Desde Que o Samba e Samba e Assim o Samb
Desde Que o Samba e Samba e Assim o Samb
Desde Que o Samba e Samba e Assim o Samb
17 e 18 de outubro de 2013
Três Corações / MG
REVISTA MEMENTO
V.4, n.2, jul.-dez. 2013
Mestrado em Letras Linguagem, Cultura e Discurso
ISSN 2317-6911
Resumo: O samba é o ritmo brasileiro por excelência. Uma comprovação disso é que o
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calendário oficial do governo instituiu o dia dois de dezembro como o dia do samba. Mas o
nascimento ou o desenvolvimento nunca velejaram em águas tranquilas. Desde o início,
muitas polêmicas surgiram. Os estudiosos têm se digladiado com uma série de hipóteses sobre
o nascimento e as transformações do ritmo, todas plausíveis e talvez em parte verdadeiras. No
entanto, a seu lado, os músicos, sambistas-compositores, têm dado, em suas canções, suas
próprias explicações, todas tão válidas quanto a dos estudiosos, além de terem origem
naqueles que vivenciaram a experiência de sentir o ritmo, de acompanhar seu nascimento.
Com a vantagem de esbanjar paixão, filosofia e poesia em suas manifestações. Dar voz a
algumas dessas músicas é a intenção do artigo objeto desta comunicação.
Palavras-chave: Samba; samba metalinguístico; poesia.
A partir do aparecimento do Samba, ritmo novo que se firmou como o mais brasileiro
de todos, pretende-se lavrar sua certidão de nascimento. Desde que o samba é samba, é assim.
Mas... desde quando o samba é samba?
Estudos e mais estudos a respeito pipocam por todos os cantos. O samba teria nascido
na Bahia, como resultado do lundu ou do batuque que movimentava os terreiros dos negros,
escravos, durante o período escravista depois de libertos os negros no final do século XIX. Ou
esse batuque somente veio a se tornar samba, gênero musical, no Rio de Janeiro. Isso pela
influencia de um caldo primordial de ritmos urbanos que evoluíra do maxixe (que já fora
evolução do lundu) e floresceu na região dos encontros lendários que se davam em casa de Tia
Ciata, na Praça Onze de Junho, área então suburbana e pobre, e arredores.
Por outro lado, o espírito do samba só teria incorporado o gênero quando os músicos,
fugindo da repressão policial da cidade, passaram a se reunir nos morros, ou na periferia
distante, transformando-se em movimento social de resistência. O samba, ainda, teria se
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O samba da minha terra deixa a gente mole
Quando se dança todo mundo bole
Roberto M. Moura, ao comentar essa mesma canção e ao compará-la a outra, “Não vou
para casa”, de Antônio Almeida e Roberto Roberti, daquele mesmo ano, menciona que em
ambas a ideia central é a de que o sambista compositor se sente nascido no samba e pelo
samba: "tanto se pode dizer que o autor nasceu junto com o samba ou que seu nascimento só
pode ser contabilizado a partir do momento em que o samba entrou em sua vida" (MOURA,
2004, p.66-67, grifo do autor). Ou seja, há uma personalidade do indivíduo, na amplitude do
ambiente social, que só ganha vida quando ele não somente está no samba, mas sim quando
interage com o samba.
Vinícius de Moraes, a quem Charles Perrone atribui o título de letrista mais produtivo
da bossa nova (PERRONE, 1988, p. 27) - e certamente um dos mais produtivos de toda a
história da música brasileira - escreveu a letra de “Samba da bênção”, que tem parceria com
Baden Powel, de 1966, em que diz que "o bom samba é uma forma de oração". O ato de fazer
e compartilhar samba é um ritual devocional: "fazer samba não é contar piada / e quem faz
samba assim não é de nada". Além disso, só as dores da tristeza são capazes de redimir a alma
do sambista e dar vida ao samba:
(...)
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
(...)
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
18
Letra disponível em: <http://letras.mus.br/vinicius-de-moraes/86496/>. Acesso em dez 2012.
Como se pode ver, o bom samba, na perspectiva de Vinícius é "um pouco de amor
numa cadência", fruto da "tristeza que balança". Ademais, atesta que "o samba nasceu lá na
Bahia", fruto da dor dos negros, mas que se permitiu adotar, hoje em dia, a poesia dos brancos.
Uma das outras demonstrações devocionais ao samba, de grande conteúdo poético, é
“Feitio de Oração”, composto por Noel Rosa e Vadico, gravado em 1933 por Francisco
Alves19. Nesse samba, na letra, escrita por Noel, "esta triste melodia /... é meu samba em feitio
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de oração"20.
Segundo o artista, viver o samba é um privilégio que vem da alma do sambista, já que
"ninguém aprende samba no colégio". Assim como em Vinícius, o samba nasce da dor
mesclada com a alegria e satisfação que dá, em forma de alívio, ao sambista. E isso porque,
"sambar, é chorar de alegria / é sorrir de nostalgia".
Quanto ao nascimento do samba, tergiversa poeticamente para um samba coletivo, da
alma, sem local fixo, que "não vem do morro / nem lá da cidade", mas do coração doente da
dor da paixão que suporta, pois "quem suportar uma paixão / sentirá que o samba então / nasce
do coração". Noel entende que o samba não está em um ou outro ponto geográfico, mas em
todas as partes, que, somadas, formam uma cidade unida pela arte. Para ele, segundo André
Diniz, não havia uma cidade partida entre morro e asfalto:
19
Dados disponíveis em: <http://www.memoriamusical.com.br/discografia.asp>. Acesso em dez 2012.
20
Letra disponível em: <http://letras.mus.br/noel-rosa-musicas/535516/>. Acesso em dez 2012.
Mas, por outro lado, o samba é o "pai do prazer". Expresso, depois de emergir da dor, o
samba faz a alegria dos sambistas, sambeiros e sambadores. É um momento de vitória, ainda
que efêmero, da alegria sobre a dor. É a fuga acessível, possível e provável dos ais. O samba
surge como um vitorioso guerreiro que leva alegria aos corações brasileiros, como se vê em
“A voz do morro”, de Zé Ketti:
Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro
Eu sou o samba
Sou natural daqui do Rio de Janeiro
Sou eu que levo a alegria
Para milhões de corações brasileiros23
21
Letra disponível em: <http://cifrantiga3.blogspot.com.br/2006/04/desde-que-o-samba-samba.html>. Acesso
em dez 2012.
22
Letra disponível em: < http://letras.mus.br/candeia/83737/>. Acesso em dez 2012.
A força e o poder do ritmo são tamanhos que são capazes de alegrar o universo de todo
o país, afinal o samba é "essa melodia de um Brasil feliz". O sambista compositor, como se
percebe, encarna em si a personalidade do samba e, em seu nome, se engrandece: "eu sou o
samba", sou "a voz do morro" e "o rei do terreiro". Por outro lado, aqui também se atesta o
nascimento do samba no Rio de Janeiro ("sou natural aqui do Rio de Janeiro").
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A grandeza do sambista, ao se investir na personalidade do samba, no dizer de Cláudia
Matos, se deve ao fato de que "seu papel não pode ser suprimido. A conjugação do individual
com o coletivo é perfeita: o sambista precisa do samba e o samba precisa do sambista"
(MATOS, 1982, p. 74).
O poder transformador do samba, dele faz a efígie perfeita para a exaltação da alegria,
mesmo sendo filho da dor. Assim o diz a canção “Apoteose ao samba”, de Silas de Oliveira e
Mano Décio da Viola, pois é ele, Samba, capaz de embriagar os sentidos do ouvinte e de trazer
a inspiração perfeita ou esperada:
23
Letra disponível em: <http://www.cifraclub.com.br/ze-keti/a-voz-do-morro/>. Acesso em dez 2012.
24
Letra disponível em:
<http://www.mpbnet.com.br/canto.brasileiro/bons.tempos/letras/apoteose_ao_samba.htm>. Acesso em dez 2012.
Chico Buarque, em Tem mais samba, vê a transformação do samba sob outro ângulo: o dos
recortes do cotidiano, e assim evidencia seu poder de converter a tristeza em alegria, de resgatar uma
utópica felicidade, que nunca será encontrada. A partir de recortes, nasce o samba, que está em toda a
vida, mas há de encontrar os momentos mais lúcidos de sua expressão. Por isso, contrapõe alguns desses
recortes para buscar a essência do samba.
A vida é fácil: basta comparecer a esse encontro com o samba nos detalhes da própria existência
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e sambar. Se assim se fizesse, "seria tão fácil viver":
A fórmula samba igual a dor ("mais samba no peito de quem chora /... mais samba no
pranto de quem vê") convertida em uma idealizada alegria ("vem que passa teu sofrer") é mote
recorrente nos compositores de samba. É receita de remédio que todos anseiam por tomar,
para diluir ou postergar a dor. Mas a dor é perene e apenas amenizada pela alegria do samba,
que é pontual. Vai voltar - tem que voltar -, para renascer sob a forma de um novo samba, que
só na dor pode nascer.
25
Letra disponível em: <http://cifrantiga3.blogspot.com.br/2006/07/tem-mais-samba.html>. Acesso em dez 2012.
Eu canto samba
Por que só assim eu me sinto contente
Eu vou ao samba
Porque longe dele eu não posso viver
O samba redentor não acaba. Pode ser interrompido pelo dia que nasce, mas sempre
renasce para socorrer o sambista que "anda tristonho" e apenas "no samba fica contente":
O samba é alegria
Falando coisas da gente
Noel Rosa, antes, com muita eficiência, já tentara em “Até amanhã”, de 1933: "O
mundo é um samba em que eu danço".
Ali se vê que a grandeza do samba é universal: é o mundo. E o samba é uma síntese da
grandeza do mundo. Mas, para Paulinho da Viola, a transformação pela qual passa o samba é
fatal e impede que a dor seja amenizada como se vê em “Tudo se transformou”, gravado em
1970:
26
Letra disponível em: <http://letras.mus.br/paulinho-da-viola/128183/>. Acesso em dez 2012.
Enfim, o que se conclui é que o samba simplesmente é o que é: samba, uma instituição
que deu alma a uma classe de artistas, os sambistas, que dela careciam para viver e sobreviver
em meio a um tumultuado mundo de transformações profundas e velozes. O samba deu voz ao
sambista - e o sambista ao samba - para transpor física e psicologicamente a indistinguível
fronteira entre a escravatura oficial e a escravatura da pobreza e da discriminação. Traz todas
as implicações que o seu sentido transcendente deu para a música, para a sociedade, para a
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alma, para o país, para cada um dos brasileiros que, ainda que não queira, ainda que não saiba,
a ele se rende e se curva desde sempre e até hoje, "até um dia, até talvez, até quem sabe" 27.
Participou, e foi ele próprio razão de tais profundas transformações; lançou-se da tristeza, da
dor, da esperança e dos amores dos sambistas para o palco do mundo, que o acolheu
universalizante, brasileiro, ritmo e melodia, motivo e alento que dá o porquê de se cantar,
dançar e rimar amor e dor.
Na mistura de peles, de suores e de experiências e conflitos políticos, sociais e culturas,
o samba nasceu.
O Brasil o esperava e ele, samba, foi o amanhã onde se nasceu um novo dia. Sofreu na
pele e na alma do sambista - principalmente negro - pesadas dores de parto. Foi marginal,
perseguido, desvalorizado, discriminado, execrado, mas se fez, se refez, ganhou a dimensão de
símbolo social e nacional, e se assentou como o inventor da música urbana brasileira moderna.
Desde que o samba é samba, é assim: a música urbana brasileira lhe é descendente ou
dependente.
O samba arvoreceu: semente trazida pelos negros baianos, na forma de dor, dança ou
ritmo, de lundus, batuques ou maxixes, adubada pela modinha e pelo choro cariocas,
encontrou terreno fértil e temperatura adequada para brotar no Rio de Janeiro, nas casas das
negras baianas da Praça Onze, na Cidade Nova, na Saúde, no Estácio, na Penha, na Lapa, no
morro da Favela, em Vila Isabel e arredores.
Germinou e brotou como símbolo urbano brasileiro, se alimentou e se nutriu da
socialização de tristezas, alegrias, dores e amores abundantes nos fundos das casas, nos
terreiros e nos altos de morro e se lançou para todo o país, universalizado e produto de
consumo de todas as classes sociais.
27
Trecho da canção “Até quem sabe”, de João Donato e Lysias Enio.
Suas raízes, firmes e fortes, alcançam longe, até o alto nordeste, para além da Bahia.
Nasceu com tronco resistente, inquebrantável - vergou aos dissabores das perseguições
policiais, sociais e intelectuais, mas não se partiu. Agonizou, mas não morreu. Tornou-se forte
como o Corcovado e redimido como o sol que outrora brilhou nos céus cariocas. Lançou
galhos em todas as direções, cobriu o país inteiro e no mais fez sombra no resto do planeta.
Frutificou e continua produzindo abundantes e saborosos frutos.
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O samba representa a cultura, a arte e o momento social onde tudo, da beleza do belo
ao belo da feiúra, do amor vivido ao amor não correspondido, da malandragem do boêmio ou
do sacrifício do trabalhador à exaltação visionária, da miséria à riqueza, da desgraça à
redenção, do cotidiano simples do barraco às zonas de boêmia e prazer, do morro à cidade,
constrói a alma de um povo sofrido mas orgulhoso, miscigenado mas irmanado.
E isso sempre dá samba. E samba de excelente veio poético.
REFERÊNCIAS
DINIZ, André. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir.
3.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
DINIZ, André. Noel Rosa: o poeta do samba e da cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2010.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: uma leitura do Carnaval carioca. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.
MATOS, Claudia. Acertei no milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
MOURA, Roberto M. No princípio, era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros
pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
PERRONE, Charles. Letras e letras da MPB. Trad. José Luiz Paulo Machado. Rio de Janeiro:
Elo, 1988.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
WISNIK, José Miguel. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.