BARBOSA Avental Todo Sujo de Ovo
BARBOSA Avental Todo Sujo de Ovo
BARBOSA Avental Todo Sujo de Ovo
Personagens
Alzira
Indienne
Antero
Noélia
1.
Um misto de sala de estar e sala de jantar de absoluta modéstia, numa periferia de absoluta
modéstia, no interior.
Por muito que ainda não seja nem bem cinco da tarde, a mesa já está posta para o
jantar. Na sala vazia, o silêncio da tarde do segundo domingo de maio só é rompido quando,
fora da casa, ouvimos alguém gritar:
NOÉLIA. (fora de cena) Alzira! (após uma pausa, o mesmo chamado) Alzira! (após outra
pausa, mais uma vez) Ô, comadre! (mais um tempo e, na falta de uma resposta, entra Noélia,
trazendo consigo um véu, um rosário e a conta da luz) Alzira, cadê tu?
NOÉLIA. (ainda ri) Está querendo me aleijar, me chamando pelo nome do compadre?
ALZIRA. (sem achar graça na piada) Não sabe mais bater na porta, não, Noélia?
ALZIRA. Batesse palma! Ninguém entra na casa dos outros sem dizer nada, não.
Noélia desiste da conversa à distância e senta para esperar pela amiga. Passado algum
tempo, Alzira volta, enxugando as mãos num pano de prato.
ALZIRA. Pronto.
NOÉLIA. O quê?
NOÉLIA. (um tanto surpresa) Arroz doce? E pra que é que tu foi inventar de fazer arroz
doce, Alzira?
NOÉLIA. Eu perguntei não foi isso, não. Só fiz foi estranhar! Não é nem São João...
Alzira senta.
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ALZIRA. Nada, Noélia. Nada! Mas se eu cometi um crime, então o certo é me levarem pra
cadeia. É ou não é? Quando chegar lá eu explico pro delegado que fiz arroz doce e aí,
conforme seja, ele me leva pro presídio feminino ou manda me matar, qualquer coisa assim.
(repara em Noélia e muda de tom) Desculpa, mulher! Mas também, tu pergunta muita
besteira...
Alzira aquiesce.
Alzira aquiesce.
NOÉLIA. É.
ALZIRA. (ponderando) Aliás, não. Deixa, comadre... Pode ir. Hoje eu não vou, não.
ALZIRA. Não tem cabimento nenhum eu ir pra missa assim: toda requenguela.
NOÉLIA. Não tem nada de requenguela. Tire esse avental, mude o vestido e pronto.
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NOÉLIA. Pois ano passado, na quermesse, eu fiz uma panela assim e todo mundo disse que
estava ótimo!
NOÉLIA. Então, pronto: se o teu é tão bom, esse ano quem vai fazer é tu.
ALZIRA. Não.
ALZIRA. (corta) Esse arroz aí é o que eu fazia pra Indienne, Noélia! Era o doce que ele
gostava!
Um silêncio.
ALZIRA. Satisfeita?
ALZIRA. Não precisa desculpar nada, não... Deixa. Vá lá, pra missa, que hoje eu estou muito
agoniada.
NOÉLIA. E tu, agoniada desse jeito, ainda vai ficar em casa, sozinha?
ALZIRA. Vou.
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NOÉLIA. Ora se isso é conversa, Alzira! O compadre não vem tão cedo. Está lá na praça,
jogando dominó. Nesse instante eu fui na bodega comprar um guaraná e vi: Estava tão
animado que eu dei boa tarde e ele não virou nem a cara pra responder.
NOÉLIA. Alzira, ele vai pra jogatina porque quer e fica lá porque quer. Também não adianta
querer defender, não. Ele fica lá porque gosta. Ninguém está amarrando ele!
ALZIRA. Ô, meu Deus! Tanto que eu rezo pro Antero se livrar desse vício...
ALZIRA. E eu não sei, mulher? Agora é isso: não deixo mais fumar em casa aí ele vai fumar
lá na praça. Não tem jeito, não. Qualquer dia desse ele me põe doida. Um homem velho
daquele, acabado, doente do coração, com a pressão alta e fumando daquele jeito.
NOÉLIA. Eu já disse pra tu arranjar aquele livrinho dos adventista, ensinando a largar o
cigarro. Diz que é tiro e queda, funciona mesmo.
ALZIRA. Não vou me meter em coisa de adventista, não, Noélia, que eu ainda não estou
doida! Esse negócio de crente, nenhum presta. E vamo deixar de conversa, que se tu ficar aí
de prosa comigo vai perder a missa.
ALZIRA. Não, Noélia! Se eu já disse que hoje eu não vou é porque não vou.
ALZIRA. Não estou com cabeça, não, Noélia... Me desculpe, mas hoje não dá.
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ALZIRA. Aqui, pelo menos, eu não tenho que ficar rindo pra cara de ninguém.
NOÉLIA. Mas lá tu espairece. Vai ser tão bonito, hoje! A igreja está toda enfeitada! Uma
faixa na frente dizendo “Feliz dia das mães!”/
ALZIRA. Ô...
NOÉLIA. Ah, meu Deus... Mãe é mãe, mesmo. Já vai pra quantos anos?
ALZIRA. Dezenove.
ALZIRA. Desde ontem que eu não penso noutra coisa. Morrendo de medo que não seja
alguma mensagem, algum aviso.
NOÉLIA. Não se preocupe, não, Alzira. Se fosse coisa ruim, a gente já estava sabendo. É
porque hoje é dia das mães, você ficou desse jeito: Pensando.
NOÉLIA. Hoje?
ALZIRA. É. (pausa) Será, meu Deus, que esse menino está bem, onde ele estiver? Noélia,
Deus proíba, mas eu estou aqui pensando se esse meu desassossego não é Indienne me
dizendo pra encomendar uma missa pra alma dele.
NOÉLIA. Ave-maria, mulher! Essas coisa a gente nem diz! (mostrando os pêlos do eriçados
do braço) Olha aqui...
NOÉLIA. Não é, não, senhora! Não é nada disso! Indienne, onde ele estiver, está vivo. Vivo
igual a nós. E vai logo trocar de roupa que quem está precisando de reza é tu. Vai!
ALZIRA. Não, Noélia. Vá só. Vá só, que se hoje eu for lá eu vou ficar muito triste.
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NOÉLIA. Besteira. Hoje é que é o dia de ir. Lá, pelo menos, você conversa com Deus,
conversa com Nossa Senhora, pede um lenitivo. Depois você vai comigo lá pra casa, esperar
Cabeca. Sete horas ele vem com os menino, me ver. Aí a gente fica conversando, fica rindo e
tu esquece.
NOÉLIA. Sim, criatura, mas pelo menos tu não fica só! Não estando só, já é uma melhora. Tu
sabe que numa hora dessa o compadre não é boa companhia, não sabe? O negócio dele é só
arranjar briga!
ALZIRA. Briga por briga, é bem capaz de tu acabar brigando com a tua nora e aí se for pra
ficar vendo chafurdo na casa alheia eu prefiro o da minha.
NOÉLIA. Graças a Deus, hoje aquela seca não bota o pé lá em casa. Ela já obrigou Cabeca a
passar o dia na casa da mãe dela, com a família dela, achando que ia tirar meu juízo. Pois
quebrou a cara e eu achei foi bom. Não disse uma palavra: “Meu filho, se sua mulher quer que
você passe o dia das mães com a mãe dela, por mim, tudo bem. Vá com ela e lá mesmo você
fique. Não precisa vir me ver, não. Pra quê? Deixe que eu fico só. Se Fafata fosse viva, eu
garanto que ela ficava comigo, mas Fafata era uma e você é outro. Você inventou de gostar
dessa sua mulher, que me odeia. Odeia, sim. Odeia, sim, senhor. Tanto me odeia que já disse
na minha cara. Mas tudo bem. O gosto é seu, a vida sua, você faz o que você quiser. Se ela
não vai com a minha cara, o problema é dela e quem não tem com o que me pagar, a mim não
me deve nada! Agora, sem querer rogar praga – que eu, graças a deus, não sou disso – eu vou
logo lhe dizendo que do jeito que ela está lhe proibindo de ficar com sua própria mãe no dia
das mães, talvez um dia aconteça do mesmo jeito com algum filho dela!” E pronto, calei
minha boca.
ALZIRA. E Cabeca?
NOÉLIA. Cabeca naquela conversa dele de “Mamãe, não é isso. Mamãe, não é aquilo.” E aí
resolveu que quando desse de noitinha ele passava aqui em casa pra comer um bolo, tomar um
café, dar um guaraná pros menino. “E me dê o presente de não trazer sua mulher” – eu disse.
NOÉLIA. Disse e disse alto, porque eu sei que ela fica na extensão.
NOÉLIA. É um santo. Não sendo por aquela cobra, eu não tenho nada que reclamar dele.
Graças a Deus.
ALZIRA. Graças a Deus. (após uma pausa) A coisa mais linda era a amizade dele com
Indienne.
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ALZIRA. Ah, Noélia... Se tu soubesse o tamanho da dor que tem no meu peito!
ALZIRA. Não tem como saber, não, comadre! Não tem como tu saber, não.
NOÉLIA. Eu já perdi uma filha, Alzira. Tu estava lá comigo e viu. Tu viu quando eu perdi
Fafata, que Deus a tenha.
ALZIRA. Noélia... Fafata, por pior que tenha sido a morte dela, foi uma coisa que você viu.
Acompanhou. E, no fim, estava todo mundo junto. Todo mundo lá, pra dizer um adeus, uma
palavra de fé. Fafata você sabe onde está, tem como ir conversar com ela, levar uma flor.
Agora, Indienne...
Um silêncio.
NOÉLIA. Mulher, não chore, não... Anda. Vamo deixar de conversa. Guarda aí a conta da
luz, muda essa roupa e vamo nós duas pra missa/
NOÉLIA. Criatura, também não precisa falar assim, não. Ave-maria! Eu te presto um favor e
parece que eu te fiz foi um mal.
ALZIRA. Eu por acaso lhe pedi algum favor? Pois então... Se não pedi, estou no direito de
recusar.
ALZIRA. O favor que eu estou lhe pedindo é pra você pegar essa conta e botar de novo lá na
caixa do correio, antes do Antero chegar da rua.
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ALZIRA. Mas se não quiser fazer isso por mim, também é um direito seu não fazer. Aí eu
mesma pego a carta, vou lá e boto.
ALZIRA. Não está, não. Está é parada na minha frente jogando conversa fora! Vá logo.
NOÉLIA. (saindo) Deus me livre! (já fora de cena) A gente tem agüentar cada uma...
ALZIRA. (gritando para a vizinha) Não é questão de agüentar, não, Noélia! É questão de
fazer as coisa direito.
NOÉLIA. Mas esse teu marido também, Alzira... É de arranjar muita confusão.
ALZIRA. Noélia, vamo parar com essa conversa? Você não sabe que está errada?
NOÉLIA. Eu?
NOÉLIA. Tá, mulher, pronto! Acabou! (após uma pausa) Quem vê, pensa que eu te fiz um
mal.
ALZIRA. A mim, não. Você estava querendo ajudar, eu entendo. Mas Antero não gosta. A
diversão que ele ainda tem, afora o vício, é pegar essas carta que chegam.
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NOÉLIA. Cada doido com a sua mania... A gente vai ficando velho, vai inventando
maluquice, né?
ALZIRA. Tu é muito boa pra inventar apelido pros outro, aí depois o povo começa a te
chamar de nome e tu não gosta.
ALZIRA. (mudando de atitude) Por que, Noélia? Chegou nesse instante. Espera aí!
NOÉLIA. Mas desde que eu botei os pés nessa casa que tu arranja confusão comigo!
ALZIRA. (após uma pausa) Às vezes eu acho que Antero tem essa mania de pegar carta é na
esperança de um dia encontrar algum bilhete do menino.
NOÉLIA. (desconversa) Está bom de conversa, né? Vamo logo pra missa e pronto. Vá tomar
banho, vá... Pode ir, que dá tempo.
NOÉLIA. Não.
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Alzira sai, deixando Noélia a sua espera, na sala. Passado algum tempo, Alzira volta,
agora sem o avental, mas com um vestido surpreendentemente parecido com o que usava
antes. Ela traz ainda um véu, um rosário e um pequeno embrulho.
NOÉLIA. O quê?
Alzira entrega a Noélia o pequeno pacote que trouxe consigo. Noélia desfaz o laço com
cuidado para descobrir o conteúdo: uma gravata azul, de criança.
ALZIRA. Lembra?
NOÉLIA. (aquiesce, lembrando) Tanto trabalho que deu pra costurar... Essa seda, o que tem
de brilhosa, tem de lisa. Tanto que a gente pelejou pra não ficar enviesado...
As duas riem.
ALZIRA. Quando vai juntando pó, apagando, eu passo uma água, um sabão de côco... Aí o
brilho volta.
ALZIRA. Criança não liga pra isso, não. Deixam tudo largado, quanto mais roupa. Essa ainda
está assim porque fui eu que guardei. Achei nas coisa dele, depois que ele foi embora. O resto
eu dei, mas a gravatinha eu tive de pena de dar. Tão linda, né?
NOÉLIA. É... (após uma pausa) E aquela roupinha de gala, a branquinha, que a gente fez pra
eles usarem com a gravata?
ALZIRA. Aquela eu não achei, não. Eu tenho pra mim que ele foi embora vestido com ela.
Senão tinha ficado aí. O resto tudo ficou... (após uma pausa) Será, comadre, que um dia Deus
ainda vai me dar essa graça de eu conversar de novo com Indienne?
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ALZIRA. Aquela roupinha branca eu guardava toda engomadinha, toda cheirosa. Ficava no
bauzinho dele, num pacote de papel de seda.
NOÉLIA. Fazia tanto gosto, os dois, naquela festa das mães. Lembra?
ALZIRA. Ô!
NOÉLIA. Parece que foi ontem, né? Os dois juntos, no palanquinho, cantando:
E Noélia começa a cantarolar o que lhe sobrou na memória desta valsinha de Herivelto
Martins e David Nasser:
Alzira não agüenta mais e rompe em choro. Noélia abraça a amiga, consola-a como pode.
Elas permanecem assim, abraçadas, por um tempo.
Nisso, Antero aparece na porta. Numa mão ele traz a conta da luz e, na outra, o lenço
que usa para, vez por outra, enxugar a saliva que lhe escorre por um dos cantos da boca. Há
coisa de dezenove anos, Antero sofreu um acidente vascular cerebral e entre as seqüelas que
carrega está o pouco controle de um dos lados do corpo.
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ALZIRA. Você por acaso está vendo alguém chorar? Vá catar piolho em cobra, vá!
ALZIRA. Na cozinha.
ALZIRA. (embrulhando de novo a gravatinha) Vamo embora, Noélia. Vamo embora, que é
pra eu não ter raiva. Sentiu o cheiro do cigarro?
ALZIRA. (corre para a cozinha) Não, Antero! Não mexa no arroz, não! Sua janta é a da
cuscuzeira! (já fora de cena) Está aqui, tua janta, ó! É isso aqui! Agora, além de mouco, está
ficando cego? Nunca nem gostou de arroz doce, pra estar comendo o que não é seu! Esse
arroz é pra mim levar pra festa da Noélia! – Não quero conversa, Antero! Estou saindo pra
missa e já estou atrasada!
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NOÉLIA. (sentando novamente) Criatura, se tu anda tão agoniada assim, porque não faz logo
do jeito que eu te disse e bota a foto dele na televisão?
ALZIRA. Ele já mudou muito, Noélia! Quando saiu daqui, era uma criança.
NOÉLIA. Então quem tem que ir na televisão é tu, dizer que está procurando por ele./
ALZIRA. (corta) Noélia, isso é pra quem mora em São Paulo, no Rio... Esse povo famoso,
nenhum é por nós. Deixe eu ficar no meu canto, mesmo. Se Deus, antes de eu morrer, quiser
me dar essa graça, Ele me dá. Deixa na mão Dele. Ele é quem sabe mais.
NOÉLIA. (após uma pausa, só para se certificar) Quando tu disse que ia levar o arroz doce
lá pra casa, era verdade?
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2.
Dois ou três dias depois, a mesma sala vazia, com a mesa já posta para o jantar de Antero,
por mais que ainda não seja nem cinco da tarde.
Passado algum tempo, entra Indienne, com muita cautela, carregando consigo uma mala
grande e uma maleta pequena. O menino de quase vinte anos atrás agora é uma mulher e se
as intervenções feitas em seu corpo (especialmente nos seios, nos lábios e nas maçãs do
rosto) não fossem de qualidade tão absurdamente fajuta, talvez tivesse se tornado uma
mulher bonita.
Indienne olha em volta e constata que a casa não mudou praticamente nada nas quase duas
décadas em que esteve fora. Ele examina o teto, o piso, os móveis, os objetos e, em dado
momento, por descuido, acaba por fazer algum ruído, que Alzira ouve lá do quarto.
ALZIRA. (fora de cena) Chegou, Antero? A tua canja está pronta já faz mais de hora! Tu
podendo vir quando eu digo, não. Fica lá, com aquela ruma de vagabundo, teus amigo.
Adianta eu falar que estão te roubando? Adianta nada! Deixa de comer pra jogar dominó. Pois
eu vou lhe dizer pela última vez. – Está me ouvindo, Antero? – Pela última vez: eu, por mim,
não esquento mais a minha cabeça. Já tenho problema demais. Você tome conta da sua vida
porque a partir de agora eu vou tomar conta é da minha. E pronto. Acabou-se a farra! (após
uma pausa) E se não quiser tomar canja fria, você mesmo pegue sua mãozinha boa, vá lá na
cozinha, acenda o fogo e bote a panela pra esquentar, que isso aqui não é restaurante, pra
comida sair na hora certa que tu quer, não. É na hora que der pra mim fazer e olhe lá. (a voz
de Alzira vai ficando mais próxima) E aí, Antero, tu aproveita logo que eu não estou vendo e
entope a tua canja de sal, do jeito que tu gosta, porque aí pode ser que tu desgrace logo a tua
pressão, morra e me deixe logo em paz/
Entra Alzira e, de súbito, interrompe a já tão repetida fala que, de outra forma, seguiria por
muito mais tempo: de imediato, ela reconhece Indienne.
Longo silêncio.
INDIENNE. Vou lá dentro pegar uma água com açúcar pra senhora, viu?
INDIENNE. Mãe?
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ALZIRA. (gritando para o filho) Não precisa lavar com sabão, não, viu? É só passar uma
agüinha, mesmo. Só pra não dar formiga. (após uma pausa) Ouviu, Indienne?
INDIENNE. Pronto.
INDIENNE. No escorredor.
ALZIRA. Não, Indienne. Era pra deixar na pia. No escorredor só vai a louça lavada.
Indienne aquiesce.
INDIENNE. Mas, se não custava nada, o que é que tinha eu lavar logo?
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ALZIRA. E tu?
INDIENNE. O quê?
INDIENNE. Me virando.
INDIENNE. Largando.
ALZIRA. Esse troço é um veneno, Indienne. Mata quem fuma e quem está em volta.
ALZIRA. É pra tanto, sim, senhor! Não está vendo que uma pessoa direita não se presta botar
fumaça goela abaixo? E não se deve fumar dentro de casa, não.
ALZIRA. (fora de cena, arremeda) “O quê, mãe? O quê, mãe?” (volta com o cinzeiro limpo)
Isso aqui, Indienne! Isso aqui!
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ALZIRA. Que cinzeiro? Onde foi que tu viu cinzeiro? (observa o cinzeiro e constata) Não
tem nada de cinzeiro, aqui. É um enfeite! Bonito pra tua cara, né? Sair de casa pra aprender o
que não presta.
INDIENNE. (após uma pausa, entregando os cigarros) Tome. Jogue fora pra mim.
Alzira recebe a carteira de cigarros, mas fica sem entender o que se passa.
INDIENNE. Eu não disse que ia largar? Pois então. A melhor hora é essa, mesmo. De agora
em diante eu não fumo mais. Pronto.
INDIENNE. Absoluta.
ALZIRA. (saindo para jogar fora a carteira de cigarros) Louvado seja Deus! Já é uma coisa
a menos! (já fora de cena) Meu sonho, Indienne, era que teu pai também tivesse essa luz que
tu tá tendo agora e largasse o vício.
ALZIRA. (fora de cena) É ver uma caipora. Agora, só fuma da soleira da porta pra fora,
porque aqui dentro eu não deixo mais, que eu não estou doida. Já não tenho cinzeiro em casa é
mais por causa disso.
Alzira volta.
INDIENNE. É.
INDIENNE. Forte?
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ALZIRA. Não. Deve estar lá no dominó. Daqui a pouco chega, vem tomar a canja dele.
INDIENNE. Diga.
ALZIRA. Quando teu pai chegar, tu não fica olhando muito pra ele, não, viu?
INDIENNE. Ave-maria, mamãe! Eu mudei mas ainda sou filha dele e ele ainda é meu pai.
ALZIRA. Não é disso que eu estou falando, não, criatura! Tu não sabe nem do que é que eu
estou falando e já vai logo é inventando coisa pra tua cabeça! Estou dizendo pra tu não olhar
muito pra ele porque ele está doente.
INDIENNE. Doente?
ALZIRA. É.
INDIENNE. De quê?
ALZIRA. Tenha calma que também não é nada de morrer, não. É outra coisa.
INDIENNE. E o que é?
INDIENNE. Entortou?
ALZIRA. Deu um derrame nele, essa banda aqui ficou meio entrevada.
ALZIRA. Faz.
Um silêncio.
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ALZIRA. Mas, também, não é muito, não. Precisando ele anda, vai na feira, vai no banco... O
que precisar, ele resolve. Olhando pra ele, assim, dá pra ver que mudou. Mas, fora isso, ele
ainda faz tudo, do mesmo jeito.
ALZIRA. Aposentou-se.
Alzira aquiesce.
ALZIRA. E aí tu não fica olhando muito pra ele, não, porque ele pode pensar que é por causa
disso, viu?
Indienne aquiesce.
ALZIRA. Mas também não precisa fazer essa cara, não, Indienne! Ele não está nem aleijado!
E é pra tratar do mesmo jeito. Normal. Eu, pelo menos, trato. Do mesmo jeito que eu brigava
com ele, continuo brigando. Se ainda não estiver brigando mais.
ALZIRA. Não, Indienne, na casa dele! Não é na casa da mãe dele, não! Cabeca é um homem
casado, já é pai, tem um menino e uma menina.
ALZIRA. (dando de ombros) Está forte, careca, de barba... Daquele jeito. Agora, a mulher, só
eu te mostrando, porque se eu contar tu não acredita.
INDIENNE. De magra?
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ALZIRA. Coitado, não, Indienne. Coitado por que? Quem tem que agüentar as presepada
dela é Noélia. Toda vida não é a sogra que paga o pato? Pois então? Ele mesmo eu nunca vi
reclamar. Cabeca, de um jeito ou de outro, está feliz.
ALZIRA. Merece, mesmo. Menino de ouro. Vez por outra ele dá uma passada aí. (após uma
pausa) Dia das Mães, quando deu de noitinha, ele chegou com os menino pra tomar um
refrigerante, comer um bolo, fazer festa pra mãe dele...
A alegria de ouvir a frase é tanta que Alzira se descobre incapaz de receber o presente de
pronto.
INDIENNE. Abra...
ALZIRA. (desfazendo o pacote) Não está vendo que não precisava se dar esse trabalho...
Alzira descobre uma imagem de Nossa Senhora, em louça. Fica claro que a beleza do
presente a encantou. Ela beija delicadamente a santa.
ALZIRA. Espera aí que eu vou pegar um negócio que eu fiz pra você.
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ALZIRA. (fora de cena) Fique aí. Não venha pra cá, não, que é surpresa!
Indienne ri. Logo Alzira volta com uma porção bem servida de arroz doce.
Alzira aquiesce. Indienne recebe o prato, mas é difícil começar a comer, apoderado
que foi por uma vontade renitente de chorar.
ALZIRA. E aqui em casa quem come isso não é só tu? Come aí, pra me dizer se está bom.
ALZIRA. Eu fiz liguentinho, do jeito que tu gosta. É daquela receita com ovo.
Indienne aquiesce.
ALZIRA. Se quiser, tem mais lá dentro. Eu fiz foi pra você, mesmo. (após uma pausa) Pro
seu aniversário...
Indienne encara a mãe e, a partir de agora, não consegue mais deter as lágrimas e
precisa parar de comer.
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ALZIRA. (a voz já embargando) Anda, Indienne, que senão eu vou começar a chorar
também!
Pára...
Um longo silêncio.
ALZIRA. (finalmente) Pra que é que tu foi embora, Indienne? Se tu tivesse conversado,
tivesse explicado que o problema era esse... Aqui ninguém nunca teve muita coisa, não, mas
se tu tivesse conversado a gente dava um jeito de pagar um médico de cabeça.
ALZIRA. Médico de cabeça não é só pra doido! Médico de cabeça, hoje em dia, é pra todo
mundo. Me admira tu, tão moderno, não saber. (após uma pausa) Tem suco de tamarindo.
Quer?
ALZIRA. E café?
ALZIRA. (após uma pausa) Quando tu foi embora, tu chegou a passar fome?
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ALZIRA. Mas, meu Deus do Céu! Não está vendo que tu não precisava ter passado por essa
agonia! Onde foi que tu arranjou que tu tinha que passar por um sofrimento desse? Me diz aí
qual era a necessidade que tu tinha de se prestar a uma miséria dessa, de acordar e olhar em
volta e não ter nem que fosse um pedaço de pão e um copo de café pra forrar tua barriga?
Quando foi que, aqui, na tua casa, tu precisou passar fome? Nunca! Agora me diz, Indienne,
por que foi que tu não voltou logo pra casa quando viu que lá fora, por melhor que seja, não
presta?
ALZIRA. Tu não faz idéia do que eu sofri, não. Tu não faz idéia do tanto que tua mãe sofreu
imaginando o que diabo é que era feito da tua vida – se é que tu ainda estava vivo. Dezenove
anos, Indienne. Dezenove anos e eu com o meu coração na mão. Ainda hoje, quando eu
lembro do dia que tu foi embora, meu peito vira um oco. Falta perna, falta braço... Onde eu
estiver eu fraquejo. Cai tudo da minha mão. E isso é quase todo dia. Tem vez que no meio da
noite eu acordo, pensando que ouvi tu me chamar. Aí eu levanto, no susto, corro pra acender a
luz, abro a porta... Ninguém. É só tua voz na minha cabeça. (pára um pouco, respira e segue)
Quando eu vou limpar teu quarto eu faço tudo bem devagarinho. Paro, fico por ali, um
pedaço, converso com teu retrato – com aquele grande, o de Doutor do ABC – olho pra tua
cara, pergunto como é que está a tua vida... E aí tu olha pra mim e dá aquele teu sorriso.
ALZIRA. Isso aí quem está dizendo é tu. É só tu, mesmo. (após uma pausa) E aí, depois que
tu chegou lá, o que foi que tu fez?
ALZIRA. Sim, mas “dando o jeito” é fazendo o quê? Qual era o trabalho que tu fazia?
Servente, garçom, pedreiro...
INDIENNE. Artista.
Um silêncio.
INDIENNE. Artista...
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INDIENNE. Show.
ALZIRA. Não sei! Se eu estou lhe perguntando é porque eu não sei! Era show de quê? Era de
cantar, de dançar, de dizer poesia, de fazer drama, era o quê?
INDIENNE. É isso tudo, mesmo: cantar, dançar, dizer poesia, fazer drama...
Indienne aquiesce.
Indienne aquiesce.
ALZIRA. Qual?
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ALZIRA. Como é?
ALZIRA. É inglês?
ALZIRA. (após uma pausa) Então deu foi certo, né? “Indienne” já é nome de índio, mesmo...
Combinou.
INDIENNE. Eu sei.
INDIENNE. Indienne.
INDIENNE. É.
ALZIRA. E na tua vida, mesmo, quando tu não está fazendo show, como é que o povo te
chama?
INDIENNE. Indienne.
ALZIRA. Também?
Indienne aquiesce.
ALZIRA. É bonito...
Um silêncio.
ALZIRA. (subitamente) E onde foi que tu aprendeu esse diabo desse nome, menino?
ALZIRA. Inglês?
INDIENNE. Francês.
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ALZIRA. Hoje em dia é importante, mesmo, a pessoa falar outra língua... (após uma pausa,
consigo) Indienne... (para Indienne) Quer dizer “índia”, né?
INDIENNE. Não.
ALZIRA. Mas é sua! É pequena, mas é sua... (após uma pausa) Eu pergunto porque vez por
outra a gente vê artista mesmo, famoso, de televisão, dizendo que está passando necessidade,
né? E aí, se pra eles está difícil, quanto mais quem está começando.
ALZIRA. Começando, que eu digo, é quem ainda não está famoso. Mas se dá pra tu viver,
então está bom. (após uma pausa) Tu não chegou a precisar se meter com besteira, não, né?
ALZIRA. Besteira.
ALZIRA. Entendeu, Indienne! É só o que se escuta falar de artista! Tu liga aí a televisão que
tu vê. Todo mundo diz.
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INDIENNE. O quê?
ALZIRA. Que tem artista, artista mesmo, de televisão, artista famoso, que cai na vida! Vai se
sujar, se prostituir/
INDIENNE. (corta, ferino) Ah... A senhora está querendo saber se eu sou puta.
ALZIRA. Bote sentido no que você está dizendo, que eu sou sua mãe!
ALZIRA. (muda de tom) Não diga palavrão, não. Isso é uma coisa muito feia... Você, toda
vida, foi muito educado, graças a Deus. Essa queixa ninguém pode lhe fazer. Ninguém. O
melhor menino que tinha por aqui era você e todo mundo dizia. Dizia mesmo. Na escola, na
missa... Todo mundo dizia. Agora, não diga palavrão, não. Você não dizia naquele tempo, pra
que é que vai dizer agora? Ainda mais dentro da sua casa. O que a gente aprende na rua, a
gente deixa na rua. Não traz pra casa, não. Limpou os pés na soleira da porta, pronto: o que
era da rua fica pra trás. Chega, pelo amor de Deus.
Mais silêncio.
ALZIRA. Me desculpe eu ter lhe perguntado aquilo, viu? Me desculpe. (levantando) Você
está nervoso... Eu vou fazer uma garapinha de açúcar pra você.
ALZIRA. Precisa.
Alzira sai e, passado um tempo, grita da cozinha.
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ALZIRA. Já me ensinaram que se botar cravo na vasilha do açúcar resolve, também, mas eu
tentei e foi mesmo que nada. Mesmo que deixar destampada. Parece que as formiga daqui
gostam mais de cravo do que de açúcar. E agora está dando uma pequenininha assim que
atravessa a tampa que for. A tampa que inventar elas atravessam. Até com plástico eu já
amarrei a boca dessa vasilha, mas cadê que deu conta? Eu tenho pra mim que, querendo, elas
atravessam até parede. Na geladeira elas não mexem, eu acho que por causa do frio, né? Do
frio elas têm medo.
INDIENNE. Mãe...
ALZIRA. Diga.
INDIENNE. Eu já precisei fazer programa. (após uma pausa, completa) Mas isso não é
vergonha pra ninguém.
ALZIRA. (indicando a garapa) Não beba toda, não. Deixe um golinho pra mim.
Indienne entrega-lhe o copo. Alzira bebe o que resta da água com açúcar.
Silêncio.
Indienne aquiesce e sai. Passado um tempo ele volta, mexendo o açúcar no copo, com uma
colher.
ALZIRA. (examinando o copo) Ave-maria, Indienne... É tanto açúcar que chega ficou um
dedo no fundo.
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ALZIRA. (tomando a meizinha) Eu estou diminuindo mais no doce. Ficando velha, né? Deu
na televisão que nessa idade a mulher tem que diminuir no açúcar porque os ossos da gente
vão enfraquecendo. Aí eu vou tentando controlar. Seu pai reclama por causa do café, que eu
estou fazendo mais amargo. Mas já disse pra ele que se ele mesmo não pode se dar ao trabalho
de adoçar o café da xícara dele ou é porque está querendo comprar briga comigo ou é porque
está doente de preguiça. Preguiça, pra mim, é doença. Qual é o trabalho que dá pegar uma
colher de açúcar, botar numa xícara e mexer? Já disse que não vai ser por isso que o braço
dele vai entortar mais nem a mão dele vai cair, mas é mesmo que nada. Até um açucareiro
pequeno já tem, que eu comprei pra ele. Um vermelho. Está lá na geladeira. Ele usa? Usa
nada... O açúcar vira pedra de tanto que fica parado. É querendo arranjar briga, mesmo.
INDIENNE. Diga.
INDIENNE. Tomei.
INDIENNE. Tenho.
ALZIRA. Não está dizendo isso da boca pra fora, só pra me acalmar, não, né?
INDIENNE. Eu juro.
INDIENNE. Diga.
INDIENNE. Pode perguntar. Se já começou a falar então é melhor perguntar logo. A melhor
hora é essa mesmo.
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ALZIRA. E maconha?
Ele vai responder que sim, mas observa num relance o rosto da mãe e muda o rumo
da resposta:
ALZIRA. Vamo.
ALZIRA. É. Melhor. (após uma pausa, abre os braços) Venha cá, pequeno, venha. Deixe sua
mãe lhe abraçar.
INDIENNE. O cabelo da senhora está tão maltratado, mãe... Um cabelo bonito desse, a
senhora podendo cuidar, deixa largado. O cabelo de uma mulher é uma coroa de rainha. É
uma grinalda.
ALZIRA. Então está certo o meu ser estragado desse jeito, porque eu estou mais é pra
escrava.
INDIENNE. Lá vem a besteira... Isso aqui, a senhora fazendo uma massagem, pra hidratar,
dando um corte, a senhora vai ver como fica lindo.
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ALZIRA. Eu estou usando assim, meio curto, porque não esquenta tanto minha nuca.
INDIENNE. Sim, mas não é porque é curto que pode deixar ao Deus-dará, não.
ALZIRA. Mas, meu filho, isso fica mais é no lenço, pra não pegar cheiro de comida.
INDIENNE. Ah, mamãe! Se for assim também... Pra gente ficar bonita, algum trabalho tem
que ter!
ALZIRA. Combina?
INDIENNE. Lindo!
ALZIRA. É pendurado.
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Indienne aquiesce.
ALZIRA. Já ficou guardado tanto tempo! Vou esperar pra usar com o cabelo novo.
No que a mãe sai para guardar os brincos, Indienne retira de sua maleta uma tiara de
conchas e búzios. Quando Alzira volta, o objeto é a primeira coisa que nota.
ALZIRA. Ah, não, Indienne! Nem venha! Não está vendo que isso não é para mim!
Alzira, a despeito de grande esforço, não consegue deixar seu estado de estupor. Percebendo
a reação da mãe, Indienne vai tirar a tiara, mas Alzira o detém com um gesto. Passam ainda
alguns instantes até que ela consiga falar:
INDIENNE. O quê?
INDIENNE. Está fazendo hora com a minha cara, né? (entendendo finalmente que a mãe está
sendo sincera no pedido) Aqui?
INDIENNE. (tentando dissuadir a mãe) Lá a gente bota uma música e aí eu vou dublando.
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ALZIRA. Sabe, Indienne! Desde pequeno que tu era cantor! Toda vida foi. Cante, porque
senão eu não vou saber como é que fica.
Indienne canta os primeiros versos de “Guerreira” (de João Donato e Paulo César
Pinheiro):
Alzira vê Antero.
Silêncio.
Indienne tira da cabeça a tiara de conchas e búzios.
Antero tenta dizer algo, mas não consegue porque a saliva insiste em embotar o
caminho das palavras.
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Ao tentar se apoiar para sentar, Antero quebra a vasilha na qual tomaria canja.
ALZIRA. Antero, pelo amor de Deus, isso é coisa que se faça? Olha aí, o vexame que tu tá
dando!
ALZIRA. (reclama, enquanto apanha os cacos de louça) Muito bonito pra tua cara, né?
Agora onde é que tu vai tomar canja? – Levanta aí o pé, não está vendo que eu estou
trabalhando? – Eu agora vou botar teu jantar na vasilha do cachorro. Está se fazendo de bicho,
pois vai comer na vasilha do Japi!
ALZIRA. É.
ALZIRA. Não é aquele Japi, não, Indienne! Aquele morreu já tem anos! Esse aí podia ser é
neto do outro. Quando eu peguei aquele pra criar, tu ainda era criança e ele já era velho...
Depois daquele já teve mais uns três.
ALZIRA. É. É tudo um nome só, que eu não vou perder meu tempo inventando nome pra
cachorro! E se eu ficar mudando, é capaz de teu pai não decorar...
ANTERO. (segue, após uma pausa) Depois que tu fugiu, foi dando um tristume nele, ele foi
se amuando... Quando deu fé, morreu. (respira mais um pouco e continua) Pra que foi que tu
voltou, heim, Indienne? Pra dar mais desgosto do que já deu quando foi embora?
INDIENNE. Papai/
ANTERO. (corta) Tu foge de casa, larga pra trás o teu pai e a tua mãe e nunca, em vinte
anos/
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ANTERO. (insiste) Nunca, em vinte anos tu mandou nem que fosse uma carta! Nem um
papel com teu nome escrito tu mandou! Nunca nem pra dizer que estava vivo. Nem pra dizer
que lembrava de nós... Tem carta que só custa um centavo pra mandar. (faz mais uma pausa e
segue) E aí, Indienne, um dia eu chego em casa e te encontro virado nisso aí que tu está
agora... Não bastava o que tu já tinha feito, não, né? Não bastava tu ter levado minha perna,
meu braço, a força que eu tinha pra trabalhar, o gosto que eu ainda tinha de rir... Está me
olhando assim, por que? Tudo isso foi tu que levou. Naquela mesma semana que tu foi
embora eu deixei de ser um homem pra virar isso aqui que tu está vendo. Foi naquela mesma
semana. (respira mais um pouco e segue) Que tu não soubesse o número do telefone, está
certo, porque nós só botamo muito depois. Mas a casa ainda está no mesmo canto e tu nunca
nem pra mandar uma carta! Se tu tivesse mandado um bilhete que fosse, talvez eu tivesse paz
no meu coração. E o que eu queria era só isso, mesmo. Mais nada. Só isso. Me desse ao meno
essa paz!
ANTERO. (segue sem dar ouvido à esposa) Tu aleijou teu pai e pra completar ainda virou
isso aí que tu é agora!
ALZIRA. Pára, Antero! Não foi o menino que te aleijou, não!
ALZIRA. Não foi, não, e tu sabe! Tu está desse jeito é porque tu nunca teve coragem de
gastar dinheiro com o remédio da pressão! Tu está desse jeito é por causa do cigarro que tu
nuca largou! Teu mal é o vício. Indienne hoje mesmo largou o cigarro e cadê que tu larga? O
menino está com esse problema, mas pelo menos o mal que ele faz é só a ele! Quem escolheu
gastar o dinheiro do remédio jogando dominó foi tu, então não bote a culpa nele, não, que
tudo que tu diz Indienne acredita e nada disso que tu disse aí é verdade! E chega!
ANTERO. (ainda mais sentido que antes) Eu pensava que algum cigano tinha te roubado...
Diz que cigano, quando rouba criança alheia, bota doido. Ou então que tu tivesse caído, batido
a cabeça nalguma pedra, perdido o juízo. Mas essas coisa de cabeça, uma hora a gente está
ruim, outra hora a gente está bom. E aí eu imaginava que um dia tu ia escrever pra teu pai e
pra tua mãe dizendo onde tu estava, dizendo como é que estava tua família, tua vida, teu
trabalho... Aonde, heim, Indienne? Tu não estava doido, não. Doido, desse jeito que eu estou
dizendo, não. (após uma pausa) Menino, pelo amor de Deus, porque é que tu nunca fez essa
caridade de mandar uma carta pra dizer que lembrava de nós? Nem que fosse só um papel
com o teu nome escrito? (após uma pausa e finalmente) Tem carta que só custa um centavo
pra mandar...
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ALZIRA. Está bom, Antero! Também não precisa chorar, não... Chega.
ALZIRA. Isso é papel que tu faça na frente do menino, heim, Antero? Isso é papel que tu
faça? Tu não é homem, não? O que é que o menino vai pensar? Pára com isso! Isso aqui não é
nem enterro!
INDIENNE. Papai, onde eu estivesse, fosse onde fosse, todo dia, antes de eu dormir, eu
rezava um pai-nosso e uma ave-maria pra vocês dois, viu?
ALZIRA. Viu? Ele não esqueceu da gente, não! Ouviu, Antero? Responde.
ALZIRA. E ele agora é artista. É, sim senhor! Faz show! Imita a Clara Nunes!
ALZIRA. Tu não adorava a Clara Nunes? Pois então? Podendo ficar feliz, fica aí com a cara
amarrada...
INDIENNE. Diz que se está todo mundo falando e de repente se cala é porque passou um
anjo. (após uma pausa) Se for, acabou de passar um por aqui.
Outro silêncio.
INDIENNE. Tanta saudade que eu tinha de vocês dois. Saudade da minha casa, da minha
mãe, do meu pai...
INDIENNE. É que a gente faz besteira, mesmo, pai. A gente erra muito, pra aprender.
ALZIRA. Tanta saudade que a gente tinha de você, Indienne... Tanta saudade... Deus do céu
foi que lhe mandou aqui. Antes essa casa era tristeza, mas agora que você voltou ela é alegria.
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Graças a Deus! Está todo mundo alegre porque você voltou. (após uma pausa) Já pensou se tu
pudesse ficar?
Indienne olha os pais na esperança de uma reação entusiasmada que não vem.
INDIENNE. Já rodei demais nessa vida, passei por muita judiação... Estou cansada.
ALZIRA. Você está com algum problema lá na cidade? Se estiver, pode dizer.
INDIENNE. Passei a vida toda sendo por mim mesma, sem ninguém. Eu queria ter a minha
família... Eu acho família uma coisa bonita. Já conheci muita menina assim que arranjou um
marido, arranjou filho pra criar... Mas nunca deu certo eu me prender a ninguém nem ninguém
se prender a mim. Nunca. E eu já tentei tanto que não tenho mais nem força pra tentar.
Voltando pra cá, eu ajudo na casa, tomo conta de vocês, arranjo um emprego/
ALZIRA. (corta) Mas, Indienne, onde é que tu vai fazer teu show?
ALZIRA. O quê?
INDIENNE. Eu posso ser cabeleireira, posso trabalhar em algum balcão de loja. Eu aprendi a
fazer muita coisa...
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ALZIRA. (após uma pausa) Você está pensando que é fácil, Indienne... Pare pra pensar/
ALZIRA. (retomando, com cautela) Olhe em volta, meu filho. Me diz se tu acha mesmo que
aqui tua ia ser feliz... Do mesmo jeito que você disse que foi embora pra não ver seu pai e sua
mãe sofrer eu lhe digo que se você voltar quem vai sofrer mais é você. Sua felicidade não está
aqui, não. Você não acabou de dizer que quer ter uma família? Pois então? A chance de você
achar uma moça boa pra se casar com você está lá. Tudo que você construiu até agora, meu
filho, está lá.
INDIENNE. Tudo que construí até agora está aí nessa mala, mãe.
ALZIRA. (sem dar ouvidos ao filho) E com fé em Deus você ainda vai ter sua família. Vai,
sim. Da próxima vez, quando você voltar, talvez já venha até casado, com filho e tudo. Com
um casalzinho, feito os meninos do Cabeca. Quando for dia das mães, você vem, traz sua
esposa, traz todo mundo, vai ser tão bom... A gente faz assim: um ano você passa aqui, o
outro ano você passa na casa da sua sogra, que é pra não dar briga/
ALZIRA. Sem choro, Indienne... Não tem porque chorar. Escute o que sua mãe está dizendo:
vá tomar um banho, mude essa roupa que você usou na viagem, pegue uma roupa limpa, do
seu pai, e venha jantar. Quando der mais tarde você dorme, descansa e aí, de manhã, eu faço
café, faço aquele bolo fofo com nata que você gosta e a gente toma café junto, nós três.
Quando der seis e vinte a gente lhe leva no trevo, pra você pegar o ônibus. Você veio de
ônibus, não foi? Pois então... A gente lhe leva lá e você pega o ônibus das seis e meia.
Indienne não diz nada, mas também não segue as instruções da mãe.
ALZIRA. Indienne, nesse instante não estava todo mundo tão alegre? Vá lavar essa cara, vá
molhar o corpo e tirar essa poeira da estrada que você melhora./
ALZIRA. E onde é que tu vai arranjar ônibus uma hora dessa, menino?
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ALZIRA. O carro é uma fortuna, Indienne! Deixa de agonia, anda! Vá tomar banho pra
jantar...
Indienne pensa por um tempo e, por fim, levanta mas não segue as instruções da mãe: Pega
a mala e a maleta e toma o rumo da porta.
ANTERO. Indienne!
INDIENNE. Se um dia vocês forem por lá, vocês passam lá na boate pra me ver. É só dizer
que são os pais de Indienne que eles deixam vocês entrarem.
ANTERO. Indienne?
Antero aquiesce. O silêncio de pedra se instaura novamente. Certo de que não há mais volta,
Indienne pega sua mala e vai outra vez em direção à porta mas, nisso, do lado de fora da
casa, alguém bate palmas.
Indienne pára.
NOÉLIA. (fora de cena) Alzira? (após uma pausa, bate palmas outra vez) Ô, comadre! (bate
palmas ainda outra vez mas, como na casa não há nenhuma resposta, vai entrando) Eu bati
palma, viu? Depois tu não vem dizer que eu estou entrando sem bater/
INDIENNE. Eu vim trazer um recado de Moacir, que agora se chama Indienne, sua afilhada.
Ela mandou dizer que está bem e que está com muita saudade da senhora. Ela pede sua
bênção e pede também que a senhora diga a Cabeca que ele ficou muito contente de saber do
casamento, dos filhos, de saber que ela está feliz. A senhora diz?
NOÉLIA. Você diga a ele, digo... ela que – que Deus lhe abençoe.
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ALZIRA. Já vou.
Antero não responde. Ele percebe que Indienne esqueceu em algum canto da casa a
tiara de conchas e búzios, vai até o objeto, apanha-a e sai, levando-a consigo.
Noélia percebe a imagem de Nossa Senhora. Está examinando-a quando volta Alzira, de véu
na cabeça e rosário na mão.
ALZIRA. Deixa isso aí, Noélia! Deixa isso aí e vamo logo, senão a gente se atrasa.
ALZIRA. Não tem nada pra ver aqui, não! Não tem nada pra você ver aqui...
Cai o pano.
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