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ANEXO IV

(TEXTO TEATRAL)
*verso em PDF estar disponvel na Coordenao de Artes Cnicas

David Gieselmann

SENHOR KOLPERT

Personagens
Edith Mole
Bastian Mole, marido de Edith
Sarah Dreher
Ralf Droht, namorado de Sarah
Entregador de Pizza
(O ltimo tem vinte e poucos, ambos os casais tm vinte e tantos anos.)

Cenrio
Sala de estar do apartamento de Sarah e Ralf: estilo clean, novo rico.
Mveis, porta de entrada, portas para a cozinha e para o banheiro. O banheiro disposto de forma
que, quando de porta aberta, d a ver o interior.
Uma janela, um armrio embutido. Um grande ba disposto no centro da sala.
and you may find yourself in a beautiful house
with a beautiful wife
and you may ask yourself: Well ... how did I get here?
Talking Heads

Ralf limpa o ba, Sarah entra, do banheiro, de vestido vermelho.


SARAH. O que fica sem lgica do filme no ele zanzar de metralhadora pelo bairro, ele ter uma
metralhadora.
RALF. Sem explicao nenhuma?
SARAH. Nada. ... E a?
RALF. O que?
SARAH. O vestido.
RALF. OK.
SARAH. No era melhor eu...
RALF. s um jantar.
SARAH. Achei que, pela ocasio...
RALF. Tanto faz. ... Est mal contado, quer dizer, ningum sai de manh para o trabalho levando
uma metralhadora.
SARAH. Como?
RALF. ... o filme.
SARAH. Ah. s vezes bem que eu queria principalmente no trabalho.
RALF. O que?
SARAH. Uma metralhadora. Hoje mesmo ia ter me poupado alguns aborrecimentos.
RALF. Bom para os seus colegas.
SARAH. Seria apenas para dar um chega-pra-l, meu bem.
RALF. Claro.
SARAH. (irnica) No meio dessa confuso toda quase esqueci que daqui a pouco eles chegam
para o jantar e no tem nada para comer em casa.

RALF. A gente d um jeito de encher a barriga deles. Inventa alguma desculpa, diz que eu tive um
acidente voltando do ... do campo de golf.
SARAH. Golf? Voc?
RALF. Pede pizza, alguma coisa assim.
SARAH. Tomara que no cheguem j agora.
RALF. A gente est recebendo sua colega de trabalho e o marido estranho dela, e no por
cortesia, por diverso.
SARAH. Tem razo. Alis a metralhadora ia ser um despropsito numa situao assim. ... A gente
no pode dar logo na cara.
RALF. Que estamos desarmados?
(Ambos riem.)
SARAH. Que eles vo ser nossa diverso, claro.
RALF. Muito pelo contrrio, meu bem, a questo toda essa.
SARAH. Tem razo.
RALF. O que a gente precisa dar na cara, logo que eles atravessarem a porta, que ns temos
alguns esqueletos no armrio.
SARAH. Ento vou trancar o ba.
RALF. Para que?
SARAH. Por isso, n?
RALF. Fique vontade.
SARAH. Est sem a chave.
RALF. Deve estar por a em algum lugar.
SARAH. (procurando) Qualquer coisa, depois eu posso trocar de roupa outra vez.
RALF. O vestido est lindo.

SARAH. Voc que achou exagerado.


RALF. S achei que hoje o vestido no seria o mais importante.
SARAH. Cad essa chave, afinal?
RALF. Voc muda de roupa o tempo todo.
SARAH. Depois, talvez. Agora preciso encontrar a chave.
RALF. Voc acha que eles vo chegar e j sair remexendo os mveis?
SARAH. Claro que no.
RALF. Pois ento.
SARAH. Deve estar aqui em algum lugar.
RALF. Voc quer trocar de roupa por qu?
SARAH. Voc limpou o ba por qu?
RALF. Na vida, ordem tudo.
SARAH. Tudo, menos uma chave.
RALF. ... Ele fica preso num engarrafamento?
SARAH. (procurando) ... Quem?
RALF. No filme.
SARAH. Ah! ... ! Ele fica preso num engarrafamento.
RALF. Ali, olha.
SARAH. Tpico. Uma piscadela e voc j encontra. (Ela pega a chave, tranca o ba, depois
pendura a chave em um gancho na parede.) Ele sai do carro, tranquilo, abre o porta-mala, pega a
metralhadora e entra no caf. Tudo na maior tranquilidade, como se fosse a coisa mais normal do
mundo. Como ainda o comeo do filme e ele faz tudo normal, a gente pensa, aha, esse cara que
tem uma metralhadora no porta-mala est indo com ela tomar um caf; mais hora menos hora vo
esclarecer o que est acontecendo com ele e tal. A a gente acaba esquecendo a pergunta, talvez
ele fosse policial, sei l, mas que agora me bateu de novo: por que ele tinha uma metralhadora?

RALF. Eu, obviamente, no sei.


SARAH. Claro, meu bem, mas a questo : l em Hollywood, ser que eles sabem?
RALF. A gente telefona e pergunta. Tenho a impresso de que l eles no deixam passar nada.
SARAH. Meu argumento justamente esse. Seno seria imperdovel.
RALF. Sarah?
SARAH. O que?
RALF. Voc est absolutamente fantstica.
SARAH. Obrigada.
RALF. (d um beijo em Sarah) E, com a metralhadora, ele faz quantos cadveres?
(Batidas na porta.)
SARA. Um monte.
(Sara e Ralf vo porta e abrem-na: Edith e Bastian aparecem porta.)
RALF. Vamos entrando. aqui mesmo. Hoje somos s ns e um cadver.
EDITH. Um cadver?
RALF. No precisa ter medo. Ainda no comeou a feder.
SARAH. No prestem ateno nele. Boa-noite.
BASTIAN. Ah... Boa-noite.
SARAH. Boa-noite, boa-noite.
BASTAIN. , oi.
SARAH. Bem-vindos, os dois. Bebem alguma coisa?
EDITH. Ns no bebemos.
BASTIAN. No bebemos. ... nunca.

EDITH. Isso ...


RALF. Questo de princpio?
SARAH. Como assim, princpio?
RALF. Que nenhum dos dois beba.
EDITH. Vocs esto falando da gente?
RALF. , desculpa.
BASTIAN. No tem nada a ver com princpio, a gente no bebe e pronto.
EDITH. Nunca.
RALF. Por uma questo de princpio eu chamaria isso de uma questo de princpio.
BASTIAN. (segurando Ralf pelo colarinho) A gente no bebe, ok?
RALF. No seja por isso.
BASTIAN. Minha mulher e eu no nos deixamos levar pelo lcool. E eu espero que o tema da
bebida esteja encerrado.
SARAH. A gente tem alguns... sucos.
EDITH. Bem, por que no?
SARAH. No?
(Sarah d suco a Edith.)
RALF. Espero que a gente no incomode, se beber.
BASTIAN. Por mim, podem encher a cara!
EDITH. Bastian, se acalme.
BASTIAN. (mais controlado) Tem razo, desculpa.
RALF. (para Sarah) Meu bem, me acompanha no conhaque?
SARAH. Por favor.

EDITH. (indicando seu copo de suco para Bastian) Tambm quer?


BASTIAN. Eu pensei que o tema estivesse encerrado.
SARAH. Sua mulher est tomando suco de abacaxi. Voc tambm quer?
BASTIAN. Ah, bom. Sim, por favor. Mas, abacaxi...?
SARAH. Tambm temos... Pssego, cereja, banana.
BASTIAN. Deus do cu. E de laranja?
SARAH. Infelizmente no.
BASTIAN. Ma?
SARAH. Infelizmente.
EDITH. (provando um pouco de suco) Recomendo fortemente o de abacaxi.
BASTIAN. Ento vai esse mesmo.
SARAH. Abacaxi?
BASTIAN. (com falso entusiasmo) Sim! Por favor!
RALF. que, como a gente est sempre enchendo a cara, nossa oferta de suco no to grande.
BASTIAN. Grande at que . S que eu prefiro suco mais simples: laranja, ma. Eis a o meu
princpio: o item mais simples de uma linha de produtos implica mais fielmente a idia original, a
essncia original desse produto.
SARAH. Muito impressionante.
RALF. Por isso voc arquiteto?
BASTIAN. Podemos dizer que sim. Mas como foi que isso lhe ocorreu?
RALF. Foi s um pensamento, uma idia. Afinal suas casas tambm no representam essa idia
original, essa essncia original de uma casa em si?
BASTIAN. (demovido) Conhece meu trabalho?

RALF. No muito. S o que d para saber como um leigo que se interessa por arquitetura. Alm
disso tem o que Sarah me conta que sua esposa conta para ela. Edith.
BASTIAN. A propsito, eu gostaria de me desculpar pelo uso da expresso encher a cara. s
vezes eu sou meio estourado.
RALF. (com um aceno de cabea) Ora...
(Silncio.)
EDITH. O que era mesmo aquela histria de cadver?
RALF. Pois ento.
SARAH. Nenhum de ns dois sabe cozinhar.
RALF. A gente no cozinha.
SARAH. Se vocs estiverem com fome, tem um chins que entrega a partir de quarenta marcos,
juntando tudo a gente chega a fcil, e tem vinho branco seco, s que vocs no bebem, coca-cola
talvez, tudo bem simples, mas do molho agridoce a gente gosta bastante, bom mesmo e no
tudo de plstico, os pratos so de isopor, eu acho; Pizza, vrias opes, s que no San Remo da
rua Sorge os pratos de massa no so to bons. Tem aquela pizzaria americana, que tambm faz
hamburger e batata frita encharcada de leo e que demora um pouco para entregar. L j
praticamente outro bairro, mas para a gente eles fazem uma exceo porque somos fregueses
super fiis, a gente j pedia l quando morava na mesma esquina deles, querem que eu pegue o
cardpio l na cozinha? Ralf sempre pede a 42, italiana, com atum extra, o que no mata engorda.
BASTIAN. Meu bem?
EDITH. T. Pizza. ... Quatro estaes.
BASTIAN. ... Bolonhesa, com ovo.
RALF. (j com o telefone na mo) E voc, meu bem?
SARAH. 26, sem pprica.
RALF. E o nmero?
SARAH. 26.

RALF. O nmero do telefone.


SARAH. 443 45 16.
RALF. (digita) 443 45 16. Al? Isso, Ralf falando. Nmero do cliente 2234. Rua Pocke, . 45. Rua
Pocke, 45, Ralf Droht. Uma 42 com atum extra, uma 26 sem pprica, uma quatro estaes com
ovo e uma bolonhesa...
BASTIAN. ... com alho...
RALF. ... com alho...
BASTIAN. ... e ovo.
RALF. ... e ovo.
EDITH. A minha sem ovo.
RALF. A 26 sem ovo.
EDITH. A quatro estaes.
RALF. A quatro estaes. A 26 com ovo, sim.
SARAH. No! Sem!
RALF. sem, mesmo.
SARAH. E sem pprica.
RALF. E sem pprica.
EDITH. E a quatro estaes sem ovo.
BASTIAN. A bolonhesa com.
RALF. A quatro estaes tambm sem, a bolonhesa com ovo e alho... Como? Est
perguntando como que fica a pprica.
SARAH. Sem, a 26.
RALF. Sem a 26, por favor. No est com fome, meu bem?
SARAH. Estou, claro! Eu quero uma 26 sem pprika, dois brancos secos, e duas coca-colas.

RALF. Sim, sim. A 26 sim, mas sem pprica, com ovo.


SARAH. Sem.
RALF. Sem ovo.
BASTIAN. Para mim, com, por favor.
RALF. E a quatro estaes com, por favor.
BASTIAN. A bolonhesa.
RALF. A bolonhesa. Ele est dizendo que a quatro estaes j sem ovo.
SARAH. Dois brancos secos, duas coca-colas.
RALF. Dois prossecos duas coca-colas. Ateno, vou repetir tudo.
SARAH. Deus do cu.
RALF. Uma 42 com atum extra, uma 26 sem ovo, sem pprica, uma quatro sem ovo, uma
bolonhesa. ... , pizza, nada de massa com ovo, a bolonhesa tambm, sem ovo e com alho fresco.
SARAH. O nmero da quatro estaes quatro?
RALF. O nmero da quatro estaes quatro? No? Ento no a quatro sem ovo, a quatro
estaes sem ovo. Ele est dizendo que no burro. ... Isso, isso: a quatro estaes sem nada, ou
seja, com tudo que tiver nela, s que sem ovo e sem pprica...
SARAH. E sem alho.
RALF. (desliga) De quinze a vinte minutos.
SARAH. Pode esperar sentado.
EDITH. ... O que foi aquela brincadeira de cadver?
SARAH. Brincadeira. Uma brincadeira. Hahaha!
RALF. que a gente deu um fim no senhor Kolpert e ele est ali, no ba.
SARAH. Uma brincadeira: o senhor Kolpert, da contabilidade.
EDITH. Isso a gente vai ver na segunda feira.

10

RALF. Voc conhece o senhor Kolpert?


BASTIAN. Conhece, da contabilidade.
EDITH. (ri de leve) Ele trabalha na contabilidade.
RALF. Poxa vida, eu disse que era um erro receber visita bem na semana do nosso primeiro
assassinato. E logo voc, Edith, uma colega de trabalho da Sarah e, por conseqncia, da vtima,
o senhor Kolpert, estar aqui, , de fato, um despropsito.
(Silncio.)
EDITH. Eu conhecia o senhor Kolpert. Ele trabalhava na contabilidade. Aqui e ali eu dava alguma
dica de clculo para ele, quando a senhora Struwe faltava, com aquela enxaqueca eterna. O
senhor Kolpert calculava, por exemplo, a previso da entrada de dividendos pelas mensalidades
dos membros do clube do melhor preo. Eu tinha um caso com o senhor Kolpert. Tudo por causa
do jeito que ele franzia aquela sobrancelha desgrenhada por cima do fundo de garrafa, quando
fazia as contas. Me desculpe, Bastian, voc ter que descobrir isso dessa maneira, mas o senhor
Kolpert era muito bom de cama quer dizer, de elevador. (curta pausa) uma pena que ele tenha
morrido.
BASTIAN. No vejo graa nenhuma nisso.
SARAH. Aceita mais suco de abacaxi?
RALF. De fato no tem graa nenhuma talvez como humor negro, se tanto que, como eu disse,
a gente tenha assassinado o senhor Kolpert. (Ele mostra um arame.) Ele foi estrangulado com
esse arame. Est a, no ba. Agora ele no trabalha mais na contabilidade.
EDITH. (com riso forado) Muito engraado. Na segunda-feira eu mesma vou contar isso ao
senhor Kolpert.
RALF. Isso no vai acontecer.
EDITH. Coitado do senhor Kolpert. Ficou parecendo cada vez mais idiota desde que a gente
comeou a vender fitness food e aparelho de ginstica.
SARAH. Como assim?
EDITH. Voc por acaso consegue imaginar o senhor Kolpert fazendo ginstica?
SARAH. No.

11

EDITH. Pois ento... isso.


RALF. De um jeito ou de outro, agora ele no vai fazer ginstica nunca mais.
(Silncio.)
SARAH. Por onde anda essa pizza?
EDITH. (para Bastian) Meu bem, a sua injeo.
(Sarah e Ralf se entreolham intrigados.)
EDITH. Insulina. Bastian diabtico. Antes da pizza...
BASTIAN. Ser que vocs poderiam por favor no falar mais nem da minha diabetes, nem do
colega de trabalho de vocs, o senhor Kolpert, nem de nenhuma orgia no elevador? (curta pausa)
Ralf, Edith me falou do seu trabalho.
RALF. Ah, foi?
BASTIAN. Sim, foi.
RALF. E?
EDITH. Muito interessante.
RALF. um trabalho como outro qualquer. Um mecnico conserta motores, um
filsofo filosofa, um dentista trata dos dentes. O mundo do trabalho, sobretudo no ramo das
cincias, tem se tornado cada vez mais especializado. Hoje s h especialistas em determinadas
reas especializadas em grupos especializados de trabalho.
BASTIAN. (aquiescendo) Orto-dentistas.
EDITH. (aquiescendo) Mecnicos navais.
SARAH. (aquiescendo) ... Socilogos.
BASTIAN. Mas isso tudo do ramo de servio.
RALF. Hoje em dia, mesmo sociologia um conceito muito abrangente. Um amigo meu, por
exemplo, fsico de semi-condutores.

12

EDITH. De semi o que?


SARAH. Fsico de semi-condutores.
EDITH. Mas e que diabo por acaso um fsico de semi-condutores?
RALF. Ele habilitado na prtica da... da fsica de semi-condutores.
BASTIAN. Semi-condutores.
RALF. , existem materiais condutores, metal, por exemplo, e existem materiais no-condutores,
por exemplo...
BASTIAN. Madeira.
RALF. Madeira. E existem materiais que, assim... semi... conduzem.
EDITH. Ah, t. E servem para que?
RALF. Por exemplo, nesse terreno de montagem de computadores, produo de chips.
BASTIAN. (enquanto se auto-aplica de insulina) Sei. Mas e o que que pesquisa um pesquisador
do caos?
RALF. (enojado e fascinado com Bastian) Obviamente me perguntam isso com muita frequncia.
Nesse meio tempo eu j elaborei uma resposta bastante banal. O pesquisador do caos eu,
portanto pesquisa o caos. Por mais que isso parea redundante primeira vista, essa tautologia
contm em si tudo que necessrio definio. o seguinte, vejam s: o pesquisador na verdade
pesquisa a ordem. Seus motivos residem na idia de que por trs de qualquer coisa existe a
ordem, ou ainda, que tudo conduzido por alguma ordem. A um dia chegaram pesquisadores que
disseram: e se por trs de qualquer coisa existisse o caos ou se as coisas fossem conduzidas pelo
caos? Por exemplo, sabe quando a gente pinga o leite no caf e repara como aquelas gotculas se
espalham na xcara, em movimento de atrao e repulso? So eventos caticos dessa natureza
que um pesquisador do caos pesquisa. O paradoxo que, na
pesquisa do caos, se parte da hiptese de que no h razes ordenadas para todas as coisas,
entretanto reside na pesquisa do caos a idia de se observar o caos como razo ordenada.
EDITH. Paradoxo.
RALF. No ?

13

BASTIAN. E agora, por exemplo, voc est trabalhando em que?


SARAH. Ralf est desagregando a Mona Lisa.
EDITH. Como?
RALF. Com equaes diferenciais, no computador. No precisa ficar com medo.
EDITH. Ah, bom.
RALF. Com equaes especficas se pode caotizar a organizao dos pixels de uma pintura
digitalizada, e a a Mona Lisa vai ficando cada vez mais desfocada. O interesante que, quando se
repete isso muitas vezes, de alguma forma a Mona Lisa consegue se reconstituir a partir do caos.
EDITH. Ento para que desagregar, em primeiro lugar?
RALF. Vou lhe fazer outra pergunta: por que gostamos tanto de quebra-cabeas?
EDITH. Eu odeio quebra-cabeas.
RALF. (um tanto arrogante) Mas um pesquisador do caos, no. Ele ama quebra-cabeas.
BASTIAN. (segurando Ralf pelo colarinho) Que histria essa agora? Vai querer agredir minha
mulher?
SARAH. Socorro!
RALF. Mas como? No nada disso.
BASTIAN. (soltando Ralf) Me desculpe.
EDITH. s vezes Bastian se descontrola um pouco.
BASTIAN. E isso quer dizer o que?
SARAH. Sua esposa s est querendo acalmar os nimos.
RALF. De um jeito ou de outro, est tudo na mais perfeita ordem.
BASTIAN. Ningum perguntou nada a vocs. Estou falando com minha mulher. (para
Edith) Isso quer dizer o que?
EDITH. Isso o que?

14

BASTIAN. Que eu sou descontrolado.


EDITH. Que voc de fato ofereceu uma ameaa ao senhor Droht.
RALF. Pode me chamar de Ralf.
BASTIAN. Porque o Ralf aqui te jogou na merda. Eu fiz isso por voc e voc me vem com essa de
descontrolado.
EDITH. Eu acho que Ralf simplesmente talvez de uma maneira um tanto drstica, verdade
tenha apontado que eu, que no sou uma pesquisadora do caos, no estou inclinada a ter nenhum
gosto especial pelos quebra-cabeas.
BASTIAN. (para Ralf) Foi isso?
SARAH. Eu, pelo menos, entendi assim.
BASTIAN. Eu perguntei ao seu marido.
SARAH. No somos casados.
BASTIAN. Me desculpe.
SARAH. Tudo bem.
RALF. Senhor Mole, eu no tive a inteno de agredir sua esposa. Se foi dar nisso essa histria
toda de quebra-cabea, ento eu lhe apresento minhas desculpas.
BASTIAN. Perdoado.
EDITH. Muito bem. Ser que tem aqui algum lugar onde eu possa me refrescar um pouco?
BASTIAN. Claro, meu bem. (para Sarah) O banheiro fica onde?
SARAH. Aquela porta ali.
EDITH. Obrigada.
(Edith sai para o banheiro.)
BASTIAN. Sinto muito.
RALF. Sem problemas.

15

BASTIAN. Cada um com suas fraquezas.


RALF. Certamente.
SARAH. Disso, Senhor Mole, ns temos certeza.
RALF. Ns tambm temos nossas fraquezas.
SARAH. E por isso podemos bem conviver com as suas.
BASTIAN. E que histria essa agora?
SARAH. Como assim?
BASTIAN. Eu no tenho fraqueza nenhuma.
SARAH. No?
RALF. Claro que no.
BASTIAN. Ou vocs discordam?
SARAH. No.
BASTIAN. Ento, t. Eu estava falando da minha esposa, que o tempo todo precisa se refrescar.
SARAH. Mas nisso eu no vejo fraqueza nenhuma.
BASTIAN. Como eu disse: ento, t. Eu sou muito reativo com tudo que diz respeito a minha
mulher.
RALF. Muito digno de louvor.
BASTIAN. Vocs no so casados?
SARAH. No.
(Silncio. Edith entra, do banheiro.)
BASTIAN. Tudo certo, meu bem?
EDITH. Tudo em ordem. E vocs? Se divertindo?
BASTIAN. Mais ou menos.

16

SARAH. Quando estiverem com sede, podem se servir.


EDITH. Claro.
(Batidas no ba onde o senhor Kolpert estaria.)
BASTIAN. Que foi isso?
SARAH. (empolgada) Ah, a pizza!
(Sarah abre a porta com furor. Todos olham para fora, onde no h ningum.)
EDITH. No era a pizza. Eu acho que veio desse ba.
RALF. (tentando despistar) Mesmo porque pizza no bate.
(Ralf ri artificialmente da prpria piada, quando outra vez se ouvem batidas no ba.)
BASTIAN. Silncio! Est vindo do ba.
(Param para ouvir.)
RALF. Nada.
EDITH. Talvez seja o senhor Kolpert.
SARAH. O que?
EDITH. Que est batendo.
BASTIAN. Meu bem, desde quando voc tem tanto mau gosto?
EDITH. (orgulhosa de sua iniciativa) Mau gosto por que? Se for mesmo o senhor Kolpert que
acabou de bater isso quer dizer que ele ainda est vivo. Considerando que ningum deseja a
morte dele se pode muito bem dizer: que bom que ele est batendo.
BASTIAN. Que merda essa que voc est falando a?
EDITH. Estou simplesmente tentando tomar parte na piada dos nossos anfitries.
RALF. Agora fui eu que fiquei um pouco incomodado. O que a senhora est dizendo a, senhora
Mole...
EDITH. Edith.

17

RALF. Obrigado.
SARAH. Sarah!
BASTIAN. T.
SARAH. Mas cad essa pizza?
RALF. ... no nenhuma bobagem. Porque se de fato no foi o diabo do cachorro da vizinha,
como mesmo o nome dela? que produziu este rudo que lembra
vagamentea batidas, pode ter sido de fato o senhor Kolpert. O que quer dizer que ele ainda est
vivo.
BASTIAN. Estou comeando a me perguntar o que est por trs dessa histria toda com o senhor
Kolpert.
SARAH. Uma brincadeira!
EDITH. Meu bem, no seja bobo.
RALF. Bastian, uma pergunta... Bastian?
BASTIAN. Bastian.
RALF. Ralf. Voc tem um escritrio?
BASTIAN. Por que a pergunta?
RALF. Ou trabalha em casa?
BASTIAN. Os dois. Quer saber por que?
RALF. S estou me perguntando: de manh, quando vocs saem para o trabalho, vocs levam
uma metralhadora.
EDITH. Uma metralhadora?
BASTIAN. Est querendo tirar sarro da nossa cara?
RALF. por causa desse filme que tem um cara que fica maluco e comea a andar por a de
metralhadora.

18

SARAH. A gente estava se perguntando: onde foi que ele arranjou uma?
BASTIAN. O que?
SARAH. Metralhadora.
BASTIAN. E como que eu vou saber? Eu nem conheo o filme.
EDITH. s vezes, no trabalho, bem que eu queria ter uma metralhadora.
RALF. Sarah disse a mesma coisa.
BASTIAN. Com certeza para metralhar o senhor Kolpert! (Ele ri artificialmente.)
EDITH. Isso, meu bem! Entendeu, finalmente.
BASTIAN. Entendi faz tempo.
(Silncio.)
SARAH. De fato, eu queria saber onde est essa pizza.
EDITH. Com relao pesquisa do caos...
RALF. Sim.
EDITH. Pingar leite em uma xcara um evento que no tem nada de catico.
RALF. E como tem!
(Outra vez, batidas no ba.)
RALF. Mas o que isso afinal?
BASTIAN. Calado!
RALF. Estou calado.
BASTIAN. Silncio!
RALF. voc que est gritando.
BASTIAN. Fecha o bico!

19

RALF. Isso cupim.


BASTIAN. No cupim coisa nenhuma.
RALF. Voc est gritando por que?
BASTIAN. No estou gritando. Estou tentando localizar o barulho.
RALF. Pois localize logo de uma vez!
(Silncio.)
BASTIAN. Nada.
EDITH. E a?
RALF. O que?
EDITH. O caf!
RALF. Ah, sim. claro que se trata de um evento catico, sob uma perspectiva cientfica. O evento
simplesmente indescritvel a partir de qualquer frmula conhecida, porque depende de uma
quantidade infinita de variveis. No possvel dizer a vezes x divido por y igual a xz elevado
a ay, se fosse assim teramos de fato uma determinao no ambiente tridimensional de como, por
assim dizer, determinado leite se espalha em determinado caf em uma xcara padro: Massa da
xcara, ngulo do fluxo, velocidade do fluxo, temperatura do caf, temperatura do leite,
consistncia do leite, amplitude da presso do fluxo, temperatura ambiente, quantidade e peso do
caf e do leite, momentum de fluxo do bule et cetera, et cetera.
(Batidas porta.)
BASTIAN. De novo.
(Param para ouvir. Novas batidas porta.)
SARAH. Agora, com certeza, est vindo da porta.
(Sarah abre a porta: o entregador de pizza, um rapaz jovem, uniformizado, trazendo sob o brao
uma caixa trmica.)
ENTREGADOR. Pizza.
SARAH. No disse?

20

(Bastian, Sarah e Edith voltam-se ao entregador, porta, enquanto Ralf, sem ser percebido pelos
trs, esgueira-se at o ba e verifica se est trancada. Ele gira a chave e a esse ponto deve
resultar incerto se ela est sendo trancada ou destrancada. Ele esconde a chave.)
ENTREGADOR. Vamos l: duas havaianas famlia, uma vegetariana normal, um calzone normal e
quatro tiramisus. O que d...
SARAH. Tudo errado.
EDITH. De certo, s o tiramisu.
ENTREGADOR. Tudo errado como?
SARAH. Nada do que voc disse a foi o que a gente pediu.
BASTIAN. Vocs tambm no disseram nada do tamanho.
SARAH. Pequena, normal...
ENTREGADOR. ... famlia. Vocs pediram o que, ento?
SARAH. Era...
EDITH. Quatro-estaes famlia, sem ovo, sem pprica, sem alho...
SARAH. ... Bolonhesa famlia, com ovo e alho e sem pprica...
EDITH. 42 grande, com atum extra.
SARAH. E a 26 tambm, sem ovo, sem alho, ... sem ovo...
EDITH. ... e atum.
SARAH. Famlia, sem pprica.
ENTREGADOR. Anham. Alguma coisa coisa deve ter dado errado.
BASTIAN. bvio.
ENTREGADOR. Mas quatro tiramisus est certo?
SARAH. ...
EDITH. Isso, famlia.

21

RALF. (de trs) Que foi que houve, pessoal?


SARAH. O rapaz da pizza trouxe tudo errado.
ENTREGADOR. Isso a gente resolve rapidinho. Posso usar o telefone?
RALF. Eles vo ligar de volta?
ENTREGADOR. Claro. O senhor tem o nmero?
SARAH. 443 45 16.
ENTREGADOR. (digita) 443 45 16. Al? Luigi? , o Rudi. Escuta, eu estou aqui na casa dos
Pocke, da rua Droht...
SARAH. A gente no casado, o nome dele Ralf Droht, o meu Sarah Dreher e a gente mora
na rua Pocke.
ENTREGADOR. Um momento. Nmero do cliente?
SARAH. 2234.
ENTREGADOR. Ralf Droht e Sarah Dreher, nmero do cliente 2234. Voc liga de volta, para o
cliente no pagar a ligao? ... Qual o nmero de vocs?
RALF. 2234.
ENTREGADOR. 2234... e o que mais?
RALF. S isso.
ENTREGADOR. Como assim?
RALF. Poxa vida! No sabe nem que no restaurante de vocs o nmero do cliente s tem quatro
dgitos!
ENTREGADOR. O nmero do telefone, no do cliente.
RALF. Por que no disse logo? 423 51 69.
ENTREGADOR. 423 51 69, . (Ele desliga, toca o telefone.) Luigi, aconteceu alguma coisa com o
pedido daqui... Al? Ah. (Ele passa o telefone para Sarah.) para a senhora. Uma tal de senhora
Kolpert.

22

SARAH. Senhora Kolpert? ... No, seu marido no est mais. ... No, no disse nada de para onde
estava indo. ... Que ele foi embora j faz coisa de umas duas horas, . ... Sinto muito, mas no tem
nada que a gente possa fazer pela senhora... No, nem pense nesse tipo de coisa. ... Sim, se ele
aparecer por favor d uma ligadinha, para a gente ficar mais tranqilo. ... At mais, senhora
Kolpert.
(Sarah vai desligar, Bastian toma o telefone da mo dela.)
BASTIAN. (gritando ao telefone) Senhora Kolpert? Senhora Kolpert? ... Desligou.
(Bastian desliga, o telefone toca, Bastian atende.)
BASTIAN. Senhora Kolpert? A senhora est sentada? (Ele passa o telefone para o entregador.)
Para voc.
(Nesse exato instante, Bastian se lana em direo ao ba, Ralf o detm, d-se uma briga.)
EDITH. Ralf, meu bem, se acalme! Vai tudo se esclarecer!
ENTREGADOR. Luigi? Espera a.
EDITH. Essa histria do senhor Kolpert, isso s uma brincadeira. Uma brincadeira. Voc no
entendeu isso, ainda? Ele no est no ba.
(Agora Edith que vai em direo ao ba, com inteno de abri-lo, mas no ltimo instante Sarah a
detm. D-se uma segunda briga. Bastian consegue se desvencilhar de Ralf e vai abrir o ba, mas
est trancado. No que os olhares todos se voltam para o ba, d-se em meio grande briga uma
trgua geral, da qual o entregador se aproveita para esclarecer a questo dos pedidos.)
ENTREGADOR. Sim, Luigi, alguma coisa deu errado com o pedido daqui... D uma olhadinha no
computador e v quem foi mesmo que pediu duas havaianas famlia, uma vegetariana famlia, um
calzone e quatro tiramisus. Isso.
EDITH. Seria uma enorme coincidncia os clientes que pediram essas pizzas tambm terem
pedido quatro tiramisus famlia.
ENTREGADOR. D para calar a boca a?
BASTIAN. (segurando o entregador pelo colarinho) Quem lhe deu essa liberdade?
ENTREGADOR. Socorro!

23

EDITH. Bastian, meu bem, ele no teve a inteno.


BASTIAN. (largando o entregador) E qual foi a inteno que ele teve?
EDITH. Ele ficou um pouco confuso com nosso comportamento, o que totalmente compreensvel.
BASTIAN. No foi a gente que trocou as pizzas.
ENTREGADOR. Oi. Luigi? ... Luigi, que merda essa? exatamente a que eu estou. (Ele cobre o
bocal do telefone.) Est dizendo aqui o nmero do cliente e o endereo de vocs.
RALF. 2234, Rua Pocke.
EDITH. Tremenda idiotice.
ENTREGADOR. Luigi? Ento v a, por favor, quem foi que pediu o que foi pedido aqui onde eu
estou. ... isso, quem foi que, de acordo com o computador, pediu. ... Espera a. Que foi mesmo que
vocs pediram?
RALF. minha especialidade.
SARAH. Especialista, voc?
RALF. Ento: 42 com atum extra, bolonhesa com ovo e alho, 26 sem pprica e quatro-estaes.
EDITH. Tudo famlia.
SARAH. Dois vinhos, duas coca-colas.
EDITH. E quatro tiramisus famlia.
SARAH. (irnica) Especialista!
ENTREGADOR. O senhor pode vir aqui dizer isso para ele?
RALF. Claro, me d o esse telefone! (Ele pega o gancho do telefone.) Luigi? Ralf, falando. Pra
comear, v a pprica. No disse vai pra pica, homem, disse v a pprica! . Uma 42, com atum
extra, uma bolonhesa com alho e ovo, uma quatro estaes, tudo famlia, dois brancos secos, duas
coca-colas. ... Est dizendo que a coca-cola acabou.
SARAH. Tanto faz, manda soda.
RALF. Soda limonada.

24

EDITH. E quatro tiramisus famlia, v se no esquece.


ENTREGADOR. J esto aqui.
RALF. Quatro tiramisus famlia, v se no esquece, mas j esto aqui.
ENTREGADOR. Me d aqui, por favor. (Ele pega o telefone.) Oi, Luigi, anotou? ... Ele disse que
quem fez esse pedido foi outra pessoa. Luigi? Sim, mas justamente essa a questo: quem foi?
BASTIAN. Isso no faz o menor sentido. (Ele toma o telefone do entregador.) Escuta aqui, Luigi.
Se em dez minutos as pizzas no estiverem em cima desse ba, as pizzas certas dessa vez, a o
tempo vai fechar, entendeu? (Ele bate o telefone com fora.) assim que se faz.
ENTREGADOR. (esgueira-se em direo porta) Pode deixar que eu vou tomar conta disso. Logo
mais, estou de volta.
EDITH. Deixe pelo menos os tiramisus.
ENTREGADOR. Claro.
(Ele entrega os tiramisus e sai.)
BASTIAN. Preciso comer alguma coisa agora. Por causa da insulina.
(Bastian pega um tiramisu e comea a com-lo. Sarah vai ao banheiro. Edith e Ralf tambm
comem tiramisu. Ouvem-se batidas vindas do ba. Bastian joga o tiramisu na cara de Ralf e o
domina com rpidos golpes e imobilizaes, prendendo-o por fim a uma cadeira, com o arame que
Ralf apresentara como arma do crime. No que Ralf est fora de combate, entra Sarah, do
banheiro. Com um grito, ela se volta, na inteno de retornar ao ao banheiro, onde por fim ela se
tranca.)
BASTIAN. (grita) Aguente um pouco mais, Senhor Kolpert! A gente vai salvar o senhor!
EDITH. E agora?
BASTIAN. Agora a primeira coisa a fazer tirar a assassina do banheiro. (esmurrando a porta do
banheiro) Saia da, sua criminosa!
SARAH. (do banheiro) Eu s saio quando vocs abrirem o ba. O senhor Kolpert no est a!
BASTIAN. A gente s vai abrir o ba quando voc sair!

25

SARAH. Ah, t! Ento temos um probleminha.


(Bastian toma distncia.)
EDITH. Meu bem, o que voc est fazendo?
BASTIAN. Vou derrubar a porta.
EDITH. Isso no vai dar certo.
(Ralf graceja.)
BASTIAN. V rindo. Voc j est no papo, sua mulher eu pego fcil.
(Bastian toma impulso e se joga contra a porta. Pouco antes de chegar l, Sarah abre a porta, de
forma que Bastian invade o banheiro a toda velocidade. L, Sarah o aguarda com uma ducha
ligada. Depois de uma luta a base de gua e tapas, Bastian traz Sarah pelos cabelos, de volta
sala. Os dois esto encharcados. Bastian prende Sarah a uma outra cadeira e passa a procurar
um meio para arrombar o ba.)
EDITH. Voc quer fazer o que, meu bem?
BASTIAN. O que eu quero fazer? Quero arrombar o ba.
SARAH. Isso algo absolutamente contraproducente. O ba uma pea de herana. Talvez a
gente pudesse chegar a algum acordo, Ralf, atravs da concesso da chave.
RALF. Voc quer dar a chave para eles?
SARAH. Ele prendeu a gente. Nem uma fortaleza do sculo dezoito ia deter ele agora.
BASTIAN. Pode apostar.
SARAH. Onde que est?
RALF. O que?
SARAH. A chave.
RALF. No bolso da minha cala.
SARAH. Ralf sempre sabe onde esto as chaves.

26

EDITH. E a?
(Nesse meio tempo, Bastian encontrou alguns apetrechos, com os quais ele agora tenta abrir o
ba.)
BASTIAN. Eu j estou chegando, senhor Kolpert!
RALF. Ele no est a.
EDITH. (como se fosse novidade a alegao de que o Senhor Kolpert no esto ba) Ouviu,
Bastian? Ele no est no ba coisa nenhuma!
SARAH. Escuta aqui, Bastian: a chave est no bolso da cala do Ralf. Fique vontade para
examinaro ba, o senhor Kolpert no est a dentro. Esse negcio de ba foi uma brincadeira.
BASTIAN. Brincadeira? Brincadeira vocs tentarem fazer passar por brincadeira todo mundo ter
ouvido o senhor Kolpert batendo.
SARAH. Ento pegue logo a chave. Onde que est?
BASTIAN. Esse negcio de chave truque de vocs. No, senhora! Eu sei o que estou fazendo!
Vou arrombar o ba agora.
RALF. Bastian?
BASTIAN. Que foi?
RALF. verdade que voc tem tido dificuldade em fechar contratos?
BASTIAN. Est querendo chegar onde?
RALF. A gente pode ficar do seu lado. Quer dizer: caso voc e sua mulher estejam passando por
dificuldades financeiras, a gente pode muito bem ajudar.
BASTIAN. Aha! Suborno!
RALF. No! No h nenhum motivo para suborno. O senhor Kolpert no estno ba.
BASTIAN. Ento por que voc est me oferecendo dinheiro?
RALF. Coisa entre amigos.
BASTIAN. No fao amizade com assassino.

27

SARAH. Deixa, Ralf. No faz mais nenhum sentido.


RALF. Tem razo. Bastian vai arrombaro ba. Enquanto ele no conseguir, a gente pode continuar
fingindo que ele est l dentro.
SARAH. A rotina vai pesando sobre nossas cabeas. A semana toda s contribuio dos
membros do clube do melhor preo, Mona Lisas se desmanchando em pixels e gotas na xcara de
caf e, quando chega o fim de semana, a gente sai e repara nas pessoas e em como elas tambm
saem no fim de semana. Eu e o Ralf, a gente sempre ia pra boate no fim de semana e via as
pessoas danando, as mesmas que tinham terminado o colgio com a gente e como elas se
esforavam para fingir que s tinham sado da escola h poucas semanas e faziam os sentimentos
e tudo mais parecer piada. Mas a verdade que isso vale para todo mundo. Ns dois, Ralf e eu,
tambm no percebemos mais sentimento nenhum. E a gente queria de todo jeito sentir alguma
coisa. Sentir que ainda gente. Foi da que veio a idia do assassinato. A gente tambm planejou
com antecedncia seviciar e esquartejar o cadver. O senhor Kolpert pareceu adequado, porque
sempre foi to intil que ele mesmo nunca ia sentir mais nada. Hoje eu atra o senhor Kolpert para
o nosso apartamento. Ralf deveria estar de frias. Alm da senhora Mole no elevador ele decerto
ia querer ir comigo para a cama.
EDITH. Entendo perfeitamente.
BASTIAN. Que conversa essa, Edith?
SARAH. Estou falando dos nossos motivos.
BASTIAN. Calada! Isso verdade, Edith? Voc tinha um caso com o senhor Kolpert?
SARAH. verdade, Bastian.
BASTIAN. (deixa carem as ferramentas) Ento ele vai ficano ba.
EDITH. Voc vai acreditar nessa assassina?
BASTIAN. Na assassina, no. Mas voc mesma falou antes desse caso com o senhor Kolpert, e
agora de novo.
EDITH. Eu s queria, s estava querendo ir na onda dessa piada da Sarah e do Ralf.
RALF. De acordo com Sarah, Edith e o senhor Kolpert trepavam pelo menos duas vezes por dia. E
alis mandavam ver.

28

BASTIAN. Por isso que a gente no tem mais nada na cama desde que voc comeou a
trabalhar no depsito da Kobel.
(Bastian derruba Edith, ouvem-se batidas da porta.)
BASTIAN. Pode bater o quanto quiser, seu nojento filho da puta!
(Batidas na porta.)
BASTIAN. (cnico, para o ba) E a? Est muito apertado a dentro, senhor Kolpert?
(Batidas na porta.)
BASTIAN. (grita) Vou deixar voc morrer de fome a dentro, seu puto escroto, pode bater
vontade!
ENTREGADOR. (de fora) Pizza!
BASTIAN. (chutando o ba) O que o amador do senhor Droht no conseguiu fazer, que lhe dar
um fim, quem vai completar sou eu e vou acabar com voc seu filho de uma puta!
ENTREGADOR. (esmurrando a porta) Oi! Senhor Droht! A pizza!
RALF. Voc pode por favor abrir a porta, Bastian?
BASTIAN. Pra que?
RALF. A pizza.
(Pancadas na porta.)
BASTIAN. Ah, sim.
(Bastian abre a porta, o entregador espia dentro do apartamento: Edith est no cho, grogue e
ensanguentada, Sarah e Ralf esto presos a cadeiras.)
ENTREGADOR. Tudo em ordem, por aqui?
BASTIAN. Eu que pergunto! Qual foi a pizza que voc trouxe?
ENTREGADOR. Com a pizza est tudo em ordem.
RALF. Alm do mais, eu sou pesquisador do caos.

29

BASTIAN. Isso agora no tem importncia nenhuma. Manda a pizza para c!


(Bastian arranca a caixa trmica das mos do entregador e bate a porta.)
ENTREGADOR. (de fora) Ei! Deu sessenta e setenta. E eu gostaria de levar a caixa comigo, por
favor.
BASTIAN. (ele abre a porta com violncia) Nada disso! O senhor Kolpert meu!
ENTREGADOR. Quem?
SARAH. Bastian, eu acho que ele est falando da caixa trmica.
BASTIAN. Que caixa trmica?
EDITH. A caixa das pizzas, meu bem.
BASTIAN. Voc fique calada, sua destruidora de lares! (para o entregador) Voc disse que deu
quanto?
ENTREGADOR. Sessenta e setenta.
BASTIAN. Estou sem dinheiro aqui. A gente veio de convidado.
ENTREGADOR. No tenho nada a ver com isso. Quero meu dinheiro.
SARAH. Meu bem?
RALF. Sim, aqui, no bolso da minha cala.
BASTIAN. Isso truque.
RALF. No truque nenhum.
BASTIAN. (para o entregador) No bolso da cala dele.
ENTREGADOR. No truque?
BASTIAN. No truque.
(O entregador examina os bolsos da cala de Ralf.)
ENTREGADOR. Aqui s tem uma chave.

30

BASTIAN. Que chave essa?


RALF. a chave do ba.
BASTIAN. (toma a chave para si) Me d isso aqui!
RALF. Agora finalmente voc pode examinar o ba e soltar a gente, to logo voc perceba que
tudo foi s uma brincadeira de mau gosto e que o senhor Kolpert no est no ba.
BASTIAN. O diabo que vai abrir esse ba. O filho da puta vai acabar escapando.
RALF. Por mim, tudo bem. Mas a voc podia pelo menos desatar essas amarras, j que agora
voc tambm est interessado na morte do senhor Kolpert.
EDITH. Bastian? Eu acho que o que ele est dizendo tem lgica.
BASTIAN. E da? Eu achava que sua pulada de cerca com o senhor Kolpert tinha sido s
brincadeira.
EDITH. Ento abra o ba e pergunte voc mesmo.
BASTIAN. A quem?
EDITH. A quem mais, ora? Ao senhor Kolpert.
RALF. Ele no est no ba.
SARAH. (sussurrando para Ralf) Meu bem?
RALF (sussurrando para Sarah; no trecho seguinte, os dois sussurram) Sim?
SARAH. Se voc continuar insistindo que o senhor Kolpert no est no ba, isso vai ser
contraproducente, porque a o Bastian no vai abrir nunca. De onde se conclui que ele tambm
no vai nos soltar, a no ser que ele acredite em ns.
RALF. O que no algo muito provvel.
SARAH. Exatamente.
RALF. De fato voc tem razo mas, se insistirmos nessa linha de raciocnio, s teramos uma
chance de nos libertar caso Bastian acreditasse que o senhor Kolpert est no ba mas ao mesmo
tempo acreditasse que ele no teve um caso com Edith, sendo que no muito simples tornar as
duas coisas simultaneamente dignas de crena.

31

SARAH. Infelizmente, voc est certo, mas a gente precisa tentar.


BASTIAN. Esto murmurando o que? Pode parar com o estratagema a!
ENTREGADOR. Se que eu posso acrescentar algo ao tema: eu j escutei demais dessa
conversa toda, t certo que difcil, com certeza, vocs tm um problema, mas agora eu quero
meu dinheiro.
BASTIAN. Isso ns j entendemos, mas como eu disse eu no tenho nenhum dinheiro aqui.
EDITH. Eu tambm no.
SARAH. Meu bem, a gente tem algum dinheiro?
RALF. Tem. No ba.
BASTIAN. Mas que truquezinho miservel.
ENTREGADOR. Ento eu vou chamar a polcia.
EDITH. questionvel que com isso a situao v melhorar.
(O entregador vai em direo porta. Bastian barra-lhe o caminho.)
RALF. (diplomtico) Escuta s, Bastian. Aquilo da sua mulher ter trepado com o senhor Kolpert no
elevador, aquilo era s uma brincadeira de mau gosto. Edith fiel como um cachorrinho e o senhor
Kolpert, alis, feio de dar d. Isso de ele estar no ba, a propsito, no uma brincadeira. A
gente deu um fim nele pelo visto sem muito sucesso. Eu acharia bom que voc pegasse agora a
chave e libertasse o senhor Kolpert. A voc podia pagar a pizza e chamar a polcia. Sarah e eu
somos rus confessos. Dito isso ns temos agora o interesse de que o senhor Kolpert sobreviva.
Um homem inocente em um ba estreito desses. Eu lhe rogo como arquiteto que voc : solte
esse pobre miservel.
(Longo silncio. Bastian pega a chave, vai at o ba, hesita ainda uma vez e, com cuidado,
destranca oba e a abre.)
BASTIAN. Vazio.
ENTREGADOR. Como assim, vazio?
BASTIAN. Ningum dentro.

32

ENTREGADOR. Nenhum... Kolpert?


BASTIAN. No.
EDITH. Que merda.
(Edith e o entregador tambm vo at o ba e olham dentro.)
BASTIAN. (para o entregador) Me ajude a levantar!
(Bastian e o entregador emborcam o ba, balanam, nada cai de dentro dele.)
EDITH. E a gente amarrou a Sarah e o Ralf...
BASTIAN. E eu te esbofeteei...
EDITH. Vocs nos desculpem.
RALF. Sem problemas.
(Edith, Bastian e o entregador libertam Sarah e Ralf. Todos se abraam.)
ENTREGADOR. Bom, ento eu vou indo. As pizzas ficam por conta da casa.
SARAH. Isso no necessrio.
ENTREGADOR. Eu j passei por muita coisa em apartamentos estranhos, faz parte do trabalho.
Mas tamanha concatenao de ... mal-entendidos.
BASTIAN. E de brincadeira sem graa.
RALF. Voc leva mesmo uma arma quando sai de casa para o trabalho?
ENTREGADOR. O que?
RALF. Tudo bem. Muito obrigado, ento! Inclusive por ter destrocado as pizzas.
ENTREGADOR. Faz parte do trabalho. Ento, at mais ver! E peguem aqui essas bebidas!
(Ele entrega um saco com as bebidas.)
SARAH. Obrigada! At mais ver.
EDITH. At mais ver!

33

BASTIAN. , at mais ver. A gente com certeza vai pedir outras vezes com vocs!
(O entregador sai do apartamento.)
RALF. Bateu agora uma fome!
(Os quatro se ocupam agora de abrir as embalagens das pizzas e a trocar entre si at que cada
um fique com a sua. Sarah traz os talheres e tambm uma faca grande, para cortar as pizzas. Ralf
oferece vinho, que tambm ficou como cortesia do entregador de pizzas. Inclusive Edith e Bastian
aceitam o vinho, com muito gosto. Os quatro comem. Pausa.)
RALF. Que tipo de prdio voc constri mesmo?
EDITH. Bastian acaba de construir um museu.
BASTIAN. Meu bem, na verdade foi um prdio antigo reformado como museu. Um grande desafio,
nesses tempos em que a arquitetura de museus nas grandes cidades se emancipa das contrues
utilitrias em direo obra de arte auto-encenada. Seja como for: imaginem por favor um galpo
velho, decadente, com as paredes tortas e o reboco caindo aos pedaos.
(Silncio.)
RALF. E?
BASTIAN. J conseguiu?
RALF. O que?
BASTIAN. Imaginar.
SARAH. J.
EDITH. Bastian uma pessoa de pensamento muito espacial, no verdade, meu bem?
BASTIAN. No me interrompa, por favor. (para Edith e Sarah.) J imaginaram o galpo?
EDITH. (ela fecha os olhos) ... J.
BASTIAN. Ralf?
RALF. Agora vou precisar fechar os olhos por causa do galpo?
EDITH. Funciona maravilhosamente.

34

RALF. Por mim, tanto faz. (Ele fecha os olhos.) Est me parecendo meio ridculo.
BASTIAN ( beira de um outro ataque de ira) Se voc no se interessa pela minha profisso...
RALF. Pelo amor de Deus, Bastian! Me interesso. Me interesso, sim. Vamos l. Estou aqui com
meu galpo, que lindo o galpo, pronto, pode continuar, j estou vendo o galpo.
BASTIAN. Com paredes tortas?
EDITH. Um hum.
RALF. .
BASTIAN. Reboco caindo aos pedaos?
RALF. Prontinho.
EDITH. Espera um pouco.
(Silncio.)
EDITH. Ok.
BASTIAN. Buracos no assoalho e no telhado.
(Ralf se lana ao cho.)
SARAH. Que isso?
RALF. Foi um morcego.
BASTIAN. (segurando Ralf pelo colarinho) Se est querendo me tirar de palhao...
EDITH. Bastian!
BASTIAN. ... pode ter certeza que vai sobrar para voc.
RALF. Mas pelo amor de Deus, no, eu no estou querendo tirar voc de palhao, foi s uma
brincadeira. Brincadeira.
BASTIAN. Meu medo que ns dois no temos o mesmo senso de humor.
(Bastian larga Ralf. Ralf volta a se levantar.)

35

BASTIAN. Se no quer participar da brincadeira melhor dizer logo de vez.


RALF. No, no. Eu vou participar. (Ele volta a fechar osolhos.) Estou aqui, em um lindo galpo,
com paredes caindo aos pedaos e reboco torto.
SARAH. ao contrrio.
RALF. Claro, claro.
BASTIAN. Sem morcego?
RALF. Sem morcego.
BASTIAN. Est todo mundo preparado?
RALF. Estou.
SARAH. Estou, sim.
BASTIAN. Agora esse galpo precisa ser transformado em um museu moderno e arrojado. Ele
precisar exibir obras expoentes de diversas pocas, exposies temporrias e um acervo fixo.
No se pode esquecer ainda a infra-estrutura padro de um prdio pblico: banheiros, bilheteria,
guarda-volumes, loja de souvenir e caf. Com isso vm: reunio com a secretaria de obras,
audincia com o servio de patrimnio porque o prdio tombado, estudo da regulamentao
cabvel em que se encontram o detalhamento da largura mnima das portas giratrias, altura
mxima dos degraus de escada ou volume percentual mnimo dos materiais originais; como
costuma ocorrer na arquitetura: a quadatrura do crculo. Mas eu aceitei essa misso.
(Sarah e Ralf abrem os olhos.)
SARAH. Muito interessante. Que museu esse?
EDITH. o museu do relgio, em Sindelfingen.
(Silncio.)
BASTIAN. Mas por que estamos aqui falando dessas coisas de homem? Vamos beber ...
EDITH. sade do senhor Kolpert.
SARAH. Excelente idia.
TODOS. sade do senhor Kolpert.

36

BASTIAN. Vocs pegaram a gente de jeito com essa histria de senhor Kolpert.
(Silncio constrangedor de todos.)
SARAH. Museu do relgio.
(Sorriso brando, silncio.)
SARAH. O sorriso da Mona Lisa.
EDITH. Momentum de fluxo.
(Sorriso brando, silncio.)
EDITH. Uma 96 com pouco 7.
SARAH. Impressionante isso de fazer o pedido pelo nmero.
EDITH. Isso tudo serve para que?
(Todos agitam a cabea exageradamente, em sinal de incompreenso.)
SARAH. Material original de construo.
EDITH. ngulo do fluxo.
BASTIAN. Por que afinal vocs iam querer matar ele?
RALF. Quem?
BASTIAN / EDITH / SARAH. Senhor Kolpert.
RALF. Verdade. A gente no tem nenhum motivo real.
EDITH. Eu no consigo mais nem ouvir o nome.
RALF. Que nome?
BASTIAN / EDITH / SARAH. Senhor Kolpert.
SARAH. Esse nome.
(Os quatro murmuram consigo o nome Senhor Kolpert.)

37

SARAH. Onde ele est, afinal?


RALF. Quem?
BASTIAN / EDITH / SARAH. Senhor Kolpert.
BASTIAN. J deve estar em casa h muito tempo.
RALF. No. Ele est no armrio embutido.
EDITH. Por favor, de novo no.
BASTIAN. (segurando Ralf pelo colarinho) Isso no tem mais graa nenhuma!
RALF. Desculpa. Meu humor escapuliu.
BASTIAN. J chega. Vou mijar.
(Bastian sai para o banheiro, fecha a porta, os demais o ouvem tropear e cair.)
BASTIAN. (do banheiro) Aqui est tudo molhado.
EDITH. Se machucou, meu bem?
BASTIAN. No, no! Tudo certo. S precisa passar um pano depois. Agora vou mijar.
EDITH. Vocs vo me desculpar, o Bastian um pouco colrico.
SARAH. Est tudo em ordem, Edith. A gente tem uma vida to sem graa, que estamos dando
graas a Deus por essa noite, que foi to divertida.
RALF. Por isso que a gente contou sobre o senhor Kolpert.
SARAH. (sussurra) Ele est morto mesmo.
EDITH. (sussurra) Verdade?
SARAH. (sussurra) .
EDITH. (sussurra) Eu acreditei desde o comeo.
RALF. Srio?
EDITH. (sussurra) Srio.

38

(Os trs sorriem entre si. Entra Bastian, do banheiro.)


BASTIAN. Que foi?
RALF. Nada.
BASTIAN. Esto rindo de mim?
RALF. No.
EDITH. Vocs j conhecem?
BASTIAN. Quem? O senhor Kolpert?
EDITH. No, que piada! A piada!
RALF. Qual piada?
BASTIAN. Qual?
EDITH. Estavam dois homens no bar, cada um mais bbado que o outro. O primeiro vai e diz:
Qual a diferena entre o presidente dos Estados Unidos e um leo no cio? A o outro diz: ... No,
o contrrio. O primeiro pergunta Qual a diferena entre um leo no cio e o presidente dos
Estados Unidos?
BASTIAN. Isso exatamente o que ele tinha acabado de perguntar.
(Silncio.)
EDITH. Esqueci.
SARAH. No faz mal. Eu tenho para mim que essas frases de efeito so a parte mais chata das
piadas. Qual a diferena entre um leo nos Estados Unidos e um presidente no cio? A sim, s de
perguntar j engraado.
BASTIAN. .
(Todos ficam pensando sobre as possveis frases de efeito para a piada perdida.)
RALF. (para Sarah) Por que voc voltou a perguntar por onde andaria o Senhor Kolpert?
SARAH. Por que a mulher dele telefonou.

39

RALF. Ah...
EDITH. (grita) J chega desse nome!
BASTIAN. Que foi?
EDITH ( beira de um ataque de nervos) Se no pararem de uma vez por todas com esse negcio
de senhor Kolpert, se falarem outra vez esse nome ou fizerem qualquer suposio de que ele foi
assassinado e est no ba ou no armrio ou onde quer que seja, no sei no, vai acontecer uma
desgraa aqui! Eu vou... eu vou... eu vou jogar alguma coisa pela janela!
BASTIAN. Se acalme um pouco, meu bem.
EDITH. No me acalmo coisa nenhuma.
SARAH. Vamos jogar?
RALF. Ou vocs ainda esto com fome?
BASTIAN. Jogar o que? A gente por acaso criana?
EDITH. J estou satisfeita.
RALF. s vezes ainda se pode ter o sentimento de sermos crianas.
SARAH. Vamos brincar de advinhar a personagem?
EDITH. Excelente idia, assim todo mundo espairece.
BASTIAN. No sei, no.
RALF. Participe, Bastian! Pelo bem de nossas mulheres.
SARAH. Pelo nosso bem coisa nenhuma, isso seria inaceitvel.
BASTIAN. Como que funciona?
SARAH. Cada cola na testa um bilhete com um nome.
BASTIAN. Ok.
SARAH. A cada um precisa advinhar quem a pessoa que est com o nome na nossa testa.
EDITH. Vamos comear. Pega l o papel.

40

(Sara traz um bloco de post-it e um lpis. Edith escreve em uma folha e cola na testa de Sarah.
Depois passa adiante o bloco e o lpis. Sarah escreve o nome para Ralf, Ralf para Bastian e
Bastian para Edith. Agora cada um tem um pedao de papel com um nome colado na testa. Sara
Bill Clinton, Ralf Pateta, Bastian Marylin Monroe e Edith Senhor Kolpert.)
BASTIAN. Estou parecendo um imbecil.
SARAH. A gente fica mesmo parecendo um imbecil, mas a vantagem que todo mundo participa.
BASTIAN. Vou comear. Eu sou uma pessoa real?
SARAH. Sim.
BASTIAN. Sou homem?
SARAH. No.
RALF. Sou real?
EDITH. No.
RALF. Merda.
EDITH. Sou real?
RALF. Sim.
EDITH. Sou homem?
RALF. Sim.
EDITH. Perteno, em sentido amplo, ao ramo do entretenimento?
RALF E SARAH. Sim.
BASTIAN. Que merda essa? claro que no.
RALF. Ela fez questo de frisar: em sentido amplo.
EDITH. Posso ser mais especfica na pergunta?
BASTIAN. bom.
EDITH. Ganho a vida no ramo do entretenimento.

41

RALF. No.
SARAH. Estou vivo?
EDITH. Sim.
SARAH. Sou famoso?
EDITH. Sim.
SARAH. Sou homem?
EDITH. Sim.
SARAH. Sou mundialmente famoso?
EDITH. Com certeza.
BASTIAN. Brincadeira mais idiota.
EDITH. Quer participar, por favor?
BASTIAN. Estou participando.
SARAH. Estaria correta em supor que no sou alemo?
BASTIAN. Como que ela sabe?
EDITH. Sim.
BASTIAN. Isso a trapaa na certa. Qualquer pessoa perguntaria: Sou alemo?
SARAH. Pensei comigo, eu no devo ser alemo, j que sou mundialmente famoso.
BASTIAN. O que uma coisa tem a ver com a outra?
SARAH. Internacionalmente h mais pessoas famosas que na Alemanha.
EDITH. Meu bem, por que ela iria trapacear?
BASTIAN. Para ganhar, claro.
EDITH. No se trata aqui, em primeira instncia, de ganhar. Se trata sim de que o jogo seja
divertido.

42

BASTIAN. Bom, eu quero ganhar.


EDITH. Eu tambm, claro, mas no por isso que eu vou trapacear.
SARAH. Vou continuar.
RALF. Pergunta!
SARAH. Sou americano?
EDITH. Sim.
BASTIAN. Foi mal, a, mas est muito claro que a Sarah trapaceou.
RALF. (dando um safano) Quer parar de chamar minha namorada de trapaceira?
BASTIAN. (devolvendo o safano) Se ela j acertou na primeira rodada que americana alguma
coisa de errado tem que ter.
SARAH. Cala a boca! Sou eu de novo. Perteno ao ramo da poltica?
BASTIAN. Est vendo?
EDITH. Sim.
BASTIAN. Estou fora.
SARAH. J fui ou sou o presidente dos Estados Unidos?
BASTIAN. Ei! A so duas peguntas! Fui ou sou, voc vai ter que escolher uma ou outra.
SARAH. Sou.
EDITH. Sim.
BASTIAN. Claramente trapaa.
SARAH. Sou Bill Clinton?
EDITH. Sim.
SARAH. (retirando o bilhete da testa e saltitando) Ganhei! Ganhei!
BASTIAN. Grande vitria.

43

RALF. Cala a boca e pergunta logo! sua vez.


BASTIAN. O ganhador moral o prximo a acertar.
RALF. Sua vez.
BASTIAN. Espera a. Eu tambm sou uma mulher de verdade.
SARAH. Sim.
BASTIAN. Voc no est mais jogando. J ganhou.
SARAH. Mas eu ainda posso responder, claro.
BASTIAN. Acho que no.
SARAH. Deus do cu!
EDITH. Bastian, fique na sua, por favor!
BASTIAN. Estou tentando me manter aqui no conjunto das regras do jogo.
RALF. Pergunta alguma coisa.
BASTIAN. Ainda estou viva?
RALF. No.
BASTIAN. Merda!
RALF. Ento eu no sou de verdade.
EDITH. Sim.
RALF. Sou um personagem artstico?
BASTIAN. Artstico? Acho que no...
EDITH. Claro que um personagem artstico.
BASTIAN. Para mim, histria em quadrinho no arte.
EDITH. Parabns.

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BASTIAN. Que foi?


SARAH. Voc acabou de dar ao Ralf a dica de que ele um personagem de histria em
quadrinho.
RALF. Sou um personagem de histria em quadrinho?
BASTIAN. Merda! Foi mesmo. Mas agora vai passar a vez, porque voc nunca ia ter perguntado
isso da histria em quadrinho.
RALF. Mas que importa se foi voc mesmo quem falou? Sou um personagem do Walt Disney?
BASTIAN. Obrigado, estou fora. No jogo mais.
EDITH. Escuta aqui, Bastian: voc fica na sua e trata de participar!
RALF. Sou o Pato Donald?
EDITH. No, sinto muito. Ento, eu: sou um homem real que no ganha a vida no ramo do
entretenimento, mas que no entanto segundo Ralf atua nessa rea, em sentido amplo.
SARAH. No se pode dizer que voc est esquentando.
EDITH. Eu me conheo, pessoalmente?
SARAH. Sim.
EDITH. Estou nessa sala?
RALF. Sim.
BASTIAN. No.
EDITH. Qual dos dois?
BASTIAN. Voc no est nessa sala.
RALF. Em sentido amplo, est.
EDITH. Ento, em sentido amplo, eu estou nessa sala?
RALF. ...

45

EDITH. Me diz uma coisa, vocs so retardados? Como que nessa sala algum pode no estar,
em sentido amplo?
BASTIAN. Voc no est aqui, ok?
EDITH. Vou reformular a pergunta: Estaria correta em supor que no sou nem Ralf, nem Bastian,
nem Sarah, nem eu mesma?
RALF. Sim.
EDITH. Eu gosto de mim?
BASTIAN. No. Perteno em sentido amplo ao ramo do entretenimento?
EDITH. Sim.
BASTIAN. Sou pintora?
EDITH. No.
BASTIAN. Jogo de merda.
RALF. Sou o Pateta?
SARAH. Sim, muito bem!
RALF. (retirando o bilhete da testa) Segundo Bastian, eu sou o vencedor moral!
EDITH. Ainda estou vivo?
RALF. No.
BASTIAN. Est sim.
EDITH. Qual dos dois vai ser?
BASTIAN. Voc ainda est vivo.
RALF. Depende do ponto de vista.
BASTIAN. Meu bem, acredite: voc est vivo.
EDITH. Assim, como que eu vou poder adivinhar?

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BASTIAN. s continuar perguntando. Voc est vivo, ento ainda sua vez.
RALF. Ela est morta.
BASTIAN. Nem escute.
EDITH. (sob risco de exploso iminente) Sou um colega de trabalho meu e de Sarah?
SARAH. Sim.
EDITH. (trmula) Estaria correta em supor que meu nome foi o mais mencionado essa noite?
SARAH. Sim.
EDITH. (completamente enrubescida) Levantou-se hoje, a meu respeito, a suspeita de estar morto
nesse ba?
SARAH. Sim.
EDITH. (arrancando, com fria desmedida, o bilhete em sua testa) Eu sou o senhor Kolpert?
SARAH. No.
EDITH. (aos berros) Agora de uma vez por todas: chega dessa porra de senhor Kolpert!
BASTIAN. Mas o que foi que deu em voc?
EDITH. O que deu em mim? O que foi que deu em mim? E isso quem pergunta meu marido
animal, que hoje amarrou os anfitries da casa e esbofeteou a prpria mulher, e vem perguntar o
que foi que deu em mim? Esto querendo o que afinal com essa histria de senhor Kolpert? A
gente acabou em um manicmio, mas ainda assim meu marido vem me perguntar o que foi que
deu em mim. A propsito, eu no trepei com o senhor Kolpert nem no elevador nem em lugar
nenhum e se voc conhecesse o senhor Kolpert ia saber do absurdo que sequer imaginar que
ele fosse me enrabar eu ou qualquer outra mulher no elevador. Aquele miservel sem graa
quando muito vai para a cama com o clculo do lucro dos participantes do clube do melhor preo e
se masturba pensando em mim ou na senhora Struwe, porque ela deu uma dica de clculo a ele.
Alis eu estou com enxaqueca nesse exato momento. Sabem do que mais? Se o senhor Kolper
entrasse aqui agora eu ia gostar muito de acabar com a raa dele, com a raa daquele Kolpert de
merda. Primeiro eu ia mandar uma no saco dele. Depois dava-lhe um pescoo com toda fora. A
esquentava um ferro e passava na barriga dele. E pegava a pistola de choque da senhora Kratter
do escritrio 45 e dava choque no cotovelo dele. A eu esquentava quinze litros de azeite e

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despejava na cabea dele. E enfiava a mo dele no triturador de papel. E pegava a outra mo e


arrancava as unhas dele com uma tesoura de jardim. E a enfiava uma pistola na orelha dele e
botava aquele ouvido pra funcionar e a, claro, enfiava umas duas ou trs balas em algum lugar
que no matasse logo de vez. E metia um ferro em brasa no cu dele. E afogava ele em gua
fervendo. E a nunca mais ele fazia conta nehuma.
(Edith vira de uma vez a garrafa de vinho tinto. No que ela larga a garrafa, cai o senhor Kolpert,
torturado e mutilado, de dentro do armrio embutido. Batidas na porta.)
ENTREGADOR. (de fora) Oi! Eu esqueci a caixa trmica!
RALF. (grita) No ficou aqui.
ENTREGADOR. (de fora) Mas tem que ter ficado.
EDITH. (baixinho, para Sarah) Ele est morto?
(Bastian vomita.)
RALF. No est aqui, a gente jogou pela janela.
SARAH. (baixinho, para Edith) Pelo menos foi o que a gente sups.
ENTREGADOR. Que conversa essa? Deixe eu entrar logo de vez!
EDITH. (baixinho, para Sarah) E agora voc supe o que?
SARAH. No sei.
(Bastian, com a camisa toda vomitada, abre a porta.)
ENTREGADOR. O senhor est sentido o que? Foi a pizza?
BASTIAN. Chame a polcia e a ambulncia.
RALF. Nada disso.
(Ralf puxa o entregador de pizzas para dentro, tranca a porta, joga a chave pela janela e arranca o
cabo do telefone da conexo.)
BASTIAN. Edith, faa alguma coisa!
EDITH. Fazer o que?

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BASTIAN. Eu no sei! Eu tenho medo!


RALF. Ele ainda est vivo?
EDITH. A gente no sabe.
RALF. A gente quem?
SARAH. A gente no sabe.
BASTIAN. Agora vai ser cmplice de Sarah?
EDITH. Muita concentrao nessa hora.
ENTREGADOR. Quem matou o senhor Kolpert?
RALF. A gente.
ENTREGADOR. A gente quem?
RALF. Sarah e eu.
ENTREGADOR. Quem Sarah?
BASTIAN. o que eu estou me perguntando.
SARAH. Sou eu.
ENTREGADOR. E foram vocs que torturaram ele?
RALF. Fomos ns que torturamos ele. Foi muito divertido.
BASTIAN. Mas por que?
EDITH. Isso no vem ao caso agora!
BASTIAN. Que merda que voc est falando a?
RALF. Poxa vida! Sua mulher tem razo.
BASTIAN. Eu vou desmaiar.

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EDITH. Caso vocs intentem nos manter presos aqui, o que eu suponho que seja o caso, ento eu
recomendaria que a gente tirasse de vez do caminho esse monte de bosta que um dia foi o senhor
Kolpert.
SARAH. Boa idia.
(Edith e Sarah erguem o senhor Kolpert.)
EDITH. Algum dos trs cavalheiros se oferece?
BASTIAN. Edith, eu me recuso.
(O entregador vai ajudar Edith e Sarah, mas vomita em cima do senhor Kolpert.)
EDITH. Pelo amor de Deus!
SARAH. Deixa que a gente faz isso s, Edith, afinal a gente colega.
(As duas deixam o senhor Kolpert cair novamente, Sarah abre o ba, Edith nesse meio tempo tira
a carteira de dinheiro do bolso da cala do senhor Kolpert e a entrega, sem comentrios, ao
entregador de pizza, indicando com um aceno que ele pode pegar o valor referente s pizzas. O
entregador hesita, Sarah e Edith pegam o senhor Kolpert e o jogam dentro do ba.)
EDITH. Pronto. Agora eu tenho certeza que ele est a dentro.
SARAH. E agora?
EDITH. Eu acho que quem vai ter que responder essa pergunta so vocs.
ENTREGADOR. Dessa eu estou fora.
(Enquanto isso, o entregador conta o dinheiro do senhor Kolpert.)
BASTIAN. No sei se a pergunta tambm no se aplica a minha mulher. Afinal de que lado voc
est?
RALF. Sua mulher est do lado do bom senso.
BASTIAN. Bom senso?
RALF. Senhor Kolpert est morto, ou quase. A gente matou ele. Se vocs todos ficarem contra a
gente, agora, isso no vai trazer ele de volta.

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BASTIAN. Mas que raa de argumento essa? Edith! Eu espero que voc, aqui e agora, tome
distncia desse assassinato.
ENTREGADOR. Por acaso sobrou pizza?
EDITH. Eu no vou me distanciar coisa nenhuma. Distanciar do que? Voc acha que quem,
Bastian? Delegado de polcia? O senhor Kolpert est morto, e a gente sabe porque ele est morto,
e a propsito ele era um saco.
BASTIAN. Isso no motivo para mat-lo.
RALF. Eu tambm vou mijar.
(Sai Ralf, para o banheiro.)
EDITH. E eu acho que a parte mais chata dessa noite foi quando eu e o Bastian estvamos
pensando que essa histria toda de assassinato do senhor Kolpert era brincadeira. A morte do
senhor Kolpert pelo menos garantiu a esse pobre funcionrio uma noite de estrela.
BASTIAN. Mas isso muita falta de compaixo.
EDITH. Quem disse?
BASTIAN. Eu disse.
EDITH. Compaixo. Eu no fao a menor idia do que seja isso.
BASTIAN. Respeito por um morto pelo senhor Kolpert, por exemplo.
EDITH. Eu no tinha respeito por ele nem enquanto era vivo.
BASTIAN. Eu estou horrorizado.
EDITH. Horrorizado. Voc est horrorizado. Isso s uma fico alheia.
BASTIAN. O que?
EDITH. Compaixo. Respeito pelos mortos. Voc no tem respeito nenhum pelo senhor Kolpert,
voc nem conhecia ele.
BASTIAN. No sei nem o que dizer.
EDITH. Pode me esbofetear de novo, ento.

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BASTIAN. Eu peo desculpas por aquilo. Caso voc se distancie desse assassinato.
EDITH. Coisa nenhuma! Eu no tenho compaixo!
(Ralf sai do banheiro e bate as ltimas gotas de urina do pnis. Edith faz xixi no ba em que est o
senhor Kolpert. Bastian corre pelo apartamento, revoltado.)
BASTIAN. Socorro! Socorro! Socorro!
(Bastian abre uma janela violentamente.)
BASTIAN. (gritando atravs da janela) Socorro! Esto mijando em um cadver! Aqui! Polcia!
(Edith, Sarah e Ralf arrancam Bastian da janela e o enfiam junto com o senhor Kolpert no ba,
trancando-o. Bastian grita, amargurado.)
EDITH. Eu me sinto libertada.
(Aps um longo silncio, s interrompido pelo choro de Bastian.)
RALF. preciso fazer alguma coisa. A situao estagnou.
SARAH. Mas o que?
ENTREGADOR. (que nesse meio tempo enfiou no bolso o dinheiro do senhor Kolpert.) Eu gostaria
de ir embora.
EDITH. No d.
RALF. No.
ENTREGADOR. Por que no?
SARAH. Voc est dentro.
ENTREGADOR. No estou dentro coisa nenhuma.
RALF. Cala a boca.
ENTREGADOR. Vocs so amadores da pior classe.
EDITH. Isso ns no somos mesmo.
SARAH. Que histria essa de ns? Quem matou foi o Ralf e eu.

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EDITH. Infelizmente verdade.


ENTREGADOR. Vocs so iniciantes, aprenderam isso tudo no cinema. Eu vou embora.
EDITH. Daqui voc no sai.
ENTREGADOR. Isso o que a gente vai ver.
(O entregador fora a porta, Edith o detm e o golpeia. Por fim, ela o mata com uma faca. Ela est
agora completamente salpicada de sangue.)
EDITH. Eu tambm queria o meu assassinato.
RALF. Bem se v que voc tratou isso de forma bastante decidida.
(Ralf vomita.)
EDITH. Sarah, voc me ajuda de novo a colocar ele no ba?
BASTIAN. E Bastian?
EDITH. A gente d um jeito. s enfiar o imbecil da pizza l dentro. Eu me sinto absurdamente
libertada.
RALF. Poxa vida, isso no pode continuar assim.
SARAH. No pode mesmo, mas por ora ajuda a gente a abrir o ba.
RALF. No consigo.
SARAH. Voc tem que, se controle!
EDITH. Basta voc abrir o ba e depois fechar, assim que for possvel. Sarah e eu cuidamos do
resto.
RALF. Se que vai dar certo. L dentro j tem dois.
EDITH. Ah, vai dar sim! Anda!
(Sarah e Edith erguem o cadver do entregador de pizza, Ralf, a postos do lado do ba, segura a
nsia de vmito. As mulheres levam o cadver at o ba e tomam impulso, enquanto Ralf abre o
ba. Bastian tenta se erguer, mas lanado de volta para dentro, com o cadver do entregador de

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pizza. A tampa levanta algumas vezes, mas Edith, Sarah e Ralf sucedem, a trs, em sentar sobre o
ba e tranc-lo de vez. Os trs param para tomar ar.)
EDITH. Posso tomar uma chuveirada?
SARAH. Pode.
EDITH. E vestir uma roupa sua?
SARAH. Boa idia.
EDITH. Obrigada.
(Edith sai para o quarto. Sarah e Ralf ainda esto sentados sobre o ba.)
RALF. A gente comeou uma coisa e tanto.
SARAH. O mais instigante que eu me sinto muito lcida. Nenhuma confuso.
RALF. S passei um pouco mal quando ela deu um fim nele.
SARAH. Sim, claro, mas a gente esperava demais disso tudo.
RALF. Disso tudo o que?
SARAH. Disso, de matar algum mas uma coisa muito normal.
RALF. Talveza seja a nica coisa que se pode alcanar.
SARAH. Como assim?
RALF. Embora tudo parea normal, a gente sabe que tem alguma coisa de anormal dentro do
normal. Como na xcara de caf.
SARAH. Ou ento a gente se enganou e matar algum completamente normal.
RALF. Acho que no.
SARAH. No sei.
RALF. E agora a gente faz o que?
SARAH. Tambm no sei.

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RALF. Primeiro a gente precisa perguntar a Edith o que vai ser do Bastian. No d pra deixar ele a
pra sempre.
SARAH. Verdade. E eu preciso sair um pouco do apartamento.
RALF. Ou ento a gente simplesmente vai embora.
SARAH. E deixa ela a sozinha com os trs?
RALF. Por que no? Kolper est morto. Isso problema nosso. O entregador de pizza est morto,
Bastian est vivo. Os dois so problema da Edith.
SARAH. Isso no bem assim. Ela nunca teria esfaqueado o entregador de pizza se a gente no
tivesse feito o mesmo com o senhor Kolpert. E a o Bastian tambm no ia estar nesse
apartamento, em um ba com dois cadveres. Alm do mais Edith foi solidria com a gente, ento
no ia ser justo simplesmente dar o fora.
RALF. Tem razo.
SARAH. A gente devia resolver o caso do Bastian, que um problema de todos, e sair para
passear.
RALF. T. E como que voc quer resolver o problema do Bastian?
(Sarah e Ralf se entreolham, sorriem e aquiescem. Ralf pega a faca.)
RALF. Pronta?
SARAH. Pronta.
(Sarah abre o ba, Ralf esfaqueia Bastian, Sarah tambm d algumas facadas. Eles fecham o
ba.)
RALF. Pronto.
SARAH. Pronto.
(Ambos se sentam sobre o ba, entra Edith, coberta apenas com uma grande toalha.)
EDITH. E o Bastian?
RALF. A gente acabou de esfaquear ele.

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EDITH. J?
SARAH. Tudo em ordem?
EDITH. Em ordem? Era o que tinha de ser feito.
SARAH. . Como voc est se sentindo?
EDITH. Normal. Surpreendentemente, absolutamente normal.
RALF. A gente tambm est se sentindo normal.
EDITH. Tem cerveja?
SARAH. Acho que tem.
RALF. Uma cerveja agora seria perfeito.
SARAH. Tambm acho.
(Sarah sai e volta com trs latas de cerveja.)
RALF. Sade.
EDITH. Sade.
RALF. Sade.
SARAH. Sade.
EDITH. Sade.
SARAH. Sade.
(Os trs bebem cerveja. Ralf tira a roupa.)
SARAH. Est fazendo o que?
RALF. Tirando a roupa.
SARAH. Estou vendo. Mas por que?
RALF. Nem eu sei. Eu sinto uma certa necessidade de ficar nu.

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(Ralf est nu.)


EDITH. Agora voc est nu.
RALF. .
(Edith tira a toalha.)
RALF. Agora voc tambm est nua.
SARAH. . E limpa.
(Sarah passa a ponta dos dedos pela barriga de Edith.)
EDITH. (para Sarah) Tira a roupa tambm.
SARAH. .
(Sarah tira a roupa. Ralf chora. Edith e Sarah tambm comeam a chorar. Os trs esto nus e
choram.)
Black-out sbito.

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