Física Atômica E Conhecimento Humano
Física Atômica E Conhecimento Humano
Física Atômica E Conhecimento Humano
© by Aage Bohr
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César Benjamin
Revisão tipográfica Tereza da Rocha
Projeto gráfico Regina Ferraz
Ficha catalográfica
Seção de Catalogação e Classificação do Núcleo de Documentação da UFF
B 677 Bohr, Niels, 1885-1962
NIELS BOHR
Copenhague
Agosto de 1957
Sumário
Introdução
Luz e vida
Terapia através da Luz, Copenhague, agosto de 1932. Publicado
em Nature, 131, 421 (1933).
1 Ao interagir, dois sistemas da mecânica quântica são descritos por uma função de onda
global, que, em geral, não pode ser expressa como uma combinação das funções de onda de
cada sistema. Portanto, os dois sistemas terão suas variáveis físicas correlacionadas, mesmo
quando distanciados um do outro. Por isso diz-se que os fenômenos quânticos apresentam
uma “característica de globalidade” [wholeness], não podendo ser reduzidos à soma de suas
partes. Ao longo dos ensaios reunidos neste volume, o conceito será usado de forma
reiterada, tornando-se mais claro o seu significado. (n. do r.)
Luz e vida
1932
1937
1938
1949
E = hν e P = hσ, (1)
∆q ⋅ ∆p ≈ h, (3)
FIGURA 1
Para ilustrar sua atitude, Einstein referiu-se, numa das sessões,9 ao
exemplo simples, ilustrado pela figura 1, de uma partícula (elétron ou
fóton) que, por um orifício ou uma abertura estreita, passasse através
de um diafragma situado a uma certa distância de uma chapa
fotográfica. Em virtude da difração da onda, ligada ao movimento da
partícula e indicada na figura pelas linhas finas, não é possível prever
com certeza, nessas condições, em que ponto o elétron chegará à
chapa fotográfica, mas apenas calcular a probabilidade de que, num
experimento, ele seja encontrado dentro de uma região qualquer da
chapa. Nessa descrição, a aparente dificuldade, que Einstein sentiu
com tanta agudeza, está no fato de que, se o elétron for registrado no
experimento num ponto A da chapa, estará fora de questão observar
um efeito desse elétron num outro ponto (B), embora as leis da
propagação usual da onda não deem margem alguma para que esses
dois eventos sejam correlacionados dessa forma.
A atitude de Einstein deu margem a discussões acaloradas num
pequeno círculo, do qual Ehrenfest, que por anos fora amigo íntimo
de nós dois, participou de maneira muito ativa e proveitosa. Decerto,
todos reconhecemos que, no exemplo acima, a situação não apresenta
nenhuma analogia com a aplicação da estatística para lidar com
sistemas mecânicos complexos, mas faz lembrar, antes, os antecedentes
das primeiras conclusões do próprio Einstein sobre a
unidirecionalidade dos efeitos da radiação individual, que contrasta
tão vigorosamente com uma imagem ondulatória simples. Mas as
discussões centraram-se na questão de determinar se a descrição da
mecânica quântica esgotava as possibilidades de explicar fenômenos
observáveis, ou se, como sustentava Einstein, a análise podia ser
levada adiante e, em especial, se uma descrição mais completa dos
fenômenos poderia ser obtida levando-se em conta o balanço
detalhado da energia e do momento nos processos individuais.
Para explicar a linha dos argumentos de Einstein, talvez seja
ilustrativo examinar, aqui, alguns aspectos simples do balanço entre
momento e energia ligados à localização de uma partícula no espaço e
no tempo. Para esse fim, examinaremos o caso simples de uma
partícula que penetre por um orifício num diafragma, sem ou com um
obturador para abrir e fechar o orifício, como indicam as figuras 2a e
2b, respectivamente. As linhas paralelas equidistantes à esquerda das
figuras indicam a série de ondas planas correspondente ao estado de
movimento de uma partícula que, antes de chegar ao diafragma, tem
um momento P, relacionado com o número de ondas σ conforme a
segunda das equações (1). De acordo com a difração das ondas ao
atravessarem o orifício, o estado de movimento da partícula à direita
do diafragma é representado por uma série de ondas esféricas, com
uma abertura angular θ adequadamente definida e, no caso da figura
2b, também com uma extensão radial limitada. Consequentemente, a
descrição desse estado envolve uma certa incerteza ∆p no componente
de momento da partícula que é paralelo ao diafragma, e, no caso de
um diafragma com obturador, uma incerteza adicional ∆E da energia
cinética.
FIGURA 2a
FIGURA 2b
Já que uma medida da incerteza ∆q na localização da partícula no
plano do diafragma é fornecida pelo raio a do orifício, e já que θ ≈
1⁄σa, obtemos, usando (1), apenas ∆p ≈ θP ≈ h⁄∆q, de acordo com a
relação de indeterminação (3). Este resultado também poderia ser
diretamente obtido, é claro, notando-se que, em virtude da extensão
limitada do campo de onda no lugar da abertura, a componente do
número de ondas paralela ao plano do diafragma acarretará uma
incerteza ∆σ ≈ 1⁄a ≈ 1⁄∆q. Da mesma forma, a difusão das frequências
dos componentes harmônicos da série ondulatória limitada da figura
2b é, evidentemente, ∆ν ≈ 1⁄∆t, onde ∆t é o intervalo de tempo
durante o qual o obturador deixa o orifício aberto; portanto,
representa a incerteza temporal da passagem da partícula pelo
diafragma. A partir de (1), obtemos
∆E ⋅ ∆t ≈ h, (4)
FIGURA 4
No estudo dos fenômenos para cuja explicação lidamos com um
balanço detalhado do momento, algumas partes do dispositivo
completo devem ter, naturalmente, a liberdade de se movimentar
independentemente das demais. Um aparelho desse tipo é
esquematizado na figura 5, onde um diafragma com uma fenda é
pendurado por molas finas num suporte sólido atarraxado à base, à
qual outras partes imóveis do dispositivo também devem ficar presas.
A escala do diafragma, junto com o ponteiro na lateral do suporte,
refere-se a estudos do movimento do diafragma que possam ser
necessários para uma estimativa do momento transferido para ele,
permitindo que se tirem conclusões quanto à deflexão sofrida pela
partícula na passagem pela fenda. Entretanto, já que qualquer leitura
da escala, como quer que seja efetuada, implicará uma variação
incontrolável no momento do diafragma, sempre haverá, de acordo
com o princípio de indeterminação, uma relação recíproca entre nosso
conhecimento da posição da fenda e a exatidão do controle do
momento.
Nesse mesmo estilo semissério, a figura 6 representa parte de um
aparelho adequado ao estudo de fenômenos que, em contraste com os
que acabamos de discutir, implicam explicitamente a localização
temporal. Ele consiste num obturador rigidamente conectado a um
relógio robusto, apoiado na base, que tem um diafragma e na qual
também devem ser fixadas outras peças de caráter similar, reguladas
pelo mesmo relógio ou por outros, padronizados em relação a ele. O
objetivo especial da figura é enfatizar que um relógio é uma máquina
cujo funcionamento pode ser completamente explicado pela mecânica
comum, e que não é afetada nem pela leitura da posição de seus
ponteiros nem pela interação de seus acessórios e de uma partícula
atômica. Assegurando a abertura do orifício num momento definido,
um aparelho desse tipo poderia ser usado, por exemplo, para uma
medição exata do tempo que leva um elétron ou um fóton para ir do
diafragma até algum outro lugar, mas, evidentemente, não daria
nenhuma possibilidade de controlar a transferência de energia para o
obturador, no intuito de tirar conclusões quanto à energia da partícula
que passa pelo diafragma. Se estivermos interessados nessas
conclusões, deveremos, é claro, usar um arranjo em que os
dispositivos de obturação já não poderão servir de relógios exatos,
mas em que o conhecimento do instante em que o orifício do
diafragma é aberto implicará uma incerteza ligada à precisão da
mensuração da energia pela relação geral (4).
FIGURA 5
A consideração desses dispositivos mais ou menos práticos e de seu
uso mais ou menos fictício revelou-se muito instrutiva para dirigir a
atenção para certos aspectos essenciais dos problemas. O principal,
aqui, é a distinção entre os objetos investigados e os instrumentos de
medida que servem para definir, em termos clássicos, as condições em
que os fenômenos aparecem. A propósito, podemos assinalar que,
para ilustrar as considerações precedentes, não é relevante constatar
que os experimentos que implicam um controle exato da transferência
de momento ou de energia das partículas atômicas para corpos
pesados, como os diafragmas e os obturadores, seriam muito difíceis
de efetuar, se é que seriam exequíveis. A única coisa decisiva é que, em
contraste com os instrumentos de medida apropriados, esses corpos,
juntamente com as partículas, constituiriam, nesse caso, o sistema a
que teria que ser aplicado o formalismo quântico. Com respeito à
especificação das condições para uma aplicação bem definida do
formalismo, é ainda essencial que todo o dispositivo experimental seja
levado em conta. Na verdade, a introdução de qualquer outro
aparelho na trajetória de uma partícula, como um espelho, por
exemplo, poderia produzir novos efeitos de interferência, que
influenciariam essencialmente nas previsões referentes aos resultados a
serem finalmente registrados.
FIGURA 6
O grau em que a renúncia à visualização dos fenômenos atômicos
nos é imposto, pela impossibilidade de sua subdivisão, é
expressivamente ilustrado pelo exemplo seguinte, para o qual Einstein
chamou a atenção desde cedo e ao qual voltou muitas vezes. Quando
um espelho semirrefletor é colocado na trajetória de um fóton,
deixando duas possibilidades para sua direção de propagação, o fóton
pode, ou ser registrado numa e apenas numa de duas chapas
fotográficas situadas a grandes distâncias nas duas direções em
questão, ou então, em se substituindo as chapas por espelhos,
podemos observar efeitos que exibem uma interferência entre as duas
séries ondulatórias refletidas. Assim, em qualquer tentativa de
representação pictórica do comportamento do fóton, depararíamos
com esta dificuldade: sermos obrigados a dizer, por um lado, que o
fóton sempre escolhe uma das duas trajetórias e, por outro, que se
comporta como se houvesse passado por ambas.
São justamente os argumentos desse tipo que relembram a
impossibilidade de subdividir os fenômenos quânticos e revelam a
ambiguidade de qualquer imputação de atributos físicos habituais aos
objetos atômicos. Em particular, convém perceber que — sem contar a
descrição do posicionamento e da regulagem de tempo dos
instrumentos que compõem o dispositivo experimental — qualquer
utilização inambígua de conceitos espaçotemporais na descrição dos
fenômenos atômicos limita-se ao registro de observações que se
referem a marcas numa chapa fotográfica, ou a efeitos de amplificação
similares, praticamente irreversíveis, como o crescimento de uma gota
d’água em volta de um íon numa câmara de nuvens. Embora, é claro,
a existência do quantum de ação seja responsável, em última
instância, pelas propriedades dos materiais de que são construídos os
instrumentos de medida e dos quais depende o funcionamento dos
dispositivos de registro, essa circunstância não é relevante para os
problemas da adequação e da completude da descrição quântica em
seus aspectos aqui discutidos.
Esses problemas foram instrutivamente comentados, sob diferentes
ângulos, na reunião do Solvay,10 na mesma sessão em que Einstein
levantou suas objeções gerais. Nessa ocasião, surgiu também um
interessante debate a respeito de como falar do aparecimento de
fenômenos sobre os quais só se podem fazer previsões de caráter
estatístico. A questão era se, com respeito à ocorrência de efeitos
individuais, deveríamos adotar uma terminologia proposta por Dirac,
dizendo que estávamos interessados numa escolha feita pela
“natureza”, ou se, como sugerido por Heisenberg, deveríamos dizer
que estávamos lidando com uma escolha do “observador” que
constrói os instrumentos de medida e faz a leitura de seus registros.
Qualquer terminologia desse tipo, entretanto, pareceria dúbia, já que,
por um lado, não é propriamente razoável dotar a natureza de
volição, no sentido corriqueiro, enquanto, por outro, certamente não é
possível que o observador influa nos acontecimentos passíveis de
surgir nas condições que ele instaura. A meu ver, não há outra
alternativa senão admitir que, nesse campo da experiência, lidamos
com fenômenos individuais, e que nossas possibilidades de manejar os
instrumentos de medida só nos permitem fazer uma escolha entre os
diferentes tipos complementares de fenômenos que queremos estudar.
Os problemas epistemológicos em que tocamos aqui foram mais
explicitamente examinados em minha contribuição para a edição de
Naturwissenschaften que comemorou o septuagésimo aniversário de
Planck, em 1929. Naquele artigo, também foi feita uma comparação
entre a lição extraída da descoberta do quantum universal de ação e o
desenvolvimento que se seguiu à descoberta da velocidade finita da luz
e que, através do trabalho pioneiro de Einstein, trouxe tão grande
esclarecimento sobre alguns princípios básicos da filosofia natural. Na
teoria da relatividade, a ênfase no fato de que todos os fenômenos
dependem do sistema de referência abrira caminhos inéditos para se
descobrirem leis gerais da física, de alcance ímpar. Na teoria quântica,
afirmei, a compreensão lógica de regularidades fundamentais antes
insuspeitadas, regendo os fenômenos atômicos, exigira o
reconhecimento de que não se pode fazer nenhuma separação nítida
entre o comportamento independente dos objetos e sua interação com
os instrumentos de medida que definem o sistema de referência.
Nesse aspecto, a teoria quântica apresenta-nos uma situação inédita
na ciência física, mas chamei atenção para a analogia muito estreita,
no tocante à análise e à síntese da experiência, com a situação
encontrada em muitos outros campos do conhecimento e do interesse
humanos. Como se sabe, muitas das dificuldades da psicologia
originam-se no posicionamento diferente das linhas de separação entre
o objeto e o sujeito, na análise de vários aspectos da experiência
psíquica. Na verdade, palavras como “pensamentos” e “sentimentos”,
igualmente indispensáveis para ilustrar a variedade e o alcance da vida
consciente, são usadas de um modo complementar, semelhante ao da
coordenação espaçotemporal e das leis de conservação dinâmicas na
física atômica. Uma formulação precisa dessas analogias implica, é
claro, complexidades terminológicas, e a melhor indicação da postura
do autor talvez se encontre numa passagem do artigo que sugere a
relação mutuamente excludente que sempre existirá entre o uso
prático de qualquer palavra e as tentativas de lhe dar uma definição
estrita. Contudo, o objetivo principal dessas considerações, que foram
também inspiradas pela esperança de influenciar a atitude de Einstein,
foi apontar para as perspectivas de ressaltar os problemas
epistemológicos gerais através da lição extraída de uma experiência
física nova, mas fundamentalmente simples.
FIGURA 7
Como um arranjo adequado para esse fim, Einstein propôs o
dispositivo indicado na figura 7, composto de uma caixa com uma
abertura lateral, que poderia ser aberta ou fechada por um obturador
acionado por um relógio no interior da caixa. Se, no começo, a caixa
contivesse uma certa quantidade de radiação e o relógio fosse
programado para abrir o obturador por um intervalo curtíssimo num
instante escolhido, seria possível conseguir que um único fóton fosse
liberado pela abertura num instante conhecido com toda a precisão
que se desejasse. Além disso, aparentemente também seria possível,
pesando-se a caixa inteira antes e depois desse evento, medir a energia
do fóton com toda a precisão desejada, o que definitivamente entraria
em contradição com a indeterminação recíproca do tempo e das
quantidades de energia na mecânica quântica.
Essa argumentação foi um sério desafio e deu origem a um exame
minucioso de todo o problema. No fim do debate, para o qual o
próprio Einstein contribuiu efetivamente, ficou claro, no entanto, que
a tese não era sustentável. De fato, no exame do problema, verificou-
se que era necessário examinar mais de perto as consequências da
identificação da massa inercial com a massa gravitacional, decorrente
da aplicação da relação (5). Em particular, seria essencial levar em
conta a relação entre a taxa, ou ritmo, do relógio e sua posição num
campo gravitacional — conhecida pelo desvio para o vermelho das
linhas no espectro solar —, decorrente do princípio de equivalência de
Einstein entre os efeitos da gravidade e os fenômenos observados em
sistemas de referência acelerados.
FIGURA 8
Nossa discussão concentrou-se na possível aplicação de um aparelho
que incorporasse o dispositivo de Einstein, desenhado, na figura 8, no
mesmo estilo pseudorrealista de algumas das figuras precedentes. A
caixa, mostrada com um corte para exibir seu interior, fica suspensa
numa balança de mola e é provida de um ponteiro para a leitura de
sua posição numa escala presa ao suporte da balança. Assim, a
pesagem da caixa pode ser feita, com qualquer exatidão ∆m
considerada, ajustando-se a balança em sua posição zero, através de
pesos adequados. A questão essencial, então, é que qualquer
determinação dessa posição com uma dada exatidão ∆q implicará
uma incerteza mínima ∆p no controle do momento da caixa,
vinculado a ∆q pela relação (3). Essa incerteza, por sua vez,
obviamente deve ser menor do que o impulso total que, durante todo
o intervalo T do procedimento de pesagem, possa ser dado pelo
campo gravitacional a um corpo de massa ∆m, ou
Juntamente com a fórmula (5), essa relação, por sua vez, leva a
∆T ⋅ ∆E > h,
de acordo com o princípio de indeterminação. Consequentemente, a
utilização do aparelho como meio de medir com precisão a energia do
fóton nos impediria de controlar o instante de seu escape.
Assim, essa discussão, tão ilustrativa do poder e da coerência dos
argumentos relativistas, enfatizou mais uma vez a necessidade de se
fazer uma distinção, no estudo dos fenômenos atômicos, entre os
instrumentos de medida apropriados, que servem para definir o
sistema de referência, e as partes que devem ser encaradas como
objetos sob investigação, e na explicação das quais não se podem
desconsiderar os efeitos quânticos. A despeito dessa confirmação
sumamente sugestiva da solidez e do grande alcance do estilo de
descrição quântico, Einstein, numa conversa posterior comigo,
expressou sua inquietação a respeito da aparente falta de princípios
solidamente fundamentados para a explicação da natureza, com o que
todos pudemos concordar. De meu ponto de vista, entretanto, só pude
responder que, ao lidar com a tarefa de introduzir ordem num campo
inteiramente novo da experiência, dificilmente poderíamos confiar em
quaisquer princípios costumeiros, por mais amplos que fossem, a não
ser pela exigência de evitar incoerências lógicas. Nesse aspecto, o
formalismo matemático da mecânica quântica deveria, com certeza,
cumprir todos os requisitos.
A reunião do Solvay de 1930 foi a última ocasião em que, nas
discussões comuns com Einstein, pudemos nos beneficiar da influência
estimulante e mediadora de Ehrenfest, mas, pouco antes de seu
falecimento em 1933, profundamente deplorado, ele me disse que
Einstein estava longe de se dar por satisfeito e que, com sua argúcia
habitual, havia discernido novos aspectos da situação que reforçavam
sua atitude crítica. De fato, examinando melhor as possibilidades de
aplicação de um dispositivo de balança, Einstein havia discernido
métodos alternativos que, embora não permitissem a utilização
originalmente pretendida por ele, pareciam ampliar os paradoxos para
além das possibilidades de solução lógica.
Einstein havia assinalado que, após uma pesagem preliminar da
caixa com o relógio e o subsequente escape do fóton, ainda se ficava
com a opção de repetir a pesagem ou abrir a caixa e comparar a
leitura do relógio com a escala de tempo padrão. Por conseguinte,
nessa etapa, ainda teríamos a liberdade de escolher se queríamos
extrair conclusões sobre a energia do fóton ou sobre o momento em
que ele deixara a caixa. Sem interferir de modo algum com o fóton
entre seu escape e sua interação posterior com outros instrumentos de
medida apropriados, ficaríamos, portanto, aptos a fazer previsões
exatas, concernentes ou ao momento de sua chegada, ou à quantidade
de energia liberada por sua absorção. Entretanto, já que, de acordo
com o formalismo quântico, a especificação do estado de uma
partícula isolada não podia produzir uma conexão bem definida com
a escala de tempo e uma determinação exata da energia, poderia
parecer que esse formalismo não oferece meios para uma descrição
adequada.
Mais uma vez, o espírito investigativo de Einstein havia levantado
um aspecto peculiar da situação da teoria quântica, o qual, de maneira
realmente surpreendente, ilustrava até que ponto havíamos
transcendido, nela, a explicação costumeira dos fenômenos naturais.
Ainda assim, não pude concordar com a linha de suas observações, tal
como relatadas por Ehrenfest. Em minha opinião, não havia outro
meio de julgar inadequado um formalismo matemático logicamente
coerente senão demonstrando que suas consequências se afastavam da
experiência, ou provando que suas previsões não esgotavam as
possibilidades de observação, e a argumentação de Einstein não podia
ser direcionada para nenhum desses fins. De fato, temos de reconhecer
que, no problema em questão, não estamos lidando com um único
arranjo experimental especificado, mas referimo-nos a dois arranjos
diferentes e mutuamente excludentes. Num deles, a balança,
juntamente com outro aparelho, como um espectrômetro, é usada
para estudar a transferência de energia por um fóton, e noutro, um
obturador regulado por um relógio padronizado, juntamente com
outro aparato de tipo similar, regulado com precisão em relação ao
relógio, é usado para estudar o tempo de propagação de um fóton
numa dada distância. Em ambos os casos, como também foi
presumido por Einstein, espera-se que os efeitos observáveis estejam
em completo acordo com as previsões da teoria.
Esse problema torna a enfatizar a necessidade de examinar todo o
dispositivo experimental, cuja especificação é imperativa para
qualquer aplicação bem-definida do formalismo quântico. A
propósito, pode-se acrescentar que paradoxos do tipo imaginado por
Einstein também são encontrados em arranjos simples, como o
esquematizado na figura 5. De fato, após uma mensuração preliminar
do momento do diafragma, é-nos oferecida, em princípio, a
alternativa de, quando um elétron ou um fóton tiver passado pela
abertura, repetir a mensuração do momento, ou controlar a posição
do diafragma e, então, fazer previsões pertinentes a observações
alternativas posteriores. Também é possível acrescentar que
obviamente não faz diferença, com respeito aos efeitos observáveis
que se podem obter com um arranjo experimental definido, se nossos
planos de construir ou manejar os instrumentos são estabelecidos de
antemão, ou se preferimos adiar a conclusão de nosso planejamento
até um instante posterior, quando a partícula já está a caminho em sua
trajetória de um instrumento para outro.
Na descrição quântica, nossa liberdade de construir e manipular o
arranjo experimental encontra sua expressão apropriada na
possibilidade de escolhermos os parâmetros, classicamente definidos,
que entram em qualquer aplicação adequada do formalismo. Com
efeito, em todos esses aspectos, a mecânica quântica exibe uma
correspondência com a situação que nos é conhecida na física clássica,
que é tão próxima quanto possível quando se considera a
individualidade inerente aos fenômenos quânticos. Assim, pela simples
contribuição para salientar tão claramente esse ponto, a preocupação
de Einstein foi, mais uma vez, um estímulo muito bem-vindo à
exploração dos aspectos essenciais da situação.
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