Física Atômica E Conhecimento Humano

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Título original: Atomic physics and human knowledge, 1958

© by Aage Bohr
Publicado com a permissão do Niels Bohr Archive, Blegdamsvej 17, DK 2100, Copenhage
Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro sem autorização da
editora.
Direitos adquiridos para a língua portuguesa por CONTRAPONTO EDITORA LTDA.
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revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Revisão de originais
César Benjamin
Revisão tipográfica Tereza da Rocha
Projeto gráfico Regina Ferraz

1ª edição, novembro de 1995

5ª reimpressão, agosto de 2012


Tiragem: 1.000 exemplares

Ficha catalográfica
Seção de Catalogação e Classificação do Núcleo de Documentação da UFF
B 677 Bohr, Niels, 1885-1962

Física atômica e conhecimento humano : ensaios 1932-1957/ Niels Bohr; tradução


Vera Ribeiro. – Rio de Janeiro : Contraponto, 1995.
140 p.

Tradução de: Atomic physics and human knowledge, 1958


ISBN 978-85-85910-07-5

1. Física nuclear – Discursos, ensaios, conferências. 2. Biofísica – Discursos, ensaios,


conferências. Teoria do conhecimento – Discursos, ensaios, conferências. 4. Epistemologia
– Discursos, ensaios, conferências. i. Ribeiro, Vera, trad. ii. Título.
18ª ed. cdd 539.7
121
574.191
Prefácio

Esta coletânea de artigos, escritos em ocasiões diversas nos últimos 25


anos, constitui uma sequência a ensaios anteriores, publicados pela
Cambridge University Press em 1934, num volume intitulado Atomic
Theory and the Description of Nature. O tema dos textos é a lição
epistemológica que nos foi dada pelo moderno desenvolvimento da
física atômica e sua importância para a análise e a síntese em muitos
campos do conhecimento humano. Os artigos da edição anterior
foram redigidos numa época em que o estabelecimento dos métodos
matemáticos da mecânica quântica havia criado uma base sólida para
a abordagem sistemática dos fenômenos atômicos, e em que as
condições para uma descrição inambígua das experiências, nesse
contexto, caracterizavam-se pela noção de complementaridade. Nos
artigos aqui coligidos, essa abordagem é mais desenvolvida em sua
formulação lógica e adquire uma aplicação mais ampla.
Naturalmente, foi inevitável uma boa dose de repetição, mas espera-se
que ela possa servir para um esclarecimento gradativo da
argumentação, especialmente no que diz respeito ao uso de uma
terminologia mais concisa.
Na elaboração dos pontos de vista em questão, as discussões com
colaboradores antigos e atuais do Instituto de Física Teórica da
Universidade de Copenhague foram-me de extremo valor. Pela
assistência no preparo dos artigos deste volume, sou especialmente
grato a Oskar Klein e Léon Rosenfeld, atualmente nas universidades
de Estocolmo e Manchester, bem como a Stefan Rozental e Aage
Petersen, do Instituto de Copenhague. Gostaria também de estender
meus agradecimentos à sra. S. Hellmann por sua ajuda muito eficaz na
preparação dos artigos e desta edição.

NIELS BOHR

Copenhague
Agosto de 1957
Sumário

Introdução

Luz e vida
Terapia através da Luz, Copenhague, agosto de 1932. Publicado
em Nature, 131, 421 (1933).

Biologia e física atômica


Discurso no Congresso de Física e Biologia em memória de Luigi
Galvani, Bolonha, outubro de 1937.

Filosofia natural e culturas humanas


Discurso no Congresso Internacional de Ciências Antropológicas
e Etnológicas, Copenhague, proferido numa reunião no Castelo
de Kronborg, Elsinore, agosto de 1938. Publicado em Nature,
143, 268 (1939).

O debate com Einstein sobre problemas epistemológicos na física


atômica
Contribuição para Albert Einstein: Philosopher-Scientist,
Evanston, Illinois, The Library of Living Philosophers, Inc., v. 7,
1949, p. 199.
A unidade do conhecimento
Discurso proferido numa conferência em outubro de 1954, no
contexto do Bicentenário da Universidade de Columbia, Nova
York. Publicado em The Unity of Knowledge, Nova York,
Doubleday & Co., 1955, p. 47.

Os átomos e o conhecimento humano


Discurso proferido numa reunião da Real Academia
Dinamarquesa de Ciências, Copenhague, outubro de 1955.

A ciência física e o problema da vida


Artigo concluído em 1957 e baseado numa Palestra Steno na
Sociedade de Medicina da Dinamarca, Copenhague, fevereiro de
1949.
Introdução

A importância da ciência física para o desenvolvimento do


pensamento filosófico em geral baseia-se não apenas em suas
contribuições para o conhecimento, sempre crescente, da natureza de
que nós mesmos fazemos parte, mas também nas oportunidades que
ela tem oferecido, vez após outra, para o exame e aperfeiçoamento
dos instrumentos conceituais. Em nosso século, o estudo da
constituição atômica da matéria revelou que a abrangência das ideias
da física clássica apresentava uma limitação insuspeitada e lançou
nova luz sobre as demandas de explicação científica incorporadas na
filosofia tradicional. Portanto, a revisão dos fundamentos para a
aplicação inambígua de nossos conceitos elementares, necessária à
compreensão dos fenômenos atômicos, tem um alcance que ultrapassa
em muito o campo particular da ciência física.
O ponto principal da lição que nos foi dada pelo desenvolvimento
da física atômica é, como se sabe, o reconhecimento de uma
característica de globalidade1 nos processos atômicos, revelada pela
descoberta do quantum de ação. Os artigos que se seguem expõem os
aspectos essenciais da situação na física quântica e, ao mesmo tempo,
enfatizam os pontos de semelhança que ela exibe com a situação de
outros campos do conhecimento, fora do âmbito da concepção
mecânica da natureza. Não lidamos aqui com analogias mais ou
menos vagas, porém com uma investigação sobre as condições do uso
apropriado de nossos meios de expressão conceituais. Tais
considerações almejam não apenas nos familiarizar com a nova
situação da ciência física, mas, em virtude do caráter
comparativamente simples dos problemas atômicos, podem ser úteis
para esclarecer as condições de uma descrição objetiva em campos
mais amplos.
Embora os sete ensaios aqui compilados estejam, pois, intimamente
interligados, eles se incluem em três grupos distintos, originários dos
anos de 1932–1938, 1949 e 1954–1957, respectivamente. Os três
primeiros artigos, diretamente relacionados com os da edição anterior,
discutem problemas biológicos e antropológicos referentes às
características de globalidade apresentados pelos organismos vivos e
pelas culturas humanas. Evidentemente, não há nenhuma tentativa de
oferecer uma abordagem exaustiva desses temas, mas apenas de
indicar como os problemas se apresentam contra o pano de fundo da
lição geral da física atômica.
O quarto artigo versa sobre a discussão, entre os físicos, dos
problemas epistemológicos levantados pela física quântica. O caráter
desse tema tornou inevitável uma certa referência aos instrumentos
matemáticos, mas a compreensão dos argumentos não requer nenhum
conhecimento especializado. O debate esclareceu novos aspectos do
problema observacional, relacionados com o fato de que a interação
dos objetos atômicos e dos instrumentos de medida é parte integrante
dos fenômenos quânticos. Portanto, os dados obtidos através de
diferentes arranjos experimentais não podem ser compreendidos nos
moldes costumeiros, e a necessidade de levar em conta as condições
em que a experiência é obtida impõe o modo de descrição
complementar.
O último grupo de artigos está intimamente relacionado com o
primeiro, mas espera-se que a terminologia aperfeiçoada, utilizada
para expor a situação da física quântica, tenha tornado mais
facilmente acessível a argumentação geral. Em sua aplicação a
problemas de alcance mais amplo, enfatizam-se especialmente os
pressupostos para um uso inambíguo dos conceitos no relato das
experiências. A essência da argumentação é que, para uma descrição
objetiva e uma compreensão harmoniosa, é necessário, em quase
todos os campos do conhecimento, prestar atenção às circunstâncias
em que os dados são obtidos.

1 Ao interagir, dois sistemas da mecânica quântica são descritos por uma função de onda
global, que, em geral, não pode ser expressa como uma combinação das funções de onda de
cada sistema. Portanto, os dois sistemas terão suas variáveis físicas correlacionadas, mesmo
quando distanciados um do outro. Por isso diz-se que os fenômenos quânticos apresentam
uma “característica de globalidade” [wholeness], não podendo ser reduzidos à soma de suas
partes. Ao longo dos ensaios reunidos neste volume, o conceito será usado de forma
reiterada, tornando-se mais claro o seu significado. (n. do r.)
Luz e vida

1932

Como um físico cujos estudos limitam-se às propriedades dos corpos


inanimados, não foi sem hesitação que aceitei o gentil convite de me
dirigir a esta assembleia de cientistas, reunida para promover nossos
conhecimentos sobre os efeitos benéficos da luz na cura das doenças.
Incapaz que sou de contribuir para esse belo ramo da ciência, tão
importante para o bem-estar da humanidade, eu poderia, quando
muito, comentar sobre os fenômenos puramente inorgânicos da luz,
que têm exercido especial atração sobre os físicos de todas as eras, até
porque a luz é o nosso principal instrumento de observação.
Considerei, no entanto, que talvez fosse interessante, em tal
comentário nesta oportunidade, entrar no problema de até que ponto
os resultados alcançados no âmbito mais restrito da física podem
influenciar nossas opiniões sobre a posição que os organismos vivos
ocupam no edifício geral da ciência natural. A despeito do caráter sutil
dos enigmas da vida, esse problema tem-se apresentado em todas as
etapas da ciência. A própria essência da explicação científica consiste
na decomposição de fenômenos complexos em fenômenos mais
simples. No momento, essa é a limitação essencial de que padece a
descrição mecânica dos fenômenos naturais revelados pelo recente
desenvolvimento da teoria atômica, que trouxe um novo interesse
para esse antigo problema. Esse desenvolvimento originou-se
exatamente do estudo mais rigoroso da interação da luz e dos corpos
materiais, cujas características frustram certas exigências até hoje
consideradas indispensáveis numa explicação física. Como me
empenharei em mostrar, os esforços dos físicos para dominar essa
situação assemelham-se, de certa maneira, à atitude perante os
aspectos da vida que sempre foi adotada, mais ou menos
intuitivamente, pelos biólogos. Contudo, quero frisar desde logo que
somente nesse aspecto formal a luz, que talvez seja o menos complexo
de todos os fenômenos físicos, exibe uma analogia com a vida. Esta
última mostra uma diversidade que ultrapassa a capacidade de
compreensão da análise científica.
Do ponto de vista físico, a luz pode ser definida como uma
transmissão de energia entre corpos materiais à distância. Como se
sabe, esses efeitos encontram uma explicação simples na teoria
eletromagnética, que pode ser encarada como uma extensão racional
da mecânica clássica, extensão apropriada para suavizar o contraste
entre a ação à distância e a ação com contato direto. Nessa teoria, a
luz é descrita como oscilações elétricas e magnéticas acopladas, que só
diferem das habituais ondas eletromagnéticas da transmissão de rádio
pela maior frequência de vibração e o menor comprimento de onda.
Na verdade, a propagação praticamente retilínea da luz, na qual se
baseia a localização dos corpos pela visão direta ou através de
instrumentos ópticos adequados, depende inteiramente da pequenez
do comprimento de onda, comparada às dimensões dos corpos em
questão e dos instrumentos. Ao mesmo tempo, o caráter ondulatório
da propagação da luz constitui não apenas a base de nossa descrição
dos fenômenos da cor — que revelaram, na espectroscopia,
informações muito importantes sobre a constituição dos corpos
materiais —, mas é também essencial para a análise refinada dos
fenômenos ópticos. Como um exemplo típico, basta mencionar as
figuras de interferência que aparecem quando a luz, proveniente de
uma fonte, propaga-se até um anteparo através de dois caminhos
diferentes. Aí constatamos que os efeitos que seriam produzidos pelos
feixes luminosos separados são reforçados nos pontos do anteparo em
que as fases das duas ondas coincidem, isto é, onde as oscilações
elétricas e magnéticas dos dois feixes têm a mesma direção, ao passo
que esses efeitos são enfraquecidos, e podem até desaparecer, nos
pontos em que as oscilações têm direções opostas e onde se diz que as
ondas estão fora de fase, uma em relação à outra. Tais figuras de
interferência fornecem uma prova tão rigorosa da imagem ondulatória
da propagação da luz que essa imagem não pode ser considerada uma
hipótese, no sentido usual do termo, devendo, antes, ser encarada
como a descrição adequada dos fenômenos observados.
No entanto, como todos vocês sabem, o problema da natureza da
luz esteve sujeito a uma discussão renovada nos últimos anos, em
virtude da descoberta, no mecanismo da transmissão de energia, de
um aspecto essencial de atomicidade que é incompreensível do ponto
de vista da teoria eletromagnética. De fato, qualquer transferência de
energia pela luz pode remontar a processos individuais, em cada um
dos quais é trocado um chamado quantum de luz, cuja energia é igual
ao produto da frequência das oscilações eletromagnéticas pelo
quantum universal de ação, ou constante de Planck. O evidente
contraste entre essa atomicidade do efeito da luz e a transferência
contínua de energia na teoria eletromagnética nos propõe um dilema
anteriormente desconhecido na física. A despeito de sua óbvia
insuficiência, não há como substituir a imagem ondulatória da
propagação da luz por outra imagem que se apoie em ideias mecânicas
comuns. Em especial, convém enfatizar que os quanta de luz não
podem ser considerados como partículas a que se possa atribuir uma
trajetória bem definida, no sentido da mecânica usual. A figura de
interferência desaparece se, para nos certificar de que a energia da luz
se propaga por apenas um dos dois caminhos entre a fonte e o
anteparo, interrompermos um dos feixes com um corpo não
transparente; da mesma forma, em qualquer fenômeno para o qual a
constituição ondulatória da luz seja essencial, é impossível precisar a
trajetória dos quanta individuais de luz sem perturbar essencialmente
o fenômeno em processo de investigação. Na verdade, nossa imagem
da propagação espacialmente contínua da luz e a atomicidade dos
efeitos luminosos são aspectos complementares, no sentido de
descreverem características igualmente importantes dos fenômenos
luminosos. Elas nunca podem ser colocadas em contradição direta
umas com as outras, já que sua análise mais minuciosa, em termos
mecânicos, requer arranjos experimentais mutuamente excludentes.
Essa mesma situação obriga-nos a renunciar a uma explicação causal
completa dos fenômenos da luz e a nos contentar com leis
probabilísticas, baseados no fato de que a descrição eletromagnética
da transferência de energia continua válida no sentido estatístico. Isso
constitui uma aplicação típica do chamado princípio da
correspondência, que expressa o esforço de utilizar ao máximo os
conceitos das teorias clássicas da mecânica e da eletrodinâmica, apesar
do contraste entre essas teorias e o quantum de ação.
Essa situação talvez pareça muito incômoda. Mas, como tantas
vezes acontece na ciência quando novas descobertas levam ao
reconhecimento de uma limitação essencial em conceitos até então
considerados indispensáveis, somos recompensados por obter uma
visão mais ampla e uma capacidade maior para estabelecer correlações
entre fenômenos que, antes disso, talvez parecessem até
contraditórios. Com efeito, a limitação da mecânica clássica,
simbolizada pelo quantum de ação, forneceu uma chave para nosso
entendimento da estabilidade intrínseca dos átomos, na qual se baseia
essencialmente a descrição mecânica dos fenômenos naturais.
Evidentemente, sempre foi uma característica fundamental da teoria
atômica que a indivisibilidade dos átomos não pode ser compreendida
em termos mecânicos, e essa situação permaneceu praticamente
inalterada, mesmo depois que a indivisibilidade dos átomos foi
substituída pela das partículas elétricas elementares, os elétrons e os
prótons de que se compõem os átomos e moléculas. O ponto a que me
refiro não é o problema da estabilidade intrínseca dessas partículas
elementares, mas o das estruturas atômicas formadas por elas. Se
atacarmos esse problema com o ponto de vista da mecânica ou da
teoria eletromagnética, não encontraremos base suficiente para
explicar as propriedades específicas dos elementos, nem tampouco a
existência de corpos rígidos, na qual se apoiam, em última instância,
todas as mensurações usadas para ordenar os fenômenos no espaço e
no tempo. Essas dificuldades agora são superadas pelo
reconhecimento de que qualquer mudança bem definida de um átomo
é um processo individual, que consiste numa transição completa do
átomo, a partir de um de seus chamados estados estacionários para
outro. Além disso, desde que exatamente um quantum de luz é
trocado em um processo de transição pelo qual luz é emitida ou
absorvida por um átomo, somos capazes, por meio de observações
espectroscópicas, de medir diretamente a energia de cada um desses
estados estacionários. A informação daí deduzida também foi
corroborada, de modo muito instrutivo, pelo estudo das trocas de
energia que ocorrem nas colisões atômicas e nas reações químicas.
Nos últimos anos, houve um notável desenvolvimento da física
atômica segundo as linhas do princípio da correspondência. Isso nos
proporcionou métodos adequados para calcular a energia dos estados
estacionários dos átomos e as probabilidades dos processos de
transição, tornando nossa descrição das propriedades atômicas tão
compreensível quanto a descrição ordenada da experiência
astronômica pela mecânica newtoniana. Apesar da maior
complexidade dos problemas gerais da física atômica, a lição que nos
foi ensinada pela análise dos efeitos luminosos mais simples foi de
suma importância para esse desenvolvimento. Assim, o uso inambíguo
do conceito de estados estacionários mantém com a análise mecânica
dos movimentos intra-atômicos uma relação de complementaridade
semelhante à dos quanta de luz com a teoria eletromagnética da
radiação. Na verdade, qualquer tentativa de investigar o curso
detalhado de um processo de transição implicaria uma troca de
energia incontrolável entre o átomo e os instrumentos de medida, que
perturbaria por completo o próprio equilíbrio energético que
pretendêssemos investigar. A descrição mecânica do experimento, em
termos causais, só pode ser conseguida nos casos em que a ação
envolvida é grande em comparação com o quantum, e em que, por
conseguinte, é possível uma subdivisão do fenômeno. Não sendo
satisfeita essa condição, a ação dos instrumentos de medida sobre o
objeto investigado não pode ser desconsiderada, e acarreta uma
exclusão mútua dos vários tipos de informação necessários a uma
completa descrição mecânica do tipo usual. Essa aparente
incompletude da análise mecânica dos fenômenos atômicos provém,
em última instância, de desconhecermos a reação, inerente a qualquer
mensuração, do objeto aos instrumentos de medida. Assim como o
conceito geral da relatividade expressa a dependência essencial de
qualquer fenômeno em relação ao sistema de referência usado para
sua descrição no espaço e no tempo, a noção de complementaridade
serve para simbolizar a limitação fundamental, encontrada na física
atômica, da existência objetiva de fenômenos independentemente dos
meios de sua observação.
Essa revisão dos fundamentos da mecânica, que se estende à própria
ideia de explicação física, é não apenas essencial para uma apreciação
plena da situação na teoria atômica, como cria também um novo
cenário para a discussão dos problemas da vida em sua relação com a
física. Isso não significa, de modo algum, que encontremos nos
fenômenos atômicos características que exibam uma semelhança mais
estreita com as propriedades dos organismos vivos do que os efeitos
físicos corriqueiros. À primeira vista, o caráter essencialmente
estatístico da mecânica atômica pareceria até mesmo entrar em
conflito com a organização esplendidamente refinada dos seres vivos.
Devemos ter em mente, contudo, que justamente esse modo
complementar de descrição dá margem a regularidades, nos processos
atômicos, que são estranhas à mecânica, mas que são tão essenciais
para nossa explicação do comportamento dos organismos vivos
quanto para a explicação das propriedades específicas da matéria
inorgânica. Assim, na assimilação de carbono pelas plantas, da qual
também depende tão grandemente a nutrição dos animais, lidamos
com um fenômeno para cujo entendimento a individualidade dos
processos fotoquímicos é claramente essencial. Da mesma forma, a
estabilidade não mecânica das estruturas atômicas é notavelmente
exibida nas propriedades características de combinações químicas tão
imensamente complexas quanto a clorofila ou a hemoglobina, que
desempenham um papel fundamental no mecanismo de assimilação
das plantas e na respiração animal. Mesmo assim, as analogias
provenientes da experiência química comum, tal como a antiga
comparação da vida com o fogo, obviamente não produzem uma
explicação mais satisfatória dos organismos vivos do que a
semelhança entre eles e certos aparelhos puramente mecânicos, como
os relógios. A rigor, as características essenciais dos seres vivos devem
ser buscadas numa organização peculiar, na qual características que
podem ser analisadas pela mecânica comum entrelaçam-se com
características tipicamente atomísticas, num grau que não encontra
paralelo na matéria inanimada.
Uma ilustração instrutiva do grau a que essa organização se
desenvolve é exibida pela construção e função do olho, para cuja
investigação a simplicidade dos fenômenos luminosos foi também de
extrema utilidade. Não preciso entrar em detalhes aqui, mas quero
apenas lembrar-lhes como a oftalmologia nos revelou as propriedades
ideais do olho humano como instrumento óptico. De fato, o limite
imposto à formação da imagem pelos inevitáveis efeitos de
interferência praticamente coincide com o tamanho das divisões da
retina, que têm uma ligação nervosa separada com o cérebro. Além
disso, como a absorção de um único quantum de luz por cada uma
dessas divisões retinianas é suficiente para uma impressão visual,
pode-se dizer que a sensibilidade do olho atingiu o limite estipulado
pelo caráter atômico dos processos luminosos. A eficiência do olho
nesses dois aspectos é, na verdade, idêntica à obtida por um bom
telescópio ou microscópio ligado a um amplificador adequado, de
modo a tornar observáveis os processos individuais. É verdade que,
com esses instrumentos, é possível aumentar nossos poderes de
observação, mas, em virtude dos limites impostos pelas propriedades
fundamentais dos fenômenos luminosos, nenhum instrumento
imaginável seria mais eficiente para esse fim do que o olho. Ora, esse
refinamento ideal do olho, reconhecido pelo recente desenvolvimento
da física, sugere que também outros órgãos, quer sirvam para a
recepção de informações do meio ambiente, quer para a reação às
impressões sensoriais, possam exibir uma semelhante adaptação à sua
finalidade, e que, também nesses casos, o aspecto de individualidade
simbolizado pelo quantum de ação seja de importância decisiva no
contexto de algum mecanismo amplificador. O fato de ter sido
possível traçar esse limite no olho, mas não, até o momento, em
nenhum outro órgão, deve-se apenas à extrema simplicidade dos
fenômenos luminosos, a que nos referimos anteriormente.
O reconhecimento da importância essencial das características
atomísticas no mecanismo dos organismos vivos de modo algum é
suficiente, contudo, para uma explicação abrangente dos fenômenos
biológicos. A questão que está em pauta, portanto, é se ainda faltam
aspectos fundamentais na análise dos fenômenos naturais para que
possamos chegar a uma compreensão da vida com base na experiência
física. A despeito do fato de que os múltiplos fenômenos biológicos
são praticamente inesgotáveis, dificilmente se poderá dar uma resposta
a essa pergunta sem um exame do sentido a ser atribuído à explicação
física, mais penetrante ainda do que aquele a que a descoberta do
quantum de ação já nos forçou. Por um lado, as maravilhosas
características constantemente reveladas nas investigações fisiológicas,
e que diferem tão marcantemente do que se conhece sobre a matéria
inorgânica, levaram os biólogos a crer que nenhuma compreensão
adequada dos aspectos essenciais da vida é possível em termos
puramente físicos. Por outro, dificilmente se poderia dar uma
expressão inambígua à visão conhecida como vitalismo, que parte do
pressuposto de que uma força vital peculiar, desconhecida dos físicos,
rege toda a vida orgânica. Na verdade, penso que todos concordamos
com Newton em que o fundamento último da ciência é a expectativa
de que a natureza exiba efeitos idênticos em condições idênticas.
Portanto, se pudermos avançar tanto na análise dos mecanismos dos
organismos vivos quanto na dos fenômenos atômicos, não deveremos
esperar descobrir nenhuma característica alheia à matéria inorgânica.
Nesse dilema, convém ter em mente, entretanto, que as condições da
pesquisa biológica e as da pesquisa física não são diretamente
comparáveis, já que a necessidade de manter vivo o objeto de
investigação impõe à primeira uma restrição que não tem equivalente
na segunda. Mataríamos um animal, se tentássemos levar a
investigação de seus órgãos ao ponto de sermos capazes de dizer qual
o papel desempenhado em suas funções vitais por átomos isolados.
Em todos os experimentos com organismos vivos, tem que persistir
uma dose de incerteza no que tange às condições físicas a que eles são
submetidos, sugerindo-se assim a ideia de que esse mínimo de
liberdade que temos de conceder ao organismo será exatamente o
bastante para lhe permitir, por assim dizer, ocultar de nós os seus
segredos mais íntimos. Por esse ângulo, a própria existência da vida
deve ser considerada, na biologia, um fato elementar, assim como, na
física atômica, a existência do quantum de ação tem que ser tomada
como um dado fundamental, que não pode ser derivado da mecânica
usual. Na verdade, a impossibilidade essencial de compreender a
estabilidade atômica em termos mecânicos mostra uma estreita
analogia com a impossibilidade de dar uma explicação física ou
química às funções peculiares que caracterizam a vida.
Ao formular essa analogia, entretanto, convém lembrarmos que os
problemas apresentam aspectos essencialmente diferentes na física
atômica e na biologia. Enquanto, no primeiro campo, estamos
primordialmente interessados no comportamento da matéria em suas
formas mais simples, a complexidade dos sistemas materiais pelos
quais a biologia se interessa é de caráter fundamental, já que até os
organismos mais primitivos contêm grande número de átomos. É
verdade que o vasto campo de aplicação da mecânica usual, que inclui
nossa explicação dos instrumentos de medida usados na física
atômica, assenta-se justamente na possibilidade de desconsiderarmos,
em larga escala, a complementaridade da descrição vinculada ao
quantum de ação, nos casos em que lidamos com corpos que
contenham um grande número de átomos. Mas, apesar da
importância essencial dos aspectos atomísticos, é típico da pesquisa
biológica nunca podermos controlar as condições externas a que
qualquer átomo isolado é submetido, na mesma medida em que é
possível fazê-lo nos experimentos fundamentais da física atômica. De
fato, nem sequer podemos dizer quais átomos específicos realmente
pertencem a um organismo vivo, já que toda função vital é
acompanhada por uma troca de material, mediante a qual os átomos
são constantemente absorvidos e expelidos da organização que
compõe o ser vivo. A rigor, essa troca de matéria estende-se a todas as
partes do organismo vivo, num grau que impede uma distinção nítida,
em escala atômica, entre os aspectos de seu mecanismo que podem ser
inequivocamente explicados pela mecânica usual e aqueles para os
quais a consideração do quantum de ação é decisiva. Essa diferença
fundamental entre a pesquisa física e a biológica implica que não se
pode traçar, para a aplicabilidade das ideias físicas aos problemas da
vida, nenhum limite bem definido que corresponda à distinção entre o
campo da descrição mecânica causal e os fenômenos quânticos
propriamente ditos da física atômica. Essa aparente limitação da
analogia em questão enraíza-se nas próprias definições das palavras
vida e mecânica, que são, em última instância, uma questão de
conveniência. Por um lado, a questão de uma limitação da física na
biologia perderia qualquer sentido se, em vez de fazer uma distinção
entre organismos vivos e corpos inanimados, estendêssemos a ideia de
vida a todos os fenômenos naturais. Por outro lado, se, de acordo com
a linguagem comum, reservássemos a palavra mecânica para a
descrição causal inambígua dos fenômenos naturais, uma expressão
como mecânica do átomo perderia o sentido. Não irei adiante nesses
aspectos puramente terminológicos, mas acrescento apenas que a
essência da analogia em exame é a evidente exclusão entre aspectos
típicos da vida, como a autopreservação e a autogeração de
indivíduos, de um lado, e a subdivisão necessária a qualquer análise
física, de outro. Graças a esse aspecto essencial da
complementaridade, o conceito de finalismo, que é desconhecido da
análise mecânica, encontra um certo campo de aplicação na biologia.
Na verdade, nesse sentido, a argumentação teleológica pode ser
encarada como um traço legítimo da descrição fisiológica, que leva na
devida consideração as características da vida, de um modo análogo
ao reconhecimento do quantum de ação no princípio da
correspondência da física atômica.
Ao discutir a aplicabilidade de ideias puramente físicas aos
organismos vivos, tratamos a vida, é claro, como qualquer outro
fenômeno do mundo material. Nem é preciso enfatizar, entretanto,
que essa atitude, que é característica da pesquisa biológica, não
implica nenhuma desconsideração do aspecto psicológico da vida. Ao
contrário, o reconhecimento da limitação dos conceitos mecânicos na
física atômica pareceria adequado para conciliar os pontos de vista
aparentemente contrastantes da fisiologia e da psicologia. De fato, a
necessidade de considerar, na física atômica, a interação dos
instrumentos de medida e do objeto investigado exibe uma estreita
analogia com as dificuldades peculiares à análise psicológica,
provenientes do fato de que o conteúdo mental é invariavelmente
alterado quando se concentra a atenção em qualquer de seus aspectos
particulares. Sairíamos muito de nosso assunto se nos estendêssemos
nessa analogia, que oferece um esclarecimento essencial sobre o
paralelismo psicofísico. Entretanto, eu gostaria de enfatizar que as
considerações do tipo aqui mencionado são inteiramente opostas a
qualquer tentativa de buscar novas possibilidades de influência
espiritual sobre o comportamento da matéria na descrição estatística
dos fenômenos atômicos. Por exemplo, é impossível, do nosso ponto
de vista, associar um significado inambíguo à opinião, às vezes
expressa, de que a probabilidade de ocorrência de certos processos
atômicos no corpo estaria sob a influência direta da vontade. De fato,
segundo a interpretação generalizada do paralelismo psicofísico, a
liberdade da vontade deve ser considerada como um aspecto da vida
consciente que corresponde a funções do organismo que não apenas
escapam a uma descrição mecânica causal, mas resistem até mesmo a
uma análise física levada ao ponto exigido para uma aplicação
inambígua das leis estatísticas da mecânica atômica. Sem entrar em
especulações metafísicas, talvez eu possa acrescentar que uma análise
do próprio conceito de explicação começaria e terminaria,
naturalmente, por uma renúncia a explicar nossa própria atividade
consciente.
Para concluir, nem é preciso enfatizar que não pretendi, com
nenhuma de minhas observações, expressar qualquer tipo de ceticismo
quanto ao futuro desenvolvimento das ciências físicas e biológicas. Tal
ceticismo, de fato, estaria muito longe da mente dos físicos no
momento atual, quando justamente o reconhecimento do caráter
limitado de nossos conceitos mais fundamentais resultou em tão
notável desenvolvimento de nossa ciência. Tampouco a renúncia a
uma explicação da vida impediu o esplêndido progresso ocorrido em
todos os ramos da biologia, inclusive os que se revelaram tão
benéficos na arte da medicina. Ainda que não possamos estabelecer
uma clara distinção física entre a saúde e a doença, decerto não há
lugar para ceticismo no campo especial que é objeto deste congresso,
desde que não abandonemos a trilha de progresso que vem sendo
seguida com tanto êxito desde o trabalho pioneiro de Finsen, e cuja
marca distintiva é a mais íntima combinação da investigação dos
efeitos medicinais da terapia através da luz com o estudo de seus
aspectos físicos.
Biologia e física atômica

1937

O trabalho imortal de Galvani, que inaugurou uma nova era em todo


o campo da ciência, ilustra brilhantemente a extrema fecundidade de
uma combinação íntima da exploração das leis da natureza inanimada
com o estudo das propriedades dos organismos vivos. Nesta ocasião,
portanto, talvez seja oportuno examinar a atitude que os cientistas de
todas as épocas têm adotado perante a questão da relação entre a
física e a biologia e, em especial, discutir a perspectiva criada, nesse
contexto, pelo extraordinário desenvolvimento da teoria atômica nos
últimos tempos.
Desde o alvorecer da ciência, a teoria atômica realmente tem estado
no centro do interesse, no que diz respeito aos esforços de obter uma
visão abrangente da grande diversidade de fenômenos naturais. Assim,
já Demócrito, que com tão profunda intuição enfatizou a necessidade
do atomismo para qualquer explicação racional das propriedades
comuns da matéria, também tentou, como se sabe, utilizar ideias
atomísticas para explicar as peculiaridades da vida orgânica e até da
psicologia humana. Em vista do caráter fantasioso dessas concepções
materialistas extremadas, foi natural que Aristóteles reagisse, com sua
magistral compreensão dos conhecimentos de sua época, tanto na
física quanto na biologia, rejeitando por completo a teoria dos
átomos, e tentasse fornecer um arcabouço suficientemente amplo para
uma explicação da profusão dos fenômenos naturais com base em
ideias essencialmente teleológicas. Por sua vez, o exagero da doutrina
aristotélica foi claramente trazido à luz pelo reconhecimento gradativo
de leis elementares da natureza, válidas tanto para os corpos
inanimados quanto para os organismos vivos.
Ao pensarmos no estabelecimento dos princípios da mecânica, que
viriam a se tornar o próprio fundamento da ciência física, talvez não
seja sem interesse, nesse contexto, perceber que a descoberta de
Arquimedes do princípio de equilíbrio dos objetos flutuantes — que,
segundo uma conhecida tradição, foi-lhe sugerido pela sensação de
elevação de seu próprio corpo numa banheira — poderia igualmente
ter-se baseado na experiência comum da perda de peso das pedras na
água. Do mesmo modo, devemos considerar bastante acidental que
Galileu tenha sido levado ao reconhecimento das leis fundamentais da
dinâmica observando o movimento pendular de um candelabro na
bela catedral de Pisa, e não olhando para uma criança num balanço.
Essas analogias puramente externas foram de pouca monta, é claro,
para o crescente reconhecimento da unidade essencial dos princípios
que regem os fenômenos naturais, comparadas às semelhanças
profundas entre os organismos vivos e a maquinaria técnica que foram
reveladas pelos estudos da anatomia e da fisiologia, intensamente
efetuados na época do Renascimento, sobretudo aqui na Itália.
A nova abordagem experimental da filosofia natural — igualmente
incentivada pela ampliação da imagem do mundo, graças à visão de
Copérnico, e pela elucidação dos mecanismos circulatórios nos corpos
dos animais, inaugurada pela grande descoberta de Harvey — abriu
perspectivas que talvez tenham se expressado de forma mais marcante
na obra de Borelli, que conseguiu esclarecer com detalhes muito
minuciosos a função mecânica do esqueleto e dos músculos nos
movimentos dos animais. O caráter clássico dessa obra em nada é
prejudicado pelas tentativas do próprio Borelli e de seus seguidores de
explicar também a ação nervosa e a secreção glandular por meio de
modelos mecânicos primitivos, cuja evidente arbitrariedade e
primarismo logo suscitaram uma crítica generalizada, ainda lembrada
pela designação semi-irônica de “iatrofísicos” que ficou ligada aos
adeptos da escola boreliana. Do mesmo modo, os esforços — sólidos
em sua base — de aplicar o crescente conhecimento das
transformações tipicamente químicas da matéria a processos
fisiológicos, que encontraram um expoente tão entusiástico em
Sylvius, levaram rapidamente, pelo exagero das semelhanças
superficiais da digestão e da fermentação com as reações inorgânicas
mais simples, e por sua aplicação precipitada para fins médicos, a uma
oposição que se expressou na rotulação desses esforços prematuros
como “iatroquímica”.
Para nós, são evidentes as razões dos insucessos desses esforços
pioneiros em utilizar a física e a química numa explicação abrangente
das propriedades dos organismos vivos. Não apenas era preciso
esperar pela época de Lavoisier para que se revelassem os princípios
elementares da química, que abririam caminho para o entendimento
da respiração e, mais tarde, forneceriam a base para o extraordinário
desenvolvimento da chamada química orgânica, como também, antes
das descobertas de Galvani, todo um aspecto fundamental das leis da
física ainda permanecia oculto. É extremamente sugestivo considerar
que o germe que, nas mãos de Volta, Oersted, Faraday e Maxwell, iria
desenvolver-se numa estrutura de importância rival à da mecânica
newtoniana brotou de pesquisas voltadas para fins biológicos. Na
verdade, é difícil imaginar que o progresso havido desde os
experimentos com corpos eletricamente carregados, por mais fecundos
que eles tenham sido nas mãos de Franklin, até o estudo das correntes
galvânicas, pudesse ter sido alcançado, se os instrumentos sensíveis
necessários à detecção dessas correntes, depois tão prontamente
construídos, não tivessem sido fornecidos pela própria natureza no
tecido nervoso dos animais superiores.
É impossível esquematizar aqui, até mesmo sob a forma de um
esboço, o tremendo desenvolvimento da física e da química desde a
época de Galvani, ou enumerar as descobertas feitas em todos os
ramos da biologia no último século. Basta-nos recordar as linhas que
levaram desde a obra pioneira de Malpighi e Spallanzani, nesta
venerável universidade, até a embriologia e a bacteriologia modernas,
respectivamente, ou do próprio Galvani até as recentes e fascinantes
pesquisas sobre os impulsos nervosos. Apesar da vasta compreensão
assim obtida sobre o aspecto físico e químico de muitas reações
biológicas típicas, o maravilhoso refinamento estrutural dos
organismos, bem como sua profusão de mecanismos regulatórios
interligados, continuam a ultrapassar a tal ponto qualquer experiência
feita com a natureza inanimada, que nós nos sentimos tão distantes
como sempre de uma explicação da própria vida dentro desses
moldes. Na verdade, ao testemunharmos as apaixonadas controvérsias
científicas referentes à relação que têm com esse problema as recentes
descobertas de efeitos venenosos e das propriedades generativas dos
chamados vírus, vemo-nos diante de um dilema tão agudo quanto
aquele com que se defrontaram Demócrito e Aristóteles.
Nessa situação, é novamente na teoria atômica que se concentra o
interesse, embora num cenário muito diferente. Não apenas essa teoria
— desde que Dalton aplicou as concepções atomísticas com tão
decisivo sucesso à elucidação das leis quantitativas que regem a
constituição dos compostos químicos — tornou-se a base
indispensável e o guia infalível de todo o raciocínio na química, como
também o esplêndido aperfeiçoamento da técnica experimental na
física deu-nos até os meios para estudar fenômenos que dependem
diretamente da ação de átomos individuais. Ao mesmo tempo que,
dessa maneira, esse progresso eliminou os últimos vestígios do
preconceito tradicional segundo o qual, em vista da precariedade de
nossos sentidos, qualquer comprovação da existência efetiva dos
átomos estaria perenemente fora do alcance da experiência humana,
ele revelou, nas leis da natureza, aspectos ainda mais profundos de
atomicidade do que os expressos pela antiga doutrina da divisibilidade
limitada da matéria. De fato, foi-nos ensinado que o próprio
arcabouço conceitual que se propunha explicar nossa experiência na
vida cotidiana e formular todo o sistema de leis aplicáveis ao
comportamento da matéria em geral, e que constitui o imponente
edifício da chamada física clássica, teria que ser fundamentalmente
ampliado para que pudesse abarcar os fenômenos atômicos
propriamente ditos. Para avaliar as possibilidades fornecidas por essa
nova visão da filosofia natural com respeito a uma atitude racional
perante os problemas fundamentais da biologia, entretanto, será
necessário relembrar sucintamente as principais linhas de
desenvolvimento que levaram à elucidação da situação na teoria
atômica.
O ponto de partida da moderna física atômica, como se sabe, foi o
reconhecimento da natureza atômica da própria eletricidade,
inicialmente apontada pelas famosas pesquisas de Faraday com a
eletrólise galvânica, e estabelecida em definitivo pelo isolamento do
elétron nos belos fenômenos de descargas elétricas em gases rarefeitos,
que tanta atenção suscitaram no fim do século passado. Embora as
brilhantes pesquisas de J.J. Thompson cedo tenham trazido à luz o
papel essencial desempenhado pelos elétrons nos mais variados
fenômenos físicos e químicos, nosso conhecimento das unidades
estruturais da matéria só foi completado com a descoberta do núcleo
atômico por Rutherford, coroando seu trabalho pioneiro sobre as
transmutações radioativas espontâneas de certos elementos pesados.
De fato, essa descoberta forneceu, pela primeira vez, uma explicação
incontestável para a invariabilidade dos elementos nas reações
químicas comuns, nas quais o minúsculo núcleo pesado permanece
inalterado, enquanto apenas a distribuição dos elétrons, mais leves, ao
seu redor é afetada. Além disso, ela proporcionou uma compreensão
imediata não só da origem da radioatividade natural, na qual
assistimos a uma explosão do próprio núcleo, mas também da
possibilidade, posteriormente descoberta por Rutherford, de se
induzirem transmutações dos elementos através do bombardeio com
partículas pesadas em alta velocidade, que, ao se chocarem com o
núcleo, podem provocar sua desintegração.
O tema deste pronunciamento seria demasiadamente ampliado se
examinássemos mais a fundo o novo e maravilhoso campo de
pesquisas inaugurado pelo estudo das transmutações nucleares, que
será um dos principais temas de discussão entre os físicos neste
encontro. O essencial para nossa argumentação não se encontra, de
fato, nessas novas experiências, mas na evidente impossibilidade de
explicar os dados físicos e químicos comuns, com base nos já
estabelecidos aspectos principais do modelo atômico de Rutherford,
sem nos afastarmos radicalmente das ideias clássicas da mecânica e do
eletromagnetismo. Com efeito, apesar da mecânica newtoniana ter
elucidado a harmonia dos movimentos planetários expressa pelas leis
de Kepler, as propriedades de estabilidade de modelos mecânicos
como o sistema solar — que, quando perturbados, não tendem a
retornar ao seu estado original — obviamente não têm uma
semelhança suficiente com a estabilidade intrínseca das configurações
eletrônicas dos átomos, que é responsável pelas propriedades
específicas dos elementos. Acima de tudo, essa estabilidade é
notavelmente ilustrada pela análise espectral, que, como se sabe,
revelou que todo elemento possui um espectro característico, de linhas
nítidas, tão independente das condições externas que proporciona um
meio de identificar a composição material até mesmo das estrelas mais
distantes, através de observações espectroscópicas.
Uma chave para a solução desse dilema, no entanto, já havia sido
fornecida pela descoberta de Planck do quantum elementar de ação,
que resultou de uma linha de pesquisa física muito diferente. Como se
sabe, Planck foi levado a essa descoberta fundamental por sua
engenhosa análise de aspectos tais do equilíbrio térmico entre a
matéria e a radiação, que, segundo os princípios gerais da
termodinâmica, deveriam ser totalmente independentes de quaisquer
propriedades específicas da matéria e, por conseguinte, de quaisquer
ideias especiais sobre a constituição atômica. A existência do quantum
elementar de ação expressa, a rigor, uma nova faceta da
individualidade dos processos físicos, a qual é desconhecida das leis
clássicas da mecânica e do eletromagnetismo, e restringe a validade
destas leis basicamente aos fenômenos que envolvem ações grandes em
comparação com o valor de um único quantum, tal como fornecido
pela nova constante atômica de Planck. Essa condição, embora
amplamente satisfeita nos fenômenos da experiência física comum,
não é de modo algum aplicável ao comportamento dos elétrons nos
átomos e, a rigor, somente a existência do quantum de ação impede a
fusão dos elétrons e do núcleo num corpúsculo neutro maciço, de
extensão praticamente infinitesimal.
O reconhecimento dessa situação sugeriu prontamente a descrição
da ligação de cada elétron no campo ao redor do núcleo como uma
sucessão de processos individuais, pelos quais o átomo passa de um de
seus chamados estados estacionários para outro desses estados, com
emissão de energia liberada sob a forma de um único quantum de
radiação eletromagnética. Essa visão, intimamente aparentada com a
exitosa interpretação einsteiniana do efeito fotoelétrico, e tão
convincentemente corroborada pelas belas pesquisas de Franck e
Hertz sobre a excitação das linhas espectrais pelos impactos dos
elétrons nos átomos, de fato não apenas forneceu uma explicação
imediata para as intrigantes leis gerais das linhas espectrais,
destrinçadas por Balmer, Rydberg e Ritz, como também, com o auxílio
de provas espectroscópicas, levou gradativamente a uma classificação
sistemática dos tipos de ligação estacionária de qualquer elétron num
átomo, fornecendo uma explicação completa das notáveis relações
entre as propriedades físicas e químicas dos elementos, tal como
expressas na famosa tabela periódica de Mendeleev. Embora essa
interpretação das propriedades da matéria tenha-se afigurado uma
realização do antigo ideal de reduzir a formulação das leis da natureza
a considerações de números puros — superando até mesmo os sonhos
dos pitagóricos —, o pressuposto básico da individualidade dos
processos atômicos implicou, ao mesmo tempo, uma renúncia
essencial à detalhada vinculação causal entre os eventos físicos, que,
ao longo dos séculos, fora o fundamento incontestável da filosofia
natural.
Não só se eliminou qualquer possibilidade de retorno a um modo de
descrição compatível com o princípio da causalidade, através de
experiências inambíguas dos mais variados tipos, como logo se
mostrou possível desenvolver as tentativas primitivas originais de
explicar a existência do quantum de ação na teoria atômica,
transformando-as numa mecânica do átomo propriamente dita,
essencialmente estatística e plenamente comparável, em sua coerência
e completude, à estrutura da mecânica clássica, da qual ela parece
constituir uma generalização racional. O estabelecimento dessa nova
mecânica, chamada mecânica quântica, que, como se sabe, devemos
sobretudo às engenhosas contribuições da nova geração de físicos, de
fato esclareceu essencialmente, à parte sua assombrosa fecundidade
em todos os ramos da física atômica e da química, a base
epistemológica da análise e da síntese dos fenômenos atômicos. O
reexame do próprio problema da observação nesse campo, iniciado
por Heisenberg, um dos principais fundadores da mecânica quântica,
evidenciou pressupostos até então desconsiderados para o uso
inambíguo até mesmo dos mais elementares conceitos em que repousa
a descrição dos fenômenos naturais. O aspecto crucial, neste ponto, é
o reconhecimento de que qualquer tentativa de analisar, à maneira
habitual da física clássica, a “individualidade” dos processos
atômicos, condicionados pelo quantum de ação, é frustrada pela
inevitável interação dos objetos atômicos em exame com os
instrumentos de medida indispensáveis para esse fim.
Uma consequência imediata dessa situação é que as observações
referentes ao comportamento dos objetos atômicos, obtidas mediante
diferentes projetos experimentais, em geral não podem ser combinadas
nos moldes habituais da física clássica. Em particular, qualquer
procedimento imaginável que vise localizar os elétrons de um átomo
no espaço e no tempo implicará, inevitavelmente, uma troca
essencialmente incontrolável de momento e energia entre o átomo e os
aparelhos de medida, aniquilando por completo as notáveis
regularidades da estabilidade atômica pelas quais o quantum de ação é
responsável. Inversamente, qualquer investigação dessas regularidades,
cuja descrição implica, ela mesma, as leis de conservação da energia e
do momento, imporá, em princípio, uma renúncia no que tange à
localização espaçotemporal dos elétrons individuais do átomo. Longe
de serem incoerentes, portanto, os aspectos dos fenômenos quânticos
revelados pela experiência obtida nessas condições mutuamente
excludentes devem ser considerados complementares, de uma maneira
totalmente inédita. O ponto de vista da “complementaridade”, com
efeito, de modo algum significa uma renúncia arbitrária à análise dos
fenômenos atômicos, mas é, ao contrário, a expressão de uma síntese
racional da abundante experiência nesse campo, que ultrapassa os
limites a que naturalmente está confinada a aplicação do conceito de
causalidade.
Apesar do incentivo dado a essas investigações pelo grande exemplo
da teoria da relatividade — que, justamente pela revelação de
pressupostos insuspeitados para o uso inambíguo de todos os
conceitos físicos, abriu novas possibilidades de compreendermos
fenômenos aparentemente irreconciliáveis —, devemos reconhecer que
a situação com que se depara a moderna teoria atômica é totalmente
sem precedentes na história da ciência física. De fato, toda a estrutura
conceitual da física clássica, levada a uma unificação e conclusão tão
esplêndidas pelo trabalho de Einstein, assenta-se na suposição, bem
adaptada a nossa experiência cotidiana dos fenômenos físicos, de que
é possível discriminar entre o comportamento dos objetos materiais e
a prática de sua observação. Para um paralelo com a lição da teoria
atômica acerca da limitada aplicabilidade dessas idealizações
costumeiras, devemos nos voltar, na verdade, para ramos bem
diferentes da ciência, como a psicologia, ou até para o tipo de
problemas epistemológicos com que já se confrontavam pensadores
como Buda e Lao Tsé, ao tentarem harmonizar nossas posições de
espectadores e atores no grande drama da vida. Entretanto, o
reconhecimento de uma analogia no caráter puramente lógico de
problemas que se apresentam em campos tão largamente separados do
interesse humano não implica, de modo algum, que se aceite na física
atômica qualquer misticismo que seja alheio ao verdadeiro espírito da
ciência. Ao contrário, dá-nos um incentivo para examinar se a solução
dos paradoxos inesperados com que deparamos na aplicação de
nossos conceitos mais simples aos fenômenos atômicos não nos
ajudaria a esclarecer dificuldades conceituais em outros campos da
experiência.
Também não têm faltado sugestões de que se busque uma correlação
direta entre a vida, ou o livre-arbítrio, e aspectos dos fenômenos
atômicos, para cuja compreensão o arcabouço da física clássica é,
obviamente, estreito demais. De fato, é possível apontar muitos traços
característicos das reações dos organismos vivos, como a sensibilidade
da percepção visual ou a indução da mutação genética pela penetração
da radiação, que sem dúvida implicam uma ampliação de efeitos dos
processos atômicos individuais, semelhante àquela em que se baseia
essencialmente a técnica experimental da física atômica. Contudo, a
simples constatação de que o refinamento dos mecanismos de
organização e regulação dos seres vivos supera qualquer expectativa
prévia não nos permite, de maneira alguma, explicar as características
peculiares da vida. Com efeito, os chamados aspectos holísticos e
finalistas dos fenômenos biológicos decerto não podem ser
imediatamente explicados pela característica de individualidade dos
processos atômicos, revelada pela descoberta do quantum de ação;
antes, o caráter essencialmente estatístico da mecânica quântica
parece, à primeira vista, até mesmo aumentar as dificuldades de
compreendermos as regularidades biológicas propriamente ditas.
Nesse dilema, entretanto, a lição geral da teoria atômica sugere que o
único modo de conciliar as leis da física com os conceitos adequados a
uma descrição dos fenômenos da vida é examinar a diferença essencial
das condições de observação dos fenômenos físicos e biológicos.
Antes de mais nada, devemos nos aperceber de que qualquer arranjo
experimental com que possamos estudar o comportamento dos
átomos que compõem um organismo, tal como isso pode ser feito com
átomos isolados nos experimentos fundamentais da física atômica,
elimina a possibilidade de manter vivo esse organismo.
Inseparavelmente ligada à vida, a troca incessante de matéria implica
até mesmo a impossibilidade de encararmos um organismo como um
sistema bem definido de partículas materiais, à semelhança dos
sistemas considerados em qualquer explicação das propriedades físico-
químicas corriqueiras da matéria. De fato, somos levados a conceber
as regularidades biológicas propriamente ditas como representando
leis da natureza complementares às que se adequam à explicação das
propriedades dos corpos inanimados, numa analogia com a relação
complementar que há entre as propriedades de estabilidade dos
próprios átomos e um comportamento de suas partículas integrantes
que permita uma descrição em termos da localização espaçotemporal.
Nesse sentido, a existência da própria vida deve ser considerada, no
tocante a sua definição e observação, um postulado fundamental da
biologia, não susceptível de análise posterior, do mesmo modo que a
existência do quantum de ação, juntamente com a atomicidade última
da matéria, compõe a base elementar da física atômica.
Veremos que esse ponto de vista está igualmente distante das
doutrinas extremadas do mecanicismo e do vitalismo. Por um lado, ele
condena como irrelevante qualquer comparação dos organismos vivos
com máquinas, sejam estas as construções relativamente simples
imaginadas pelos antigos iatrofísicos, sejam os modernos dispositivos
de amplificação, sumamente aperfeiçoados, cuja enfatização acrítica
nos exporia a merecermos o apelido de “iatroquantistas”. Por outro
lado, ele rejeita como irracionais todas as tentativas de introduzir
algum tipo de lei biológica especial que seja incompatível com as
regularidades físicas e químicas já estabelecidas, como as que foram
revividas, em nossa época, sob o impacto das maravilhosas revelações
da embriologia a respeito do crescimento e da divisão celulares. Nesse
contexto, convém lembrar, em especial, que a possibilidade de evitar
qualquer incoerência dessa ordem no âmbito da complementaridade é
dada pelo próprio fato de que nenhum resultado da investigação
biológica pode ser inequivocamente descrito de outra maneira que não
em termos da física e da química, do mesmo modo que qualquer
explicação da experiência, mesmo na física atômica, tem que
fundamentar-se, em última instância, no uso dos conceitos
indispensáveis a um registro consciente das impressões sensoriais.
Esta última observação leva-nos de volta ao campo da psicologia,
no qual as dificuldades apresentadas pelos problemas de definição e
observação nas investigações científicas foram claramente
reconhecidas, muito antes de essas questões terem-se agudizado na
ciência natural. Com efeito, na experiência psíquica, a impossibilidade
de distinguir entre os fenômenos em si e sua percepção consciente
requer, claramente, a renúncia a uma simples descrição causal nos
moldes da física clássica, e a própria maneira de usar palavras como
“pensamentos” e “sentimentos” para descrever essa experiência nos
relembra, muito sugestivamente, a complementaridade encontrada na
física atômica. Não entrarei em maiores detalhes aqui. Quero apenas
enfatizar que é justamente essa impossibilidade de distinguir com
clareza o sujeito e o objeto, na introspecção, que proporciona o
espaço necessário à manifestação da volição. No entanto, vincular
mais diretamente o livre-arbítrio à limitação da causalidade na física
atômica, como muitas vezes se sugere, é totalmente alheio à tendência
subjacente aos comentários feitos aqui sobre os problemas biológicos.
Para concluir esta exposição, espero que a temeridade em que
consiste um físico aventurar-se tão além de seu campo restrito de
ciência possa ser perdoada, em vista da tão bem-vinda oportunidade
de discussões proveitosas que é oferecida aos físicos e biólogos por
este encontro em honra da memória do grande pioneiro a cujas
descobertas fundamentais esse dois ramos da ciência tanto devem.
Filosofia natural e culturas humanas

1938

Foi com enorme hesitação que aceitei o gentil convite de me dirigir a


esta assembleia de distintos representantes das ciências antropológicas
e etnográficas, das quais, como físico, naturalmente não tenho
conhecimento em primeira mão. Contudo, nesta ocasião especial, em
que até as circunstâncias históricas falam a cada um de nós sobre
outros aspectos da vida que não os discutidos no funcionamento
normal dos congressos, talvez seja interessante tentar chamar sua
atenção, em poucas palavras, para o aspecto epistemológico do
recente desenvolvimento da filosofia natural e sua influência sobre os
problemas humanos em geral. A despeito da grande separação entre
nossos diferentes ramos de conhecimento, a nova lição que se impôs
aos físicos no tocante à cautela com que devem ser aplicadas todas as
convenções usuais, tão logo deixemos de nos voltar para a experiência
cotidiana, pode realmente servir para nos lembrar, de nova maneira,
os perigos, tão conhecidos dos humanistas, de julgar culturas
desenvolvidas em outras sociedades a partir de nosso próprio ponto de
vista.
Evidentemente, é impossível traçar uma distinção nítida entre a
filosofia natural e a cultura humana. As ciências físicas, na verdade,
são parte integrante de nossa civilização, não apenas pelo fato de
nosso domínio cada vez maior das forças da natureza haver
modificado tão completamente as condições materiais da vida, mas
também porque o estudo dessas ciências contribuiu muito para
esclarecer os antecedentes de nossa própria existência. Nesse aspecto,
que significado terá tido não mais nos considerarmos dotados do
privilégio de viver no centro do Universo, cercados por sociedades
menos afortunadas, vivendo à beira do abismo, e sim, mediante o
desenvolvimento da astronomia e da geografia, havermos reconhecido
que todos dividimos um pequeno planeta esférico do sistema solar,
que, por sua vez, é apenas uma pequena parte de sistemas ainda
maiores? Quão imperiosa não foi também a advertência que
recebemos, em nossa época, sobre a relatividade de todos os juízos
humanos, através da revisão renovada dos pressupostos subjacentes
ao uso inambíguo até mesmo de nossos conceitos mais elementares,
como o espaço e o tempo, os quais, ao revelarem a dependência
especial em que estão todos os fenômenos físicos do ponto de vista do
observador, tanto contribuíram para a unidade e a beleza de toda a
nossa visão do mundo?
Embora a importância dessas grandes conquistas para nossa visão
global seja comumente reconhecida, isso ainda mal chega a acontecer
no tocante à insuspeitada lição epistemológica que nos deu a abertura
de novíssimos campos de pesquisa física nos últimos anos. Nossa
penetração no mundo dos átomos, antes vedado aos olhos do homem,
é de fato uma aventura comparável às grandes viagens de
descobrimento dos circunavegadores e às ousadas explorações dos
astrônomos nas profundezas do espaço celeste. Como se sabe, o
maravilhoso desenvolvimento da arte da experimentação física não
apenas eliminou os últimos vestígios da antiga crença em que a
precariedade de nossos sentidos nos impediria permanentemente de
obter informações diretas sobre os átomos individuais, como até nos
mostrou que os próprios átomos compõem-se de corpúsculos ainda
menores, que podem ser isolados e cujas propriedades podem ser
investigadas separadamente. Ao mesmo tempo, entretanto, nesse
fascinante campo da experimentação, aprendemos que as leis da
natureza até então conhecidas, que compõem o grande edifício da
física clássica, só são válidas ao lidarmos com corpos formados por
um número praticamente infinito de átomos. De fato, o novo
conhecimento concernente ao comportamento de átomos individuais e
dos corpúsculos atômicos revelou um limite inesperado para a
subdivisão de todas as ações físicas, que ultrapassa em muito a antiga
doutrina da divisibilidade restrita da matéria e confere a cada processo
atômico um caráter individual peculiar. Essa descoberta, com efeito,
gerou uma novíssima base para que se compreenda a estabilidade
intrínseca das estruturas atômicas, a qual, em última instância,
condiciona as regularidades de todas as experiências corriqueiras.
Quão radical foi a mudança promovida por esse avanço da física
atômica em nossa atitude perante a descrição da natureza talvez possa
ser mais claramente ilustrado pelo fato de que até o princípio da
causalidade, antes considerado o fundamento incontestável de toda
interpretação dos fenômenos naturais, revelou-se um referencial
estreito demais para abarcar as regularidades singulares que regem os
processos atômicos individuais. Sem dúvida, todos hão de
compreender que os físicos precisaram de razões muito convincentes
para renunciar ao próprio ideal de causalidade; mas, no estudo dos
fenômenos atômicos, foi-nos repetidamente ensinado que questões que
se acreditava terem recebido suas respostas finais há muito tempo
haviam reservado para nós as mais inesperadas surpresas. Todos
vocês, por certo, terão ouvido falar dos enigmas relativos às
propriedades mais elementares da luz e da matéria, que tanto
intrigaram os físicos nos últimos anos. As aparentes contradições com
que deparamos a esse respeito são, na verdade, tão agudas quanto as
que deram origem ao desenvolvimento da teoria da relatividade no
começo deste século e, tal como esta, só encontraram explicação
através de um exame mais rigoroso do limite imposto pelas próprias
novas experiências ao uso inambíguo dos conceitos que entram na
descrição dos fenômenos. Enquanto, na teoria da relatividade, o ponto
decisivo foi o reconhecimento dos modos essencialmente diferentes
pelos quais observadores em movimento em relação uns aos outros
descrevem o comportamento dos objetos, a elucidação dos paradoxos
da física atômica revelou o fato de que a inevitável interação dos
objetos e dos instrumentos de medida instaura um limite absoluto à
possibilidade de falarmos de um comportamento dos objetos atômicos
que independa dos meios de observação.
Estamos diante de um problema epistemológico bastante novo na
filosofia natural. No âmbito desta, toda descrição das experiências, até
então, baseara-se no pressuposto, já inerente às convenções comuns da
linguagem, de que é possível traçar uma distinção nítida entre o
comportamento dos objetos e os meios de observação. Esse
pressuposto é não só plenamente justificado por toda a experiência
cotidiana, como constitui, inclusive, toda a base da física clássica, a
qual, justamente pela teoria da relatividade, recebeu um arremate tão
maravilhoso. No entanto, tão logo começamos a lidar com fenômenos
como os processos atômicos individuais — que, por sua própria
natureza, são essencialmente determinados pela interação dos objetos
em questão e dos instrumentos de medida necessários à definição dos
projetos experimentais —, somos forçados a examinar mais de perto a
questão do tipo de conhecimento que se pode obter com respeito aos
objetos. Nesse aspecto, devemos reconhecer, por um lado, que a meta
de todo experimento físico — obter conhecimento em condições
passíveis de ser reproduzidas e comunicadas — deixa-nos sem outra
alternativa senão utilizar conceitos cotidianos, talvez aperfeiçoados
pela terminologia da física clássica, não apenas em todos os relatos da
construção e manipulação dos instrumentos de medida, mas também
na descrição dos resultados experimentais efetivamente obtidos. Por
outro lado, é igualmente importante compreender que justamente essa
situação implica que nenhum resultado de um experimento
concernente a um fenômeno que, em princípio, esteja fora do âmbito
da física clássica pode ser interpretado como dando informações sobre
propriedades independentes dos objetos; está, antes, intrinsecamente
ligado a uma situação definida, em cuja descrição os instrumentos de
medida que interagem com os objetos também têm uma participação
essencial. Este último fato explica as contradições aparentes que
surgem quando os resultados obtidos sobre objetos atômicos por
diferentes processos experimentais são provisoriamente combinados
numa imagem autônoma do objeto.
Entretanto, as informações sobre o comportamento de um objeto
atômico, obtidas em condições experimentais definidas, podem,
segundo uma terminologia frequentemente usada na física atômica,
ser satisfatoriamente caracterizadas como complementares a qualquer
informação sobre o mesmo objeto, obtida por um outro arranjo
experimental que exclua o atendimento das primeiras condições.
Embora esses tipos de informação não possam ser combinados num
quadro único por meio de conceitos comuns, eles de fato representam
aspectos igualmente essenciais de qualquer conhecimento do objeto
em questão que se possa obter nesse campo. O reconhecimento desse
caráter complementar das analogias mecânicas pelas quais se tem
tentado visualizar os efeitos radiantes individuais levou, de fato, a
uma solução totalmente satisfatória dos enigmas das propriedades da
luz a que aludimos anteriormente. Do mesmo modo, foi somente
levando em conta a relação complementar entre as diferentes
experiências sobre o comportamento dos corpúsculos atômicos que se
tornou possível obter uma pista para compreender o contraste
marcante entre as propriedades dos modelos mecânicos comuns e as
leis peculiares de estabilidade que regem as estruturas atômicas, que
compõem a base de qualquer explicação mais exata das propriedades
físicas e químicas específicas da matéria.
É claro que não tenho nenhuma intenção, nesta oportunidade, de
examinar mais de perto esses detalhes. Mas espero ter sido capaz de
lhes transmitir uma impressão suficientemente clara de que não
estamos, de modo algum, envolvidos numa renúncia arbitrária no que
tange à análise pormenorizada da riqueza quase esmagadora de nossa
experiência no campo dos átomos, que vem crescendo rapidamente.
Ao contrário, temos que enfrentar o desafio de um desenvolvimento
racional de nossos meios de classificar e compreender novas
experiências que, por seu próprio caráter, não se encaixam no
arcabouço da descrição causal. Esta só é adequada à explicação do
comportamento dos objetos na medida em que esse comportamento
independa dos meios de observação. Longe de conter qualquer
misticismo contrário ao espírito da ciência, o ponto de vista da
complementaridade consiste, na verdade, numa generalização coerente
do ideal de causalidade.
Por mais inesperada que possa afigurar-se essa ocorrência no campo
da física, estou certo de que muitos de vocês terão reconhecido a
estreita analogia entre a situação referente à análise dos fenômenos
atômicos, que descrevi, e alguns aspectos característicos do problema
da observação da psicologia humana. Com efeito, podemos dizer que
a tendência da psicologia moderna pode ser caracterizada como uma
reação à tentativa de decompor a experiência psíquica em elementos
que se possam associar da mesma maneira que os resultados das
mensurações na física clássica. Na introspecção, é claramente
impossível traçar uma distinção nítida entre os fenômenos em si e sua
percepção consciente, e, embora muitas vezes falemos em voltar nossa
atenção para algum aspecto particular da experiência psíquica, um
exame mais detido evidencia que efetivamente lidamos, nesses casos,
com situações mutuamente excludentes. Todos conhecemos o antigo
provérbio que diz que, se tentarmos analisar nossas emoções,
dificilmente continuaremos a possuí-las. Nesse sentido, reconhecemos
entre as experiências psíquicas, para cuja descrição se usam
adequadamente termos como “pensamentos” e “sentimentos”, uma
relação de complementaridade semelhante à que existe entre
experiências referentes ao comportamento dos átomos obtidas em
diferentes projetos experimentais, e descritas por meio de diferentes
analogias extraídas de nossas ideias habituais. Com essa comparação,
é claro, de modo algum se pretende sugerir uma relação mais estreita
entre a física atômica e a psicologia, mas apenas frisar uma questão
epistemológica que é comum a ambos os campos, e, desse modo, nos
incentivar a verificar até onde a solução de problemas físicos
relativamente simples pode ser útil para esclarecer as mais intricadas
questões psicológicas com que nos confronta a vida humana, e com as
quais os antropólogos e etnólogos deparam com tanta frequência em
suas investigações.
Agora, aproximando-nos mais de nosso tema — o da pertinência
desses pontos de vista para a comparação das diferentes culturas
humanas —, frisaremos, de início, a típica relação de
complementaridade que existe entre os modos de comportamento dos
seres humanos caracterizados pelas palavras “instinto” e “razão”.
Qualquer dessas palavras é usada em sentidos muito diferentes;
instinto pode significar poder motivador ou comportamento herdado,
e razão tanto pode denotar um juízo mais profundo quanto uma
argumentação consciente. O que nos interessa, entretanto, é apenas a
maneira prática como essas palavras são usadas para distinguir as
diferentes situações em que se encontram os animais e o homem.
Ninguém há de negar, é claro, nosso pertencimento ao mundo animal,
e seria até difícil encontrar uma definição exaustiva que distinguisse o
homem e os outros animais. A rigor, as possibilidades latentes de
qualquer organismo vivo não são fáceis de aquilatar, e creio não haver
nenhum de nós que, em algum momento, não tenha ficado
profundamente impressionado com o grau em que os animais de circo
podem ser adestrados. Nem mesmo no que tange à transmissão de
informações de um indivíduo para outro seria possível traçar uma
distinção nítida entre os animais e o homem, embora, é claro, nosso
poder de usar a linguagem nos coloque, nesse aspecto, numa situação
essencialmente diferente, não apenas na troca de experiências práticas
como, antes de mais nada, na possibilidade de transmitir às crianças,
através da educação, as tradições referentes ao comportamento e ao
raciocínio que compõem a base de qualquer cultura humana.
Com respeito à comparação entre razão e instinto, é essencial, acima
de tudo, reconhecer que nenhum pensamento humano propriamente
dito é imaginável sem a utilização de conceitos, enunciados numa
linguagem que cada geração tem que reaprender. Esse uso dos
conceitos, de fato, não apenas elimina a vida instintiva em larga
medida, como também, em grau ainda maior, mantém uma relação
única de complementaridade com o sortimento dos instintos herdados.
Comparada à do homem, a espantosa superioridade dos animais
inferiores na utilização das possibilidades da natureza para a
manutenção e a propagação da vida decerto encontra sua verdadeira
explicação, com frequência, no fato de que, nesses animais, não
podemos identificar nenhum pensamento consciente, em nossa
acepção da palavra. Da mesma forma, a surpreendente capacidade dos
chamados povos primitivos de se orientar em florestas ou desertos, a
qual, embora aparentemente perdida nas sociedades mais civilizadas,
pode ocasionalmente ser revivida em qualquer um de nós, talvez
justifique a conclusão de que esses feitos só são possíveis quando não
se recorre ao pensamento conceitual, que, por sua vez, está adaptado a
finalidades muito mais variadas, de importância fundamental para o
desenvolvimento da civilização. Pelo simples fato de ainda não haver
despertado para o uso dos conceitos, uma criança recém-nascida
dificilmente pode ser considerada um ser humano; mas, por pertencer
à espécie humana, ela tem, é claro, apesar de ser uma criatura mais
desamparada do que a maioria dos filhotes de animais, as
possibilidades orgânicas de receber, através da educação, uma cultura
que lhe permitirá ocupar seu lugar em alguma sociedade humana.
Essas considerações nos colocam prontamente diante da questão de
saber se a difundida crença em que toda criança nasce com uma
predisposição para adotar uma cultura humana específica é realmente
bem fundada, ou se não se deve presumir, antes, que qualquer cultura
pode ser implantada e vicejar tendo suportes físicos muito diferentes.
Tocamos aí, é claro, num tema de controvérsias ainda não resolvidas
entre os geneticistas, que têm realizado estudos muito interessantes
sobre a herança dos caracteres físicos. No contexto desses debates,
entretanto, devemos ter em mente, acima de tudo, que a distinção
entre os conceitos de genótipo e fenótipo, tão fecunda para esclarecer
a hereditariedade nas plantas e nos animais, pressupõe essencialmente
a influência secundária das condições externas de vida sobre as
propriedades características da espécie. No caso das características
culturais específicas das sociedades humanas, entretanto, o problema
se inverte, no sentido de que a base da classificação, nesse caso, são os
hábitos tradicionais moldados pela história das sociedades e seus
ambientes naturais. Esses hábitos, assim como seus pressupostos
inerentes, devem ser detidamente analisados para que se possa avaliar
qualquer possível influência das diferenças biológicas herdadas no
desenvolvimento e na manutenção das culturas em causa. De fato, ao
caracterizar diferentes nações e até diferentes famílias dentro de uma
nação, podemos considerar os traços biológicos e as tradições
espirituais, em larga medida, como sendo independentes uns dos
outros. Seria inclusive tentador reservar o adjetivo “humano”, por
definição, para as características que não estão diretamente ligadas à
herança corporal.
À primeira vista, talvez pareça que essa atitude equivaleria a uma
enfatização indevida de aspectos meramente dialéticos. Mas a lição
que recebemos de todo o crescimento das ciências físicas é que o
germe do desenvolvimento fecundo reside, com frequência, justamente
na escolha adequada das definições. Ao pensarmos, por exemplo, no
esclarecimento trazido em vários ramos da ciência pela argumentação
da teoria da relatividade, vemos, efetivamente, o avanço que pode
haver nesses aperfeiçoamentos formais. Como já sugeri em momentos
anteriores desta exposição, os pontos de vista relativistas decerto
também são úteis para promover uma atitude mais objetiva para com
as relações entre as culturas humanas, cujas diferenças tradicionais
podem assemelhar-se, sob muitos aspectos, às maneiras diferentes e
equivalentes pelas quais se pode descrever a experiência física.
Contudo, essa analogia entre os problemas físicos e os humanísticos
tem um alcance limitado, e seu exagero chegou a produzir uma
apreensão equivocada da essência da própria teoria da relatividade. A
rigor, a unidade da imagem relativista do mundo implica,
precisamente, a possibilidade de que qualquer observador preveja,
dentro de seu arcabouço conceitual, como um outro observador irá
descrever a experiência dentro do arcabouço que lhe é natural. O
principal obstáculo a uma atitude não preconceituosa para com a
relação entre as várias culturas humanas, entretanto, são as diferenças
profundamente arraigadas dos antecedentes tradicionais em que se
baseia a harmonia cultural nas diferentes sociedades humanas, e que
excluem qualquer comparação simplista entre essas culturas.
É nesse contexto, acima de tudo, que o ponto de vista da
complementaridade se oferece como um meio de lidar com a situação.
De fato, ao estudarmos culturas humanas diferentes das nossas, temos
que lidar com um problema particular de observação que, ante um
exame mais rigoroso, mostra muitos traços em comum com os
problemas atômicos ou psicológicos, nos quais a interação dos objetos
e dos instrumentos de medida, ou a inseparabilidade entre conteúdo
objetivo e sujeito observador, impede uma aplicação imediata das
convenções adequadas à explicação das experiências da vida
cotidiana. Especialmente no estudo das culturas de povos primitivos,
os etnólogos não apenas estão efetivamente cônscios do risco de
corromper essas culturas através do contato necessário, como até se
confrontam com o problema da repercussão desses estudos em sua
própria atitude humana. O dado a que aludo aqui é a experiência,
bastante conhecida dos exploradores, do abalo imposto a seus
preconceitos, até então não reconhecidos, pela experiência da
insuspeitada harmonia interna que a vida humana pode apresentar até
mesmo em meio a convenções e tradições radicalmente diferentes das
deles. Como um exemplo especialmente drástico, talvez eu possa
lembrar-lhes, neste momento, até que ponto, em algumas sociedades,
os papéis dos homens e das mulheres se invertem, não apenas com
respeito aos deveres domésticos e sociais, mas também no tocante ao
comportamento e à mentalidade. Ainda que muitos de nós, numa
situação como essa, possamos talvez hesitar, a princípio, em admitir a
possibilidade de que seja um mero capricho do destino que as pessoas
em questão tenham sua cultura específica, e não a nossa, e que nós
não tenhamos a deles em vez da nossa, está claro que até a mais
ínfima suspeita nesse aspecto implica um desvelamento da
complacência nacional inerente a qualquer cultura humana alicerçada
em si mesma.
Usando a palavra tal como é usada, na física atômica, para
caracterizar a relação entre experiências obtidas por diferentes
arranjos experimentais, e visualizáveis apenas por ideias mutuamente
excludentes, podemos dizer que as diferentes culturas humanas são
complementares entre si. Com efeito, cada uma dessas culturas
representa um equilíbrio harmonioso de convenções tradicionais por
cujo meio as potencialidades da vida humana podem manifestar-se, de
um modo que nos revela novos aspectos de sua ilimitada riqueza e
variedade. Naturalmente, não há possibilidade, nesse campo, de
nenhuma relação absolutamente excludente, como as que se
constatam entre experimentos complementares sobre o
comportamento de objetos atômicos bem definidos, já que dificilmente
haveria alguma cultura que se pudesse dizer plenamente autônoma.
Ao contrário, todos sabemos, por numerosos exemplos, como o
contato mais ou menos íntimo entre diferentes sociedades humanas
pode levar a uma fusão gradativa das tradições, dando origem a uma
cultura inteiramente nova. Nesse aspecto, nem é preciso lembrar a
importância da miscigenação das populações, através da emigração ou
da conquista, para o avanço da civilização humana. Na verdade, a
grande perspectiva dos estudos humanistas talvez consista em eles
contribuírem, através de um crescente conhecimento da história e do
desenvolvimento culturais, para a eliminação gradativa dos
preconceitos, que é a meta comum de todas as ciências.
Como frisei no início desta exposição, está muito além de minha
capacidade, é claro, contribuir de maneira direta para a solução dos
problemas discutidos entre os especialistas neste congresso. Meu único
propósito foi transmitir impressões sobre uma postura epistemológica
geral que fomos forçados a adotar, num campo tão distante das
paixões humanas quanto a análise de simples experimentos físicos.
Não sei, no entanto, se terei encontrado as palavras certas para lhes
transmitir esta impressão e, antes de concluir, talvez me seja permitido
relatar uma experiência que, certa vez, lembrou-me muito vividamente
minhas deficiências nesse aspecto. Para explicar a uma plateia que eu
não estava usando a palavra preconceito para produzir nenhuma
condenação de outras culturas, referi-me, em tom de brincadeira, aos
preconceitos tradicionais que os dinamarqueses alimentam em relação
a seus irmãos suecos, situados lá fora destas janelas na margem oposta
do belo Oresund, com quem lutamos durante séculos dentro das
próprias muralhas deste castelo, e de quem recebemos, pelo contato
ao longo das eras, tão frutífera inspiração. Bem, os senhores podem
imaginar o choque que tive quando, depois de minha exposição, um
membro da plateia aproximou-se de mim e disse que não conseguia
entender por que eu odiava os suecos. Obviamente, devo ter-me
expressado de maneira muito confusa naquela ocasião, e temo que
também hoje tenha falado de modo muito obscuro. Ainda assim,
espero não ter falado com tanta falta de clareza a ponto de dar
margem a mal-entendidos desse tipo quanto à orientação de meus
argumentos.
O debate com Einstein sobre problemas
epistemológicos na física atômica

1949

Ao ser convidado pelo Editor da série Filósofos Vivos a redigir um


artigo para este volume,2 no qual cientistas contemporâneos
homenageiam as contribuições decisivas de Albert Einstein para o
progresso da filosofia natural e reconhecem a dívida de toda a nossa
geração para com a orientação que sua genialidade nos deu, refleti
muito sobre a melhor maneira de explicar o quanto devo a ele em
matéria de inspiração. Nesse contexto, as muitas ocasiões, ao longo
dos anos, em que tive o privilégio de debater com Einstein os
problemas epistemológicos suscitados pelo moderno desenvolvimento
da física atômica voltaram-me vividamente à lembrança, e achei que
dificilmente eu poderia tentar fazer melhor do que fornecer um relato
dessas discussões, que me foram do máximo valor e estímulo. Espero
também que o relato possa transmitir a círculos mais amplos uma
impressão de quão essencial foi a troca franca de ideias para o
progresso num campo em que, vez após outra, a experiência nova
exigiu um reexame de nossas concepções.

Desde o começo, a principal questão em debate foi a atitude a


adotar perante o afastamento dos princípios costumeiros da filosofia
natural, característico do desenvolvimento inédito da física que foi
iniciado, no primeiro ano deste século, pela descoberta do quantum
universal de ação por Planck. Essa descoberta, que revelou uma
característica de atomicidade nas leis da natureza que superava em
muito a antiga doutrina da divisibilidade limitada da matéria, de fato
nos ensinou que as teorias clássicas da física são idealizações, que só
podem ser aplicadas de forma inambígua se todas as ações envolvidas
forem grandes em comparação com o quantum. A questão em debate
era saber se a renúncia a um modo causal de descrever os processos
atômicos, implicada nos esforços de lidar com essa situação, deveria
ser encarada como um afastamento temporário de ideais a serem
revividos em última instância, ou se estaríamos diante de um passo
irrevogável para chegar à harmonia adequada entre a análise e a
síntese dos fenômenos físicos. Para descrever os antecedentes de
nossas discussões e expor com a máxima clareza possível os
argumentos usados pelos pontos de vista contrastantes, achei
necessário deter-me um pouco na rememoração de alguns aspectos do
desenvolvimento para o qual o próprio Einstein contribuiu tão
decisivamente.
Como se sabe, a estreita relação, originalmente elucidada por
Boltzmann, entre as leis da termodinâmica e as regularidades
estatísticas exibidas pelos sistemas mecânicos com muitos graus de
liberdade norteou Planck em sua engenhosa abordagem do problema
da radiação térmica, levando-o a sua descoberta fundamental.
Enquanto, em seu trabalho, Planck interessou-se primordialmente por
considerações de caráter essencialmente estatístico e, com grande
cautela, absteve-se de conclusões definitivas sobre a extensão em que a
existência do quantum acarretava um afastamento dos fundamentos
da mecânica e da eletrodinâmica, a grande contribuição original de
Einstein para a teoria quântica (1905) foi justamente o
reconhecimento de como alguns fenômenos físicos, tais como o efeito
fotoelétrico, podem depender diretamente de efeitos quânticos
individuais.1 Nesses mesmos anos em que, na elaboração de sua teoria
da relatividade, Einstein lançou novas bases para a ciência física, ele
explorou com espírito intrépido os aspectos inéditos da atomicidade
que apontavam para além do arcabouço da física clássica.
Com intuição infalível, Einstein foi gradativamente levado à
conclusão de que qualquer processo de radiação implica a emissão ou
a absorção de quanta individuais de luz, ou “fótons”, que apresentam,
respectivamente, energia e momento

E = hν e P = hσ, (1)

onde h é a constante de Planck, enquanto ν e σ são o número de


vibrações por unidade de tempo e o número de ondas por unidade de
comprimento, respectivamente. Apesar de sua fertilidade, a ideia do
fóton gerou um dilema bastante imprevisto, já que qualquer imagem
corpuscular simples da radiação seria irreconciliável, obviamente, com
os efeitos de interferência, que são um aspecto essencial dos
fenômenos radiantes e só podem ser descritos nos termos de uma
imagem ondulatória. A agudeza desse dilema é enfatizada pelo fato de
que os efeitos de interferência fornecem nosso único meio de definir os
conceitos de frequência e comprimento de onda, que entram nas
próprias expressões da energia e do momento do fóton.
Nessa situação, não havia como tentar empreender uma análise
causal dos fenômenos radiantes, mas tão somente, através do uso
conjunto das imagens contrastantes, estimar as probabilidades de
ocorrência dos processos individuais de radiação. Todavia, é muito
importante perceber que o recurso às leis da probabilidade, nessas
circunstâncias, tem um objetivo essencialmente diferente do conhecido
emprego das considerações estatísticas como um meio prático de
explicar as propriedades de sistemas mecânicos de grande
complexidade estrutural. De fato, na física quântica, não nos
confrontamos com complexidades desse tipo, mas com a incapacidade
do quadro clássico de conceitos de abarcar o traço peculiar da
indivisibilidade, ou “individualidade”, que caracteriza os processos
elementares.
A falha das teorias da física clássica em dar conta dos fenômenos
atômicos foi ainda mais acentuada pelo avanço de nossos
conhecimentos sobre a estrutura dos átomos. Acima de tudo, a
descoberta do núcleo atômico por Rutherford (1911) logo revelou
como os conceitos mecânicos e eletromagnéticos clássicos eram
insuficientes para explicar a estabilidade intrínseca do átomo. Aqui,
mais uma vez, a teoria quântica forneceu uma pista para elucidar a
situação. Em especial, verificou-se ser possível explicar a estabilidade
atômica, bem como as leis empíricas que regem os espectros dos
elementos, presumindo que qualquer reação do átomo que resulte
numa alteração de sua energia implicava uma transição completa
entre dois chamados estados quânticos estacionários, e que, em
particular, os espectros eram emitidos por um processo abrupto, em
que cada transição era acompanhada pela emissão de um quantum de
luz monocromática, de energia exatamente igual à de um fóton de
Einstein.
Essas ideias, que logo foram confirmadas pelos experimentos de
Franck e Hertz (1914) sobre a excitação de espectros pelo impacto dos
elétrons nos átomos, provocaram uma nova renúncia à modalidade de
descrição causal, já que, evidentemente, a interpretação das leis
espectrais implica que um átomo em estado de excitação tem, em
geral, a possibilidade de transições, com emissão de fótons, para um
ou outro de seus estados de energia mais baixa. De fato, a própria
ideia de estados estacionários é incompatível com qualquer diretriz
para a escolha entre essas transições, e dá margem apenas à noção das
probabilidades relativas dos processos individuais de transição. O
único guia para estimar essas probabilidades era o chamado princípio
da correspondência, originário da busca da mais estreita ligação
possível entre a explicação estatística dos processos atômicos e as
consequências a serem esperadas da teoria clássica, que deveria ser
válida dentro dos limites em que as ações envolvidas em todos os
estágios da análise dos fenômenos fossem grandes quando
comparadas ao quantum universal.
Nessa época, ainda não se vislumbrava nenhuma teoria quântica
dotada de coerência interna. A atitude vigente talvez possa ser
ilustrada pela seguinte passagem de uma palestra feita pelo autor em
1913:2
Espero ter-me expressado com suficiente clareza para que vocês possam avaliar
o grau em que essas considerações entram em conflito com o esquema de
concepções admiravelmente coerente que, com acerto, se denominou de teoria
clássica da eletrodinâmica. Por outro lado, tentei transmitir-lhes a impressão de
que — justamente pelo vigor desse conflito — talvez também seja possível, no
correr do tempo, estabelecer uma certa coerência nas novas ideias.

Um importante avanço no desenvolvimento da teoria quântica foi


feito pelo próprio Einstein, em seu famoso artigo de 1917 sobre o
equilíbrio radiante,3 no qual ele mostrou que a lei de radiação térmica
de Planck podia ser deduzida, de forma simples, de pressupostos
compatíveis com as ideias básicas da teoria quântica da constituição
dos átomos. Para esse fim, Einstein formulou regras estatísticas gerais
sobre a ocorrência de transições radiantes entre os estados
estacionários, presumindo não apenas que, quando o átomo é exposto
a um campo de radiação, os processos de absorção e emissão ocorrem
com uma probabilidade por unidade de tempo que é proporcional à
intensidade da radiação, mas também que, mesmo na ausência de
perturbações externas, ocorrem processos espontâneos de emissão
numa taxa correspondente a uma certa probabilidade a priori. Quanto
a este último ponto, Einstein enfatizou o caráter fundamental da
descrição estatística de maneira muito sugestiva, chamando a atenção
para a analogia existente entre os pressupostos relativos à ocorrência
das transições radiantes espontâneas e as conhecidas leis que regem as
transformações das substâncias radioativas.
No contexto de um exame minucioso das exigências da
termodinâmica com respeito aos problemas da radiação, Einstein
frisou ainda mais o dilema, assinalando que a argumentação implicava
que qualquer processo de radiação era “unidirecional”, no sentido de
que não só o momento correspondente a um fóton na direção da
propagação é transferido para um átomo no processo de absorção,
mas também de que o átomo emissor recebe um impulso equivalente
na direção oposta, embora, na imagem ondulatória, não se possa falar
em preferência por uma direção única num processo de emissão. A
atitude do próprio Einstein perante essas surpreendentes conclusões
foi expressa numa passagem no fim de seu artigo (loc. cit., p. 127s),
que pode ser traduzida da seguinte maneira:
Esses aspectos dos processos elementares parecem tornar quase inevitável o
desenvolvimento de um tratamento quântico apropriado da radiação. O ponto
fraco da teoria reside em que, por um lado, não se pode obter nenhuma ligação
mais estreita com os conceitos ondulatórios, e, por outro, ela deixa ao acaso
[Zufall] o tempo e a direção dos processos elementares; não obstante, tenho
plena confiança na fidedignidade do caminho pelo qual se enveredou.

Quando tive a grande experiência de me encontrar com Einstein


pela primeira vez, durante uma visita a Berlim em 1920, essas
questões fundamentais foram o tema de nossas conversas. As
discussões, às quais voltei com frequência em meu pensamento,
acrescentaram a toda a minha admiração por Einstein uma profunda
impressão quanto a sua atitude imparcial. Certamente, o uso que ele
favorecia de expressões pitorescas, como “ondas fantasmas
[Gespensterfelder] a guiar os fótons”, não implicava nenhuma
tendência ao misticismo, mas ilustrava, antes, um profundo senso de
humor por trás de suas penetrantes observações. Contudo, persistiu
uma certa diferença de atitude e visão, já que, com sua capacidade
magistral de coordenar experiências aparentemente contrastantes sem
abandonar a continuidade e a causalidade, Einstein talvez tenha
relutado mais em renunciar a esses ideais do que alguém para quem a
renúncia, nesse aspecto, se afigurasse a única maneira de prosseguir na
tarefa imediata de coordenar os múltiplos dados referentes aos
fenômenos atômicos, que se acumulavam dia a dia na exploração
desse novo campo do conhecimento.
Nos anos subsequentes, durante os quais os problemas atômicos
atraíram a atenção de um círculo cada vez maior de físicos, as
aparentes contradições inerentes à teoria quântica foram ainda mais
agudamente sentidas. Ilustrativo dessa situação foi o debate suscitado
pela descoberta do efeito de Stern-Gerlach em 1922. Por um lado, esse
efeito deu marcante respaldo à ideia de estados estacionários e, em
particular, à teoria quântica do efeito Zeeman, desenvolvida por
Sommerfeld; por outro, como foi muito claramente exposto por
Einstein e Ehrenfest,4 ele cumulou de dificuldades insuperáveis
qualquer tentativa de se fazer uma imagem do comportamento dos
átomos num campo magnético. Paradoxos similares foram suscitados
pela descoberta, por Compton (1924), da alteração do comprimento
de onda que acompanhava o espalhamento dos raios x pelos elétrons.
Esse fenômeno, como se sabe, proporcionou uma prova extremamente
direta de como era adequada a opinião de Einstein acerca da
transferência de energia e momento nos processos radiantes; ao
mesmo tempo, ficou igualmente claro que nenhum modelo simplista
de uma colisão corpuscular podia oferecer uma descrição exaustiva do
fenômeno. Sob o impacto dessas dificuldades, houve quem tivesse
dúvidas, por algum tempo, até mesmo a respeito da conservação da
energia e do momento nos processos radiantes individuais;5 mas essa
visão logo teve de ser abandonada, diante de experimentos mais
aperfeiçoados, que destacaram a correlação entre a deflexão do fóton
e o recuo correspondente do elétron.
A rigor, o terreno para o esclarecimento da situação seria
inicialmente calçado pela elaboração de uma teoria quântica mais
abrangente. Um passo inicial em direção a essa meta foi o
reconhecimento por De Broglie, em 1925, de que a dualidade onda-
corpúsculo não se restringia às propriedades da radiação, mas era
igualmente inevitável na explicação do comportamento das partículas
materiais. Essa ideia, que logo foi convincentemente confirmada por
experiências com fenômenos de interferência de elétrons, foi
prontamente acolhida por Einstein, que já tinha vislumbrado a
profunda analogia entre as propriedades da radiação térmica e dos
gases no chamado estado degenerado.6 A nova orientação foi seguida
com extremo êxito por Schrödinger (1926), que mostrou, em
particular, como os estados estacionários dos sistemas atômicos
podiam ser representados pelas soluções apropriadas de uma equação
de onda a cujo estabelecimento ele foi levado pela analogia formal,
originalmente traçada por Hamilton, entre os problemas mecânicos e
os ópticos. Mesmo assim, os aspectos paradoxais da teoria quântica
não só não foram sanados, mas foram até enfatizados pela aparente
contradição entre as exigências do princípio de superposição geral da
descrição ondulatória e a característica de individualidade dos
processos atômicos elementares.
Ao mesmo tempo, Heisenberg (1925) havia lançado as bases de uma
mecânica quântica racional, rapidamente desenvolvida mediante
importantes contribuições de Born e Jordan, bem como de Dirac.
Nessa teoria, introduziu-se um formalismo em que as variáveis
cinemáticas e dinâmicas da mecânica clássica foram substituídas por
símbolos sujeitos a uma álgebra não comutativa. A despeito da
renúncia às imagens orbitais, as equações canônicas da mecânica de
Hamilton mantiveram-se inalteradas, e a constante de Planck entrou
somente nas regras de comutação

aplicáveis a qualquer conjunto de variáveis conjugadas q e p. Através


de uma representação dos símbolos por matrizes com elementos
referentes às transições entre os estados estacionários, tornou-se
possível, pela primeira vez, uma formulação quantitativa do princípio
da correspondência. Convém lembrar aqui que um importante passo
preliminar em direção a essa meta foi dado pelo estabelecimento,
sobretudo pelas contribuições de Kramers, de uma teoria quântica da
dispersão, que se serviu basicamente das regras gerais de Einstein
sobre a probabilidade de ocorrência dos processos de absorção e
emissão.
Esse formalismo da mecânica quântica logo revelou, através de
Schrödinger, fornecer resultados idênticos aos obteníveis pelos
métodos amiúde mais convenientes, em termos matemáticos, da teoria
ondulatória. Aos poucos, nos anos subsequentes, estabeleceram-se
métodos gerais para uma descrição essencialmente quantitativa dos
processos atômicos, combinando as características de individualidade
e os requisitos do princípio de superposição, igualmente característico
da teoria quântica. Dentre os muitos avanços desse período, podemos
mencionar, em especial, que o formalismo revelou-se capaz de
incorporar o princípio de exclusão que rege os estados dos sistemas
com diversos elétrons, e que, antes mesmo do advento da mecânica
quântica, já fora deduzido por Pauli de uma análise dos espectros
atômicos. A compreensão quantitativa de um vasto volume de dados
empíricos não podia deixar dúvidas quanto à fecundidade e à
adequação do formalismo quântico, mas seu caráter abstrato deu
origem a um sentimento muito difundido de mal-estar. Na verdade,
elucidar a situação iria exigir um exame minucioso do próprio
problema observacional da física atômica.
Essa fase do desenvolvimento foi, como se sabe, iniciada em 1927
por Heisenberg,7 que assinalou que o conhecimento obtenível sobre o
estado de um sistema atômico sempre envolveria uma
“indeterminação” peculiar. Qualquer medida da posição de um
elétron por meio de um aparelho, tal como o microscópio, que utilize
radiação de alta frequência estará, segundo as relações fundamentais
(1), ligada a uma troca de momento entre o elétron e o instrumento de
medida, que será tão maior quanto mais exata for a medida da
posição que se procurar obter. Comparando essas considerações com
as exigências do formalismo quântico, Heisenberg chamou atenção
para o fato de que a regra de comutação (2) impõe uma limitação
recíproca na fixação de duas variáveis conjugadas, q e p, expressas
pela relação

∆q ⋅ ∆p ≈ h, (3)

onde ∆q e ∆p são incertezas3 em p e q adequadamente definidas na


determinação dessas variáveis. Ao apontar para a íntima ligação entre
a descrição estatística da mecânica quântica e as possibilidades
efetivas de medida, essa chamada relação de indeterminação4 foi,
como mostrou Heisenberg, de suma importância para elucidar os
paradoxos envolvidos nas tentativas de analisar os efeitos quânticos
tendo como referência as visões físicas costumeiras.
O novo progresso da física atômica foi comentado sob vários
ângulos no Congresso Internacional de Física realizado em Como, em
setembro de 1927, em comemoração a Volta. Numa palestra feita
nessa ocasião,8 defendi um ponto de vista convenientemente
denominado “complementaridade”, próprio para abranger os traços
característicos de individualidade dos fenômenos quânticos e, ao
mesmo tempo, esclarecer os aspectos peculiares do problema
observacional nesse campo da experiência. Para esse fim, é decisivo
reconhecer que, por mais que os fenômenos transcendam o âmbito da
explicação física clássica, a descrição de todos os dados deve ser
expressa em termos clássicos. O argumento é que, com a palavra
“experimento”, referimo-nos a uma situação em que podemos dizer
aos outros o que fizemos e o que aprendemos, e que, portanto, a
explicação do arranjo experimental e dos resultados das observações
deve ser expressa numa linguagem inambígua, com a aplicação
adequada da terminologia da física clássica.
Esse ponto crucial, que iria tornar-se um grande tema dos debates
relatados a seguir, implica a impossibilidade de qualquer separação
nítida entre o comportamento dos objetos atômicos e a interação com
os instrumentos de medida que servem para definir as condições em
que os fenômenos aparecem. De fato, a individualidade dos efeitos
quânticos típicos encontra expressão apropriada no fato de que
qualquer tentativa de subdividir os fenômenos exige uma mudança do
arranjo experimental, introduzindo novas possibilidades de interação
entre os objetos e os instrumentos de medida, as quais, em princípio,
não podem ser controladas. Consequentemente, os dados obtidos em
diferentes condições experimentais não podem ser compreendidos
dentro de um quadro único, mas devem ser considerados
complementares, no sentido de que só a totalidade dos fenômenos
esgota as informações possíveis sobre os objetos.
Nessas circunstâncias, há um elemento essencial de ambiguidade
quando se conferem atributos físicos convencionais aos objetos
atômicos, como logo se evidencia no dilema relativo às propriedades
corpusculares e ondulatórias de elétrons e fótons, no qual lidamos
com imagens contrastantes, cada qual referindo-se a um aspecto
essencial dos dados empíricos. Um exemplo ilustrativo de como os
aparentes paradoxos são eliminados por um exame das condições
experimentais em que aparecem os fenômenos complementares
também é fornecido pelo efeito Compton, cuja descrição coerente nos
apresentou, a princípio, dificuldades tão agudas. Assim, qualquer
arranjo adequado para estudar a troca de energia e momento entre o
elétron e o fóton deve acarretar, na descrição espaçotemporal da
interação, uma incerteza suficiente para definir o número de ondas e a
frequência que entram na relação (1). Inversamente, em virtude da
inevitável interação com as escalas fixas e os relógios que definem o
referencial do espaço-tempo, qualquer tentativa de localizar com
maior exatidão a colisão entre o fóton e o elétron excluiria qualquer
descrição mais precisa com respeito ao balanço entre o momento e a
energia.
Como foi enfatizado na palestra, um instrumento adequado a um
modo de descrição complementar é oferecido, precisamente, pelo
formalismo quântico, que representa um esquema puramente
simbólico que só permite previsões, nos termos do princípio da
correspondência, quanto aos resultados que podem ser obtidos em
condições especificadas através de conceitos clássicos. Convém
lembrar aqui que, até na relação de indeterminação (3), lidamos com
uma implicação do formalismo que desafia uma expressão inambígua,
em termos adequados para descrever os pontos de vista físicos
clássicos. Assim, uma frase como “não podemos conhecer o momento
e a posição de um objeto atômico” desde logo levanta questões
relativas à realidade física desses dois atributos do objeto, as quais só
podem ser respondidas mediante uma referência às condições do uso
inambíguo dos conceitos espaçotemporais, de um lado, e às leis de
conservação dinâmicas, de outro. Embora a combinação desses
conceitos no quadro único de uma cadeia causal de acontecimentos
seja a essência da mecânica clássica, o espaço para regularidades que
ficam fora do alcance dessa descrição é proporcionado, justamente,
pela circunstância de que o estudo dos fenômenos complementares
requer arranjos experimentais mutuamente excludentes.
Na física atômica, a necessidade de um exame renovado das bases
do uso inambíguo de ideias físicas elementares lembra, de certa
maneira, a situação que levou Einstein à sua revisão original da base
de toda a aplicação dos conceitos de espaço-tempo, que, por sua
ênfase na importância primordial do problema observacional,
emprestou tamanha unidade à nossa imagem do mundo. A despeito de
todo o ineditismo da abordagem, na teoria da relatividade a descrição
causal é sustentada com qualquer sistema de referência considerado.
Na teoria quântica, a interação incontrolável dos objetos e dos
instrumentos de medida força-nos a uma renúncia até mesmo nesse
aspecto. Esse reconhecimento, ademais, de modo algum aponta para
uma limitação do alcance da descrição quântica, e o sentido de toda a
argumentação exposta na palestra feita em Como foi mostrar que o
ponto de vista da complementaridade pode ser considerado como uma
generalização racional do próprio ideal de causalidade.
No debate geral em Como, todos nós sentimos a falta de Einstein,
mas, pouco tempo depois, em outubro de 1927, tive a oportunidade
de encontrá-lo em Bruxelas, na V Conferência de Física do Instituto
Solvay, que foi dedicada ao tema “Elétrons e fótons”. Nas reuniões do
Solvay, Einstein fora, desde o começo, uma figura de extremo
destaque. Vários de nós comparecemos à conferência com grandes
expectativas quanto à reação dele ao estágio mais recente do
desenvolvimento, que, a nosso ver, ajudava a esclarecer os problemas
que ele mesmo levantara, desde o início, de maneira tão engenhosa.
Durante os debates, nos quais todo o assunto foi revisto através de
contribuições vindas de muitas partes, e onde os argumentos
mencionados nas páginas anteriores também voltaram a ser
apresentados, Einstein expressou, no entanto, uma profunda
preocupação quanto ao grau em que a explicação causal no espaço e
no tempo era abandonada na mecânica quântica.

FIGURA 1
Para ilustrar sua atitude, Einstein referiu-se, numa das sessões,9 ao
exemplo simples, ilustrado pela figura 1, de uma partícula (elétron ou
fóton) que, por um orifício ou uma abertura estreita, passasse através
de um diafragma situado a uma certa distância de uma chapa
fotográfica. Em virtude da difração da onda, ligada ao movimento da
partícula e indicada na figura pelas linhas finas, não é possível prever
com certeza, nessas condições, em que ponto o elétron chegará à
chapa fotográfica, mas apenas calcular a probabilidade de que, num
experimento, ele seja encontrado dentro de uma região qualquer da
chapa. Nessa descrição, a aparente dificuldade, que Einstein sentiu
com tanta agudeza, está no fato de que, se o elétron for registrado no
experimento num ponto A da chapa, estará fora de questão observar
um efeito desse elétron num outro ponto (B), embora as leis da
propagação usual da onda não deem margem alguma para que esses
dois eventos sejam correlacionados dessa forma.
A atitude de Einstein deu margem a discussões acaloradas num
pequeno círculo, do qual Ehrenfest, que por anos fora amigo íntimo
de nós dois, participou de maneira muito ativa e proveitosa. Decerto,
todos reconhecemos que, no exemplo acima, a situação não apresenta
nenhuma analogia com a aplicação da estatística para lidar com
sistemas mecânicos complexos, mas faz lembrar, antes, os antecedentes
das primeiras conclusões do próprio Einstein sobre a
unidirecionalidade dos efeitos da radiação individual, que contrasta
tão vigorosamente com uma imagem ondulatória simples. Mas as
discussões centraram-se na questão de determinar se a descrição da
mecânica quântica esgotava as possibilidades de explicar fenômenos
observáveis, ou se, como sustentava Einstein, a análise podia ser
levada adiante e, em especial, se uma descrição mais completa dos
fenômenos poderia ser obtida levando-se em conta o balanço
detalhado da energia e do momento nos processos individuais.
Para explicar a linha dos argumentos de Einstein, talvez seja
ilustrativo examinar, aqui, alguns aspectos simples do balanço entre
momento e energia ligados à localização de uma partícula no espaço e
no tempo. Para esse fim, examinaremos o caso simples de uma
partícula que penetre por um orifício num diafragma, sem ou com um
obturador para abrir e fechar o orifício, como indicam as figuras 2a e
2b, respectivamente. As linhas paralelas equidistantes à esquerda das
figuras indicam a série de ondas planas correspondente ao estado de
movimento de uma partícula que, antes de chegar ao diafragma, tem
um momento P, relacionado com o número de ondas σ conforme a
segunda das equações (1). De acordo com a difração das ondas ao
atravessarem o orifício, o estado de movimento da partícula à direita
do diafragma é representado por uma série de ondas esféricas, com
uma abertura angular θ adequadamente definida e, no caso da figura
2b, também com uma extensão radial limitada. Consequentemente, a
descrição desse estado envolve uma certa incerteza ∆p no componente
de momento da partícula que é paralelo ao diafragma, e, no caso de
um diafragma com obturador, uma incerteza adicional ∆E da energia
cinética.

FIGURA 2a

FIGURA 2b
Já que uma medida da incerteza ∆q na localização da partícula no
plano do diafragma é fornecida pelo raio a do orifício, e já que θ ≈
1⁄σa, obtemos, usando (1), apenas ∆p ≈ θP ≈ h⁄∆q, de acordo com a
relação de indeterminação (3). Este resultado também poderia ser
diretamente obtido, é claro, notando-se que, em virtude da extensão
limitada do campo de onda no lugar da abertura, a componente do
número de ondas paralela ao plano do diafragma acarretará uma
incerteza ∆σ ≈ 1⁄a ≈ 1⁄∆q. Da mesma forma, a difusão das frequências
dos componentes harmônicos da série ondulatória limitada da figura
2b é, evidentemente, ∆ν ≈ 1⁄∆t, onde ∆t é o intervalo de tempo
durante o qual o obturador deixa o orifício aberto; portanto,
representa a incerteza temporal da passagem da partícula pelo
diafragma. A partir de (1), obtemos

∆E ⋅ ∆t ≈ h, (4)

novamente de acordo com a relação (3) para as duas variáveis


conjugadas E e t.
Do ponto de vista das leis de conservação, a origem dessas
incertezas que entram na descrição do estado da partícula depois de
sua passagem pelo orifício pode ser rastreada até as possibilidades de
troca de momento e energia com o diafragma ou o obturador. No
sistema de referência considerado nas figuras 2a e 2b, a velocidade do
diafragma pode ser desconsiderada, e apenas uma troca de momento
∆p entre a partícula e o diafragma precisa ser levada em consideração.
O obturador, contudo, que deixa o orifício aberto durante o tempo ∆t,
move-se com uma velocidade considerável, v ≈ a⁄∆t, e portanto, uma
transferência de momento ∆p implica uma troca de energia com a
partícula, que corresponde a

sendo exatamente da mesma ordem de grandeza da incerteza ∆E


fornecida por (4) e, portanto, permitindo o balanço do momento e da
energia.
O problema levantado por Einstein foi, então, saber até que ponto
um controle da transferência de energia e de momento, envolvida
numa localização da partícula no espaço e no tempo, poderia ser
usado para uma especificação adicional do estado da partícula depois
de ela atravessar o orifício. Aqui, convém levar em consideração que a
posição e o movimento do diafragma e do obturador, até este ponto,
foram presumidos como exatamente localizados no referencial
espaçotemporal. Esse pressuposto implica, na descrição do estado
desses corpos, uma incerteza essencial quanto a seu momento e
energia, que obviamente não precisam afetar de maneira expressiva as
velocidades, se o diafragma e o obturador forem suficientemente
pesados. Entretanto, tão logo queremos conhecer o momento e a
energia dessas partes do dispositivo de mensuração, com precisão
suficiente para controlar a troca de momento e energia da partícula
investigada, perdemos, de acordo com as relações gerais de
indeterminação, a possibilidade de localizá-la exatamente no espaço e
no tempo. Logo, temos que examinar até que ponto essa circunstância
afetará o uso pretendido de todo o dispositivo e, como veremos, esse
aspecto crucial destaca claramente o caráter complementar dos
fenômenos.
Voltando por um momento ao caso do arranjo simples indicado na
figura 1, não se especificou, até aqui, a que uso ele se destina. Na
verdade, é somente ao se presumir que o diafragma e a chapa têm
posições bem definidas no espaço que é impossível, no contexto do
formalismo quântico, fazer previsões mais detalhadas quanto ao
ponto da chapa fotográfica em que a partícula será registrada. Se
admitirmos, no entanto, uma incerteza suficientemente grande no
conhecimento da posição do diafragma, será possível, em princípio,
controlar a transferência de momento para o diafragma e, com isso,
fazer previsões mais detalhadas quanto à direção da trajetória do
elétron desde o orifício até o ponto registrado. Quanto à descrição
quântica, temos que lidar aqui com um sistema de dois corpos,
composto tanto pelo diafragma quanto pela partícula, e é justamente
com uma aplicação explícita das leis de conservação a um sistema
como esse que nos preocupamos no efeito Compton, no qual, por
exemplo, a observação do recuo do elétron por meio de uma câmara
de nuvens [ou câmara de Wilson] nos permite prever em que direção o
fóton que sofreu dispersão acabará podendo ser observado.
A importância desse tipo de considerações, no decorrer dos debates,
foi esclarecida de maneira muito interessante pelo exame de um
arranjo em que, entre o diafragma com a abertura e a chapa
fotográfica, insere-se um outro diafragma com duas aberturas
paralelas, como é mostrado na figura 3. Se, vindo da esquerda, um
feixe paralelo de elétrons (ou fótons) atingir o primeiro diafragma,
observaremos na chapa, em condições usuais, uma figura de
interferência (franjas), indicada pelo sombreamento da chapa
fotográfica que aparece em visão frontal à direita da figura. Com
feixes intensos, esse padrão é construído pela acumulação de um
grande número de processos individuais, cada um dos quais dá origem
a um pequeno ponto na chapa fotográfica, e a distribuição desses
pontos segue uma lei simples, dedutível da análise ondulatória. A
mesma distribuição também deverá ser encontrada na descrição
estatística de muitos experimentos, efetuados com feixes tão tênues
que, numa única exposição, apenas um elétron (ou fóton) chega à
chapa fotográfica em algum ponto, exibido na figura como uma
estrelinha. Uma vez que agora, como é indicado pelas setas
pontilhadas, o momento transferido para o primeiro diafragma deverá
ser diferente, caso se tenha presumido que o elétron passou pela fenda
superior ou pela fenda inferior do segundo diafragma, Einstein sugeriu
que o controle da transferência de momento permitiria uma análise
mais rigorosa do fenômeno e, em particular, possibilitaria decidir por
qual das duas fendas o elétron teria passado antes de chegar à chapa.
FIGURA 3
Um exame mais rigoroso, entretanto, mostrou que o controle
sugerido da transferência de momento implicaria uma incerteza no
conhecimento da posição do diafragma que eliminaria o surgimento
dos fenômenos de interferência em questão. De fato, se ω é o pequeno
ângulo entre as trajetórias hipotéticas de uma partícula que atravesse
as fendas superior ou inferior, a diferença da transferência de
momento nesses dois casos será, de acordo com (1), igual a hσω, e
qualquer controle do momento do diafragma com exatidão suficiente
para medir essa diferença implicará, em virtude da relação de
indeterminação, uma incerteza na posição do diafragma da ordem de,
pelo menos, 1⁄σω. Se, como na figura, o diafragma com as duas
fendas for colocado no meio, entre o primeiro diafragma e a chapa
fotográfica, veremos que o número de franjas por unidade de
comprimento será justamente igual a σω. Já que uma incerteza na
posição do primeiro diafragma, da ordem de 1⁄σω, causará uma
incerteza igual nas posições das franjas, decorre daí que nenhum efeito
de interferência poderá aparecer. É fácil demonstrar que o mesmo
resultado se aplica a qualquer outro posicionamento do segundo
diafragma entre o primeiro e a chapa, e também seria obtenível se, em
vez do primeiro diafragma, outro desses três corpos fosse usado para
controlar, para a finalidade sugerida, a transferência de momento.
Esse ponto é de grande importância lógica, uma vez que somente a
circunstância de nos ser apresentada uma escolha entre traçar a
trajetória de uma partícula ou observar os efeitos de interferência
permite que escapemos da necessidade paradoxal de concluir que o
comportamento de um elétron ou de um fóton deve depender da
presença de uma fenda no diafragma através da qual se possa provar
que ele não passa. Lidamos aqui com um típico exemplo de como os
fenômenos complementares aparecem em arranjos experimentais
mutuamente excludentes (cf. p. 51) e ficamos diante da
impossibilidade, na análise dos efeitos quânticos, de traçar qualquer
distinção clara entre um comportamento independente dos objetos
atômicos e sua interação com os instrumentos de medida que servem
para definir as condições em que os fenômenos ocorrem.
Nossas conversações sobre a atitude a tomar diante de uma situação
inédita, com respeito à análise e à síntese, tocaram, naturalmente, em
muitos aspectos do pensamento filosófico, mas, apesar de todas as
divergências de abordagem e opinião, um espírito muito bem-
humorado animou os debates. Einstein perguntou-nos em tom de
troça se realmente acreditávamos que o bom Deus jogava dados (“...
ob der liebe Gott würfelt”), ao que retruquei apontando para a grande
cautela, já recomendada pelos pensadores antigos, ao se conferirem
atributos à Providência na linguagem cotidiana. Lembro-me também
de que, no auge da discussão, Ehrenfest, com seu jeito afetuoso de
implicar com os amigos, aludiu jocosamente à aparente semelhança
entre a atitude de Einstein e a dos oponentes da teoria da relatividade;
mas, no instante seguinte, ele acrescentou que não teria sossego
enquanto não se chegasse a um acordo com Einstein.
O interesse e a crítica de Einstein deram-nos a todos um incentivo
muito valioso para que reexaminássemos os diversos aspectos da
situação concernente à descrição dos fenômenos atômicos. Para mim,
foi um estímulo muito bem-vindo esclarecer ainda mais o papel
desempenhado pelos instrumentos de medida, de modo que, para
ressaltar bastante o caráter mutuamente excludente das condições
experimentais em que os fenômenos de complementaridade aparecem,
tentei, nessa época, esboçar vários aparelhos em estilo pseudorrealista,
dos quais as figuras que se seguem constituem exemplos. Assim, para
o estudo de um fenômeno de interferência do tipo indicado na figura
3, sugere-se usar um arranjo experimental como o mostrado na figura
4, onde as partes sólidas do aparelho, servindo de diafragmas e porta-
chapas, são firmemente aparafusadas num suporte comum. Num
dispositivo como esse, no qual o conhecimento das posições relativas
dos diafragmas e da chapa fotográfica é garantido por uma rígida
conexão, é obviamente impossível controlar o momento trocado entre
a partícula e as partes separadas do aparelho. A única maneira, nesse
arranjo, de garantirmos que a partícula passe por uma das fendas do
segundo diafragma é cobrir a outra com uma portinhola, como
indicado na figura; mas, se a fenda for fechada, não haverá, é claro,
nenhum fenômeno de interferência, e simplesmente observaremos na
chapa uma distribuição contínua, como no caso do diafragma fixo
único mostrado na figura 1.

FIGURA 4
No estudo dos fenômenos para cuja explicação lidamos com um
balanço detalhado do momento, algumas partes do dispositivo
completo devem ter, naturalmente, a liberdade de se movimentar
independentemente das demais. Um aparelho desse tipo é
esquematizado na figura 5, onde um diafragma com uma fenda é
pendurado por molas finas num suporte sólido atarraxado à base, à
qual outras partes imóveis do dispositivo também devem ficar presas.
A escala do diafragma, junto com o ponteiro na lateral do suporte,
refere-se a estudos do movimento do diafragma que possam ser
necessários para uma estimativa do momento transferido para ele,
permitindo que se tirem conclusões quanto à deflexão sofrida pela
partícula na passagem pela fenda. Entretanto, já que qualquer leitura
da escala, como quer que seja efetuada, implicará uma variação
incontrolável no momento do diafragma, sempre haverá, de acordo
com o princípio de indeterminação, uma relação recíproca entre nosso
conhecimento da posição da fenda e a exatidão do controle do
momento.
Nesse mesmo estilo semissério, a figura 6 representa parte de um
aparelho adequado ao estudo de fenômenos que, em contraste com os
que acabamos de discutir, implicam explicitamente a localização
temporal. Ele consiste num obturador rigidamente conectado a um
relógio robusto, apoiado na base, que tem um diafragma e na qual
também devem ser fixadas outras peças de caráter similar, reguladas
pelo mesmo relógio ou por outros, padronizados em relação a ele. O
objetivo especial da figura é enfatizar que um relógio é uma máquina
cujo funcionamento pode ser completamente explicado pela mecânica
comum, e que não é afetada nem pela leitura da posição de seus
ponteiros nem pela interação de seus acessórios e de uma partícula
atômica. Assegurando a abertura do orifício num momento definido,
um aparelho desse tipo poderia ser usado, por exemplo, para uma
medição exata do tempo que leva um elétron ou um fóton para ir do
diafragma até algum outro lugar, mas, evidentemente, não daria
nenhuma possibilidade de controlar a transferência de energia para o
obturador, no intuito de tirar conclusões quanto à energia da partícula
que passa pelo diafragma. Se estivermos interessados nessas
conclusões, deveremos, é claro, usar um arranjo em que os
dispositivos de obturação já não poderão servir de relógios exatos,
mas em que o conhecimento do instante em que o orifício do
diafragma é aberto implicará uma incerteza ligada à precisão da
mensuração da energia pela relação geral (4).

FIGURA 5
A consideração desses dispositivos mais ou menos práticos e de seu
uso mais ou menos fictício revelou-se muito instrutiva para dirigir a
atenção para certos aspectos essenciais dos problemas. O principal,
aqui, é a distinção entre os objetos investigados e os instrumentos de
medida que servem para definir, em termos clássicos, as condições em
que os fenômenos aparecem. A propósito, podemos assinalar que,
para ilustrar as considerações precedentes, não é relevante constatar
que os experimentos que implicam um controle exato da transferência
de momento ou de energia das partículas atômicas para corpos
pesados, como os diafragmas e os obturadores, seriam muito difíceis
de efetuar, se é que seriam exequíveis. A única coisa decisiva é que, em
contraste com os instrumentos de medida apropriados, esses corpos,
juntamente com as partículas, constituiriam, nesse caso, o sistema a
que teria que ser aplicado o formalismo quântico. Com respeito à
especificação das condições para uma aplicação bem definida do
formalismo, é ainda essencial que todo o dispositivo experimental seja
levado em conta. Na verdade, a introdução de qualquer outro
aparelho na trajetória de uma partícula, como um espelho, por
exemplo, poderia produzir novos efeitos de interferência, que
influenciariam essencialmente nas previsões referentes aos resultados a
serem finalmente registrados.

FIGURA 6
O grau em que a renúncia à visualização dos fenômenos atômicos
nos é imposto, pela impossibilidade de sua subdivisão, é
expressivamente ilustrado pelo exemplo seguinte, para o qual Einstein
chamou a atenção desde cedo e ao qual voltou muitas vezes. Quando
um espelho semirrefletor é colocado na trajetória de um fóton,
deixando duas possibilidades para sua direção de propagação, o fóton
pode, ou ser registrado numa e apenas numa de duas chapas
fotográficas situadas a grandes distâncias nas duas direções em
questão, ou então, em se substituindo as chapas por espelhos,
podemos observar efeitos que exibem uma interferência entre as duas
séries ondulatórias refletidas. Assim, em qualquer tentativa de
representação pictórica do comportamento do fóton, depararíamos
com esta dificuldade: sermos obrigados a dizer, por um lado, que o
fóton sempre escolhe uma das duas trajetórias e, por outro, que se
comporta como se houvesse passado por ambas.
São justamente os argumentos desse tipo que relembram a
impossibilidade de subdividir os fenômenos quânticos e revelam a
ambiguidade de qualquer imputação de atributos físicos habituais aos
objetos atômicos. Em particular, convém perceber que — sem contar a
descrição do posicionamento e da regulagem de tempo dos
instrumentos que compõem o dispositivo experimental — qualquer
utilização inambígua de conceitos espaçotemporais na descrição dos
fenômenos atômicos limita-se ao registro de observações que se
referem a marcas numa chapa fotográfica, ou a efeitos de amplificação
similares, praticamente irreversíveis, como o crescimento de uma gota
d’água em volta de um íon numa câmara de nuvens. Embora, é claro,
a existência do quantum de ação seja responsável, em última
instância, pelas propriedades dos materiais de que são construídos os
instrumentos de medida e dos quais depende o funcionamento dos
dispositivos de registro, essa circunstância não é relevante para os
problemas da adequação e da completude da descrição quântica em
seus aspectos aqui discutidos.
Esses problemas foram instrutivamente comentados, sob diferentes
ângulos, na reunião do Solvay,10 na mesma sessão em que Einstein
levantou suas objeções gerais. Nessa ocasião, surgiu também um
interessante debate a respeito de como falar do aparecimento de
fenômenos sobre os quais só se podem fazer previsões de caráter
estatístico. A questão era se, com respeito à ocorrência de efeitos
individuais, deveríamos adotar uma terminologia proposta por Dirac,
dizendo que estávamos interessados numa escolha feita pela
“natureza”, ou se, como sugerido por Heisenberg, deveríamos dizer
que estávamos lidando com uma escolha do “observador” que
constrói os instrumentos de medida e faz a leitura de seus registros.
Qualquer terminologia desse tipo, entretanto, pareceria dúbia, já que,
por um lado, não é propriamente razoável dotar a natureza de
volição, no sentido corriqueiro, enquanto, por outro, certamente não é
possível que o observador influa nos acontecimentos passíveis de
surgir nas condições que ele instaura. A meu ver, não há outra
alternativa senão admitir que, nesse campo da experiência, lidamos
com fenômenos individuais, e que nossas possibilidades de manejar os
instrumentos de medida só nos permitem fazer uma escolha entre os
diferentes tipos complementares de fenômenos que queremos estudar.
Os problemas epistemológicos em que tocamos aqui foram mais
explicitamente examinados em minha contribuição para a edição de
Naturwissenschaften que comemorou o septuagésimo aniversário de
Planck, em 1929. Naquele artigo, também foi feita uma comparação
entre a lição extraída da descoberta do quantum universal de ação e o
desenvolvimento que se seguiu à descoberta da velocidade finita da luz
e que, através do trabalho pioneiro de Einstein, trouxe tão grande
esclarecimento sobre alguns princípios básicos da filosofia natural. Na
teoria da relatividade, a ênfase no fato de que todos os fenômenos
dependem do sistema de referência abrira caminhos inéditos para se
descobrirem leis gerais da física, de alcance ímpar. Na teoria quântica,
afirmei, a compreensão lógica de regularidades fundamentais antes
insuspeitadas, regendo os fenômenos atômicos, exigira o
reconhecimento de que não se pode fazer nenhuma separação nítida
entre o comportamento independente dos objetos e sua interação com
os instrumentos de medida que definem o sistema de referência.
Nesse aspecto, a teoria quântica apresenta-nos uma situação inédita
na ciência física, mas chamei atenção para a analogia muito estreita,
no tocante à análise e à síntese da experiência, com a situação
encontrada em muitos outros campos do conhecimento e do interesse
humanos. Como se sabe, muitas das dificuldades da psicologia
originam-se no posicionamento diferente das linhas de separação entre
o objeto e o sujeito, na análise de vários aspectos da experiência
psíquica. Na verdade, palavras como “pensamentos” e “sentimentos”,
igualmente indispensáveis para ilustrar a variedade e o alcance da vida
consciente, são usadas de um modo complementar, semelhante ao da
coordenação espaçotemporal e das leis de conservação dinâmicas na
física atômica. Uma formulação precisa dessas analogias implica, é
claro, complexidades terminológicas, e a melhor indicação da postura
do autor talvez se encontre numa passagem do artigo que sugere a
relação mutuamente excludente que sempre existirá entre o uso
prático de qualquer palavra e as tentativas de lhe dar uma definição
estrita. Contudo, o objetivo principal dessas considerações, que foram
também inspiradas pela esperança de influenciar a atitude de Einstein,
foi apontar para as perspectivas de ressaltar os problemas
epistemológicos gerais através da lição extraída de uma experiência
física nova, mas fundamentalmente simples.

Na reunião seguinte com Einstein, na Conferência do Instituto


Solvay de 1930, nossas discussões tomaram um rumo bastante
dramático. Como a objeção à visão de que o controle da troca de
momento e energia entre os objetos e os instrumentos de medida seria
eliminada se esses instrumentos cumprissem sua finalidade de definir o
sistema espaçotemporal dos fenômenos, Einstein expôs a tese de que
esse controle deveria ser possível quando as exigências da teoria da
relatividade fossem levadas em consideração. Em particular, a relação
geral entre a energia e a massa, expressa em sua famosa fórmula
E = mc2, (5)

deveria permitir, através de uma simples pesagem, medir a energia


total de qualquer sistema e, com isso, em princípio, controlar a
energia transferida para ele em sua interação com um objeto atômico.

FIGURA 7
Como um arranjo adequado para esse fim, Einstein propôs o
dispositivo indicado na figura 7, composto de uma caixa com uma
abertura lateral, que poderia ser aberta ou fechada por um obturador
acionado por um relógio no interior da caixa. Se, no começo, a caixa
contivesse uma certa quantidade de radiação e o relógio fosse
programado para abrir o obturador por um intervalo curtíssimo num
instante escolhido, seria possível conseguir que um único fóton fosse
liberado pela abertura num instante conhecido com toda a precisão
que se desejasse. Além disso, aparentemente também seria possível,
pesando-se a caixa inteira antes e depois desse evento, medir a energia
do fóton com toda a precisão desejada, o que definitivamente entraria
em contradição com a indeterminação recíproca do tempo e das
quantidades de energia na mecânica quântica.
Essa argumentação foi um sério desafio e deu origem a um exame
minucioso de todo o problema. No fim do debate, para o qual o
próprio Einstein contribuiu efetivamente, ficou claro, no entanto, que
a tese não era sustentável. De fato, no exame do problema, verificou-
se que era necessário examinar mais de perto as consequências da
identificação da massa inercial com a massa gravitacional, decorrente
da aplicação da relação (5). Em particular, seria essencial levar em
conta a relação entre a taxa, ou ritmo, do relógio e sua posição num
campo gravitacional — conhecida pelo desvio para o vermelho das
linhas no espectro solar —, decorrente do princípio de equivalência de
Einstein entre os efeitos da gravidade e os fenômenos observados em
sistemas de referência acelerados.

FIGURA 8
Nossa discussão concentrou-se na possível aplicação de um aparelho
que incorporasse o dispositivo de Einstein, desenhado, na figura 8, no
mesmo estilo pseudorrealista de algumas das figuras precedentes. A
caixa, mostrada com um corte para exibir seu interior, fica suspensa
numa balança de mola e é provida de um ponteiro para a leitura de
sua posição numa escala presa ao suporte da balança. Assim, a
pesagem da caixa pode ser feita, com qualquer exatidão ∆m
considerada, ajustando-se a balança em sua posição zero, através de
pesos adequados. A questão essencial, então, é que qualquer
determinação dessa posição com uma dada exatidão ∆q implicará
uma incerteza mínima ∆p no controle do momento da caixa,
vinculado a ∆q pela relação (3). Essa incerteza, por sua vez,
obviamente deve ser menor do que o impulso total que, durante todo
o intervalo T do procedimento de pesagem, possa ser dado pelo
campo gravitacional a um corpo de massa ∆m, ou

onde g é a constante proveniente da gravidade. Quanto maior a


precisão da leitura q do ponteiro, mais longo deve ser,
consequentemente, o intervalo de tempo do procedimento de pesagem
T, para que se obtenha uma dada precisão ∆m na pesagem da caixa
com seu conteúdo.
Ora, de acordo com a teoria da relatividade geral, um relógio, ao ser
deslocado na direção da força gravitacional por uma quantidade de
∆q, altera sua taxa de tal modo que sua leitura, no decorrer de um
intervalo de tempo T, variará numa quantidade ∆T, fornecida pela
relação

Comparando (6) e (7), portanto, vemos que, depois do procedimento


de pesagem, haverá, segundo nosso conhecimento do ajuste do
relógio, uma incerteza

Juntamente com a fórmula (5), essa relação, por sua vez, leva a

∆T ⋅ ∆E > h,
de acordo com o princípio de indeterminação. Consequentemente, a
utilização do aparelho como meio de medir com precisão a energia do
fóton nos impediria de controlar o instante de seu escape.
Assim, essa discussão, tão ilustrativa do poder e da coerência dos
argumentos relativistas, enfatizou mais uma vez a necessidade de se
fazer uma distinção, no estudo dos fenômenos atômicos, entre os
instrumentos de medida apropriados, que servem para definir o
sistema de referência, e as partes que devem ser encaradas como
objetos sob investigação, e na explicação das quais não se podem
desconsiderar os efeitos quânticos. A despeito dessa confirmação
sumamente sugestiva da solidez e do grande alcance do estilo de
descrição quântico, Einstein, numa conversa posterior comigo,
expressou sua inquietação a respeito da aparente falta de princípios
solidamente fundamentados para a explicação da natureza, com o que
todos pudemos concordar. De meu ponto de vista, entretanto, só pude
responder que, ao lidar com a tarefa de introduzir ordem num campo
inteiramente novo da experiência, dificilmente poderíamos confiar em
quaisquer princípios costumeiros, por mais amplos que fossem, a não
ser pela exigência de evitar incoerências lógicas. Nesse aspecto, o
formalismo matemático da mecânica quântica deveria, com certeza,
cumprir todos os requisitos.
A reunião do Solvay de 1930 foi a última ocasião em que, nas
discussões comuns com Einstein, pudemos nos beneficiar da influência
estimulante e mediadora de Ehrenfest, mas, pouco antes de seu
falecimento em 1933, profundamente deplorado, ele me disse que
Einstein estava longe de se dar por satisfeito e que, com sua argúcia
habitual, havia discernido novos aspectos da situação que reforçavam
sua atitude crítica. De fato, examinando melhor as possibilidades de
aplicação de um dispositivo de balança, Einstein havia discernido
métodos alternativos que, embora não permitissem a utilização
originalmente pretendida por ele, pareciam ampliar os paradoxos para
além das possibilidades de solução lógica.
Einstein havia assinalado que, após uma pesagem preliminar da
caixa com o relógio e o subsequente escape do fóton, ainda se ficava
com a opção de repetir a pesagem ou abrir a caixa e comparar a
leitura do relógio com a escala de tempo padrão. Por conseguinte,
nessa etapa, ainda teríamos a liberdade de escolher se queríamos
extrair conclusões sobre a energia do fóton ou sobre o momento em
que ele deixara a caixa. Sem interferir de modo algum com o fóton
entre seu escape e sua interação posterior com outros instrumentos de
medida apropriados, ficaríamos, portanto, aptos a fazer previsões
exatas, concernentes ou ao momento de sua chegada, ou à quantidade
de energia liberada por sua absorção. Entretanto, já que, de acordo
com o formalismo quântico, a especificação do estado de uma
partícula isolada não podia produzir uma conexão bem definida com
a escala de tempo e uma determinação exata da energia, poderia
parecer que esse formalismo não oferece meios para uma descrição
adequada.
Mais uma vez, o espírito investigativo de Einstein havia levantado
um aspecto peculiar da situação da teoria quântica, o qual, de maneira
realmente surpreendente, ilustrava até que ponto havíamos
transcendido, nela, a explicação costumeira dos fenômenos naturais.
Ainda assim, não pude concordar com a linha de suas observações, tal
como relatadas por Ehrenfest. Em minha opinião, não havia outro
meio de julgar inadequado um formalismo matemático logicamente
coerente senão demonstrando que suas consequências se afastavam da
experiência, ou provando que suas previsões não esgotavam as
possibilidades de observação, e a argumentação de Einstein não podia
ser direcionada para nenhum desses fins. De fato, temos de reconhecer
que, no problema em questão, não estamos lidando com um único
arranjo experimental especificado, mas referimo-nos a dois arranjos
diferentes e mutuamente excludentes. Num deles, a balança,
juntamente com outro aparelho, como um espectrômetro, é usada
para estudar a transferência de energia por um fóton, e noutro, um
obturador regulado por um relógio padronizado, juntamente com
outro aparato de tipo similar, regulado com precisão em relação ao
relógio, é usado para estudar o tempo de propagação de um fóton
numa dada distância. Em ambos os casos, como também foi
presumido por Einstein, espera-se que os efeitos observáveis estejam
em completo acordo com as previsões da teoria.
Esse problema torna a enfatizar a necessidade de examinar todo o
dispositivo experimental, cuja especificação é imperativa para
qualquer aplicação bem-definida do formalismo quântico. A
propósito, pode-se acrescentar que paradoxos do tipo imaginado por
Einstein também são encontrados em arranjos simples, como o
esquematizado na figura 5. De fato, após uma mensuração preliminar
do momento do diafragma, é-nos oferecida, em princípio, a
alternativa de, quando um elétron ou um fóton tiver passado pela
abertura, repetir a mensuração do momento, ou controlar a posição
do diafragma e, então, fazer previsões pertinentes a observações
alternativas posteriores. Também é possível acrescentar que
obviamente não faz diferença, com respeito aos efeitos observáveis
que se podem obter com um arranjo experimental definido, se nossos
planos de construir ou manejar os instrumentos são estabelecidos de
antemão, ou se preferimos adiar a conclusão de nosso planejamento
até um instante posterior, quando a partícula já está a caminho em sua
trajetória de um instrumento para outro.
Na descrição quântica, nossa liberdade de construir e manipular o
arranjo experimental encontra sua expressão apropriada na
possibilidade de escolhermos os parâmetros, classicamente definidos,
que entram em qualquer aplicação adequada do formalismo. Com
efeito, em todos esses aspectos, a mecânica quântica exibe uma
correspondência com a situação que nos é conhecida na física clássica,
que é tão próxima quanto possível quando se considera a
individualidade inerente aos fenômenos quânticos. Assim, pela simples
contribuição para salientar tão claramente esse ponto, a preocupação
de Einstein foi, mais uma vez, um estímulo muito bem-vindo à
exploração dos aspectos essenciais da situação.

A reunião seguinte do Instituto Solvay, em 1933, foi dedicada aos


problemas da estrutura e das propriedades dos núcleos atômicos,
campo no qual grandes avanços tinham sido feitos justamente naquele
período, graças às descobertas experimentais e a novas aplicações
fecundas da mecânica quântica. Nem é preciso lembrar, nesse
contexto, que justamente os dados obtidos pelo estudo das
transformações nucleares artificiais constituíram uma prova muito
direta da lei fundamental de Einstein sobre a equivalência da massa e
da energia, que iria revelar-se um guia de importância cada vez maior
nas pesquisas em física nuclear. Também é possível mencionar o
quanto o reconhecimento intuitivo de Einstein da íntima relação entre
a lei das transformações radioativas e as leis da probabilidade que
regem os efeitos individuais da radiação foi confirmado pela
explicação quântica das desintegrações nucleares espontâneas. Com
efeito, lidamos aqui com um típico exemplo do modo de descrição
estatístico, e a relação complementar entre a conservação da energia-
momento e a localização espaço-temporal é notavelmente exibida no
famoso paradoxo da penetração das partículas em barreiras de
potencial.
Einstein não compareceu a esse encontro, que se deu numa época
ensombrecida pelos trágicos acontecimentos do mundo político que
tão profundamente iriam influenciar seu destino, e que tanto
agravariam suas responsabilidades a serviço da humanidade. Todavia,
poucos meses antes, numa visita a Princeton, onde ele esteve como
convidado do recém-fundado Instituto de Estudos Avançados, ao qual
logo depois se ligaria em caráter permanente, eu tivera a oportunidade
de voltar a falar com ele sobre os aspectos epistemológicos da física
atômica, mas a divergência de nossas abordagens e modos de
expressão ainda criava obstáculos ao entendimento mútuo. Até então,
relativamente poucas pessoas haviam participado das discussões
relatadas neste artigo. Mas a atitude crítica de Einstein perante as
opiniões sobre a teoria quântica, a que muitos físicos aderiam, logo foi
levada ao conhecimento público, através de um trabalho11 intitulado
“Pode a descrição quântica da realidade física ser considerada
completa?”, publicado em 1935 por Einstein, Podolsky e Rosen.
A argumentação desse ensaio baseou-se num critério que os autores
expressaram na seguinte frase: “Se pudermos, sem perturbar um
sistema de maneira alguma, prever com certeza (isto é, com
probabilidade igual a um) o valor de uma quantidade física, existirá
um elemento de realidade física correspondente a essa quantidade
física.” Através de uma exposição elegante das consequências do
formalismo quântico no tocante à representação de um estado de um
sistema composto de duas partes que estiveram em interação por um
intervalo de tempo limitado, mostrou-se, a seguir, que diferentes
quantidades, que não podem ser fixadas na representação de um dos
sistemas parciais, podem ser previstas, ainda assim, por medidas
realizadas no outro sistema parcial. De acordo com seu critério,
portanto, os autores concluíram que a mecânica quântica “não
fornece uma descrição completa da realidade física”, e expressaram
sua crença em que deveria ser possível elaborar uma descrição mais
adequada dos fenômenos.
Graças à lucidez e ao caráter aparentemente incontestável da
argumentação, o artigo de Einstein, Podolsky e Rosen criou um
rebuliço entre os físicos e desempenhou um grande papel na discussão
filosófica em geral. A questão, por certo, é de caráter muito sutil e
serve para enfatizar até que ponto, na teoria quântica, ficamos fora do
alcance da visualização pictórica. Veremos, porém, que lidamos aí
com problemas exatamente do mesmo tipo dos levantados por
Einstein nas discussões anteriores. Num artigo publicado poucos
meses depois,12 tentei mostrar que, do ponto de vista da
complementaridade, as aparentes incoerências eram completamente
eliminadas. A linha de argumentação foi, em essência, idêntica à
exposta nas páginas anteriores, mas o objetivo de recordar o modo
como a situação foi discutida naquela época talvez seja um pretexto
para eu citar alguns trechos de meu artigo.
Depois de me referir às conclusões deduzidas por Einstein, Podolsky
e Rosen com base em seu critério, escrevi:
Tal argumentação, entretanto, dificilmente pareceria capaz de afetar a solidez da
descrição quântica, que se baseia num formalismo matemático coerente, que
abrange automaticamente qualquer processo de mensuração como o indicado.
A aparente contradição apenas revela, de fato, uma insuficiência essencial do
ponto de vista costumeiro da filosofia natural para fornecer uma explicação
racional de fenômenos físicos do tipo pelo qual nos interessamos na mecânica
quântica. Com efeito, a interação finita entre o objeto e os instrumentos de
medida, condicionada pela própria existência do quantum de ação, acarreta —
em virtude da impossibilidade de controlar a reação do objeto sobre os
instrumentos de medida, para que estes cumpram sua finalidade — a
necessidade de uma renúncia definitiva ao ideal clássico de causalidade e de uma
revisão radical de nossa atitude perante o problema da realidade física. Na
verdade, como veremos, um critério de realidade como o proposto pelos autores
citados contém — por mais cautelosa que possa afigurar-se sua formulação —
uma ambiguidade essencial, ao ser aplicado aos problemas efetivos com que
lidamos aqui.

No que tange ao problema especial tratado por Einstein, Podolsky e


Rosen, mostrou-se, em seguida, que as consequências do formalismo,
com respeito à representação do estado de um sistema composto de
dois objetos atômicos em interação, correspondem aos argumentos
simples mencionados nas páginas precedentes, no contexto da
discussão sobre os arranjos experimentais adequados ao estudo de
fenômenos complementares. De fato, embora qualquer par q e p de
variáveis conjugadas de espaço e de momento obedeça à regra da
multiplicação não comutativa expressa por (2), e portanto só possa ser
determinado com incertezas recíprocas fornecidas por (3), a diferença
q1 − q2 entre duas coordenadas espaciais referentes aos componentes
do sistema comutará com a soma p1 + p2 das componentes
correspondentes do momento, como decorre diretamente da
comutabilidade de q1 com p2 e de q2 com p1. Tanto q1 − q2 quanto p1
+ p2, portanto, podem ser determinados com exatidão num estado do
sistema complexo e, por conseguinte, podemos prever os valores de q1
ou p1, se q2 ou p2, respectivamente, forem determinados por medidas
diretas. Se, como as duas partes do sistema, tomarmos uma partícula e
um diafragma, tal como esquematizado na figura 5, veremos que as
possibilidades de especificar o estado da partícula através de medidas
feitas no diafragma correspondem justamente à situação descrita na p.
60 e novamente discutida na p. 70, onde se mencionou que, depois de
a partícula passar pelo diafragma, temos, em princípio, a alternativa
de medir a posição do diafragma ou seu momento, e, em cada um
desses casos, fazer previsões sobre observações posteriores referentes à
partícula. Como foi repetidamente enfatizado, a questão principal
aqui é que essas medidas exigem arranjos experimentais mutuamente
excludentes.
A argumentação do artigo foi resumida no seguinte trecho:
De nosso ponto de vista, vemos agora que o enunciado do critério
supramencionado da realidade física, proposto por Einstein, Podolsky e Rosen,
contém uma ambiguidade quanto ao sentido da expressão “sem perturbar um
sistema de maneira alguma”. É claro que, num caso como o que acabamos de
examinar, não há como falar numa perturbação mecânica do sistema
investigado durante a última etapa crítica do processo de medida. Mesmo nesse
estágio, entretanto, existe, essencialmente, a questão de uma influência sobre as
próprias condições que definem os tipos de previsões possíveis acerca do
comportamento futuro do sistema. Uma vez que essas condições constituem um
elemento inerente à descrição de qualquer fenômeno a que se possa ligar
apropriadamente o termo “realidade física”, vemos que a argumentação dos
mencionados autores não justifica sua conclusão de que a descrição quântica é
essencialmente incompleta. Ao contrário, essa descrição, como se evidencia pela
discussão anterior, pode ser caracterizada como uma utilização racional de
todas as possibilidades de interpretação inambígua das medidas, compatível
com a interação finita e incontrolável entre os objetos e os instrumentos de
medida no campo da teoria quântica. De fato, novas leis físicas cuja
coexistência se afiguraria, à primeira vista, incompatível com os princípios
básicos da ciência só surgem a partir da exclusão mútua de quaisquer dois
procedimentos experimentais que permitam a definição inambígua de
quantidades físicas complementares. É justamente essa situação inteiramente
nova, no que tange à descrição dos fenômenos físicos, que a noção de
complementaridade almeja caracterizar.

Relendo esses trechos, sinto-me profundamente cônscio de que me


expressei de forma deficiente. Isso deve ter tornado muito difícil
apreciar a linha de argumentação, que pretendia destacar a
ambiguidade essencial presente numa referência aos atributos físicos
dos objetos, quando se lida com fenômenos em que não é possível
fazer uma distinção nítida entre o comportamento dos objetos em si e
sua interação com os instrumentos de medida. Espero, entretanto, que
o presente relato das discussões com Einstein nos anos anteriores, que
tanto contribuíram para nos familiarizar com a situação da física
quântica, possa dar uma impressão mais clara da necessidade de uma
revisão radical dos princípios básicos da explicação física, a fim de
restabelecer a ordem lógica nesse campo da experiência.
As opiniões do próprio Einstein, naquela época, foram expostas
num artigo intitulado “Física e realidade”, publicado em 1936 no
Journal of the Franklin Institute.13 Partindo de uma exposição muito
esclarecedora sobre o desenvolvimento gradativo dos princípios
fundamentais nas teorias da física clássica e sobre sua relação com o
problema da realidade física, Einstein sustenta, ali, que a descrição
quântica deve ser considerada meramente como um meio de explicar o
comportamento médio de um grande número de sistemas atômicos.
Sua atitude perante a crença de que ela ofereceria uma descrição
exaustiva dos fenômenos individuais é expressa nos seguintes termos:
“Acreditar nisso é possível, logicamente, sem contradição; mas é tão
sumamente contrário a meu instinto científico, que não posso
renunciar à busca de uma concepção mais completa.”
Ainda que essa atitude parecesse equilibrada em si, ela implicou, no
entanto, uma rejeição de toda a argumentação exposta nas páginas
precedentes, que visava a demonstrar que, na mecânica quântica, não
lidamos com uma renúncia arbitrária a uma análise mais
pormenorizada dos fenômenos atômicos, mas com o reconhecimento
de que tal análise está em princípio excluída. A individualidade
peculiar dos efeitos quânticos nos apresenta, no que tange à
compreensão de dados bem definidos, uma situação inédita,
imprevista na física clássica e incompatível com as ideias
convencionais que servem para nossa orientação e adaptação à
experiência corriqueira. Foi nesse aspecto que a teoria quântica exigiu
uma nova revisão das bases do uso inambíguo de conceitos
elementares, como um passo adicional no desenvolvimento que, desde
o advento da teoria da relatividade, tem sido tão característico da
ciência moderna.

Nos anos seguintes, os aspectos mais filosóficos da situação da física


atômica despertaram o interesse de círculos cada vez maiores e, em
particular, foram debatidos no II Congresso Internacional pela
Unidade da Ciência, realizado em Copenhague em julho de 1936.
Numa palestra feita nessa ocasião14 tentei, em especial, frisar a
analogia existente, nos aspectos epistemológicos, entre a limitação
imposta à descrição causal na física atômica e as situações
encontradas em outros campos do conhecimento. Um objetivo
principal desses paralelos foi chamar a atenção para a necessidade, em
muitos campos de interesse humano geral, de enfrentar problemas de
natureza semelhante aos surgidos na teoria quântica e, desse modo,
prover um cenário mais familiar para o modo de expressão
aparentemente extravagante que os físicos desenvolveram para
enfrentar suas agudas dificuldades.
Além dos traços complementares que são patentes na psicologia e
que já foram brevemente mencionados, também é possível encontrar
exemplos dessas relações na biologia, sobretudo no que concerne à
comparação entre os pontos de vista mecanicista e vitalista.
Justamente com respeito ao problema observacional, esta última
questão fora objeto de uma comunicação, anteriormente, no
Congresso Internacional sobre Terapia através da Luz, realizado em
Copenhague em 1932,15 onde fora assinalado, aliás, que até o
paralelismo psicofísico concebido por Leibniz e Espinoza obteve um
alcance mais amplo através do desenvolvimento da física atômica.
Perante o problema da explicação, esse desenvolvimento nos obriga a
adotar uma atitude que faz lembrar a antiga sabedoria, que afirma
que, ao buscar a harmonia na vida, nunca se deve esquecer que, no
drama da existência, nós mesmos somos, a um tempo, atores e
espectadores.
Enunciados como esse evocariam em muitas mentes, é claro, a
impressão de um misticismo subjacente, estranho ao espírito da
ciência; no citado Congresso de 1936, portanto, procurei desfazer tais
mal-entendidos e explicar que a única questão em jogo era o esforço
de esclarecer as condições, em cada campo do conhecimento, da
análise e da síntese da experiência.14 Contudo, temo que, nesse
aspecto, eu tenha tido pouco sucesso em convencer meus ouvintes,
para quem a dissidência entre os próprios físicos era, naturalmente,
uma causa de ceticismo quanto à necessidade de chegar a tais
extremos na renúncia às exigências costumeiras, no que concerne à
explicação dos fenômenos naturais. Até por força de um novo debate
com Einstein em Princeton, em 1937, onde não fomos além de uma
divertida disputa sobre que partido Espinoza teria tomado, se tivesse
vivido para testemunhar o desenvolvimento de nossa época, fui
vivamente lembrado da importância da mais extrema cautela em todas
as questões de terminologia e dialética.
Esses aspectos da situação foram especialmente discutidos numa
reunião em Varsóvia, em 1938, organizada pelo Instituto
Internacional de Cooperação Intelectual da Liga das Nações.16 Os
anos anteriores haviam assistido a um grande progresso na física
quântica, em virtude de diversas descobertas fundamentais acerca da
composição e das propriedades dos núcleos atômicos, bem como de
importantes avanços do formalismo matemático que levava em conta
as exigências da teoria da relatividade. Neste último aspecto, a
engenhosa teoria quântica do elétron, formulada por Dirac, forneceu
uma impressionante ilustração do poder e da fertilidade do modo de
descrição geral da mecânica quântica. No fenômeno da criação e
aniquilação de pares de elétrons, de fato, lidamos com novas
características fundamentais da atomicidade, que estão intimamente
ligadas aos aspectos não clássicos da estatística quântica expressos no
princípio de exclusão, e que exigiram uma renúncia ainda mais ampla
à explicação em termos de representações pictóricas.
Enquanto isso, a discussão dos problemas epistemológicos da física
atômica atraía a atenção, num grau até então desconhecido. Ao
comentar as opiniões de Einstein sobre a incompletude do modo de
descrição quântico, entrei mais diretamente nas questões
terminológicas. Nesse contexto, fiz uma advertência especial contra
certas expressões, comumente encontradas na literatura da física, tais
como “perturbação dos fenômenos pela observação” ou “criar
atributos físicos para os objetos atômicos através de medidas”. Tais
expressões, que podem servir para nos lembrar dos aparentes
paradoxos da teoria quântica, são igualmente propensas a causar
confusão, já que palavras como “fenômenos” e “observações”, bem
como “atributos” e “medidas”, são usadas de um modo que
dificilmente seria compatível com a linguagem comum e com a
definição prática.
Como modo de expressão mais apropriado, defendi a aplicação
exclusiva da palavra fenômeno para se fazer referência a observações
efetuadas em circunstâncias especificadas, incluindo uma descrição de
todo o dispositivo experimental. Com essa terminologia, o problema
observacional fica livre de qualquer complexidade especial, uma vez
que, nos experimentos efetivos, todas as observações são expressas
por enunciados inambíguos, que se referem, por exemplo, ao registro
do ponto em que um elétron chega a uma chapa fotográfica. Além
disso, falar dessa maneira presta-se perfeitamente a enfatizar que a
interpretação física apropriada do formalismo quântico simbólico
equivale apenas a previsões, de caráter determinado ou estatístico,
pertinentes a fenômenos individuais, que surgem em condições
definidas por conceitos da física clássica.
Apesar de todas as diferenças entre os problemas físicos que deram
origem ao desenvolvimento da teoria da relatividade e da teoria
quântica, respectivamente, a comparação dos aspectos puramente
lógicos da argumentação relativista e da complementar revela
semelhanças espantosas, no que tange à renúncia à importância
absoluta dos atributos físicos convencionais dos objetos. Do mesmo
modo, não levar em conta a constituição atômica dos próprios
instrumentos de medida, na descrição da experiência real, é uma
característica comum das aplicações da relatividade e da teoria
quântica. Assim, a dimensão diminuta do quantum de ação,
comparado às ações envolvidas nos experimentos usuais, inclusive na
disposição e manuseio dos aparelhos físicos, é tão essencial na física
atômica quanto o é o imenso número de átomos que compõem o
mundo na teoria geral da relatividade, que, como muitas vezes se
assinala, exige que as dimensões dos aparelhos para medir ângulos
sejam pequenas, em comparação com o raio de curvatura do espaço.
Na palestra de Varsóvia, comentei da seguinte maneira a utilização
de um simbolismo não diretamente visualizável na teoria da
relatividade e na teoria quântica:
Até os formalismos que, nas duas teorias, dentro de seu âmbito, fornecem meios
adequados para compreender qualquer experiência concebível exibem
profundas analogias. Na verdade, a espantosa simplicidade da generalização das
teorias físicas clássicas, obtida pelo uso da geometria multidimensional e da
álgebra não comutativa, respectivamente, assenta-se basicamente, em ambos os
casos, na introdução do símbolo convencional √−1. O caráter abstrato dos
formalismos em pauta, num exame mais minucioso, é realmente tão típico da
teoria da relatividade quanto da mecânica quântica e, sob esse aspecto, é
puramente uma questão de tradição que a primeira teoria seja considerada uma
conclusão da física clássica, e não um primeiro passo fundamental na completa
revisão de nossos meios conceituais de comparar observações, que o moderno
desenvolvimento da física nos impôs.

Verdade seja dita, confrontamo-nos, na física atômica, com diversos


problemas fundamentais não solucionados, especialmente com
respeito à estreita relação entre a unidade elementar de carga elétrica e
o quantum universal de ação; mas não há maior ligação entre esses
problemas e os aspectos epistemológicos aqui discutidos do que entre
a adequação da argumentação relativista e a questão dos problemas
até hoje não resolvidos da cosmologia. Tanto na relatividade quanto
na teoria quântica, estamos interessados em novos aspectos da análise
e da síntese científicas e, quanto a isso, é interessante notar que, até na
grande era da filosofia crítica dos cem anos anteriores, tratou-se
apenas de saber até que ponto era possível fornecer argumentos a
priori em favor da adequação da localização espaçotemporal e da
conexão causal da experiência, mas nunca de generalizações racionais
ou limitações intrínsecas dessas categorias do pensamento humano.
Embora, nos últimos anos, eu tenha tido várias oportunidades de
me reunir com Einstein, os debates contínuos, dos quais sempre recebi
novos impulsos, até hoje não levaram a uma visão comum quanto aos
problemas epistemológicos da física atômica, e nossas visões opostas
talvez se expressem com sua máxima clareza numa edição recente de
Dialectica,17 que traz uma discussão geral desses problemas.
Reconhecendo, entretanto, os muitos obstáculos ao entendimento
mútuo no que concerne a um assunto em que a abordagem e os
antecedentes estão fadados a influenciar a atitude de todos, acolhi de
bom grado esta oportunidade de uma exposição mais ampla da
elaboração através da qual, a meu ver, uma verdadeira crise na ciência
física foi superada. A lição que recebemos disso parece ter-nos feito
dar um decisivo passo à frente na infindável luta pela harmonia entre
conteúdo e forma, e ter-nos ensinado, mais uma vez, que nenhum
conteúdo pode ser apreendido sem um arcabouço formal, e que
qualquer forma, por mais útil que se tenha mostrado antes, pode
revelar-se estreita demais para abarcar novas experiências.
Sem dúvida, numa situação como esta, em que foi difícil chegar a
um entendimento mútuo não apenas entre os filósofos e os físicos, mas
até entre físicos de diferentes escolas, as dificuldades enraízam-se, não
raro, na preferência por um certo uso da linguagem, que se sugere a
partir das diferentes linhas de abordagem. No Instituto de
Copenhague, onde, ao longo desses anos, vários jovens físicos de
diversos países reuniram-se para debater, costumamos muitas vezes,
quando em dificuldade, consolar-nos com chistes, entre eles o velho
dito sobre os dois tipos de verdade. A um tipo pertencem afirmações
tão simples e claras que, obviamente, uma asserção oposta seria
indefensável. O outro tipo, as chamadas “verdades profundas”,
compõe-se de afirmações em que o oposto também contém uma
verdade profunda. Ora, o desenvolvimento de um novo campo
geralmente atravessa estágios em que o caos é gradualmente
substituído pela ordem; mas é também no estágio intermediário, onde
a verdade profunda prevalece, que o trabalho é realmente excitante e
inspira a imaginação em sua busca de um esteio mais firme. Nesses
esforços de buscar o equilíbrio apropriado entre a seriedade e o
humor, a personalidade do próprio Einstein destaca-se como um
grande exemplo. Ao expressar minha confiança em que, através de
uma cooperação singularmente fecunda de toda uma geração de
físicos, estamo-nos aproximando da meta em que a ordem lógica nos
permite, em grande medida, evitar a verdade profunda, espero que
isso seja feito dentro do espírito dele, e possa servir de desculpa para
vários enunciados das páginas precedentes.
Os debates com Einstein, tema deste artigo, estenderam-se por
muitos anos, que assistiram a um grande progresso no campo da física
atômica. Quer nossos encontros efetivos tenham sido de longa ou
curta duração, eles sempre deixaram em minha mente uma impressão
profunda e duradoura. Ao redigir este relato, estive, por assim dizer,
discutindo com Einstein o tempo todo, mesmo ao examinar temas
aparentemente muito distantes dos problemas debatidos em nossos
encontros. Quanto ao relato das conversas, tenho ciência, é claro, de
estar confiando apenas em minha própria memória, assim como estou
preparado para a possibilidade de que muitos aspectos do
desenvolvimento da teoria quântica, no qual Einstein desempenhou
tão grande papel, afigurem-se a ele sob um prisma diferente. Confio,
entretanto, não ter deixado de transmitir uma impressão adequada do
quanto significou, para mim, poder beneficiar-me da inspiração que
todos retiramos de qualquer contato com Einstein.
NOTAS
1. A. Einstein, Ann. Phys., 17, 132 (1905).
2. N. Bohr, The Theory of Spectra and Atomic Constitution.
Cambridge: Cambridge University Press, 1922.
3. A. Einstein, Physik. Z., 18, 191 (1917).
4. A. Einstein e P. Ehrenfest, Z. Physik, 11, 31 (1922).
5. N. Bohr, H.A. Kramers e J.C. Slater, Phil. Mag., 47, 785 (1924).
6. A. Einstein, Berl. Ber., 261 (1924); 3 e 18 (1925).
7. W. Heisenberg, Z. Physik, 43, 172 (1927).
8. Atti del Congresso Internazionale dei Fisici, Como, set. 1927
(reproduzido em Nature, 121, 78 e 580, 1928).
9. Institut International de Physique Solvay, Rapport et discussions du
5e Conseil, Paris, 1928, p. 253ss.
10. Idem, p. 248ss.
11. A. Einstein, B. Podolsky e N. Rosen, Phys. Rev., 47, 777 (1935).
12. N. Bohr, Phys. Rev., 48, 696 (1935).
13. A. Einstein, J. Franklin Inst., 221, 349 (1936).
14. N. Bohr, Philosophy of Science, 4, 289 (1937).
15. IIe Congrès International de la Lumière, Copenhague, 1932
(reproduzido neste volume, p. 5).
16. New Theories in Physics, Paris, 1938, p. 11.
17. N. Bohr, Dialectica, 1, 312 (1948).

2 Trata-se do livro Albert Einstein: Philosopher-Scientist, Evanston, Illinois, The Library of


Living Philosophers, Inc., v. 7, 1949. (n. do e.)
3 Aqui e em outras passagens, preferimos usar “incerteza”, como é mais comum, embora
Bohr tenha utilizado latitude. Ambas as expressões se referem à largura do intervalo em que
uma variável física pode ser encontrada num ato de medida. (n. do r.)
4 A expressão usual é “princípio de incerteza de Heisenberg”. Preferimos manter a forma
“relação de indeterminação”, que traduz literalmente a expressão usada pelo autor e é mais
afinada com sua interpretação dos fenômenos quânticos. (n. do r.)
A unidade do conhecimento

1954

Antes de tentar responder à pergunta sobre até que ponto é possível


falar em unidade do conhecimento, podemos indagar qual o sentido
da própria palavra conhecimento. Não pretendo enveredar por um
discurso filosófico acadêmico, para o qual eu dificilmente possuiria a
erudição necessária. Todo cientista, no entanto, confronta-se
constantemente com o problema da descrição objetiva da experiência,
expressão que usamos para uma comunicação inambígua. Nosso
instrumento básico, naturalmente, é a linguagem comum, que atende
às necessidades da vida prática e do intercâmbio social. Não nos
interessaremos aqui pelas origens dessa linguagem, mas sim por seu
alcance na comunicação científica e, em especial, pelo problema de
como se pode preservar a objetividade quando aumentam as
experiências que vão além dos acontecimentos da vida cotidiana.
O aspecto principal a reconhecer é que todo conhecimento se
apresenta dentro de um arcabouço conceitual adaptado para explicar
a experiência prévia, e que qualquer referencial desse tipo pode
revelar-se estreito demais para abranger novas experiências. A
pesquisa científica, em muitos campos do conhecimento, de fato
comprovou reiteradamente a necessidade de abandonar ou remodelar
pontos de vista que, por sua fecundidade e sua aplicabilidade
aparentemente irrestrita, eram considerados indispensáveis à
explicação racional. Embora essas transformações tenham sido
iniciadas por estudos especiais, elas implicam uma lição geral que é
importante para o problema da unidade do conhecimento. Com
efeito, a ampliação do arcabouço conceitual não apenas serviu para
restabelecer a ordem nos respectivos ramos do conhecimento, como
também revelou analogias em nossa postura com respeito à análise e à
síntese da experiência em campos aparentemente distintos do
conhecimento, sugerindo a possibilidade de uma descrição objetiva
cada vez mais abrangente.
Ao falar em arcabouço conceitual, referimo-nos meramente à
representação lógica inambígua das relações entre as experiências.
Essa atitude também se evidencia no desenvolvimento histórico, no
qual a lógica formal já não é nitidamente distinguida dos estudos da
semântica, ou mesmo da sintaxe filológica. Um papel especial é
desempenhado pela matemática, que contribuiu muito decisivamente
para o desenvolvimento do raciocínio lógico e que, por suas
abstrações bem definidas, fornece uma ajuda de valor inestimável para
expressar relações harmoniosas. Contudo, em nossa discussão, não
consideraremos a matemática pura como um ramo separado do
conhecimento, mas como um aperfeiçoamento da linguagem geral e
que a suplementa com instrumentos apropriados para representar
relações para as quais a expressão verbal corriqueira é imprecisa ou
confusa. Nesse contexto, pode-se enfatizar que, pela simples evitação
da referência ao sujeito consciente, que permeia a linguagem
cotidiana, o uso de símbolos matemáticos assegura a inambiguidade
de definição exigida pela descrição objetiva.
O desenvolvimento das chamadas ciências exatas, que se
caracterizam pelo estabelecimento de relações numéricas entre
medidas, foi decisivamente fomentado, com efeito, por métodos
matemáticos abstratos, originários da busca imparcial de construções
lógicas generalizantes. Essa situação é especialmente ilustrada na
física, que originalmente abrangia todo conhecimento concernente à
natureza de que nós mesmos fazemos parte, mas, pouco a pouco,
passou a significar o estudo das leis básicas que regem as propriedades
da matéria inanimada. A necessidade, até mesmo nesse tema
relativamente simples, de prestar uma atenção constante ao problema
da descrição objetiva influenciou profundamente a atitude das escolas
filosóficas ao longo dos séculos. Em nossos dias, a exploração de
novos campos da experiência revelou pressupostos insuspeitados para
a aplicação inambígua de alguns de nossos conceitos mais elementares
e, com isso, deu-nos uma lição epistemológica relacionada com
problemas que ultrapassam em muito o domínio da ciência física. Por
conseguinte, talvez convenha iniciar nossa discussão por um breve
relato desse desenvolvimento.

Iríamos longe demais se recordássemos em detalhe como foi que,


com a eliminação das ideias e argumentos cosmológicos míticos
referentes à finalidade de nossas ações, construiu-se um esquema
coerente da mecânica, baseado no trabalho pioneiro de Galileu, que
atingiu grande perfeição através da mestria de Newton. Acima de
tudo, os princípios da mecânica newtoniana significaram um amplo
esclarecimento do problema da causa e efeito, permitindo, a partir do
estado de um sistema físico definido num dado instante por
quantidades mensuráveis, a previsão de seu estado em qualquer
ocasião posterior. Sabe-se perfeitamente o quanto esse tipo de
explicação determinista ou causal levou à concepção mecanicista da
natureza e passou a figurar como um ideal da explicação científica em
todos os campos do conhecimento, independentemente do modo de
obtenção do conhecimento. Nesse contexto, por conseguinte, é
importante que o estudo de campos mais amplos da experiência física
tenha revelado a necessidade de uma consideração mais rigorosa do
problema observacional.
Em seu amplo campo de aplicação, a mecânica clássica apresenta
uma descrição objetiva, no sentido de se basear num uso bem definido
de imagens e ideias referentes aos acontecimentos da vida cotidiana.
Contudo, por mais racionais que possam ter-se afigurado as
idealizações empregadas na mecânica newtoniana, elas ultrapassaram
em muito, na verdade, a gama de experiências a que se adaptam
nossos conceitos elementares. Assim, o uso adequado das próprias
noções de espaço e tempo absolutos está intrinsecamente ligado à
propagação praticamente instantânea da luz, que nos permite localizar
os corpos a nosso redor, independentemente de sua velocidade, e
dispor os acontecimentos numa única sequência temporal. Mas a
tentativa de elaborar uma explicação coerente dos fenômenos
eletromagnéticos e ópticos revelou que diferentes observadores,
movimentando-se com grandes velocidades uns em relação aos outros,
coordenam os acontecimentos de maneiras diversas. Não apenas esses
observadores podem ter uma visão diferente das formas e posições dos
corpos rígidos, como também eventos em pontos separados do espaço,
que talvez pareçam simultâneos a um observador, podem ser julgados
por outro como ocorrendo em momentos diferentes.
Longe de dar margem a confusões e complicações, a exploração do
grau em que a explicação dos fenômenos físicos depende do ponto de
vista do observador revelou-se um guia de valor inestimável para
desvendar leis físicas gerais, comuns a todos os observadores.
Preservando a ideia do determinismo, porém confiando apenas nas
relações entre medidas inambíguas, referentes, em última instância, a
coincidências dos acontecimentos, Einstein conseguiu reformular e
generalizar todo o edifício da física clássica, além de conferir à nossa
imagem do mundo uma unidade que superou todas as expectativas
prévias. Na teoria da relatividade geral, a descrição baseia-se numa
métrica espaçotemporal quadridimensional com curvatura, que
explica automaticamente os efeitos gravitacionais e o papel singular
da velocidade dos sinais luminosos, que representa um limite superior
para qualquer utilização coerente do conceito físico de velocidade. A
introdução dessas abstrações matemáticas pouco conhecidas, mas bem
definidas, não implica nenhuma ambiguidade, mas fornece uma
ilustração instrutiva de como uma ampliação do arcabouço conceitual
proporciona os meios adequados para eliminar os elementos
subjetivos e aumentar o alcance da descrição objetiva.
Novos e insuspeitados aspectos do problema observacional foram
revelados pela exploração da constituição atômica da matéria. Como
se sabe, remonta à Antiguidade a ideia de uma divisibilidade limitada
das substâncias, introduzida para explicar a persistência de suas
propriedades características a despeito da diversidade dos fenômenos
naturais. Entretanto, quase que até nossos dias, as ideias atomísticas
foram consideradas essencialmente hipotéticas, no sentido de
parecerem inacessíveis à confirmação direta pela observação, em
virtude da precariedade de nossos órgãos sensoriais e de nossos
instrumentos, eles mesmos compostos de incontáveis átomos. Não
obstante, com o grande progresso da química e da física nos últimos
séculos, as ideias atomísticas revelaram-se cada vez mais fecundas. Em
particular, a aplicação direta da mecânica clássica à interação de
átomos e de moléculas, em sua movimentação incessante, levou a uma
compreensão geral dos princípios da termodinâmica.
Neste século, o estudo de propriedades recém-descobertas da
matéria, como a radioatividade natural, confirmou convincentemente
as bases da teoria atômica. Em particular, mediante o desenvolvimento
de aparatos amplificadores, tornou-se possível estudar fenômenos
essencialmente dependentes de átomos singulares, e até obter um
extenso conhecimento da estrutura dos sistemas atômicos. O primeiro
passo foi o reconhecimento do elétron como componente comum a
todas as substâncias. Um aperfeiçoamento essencial de nossas ideias
sobre a composição atômica foi obtido pela descoberta de Rutherford
do núcleo atômico, que contém, num volume extremamente pequeno,
quase toda a massa do átomo. A invariabilidade das propriedades dos
elementos nos processos físicos e químicos comuns é diretamente
explicada pela circunstância de que, nesses processos, embora seja
possível influir grandemente na ligação do elétron, o núcleo
permanece inalterado. Ao demonstrar a transmutabilidade dos núcleos
atômicos por agentes mais poderosos, entretanto, Rutherford abriu
um campo de pesquisa inteiramente novo, a que muitas vezes se faz
referência como alquimia moderna, o qual, como se sabe, acabaria
por levar à possibilidade de se liberarem imensas quantidades de
energia armazenadas nos núcleos atômicos.
Embora muitas propriedades fundamentais da matéria tenham sido
explicadas pela imagem simples do átomo, ficou evidente, desde o
princípio, que as ideias clássicas da mecânica e do eletromagnetismo
não bastavam para explicar a estabilidade essencial das estruturas
atômicas, tal como exibida pelas propriedades específicas dos
elementos. Entretanto, um indício para a elucidação desse problema
foi fornecido pela descoberta do quantum universal de ação, à qual
Planck foi levado, no primeiro ano de nosso século, por sua
penetrante análise das leis da radiação térmica. Essa descoberta
revelou, nos processos atômicos, uma característica de globalidade
inteiramente desconhecida da concepção mecânica da natureza, e
tornou evidente que as teorias da física clássica são idealizações,
válidas apenas na descrição de fenômenos em cuja análise todas as
ações sejam suficientemente grandes para permitir que se despreze o
quantum. Embora essa condição seja amplamente satisfeita nos
fenômenos em escala comum, deparamos, nos fenômenos atômicos,
com regularidades de um tipo muito novo, que desafiam a descrição
pictórica determinista.
Uma generalização racional da física clássica que admitisse a
existência do quantum, mas preservasse a interpretação inambígua
dos dados experimentais que definem a massa inercial e a carga
elétrica do elétron e do núcleo, representava uma tarefa muito difícil.
Através dos esforços conjuntos de toda uma geração de físicos
teóricos, no entanto, elaborou-se aos poucos uma descrição coerente
e, em ampla medida, exaustiva dos fenômenos atômicos. Essa
descrição serve-se de um formalismo matemático em que as variáveis
das teorias físicas clássicas são substituídas por símbolos sujeitos a
operações não comutativas, que envolvem a constante de Planck. Em
virtude do próprio caráter dessas abstrações matemáticas, o
formalismo não admite uma interpretação pictórica nos moldes
costumeiros, mas visa diretamente a estabelecer relações entre as
observações obtidas em condições bem definidas. Correspondendo à
circunstância de que diferentes processos quânticos individuais podem
ocorrer num dado arranjo experimental, essas relações são de caráter
intrinsecamente estatístico.
Através do formalismo da mecânica quântica, conseguiu-se uma
descrição detalhada de uma imensa quantidade de dados
experimentais referentes às propriedades físicas e químicas da matéria.
Além disso, adaptando o formalismo às exigências da invariância
relativista, foi possível, dentro de amplos limites, ordenar
conhecimentos novos e rapidamente crescentes sobre as propriedades
das partículas elementares e a constituição dos núcleos atômicos.
Apesar do assombroso poder da mecânica quântica, o afastamento
radical da explicação física costumeira e, acima de tudo, a renúncia à
própria ideia do determinismo deram margem a dúvidas, na mente de
muitos físicos e filósofos, quanto a estarmos lidando com um
expediente temporário ou confrontados com um passo irrevogável
com respeito à descrição objetiva. O esclarecimento desse problema
exigia, na verdade, uma revisão radical dos fundamentos da descrição
e da compreensão da experiência física.
Nesse contexto, devemos sobretudo reconhecer que, mesmo quando
os fenômenos transcendem o âmbito das teorias físicas clássicas, a
explicação do arranjo experimental e o registro das observações
devem ser fornecidos em linguagem clara, adequadamente
suplementada pela terminologia física técnica. Essa é uma exigência
lógica evidente, já que a própria palavra “experimento” refere-se a
uma situação em que possamos dizer aos outros o que fizemos e o que
aprendemos. Todavia, a diferença fundamental com respeito à análise
dos fenômenos na física clássica e na física quântica é que, na
primeira, a interação dos objetos e dos instrumentos de medida pode
ser desprezada ou compensada, ao passo que, na segunda, essa
interação é parte integrante dos fenômenos. A globalidade essencial de
um fenômeno quântico propriamente dito encontra sua expressão
lógica, com efeito, na circunstância de que qualquer tentativa de
subdividi-lo, de maneira bem definida, exigiria uma alteração do
arranjo experimental que seria incompatível com o surgimento do
próprio fenômeno.
Em particular, a impossibilidade de um controle separado da
interação dos objetos atômicos e dos instrumentos indispensáveis à
definição das condições experimentais impede a combinação irrestrita
da localização espaçotemporal com as leis de conservação dinâmicas
em que se baseia a descrição determinista na física clássica. Na
verdade, qualquer utilização inambígua dos conceitos de espaço e
tempo refere-se a um arranjo experimental que implica uma
transferência de momento e energia, incontrolável em princípio, para
escalas fixas e relógios sincronizados, exigidos para a definição do
sistema de referência. Inversamente, a explicação de fenômenos
caracterizados pelas leis de conservação do momento e da energia
implica, em princípio, uma renúncia à detalhada localização
espaçotemporal. Essas circunstâncias encontram expressão
quantitativa nas relações de indeterminação de Heisenberg, que
especificam a incerteza recíproca para a determinação das variáveis
cinemáticas e dinâmicas na definição do estado de um sistema físico.
De acordo com o formalismo quântico, entretanto, essas relações não
podem ser interpretadas em termos de atributos de objetos referidos a
imagens clássicas. Lidamos, nesse caso, com as condições mutuamente
excludentes de uso inambíguo dos próprios conceitos de espaço e
tempo, de um lado, e das leis dinâmicas de conservação, de outro.
Nesse contexto, fala-se às vezes em “perturbação dos fenômenos
pela observação” ou em “criação de atributos físicos para objetos
atômicos pelo ato de medida”. Tais expressões, no entanto, tendem a
provocar confusão, já que, nelas, palavras como fenômenos e
observação, assim como atributos e medidas, são usadas de um modo
incompatível com a linguagem comum e com a definição prática. Nos
moldes da descrição objetiva, é realmente mais apropriado usar a
palavra fenômeno para fazer referência apenas a observações obtidas
em circunstâncias cuja descrição inclua uma explicação de todo o
arranjo experimental. Nessa terminologia, o problema observacional
da física quântica é despojado de qualquer complexidade especial e,
além disso, é-nos lembrado diretamente que todo fenômeno atômico é
fechado, no sentido de que sua observação baseia-se em registros
obtidos por meio de dispositivos de amplificação adequados e de
funcionamento irreversível, como, por exemplo, marcas permanentes
numa chapa fotográfica, provocadas pela penetração dos elétrons na
emulsão. Com respeito a isso, é importante perceber que o formalismo
quântico permite aplicações bem definidas que se referem apenas a
esses fenômenos fechados. Ele também representa, nesse aspecto, uma
generalização racional da física clássica, em que cada etapa do curso
dos acontecimentos é descrita por quantidades mensuráveis.
Naturalmente, a liberdade de experimentação, pressuposta na física
clássica, é preservada, e corresponde à livre escolha de arranjos
experimentais a que a estrutura matemática do formalismo quântico
ofereça a incerteza apropriada. A circunstância de que, em geral, o
mesmo dispositivo experimental pode gerar registros muito diferentes
é pitorescamente descrita, vez por outra, como uma “escolha da
natureza” entre essas possibilidades. É desnecessário dizer que essa
expressão não implica nenhuma alusão a uma personificação da
natureza, mas simplesmente aponta para a impossibilidade de
determinar, nos moldes habituais, diretrizes para o curso de um
fenômeno indivisível fechado. Aqui, a abordagem lógica não consegue
ir além da dedução das probabilidades relativas de aparecimento dos
fenômenos individuais em condições experimentais dadas. Nesse
aspecto, a mecânica quântica representa uma generalização coerente
da descrição mecânica determinista, que ela abrange como um limite
assintótico, no caso de fenômenos físicos em escala suficientemente
grande para permitir que se despreze o quantum de ação.
Uma característica notável da física atômica é a relação inédita entre
fenômenos observados em condições experimentais que exijam
conceitos elementares diferentes para sua descrição. De fato, por mais
contrastantes que pareçam essas experiências, na tentativa de conceber
um desenrolar dos processos atômicos em moldes clássicos, elas têm
que ser consideradas complementares, no sentido de que representam
conhecimentos igualmente essenciais sobre os sistemas atômicos e,
juntas, esgotam esses conhecimentos. A noção de complementaridade
não implica, de modo algum, um desvio de nossa postura de
observadores imparciais da natureza, mas deve ser encarada como a
expressão lógica de nossa situação no que tange à descrição objetiva
nesse campo da experiência. O reconhecimento de que a interação dos
instrumentos de medida e dos sistemas físicos investigados constitui
uma parte integrante dos fenômenos quânticos não só revelou uma
insuspeitada limitação da concepção mecânica da natureza, tal como
caracterizada pela atribuição de propriedades distintas a sistemas
físicos, como também nos forçou, na ordenação da experiência, a
prestar a devida atenção às condições de observação.
Voltando à controvertida questão do que deve ser exigido de uma
explicação física, é preciso ter em mente que a mecânica clássica já
deixara implícita a renúncia de uma causa para o movimento
uniforme e, além disso, que a teoria da relatividade ensinou-nos como
devem ser tratadas as teses de invariância e equivalência, como
categorias da explicação racional. Da mesma forma, na descrição
complementar da física quântica, temos que lidar com outra
generalização autoconsistente, que permite a inclusão de regularidades
decisivas para a explicação das propriedades fundamentais da matéria,
mas transcende o âmbito da descrição determinista. A história da
ciência física, portanto, demonstra como a exploração de campos cada
vez maiores da experiência, ao revelar limitações insuspeitadas das
ideias costumeiras, aponta novos caminhos para o restabelecimento da
ordem lógica. Como passaremos a mostrar agora, a lição
epistemológica contida no desenvolvimento da física atômica faz-nos
lembrar uma situação similar com respeito à descrição e compreensão
de experiências que ultrapassam em muito as fronteiras da ciência
física, e nos permite descobrir traços comuns que promovem a busca
da unidade do conhecimento.
O primeiro problema com que deparamos ao sair do domínio
próprio da física é a questão do lugar dos organismos vivos na
descrição dos fenômenos naturais. Originalmente, não se fazia
nenhuma distinção clara entre a matéria animada e a inanimada, e é
sabido que Aristóteles, ao frisar a integridade dos organismos
individuais, opôs-se às concepções dos atomistas e, até na discussão
dos fundamentos da mecânica, preservou ideias como as de finalidade
e potência. Entretanto, em decorrência das grandes descobertas da
anatomia e da fisiologia na época do Renascimento, e especialmente
do advento da mecânica clássica, em cuja descrição determinista
qualquer referência à finalidade é eliminada, sugeriu-se uma
concepção inteiramente mecanicista da natureza. Grande número de
funções orgânicas pôde ser compreendido pelas mesmas propriedades
físicas e químicas da matéria que encontravam ampla explicação com
base em simples ideias atomicistas. É fato que a estrutura e
funcionamento dos organismos envolvem uma ordenação de processos
atômicos que, vez por outra, pareceram difíceis de conciliar com as
leis da termodinâmica, exigindo uma abordagem sistemática da
desordem existente entre os átomos que compõem um sistema físico
isolado. Entretanto, quando se leva suficientemente em conta a
circunstância de que a energia livre necessária para manter e
desenvolver os sistemas orgânicos é continuamente suprida por seu
ambiente, através da nutrição e da respiração, fica claro que não há,
nesse aspecto, nenhuma violação das leis físicas gerais.
Nas últimas décadas, obtiveram-se grandes avanços em nosso
conhecimento da estrutura e do funcionamento dos organismos e, em
particular, tornou-se evidente que as regularidades quânticas
desempenham neles, sob muitos aspectos, um papel fundamental. Não
só essas regularidades estão na base da notável estabilidade das
estruturas moleculares altamente complexas que formam os
componentes essenciais das células responsáveis pelas propriedades
hereditárias das espécies, como também a pesquisa sobre as mutações
produzidas pela exposição dos organismos a radiações penetrantes
oferece uma notável aplicação das leis estatísticas da física quântica.
Além disso, verificou-se que a sensibilidade dos órgãos da percepção,
tão importante para a integridade dos organismos, aproxima-se do
nível dos processos quânticos individuais, e que os mecanismos de
amplificação desempenham um papel importante, sobretudo na
transmissão das mensagens nervosas. Mais uma vez, todo esse
desenvolvimento, embora de uma nova maneira, trouxe para o
primeiro plano a abordagem mecanicista dos problemas biológicos.
Mas, ao mesmo tempo, agudizou-se a questão de saber se a
comparação entre os organismos e alguns sistemas altamente
complexos e aprimorados, como as modernas construções industriais
ou as máquinas de calcular eletrônicas, fornece a base apropriada para
uma descrição objetiva das entidades autorreguladoras que os
organismos vivos apresentam.
Voltando à lição epistemológica geral que nos foi dada pela física
atômica, devemos, em primeiro lugar, reconhecer que os processos
fechados estudados na física quântica não são diretamente análogos às
funções biológicas, para cuja manutenção faz-se necessária uma troca
contínua de matéria e energia entre o organismo e o ambiente. Além
disso, qualquer arranjo experimental que permitisse o controle dessas
funções no grau exigido por sua descrição bem definida em termos
físicos seria proibitivo para a livre manifestação da vida. Essa mesma
circunstância, entretanto, sugere uma atitude perante o problema da
vida orgânica que ofereça um equilíbrio mais apropriado entre as
abordagens mecanicista e finalista. De fato, assim como o quantum de
ação aparece na descrição dos fenômenos atômicos como um
elemento sobre o qual não é possível nem exigida uma explicação, a
noção de vida é elementar na ciência biológica, na qual, ao tratarmos
da existência e evolução dos organismos vivos, estamos interessados
em manifestações de possibilidades da natureza a que pertencemos, e
não no resultado dos experimentos que possamos efetuar. Na verdade,
devemos reconhecer, ao menos em termos de tendência, que os
requisitos de descrição objetiva são atendidos pelo modo
caracteristicamente complementar como, na prática, a pesquisa
biológica usa, de um lado, os argumentos baseados nos recursos da
ciência física e química, e, de outro, os conceitos diretamente
referentes à integridade do organismo, que transcendem o âmbito
dessas ciências. A questão principal é que somente pela renúncia a
uma explicação da vida, no sentido corriqueiro, conquistamos a
possibilidade de levar em conta suas características.
É claro que, tanto na biologia quanto na física, preservamos nossa
postura de observadores imparciais, e a questão é apenas a das
diferentes condições de compreensão lógica da experiência. Isso
também se aplica ao estudo do comportamento inato e condicionado
dos animais e do homem, ao qual os conceitos psicológicos prestam-se
prontamente. Mesmo numa abordagem supostamente behaviorista,
dificilmente se podem evitar esses conceitos, e a própria ideia de
consciência se apresenta quando lidamos com comportamentos de tão
alto grau de complexidade que sua descrição implica, virtualmente, a
introspecção por parte do organismo individual. Aqui, temos de lidar
com aplicações mutuamente excludentes das palavras instinto e razão,
ilustradas pelo grau em que o comportamento instintivo é reprimido
nas sociedades humanas. Embora, na tentativa de explicar nosso
estado mental, deparemos com dificuldades ainda maiores no que
tange à imparcialidade observacional, ainda assim é possível sustentar,
em larga medida, os requisitos da descrição objetiva, até mesmo na
psicologia humana. Nesse contexto, é interessante notar que embora,
nas etapas iniciais da ciência física, fosse possível confiar diretamente
em aspectos dos acontecimentos da vida cotidiana que permitiam uma
explicação causal simples, a descrição essencialmente complementar
do conteúdo de nossa mente foi usada desde a origem das linguagens.
De fato, a rica terminologia adaptada a essa comunicação não aponta
para um curso ininterrupto dos acontecimentos, mas para experiências
mutuamente excludentes, caracterizadas por diferentes separações
entre o conteúdo em que nossa atenção se concentra e o pano de
fundo indicado pela expressão “nós mesmos”.
Um exemplo especialmente marcante é fornecido pela relação entre
situações nas quais ponderamos sobre os motivos de nossos atos e
aquelas em que experimentamos um sentimento de volição. Na vida
normal, essa oscilação da distinção é mais ou menos intuitivamente
reconhecida, mas os sintomas caracterizados como “confusão de
egos”, que podem levar à dissolução da personalidade, são bem
conhecidos da psiquiatria. O uso de atributos aparentemente
contrastantes, referidos a aspectos igualmente importantes da mente
humana, de fato apresenta uma analogia notável com a situação da
física atômica, na qual fenômenos complementares requerem, para sua
definição, diferentes conceitos elementares. Acima de tudo, a
circunstância de que a própria palavra “consciência” refere-se a
experiências passíveis de serem retidas na memória sugere uma
comparação entre as experiências conscientes e as observações da
física. Nessa analogia, a impossibilidade de fornecer um conteúdo
inambíguo para a ideia de subconsciente corresponde à
impossibilidade da interpretação pictórica do formalismo quântico. A
propósito, pode-se dizer que o tratamento psicanalítico das neuroses
restabelece o equilíbrio do conteúdo da memória do paciente por lhe
trazer uma nova experiência consciente, e não por ajudá-lo a sondar
os abismos de seu subconsciente.
Do ponto de vista biológico, só podemos interpretar as
características dos fenômenos físicos concluindo que toda experiência
consciente corresponde a uma impressão residual do organismo, que
equivale a um registro irreversível, no sistema nervoso, do resultado
de processos que não são acessíveis à introspecção e que dificilmente
se adaptariam a uma definição exaustiva pela abordagem mecanicista.
Certamente, os registros em que está envolvida a interação de
numerosas células nervosas são essencialmente diferentes das
estruturas permanentes de qualquer célula isolada do organismo que
esteja ligada à reprodução genética. Do ponto de vista finalista,
entretanto, podemos frisar não apenas a utilidade dos registros
permanentes, em sua influência sobre nossas reações a estímulos
posteriores, como também a importância de que as gerações seguintes
não sejam prejudicadas pelas experiências efetivas dos indivíduos, mas
dependam somente da reprodução das propriedades do organismo que
se provaram úteis para a aquisição e a utilização do conhecimento.
Em qualquer tentativa de levar adiante a investigação, devemos estar
preparados, é claro, para deparar com dificuldades crescentes a cada
passo, e é sugestivo que os conceitos simples da ciência física percam
sua aplicabilidade imediata, em grau cada vez maior, quanto mais nos
aproximamos dos aspectos dos organismos vivos que se relacionam
com as características de nossa mente.
Para ilustrar esse argumento, podemos fazer uma breve referência
ao velho problema do livre-arbítrio. Pelo que já foi dito, é evidente
que a palavra volição é indispensável para uma descrição exaustiva
dos fenômenos psíquicos, mas o problema é até que ponto podemos
falar em liberdade de agir de acordo com nossas possibilidades.
Enquanto se adotam concepções rigidamente deterministas, a ideia
dessa liberdade fica obviamente excluída. Contudo, a lição geral da
física atômica, e, em particular, do alcance limitado da descrição
mecanicista dos fenômenos biológicos, sugere que a capacidade que os
organismos têm de se adaptar ao ambiente inclui o poder de escolher
o caminho mais apropriado para esse fim. Por ser impossível julgar
essas questões em bases puramente físicas, é de suma importância
reconhecer que a experiência psicológica pode oferecer informações
mais pertinentes sobre os problemas. O ponto decisivo é que, se
tentarmos prever o que outra pessoa decidirá fazer numa dada
situação, não só deveremos nos empenhar em conhecer todos os seus
antecedentes, inclusive a história de sua vida, em todos os aspectos
que possam ter contribuído para formar seu caráter, como deveremos
também reconhecer que aquilo a que visamos, em última instância, é
nos colocarmos em seu lugar. Naturalmente, é impossível dizer se uma
pessoa quer fazer algo por se acreditar capaz de fazê-lo, ou se é capaz
de fazê-lo porque quer, mas dificilmente se poderia contestar que
temos a sensação, por assim dizer, de sermos capazes de estar fazendo
sempre o que compreendemos como o melhor numa dada
circunstância. Do ponto de vista da descrição objetiva, nada pode ser
acrescentado ou retirado daí e, nesse sentido, podemos falar, tanto
prática quanto logicamente, em livre arbítrio, de um modo que deixe a
margem adequada para o emprego de palavras como responsabilidade
e esperança, que, por sua vez, são tão pouco definíveis em separado
quanto outras palavras indispensáveis à comunicação humana.
Essas considerações apontam para as implicações epistemológicas
da lição referente a nossa posição observacional, que o
desenvolvimento da ciência física deixou impressa em nós. Em troca
da renúncia às exigências habituais da explicação, ela oferece um meio
lógico de compreendermos vastos campos da experiência, exigindo
uma atenção adequada à instauração da distinção objeto–sujeito. Uma
vez que, na literatura filosófica, às vezes se faz referência a diferentes
níveis de objetividade ou subjetividade, ou mesmo de realidade, pode-
se enfatizar que a noção de um sujeito último, bem como de
concepções como realismo e idealismo, não tem lugar na descrição
objetiva tal como a definimos; mas essa circunstância não implica, é
claro, nenhuma limitação do alcance da investigação em que estamos
interessados.
Havendo tocado em alguns dos problemas da ciência que se
relacionam com a unidade do conhecimento, volto-me agora para a
outra questão levantada em nosso projeto, ou seja, se há uma verdade
poética, espiritual ou cultural distinta da verdade científica. Com toda
a relutância de um cientista em enveredar por esses campos, arrisco-
me a comentar essa questão, numa atitude semelhante à indicada no
que foi dito antes. Tomando a discussão sobre a relação que existe
entre nossos meios de expressão e o campo da experiência por que nos
interessamos, é fato que somos diretamente confrontados com a
relação entre a ciência e a arte. O enriquecimento que a arte pode nos
trazer origina-se em seu poder de nos relembrar harmonias que ficam
fora do alcance da análise sistemática. Pode-se dizer que a arte
literária, a arte pictórica e a arte musical compõem uma sequência de
modos de expressão em que a renúncia cada vez mais ampla à
definição, característica da comunicação humana, dá à fantasia uma
liberdade maior de manifestação. Na poesia, em particular, esse
propósito é alcançado pela justaposição de palavras relacionadas com
situações observacionais mutáveis, com isso unindo emocionalmente
múltiplos aspectos do conhecimento humano.
Apesar da inspiração exigida por toda obra de arte, talvez não seja
irreverente comentar que, mesmo no auge de seu trabalho, o artista
depende da mesma base humana comum em que nos sustentamos. Em
particular, devemos reconhecer que uma palavra como improvisação,
que vem à boca tão prontamente ao falarmos de realizações artísticas,
aponta para um aspecto essencial a toda comunicação. Não apenas,
na conversa corriqueira, somos mais ou menos inconscientes das
expressões verbais que escolhemos para comunicar o que nos vai pela
mente, como também, até mesmo nos textos escritos, onde temos a
possibilidade de reconsiderar cada palavra, a questão de a deixarmos
como está ou de a modificarmos exige, para ser respondida, uma
decisão final que equivale, essencialmente, a uma improvisação. A
propósito, no equilíbrio entre a seriedade e o humor, que é
característico de todas as realizações verdadeiramente artísticas,
somos lembrados dos aspectos complementares que se evidenciam na
brincadeira infantil e são não menos apreciados na vida madura. De
fato, se sempre nos esforçarmos por falar com muita seriedade,
correremos o risco de, muito cedo, parecermos ridiculamente
entediantes para nossos ouvintes e para nós mesmos; porém, se
tentarmos brincar o tempo todo, logo nos descobriremos, como
também o farão nossos ouvintes, no estado de espírito desesperador
dos bufões dos dramas de Shakespeare.
Numa comparação entre a ciência e a arte, é claro, não devemos
esquecer que, na primeira, lidamos com esforços conjuntos e
sistemáticos para aumentar a experiência e desenvolver conceitos
apropriados para sua compreensão, o que se assemelha a carregar e
encaixar tijolos num edifício; na segunda, são-nos apresentados
esforços individuais, mais intuitivos, para evocar sentimentos que
lembrem a globalidade de nossa situação. Aqui, estamos num ponto
em que a questão da unidade do conhecimento contém,
evidentemente, uma ambiguidade, como a própria palavra “verdade”.
De fato, no que concerne aos valores espirituais e culturais, também
somos lembrados de problemas epistemológicos ligados ao equilíbrio
adequado entre nosso desejo de um modo globalizante de encarar a
vida, em seus aspectos multifacetados, e nosso poder de nos
expressarmos de maneira logicamente coerente.
Nesse aspecto, pontos de partida essencialmente diferentes são
adotados pela ciência, que visa ao desenvolvimento de métodos gerais
de ordenação da experiência humana comum, e pelas religiões, que se
originaram nos esforços de promover uma harmonia de visão e
comportamento nas comunidades. É claro que, em qualquer religião,
todos os conhecimentos compartilhados pelos membros da
comunidade foram incluídos no arcabouço geral, que tem como um de
seus conteúdos primordiais os valores e ideais enfatizados no culto e
na fé. Por conseguinte, a relação inerente entre conteúdo e forma mal
chegou a requerer atenção, até que o progresso posterior da ciência
acarretou uma nova lição cosmológica ou epistemológica. O curso da
história fornece muitas ilustrações quanto a esses aspectos. Podemos
nos referir, em especial, ao verdadeiro cisma entre ciência e religião
que acompanhou o desenvolvimento da concepção mecanicista da
natureza, na época do Renascimento europeu. De um lado, muitos
fenômenos até então encarados como manifestações da providência
divina afiguraram-se consequências de leis gerais e imutáveis da
natureza. De outro, os métodos e pontos de vista da física eram muito
distantes da ênfase nos valores e ideais humanos, essenciais à religião.
Como traço comum às escolas da chamada filosofia empírica e crítica,
prevaleceu, portanto, uma atitude de distinção mais ou menos vaga
entre o conhecimento objetivo e a crença subjetiva.
Ao enfatizar a necessidade, na comunicação inambígua, de prestar a
devida atenção à instauração da separação objeto–sujeito, entretanto,
o desenvolvimento moderno da ciência criou uma nova base para o
uso de palavras como conhecimento e crença. Acima de tudo, o
reconhecimento de limitações intrínsecas na noção de causalidade
ofereceu um cenário em que a ideia de predestinação universal foi
substituída pelo conceito de evolução natural. Com respeito à
organização das sociedades humanas, podemos frisar, em especial, que
a descrição da posição do indivíduo em sua comunidade apresenta
aspectos tipicamente complementares, relacionados com a fronteira
cambiante entre a apreciação dos valores e o contexto em que eles são
julgados. Sem dúvida, toda sociedade humana estável requer a
imparcialidade, especificada nas normas judiciais, mas, ao mesmo
tempo, uma vida sem apego à família e aos amigos seria, obviamente,
privada de alguns de seus valores mais preciosos. Todavia, embora a
combinação mais íntima possível de justiça e caridade represente uma
meta comum de todas as culturas, convém reconhecer que qualquer
ocasião que requeira a aplicação rigorosa da lei não deixa espaço para
a manifestação de caridade, e que, inversamente, a benevolência e a
compaixão podem entrar em conflito com as ideias de justiça. Esse
ponto, miticamente ilustrado em muitas religiões pela luta entre
divindades que personificam esses ideais, é enfatizado, na antiga
filosofia oriental, na advertência de que nunca devemos esquecer, em
nossa busca de harmonia na vida humana, que, no palco da vida, nós
mesmos somos atores e espectadores.
Ao comparar diferentes culturas, alicerçadas nas tradições
promovidas por acontecimentos históricos, deparamos com a
dificuldade de aquilatar a cultura de uma nação pautando-nos nos
antecedentes das tradições de outra. Nesse aspecto, a relação entre as
culturas nacionais tem sido ocasionalmente descrita como
complementar, embora essa palavra não possa ser tomada, nesse
contexto, no sentido estrito em que é empregada na física atômica ou
na análise psicológica, onde lidamos com características invariáveis de
nossa situação. De fato, não só o contato entre as nações resultou
amiúde na fusão de culturas, preservando elementos valiosos das
tradições nacionais, como também a pesquisa antropológica vem-se
tornando, sistematicamente, uma fonte de suma importância para
elucidar aspectos comuns do desenvolvimento cultural. Na verdade,
dificilmente se poderia separar o problema da unidade do
conhecimento e o esforço pela compreensão universal, como meio de
elevar a cultura humana.
Ao concluir esta comunicação, sinto que devo desculpar-me por
falar de temas tão gerais com tanta referência ao campo especial de
conhecimento representado pela ciência física. Tentei indicar, porém,
uma atitude geral sugerida pela grave lição que recebemos desse
campo em nossa época, e que me parece ter importância para o
problema da unidade do conhecimento. Essa atitude pode ser
resumida pelo empenho em adquirir uma compreensão harmoniosa de
aspectos cada vez mais amplos de nossa situação, reconhecendo que
nenhuma experiência é definível sem um arcabouço lógico, e que
qualquer aparente desarmonia só pode ser eliminada por uma
ampliação apropriada do quadro conceitual.
Os átomos e o conhecimento humano

1955

A exploração do mundo dos átomos feita neste século praticamente


não tem paralelos na história da ciência, no que concerne ao progresso
do conhecimento e ao domínio da natureza de que nós mesmos somos
parte. Entretanto, cada ampliação do conhecimento e das habilidades
conduz a uma responsabilidade maior; e a realização da promessa de
riqueza e de eliminação dos novos perigos da era atômica confronta
toda a nossa civilização com um grave desafio, que só pode ser
enfrentado mediante a cooperação de todos os povos, fundamentada
numa compreensão mútua da confraternidade humana. Nesta
situação, é importante perceber que a ciência, que não conhece
fronteiras nacionais e cujas realizações são um patrimônio comum da
humanidade, tem unido os homens, em todas as eras, em seus esforços
para elucidar os fundamentos de nosso saber. Como tentarei mostrar,
o estudo dos átomos, que viria a acarretar consequências tão extensas
e cujo progresso baseou-se numa cooperação mundial, não apenas
aprofundou nosso discernimento de um novo campo da experiência,
como também lançou nova luz sobre os problemas gerais do
conhecimento.
A princípio, talvez pareça surpreendente que a ciência atômica
contenha uma lição de natureza geral, mas convém lembrar que, em
todas as etapas de seu desenvolvimento, ela tratou de problemas
profundos do conhecimento. Assim, os pensadores da Antiguidade,
presumindo um limite para a divisibilidade das substâncias, tentaram
descobrir um fundamento para compreender as características de
permanência exibidas pelos fenômenos naturais, a despeito de sua
multiplicidade e variabilidade. Embora as ideias atomistas tenham
contribuído de maneira cada vez mais fecunda para o
desenvolvimento da física e da química desde o Renascimento, elas
foram consideradas uma hipótese até o início deste século. Na
verdade, presumia-se que nossos órgãos sensoriais, eles mesmos
compostos de inúmeros átomos, eram toscos demais para observar as
partes mais diminutas da matéria. Essa situação, entretanto, iria
modificar-se substancialmente com as grandes descobertas da virada
do século. Como se sabe, o progresso da técnica experimental tornou
possível registrar os efeitos de átomos isolados e obter informações
sobre partículas mais elementares, que, como se constatou, formam os
próprios átomos.
Apesar da profunda influência exercida pelo antigo atomismo no
desenvolvimento da concepção mecanicista da natureza, foi o estudo
de experiências astronômicas e físicas imediatamente acessíveis que
permitiu desvendar as regularidades expressas na chamada física
clássica. A frase de Galileu, segundo a qual a explicação dos
fenômenos deveria basear-se em quantidades mensuráveis, tornou
possível eliminar as visões animistas que por tanto tempo haviam
impedido a formulação racional da mecânica. Nos Principia de
Newton, lançaram-se as bases de uma descrição determinista que
permitisse, a partir do conhecimento do estado de um sistema físico
num dado momento, prever seu estado em qualquer momento
posterior. Dentro dos mesmos moldes, foi possível explicar os
fenômenos eletromagnéticos. Isso, no entanto, exigiu que a descrição
do estado dos sistemas incluísse, além das posições e velocidades dos
corpos eletrificados e imantados, a intensidade e a direção das forças
elétricas e magnéticas em cada ponto do espaço num momento dado.
Por muito tempo, julgou-se que o arcabouço conceitual
característico da física clássica proporcionava o instrumento correto
para a descrição de todos os fenômenos físicos, e até mesmo que ele se
adequava à utilização e ao desenvolvimento das ideias atômicas.
Naturalmente, em sistemas como os corpos comuns, que são
compostos de um imenso número de partes integrantes, não havia
possibilidade de uma descrição exaustiva do estado dos sistemas. Sem
abandonar o ideal determinista, entretanto, tornou-se possível, com
base nos princípios da mecânica clássica, deduzir regularidades
estatísticas que refletiam muitas das propriedades dos corpos
materiais. Muito embora as leis mecânicas do movimento permitissem
uma inversão completa do curso de processos isolados, a explicação
plena da característica de irreversibilidade dos fenômenos do calor foi
encontrada no equilíbrio estatístico da energia, resultante da interação
das moléculas. Essa grande extensão da aplicação da mecânica
enfatizou ainda mais a indispensabilidade das ideias atomistas para a
descrição da natureza e descortinou as primeiras possibilidades de
contar os átomos das substâncias.
Mas o esclarecimento das bases das leis da termodinâmica iria abrir
caminho para o reconhecimento, nos processos atômicos, de um traço
de globalidade que ultrapassava em muito a antiga doutrina da
divisibilidade limitada da matéria. Como se sabe, a análise minuciosa
da radiação térmica tornou-se o teste do alcance das ideias físicas
clássicas. A descoberta das ondas eletromagnéticas já havia fornecido
uma base para o entendimento da propagação da luz, explicando
muitas das propriedades ópticas das substâncias, mas os esforços para
explicar o equilíbrio da radiação confrontaram essas ideias com
dificuldades insuperáveis. A circunstância de que, nesse caso, era
preciso lidar com argumentos baseados em princípios gerais,
independentes de pressupostos especiais acerca dos componentes das
substâncias, levou Planck, no primeiro ano deste século, à descoberta
do quantum universal de ação, que mostrou com clareza que a
descrição física clássica era uma idealização de aplicabilidade restrita.
Nos fenômenos em escala comum, as ações envolvidas são tão
grandes, em comparação com o quantum, que este pode ser
desconsiderado. Todavia, nos processos quânticos propriamente ditos,
deparamos com regularidades que são completamente alheias à
concepção mecanicista da natureza e desafiam a descrição
determinista pictórica.

A tarefa com que a descoberta de Planck confrontou os físicos não


foi nada menos que, através de uma análise minuciosa dos
pressupostos em que se baseava a aplicação de nossos conceitos mais
elementares, abrir espaço para o quantum de ação numa generalização
racional da descrição física clássica. Durante o desenvolvimento da
física quântica, que tantas surpresas acarretou, fomos repetidamente
lembrados das dificuldades de nos orientarmos num campo da
experiência que está longe daquele a cuja descrição nossos meios de
expressão encontram-se adaptados. O progresso rápido foi
possibilitado por uma ampla e intensa colaboração entre físicos de
muitos países, cujas abordagens diversificadas ajudaram, de maneira
extremamente fecunda, a enfocar o problema com nitidez cada vez
maior. Nesta oportunidade, é claro, não será possível discorrer em
detalhe sobre as contribuições individuais, mas, como pano de fundo
para as considerações que se seguem, quero recordar-lhes brevemente
alguns dos traços principais desse desenvolvimento.
Enquanto Planck limitou-se cautelosamente a argumentos
estatísticos e enfatizou as dificuldades de abandonar os fundamentos
clássicos na descrição detalhada da natureza, Einstein apontou
ousadamente para a necessidade de levar em conta o quantum de ação
nos fenômenos atômicos individuais. No mesmo ano em que
aprimorou tão harmoniosamente o arcabouço da física clássica, ao
estabelecer a teoria da relatividade, ele mostrou que a descrição das
observações de efeitos fotoelétricos exigia que a transmissão de
energia a cada um dos elétrons expelidos das substâncias
correspondesse à absorção de um chamado quantum de radiação.
Como a ideia de ondas é indispensável à explicação da propagação da
luz, não havia como simplesmente substituí-la por uma descrição
corpuscular. Portanto, ficava-se diante de um dilema peculiar, cuja
solução iria exigir uma análise rigorosa do alcance dos conceitos
pictóricos.
Como se sabe, essa questão foi ainda mais acentuada pela
descoberta de Rutherford do núcleo atômico, o qual, apesar de suas
dimensões diminutas, contém quase toda a massa do átomo, e cuja
carga elétrica corresponde ao número de elétrons do átomo neutro.
Isso forneceu uma imagem simples do átomo, que sugeriu de imediato
a aplicação de ideias mecânicas e eletromagnéticas. No entanto, estava
claro que, de acordo com os princípios da física clássica, nenhuma
configuração de partículas elétricas podia possuir a estabilidade
necessária à explicação das propriedades físicas e químicas dos
átomos. Em particular, segundo a teoria eletromagnética clássica, todo
movimento dos elétrons em torno do núcleo atômico produziria uma
radiação contínua de energia, implicando uma rápida contração do
sistema, até que os elétrons se unissem ao núcleo numa partícula
neutra, de dimensões infinitamente pequenas em relação às que devem
ser atribuídas aos átomos. Todavia, nas leis empíricas das linhas
espectrais dos elementos, até então inteiramente incompreensíveis,
encontrou-se um indício da importância decisiva do quantum de ação
para a estabilidade e as reações radiantes do átomo.
O ponto de partida passou a ser, nesse caso, o chamado postulado
quântico, segundo o qual toda troca de energia de um átomo é
resultado de uma transição completa entre dois de seus estados
estacionários. Presumindo ainda que todas as reações atômicas
radiantes implicam a emissão ou a absorção de um único quantum de
luz, os valores energéticos dos estados estacionários puderam ser
determinados a partir dos espectros. Ficou patente que nenhuma
explicação da indivisibilidade dos processos de transição, ou de seu
aparecimento em determinadas condições, poderia ser fornecida
dentro do referencial da descrição determinista. Entretanto, mostrou-
se possível examinar as ligações dos elétrons nos átomos, que refletiam
muitas das propriedades das substâncias, com a ajuda do chamado
princípio da correspondência. Com base numa comparação com o
curso classicamente esperável dos processos, buscaram-se diretrizes
para uma generalização estatística da descrição que fosse compatível
com o postulado quântico. Todavia, ficou cada vez mais claro que,
para se obter uma explicação coerente dos fenômenos atômicos, era
preciso renunciar ainda mais ao uso de imagens, e que era necessária
uma reformulação radical de toda a descrição para abarcar todas as
características que o quantum de ação acarretava.
A solução, encontrada em decorrência das contribuições engenhosas
de muitos dos mais eminentes físicos teóricos de nossa época, foi
surpreendentemente simples. Como na formulação da teoria da
relatividade, encontraram-se instrumentos adequados em abstrações
matemáticas altamente desenvolvidas. As quantidades que, na física
clássica, são usadas para descrever o estado de um sistema foram
substituídas, no formalismo quântico, por operadores simbólicos cuja
comutabilidade é limitada por regras que levam em conta o quantum.
Isso implica que não é possível atribuir simultaneamente valores
definidos a quantidades como as coordenadas posicionais e os
respectivos componentes de momento das partículas. Assim, o caráter
estatístico do formalismo é exibido como uma generalização natural
da descrição da física clássica. Além disso, essa generalização permitiu
uma formulação coerente das regularidades que limitam a
individualidade das partículas idênticas e que, como o próprio
quantum, não podem ser expressas em termos das imagens físicas
usuais.
Através dos métodos da mecânica quântica, foi possível explicar um
enorme volume de dados experimentais sobre as propriedades físicas e
químicas das substâncias. Não só a ligação dos elétrons nos átomos e
moléculas foi pormenorizadamente esclarecida, como também se
obteve um profundo discernimento da constituição e das reações dos
núcleos atômicos. Com respeito a isso, podemos mencionar que as leis
de probabilidade das transmutações radioativas espontâneas foram
harmoniosamente incorporadas na descrição estatística da mecânica
quântica. Ademais, a compreensão das propriedades das novas
partículas elementares, observadas nos últimos anos no estudo das
transmutações dos núcleos atômicos em altas energias, passou por um
progresso contínuo, resultante da adaptação do formalismo aos
requisitos de invariância da teoria da relatividade. Nesse ponto,
contudo, vemo-nos diante de novos problemas, cuja solução
obviamente requer novas abstrações, capazes de combinar o quantum
de ação com a carga elétrica elementar.
Apesar da fecundidade da mecânica quântica nesse campo tão vasto
da experiência, a renúncia às exigências habituais feitas à explicação
física levou muitos físicos e filósofos a duvidar de que estivéssemos
lidando com uma descrição exaustiva dos fenômenos atômicos. Em
particular, externou-se a opinião de que o modo de descrição
estatístico deveria ser encarado como um expediente temporário,
substituível, em princípio, por uma descrição determinista. O debate
rigoroso dessa questão, entretanto, levou ao esclarecimento de nossa
situação como observadores na física atômica e nos deu a lição
epistemológica a que nos referimos no início desta palestra.

Posto que a meta da ciência é aumentar e ordenar nossa experiência,


toda análise das condições do conhecimento humano deve assentar-se
em considerações sobre o caráter e o alcance de nossos meios de
expressão. Nossa base, é claro, é a linguagem desenvolvida para a
orientação em nosso meio e para a organização das comunidades
humanas. Repetidamente, porém, a ampliação da experiência suscitou
questões quanto à suficiência dos conceitos e ideias incorporados na
linguagem cotidiana. Em virtude da relativa simplicidade dos
problemas físicos, eles se prestam especialmente para investigar o uso
de nossos meios de expressão. De fato, o desenvolvimento da física
atômica nos ensinou como é possível criar um arcabouço
suficientemente amplo para uma descrição exaustiva de novas
experiências, sem abandonar a linguagem comum.
Nesse contexto, é imperativo reconhecer que, em todo relato de uma
experiência física, devem-se descrever as condições e as observações
experimentais através dos mesmos meios de expressão usados na física
clássica. Na análise de partículas atômicas isoladas, isso é
possibilitado pelos efeitos irreversíveis de amplificação — como a
marca deixada numa chapa fotográfica pelo impacto de um elétron,
ou uma descarga elétrica produzida num dispositivo de contagem —, e
as observações concernem apenas a onde e quando a partícula é
registrada na chapa, ou a sua energia na chegada ao contador.
Naturalmente, essa informação pressupõe o conhecimento da posição
da chapa fotográfica em relação às outras partes do arranjo
experimental, tais como diafragmas reguladores e obturadores que
definam a localização espaçotemporal, ou corpos eletrificados e
imantados que determinem os campos de força externos que atuam
sobre a partícula e permitem as medidas da energia. As condições
experimentais podem ser variadas de muitas maneiras, mas o
importante é que, em cada situação, sejamos capazes de comunicar
aos outros o que fizemos e o que aprendemos. Portanto, o
funcionamento dos instrumentos de medida tem que ser descrito
dentro do quadro das ideias físicas clássicas.
Uma vez que todas as medidas concernem a corpos suficientemente
pesados para permitir que o quantum seja desprezado em sua
descrição, não há, estritamente falando, nenhum novo problema
observacional na física atômica. A amplificação dos efeitos atômicos,
que permite fundamentar a explicação em quantidades mensuráveis e
confere aos fenômenos um caráter fechado peculiar, só faz enfatizar a
irreversibilidade característica do próprio conceito de observação.
Enquanto, nos moldes da física clássica, não há diferença, em
princípio, entre a descrição dos instrumentos de medida e os objetos
investigados, a situação é essencialmente diferente quando estudamos
fenômenos quânticos, uma vez que o quantum de ação impõe
restrições à descrição do estado dos sistemas por meio de coordenadas
espaçotemporais e quantidades de momento-energia. Uma vez que a
descrição determinista da física clássica pauta-se na suposição de uma
compatibilidade irrestrita da localização espaçotemporal com as leis
de conservação dinâmicas, obviamente somos confrontados, nesse
caso, com o problema de determinar, no que tange aos objetos
atômicos, se essa descrição pode ser inteiramente preservada.
Verificou-se que, na descrição dos fenômenos quânticos, o papel da
interação dos objetos com os instrumentos de medida era de especial
importância para esclarecer esse ponto fundamental. Assim, como
Heisenberg enfatizou, a localização de um objeto num domínio
espaçotemporal limitado envolve, de acordo com a mecânica quântica,
uma troca de momento e energia entre o instrumento e o objeto, que é
tão maior quanto menor é o domínio escolhido. Portanto, foi de
extrema importância investigar até que ponto a interação provocada
pela observação podia ser levada em conta separadamente na
descrição dos fenômenos. Essa questão foi o foco de muitos debates,
havendo surgido muitas propostas visando a um controle completo de
todas as interações. Nessas considerações, entretanto, não se deu a
devida atenção ao fato de que a própria descrição do funcionamento
dos instrumentos de medida implica que qualquer interação destes
instrumentos com os objetos atômicos, decorrente do quantum, é
inseparável do fenômeno.
De fato, todo arranjo experimental que permita o registro de uma
partícula atômica num domínio espaçotemporal limitado exige
padrões de medida fixos e relógios sincronizados que, por sua própria
definição, excluem o controle do momento e da energia transmitidos
para eles. Inversamente, uma aplicação inambígua das leis de
conservação dinâmicas na física quântica exige que a descrição dos
fenômenos implique uma renúncia, em princípio, à localização
espaçotemporal detalhada. Esse caráter mutuamente excludente das
condições experimentais faz com que todo o arranjo experimental
tenha que ser levado em conta numa descrição bem definida dos
fenômenos. A indivisibilidade dos fenômenos quânticos encontra sua
expressão coerente no fato de que toda subdivisão definível exige uma
mudança do arranjo experimental, com o aparecimento de novos
fenômenos individuais. Assim, o próprio fundamento de uma
descrição determinista desaparece, e o caráter estatístico das previsões
é evidenciado pelo fato de que, num mesmo arranjo experimental, em
geral aparecem observações que correspondem a diferentes processos
individuais.
Tais considerações não apenas esclareceram o dilema antes
mencionado, com respeito à propagação da luz, como também
resolveram por completo os paradoxos correspondentes que
confrontam a representação pictórica do comportamento das
partículas materiais. Aqui, é claro, não podemos buscar uma
explicação física no sentido costumeiro, mas tudo o que podemos
pleitear de um novo campo de experiências é a eliminação de
quaisquer contradições aparentes. Por maiores que sejam os contrastes
exibidos pelos fenômenos atômicos em diferentes condições
experimentais, esses fenômenos devem ser chamados de
complementares, no sentido de que cada um deles é bem definido e de
que, juntos, eles esgotam todo o conhecimento definível sobre os
objetos em questão. O formalismo quântico, cujo único objetivo é
compreender observações obtidas em condições experimentais
descritas por conceitos físicos simples, fornece justamente esse tipo de
explicação complementar exaustiva para um campo muito grande de
experiências. A renúncia à representação pictórica envolve apenas o
estado dos objetos atômicos, enquanto o fundamento da descrição das
condições experimentais, bem como nossa liberdade de escolhê-las,
são inteiramente preservados. Todo esse formalismo, que só pode ser
aplicado a fenômenos fechados, deve ser considerado, sob todos os
aspectos, uma generalização racional da física clássica.
Em vista da influência da concepção mecanicista da natureza no
pensamento filosófico, é compreensível que às vezes se tenha visto na
noção de complementaridade uma referência ao observador subjetivo,
incompatível com a objetividade da descrição científica.
Naturalmente, em todos os campos da experiência, devemos manter
uma clara distinção entre o observador e o conteúdo das observações,
mas devemos reconhecer que a descoberta do quantum de ação lançou
uma nova luz sobre os próprios fundamentos da descrição da
natureza, revelando pressupostos até então despercebidos no uso
racional dos conceitos em que se baseia a comunicação da experiência.
Na física quântica, como vimos, a explicação do funcionamento dos
instrumentos de medida é indispensável à definição dos fenômenos, e
devemos distinguir entre o sujeito e o objeto, por assim dizer, de tal
maneira que cada caso isolado assegure a aplicação inambígua dos
conceitos físicos elementares empregados na descrição. Longe de
conter qualquer misticismo alheio ao espírito da ciência, a noção de
complementaridade aponta para as condições lógicas da descrição e
da compreensão da experiência na física atômica.

Tal como fizeram os avanços anteriores na ciência física, a lição


epistemológica da física atômica deu origem, naturalmente, ao exame
renovado do uso de nossos meios de expressão, tendo em vista a
descrição objetiva em outros campos do conhecimento. A própria
ênfase colocada no problema observacional levanta a questão da
posição dos organismos vivos na descrição da natureza e de nossa
própria situação como seres pensantes e atuantes. Muito embora
tenha sido possível, em certa medida, dentro do contexto da física
clássica, comparar organismos com máquinas, ficou claro que essas
comparações não levavam suficientemente em conta muitas das
características da vida. A inadequação da concepção mecanicista da
natureza para descrever a situação do homem é particularmente
evidente nas dificuldades implícitas na distinção primitiva entre alma e
corpo.
Os problemas com que deparamos nessa área estão obviamente
vinculados ao fato de que a descrição de muitos aspectos da existência
humana requer uma terminologia que não tem um fundamento
imediato em simples imagens físicas. Entretanto, o reconhecimento da
aplicabilidade limitada dessas imagens na explicação dos fenômenos
atômicos dá um indício de como os fenômenos biológicos e
psicológicos podem ser compreendidos dentro do contexto da
descrição objetiva. Tal como antes, é importante estar ciente, aqui, da
separação entre o observador e o conteúdo das comunicações.
Enquanto, na concepção mecanicista da natureza, a distinção sujeito–
objeto era fixa, dá-se espaço a uma descrição mais ampla através do
reconhecimento de que o uso coerente de nossos conceitos requer
tratamentos diferentes para essa separação.
Sem tentar fornecer nenhuma definição exaustiva da vida orgânica,
podemos dizer que um organismo vivo caracteriza-se por sua
integridade e sua adaptabilidade, o que implica que uma descrição das
funções internas de um organismo e de sua reação aos estímulos
externos amiúde requer um “finalismo”, que é desconhecido da física
e da química. Embora os resultados da física atômica tenham
encontrado uma multiplicidade de aplicações na biofísica e na
bioquímica, os fenômenos quânticos individuais fechados não exibem,
é claro, nenhum traço que sugira a noção de vida. Como vimos, a
descrição dos fenômenos atômicos, exaustiva dentro de um vasto
domínio da experiência, baseia-se na livre utilização dos instrumentos
de medida necessários a uma aplicação adequada dos conceitos
elementares. Num organismo vivo, entretanto, tal distinção entre os
instrumentos de medida e os objetos investigados dificilmente poderia
ser mantida até o fim. Devemos estar preparados para o fato de que
todo arranjo experimental que pretenda descrever o funcionamento do
organismo, que é bem definido no sentido da física atômica, será
incompatível com a manifestação de vida.
Na pesquisa biológica, as referências às características de
integridade e às reações finalistas dos organismos são usadas
juntamente com informações cada vez mais detalhadas sobre a
estrutura e os processos regulatórios, que resultaram em tão grandes
progressos, inclusive na medicina. Aqui, temos que lidar com a
abordagem prática de um campo em que os meios de expressão
usados para a descrição de seus vários aspectos referem-se a condições
de observação mutuamente excludentes. Nesse contexto, há que se
reconhecer que as atitudes denominadas de mecanicistas e finalistas
não são pontos de vista contraditórios, mas exibem, antes, uma
relação complementar, que está ligada a nossa posição de
observadores da natureza. Para evitar mal-entendidos, no entanto, é
essencial notar que — em contraste com a explicação das
regularidades atômicas — a descrição da vida orgânica e a avaliação
de suas possibilidades de desenvolvimento não podem almejar ser
completas, mas apenas se basear num arcabouço conceitual
suficientemente amplo.
Na descrição das experiências psíquicas, encontramos condições de
observação e meios correspondentes de expressão que se distanciam
ainda mais da terminologia da física. À parte a medida em que o
emprego de palavras como instinto e razão na descrição do
comportamento animal é necessário e justificável, a palavra
consciência, aplicada ao próprio sujeito e a outrem, é indispensável ao
se descrever a condição humana. Enquanto a terminologia adaptada à
orientação no ambiente pôde tomar como ponto de partida imagens
físicas simples e ideias de causalidade, a explicação de nossos estados
mentais exigiu um modo de descrição tipicamente complementar. Com
efeito, o uso de palavras como pensamento e sentimento não se refere
a uma cadeia causal firmemente interligada, mas a experiências que
excluem umas às outras, em virtude das diferentes distinções entre o
conteúdo consciente e o pano de fundo a que frouxamente chamamos
“nós mesmos”.
A relação entre a experiência de um sentimento de volição e a
ponderação consciente sobre os motivos de nossos atos é
especialmente esclarecedora. A indispensabilidade desses meios de
expressão, aparentemente contrastantes, para descrever a riqueza da
vida consciente faz-nos lembrar, de um modo surpreendente, a
maneira como os conceitos físicos elementares são empregados na
física atômica. Nessa comparação, todavia, devemos reconhecer que a
experiência psíquica não pode ser submetida a mensurações físicas, e
que o próprio conceito de volição não se refere a uma generalização
de uma descrição determinista, mas aponta, desde o início, para
características da vida humana. Sem entrar na antiga discussão
filosófica sobre o livre-arbítrio, quero apenas mencionar que, numa
descrição objetiva de nossa situação, o uso da palavra volição
corresponde de perto ao de termos como esperança e
responsabilidade, que são igualmente indispensáveis à comunicação
humana.
Chegamos aqui a problemas que afetam a confraternidade humana,
e nos quais a variedade dos meios de expressão origina-se da
impossibilidade de caracterizar, mediante qualquer distinção fixa, o
papel do indivíduo na sociedade. O fato de as culturas humanas,
desenvolvidas em diferentes condições de vida, exibirem tantos
contrastes no que diz respeito às tradições aceitas e aos padrões sociais
permite, num certo sentido, que chamemos essas culturas de
complementares. Entretanto, de modo algum lidamos, nesse caso, com
características definidas e mutuamente excludentes, tais como as que
encontramos na descrição objetiva de problemas gerais da física e da
psicologia, mas sim com diferenças de atitude que podem ser
apreciadas ou melhoradas por um maior intercâmbio entre os povos.
Em nossa época, quando, mais do que nunca, o conhecimento e a
habilidade crescentes ligam o destino de todos os povos, a cooperação
internacional na ciência tem tarefas de amplo alcance, que podem ser
favorecidas também pela conscientização das condições gerais do
conhecimento humano.
A ciência física e o problema da vida

1957

Fzoi um prazer aceitar o convite da Sociedade de Medicina de


Copenhague para fazer uma das Palestras Steno com que a Sociedade
relembra esse famoso cientista dinamarquês, cujos feitos são
admirados em grau cada vez maior não só neste país, mas em todo o
mundo científico. Como meu tema, escolhi um problema que tem
ocupado a mente humana ao longo das eras, e pelo qual o próprio
Niels Steensen*5 tinha um profundo interesse: de que modo as
experiências físicas podem nos ajudar a explicar a vida orgânica em
suas ricas e variadas manifestações? Como tentarei mostrar, o
desenvolvimento da física nas últimas décadas e, em particular, a lição
referente a nossa posição de observadores da natureza de que fazemos
parte, recebida através da exploração do mundo dos átomos, por
tanto tempo vedado a nós, criou um novo cenário para nossa atitude
diante dessa questão.
Mesmo nas escolas filosóficas da Grécia antiga encontramos
opiniões divergentes acerca dos meios conceituais adequados para
explicar as marcantes diferenças entre os organismos vivos e outros
corpos materiais. Como se sabe, os atomistas consideravam que uma
divisibilidade limitada de toda a matéria era necessária para explicar
não só os fenômenos físicos simples, mas também o funcionamento
dos organismos e as experiências físicas correlatas. Aristóteles, por
outro lado, refutou as ideias atomísticas e, em vista da integridade
exibida por todo organismo vivo, sustentou a necessidade de
introduzir na descrição da natureza conceitos como os de perfeição e
finalidade.
Por quase 2 mil anos, essa situação permaneceu basicamente
inalterada. Só no Renascimento ocorreram as grandes descobertas da
física e da biologia, que iriam trazer novos estímulos. O progresso na
física consistiu, acima de tudo, na superação da ideia aristotélica das
forças motrizes como causa de todo movimento. O reconhecimento
por Galileu de que o movimento uniforme é uma manifestação da
inércia, bem como sua ênfase na força como causa da mudança de
movimento, iriam converter-se na base do desenvolvimento da
mecânica, que Newton, para a admiração de sucessivas gerações,
dotou de uma forma sólida e completa. Essa chamada mecânica
clássica eliminou qualquer referência ao finalismo, já que o curso dos
acontecimentos foi descrito como uma consequência automática de
condições iniciais dadas.
O progresso da mecânica não pôde deixar de causar a mais viva
impressão em toda a ciência contemporânea. Em particular, os estudos
anatômicos de Vesalius e a descoberta da circulação sanguínea por
Harvey sugeriram uma comparação entre organismos vivos e
máquinas, que funcionariam de acordo com as leis da mecânica. Na
vertente filosófica, foi sobretudo Descartes que frisou a semelhança
entre os animais e os automata, mas ele atribuiu aos seres humanos
uma alma em interação com o corpo numa certa glândula cerebral. A
insuficiência dos conhecimentos contemporâneos sobre esses
problemas foi enfatizada por Steno em sua famosa conferência de
Paris sobre a anatomia do cérebro, que é prova do grande poder de
observação e da mentalidade aberta que caracterizaram toda a obra
científica de Steno.
Os avanços posteriores na biologia, especialmente após a invenção
do microscópio, revelaram que a estrutura orgânica e os processos
regulatórios apresentam um refinamento insuspeitado. Ao mesmo
tempo que as ideias mecanicistas, desse modo, encontraram aplicações
cada vez mais vastas, os chamados pontos de vista vitalistas ou
finalistas, inspirados no esplêndido poder de regeneração e adaptação
dos organismos, foram repetidamente expressos. Em vez de retornar a
ideias primitivas de uma força vital que atuaria sobre os organismos,
essas concepções enfatizaram como a abordagem física era insuficiente
para explicar as características da vida. À guisa de uma exposição
ponderada da situação tal como se apresentava no início deste século,
eu gostaria de me referir ao seguinte enunciado de meu pai, o
fisiologista Christian Bohr, na introdução de seu artigo “Sobre a
expansão patológica do pulmão”, publicado na edição comemorativa
do aniversário da Universidade de Copenhague em 1910:
Tanto quanto se pode caracterizar a fisiologia como um ramo especial das
ciências naturais, sua tarefa específica é investigar os fenômenos peculiares do
organismo como um objeto empírico dado, a fim de chegar a uma compreensão
das diversas partes da autorregulação e de como estas compensam umas às
outras e se harmonizam com as variações das influências externas e dos
processos internos. Assim, é da própria natureza dessa tarefa relacionar a
palavra finalismo com a manutenção do organismo e considerar finalistas os
mecanismos de regulação que servem a essa manutenção. É justamente nesse
sentido que usaremos, no que se segue, a noção de “finalismo” em referência às
funções orgânicas. Mas, para que a aplicação desse conceito em cada caso
isolado não seja vazia ou até enganosa, deve-se exigir que ela seja sempre
precedida de uma investigação do fenômeno orgânico considerado,
suficientemente minuciosa para esclarecer passo a passo a maneira especial pela
qual ele contribui para a manutenção do organismo. Embora essa exigência —
que não requer mais do que a demonstração científica de que a noção de
finalismo, no caso considerado, é usada de acordo com essa definição — possa
parecer evidente, ainda assim talvez não seja desnecessário enfatizá-la. De fato,
as investigações fisiológicas trouxeram à luz regulações de extremo refinamento,
em tamanha profusão, que é tentador designar qualquer manifestação de vida
observável como finalista, sem empreender uma investigação experimental de
seu funcionamento detalhado. Através de analogias, que se apresentam com
muita facilidade em meio à diversidade das funções orgânicas, é simplesmente
um passo a mais interpretar esse funcionamento a partir de um juízo subjetivo
sobre o caráter especial de finalismo do caso considerado. É evidente, porém,
dado o nosso conhecimento estreitamente limitado sobre o organismo, a
frequência com que esse juízo pessoal pode ser errôneo, como é ilustrado por
muitos exemplos. Nesses casos, a falta do esclarecimento experimental dos
pormenores do processo constitui a causa dos resultados errôneos do
procedimento. A suposição apriorística do finalismo do processo orgânico, no
entanto, é em si muito natural como princípio heurístico e pode, em virtude da
extrema complexidade e da difícil compreensão da situação do organismo, ser
até mesmo indispensável para a formulação do problema especial da
investigação e para a busca de maneiras de solucioná-lo. Contudo, uma coisa é
o que pode ser convenientemente usado pela investigação preliminar, e outra é o
que pode ser justificadamente considerado um resultado efetivamente obtido.
Com respeito ao problema da finalidade de uma dada função para a
manutenção de todo o organismo, esse resultado, como frisamos anteriormente,
só pode ser garantido por uma demonstração detalhada das maneiras pelas
quais tal finalidade é atingida.

Citei essas observações, que expressam a atitude do círculo em que


cresci e cujas discussões ouvi em minha juventude, porque elas
proporcionam um ponto de partida adequado para a investigação do
lugar dos organismos vivos na descrição da natureza. Como tentarei
mostrar, o moderno desenvolvimento da física atômica, ao mesmo
tempo que aumentou nosso conhecimento sobre os átomos e sua
constituição por partículas mais elementares, revelou a limitação de
princípio da chamada concepção mecanicista da natureza, e com isso
criou um novo cenário para o problema — de enorme pertinência
para nosso tema — do que podemos entender por explicação científica
e do que podemos exigir dela.

Para expor a situação da física com a máxima clareza possível,


começarei por lembrar-lhes a atitude extremada que, sob o impacto do
grande sucesso da mecânica clássica, foi expressa na famosa
concepção de Laplace sobre uma máquina universal. Todas as
interações dos componentes dessa máquina seriam regidas pelas leis
da mecânica e, por conseguinte, uma inteligência que conhecesse as
posições e velocidades relativas dessas partes, num dado momento,
poderia prever todos os acontecimentos subsequentes do mundo,
inclusive o comportamento dos animais e do homem. Em toda essa
concepção, que, como se sabe, desempenhou um importante papel na
discussão filosófica, não se presta a devida atenção aos pressupostos
da aplicabilidade dos conceitos indispensáveis à comunicação da
experiência.
Nesse aspecto, o recente desenvolvimento da física deu-nos uma
lição premente. Já a grandiosa interpretação dos fenômenos do calor
como um movimento incessante das moléculas nos gases, líquidos e
sólidos chamara a atenção para a importância das condições de
observação na explicação das experiências. Obviamente, não havia
possibilidade de uma descrição detalhada dos movimentos das
inúmeras partículas entre si, mas apenas de deduzir regularidades
estatísticas do movimento do calor por meio de princípios mecânicos
gerais. Portanto, o contraste singular entre a reversibilidade dos
processos mecânicos simples e a irreversibilidade típica de muitos
fenômenos termodinâmicos foi esclarecido pelo fato de que a
aplicação de conceitos como temperatura e entropia referia-se a
condições experimentais incompatíveis com um controle completo dos
movimentos de cada molécula.
Considerou-se frequentemente que a manutenção e o crescimento
dos organismos vivos entravam em contradição com a tendência ao
equilíbrio da temperatura e da energia num sistema físico isolado,
tendência garantida pelas leis termodinâmicas. Entretanto, convém
lembrarmos que os organismos são continuamente supridos de energia
livre pela nutrição e pela respiração, e que a mais rigorosa
investigação fisiológica nunca revelou nenhum desvio dos princípios
termodinâmicos. No entanto, o reconhecimento dessas semelhanças
entre os organismos vivos e as máquinas a motor comuns não basta, é
claro, para responder à questão da posição dos organismos na
descrição da natureza, questão esta que obviamente requer uma
análise mais profunda do problema observacional.
Esse exato problema, de fato, destacou-se de maneira inesperada
com a descoberta do quantum universal de ação. Ele expressa uma
característica de globalidade nos processos atômicos que impede a
distinção entre a observação dos fenômenos e o comportamento
independente dos objetos, característica da concepção mecanicista da
natureza. Nos sistemas físicos na escala usual, a representação dos
acontecimentos como uma cadeia de estados descritos por
quantidades mensuráveis baseia-se na circunstância de que todas as
ações, nesse caso, são grandes o bastante para permitir que se despreze
a interação dos objetos e dos corpos usados como instrumentos de
medida. Nas condições em que o quantum de ação desempenha um
papel decisivo e em que, portanto, essa interação é parte integrante
dos fenômenos, não se pode atribuir na mesma medida um curso
mecanicamente bem definido.
O colapso das imagens físicas comuns com que deparamos nessa
área expressa-se de maneira notável nas dificuldades de falarmos sobre
as propriedades dos objetos atômicos independentemente das
condições de sua observação. Na verdade, pode-se chamar um elétron
de partícula material carregada, já que as medidas de sua massa
inercial sempre fornecem o mesmo resultado e qualquer transmissão
de eletricidade entre sistemas atômicos sempre corresponde a um certo
número das chamadas unidades de carga. No entanto, os efeitos de
interferência que aparecem quando os elétrons atravessam cristais são
incompatíveis com a ideia mecanicista do movimento de partículas.
Deparamos com aspectos análogos no conhecido dilema referente à
natureza da luz, uma vez que os fenômenos ópticos requerem a noção
de propagação de ondas, enquanto as leis de transmissão do momento
e da energia nos efeitos fotoelétricos atômicos referem-se à concepção
mecânica de partículas.
Essa situação, inédita na ciência física, exigiu uma nova análise dos
pressupostos da aplicação dos conceitos usados para a orientação em
nosso entorno. Na física atômica, é claro, preservamos a liberdade,
através da experimentação, de formular perguntas à natureza, mas
temos de reconhecer que as condições experimentais, que podem ser
variadas de muitas maneiras, são definidas somente por corpos tão
pesados que, na descrição de suas funções, podemos desconsiderar o
quantum. As informações concernentes aos objetos atômicos
consistem unicamente nas marcas que eles deixam nesses instrumentos
de medida, como, por exemplo, um ponto produzido pelo impacto de
um elétron numa chapa fotográfica instalada no arranjo experimental.
O fato de essas marcas se deverem a efeitos irreversíveis de
amplificação dota os fenômenos de um caráter singularmente fechado,
que aponta diretamente para a irreversibilidade, em princípio, da
própria noção de observação.
A situação especial da física quântica, entretanto, consiste sobretudo
em que as informações obtidas dos objetos atômicos não podem ser
compreendidas se nos ativermos às linhas de abordagem típicas da
concepção mecanicista da natureza. O simples fato de que, num
mesmo arranjo experimental, em geral podem surgir observações
pertinentes a diferentes processos quânticos individuais implica uma
limitação, em princípio, do modo de descrição determinista. A
exigência de uma divisibilidade irrestrita em que se alicerça a
descrição física clássica é também claramente incompatível com a
característica de globalidade dos fenômenos quânticos típicos, que
implica que qualquer subdivisão definível requer uma alteração do
arranjo experimental, o que dá origem a novos efeitos individuais.
Para caracterizar a relação entre os fenômenos observados em
diferentes condições experimentais, introduziu-se o termo
complementaridade, a fim de enfatizar que esses fenômenos esgotam,
em conjunto, todas as informações definíveis sobre os objetos
atômicos. Longe de conter uma renúncia arbitrária à explicação física
costumeira, a noção de complementaridade refere-se diretamente à
nossa posição de observadores, num campo da experiência em que a
aplicação inambígua dos conceitos usados na descrição dos fenômenos
depende essencialmente das condições de observação. Através de uma
generalização matemática do arcabouço conceitual da física clássica,
foi possível elaborar um formalismo que dá margem à incorporação
lógica do quantum de ação. A chamada mecânica quântica visa
diretamente à formulação de regularidades estatísticas a partir de
dados obtidos em condições observacionais bem definidas. A
completude em princípio dessa descrição depende da manutenção de
ideias da mecânica clássica, numa extensão que abarca qualquer
variação definível das condições experimentais.
O caráter complementar da descrição quântica expressa-se
claramente quando se explicam a composição e as reações dos
sistemas atômicos. As regularidades referentes aos estados energéticos
dos átomos e moléculas, responsáveis pelos espectros característicos
dos elementos e pelas valências das combinações químicas, só
aparecem em circunstâncias em que se exclui o controle das posições
dos elétrons dentro do átomo e da molécula. Nesse contexto, é
interessante notar que a aplicação fecunda de fórmulas estruturais na
química baseia-se exclusivamente no fato de que os núcleos atômicos
são muito mais pesados que os elétrons. Entretanto, no que diz
respeito à estabilidade e às transmutações dos próprios núcleos
atômicos, as características quânticas tornam a ser decisivas. Somente
numa descrição complementar que transcenda o âmbito da concepção
mecânica da natureza é possível encontrar espaço para as
regularidades fundamentais que respondem pelas propriedades das
substâncias de que se compõem nossos instrumentos e nossos corpos.
O progresso no campo da física atômica, como se sabe, teve ampla
aplicação nas ciências biológicas. Em particular, posso mencionar a
compreensão que obtivemos da estabilidade peculiar das estruturas
químicas nas células responsáveis pelas propriedades hereditárias da
espécie, e das leis estatísticas de ocorrência de mutações produzidas
pela exposição dos organismos a agentes especiais. Além disso, efeitos
de amplificação semelhantes aos que permitem a observação de
partículas atômicas individuais desempenham um papel decisivo em
muitas funções do organismo. Desse modo, frisa-se o caráter
irreversível dos fenômenos biológicos típicos, e a direção temporal
inerente à descrição do funcionamento dos organismos é
singularmente marcada por utilizarem a experiência passada ao reagir
a estímulos futuros.
Nesse desenvolvimento promissor, estamos diante de uma extensão
muito importante — e, por seu caráter, dificilmente limitada — da
aplicação de ideias puramente físicas e químicas aos problemas
biológicos. Já que a mecânica quântica afigura-se uma generalização
racional da física clássica, toda essa abordagem pode ser chamada de
mecanicista. A questão, entretanto, é em que sentido esse progresso
eliminou os fundamentos que permitiam a aplicação dos chamados
argumentos finalistas na biologia. Aqui, temos de reconhecer que a
descrição e a compreensão dos fenômenos quânticos fechados não
exibe nenhum traço indicativo de que uma organização de átomos seja
capaz de se adaptar ao ambiente do modo como o testemunhamos na
manutenção e evolução dos organismos vivos. Além disso, convém
frisar que uma descrição exaustiva, no sentido da física quântica, de
todos os átomos continuamente trocados no organismo é não apenas
inviável, como exigiria também, obviamente, condições observacionais
incompatíveis com a manifestação da vida.
Entretanto, a lição referente ao papel desempenhado pelos
instrumentos de observação na definição dos conceitos físicos
elementares fornece uma pista para a aplicação lógica de noções como
finalismo, desconhecidas da física, mas que se prestam muito
prontamente à descrição dos fenômenos orgânicos. De fato, nesse
cenário, é evidente que as atitudes denominadas mecanicistas e
finalistas não apresentam visões contraditórias sobre os problemas
biológicos, mas enfatizam, antes, o caráter mutuamente excludente de
condições observacionais igualmente indispensáveis em nossa busca de
uma descrição cada vez mais rica da vida. Aqui não há possibilidade, é
claro, de uma explicação semelhante à que a física clássica dá sobre o
funcionamento de construções mecânicas simples ou de complexas
calculadoras eletrônicas. Estamos interessados na investigação mais
ampla dos pressupostos e do alcance de nossos meios de expressão
conceituais, que se tornou tão característica do desenvolvimento mais
recente da física.
À parte todas as diferenças no tocante às condições observacionais,
a comunicação das experiências biológicas contém tão pouca
referência ao observador subjetivo quanto a descrição dos dados feita
pela física. Assim, não foi necessário, até hoje, examinar mais de perto
as condições de observação características da explicação dos
fenômenos psicológicos, na qual não podemos contar com o quadro
conceitual desenvolvido para nossa orientação na natureza inanimada.
Entretanto, o fato de que a experiência consciente pode ser lembrada,
e de que, portanto, deve-se supor que esteja ligada a alterações
permanentes na constituição do organismo, aponta para uma
comparação entre os experimentos psíquicos e as observações da
física. Com respeito às relações entre as experiências conscientes,
também encontramos traços que fazem lembrar as condições de
compreensão dos fenômenos atômicos. O rico vocabulário usado nas
comunicações dos estados de nossa mente refere-se, de fato, a um
modo tipicamente complementar de descrição, que corresponde a uma
mudança contínua do conteúdo em que a atenção é focalizada.
Comparadas à expansão do modo mecânico de descrição exigida
para dar conta da individualidade dos fenômenos atômicos, a
integridade do organismo e a unidade da personalidade confrontam-
nos, é claro, com uma nova generalização do quadro de utilização
racional de nossos meios de expressão. Nesse aspecto, convém
enfatizar que a distinção entre sujeito e objeto, necessária a uma
descrição inambígua, é preservada na maneira como, em toda
comunicação que contenha uma referência a nós mesmos,
introduzimos, por assim dizer, um novo sujeito que não figura como
parte do conteúdo da comunicação. Nem é preciso frisar que é
justamente essa liberdade de escolha da distinção sujeito–objeto que
dá margem à multiplicidade dos fenômenos conscientes e à riqueza da
vida humana.
A atitude perante os problemas gerais do conhecimento a que nos
levou o desenvolvimento da física neste século difere essencialmente
da abordagem desses problemas na época de Steno. Isso não significa,
entretanto, que tenhamos abandonado o caminho de enriquecimento
do conhecimento, trilhado por ele com tão grandes resultados, mas
sim que nos demos conta de que a luta pela beleza e pela harmonia,
que marcou o trabalho de Steno, exige uma revisão sistemática dos
pressupostos e do alcance de nossos meios de expressão.
5 É essa a forma dinamarquesa do nome de Nicolaus Steno (1638–1686), celebrizado por sua
descoberta do canal excretor da glândula parótida, por seu estabelecimento das bases da
estratigrafia, pela observação dos fósseis e por seu pioneirismo na tectônica. (n. da t.)
5ª reimpressão, agosto de 2012

Tipografia: Sabon, 10/13

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