Mas que fazer? Com esta carestia, todo o
trabalho que aparecer é pegar nele pelo cabelo para não fugir. A sua
grande esperança é Parafuso. Com a boa cabeça que Deus lhe deu,
ele será o amparo da família. Havia ainda aqueles anjinhos-de-
Cristo para botar na prenda. Parafuso havia de arranjar depressa um
emprego. Havia de furar cedo. E depois, tão bom coração, tão
amigo da sua gente, não podia haver dúvida de que ele seria o
amparo e conchego de todos.
Lanço um olhar para o pequeno terreiro. Nem sombra de
caldeira ou fogareiro. A casa de Parafuso vê-se que não tinha que
cear naquele dia.
O meu amigo, ao cabo, aparece. Vem todo embrulhado, com
receio de apanhar qualquer ar mau. Ao pescoço traz uma faixa de
fiada de lã de carneiro. Na cabeça o boné sebento. Mas Parafuso
tem um grande ar de dignidade. Endireita o corpo esguio e diz-me
que se sente já bom. Pensa que no dia seguinte já poderá ir ao
Liceu. A mãe informou-me que Parafuso não tinha feito outra coisa
senão querer ir à escola, apesar do febrão dos dias anteriores. Se
não fosse a resistência formal dos pais, ele teria desapegado da
cama e saído. Parafuso quer informações das coisas do Liceu. Mas
nha Noca pede-me que a ajude a dissuadir o filho da ideia de sair de
casa pelos dias mais próximos:
— Febrona já baixou, mas agora é uma tossinha que não
acaba. À noite o desgraçado quase não dorme. Tosse não deixa...
Parafuso assegura que já não sente nada. Pega na minha mão e
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O carnaval vai desfilando pelas ruas. Grupos passam no ritmo
apressado das marchas. Cow-boys. Há rapazes vestidos de
mulheres. Os grupos extravasaram na rua a sua gente. O Bloco
Floriano tomou a cabeça da festa. Estão todos fardados de oficiais
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Mas é que há mesmo noite escura na sala cheia das luzes das
lâmpadas eléctricas. Nem sequer se sente o cheiro carnavalesco das
bisnagas. Os perfumes das raparigas sumiram-se. Só ficou a voz de
Nónó cantando:
Mocinhos de Cabo Verde,
jâ nhôs ficâ sim Madrinha
pamôdi Nhor Dés di Céu
jâ fichá Didinha Lua
na tumba di nôte sucuro...
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sex-appeal de Gunga.
Quero afastar Alcides da conversa inconveniente, mas ele
segue-a com interesse. Está agora com Maninha num cabaré. Ela
foi contratada, com outras caboverdeanas recém-chegadas, para
dançar num clube nocturno. Gabinetes reservados. Os franceses
escolhem. Aquele magrinho, de olhos amarelos, pegou a mulata de
grossas coxas. Maninha está a um canto defendendo-se de um
francês atarracado que lhe quer dar champanhe e apalpar os seios.
As outras despem-se e fazem quadros vivos. Alce intervém quando
o francês quer despir a blusa de Maninha:
— Largue-a! Você não está vendo que homem nenhum a
possuiu ainda?
O francês vomita uma gargalhada na cara de Alcides. Maninha
deita a Alce um olhar muito longo, muito líquido. As outras saíram
com os companheiros. O francês gordo arrasta Maninha pelo braço
e leva-a.
Os músicos vão retomar o comando da festa. Começa o afinar
moroso dos instrumentos. Os rabequistas procuram o tom e dão o
lamiré. Melodia triste e nocturna do mi menor. Os dedos dos
violinistas emocionam-se nos glissandos. Os violões, afinados um
tom acima, dão o ré. O sax solta um lamento prolongado de animal
nostálgico. Novamente morna. O carnaval deixou-se vencer pela
tristeza envolvente que vem da orquestra. Não se reconhecem as
caras congestionadas do botequim. A cabeça das raparigas descai
sobre os ombros dos chevaliês. Que é feito do carnaval, que não
vem despertar todo o mundo do seu sonho circulante? Até a
gordona está emocionada. Não é a mesma de há pouco, que contava
a tragédia das raparigas que caem na vida e fazem quadros vivos e
dançam nos cabarés de Dakar. Vão com um par ter com Alcides no
seu encosto do quarto de toilette. «Miss Perfumado». Alce dança
abstracto.
Jam querê morrê ta sonhâ
na sombra di olho maguado
de um pequena gentil
di Grupo Perfumado...
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BALTASAR LOPES
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— Vamo-nos embora?
O grupo liceal resolve sair. Já a madrugada está alta. Nuninha
não quer que eu parta. Mas eu obstino-me.
— Andrezinho é teu irmão, ele que te acompanhe. Ou então
pede ao rapaz com quem dançaste...
— Estás doente, coisa doce?
— Estou com dor de cabeça...
— Dor de quê?
— De cabeça, já disse...
— Deixa-me correr-te a mão no braço, fica macio...
— Descarada... Que te disse o rapaz?
— Disse-me que os meus olhos são mais escuros que a noite...
Mas que eu sou a sua aurora...
— E que lhe respondeste?
— Disse mais que só agora, depois de me ver, compreendeu
que o seu destino se fixou...
— E tu, é claro, acreditaste nas suas chaleirices...
— Não sei... Ele fala tão doce...
— Está muito bem. Não quero mais nada contigo. Amanhã
dás-me a minha mascote e o meu retrato. Entendido?
— Chiquinho!
— Chaleira!
— Só te quero a ti, Chiquinho...
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— Zeca Araújo, nós precisamos de você...
Zeca perfilou-se:
— Pronto! Para ajudar a rapaziada estou sempre pronto...
— Magnífico! Pensámos maduramente quem havíamos de
encarregar do que o grupo tem em vista, e concluímos que você é o
homem que nos serve.
— Se não é para matar nem roubar contem comigo... Matar
não é para mim. Roubar, não falemos. Aqui onde me vêem, nunca
fiquei com cinco réis de ninguém, palavra...
— Acreditamos piamente. Você escusa de dar palavra de
honra. Você conhece mestre Ambrósio?
— Se conheço? Bom velho... Meio maluco, mas direito.
— E com os trabalhadores de terra e mar, quais são as suas
relações?
— Conheço bem todo o mundo...
Zeca Araújo pôs-se à nossa disposição. Pensávamos em dar
vida nova a uma associação operária que houve antigamente em S.
Vicente, organismo dos trabalhadores das companhias e dos
vapores na baía.
— Você vai ser o nosso intermediário junto do povo.
Precisamos de si para congregar as vontades de todos os
trabalhadores.
— Palavra bonita, congregar... O velho Cruz Silva gostava de
palavras assim esquisitas.
— Você é impossível com as suas divagações... Escute, Zeca,
o caso é sério. O povo está passando necessidade, mais que
necessidade, fome... Você vai ter dos trabalhadores...
— Vou... Conheço todo o mundo...
— Você vai ter deles e diz: venho em nome de uns rapazes que
querem melhorar a vossa situação...
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BALTASAR LOPES
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Depois da sua doença Parafuso pouco se demorou no Liceu.
Constantemente lhe vinha um pequeno acesso de tosse. Tirava da
algibeira um lenço sujo e escondia-o nas mãos para a sufocar.
Depois continuava a conversa, sempre sorridente.
Parafuso também queria jogar o foot-ball no grupo dos
complementaristas, no campeonato entre as turmas do Liceu.
Queria jogar a médio direito. É um lugar que exige discernimento
para servir tanto a defesa como o ataque. Ele não se rendeu às
nossas razões, que o aconselhavam a poupar-se, visto ainda não
estar completamente sarado da doença. Inscreveu-se. Fizemos uma
pequena conspiração para afastarmos Parafuso da ideia de jogar
foot-ball no campeonato liceal. Obtivemos que a Associação
Académica exigisse que todos os jogadores se apresentassem
devidamente equipados. Especialmente tivessem o cuidado de levar
sólidas botas de foot-ball para evitar desastres. Neste sentido foi
afixado um aviso em que se lembrava o precalço sucedido
recentemente a um back do Mindelense. Quem não obedecesse a
estas instruções seria recusado em campo.
O tempo prometia invernada forte. Choveu oito dias quase
seguidos. Fizemos uma subscrição para uns sapatos novos que
substituíssem o fleet-foot arruinado de Parafuso. O nosso camarada
agradeceu, mas recusou. A tosse sempre teimosa. Fomos ter do
médico escolar. Auscultasse Parafuso, porque ele continuava de
corpo cada vez mais relampeado. As conclusões do médico foram
alarmantes. O nosso companheiro tinha os pulmões em mísero
estado. Parafuso foi proibido de estudar. O tratamento era severo e
caro. Mudança de clima. Repouso absoluto. Alimentação
fortificante. Injecções.
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A Associação Operária Mindelense renasceu. Os delegados
das companhias acudiram pressurosamente ao nosso apelo. Zeca
Araújo foi perfeito. Visitou os capatazes e expôs-lhes o assunto.
Depois nos confessou que meteu coisas por sua conta e risco.
— Para maior facilidade, disse-lhes que é uma medida geral
para todas as ilhas. Baixou lei da Praia determinando que todo
operário se unisse, pois o governo quer entrar directamente em
contacto com as suas necessidades.
— Você não devia ter mentido, Zeca. Nós lutamos só com a
verdade...
— Ora essa! Verdade ou mentira que foi ordem do governo,
não é ajuntar essa gente que vocês querem? Vê-se bem que vocês
não têm prática da vida... No fim é o mesmo... E deixem-me
dizer-vos que a minha ideia deu um resultadão. Vocês sabem,
nestas coisas o melhor é a gente meter o governo. Ele é que
manda...
— De acordo. Mas a ideia é nossa... Você precisava ter-lhes
frisado que a mocidade das escolas não está divorciada da vida e
tem a consciência dos seus deveres.
— Deixa estar que também toquei este disco. Eu disse-lhes:
«Tem aí agora uns rapazes do Liceu que pensam em vocês. Com
eles é que devem falar. Governo encarregou-os de tratar deste
assunto». Tanto que os delegados vieram ter de vocês...
— Não aceitamos os seus processos, Zeca. Bem, mas você
conseguiu o que queríamos. Vai agora uma groguinha?
— Titio não nega...
— Vá lá, que você tem algumas qualidades...
— É deveras... Agora titio quer a patrícia...
Mestre Ambrósio não quis ser nada na Associação:
— Espírito está em toda a parte.. Não preciso sentar-me na
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contigo...
— Se eu for mandarei buscar-te...
— Para a tua casa de operário...
— Para a minha casa de operário...
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O pai de Parafuso estava sem serviço, mas era obrigado a ficar
o dia todo fora de casa. Andrezinho é que teve a ideia. Fiquei
fazendo um juízo muito diferente do meu camarada. Não,
Andrezinho não era um desumanizado. A princípio, eu supunha-o
indivíduo que somente vivesse para as imagens que a sua
inteligência perseguia. O caso de Parafuso revelou a sua piedade
ardente, a sua camaradagem comovidamente forte. O estranho
orgulho de Parafuso não lhe permitiria aceitar qualquer
oferecimento monetário, modesto embora, dos camaradas.
Tínhamos a experiência disto. Mais modernamente, a substituição
do seu fleet-foot.
Fizemos a derrama. Cada qual ficaria, além disso, a dar um
tanto da sua mensalidade. Pusemos uma mulherzinha com uma lista
de subscrição, para socorro de um suposto entrevado. Tudo junto
não dava para um tratamento rigoroso, mas sempre chegava para se
assegurar a Parafuso alimentação mais fortificante.
O pai de Manuel não fez objecção alguma. Para todos os
efeitos, ele tinha arranjado um bom serviço de apontador nas Obras
Públicas. Era o dinheiro do seu salário que estava mantendo a casa
e tratando de curar Parafuso. O velho agradeceu-nos. Nunca falta o
socorro de um justo para outro justo. Nossenhor no céu não esquece
nunca os seus filhos. Passaria os dias fora de casa para o filho não
desconfiar.
E assim o nosso camarada tinha por algum tempo os ovos e a
carne com que a nossa amizade tratava de aguentar a sua pobre
carcaça de quixote tuberculoso.
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Zeca Araújo veio escusar-se das funções que prometera
desempenhar na Associação. Tinha arranjado um emprego de
guarda de armazéns numa casa comercial, cujo dono lhe impôs
como condição desligar-se de tudo.
— Não posso tomar como empregado quem ande metido em
brincadeiras de rapazes e fantasias de trabalhadores. Você já tem
idade para ter juízo.
Zeca justificou-se:
— A cachupinha é sagrada, rapazes. Tenho mulher e filhos a
sustentar...
Muitos passaram a olhar para nós como se fôssemos uma
quadrilha tenebrosa de malfeitores, principalmente depois de um
projecto de parede que houve entre os trabalhadores de carvão. Um
capataz de companhia foi despedido. Os carvoeiros resolveram
dar-lhe a sua solidariedade, alegando que ele trabalhava na
companhia há mais de trinta anos, e não era justo ser assim
despedido. Decidiram não trabalhar na parte da tarde, e encarregar a
Associação da solução do caso.
Nha Cidália apavorou-se e prometeu esconder o meu fato e o
de Andrezinho. Por fim despimos o fato-macaco. Só Andrezinho
continuou imperturbável, passeando pelas ruas o seu trajo operário,
com o seu ar distraído de quem, todavia, tomava fé em tudo.
As nossas esperanças de uma federação do trabalho em todo o
arquipélago morreram logo. De S. Nicolau, José Lima escreveu-me
uma carta revoltada e desconsoladora. A nossa sugestão, que ele
perfilhou entusiasticamente, não encontrou eco na ilha. «Isto é uma
gente impossível, meu jovem amigo. Infatigáveis na enxada, mas
nada vêem para diante do casal de terra que estão trabalhando. Não
pensam que cada um por si pouco vale, mas que todos juntos, com
as vontades tendidas num desejo imperativo de chuva, até
conseguiriam que chovesse a tempo e horas. Os gravatas são o que
você sabe. Formulei um questionário escrito, a que nem se
dignaram responder. Vi a mesma coisa na América. As associações
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BALTASAR LOPES
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Foi muito triste o enterro de Parafuso. A ventania varria tudo
furiosamente. Nuvens de pó se levantavam na Chã do Cemitério e
na Galé. O dia enublado, cor de chumbo, destilava uma tristeza
lenta para o coração da gente.
O acompanhamento fez uma grande volta, de regresso da
igreja, para passar defronte do Liceu. Parafuso. Lá ia ele no esquife
longo. Em casa, à saída do corpo, a mãe abraçara-se ao caixão, que
mandámos fazer. Nos olhos dos garotos havia uma curiosidade
receosa por aquela gente desconhecida que ia buscar o irmão. À
frente seguia a deputação académica, com o estandarte do Liceu
desfraldado. Quando o acompanhamento chegou defronte do
Cemitério Velho fizemos uma paragem. Lá em cima, na encosta da
colina, ficava a casa de Parafuso, no Monte Sossego. Nha Noca
juntou-se à companha pouco depois. O vento trazia terra vermelha
para as nossas cabeças. O poente era cor de chumbo. Mal se adivi-
nhava o sol, detrás das nuvens espessas.
O corpo do nosso companheiro baixou lentamente à sua
morada. Parafuso. Nha Noca veio arrimada no meu braço e no de
Nónó. Andrezinho parecia estar tomando fé para a direita e para a
esquerda. Fomos levar a mãe à casa. O pai estava sentado fora, a
olhar não se sabe para onde. Nha Noca tinha deixado de chorar
quando o corpo do filho deu entrada no cemitério. Encontrou outras
mulheres em casa fazendo a guisa. Adeus Parafuso. Nunca mais os
irmãozinhos haviam de ver Manuel de Brito. Nha Noca recebeu as
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CHIQUINHO
nossas condolências.
Dondê a esperança de nha Noca num futuro melhor,
assegurado por Parafuso? Deus havia de olhar por aqueles meninos,
que ficavam sem o irmão mais velho, que era a esperança da casa.
No ano seguinte Mano tinha de se matricular no Liceu.
Nha Noca ficou junto do marido, encolhida no seu xaile
surrado, batida pela ventania que vassoirava tudo, vassoirava as
nossas almas também. No coração dos dois velhos erguia-se uma
nova esperança. Mano ia entrar para o Liceu. Pena já não haver
Parafuso para lhe ir ensinando as coisas novas que ele iria estudar.
Parafuso.
24
O luar está vestindo a Ribeira Bote de branco. Nunca ela
esperou ver as suas casas caiadas com um branco tão bonito. Há
vozes nas portas-da-rua. A miséria deixou-se vencer pela riqueza de
prata que cai do céu.
Os garotos, sentados na rua, pensam que Dina Lua é que está
mandando tanta riqueza.
— Quero um saco cheio para comprar toda qualidade de
coisas...
— Eu quero toda qualidade de coisas, mas também dou aos
pobres...
— Já não tem pobre, rapaz...
— Uá! Tem pobre muito bem...
Passa uma estrela cadente.
— Cavalinho de Nossenhor está correndo no céu...
— Nossenhor não anda a cavalo, rapaz. Ele tem automóveis
como areia...
— E quem é o chauffeur de Nossenhor?
Chegam até nós os sons de violão e clarinete de um batifundo.
A casa fica no alto de uma subida. A luz de petróleo projecta fora
sombras de gente dançando.
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O “Puritan” levava-me para S. Nicolau. Como bagagem para a
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vida, tinha o 7º ano dos Liceus. Não pude vislumbrar para que me
ia servir o meu diploma. Ficava-me sem sentido a viagem a S.
Vicente, com que tanto sonhara em S. Nicolau. Como me tinha
desiludido a terra magnífica da minha infância, que eu adivinhava
povoada de imagens da civilização do mundo!
Vida rarefeita, foi o que vi. Eu e os do meu grupo não
encontrámos um grito que se concertasse com o nosso. Faltava-me
a fé robusta de Andrezinho, que não cedia à indiferença geral. A
iniciativa malograda do nosso jornal, morto à falta de leitores, com
dois números apenas, não impedia que ele agora estivesse pensando
numa revista e na organização de uma antologia da literatura
popular caboverdeana. Cada um de nós levava para as ilhas a sua
alínea dentro do programa geral do Grémio. E a Associação
Operária Mindelense era casa sua, em que ia discutir com os
trabalhadores planos e programas de reformas.
Nós todos estávamos no centro de uma encruzilhada sem saída
visível. Agricultura, funcionalismo, comércio, tudo caminhos em
que não luzia uma esperança.
A cidade ia-se perdendo à medida que o veleiro rumava para S.
Pedro. De longe ela era uma massa confusa de cadáveres cinzentos.
Cidade morta. Dir-se-ia que um vampiro colossal tinha sugado a
alma da cidade.
O sol poente era a única nota digna naquela paisagem de
cemitério. Os reflexos do poente fantasmavam a rocha do Verde de
um roxo desmaiado de bougainville de sonho. Depois que o sol
mergulhou na água, flechas de ouro irromperam do mar.
Dondê Chiquinho, que não vai apanhar os tesouros do fundo
do mar, que aquelas flechas de ouro estão indicando?
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certeza certa que Chiquinho era ainda o mesmo menino bom que
ela criou debaixo de hissope e água-benta. Deus sabe da vida de
cada criatura. O compadre dormisse descansado, que a casa de
António Manuel, graças a Deus, não era arame em que se ande aos
tombos.
Nem que fosse encomendado, Mamãe-Velha surdiu da porta
do interior, de lunetas encavalitadas na ponta do nariz, e nas mãos
umas calças em que ela estava enjeitando uma botana. Assim que
soube do assunto da conversa, a sua energia deflagrou:
— Vaca maninha é pior que vaca prenhe, nhô Mano... Quem
não tem não perdoa a quem tem. Se Chiquinho for carga pesada,
nós, que o aguentámos tamanhinho, poderemos, louvado Deus,
sustê-lo neste balanço...
— Mas eu sou compadre, compadre é pai...
— Pai é quem fez e mãe é quem pariu ! Você não sentiu as
dores da parição, não, nhô Mano?
Mamãe-Velha tinha destes realismos saborosos.
2
Fixei-me na Vila, por alguns dias, em casa de parentes.
Pretexto para estar mais perto das minhas novas amizades, o Sr.
Euclides Varanda e José Lima. À noite, o meu passeio constante é o
caminho do Lombinho de Cima. A Vila bruxuleia na mortalha da
escuridão. Pobre necrópole de raras lâmpadas acesas nas
encruzilhadas aziagas das esquinas! Que hei-de fazer? Prolongo o
passeio, rumo à Telegrafia, mas lá está, insistente, o panorama
lúgubre da Vila morta. Esta vidinha miúda da Vila... Como se pode
viver neste ritmo monótono, que adormece como um ópio? Todas
as noites durmo embalado pelo ruído constante, uniforme, da água
que cai da Bica da Passagem. Dentro de mim há um não sei que
marulhar confuso de grandes ondas que chocam nas minhas
expectativas de vida. Mas esta bica faz chegar tudo diluído. E não
há quem venha extinguir o seu sussurro, que salmodia
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3
Deram-me uma grande novidade: o Sr. Euclides Varanda foi
apanhado rondando a casa de Gaída. E o mais singular é que ele
não se escondeu nas sombras da ruela onde morava a crioula.
Apitou três vezes e, quando a rapariga apareceu à meia-porta, disse:
— Sou o Quiqui...
Depois entrou, todo empertigado, com o seu passo metódico
de quem tem tudo regulamentado na vida. Achei esquisito aquilo de
o velho estar fazendo vida de rapaz. Além disso, Gaída, que me
mostraram, era uma crioula sólida, com uma cor acanelada,
revendo saúde insolentemente. José Lima explicou-me:
— O velho quer ter um filho...
— Nesta idade? Para quê?
— Diz que errou a vida e quer deixar alguém que viva como
ele desejaria ter vivido.
Não compreendi. Era quase uma imagem nova para mim, o Sr.
Euclides Varanda. Eu conhecera, em garoto, a sua figura seca e
direita. Causaram-me sempre espécie o bigode branco, inquieto, de
pontas com uma mobilidade constantemente interrogativa, e os
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qualquer de kaki, com que supunha estar muito bem trajado para o
desembarque. O veleiro ainda no Stream, viu o ridículo da sua
indumentária, logo assim que receberam a visita das autoridades
americanas. Por fim, foi o horror de um desabalado fato azul escuro
e de umas botas enormes com o bico de carambola que um patrício
lhe deu para saltar. Gente reunida nos cais. Dixotes que fustigavam
o jeito canhestro do green que desembarcava de um navio-de-vela.
Seus companheiros de emigração iam com o sorriso bom de quem,
do mundo, nunca tinha visto outra face, além da horta que largaram
para trás. Nas fábricas de algodão ele ganhou a tosse seca que
cortava amiúde as suas conversas. Mas a sua experiência
enriqueceu-se extraordinariamente. Em Second Street, em
Acushnet Avenue, em Water Street, foi encontrar Cabo Verde
reproduzido em minúsculo na terra americana. O pilão cochindo o
milho para a cachupa. O banco de urim. As cantarolas com viola e
violão, como nas ilhas. Toda a gente falando crioulo misturado com
palavras e frases americanas. A esquina, o jew impingindo a sua
mercadoria. E o badio caindo. Casaco grande de mais, de
preferência a casaco justo, porque leva mais fazenda. Maneira
inconsciente de enganar judeu. Era a capacidade de resistência das
ilhas que ele via no cabo do mundo. Porquê essa impermeabilidade
ao ambiente?
Depois mergulhou nas bibliotecas. Aprendeu o inglês
depressa. Matriculou-se numa Senior High School. O humilhante
da sua condição de portuguese black man contactando a alegria
triunfal de conhecer novos mundos. E no cabo foi a lição
americana. Ele viu de que o homem é capaz.
— Já conheces o meu ponto de vista a esse respeito...
Não fiquei estranhando que os homens sérios da Vila
chamassem José Lima revolucionário. Ele era, de facto, uma pessoa
diferente deles. José Lima era um revolucionário.
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O Sr. Euclides Varanda morava numa casinha ao pé da ponte.
Vivia sozinho, apenas com uma criada velha que lhe arranjava a
casa e cozia a comida. Perguntei-lhe porque não tinha consigo
alguma parenta que olhasse por ele melhor e lhe desse assistência.
— Não conheces o mundo... Parente é pai e mãe. Irmãos
quando calha. O resto algumas vezes costuma dar certo...
A casinha, além das dependências, tinha duas divisões. Numa,
o quarto do Sr. Euclides. A outra, logo à entrada do peitoril da
escada, era o gabinete de trabalho do velho. Na parede havia apenas
os retratos dos seus pais, sobranceiros à secretária larga de
laranjeira, feita na ilha, e o quadro com o diploma da nomeação do
Sr. Euclides para escrivão da Alfândega.
— Naquele tempo a estação era na Vila. Na Preguiça só havia
um posto fiscal, que comunicava as ocorrências.
O Sr. Euclides fez carreira até segundo-oficial. Aposentou-se e
veio morar de vez na sua terra. Contou-me que estava farto de
desilusões. Além disso, sem filhos, fez os maiores sacrifícios,
vendeu hortas e tirou dos seus vencimentos o suficiente para educar
em Lisboa um sobrinho que não deu nada.
— Tirou o curso completo da pândega e regressou ao porto de
origem com uma porção de dívidas que cá o velho teve de pagar.
O seu quarto de trabalho era um atravancamento de livros,
almanaques luso-brasileiros, jornais velhos e boletins oficiais. Um
dia o Sr. Euclides mostrou-me um número do Almanaque,
encadernado em carneira, que guardava religiosamente na gaveta da
secretária.
— Este número é sagrado para mim... Estimo-o como talvez
não estime muitas pessoas...
Aventurei uma dúvida. Expus ao Sr. Euclides as restrições que
eu fazia aos almanaques, com os seus logogrifos e charadas e a
correspondência impossível das primeiras páginas.
O velho esclareceu:
— Não falo de almanaques, falo deste número do Almanaque
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Luso-Brasileiro...
— Sabe, Sr. Euclides, nós hoje queremos coisas mais directas,
mais incisivas...
— Nós quem?
— Nós os novos...
— E eu não sou novo? Deixa-me explicar-te, Chiquinho.
Velhice é como um destino. Há gente que já nasce velha... A gente
traz a velhice dentro de si, ou não a traz, como poderá trazer outras
qualidades, da barriga da mãe. E eu não nasci velho... Nasci moço e
hei-de morrer moço...
O Sr. Euclides, excitadíssimo, passeava agitadamente pela
salinha. De quando em quando interrompia o passeio e ficava
parado, resmungando como se não houvesse ninguém presente:
— Moço! Como se só eles fossem... Resta saber qual de nós é
mais... Eles não conhecem a força do Grande Foco Gerador. Haverá
alguém que falará por mim, depois, há com certeza...
Quando o velho serenou, perguntei-lhe a história do número do
Almanaque. O Sr. Euclides sorriu-se. Pegou no volume, e abriu-o
numa página que estava marcada com uma tira de fita azul.
Aproximou-se da janela e, encostado à bandeira de pau, ficou um
longo momento embebido na leitura. A sua fisionomia
transfigurara-se. O velho estava arrebatado com a leitura de
qualquer coisa, que fiquei com curiosidade de conhecer. Depois
veio colocar o número aberto diante de mim.
— Lê e depois dá-me a tua opinião. É a primeira composição
que publiquei. Mandei para o almanaque e tive o primeiro prémio
de poesia. Este volume é sagrado. A poesia que publiquei é a
primeira vitória das minhas forças espirituais sobre a Matéria... Lê e
aprecia, mas francamente... Quero esta poesia muito...
Comecei a ler para mim.
— Lê em voz alta! Gosto da tua leitura...
A poesia intitulava-se «Trindades». O poeta Euclides Varanda
dava a impressão da sua alma de «devoto da Verdade Eterna»
perante «a grande voz de Deus omnipotente». O poeta, do alto de
um outeiro, «divisava» a ermida, «que se erguia, branca e contem-
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Já não encontrei viva a dona de Tói Mulato. Pitra Marguida
informou-me que a velha tinha sido requisitada pelo diabo para
açoitar de lato as almas penadas.
— Deus há-de me perdoar, mas mulher como aquela não tem
lugar na glória...
Esconjurou:
— Eh! Muitos anos sem mim! Longe de mim, perto do
inferno!
— Você não calcula o que nha Totonha fazia a Tói Mulato.
Quando lhe vinha a fúria, até tirava a Tói a comida que ele estava
jantando. E o moço dormia sem cear. Outras vezes pedia: “Tói,
deixa ver o prato para eu te pôr esta trincha de toucinho. Não quero
mais, sabes, estômago de gente velha não aguenta muita gordura...”
Pegava no prato e cuspia: “Agora come, mocinho malandro... ”.
Quando eu era pequeno, preguntei um dia a nha Rosa Calita se
a dona de Tói Mulato não era mesmo igual àquelas velhas que
engordavam menino para comerem.
Pitra pegou também de me tratar por você. Explicou-me:
— Não dá jeito tratar de outra maneira. Chiquinho agora é um
homem com muita prenda na cabeça...
Eu sofria com esse afastamento em que me via, relativamente
aos companheiros da minha infância. A prenda que tinha na cabeça
estabelecia o vácuo à minha volta. Nunca mais eu comungaria na
quente e humana intimidade da minha gente.
Depois que a sua avó morreu, Tói Mulato continuou
trabalhando as hortas, que ficaram a pertencer ao seu tio, emigrado
na Argentina. Mas passado algum tempo, o tio casou por
procuração, e Tói teve de entregar tudo. Agora procurava embarcar.
O meu amigo nunca perdia a coragem. Os seus olhos conservavam
a mesma fé ingénua dos tempos de menino, o que fazia nhô
Roberto Tomásia dizer:
— Os olhos desse moço nadam em água...
Nhô João Joana confirmava:
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Venho sempre à Vila procurar não sei o quê. Meia hora de
caminho, e galgo a fita da estrada da Assomada de Marques e da
Ladeira da Lapa, toda desenhada em curvas. Esse espectáculo tão
repetido é sempre novo para mim. Todas as vezes é com ansiedade
que venço os últimos metros que me separam do Rezadouro. De lá
vejo a Vila, que se estende de um extremo a outro, com o mar
despontando para além das últimas casas da Chãzinha. As hortas
ladeando as margens da Ribeira. Manchas de mandiocais,
bananeiras, cana sacarina. Adivinha-se vida humilde e nhanida no
fumo que sobe dos fogões das casas pobres da Ladeira. A cachupa
que ferve na panela é produto do feixe de palha ou de lenha que a
dona-e-sua-menaja foi apanhar para vender. Os meninos correm
navios e apanham góia-góia nos tanques da ribeira. O homem foi
buscar carga na Preguiça, com os burros arreados de sela, à frente.
A vida que vem da Estância aperta a minha alma com uma emoção
que não sei definir. Vida nhanida da pobreza.
As conversas dos gravatas à noite, nos bancos do Terreiro,
dão-me uma impressão de pequenez que me faz medo. Não é uma
lição de pequenez que eu trouxe das sugestões da nossa
camaradagem no Grémio. Andrezinho, sobretudo, tinha uma
imagem generosa da vida. O “Erudito” achava Nónó muito descen-
trado, com as suas mornas divagantes, que punham toda a gente a
mirar mundos imaginários que nunca se fixavam em imagens
precisas.
— Vê-se bem que és homem de planície...
A origem de Nónó, boavistense de marca, a trair-se nos s s
sibilados dos fins de palavra, dava ao seu modo de ser o imprevisto
das planuras da Boa Vista, cheias de surpresas nos montes de areia
e nas palmeiras que aparecem abruptamente detrás das dunas.
Sobre tudo isto, contemplativo como um pastor do deserto. O
“Erudito” achava-me mais recortado. A chateza ambiente, o
possidonismo do meio (o termo é de Andrezinho), o culto
provinciano das pequenas glórias locais, davam-nos uma impressão
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Bem certo que Tói Mulato já tinha o seu navio para navegar.
Largado na cabotagem das ilhas, Tói tocava constantemente em S.
Nicolau. Menos de uma hora de marcha e estava ele no Caleijão.
Os rapazes reuniam-se na Água-do-Canal ouvindo Tói Mulato.
Ainda era só as ilhas que ele conhecia, mas já possuía uma
experiência que passava a cabeça de Pitra Marguida, Lela Bento,
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que não, porque iam dormir sem cear. Coisa só de cortar o coração,
fome de menino. Lá fora não devia haver pobre. O mar tinha tanta
água que dava comida para todo o mundo. Tói Mulato enchia de
riqueza a alma dos enxadeiros, já carregados de filhos. Não eram
casados. Para quê casar? Pobreza liga mais indissolúvelmente que
reza de padre. Não havia mais nada que fazer, as mulheres pariam
cada ano um filho. O mar era uma abertura que os enxadeiros
tinham para o mundo. Mas não saíam. Por isso sofriam mais. A
enxada não permitia que eles fossem espreitar o mundo direito. As
narrativas de Tói Mulato aumentavam o sofrimento dos
trabalhadores mais velhos. Lela Bento, Pitra, Antoninho Bia, já
com os cabelos branqueando. Os outros da minha idade tinham
caído há muito na enxada, que os namorava desde pequenos,
quando semeavam os pedacinhos e faziam a guarda dos corvos,
com a enxadinha leve pronta para a replantação. Bem Chico Zepa
nos tinha pregado a sua rebeldia. Ele próprio não deu o exemplo.
Nunca mais se meteu num veleiro para embarcar fugido em S.
Vicente, a bordo de um vapor de trânsito. Teve de aguentar o
pesado, no rabo da enxada, como os outros, embora refilando
sempre. Mas aguentou. E agora estava com a perna manca, devido
a ferida ruim que não sarou bem, por causa das doenças-do-mundo.
Para a companha da Água-do-Canal, a chegada de Tói Mulato
era um acontecimento. Verdade que ele ainda só conhecia as ilhas,
mas Tói era diferente de todo o mundo. Falava das terras longe
como se as tivesse conhecido. Nasceu assim, já com os olhos
arregalados para as coisas desta vida. Em todo o caso, ele já passara
a água mansa do Tarrafal, já tinha conhecido outro mundo, que fica
além da ponta da Vermelharia. S. Vicente principalmente. A
civilização que lá passava em desfile, a bordo dos vapores de
escala, enchia a alma de todos. Gente branca. Morenos e loiros.
Soldados e marinheiros de vapores de guerra, apitos trágicos de
rebocadores, teatro, cinema, tudo fazia parada em S. Vicente.
Mindelo era a estação necessária para o conhecimento mais directo
do mundo. Tói Mulato contava o que havia na cidade, os edifícios
bonitos, os divertimentos, os jogos de foot-ball e de crícket, as
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O ano agrícola começou com boa cara. Com a chuva geral
logo em princípio de Agosto, toda a ilha foi semeada. Em nossa
casa foi a azáfama de sempre, que bem conheci nos dias da minha
infância. Tantos litros de milho de semente para este, tantos para
aqueloutro. Mamãe recomendava sempre aos meeiros que
semeassem todo o milho, não cedessem à guloseira de aproveitar
parte dele para a comida. Pitra passava todo o dia fora, fiscalizando
o trabalho nas hortas que cultivávamos directamente. Ele conti-
nuava sendo o homem da casa. Eu era um verbo encher no meio de
toda aquela actividade que se agitava à minha volta. A prenda que
tinha na cabeça imunizava-me contra o trabalho agrícola. Enxada
não é para gente aprendida. Eu era da categoria de Cabeça-de-Gato-
Totonha, que só servia para a guarda dos corvos. Bem queria fazer
qualquer coisa, mostrar que era homem como qualquer um.
Também não contavam comigo em casa para uma ajuda nos
trabalhos. Chiquinho, com a prenda que tinha, estava marcado para
um lugar público. Enxada era para os outros, que tinham ficado
bestas, apenas lendo e escrevendo, sem tanta coisa na cabeça como
eu. A alegria animal que eu sentia vendo chuva chovendo não
compensava as alfinetadas que a certeza da minha inutilidade dava
ao meu orgulho. No cabo, valia menos que Lela e Nanduca. Estes,
ao menos, ajudavam na guarda de corvo e iam cedinho em
companhia das mulheres que traziam o leite das nossas vacas
largadas no campo. Vinham de lá pletóricos de força, sentindo no
corpo o leite espumoso pojado das mamas das vacas. E o dia fora,
no tapadinho da Horta Nova, as suas vozes infantis repetiam o
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suicídio.
— Se não gostar, largo, não tenha dúvidas...
— Não largas tal. Habituas-te a receber a folha no fim do mês
e não pensas em mais nada. Assim hás-de passar anos e anos.
Aturas maçadas de toda a casta, para receberes por mês uma
ninharia...
— Mas não hei-de ficar às sopas da minha gente, sem fazer
nada...
Meu tio, arrebatadamente:
— Larga tudo isto ! Vai para a Guiné, para Angola, para o
Brasil, para o diabo! Mas não fiques aqui... Só conseguirás cair no
grogue... Esta vida é como clorofórmio. Ao cabo, todas as tuas
aspirações se dissolvem. E o grogue espera-te... Olha para mim...
Aguardente e mães-de-filhos... Não há mais nada que fazer, em que
pensar, é claro que Joca tem de beber grogue e fazer filhos...
Titio era assim tão lúcido, na falta de piedade com que se
julgava a si mesmo. Disse-me novamente da pena que tinha de não
haver feito como Papai. Partir para a América, trabalhar nas
fábricas de algodão. Nos bargers ou nos light-ships. Seria um
animal de carga nas suas obras de trabalho. Black portuguese para
todo o serviço. Mas tinha todo um mundo trepidante à sua volta.
Livros, nas bibliotecas, para ler. Conferências para escutar. Imagens
para absorver. Nada o impediria de matar a sua sede de saber e
aperfeiçoar-se. O anónimo espectador da vida americana
disciplinaria todo aquele mundo. E agora estava reduzido a viver
entre montanhas. Hortas nuas, sem molha de chuva, e invadidas por
gafanhotos.
— Filhos de quarenta pais, vestidos de fraque...
Perguntei-lhe porque não tentava emigrar. Ainda não estava
velho. Quarenta e poucos anos ainda tinham largas reservas de
vitalidade. Muitos haviam emigrado mais velhos.
— Já estou cozinhado. E com este Seminário de meninos atrás
de mim...
Nesse mesmo dia, boquinha da noite, titio apanhou uma
bebedeira mestra. Manuel Cais e nhô Roberto Tomásia foram
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A lojinha de José Lima ficava pouco depois do Terreiro, no
caminho da Estância de Baixo. O meu amigo explicou-me que
estava na «parte descendente do gráfico». Ir para a América
representou para ele o mesmo que para os moços que largavam a
enxada e partiam para a grande aventura. Um momento culminante
na vida, essa existência de emigrante na América do Norte. E a
todos as fábricas nivelaram, reduzindo a nada a sua aristocracia de
intelectual com que saíram das ilhas. Mas os seus pulmões foram o
aliado mais eficiente dessa saudade crioula que puxa
irresistivelmente para o arquipélago o filho-das-ilhas mais
inveterado no ritmo da vida americana. E agora lá estava ele,
ruminando as reminiscências da sua aventura, com uma tasquinha
em que a mulher vendia, e as trinchas de horta adquiridas com os
dólares que trouxe.
— Nem a compra de uma mula me faltou, para a imagem ficar
mais perfeita...
D. Alcinda casou com José Lima depois do regresso deste. A
emigração transformou em casamento de razão o namoro
sentimental, alimentado a versos e serenatas, que vinha desde a
adolescência. Os longos anos de espera mataram o romance que
habitava os olhos mansos da “fada de cabelos cor da noite”, cantada
nos poemas do seminarista José Lima. Agora ela atendia aos
fregueses da loja, enquanto o meu amigo entretinha longos
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Eu tinha de escrever o meu ensaio sobre a vida social de S.
Nicolau. Era a alínea que agora me competia no programa do
grupo. Nos arquivos das repartições públicas não encontrei nada de
interesse. Os documentos antigos, desaparecidos. Tudo queimado
nas agitadas peripécias da vida passada de S. Nicolau. A história da
minha ilha ficava sem base documental. Fiz uma excursão ao Porto
da Lapa onde, segundo a tradição, se fixara o primeiro povoado da
ilha. Levei pá e enxada para as escavações. Muitos ficaram
desconfiando de tesouros enterrados em potes de barro, como se
referia nas histórias de assombrações das casas antigas. Cacos de
louça de Lisboa, fragmentos de cantaria do reino, um esboço de
povoado, tudo mandei para o grupo, ao cuidado de Andrezinho. Eu
teria de contentar-me com o aspecto humano e contemporâneo do
problema.
Tinha de escrever o meu “ensaio”. Esta preocupação estudiosa
determinava os meus passos no Caleijão. Eu não sentia mais a
curiosidade desinteressada que me levava às conversas lentas de
nhô Chic’Ana e de nhô João Joana. Filtrava as histórias de nha
Rosa Calita através do meu interesse “científico”. Como na minha
infância, queria ouvir mais e mais histórias. Elas eram expressões
das mensagens da minha gente. Sentava-me junto de Lela e
Nanduca, como nos outros tempos, mas agora eu ia aos serões
munido de papel e lápis, em cata de apontamentos para poesia
folclórica e de contos para a Antologia Popular Caboverdeana. Nhô
João Joana, nhô Chic’Ana, António Benvinda, eram “documentos”
para mim, elementos para o ensaio “vivo”, com base na
“humanidade palpitante”, que eu teria de escrever.
Não raro, porém, esquecia-me do “Erudito”, do Grémio, da
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Chegou a minha nomeação para professor de posto de ensino.
Fui colocado no Morro Brás, lá para cascos de rolha. Nhô António
Benvinda deu-me informações do sítio:
— Terra onde Nossenhor se esqueceu de passar, Chiquinho...
Só havia algumas casas. A população escolar vinha toda dos
povoados de Norte-a-Baixo, quilómetros e mais quilómetros a fazer
e a desfazer todos os dias. Lá só mar e rochas. A terra era árida e
eriçada de colinas. À frente desatava-se a planície tempestuosa do
Mar do Norte.
Mamãe ficou desiludida com a minha colocação no Morro
Brás. A sua ambição de me ver leccionando na casa de aula, no
Caleijão, não pôde ser satisfeita. Escrevi uma carta furiosa a
Andrezinho. Manifestei a minha intenção de não aceitar a
nomeação. Demais a mais, ia ganhar um pataco furado em paga
daquele desterro. Mamãe-Velha fez-me ouvir a voz da razão. Para
que havia eu de me insurgir contra os governos do destino? Ela
ensinou-me a lição das gerações que me produziram. Foi por
vontade que o meu avô se perdeu no meio do mar, a bordo da
galera “Mary Curtiss”, naquele lugar mesmo do Golfo por onde
tantas vezes tinha passado? Não; acima da cabeça da criatura tem
um governo que nós não podemos entender direito. E António
Manuel? Ninguém diria que pessoa tão pegada nos trafêgos da casa
havia, já em idade amadurecida de homem, de embarcar lá para
aquelas terras da América, que ficam mais longe que catacumba-
de-fogo. Era a linha que o destino tinha governado.
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O meu amigo José Lima estava-se embebedando todas as
noites. Ainda conservo na alma o travo do terror que me dominou
quando descobri a tragédia do meu amigo. Não me lembra já o que
me levara à casa de José Lima. D. Alcinda bem me quis dissuadir
de chegar ao sobrado. Debruçado sobre a mesa, em que jaziam
papéis e livros, um cálice e uma garrafa de aguardente, o meu pobre
amigo levantou penosamente os olhos amortecidos. Desabou sobre
mim um chover de frases americanas. E foi um conselho dramático
que emergiu dessa explosão de náufrago:
— Chiquinho, mind yourself !
Por semanas, não tive coragem de aparecer a José Lima.
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Era seca, nua, devastadora como nas crises mais terríveis de
que rezava a crónica da minha ilha. Desaparecidas, todas as
esperanças, enganadas, as promessas de chuva. De todas as ribeiras
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Boquinha da noite. Eu estava sentado debaixo do pé de
azedinha, quase totalmente alheio às coisas deste mundo. Só via a
cara descarada de uma lua que estava vestindo a terra de uma
mortalha pardacenta. De repente fui despertado por gritos lanci-
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Logo cedinho, chegou-nos à soleira da porta um rapazotinho
de olhos tímidos. Trazia à cabeça um objecto embrulhado em restos
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Havia muito tempo que não víamos a mãe de Juloca. Um dia
ela chegou à nossa casa, com uma grande consumição no rosto. As
lágrimas espreitavam por entre as pestanas baixas.
— Chiquinho, precisava falar com você, pedir-lhe um favor...
— Onde tem estado nha Néné? Nunca mais Juloca apareceu cá
em casa...
Ela contou-nos que tinha estado ultimamente no Morro com os
seus meninos, em companhia da irmã.
— Mas ela também é fraca, coitada, só podia dar-nos amor e
boa vontade... Chiquinho, queria pedir-lhe um favor...
— Diga, nha Nené. . .
— Juloca está tão fraco... Não sei... Tenho tanto medo,
Chiquinho...
Na sua face emagrecida sobressaíam os olhos macerados de
chorar. Mamãe deu-lhe um pouco de papinha. Mas nha Nené
insistiu:
— Chiquinho, eu pedia para você ir comigo. Juloca está só
chamando por você, diz que vai morrer e queria ver o seu padrinho
de estimação...
Pelo caminho ela informou-me do estado do meu amigo. Há
dois dias caiu de cama, sempre consumido.
— Está pele e osso... Ontem à tarde teve um acidente que o
levou longe. Todos o julgaram morto.
Juloca mal se via no colchão grosso de coco de milho.
Aproximei-me da cama. Juloca estava amodorrado. Pus-lhe a mão
no ombro, de mansinho.
— Juloca !
Ele mexeu o corpo.
— Não me estás conhecendo, Juloca? Sou eu, Chiquinho...
O meu amigo acabou de chegar de uma grande viagem. Botou-
me uns olhos mansíssimos. Sua mão tacteou o meu corpo. Pegou na
minha mão. Havia agora alegria nos olhos de Juloca. Ele esteve-me
olhando longamente. A mãe soluçava, sentada na caixa de
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goiabeira.
— Chiquinho ! Aperta-me a minha mão... Mais, mais..
Junto da cama, dois dos irmãos de Juloca fitavam-me com
curiosidade. Fora da casa os mais novos faziam brincadeira de
navio numa tijela da Boa Vista, cheia de água suja.
A mão de Juloca foi a pouco e pouco abandonando-se sob a
pressão dos meus dedos. Depois o meu amigo deixou descair a
cabeça para o lado. Um dos irmãos aconchegou-lhe os pés na
manta. Chamei-o desesperadamente:
— Juloca, fala comigo, Juloca ! Vim estar contigo esta tarde
toda...
Nha Nené acorreu junto de nós. Abateu-se sobre a cama e
levantou o filho num abraço terrível de desespero. Depois foi a
mim que ela abraçou. Jejê puxou a manta até ao pescoço de Juloca
para o proteger da frieza.
Atirei-me para fora, chorando como um perdido.
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Houve um grande levante no S. João. Dos lados da Ribeira da
Caixa vem grande vozearia. Destacam-se os gritos agudos das
mulheres. De repente, rompe uma guisa alta. Acorre gente das
bocanas das travessas, a saber quem morreu. A guisa desce a
ladeira. Há desespero no choro. A gente de baixo começa também
um resmungo de guisa.
— O que é ? Quem morreu ?
Desemboca de uma travessa uma mulher a chorar alto. Ela
abana um lenço. Na guisa que desce da Ladeira alguém chora
constantemente:
— Ah, meu irmãozinho!
A mulher passa pelos que vieram dar fé e lança:
— Oh, Deus! É a sua fome... Falta é que está obrigando...
Um cavalheiro de gravata deteve-a a inquirir:
— É Lela que foi apanhar farinha em loja de gente, polícia
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Pimpinha é que levou a notícia. Logo depois do almoço eu
estava sentado na cadeira de balanço, na salinha, a ouvir Mamãe-
Velha, que contava um caso qualquer sucedido no Morro Morial.
Pimpinha chegou toda afrontada, bem apertada na sua blusa de
vichi, e nem deu as boas-horas: nhô Chic’Ana tinha morrido.
Mamãe-Velha iniciou logo um resmungo de guisa. Encomendou
nhô Chic’Ana à devoção de S. Miguel Arcanjo, que lhe guiasse os
passos à porta do Paraíso. Saí um instante para fora. Relanceei os
olhos pelos arredores, até ao alcance da vista. Hortas secas, cor
cinzenta, vegetação rala da carestia. Voltei para a salinha. Mamãe-
Velha continuava a rezar pelos passos que o Santo Filho de Deus
andou na Rua da Amargura. Pimpinha, encostada à porta da
entrada, lançava olhos curiosos pelos retratos da salinha.
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Nunca mais falaria com nhô Chic’Ana. Nhô Chic’Ana já não lhe
pediria mais lume para acender o cachimbo. Nhô Chic’Ana já não
lhe botaria a bênção. Ela já não tinha o seu Papai para lhe botar a
bênção. Adeus, nhô Chic’Ana. Que ela consolasse Mamãe.
Corresse a mão a Mamãe, que ficava neste mundo, tão angustiada.
Aproximei-me da cama. Nhanha Bonga recebeu-me com
grande admiração de choro. Ah Chiquinho! Tinha morrido o meu
grande amigo. Que iria Chiquinho fazer de ora avante na casinha do
Campo? Nhô Chic’Ana não botaria mais aqueles exemplos que
tanto me entretinham.
Nhô Chic’Ana estava todo mirrado, seu corpo magro a
perfurar de ossos a manta que o cobria. O meu velho amigo morreu
de fome. Encostei-me à cama, a cabeça tomada nas mãos
angustiadas. Os meus dias de infância povoados da presença de nhô
Chic’Ana. Ainda o vi, de corpo mais válido, na labuta da lavoura.
Nas tardes, eu vinha à casinha do Campo. Nhô Chic’Ana fazia-me
hominhos de barro, que ele baptizava com nomes da história de
Carlos Magno. Outras vezes, talhava-me navios de purgueira. E o
meu regalo era correr os navios no tanque de António Jejê com os
companheiros. Nhô Chic’Ana contava-me casos da sua vida de
marinheiro, as terras que ele tinha conhecido. As suas palavras
eram lentas, sentenciosas. Pedia ao velho que me contasse histórias:
— Nhô Chic’Ana, você conte um caso...
— Não tem tempo...
— Conte, nhô Chic’Ana!
— Nhor não, contar histórias de dia faz pelar a capela dos
olhos...
Mas eu conhecia-lhe o fraco. Tirava da algibeira um bocado de
erva para fumar, e logo nhô Chic’Ana estendia a mão.
E começava. Antigamente tinha uma casa muito grande no
fundo do mar. Lá dentro só morava uma mulher, que estava sempre
sentada numa cadeira de balanço. Ao pé dela estava um barril,
dentro do barril tinha uma bola de ferro, dentro da bola tinha uma
boceta, dentro da boceta uma pomba, dentro da pomba um ovo,
dentro do ovo um fio de cabelo. Neste fio de cabelo é que estava a
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breve iria ter de nhô Chic’Ana? Agora ia nhô Chic’Ana para a terra
da saudade. Companheiro de mais de cinquenta anos. Porque a
deixava a ela, velha e fraca, nesta vida castigada?
O acompanhamento saiu. Gente ia-se incorporando pelo
caminho. Nhô Chic’Ana nunca esperou ter tanto povo a levá-lo à
sua casa de debaixo-do-chão. Ainda lhe vi, antes do saímento, a
cara mirrada, em que os dentes se mostravam descascados no seu
sorriso resignado de pária, a-pesar-do lenço que lhe atava o queixo.
Parecia querer contar a nhô Chiquinho a sua última história, antes
de ir fumar cachimbo para o outro mundo.
Atravessámos o Caleijão, descemos a Ladeira da Lapa, e
apenas se ouvia de quando em quando um esboço de choro,
abafado nos lenços grandes das mulheres. Tirante isso, só a trupida
cadenciada dos passos descendo para a Vila.
Nhô Chic’Ana foi posto na porta da igreja. Os sinos não
tocaram sinal. O padre apareceu com o sacristão e rapidamente
rezou umas rezas. O terreiro da igreja tinha-se calado, caladinho.
Nem sequer os garotos andavam jogando a bola. O ponteiro do
relógio da Sé estava quase sobre as quatro. Um raio de sol brincava
no mostrador. Quase quatro, a reza de nhô Chic’Ana à porta da
Igreja.
O acompanhamento atravessou a ponte velha. A ponte fora
feita para estabelecer comunicação entre as duas vertentes da Vila
nos dias de grande ribeira. Mas agora ela estava velha, a cair
tábuas. Na estrada do Lombinho o acompanhamento alongou-se
nos cotovelos do caminho, sobranceiro à Maiama. Tudo seco. Secas
as bananeiras. Secos os plenos de cana. Só os coqueiros erguiam o
corpo esguio, com o cocuruto à espreita do mar, a uivar na boca da
ribeira. Mais para diante, enviusando um pouco para a direita, eram
as planícies famintas do Norte-a-Baixo. A fome era lá mais rapada,
mais crã.
Seguia o enterro de nhô Chic’Ana. Lá estava em baixo,
alvejando de paredes caiadas, o cemitério da Tabuga. E o corpo de
nhô Chic’Ana ia balançando docemente aos ombros dos crioulos.
Era um crioulo que ia a enterrar. Os crioulos iam dar terra a um
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O mar também era o meu caminho. Papai, com as notícias que
lhe iam chegando, perguntou-me se eu queria ir para América. Tio
Joca apoiou imediatamente. Mamãe lamentou o destino que me
obrigava a largar a minha terra. Mas também, ela não queria que eu
ficasse pasmando pelo Caleijão, como gente sem eira nem beira.
Tio Joca convenceu-me:
— Não hás-de querer acabar a tua vida entre estas rochas,
vendendo açúcar e petróleo numa tasquinha...
Escrevi para S. Vicente uma carta a Andrezinho propondo que
o grupo emigrasse em massa. O “Erudito” foi sóbrio na sua
resposta. “Vai tu, se queres. Eu fico. Tenho cá muito que fazer”. E
acabou pedindo-me que da América lhe mandasse documentação
sobre a maneira de viver dos nossos emigrantes. Estudasse
principalmente a actividade associativa dos caboverdeanos. O
grupo ficava à espera de um romance sobre o caboverdeano
emigrado. Os meus contos românticos da Fonte de Cónego faziam
de mim o novelista oficial do Grémio.
Nono mandou-me da Boa Vista a letra da morna que fez à
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tão claro que parecia que a Lua estava dando uma serenata a Nossa
Senhora. De repente, ouvi uma cantiga...
Era Sirena. A moça-do-mar tinha meio corpo acima da água.
Depois ela calou a cantiga e disse a nhô João:
— Eu sou a moça-do-mar...
Nhô João disse-lhe:
— Você é bem bonita... Você anda cantando para Nossa
Senhora se divertir ?
— Não. Ando a cantar só para você ouvir...
— Muito obrigado, Sirena. Quando eu passar novamente por
este lugar, trago um raminho de manjerona para você enfeitar os
seus cabelos.
— O que é que você quer, marinheiro? Diga, que eu tudo lhe
darei...
— Quero uma casa grande e muito bonita para eu morar...
— Dar-te-ei uma casa como nunca viste. Bonita, bonita de
endoidecer...
— Quero uma noiva mais bonita que Brancaflor...
— Tua noiva será mais bonita que Brancaflor...
— Bonita como Brancaflor não quero porque ela se enfariaria
de mim por eu não ser tão bonito como Passo-Amor...
— Virarás bonito como Passo-Amor...
— Quero hortas boas para eu trabalhar...
— Dou-te hortas em que crescerão plantas com nunca viste...
— Chuvas para molhar minhas hortas...
— Quando quiseres que chova, faz uma serenata à Lua, a Lua
chorará, e as suas lágrimas molharão tuas hortas...
E no primeiro porto em que tocou, nhô João mandou tatuar
Sirena no braço direito.
Tói Mulato era agora marinheiro de longo curso. Do “Vitória”
passou para um quatro-mastros que filhos da Brava compraram na
América. Tói ia enfim conhecer os temporais do Golfo.
Não pude despedir-me de Chico Zepa, desterrado para a ilha
do Sal, pela sua intervenção no levante do S João. O seu vapor
acanalhou-se no falucho que o levou de S. Nicolau. E com certeza
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uma boa casa para receber Nuninha. Uma boa casa para Nuninha.
Conhecia nomes muito bonitos de casas que a gente habita quando
larga para trás as terras das ilhas. Papai morava em 102 South
Second Street. Nha Maria Lai tinha voltado há pouco de uma
dessas casas. Elas deviam ter dentro coisas muito bonitas, a tirar
pelo que nha Maria Lai trouxe. Camas de spring, gramofone,
pianola, cómodas, louça fina, um ror de coisas. Nada disso as ilhas
davam à sua escravatura. Escravo não merece mais que a cama de
cancarã, uma caixa de goiabeira, louça da Boa Vista e um pote ao
canto da casa. Eu não concebia Nuninha morando assim. Chiquinho
gastando a vida à espera de um lugar de professor de posto durante
alguns meses, em paga de uma coisa de nada, e o resto do ano
pasmando para as rochas e a perguntar ao céu quando choveria. O
grogue à minha espera; como uma cocaína. Seria massacrar a vida
de Nuninha sujeitá-la a tal provação.
Por muitos anos que me fosse dado viver, eu via Nuninha
sempre em termos do presente. Ela ficava para sempre a morena de
corpo lançado e olhos quebrados que eu afagava em horas de
morabeza.
Ia retomar o caminho de vovô. Eu era novamente Chiquinho, o
Chiquinho de Mamãe-Velha e de nha Rosa Calita. Companheiro de
Tói Mulato nas viagens desvairadas que a Lua e as estrelas nos
convidavam para esses mundos além. E vovô era o meu camarada,
por entre as traições da superfície da água, na conquista do amor.
Ele foi com a moça-do-mar, mas eu tinha uma crioula que me
oferecia um amor mais quente que o de Sirena.
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Estava tudo pronto. Todavia ainda Mamãe se deteve diante da
minha mala, a dar uma última demão às coisas. Eu seguia na escuna
“Atalanta”, pertencente a emigrantes da Brava, que ia a S. Nicolau
tomar os passageiros para a América. A minha ilha era o seu último
porto antes do mar largo.
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