Lavoisier e A Longa Revolução Na Química
Lavoisier e A Longa Revolução Na Química
Lavoisier e A Longa Revolução Na Química
Departamento de Filosofia
Introdução 11
- O Fundador 13
- Modos de transmissão 19
- Química universitária 22
- As tabelas de afinidade 34
- As revoluções científicas 42
- As anomalias de Bergman 46
- Lavoisier newtoniano 48
- A química de Lavoisier 56
- A teoria do flogisto 57
- A química pneumática 62
- O princípio Oxigênio 66
- A epistemologia de Lavoisier 74
Conclusão 88
Referências Bibliográficas 92
INTRODUÇÃO
O fundador
Guyton de Morveau, um dos principais colaboradores de Lavoisier, foi o primeiro a
considera-lo o “fundador” da química moderna. Em 1786, na Enciclopédia, Guyton
proclamou-lo como salvador da química, campeão da verdade, inimigo do dogmatismo.
Para Guyton, a obra lavoisieriana era definitiva e inalterável, de modo que a ordem que
Lavoisier pôs na química era a ordem da própria natureza, uma ordem imutável. Dizia :
O que nos resta da excursão ambiciosa que nos permitimos na região dos átomos?
Nada, ou pelo menos nada de necessário. O que nos resta é a convicção que a química
se perdeu aí, como sempre quando, abandonando a experiência, quis caminhar sem
guia através das trevas. Com a experiência à mão, encontrareis os equivalentes de
Wenzel, os equivalentes de Mitscherlich, mas procurareis em vão os átomos tal como
a vossa imaginação sonhou [...]. Se eu fosse o mestre, apagaria a palavra átomo da
ciência, persuadido que ele vai mais longe que a experiência; e na química nunca
devemos ir mais longe que a experiência (Dumas 1937, p. 178).
Porém, esta rejeição não era total, pois Dumas compartilhava o uso dos “pesos
atômicos”, conceito derivado da teoria atômica de Dalton. Contudo, Dumas tentava evitar
essa contradição sugerindo uma diferenciação epistêmica entre o “átomo dos físicos”, que
correspondia a um ideal de uma ciência dedutiva e mecanicista, e o “átomo dos químicos”,
que se inscrevia num programa de caracterização aritmética de cada substância.
Essa alternativa epistemológica de Dumas não foi aceita por Wurtz, que tentava
introduzir na França o atomismo empirista de Dalton, dizendo que o programa de Lavoisier
sugeria a procura pelo elementar empírico. Assim, Wurtz proclamava um herói nacional
mais para justificar suas concepções atomistas do que para combater os métodos e as teorias
dos estrangeiros agressores, aliás, métodos e teorias adotados por Wurtz.
Portanto, as narrativas históricas da química, e da ciência em geral, na primeira
metade do século XIX, estavam menos preocupadas com a veracidade da narração do que
com os interesses atuais a justificar, com os heróis nacionais a proclamar, e com uma pátria
a servir e defender.
Na segunda metade do século XIX, influenciada pela “grande história” positivista, a
historiografia científica também se voltou para o documento, para as fontes originais das
verdades atuais.
Assim, o positivista Berthelot resgatava o passado da química, segundo dizia, com a
intenção de corrigir as injustiças, os exageros, e os erros daqueles que, antes dele, haviam
tratado da obra de Lavoisier. Não era verdade, dizia Berthelot, que Lavoisier tinha sido o
primeiro a pronunciar o “rien ne se perd, rien ne se crée”, pois no século II, Lucrécio já
havia proclamado a constância da matéria. Também não era verdade que Lavoisier tivesse
sido o primeiro a utilizar a balança, pois são inúmeras as provas de que tal instrumento era
conhecido desde tempos antigos. Porém, afastados alguns exageros, era verdade que a
revolução lavoisieriana era tão grandiosa quanto a revolução francesa, e com esta, o período
que se seguiu a ela tornou-se muito diferente daquele que a precedera. Mas, ao contrário das
narrativas tradicionais, a de Berthelot fundamentava seus argumentos em documentos
exclusivamente científicos, mostrando que Lavoisier havia previsto sua revolução – registro
de 1772 – e concluído em 1789, com a publicação de seu Traité Élémentaire de Chimie.
Assim, em 1789, o mundo vira acontecer duas revoluções grandiosas: uma social e
outra científica. Para Berthelot, a revolução química e a revolução francesa eram dois
acontecimentos semelhantes, imprevistos, que transformaram profundamente tanto a
sociedade quanto a ciência química.
A história de Berthelot é menos triunfalista que as anteriores; porém, preserva a
mesma imagem de Lavoisier “fundador”, isto por dois motivos principais: primeiro porque
Berthelot, sendo francês, proclamava que o “fundador” de sua disciplina era um químico
nacional; segundo porque como historiador positivista, Berthelot necessitava de uma figura
heróica, uma figura que marcasse, na história da disciplina, um momento de separação entre
a época metafísica e a nossa época positiva.
Assim, no século XIX, os historiadores da ciência, românticos e positivistas, viam o
desenvolvimento da ciência como uma marcha quase mecânica do intelecto na descoberta
dos segredos da natureza, guiado por métodos sólidos, aplicados com habilidade. O
objetivo dessas histórias da ciência era clarificar e aprofundar a compreensão dos métodos
ou conceitos científicos contemporâneos, mediante a exibição de sua evolução. Deste
modo, cabia ao historiador escolher uma ciência estabelecida e descrever quando, onde e
como se originaram os elementos que, no seu tempo, constituíam o objeto material e o
método presumível dessa ciência. Os erros que a ciência contemporânea pusera de lado
eram considerados irrelevantes, exceto para servir de exemplo negativo de uma
metodologia equivocada. Além disso, essas narrativas também não se interessavam pelas
possíveis influências de fatores externos à ciência, exceto a religião, tida como um
obstáculo a ser vencido, e a tecnologia, considerada uma aliada nas demonstrações técnicas.
Porém, já no século XX, os historiadores aprenderam a ver sua matéria de estudo
com algo diferente de uma cronologia de resultados positivos, acumulados numa
especialidade técnica definida em retrospectiva. O surgimento, como disciplina acadêmica,
da história da filosofia contribuiu para uma mudança de orientação na abordagem da
história da ciência. Além disso, a descoberta da física medieval por Pierre Duhem desafiava
os historiadores da ciência a descrever as teorias antigas em seus próprios termos. Este
desafio modelou, segundo Kuhn, a moderna história da ciência, e inspirou os escritos de
Koyré, Maier, Partington, dentre tantos outros. Todavia, em contrapartida a esta abordagem
internalista da ciência, a historiografia da ciência do século XX também guiou esforços
numa outra direção, externalista, notadamente sob influência da historiografia marxista, que
tem procurado descrever o desenvolvimento da ciência num contexto cultural mais amplo,
no qual fatores institucionais, econômicos, estratégicos condicionam as novas descobertas
(Kuhn 1989a, p. 145).
Contudo, não obstante as profundas diferenças entre a moderna historiografia e a do
século XIX, a leitura epistemológica de Kuhn sobre a revolução lavoisieriana preservou a
imagem de Lavoisier “fundador”, que, como vimos acima, foi construída durante o século
XIX.
Todavia, irei sugerir uma alternativa epistemológica à contradição kuhniana, e se
reforço essa contradição é menos para tentar mostrar possíveis influências historiográficas
no pensamento de Kuhn, e mais para destacar a permanência da imagem de “fundador”
mantida por Kuhn. No entanto, esta imagem limita os interesses da historiografia química,
pois concentra o surgimento de toda uma ciência a um “ato criador”. Assim, a seguir,
proporei duas alternativas que procuram substituir o momento inicial da ciência química
para uma época anterior a Lavoisier, o que recuará a revolução química para os tempos da
Revolução Científica.
Modos de transmissão
A imprensa de Gutemberg possibilitou uma divulgação de idéias e conhecimentos
que nenhum momento anterior viu ocorrer. Após a edição das primeiras Bíblias, em 1456, a
publicação de outras obras fez crescer um próspero mercado livreiro na Europa Ocidental,
envolvendo o trabalho de autores, tradutores, desenhistas, e fabricantes de papel e tinta, que
viram florescer na cultura uma nova atividade econômica. O comércio de livros e materiais
para prensa tiveram um rápido crescimento no final do século XV. Em 1480, cerca de 100
cidades européias dispunham de prensas tipográficas; em 1500, apenas 20 anos depois, o
número de cidades com prensas saltou para 286, e estima-se que naquele ano foram
impressas 35.000 edições de 10 a 15.000 textos diferentes e que pelo menos 20 milhões de
exemplares já estavam em circulação. Esse próspero mercado continuou a crescer, e no
decorrer do século XVII, havia em circulação cerca 200 milhões de exemplares, abrangendo
textos erudito e populares (Rossi 2001, pp. 87-114). Assim, a difusão das novas idéias e o
avanço do saber implicava um forte investimento de capitais que geravam lucros e riscos
para os empresários que apostavam na alfabetização.
Contudo, o que nos interessa aqui não são os aspectos econômicos envolvidos no
desenvolvimento da imprensa, mas o fato de que o gerenciamento desse mercado livreiro
exigia do editor uma minuciosa avaliação da dimensão do público comprador de cada livro.
Quantos compradores haveria para uma edição de Galeno, ou dos Elementos de Euclides,
ou de um livro de viagem, ou de um herbário, ou ainda, de um manual de astronomia?
Nessa avaliação, o editor selecionava um determinado público leitor, o que possibilitava
estimar a tiragem de uma determinada edição. Mais precisamente, nos interessa a seleção
feita pelos editores, pois o ato de imprimir um livro implicava na existência de um leitor, ou
melhor, de uma comunidade de pessoas que compartilhavam leituras comuns.
Porém, não obstante todos os tipos de livros terem sido publicados, nem todos
tinham o mesmo estatuto e a mesma forma de transmissão. Esses livros atingiam públicos
específicos, e foi esse mesmo público que começou a estabelecer critérios de aceitação de
uma nova obra, de uma nova receita, ou de um novo modelo matemático. Contudo, cabe
dizer que esse público era heterogêneo, abrangendo desde os doutores da Universidade até
o metalúrgico das minas. Assim, a diferenciação desses públicos se dava justamente no
estatuto do saber transmitido. A obra alquímica será publicada, e com grande sucesso
comercial; porém, o leitor era avisado que não entenderia os conhecimentos essenciais ali
contidos caso não soubesse ler nas entrelinhas, decodificando segredos destinados somente
aos iniciados. Não bastava a leitura de um texto alquímico; para se tornar um verdadeiro
alquimista, o aprendiz deveria acompanhar um mestre experiente que, com o passar dos
anos, lhe transmitiria todo o seu conhecimento. Assim, a comunicação direta entre o mestre
e o discípulo era um instrumento pedagógico privilegiado. Dizia Agripa: “Não sei se
alguém sem mestre confiável e experiente possa compreender o sentido só pela leitura dos
livros. Tais coisas não são confiadas às letras, mas são infundidas de espírito para espírito
mediante palavras sagradas” (Agripa 1550, citado por Rossi 2001, p. 53).
Os próprios autores selecionavam seu público leitor, ressaltando os requisitos para
se compreender integralmente aquilo que desejavam transmitir. Dizia Bauer:
Contudo, a metodologia do segredo dos alquimistas foi posta de lado por pessoas
voltadas para questões que envolviam a produção de minérios, a destilação de essências ou
outros assuntos de natureza prática. É certo que alguns textos sobre esses assuntos já
existiam na época dos manuscritos, porém, agora, esses textos podiam ser confrontados
com outros mais recentes, e seu ensinamento questionado publicamente. Além disso, o
autor desses manuais se via obrigado a identificar-se como tal, acabando com a época em
que escritores de diferentes períodos assinavam o mesmo nome, colocando suas
contribuições individuais à disposição de uma longa tradição, cujas origens se confundiam
com as próprias origens da civilização.
Assim, homens interessados em problemas relativos às maquinas, à tecelagem, à
agricultura e à navegação fizeram surgir uma nova literatura voltada para questões
envolvidas numa determinada técnica. Nessa literatura, se destacam as obras de da Vinci,
de Biringuccio, de Palissy e de Agricola. Essas obras tiveram grande influência nos
trabalhos artesanais e, mais tarde, os conceitos nelas contidos terão lugar na metodologia
baconiana, constituindo um conjunto de ciências que apresentaram um desenvolvimento
paralelo ao das ciências clássicas.
Então, o surgimento de uma comunidade de praticantes das artes químicas pode
servir-nos para demarcar um dos “momentos fundadores” da ciência química, isto porque
foi entre essas pessoas que se desencadearam os debates que irão suscitar a própria natureza
da ciência química. Ou seja, a diferença entre aqueles que se dizem respectivamente
químicos e alquimistas remete para a questão do estatuto do saber que constroem, bem
como para o seu modo de transmissão. Assim, o papel da imprensa foi crucial no advento
da crise na tradição alquímica, não porque a condenou ao esquecimento, mas porque
estabeleceu uma nova área de interesse. Deste modo:
Quanto mais vasto era o público que lia a língua vulgar, mais se podia avaliar as
potenciais competências científicas e mais os artesãos eram encorajados a revelar os
segredos das suas profissões imprimindo tratados e atraindo clientelas para suas lojas.
Permutas novas e frutuosas entre editores e leitores foram criadas igualmente com a
penetração social do alfabetismo. Assim que os autores de Atlas e de herbários
começaram a convidar os leitores a enviar-lhes comentários sobre o traçado das cotas,
ou sobre as ervas e os grãos secos, criou-se uma forma de coleta de dados, à qual cada
um podia dar a sua contribuição (Eisenstein 1979, citado por Bensaude-Vincent
1996a, p. 36).
Química universitária
Na Idade Média Cristã, é difícil estabelecer uma diferença clara entre o que seria uma
“prática química”, ou seja, um conjunto de operação destinada à resolução de problemas
práticos, daquelas “práticas espirituais”, destinadas ao aperfeiçoamento do espírito. As
práticas químicas estavam relacionadas com a mineração, com a destilação de essências
aromáticas, com o estudo da composição das águas minerais, com testes da qualidade do
ouro, tanto in natura como aquele fabricado por alquimistas, e mais, uma grande
quantidade de questões que envolviam a manipulação de matérias, bem como das
transformações destes materiais em outros. Porém, fora esta dimensão prática, as
transformações químicas também eram interpretadas como um meio para conhecer as
intimas relações entre o Criador e o mundo em que vivemos. Assim, o saber alquímico
envolvia temas considerados sagrados, cujas origens se confundiam com o nascimento da
própria civilização. Esta dimensão espiritual relacionava as transformações da matéria com
o caminho espiritual que o sábio deveria trilhar, de modo que a transmutação de metal
comum em ouro não era apenas a operação concreta, mas representava também uma
elevação espiritual.
Contudo, não devemos cometer o erro, muito comum na historiografia científica, de
escrever a história em retrospectiva, como se o passado tivesse que servir de argumento
para as mudanças do futuro. Partindo deste princípio, não me parece válido procurar o
momento de separação entre os interesses dos “antigos alquimistas” e dos “futuros
químicos” em algum caso específico, ou na obra de algum autor isolado. Não há na história
da química o equivalente a uma “revolução galilaica”, de um autor que não somente teria
pretendido estabelecer a diferença entre o passado e o futuro, mas também teria conseguido,
até hoje, fazer reconhecer a justeza de suas pretensões (Bensaude-Vincent 1996a, p.35).
Assim, venho propondo a substituição daquilo que tenho chamado de “momento fundador”
da época de Lavoisier para tempos mais antigos, e sem a intenção de descrever as questões
epistêmicas dessas épocas de modo a guiá-los para a apoteose lavoisieriana. Por isso,
considero que devemos tomar o termo “momento fundador” de modo que englobe o maior
número de atividades e teorias que tratavam das transformações da matéria, bem como das
que tratavam da interpretação teórica destas transformações.
Acima considerei que o surgimento da imprensa poderia nos servir para fixar um dos
“momentos” que contribuíram para o estabelecimento de uma ciência química, pois, com o
aparecimento do livro, surgiu uma comunidade de pessoas interessadas em operações
químicas, de modo que a literatura produzida por estas pessoas diferia daquela produzida
por aqueles que tinham uma apreensão mística das transformações da matéria. O
estabelecimento de uma comunidade distinta das demais que, muito embora mantivesse um
vocabulário alegórico e voltado ao segredo, fez surgir um intenso debate entre os membros
dessa comunidade e os filósofos formados no ambiente universitário. Uma das questões
centrais desse debate dizia respeito à reivindicação da parte dos experimentadores químicos
de uma reforma no ensino universitário; uma reforma que englobasse o aprendizado das
operações químicas.
Durante a Renascença, o sistema universitário privilegiava o ensino do Direito, da
Medicina, da Retórica e, com menor intensidade, da Física e da Matemática. Esse sistema
não fornecia um ambiente propício para discussões de temas científicos; ao contrário, como
diz Westfall:
Em 1600, as universidades reuniam no próprio interior grupos de intelectuais de grande
cultura, levados não tanto a saudar o comparecimento da ciência moderna, quanto a
considerá-la uma ameaça quer para a verdadeira filosofia, quer para a religião revelada
(citado por Rossi 2001, p. 370).
Para Paracelso, todos os que melhoram a natureza, o padeiro que dá ao grão a perfeição do
pão, o metalúrgico que transforma os minérios em espadas, o vinhateiro que faz o vinho a
partir da uva, podem ser chamados alquimistas. Alquimista é Deus que criou o mundo,
alquimista é o corpo que digere e transforma a alimentação em corpo humano, o mais nobre
de todos os corpos. Alquimia é também a criação de um homúnculo num alambique de
licor espermático. Alquimista, mais do que qualquer outro, é o médico capaz de tratar os
corpos. O homem, no centro da criação, possui em si próprio o conhecimento das coisas,
mas este conhecimento só se poderá atualizar pela experiência, graças à tendência, à
atração, à afinidade, entre essas coisas e o seu análogo no homem, e esta atualização terá
lugar apenas por uma graça pessoalmente conferida por Deus ao investigador (Hannaway
1975, citado por Bensaude-Vincent 1996a, p.38).
Contudo, aqui, não nos interessa o sistema paracelsiano propriamente dito, mas
apenas uma de suas conseqüências mais importantes, a de desencadear o crescente interesse
dos médicos na produção de remédios capazes de interagir com o corpo, promovendo o
restabelecimento da saúde. Os médicos-químicos paracelsianos rejeitavam a antiga
medicina de Galeno, e propunham em seu lugar uma teoria de cura baseada nas
semelhanças e não nos contrastes, uma medicina que procurava restabelecer o equilíbrio
entre os elementos Sal, Enxofre e Mercúrio, que representam a correspondência da
harmonia entre o Pai, o Filho e Espírito Santo. Porém, os sucessores desses primeiros
médicos-químicos irão rejeitar as implicações místico-religiosas da química paracelsiana,
interessando-se apenas pelos benefícios farmacêuticos da química. Foram estes benefícios
que levaram à criação de cadeiras de ensino de química nas faculdades de medicina. A
primeira cadeira de química numa universidade européia foi criada em Marburg, na
Alemanha, onde em 1609, Johann Hartmann foi nomeado professor de Chymiatria. No
decorrer do século XVII, houve uma ampla aceitação da química nas faculdades de
medicina espalhadas pela Europa, de modo que a química se tornara uma ciência ensinada
na universidade, um saber constituído, é certo que ligado à medicina, mas deixara de ser
apenas um saber artesanal.
No século XVII, Jean Baptist van Helmont (1577-1644) reformulou o paracelsismo,
dando ênfase à quantificação, às técnicas de observação e, acima de tudo, às explicações
químicas dos processos fisiológicos, fazendo com que a química paracelsiana criasse raízes
no ambiente universitário.
Essa assimilação do ensino da química, via as escolas de medicina, constitui a primeira fase
um outro possível “momento” de fundação da ciência química, pois, segundo Debus, os
trabalhos de Paracelso e seus seguidores, na química ou na medicina, foram
contemporâneos aos de Copérnico e Vesálio e, como esses, promoveram mudanças
fundamentais. É difícil, diz Debus, sustentar que os progressos devidos a Paracelso não
tenham sido verdadeiramente revolucionários em sua natureza e espírito. O resultado foi
uma medicina química que se estabeleceu nas faculdades médicas de toda a Europa no
curso do século XVII (Debus 1991, pp. 35-43).
A segunda fase resultou do processo que tornou a química uma ciência independente da
medicina. Essa separação se deu por iniciativa de médicos que consideravam que van
Helmont e os paracelsianos haviam exagerado na relação entre a química e a medicina.
Todavia, a reação dos médicos contra as explicações iatroquímicas dos processos vitais se
deu através de duas teorias concorrentes.
Hermann Boerhaave (1668-1738) compreendia a medicina como uma extensão da ciência
mecânica, considerando que a física era a base da medicina, explicando um corpo em
termos de pilares, escoras, vigas, alavancas, polias, ou seja, ele argumentava que os
processos vitais deveriam ser examinados à luz da nova física matemática. Boerhaave
reconhecia o valor da química, desde que ela fosse confinada aos resultados experimentais e
não fosse usada como um sistema abrangente da natureza e do homem. Para ele, a
verdadeira ciência geral da matéria orgânica e inorgânica era a física, da qual todas as
ciências são ancilares (Debus 1991, p.40).
O vitalismo de Stahl reagiu de forma mais incisiva à influência da química na medicina.
Stahl fazia uma nítida distinção entre matéria viva e matéria não-viva, considerando que era
a anima que impedia a degeneração dos corpos, de modo que, quando a vida terminava, a
decomposição se iniciava. Assim, Stahl considerava que a matéria não-viva podia ser
estudada pela ciência mecanicista, mas esse não seria o caso da matéria viva. A anima era o
que dirigia os processos vitais, e estes nada deviam às especulações químicas e físicas. Esse
vitalismo stahliano estendeu suas influências até o final do século XVIII. Nós o
encontramos, por exemplo, na teoria fisiologia defendida Xavier Bichat (1771-1802), na
qual este admite existir uma força vital que permitia explicar os processos vitais da mesma
forma como a força gravitacional explicava os processos físicos. Esta separação entre os
fenômenos que seriam próprios da vida e os que ocorriam no mundo inanimado somente foi
superada com a nova fisiologia criada por Claude Bernard (1813-1878), na qual se
estabelecia a especificidade dos estudos da vida sem, contudo, se recorrer a uma força vital
(Dutra 2001, pp. 73ss).
Além de desenvolver uma teoria médica, Stahl também propôs uma interpretação para os
fenômenos da química inorgânica, que na versão flogística foi hegemônica no século XVIII.
A química flogística de Stahl foi, na verdade, a primeira teoria química capaz de articular
uma variedade de fenômenos químicos, de modo que constituiu a segunda fase de um,
possível, segundo “momento” de ruptura.
Portanto, ao recuarmos o momento fundador da ciência química, nos deparamos com dois
outros possíveis momentos de fundação: o surgimento de uma comunidade de leitores; e a
assimilação acadêmica da química via escolas de medicina, que implicou no surgimento de
uma química independente pela recusa de teorias medicas em reconhecê-la como pertinente
à medicina.
Assim, esse alargamento das possíveis origens da química moderna confronta com as teses
de Herbert Butterfield, que considerou que a química passara por uma revolução tardia,
postergada, sendo conseqüência dos avanços das ciências físicas e dos aprimoramentos
técnicos. Esta posição se reflete nas palavras de Rossi:
Quando fazemos referência à revolução científica, não faz muito sentido colocarmos no
mesmo nível, em um discurso geral, a astronomia e a química do mesmo período. De fato,
no século XVI, a astronomia já possui uma estrutura altamente organizada, fazendo uso de
técnicas matemáticas refinadas, ao passo que a química não tem de modo algum uma
estrutura de ciência organizada, nem possui uma teoria das mutações e das reações e nem
tem um passado com uma tradição claramente definida. Tal como a geologia e como o
magnetismo, a química se torna uma ciência entre os séculos XVII e XVIII, sendo ela
própria – ao contrário da matemática, da mecânica e da astronomia – um produto da
revolução científica (Rossi 2001, p.271).
Contudo, seguindo Debus, considero mais apropriado entender a revolução química como
um processo que se estende por dois séculos e meio, do início do século XVI até o final do
século XVIII. Uma longa revolução que se iniciou com o estabelecimento de uma
comunidade de leitores, ganhou consistência epistêmica com o ensino da química nas
faculdades de medicina, e revelou ser a química uma ciência singular durante o século
XVIII, primeiro com Stahl, e depois com todos os químicos da segunda metade do século,
dos quais Lavoisier deu as contribuições mais decisivas.
CAPÍTULO 2
A QUÍMICA NEWTONIANA
Isaac Newton (1642-1727) concluiu uma revolução científica, iniciada por Galileu e
Copérnico, e fundou um novo paradigma científico que, pelos menos na física, permaneceu
hegemônico até o início do século XX. Contudo, aqui, não pretenderei descrever a obra
newtoniana, mas apenas destacar como essa obra teve implicações no desenvolvimento da
ciência química.
Em 1704, Newton publicou a sua Óptica que, ao contrário dos Principia, não tratava
da matemática dos movimentos planetários, mas do estudo dos fenômenos elétricos,
magnéticos, biológicos, geológicos, e das mutações químicas.
A Óptica, assim como os Principia, estava dividida em três partes. Na primeira
parte, Newton apresentou uma série de definições e de axiomas que davam forma aos
princípios gerais da óptica. A seguir, enunciou as proposições e os teoremas que se referiam
à óptica geométrica, e também: à doutrina da composição e dispersão da luz branca, à
aberração das lentes, ao arco-íris e à classificação das cores. Na segunda parte, Newton
traçou considerações sobre as cores, sobre os anéis de interferência, e sobre a interferência
que a luz sofria ao atravessar as lâminas. Na terceira parte, Newton descreveu uma série de
experimentos sobre a difração e sobre as franjas coloridas que se produzem na presença de
obstáculos miúdos e de lâminas cortantes (Rossi 2001, p. 399).
No entanto, Newton reservou os temas de caráter mais especulativo para o final da
Óptica, onde propôs uma série de questões ou problemas (queries) que careciam de
respostas. Newton não deu respostas conclusivas a essas questões, mas sugeriu soluções
provisórias que serviram para demarcar um campo de pesquisas.
O número de questões aumentava a cada edição da Óptica. Na edição de 1704 eram
16, na tradução latina de 1706 passam a 23, e na edição de 1717 foram para 31. Nas últimas
questões, Newton tratou de uma série muito ampla de assuntos, indo desde a existência do
vácuo, da composição atômica da matéria, das forças elétricas que mantinham os átomos
unidos entre si, da insuficiência das causas mecânicas para explicar o universo, das
mutações químicas, até considerações de caráter teológico. Contudo, em face de meu
objetivo, vou descrever apenas a questão que interessava mais diretamente à ciência
química, a questão 31 da edição de 1717.
Na questão 31, Newton se questionava sobre a natureza do princípio que regia as
atrações químicas, especulando que essas atrações ocorriam por intermédio de forças de
atração semelhantes à de gravidade. Dizia Newton:
Não têm as partículas dos corpos certos poderes, virtudes ou forças por meio dos
quais elas agem à distância não apenas sobre os raios de luz, refletindo-os e
inflectindo-os, mas também umas sobre as outras, produzindo grande parte dos
fenômenos da Natureza? Pois sabe-se que os corpos agem uns sobre os outros pelas
ações da gravidade, do magnetismo e da eletricidade; e esses exemplos mostram o
teor e o curso da natureza, e não tornam impossível que possa haver mais poderes
além desses. Porque a natureza é muito consoante e conforme a si mesma. Não
examino aqui o modo como essas atrações podem ser efetuadas. O que chamo de
atração pode-se dar por impulso ou por algum outro meio que desconheço. Uso esta
palavra aqui apenas para expressar qualquer força na qual os corpos tendem um para o
outro, seja qual for a causa (Newton 1996, p. 274).
Dizer que cada espécie de coisa é dotada de uma qualidade oculta particular, pela qual
age e produz efeitos sensíveis, é nada dizer. Mas deduzir dos fenômenos da natureza
dois ou três princípios gerais de movimentos, e em seguida observar como as
propriedades de todos os corpos e os fenômenos emanam destes princípios
constatados, será dar um grande passo na ciência, ainda que as causas destes
princípios permaneçam ocultas (Newton 1996, p. 281).
As Tabelas de Afinidade
Em 1718, na França, Étienne Geoffroy (1672-1731), professor do Collège de
France, apresentou sua Tabela das Diferentes Relações Observadas entre Diferentes
Substâncias, que constituía uma interpretação empírica da questão 31.
Nessa tabela, Geoffroy interpretou um conjunto de reações químicas, que hoje
denominamos de deslocamento, ou melhor, de reações de simples e de dupla troca (A + BC
→ AC + B, e, AB + CD → AD + CD, respectivamente).
Na tabela de Geoffroy, encontram-se 16 substâncias que encabeçam 16 colunas.
Em cada coluna, a afinidade para com a substância na cabeça da coluna decresce de cima
para baixo, de modo que “quando duas substâncias com alguma tendência a se combinarem
estão reunidas e encontram uma terceira com afinidade maior com alguma das primeiras,
ela se combina com alguma destas, deixando livre a outra” (Maar 1999, p. 439).
Traduzindo a primeira coluna para uma linguagem moderna, podemos entender melhor o
assunto do qual a tabela tratava. A primeira coluna se refere às reações ácido-base, na qual
se acompanha a ordem decrescente de reatividade dos ácidos frente aos álcalis, aos óxidos
metálicos, e aos metais. Assim, um ácido reagiria preferencialmente com álcalis fortes
(bases fortes, NaOH, KOH, ...), seguido dos álcalis fracos (NH4OH, ...), dos óxidos
metálicos e dos metais.
Os ganhos empíricos trazidos pela tabela de Geoffroy foram relevantes. Ela
permitiu, por exemplo, agrupar uma série de reações químicas em um quadro econômico,
oferecendo aos químicos um importante instrumento pedagógico.
No entanto, essa incorporação empírica das forças newtonianas colocou aos
químicos um problema relativo à própria natureza de seu trabalho. Este problema estava
ligado a uma questão ontológica, ou seja, sobre o conjunto das coisas que se admitiam
serem próprias das ciências químicas.
Numa linguagem epistemológica atual, devida a Quine, poderíamos dizer que a
diferença entre os químicos tradicionais e os químicos newtonianos estava no conjunto de
entidades aceitas por cada um destes grupos. Em ambos os grupos havia produção de
conhecimento, uma vez que o valor de verdade de cada um se remetia às próprias entidades
de sua ontologia, contudo, esse conhecimento não se remetia a entidades comuns. O
caminho indicado pelos newtonianos remetia os interesses da ciência química ao universo
das relações que o corpo químico estabelecia com sua vizinhança. Portanto, não fazia
sentido para um químico newtoniano descrever um corpo químico isoladamente, assim
como não fazia sentido para um astrônomo descrever um astro isento de suas relações com
os demais corpos celestes. Seguindo esse caminho, os químicos seriam levados a abandonar
a noção tradicional de corpo químico, pois, na medida em que se assumia que as reações
químicas podiam ser compreendidas a partir de forças newtonianas, os corpos em si
mesmos se tornavam inertes como os planetas (Quine 1989, pp. 223-235)
Essa idéia se opunha a uma tradição química que vinha desde da antiguidade, uma
tradição que remetia seus juízos a qualidades que singularizavam as substâncias químicas.
A substância química, nessa tradição, era o sujeito cuja reação exprimia apenas a
qualificação. Na química newtoniana, ao contrário, o corpo químico não era mais um
sujeito senão por aproximação de linguagem. O único verdadeiro sujeito era o conjunto dos
corpos em presença e com interações recíprocas. Assim, para os newtonianos, não era
possível atribuir a força do ácido nítrico a ele mesmo, depois de o ter ilustrado com
algumas reações típicas, e sim defini-la a partir de um conjunto de reações possíveis
(Stengers 1996, p. 129).
Ou seja, enquanto na química tradicional se elegia um conjunto de reações para
caracterizar um corpo químico, na química newtoniana, todas as reações interessam na
descrição desse corpo. Esta diferença fez com que os químicos newtonianos investigassem
reações que não eram “interessantes” para um químico tradicional, ou melhor, reações que
muitas vezes não produziam o composto esperado, ou ocorriam de modo oposto ao
previsto. As reações “interessantes”, na verdade, consistiam nas reações que hoje
denominamos completas, ou seja, aquelas na qual o produto deixa o meio reacional, ou na
forma de precipitado, ou por sua volatilidade. Para os newtonianos, contudo, as reações
“interessantes” não eram suficientes para descrever as afinidades, que, no vocabulário
newtoniano, passaram a ser chamadas de atrações eletivas.
Contudo, essa noção de corpo químico foi contestada por aqueles que defendiam
uma singularidade para esses corpos. Os principais opositores à definição newtoniana de
química foram os stahlianos, que procuravam descrever as reações químicas a partir de
propriedades que seriam singulares a cada corpo químico.
No entanto, essa divergência epistêmica não impediu que os químicos stahlianos
utilizassem a tabela de Geoffroy, tendo havido inclusive uma harmonização entre essas
duas correntes, oferecida pelo stahliano Pierre Joseph Macquer, que, em seu livro
Elementos de Química (1775), apresentou uma exposição sistemática da doutrina das
afinidades. Macquer sublinhou o caráter empírico das tabelas, e que os resultados obtidos
deveriam ser aceitos independentemente da teoria que sistematizava as práticas
experimentais. Assim, Macquer aceitava a ordenação dos compostos químicos de acordo
com sua reatividade, mas não as conseqüências derivadas de uma interpretação estritamente
newtoniana. Para ele, as transformações químicas deveriam ser explicadas recorrendo a
elementos que remetessem a propriedades qualitativas distintas.
Mas, não obstante os químicos não-newtonianos adotarem tabelas semelhantes à de
Geoffroy, a construção dessas tabelas de afinidade ficou a cargo dos químicos newtonianos.
E, para os newtonianos, além de ordenar as substâncias de acordo com sua afinidade
relativa, interessava descrever as reações químicas com a mesma precisão que se descrevia
os movimentos planetários.
Foram várias as tentativas de quantificar adequadamente as afinidades. Em 1776,
por exemplo, Guyton de Morveau, seguindo o caminho newtoniano, mediu a força
mecânica necessária para separar placas de diferentes metais do banho de mercúrio no qual
as mesmas flutuavam. Assim, Guyton tentava quantificar a afinidade, atribuindo à relação
entre dois corpos, uma medida independente das operações de substituição (Bensaude-
Vincent 1996a, p. 102).
Essa quantificação era relativa, e como tal, podia ser expressa por uma seqüência de
números relativos, de modo que, quanto maior o número, maior seria a atração entre as
espécies envolvidas. Para mostrar isso, é muito ilustrativo o exemplo extraído da obra do
químico brasileiro Vicente de Seabra Telles (1764-1804). Aliás, cabe dizer que Seabra
Telles foi o primeiro químico estrangeiro a utilizar a nova química de Lavoisier, como
demonstra seu livro Elementos de Química, publicado em Coimbra no ano de 1788,
portanto, um ano antes da publicação do Tratado de Lavoisier. Pena que a obra desse
grande químico tenha permanecido desconhecida do público, tendo sido resgatada
recentemente graças ao trabalho do prof. Filgueiras (Filgueiras 1985). Assim, a nova
química esteve à disposição dos químicos de língua portuguesa ao mesmo tempo em que
esteve aos da língua de Lavoisier. Esta singularidade talvez ofereça um tema interessante
para aqueles que procuram analisar a ciência segundo critérios sociológicos, pois permitiria
discorrer sobre as possíveis influências que o meio cultural, político, econômico, dos
respectivos países, exerceu sobre o desenvolvimento de uma disciplina científica.
Porém, aqui, só cabe a sugestão de uma possível área de investigação, pois, de
Seabra Telles, nos serviremos apenas do método de previsão de ocorrência de reações
regidas por afinidades newtonianas. Seabra Telles mencionou tabelas de afinidades entre 8
ácidos e 7 bases, atribuindo valores relativos às afinidades entre estes, permitindo prever a
ocorrência, ou não, de reações.
A + B → AB Afinidade = 7
A + C → AC Afinidade = 6
C + D → CD Afinidade = 3
B + D → BD Afinidade = 5
Assim, como a afinidade que une A e B para formar AB é 7, e a afinidade que une A e C
para formar AC é 6, temos que:
AB + C → não ocorre,
pois o produto AC que seria formado envolveria uma afinidade relativa 6, menor, portanto,
do que a afinidade entre A e B, que é 7.
Reproduzindo um exemplo citado nos Elementos de Química, convertidos para a
linguagem moderna, temos:
As revoluções científicas
Durante a primeira metade do séc. XX, foram levadas a termo diversas
investigações acerca das características filosóficas que o conhecimento científico apresenta.
Não obstante as divergências filosóficas que tais investigações suscitaram, pode-se dizer
que compartilhavam a idéia, amplamente aceita, de que o desenvolvimento das ciências
empíricas ocorria por meio de um acumulo linear do saber.
Contudo, em 1962, o físico-historiador Thomas S. Kuhn publicou o seu A Estrutura
das Revoluções Científicas, um livro que apresentava um enfoque alternativo na
interpretação do desenvolvimento do conhecimento científico.
Segundo Kuhn, era inaceitável a idéia de que o avanço do conhecimento científico
ocorria através de um processo de acúmulo gradual e linear de novas descobertas. Segundo
ele, era fruto de uma profunda incompreensão histórica o fato de considerarmos, por
exemplo, que a física de Newton era melhor que a de Aristóteles, pois resolvia problemas
pendentes na física dos aristotélicos, ampliando, com isso, nosso conhecimento. Kuhn, ao
contrário, defendia que a característica essencial do conhecimento científico, e aquilo que o
diferenciava de outras formas de conhecimento, era apresentar um desenvolvimento repleto
de descontinuidades e de saltos revolucionários.
Em sua argumentação, Kuhn distinguiu duas formas de fazer ciência: a ciência
normal e a ciência extraordinária. Segundo ele, a maior parte da investigação científica
praticada pelos pesquisadores resultava de trabalhos realizados durante períodos de ciência
normal. Então, era a ciência normal que produzia os blocos que a investigação científica
continuamente adiciona ao crescente edifício do conhecimento científico, num processo
cumulativo semelhante ao da visão tradicional.
Todavia, a existência de períodos de ciência normal somente se tornava possível na
medida em que um grupo de cientistas pesquisasse sob a orientação de um paradigma.
O surgimento de um paradigma hegemônico ocorria, segundo Kuhn, após um
período no qual diversos candidatos buscavam maneiras alternativas de selecionar e
solucionar problemas. Nestes períodos, chamados por Kuhn de pré-paradigmáticos,
conviviam diversas escolas competidoras, sem que nenhuma delas tivesse a hegemonia do
campo de pesquisas considerado. Porém, quando uma dessas escolas triunfava sobre as
outras, e conseguia a adesão geral dos pesquisadores daquela área de estudos, sua maneira
de delimitar e resolver um problema era assumida como exemplar, ou como modelo de
investigação naquele campo, ou seja, como paradigma para quem quisesse fazer ciência.
Assim, na visão de Kuhn, o surgimento de uma disciplina científica era
caracterizado como o momento de fundação desta disciplina, momento provocado devido à
emergência de um primeiro paradigma. Esta fundação disciplinar tanto podia ocorrer a
partir de um arcabouço herdado da tradição, como através de um início absoluto. Assim,
por exemplo, a astronomia copernicana e a física newtoniana, que suplantaram,
respectivamente, a astronomia ptolomáica e a física aristotélica, constituíam exemplos de
surgimento de um novo paradigma através de uma “re-fundação” disciplinar. Já o
surgimento da lógica aristotélica parece ter sido um caso de surgimento ex nihilo. Porém,
em ambas situações, seus protagonistas principais foram considerados fundadores de
disciplinas científicas.
Contudo, seja por um início sem precedentes, seja por um novo começo, o
estabelecimento de um novo período de ciência normal envolve bem mais do que a
resolução de um problema particular. Segundo Kuhn, o novo paradigma deve resolver não
apenas o problema que o possibilitou existir, mas, sobretudo, deve apresentar uma série de
outros problemas ainda não resolvidos, de modo a garantir um campo de investigação
promissor para futuros pesquisadores. Por exemplo, as pesquisas que procuram a
determinação daqueles fatos que são particularmente reveladores da natureza das coisas que
o paradigma julga existir, ou aquelas que buscam estabelecer novos fatos a partir das
predições feitas pela teoria, ou ainda, aquelas voltadas para a própria articulação da teoria,
visando determinar constantes físicas, ou leis quantitativas, constituem realizações das
promessas de sucesso que um paradigma contém (Kuhn 1975, pp. 125-144).
Todavia, a pesquisa normal, que é rígida e não admite novidades, produz novidades
que podem pôr em risco a existência do próprio paradigma. Segundo Kuhn, a principal
tarefa do pesquisador normal consiste na resolução de quebra-cabeças, problemas
sugeridos pelo paradigma, ou seja, seu trabalho procura transformar em realidade as
promessas desse paradigma. Porém, muitas vezes, o pesquisador vê suas expectativas
frustradas, dando-se conta de que algo saiu errado. Essa frustração da expectativa induzida
pela pesquisa orientada por um paradigma Kuhn denominou anomalia. Assim, uma
anomalia seria o resultado da própria pesquisa normal e das investigações orientadas pelo
paradigma. Porém, com o tempo, essas anomalias podem ser reforçadas e, dependendo da
importância dada pelos pesquisadores ao problema em questão, podem levar a ciência
normal a um período de crise. Essa crise que, segundo Stengmuller, designa apenas um
estado psíquico associado ao grupo de pesquisadores, pode ter desfechos diferentes. Pode
ocorrer que, depois de algumas tentativas, o problema seja resolvido no interior do próprio
paradigma, ou, se não envolver uma questão central, pode ser deixado de lado para uma
futura resolução. No entanto, também pode ocorrer que, devido à importância das questões
envolvidas na anomalia, uma solução alternativa, que não segue a orientação da ciência
normal, seja apresentada provocando uma revolução científica. Um novo paradigma surge,
portanto, não de modo gradual, como fruto do trabalho de uma equipe de peritos, mas, ao
contrário, explosivamente, na mente de uma pessoa que mergulhou fundo na crise
(Stegmuller 1977, p. 366).
Segundo Kuhn, o antigo e o novo paradigma se mostram incomensuráveis, ou seja,
não é possível traduzir completamente uns nos outros. Contudo, este fato fica mais ou
menos encoberto, pois o novo paradigma se vale muitas vezes das mesmas expressões
usadas pelo paradigma antigo. Porém, diz Kuhn, a mecânica newtoniana, por exemplo, não
pode ser vista como caso-limite da mecânica relativista, pois os conceitos de espaço, tempo,
massa, energia significam, nesta última, algo muito diverso do que significavam na
primeira. Por isso, a passagem de um paradigma antigo para um novo não se efetua
gradualmente, guiado pela lógica e pela metodologia, mas de forma repentina, semelhante
àquelas que os psicólogos chamam de mudança de Gestalt (Kuhn 1975, p. 244).
Entretanto, devido à variedade de sentidos em que o termo paradigma foi
empregado, Kuhn fez algumas reconsiderações. Nestas reconsiderações, Kuhn reduziu
todos os possíveis sentidos de paradigma a apenas dois: um global, abarcando os elementos
partilhados por um grupo de cientistas; outro, mais estrito, isolando um gênero
particularmente importante desse elemento, do qual faz parte. Ao sentido mais geral de
paradigma Kuhn denominou de matriz disciplinar – matriz, diz Kuhn, porque se compunha
de elementos ordenados de vários gêneros, cada um exigindo especificações ulteriores; e
disciplinar porque era possessão comum dos praticantes de uma disciplina profissional. Ao
sentido mais estrito Kuhn denominou de exemplar, que fazia parte da matriz disciplinar,
juntamente com as generalizações simbólicas e os modelos (Kuhn 1989c, p. 358).
Contudo, apesar das dificuldades que o emprego do termo paradigma trouxe à
epistemologia kuhniana, sua escolha serviu para que Kuhn relacionasse suas idéias com o
conceito de jogo, devido a Wittgenstein. Assim, segundo ele, como não existem
características necessárias e suficientes para denominar jogo uma atividade humana,
também não há condições que permitam diferenciar, de modo rígido, um físico aristotélico,
um físico newtoniano ou um físico quântico. Em ambos os casos só existem certos “traços
de família” (Kuhn 1975, p. 69).
Além disso, o emprego do termo paradigma evitava o emprego da palavra “teoria”,
utilizada mais como referência a teorias formalizadas à moda dos lógicos. Entretanto,
segundo Kuhn, as perspectivas dos lógicos eram antes um empecilho do que uma ajuda
quando se tratava de investigar as teorias sobre o prisma da história, muito embora a análise
lógica fosse parte integrante de um paradigma. Aliás, na visão de Kuhn, quando se fazia
filosofia da ciência apenas considerando análises lógicas e metodológicas, as referências
feitas à história da ciência remetiam mais àquelas narrativas históricas escritas por
cientistas-historiadores do século XIX que, não obstante a importância, estão mais para uma
caricatura do que para uma descrição detalhada da história de uma determinada disciplina.
Um paradigma, segundo Kuhn, era muito mais abrangente do que aquelas noções
que admitiam formulação em enunciados: a um paradigma correspondia, no reino dos
fenômenos, toda uma coleção de idéias intuitivas básicas – delimitando, em linhas amplas,
quais eram, para os pesquisadores, as perguntas que traduziam problemas relevantes e
importantes e os métodos de solução que podiam ser vistos como adequados. Mais do que
isso: o paradigma geral extravasava os limites do puramente teórico e se confundia com o
que entendemos verdadeiro ou como o que entendemos haver observado. Assim, não teria
sentido falar da ciência, mas de formas da ciência, uma vez que tivemos ao longo da
história diversas maneiras de atuação científica, tais como a Física de Aristóteles, a
Astronomia de Ptolomeu, a Química do flogisto, etc. Desse modo, cada uma dessas ciências
surgiu a partir de uma revolução, foi construída durante um período de ciência normal, e,
finalmente, substituídas por outras formas de se fazer ciência (Stegmuller 1977, p. 363).
Com essa maneira alternativa de compreensão do desenvolvimento do
conhecimento, as revoluções paradigmáticas de Kuhn, além de fomentarem intensos
debates filosóficos, também renovaram o interesse pela história epistemológica da ciência.
Porém, aqui, o modelo kuhniano interessa menos como um modelo rígido de análise, e mais
como inspiração para a realização de um trabalho histórico centrado em questões
epistêmicas.
As Anomalias de Bergman
No programa de Bergman, era necessário estudar todas as reações químicas
possíveis, pois só conheceríamos uma substância na medida que investigássemos suas
relações com outras substâncias vizinhas. Todavia, durante seu trabalho, Bergman verificou
que a maioria das reações não produzia um produto puro, ou até ocorriam de modo inverso
ao esperado.
As reações incompletas representaram para o programa de Bergman aquilo que
Kuhn chamou de anomalia, pois consistiram no reconhecimento de que, de alguma
maneira, a natureza violava as expectativas paradigmáticas que governavam a ciência
normal (Kuhn 1975, p. 78). As reações incompletas eram anomalias que perturbavam o
esquema geral, não sendo assimiladas por esse esquema. Bergman tentava assimilá-las,
ampliando a explicação acerca dos possíveis obstáculos externos, que impediam que a
reação formasse um único produto; porém, as anomalias estavam se tornando a regra.
Na França, Berthollet, também newtoniano, ao trabalhar num projeto que
objetivava aumentar a produção de pólvora para canhão, se deparou com um fenômeno que
considerou muito interessante. Berthollet, empenhado em defender a revolução,
transformou o procedimento artesanal de extração do salitre, que tinha por hábito lavar as
rochas nitrosas no próprio local de extração, num processo industrial controlado. Com isso,
Berthollet percebeu que, quanto maior fosse a quantidade de salitre dissolvida, menos
eficaz era a lavagem. Preferiu lavar várias vezes, empregando em cada lavagem uma água
nova, notando ainda que, a cada lavagem, a extração era menor. Então, Berthollet concluiu
que a tendência de um corpo a combinar-se com um outro decrescia proporcionalmente ao
grau de combinação já alcançado. Isto significa que a afinidade, em vez de caracterizar um
corpo na sua relação com um outro, tornou-se uma função do estado físico-químico do
meio, e, em particular, da concentração dos reagentes em presença na reação. A afinidade se
tornava, assim, totalmente newtoniana, não havendo mais a distinção entre afinidade física
e afinidade química.
Em 1800, acompanhando a expedição de Napoleão ao Egito, Berthollet se deparou
com um fenômeno que confirmava suas convicções sobre a afinidade: um “lago de sal”.
Neste lago, a soda (Carbonato de Sódio, Na2CO3) se depositava nas margens do lago,
resultado, segundo Berthollet, da reação entre o sal contido na água e o calcário (Carbonato
de Cálcio, CaCO3) do fundo do lago. Berthollet explicou o fenômeno, apelando para uma
dupla circunstância: a quantidade de sal e de calcário, e o fato de os dois produtos da reação
serem continuamente eliminados do meio reacional, sendo o cloreto de cálcio drenado
através do solo, e o carbonato de sódio precipitado nas margens do lago.
Todavia, essa reação ocorre no sentido oposto ao verificado no laboratório:
Isso levou Berthollet a uma inversão sistemática dos juízos que norteavam o
trabalho experimental do químico newtoniano. Se, para Bergman, o meio reacional
(temperatura, concentração) era uma fonte de interferência que permitia explicar as
anomalias, para Berthollet, todas as reações são incompletas, e, agora, era necessário
explicar as reações completas, através de fatores específicos, como a eliminação do
produto, por sua baixa solubilidade, ou por sua alta volatilidade (Stengers 1996, p. 140).
Para Berthollet, a direção de uma reação não era um absoluto, sendo determinada
pelas atrações existentes no meio reativo. Em sua Estática Química (1803), Berthollet
recusou a distinção entre afinidades de agregação e afinidades de combinação, afirmando
que: “Toda reação química entre duas substâncias [...] forma, ou tende a formar, entre elas,
uma união [...]. Chama-se combinação tanto o resultado desta união, como o processo
mesmo da dita união (citado por Lespieau. La Molécula Química, p. 25). Para ele, a força
newtoniana de atração não permitia distinguir entre as forças físicas (agregação) e as forças
químicas (composição).
Essa recusa em distinguir as afinidades químicas das afinidades mecânicas decorre
de sua rejeição da idéia das atrações eletivas, por serem fixas e por indicarem apenas um
sentido para a reação. Para Berthollet, uma reação não tinha uma “direção natural”; a
direção era determinada pelas condições do meio, ou seja, as atrações não eram eletivas,
mas relacionais.
Assim, a maneira como as reações incompletas se transformaram de uma anomalia,
para Bergman, numa regra, para Berthollet, constitui um bom exemplo daquilo que Kuhn
denominou de mudança paradigmática.
Finalizo esta seção dizendo que, de qualquer modo, a química newtoniana
representou uma das principais linhas de pesquisa na ciência química do séc. XVIII,
fazendo avançar a compreensão da estrutura química do mundo, fundamentada por um
quadro teórico singular.
Lavoisier newtoniano
No início deste capítulo, afirmei que o pensamento newtoniano chegou à
problemática da química tradicional através de questão 31 da Óptica. Afirmei também que
a incursão newtoniana pela ciência química poderia ser lida de duas maneiras: uma
reduzindo a química a um ramo da física, outra oferecendo à tradição uma metodologia
capaz de tornar o trabalho sobre as transformações materiais em uma ciência dedutiva,
como a astronomia.
Contudo, cabe discutir um pouco mais a origem dessas interpretações. Na verdade,
elas provêm do próprio Newton. Isto porque ele mesmo associou duas tradições de pesquisa
que abrangiam universos de interesses diferentes.
Nos Principia, Newton tratou da ciência do movimento, das leis matemáticas que
regiam o movimento dos astros, leis fundamentadas em princípios que, segundo ele, eram
inerentes aos próprios corpos, como a extensão, a impenetrabilidade, a inércia, o peso, etc.,
e na constante ação divina sobre a Natureza, ação sentida através da gravidade.
Os Principia deram origem a um campo de pesquisa que durante o séc. XVIII foi
chamado de física geral (physique générale). Eram estudos altamente matematizados, nos
quais Lagrange, Euler, d’Alembert, Laplace e outros procuravam provar a universalidade da
gravidade, a estabilidade do universo, e afastar a necessidade de admitir a ação do divino no
universo. A primeira leitura da incursão de Newton pela química foi própria dessa tradição
de pesquisa (Abrantes 1998, pp. 143-173).
Porém, Newton também se ocupou do estudo dos fenômenos que envolviam as
transformações materiais, fenômenos próprios de uma física especial (physique
particulière). Na Óptica, Newton estava interessado em estudar as propriedades da óptica,
da eletricidade, do magnetismo, das transformações químicas, etc. Nesse estudo, Newton
atribuiu as transformações que ocorriam no microcosmo a causas semelhantes àquelas
envolvidas nas transformações macroscópicas.
Isso fez com que muitos químicos procurassem fundamentar suas práticas
experimentais numa metodologia newtoniana, descrevendo reações que, tradicionalmente,
singularizavam uma substância, como simples relações entre corpos químicos, relações que
poderiam ser matematizadas, tornado-se passíveis de ser deduzidas a priori.
Assim, com os Principia e a Óptica, Newton tanto implantou sua metodologia às
“ciências clássicas”, quanto àquelas ciências de tradição baconiana, como a química. Os
Principia serviram de referência para os trabalhos voltados para o estudo da mecânica
celeste, da hidráulica, da teoria das vibrações, da forma dos astros, do fenômeno das marés,
etc. A Óptica, por sua vez, foi base para o desenvolvimento de uma tradição experimental
pouco matematizada, abrangendo os fenômenos ópticos, elétricos, magnéticos, e químicos.
À química, como visto acima, interessava a questão 31, que foi aceita enquanto
uma interpretação empírica de algumas reações particulares. Porém, houve resistência da
parte dos químicos tradicionais quanto à adoção das conseqüências epistemológicas da
metodologia newtoniana. Para os newtonianos, os corpos, em si mesmos, eram inertes,
desprovidos de qualquer qualidade singular, idéia totalmente rejeitada pelos químicos
comprometidos em defender uma singularidade para a sua ciência.
Uma tentativa de solucionar esse conflito foi defendida por Macquer, que aceitava a
ordenação de acordo com a reatividade, mas rejeitava a idéia de que os corpos fossem
inertes, atribuindo-lhes princípios singulares. Contudo, a melhor síntese entre os dois
programas foi oferecida por Lavoisier, que se propunha a adequar o empirismo baconiano a
uma metodologia inspirada em Newton. Notamos esta tentativa de harmonização no
Discurso Preliminar do Tratado, no qual Lavoisier considerou que o empirismo baconiano
deveria ser guiado por uma metodologia newtoniana, metodologia que aprendera em
Condillac. No entanto, apesar de reconhecer a metodologia newtoniana, Lavoisier admitia a
existência de princípios portadores de qualidade; princípios como o do oxigênio, do
calórico, do hidrogênio, serviam para garantir um território próprio ao trabalho dos
químicos.
No Tratado, Lavoisier fez convergir interesses antagônicos, oferecendo uma teoria
química com padrões metodológicos semelhantes ao das ciências clássicas, e preservando
uma identidade para a ciência química. Esse foi, sem dúvida, um dos motivos da ampla
aceitação de suas idéias. Não bastasse isso, Lavoisier se associou a Laplace, um acadêmico
que voltava seus estudos principalmente para os fenômenos da Física Geral, que estava,
porém, muito interessado em expandir a matemática da física celeste aos fenômenos da
física especial.
O interesse em quantificar o princípio do calórico uniu Lavoisier a Laplace numa
empreitada na qual compartilhavam o objetivo principal – medir o calor –; porém,
divergiam quanto à natureza desse fluido, tanto é que não discutiram a natureza do calor,
atendo-se à descrição do aparelho de medir o calor – o calorímetro – e à matematização dos
dados experimentais.
Na dissertação apresentada à Academia em 1783 (Dissertação sobre o Calor),
Lavoisier estava interessado em tornar mensurável o calórico, um dos princípios de sua
química, adotando uma concepção de calor derivada da tradição dos químicos, notadamente
de Black. Laplace, por sua vez, estava interessado em medir as forças envolvidas nas
transformações microscópicas, considerando que o calórico era o responsável pelas forças
repulsivas que atuavam nesse universo. Sua concepção de calor seguia a da física geral,
para a qual o calor era o resultado do movimento das partículas.
Esta parceria entre Lavoisier e Laplace rendeu ao primeiro uma clara demonstração
de que o princípio do calórico, embora de causa desconhecida, suplantava em clareza a
interpretação flogística do fogo. Para o segundo, representou o ponto de partida de seu
estudo sobre as forças intermoleculares e sobre as afinidades químicas, concebidas por ele,
como forças de atração. Aliás, Laplace compreendia as afinidades da mesma forma que
Berthollet, e se considerarmos que Berthollet foi um dos principais colaboradores de
Lavoisier, os ideais newtonianos de Lavoisier se tornam evidentes.
Apesar disso, Lavoisier não se referiu às afinidades no seu Tratado, por considerar
que os conhecimentos sobre esse tema requeriam novas experiências, apesar de considerar
ser esta a parte da química mais suscetível de torna-se uma ciência exata. Essa recusa de
Lavoisier em incluir um estudo sobre as afinidades químicas em seu Tratado indica seu
forte compromisso com a tradição baconiana, de não conjecturar sobre aquilo a cujo
respeito os fatos se calam. Ou seja, embora partilhasse dos ideais metodológicos
proclamados pelos newtonianos, Lavoisier não criou um programa newtoniano de pesquisa,
ao contrário de seus colaboradores mais próximos, os newtonianos Guyton de Morveau e
Berthollet.
Portanto, na química de Lavoisier, encontramos elementos epistemológicos de pelo
menos dois programas de pesquisa distintos: o da química tradicional e o newtoniano. Esses
programas revelam, mais uma vez, as profundas relações que Lavoisier mantinha com a
ciência do seu tempo. Contudo, essas relações, bem como suas implicações
epistemológicas, somente ganharam relevo na medida em que não restringimos os
interesses da química aos da química de Lavoisier, foi o que tentamos demonstrar aqui, e
tentaremos ampliar no próximo capítulo.
Para concluir, vale dizer que a parceria entre Lavoisier e Laplace também
influenciou o incipiente estudo dos processos fisiológicos. Segundo eles, o calor animal era
da mesma natureza do calor encontrado nos corpos inanimados, de modo que os fenômenos
fisiológicos deveriam ser explicados de acordo com os processos físico-químicos
conhecidos. Mais tarde, Claude Bernard, o fundador da fisiologia moderna, embora
rejeitando as conclusões a que chegaram Lavoisier e Laplace, irá reconhecer o valor dos
dois cientistas no nascimento da fisiologia experimental, principalmente por terem
concebido não haver diferença de natureza entre os fenômenos fisiológicos e os fenômenos
físico-químicos e pela convicção que os norteava de que, assim, a experimentação era
possível em fisiologia animal (Dutra 2001, p. 19).
CAPÍTULO 3
Desde de suas primeiras investigações, Lavoisier considerava que seu trabalho iria provocar
uma revolução na química. Esta convicção foi registrada por ele no seu caderno de
laboratório em fevereiro de 1773:
Reconheceremos sem dúvida com espanto que admitimos atualmente como princípios
de todos os compostos os quatro elementos, o fogo, o ar, a água e a terra, que
Aristóteles indicara como tais, muito tempo antes de termos os conhecimentos de
química necessários para constatar semelhante verdade. Com efeito, seja qual for a
maneira de decompor os corpos, nunca poderemos retirar senão estas substâncias: são
os últimos termos da análise química (Macquer, citado por Bensaude-Vincent 1996b,
p. 204).
Note-se que Macquer, um dos mais influentes químicos da época, não se referia aos
elementos de Aristóteles como princípios vagos, mas como corpos simples, acessíveis à
experiência.
A teoria do flogisto
O responsável pelo resgate dos “elementos” aristotélicos foi o médico-químico
alemão Ernst Stahl (1660-1734), que, se não considerava todos os quatro elementos,
preservava a idéia de elemento-princípio, portador de qualidade. Stahl foi o principal
personagem da química do início do séc. XVIII; sua teoria representa uma resposta
“química” à transformação material, oposta ao reducionismo mecanicista e longe das
metáforas alquímicas.
Stahl também delimitou o território no qual a química deveria atuar. Segundo ele, a
química deveria descrever as propriedades das misturas, que eram o resultado de relações
qualitativas mediadas por princípios compartilhados. Assim, por exemplo, se os ácidos
atacavam os metais era porque eles apresentavam uma analogia com estes, porque
partilham um princípio.
Para Stahl, havia dois princípios, água e terra, sendo que o princípio terra estava
dividido em três: a vitrificável (que conferia a solidez dos metais), a flogística (que conferia
a inflamabilidade), e a metálica (que conferia a maleabilidade e brilho). Aos outros, Stahl
atribuía um papel de instrumentos de reações, cabendo, portanto, ao fogo pôr a terra
flogística em movimento, e ao ar arrastar as partes mais voláteis.
A química stahliana foi a primeira sistematização que associava uma variedade de
fenômenos, tais como a calcinação, a combustão, e as reações que hoje chamamos de
oxidação e redução, oferecendo aos químicos um esquema teórico coerente. Para a
oxidação e a redução de um metal, por exemplo, o esquema stahliano seria:
Entretanto, a forma com que a obra de Stahl foi absorvida teve algumas alterações
importantes em relação à tese original. A variante mais importante da obra de Stahl foi
defendida pelo francês Guillaume François Rouelle (1703-1770), professor de futuros
agentes ativos do cenário político e científico na França do final do século XVIII. Lavoisier,
Diderot, Rousseau e Condillac são apenas alguns exemplos dessas personalidades.
Rouelle interpretou a obra de Stahl a partir de referências de outros autores; parece
não ter tido contato com o texto original de Stahl, Fundamenta Chymiae Dogmaticae et
Experimentalis, publicado em Nurembergue em 1723 (Bensaude-Vincent 1996a, p. 91).
Ao contrário de Stahl, Rouelle considerava existirem quatro elementos (Terra, Água, Ar e
Fogo) que, além de atuarem como princípios, agiam também como instrumentos de reação.
Esta foi uma modificação relevante em relação à obra original, pois, enquanto Stahl
considerava como elementos a terra e a água, sendo o ar e o fogo instrumentos de reação,
Rouelle considerava o ar e o fogo também como elementos fundamentais, e todos como
instrumentos de reação. Essa associação princípio/instrumento não era de todo evidente, o
que obrigava muitas vezes Rouelle a utilizar exemplos pouco convincentes. Todavia, uma
dessas associações tinha uma perfeita simetria entre princípio e instrumento: era aquela que
associava o instrumento fogo e o princípio flogisto, ou seja, o fogo-flogístico. O fogo (ou o
calor) era considerado o instrumento da reação, reconhecido amplamente pelos químicos
como Ignis mutat res, enquanto o flogisto era o elemento que entrava na constituição das
misturas, e que permitia explicar a combustão, bem como as transformações da cal em
metal e do metal em cal, aquilo que hoje denominamos oxirredução. A definição que o
químico sueco Torbern Bergman (1735-1784) deu, em 1780, para o flogisto é muito
ilustrativa no sentido de demonstrar que o flogisto não era um “artifício” mais obscuro que,
por exemplo, a gravidade, a eletricidade, ou, ainda, o magnetismo. Dizia Bergman:
Não passou despercebido por Rouelle o caso do aumento de peso que alguns
materiais têm quando são queimados. Como aponta Bensaude-Vincent, Rouelle explicava a
variação do peso do metal em relação ao metal calcinado fazendo uma diferenciação entre
peso absoluto, que permaneceria igual, pois o flogisto não tinha peso, e peso específico, que
era característico de cada mistura (Bensaude-Vincent 1996a, p. 93). Portanto, o que variava,
segundo Rouelle, era apenas o peso específico, e essa variação não era mais surpreendente
para um químico, que a variação do volume, da cor, ou de outras características observáveis
que ocorriam durante uma reação química.
Com a teoria flogística de Rouelle, se tornou possível integrar à química os “ares”
que estavam sendo descobertos, oferecendo uma argumentação teórica que era
compartilhada pelos mais eminentes representantes da comunidade dos químicos dos anos
de 1770.
A química de Rouelle constituiu um momento importante daquilo que podemos
chamar de revolução stahliana, e não era em absoluto uma química alegórica recheada de
princípios obscuros, como nos fez crer a historiografia tradicional. Mas, ao contrário, foi
um legítimo produto da época das luzes, de tal importância que elevou a obra stahliana ao
nível da dos autores modernos. Foi esta, pelo menos, a avaliação de Kant, que no prefácio
da Crítica da Razão Pura, igualou Stahl a Galileu e a Torricelli. Segundo Kant:
Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas, com uma aceleração que ele
próprio escolhera, quando Torricelli fez suportar pelo ar um peso, que
antecipadamente se sabia idêntico ao peso conhecido de uma outra coluna de água, ou
quando, mais recentemente, Stahl transformou metais em cal e este, por sua vez, em
metal, tirando-lhes ou restituindo-lhes algo foi uma iluminação para todos os físicos
(Kant 1997, “Prefácio da 2ª edição.” p. 18).
Foram respaldados por esta teoria, exemplar para Kant, que os químicos integraram
os ares à sua prateleira de reagentes, e descreveram ciclos de reações onde esses ares eram
consumidos em uma determinada etapa da reação, e obtidos novamente em uma outra
etapa.
A química pneumática
Em 1727, o reverendo Hales publicou seu Vegetable Staticks, no qual descrevia
métodos de obtenção de diversos “ares” a partir da destilação de materiais de origem
vegetal e animal, da putrefação e da fermentação. Sua preocupação primordial, no entanto,
era medir a quantidade desses “ares”. Hales também discorreu sobre a elasticidade dos
“ares”, afirmando ser esta inerente a eles, porém, não imutável, pois os “ares” podiam ser
fixados por diversas soluções, das quais podiam novamente ser liberados (Maar 1999, p.
591). Assim, os “ares” passaram a interessar aos químicos, e seu estudo tornou-se um tema
pertinente.
O primeiro a decretar ter isolado e caracterizado um “ar” diferente do ar comum foi
o médico-químico inglês Joseph Black (1728-1799). Black foi aluno de William Cullen
(1710-1790) e sob sua orientação apresentou, em 1755, uma dissertação sobre a Magnesia
alba, o nosso carbonato de magnésio (MgCO3). Cullen estava interessado em mostrar que a
química não podia ser reduzida às leis newtonianas, e propôs a Black estudar a razão por
que o produto da calcinação de terras calcárias (os nossos carbonatos de sódio, potássio, de
cálcio (Na2CO3, K2CO3, CaCO3 respectivamente), produzia cal viva cáustica (Na2O, K2O,
CaO, que em água produzem solução cáustica (básica), NaOH, KOH, Ca(OH)2,
respectivamente), e o da calcinação de Magnésia alba, a Magnésia calcinada (MgO), era
pouco solúvel não formando água cáustica (Mg(OH)2). Por que todos não tinham o mesmo
comportamento mecânico?
Black chegou à conclusão de que a causticidade não era o resultado da combinação
entre o material calcinado e o fogo calcinante, mas uma característica própria do material
calcinado, e que a Magnesia alba, por alguma razão, não possuía. Black explicou o caso
recorrendo à idéia de uma maior atração entre a cal e os materiais que esta dissolve ou
corrói. No entanto, o que nos interessa é o fato de que pela primeira vez foi reconhecido o
papel de um ar como um reagente químico. Black chamou este ar de “ar fixo”, o nosso
dióxido de carbono (CO2), pois estava fixado no calcário, sendo liberado na calcinação, e
podendo ser novamente fixado, regenerando o material de origem. Esta participação do ar
fixo na conversão da Magnesia alba, bem como de outras terras calcárias, em Magnesia
calcinada (cal viva no caso das outras terras calcárias), e da conversão da cal no produto de
origem, foi demonstrado por Black na forma de um ciclo de reações onde o produto final,
além de ser igual ao inicial, tinha o mesmo peso.
Além disso, Black determinou as propriedades desse “ar fixo”, demonstrando que
este era diferente do ar comum, que ao contrário deste, era letal à vida e não sustentava a
chama. Assim, os químicos se depararam com um novo reagente químico.
Isso gerou um grande interesse pelo estudo dos fluidos gasosos liberados por
diversas substâncias. Seriam todos iguais? Um enfático “não” veio dos experimentos de
Joseph Priestley (1733-1804), Henri Cavendish (1731-1810) e Carl Scheele (1742-1786).
Em 1766, Cavendish assegurou ter obtido um ar diferente do ar comum, e também
diferente do ar fixo. Chamou este novo ar de “inflamável”, o nosso hidrogênio (H2), pois
queimava com grande facilidade. Cavendish obtinha este ar tratando metais como ferro,
zinco, ou estanho com soluções diluídas de ácido vitriólico (H2SO4) ou de ácido clorídrico
(HCl), observando ainda que o ar era o mesmo qualquer que fosse o metal ou o ácido
utilizado (Maar 1999, p. 608):
Fe + H2SO4 → H2 + FeSO4.
O princípio oxigênio
Em seu A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn usa a teoria da combustão
como exemplo da existência de um período de crise que se generaliza dentro de uma
disciplina científica antes de ocorrer uma revolução. Assim, o colapso da teoria do flogisto
estaria ligado ao surgimento da química dos gases no início dos anos de 1770, e ao peso
extra que os materiais adquirem após serem queimados.
A teoria do oxigênio de Lavoisier ocupa um papel importante na argumentação de
Kuhn, pois representa o momento em que Kuhn considera ter ocorrido a ruptura com a
química tradicional, e o surgimento da química moderna. Para Kuhn, essa teoria foi a pedra
angular de uma reformulação tão ampla da química que veio a ser chamada de Revolução
Química (Kuhn 1975, p. 82).
Além disso, a teoria do oxigênio ofereceu à epistemologia kuhniana um exemplo da
diferença entre uma descoberta empírica e uma invenção teórica. Ao abordar a questão
“Quem descobriu o oxigênio?”, Kuhn salienta que uma descoberta é própria dos momentos
de ciência normal, quando os dados experimentais reforçam a teoria aceita e ampliam o
conhecimento científico, enquanto uma invenção teórica consiste em uma alternativa para
explicar descobertas que não são assimiladas pelo paradigma dominante. Deste modo,
Kuhn reconheceu Priestley como o descobridor do oxigênio, mas, como esse acreditava na
teoria do flogisto, Kuhn o qualificou como um pesquisador normal. Já Lavoisier, na visão
de Kuhn, inventou a teoria do oxigênio, que serviu de base para sua nova teoria química,
pois resolveu uma série de problemas pendentes, e com os quais ele já se preocupava desde
o início de seu interesse pela química. Ou seja, a descoberta de Priestley (ou Scheele)
corroborou uma teoria prévia de Lavoisier. Desse modo, Lavoisier teria revolucionado a
química, assim como Copérnico, Galileu e Newton tinham revolucionado a astronomia e a
física.
Não há dúvida de que esta forma de apresentar as mudanças ocorridas na química no
final do séc. XVIII é própria de uma historiografia personalista, que separa a química em
um antes e um depois de Lavoisier. É curioso que, embora Kuhn exalte o trabalho
historiográfico que busca compreender o contexto das descobertas científicas, ele próprio
toma como suas próprias fontes a interpretação de historiadores como, por exemplo,
Partington e Henri Guerlac, autores que preservam a dicotomia do antes e do depois.
Essa leitura que Kuhn nos oferece deriva de sua tentativa de descrever o
desenvolvimento da química, e da ciência em geral, da mesma forma que descreveu o
desenvolvimento da astronomia. Em seu A Revolução Copernicana, Kuhn narra a trajetória
das teorias astronômicas, desde as mais primitivas, até o refinado sistema newtoniano.
Nessa narrativa, somos levados a compartilhar os diálogos mais intrincados entre
partidários de paradigmas adversários, e a compreender que as conclusões tiradas de um
paradigma somente adquirem sentido se entendidas dentro do arcabouço teórico do qual
derivam.
Contudo, o padrão de desenvolvimento da química não foi analisado por Kuhn com
o mesmo pormenor que aquele encontrado em sua análise astronômica. E nem era
necessário, pois a historiografia tradicional já oferecia uma descrição que se encaixava em
sua epistemologia. Assim, Kuhn cai em uma pequena e interessante contradição. Ele, que
demonstra as limitações e os erros da história tradicional da ciência, adota, por sua vez, uma
história da química que, pelo menos na tradição francesa, remonta ao séc. XIX. Esqueceu
de analisar os debates que foram travados na ciência química segundo os próprios atores do
processo.
Não quero com isso supor o desconhecimento de Kuhn em relação a esses debates, o
que quero dizer é que esses debates não lhe interessaram muito, pois a confirmação de sua
tese já se dava na história oficial.
Contudo, interessa a uma história epistemologia da química compreender a teoria do
oxigênio em seu contexto, prestando atenção aos termos utilizados por Lavoisier na
apresentação dessa teoria, e ao seu papel explicativo acerca dos fenômenos da combustão e
da calcinação.
O fato determinante para a descoberta daquilo que hoje chamamos gás oxigênio foi
a possibilidade de se reduzir o mercurius precipitatus per se (HgO) sem a necessidade de
utilizar materiais ricos em flogisto, como o carvão, usando em seu lugar uma lente:
HgO → Hg + ½O2
Este fato gerou grande interesse entre os químicos do início dos anos de 1770. Em
fevereiro de 1774, na França, Pierre Bayen (1725-1798) relatou que havia observado o
desprendimento de um ar ao aquecer o mercurius precipitatus, e que o metal produzido
pesava menos que a cal inicial. Bayen associou esse ar liberado pelo mercurius precipitatus
ao ar fixo, considerando também que o mesmo ar era desprendido quando o mercurius
precipitatus era reduzido com o fornecimento de flogisto. A própria redução do mercurius
sem adição de flogisto gerou controvérsia entre os químicos. Para Baumé (1728-1804),
destacado químico francês, não era possível ocorrer uma redução sem adição de flogisto,
enquanto para Cadet, também da elite acadêmica francesa, essa redução era possível. Cadet
enviou suas conclusões à Academia em setembro de 1774, e esta se viu obrigada a nomear
uma comissão para resolver a controvérsia. A comissão acadêmica, da qual Lavoisier
tomava parte, concluiu que Cadet tinha razão, ou seja, que era possível reduzir o mercurius
precipitatus a metal, sem uma fonte que fornecesse o flogisto ao metal. Concluiu também
que o mesmo ocorreria com as outras calces (óxidos), desde que se dispusesse dos meios
técnicos para fazê-lo.
Nesse mesmo ano, Priestley visitou Paris e se encontrou com os químicos
parisienses. A eles relatou que havia observado o desprendimento de um ar ao aquecer o
mercurius calcinatus per se (HgO, tido como um composto diferente do mercurius
precipitatus per se devido aos métodos diferentes de produção), e que este ar tinha a
propriedade se ser insolúvel em água, e de estimular a chama de uma vela. Priestley tomava
esse ar pelo ar nitroso (NO), porém não estava totalmente certo disso e achava que as
investigações deveriam continuar. Ainda nesse ano, Lavoisier recebeu uma carta de Scheele
onde este relatava suas experiências com o mercurius precipitatus per se nas quais
observava o desprendimento de um ar, o ar de fogo, que também estaria presente na
atmosfera, e pedia a Lavoisier que investigasse o assunto.
A partir de novembro de 1774, Lavoisier iniciou suas experiências com o mercurius
precipitatus per se, disposto a investigar a origem daquilo que provocaria a calcinação e a
combustão. Para isso, organizou uma seqüência experimental que começava pela redução
do mercurius precipitatus com adição de carvão, para se certificar de que o mercurius era
uma cal como as outras. O ar liberado era solúvel em água, precipitava a água de cal,
combinava com os álcalis, não alimentava a chama, sendo, portanto, o mesmo ar liberado
em outras reduções, o bem conhecido ar fixo (CO2).
Feito isso, Lavoisier reduziu o mercurius precipitatus usando a lente mais poderosa
de que a Academia dispunha, constatando que também havia a liberação de um ar. Todavia,
esse ar era pouco solúvel em água, não precipitava a água de cal, não se combinava com os
álcalis, podia servir a uma nova calcinação do mercúrio, melhorava a respiração, e
estimulava uma chama. A conclusão de Lavoisier foi a de que o princípio que se combinava
com os metais durante a sua calcinação, e que aumentava seu peso, não era outra coisa que
o próprio ar, aquele que respiramos.
Esta conclusão foi publicada em 1775 no periódico Observations sur la Physique, e
nota-se que nessa data Lavoisier concebia o ar atmosférico como sendo de natureza
elementar. Há uma diferença entre essa conclusão e a que apareceu publicada em 1778 nos
resumos da Academia (Tosi 1989, p.40). Nesta publicação, Lavoisier substitui a expressão
“ar comum”, aquele que respiramos, pela parte mais pura da atmosfera, a mais respirável,
ou melhor, a “parte eminentemente respirável”. Essa modificação foi necessária, porque
Priestley, após refazer suas experiências com o mercurius precipitatus per se fornecido por
Cadet e de cuja pureza não duvidava, concluiu que o ar liberado nessa redução não era o ar
nitroso, mas uma parte particular da atmosfera, uma parte que era capaz de absorver mais
flogisto que o ar comum, sendo, por isso mesmo, chamado por Priestley de “ar
desflogisticado”, que compunha o ar atmosférico juntamente com o ar carregado de
flogisto, ou seja, o “ar flogisticado”. Foi, portanto, Priestley que questionou a natureza
elementar do ar, mostrando que o ar não era indestrutível ou inalterável, mas uma
composição.
Lavoisier se referia ao seu “ar eminentemente respirável” como o mesmo “ar
desflogisticado” de Priestley, e também podemos dizer que era da mesma natureza que o
“ar de fogo” de Scheele. Apesar dessa identidade, Lavoisier atribuía propriedades ao “ar
eminentemente respirável”, que transcendiam aquelas que eram normalmente atribuídas aos
ares. Para Lavoisier, esse ar não só provocava o aumento no peso dos metais calcinados,
como também conferia propriedades ácidas aos corpos que o absorviam. Por isso, Lavoisier
decidiu chamar o “ar mais puro” de princípio acidificante, ou princípio oxigênio, o
princípio portador de acidez ( do grego: οξνς-ácido & γείνομαι-gerador. Guyton de
Morveau 1994, p. 78 ).
O princípio oxigênio tinha o papel inverso do princípio flogisto. Ou seja, enquanto a
teoria do flogisto considerava a redução como uma absorção do princípio flogisto e a
oxidação como uma liberação desse princípio, a teoria do oxigênio considerava, ao
contrário, que na redução ocorria uma liberação do princípio oxigênio, e que na oxidação
ocorria uma absorção desse princípio.
Stahl
Oxidação: Metal → Cal + princípio flogisto
Lavoisier
Na combustão, o calórico era liberado porque sua base (o princípio oxigênio), era atraída
com maior intensidade pelos corpos combustíveis, se manifestando na forma de luz e calor.
O calor, para Lavoisier, tinha um caráter repulsivo, ou seja, ao contrário de Stahl, que
considerava que o calor (flogisto), ao fixar-se, provocava uma combinação; Lavoisier,
seguindo Black, considerava que o calor (calórico) provocava uma expansão, e até uma
desagregação (Bensaude-Vincent 1996b, p. 207).
Segundo Lavoisier, todos os corpos da natureza seriam ou sólidos, ou líquidos, ou
gasosos, dependendo apenas da relação entre as forças atrativas (própria das moléculas) e as
forças repulsivas do calor. Para justificar sua posição, Lavoisier recorreu a um fluido muito
sutil, que transportava o calor, como o responsável por esses efeitos. Esse fluido seria uma
substância real e material que se insinuava entre as moléculas de todos os corpos, e
provocava a repulsão entre elas. Esta substância era a causa do calor, ou em outros termos,
a sensação que chamamos de calor era o efeito da acumulação dessa substância. Todavia,
dizia Lavoisier, em linguagem rigorosa, não se pode exprimir a causa e o efeito pela mesma
denominação. Por isso, Lavoisier chamou a causa do calor, o fluido eminentemente elástico
que o produz, pelo termo calórico (Lavoisier 1937, p. III). O calórico tinha as seguintes
propriedades: era um fluido elástico que tudo penetrava e cujas partículas se repeliam
fortemente; suas partículas eram atraídas por partículas de matéria; conservava-se; e,
embora não tivesse massa, podia ser medido.
A teoria do calórico propunha explicar um conjunto de fenômenos ligados à
transferência de calor, como, por exemplo, a contração e a expansão observadas com o
resfriamento e o aquecimento. Também permitia conceber o “ar” como um estado físico,
como o sólido ou o liquido, e não mais como um elemento no sentido clássico. Em parceria
com Pierre de Laplace (1749-1827), Lavoisier construiu um aparelho para medir o calor, o
calorímetro. Este aparelho era formado de três partes, uma dentro da outra. O recipiente
interno continha as substâncias que deveriam reagir, o recipiente médio continha gelo, e no
recipiente externo recolhia-se a água correspondente ao gelo derretido. O calórico liberado
pela reação realizada no compartimento interno provocava o derretimento de uma certa
quantidade de gelo, o que fornecia dados que permitiam calcular o calor liberado. Os
detalhes da construção desse aparelho encontram-se na terceira parte do Traité, com
ilustrações de Marie-Anne Paulze (1758-1836), esposa de Lavoisier que, aliás, foi também
responsável pela tradução de diversos trabalhos de químicos estrangeiros para o francês
(Kawashima 2000).
Portanto, como aponta Bensaude-Vincent, a teoria lavoisieriana da combustão situa-
se na linha da química dos princípios. Ela introduz mais uma inversão das idéias
dominantes que uma verdadeira revolução (Bensaude-Vincent. “Lavoisier: uma revolução
científica.” p. 207). Para atestar que, de fato, foi assim que os contemporâneos receberam a
teoria de Lavoisier, Bensaude-Vincent cita Guyton de Morveau, que foi um ativo
colaborador de Lavoisier, em uma referência que este faz a Macquer. Guyton de Morveau
relata as impressões que Macquer, um dos químicos mais importantes do cenário europeu,
teve após ouvir a comunicação feita por Lavoisier à Academia sobre a combustão em geral
(Sur la Combustion en Général, 1777). Segundo Guyton de Morveau, Macquer manifestou
o seu alívio da seguinte maneira:
O Sr. Lavoisier assustava-me desde há muito tempo com uma grande descoberta que
ele reservava para si, e que iria nada menos que derrubar completamente toda a teoria
do flogisto ou fogo combinado: o seu ar confiante fazia-me morrer de medo. Onde
estaríamos com a nossa velha Química, se tivesse sido necessário reconstruir um
edifício completamente diferente? Por mim, asseguro-vos que teria abandonado a
jogada. Felizmente o Sr. Lavoisier acaba de revelar sua descoberta, numa dissertação
lida na última assembléia pública; e asseguro-vos que desde essa altura tenho um peso
a menos no estômago. Segundo o Sr. Lavoisier, não há de todo qualquer matéria de
fogo nos corpos combustíveis; ela não é mais que uma das partes constituintes do ar;
é o ar e não o que considerávamos como corpo combustível que se decompõe em
qualquer combustão; o seu princípio ígneo liberta-se e produz os fenômenos da
combustão, restando apenas o que ele chama a base do ar, substância que ele afirma
que lhe é inteiramente desconhecida. Julgai se eu tinha motivo para ter tanto medo
(Guyton de Morveau 1786, Bensaude-Vincent 1996a, p. 126).
Na química, esse abuso das palavras causava sérios prejuízos. O diálogo entre
químicos de diferentes regiões era dificultado não apenas por diferenças químico-
filosóficas, mas também pelas diferentes maneiras de escrever e nomear a matéria-prima de
seu trabalho. Foram várias as tentativas de criar uma nomenclatura mais adequada; porém,
o consenso estava longe.
O empirismo epistemológico de Lavoisier o levou a perceber que todas aquelas
tentativas de reformulação da linguagem eram vãs, pois todas apenas se ocupavam de
palavras que não tinham nenhuma relação com a substância em si mesma. As substâncias
eram identificadas por nomes genéricos, que às vezes davam alguma informação sobre uma
ou outra qualidade da substância (aqua ardens, aqua fortis, manteiga de antimônio, óleo de
vitríolo), mas geralmente eram tradicionais apenas (lana philosofica), ou derivados de
termos astrológicos (cáustico lunar), de pessoas (sal de Glauber) ou de lugares (sal de
Epsom), ou mesmo associavam vários desses “critérios” (spiritus fumans Libavii).
O objetivo de Lavoisier não era o de aperfeiçoar a nomenclatura, pois para ele uma
nomenclatura química deveria desconsiderar qualquer apelo à tradição, à história da
substância, e remeter a termos que designassem a substância tal como ela era, ou melhor, tal
como eram percebidas pela melhor instrumentação disponível. Lavoisier conclamava os
químicos a esquecerem a tradição, que se fizessem ignorantes para se tornarem verdadeiros
sábios. Nas primeiras linhas da dissertação intitulada Reflexões sobre o Flogisto, Lavoisier
dizia:
Peço aos meus leitores, ao começar esta dissertação, que se desembaracem tanto
quanto possível de qualquer preconceito: de verem nos fatos apenas aquilo que
apresentam, de banir deles tudo o que o raciocínio neles pressupôs, de se transporem
para os tempos anteriores a Stahl, e de esquecer, de momento, se for possível, que a
sua teoria alguma vez existiu (Lavoisier, citado por Bensaude-Vincent 1996b, p. 208).
Na nova linguagem, as palavras deveriam refletir as propriedades de cada
substância. Por exemplo, o termo oxigênio foi escolhido porque significava literalmente um
princípio que quando estava presente num corpo gerava um ácido, ou o termo hidrogênio
que significava um princípio formador de água. Todavia, essa linguagem somente tornar-se-
ia possível se a química limitasse seus julgamentos teóricos aos últimos termos de uma
análise. Deste modo, poderíamos acompanhar uma idéia a partir de sua origem, e a geração
de outras nos pareceria evidente. O conjunto dessas idéias constituiria o vocabulário de uma
verdadeira nomenclatura química.
Essa nova maneira de conceber a nomenclatura foi defendida por Lavoisier no início
do seu Método de Nomenclatura. Dizia Lavoisier:
A lei rigorosa que me impus, da qual não devia afastar-me, de não concluir nada mais
além do que as experiências apresentam, e de jamais preencher o silêncio dos fatos,
não me permitiu incluir nesta obra a parte da química mais suscetível, talvez, de
tornar-se um dia uma ciência exata: é a que trata das afinidades químicas ou atrações
eletivas (Lavoisier 1937, p. XXIX).
Tudo o que se pode dizer sobre o número e sobre a natureza dos elementos limita-se,
na minha opinião, a discussões puramente metafísicas. São problemas
indeterminados, suscetíveis de uma infinidade de soluções, mas é provável que
nenhuma delas em particular esteja de acordo com a natureza. Eu contentar-me-ia,
portanto, em dizer que, se pelo nome de elementos entendemos designar as moléculas
simples e indivisíveis que compõem os corpos, é provável que não os venhamos a
conhecer. Se, pelo contrário, atribuímos ao nome de elementos, ou de princípios dos
corpos, à idéia do último termo a que chega a análise, todas as substâncias que ainda
não pudemos decompor por nenhum meio são para nós elementos; não que possamos
assegurar que estes corpos que olhamos como simples não sejam eles mesmos
compostos de dois ou mesmo de um maior número de princípios, mas visto que não
temos nenhum meio de os separar, eles agem perante nós à maneira dos corpos
simples, e só os devemos supor compostos na altura em que a experiência e a
observação nos fornecerem provas disso (Lavoisier 1937, p. XXXI).
Essa definição de elemento não era nova, Boyle já havia dado uma definição
semelhante no seu Sceptical Chemyst, publicado em 1661, ao recusar a possibilidade de se
encontrar os elementos primitivos, e restringir o uso do termo aos corpos simples a que se
chegava através da experiência. Essa definição também era compartilhada por químicos
contemporâneos de Lavoisier. Joseph Macquer, um dos químicos mais respeitados da época
de Lavoisier, tendo sido seu professor, chamava de princípios as substâncias que eram
retiradas dos corpos compostos quando se fazia uma análise ou uma decomposição química
(Bensaude-Vincent 1996b, p. 247).
No entanto, a novidade trazida por Lavoisier não estava nos termos da definição,
mas no lugar que esta definição ocupava. Lavoisier conferia-lhe um lugar central, pois o
corpo simples era o último termo da operação da análise conduzida no laboratório, sendo o
ponto de articulação entre a teoria e a experiência, e a origem da nomenclatura.
Assim, Lavoisier delimitou a ciência química. Ao químico, não cabia mais explicar
as transformações que ocorriam na Natureza, mas elaborar um sistema onde fosse possível
conhecer as idéias desde a sua origem, ligando-as por meio de princípios que as tornariam
inteligíveis. A Natureza, para os químicos, limitava-se ao seu laboratório, onde era possível
controlar todas as variáveis envolvidas. A partir dos dados fornecidos pelos instrumentos, a
ciência química deveria procurar extrair os princípios que permitiam uni-los em uma única
teoria.
Esse sentido dado por Lavoisier ao termo princípio difere da concepção de princípio
que se tinha na química stahliana. Na química de Stahl, o princípio do flogisto, por
exemplo, explicava uma série de fenômenos, mas era uma construção racional que não
possuía uma materialidade, não era “sentido” pelos instrumentos. Por isso, os químicos
stahlianos utilizaram o termo flogisto para explicar uma variedade muito grande de
transformações, o que fez com que a clareza original desaparecesse.
Portanto, a Química de Lavoisier consistia em um sistema cujas fronteiras eram dadas
pelo método de análise, no qual os dados fornecidos eram unidos por princípios que se
remetiam a propriedades que lhes eram próprias, e serviam de base para uma nomenclatura.
Essa Química realiza e justifica a concepção de sistema que tinha Condillac. Segundo
Condillac:
Um sistema não era outra coisa que a disposição das diferentes partes de uma arte ou
ciência numa ordem onde elas se sustentavam todas mutuamente, e onde as últimas se
explicavam pelas primeiras. Aquelas que dão razão às outras se chamavam princípios
e o sistema é tão mais perfeito quanto menor fosse o número de princípios (Condillac
1973, p. 9).
Tendo-me habituado por trinta anos a acreditar e a ensinar a teoria do flogisto, tive
por muito tempo um grande distanciamento do novo sistema, que apresentava como
erro aquilo que eu julgava como uma doutrina sã; contudo, esse distanciamento, que
provinha apenas do poder do hábito, diminuiu gradualmente, vencido pela clareza de
suas demonstrações e pela solidez de seu plano” ( Black 1997. Ouvres de Lavoisier,
vol. VI, Correspondance).
CONCLUSÃO
Neste trabalho, procuramos articular duas investigações, uma histórica e outra
epistemológica, ambas derivadas da distinção proposta por Kuhn entre filosofia da ciência
e história da ciência. Embora destaquemos a negligência da filosofia da ciência pelas
ciências química, não fizemos um trabalho tratando de temas relacionados à moderna
filosofia da química, como, por exemplo, o reducionismo quântico, ou o formalismo lógico
suscitado pela química contemporânea, nem oferecemos uma resposta à questão da
singularidade disciplinar. Limitamos nosso interesse à historiografia da química e à
utilização de episódios da história da química na análise epistemológica defendida por
Thomas Kuhn. Contudo, procedendo desta maneira, esperamos estar contribuindo para
aqueles estudos voltados mais ao formalismo do conhecimento químico, ou a outros
problemas enfrentados pela moderna filosofia da química.
Desde o A Estrutura das Revoluções Científicas, tem aumentado o interesse tanto filosófico
quanto historiográfico pelas ciências químicas. Na historiografia da química, as reflexões
de Kuhn reforçaram os objetivos da nova historiografia da ciência, que proclamava a
necessidade de descrever os episódios do passado da forma como os próprios protagonistas
o concebiam. Isto fez com que se multiplicassem os trabalhos dedicados ao estudo de casos
históricos, que tinham por objetivo evidenciar o contexto intelectual e social subjacentes ao
conhecimento de uma determinada época. Além disso, o livro de Kuhn integrou a ciência
química às análises epistemológicas da ciência que, até então, exceto nas academias do
leste europeu, era exclusividade das ciências físicas. Assim, originaram-se dois campos de
investigação que, apesar de apresentarem uma estreita relação, deveriam manter-se a uma
distância suficiente para que fosse garantida uma singularidade disciplinar.
Aqui, defendemos essa particularidade de cada enfoque descrevendo a relação entre a
história da química e a epistemologia kuhniana, que não obstante valorizar o trabalho
histórico, cometeu certos exageros e anacronismos. Apontamos que esta particularidade é
mais frutífera para ambas as disciplinas, pois, com isto, fica garantida uma certa base
institucional, evitando aquilo que Kuhn denominou de subversão disciplinar. Assim, ao
historiador da ciência, é essencial articular o conhecimento científico com o pensamento
filosófico do período analisado, pois, desta articulação, é possível revelar a estrutura
epistêmica que sustentava esse conhecimento. Já aos filósofos da ciência, em particular
àqueles preocupados com questões relativas ao científico em geral, interessa utilizar a
história da ciência para ambientar suas discussões epistemológicas, sem, contudo, ter uma
preocupação estrita com os termos utilizados pelos protagonistas do processo, somente com
o objetivo de evitar contradições que possam ofuscar seu poder explicativo. Assim, cabe ao
historiador se aproximar ao máximo do glossário filosófico do período analisado, bem
como ao filósofo se aproximar das questões históricas que limitam suas generalizações.
Todavia, a relação entre estes diferentes campos de pesquisa não é simétrica, pois, apesar de
a história da ciência servir à moderna epistemologia científica evitando que esta apresente
generalizações apressadas e cometa anacronismos, não se serve desta na realização de seu
trabalho, pois, para isto, se utiliza, principalmente, da ciência e da filosofia do próprio
período.
Permeamos essa discussão sobre a integridade disciplinar da história e da filosofia da
ciência com uma descrição da construção da imagem de Lavoisier como fundador da
química moderna. Salientamos que esta imagem foi construída pelos químicos-
historiadores franceses do século XIX e que, embora abandonada pela moderna
historiografia, se manteve presente nos manuais de divulgação, bem como na argumentação
epistemologia de Kuhn. Todavia, demonstramos a parcialidade na escolha de um possível
momento fundador personificado, de modo que propusemos a transferência do momento
fundador da química moderna desde o final do século XVIII, até meados do século XVI.
Esta transferência retira a prioridade da química do final do século XVIII na transformação
da ciência química numa ciência moderna. Assim, seguindo Debus, consideramos que para
entender a revolução química em sua totalidade, deve-se pensar numa cronologia mais
ampla, que englobe períodos anteriores ao de Lavoisier.
Isso nos levou a sugerir dois outros momentos fundadores, quais sejam, o surgimento de
uma comunidade de praticantes das artes químicas e a assimilação da química pelas
academias de ciência. Estes novos momentos se pretendem amplos o suficiente para
assimilar as discussões sobre as transformações materiais sem que a narrativa deva ser
direcionada para algum episódio localizado no futuro. Assim, torna-se possível integrar à
história da química episódios que foram muitas vezes negligenciados pela historiografia
química, mas que apresentam questões nas quais estão envolvidos problemas que
interessam não apenas ao historiador da química, mas também ao epistemólogo da ciência.
Um exemplo é o programa newtoniano criado para a química que, embora tenha sido
freqüentemente negligenciado pela historiografia que tem em Lavoisier o “pai da química
moderna”, quando descrito em sua integridade, revela um complexo debate epistemológico
entre os que desejavam reduzir a química à física, e aqueles que, ao contrário, defendiam
uma singularidade para a sua ciência. Além deste debate, que permanece na moderna
filosofia da química, a descrição do programa newtoniano possibilitou transpormos uma
argumentação epistemológica da atualidade para um caso histórico determinado, de modo
que nos possibilitou exemplificar a utilização de um episódio histórico na apresentação de
questões relacionada à moderna epistemológica.
Aprofundamos a noção de identidade disciplinar ao analisarmos a apropriação
epistemológica da revolução química do século XVIII. Nesta descrição, apresentamos a
contradição kuhniana ao expandir o modelo verificado na revolução copernicana à
revolução química. Assim, após analisarmos a relação entre história e filosofia da ciência, e
ampliarmos o campo de interesse daqueles historiadores preocupados em construir
narrativas históricas centradas em reflexões epistemológicas, passamos a descrever a
interpretação oferecida por Kuhn para a revolução química. Para Kuhn, a revolução
química ofereceu um dos principais exemplos históricos da aplicação de sua terminologia
na explicação do desenvolvimento do conhecimento científico. Na leitura kuhniana, a
falência do paradigma flogístico, a proclamação da necessidade de uma revolução, a nova
teoria da combustão, etc., representavam perfeitamente as características de um processo
revolucionário, de modo que a revolução na química se assemelhava à revolução
copernicana. De fato, numa primeira aproximação, a revolução lavoisieriana exemplifica a
epistemologia kuhniana. Contudo, numa análise mais apurada dos textos originais,
percebemos que a leitura kuhniana não corresponde exatamente à realidade histórica,
forçando um raciocínio que mais ofusca do que esclarece a compreensão histórica.
Assim, propusemos o abandono da fraseologia kuhniana na interpretação das
transformações ocorridas na ciência química nas três últimas décadas do século XVIII. Isto
porque os acontecimentos daquele período foram por demais complexos para se adequarem
a modelos epistemológicos concebidos a priori, carecendo de uma investigação mais
detalhada. Realizando esta investigação, encontramos um Lavoisier contextualizado, que
partilhava das idéias de um coletivo, e que revolucionou a química não segundo a
fraseologia kuhniana, mas de acordo com aquilo que se concebia na época pela palavra
revolução. Deste Lavoisier contextualizado, surgiu uma profunda relação entre a sua
química e as idéias filosóficas de Condillac, de modo que foi possível traçar uma possível
epistemologia lavoisieriana.
Contudo, deixando de lado essa leitura de primeira aproximação, argumentamos que o
elemento central para a modernidade dos textos de Lavoisier, e aquilo que manteve sua
imagem de fundador disciplinar, está na criação da nova linguagem para a ciência química.
Esta conclusão historiográfica, contudo, parece exemplificar uma versão mais sofisticada
do pensamento kuhniano, que apontou a ruptura lingüística como um dos elementos
essenciais das mudanças revolucionárias. Ou seja, após seguirmos Kuhn em sua
diferenciação do trabalho realizado pelo historiador da ciência e pelo filósofo da ciência, e
de termos determinado uma contradição nas reflexões do próprio Kuhn, originadas da
aplicação do modelo de desenvolvimento das ciências físicas às outras ciências, concluímos
que a revolução química ainda pode exemplificar a epistemologia kuhniana. Porém, apesar
de apresentar algumas das características apontadas por Kuhn como essenciais a uma
mudança revolucionária, a revolução lavoisieriana não teve a mesma amplitude que a
revolução galilaico-newtoniana, sendo mais bem assimilada na história do desenvolvimento
químico como uma dentre outras revoluções paradigmáticas. Por tudo isso, propusemos que
a transformação do conhecimento químico em uma ciência ensinada foi um processo de
longa duração, no qual ocorreram diversas revoluções paradigmáticas que, vistas em
conjunto, constituem uma longa revolução química.
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