Antologia Mario Andrade

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Ufrgs Instituto de Letras Declave Literatura brasileira C Prof. Antônio Marcos V.

Sanseverino 2011/1

Poesia de Mário de Andrade (1893-1945)


minha vida”. Poderíamos ainda referir o título do próprio livro em
NOTAS INICIAIS que a cidade é nomeada por seu apelida (Paulicéia) e o desvario
a) Poesia moderna e exageros poeta reflete-se nela.
Segundo LAFETÁ, o exagero, como uma marca negativa,
não é pode ser visto como manifestação do subconsciente lírico, c) Fragmentação do sujeito lírico
nem pode é ser considerado um defeito da poesia de Mário de Vejamos a citação abaixo:
Andrade. Ao contrário, ele é como marca negativa do momento De fato, a subjetividade está ali submetida a grande
histórico. A partir da citação acima, podemos analisar o nexo de pressão, que estoura tudo – o eu, a cidade, a linguagem – tudo
Paulicéia Desvairada com a arte de vanguarda.. submetendo à fragmentação. Como no caso das pulsões,
analisadas por Freud, nunca se pode apreender diretamente o
No caso da Paulicéia, como bem viu Mário de Andrade,
sujeito lírico, que desliza de metamorfose em metamorfose,
era preciso manter os “exageros”, pois eles eram bem
manifestando-se móvel, arlequinal, ora numa, ora noutra forma.
“representativos” do “estado da alma” – mais que documento
Suas vicissitudes deixam marcas na linguagem dos poemas,
condescendente do subconsciente lírico, como pensava Tristão,
cicatrizes que testemunham a complexidade das forças
eles eram marcas negativas (quase no mesmo sentido em que se
libertadoras e repressivas em jogo. (LAFETÁ, p. 63)
fala de negativo fotográfico) do momento histórico. Era através
dessas marcas-exageros que o mundo da negação ficava Segundo LAFETÁ, a linguagem poética de Mário de
representado nos poemas, formas negativas bem dignas da Andrade estoura tudo, submetendo tudo à fragmentação. A
grandeza da arte de vanguarda. (LAFETÁ, p. 59)
fragmentação acima apontada, aparece com força em O cortejo,
b) Cidade moderna e sujeito lírico poema em anexo.
Como se dá em Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade, d) Feio, categoria negativa e poesia moderna
o vínculo entre sujeito lírico e a cidade de São Paulo? “Pois quem é Leia a citação abaixo:
que se encontra desvairado, o eu ou a cidade” (LAFETÁ, p. 59) Desde Já raciocinou sobre o chamado “belo horrível” ? É pena.
o primeiro poema do livro, Inspiração, podemos perceber a natureza O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da
dessa relação entre sujeito e cidade representada. Existe uma orelha de certos filósofos para justificar a atração pelo feio
relação afetiva que aparece já na expressão “São Paulo! Comoção de sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista,
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reproduzindo o feio, o horrível, só porque está expressado com metamorfose, ganham feição grotesca. Relacionando com as
grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito categorias negativas que passaram a definir a poesia de vanguarda,
da beleza. Mas feio = pecado... Atrai. isso mostra o esforço da poesia modernista de Mário de Andrade
(ANDRADE. Prefácio interessantíssimo, p. 64)
em romper com a tradição parnasiana.
A partir da citação acima, retirada do prefácio de
Paulicéia desvairada, observa O rebanho, poema em anexo. Pelo
olhar delirante do eu poético, as pessoas observadas sofrem uma

Pequena seleção de poemas de MÁRIO DE ANDRADE


Paulicéia Desvairada
Inspiração Como um possesso num acesso
em meus aplausos
“Onde até na força do verão havia
Aos salvadores do meu estado
tempestades de ventos e frios de
amado!
crudelíssimo inverno.”
Fr. Luís de Sousa Desciam, inteligentes, de mãos
São Paulo! Comoção de minha vida... dadas,
Os meus amores são flores feitas de original... Entre o trepidar dos táxis
vascolejantes,
Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...
A rua Marechal Deodoro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Oh! minhas alucinações!
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Como um possesso num acesso
Perfumes de Paris... Arys! em meus aplausos
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... Aos heróis do meu estado
amado!
São Paulo! Comoção de minha vida... E as esperanças de ver tudo
Galicismo a berrar nos desertos da América! salvo!
Duas mil reformas, três
O trovador projetos...
Sentimentos em mim do asperamente Emigram os futuros noturnos...
dos homens das primeiras eras... E verde, verde, verde!...
As primaveras de sarcasmo Oh! minhas alucinações!
Mas os deputados chapéus
intermitentemente no meu coração arlequinal...
altos,
Intermitentemente...
Mudavam-se pouco a pouco em
Outras vezes é um doente, um frio cabras!
na minha alma doente como um longo som redondo Crescem-lhes os cornos,
Cantabona! Cantabona! descem-lhes barbinhas...
Dlorom... E vi os chapéus altos do meu
estado amado,
Sou um tupi tangendo um alaúde!
Com os triângulos de madeira
OS CORTEJOS no pescoço,
Monotonias das minhas retinas... Nos verdes esperanças, sob as
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar... franjas de ouro da tarde,
Todos os sempres das minhas visões! “Bom giorno, caro”. Se punham a pastar
Rente ao Palácio do senhor
Horríveis as cidades! presidente...
Vaidades e mais vaidades.... Oh! minhas alucinações!
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! os tumultuários das ausências! e os jorros dentre a língua
Paulicéia – a grande boca de mil dentes; trissulca
de pus e de mais pus de
O rebanho distinção...
Oh! minhas alucinações! Giram homens fracos, baixos,
Vi os deputados, chapéus altos, magros...
Sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas, Serpentinas de entes
Saírem de mãos dadas do Congresso... frementes a se desenrolar...
Estes homens de São Paulo, Nas mãos de um espanhos.
todos iguais e desiguais, Arlequinal...
quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos, Há duas horas queimou o sol.
parecem-me uns macacos, uns macacos. Daqui a duas horas queima o
sol.
Domingo
Passa um São Bobo, cantando,
Missas de chegar tarde, em rendas,
sob os plátanos,
e dos olhares acrobáticos...
Um tralalá... A guarda-cívica!
Tantos telégrafos sem fio!
Prisão!
Santa Cecília regorgita de corpos lavados
Necessidade a prisão
e de sacrilégios picturais...
Para que haja civilização¿
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote no “Confiteor”... Constrastar! Meu coração sente-se muito
– Futilidade, civilização... triste...
Enquanto o cinzento das ruas
Hoje quem joga?... O Paulistano. arrepiadas
Para o Jardim América das rosas e dos ponta-pés! Dialoga um lamento com o
Friederich fez goal! Corner! Que juiz! vento...
Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô...
Meu coração sente-se muito
– Futilidade, civilização...
alegre!
Mornamente em gasolinas... Trinta e cinco contos! Este friozinho arrebitado
Tens dez mil réis? Vamos ao corso... Dá uma vontade de sorrir!
E filar cigarrros a quinzena inteira... E sigo. E vou seguindo,
Ir ao corso é lei. Viste Marília? À inquieta alacridade da
E Filis? Que vestido: pele só! invernia,
Como um gosto de lágrimas na
Automóveis fechados... Figuras imóveis...
boca...
O bocejo do luxo... Enterro.
E também as famílias dominicais por atacado,
Entre os convenintes perenemente...
TRISTURA
Um rose dans le
– Futilidade, civilização...
ténèbres
Central. Drama de adultério.
Abertini arranca os cabelos e morre. Mallarmé
Fugas... Tiros... Tom Mix! Profundo. Imundo meu
Amanhã fita alemã... de beiços... coração...
As meninas mordem os beiços pensando em fita alemã... Olha o edifício: Matadouros da
As romas de Petrônio... Continental.
E o leito virginal... Tudo azul e branco! Os vícios viciaram-me na
Descansar... Os anjos... Imaculado! bajulação sem sacrifícios...
As meninas sonham masulinidades... Minha alma corcunda como a
Futilidade, civilização... avenida São João...
E dizem que os polichinelos são
PAISAGEM Nº 1 alegres!
Minha Londres das neblinas finas...
Eu nunca em guisos nos meus
Pleno verão. Os dez milhões de rosas paulistanas.
interiores arlequinais!...
Há neves de perfumes no ar.
Faz frio, muito frio... Paulicéia, minha noiva... Há
E a ironia das pernas das costureirinhas matrimônios assim...
Parecidas com bailarinas... Ninguém os assistirá jamais!
O vento é como uma navalha
As permanências de ser um na febre! As alucinações crucificantes
De todas as auroras do meu
Nunca nos encontramos...
jardim!
Mas há rendez-vous na meia-noite do Armenoville...
Ode ao Burguês (Paulicéia
E tivemos uma filha, uma só... Desvairada, 89)
Batismos do sr. cura Bruma: Eu insulto o burguês! O
água benta das garoas monótonas... burguês-níquel
Registei no cartório da Consolação... o burguês-burguês!
Chamei-a Solitude das Plebes... A digestão bem-feita de São
Pobres cabelos cortandos da nossa monja! Paulo!
O homem-curva! O homem-
TU nádegas!
Morrente chama esgalga , O homem que sendo francês,
Mais morta inda no espírito! brasileiro, italiano,
Espírito de fadiga, é sempre um cauteloso pouco-
Que vive num bocejo entre dois galanteios a-pouco!
E de longe em longe uma chávena da treva bem forte!
Eu insulto as aristocracias
Mulher mais longa
cautelosas!
Que os pasmos alucinados
Os barões lampiões! Os condes
Das torres de São Bento!
Joões! Os duques zurros!
Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea,
Que vivem dentro de muros
Toda insultos nos olhos,
sem pulos,
Toda convite nessa boca louca de rubores!
e gemem sangue de alguns mil-
Costureirinha de São Paulo, réis fracos
Ítalo-franco-luso-brasílico-saxônica, para dizerem que as filhas da
Gosto dos seus crepusculares, senhora falam o francês
Crepusculares e por isso mais andentes, e tocam os "Printemps" com as
Bandeirantemente! unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
Lady Macabeth feita de névoa fina,
O indigesto feijão com
Pura neblina da manhã!
toucinho, dono das tradições!
Mulher que és minha madrasta e minha mãe!
Fora os que algarismam os
Trituração ascencional dos meus sentidos!
amanhãs!
Riscos de aeroplano entre Mogi e Paris!
Olha a vida dos nossos
Pura neblina da manhã!
setembros!
Gosto dos teus desejos de crime turco Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
E das tuas ambições retorcidas como roubos! Mas à chuva dos rosais
Amo-te de pesadelos taciturnos, o êxtase fará sempre Sol!
Materialização da Canaã do meu Poe...
Never more! Morte à gordura!
Morte às adiposidades
Emílio de Menezes insultou a memória de meu Poe... cerebrais!
Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros! Morte ao burguês-mensal!
Tu és o meu gato preto! Ao burguês-cinema! Ao
Tu me esmagaste nas paredes do meu sonho! burguês-tiburi!
Este sonho medonho! Padaria Suíssa! Morte viva ao
Adriano!
E serás sempre, morrente chama esgalga, "— Ai, filha, que te darei pelos
Meio fidalga, meio barregã, teus anos?
— Um colar... — Conto e quinhentos!!!
Más nós morremos de fome!" Brasil...
Mastigado na gostosura quente
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
do amendoim...
Oh! purée de batatas morais!
Falado numa língua curumim
Oh! cabelos nas ventas! Oh! carecas!
De palavras incertas num
Ódio aos temperamentos regulares!
remeleixo melado melancólico...
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Saem lentas frescas
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados
trituradas pelos meus dentes
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
bons...
sempiternamente as mesmices convencionais!
Molham meus beiços que dão
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
beijos alastrados
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
E depois murmuram sem
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
malícia as rezas bem nascidas...
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos, Brasil amado não porque seja a
cheirando religião e que não crê em Deus! minha pátria,
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Pátria é acaso de migrações e
Ódio fundamento, sem perdão! do pão-nosso onde Deus der...
Fora! Fu! Fora o bom burguês!... Brasil que eu amo porque é o
ritmo do meu braço
aventuroso,
CLÂ DO JABOTI (1927)
O gosto dos meus descansos,
O POETA COME AMENDOIM
O balanço das minhas cantigas
A Carlos Drummond de Andrade amores e danças.
Noites pesadas de cheiros e calores amontoados... Brasil que eu sou porque é a
Foi o Sol que por todo o sítio imenso do Brasil minha expressão muito
Andou marcando de moreno os brasileiros. engraçada,
Porque é o meu sentimento
Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar
A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos... dinheiro, de comer e de
dormir.
Silêncio! O Imperador medita os seus versinhos.
Os Caramurus conspiram na sombra das mangueiras ovais.
Só o murmurejo dos cre’m-deus-padre irmanava os homens de meu país...
Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,
Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu... Remate dos Males
(1930)
Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.
A gente ainda não sabia se governar... EU SOU TREZENTOS
Progredir, progredimos um tiquinho (7/VI/1929)
Que progresso também é uma fatalidade...
Eu sou trezentos, sou
Será o que Nosso Senhor quiser!...
trezentos-e-cincoenta,
Estou com desejos de desastres...
As sensações renascem de si
mesmas sem repouso,
Com desejos do Amazonas e dos ventos muriçocas
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh
Se encostando na cangerana dos batentes...
Tenho desejos de violas e solidões sem sentido
Tenho desejos de gemer e de morrer.
caiçaras! Ver sopa de caruru;
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
A vida é mesmo um buraco,
Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios; Bobo é quem não é tatu!
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou um escritor difícil,
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo... Porém culpa de quem é!...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa, Todo difícil é fácil,
E então minha alma servirá de abrigo.
Abasta a gente saber.

Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"

A costela do grã cão De tão fácil virou fóssil,

Lundu do Escritor Difícil (1928) O difícil é aprender!

Eu sou um escritor difícil Virtude de urubutinga

Que a muita gente enquizila, De enxergar tudo de longe!

Porém essa culpa é fácil Não carece vestir tanga

De se acabar duma vez: Pra penetrar meu caçanje!

É só tirar a cortina Você sabe o francês "singe"

Que entra luz nesta escurez. Mas não sabe o que é guariba?

Cortina de brim caipora,

Com teia caranguejeira — Pois é macaco, seu mano,

E enfeite ruim de caipira, Que só sabe o que é da


estranja.
Fale fala brasileira

Que você enxerga bonito

Tanta luz nesta capoeira

Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,

Mas gaúcho maranhense

Que pára no Mato Grosso,

Bate este angu de caroço

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