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Bruno Gonçalves Zeni

Sinuca de malandro
Narradores, protagonistas e figuras paternas

em João Antônio

São Paulo, 2012


2

Bruno Gonçalves Zeni

Sinuca de malandro

Narradores, protagonistas e figuras paternas

em João Antônio

Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Teoria


Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
sob orientação do Prof. Dr. Joaquim Alves de Aguiar

São Paulo, 2012


3

Ao meu pai, Marcio Zeni, que involuntariamente inspirou este trabalho.

À minha mãe, Maria Rosa Gonçalves Zeni (in memoriam).

A Sílvia de Moraes Nastari Zeni,


pelo dia a dia, pelas conversas, pela companhia, pelo amor.
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Joaquim Alves de Aguiar pela orientação, pelo apoio, pela confiança e
pela amizade, em diálogos sobre literatura e vida que já passam de dez anos.

À Silvia, por tudo.

A Manuel da Costa Pinto e Paloma Vidal, pela amizade, pela troca intelectual e
pelas indicações de leitura.

A Tatiana Couto, Suzana Couto, Andrew Loar, Lucas e Lina, pela alegria, pela
vizinhança e por San Francisco.

Aos companheiros de pesquisa acadêmica Rodrigo Lacerda, Luciana Araújo


Marques e Simone Paulino dos Santos.

À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela


bolsa concedida.

A todos os funcionários do Departamento de Teoria Literária e Literatura


Comparada (DTLLC), da Letras da USP, em especial a Luiz de Mattos Alves.

Aos pesquisadores e funcionários do Cedap (Centro de Documentação e Apoio à


Pesquisa) da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis, especialmente a Rodrigo
Fukuhara, Carolina D.B. Monteiro e Denise Rosa, pela ajuda em minha pesquisa no Acervo
João Antônio.
5

RESUMO
Este trabalho analisa os contos e textos autobiográficos de João Antônio (1937-
1996) nos quais as figuras paternas exercem papel decisivo para os protagonistas. A análise
literária parte da identificação de elementos fundamentais do texto de ficção (tais como
narrador, personagens e ação) e de como eles se articulam e interagem. As interpretações
combinam elementos da crítica literária, da historiografia, de pesquisas bibliográfica e
biográfica, apontando ainda para questões da sociologia e da psicanálise. O estudo parte das
reflexões de Antonio Candido, crítico que formulou conceitos importantes para o autor em
foco, para a crítica literária e para a linha de pesquisa que relaciona literatura e sociedade.
As análises conduzem a questões sobre a trajetória dos personagens ficcionais, sobre o
conceito de malandragem, sobre o conto na obra de João Antônio e sobre as relações entre
biografia e literatura na vida do autor.

Palavras-chave
Literatura contemporânea; conto brasileiro; autobiografia; figuras paternas; narrativa
urbana; malandragem e marginalidade; literatura e sociedade.

ABSTRACT
This thesis analyses João Antonio‘s short stories and autobiographical narratives
where father figures are crucial and intimately related to main characters. The critical work
identifies essential elements of fiction (such as narrator, characters and plot) and the way
they interact. Our research is based upon Antonio Candido‘s essays on João Antônio and on
literature and society. The effort of interpretation combines literary criticism, history of
literature, biographical approach and bibliographic research, also including psychoanalysis
and sociological theoretical references. The interpretations lead to conclusions about the
journey of the main characters, the concept of trickery (malandragem), the short story form
in João Antonio and the relationship between life and work of this Brazilian writer.

Keywords
Contemporary literature; Brazilian short stories; autobiography; father figures; urban
narrative; trickery (malandragem) and social marginality; literature and society.
6

SUMÁRIO
SIGLAS, ABREVIAÇÕES E EDIÇÕES DE REFERÊNCIA...................................................... 7

INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 8

CAPÍTULO 1 EU SOU UM OUTRO – Três contos autobiográficos de João Antônio............ 45


Um lambão entre lambões ................................................................................................................ 57
Nome de boêmio – Paulo Melado..................................................................................................... 79
Iniciação literária............................................................................................................................. 102
Abraçado ao próprio rancor............................................................................................................. 113
O trabalho da escrita........................................................................................................................ 121

CAPÍTULO 2 AFINANDO A MALANDRAGEM – Dos “Contos Gerais” à sinuca............. 139


A angústia da busca......................................................................................................................... 143
Personagem complexo e indefinido................................................................................................. 146
Limites de um ponto de vista interno.............................................................................................. 152
Três encontros e um retorno............................................................................................................ 160
Romance familiar e questões edípicas............................................................................................. 166
Da família à sociedade e de volta à família..................................................................................... 174
Impulsos desorientados, promessas não cumpridas........................................................................ 182
Da ―vagabundagem‖ à sinuca.......................................................................................................... 187

CAPÍTULO 3 DESTINO DE MALANDRO É VIRAR LENDA – Sobre “Malagueta, Perus e


Bacanaço” ..................................................................................................................................... 221
Três malandros e... um narrador-personagem? ............................................................................... 225
A arte de contar................................................................................................................................ 252
Malandragem: tipicidade e situação narrada................................................................................... 266
Ponto de fuga: Perus, um infante entre velhos malandros............................................................... 282

CAPÍTULO 4 ASCENSÃO E QUEDA DO MALANDRO – Sobre “Paulinho Perna


Torta”............................................................................................................................................. 295
O nome (e a imagem) do malandro................................................................................................. 303
O desejo e o dinheiro....................................................................................................................... 320
Matar ou não matar o pai? .............................................................................................................. 327
Do eu ao mundo............................................................................................................................... 337
Refinamento sem inserção.................................................... .......................................................... 342
Um destino trágico, antes da catástrofe.................................................... ...................................... 346
O lugar do escritor........................................................................................................................... 354

CONCLUSÃO................................................................................................................................ 360

BIBLIOGRAFIA........................................................................................................................... 389

APÊNDICE.................................................................................................................................... 399
Livros de João Antônio e contos que os constituem
Imagens e documentos
7

SIGLAS, ABREVIAÇÕES E EDIÇÕES DE REFERÊNCIA UTILIZADAS

―Aact‖: o conto ―Afinação da arte de chutar tampinhas‖.


Amr: o livro Abraçado ao meu rancor. A edição de referência utilizada neste trabalho é a
primeira. São Paulo: Guanabara, 1986.
―Amr‖: o conto ―Abraçado ao meu rancor‖.
Dedo-duro: o livro. A edição de referência é a primeira. Rio de Janeiro: Record, 1982.
―Dedo-duro‖: o conto.
MPB: o livro Malagueta Perus e Bacanaço. A edição de referência utilizada neste trabalho
é a da Cosac Naify. São Paulo, 2004.
―MPB‖, o conto ―Malagueta Perus e Bacanaço‖.
Lambões: o livro e o texto de Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!). Porto
Alegre: L&PM, 1977.
Ldc: o livro Leão-de-chácara. A edição de referência utilizada neste trabalho é a da Cosac
Naify. São Paulo, 2002.
―Ldc‖: o conto ―Leão-de-chácara‖.
Lima Barreto: o livro Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto.
―PMCMS‖: o conto ―Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖, de Dedo-duro.
―PPT‖: o conto ―Paulinho Perna Torta‖, de Ldc.
8

Introdução
9

Ao surgir no panorama da literatura brasileira dos anos 60, João Antônio foi visto
como um autor incomum, e sua obra foi, desde o começo, acolhida como novidade na
tradição das nossas letras. Em 1963, a recepção ao seu livro de estreia, Malagueta, Perus e
Bacanaço foi calorosa e marcada pela celebração. No ano mesmo do seu lançamento,
Sérgio Milliet o saudava: ―Algumas das cenas que nos apresenta são pequenas obras-
primas, são de antologia, são de causar inveja a escritores bem mais experientes‖. O crítico
destaca ―o mundo de simpatia e de ternura que o contista tem para com seus heróis‖,
―picaretas rabelaisianos‖, ―boêmios que deambulam como bons sujeitos, que se viram‖, em
textos narrados em linguagem popular, ―sem fazer ópera‖, ―sem dós de peito‖, com
simplicidade, em linguagem popular.1
O livro foi recebido com entusiasmo também por João Alexandre Barbosa. Como
bem leu o crítico, no calor da hora:

(...) o campo do autor é a sociedade de São Paulo pelo avesso, isto é, o pequeno mundo de
marginais, malandros, soldados rasos, jogadores de sinuca ou de judô. O mundo miúdo e rico da vida
de expedientes por sob a organização industrial e burguesa. Vida e mundo, entretanto, onde não falta
a veia da humanidade em seus aspectos trágicos ou cômicos que João Antônio sabe ferir com a sua
estranha e coerente sintaxe: linguagem coloquial amarrando esperanças, fracassos e espertezas.2

Para João Alexandre, o autor ―agarra pela raiz o significado dessas pequenas vidas
miseráveis que a organização social põe de lado, em um louco processo de desumanização
e morte lenta. Mas sem cair na lamentação chorosa ou no panegírico das frustrações. Tudo
limpo, com picardia, para usar de uma palavra que lhe é muito querida‖.3 Com o conto que
dá título ao livro, o escritor ―vem desde muito cedo firmar-se entre o que existe de melhor
na nossa ficção urbana. Na linha de um Manuel Antônio de Almeida, de um Lima Barreto,
de um Alcântara Machado, de um Mário de Andrade, de um Marques Rebelo, de um
Gastão de Holanda‖.4

1
MILLIET, Sérgio. ―Alguns malandros‖. Recorte de jornal preservado no Acervo João Antônio, no Cedap
(Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa) da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis, com a
seguinte indicação a máquina de escrever: O Estado de S. Paulo, 23 jul 1963.
2
BARBOSA, João Alexandre. ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, in Opus 60 – Ensaios de crítica, São Paulo,
Duas Cidades, 1980, pp. 137-140. A resenha sobre o livro de João Antônio foi originalmente publicada no
Jornal do Comércio do Recife, em 17 nov. 1963.
3
Idem, ibidem, p. 138.
4
Idem, ibidem, p. 139.
10

Além da filiação à tradição da literatura urbana, outro aspecto que sobressai na


recepção crítica inicial é a valorização da ambientação paulistana dos contos e as
comparações com Alcântara Machado — Mário de Andrade, surpreendentemente, não é
muito citado neste momento de estreia de João Antônio. Aos olhos dos comentadores, na
obra do jovem autor, São Paulo não se resume a mero cenário e assume estatuto de
personagem. Segundo Arnaldo Mendes, do Última Hora, no livro de João Antônio ―São
Paulo passa, pela primeira vez em nossa história literária, a funcionar como autêntico
personagem e não como mero ambiente ou cenário da composição‖.5 Para Bráulio Pedroso,
de O Estado de S. Paulo, ―no caso de João Antônio podemos afirmar, mesmo que
permaneça neste livro Malagueta, Perus e Bacanaço, que São Paulo tem seu romancista,
que São Paulo pela primeira vez surge dramaticamente na expressão acanhada de seus
bairros afastados, na promiscuidade de sua aglutinação central, no traço convincente de
seus personagens típicos e na contribuição lingüística de sua fala particular‖.6 A promessa
de um grande escritor em São Paulo fez o jornalista da revista Visão comemorar no título
da matéria: ―Enfim uma esperança‖.7
Rodrigo Lacerda reconstituiu recentemente a recepção crítica imediata do primeiro
livro de João Antônio, e não apenas do ponto de vista da teoria literária, mas também no
contexto editorial e de afinidades políticas da década de 1960.8 Além disso, recompôs as
estratégias de inserção no meio literário brasileiro de que o escritor lançou mão: no início
de sua carreira, João Antônio enviou seus contos a críticos e jornalistas; conquistou, assim,
o apadrinhamento de nomes influentes na imprensa e nas melhores editoras do Rio e de São
Paulo. ―Durante aqueles anos, entre vários contatos que o jovem escritor conseguira fazer,
destacavam-se, no Rio de Janeiro, o genial Paulo Rónai; em São Paulo, o crítico e escritor

5
MENDES, A. ―Um cronista de São Paulo‖. In: Última Hora, São Paulo, 13/07/63. Apud LACERDA, Rodrigo.
João Antônio: uma biografia literária. Tese de doutoramento. Orientação de Joaquim Alves de Aguiar. São
Paulo: Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada (DTLLC), FFLCH-USP, 2006, p. 212.
6
PEDROSO, Bráulio: ―São Paulo tem seu romancista‖, In: O Estado de São Paulo, 16 ago 1963. Apud
LACERDA, Rodrigo. João Antônio: uma biografia literária. op.cit, p. 212.
7
―Enfim uma esperança‖. Revista Visão. Vol. 23, no 11, 13 set. 1963. Reprodução de recorte de jornal
consultada no Acervo João Antônio, no Cedap (Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa), Unesp, Assis.
8
Além da tese de doutorado de Rodrigo Lacerda, ver do mesmo autor: ―O primeiro amor de João Antônio‖.
In: Malagueta, Perus e Bacanaço. João Antônio. 4ª edição rev. Cosac Naify, 2004, encarte anexado ao livro,
em separata.
11

Mário da Silva Brito, também envolvido no mundo editorial; e, claro, Ricardo Ramos. Eles
foram, efetivamente, os seus três padrinhos literários‖.9
Doze anos depois, quando do lançamento do seu segundo livro, Leão-de-chácara,
em 1975, a primeira coletânea do autor foi reeditada, e João Antônio experimentou uma
espécie de renascimento literário, acompanhado de uma reanimação da literatura e das
práticas literárias no período, depois dos tempos mais sombrios da ditadura.10 Em carta de
1974 a Fábio Lucas, João Antônio fala em ―dez anos de congelamento literário‖. Segundo o

9
Segundo Rodrigo Lacerda, Ricardo Ramos, filho de Graciliano Ramos, foi diretor da Civilização Brasileira,
editora que viria a publicar a primeira edição de Malagueta, Perus e Bacanaço. A partir de 1958, além disso,
Ramos publicou nas páginas do Última Hora, onde tinha uma coluna, vários dos primeiros contos de João
Antônio: ―Afinação da Arte de Chutar Tampinhas‖, ―Fujie‖, ―Retalhos de Fome Numa Tarde de G.C.‖ e
―Natal na Cafua‖. Mário da Silva Brito, por sua vez, era articulista de O Estado de S. Paulo. No Suplemento
Literário do Estadão, saíram alguns dos primeiros contos do autor: ―Índios‖ (1º ago 1959), ―Frio‖ (6 fev.
1960), ―Visita‖ (26 nov. 1960). Foi por iniciativa de Mário da Silva Brito que João Antônio conseguiu usar
uma cabine da Biblioteca Mário de Andrade para reescrever o conto que dá título ao livro, quando do
incêndio que destruiu a casa da família, em 12 de agosto de 1960. Mário da Silvia Brito, que assina a orelha
das primeiras edições de MPB e de Ldc, foi ainda quem levou João Antônio para a Civilização Brasileira (o
autor negociava publicar dois livros, um com a Edições Autores Reunidos e outro com a Editora das
Américas). Para um panorama do início da carreira de João Antônio e sobre as primeiras publicações em
jornais, ver LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária, op.cit., cap. 2. No Apêndice desta tese,
reproduzimos alguns dos contos publicados originalmente na imprensa.
10
As cartas de João Antônio a Caio Porfírio Carneiro registram este momento de intensa atividade literária e
novo reconhecimento. A segunda edição de MPB esgotou-se rapidamente, Ldc chegou ao primeiro lugar entre
os livros de ficção mais vendidos no país, o autor trabalhava como editor do Livro de Cabeceira do Homem,
revista da Civilização Brasileira, preparava a edição de outros livros, como Malhação do Judas carioca, Casa
de loucos e Lima Barreto, e fazia frequentes viagens pelo país, divulgando os seus livros e participando de
eventos literários e universitários. Ver Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. Cotia/SP:
Ateliê Editorial. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2004. Flávio Aguiar, em texto de
1978, relembra o momento de renascimento literário experimentado nos anos de 1974-75: ―A partir daí
nascem e renascem revistas literárias, surgem seções de literatura em jornais de circulação nacional ou
regional, inclusive diários; as edições de estreantes crescem em número e tiragem. Mas é claro que a literatura
nunca ‗morrera‘, ou defendera o obscurantismo, para ter um ‗renascimento‘. Naquele momento (74/75) o que
reapareceu, e que justificou um interesse editorial mais intenso pela literatura, foi a prática de debatê-la em
público. (...) Percebeu-se que literatura atraía um público muito mais amplo do que a expectativa usual, e
houve margem para muita coisa, que dormia na gaveta, ir pelo menos dormir na gaveta alheia. (...) A partir de
74/75 o conto amplia sua presença, na imprensa e nas edições. Quanto à poesia, descobria-se que o fenômeno
das edições ‗marginais‘, vendidas de mão em mão, atinge proporções de epidemia. (...) No conto, aparecia
constantemente uma outra marginalidade: a dos desempregados, dos fora-da-lei, os perseguidos e humilhados:
denúncia direta da violência oficial ou oficiosa, do desvario de um crescimento urbano premeditado mas
desplanejado. Não por acaso o carro-chefe da divulgação do conto brasileiro, naquela época, foi a reedição de
Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio. O poeta desprezado, peregrino das faculdades, portas de
teatro e cinema; os marginais desesperançados que peregrinam pelas ruas e pela violência das macrocidades:
eis um cartão de apresentação do conto e da poesia, nos anos em apreço. Ao lado, um cidadão de classe média
contempla, um pouco perplexo, o ‗milagre brasileiro‘ revelar-se circo de horrores.‖ AGUIAR, Flávio. ―Os
mensageiros de Jó‖, In: A palavra no purgatório. Literatura e cultura nos anos 70. São Paulo: Boitempo
Editorial, 1997, pp. 179-180. No final da década de 1990, Aguiar voltaria ao tema da redescoberta do autor e
da realidade dos marginalizados em: AGUIAR, F. ―Evocação de João Antônio ou do purgatório ao inferno‖.
Remate de Males, no 19. Revista do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem.
Unicamp, Campinas, 1999.
12

próprio autor esse congelamento foi ―determinado por vários fatores‖, ―inclusive de
editores‖.11
O longo período de mais de uma década sem publicar em livro intriga ainda hoje
críticos e leitores. Tania Macêdo tenta resumir os variados motivos que explicariam o hiato
entre o primeiro e o segundo livro: ―(...) a difícil situação editorial brasileira para o jovem
escritor, a sua mudança para o Rio de Janeiro (que seria responsável por um grande
impacto no escritor), o trabalho em vários jornais, na revista Manchete, o internamento
em um sanatório. Provavelmente cada um desses motivos tenha tido o seu peso nesse
silêncio. (...) Um exame retrospectivo de sua obra permite dizer que, muito
possivelmente, esse intervalo deveu-se ao alto grau de exigência do autor em relação a
seu trabalho, exigência essa potencializada, sem dúvida, pelas expectativas e pressões que
o segundo livro sempre carrega‖. 12
Como bem ressalta Tania Macêdo, a mudança para o Rio de Janeiro, problemas de
saúde, questões profissionais, pessoais e políticas devem ter contribuído para o longo
silêncio, ainda que o período, como também assinala a autora, tenha sido marcado pela
atividade intensa como jornalista, que lhe renderia matéria para pelo menos dois livros da
década de 70: Malhação do Judas carioca (1975) e Casa de loucos (1976).
O ambiente político desfavorável que se seguiu ao golpe militar de 64, um ano
depois do lançamento de Malagueta, Perus e Bacanaço, deve ter contribuído para os doze
anos sem livros de João Antônio, ainda que não se tenha notícia de que o autor tenha sido
censurado.13 Apesar de sua publicação durante a ditadura, a obra de João Antônio traz

11
Carta a Fábio Lucas datada de 29 set. 1974. Em carta de 1976 a Caio Porfírio Carneiro, diz ele: ―Estive
doze anos na Sibéria literária e agora não posso perder mais tempo‖. In: João Antônio. Cartas aos amigos
Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. Cotia/SP: Ateliê Editorial. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba
de Moraes, 2004, respectivamente, p. 96 e 73. Depois do ―congelamento literário‖, em 1975 e 1976 Leão-de-
chácara e Malhação do Judas Carioca frequentaram a lista da revista Veja de livros mais vendidos no país.
12
MACÊDO, T. ―Malandros e merdunchos‖. In: Ldc, p. 6.
13
Sandra Reimão, em estudo recente, reconstituiu os casos mais significativos de livros censurados a partir da
edição do AI-5, em dezembro de 1968. Especialmente na ficção, a autora comenta a censura a Feliz ano novo,
de Rubem Fonseca, e Zero, de Ignácio de Loyola, ambos censurados em 1976. Dentre outros autores que
tiveram textos ou livros de ficção censurados estão Álvaro Alves de Faria, Aguinaldo Silva, Cassandra Rios,
Dalton Trevisan, José Louzeiro, Renato Tapajós. A autora indica que, curiosamente, a censura foi mais rígida
com os livros durante o governo Geisel (1974-1979) e não durante os Anos de Chumbo (1968-1974).
REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2011. No caso de João Antônio, nenhum
de seus livros foi censurado, mas sofreu censura prévia a revista Extra – Realidade Brasileira, especial
Malditos Escritores! (no. 4, ano I, março de 1977, número organizado por João Antônio), como assinala
Mylton Severiano, que fala também numa espécie de censura interna na redação de Realidade, onde João
13

poucas referências ao regime militar, ainda que o tema dos marginalizados e a atividade do
escritor como jornalista na imprensa nanica permitam situá-lo como um autor dissonante
em relação ao regime. Flávio Aguiar, que, como João Antônio, também atuou na imprensa
alternativa, destaca entretanto a dimensão simbólica de sua literatura, acentuando o caráter
universal da obra do autor, desvinculada das lutas e debates políticos mais imediatos. Num
momento de violência política e marginalização dos escritores e dos ―deserdados da terra‖,
dos ―humildes‖, da ―gente simples‖, Aguiar chama a atenção para a singularidade de seus
personagens e para a dimensão subjetiva de um realismo que vai além da representação
objetiva: ―O essencial é que nenhum personagem de João Antônio está em sua medida. Um
sopro transformador os desengonça a todos: eles se fazem símbolos, ao invés de ‗retrato
fiel‘ à la naturalismo do século XIX. São símbolos de uma peregrinação universal, daqueles
que não têm nas mãos o próprio destino.‖14
Ao estrear em livro, nos anos 60, com Malagueta, Perus e Bacanaço, e pelo menos
até o final da década seguinte, quando lançou, além de Leão-de-chácara, também
Malhação do Judas carioca, Casa de loucos, Lima Barreto e Lambões de caçarola
(Trabalhadores do Brasil!), a obra de João Antônio foi vista como uma grande novidade na
literatura brasileira e — como não poderia deixar de ser depois de um volume de estreia tão
poderoso — sob o signo da promessa, daquela esperança de que se assistia ao surgimento
de um grande escritor.15
Já nos anos 1970 a obra do autor foi incorporada pela crítica não apenas à produção
de maior relevância à época, mas também à corrente da tradição realista brasileira, bastante
caudalosa, como se sabe. A literatura do autor foi vista por Antonio Candido como
inauguradora de um ―realismo feroz‖ na literatura nacional, ao lado da ficção de Rubem
Fonseca, tendo ambos como precursor, especialmente, Dalton Trevisan. Candido deu
destaque a João Antônio em seu texto ―A nova narrativa‖, escrito em 1979, em que o crítico
apresenta um período de intensa renovação da prosa de ficção brasileira — de ―legitimação
da pluralidade‖ —, quando a literatura passou a incorporar com regularidade recursos

Antônio trabalhou — e sofreu com um diretor de redação que era censor disfarçado, ―homem camuflado do
Golbery‖. SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2005, pp. 58 e 59.
14
AGUIAR, Flávio. ―A palavra no purgatório‖. In: A palavra no purgatório. op.cit., p. 91.
15
O final do texto de João Alexandre Barbosa aposta nisso: ―Enfim, todo o conto — todo o livro, melhor — é
dessa espécie rara: de um criador que sabe o peso de suas armas e utiliza-o. Por isso, creio que João Antônio,
que a orelha do livro informa moço, tem muito ainda para dizer. Felizmente.‖. João Alexandre Barbosa, op.
cit., p. 140.
14

experimentais de composição e procedimentos típicos do jornalismo, do cinema, da


autobiografia e da crônica. Para Candido, o realismo feroz de Rubem Fonseca e João
Antônio realiza-se melhor quando autor e narrador diminuem as distâncias em relação a
seus personagens, desestabilizando a objetividade do realismo tradicional, em que o escritor
―se encastelava na terceira pessoa‖. Por isso, Candido valoriza os relatos em primeira
pessoa, foco narrativo que permite diminuir as distâncias sociais, fazendo o autor se
identificar com a matéria narrada, adotando a primeira pessoa como ―recurso para
confundir autor e personagem, adotando uma espécie de discurso direto permanente e
desconvencionalizado, que permite fusão maior que a do indireto livre‖.16 No caso de João
Antônio, tece elogios a ―Paulinho Perna Torta‖, definido como uma ―obra-prima em nossa
ficção‖.17
No começo da década de 1980, João Antônio foi incluído por Alfredo Bosi entre os
mais representativos contistas brasileiros da época. Bosi destacou no autor a capacidade de
―reconhecer as lesões de vários graus que a sociedade de classes não cessa de produzir no
tecido moral do anti-herói contemporâneo‖.18 No volume de ensaios Os pobres na
literatura brasileira, Jesus Antônio Durigan procurou driblar os lugares-comuns que já
haviam se cristalizado a respeito do autor19 e chamou a atenção para a ―necessidade de
aprendizagem‖ de seus personagens, algo que contamina o narrador, que ―não apenas
valoriza e incorpora como seu o ponto de vista dos atores marginais, como também procura
assumir de fato a sua própria representação de ‗narrador malandro‘‖. Durigan estende essa
dinâmica aos contos autobiográficos, como ―Paulo Melado do Chapéu Mangueira
Serralha‖, no qual esse narrador ―realiza definitivamente a sua formação‖. O crítico define
a dinâmica da obra do autor com uma imagem interessante: ciranda da malandragem, na
qual solidão e medo aproximam ―‗os otários‘ (integrados) e os ‗malandros‘ (marginais)

16
CANDIDO, Antonio. ―A nova narrativa‖, in: A educação pela noite & outros ensaios. 3ª edição. São Paulo:
Ática, 2003, p. 213.
17
idem, ibidem, p. 210.
18
BOSI, Alfredo. ―Situações e formas do conto brasileiro contemporâneo‖. In: O conto brasileiro
contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1981, 4ª edição, p. 10. O conto do autor incluído na antologia foi ―Frio‖.
Em tempos mais recentes, nos Cem melhores contos brasileiros do século (Objetiva, 2000), Italo Moriconi
selecionou ―Guardador‖, publicado em livro em Amr, mas com primeira versão escrita em 1975 e publicada
em Panorama, como indica os trabalhos de Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho, Hibridismo e ruptura de
gêneros em João Antônio (Unesp, Assis, 2008) e Renata Ribeiro de Moraes, João Antônio de pés vermelhos:
a atuação do escritor-jornalista em Panorama (UEL, Londrina, 2005).
19
Alguns epítetos colados em João Antônio, mencionados por Durigan: ―o clássico velhaco‖, ―escritor do
submundo‖, ―autor da marginalidade‖, ―que trabalha com o livro da vida‖, ―que escreve como um soco‖.
15

confrontando-se de maneira sistemática e agressiva‖. A roda-viva da malandragem mantém


os ―atores girando em torno de si próprios, dentro de uma realidade gerenciada pela
violência‖.20
Apesar da recepção inicial amplamente favorável, com o lançamento de Dedo-duro,
em 1982, porém, começam a aparecer textos um pouco mais críticos à obra do autor, como
uma resenha de Leo Gilson Ribeiro,21 sobre a qual o próprio João Antônio expressou
descontentamento,22 e as considerações de Flora Süssekind sobre as condições favoráveis
que o projeto literário nacionalista do autor teria encontrado na ideologia ufanista do
regime militar.23 Algumas críticas já haviam aparecido antes, desde a época do lançamento
do livro,24 mas nunca haviam sido tão duras.

20
DURIGAN, Jesus Antonio. ―João Antônio e a ciranda da malandragem‖, In: Roberto Schwarz (org.), Os
pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 214-218.
21
Leo Gilson Ribeiro resenha Dedo-duro, no Jornal da Tarde: ―João Antônio, neste seu momento de pausa
indefinida, acumula de modo excessivo centenas de palavras que, se têm a expressividade que deseja,
paralelamente tornam o mundo que elas querem descrever hermético, barroco, no sentido pejorativo do termo,
palavroso demais, obtendo, não a comunhão do leitor com os propósitos evidentemente nobres e idealistas do
autor, mas sim sua incompreensão e, no pior dos casos, seu enfado e desinteresse pela obra.‖ Apud Rodrigo
Lacerda. Pingentes: João Antônio e Lima Barreto. Disponível em:
http://www.rodrigolacerda.com.br/pingentes-joao-antonio-e-lima-barreto. Último acesso: 2 jul. 2012.
22
João Antônio reage assim à crítica de Leo Gilson Ribeiro: ―O crítico que um dia me botou nos cornos da lua,
agora acha que não passo de machista, barroco, exagerado, fascinado pelas palavras e por mim mesmo, correndo o
perigo de me tornar um ultrapassado stalinista. Agora, um troço ficou chato para ele, penso eu. Eu não sou um alto
inventor de palavras. Não tenho capacidades à Mário de Andrade ou à J. Guimarães Rosa. E certos termos que ele
aponta como de difícil compreensão e gírias de código fechado estão dicionarizadas e bem. Exemplo:
mundrungueiro, capiongo, cafofo. Também não me lambuzo com as palavras, são os meus personagens que as
utilizam. Como Wilson Martins, no Jornal do Brasil, Leo Gilson ficou num chove-não-molha, num morde-e-sopra,
para concluir, meio culposo, que não pode ‗bitolar um dos quatro ou cinco talentos mais vivos do Brasil de hoje‘.
Mas deixemos isso pra lá. O importante é que Dedo-Duro vai recebendo algum espaço e, falando honestamente, acho
até natural que leve alguns esporros. Afinal, quem sai à chuva é pra se molhar.‖ Carta a Caio Porfírio Carneiro,
datada de 22 nov. 1982, incluída em ANTÔNIO, João. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio
Lucas, op.cit., p. 76.
23
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: Polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.
24
O trabalho de levantamento da recepção crítica da obra de João Antônio feito por Jane Christina Pereira
registra as críticas de Assis Brasil e Celso Cunha no ano de lançamento do livro de estreia: ―Assis Brasil, em
26 de junho de 1963, no Jornal do Brasil, ressalta em Malagueta, Perus e Bacanaço a ‗ausência de uma
unidade qualificativa no livro e a narração em 1a pessoa, que denuncia um memorialismo e uma repetição da
psicologia das ações‘. Em 1975, em sua História Crítica da Literatura Brasileira volta a apontar os mesmos
aspectos como negativos em relação àquela obra, sem deixar de salientar, como fez no primeiro texto, os
aspectos positivos ligados aos contos em 3a pessoa. Também apontando falhas, Fausto Cunha, em 12 de
outubro de 1963, no Correio da Manhã, comenta que ao escrever uma obra visando apenas o público paulista,
João Antônio deixa o leitor de outros estados um pouco indiferente. Diz, ainda, que seus contos tendem ao
episódico e ao incidental por falta de um estilo próprio. Entretanto, acaba elogiando sua autenticidade
vivencial que, segundo ele, contrabalança tudo.‖ PEREIRA, Jane Christina. Estudo crítico da bibliografia sobre
João Antônio (1963-1976). Dissertação de mestrado. Orientação de Ana Maria Domingues de Oliveira. Assis:
Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Unesp, 2001, pp. 24-25.
16

Ainda que o autor tenha sido agraciado com uma consagração precoce, como se vê,
João Antônio não tardou a experimentar o sabor das críticas e das limitações de alcance de
sua obra, que dizem respeito não apenas a problemas individuais, mas também à literatura
brasileira. As numerosas cartas e entrevistas de João Antônio expressam sua contrariedade
com relação à falta de reconhecimento do escritor profissional no Brasil e à fragilidade
própria do sistema literário nacional — os escritores sempre à procura de bons editores e de
um público-leitor —, insatisfação combinada a um inconformismo e a um espírito
irrequieto e irritadiço, cuja intensidade de inconformismo se acentuou ao longo dos anos e
ganhou expressão crispada, com reflexos na obra do autor. Abraçado ao meu rancor, de
1986, seu último grande livro, traz a marca amarga de um autor fiel a suas origens e, ao
mesmo tempo, inconformado com as transformações que fizeram desaparecer a boemia e a
cidade de outrora, tomada pelo brilho falso do turismo, da finança e do trabalho alienado,
cooptado pelo mercado — inclusive o trabalho jornalístico e literário, o trabalho dele
próprio, João Antônio.
Como bem apontou à época João Luiz Lafetá, a ―estética do rancor‖25 de João
Antônio expressa um paradoxo experimentado pelo escritor que é similar ao de Lima
Barreto: resolver o impasse que se impõe no artifício de unir, de um lado, o ―recato‖ da
representação literária e, de outro, os ―sentimentos e ressentimentos‖ do vivido. José Paulo
Paes, por sua vez, lembrou que João Antônio, ao colocar-se sob o signo do rancor, não
estava sendo original, mas, ao contrário, estava inserido em longa tradição das letras
nacionais, pois ―foi afinal sob esse signo que nasceu, há trezentos anos, a própria literatura
brasileira‖.26 José Paulo Paes analisa o rancor de João Antônio, exteriorizado em ―confusão
de sentimentos‖, ligando-o à culpa: ―Se o rancor se volta principalmente contra um
progresso que só beneficia os donos da vida, nos Jardins, jamais os humilhados e ofendidos
nos Morros da Geada, nem por isso é menos perceptível o sentimento de culpa que, ao
longo de sua elegíaca visita à casa paterna, o narrador experimenta‖.
25
LAFETÁ, João Luiz. ―João Antônio e sua estética do rancor‖. In: ______. A dimensão da noite. Organização
de Antonio Arnoni Prado. Duas Cidades/Editora 34. São Paulo: 2004.
26
O crítico refere-se ao rancor de Gregório de Matos, ―reconhecidamente nosso primeiro escritor digno do
nome‖. PAES, José Paulo. ―Ilustração e defesa do rancor‖. In: O Estado de S. Paulo, 21 mar. 1987. Recorte de
jornal consultado no Acervo João Antônio, Cedap, Unesp de Assis. Paes alude a Gregório de Matos porque
versos do poeta servem de epígrafe a ―Abraçado ao meu rancor‖, conto que dá título ao volume de João
Antônio: ―Carregado de mim ando no mundo,/ E o grande peso embarga-me as passadas,/ Que como ando por
vias desusadas,/ Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo‖. A outra epígrafe ao texto é de Lima Barreto: ―A
minha alma é de bandido tímido‖.
17

Ainda na década de 1980, Alfredo Bosi voltaria a debruçar-se sobre a literatura do


autor, a propósito de Abraçado ao meu rancor. No prefácio ao livro, Bosi também comenta
a dificuldade da volta à casa da família: ―Ele não volta para sempre: parece impossível o
retorno a quem já transpôs o limiar da classe. Mas volta sempre que o chamado é mais forte
do que tudo e a consciência da separação dói acima da medida‖.27
O final da carreira literária de João Antônio, da segunda metade da década de 1980
até o fim da vida, foi de fato marcado pela culpa e pela melancolia de um autor que não
conseguiu levar adiante projetos de maior fôlego e passou a reeditar textos e livros antigos,
além de recuperar textos escritos muitos anos antes, transformando-os em contos, crônicas
e perfis literários, incorporados aos seus últimos livros. A variedade de estilos e formas dos
últimos anos de sua carreira aponta para um autor inquieto e inconformado, mas também
para um escritor que talvez não tenha encontrado a medida exata de seu talento e de sua
vocação de ficcionista. A morte precoce e inesperada, em outubro de 1996, aos 59 anos, e
as circunstâncias da descoberta do corpo do autor, em estado de putrefação, dias depois de
seu falecimento, contribuíram para acentuar ainda mais a impressão de melancolia dos
últimos anos do autor.
A importância de sua obra, entretanto, tem sido reconhecida, encontrando lugar de
destaque na literatura brasileira contemporânea, graças às análises críticas relevantes, às
reedições recentes de seus livros e à permanência do interesse dos leitores e admiradores. A
apreciação crítica da obra de João Antônio tem se adensado nos últimos anos graças ao
trabalho de jovens críticos e estudantes que vêm se debruçando sobre sua obra e ao carinho
com que seus contemporâneos ainda se lembram dele, muitos dos quais privaram da
amizade com o autor, outros tantos — professores, escritores, jornalistas, críticos — que
registraram em ensaios e textos memorialísticos suas considerações sobre autor e obra,
elaboraram leituras críticas e afetivas de seus livros, divulgaram cartas trocadas com ele,
retomaram lembranças de época e impressões sobre João Antônio.
Em 1999, a revista Remate de Males, do Departamento de Teoria Literária do IEL

(Instituto de Estudos da Linguagem) da Unicamp, dedicou um número inteiro a João


Antônio, que reúne amigos, críticos e professores que abordam temas específicos de sua
obra. Dentre os autores que integram a edição estão Antonio Candido, Antonio Arnoni

27
BOSI, Alfredo, ―Um boêmio entre duas cidades‖. Prefácio a Amr.
18

Prado, Vilma Arêas, Fábio Lucas, Caio Porfírio Carneiro, Fernando Paixão, Flávio Aguiar
e Ilka Brunhilde Laurito, esta uma das mais fiéis correspondentes do autor, com quem João
Antônio trocou cartas desde antes de publicar Malagueta, Perus e Bacanaço.
Alguns dos estudos mais recentes sobre o autor ganharam divulgação no volume
Papéis de escritor: Leituras sobre João Antônio.28 Outros trabalhos vinculados ao Acervo
João Antônio, depositado no Cedap (Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa) da
Unesp de Assis, podem ser consultados on-line.29 No que se refere à biografia do autor, o
trabalho de Rodrigo Lacerda, tese de doutorado que empreendeu uma biografia literária do
autor, e o livro do jornalista Mylton Severiano, escrito a partir da memória de amigo e da
correspondência trocada com João Antônio, são referência para quem se interessa pelas
relações entre vida e obra do escritor. O livro de Severiano, por sinal, traz o que
provavelmente é a última carta de João Antônio, datada de 10 de outubro de 1996.30
As cartas — e João Antônio escreveu muitas, para muita gente, como se sabe —
sempre reservam novas informações sobre episódios da vida e sobre as ideias do autor,
quando vêm a público.31 Mas, como bem ressaltam Ana Maria Domingues e Telma Maciel
da Silva, as cartas do autor nem sempre eram pensadas enquanto comunicação pessoal, de
interação particular com a outra pessoa, destinatária das missivas. Antes, eram mais um
espaço de experimentação literária e ―escrita de si‖:

João Antônio se relacionava com a sua correspondência de modo muito particular. De um


lado, ela é espaço de experimentação linguística, que culmina em um trabalho estético; sob essa
perspectiva, algumas das cartas (ou trechos delas) irmanam-se a textos literários de sua lavra. Por
outro lado, há também a assumida estratégia de preservação da memória e construção de um

28
OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de, ORNELLAS, Clara Ávila, SILVA, Telma Maciel da (orgs.). Papéis de
escritor: Leituras sobre João Antônio. Assis: FCL – Assis – Unesp Publicações, 2008.
29
http://www.cedap.assis.unesp.br/acervo_joao_antonio/Acervo.htm
30
SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2005, pp. 28-30.
31
Exemplo disso é a forte ligação que o autor diz ter desenvolvido, na juventude, com o lunfardo, o modo de
falar popular e amalandrado dos portenhos, linguajar que compõe muitas letras de tangos. Em carta a
Fernando Paixão, ao comentar o trabalho de tradução para o alemão das gírias utilizadas em seus textos, João
Antônio comenta que se interessou por gírias e aprendeu muitas delas ao tomar contato com o lunfardo (por
meio de um amigo argentino, Victor Taphanel, e a esposa dele, Luzia). Na mesma carta, cita também, nesse
sentido, ressalta a importância da leitura da obra do escritor argentino Roberto Arlt. PAIXÃO, F. ―João
Antônio: cartas de desabafo‖. Revista IEB, n. 51, mar/set 2010, p. 164.
19

imaginário, o que acaba por permitir a leitura do conjunto como uma espécie de autobiografia
32
fragmentária, associada às estratégias discursivas do diário íntimo.

As autoras dão como exemplo uma carta enviada a Jácomo Mandatto em 1963,
quase idêntica a carta enviada na mesma época a Ilka Brunhilde Laurito, cartas que darão
origem ao texto de ficção autobiográfico ―Uma força‖, incluído em livro vinte anos depois,
em Amr (1986).
Recentemente, o poeta e professor Fernando Paixão, que foi editor de João Antônio
na Ática, de São Paulo, publicou três longas cartas que recebeu no último ano de vida do
escritor.33 Apesar de anotar que o autor ―tornara-se um tanto amargo, desencantado com as
rodas literárias em que via predominar a vaidade dos escritores sobre a discussão de ideias
e valores literários‖, Fernando Paixão registra a energia e a animação com que o autor
abraçou o projeto então proposto pelo editor: escrever um ensaio sobre a arte literária,
inspirado em livro de Julien Gracq, A literatura no estômago.

(...)
Julien Gracq convida a profundar a impostura toda da mentiralhada em que nos meteram até a
alma do nosso horizonte.
Talvez ele chegue com algum ressentimento, sabe-se lá, outros ocupavam a cena quando
publicou e estavam entrincheirados em grupo, debaixo de algum ismo ou bandeira. Havia uniões
pouco naturais mas passavam por uniões e ganhavam a cena. Ele terá chegado só. Não interessa, seu
panfleto é de uma sinceridade respeitável e aplica-se, em atualidade, ao exame e cotejo do próprio
sistema, ao carneirismo dos prêmios, certames, conferências, grupelhos, coquetéis e, em principal, a
esta corja de gente feia, chata, desinteressada, que se repete e não muda um milímetro, culturesca e
beócia que rodeia a chamada vida literária num país ágrafo. A sua nota final de autor em A
Literatura no Estômago mata a pau. Melhormente: mata e mostra o pau.
Grato por tudo, mande-me notícias e perdoe meus humores. A título de que não sei, em
nome de quem também não sei, mas vá perdoando.
Haveremos de topar com um bem topado Tchaikovsky, com um telefonema de morena na
tarde e, quem sabe, com algum fiapo de verdade, acima das incertezas da filosofia. Afinal, nossa
literatura não é a que pensa, ela se compraz com algumas certezas da beleza, mesmo que passageira.
Na primeira leitura, o panfleto de Julien Gracq me deprimiu mais; ainda assim é um escritor de bom
porte. E, claro, também estava no ponto, já não aguentava mais. Saturou-se ou saturaram-no.
Vomitou, mas vomitou com elegância subida. Um ponto a favor.
Abraços,
JOÃO ANTÔNIO34

32
OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. ―Memória e ficção na correspondência do
escritor João Antônio‖. Teresa. Revista de literatura brasileira [8] [9]; São Paulo, p. 356-371, 2008.
33
PAIXÃO, F. ―João Antônio: cartas de desabafo‖. op.cit., pp. 157-180.
34
Carta de João Antônio a Fernando Paixão, datada de 26 abr. de 1996. PAIXÃO, F. ―João Antônio: cartas de
desabafo‖, op.cit., pp. 171-172.
20

Como se vê, a considerar suas últimas correspondências, trocadas com Fernando


Paixão, e também aquelas com o amigo Mylton Severiano, o autor ainda mantinha, mesmo
nos últimos tempos, o temperamento inquieto, irritadiço, combativo e insatisfeito, um tanto
amargo, mas espirituoso e mobilizado pela literatura.
Apesar do final de vida melancólico e súbito, a personalidade contraditória e a obra
desafiadora do escritor permanecem despertando interesse, inclusive de críticos e escritores
jovens, muitos dos quais, como é o nosso caso, não chegaram a conhecer o autor
pessoalmente.
Nosso trabalho parte da inquietação, da admiração e do apreço pela obra de João
Antônio — já se vão quase vinte anos, desde que tivemos o primeiro contato com a
literatura do autor, durante a graduação em Jornalismo, no começo da década de 1990. O
interesse persistente como leitor conduziu ao desafio analítico de compreensão dos alcances
e limites de uma obra múltipla e poderosa, mas também dispersiva, cuja potência criativa
arrefeceu ao longo dos anos, especialmente se considerarmos a incidência cada vez menor
da ficção na obra do autor e a ausência de obras de fôlego na maturidade.
João Antônio se notabilizou como contista, apesar de ter escrito também crônicas,
reportagem e até conto-reportagem, gênero no qual é celebrado, ainda que seu propalado
pioneirismo nessa área seja relativo.35 O autor não chegou a escrever nenhum romance, e se
conhecem poucos poemas de sua autoria, como os versos de ―Choros – Para pintagol e
cuíca‖.36 Sabe-se, porém, que na juventude o autor cultivou o desejo de escrever narrativas
longas: um romance intitulado Jordão, que o autor gostaria de ter retomado nos últimos
anos de sua carreira, como informa Rodrigo Lacerda, 37 e Irmãos Raccatti Ltda., projeto de

35
Sobre a atividade de João Antônio na revista Realidade, onde ele exercitou o formato do conto-reportagem,
ver o trabalho de Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho. João Antônio: Repórter de Realidade. João Pessoa:
Idéia, 2002. Nessa área, lembrem-se de antecessores como Lima Barreto (O subterrâneo do Morro do
Castelo) e João do Rio (A alma encantadora das ruas).
36
O poema pode ser lido em SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio. op.cit., pp. 83-92. No Acervo João
Antônio, na Unesp de Assis, consultamos também uma pasta com haicais de autoria do escritor, Sete haicais
de pés quebrados, provavelmente inéditos.
37
Jordão foi um amigo muito próximo de João Antônio, ―personagem misterioso‖, ―amizade da noite
malandra e das ruas de luzes vermelhas que o jovem escritor freqüentava‖ (como se refere a ele Rodrigo
Lacerda), com quem o escritor travou intimidade. O escritor cogitou transformar a história de Jordão em
romance, o que nunca aconteceu. A amizade com esse rapaz é citada por João Antônio nas cartas a Ilka
Brunhilde Laurito, com que João Antônio trocou extensa correspondência. Ver o capítulo 2 e a conclusão do
trabalho de Rodrigo Lacerda. João Antônio: uma biografia literária,op.cit..
21

romance sobre o universo da propaganda em que trabalhou durante o ano de 1963, mas que
não chegou a publicar.38
Ainda que não tenha escrito romances, os contos do autor apresentam elementos que
são típicos do gênero romanesco. Seus protagonistas são personagens que se caracterizam
por elementos que marcam o herói de romance, tal como definido por Lukács: a busca, o
contato áspero com o mundo e o impulso de conquista da realidade. Por serem contos que
têm forte características do romance, os textos mais relevantes de João Antônio são contos
longos, que tendem à forma distendida, o que permite classificá-los como novela, forma
intermediária entre o conto e o romance. Talvez por isso ele tenha sido comparado tanto a
contistas como a romancistas, e ao final da carreira, ainda que intentasse retomar o projeto
de um romance, se mostrasse tão ligado aos contos de juventude, onde, como veremos,
estão o manancial de toda a sua obra.
Apesar do sucesso de contos como ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ e ―Paulinho
Perna Torta‖ e de continuar muito ligado a esses contos maiores de sua carreira, João
Antônio se mostrava incomodado com o rótulo de intérprete da malandragem, de cronista
da marginalidade, de ―clássico velhaco‖ e outros epítetos pelos quais ficou conhecido. Já
em 1964 o autor desconfiava de si próprio como retratista da malandragem. Em carta a Ilka
Brunhilde, citada por Rodrigo Lacerda, o autor dizia querer retomar o espírito universal e
essencial dos primeiros contos.

Vou-lhe fazer uma confissão, Ilka. Cá entre nós, fique claro. Eu não sou o escritor dos
malandros. Já estou cansado desse slogan que certos jornais, revistas e repórteres andaram
pespegando por aí. (...) Meu futuro literário, a meu ver e sentir de agora, é continuar a linha iniciada
pelos contos mais universais e de análise de certas essências do homem, como ‗Busca‘ e ‗Afinação
da arte de chutar tampinhas‘. Lembra-se? Aquela me parece agora ser a minha verdadeira rota. Um
corte vertical na alma dos personagens, botando-os para fora sem prosas moles, porém, não
exagerando nunca o tamanho de seus vazios interiores.39

Estes contos iniciais de sua carreira, cujo espírito o autor, assim, gostaria de ter
retomado como sua ―verdadeira rota‖ foram os textos que o fizeram ser comparado, de

38
A referência a este projeto de ficção está em OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da.
―Memória e ficção na correspondência do escritor João Antônio‖, op. cit.
39
Carta a Ilka Brunhilde Laurito de 8 jun. 1964, apud LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária.
op.cit., p. 448.
22

início, a autores como Alcântara Machado e Lima Barreto. As referências ao parentesco de


João Antônio e Alcântara Machado foram muito presentes na recepção crítica inicial de
MPB, como mencionamos. Já com relação a Lima Barreto, as comparações críticas foram
ensejadas, em larga medida, pela insistência com que João Antônio procurou homenagear o
autor e reafirmar sua dívida literária para com Lima.40 E, de fato, as andanças dos
protagonistas fazem lembrar os personagens de Lima Barreto, sobretudo Isaías Caminha,
quando jovem. Como semelhança entre os dois autores, Antonio Arnoni Prado vê a
observação da gente simples e dos tipos comuns, o sentimento de indignação pelo
beletrismo, as ruas e os bares como espaços de ficção privilegiados, a ―disponibilidade para
o conflito‖ de uma existência à margem, a ―dissonância da visão de mundo‖.41
É curioso, porém, que as comparações de João Antônio tenham recaído pouco sobre
um autor como Mário de Andrade. Talvez isso tenha se dado em função do caráter
francamente mítico, rapsódico, de Macunaíma, em contraste com o realismo chão de MPB,
ou talvez por conta do registro sentimental e lírico da obra de Mário, mesmo nos poemas ou
contos em que a cidade de São Paulo avulta como personagem principal, caso de Pauliceia
desvairada ou Contos de Belazarte, em oposição à objetividade, algumas vezes beirando o
jornalístico, dos textos de João Antônio. Mas a comparação com alguns dos contos mais
maduros de Mário de Andrade indica como João Antônio se relacionou e levou adiante
conquistas da literatura de Mário que vinham se depurando na prosa curta de ficção que
tinha São Paulo como cenário e os personagens pobres ou pequeno burgueses como
protagonistas.42
Continuadora de Alcântara e Mário de Andrade, a obra de João Antônio também
guarda relação com a antropofagia de Oswald de Andrade e com as obras de Graciliano
Ramos e Guimarães Rosa no que se refere ao tema da oposição entre ―barbárie‖ e
―civilização‖, conceitos que, como Oswald, Graciliano e Rosa, João Antônio trata de

40
Além das dedicatórias a Lima, João Antônio escreveu um livro sobre o autor: Calvário e porres do pingente
Afonso Henriques de Lima Barreto. Recentemente, Clara Ávila Ornellas publicou estudo sobre os dois
autores: ORNELLAS, Clara Ávila. João Antônio, leitor de Lima Barreto. São Paulo: Edusp, 2011.
41
PRADO, Antonio Arnoni. ―Lima Barreto personagem de João Antônio‖. In: Remate de males no 19, op.cit.,
pp. 147-167.
42
Além de Macunaíma e dos Contos de Belazarte, no conjunto dos Contos novos, por exemplo, sobressaem
muitas semelhanças entre contos de João Antônio e os textos de Mário protagonizados pelo personagem Juca:
―Vestida de preto‖, ―O peru de Natal‖, ―Frederico Paciência‖ e ―Tempo da camisolinha‖ (o protagonismo de
Juca, neste último texto é indeterminado, ainda que o texto se comunique fortemente com os demais contos
citados, um pouco como acontece com os ―Contos Gerais‖ de João Antônio).
23

desestabilizar e questionar, quando não inverter, mostrando que os integrantes do polo


social positivo — os protagonistas da ordem burguesa em que se inserem os personagens
— definem, segregam e marginalizam quem é ―bárbaro‖ aos seus olhos pretensamente
―civilizados‖. O retorno ao ―bárbaro‖ e ao ―primitivo‖, que a obra de Oswald propõe e que
João Antônio atualiza no campo da malandragem, lembra também a valorização daquela
―barbárie positiva‖, resultante da pobreza da experiência, tal como a formula Benjamin.43
Dizer que João Antônio levou adiante as conquistas dos modernistas e de autores
posteriores não significa, obviamente, dizer que o autor é melhor que Mário, Oswald,
Alcântara, Graça e Rosa ou que a literatura evoluiu de um momento a outro. Significa dizer
que no contexto dos anos 1950 João Antônio retomou um espírito semelhante aos de seus
antecessores, compondo, em ficção realista, um retrato imaginativo e complexo da
realidade, por meio de personagens e situações exemplares e também surpreendentes e
inventivas. Ao mesmo tempo que elaborou ficcionalmente contradições históricas que já
estavam anunciadas no modernismo, deu expressão ainda mais acirrada ao drama social e
psicológico dos moradores pobres de São Paulo. Se o retrato dos ―intalianinhos‖ feitos por
Alcântara tinha por parâmetro dar contornos ficcionais à ascensão social dos ―novos
mamalucos‖, no contexto da incipiente industrialização paulistana, flagrando esse
movimento no cotidiano dos bairros operários — o Brás, o Bexiga e a Barra Funda —, em
João Antônio, o momento histórico posterior apresenta novos desafios de composição.44
A modernização, que se anunciava no momento heroico do modernismo com tintas
da euforia e da ingenuidade sobre um futuro de prosperidade e progresso,45 no limiar dos
anos 60 ganha representação mais dramática nos contos de João Antônio — e ―dramático‖,
aqui, não é apenas força de expressão, pois diz respeito ao caráter trágico da trajetória dos
personagens do autor, como veremos. O espírito de otimismo do pós-guerra e da
democratização que sobreveio ao fim do Estado Novo reeditava, de certa forma, aquela
crença num progresso e numa modernidade a que o Brasil e São Paulo especialmente
43
Benjamin, W. ―Pobreza e experiência‖. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie. Sel. de Willi
Bolle. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986.
44
Em pesquisa anterior, analisamos as obras de Alcântara e João Antônio. ZENI, B. Fachada, sinuca e afasia.
Alcântara Machado, João Antônio e Fernando Bonassi. São Paulo, ficção no século XX. Dissertação de
mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada. Orientação de Joaquim Alves de Aguiar. São Paulo,
FFLCH-USP, 2004. Disponível em: http://www.spap.fflch.usp.br/node/27.
45
Roberto Schwarz lê o Pau-brasil de Oswald de Andrade como uma poesia que ―perseguia a miragem de um
progresso inocente‖, em ―A carroça, o bonde e o poeta modernista‖. In: SCHWARZ, R. Que horas são? São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.
24

estavam pretensamente destinados. Maria Arminda do Nascimento Arruda, autora que


estudou os projetos artísticos e institucionais de tentativa de metropolização e
modernização de São Paulo nos anos 1950, observa: ―Na vivência de muitos de seus
contemporâneos, o Brasil, nos meados do século xx, ensaiava trilhar um alvissareiro
caminho histórico, anunciador do efetivo rompimento com as peias que o atavam ao
passado, passado este que se recusava a morrer. É como se a débâcle do Estado Novo, a
instauração das instituições democráticas e a emergência de um surto desenvolvimentista
sem paralelos descortinassem a possibilidade de ‗forjar nos trópicos este suporte de
civilização moderna‘‖.46 A citação da autora refere-se entre aspas à formulação de
Florestan Fernandes, que aponta para o caráter incompleto, atrasado e muitas vezes
retrógrado do projeto de civilização brasileira, que em São Paulo ganha ares de
modernização econômica, tecnológica, urbanística e artística muitas vezes enganosos.
A juventude de João Antônio transcorreu no contexto desenvolvimentista, mas o
autor viveu o processo histórico do lado marginal, daqueles que sofreram os efeitos
excludentes dessa modernização. A origem humilde da família e a inclinação de esquerda
dos textos do autor — de caráter antiburguês e de proximidade aos marginais, malandros e
merdunchos — faz com que sua trajetória e sua literatura localizem-se historicamente de
maneira complexa. Publicada inicialmente no limiar do golpe de 1964, sua obra se
relaciona com um contexto social que é anterior — o da conquista de direitos e da
incipiente industrialização da era Vargas e a modernização e o desenvolvimentismo dos
anos JK —, mas já anuncia a permanência da dominação e da espoliação das classes
populares no contexto social posterior, de acirramento e radicalização à direita da política e
da economia, em prol do capital.
A localização histórico-ideológica da literatura do autor ajuda a entender seus
alcances e ambiguidades. O contexto, com suas implicações para a cultura e as artes, foi
bem definido por Roberto Schwarz, que apontou a hegemonia da produção artística de
esquerda nos primeiros anos de ditadura, hegemonia, entretanto, acompanhada de seus
limites de circulação:

46
ARRUDA, M. Metrópole e cultura. São Paulo no meio século XX. Bauru, SP: Edusc, 2001.
25

O seu domínio, salvo engano, concentra-se nos grupos diretamente ligados à produção
ideológica, tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas, a
parte raciocinante do clero, arquitetos etc., – mas daí não sai, nem pode sair, por razões policiais.
Os intelectuais são de esquerda, e as matérias que preparam de um lado para as comissões do
governo ou do grande capital, e do outro para as rádios, televisões e os jornais do país, não são. É
de esquerda somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um bom mercado –
produz para consumo próprio. Esta situação cristalizou-se em 64, quando grosso modo a
intelectualidade socialista, já pronta para prisão, desemprego e exílio, foi poupada. Torturados e
longamente presos foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários,
camponeses, marinheiros e soldados. Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento
cultural e as massas, o governo Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do
ideário esquerdista, que embora em área restrita floresceu extraordinariamente.47

Talvez por conta dessas contradições bem apontadas por Roberto Schwarz a
literatura do autor não tenha sofrido reveses durante o período, mas, ao contrário, tenha
experimentado grande popularidade, inclusive durante a ditadura militar e principalmente
depois do endurecimento de 1968, ainda que uma autora como Flora Süssekind veja no
sucesso da literatura de João Antônio uma espécie de afinação com o ideário nacionalista
do regime militar.
Este trabalho não se ocupa das razões sociais ou ideológicas pelas quais a obra do
autor desfrutou de tamanha popularidade na década de 1970, mas entende que sua relação
com o jornalismo e com a situação de arbitrariedade e repressão política tenha se dado de
maneira ambígua e torturada, como, aliás, os textos do autor vão registrar, com grande
elaboração literária, nos anos 1980, numa espécie de ressaca pela sobrevivência aos anos de
chumbo e ao chamado milagre econômico — o que alguns de seus textos, como ―Abraçado
ao meu rancor‖, expressam de maneira evidente e dramática.
A obra de João Antônio coloca em cena o avesso — o lado residual e negativo — da
modernização dos anos 1950 e 1960. E depois, a partir dos anos 70, aponta para a
permanência e o acirramento da exclusão social e da violência urbana que marcariam a
segunda metade do século XX, especialmente em São Paulo. O cenário é o de uma cidade
urbanizada e industrial, vista na e da periferia, com protagonistas que vivem afastados do

47
SCHWARZ, R. ―Cultura e política 1964-1969. Alguns esquemas‖. In: ______. O pai de família e outros
estudos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 62.
26

centro da cidade e dos bairros ―bons‖. Os personagens são trabalhadores proletários e


marginais sempre ameaçados de cair ainda mais um degrau na escala de classes, rumo ao
lumpesinato, à exclusão. Nos termos que o próprio escritor consagrou para se referir ao
seus personagens, são os ―sem-eira-nem-beira‖, ―pingentes‖, ―merdunchos‖. Além deles,
João Antônio criou uma galeria de boêmios e malandros, alguns deles construídos como
tipos, com todos os cacoetes, com o linguajar e a indumentária fixados no imaginário
brasileiro pelo samba: os sapatos finos e lustrosos, as camisas bem passadas, as mãos
manicuradas, a gíria característica, o rebolado no caminhar e a pisada macia. Os boêmios e
malandros encarnam fantasias e estratégias de sobrevivência que se mostram necessárias
num ambiente histórico e social que a todo momento os ameaça espoliar, excluir e, no
limite, eliminar.
Perseguir o sentido da malandragem em ―MPB‖ pressupõe considerá-la sob duplo
viés: tipo malandro e funcionamento amalandrado, caráter mítico e atualizado, em sua
permanência e em ação. A contradição é própria da obra ficcional de João Antônio, em que
se combinam o arquétipo e a situação. Em outras palavras, trata-se essencialmente de uma
ficção da ação e do mito (na acepção de relato mítico, oral, atemporal, circular e de
explicação das origens, aproximando-se da lenda,48 e de mythos, ―imitação secundária da
ação‖49 ou, simplesmente, trama, narrativa de uma ação). Isso não significa que no caso de
João Antônio, um autor, por excelência, interessado na ação, esteja ausente a reflexão ou
pensamento crítico. Como anota Frye: ―o mythos é a dianoia em movimento; a dianoia é o
mythos em paralisação. Uma causa por que tendemos a pensar no simbolismo literário
apenas em termos de sentido é que não temos ordinariamente palavra para o corpo em
movimento das imagens numa obra literária‖.50
Os personagens de João Antônio são expressão de realismo e de certo arcabouço
mítico, atravessados pelos ritos contemporâneos: as passagens de uma fase a outra da vida,
os costumes sociais, as lutas, artes e os jogos. Os protagonistas se ligam, por exemplo, aos
arquétipos do Édipo, do phármakon (ou bode expiatório) e do pobre-diabo — mas um
pobre-diabo que é ainda mais rebaixado na escala social que aquele pequeno funcionário

48
No sentido que Jolles e Vernant dão a mito. Ver JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976;
e VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, o homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 11.
49
Na definição de Northrop Frye, inspirada no conceito de mímese de Aristóteles. FRYE, N. Anatomia da
crítica. Trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 86.
50
FRYE, N. Anatomia da crítica. op.cit. p. 87, grifo do autor.
27

público ou amanuense que José Paulo Paes tão bem identificou como um dos anti-heróis
recorrentes da literatura brasileira. Os personagens de João Antônio guardam características
semelhantes às desse pobre-diabo como a humilhação, o deslocamento, o desengonço, o
temor do rebaixamento social, mas estão ainda mais abaixo na escala social, mais para o
lumpemproletariado ou, nos termos que o próprio autor utilizava, para ―merdunchos‖. E
talvez se possam ver esses personagens — dada a ubiquidade do dinheiro no contexto
social em que vivem — como precursores daquilo que Roberto Schwarz, recorrendo a
expressão de Robert Kurz, chama de ―sujeitos monetários sem dinheiro‖.51
Na obra de João Antônio se faz sentir a tensão entre os universos da barbárie e da
civilização, como se disse. A malandragem que os contos do autor encena são expressão de
uma ―barbárie‖ que nasce do próprio funcionamento da ―civilização‖ brasileira. Como a
ficção do autor evidencia, trata-se de uma sociedade, o Brasil de meados do século XX, que
se industrializa — são os anos do desenvolvimentismo de JK — mas que se moderniza
atualizando elementos antigos, arcaicos e persistentes do funcionamento social brasileiro,
uma sociedade pautada pela ambiguidade entre ordem e desordem, público e privado. É
uma sociedade dividida, como ainda o é, entre classes sociais que se imaginam distantes e
apartadas uma da outra, mas que se ligam por uma lógica excludente, em que os
trabalhadores e o povo de modo geral — malandros, merdunchos, trouxas, otários —
―correm todos os riscos‖, como diz Roberto Damatta,52 em que momentos acirrados de
conflitos viram caso de polícia, com prejuízo para os mais pobres, de origem nebulosa,
desconhecida ou não reconhecida, como a literatura de João Antônio atesta e encena.
―Paulinho Perna Torta‖, como veremos, é testemunho — literário, artístico — enfático
desta lógica exploradora e humilhante.
A obra de João Antônio relaciona-se de maneira crítica com esse dado concreto de
realidade. Na ficção, o autor mostra o quanto há de artifício e dominação no esquema que
opõe as ―famílias‖ e a malandragem, a sociedade dita ―de bem‖ e os marginais. Como
mostra a sua literatura, o lado pretensamente ―civilizado‖, na verdade, submete os
excluídos, merdunchos, malandros, pingentes, considerando-os o lado ―bárbaro‖ dessa
mesma sociedade. O instrumento pelo qual esse esquema se dá é o da violência social,

51
SCHWARZ, R. ―Agregados antigos e modernos. (Entrevista)‖. In: Martinha versus Lucrécia. Ensaios e
entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
52
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 16.
28

através da polícia, e econômica, por meio da espoliação, da exploração da força de trabalho,


de ocupações informais e desemprego.
A malandragem, nesse quadro, é comportamento que desestabiliza as convicções
sobre quem é quem. A estratégia, como veremos, se relaciona com uma certa perspectiva
antropofágica, mas ao final se revela autofágica: os malandros tendem a se devorar uns aos
outros, a se autoconsumir e não a devorar o outro.
A contradição é expressa, nos contos mais longos do autor, em uma espécie de
formação na malandragem, cujo objetivo é a picardia e não o aprendizado formal ou o
desenvolvimento humanístico das potencialidades dos personagens. A picardia, esta
sabedoria amalandrada, é aquisição e desenvolvimento de capacidade e habilidade, mas
também é trapaça, golpe e disfarce. Os personagens, assim, recusam o aprendizado formal
para adquirir picardia, afirmando-se no universo da boemia, da sinuca, da malandragem.
Eles se lançam à aventura, ganham nome, fama e status, mas empreendem uma ascensão
para a queda, como veremos na análise de ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ e,
especialmente, de ―Paulinho Perna Torta‖.
Este trabalho procura, assim, definir a sinuca dos malandros: as contradições —
alcances e limites — dos principais personagens e da obra do autor.
Os malandros representados com mais nitidez em sua obra são Bacanaço e Paulinho
Perna Torta. Apesar de João Antônio ter, com razão, se mostrado incomodado com o rótulo
de retratista da malandragem e ter expressado o desejo de retomar o espírito de seus
primeiros textos (os ―Contos Gerais‖, que constituem a primeira parte de MPB), é inegável
que o sucesso do autor e a excelência de alguns de seus contos se devem, justamente, à
representação inventiva desse universo, que o autor logrou realizar. Como pretendemos
mostrar, entretanto, João Antônio escreveu sobre o tema de maneira complexa, segundo um
viés duplo e imprevisto, retratando a malandragem como um comportamento individual —
na figura do personagem malandro, o tipo que antes dele o samba consagrou — e também
como um mecanismo de funcionamento social, que expressa modos de ser, existir e
interagir característicos da sociabilidade brasileira.
O comportamento malandro percorre diferentes produções culturais e artísticas, mas
tem na literatura um campo privilegiado de experimentação. A malandragem na literatura
brasileira, como se sabe, é de tradição antiga, arraigada na oralidade popular. O
29

personagem mais conhecido desta linhagem é Pedro Malasartes, que protagoniza contos
populares e inspirou obras posteriores, produzidas já no contexto da cultura letrada. Câmara
Cascudo reuniu seis histórias protagonizadas por Malasartes em seu Contos tradicionais do
Brasil.53 Mário de Andrade, em Contos de Belazarte, criou um narrador que se relaciona
em negativo com o personagem da literatura popular, conservando traços da cultura oral e
da vida comunitária. O momento em que Mário de Andrade escreve já é, porém, de
assimilação social de novos protagonistas sociais, como descendentes de escravos,
imigrantes e operários, de urbanização e industrialização, com permanência do atraso e da
desigualdade brutal de classes convivendo com elementos de modernidade, como mostram
textos como ―Túmulo, túmulo, túmulo‖, ―Jaburu malandro‖ e ―Nízia Figueira, sua criada‖.
Além de Malasartes, paradigma de todos os malandros, como observa Roberto
Damatta,54 e seus sucedâneos e releituras, a literatura popular brasileira também registra um
ciclo de histórias de espertezas e artimanhas protagonizadas por animais, com destaque
para o jabuti. Câmara Cascudo define o jabuti como ―o herói invencível das estórias
indígenas no Extremo Norte, cheio de astúcia e habilidade, vencendo os animais fortes e
violentos‖. Ele é ―inofensivo e retraído‖, mas ―aparece nos mitos da língua geral como
vingativo, astucioso, ativo, cheio de humor e amigo de discussão‖. O autor liga o jabuti a
outros animais dotados da mesma capacidade de esperteza, como a raposa na mitologia do
Velho Mundo.55 Em sua Antologia do folclore brasileiro, Câmara Cascudo inclui dois
contos deste bicho, recolhidos por Couto de Magalhães: ―O jabuti e o veado‖ e ―O jabuti e
o gigante‖.56 Em Contos tradicionais do Brasil, consta ―O cágado e o teiú‖, seguido de uma

53
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. 8ª edição. São Paulo: Global, 2000.
54
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. op.cit. Ver especialmente o capítulo V, ―Pedro Malasartes e
o paradoxo da malandragem‖.
55
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 5ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. Verbete
―Jabuti‖. Não se tem notícia se João Antônio leu histórias populares ou lendas brasileiras, como as do ciclo do
Jabuti. Mas se sabe que as fábulas de Esopo foram leituras que marcaram a juventude do autor, como indica o
conto autobiográfico ―PMCMS‖. A pesquisa de Clara Ávila Ornellas na biblioteca pessoal de João Antônio,
analisando a marginália e as anotações do autor em alguns dos livros que possuía, aponta para outras leituras
relevantes: Alcântara Machado, Machado de Assis, Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto, Marques
Rebelo, Graciliano Ramos, Herman Hesse, Dostoiévski, Tchékov, Górki, Pratolini. ORNELLAS, Clara Ávila.
―João Antônio, leitor‖. In: Papéis de escritor, op.cit., pp. 33-60. A leitura de Esopo, precoce e relevante para a
sua formação, pode ter relação com a profusão de animais que povoam a ficção de João Antônio. Não é o
nosso tema e não o abordaremos, mas vale registrar que uma profunda zoomorfização dos personagens
percorre toda a sua obra. Os malandros são ―piranhas‖, ―cobras‖ do joguinho. Os policiais são ―ratos‖. Os
porteiros de boate são ―leões‖. E, num livro de maturidade, Abraçado ao meu rancor, o autor publicaria um
texto de juventude, ―Uma força‖, em que o narrador se depara com um ―cágado de domingo‖.
56
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Global, 2001.
30

nota em que Câmara Cascudo relembra outras versões da história, ―substituindo-se a


compareceria‖ pela dupla onça e macaco, e aponta para as origens africanas do conto, em
que os protagonistas são tartaruga e elefante, tartaruga e veado, rã e elefante.57 Além do
jabuti, sua variante, o cágado, também é protagonista de destaque nos contos populares.
Silvio Romero reuniu em Contos populares do Brasil,58 pelo menos cinco contos de cágado
e seis contos de jabuti.
Lembre-se que dentre os personagens zoomórficos de João Antônio — além dos
―cobras do joguinho‖ e ―piranhas‖, como os malandros são alcunhados — está o cágado do
conto ―Uma força‖, incluído em Abraçado ao meu rancor, ―réptil quelônio‖ com que o
autor depara num domingo, ―pelos subúrbios lá longe das minhas chateações‖, e se torna
uma espécie de duplo. Diz o narrador do conto: ―Tinha um não sei quê de sabedoria e
sofrimento, e isto me encantou. De pronto lhe quis bem, e era como se já o tivesse
conhecido lá antes, antes e depois das lendas dos jabutis. Ah, cágado, passa a viver como
pessoa da família e a ser vivente meu‖.59
Câmara Cascudo discute as origens do Ciclo do Jabuti e também examina o Ciclo
do Gado e o ―prestígio do valente‖ em seu Literatura oral no Brasil. As proezas ligadas à
apartação do gado, ao aboio, à ferra e à vaquejada deram ensejo a cantigas, gestas e
romances populares, alguns recolhidos por estudiosos, outros registrados em folhetos de
feira: ―Onde a pastorícia fixa a população a estória do gado é a primeira estória geral.
Todos os moradores têm um episódio evocador de valentia ante a ferocidade do bruto. (...)
Os poetas anônimos, autores desses poemas, encarnam a defesa do animal perseguido e
vitimado. Não há ABC e ‗verso‘ de elogio ao vaqueiro vencedor ou ao cavalo veloz, orgulho
da fazenda, derrubador no limpo e no fechado. O estro dos poetas populares haloa o
derrotado, trazendo-o sempre vivo para um ambiente de simpatia, dando despedidas
irônicas ou líricas aos vaqueiros falhados ou aos recantos em que nascera, pastara e
vivera.‖60 O elogio da coragem e das proezas é característico da ―Gesta dos valentes‖: ―O
prestígio do valente determina o ciclo para o encantamento popular. Soldado regular ou
guerrilheiro, tem seus admiradores. É a coragem pessoal a sugestão suprema, motivo do

57
CASCUDO, C. Contos tradicionais do Brasil. op.cit., pp. 194-195.
58
ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brasil. São Paulo: Landy, 2000.
59
Amr, p.160.
60
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Edusp,
1984, pp. 357 e 359.
31

comentário poético. São, nos Estados Unidos, os cangaceiros, killers, Wild Bill Hickok,
Billy the Kid, Jesse James, Sam Bass, ou os free lances, francos-atiradores, Roy Bean,
Buffalo Bill, Big-Foot Wallace, com estórias, cantos, lendas. Esse halo admirativo não
significa solidarismo com as atitudes do herói mas compreensão humana pela energia,
irradiante coragem, resistência, destemor. Esse é o clima inglês para Robin Hood e francês
para Louis Mandrin (...) A ousadia pessoal seduz e os corsos louvam seus valentes como os
sertanejos historiam as andanças dos cangaceiros.‖61
As lendas em torno das gestas populares e a literatura do cangaço têm forte
penetração na cultura brasileira ainda hoje e deitam raízes em um período histórico anterior
ao seu momento de maior definição, o final do século XIX e o começo do século XX, quando
se destacam as figuras de Cabeleira, Lampião, Corisco. Na literatura considerada erudita, o
tema do cangaço e da jagunçagem, como mostrou Antonio Candido, é expressão de um
funcionamento social pelo qual ―a ordem privada desempenha funções que em princípio
caberiam ao poder público‖. Historicamente, remonta à incipiente urbanização da região
das Minas. A vida comunitária e a violência nas zonas rurais, permeadas de elementos de
caráter urbano, ainda que influenciadas em menor grau pela ―civilização urbana‖, deu
ensejo no Brasil a uma literatura do cangaço e da jagunçagem que canta, em prosa e verso,
a ―tropelia‖ e a ―violência grupal e individual, normais de certo modo nas sociedades
rústicas do passado‖.62 Desde os poetas mineiros até Guimarães Rosa e depois, a literatura
da jagunçagem representou e problematizou a ousadia e a notoriedade, a violência e a
dimensão constestatória, a ação e a resistência, persistindo como traço cultural forte não
apenas na literatura mas na cultura brasileiras.
A literatura de João Antônio tem como antecedente essa longa tradição da literatura
popular e da literatura erudita, brasileira e universal, na qual a proeza, a valentia, a façanha
e a violência expressam contextos comunitários e sociais, limites e enfrentamentos
pessoais, desejos humanos de reconhecimento, fama, realização e conquista.

61
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. op.cit., pp. 362-363.
62
CANDIDO, Antonio. ―Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa‖. In: Vários escritos. 4ª edição. São
Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004, p. 99.
32

No entanto, os personagens de João Antônio aqui contemplados não são jagunços;


são malandros ou bandidos.63 No caso dos personagens iniciais do autor, os protagonistas
dos ―Contos Gerais‖ e de ―Visita‖, por exemplo, nem se pode dizer que sejam malandros,
ainda que a lógica da malandragem já atue em seu comportamento e informe seus
devaneios e angústias. Os personagens dos contos mais desenvolvidos, sobretudo Perus,
Malagueta, Bacanaço e Paulinho Perna Torta, sim, são malandros e até criminosos (os dois
últimos, sobretudo), mas alguns deles, em especial o último, Perna Torta, como veremos, é
mais que isso: é jovem de origem desconhecida, moleque de rua, malandro e bandido, além
de ―rei‖. Avultam como exceção no quadro de personagens do autor os dois leões, Jaime, o
Pirraça, e Joãozinho da Babilônia, personagens de Ldc (livro publicado em 1975). Ambos
são guarda-costas, ―forma branda de jaguncismo‖, como define Candido. Nenhum dos dois
contos, ―Ldc‖ e ―Joãozinho da Babilônia‖, porém, será analisado neste trabalho, que se
concentra na ficção inicial de João Antônio e delimita seu corpus a partir de uma questão
que, se não está ausente nestas duas narrativas, não é decisiva para a constituição de
personagens e entrecho. Ao contrário, justamente porque o jagunço pressupõe relações de
mando e dependência, ligadas à posse da terra, às disputas políticas e a um funcionamento
social arcaico, ainda que persistente, ele não é, nos limites desta tese, um tipo que nos
interesse como o malandro e o criminoso.
Se na tradição popular a figura do malandro e do valente são representadas por
personagens que são bichos antropomorfizados ou anti-heróis que expressam o ponto de
vista dos oprimidos, na literatura moderna a malandragem também ensejou obras
relevantes, com personagens que se comportam como malandros, oscilando entre ordem e
desordem, entre norma e transgressão, moralidade e boemia, sociedade instituída e práticas
consideradas ilícitas e criminosas. As Memórias de um sargento de milícias, que Antonio
Candido analisou em ―Dialética da malandragem‖,64 é o texto de referência para a
localização do funcionamento social que informa toda uma linhagem de obras literárias, à
63
Segundo Candido, ―o nome de jagunço pode ser dado tanto ao valentão assalariado e ao camarada em
armas, quanto ao próprio mandante que os utiliza para fins de transgressão consciente, ou para impor a ordem
privada que faz as vezes de ordem pública. De qualquer forma, não se consideram jagunços os ladrões de
gado, os contrabandistas, os bandidos independentes. Embora haja flutuação do termo, a idéia de jaguncismo
está ligada à ideia de prestação de serviço, de mandante e mandatário, sendo típica nas situações de luta
política, disputa de famílias ou grupos‖. idem, ibidem, p. 105.
64
CANDIDO, Antonio. ―Dialética da malandragem‖. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 2ª
edição, 1998. Ver também SCHWARZ, Roberto. ―Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem.‖
In: Que horas são? op.cit.
33

qual pertencem também Macunaíma,65 Brás, Bexiga e Barra Funda,66 Desabrigo, de


Antonio Fraga, alguns romances de Jorge Amado, o Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna, todo o samba, mas em especial o samba malandro,67 a obra de Chico Buarque,
com destaque para Ópera do malandro, e os contos de João Antônio, dentre outras obras.
Apesar de ser um traço forte da obra de João Antônio, a malandragem, porém, não é
o tema desta tese, ainda que ela seja expressão de algo que nosso trabalho define como seu
objeto de análise: as relações entre personagens e figuras paternas. As indicações
comparativas sobre outros autores — os modernistas, mas também Lima Barreto,
Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Rubem Fonseca — cujas obras se relacionam com a
de João Antônio também não constituem o cerne de nosso trabalho, apesar de sugerirem
caminhos historiográficos que pedem desenvolvimento.
Este trabalho se propõe a analisar a literatura de João Antônio a partir de uma
questão que atravessa sua obra, do princípio ao fim: a relação dos protagonistas com as
figuras paternas. O corpus do presente trabalho se delimita, assim, de acordo com essa
premissa: analisar os textos literários de João Antônio em que os protagonistas se
relacionem com seus pais e sucedâneos ou com outros personagens que assumam lugares
de autoridade e posições de hierarquia vertical relevantes para a compreensão dos textos.

65
A obra de Mário de Andrade é toda ela atravessada pelo folclore e pela cultura popular, por sua influência e
pela pesquisa estética que o autor desenvolveu em torno desse tema. Macunaíma é apenas a obra de maior
fôlego nessa direção, mas a música, a narrativa oral, a cultura popular e a malandragem são temas na pesquisa
etnográfica e na crônica (O turista aprendiz), na poesia (Clã do jabuti, Remate de males, Lira paulistana), no
ensaio (O empalhador de passarinho), na ficção (Contos de Belazarte, como ―Jaburu malandro‖), dentre
outros). Gilda de Mello e Souza, partindo da ideia de que a novidade estética radical de Macunaíma reside no
seu descompromisso com a mímese e no procedimento de bricolagem (montagem lúdica e seletiva de
fragmentos, o que pressupõem boa dose de invenção), chega na fórmula de O tupi e o alaúde, segundo a qual
a obra de Mário de Andrade combina análise do fenômeno musical e processo criador popular, ―duas
obsessões fundamentais‖ que informam a ―meditação estética‖ do autor e sugerem formas universais de
compor (a suíte e a variação). SOUZA, G. M. e. O tupi e o alaúde. Uma interpretação de Macunaíma. 2ª
edição. São Paulo: Livaria Duas Cidades/Editora 34, 2003.
66
Já tivemos oportunidade de analisar o livro de Alcântara Machado no que ele encena de modernidade de
―fachada‖, num momento de transformação e renovação aceleradas, não apenas na literatura, mas também na
sociedade brasileira. Em trabalho anterior, tentamos mostrar que a prosa de Alcântara é renovadora da
linguagem e seu retrato dos bairros operários de São Paulo é objetivo e distanciado, mas sua ficção deixa
entrever, por detrás da fachada de modernidade e integração étnica, a permanência e a eclosão de práticas de
favorecimento e corrupção típicas da mistura de público e privado do cordialismo brasileiro, tal como
estudado por Sergio Buarque de Holanda. ZENI, B. Fachada, sinuca e afasia. Alcântara Machado, João
Antônio e Fernando Bonassi. São Paulo, ficção no século XX. op.cit. Disponível em:
http://www.spap.fflch.usp.br/node/27.
67
Sigo aqui a tipologia de Claudia Matos: o samba apologético-nacionalista ou samba-exaltação, cujo
representante maior é Ary Barroso, o samba-lírico amoroso, de Cartola e Nelson Cavaquinho, entre outros, e
o samba-malandro de Geraldo Pereira e Wilson Batista. MATOS, Claudia Neiva de. Acertei no milhar: samba
e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
34

A partir dessa delimitação — interação entre protagonistas e figuras paternas (pais


ou pais substitutos) —, portanto, escolhemos os textos de João Antônio aqui analisados. O
trabalho contempla sobretudo textos de ficção, mas examina também os três principais
textos autobiográficos do autor. Assim, nossas análises compreendem: no capítulo 1, os
contos autobiográficos Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!), ―Paulo Melado
do Chapéu Mangueira Serralha‖ e ―Abraçado ao meu rancor‖; no capítulo 2, os ―Contos
Gerais‖, especialmente ―Busca‖, incluindo alguns comentários sobre os demais textos de
MPB, primeiro livro de João Antônio; no capítulo 3, o conto ―Malagueta, Perus e
Bacanaço‖, que dá título ao livro de mesmo nome; no capítulo 4, ―Paulinho Perna Torta‖,
conto escrito em meados dos anos 1960, mas incluído em volume do autor apenas dez anos
depois, em Ldc (1975).
Nossas leituras dos contos autobiográficos, que compõem o capítulo 1, partem do
pressuposto de que, apesar de biográficos, são textos essencialmente literários, que
compõem a obra literária do autor assim como os textos ficcionais. A construção e a
estrutura dos relatos os tornam realizações artísticas singulares, equilibradas entre a
autobiografia e a ficção. Esta ambiguidade, que é característica de todo texto
memorialístico, dado que a experiência vivida é reelaborada na rememoração e sobretudo
na sua transformação em linguagem verbal, em narrativa, é acentuada no caso dos textos de
João Antônio por conta mesmo de certa indefinição no pacto que estes relatos estabelecem
com o leitor.
Recorremos aqui à ideias de Phillipe Lejeune a respeito do pacto autobiográfico,
definido pelo autor francês de acordo com os procedimentos textuais e paratextuais por
meio dos quais se apresenta o narrador autobiográfico e se estabelecem os gêneros dos
textos ou livros. Como veremos no capítulo 1, apesar do conteúdo biográfico dos relatos,
que trazem correspondências com episódios da vida do autor, neles o pacto autobiográfico
não é inequívoco. Em nenhum dos três textos, narrados todos em primeira pessoa, o
personagem-narrador se identifica claramente ou informa o seu nome, ainda que muitos
outros personagens, reais ou ficcionais, reais e ficcionais, sejam claramente nomeados,
assim como outros também não sejam nomeados. Além da ambiguidade que cerca a
identidade dos protagonistas, também o gênero dos textos é indeterminado, como
35

procuramos mostrar por meio da análise de paratextos, como dedicatórias, prefácios e


fichas catalográficas, textos de orelha e de quartas capas (ou contracapas).
Assim, esses três contos de João Antônio, segundo nossa interpretação, não se
adequam com justeza à classificação de textos autobiográficos e não são tomados, aqui,
como fonte sobre a vida do autor. Os contos autobiográficos são analisados em função,
justamente, da relação que os protagonistas-narradores estabelecem com os pais e seus
sucedâneos, para compreender como a construção literária desses textos se relaciona à
construção da identidade dos narradores e também à identidade de João Antônio como
escritor — e não apenas do homem João Antônio, ser empírico, nascido na periferia de São
Paulo em 1937 e morto em Copacabana, Rio de Janeiro, em 1996. Em outras palavras,
entendemos que os textos autobiográficos são parte da obra literária do autor, cumprem
função decisiva em sua constituição enquanto indivíduo autônomo e escritor e, por fim,
também expressam os limites literários de João Antônio, ligados, como não poderia deixar
de ser, a questões de sua biografia.
A atenção detida e a análise dos textos autobiográficos, assim, não conferem viés
biográfico à nossa leitura. Bem ao contrário, procuramos mostrar que mesmo os textos
autobiográficos compreendem um trabalho de elaboração e construção literárias que
incluem recursos típicos da ficção. As ambiguidades inerentes a essa combinação
contribuem para enriquecer a literatura do autor, pois fazem parte de sua estratégia de se
afirmar como escritor, definir suas opções literárias e então, no momento da maturidade,
expressar os impasses dessas escolhas, de vida e de profissão, entre o jornalismo e a
literatura, entre a fidelidade às origens e a ascensão social.
É por isso que insistimos em ler o contos analisados no capítulo 1 com desconfiança
em relação ao seu caráter essencialmente autobiográfico. Acreditamos que essa estratégia
interpretativa permite, assim, entrever o sentido profundamente artístico desses contos, em
que a encenação da autobiografia revela um escritor consciente de seus alcances e das
contradições advindas de suas conquistas. Isso não significa que consideramos os textos
autobiográficos de maneira ficcional ou que desconfiamos do que se narra ali, mas que, de
novo, bem ao contrário, entendemos que a autobiografia pressupõe uma arte narrativa.
Como diz Lejeune:
36

O fato de a identidade individual, na escrita como na vida, passar pela narrativa não
significa de modo algum que ela seja uma ficção. Ao me colocar por escrito, apenas prolongo aquele
trabalho de criação de ―identidade narrativa‖, com diz Paul Ricouer, em que consiste qualquer vida.
É claro que, ao tentar me ver melhor, continuo me criando, passo a limpo os rascunhos de minha
identidade, e esse movimento vai provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não brinco de
me inventar. Ao seguir as vias da narrativa, ao contrário, sou fiel a minha verdade: todos os homens
que andam na rua são homens-narrativas, é por isso que conseguem parar em pé. Se a identidade é
um imaginário, a autobiografia que corresponde a esse imaginário está do lado da verdade. Nenhuma
relação com o jogo deliberado da ficção.68

A partir do capítulo 2, passamos às análises dos textos ficcionais.


Nossa concepção de análise literária se pauta pela ideia de que o texto ficcional é
constituído de três elementos essenciais: narrador, personagens e ação. Esse conceito
inspira-se na Poética de Aristóteles, ainda hoje central para os estudos literários, e onde,
como se sabe, valorizam-se as noções de mimese (imitação) e de mythos (ação). A poética
aristotélica, porém, também como é notório, se refere a obras de caráter dramático —
comédias e tragédias da Antiguidade —, em que não se encontra a figura do narrador,
instância fundante e decisiva para a narrativa de ficção e, consequentemente, para a análise
literária das obras aqui apreciadas.
Se o personagem constitui a ficção, como assinala Anatol Rosenfeld,69 o narrador é
o elemento da ficção que, se não a instaura, ao menos, a conduz, dispondo os demais
elementos de acordo com sua posição, o foco em terceira ou primeira pessoa, com seu
ponto de vista em relação aos personagens, com o tom que imprime ao relato e com a sua
relação com o leitor. O ponto de vista, o foco narrativo e a maneira com que narradores e
personagens se relacionam nos parecem, portanto, boas entradas para a análise literária da
ficção do autor.
João Antônio escreveu contos em terceira e em primeira pessoa, atingindo
resultados notáveis em ambas as modalidades de foco narrativo. Dos contos analisados
neste trabalho, apenas ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ é narrado em terceira pessoa. Os

68
LEJEUNE, Philippe. ―Autobiografia e ficção‖. In: O pacto autobiográfico. De Rousseau à internet. Trad. de
Jovira Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Neves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
69
ROSENFELD, Anatol. ―Literatura e personagem‖. In: Antonio Candido et al. A personagem de ficção. São
Paulo: Perspectiva, 1976. 5ª edição, p. 27.
37

demais, ―Contos Gerais‖, ―Paulinho Perna Torta‖ e os contos autobiográficos, são todos
narrados em primeira pessoa.
Antonio Candido, ao comentar ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, destaca justamente
a capacidade do autor de dar voz aos marginais, diminuindo as distâncias entre narrador
culto e mundo narrado, fundindo narrador e protagonistas. Trata-se de um artifício literário
que tem relação com a posição do narrador e com o ponto de vista deste em relação aos
demais personagens. Como diz Candido, João Antônio ―inventou uma espécie de
uniformização da escrita, de tal maneira que tanto o narrador quanto os personagens, ou
seja, tanto os momentos de estilo indireto quanto os de estilo direto, parecem brotar da
mesma fonte‖.70
Como veremos no capítulo 3, o narrador deste conto, além de se aproximar e talvez
participar da ação como personagem, também sabe tomar distância quando necessário, para
apontar as brutalidades e os limites da aventura malandra. Apesar da cisão do protagonista
em três, em ―MPB‖ é possível verificar que as relações de parceria e hierarquia que se
estabelecem entre os jogadores já apontam para o dilema, a sinuca, em que os malandros
vivem: eles precisam de outros jogadores para suas trampolinagens, mas também dependem
de uma relação vertical de mando, de chefia, que os permite se lançar à aventura mas
também os torna reféns da lógica da malandragem. Em nossa leitura, por sinal, a
malandragem é pautada, justamente, pela contradição entre as relações a um só tempo
horizontais e verticais que se estabelecem entre os personagens, no que ela, portanto,
expressa contradições da relação entre pais e filhos.
O tema da malandragem ganha, neste conto, um retrato excepcional, pois João
Antônio o abordou duplamente, como dissemos: enquanto tipologia de personagem,
sobretudo na figura de Bacanaço, o típico malandro à moda antiga, e enquanto conceito,
comportamento e estratégia de sobrevivência. Fez isso de maneira habilidosa, expondo a
reversibilidade entre malandros e trouxas, algo, aliás, bem apontado anteriormente por

70
CANDIDO, Antonio. ―Na noite enxovalhada‖. In: MPB, pp. 10-11. O texto de Candido, escrito em 1995
como prefácio a uma edição de MPB que não saiu, foi originalmente publicado na citada revista Remate de
males, no 19, op.cit. O texto foi republicado como prefácio da edição mais recente de Malagueta, Perus e
Bacanaço (Cosac e Naify, 2004).
38

Antonio Hohlfedt71 e por Jesus Antônio Durigan, que fala em ―ciranda da malandragem‖,72
para definir o funcionamento vicioso de perde e ganha com que os personagens comportam.
Aqui, tentamos mostrar como a fantasia de malandro também é uma estratégia
ambígua: ela revela e esconde a identidade do personagem. A fantasia, por um lado, é
disfarce: é fantasia de malandro e, a um só tempo, de burguês e de nobre, o que permite
viver e sobreviver sem se inserir socialmente, mas dependendo dessa mesma ordem social,
que o malandro despreza; por outro, é devaneio, fantasia de grandeza e façanha que faz
com que o malandro sonhe com golpes de sorte, com a fortuna, mas se veja o tempo inteiro
confrontado com as marés de sorte e azar, com a vulnerabilidade que lhe é própria, com a
exploração promíscua a que se submete e é submetido pela polícia, com a violência com
que o poder instituído o trata quando ele se torna um sintoma da barbárie que a civilização
traz entranhada em si mesma.
O ponto de vista interno, que é admiravelmente conduzido em aproximações e
distanciamento por meio do discurso indireto livre nos contos em terceira pessoa, como em
―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, ganha nas narrativas em primeira pessoa, por sua vez,
soluções também notáveis. Narrador e personagem são, por princípio e por definição,
coincidentes nos contos em primeira pessoa. Nesses textos é o protagonista quem narra, o
que acarreta um ponto de vista interno que é constitutivo da história narrada e que limita a
ação, justamente, à perspectiva do personagem-narrador. Na ficção de João Antônio, o foco
em primeiro pessoa é responsável por criar alguns de seus personagens mais complexos e
contraditórios, porque eles são, justamente, personagens e narradores — e alguns deles se
confundem com o próprio autor.
O duplo papel, de personagem e narrador, dos seus protagonistas ganha realização
maior em ―Paulinho Perna Torta‖, conto que concentra os principais temas e questões da
literatura de João Antônio. O texto indica que, da malandragem dos primeiros relatos (os
―Contos Gerais‖, primeira parte de MPB, e os contos de ―Sinuca‖, última seção do mesmo
livro) passou-se à criminalidade desabrida do protagonista Perna Torta.
―Paulinho Perna Torta‖ narra a história de um criminoso assim alcunhado por um
malandro mais velho, Laércio Arrudão, por conta de um machucado na perna, adquirido

71
HOHLFELDT, A. ―Para lá de Bagdá‖, prefácio a Os melhores contos. João Antônio. 2ª edição. São Paulo:
Global, 1997.
72
DURIGAN, J. ―João Antônio e a ciranda da malandragem‖, op.cit.
39

depois de uma briga entre uma prostituta e um travesti que se desentenderam por conta de
Paulinho. O personagem carrega a fama de ter matado o próprio pai, crime que ele enuncia,
para negar, duas vezes ao longo da narrativa. Como lhe falta o pai, o jovem malandro
encontra em Laércio Arrudão um pai substituto. É o malandro mais velho, seu ―padrinho‖,
que irá orientá-lo nas atividades ilícitas. O conto narra a trajetória desse malandro
criminoso desde o começo de sua vida de virações, como engraxate nas estações da Luz e
Julio Prestes, ao mesmo tempo em que descreve a constituição da Boca do Lixo paulistana,
cujo marco é 1953, ano que dá eixo à narrativa. Ali, na Boca, Perna Torta vira ―rei‖,
impondo-se como empresário do jogo, cafetão e traficante, depois de inúmeros percalços,
dentre os quais uma passagem pela Casa de Detenção. A falta do pai, o possível parricídio e
o encontro com o malandro mais velho, o padrinho, apontam para consequências negativas
— e, talvez por isso mesmo, de alto potencial crítico — que a trajetória do personagem-
narrador evidencia. Sua crise existencial profunda, ao final do conto, relaciona-se com sua
formação individual, com a relação com outros personagens, com o contexto social em que
ele vive e com sua constituição como personagem-narrador.
Nossa abordagem da obra de João Antônio tem por orientação a análise dos
elementos literários do texto ficcional, mas se abre também para os aspectos sociais,
psicológicos e paraliterários que compõem as obras. Partindo da escolha de textos em que
os protagonistas se deparam e se confrontam com figuras paternas, empreendemos um
caminho de análise que localiza na presença e na ausência paternas situações decisivas para
a ficção do autor. Essa aproximação crítica permite ver como os contos de João Antônio
têm um forte pathos comum e, de maneira recorrente, colocam em cena um romance
familiar que revisita e atualiza algumas as questões decisivas para os personagens
principais, como o desafio de crescer, de deixar o terreno da infância e projetar-se no
mundo adulto, de deixar a casa e ganhar a rua, passar da família à sociedade, ganhando
então autonomia, movimento que tem formulações cruciais para a literatura de João
Antônio nos conceitos de aprendizado, malandragem e narração. Como veremos, a obra do
autor se relaciona não apenas com a lenda de Édipo tal como relida por Freud e por teóricos
da literatura como Marthe Robert, mas também de maneira arquetípica, com a lenda de
Édipo, pois sua obra reedita a história do herói que está sujeito às garras do destino, que a
certa altura, toma consciência disso, mas não pode escapar à condenação a que foi
40

destinado. A relação ambivalente dos protagonistas com o pai é a questão de base nos
textos de João Antônio e nos conduz, assim, aos demais temas, sobretudo à malandragem, à
necessidade de narrativa e à dificuldade de narrar. E, por fim, à posição artística e pessoal
do escritor, que ao final da carreira ganhou modulação diversa daquela dos primeiros livros
— uma certa ―estética do rancor‖, como a definiu João Luiz Lafetá73 —, ainda que coerente
com a trajetória do autor e dotada de alto grau de reflexão e consciência de seu lugar social.
Procuramos, aqui, seguir as indicações críticas formuladas por Antonio Candido,
tentando levar adiante a caracterização e a apreciação que o crítico faz das obras de João
Antônio. Nosso método se ampara na atenção detida aos elementos essenciais da ficção,
com destaque para narrador, personagens e ação narrativa. As análises se baseiam na
paráfrase e nos comentários a trechos significativos dos contos, destacando a interação
entre os elementos, sobretudo narradores e personagens, atentando também para o manejo e
para a invenção da linguagem, que em João Antônio é fundamental na combinação de
oralidade e elaboração culta — marca de origem e experiência do autor e de seus
personagens, reinventada por este escritor de talento e de ouvido afinado para a música
cotidiana das palavras, especialmente para a ―charla‖ dos ―merdunchos‖.
Acreditamos que a escolha dos contos aqui analisados permite localizar questões
críticas relevantes para a obra de João Antônio: a constituição de narradores e personagens,
a trajetória dos personagens ficcionais, a forma do conto, o conceito de malandragem e as
relações entre a literatura e a biografia do autor. Ainda que grandes críticos literários
brasileiros, como Antonio Candido, Alfredo Bosi, João Alexandre Barbosa, José Paulo
Paes, João Luiz Lafetá e Antonio Arnoni Prado, entre outros, tenham se debruçado sobre
sua literatura, a obra do autor ainda pede olhar de conjunto e análises mais detidas.
Nosso trabalho partiu da leitura integral da obra de João Antônio publicada em
livro. Para tanto, escolhemos certa abordagem da obra do autor, não de acordo com os
gêneros literários praticados por ele nem segundo a cronologia de publicação ou da vida do
escritor, mas de acordo com certa visada crítica, que procuramos aqui desenvolver,
atentando sobretudo para a trajetória de seus protagonistas.
Nos contos do autor, sobressai certo tipo recorrente de personagem: o jovem
brasileiro pobre do sexo masculino. E o grande tema da obra de João Antônio será

73
LAFETÁ, João Luiz. ―João Antônio e sua estética do rancor‖. In: ______. A dimensão da noite. op.cit.
41

protagonizado por esse personagem, que assume diferentes feições ao longo de sua carreira
literária. O drama de família que aparece nos contos do autor em geral é protagonizado por
um jovem rapaz que se descobre, justamente, nesse momento decisivo em que é preciso
deixar para trás certas amarras e fixações, para lutar contra o destino a que se foi destinado
(com o perdão do jogo de palavras) por seu contexto histórico, social e, claro, familiar. O
conflito se expressa por meio de sofrimento e angústia, daí o forte conteúdo psicológico
manifesto das narrativas, mas se desenrola num contexto social bem específico, ainda que
nunca claramente enunciado nos contos. O drama que vivem esses rapazes de origem social
modesta é um só: o desejo e a dificuldade de se estabelecer na sociedade brasileira de
meados do século XX — e a recusa a se inserir socialmente nos termos ―positivos‖ desta
sociedade urbana, burguesa, católica e de moralidade convencional.
As narrativas desse personagem recorrente mostram que sua inserção problemática
os impele à ação. É conhecida a inclinação dos personagens para o deslocamento, para as
longas andanças pela cidade e para a movimentação incessante, comportamento que
Alfredo Bosi chamou de ―ânsia deambulatória‖74. Esse impulso horizontal de ampliação do
espaço é complementado por um vetor vertical, que faz com que os protagonistas estejam
sempre ocupados com a promessa de ascensão social, mas também assombrados pela
ameaça iminente da queda.
As contradições dos jovens pobres e sonhadores, protagonistas dos contos do autor,
divididos entre o desejo de ascensão, de aventura e o temor da derrota e da queda ganha
metáfora exemplar no jogo de sinuca:

Sonhei que voltara às grandes paradas. Eu e Carlinhos.


Desprezando para sempre nossos empregos, sozinhos no mundo e conluiados, malandros
perigosos, agora. Vagabundeávamos, finos na habilidade torpe de qualquer exploração. E
fisgávamos mulheres, donos de bar, zeladores de prédios, engraxates, porteiros de hotel, meninos
que vendem amendoim...
Era quando a branca caía.
No jogo, no quente jogo aberto das parceiradas duras, partidas caríssimas, eu tropicava,
tropicava, repetidamente. Aquilo não se explicava! A tacada final era dolorosa e era invariável —

era a minha — e eu me perdia. Aquilo, aquilo nos arruinava. Quem me visse e não soubesse diria

74
BOSI, A. ―Um boêmio entre duas cidades‖. Prefácio a Amr.
42

que eu estava traindo. O ótimo Carlinhos não se desnorteava, fazia fé, dava-me o embalo, imprimia
moral.
— Firma e joga o jogo!
Mas nada. Ajeitasse giz no taco, estudasse os efeitos das tabelas, caçasse combinações,
lavasse o rosto para a tacada — não me salvava. A bola branca caía.

Como se depreende dos ―Contos gerais‖ e alguns outros contos iniciais do autor,
como ―Visita‖, acima citado, o empuxo que atua sobre os personagens tem sentido
contrafamiliar, isto é, os personagens querem sair de casa e ganhar a rua. Sonham em se
emancipar do domínio da família e ingressar na ordem social, ainda que em negativo — na
boemia, no jogo, na malandragem e, no limite, no crime —, para além dos limites do
convívio da família nuclear e da comunidade, para além das origens, sempre sonhando com
as ―grandes paradas‖, com a aventura. O movimento é espacial e social, mas também
psicológico. Como bem observa Vima Lia Martin acerca dos ―Contos Gerais‖:

As personagens que protagonizam os três contos são ―otários‖ que rejeitam os valores
burgueses cultivados por seu meio social e sofrem de uma insatisfação profunda advinda de uma
certa consciência que possuem acerca das contradições sociais e das limitações inerentes ao lugar
social que ocupam. São personagens masculinas que, ao sofrerem a experiência do deslocamento
psíquico ou social, acabam por ser porta-vozes da angústia daqueles que não incorporam a ideologia
burguesa, pautada em valores como o trabalho e a família.75

Do ponto de vista da crítica e da teoria literária, nossa leitura busca, portanto, unir
conteúdos sociais, familiares e psicológicos, por entender que esses componentes estão não
apenas presentes nas narrativas mas muitas vezes relacionados, quando não confundidos e
consubstanciados. Trata-se, no caso da ficção de João Antônio, portanto, de mostrar como
conteúdo psicológico e conteúdo social estão não apenas unidos, mas imbricados, e como o
autor expressa por meio da forma literária essa condição existencial de seus protagonistas.
Trata-se de mostrar, ainda, como esses elementos ganham retrato dramático, trágico, na
ficção do autor, que encena e reencena a mesma história — a aventura e seus limites —,
num contexto social e numa trajetória individual precisa: o jovem rapaz de origem pobre,
no Brasil de meados do século XX.

75
MARTIN, Vima Lia. Literatura e marginalidade: um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. São
Paulo: Alameda Editorial, 2008, p. 73.
43

A caracterização dos textos de João Antônio permite inseri-lo, como acreditamos,


em certa tradição que tem raízes no século XIX, tributária da ficção realista e naturalista, do
romance burguês e do conto moderno. Em linhas gerais, é um autor que se liga à linhagem
daquilo que Frye chamou de ―ficção trágica‖ e mais especificamente de ―tragédia imitativa
baixa‖,76 com origem no novecentos e continuidade no século seguinte. O momento
histórico brasileiro em que esse drama se desenvolve, no caso de João Antônio, situa-se
entre a revolução de 1930 e o golpe militar de 1964; esse contexto, como indica a obra do
autor, é marcado, sobretudo para os mais pobres, mais por uma promessa de mudança e
modernização que por uma transformação social consolidada, e a trajetória de seus
personagens, sempre flertando com a marginalidade, expressa contradições da história e da
sociedade que vêm do passado brasileiro e que continuam atuando em nosso tempo.
A vitalidade da obra do autor continua a surpreender, apontando para uma solução
formal singular que faz de João Antônio um autor de grande interesse e influência para a
literatura brasileira contemporânea. O ponto de vista interno com que o autor escreveu seus
textos, além de estabelecer uma perspectiva privilegiada, já que permite narrar desde o
coração das paixões e dos problemas de seus personagens, também constitui limites, como
a de se manter fiel a seu universo e suas origens, ao mesmo tempo que deles apartado e
destacado, já que se trata de um escritor contemporâneo e consciente, que retrata mas
também reflete sobre o que vê e sobre o que cria.
Em seus melhores momentos, os textos de João Antônio não são mero reflexo de
uma dada realidade.77 São recriações literárias complexas, em que personagens e ambiente
social interagem e contribuem para se definir um ao outro. Isolados, alguns personagens
constituem figuras ricas, cujas trajetórias revelam-se histórias de grande complexidade
literária e interesse psicológico e social. Aqui, trata-se, aliás, de estabelecer uma visada
crítica que conjugue justamente esses aspectos, literário, paraliterário, psicológico e sócio-
histórico, arcabouço teórico que adotamos não por convicção apriorística, mas por sugestão
ou exigência da obra em quadro.

76
FRYE, N. Anatomia da crítica. op.cit., p. 44.
77
Para tanto, pensamos no conceito de reflexo e reflexão propostos por Alfredo Bosi, mas também na leitura
de Antonio Candido a respeito do autor. BOSI, A. ―Reflexo e reflexão em história literária‖, in: Literatura e
resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CANDIDO, A. ―Na noite enxovalhada‖, in: MPB.
44

Para compreender de que maneira sua literatura se sustenta sobre esses pilares,
escolhemos estudar a obra de João Antônio de acordo com um eixo de análise particular,
que relaciona vida e literatura, atentando para os desdobramentos e os reflexos da
experiência pessoal na sua obra publicada, mas partindo sempre dos textos do escritor e
com ênfase e interesse principal em sua literatura. Em outras palavras, o que nos interessa
são os textos do escritor, mas também a vida de João Antônio na medida em que ela
esclarece (ainda que não explique ou solucione) aspectos de sua literatura. Na verdade,
neste caso, talvez a obra ilumine a vida e não o contrário. Em outros termos, em João
Antônio vida e obra se atravessam, sem correspondências mecânicas, mas em relação
complexa e contraditória, ainda que coerente: o escritor escreveu sobre o que viveu,
reinventando a própria biografia, e viveu os desejos que animavam sua escrita e as
consequências de sua própria literatura. Nesta ―contradança promíscua‖, como diz Antonio
Candido,78 neste jogo entre vida e literatura, uma não explica a outra, ainda que estejam
ambas intimamente relacionadas e se alimentem mutuamente.
O cerne da investigação crítica, em nossa concepção, está em identificar as questões
e soluções literárias elaboradas por João Antônio. Elas foram a um só tempo inovadoras,
mas se construíram sobre alicerces sólidos da tradição brasileira e da literatura ocidental,
sobre os quais talvez o autor mesmo não tivesse consciência da amplidão e profundidade. A
leitura crítica que desenvolvemos aqui conjuga conteúdo psicológico, social, biográfico e
elementos literários e paraliterários. Mas ela não é uma leitura psicológica, sociológica,
temática nem biográfica. Trata-se em essência de uma interpretação literária, pois parte da
estrutura dos relatos e da constituição de seus personagens e narradores. Apontar questões
críticas relevantes e localizar a produção de ficção de João na tradição brasileira, assim,
pressupõe mostrar o caráter ao mesmo tempo inovador e tradicional de sua literatura e os
próprios limites que sua obra encontrou e expressou. Nosso trabalho pretende analisar a
obra de João Antônio segundo essa concepção crítica e empreender uma visão mais
completa de sua literatura, contribuindo para estabelecer a dimensão do autor e de sua obra
na literatura brasileira contemporânea.

78
CANDIDO, A. ―Um banho incrível de humanidade‖. In: Dedo-duro, Rio de Janeiro: Record, 1982. Texto de
orelha da primeira edição do livro.
45

Capítulo 1

EU SOU UM OUTRO

Três contos autobiográficos de João Antônio


46

Os primeiros contos de João Antônio se baseiam largamente na experiência pessoal


do próprio autor. São textos que o autor escreveu a partir do que viveu na juventude, como
ele próprio declarou e reafirmou, desde as primeiras entrevistas e os primeiros textos que
publicou sobre sua obra — e assim até o fim da vida. Em um texto que escreveu em 1963,
no ano mesmo de lançamento de seu primeiro livro, diz ele a respeito dos personagens
Malagueta, Perus e Bacanaço: ―No trajeto comprido da noite e da madrugada eu os sofro e
sofro a cidade. Porque vão em muitos ritmos de marcha. O que se passa com eles e dentro
deles, o que se passa na cidade é o que este aqui quis contar‖. E no mesmo texto, mais
adiante, fechando-o: ―Não quero detalhar minhas amizades malandras, que isto não é
novela. E tem mais duas propriedades — não sou besta e nem delator. Mas foi lá. Nas
beiradas das estações, nos salões do joguinho, nos goles dos botecos, que vi Malagueta,
Perus e Bacanaço‖.79
A combinação entre vivido e imaginado se afirma desde o ano do lançamento e
persiste, mas a importância da experiência pessoal ganha ênfase ao longo do tempo. No
texto ―Corpo-a-corpo com a vida‖, uma declaração de princípios literários, o autor reafirma
o caráter essencialmente biográfico do conto ―MPB‖: ―Eu vivi a aventura de Malagueta,
Perus e Bacanaço um pote de vezes. Um tufo de vezes. Sair da Lapa, catar a Barra Funda,
desguiar para o centro da cidade, pegar os lados de Pinheiros, procurando jogo e acabar na
Lapa, era a aventura diária de quem estava naquele fogo‖.80
Como se não fosse suficiente, em entrevista publicada em livro, em 1987, o autor
declarou:

―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ é simplesmente uma aventura noturna que cansei de viver logo
depois que saí do quartel, e que consistia em tentar arranjar algum dinheiro em andanças pelos salões
de sinuca. Isso, em geral, era feito pelas últimas horas da tarde, entrando pela noite e madrugada.
Assim, não imaginei nada na história de Malagueta. Simplesmente foi a coleta de uma experiência
vivida numerosas vezes e que ainda hoje se vive. O roteiro do livro é exatamente aquele que nós

79
ANTÔNIO, J. ―De Malagueta, Perus e Bacanaço‖. In: MPB, pp. 15 e 17.
80
―Corpo-a-corpo com a vida‖. In: ANTÔNIO, J. Malagueta, Perus e Bacanaço incluindo Malhação do Judas
carioca. São Paulo: Clube do Livro, 1987, p. 323.
47

fazíamos: saíamos da Lapa, íamos à Água Branca, depois Barra Funda, depois cidade, a seguir
Pinheiros e novamente tornávamos à Lapa.81

O apreço pelos primeiros livros e pelos textos de juventude também é confirmado


pela opção em reeditar, no final da carreira, contos como ―Busca‖, ―Afinação da arte de
chutar tampinhas‖, ―Fujie‖, ―Índios‖,82 ―Frio‖, ―Meninão do Caixote‖, ―MPB‖ e ―PPT‖, em
coletâneas direcionadas ao público infanto-juvenil, como Meninão do caixote (Record,
1983; Atual, 1991), Malagueta, Perus e Bacanaço (Ática, 1987), Paulinho Perna Torta
(Mercado Aberto, 1993), Afinação da Arte de Chutar Tampinhas (Formato Editorial,
1993), Patuléia (Ática, 1996), Sete vezes rua (Scipione, 1996).
Assim como no ano de estreia, trinta anos depois o autor voltaria a dizer que
gostava mesmo era de seus contos de juventude: ―Gosto de todos os meus contos. Foram
escritos com a mesma fidelidade que tenho para comigo. Foram reescritos até chegar ao
ponto, ou àquilo a que chamo de o ponto; trabalhados até ficarem prontos. Gosto, creio que
seja natural, um pouco mais dos filhos da minha juventude, no caso os contos extraídos do
livro Malagueta, Perus e Bacanaço. Mas gosto também do ‗Paulinho Perna Torta‘. Se eu
não amasse esses contos não os estaria publicando‖.83
A experiência pessoal e a criação ficcional apoiada nesses anos de iniciação literária
e de vida se tornaram indissociáveis na produção de João Antônio. Seus contos são
recorrentes em apresentar protagonistas que remetem ao próprio autor: jovens do sexo
masculino, de origem humilde, divididos entre o trabalho e a boemia, inadaptados aos
valores do mundo operário/pequeno burguês em que nasceram e se criaram, amantes da
música, da sinuca, das lutas, dos jogos e das transgressões — um universo viril e áspero
que é, em muitos casos, contrabalanceado por sensibilidade, lirismo e certa desorientação.
É o caso de Vicente e dos demais protagonistas dos ―Contos Gerais‖ (seção inicial de
MPB), de Paulinho Perna Torta, de Perus e, em certa medida, também dos outros malandros

81
―O leitor é um parceiro que eu vou procurar‖. Entrevista com João Antônio. In: ______. Malagueta, Perus
e Bacanaço, São Paulo, Ática, 1987. No mesmo sentido, ver ―O leitor como parceiro‖, in Ldc, pp. 159-162.
82
―Índios‖ foi um dos primeiros contos publicados pelo autor, em 6 fev. 1960, no ―Suplemento Literário‖ de
O Estado de S. Paulo. No Apêndice desta tese, reproduzimos a página do jornal com o conto (que seria
renomeado para ―Bolo na garganta‖ e incluído em Meninão do caixote).
83
―João Antônio: ‗Escrevo de dentro para fora‘‖. In: ______. Patuléia. Gentes da rua. São Paulo: Ática,
1996, p. 3. Os textos de MPB incluídos nesse volume de contos, todos publicados anteriormente, são:
―Meninão do caixote‖, ―Fujie‖, ―Natal na cafua‖ e ―Afinação da arte de chutar tampinhas‖.
48

protagonistas de ―MPB‖ — estes três personagens, o autor os considerava seus ―conluiados


irmãozinhos da noite e da gandaia‖.84
Além da ficção de inspiração autobiográfica, porém, o autor produziu também boa
quantidade de textos essencialmente autobiográficos, que não se constituem como ficção, e
que, no entanto, preservam certo teor de ficção. A contradição pode ser mais bem definida,
a princípio, se chamarmos a estes textos de ―contos autobiográficos‖ ou ―relatos
memorialísticos ficcionais‖, apontando para a condição híbrida de gênero que os
caracteriza. Dentre esses textos, destacamos aqui três deles: Lambões de caçarola,85 ―Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖86 e ―Abraçado ao meu rancor‖87, mas outros
poderiam ser elencados: ―Uma força‖ (em Amr), ―No Morro da Geada‖, ―Vibrações,
poeiras e pulgueiros‖ (ambos em Zicartola, 1991) e ―Meus tempos de menino‖ (em Dama
do encantado, 1996).
Os três textos aqui analisados são interessantes pois, apesar de ostentarem profundas
marcas autobiográficas, não se apresentam evidente ou essencialmente como textos
autobiográficos. Em outras palavras, o ―pacto autobiográfico‖,88 no caso desses três textos
não se estabelece de maneira clara. Ele está ausente ou, como pretendemos mostrar, é
perturbado, em diferentes níveis, por certos elementos que permitem hesitar sobre o gênero
em que se inserem: autobiografia, crônica, memória, conto?
Seja nos textos de ficção, seja nos relatos autobiográficos, a obra do autor é toda ela
atravessada pela relação entre vivência pessoal e tradução literária desta mesma
experiência. É importante destacar que, à medida que a carreira do autor foi evoluindo no
tempo, o impulso ficcional dos primeiros anos diminuiu, atravessado pela escrita factual e

84
É como o autor se refere aos personagens Malagueta, Perus e Bacanaço em carta de 12 de maio de 1965 a
Caio Porfírio Carneiro. ANTÔNIO, João. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. Cotia, SP:
Ateliê Editorial; São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2004, p. 15.
85
ANTÔNIO, J. Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!). Porto Alegre: L&PM, 1977.
86
―PMCMS‖. In: Dedo-duro. Rio de Janeiro: Record, 1982.
87
―Amr‖. In: Amr, pp. 82-83.
88
A noção de ―pacto autobiográfico‖ de Philippe Lejeune pressupõe a ideia de que a autobiografia é um
gênero contratual. Segundo ele, nos textos autobiográficos se estabelece um pacto proposto pelo autor ao
leitor: aquele da identidade entre autor-narrador-personagem. As reflexões de Lejeune se assentam sobre a
importância do ―nome próprio‖ para a noção de autoria e identidade, ancoradas na centralidade do nome
enquanto estatuto civil e autoral, noções que terão grande importância nesta nossa leitura de João Antônio. No
caso destes textos de João Antônio, o pacto autobiográfico está ausente ou ambíguo, como veremos, e o nome
do narrador e dos protagonistas não são informados, o que faz com que os relatos aqui em questão possam ser
classificados na posição 2b (indeterminado), da tabela de Lejeune (p. 28). LEJEUNE, Philippe. Le pacte
autobiographique. Nouvelle Édition Augmentée. Éditions du Seuil, 1975, 1996.
49

jornalística que ocupou o autor profissionalmente nos anos de maturidade, mas também,
cada vez mais, pela escrita autobiográfica.
Isto posto, no entanto, é preciso sublinhar que, apesar da inspiração autobiográfica,
o que se verifica nos textos de João Antônio não é uma correspondência total entre vida e
literatura. Nos contos do começo de carreira, os protagonistas — mesmo aqueles que não
têm nome —, ganham existência autônoma. Não há nos contos dos primeiros livros
nenhum protagonista de nome João Antônio nem há, como haverá em Lambões de
caçarola, ―Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖ e ―Abraçado a meu rancor‖,
coincidências exatas entre vida do autor e acontecimentos relatados nos textos literários,
ainda que em ―PMCMS‖ o narrador trate alguns contos, como ―Fujie‖, como textos
autobiográficos.89
E se quisermos mais uma vez buscar correspondências entre biografia e criação
literária, elas não faltarão, nem nos textos ficcionais, tampouco nas entrevistas ou nas cartas
do autor. O exercício, talvez infindável, de encontrar correspondências e diferenças entre
vida e obra, pode redundar em simples verificação inócua daquilo que o autor viveu e
contou, em forma de ficção ou de relato autobiográfico. A mera constatação de que há e de
que não há correspondência entre vida e obra não nos leva, do ponto de vista da crítica
literária, a lugar nenhum.
Porém, há certa temática — com desdobramentos formais, como veremos — que
nos parece fundamental na constituição dos seus textos autobiográficos, como também o é
para a ficção do autor. Essa temática é a do papel, sempre enigmático, da figura paterna nos
textos do autor.
A figura paterna é decisiva, desde o primeiro conto do primeiro livro de João
Antônio. Em ―Busca‖, primeiro conto do primeiro livro do autor, vale lembrar que é
justamente a morte do pai que fará com que o personagem adquira a ―mania de andar‖.
Essa morte do pai, tão central e motivadora para o protagonista, não tem nada de

89
Em ―PMCMS‖, o narrador fará referência ao conto ―da japonesa‖, dizendo que foi o primeiro que escreveu.
Na passagem sobre o que se presume ser ―Fujie‖, conto de MPB, o narrador confessa ter vivido a situação
narrada no texto e relembra a dificuldade de publicar esse conto, pelo conteúdo escandaloso: o adultério, a
traição do melhor amigo. Como veremos, porém, o pacto autobiográfico em ―PMCMS‖ está ―ausente‖, na
terminologia de Lejeune, o que torna o conto um relato autobiográfico com teor de ficção ou um conto com
teor autobiográfico, à escolha do leitor, tornando essa passagem sobre ―Fujie‖ ainda mais ambígua:
autobiografia ou ficção, ficção autobiográfica ou autobiografia ficcional?
50

autobiográfica, pois o pai de João Antônio era vivo quando da escrita e da publicação do
primeiro livro do filho.90
A constatação não causa estranheza, obviamente, por se tratar de um texto ficcional.
Mas a ausência paterna, que marca importantes contos do autor (como ―Busca‖ e ―PPT‖,
além de ―Meninão do Caixote‖, em que o pai é uma espécie de presença ausente), marca
também os ―contos autobiográficos‖, especialmente um desses textos, ―Amr‖, não menos
importante e central para a obra de João Antônio. E nos ―relatos memorialísticos‖, além da
ausência do pai, a presença paterna e o papel central do pai do autor, como não poderia
deixar de ser, também são relevantes.
De novo, talvez não seja produtivo simplesmente apontar os textos nos quais a
presença paterna é decisiva e aqueles em que a ausência do pai salta aos olhos. Mais
relevante é se perguntar pelas razões profundas pelas quais um autor que tantas vezes
chamou a atenção para a relação umbilical entre sua biografia e sua obra — um escritor que
tantas vezes afirmou a importância do pai em sua vida e em sua opção pela literatura —,
mais produtivo é indagar as razões pelas quais em certas ocasiões, tanto na ficção como nos
textos autobiográficos, João Antônio Ferreira Filho explorou de maneira tão marcante a
falta do pai, quando o pai real, João Antônio Ferreira, não faltava, isto é, não estava,
objetivamente, ausente ou morto.
Cumpre começar pelos contos autobiográficos em que o pai está presente na ação
narrada.
―Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖ talvez seja o texto autobiográfico
mais conhecido do autor. O conto, incluído no livro Dedo duro (1982), é uma espécie de
autobiografia centrada nos tempos de juventude de João Antônio, cuja orientação narrativa
conflui, como indica o título do texto, para o momento da estreia literária do autor: Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha foi o pseudônimo adotado pelo então escritor
iniciante (que já havia publicado algumas narrativas em jornais de São Paulo) para mandar
originais de seus primeiros contos à editora Civilização Brasileira.

90
João Antônio Ferreira, o pai do autor, morreu em 1988, quando o autor estava na Alemanha, durante uma
longa temporada, com uma bolsa do DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) que recebeu para
permanecer alguns meses no país. No Apêndice, reproduzimos uma cópia da carta escrita por João Antônio
por ocasião da morte do pai, em fevereiro de 1988.
51

O conto tem como ponto culminante a chegada de um carrão importado ao bairro


periférico onde morava o jovem autor. Do carro, saem quatro homens de terno e gravata à
procura do ―Paulo Melado‖. João Antônio Ferreira, o pai, teria ficado assustado, pensando
que era a polícia atrás do filho mais velho.
Rodrigo Lacerda conta:

Certo dia, entre 57 e 58, um Studebaker cinza, solene, estacionou em frente a uma pequena
casa no subúrbio de Vila Anastácio. O primeiro andar da construção abrigava o botequim do pai de
João Antônio, morando a família no andar de cima. Aparecer por ali um carro daqueles já intrigou o
Sr. Ferreira, atrás de seu balcão. Mas foi quando de dentro do automóvel saíram quatro homens de
terno, engravatados, que ele realmente ficou preocupado. Procuravam um tal Paulo Melado do
Chapéu Mangueira Serralha. O comerciante, imaginando que só podia ser mais uma das confusões
do filho rebelde, abaixou a cabeça, entre envergonhado e temeroso, e perguntou: ‗Os senhores são da
polícia?‘. Não eram. Susto geral quando os engravatados se apresentaram escritores, jornalistas e
editores, interessados em conhecer o autor dos contos que haviam recebido recentemente pelo
correio, sob aquele estranho pseudônimo. O líder do grupo era Ricardo Ramos, escritor e editor, filho
do mesmo Graciliano que vinha a ser o escritor preferido de João Antônio, uma das influências
perceptíveis nos primeiros contos que havia escrito. ―Paulo Melado‖, que estava de ressaca, foi então
chamado à sala, e foi a vez dos quatro visitantes se assustarem, ao ver que não passava de um jovem
de seus vinte anos!91

Este episódio, espécie de descoberta literária precoce de João Antônio, é narrado em


―PMCMS‖ e constitui o clímax do conto. Como indica o título do texto, este relato
autobiográfico culmina justamente na assunção do garoto boêmio e desregrado a escritor de
qualidade, ainda que inédito e conhecido em um círculo muito restrito, formado por alguns
intelectuais e os familiares mais próximos. Mas o impacto dessa visita na família e, em
especial, na maneira com que o pai via o filho ―rebelde‖ não deve ter sido pequeno. O fato
de o título escolhido para o conto ser o pseudônimo adotado por João Antônio indica que a
revelação de sua vocação literária e a troca de nome, por assim dizer, constituem o episódio
que marcou certa emancipação ou, pelo menos, lhe conferiu nova estatura, no universo

91
LACERDA, R. ―O primeiro amor de João Antônio‖. In: MPB, encarte anexado ao livro, em separata. O texto
está disponível também em http://www.rodrigolacerda.com.br/o-primeiro-amor-de-joao-antonio-malagueta-
perus-e-bacanaco. Último acesso em 30 jun. 2012.
52

acanhado do núcleo familiar. A figura do pai do autor, como se viu, é central para o
acontecimento. Veremos mais adiante como o próprio autor narra o episódio.
Ocorre algo semelhante em Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!),92
texto em que a figura paterna é presente e forte. Publicado em 1977, Lambões é o primeiro
texto autobiográfico do autor, depois de dois livros de ficção, MPB (1963) e Ldc (1975), de
dois livros de reportagens, Malhação do Judas carioca (1975) e Casa de loucos (1976), e
de Lima Barreto, este publicado no mesmo ano de 1977.
O texto de Lambões não é longo, poderia ter sido incluído em algum dos volumes
anteriores de não ficção, mas foi publicado independentemente, em formato de livro, em
edição da L&PM93. Trata-se de uma crônica de memória de infância da época em que o
autor vivia no Beco da Onça, nas imediações do estádio do Palmeiras (Vila Pompeia, região
Oeste de São Paulo). O título do livro é de sentido pouco evidente, mas o subtítulo é mais
explícito, pois alude a Getúlio Vargas. ―Trabalhadores do Brasil!‖ era o bordão com que o
presidente saudava o povo brasileiros em seus discursos de 1º de maio.94
O relato faz um retrato afetivo da comunidade do Beco da Onça, a partir dos olhos
do menino que passou a infância naquela área pobre da cidade, enfatizando a relação entre
o dia a dia dos moradores do Beco, a realidade política do país e, especialmente, a figura de
Getúlio. O ponto de vista é interno: o texto é narrado em primeira pessoa, por um
personagem que não se apresenta claramente, mas é parte daquela comunidade, um antigo
morador do Beco da Onça, um menino que morou no local durante a Era Vargas.
Além de se concentrar na figura de Getúlio, cuja voz e imagem são onipresentes na
realidade da gente simples, malandra e trabalhadora do Beco da Onça, o narrador irá
destacar outro personagem fundamental nesta história: o pai dele próprio. Além de ser
conhecido no Beco, por ser dono de uma venda, o pai do narrador será descrito como uma

92
ANTÔNIO, João. Lambões. As páginas deste livro não são numeradas, por isso aqui não há indicação de
número de páginas nas citações.
93
O texto foi incluído em livro posterior, Meninão do caixote (1983, reeditado em 1984 e 1991), que reúne
também ―Frio‖, ―Bolo na garganta‖ e o conto que dá título ao volume.
94
Apesar de não ter sido um grande orador, Getúlio aproveitou-se da popularização do rádio para conclamar
os ―humildes‖, como se dizia, e os trabalhadores. Transmitidos em cadeia nacional pelo rádio, os discursos de
Vargas nos feriados do Dia do Trabalho eram aguardados com grande ansiedade pelas camadas mais pobres
da população, com expectativa de medidas em favor dos trabalhadores. Ver: FAUSTO, B. Getúlio Vargas: o
poder e o sorriso. Coleção Perfis Brasileiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 122 a 127; e
LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?: O Brasil e a Era Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.
94-95.
53

figura forte, aos olhos do menino e da comunidade, por ter se recusado a ir, como toda a
gente, prestigiar uma visita que Getúlio Vargas fez a São Paulo: o pai do narrador foi o
único que não se animou a acompanhar os demais moradores para ver Getúlio discursar no
pavilhão da Água Branca.
Duas figuras paternas importantes, portanto, são descritas no livro, uma em
confronto com a outra, por este narrador adulto, que relembra seus tempos de menino. Este
narrador é João Antônio, pois todos os dados pessoais e familiares do personagem
coincidem com a biografia do autor, mas também não é exatamente João Antônio, pois o
narrador-personagem não é nomeado ou explicitamente identificado ao escritor — nem
quando adulto nem quando criança. O livro não traz, além disso, indicações claras do
gênero no qual se enquadra.
O resultado é um texto que é memória de infância — autobiográfico, portanto —
mas que se abre para uma realidade maior, que é a memória de um menino do Beco da
Onça e é memória da vida dessa mesma comunidade, memória de uma infância pobre em
São Paulo durante a Era Vargas. Getúlio Vargas, o ―pai dos pobres‖ (ou ―pai dos
pequenos‖, como diz o narrador), e o pai do narrador são, além do próprio protagonista, os
dois personagens que sobressaem neste texto memorialístico.
O narrador, que relembra um momento preciso da infância, coteja a importância do
pai e a do presidente para seu tempo de menino pobre de São Paulo. Como a perspectiva
narrativa é distendida no tempo — trata-se de um livro de memórias, de um narrador que é
o menino da situação relembrada e já é o adulto que narra — ocorre certa ênfase nas
transformações pelas quais passou o lugar onde a ação transcorre. O menino é morador de
um pedaço de bairro que aos poucos foi se modificando: passou de ―Navio Negreiro‖ a
―Beco da Onça‖ e daí a área de ―apartamento de bacanas‖, isto é, um pedaço da cidade
vulnerável e submetido, ao final, à especulação imobiliária.
A área se chamava Navio Negreiro. E o pai a ―crismou‖, com o novo nome de Beco
da Onça. É como se a Era Vargas, naquele microcosmo de uma família pobre, vivendo em
um bairro periférico da maior cidade do país, tivesse passado da ordem escravocrata para
uma ordem que não é a da democracia de ordem burguesa, mas a de um beco selvagem. De
Navio Negreiro a Beco da Onça, da escravidão para a lei da selva, sem passagem
civilizatória.
54

Em Lambões de caçarola, o sentimento resultante dessas mudanças, aos olhos do


narrador, é de nostalgia e perda de algo importante que a urbanização e a ―modernização‖
fizeram desaparecer, uma perda que está vinculada à passagem do tempo e ao esforço de
compreensão dos ―pais‖, Getúlio e o pai biológico, e da relação entre eles — eles que serão
os personagens principais deste relato, até o fim.
O mesmo sentimento de pesar acerca das transformações sociais e alterações
urbanísticas pelas quais passou a cidade orienta, como veremos, ―Amr‖, texto do livro de
mesmo nome, lançado em 1986. Neste texto, porém, o lamento se intensifica, até tomar a
forma de rancor, um sentimento que sugere a grande intensidade e a persistência de um
descontentamento pelas mudanças. E aqui, as mudanças se multiplicam, ainda que, de certa
forma, se conectem: mudaram a cidade e o próprio narrador, além de lugares, hábitos,
sociabilidade.
No caso, o narrador é mais uma vez um personagem que lembra em tudo o escritor
João Antônio, e mais uma vez, ele não é claramente nomeado. Mas, obviamente, trata-se de
um texto autobiográfico, o que se pode identificar desde a primeira página do conto, que dá
início a um percurso pelas ruas de São Paulo, percurso que coincide com um trajeto
autobiográfico: ―Osasco, Lapa, Vila Ipojuca, Água Branca, Perdizes, Barra Funda, centro,
Pinheiros, Lapa, na volta. Roteiro é este, com alguma variação para as beiradas das estações
de ferro, dos cantos da Luz, dos escondidos de Santa Efigênia. Também um giro lá por
aquele U, antigamente famoso, que se fazia entre as Ruas Itaboca e Aimorés, na fervura da
zona do Bom Retiro‖.95
O narrador se pergunta onde andará Germano Matias, sambista paulista renomado
mas àquela altura esquecido, para então dar início a um périplo, uma deambulação pela
cidade, e a uma série de constatações acerca das mudanças sociais, urbanísticas e
econômicas pelas quais passou a cidade, além de relatar observações acerca de si mesmo,
entre orgulhosas e amargas, saudosistas e rancorosas. A busca pelo sambista desaparecido
aos poucos se torna um périplo pela cidade e pelo passado do próprio narrador-autor.
O conto se passa em São Paulo — e de certa forma São Paulo é o próprio tema do
conto, ao lado da história pessoal e sentimental deste jornalista-escritor que é o narrador-

95
Amr, p. 77. Salta aos olhos a semelhança entre este trajeto e o trajeto dos malandros protagonistas de
―MPB‖. Em ―PMCMS‖ (p. 107) também se faz referência ao famoso U da confluência das ruas Itaboca (atual
rua Professor Cesare Lombroso) e Aimorés, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo.
55

personagem do texto. Objetivamente, narram-se a história e os bastidores de um trabalho de


reportagem, além das reflexões que este trabalho envolve. O narrador é um jornalista do
Rio, que volta a sua São Paulo natal para cobrir um evento que promove o turismo na
capital paulista. Em terras paulistanas, este jornalista sente-se saudoso do tempo em que ali
morou. Percorre então a cidade (de ressaca), relembrando a festa a que compareceu na noite
anterior (um evento de trabalho, lançamento da campanha de promoção do turismo em São
Paulo), refazendo o trajeto que costumava empreender na juventude. À medida que revisita
alguns pontos da cidade, com os quais mantém relação afetiva, constata a artificialidade do
discurso turístico-publicitário (que vende São Paulo como um polo econômico, financeiro e
gastronômico), contraposto à sua própria experiência da cidade ―real‖, habitada por gente
pobre e trabalhadora.
Além dessa oposição irreconciliável entre a São Paulo turístico-financeira e a cidade
das pessoas comuns, outras oposições e contrastes vão sendo perfilados pelo narrador. Mas,
como não poderia deixar de ser nesta pungente narrativa autobiográfica em primeira
pessoa, dois personagens avultam: a cidade e o próprio narrador. Ambos mudaram, e a
meditação sobre essas mudanças se torna o motivo do texto.
Narrador e cidade mudaram. Mas mudaram em relação a quê? A referência é, no
primeiro caso, a juventude e no segundo, a cidade da juventude, onde ele conheceu e
retratou seus personagens de eleição, ―uns pobres-diabos sem eira nem beira‖. Em ambos
os casos, além do próprio eu que narra, outro personagem é decisivo nessa marcação que
divide passado e presente: o pai.
Se ele, narrador, mudou, ele recorrerá ao pai para, curiosamente, afirmar a si
mesmo, e ao leitor, que não foi a influência do pai que causou a mudança — muito pelo
contrário:

Carrego um peso, ainda que vago, permanente; e se me ponho nos táxis, é com
aborrecimento. Destestável ir a todos esses buracos, desentocaiar vagabundos, localizar salões de
sinuca e me mover de carro. Devia tocar de ônibus, que os bondes se sumiram, o asfalto cobriu os
trilhos como cobriu os paralelepípedos.
Eu que me mexa pelos trens suburbanos ou pelos ônibus tão lentos desta cidade. Ruins,
enormes, cheios, onde se fala pouco. Mas será, pelo menos, decente ou limpo com esta gente, afinal
uns pobres-diabos sem eira nem beira, sobrevivendo Deus sabe. Diacho.
56

Quando os conheci e gostei deles, quando me estrepei e sofri na mesma canoa furada, a
perigo e a medo, eu não tinha esses refinamentos, não. Mudei, sou outra pessoa; terei tirado de onde
estas importâncias e lisuras? De teu pai não foi, mano. Também é verdade que agora, visto na moda e
não simples. Meto antes as roupas que, só depois, chegarão aqui e ando tostado de sol, areias, mar.
Mas quem de amigo, desafeto, fariseu, estranho, camaradinha, perguntará? Ninguém
perguntará o que me dói.96

―De teu pai não foi, mano‖, diz o narrador para si mesmo.97 Refinamentos,
importâncias e lisuras não foram herança paterna; foram, decerto, conquistas, mas vistas
aqui com lamento, contrariedade. Também as mudanças pelas quais passou a cidade são
vistas com desconfiança, e também elas são balizadas pela relação entre filho e pai. A
cidade que ele tem como sua cidade, como a cidade que ele lamenta ter desaparecido, ou
mudado radicalmente, dirá mais uma vez o narrador, é fortemente vinculada à figura
paterna:

A cidade que o velho me ensinou a ver não era esta em que me mexo. A dele tinha gentes e
ruas, árvores, conduções coletivas, idas ao mercado municipal à beirada do Tamanduateí. A minha,
agora, fechada entre quatro paredes. Sempre. Passo do hotel para um carro e daí toco para um
coquetel num salão; depois, as paredes de uma secretaria ou redação. Nessas quatro, grupelhos
proliferam. Bebericam, conspiram, politicam, fechados em si, armando campanhas, cinismos e
mordomias. Golpes, rasteirices.
Minha cidade de meu pai não chegava pelos brilharecos publicitários de um folheto que leio
profissionalmente, com nojo. Nunca o pai gabou a Praça da República, falando de uma arte que ela
não tem.98

Como se viu até aqui, a figura paterna é decisiva nos três principais textos
autobiográficos do autor. Em todos eles, o autor recompõe certos episódios de infância e
juventude, narrados a partir da experiência do presente. São relatos de memória que se
pautam por mostrar como as transformações do próprio autor, da cidade e da sociedade se

96
Amr, pp. 82-83.
97
Simone Paulino dos Santos vê nessa incidência de uma outra voz uma fragmentação do narrador-
personagem que se relaciona ao seu caráter melancólico e é indicativa de um ―princípio de acumulação‖ de
sua subjetividade, uma ―tendência a voltar-se contra seu próprio ego‖. A autora vê nessa voz fragmentada
uma ―outra dimensão do eu (...) soterrada‖. SANTOS, S. Nas esquinas do desejo. Um estudo do tema da busca
nos contos de João Antônio. Dissertação de mestrado em Letras. FFLCH-USP, 2009, p. 164-165 e 172.
98
Amr, pp. 117-118.
57

relacionam entre si. Presença e ausência paterna são decisivas nos três textos. Veremos
como, neles, as diferenças de abordagem literária e biográfica impactaram a forma, o estilo
e o sentido desses contos autobiográficos.
Importante nesse percurso, do nosso ponto de vista, é atentar para a instabilidade da
identidade do próprio narrador-autor, pois o pacto autobiográfico não se coloca de maneira
clara em nenhum dos três textos.
Em Lambões de caçarola, livro de 1977, é quase completa a identidade entre autor e
narrador-personagem que relembra a infância e a situação social da época. Mas as
informações ambíguas sobre o teor do texto, fornecidas pelo próprio livro, e o projeto
gráfico arrojado concorrem para desestabilizar o teor autobiográfico do relato.
O pacto se mantém, mas, entretanto, sofre nova perturbação no caso de ―PMCMS‖
(1982), pois o texto está em um livro de contos (ainda que inserido em uma seção de textos
memorialísticos deste mesmo livro).
E, no caso de ―Amr‖ (1986), temos, como tentaremos mostrar, um caso de pacto
frágil ou ambíguo, indicando que as fronteiras entre ficção e autobiografia, aqui, são mais
tênues — e proporcionam, ao nosso ver, ganho literário significativo.

Um lambão entre lambões

Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!) é um pequeno livro de quarenta


páginas (não numeradas). O formato, quadrado, é pouco usual, assim como o tratamento
gráfico: o volume traz, além de texto, ilustrações e fotografias. As ilustrações do livro são
desenhos de Edgar Vasques que representam cenas da narrativa; e em alguns momentos os
desenhos se integram ao texto, lembrando a linguagem das histórias em quadrinho. A
maioria das fotos são retratos de Getúlio Vargas, um dos ―personagens‖ centrais do livro,
como já dissemos.
O tratamento visual incomum e atrativo, que combina fotografias históricas e
ilustrações de personagens (ambos os tipos de imagem integradas ao texto, em maior ou
menor grau, sugerindo a mistura de realidade e ficção), já seria indicador da ambiguidade
que marca o livro e impacta o leitor desde antes do início da leitura propriamente dita. Não
bastasse isso e o formato pouco comum (quadrado e de poucas páginas, que lembra os
livros infanto-juvenis), o volume não informa claramente de que tipo de texto se trata. A
58

capa traz apenas o nome do autor, o título, o subtítulo e o logotipo da editora, além da
composição visual intrigante: um desenho assinado por Edgar Vasques que representa
alguns homens sentados à mesa de um bar, outros conversando, outros homens de pé,
fumando e bebendo; ao fundo, um retrato fotográfico de Getúlio Vargas. Foto e ilustração
se integram: o desenho dá a ideia de que o retrato está pendurado na parede desse
estabelecimento onde os homens bebem. O fundo da capa é amarelo e, no retrato, Getúlio
ostenta uma faixa verde e amarela no peito (a capa e algumas das páginas internas de
Lambões estão reproduzidas no Apêndice desta tese).
O leitor que tem o livro em mãos se pergunta: será um livro de história, uma ficção
histórica, um livro paradidático, um livro infanto juvenil ou o quê, afinal? A página de rosto
do livro e a ficha catalográfica não respondem à pergunta.
Na quarta capa (o verso), há três apreciações sobre o livro, de Wander Piroli, Josué
Guimarães e Hélio Silva, que apenas confirmam a dificuldade de definição.
Wander Piroli se questiona: ―Literatura? Pois então. Se me perguntarem que
negócio é esse, eu poderia dizer que é João Antônio. E estamos conversados. Ele nunca
esteve tão inteiro como neste Lambões de caçarola‖.
O excerto de Josué Guimarães, tirado do prefácio do próprio livro, é um pouco mais
assertivo quando ao conteúdo memorialístico do texto, ainda que sublinhe o teor autoral e
literário do relato, como indicam as expressões ―marca registrada‖, ―linguagem rediviva‖,
―procura recriar‖, ―visão do pé para a cabeça‖, ―perspectiva informe‖: ―Este livro traz a
marca registrada de João Antônio. Sua linguagem rediviva agora num tema que procura
recriar talvez a época mais importante deste país de pouca memória. Uma visão do pé para
a cabeça. A perspectiva informe e confusa dos marginais de um gueto paulista de negros e
ratazanas (...) Um livro para a gente órfã de Getúlio Vargas e que no dia a dia da cachaça e
da febre corintiana ouvia pela ‗Voz do Brasil‘ a frase famosa: trabalhadores do Brasil. Uma
época que João Antônio foi buscar na memória da gente do povo‖.99
No terceiro trecho da quarta capa, Hélio Silva diz que para os ―personagens‖ do
escritor ―só existem o dia a dia brutal, o jogo de futebol, a imagem carismática do pai dos
pobres, em quem acreditam e de quem falam mais que do próprio Deus‖.

99
O salto indicado com as reticências está no texto da quarta capa, indicando que se trata de um trecho do
texto de Josué Guimarães incluído no livro como prefácio.
59

Capa e quarta capa do livro, portanto, não definem claramente que tipo de texto
temos em mãos. Sabemos que é um livro de João Antônio e que traz a sua ―marca
registrada‖, como diz Josué Guimarães, aludindo à linguagem do autor. Sabemos que os
fundos histórico, coletivo, memorialístico e pessoal estão lá, como indicam a foto de
Getúlio, as ilustrações e as observações sobre ―a época mais importante deste país de pouca
memória‖ e sobre a perspectiva inusitada, ―informe‖, ―do pé para a cabeça‖.
A orelha do livro, por sua vez, traz um texto assinado por ―Os Editores‖. Vale
reproduzi-lo inteiro aqui:

LAMBÕES DE CAÇAROLA
Neste seu último livro, o Mestre da nova literatura popular brasileira analisa, na sua
linguagem característica, o maior fenômeno político brasileiro.
— Trabalhadores do Brasil! Quem não lembra? Quem não ouviu falar? Getúlio Vargas na
cabeça do povo. Getúlio no coração do Povo. De dentro do Beco da Onça, João Antônio conta como
o povo sentia Getúlio. Getúlio o pai da pátria, Getúlio o trapaceiro, Getúlio a esperança dos becos da
onça deste país.
Em LAMBÕES DE CAÇAROLA, João Antônio realiza a síntese do fenômeno. Como
Getúlio era sentido pela gente humilde dos subúrbios. A devoção e o desencanto dos pingentes da
sociedade. O mito visto de dentro dos becos, das imensas multidões que reverenciaram aquele que —
bem ou mal — foi o maior líder popular deste país. Um livro para todos os brasileiros de 9 a 90 anos.
Fartamente ilustrado. Da criança ao velho. Dos que viram o Gegê aos que só ouviram falar. Para os
ginasianos, universitários, doutores, mulheres e homens ricos e lambões de caçarola em geral.
Os Editores

O texto não é esclarecedor do gênero livro, mas a ênfase recai sobre o exame do
mito e da figura de Getúlio, o que parece indicar, ao menos a princípio, um livro de não
ficção e, mais que isso, de interpretação história, de análise política. Os verbos indicam que
o texto se alterna entre o testemunho e a interpretação do vivido: João Antônio ―analisa‖ o
fenômeno político e ―conta‖ como o povo sentia Getúlio. Para os editores, o autor ―realiza a
síntese do fenômeno‖.
Mas além de ser marcado pelo tom apologético (―mestre da nova literatura popular
brasileira‖), o texto dos editores de certa forma adere ao estilo de João Antônio no próprio
livro, o que contraria o alegado ou suposto teor de análise e de interpretação histórica ou
política. O texto da orelha aponta para um conteúdo mais literário, como o livro de fato é,
60

ainda que centrado na figura histórica de Getúlio Vargas, apresentado então, desde a orelha
do livro, como ―mito‖.
O final do texto indica que a ambição de alcance de público, além disso, era grande,
chamando a atenção para a vocação do texto para um público leitor amplo — gente de
todas as idade, de todas as classes, de todas as formações.
Voltando ao tema da ambiguidade de gênero textual, a ênfase na inventividade e na
excelência literária do livro não esclarece ao leitor qual é o teor exato do que se vai
encontrar nas páginas do livro. Conto, crônica, reportagem, análise política, memória?
Tudo isso misturado? Literatura e ponto final? Mas que tipo de literatura?
A dedicatória, por sua vez, sugere que é um texto de grande conteúdo afetivo e
familiar: ―Para João Antônio Ferreira – meu pai – ainda firme na luta‖.100 Mas não afirma
explicitamente o conteúdo memorialístico.
O próprio autor também assina um texto, após o prefácio de Josué Guimarães.
Parece uma introdução, mas não tem título. Começa com o bordão de Getúlio e tem uma
imagem do presidente, descontraído: vestido à gaúcha, de bota e bombacha, cachecol e
óculos escuros, ele segura entre os dedos um charuto aceso (ver reprodução no Apêndice).

Trabalhadores do Brasil!
Isto entalado na garganta. E bem. Doía.
Desde o tempo de moleque, a gente no Navio Negreiro. Um dia, meu velho rebatizou aquele
pedaço de Beco da Onça. Crismou.
Mais. Creio que aquele povo amargue a dúvida e a castração. Gana de cobrança, de forra.
Que de um jeito ou de outro, querendo bem, abominando, desconfiando, tanto faz. Estamos todos
empatados. Somos órfãos e viúvos do velhinho.
Até agora.

JOÃO ANTÔNIO
Copacabana, 1º de maio de 1977

100
Quando o texto de Lambões foi incluído em Meninão do Caixote (Record, 1983), ganhou mais uma
epígrafe: ―‗Pois até quem não tem nada, / Tem ainda a esperança‘. Vejo amanhecer (1933), Noel Rosa‖. Além
de Lambões, Ô Copacabana! é dedicado ao pai. Ambos os volumes trazem também dedicatória a Lima
Barreto, como, aliás, quase todos os livros do autor. Uma exceção significativa é Malagueta, Perus e
Bacanaço, cuja primeira edição é dedicada apenas a Paulo Rónai e Mário da Silva Brito. A partir do segundo
livro, Ldc, e da reedição de MPB, em 1975, o autor passou a dedicar seus livros também ao filho, Daniel
Pedro de Andrade Ferreira, nascido em 1967.
61

Temos afinal a palavra do próprio autor do livro, que, entretanto, agrega novos
elementos sobre o conteúdo do texto, sem explicar ao certo de que tipo de relato se trata.
Ao contrário, o autor reafirma que é algo que ―vem desde o tempo de moleque‖ e persiste
―até agora‖. O quê exatamente? Algo ―entalado na garganta‖. Ou talvez o sentimento da
perda de Getúlio Vargas: ―somos órfãos e viúvos do velhinho‖. O autor fala em nome
próprio, mas fala também em nome do povo, ―aquele povo‖, do Beco da Onça,
anteriormente chamado Navio Negreiro, rebatizado pelo pai de João Antônio, assim
apresentado como uma espécie de fundador daquela comunidade.
O texto está datado de 1º de maio, feriado de Dia do Trabalho, o que parece ser uma
deferência ao ex-presidente trabalhista. Mas o texto dá sinais de que a memória sobre
Getúlio é ambivalente: ―querendo bem, abominando, desconfiando, tanto faz‖. Ao fim e ao
cabo, os sentimentos parecem se equilibrar, ―empatados‖, talvez graças à morte de Getúlio
Vargas, que deixou a todos ―órfãos‖ e ―viúvos‖. Os trabalhadores, o povo do Beco da
Onça, o pai do narrador e o próprio narrador, assim, parecem ainda de luto, divididos sobre
a interpretação da figura de Getúlio Vargas, ―empatados‖. Aquele povo — e aqui pai e filho
estão incluídos — ainda amarga ―a dúvida e a castração‖.
Os sentimentos relacionados ao que se vai contar são fortes e eloquentes. Há dor,
pesar, raiva, dúvida, desconfiança, frustração, ―castração‖. Mas a indefinição sobre o
conteúdo do texto persiste antes do início da leitura propriamente dita.
Não pretendemos, com isso, questionar ou reivindicar a necessidade de clareza
absoluta acerca da definição do teor narrativo, ficcional ou memorialístico do livro, nem
chegar a uma definição última do gênero de texto em que Lambões se enquadra. Ao
contrário, reconhecemos e destacamos, assim, como o projeto do próprio autor de esgarçar
os limites de sua escrita, entre o conto, a crônica e o jornalismo, combinando
procedimentos de todos esses gêneros, projeto que João Antônio já vinha exercitando em
seu livros imediatamente anteriores, ganha em Lambões de caçarola mais um exemplo bem
sucedido de relato, como veremos, em que a forma literária se constrói de acordo com a
necessidade da matéria.
A questão crucial que se coloca é: a propalada ideia do próprio autor no empenho
em eliminar as fronteiras entre literatura e jornalismo, além de produzir uma forma
62

brasileira101, aqui aplicada a um livro autobiográfico... que não se restringe aos limites
autobiográficos, resulta em que tipo de narrativa e aponta para quais problemas críticos?
Deixemos a pergunta em suspenso, por ora.
A combinação de perspectiva individual, linguagem solta e entrecho um tanto à
deriva, ―ao correr da pena‖, para lembrar uma fórmula que está na origem do nosso
jornalismo e da nossa crônica, permite inclusive inserir a literatura não ficcional de João
Antônio na larga tradição brasileira da crônica e das memórias, que remonta a Alencar e
Machado de Assis, passa por João do Rio e Lima Barreto, este um dos autores de
predileção de João Antônio, e vem culminar na geração de Rubem Braga, Fernando Sabino,
Paulo Mendes Campos e outros escritores, autores que Antonio Candido tão bem apontou
como os maiores representantes da crônica brasileira, este gênero ―menor‖, que no entanto
ganhou estatuto literário de grande gênero brasileiro. João Antônio, autor mais jovem que a
referida geração, vem se ligar, portanto, a essa corrente de autores que adotaram a
linguagem da crônica para dar conta de uma narrativa que exige, mais do que a trama da
ficção, a liberdade da conversa, da associação livre e da reminiscência, recorrendo à
memória pessoal, ao devaneio e à notação solta para atingir seus objetivos literários mais
amplos.102
O leitor informado, tanto visualmente como textualmente, da dificuldade de
definição dos propósitos e dos limites do livro, começa então a leitura um pouco inquieto,
sem ter certeza do caminho que o relato que tem em mãos tomará. E o texto não o
decepciona, combinando desde o princípio temporalidades diversas e elocução ambígua.

101
Ver ―Corpo-a-corpo com a vida‖. In: Malagueta, Perus e Bacanaço incluindo Malhação do Judas carioca.
op. cit.
102
Os textos de João Antônio nos livros de não ficção da década de 1970, como Malhação do Judas carioca e
Casa de loucos, entretanto, diferem em muito daqueles textos que retratavam ―a vida ao rés-do-chão‖ tal
como o faz, segundo Antonio Candido, a geração de Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes
Campos, ainda que os textos de João Antônio também adotem o ―tom menor‖ e a tendência ao conto e à
poesia, numa linguagem que procura aproximar autor e leitor. Esses textos de João Antônio talvez se
enquadrem naquilo que Davi Arrigucci Jr. chamou de ―poderes‖ ou modalidades da crônica: o ―testemunho
de uma vida‖, no caso dos perfis ou retratos, e o ―documento de uma época‖, no caso dos textos sobre a Lapa,
Copacabana, a sinuca, a Cidade de Deus. Na maioria dos casos, porém, entendemos que, nas suas crônicas,
João Antônio não consegue ―driblar o evento miúdo do cotidiano para escapar do efêmero‖, que segundo
Arrigucci Jr. é o desafio do cronista. Sobre a crônica no Brasil, ver CANDIDO, A. ―A vida ao rés-do-chão‖. In:
Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. ARRIGUCCI JR., D. ―Fragmentos sobre a crônica‖. In. A
Crônica: uma bibliografia comentada. Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade. Vol. 46, n. 1/4, p.
43-53, jan./dez. 1985.
63

Lambões tem início com a frase proferida pelo ex-presidente como um vocativo ao
povo brasileiro e segue na descrição das crianças do Beco da Onça e de uma cena
específica do lugar, uma cena recorrente, narrada no livro tal como rememorada pelo
narrador:

— Trabalhadores do Brasil!
Pé no chão, barriga de fora, nariz moncoso, cabeça despenteada, caras de fome, lombrigada.
Aqui no Beco da Onça a molecada negra passa o dia debaixo do sol, na rua de terra. Remexe,
apronta e perturba com o carrinho de rolemã, papagaio, bola de vidro, bolão. Cada um ao seu tempo.
E tem tempo de tudo. Uma misturação. Não havendo troços de brincar, a atração é com algum gato
ou cachorro. Os moleques, então, se espojam na terra fofa da beirada da rua.
Encostou um caminhão das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo para a entrega do
açúcar em pacotes de meia arroba. Azuis, de faixa vermelha, sete quilos e meio. Os homens taludos
empilhavam uns quatro daqueles nas costas, iam ligeiros, ganhando ritmo, o movimento corridinho.
Traquejo. Bíceps enormes, tríceps enormes, cinturas finas, canelas finas de sabiá. Do caminhão à
pilha de pacotes do estrado da vendola do velho. Uns quinze metros, se tanto.
Vai que um pacote no ombro do homem sofre um furo, o açúcar escorre do caminhão à
pilha, estira um fino, fininho de linha branca pintando um rastro, carreirinha na terra. A molecada
esfomeada se agacha, quase se deita. E, rápida, mete a língua naquilo, raspando o chão, nariz
ranhento.
Eu não vou esquecer mais. Ele usará a cena como porrada viva e exemplo. Quando eu torcer
o nariz, não querendo comer.
— Trabalhadores do Brasil!

O procedimento de iniciar um texto com uma fala não era novo na obra do autor.
Lembremos o começo de ―Busca‖, primeiro conto de MPB, que analisaremos no próximo
capítulo. Mas aqui o personagem que pronuncia a frase, com marcação de diálogo, não está
presente na cena.
O leitor sabe de quem é a frase, de Getúlio Vargas, mas por ora o personagem
Getúlio está ausente da cena, isto é, da ação narrada. O bordão retorna, alguns parágrafos
adiante, como se viu, e a recorrência será usada pelo narrador para reafirmar a presença
constante de Getúlio na narrativa e, por extensão, na comunidade. É como se a voz de
Getúlio ecoasse no ambiente retratado. Dirá o narrador que os discursos, ouvidos no rádio,
64

e os retratos do presidente, pendurados em todos os estabelecimentos comerciais, eram


onipresentes no Beco da Onça.
A posição do narrador-personagem é incomum: ele não se apresenta de maneira
direta e retarda a sua aparição na narrativa, por um procedimento que chama a atenção:
primeiro define a perspectiva, interna, para depois explicitar o ponto de vista, em primeira
pessoa. Em outras palavras, apesar de não demorar a se revelar personagem da história que
narra, o narrador já apresenta o relato por meio de uma visão interna, antes mesmo do ―eu‖
aparecer claramente no texto, convidando assim o leitor a partilhar de sua perspectiva:
―Aqui no Beco da Onça a molecada negra passa o dia debaixo do sol, na rua de terra‖. O
narrador, com isso, insere a si mesmo no quadro da ação e se diferencia dos demais
personagens que primeiro aparecem em cena: o ―aqui‖ define a perspectiva interna e faz
com que o leitor, inevitavelmente, se sinta imerso no ambiente, ainda que apartado da
―molecada negra‖.
O ambiente é definido pelo narrador pela ―misturação‖, pela precariedade e pela
pobreza, uma caracterização que, apesar de não economizar no retrato da carência, é
nuançada pela ênfase na espontaneidade e leveza das crianças, os personagens principais
desta primeira cena, que parecem ―brincar‖ com a própria situação, que é de penúria geral:
privação material (―pé no chão‖, ―não havendo troços de brincar‖), falta de asseio (―nariz
moncoso‖), fome (a ânsia de lamber o açúcar derramado no chão), doença e insalubridade
(―lombrigada‖). Além disso, a objetividade com que descreve a cena dos meninos que se
―espojam‖ na terra, sem participar diretamente da cena, indica que o narrador é parte
daquele mundo, mas está em melhor situação, pois apenas assiste ao que outros fazem.
A impressão de que o narrador é um menino como aqueles, mas não passa fome
nem vive na rua, vem se confirmar na recordação seguinte, que revela o conteúdo moral do
ocorrido, algo sublinhado e imposto pelo pai do narrador. Como se viu no trecho, é quando
o eu-narrativo finalmente se apresenta, para dizer que não irá esquecer a cena recém-
descrita.
A lembrança, além da percepção que o próprio narrador tem do ocorrido, é marcada
por mais um fator, externo ao fato narrado. São a interpretação e sobretudo o
aconselhamento do pai que farão o narrador guardar a cena como ―exemplo‖. A
exemplaridade com que o pai interpreta a cena dos meninos negros, esfomeados, sujos e
65

enfermiços indica que a família do narrador vivia muito próxima daquela realidade, dentro
mesmo do Beco da Onça, mas em situação privilegiada. O pai do narrador, afinal, é dono
de comércio. Ainda assim, a ameaça da pobreza e da fome parece preocupar os mais velhos
e acossar os mais novos.103
A maneira com que o pai surge na narrativa, sem ser nomeado de maneira clara,
também chama a atenção. Os sacos de açúcar chegam no caminhão e são levados à
―vendola do velho‖, onde são empilhados. Aqui, lembre-se que a narrativa se ampara em
conhecida passagem autobiográfica. Sabe-se que no começo da década de 1940, quando
João Antônio era um menino de 5 a 6 anos, a família se mudou para essa região da cidade,
a Vila Pompeia, onde o pai do futuro escritor abriu uma venda. 104
Fiel ao ponto de vista interno, porém, o texto de Lambões não explicita a
correspondência entre o que se conta e a biografia do próprio João Antônio. A maneira com
que se narra indica que o narrador trabalha segundo uma via dupla de lembrança. Suas
lembranças de acontecimentos factuais se tornam cenas que a memória resgata do passado,
atualizando-as e recriando-as por meio do discurso narrativo.105 Algumas dessas
lembranças vêm ressaltadas pelo compartilhamento entre os moradores do bairro e pelas
relações afetivas, sobretudo da família e de alguns personagens que assumem, de quando
em quando, o primeiro plano narrativo. As lembranças e a própria narrativa correm sem
muita ordenação, mas afinal o narrador se dispõe a caracterizar o Beco da Onça de forma
mais definida:

103
Em sua biografia literária de João Antônio, Rodrigo Lacerda já havia destacado a situação melhor da
família, rodeada de famílias mais pobres: ―Embora (...) esteja subentendida a melhor situação da família
Ferreira em relação aos demais moradores do beco, fica claro que o contato com a pobreza crua do lugar, com
sua ‗gente que só come carne de galinha aos domingos‘, foi impressionante‖. Lacerda também acredita que
esta fase marcou profundamente o futuro escritor, enraizando nele uma ―ética positiva da pobreza‖, no
convívio com os demais moradores do Beco da Onça. LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária.
Tese de doutoramento em Letras. FFLCH-USP, 2006, p. 56.
104
A marcação histórica do texto irá logo aparecer na narrativa: ―Quarenta e dois, quarenta e três ou quarenta
e quatro. Muita coisa viva nestes anos. Faço viagens ao Mercado Municipal. Apanhar mercadorias nas
beiradas do Tamanduateí. Corre-corre lutado atrás do balcão. Enlitro óleo de cozinha, querosene, ensaco
carvão, ajudando os velhos. Há o jogo de trilha à noite com os homens da sacaria. Coríntias, Palmeiras, São
Paulo, o goleiro Oberdan, o goleiro Rato‖. Rodrigo Lacerda registra a mudança da família nessa época,
indicando que a vida no Beco da Onça era nova para o menino João Antônio: ―Entre 1943 e 1944, o pai de
João Antônio decidiu mudar o rumo de sua vida. O bom emprego no frigorífico Armour, como chefe do
departamento de custos, permitiu-lhe adquirir um estabelecimento comercial na Vila Pompéia, um armazém
de secos e molhados. Este ficava na rua Caiovás, atrás do campo do Palmeiras, num beco que ia dar num
riacho por onde hoje passa a avenida Sumaré‖. LACERDA, R. op. cit., p. 52.
105
Sobre o trabalho de recriação da memória, ver BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos.
3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
66

O Beco da Onça é getulista, negro, negróide, mestiço, emigrante, cafuso, mameluco,


migrante, pobre, operário, corintiano roxo, paulista da gema. Faz sua fezinha, jogando no bicho,
conforme o palpite ou os sonhos... Gente que só come carne de galinha aos domingos. Que manda
botar meia sola nos sapatos. Para quem ir ao cinema é um acontecimento. Paga os aluguéis com
dificuldade, teme perder os empregos. Uma vez cada seis meses, quem pode, pode. Toma os rumos
de um banho de mar na Praia do Gonzaga, em Santos. Viaja perigoso, demorado nos trens da Santos-
Jundiaí. Mas acompanha o Coríntians em toda viagem que o clube faz. Tudo Getulista.
— Trabalhadores do Brasil!

Além dessa definição mais geral, o narrador recorda os hábitos, como a paixão pelo
futebol e o cinema, e alguns acontecimentos marcantes do cotidiano do lugar. Dentre os
personagens que são relembrados estão Joaquim Moço, Quim, Dentinho e Boneca, todos
moradores do Beco. Outros personagens aparecem ou são lembrados pelo narrador: seu
Augusto, viúvo de dona Rosália, a mãe do narrador, um tio, o avô Virgínio. Além desses, o
narrador faz alusão a políticos e personagens da época, que são referidos no contexto da
Segunda Guerra Mundial, com seus reflexos no Brasil. Assim, Hitler, Mussolini, Churchill
e Roosevelt são lembrados para dizer que os moradores do Beco da Onça acompanhavam,
pelo rádio, as notícias da Segunda Guerra, e tinham opinião sobre cada um deles. Em 1945,
Dutra, o possível sucessor, e o governador Adhemar de Barros, também são mencionados.
Outro trecho do livro dá bem a dimensão errática com que a narrativa se constrói,
reconstruindo o panorama político e histórico, ao mesmo tempo que registra o cotidiano do
Beco:

Nem se sonhava com transistor, mas todos ouviam rádio. À noite, A Voz do Brasil era
obrigação para se ficar sabendo das coisas. Engraçado. Tínhamos as fichas de racionamento, e nas
noites de black-out, falavam na possibilidade de passarmos fome.
Dinheiro curto, contado, recontadinho. Bondes cortavam a cidade, onde se atentava para
dez tostões no troco. E os discursos de Hitler e Mussolini, gritados, medonhos, apanhados
clandestinamente, não sabíamos como. Havia temores e sustos que escorregavam. Pontudos.
Mais que tudo, pé atrás com os italianos, os alemães e os japoneses, a quem chamávamos
sonsos. Viviam quietinhos, rabo preso, temendo prisões ou ripadas piores.
Além do rádio, as caricaturas dos jornais abriam conversa nos botequins, nos barbeiros,
nas conduções. O povo do Beco da Onça vivia se informando. E falava, quando menos, falava.
67

Esses movimentos e esses rumores alertavam meu avô Virgínio que meneava a cabeça, com
exemplaridade:
— No meu tempo de menino, nenhum garoto sabia o nome do Presidente da República.
Vai daí, depuseram Getúlio. E, eleições à vista. Era só o de que se falava. Dutra seria
bom, Gegê dizia. E a palavra do velhinho era final. Eduardo Gomes e Ademar, dois gostosões,
faziam sucesso na ala feminina. Nenhum era líder. Só Gegê tinha a chave:
— Trabalhadores do Brasil!
A fama repetia a vida limpa, sofrida, de vítima, sem bandalheiras. Os outros, pândegos.
Mentirosos, não cumpriam promessas, oprimiam, enganavam. Usavam os otários, incautos e
iludidos. Ele, não. Isso não era um sentimento confuso.
“Alemão batata
Como queijo com barata”
Confusa rejeição aos japoneses, alemães, italianos. Dizíamos o Eixo sem entender o que
fosse. Certamente, uma cambada de safardanas mal encarados querendo roer o mundo.
Nosso mundo, pequeno. Nossas ruas, de terra. Quando chove, o Largo da Pompeia se
entala e toda beirada do Tamanduateí inunda. Um desastre, atoleiros. Tem gente que fica com a
roupa do corpo, prejudicada. Entra ano, sai ano, veste pobre, agüenta fila.
Há uma admiração pelas qualidades modernas dos norte-americanos. Parece uma ordem
vinda de cima. Exemplo de capacidade, padrão de amizade. Parceiros, nossos aliados.
Hitler, um verme. Mussolini, uma besta. Churchill, um sabido e Roosevelt, este sim, um
grande homem.
Mães, noivas, parentas, chorosas de fazer dó. Mas o Beco da Onça, Navio Negreiro, e
outros buracos, muquinfos, enfiados e subúrbios perdoavam, cabeça alta ou baixa, o rádio
cantando a Canção do Expedicionário.
“Por mais terra que eu percorra
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá.”
Lá, a Itália. Nas escolas, a molecadinha cantava. Nas ruas sabíamos a letra de cor e
repetíamos, interessados, faladores, bravatando, as historiadas da cobra fumando.
Uma madrugada, saímos de casa e tocamos a pé ao Pacaembu. Ver os que sobraram.
Voltando da Itália, eles aprontaram. Ninguém perguntou se tinham enlouquecido. Chegaram
exorbitando. Desmandavam, quebravam botequins, pegavam o pé da mulher dos outros. A maioria
esbagaçou depressinha a indenização do governo.
Alguns ganharam dezessete contos de réis. Uns compraram carros, casas, fazendas. A
gente conheceu um tal Walter, de Osasco, que apanhou a grana, deu juízo, se fez, nunca mais
trabalhou na vida.106

106
Os destaques em negrito são do texto do autor.
68

Do costume de ouvir rádio e do dia a dia de racionamento de comida, passa-se à


situação na Europa, volta-se ao círculo familiar, na frase do avô, para então se falar na
deposição de Getúlio, depois voltar às personalidades da Segunda Guerra, e de novo
retornar ao Beco, onde se canta a ―Canção do Expedicionário‖ e se espera pelo retorno dos
Pracinhas, afinal recebidos no Pacaembu, mas com comportamento surpreendentemente
pouco heroico; ao contrário, abusado e inconsequente.
A ―confusão‖ é enunciada pelo narrador, como se viu no trecho acima; isto é, a
confusão era a percepção dos próprios moradores do lugar acerca dos acontecimentos
históricos, que o narrador registra e incorpora como procedimento narrativo. O narrador
relembra os fatos quase sempre aderindo às suas percepções de infância, e não como
narrador adulto, como escritor-jornalista que João Antônio então já se tornara. A relativa
desorganização do texto se justifica também pelo ponto de vista, interno e infantil, com que
o relato se estrutura desde o início — ainda que aos poucos o narrador vá abandonando essa
perspectiva.
A construção do texto, daí em diante, segue alternando a ocorrência do bordão ―—
Trabalhadores do Brasil!‖, a caracterização do Beco da Onça, as impressões pessoais do
narrador sobre o dia a dia do lugar e suas próprias lembranças de infância, que vêm sempre
marcadas pela família e pelo núcleo de vizinhança.
O desenvolvimento do texto se abre para a caracterização social do Beco, para
algumas histórias marcantes da época, todas essas lembranças retidas na memória do
menino que ali passou a infância (e reorganizadas por esse menino que se tornou narrador
adulto); se a narrativa é marcada pela ―misturação‖ e pela percepção ―confusa‖ da
realidade, o texto a certa altura se encaminha para uma ordenação, com teor de
interpretação histórica e pessoal: histórica, porque interessada na figura de Getúlio, e
pessoal, porque o ponto de vista do narrador e sua elocução se tornam mais definidos, ainda
que, sempre, marcados pelo contraponto da figura paterna e pela memória do presidente.
Neste quadro, ganham destaque Getúlio Vargas e o pai do narrador, como se
verifica desde a capa e a cena de abertura, respectivamente. É assim que a narrativa, afinal,
vai ganhar certo fio condutor, ao se concentrar na figura de Getúlio e no comportamento do
pai do narrador.
69

Essa evolução narrativa, de um momento ―misturado‖ e ―confuso‖, o da infância,


para outro momento, assertivo e judicioso, acompanha a evolução histórica e alcança o
narrador em seu momento adulto. No entanto, é curioso que o texto termine, como
veremos, num momento atualizado, mas com o peso da opinião paterna ainda decisivo,
recobrindo a perspectiva do narrador. Acompanhar esse desdobramento parece
indispensável para uma melhor compreensão do livro.
Num primeiro momento, Getúlio é caracterizado como um líder intocável, recoberto
da aura de protetor, destituído de culpa pelas dificuldades. Neste momento inicial, Getúlio
parece acima de todas as coisas: ―O sorriso do velhinho estava acima dessa historiada.
Aguentáramos black-out, desemprego, gasogênio, racionamento e a molecadinha fuçava o
chão com a língua para lamber o açúcar caído. Muitos, os culpados pela carestia. Getúlio,
não. — Trabalhadores do Brasil!‖.
Nesse período em que a infância do narrador coincide com os anos da Segunda
Guerra, Getúlio está acima dessa ―historiada‖: do desemprego, das mazelas, da carestia, da
pobreza. Como diz o pequeno trecho do texto de Hélio Silva, na quarta capa do livro, os
moradores do Beco acreditam mais em Getúlio que em Deus. Daí por que a atitude do pai
do narrador, quando da visita do presidente a São Paulo, pareça tão notável:

Um dia, baixou em São Paulo. A crioulada, a mestiçada do Beco da Onça, foi ver. Lá
defronte à refinaria, num pavilhão, na Feira das Nações Unidas. Hoje, ali se planta um
supermagazine, limpinho e sem graça, vendendo de um tudo. De alfinete a carro de luxo, de roupas
de frio a embelecos de praia ou campo, de nome estrangeirado. Que ninguém sabe para que serve.
A gente se aprontou. Duanas e becas domingueiras nos varais, ao vento, escovadas,
tomaram sol. Fomos de banho tomado, aprumados, importantes. De sapatos brilhando, os sapatos de
sair. E não os de andar em casa, como nossas mães diziam. Atolado de trabalho na vendinha do
começo da Rua Caiovás. Não amarrou a cara, mas disse que não ia. Aquilo nos valeu como um
desprendimento esparramado. Então, alguém poderia perder a oportunidade de ver Getúlio? Um cara
assim estava bem acima da maioria. Ainda nos encabulou:
— Eu vejo ele na moedinha.
Getúlio nas moedas menores. De dez, vinte e cinquenta centavos. E nas notas verdes de dez
cruzeiros.
Alguém dispensar Getúlio, uma renúncia. Troço de homem. Mas ele, firme. Porreta, tinha
peito. Boquejaríamos essa vantagem na vida de todo o Beco da Onça. Por uma semana.
70

Apesar de assinalar a força e a determinação com que o pai se recusou a ir


ver Getúlio Vargas, o narrador, ainda menino, acompanha a visita do presidente e
consegue entrevê-lo na multidão, graças à companhia de um tio.

As barraquinhas vendiam algodão-de-açúcar, pé-de-moleque, pirulito, bandeirinhas.


— Trabalhadores do Brasil!
A força nos tocou, assim nunca vista. E, depois, jamais repetida. Muitos anos me
encasquetaria a atração, figura, o não-sei-quê do homem que apareceu entre duas bandeiras verdes e
amarelas, de pé em carro aberto. Sorrindo e estirava os braços para o alto, os dois a um tempo, na
entrada do pavilhão, na Água Branca. Sei lá. Aquilo nos mexia nos pêlos do braço. Eu trepei de
cavalinho nos ombros do meu tio, vi Getúlio. Vi Gegê.
Foi papo de uma semana. Daí para frente, fosse o que fosse com ele, era assunto. Qualquer
passo de Gegê fazia a gente correr, agitava, virava boato, de comum espetaculoso. Engraçado. A
meninada sentia o poder de decisão nas mãos dele.
— A lei. Ora, a lei.

A visita de Getúlio Vargas a São Paulo mobilizou a comunidade do Beco da Onça.


Foram todos ver o presidente desfilar em carro aberto. Para o narrador a chance de ver
Getúlio foi como que um alumbramento. ―Vi Gegê‖, diz ele, como a enfatizar o teor de
expectativa e alegria infantis com que acompanhou o desfile.107 O narrador diz também que
a aparição de Getúlio e a atração que este exercia o intrigariam por ―muitos anos‖. Era um
―não-sei-quê‖, uma idolatria sem explicação clara. O sentimento geral, para a ―meninada‖

107
O apelido Gegê consagrou-se na composição ―Gê-Gê (seu Getúlio)‖, composta em 1931 por Lamartine
Babo e interpretada por Almirante. Boris Fausto cita a música e lembra que as canções populares e o rádio
serviram a Getúlio como veículos poderosos de exaltação dele próprio e do regime, por meio do incentivo à
cultura popular e da criação de órgãos de comunicação institucional, como o DOP (Departamento Oficial de
Propaganda), criado em 1931, o DPDC (Departamento de Propaganda e Difusão Cultural), criado em 1934,
que depois virou DNP (Departamento Nacional de Propaganda), e finalmente o DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda), este criado já no Estado Novo, em 1939, em substituição aos dois órgão anteriores.
FAUSTO, B. op.cit., pp. 115-116. Outra composição, feita por Nássara e Cristovão Alencar para o Carnaval de
1937, assegurava a volta de Getúlio ao poder, antecipando, de certa forma o que ocorreria no mesmo ano,
com o golpe do Estado Novo: ―O homem quem será?/ Será seu Manduca ou será seu Vavá?/ Entre esses dois
meu coração balança porque/ na hora H quem vai ficar é seu Gegê‖. Manduca era Armando Salles de Oliveira
e seu Vavá era José Américo de Almeida (segundo LEVINE) ou Oswaldo Aranha (segundo CARVALHO). Ver
LEVINE, R. Pai dos pobres?, op.cit., e CARVALHO, H. ―A MPB canta e conta a nossa história‖, In: Revista
Problemas Brasileiros, nº 385, jan/fev 2008. Disponível em:
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=297&Artigo_ID=4668&IDCategoria=5
310&reftype=1. Último acesso em 22 jun. 2012.
71

era de que Getúlio tinha o ―poder de decisão‖. Por isso, o presidente podia relativizar o
poder da lei, encarnada, afinal, nele próprio, como indica a expressão ―Ora, a lei‖.108
A perspectiva é a do menino fascinado por Getúlio, e da ―meninada‖, que via em
Getúlio uma espécie de figura paterna onipotente, com poder de decisão sem limites. O
paralelo com o pai do próprio narrador persiste, apesar de não ser explícito. Assim como
durante muitos anos a figura de Getúlio o ―encasquetaria‖, a atitude do pai, a renúncia de
ver Getúlio em carne e osso, é para o narrador-menino uma atitude também intrigante e
dotada de força, ―troço de homem‖. Sobre o pai, diz o narrador: ―Um cara assim estava
bem acima da maioria‖. E o paralelo se estreita na repercussão dos dois acontecimentos: a
visita de Getúlio ―foi papo de uma semana‖, assim como a renúncia do pai em ver Getúlio
seria assunto pelo mesmo período de tempo: ―Boquejaríamos essa vantagem na vida de
todo o Beco da Onça. Por uma semana‖. A visita fascinante de Getúlio e a recusa do pai
ganham repercussão de mesma duração e impacto semelhante, equiparando-se na vida do
Beco e na memória do narrador.109
Esse embate entre Getúlio e o pai do narrador persistirá na memória do narrador e
na enunciação. Um pouco mais adiante, como se sabe, Getúlio voltaria à presidência, agora
eleito pelo povo. A mãe se dispõe a tirar o título de eleitor para votar — presume-se que em
Getúlio. Já o pai, ―continuava estrangeiro não naturalizado‖.110 E a reação deste é irascível:

108
Sobre o poder de Getúlio, na iminência do Estado Novo, diz Robert Levine: ―As eleições presidenciais
foram canceladas sem a menor cerimônia, e a Constituição de 1934 foi revogada em favor de um novo
documento, escrito pelo jurista ultraconservador Francisco Campos. Essa constituição conferia virtualmente
todo o poder ao chefe de Estado. Baseava-se na Carta del Lavoro italiana e na carta fascista polonesa de 1935,
na qual se proclamava que ‗a única e exclusiva autoridade do Estado se concentra na pessoa do presidente da
República‘.‖. LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?. op.cit. p. 82.
109
Clara Ávila Ornellas também chamou a atenção para a comparação que o texto enseja entre Getúlio Vargas
e o pai do narrador. O primeiro seria um ―redentor‖ e o segundo um renunciador, resistente a essa visão
idealizada, nostálgica e mitificada de Getúlio como o ―pai dos pobres‖. ORNELLAS, C. O conto na obra de
João Antônio: uma poética da exclusão. S. Paulo: FFLCH-USP, 2008, p. 105.
110
O pai de João Antônio, João Antônio Ferreira, era português de Trás-os-Montes. Passou a infância na
França, para onde o pai dele, José Antônio, carpinteiro, partiu em busca de melhores condições de trabalho
(depois de uma breve estada em São Paulo, em 1913). João Antônio Ferreira passou a infância em Reims
(onde se alfabetizou, em francês) durante a Primeira Guerra Mundial e voltou com a família a Portugal depois
da Guerra. Finalmente desembarcou novamente no Brasil, em 1923. A família era composta de José Antônio,
Felicidade e cinco filhos. Moraram inicialmente em Higienópolis, onde abriram uma pensão. Felicidade, a
avó de João Antônio, tentou convencer o marido a irem morar no Brás. Mas José Antônio Ferreira decidiu ir
para Presidente Altino, Osasco, onde havia uma incipiente industrialização e onde parentes portugueses,
vindos a São Paulo naquela mesma primeira viagem de 1913, já haviam se instalado. Ver LACERDA, R. João
Antônio: uma biografia literária. op.cit., cap. 1.
72

―— Lenga-lenga. Se estão elegendo o homem de novo, por que o derrubaram? Cambada de


zebedeus!‖.
Desconfiança e reserva, impropério, raiva e, não menos importante, distanciamento
em relação a ―eles‖, este ―eles‖ indeterminado, ―eles‖ que estão elegendo o homem de
novo. Este ―eles‖, que a fala do pai não revela quem sejam, são os eleitores de Getúlio, mas
também são essa ―cambada de zebedeus‖. São, por extensão e proximidade, os moradores
do Beco, já que a posição de orgulho e apartamento, sustentada mais uma vez pelo pai do
narrador, se dá em oposição aos vizinhos, aqueles mesmos que foram saudar Getúlio na
visita do presidente a São Paulo, em desfile de carro aberto, anos antes. Mas também em
relação aos eleitores de modo geral, em relação a todos aqueles que apoiaram, cultuaram
Getúlio Vargas e votaram nele.
Para o narrador, até aqui, a figura adorada do presidente que se confunde com a lei
só encontra resistência e reserva na figura do pai. A perspectiva interna e infantil está
marcada por ambos, o presidente e o pai, e mais que isso, marcada pela força deste pai que
nega o presidente, que o recusa e o questiona.
Nesta altura do livro, faz-se um corte de tempo. A elipse é grande e indeterminada, e
o trecho a seguir vem separado do resto do texto por asteriscos no começo e no final:
―Corre. Nada para correr como o tempo. A gente muda, estuda ou não. Casa, não casa.
Descasa. Vira funcionário público ou andejo. Pega profissões errantes, malbarata. Um
sobe-e-desce dos capetas e, muita vez, a vida não faz graça. Eu andei‖.
Com o corte de tempo, as recordações passam a se concentrar cada vez mais em
Getúlio e nas mudanças pelas quais passou o Beco.
Ocorre também uma mudança de tom em relação a Getúlio, digna de nota. Pela
primeira vez, o narrador chamará Getúlio de ―ditador‖. Ele relembra um encontro com ―um
sujeito no Rio‖, em 1960, que era barbeiro de Getúlio e foi, graças a um decreto do
presidente, nomeado fiscal da Fazenda. Diz o ex-barbeiro, agora alto funcionário público,
que certo dia Getúlio perguntou se ele não tinha um amigo ou parente em dificuldade. E
assim Getúlio nomeou mais um fiscal de Renda, sem nem conhecer a pessoa indicada pelo
barbeiro. A passagem faz uma crítica enfática, ainda que indireta, do aspecto ―cordial‖ com
73

que Getúlio governava, com nomeações arbitrárias, favorecendo poucos eleitos, de acordo
com seu capricho.111
A narrativa segue, voltando atrás. Em 1954, com o suicídio de Getúlio, as mudanças
políticas e sociais trazem dissabor aos moradores pobres do lugar:

Havia um perereco. A dúvida agulhava. Envolveu num lance Gregório Fortunato, Samuel
Wainer, Lacerda, Zenóbio da Costa, Jango, Oswaldo Aranha, Alzira Vargas, Amaral Peixoto. Tudo
vertical, rápido em agosto de 54 se atropelando.
Mas aí, o povo do Beco da Onça, do Navio Negreiro, está sumido, jogado. A prefeitura
aterrou o córrego Aimberê. Uma construtora demoliu mais da metade dos casarões velhos e
encardidos. Prédio de apartamento de bacanas ia surgir ali.
Para o povo miúdo, mais que pesar, uma dor. Mágoa. A morte teve um gosto errado, uma
descaída do respeito. Desnorteante, cínico, quase imoral e mais que tragédia. Imaginem. Era como se
de repente, no silencioso e gótico de uma igreja velhusca, desfilasse uma mulher pelada: morto, o
velhinho.
Uma porrada. Ninguém acredita em suicídio. Nem na carta que ele deixou. Para o povo,
conversa dissimulada, manipulada, um engodo. Mais um. Leu-se a carta, ouviu-se a ladainha pelo
rádio e se chorou. Uma despedida doeu.
Mas cacete, papagaio, fumo, potoca, bandalha, nhém-nhém-nhém, lambões de caçarola,
mondrongos, andravões, bolas, pinóia, lero, quem corre cansa, pé-ré-pé-pé, prosa fiada, vento
encanado, deboche, lorota, visagem, quizumba, pombas. Caiporentos.
Tudo bem. E nada presta.
Entrava por um ouvido e saía pelo outro. Desdém. Parecia o mesmo do velhinho diante da
lei escrita e promulgada. A carta tencionava uma força de lei.
— A lei? Ora, a lei.

A morte de Getúlio desnorteou o povo, que a sentiu como uma ―descaída do


respeito‖. Os pobres, quer dizer o narrador, ficaram órfãos. A reação é, mais uma vez,
confusa. Aliás, desde antes do suicídio. O narrador reafirma a percepção desorganizada dos
fatos históricos, ao usar as palavras ―perereco‖, ―dúvida‖, ―lance‖ e arrolar os personagens
envolvidos na morte de Getúlio, citados sem hierarquia ou contextualização.

111
Clara A. Ornellas vê nessa passagem uma carnavalização de Vargas, nos termos de Bakhtin, com a
inversão de tom em relação a Getúlio encarnada em seu deslocamento do gabinete de presidente para a
cadeira de barbeiro. ORNELLAS, C. O conto na obra de João Antônio: uma poética da exclusão.op.cit., p. 105.
74

A imagem a que o narrador recorre para traduzir o sentimento de pesar e dor, de


mágoa, de imoralidade, indignação e tragédia é enigmática, ao mesmo tempo sexual e
solene: a morte de Getúlio é como uma mulher nua entrando em uma velha igreja gótica. O
que pensar desta imagem? Nem mesmo o narrador parece saber. Nem mesmo o narrador
parece conseguir articular o pensamento que se segue à morte de Getúlio. O parágrafo
seguinte é uma enumeração de palavras estranhas, expressões de sentido obscuro, que
teriam interesse por si só, mas ganham ainda mais importância já que entre elas está
justamente a expressão que compõe o título do livro: lambões de caçarola.112
Os lambões de caçarola são os moradores pobres do Beco da Onça. Eles sentem que
a carta-testamento de Getúlio foi endereçada a eles, com força de lei, a mesma lei que era
encarnada por Getúlio e da qual ele estava acima, lei exercida com ―desdém‖, como diz o
texto, pois que ele, o ditador, o pai dos pobres, era a própria lei — e podia, assim,
relativizá-la, como indicam as frases ―A lei. Ora, a lei‖, recorrentes ao longo do relato.
A morte do presidente, assim, é vista neste texto aos olhos dos lambões, primeiro
com espanto, depois com dor, e finalmente com a percepção de um misto de azar e mau
agouro (―prosa fiada, vento encanado, deboche, lorota, visagem, quizumba, pombas‖). Os
lambões são ―caiporentos‖, sujeitos de má sorte.
Vale a pena avançar, acompanhando os desdobramentos do texto, agora próximo do
final. O trecho anterior tem continuidade assim:

Deu com uma mão, tirou com as duas. Sorrindo muito e gauchamente: um carioca, no
fundo. Mordia e assoprava. Molhava a ponta do indicador na boca, entendia. Sabia para onde ia o
vento. Manipulou os trabalhadores e namorou o fascismo nos quinze anos de ditador. As cadeias
cheias. E os aviões davam sumiços em pessoas, descarregavam prisioneiros políticos atirando em
alto mar, lá fora. Um manobrista, não passando disso — vamos deixar como está para ver como é
que fica. Encabrestava jeitosamente e trazia os cavalos na corda curta. E, na volta à presidência,
sentiu que o mar de lama era ele mesmo, suas intrigas. Tratou de jogar a culpa e a responsabilidade

112
O dicionário Houaiss define ―lambão‖ como: (1) guloso, (2) aquele que se lambuza quando come, (3)
desajeitado, palerma, (4) fig.: que ou quem faz um serviço mal feito, (5) bruto, grosseiro, estúpido. As duas
primeiras acepções remetem ao campo semântico da comida e da pobreza (lembrando o dito popular ―quem
nunca comeu melado quando come se lambuza‖). Clara Ávila Ornellas entende que ―lambões de caçarola‖
são ―pessoas que consomem os restos de alimentos deixados nas panelas‖. A autora associa ―lambões‖ a
―trabalhadores‖, em paralelismo sugerido no título do livro. Para Ornellas, os lambões seriam os trabalhadores
marginalizados, que ―sustentam a dinâmica social de crescimento econômico‖, mas a quem são ―designados
apenas os restos‖. ORNELLAS, R. O conto na obra de João Antônio: uma poética da exclusão. op.cit. p. 148.
75

nos outros. Complicou os chegados, filhos, filhas. Virou herói. Marcou o momento de sua morte. A
medo e perigo empolou-se num nacionalismo final. Descarte. Pronto: mártir da independência
econômica. Nossos exploradores de fora eram auxiliados pelos crápulas da terra. No fim, não podia
deixar de ser, useiro e vezeiro, está só. E bem.
Conversa. Nem comovia, nem convencia o Beco da Onça, o Navio Negreiro. Suicídio?
Fossem lamber sabão. Ou como naqueles tempos:

“Não faça hora comigo


Que eu não sou relógio
Da Praça da Sé.”

O narrador, depois de reconstituir todo um contexto social de época, relembrando


seu tempo de menino no Beco da Onça, lembrando de Getúlio em tom de nostalgia e certo
desenho mítico, afinal encontra um tom mais assertivo para se referir ao ex-presidente. A
passagem da visão dos lambões para o ponto de vista do narrador é abrupta e chama a
atenção. A perspectiva agora não é mais de dentro do Beco e já não confunde
temporalidades. A perspectiva já é a do distanciamento histórico, num momento em que o
mito e a fascinação foram substituídos por boa dose de consciência crítica e opinião.
A morte de Getúlio Vargas precipita essa narrativa memorialística para um
momento menos mítico e fascinado, mais desencantado e objetivante. O narrador, pela
primeira vez, é assertivo e crítico em relação a Vargas. E depois de endurecer o discurso, o
narrador estende essa avaliação mais dura também à comunidade do Beco da Onça: ―Nem
comovia, nem convencia o Beco da Onça, o Navio Negreiro. Suicídio? Fossem lamber
sabão‖. A versão do suicídio de Getúlio Vargas não convence os moradores do Beco.
Assim, o texto parece se encaminhar para um julgamento do lugar histórico e da
personalidade política de Getúlio Vargas.
Não é, porém, o que acontece logo a seguir. Depois desse trecho bastante
contundente acerca do posicionamento ambíguo de Getúlio Vargas, o narrador volta a se
perguntar sobre a imagem, a figura de Getúlio, como se o enigma persistisse.
O tempo continua a correr e a narrativa a se atualizar. ―Até as beiradas de 70‖, diz o
texto, ―seu nome e seu retrato correndo franco‖. E um pouco adiante: ―Onde a chave? A
pegada do talento, a matreirice de Getúlio, dos Getúlios? Afinal, nos anos depois da sua
76

morte, gaúchos da fronteira ocuparam a presidência. Alquimia? Onde o borogodó, a


chama? E a remandiola?‖.
A chave para entender Getúlio, segundo o narrador, estaria em compreender um
dado de personalidade típico do sul: ―O povo do Beco da Onça nunca teve dinheiro para ir
ao Rio Grande. Tivesse, fosse, atentaria para o ponto. No sul se desenvolve cedo a
marcação do tempo, o entrar e o sair, a hora certa de falar. O cabimento, direitinhamente.‖
Trata-se, portanto, de decifrar nem tanto o lugar histórico ou mítico de Getúlio Vargas, mas
o dado de personalidade que fazia dele uma figura dotada de tamanha atratividade, tanto
carisma (―chama‖) e até malandragem (―matreirice‖, ―borogodó‖). E a ―remandiola‖113,
pergunta-se o narrador, como que se questionando: Como entender esse acidente súbito,
inesperado, a mudança de ―vento‖ que significou a morte de Getúlio Vargas?
Para o narrador, afinal, é algo da esfera do comportamento e da personalidade de
Getúlio: ―Há o chimarrão tomado no galpão. A cuia corre a roda, de boca em boca. A
gurizada aprende cedo que há pouco tempo para falar. Muito tempo para ouvir e tempo
certo, medido, para cada coisa‖.
O carisma e a autoridade de Getúlio advêm, segundo a hipótese do narrador, do
costume gaúcho da roda de chimarrão, da conversa respeitosa, entremeada dos goles de
mate, tomados na cuia que passa de boca em boca. É assim, segundo ele, que ―a gurizada
aprende cedo que há pouco tempo para falar‖. É, portanto, um aprendizado de saber a hora
certa de falar e a hora certa de ouvir. Para as crianças, mais ouvir do que falar. Essa
investigação do fascínio pela personalidade de Getúlio Vargas termina, assim, não na
análise do legado político do ex-presidente, mas no exame de sua personalidade, de sua
maneira de falar no momento certo.
O texto não acaba aqui, e o desfecho, ainda que de certa forma desconcertante, é
coerente com o andamento do relato.
Depois de ressaltar a importância da roda de chimarrão e do respeito pela conversa e
pela fala dos mais velhos para o aprendizado da ―gurizada‖, quem retorna ao final da
narrativa? O pai do narrador.

113
O dicionário Houaiss define remandiola como ―vento fraco e incerto‖, mas registra também um
regionalismo (Pernambuco, Alagoas): acidente súbito, inesperado.
77

Uns quarenta anos. Nas rodas, esquinas e botequins, nas fábricas, na andança, na rua, meu
pai ouviu discussões sobre Getúlio. Aturou sempre, quieto. Se lhe pediam opinião, cortava ali:
— Gostos e bofetadas são diferentes.

****

Até hoje.

Como se vê, a questão passa pela relação entre pai e filho. O fato de o narrador
atribuir a Getúlio a capacidade de falar na hora certa, graças ao costume sulista de respeito
ao tempo do outro e ao aprendizado de conduta ―direitinha‖, revela que sua interpretação
relaciona-se ao comportamento do próprio pai, que também fala pouco e escolhe a hora
certa para falar. Apesar de o narrador não indicar o nome deste pai, tampouco o próprio
nome, o paralelo com o pai do próprio autor é inevitável. Como indica Rodrigo Lacerda,
João Antônio Ferreira, pai, tinha um ―espírito proverbial‖.114
A oposição entre Getúlio e o pai se mantém, e agora se intensifica no campo da fala,
da conversa, do discurso. Por um lado, o presidente, na visão do narrador, fascina e se
destaca pela habilidade em se pronunciar na hora certa, pelo discurso (— Trabalhadores do
Brasil!) que ecoa ao longo das páginas e dos anos, pela capacidade de se adaptar aos
acontecimentos e às mudanças (sabia para onde ia o vento), pela fala e pelos costumes
amalandrados (mordia e assoprava; sorria gauchamente, no fundo era um carioca; tinha a
lei a seu bel prazer: ―A lei? Ora, a lei‖), interpretação que vai culminar na hipótese de que
isso se deve à habilidade gaúcha de saber o tempo certo para cada coisa. Ao final, apesar
das palavras duras e sentenciosas do narrador acerca de Getúlio, a ênfase recai no seu
comportamento ambíguo e maleável: um malandro.
O pai, por outro lado, apesar de também saber a hora de se pronunciar, é visto pelo
narrador — sempre em oposição ao presidente — como mais intransigente, ainda que
também enigmático. Sua última frase, acerca de Getúlio, é um desafio ao entendimento:
―— Gostos e bofetadas são diferentes‖. O que o pai queria dizer com isso? Que as
contradições de Getúlio eram inconciliáveis? Que as opiniões favoráveis e desfavoráveis a
respeito de Getúlio eram incompatíveis?

114
LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária, op.cit., p. 63.
78

Esta última sentença tampouco ilumina a resistência anterior do pai à imagem e ao


culto de Getúlio, resistência que, como já vimos, era ferrenha. A severidade do pai, que
resiste ao tempo (―quarenta anos‖) e se mantém em qualquer ambiente (―rodas, esquinas e
botequins, nas fábricas, na andança, na rua‖), contrasta e se opõe à ambivalência e à
―matreirice‖ do presidente.
Até hoje, diz o narrador, depois da marcação gráfica dos asteriscos. Após o exame
de personalidades e capacidade de fala do presidente e do pai, o final do texto aponta para
uma questão irresolvida, remetendo para o presente. Este ―até hoje‖ que fecha o relato,
seguido de uma grande imagem de Getúlio fumando charuto, indica que o enigma não se
desfez: não se compreende o presidente, e não mudou a opinião do pai a respeito do
presidente.
Ainda que aponte para certa interpretação — bastante idiossincrática, diga-se — do
presidente, o narrador não é conclusivo sobre a totalidade do fenômeno Getúlio Vargas.
Não elabora, ao contrário do que diz o texto de orelha assinado pelos editores, uma ―síntese
do fenômeno‖, a não ser que se aceite a ideia da retidão sulista e da sabedoria da roda de
chimarrão como gênese e sustentáculo da personalidade e do culto à personalidade de
Getúlio. A não ser que se entenda a combinação de malandro e mártir de Getúlio como um
enigma persistente, e que esse enigma fosse ele mesmo a síntese do fenômeno.
Quanto ao pai, tampouco o narrador conclui algo objetivamente. O que ocorre, no
desfecho, é que o leitor termina seguro de que a personalidade paterna contrasta com a de
Getúlio, uma iluminando a outra, tanto por afinidade (a fala, o discurso, a autoridade) como
por diferença (a matreirice e a volubilidade de um, a severidade e a renúncia de outro). O
―até hoje‖ que conclui o texto direciona a atenção do leitor para o presente e encerra a
narrativa abrindo-a para um momento contemporâneo que é o do autor-narrador-
personagem à época da publicação do livro, mas também para um momento presente
indeterminado, persistente, que diz respeito ao presidente, ao pai, ao narrador e ao autor.
Lambões se fecha, encerrando em si este enigma indecifrado: quem é esse
presidente e quem é esse pai, aos olhos do narrador? Não há como concluir, e, de fato, a
articulação entre Getúlio Vargas e o pai deste lambão de caçarola resulta em uma espécie
de impasse. Getúlio Vargas, o pai malandro dos pobres, e o pai pobre e severo deste
79

menino pobre digladiam-se na memória do narrador e, ao final, ―vence‖ o pai do narrador


(por circunstância histórica: a morte de Getúlio).
Literariamente, porém, o final reafirma o lugar do filho retraído em relação ao pai e
silmultaneamente o lugar do pai renunciador e sentencioso, que persiste, na memória do
filho, como um espírito intransigente, dono de autoridade capaz de ombrear com a figura do
presidente. Aquele ―estamos todos empatados‖, enunciado no começo do livro pelo próprio
João Antônio, parece se referir, afinal, sobretudo a ele e o pai.
―Até agora‖, dizia a introdução do autor, e o fim do texto reafirma a persistência do
impasse: ―Até hoje‖.
Valeria a pena avançar na análise da relação entre pai e filho, particularizando-a
para a relação entre João Antônio Ferreira e João Antônio Ferreira Filho. Lembre-se, a esse
respeito, a dedicatória do livro: ―Para João Antônio Ferreira – meu pai – ainda firme na
luta‖. E o texto introdutório do próprio autor, que também remete ao pai e se assemelha ao
final do relato.
Como nosso objetivo aqui, porém, inclui a leitura de outros dois relatos
autobiográficos do autor, convém seguir adiante, mesmo porque os dois textos posteriores
ajudam a iluminar este primeiro conto autobiográfico de João Antônio, anteriormente
chamado João Antônio Ferreira Filho.

Nome de boêmio – Paulo Melado

―Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖ é um conto incluído em Dedo duro


(publicado em 1982). Ao contrário de Lambões de caçarola, o livro é mais claro em sua
definição de gênero. A ficha catalográfica traz a informação: contos brasileiros. Na
primeira edição do livro, há ilustrações na capa, texto de orelha assinada por Antonio
Candido e, na quarta capa, uma foto do próprio autor, com trecho da ―Apresentação‖ de
Jorge Amado que consta do miolo.
Além do texto de orelha de Antonio Candido, antes dos contos propriamente ditos,
encontramos a ―Apresentação‖ de Jorge Amado e ―Duas palavras‖, de Paulo Rónai. O
começo deste último texto problematiza a classificação dos ―escritos‖ de João Antônio:
80

―Pois nem sei se são contos, apesar de o autor batizá-los assim, já que estes escritos,
refratários a qualquer classificação, não admitem rótulos (...)‖.115
Ao consultar o sumário, vemos que o volume se constitui de sete textos,116 e uma
subdivisão, que organiza o livro em duas partes. Na primeira parte do livro, que não tem
nome, há quatro contos. Na segunda, denominada ―Uma memória imodesta no coração da
pouca vergonha‖, são três textos: ―PMCMS‖, que nos interessa mais de perto, ―Dedo-
duro‖, que dá nome ao livro e ―Bruaca‖117. Nesta seção de memórias, o primeiro conto é,
como já dissemos, um relato autobiográfico sobre a formação literária do autor. ―Bruaca‖ é
um conto sobre um sinuqueiro e vagabundo, apelidado Bruaca, que vive no Beco da Onça,
o mesmo beco onde o escritor passou a infância e que retratou em Lambões. O conto do
meio, justamente o que dá nome ao livro, parece um pouco deslocado nesta seção
memorialística, pois o conteúdo autobiográfico não está claro. Trata-se da história de
Carioca ou Zé Peteleco ou simplesmente Peteleco, alcagueta profissional, personagem que
em nada lembra o autor; e neste conto tampouco outros personagens, lugares ou ações
parecem se referir à vida ou à memória de João Antônio, a não ser que se considere a Boca
do Lixo em São Paulo, onde se passa parte da história, como a paisagem por excelência da
ficção e da autobigrafia do autor, o que é apenas meia-verdade sobre os lugares de
predileção da vida e da ficção de João Antônio. Teria João Antônio se inspirado em suas
memórias da Boca do Lixo, em alguém que ali conheceu, para construir o personagem
Peteleco? É possível, mas a inserção deste conto na seção memorialística causa certo
estranhamento ao leitor que espera um conto de maior proximidade com a vida do próprio
autor.

115
RÓNAI, P. ―Duas palavras‖. In: ANTÔNIO, João. Dedo-duro. Rio de Janeiro: Record, 1982, p. 11.
116
O sumário da primeira edição parece mal realizado. Nele, inclui-se ―Duas palavras‖, texto introdutório de
Paulo Rónai com a mesma hierarquia com que se apresentam os textos do autor. A ―Apresentação‖ de Jorge
Amado, por sua vez, não aparece no sumário. O aspecto mal acabado do sumário reforça a falta de clareza
sobre se ―Uma memória imodesta no coração da pouca vergonha‖ se refere apenas a ―PMCMS‖ ou aos três
derradeiros textos do livro (este sumário da primeira edição do livro está reproduzido no Apêndice desta tese).
A edição mais recente do volume (Cosac e Naify, 2003) apresenta um sumário com bem marcada divisão do
livro em dois: os primeiros quatro contos, a divisão ―Uma memória imodesta no coração da pouca vergonha‖
e então os três contos finais, o que indica que estes últimos comporiam mesmo uma seção de textos
memorialísticos.
117
O conto ―Bruaca‖ já havia sido publicado na revista Extra – Realidade Brasileira. Malditos Escritores!,
no. 4, ano I, mar. de 1977. Este número trazia uma coletânea de contos de autores como Antônio Torres,
Marcos Rey, Wander Piroli, Chico Buarque e Pínio Marcos. O texto de João Antônio se intitulava
―Caramba‖. A mudança do nome do protagonista, de Caramba para Bruaca, é a principal mudança daquela
versão original para esta publicada em livro.
81

Com isso, aventa-se aqui a hipótese de que a rubrica ―Uma memória imodesta no
coração da pouca vergonha‖ se refira apenas ao conto ―PMCMS‖ e não seja, na verdade
uma subdivisão do livro em ―contos‖, de um lado (na primeira parte), e ―contos
autobiográficos‖, de outro (na segunda parte). A corroborar esta hipótese está o fato de que,
entre os contos da primeira parte, consta ―Dois Raimundos, um Lourival‖, texto que é um
passeio pelas ruas de Salvador (BA) de um narrador que em tudo lembra João Antônio,
guiado por três meninos que lhes mostram os pontos turísticos da capital baiana.118 Nas
duas partes, portanto, há contos e há contos autobiográficos.
Registrada essa possibilidade, de que o livro na verdade não seja dividido em dois,
mas que misture, sem critérios claros, ficção e ficção autobiográfica, avancemos sem
resolver a questão — questão, aliás, de resto, insolúvel, como indicam os textos de
apresentação do livro.
Paulo Rónai começa seu texto, como vimos, justamente, problematizando a
possibilidade de classificação dos textos. Jorge Amado ressalta a relação entre escrita e
vida, e chama a atenção para o ―parentesco‖ de João Antônio com Lima Barreto, a quem o
livro é dedicado: ―Sente-se, nas páginas de um e de outro, ranger de dentes, soluços
estrangulados, desencontros, bruscas emoções, e uma vida que jamais é fácil, uma vida
destorcida, ganha a socos por homens e mulheres que são os de hoje, desse mundo injusto e
desatinado (...)‖.119 Antonio Candido, na orelha do livro, trata os textos como ―contos‖ e
fala da arte do autor, de modo geral, como ―narrativa‖. Candido sublinha que o autor
―constrói os personagens como se arrancasse de si mesmo os sentimentos e os feitos‖. Ao
se referir ao conto aqui em questão, Candido destaca a ―contradança promíscua‖ que se
estabelece entre autor, leitor e personagem: ―Embutido pela imaginação e a escrita no seu
submundo, que é o mundo, João Antônio não enfeita, porque não se enfeita. E como não
posa de distanciado, consegue mostrar que autor, leitor e personagem podem formar uma
contradança promíscua mas humana, a exemplo da narrativa ‗Paulo Melado‘. O resultado é
que somos obrigados a despertar, passar a mão pelo fio da alma e duvidar das divisas cujo

118
Não iremos comentar aqui os demais contos deste livro. Registremos apenas que os textos ―Toni Roy
Show‖, ―Milagre Chué‖ e ―Excelentíssimo‖, todos na primeira parte do livro, são narrativas que podem ser
classificadas como contos, se novamente recorrermos à noção de Anatol Rosenfeld de que ―o personagem
instaura a ficção‖. Ver ROSENFELD, Anatol. ―Literatura e personagem‖. In: Antonio Candido et al. A
personagem de ficção. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1976.
119
AMADO, J. ―Apresentação‖, in Dedo-duro, Rio de Janeiro: Record, 1982, p 9.
82

marco é a convenção. Um banho incrível de humanidade, que inclui mergulhos até o fundo
(dentro e fora)‖.120
Assim como já ocorrera com Lambões, a leitura do conto ―PMCMS‖ é marcada
desde o início pela ambiguidade entre ficção e autobiografia; entre, por um lado, o trabalho
refinado de linguagem e de estrutura formal, que tende à ficção, e, por outro, lembranças e
reminiscências, reconstituídas por um autor-narrador adulto e maduro, com carreira literária
estabelecida e certo reconhecimento literário.
Ao dar início à leitura deste conto, ao aceitar o convite para essa ―contradança
promíscua‖, o leitor tem em mente que se trata de um conto autobiográfico, já que o conto
vem acompanhado da rubrica ―Uma memória imodesta no coração da pouca vergonha‖ (ou
está mesmo dentro desta ―seção‖ de memórias). Entretanto, apesar de ser um texto de
memórias, é um relato de autoria de um renomado escritor de ficção.
O começo do texto corrobora essa percepção de ambivalência entre memória e
trabalho ficcional. O conto é dividido em seções, separadas umas das outras por subtítulos
e, eventualmente, por asteriscos, as seções variando bastante de tamanho. Algumas partes
do texto são longas, outras se constituem de poucas frases, não mais de dois ou três
parágrafos, e há o caso de trechos feitos apenas de uma única frase (é o caso de ―Plantão‖:
―Mas você me sorri, mulher, e a vida vive‖).
Três epígrafes apontam para hábitos malandros, libertários e boêmios, traduzidos
em canções populares, e dão contornos ainda mais ―sestrosos‖ aos títulos do conto (―Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖) e da seção (―Uma memória imodesta no coração
da pouca vergonha‖). Uma das epígrafes é um trecho de ―Com que roupa?‖, de Noel Rosa:
―Eu nunca senti falta do trabalho, desde pirralho que eu embrulho o paspalhão, minha boa
sorte é o baralho, mas minha desgraça é o garrafão: dinheiro fácil não se poupa, mas agora
com que roupa?‖. A segunda epígrafe é: ―‗Solta a rédea a tua juventude, não a poupes.‘ —
das canções que Zorba, o grego, de Nikos Kazantzakis, cantava se acompanhando no
santuri‖. A terceira é um trecho de ―samba gravado em disco por Paulinho da Viola,
chamado médio na partitura impressa, com letra e música atribuídas a Zé Ketti, mas
lembrando, com firmeza, características e ares da majestade dos clássicos de Nélson

120
CANDIDO, A. ―Um banho incrível de humanidade‖, in Dedo-duro, Rio de Janeiro: Record, 1982. Orelha da
primeira edição. O texto não foi republicado na edição mais recente do livro. ANTÔNIO, J. Dedo-duro. Cosac e
Naify. São Paulo: 2003.
83

Cavaquinho‖. O samba, ―O meu pecado‖ (1967), fala dos muitos do eu-lírico da


composição: ―O meu pecado / Foi em querer / Na minha mocidade / Amar tantas mulheres /
O tempo já passou / Eu tenho saudades // O meu pecado / Foi passar noites / Em serestas /
E bebendo por aí / Pela cidade.‖
As epígrafes, assim, combinam impulsos contraditórios. Por um lado, há desejo e
recomendação de liberdade e libertinagem: viver a juventude de ―rédeas soltas‖, sem freios,
amar muitas mulheres, passar as noites em serestas, bebendo. Por outro lado, há o
sentimento do pecado, do erro e, como diz o samba de Noel, uma noção de que o destino
castiga o boêmio e o perdulário: ―minha desgraça é o garrafão‖ e ―dinheiro fácil não se
poupa‖. O desejo de liberdade e inconsequência, misturado a uma rígida contenção moral,
orienta o texto desde o começo, e será retomado ao final do conto, como veremos, para
definir, finalmente, a personalidade deste narrador que conta a sua formação, como homem,
boêmio e escritor.
As epígrafes também preparam o início do conto propriamente dito, introduzindo o
leitor no universo da boemia. O texto é precedido, assim, de um tom de elogio e incentivo
ao comportamento desregrado, ao mesmo tempo que se guarda certa desconfiança moral
(―pecado‖, ―desgraça‖) em relação à vida boêmia.
A primeira parte do conto se intitula ―Uma ave noturna‖, seguida de ―Não há volta‖:

UMA AVE NOTURNA


Vive-se.
Se se é uma chaga viva, nervo exposto, tontice. Ninguém vê. Meu trabalho tem sido, quando
presta, disfarçar isso.
Meu pecado é que as manhã foram feitas para a meditação. As tardes para a contemplação.
E, as noites, estas sim, para a concentração e a construção. Nelas, expludo.

NÃO HÁ VOLTA
Hoje, a marca é nos quarenta anos. E desta não tenho retorno.
Vou firme. Ou penso que. Declaro gozar perfeita saúde. Se me perguntam, até faço frase.
Nesta vida, a três coisas dou apreço — todas as manhã ao acordar e abrir os olhos, eu vejo que não
tenho automóvel, não uso óculos e ainda estou vivo. Agradeço e prezo.
Ainda uma quarta qualidade me acompanha. Não sou diretor de nada.
84

Melhor que isso, só pedindo a Deus uma velhice irresponsável.121

O começo do conto, como se vê, apresenta um narrador em primeira pessoa que, aí


pelos quarenta anos, define a si mesmo como uma ave noturna. A metáfora refere-se
possivelmente ao comportamento boêmio, mas carrega também aspectos de solidão e
sofrimento que as expressões ―chaga viva‖ e ―nervo exposto‖ ressaltam. O caráter solitário
deste sofrimento é indicado quase como um lamento: apesar da vida intensa, ―ninguém vê‖
esses sentimentos extremos. O narrador, por outro lado, diz que o seu ―trabalho‖ tem sido
disfarçar isso, essa condição de sensibilidade extremada. É à noite que ―expludo‖, diz o
narrador, indicando que contém seus sentimentos durante o dia, na ―meditação‖ das manhãs
e na ―contemplação‖ das tardes. O uso deliberadamente errôneo da flexão do verbo
explodir na primeira pessoa do indicativo122 denota que o manejo da linguagem é parte
desse sofrimento represado, que arrebenta em explosão, meio desajeitado, num verbo
equívoco, nas noites de boemia.
A segunda seção do texto abre-se em tom de balanço. Em seus quarenta anos, o
narrador diz que vai ―firme‖. Para em seguida, nuançar a certeza: ―Ou penso que‖. Sobre a
saúde, usa uma construção jocosa, que brinca com o tom protocolar das declarações
oficiais: ―Declaro gozar perfeita saúde‖. O tom de ironia prossegue, pois ele se refere ao
hábito de responder com graça aos questionamentos sobre esse assunto: ―até faço frase‖. As
coisas que preza denotam desprendimento e apontam para uma personalidade, de novo,
solitária e folgazã: além de estar vivo, ele preza não ter automóvel, não usar óculos, não ser
diretor de nada. A felicidade se afirma pela ―falta‖, pelo orgulho de não possuir, pela
ausência ou negação da propriedade (carro), do poder (não ser diretor) e da preocupação
com a saúde (não usar óculos).123

121
Dedo-duro, pp. 87-88.
122
A forma ―expludo‖ causa ruído, e realmente não é recomendada pela norma culta. Se o verbo explodir
fosse verbo regular, o correto seria ―explodo‖. Ocorre que explodir é defectivo, isto é, verbo sem flexão na
primeira pessoa do indicativo.
123
A saúde de João Antônio, ao contrário, não era das melhores, como se sabe. E as preocupações vinham de
longe. Em 1966, aos 29 anos, morando no Rio de Janeiro, João Antônio manda carta a Caio Porfírio Carneiro,
em que, depois de falar de algumas questões editoriais, revela que está proibido de beber por recomendação
médica: ―De resto, poucas novidades neste finzinho de inverno carioca. Pouca praia, alguns passeios, uns
joguinhos de leve por aí, uma que outra fêmea em disponibilidade. E nenhum álcool. O médico me proibiu
definitivamente, pois tenho uma complexa complicação figadal. Como vê, eu não passo de um triste
desgraçado‖. O grifo é do autor. ANTÔNIO, João. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas, p.
31. O autor também viria a sofrer de problemas de circulação nas pernas e enfrentaria uma crise nervosa, que
85

A frase que fecha a segunda parte do conto mantém o tom bem-humorado de elogio
da liberdade e da despreocupação. Pedir a Deus ―uma velhice irresponsável‖ é já um desejo
do presente, que se projeta para o futuro. Se o começo do trecho era pautado pelo balanço
de começo de meia idade, na faixa dos quarenta anos, o final é uma declaração de desejo
que diz mais sobre o presente deste narrador, aos quarenta anos, que do seu futuro.
Até aqui o leitor tende a identificar o narrador-personagem ao escritor João Antônio,
mas o texto ainda não deu indícios claros nesse sentido. O narrador, mais uma vez, como já
ocorrera em Lambões, não se apresenta — estritamente falando, não há indício, no início do
conto, de que o narrador seja equivalente a João Antônio. No entanto, a ênfase sobre o
escritor como personagem principal é bem maior que no livro comentado anteriormente. Se
em Lambões, os protagonistas eram Getúlio Vargas e o pai do narrador, em ―PMCMS‖ o
personagem central será, afinal, o próprio narrador. E, em certa medida, será também o
escritor João Antônio, já que se trata, como não era o caso em Lambões, de um texto sobre
a escrita e a vocação do próprio autor para a literatura.
Como se infere pela abertura do texto, e como se verá ao longo do conto, este texto
autobiográfico já não se volta tanto para o panorama de época ou a comunidade em que
cresceu o narrador. ―PMCMS‖ é já um conto sobre alguém estabelecido como escritor, que
de alguma forma procura explicação para o próprio talento e as próprias realizações, as
―glórias‖ e os ―fiascos‖, nas palavras do narrador. É um conto também sobre a formação
deste narrador-escritor, que nasceu pobre, filho de pai trabalhador e músico, de mãe sem
educação formal e ressabiada quanto ao mundo da boemia, e sobre como, finalmente, este
narrador na juventude foi capaz de se lançar em uma aventura nova, a da escrita,
contrariando as expectativas familiares.
O começo do texto aponta para um homem maduro, que se orgulha, com ares de
modéstia, de seu trabalho e faz graça, irônico, acerca do próprio modo de vida desregrado,
ainda que a identidade de boêmio venha contrabalançada por peso moral (―pecado‖),
castigo do destino (―desgraça‖), aura de mistério e algo de lúgubre (qual seria a ―ave
noturna‖ que intitula a primeira seção do livro: coruja, corvo, gavião, a ―águia
dissimulada‖, que será citada como metáfora da rixa no universo do choro?).

redundou, na década de 1970, na sua internação em um sanatório, onde, aliás, colheria material para a escrita
do seu livro sobre Lima Barreto. O cigarro e a bebida também seriam companheiros diários até o fim da vida.
86

Nos dois primeiros segmentos do texto, porém, o leitor não é informado a respeito
do que faz este narrador, qual é a sua identidade. É um narrador que afirma qualidades e
hábitos solitários e boêmios, desprendidos e bem-humorados, ainda que afirme, em sentido
oposto, sentir-se ―chaga viva‖, ―nervo exposto‖, sempre prestes a explodir. Sobre o seu
―trabalho‖, diz apenas que tem sido, ―quando presta‖, disfarçar essa ebulição, dor pessoal,
interior, que ―ninguém vê‖.
É apenas a partir da terceira parte, intitulada ―Choros e landuás‖, que o narrador irá
se identificar como escritor. Mais que isso, irá se identificar como escritor de certo sucesso
e reputação, que então se põe a contar reminiscências e acontecimentos de sua vida, desde a
infância, relacionados a sua vocação para as artes: a música, especialmente, e a escrita.
O leitor desavisado ainda não sabe exatamente aonde o texto vai dar, como sabemos
nós, leitores de segunda ou enésima leitura da obra do escritor e da crítica sobre ele. A
narrativa vai dar na revelação do título do conto como um pseudônimo de juventude do
escritor João Antônio. O leitor, que ainda não sabe onde isso tudo vai levar, graças à
habilidade de construção do texto em sonegar o sentido do título até o final, é desde já
apresentado a um narrador-personagem que, desfrutando de certa reputação, volta-se para o
passado para contar como chegou aonde chegou. Sabe-se apenas, portanto, que o texto
restabelece a memória de um caminho formativo, cujo horizonte é o presente: escritor
consagrado e desprendido, mas também sofrido, incompleto e incompreendido.
―Choros e landuás‖, a terceira parte do texto, que dá início à narrativa da formação
deste narrador-escritor, é bem maior que as duas primeiras seções do conto. Tem nove
páginas na primeira edição do livro. É onde o narrador irá contar sua iniciação na música,
especificamente nas artes do choro, levado pela mão do pai. O trecho é longo e de
construção pouco usual, pois além do assunto principal, o choro e a maneira com que ele,
narrador, desde pequeno tomou gosto por esse gênero musical, surgem outros assuntos, de
diferentes tempos e temáticas, ainda que sempre vinculados ao narrador e sua relação com a
artes de sua predileção, a música e a escrita.
A forma narrativa, neste trecho mais longo, é mais aparentada àquela de Lambões,
em que os temas e os acontecimentos vão sendo narrados de acordo com as reminiscências
e lembranças do narrador, um pouco à deriva, mais uma vez ao correr da pena, num
formato que lembra a crônica, a anotação, o comentário. O eixo das lembranças e
87

rememorações é a relação deste narrador-personagem com a literatura e com a música, mas


é curioso notar como essa narrativa evolui misturando recordações da família,
especialmente sua relação com o pai e a mãe, num procedimento que lembra mais a
misturação de Lambões que a força da ação narrativa dos ―Contos Gerais‖, de ―MPB‖ e
―PPT‖.
A seção ―Choros e landuás‖ começa com um exame de consciência, a que se segue
uma declaração de certa humildade e falta, em continuidade com as duas primeiras partes
do texto:

Se me pego e esmiúço, e me componho, estou desfalcado. Hoje me cantam as glórias,


nenhum escriba me flagra os fiascos. Vejo, no momento, muita coisa correr em meu nome e o mais é
floreio, exageração, uma generosidade algo oferecida. E distraída, também.
Meu cabedal é pobre, de livros e descendentes e, elas por elas, filho de um transmontano
emigrado e de uma mestiça do Estado do Rio, neta de negros, nasci sem maior lordeza. A família de
mestiços, fluminense naquele tempo, andava arada de fome; correu para São Paulo nas beiradas de
29, ano ruço, e tentou se arrumar no que restava de mercado de trabalho nos intestinos industriais de
Presidente Altino, Osasco e Jaguaré. Assim, nasci num tempo desmilinguido, inda mais no meio
operário. Muito retrato do dr. Getúlio Vargas nas paredes dos estabelecimentos pobres. Sofria-se que
não era vida.
A verdade é que ando cansado desse landuá bem-comportado, asséptico e sem peleja, sem
refrega, esporro, escorregão, enquanto a vida mesma é escrota, malhada, safada. Algumas coisas me
aborrecem em largo e profundo — o que é diferente e bem. O buraco é um bocado mais embaixo. E
o corpo humano tem nove buracos. Estou ainda enfarado do lado estético, que falar do feio com
forma bonita é mais farisaísmo. Para que forma feitinha, comportada e empetecada; para que um
ismo funcionando como penduricalho para falar de coisas caóticas e desconcertantes? Houvesse, de
vez, uma escrita envenenada, escrachada, arreganhada. Nem me venham dizer os sabidos que a vida,
aqui fora, fede de outro modo. Parece-me que onde se está abrindo com a frase: ―Respeitável
público!‖, talvez coubesse esta, assim: ―Detestável público!‖. Afinal, deliberadamente ou não, o
escriba é um servo da classe média. Então, não comece com floreio de brilhareco, pois estará
entrando exatamente no joguinho que essa classe espera dele.124

Como se nota pelos três parágrafos iniciais deste trecho do conto, os assuntos e a
temporalidade da narrativa, aqui, não se organizam em torno de uma ação narrativa, mas
sim de comentários e lembranças que vão acorrendo, um pouco a esmo, à consciência deste

124
Dedo-duro, p. 88-89.
88

narrador. Note-se a retomada da lembrança da família e de Getúlio Vargas, que já aparecera


com força em Lambões. Mas aqui, diferentemente do texto anterior, o ―eu‖ se afirma de
maneira mais enfática.
Sabemos que a errância é um traço forte da escrita de João Antônio enquanto tema,
e nos textos ficcionais contamina também o procedimento narrativo, como veremos em
―Busca‖ e ―Aact‖. Os textos autobiográficos — Lambões, este ora em análise e ―Amr‖ —
intensificam o caráter errático da escrita de João Antônio, que passa a obedecer menos à
ação dos personagens, e mais à rememoração e ao comentário.
O trecho indica que o autor, de alguma maneira, estava em busca dessa forma mais
livre, com intenção de tornar a própria escrita ainda mais contundente e condizente com
aquilo que tinha a dizer ou comunicar. É o que se verifica no terceiro parágrafo do trecho
citado acima. Nele, o narrador irá fazer a defesa de uma escrita ―envenenada, escrachada,
arreganhada‖. Para falar de coisas ―caóticas‖ e ―desconcertantes‖, a forma teria de ser o
avesso de ―feitinha, comportada e empetecada‖.
Trata-se de um parágrafo enfático e irritado, que começa com tom de desabafo em
relação ao ―landuá bem-comportado‖. Não fica claro do que exatamente o narrador está
cansado. O tal landuá (que os dicionários definem como boato, inverdade, mentira,
falsidade), conclui-se, é o daqueles escritores que adotam uma forma bonita para falar do
que é feio e mal cheiroso, dos que adotam uma forma bem comportada para falar de uma
situação caótica e desconcertante. Entretanto, apesar da ênfase e das palavras fortes (a vida,
por exemplo, é ―escrota, malhada, safada‖), o narrador não é objetivo sobre o assunto de
que trata (acerca, por exemplo, daquilo que faz a vida escrota, malhada, safada). A ênfase
das palavras fortes é acompanhada por certa evasão: ―Algumas coisas me aborrecem em
largo e profundo — o que é diferente e bem‖.
O tom assertivo da crítica, que pede mais agressividade nesse estado de coisas
―asséptico‖ (sem disputas ou ataques abertos, sem ―peleja‖, ―refrega‖, ―esporro‖,
―escorregão‖), é acompanhado de generalização e subentendido ao se recorrer ao dito
popular, à frase feita: ―O buraco é um bocado mais embaixo‖. Ou seja, o desabafo é forte,
mas vem acompanhado de indeterminação, o que torna o discurso menos objetivo. Em
verdade, como não se especifica muito sobre o que se está falando, trata-se de reafirmar
aquilo que já sabemos ser característica forte da escrita do próprio João Antônio. Como não
89

se agregam elementos claros ou novos, o leitor entende a reclamação, o ―cansaço desse


landuá‖, ou como uma simples manifestação de insatisfação, geral e irrestrita, lançada
contra os beletristas (quem seriam?; o texto não diz), ou como uma reafirmação dos feitos
alcançados até então e dos princípios literários já manifestados.125
As glórias são, claro, os livros publicados e a recepção crítica favorável — como
sugerido, aliás, pelo início do trecho acima. Apesar do tom autocomplacente sobre o exame
de consciência minucioso que resulta em posição desfavorável (ele se julga ―desfalcado‖,
incompleto), o narrador afirma que, mesmo assim, lhe ―cantam as glórias‖ e ―nenhum
escriba‖ lhe ―flagra os fiascos‖.
O salto de assunto e de tom, no parágrafo seguinte, é substantivo. Depois de um
começo abrangente e metafísico, com reflexões sobre a vida, em geral, e sobre o sentido da
sua vida em particular, em tom de ironia e até galhofa, o narrador passa, no parágrafo
seguinte, a uma espécie de explanação objetiva de suas origens. De um início tergiversante,
passa-se a arrolar uma quantidade razoável de informações concretas: a qualificação e a
origem dos pais, a data de mudança da família materna do Rio para São Paulo, a motivação
econômica e outras coordenadas geográficas e sociais: a inserção nos bairros industriais, a
vida de classe operária, os locais de moradia nos bairros da periferia da capital paulista. O
narrador permanece reivindicando para si mesmo os signos da pobreza e da falta, em tom
de humildade. A frase que se inicia com ―Meu cabedal é pobre, de livros e descendentes‖
chama a atenção para a origem desfavorável, intelectualmente falando, por conta dos
―livros‖, mas também de material humano, já que o cabedal de descendentes também é
pobre. A pobreza de sua descendência seria alusão ao único filho, Daniel, nascido em
1967? Ou se refere à descendência gerada pelos pais dele próprio, pobres, como se dirá a
seguir, e também pobres de descendentes, já que além de João Antônio tiveram apenas mais
um filho, Virgínio?
Não é possível dizer. Mas, aqui, já se pode afirmar com mais firmeza que afinal o
personagem principal do texto é mesmo o escritor João Antônio. As informações são
coincidentes demais com a biografia do autor para que insistamos na hipótese de
dissociação entre escritor, narrador e personagem. São eles todos um só, como indica o

125
Sobre o projeto literário defendido pelo autor, ver o texto ―Corpo-a-corpo com a vida‖. In: Malhação do
Judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
90

segundo parágrafo do trecho acima, em que as informações de filiação apontam claramente


para o pai e a mãe do escritor. No entanto, vale ainda ressaltar mais uma vez — sem que
isso desfaça, porém, o pacto autobiográfico — que a identificação se dá e ganha contornos
nítidos no texto, mas é retardada, mediada, nuançada, misturada e desconversada por
procedimentos vários: a inserção do texto num livro de contos; a rubrica ―Uma memória
imodesta no coração da pouca vergonha‖, que aponta para ―memória‖, mas com
formulação colorida, bem-humorada, amalandrada; as várias epígrafes que antecedem o
começo do texto, o tom de balanço reflexivo sobre a vida, com que o texto se inicia,
precedendo ao testemunho de memória em si, as alternâncias de temporalidades diversas.
Com isso, o texto constrói uma situação interessante. Ao mesmo tempo que se inicia
com o tom de balanço e de autoexame, retorna para recompor a infância deste personagem
(que é o autor) num movimento duplo: quem sou hoje e como cheguei até aqui. O exame da
situação atual recai sobre a profissão, tratada sempre de maneira larga, abrangente: a
escrita. E a formação do escritor é retraçada até a infância, com grande peso conferido,
assim, ao ambiente familiar.
Em relação ao texto comentado anteriormente, ocorrem duas grandes mudanças: a
opção pela literatura não tinha a relevância que tem aqui, e a infância, se já era o momento
por excelência em que se vai recuperar a reminiscência — a recordação significativa —,
agora ganhará abordagem ainda mais pessoal, orientada para a descoberta da sensibilidade
artística e da inclinação literária, culminando, com a entrada na juventude, em um
rompimento: a superação da infância e da dependência do ambiente familiar, a dispensa da
―herança‖ paterna (a vocação para a música), a recusa aos valores sociais burgueses, tais
como então instituídos, tudo isso trocado pela boemia e pela escrita. E por uma escrita que
se deseja, como se afirma, ―envenenada, escrachada, arreganhada‖.
Depois das reflexões sobre o sentido da vida, sobre suas condições de saúde à altura
dos quarenta anos e sobre a escrita, e depois da breve introdução à história familiar, a
sequência do texto aprofunda a relação de João Antônio com o choro. O que parecia um
início de texto um tanto quanto descosido, caminhará para a confluência das linhas de força
do texto — a família, a vocação, as escolhas de vida — em torno desse gênero musical.
Será neste ritmo musical que o futuro escritor irá descobrir coisas importantes da
91

existência, condutas e relações que ele, agora aos quarenta anos, rememora e tenta, a seu
modo, ligar à opção que fez pela literatura.
Neste momento inicial do conto, a passagem dos temas literários para os musicais
vai se dar por dois caminhos: a lembrança do contato com o choro em família (por herança
paterna, de um lado, e por resistência da mãe, de outro) e a definição do choro como um
estilo musical ao mesmo tempo solitário e coletivo, acirrado e solidário, agressivo e
malandro, amoroso, ―sublime‖.
Mais importante que entender como o interesse pelo choro e a ―afinação da arte de
ouvir‖ choro se refletiram na obra de João Antônio nos parece ser, justamente, o universo
de relações que o então menino descobriu em torno desse gênero musical, a começar das
diferenças entre o pai e a mãe:

Que me lembre. Frequentei de cedo, rodas de chorões e seresteiros, levado pela mão de meu
pai. O velho sequer tinha escola primária completa. Mas tocava por música. Banjo, violão,
cavaquinho, bandolim e os instrumentos de corda que conheço. Todos.
Atarracado, mãos quadradas e grossas. Mas de onde haveria arrancado aquela sensibilidade?
A mãe, desafinada. O pai, musical de todo. Ainda assim se entendiam, no cumprimento
daqueles anos todos. Aquele homem tinha uma chave escondida com que fazia a seleção das coisas,
amorosamente. Onde diabo teria aprendido aquilo? Fino, acima daqueles ambientes (...)126

O talento musical e a sensibilidade do pai continuam a impressionar o escritor


adulto, como este trecho de memória tão bem registra. Aqui, não é o narrador que
rememora como se fosse menino (como se dá também em Lambões), mas o narrador que
foi menino e ainda retém a admiração e o espanto pela personalidade do pai. O contraste é
sublinhado pelo narrador: o pai era homem de pouco estudo e de constituição física
grosseira (―atarracado‖, ―mãos quadradas e grossas‖); no entanto, tinha sensibilidade para
música, era ―fino‖. Além do choro, da habilidade com os instrumentos de corda, o narrador
irá registrar, na sequência do trecho acima, os rudimentos que o pai tinha de latim (sabia
pronunciar corretamente o nome da rua Helvetia, com som de c) e o interesse do pai por
orquídeas, que cultivava, promovendo hibridações, e que ia buscar (―caçar parasitas‖) em
viagens à Serra do Mar.

126
Dedo-duro, p. 91.
92

Por outro lado, a mãe era ―desafinada‖, e como saberemos adiante, resistiu o quanto
pode em deixar o filho seguir carreira musical, escondendo dele o bandolim. O pai lhe
passou o instrumento, e o narrador diz que aos nove anos ―pinicava rápido, jeitoso, o
Apanhei-te, cavaquinho e a Marcha turca‖.127 Mas a mãe não lhe dava acesso ao
instrumento, impedindo assim que o menino João Antônio praticasse o que havia aprendido
com o pai. Para ela, dirá o narrador, ―o mundo dos chorões e dos cantores era a vida na
farra‖.128
É por isso que, a certa altura, o narrador vai definir sua vida como um ―nó‖,
traduzindo o impasse gerado pelo conflito entre as vontades do pai, que o levava às rodas
de choro e serestas, e da mãe, que lutava para impedir a ―extravagância antes do tempo‖:
―boêmia, nas bebidas, sapecando-me de mulheres, artes, maturutagens‖.
Mas, para além do aprendizado sobre as relações familiares, no choro o filho de
João Antônio Ferreira reconheceu um modo de vida, um aprendizado que, desde cedo,
desde muito menino, abriu sua percepção para as relações interpessoais e sociais. É no
choro que o escritor irá encontrar uma atividade e um ambiente em que reinam a amizade e
a inimizade, o companheirismo e a rivalidade, a sensibilidade poética e a agressividade:

Tira-se um choro batuta. É do chapéu, vivo, traquejado. Há derrubadas, afrontas e duelos,


companheirismos e rixas. Nem tudo é camaradagem. Cada homem de sopro, de percussão ou cordas,
carrega sua vaidade acesa e, mais que forte, escondida. Há paradas duras de solo e acompanhamento.
Violões. Um querendo comer o outro, inda mais quando se trata de contracanto e improvisação,
quando se quer correr por dentro e se entra num recacau lambido, intrincado de sutilezas, recursos
arrumados na hora, manhas, picardias.
Vou quieto, sondando. Corremos, eu e papai, as rodas de Presidente Altino, Osasco, Vila
Leopoldina, Lapa e nos trens caxinguentos e estropiados da Sorocabana viajamos a Jandira e Itapevi.
Ou tocamos para o outro lado da cidade, para a Luz e para Santana. Reviramos os bairros, os dois

127
―Apanhei-te cavaquinho‖ é composição de Ernesto Nazareth, e a ―Marcha turca‖ é a transcrição para
instrumentos de cordas do terceiro movimento (Rondó Alla Turca) da sonata para piano número 11 de Mozart
(K 331). A forte ligação do choro com a música clássica é notória. Cláudia Matos distingue o choro (mais
refinado, inserido socialmente e ligado à tradição da música erudita) do samba (de raiz pobre e discriminada):
―Este é de origem negra e proletária, enquanto o choro vem de matriz branca e das classes mais favorecidas:
na origem, era um modo particular de o músico popular executar a música importada que na segunda metade
do século XIX animava nossos bailes e salões elegantes. O samba se constrói, sobretudo no início de sua
história, sobre uma estrutura rítmica e melódica bastante simples, possibilitando a participação de todos os
presentes, pelo menos no bater das palmas. O choro, desde seu aparecimento, exige e exibe alta sofisticação
musical na execução‖. MATOS, C. Acertei no milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982, pp. 25-26.
128
Dedo-duro, p. 91.
93

nos damos as mãos nas travessias das ruas, andejos. Mas eu não pinico mais nas cordas, a palheta
apertada, firme, entre o polegar e o indicador.
Sonsa, tão sonsa. Águia dissimulada. Tensa como as cordas do cavaquinho. Coçando, a rixa
não vem a furo. Então, fica no choro um clima que constrange e faz que só resvala. Mas vai fundo e
fere. Levanta inimizades que picam e não se declaram. Caminha que caminha, a rixa. Arrasta um fio
de anos, dissimulada e roendo, quieta. Beleza de pinimba! Menino, eu não toco. Mas aprendo, na
espia, os modos da competição. E passo a torcer por um ou por outro estilo.
Quem ouve o choro ali tocado, não a vê. Mas é um quê engasgando, um lindeza fina e feia,
de íntima. Ela vai crescendo nessas disputas, engordando a cada encontro. Toma corpo. Fica no
embalo das passagens para as segundas partes, em crescendo. Tarde após tarde, noite após noite,
nunca que explode. A birra.
Só música se ouve. Mas já vou sabendo ouvir mais que ela. A briga está lá, enfarruscada e
enrugada, no seu escondido, tocaiada, espiando. Como um cuidado zeloso de ciúme recolhido.
Essa diferença entre os homens, é ela. Esse ciúme, é ele. Esse travo, é ele. É ela, é ele e é ele
e são eles que fazem a vida, o vício e a continuação das rodas do chorinho. Berçando.
Na derrubada do choro, só o bom fica de pé. Na derrubada do choro, de duas você passa a
desconfiar. Quando alguém lhe diz: ―deixa isso comigo‖. Quando alguém lhe diz: ―este cachorro não
morde‖. Você aprende. Quem corre, cansa. A derrubada do choro faz com que, só depois dos vinte e
cinco, trinta anos um nome de chorão comece a correr as rodas e se imponha considerado, temido,
conhecido de longe (...).129

A citação é longa, mas oportuna, pois vai dar no tema do nome, que comentaremos
a seguir e que voltará, como se sabe, ao final do conto e, antes disso, não no universo da
sinuca ou da literatura, mas no ambiente do trabalho, como também veremos adiante.
O primeiro parágrafo do trecho acima descreve a relação entre os chorões: há
camaradagem e há rixas entre eles. Sopros, percussão e cordas — um depende do outro
para executar bem uma composição. Mas há também solos, vaidade, paradas duras entre os
músicos. As expressões lembram aquelas usadas no universo da sinuca. Assim como em
―MPB‖ os parceiros de jogo pensam, a certa altura, em devorar uns aos outros, no choro
também a rivalidade é acirrada: ―um querendo comer o outro‖ ou quando se trata de ―comer
por dentro‖. No choro, como na sinuca, também é preciso manha, ―picardias‖. A iniciação
no choro, portanto, prepara este narrador para artes e relações futuras, despertando nele o
gosto pela amizade e pela parceria, mas também pela disputa e pela rivalidade. Aqui,

129
Dedo-duro, p. 92-94.
94

porém, a iniciação à vida adulta e às relações que vão para além do círculo familiar esbarra
nos limites impostos, justamente, pelo pai e pela mãe.
A companhia de pai e filho talvez indique, afinal, que o pai via com naturalidade a
presença do filho nas rodas de choro, ao contrário da mãe, que não o queria na companhia
dos músicos. O narrador diz que ―menino‖, ele não toca, apenas assiste aos adultos. Nesta
época, dirá ele um pouco mais adiante, o pai ganhou dos amigos de choro um amuleto, em
referência ao filho que sempre o acompanhava: ―uma miniatura de chupeta num laço de fita
vermelha que o velho pendura na cravelha do bandolim‖. A ligação do menino com o pai,
por ora, é absoluta: ―A chupeta ao bandolim como eu ligado a meu pai‖.130
É curioso que neste momento da infância deste narrador-escritor haja tantas
referências que reafirmem sua condição infantil, a começar do próprio nome do ritmo
musical, o choro, que remete não apenas às crianças mas, mais que isso, à comunicação dos
bebês. O trecho emite outros sinais de que o mundo dos chorões é revivido por este
narrador adulto que relembra a infância como um momento de iniciação e infantilidade: as
rivalidades são ―birras‖, os recursos são arrumados com ―manhas‖, a vida no choro segue
―berçando‖. A própria natureza artística do choro, gênero musical que, ao contrário do
samba, é essencialmente instrumental, isto é, não verbal, também insere toda essa passagem
da vida do narrador no terreno da infância, na condição do infante, daquele que não fala.
O choro, como descrito no texto, é uma arte de subentendidos, de insinuações, de
dissimulações, em que o não dito, o não verbal, comunica por meio da música. O trecho
citado traduz, de maneira bastante poética, todas essas ideias de oposição, rivalidade,
subentendidos, contradições (―beleza de pinimba‖, ―lindeza fina e feia‖) e acomodação (―a
continuação das rodas do chorinho‖), concentradas em uma construção verbal bastante
musical, que procura emular, provavelmente, o andamento do choro: ―Essa diferença entre
os homens, é ela. Esse ciúme, é ele. Esse travo, é ele. É ela, é ele e é ele e são eles que
fazem a vida, o vício e a continuação das rodas do chorinho. Berçando‖.
E apesar de tudo, apesar do segredos, dos não ditos, das dissimulações, o menino
aprende: ―Só música se ouve. Mas já vou sabendo ouvir mais que ela‖. Em companhia do
pai, o menino percorre a cidade, e descobre que entre os homens há rixas, disputas,
vaidades inconfessas, inimizades que não se declaram, ciúme recolhido. O caráter

130
Dedo-duro, p. 96.
95

inconfesso, não verbalizado, dissimulado e íntimo de como esse menino apreende e


compreende a música sublinha a sua condição de infante.
A influência do pai neste momento de descoberta não poderia ser mais incisiva. O
menino ainda é iniciante na capacidade de se expressar verbalmente, isto é, de se comunicar
por meio da linguagem verbal, já que ainda é criança, mas também por conta da influência
paterna. O pai o leva de um lado para outro — vão os dois, ―andejos‖, como diz o próprio
narrador. O menino vira uma espécie de mascote dos chorões, e o pai ganha uma chupeta
para adornar o seu instrumento.
É singela e tocante a homenagem dos amigos de choro ao pai do menino. Mas para
o pequeno chorão, a chupeta, além de ser um símbolo de carinho e proteção, representando
o elo com a figura paterna, é também índice de submissão e dependência ao pai. Uma cena,
descrita no curto trecho de uma página intitulado ―Afinação da arte de ouvir‖,131 que se
segue ao longo trecho ―Choros e landuás‖, indica que o envolvimento do menino com o
choro irá culminar não no pleno desenvolvimento de uma vocação musical manifesta, mas
na ardilosa e violenta interdição paterna.
Na seção anterior, a criança aprende música e aprende a entender os homens
ouvindo choro — e apenas ouvindo. Mas agora o menino descreve, além da ―afinação da
arte de ouvir‖, a vontade de tocar. Quando ele se arrisca a pegar num instrumento,
esquecido momentaneamente no sofá por um dos chorões, e esboça voltar a tocar as
composições que o pai lhe ensinou, é surpreendido pelo próprio pai. A reação do menino é
de medo, temeroso de que tenha feito algo errado:

Papai, chegando sem que eu o visse, me pilhou, fala curta:


— Ah, gosta de tocar.
Um frio nos joelhos de fora, que a calça curta não cobria. Pousei o bandolim, num arrepio.
Tinha na cravelha, balangando na fita de cetim, vermelha e brilhante, uma miniatura de chupeta,
lembrança dos parceiros. Um som que eu tirara, furtivo, ficou na sala. Houve um medo. E, diaba de

131
O título desta seção remete, obviamente, ao conto ―Afinação da arte de chutar tampinhas‖, de Malagueta,
Perus e Bacanaço, o que reforça, mais uma vez, a ambiguidade do pacto de leitura deste texto. Ele está entre
a autobiografia e a ficção, já que remete a um conto do autor, e esta remissão não vem acompanhada de
consequência narrativa. A alusão remete, assim, a outro texto do mesmo autor, mas a um texto de ficção, o
que faz o leitor pensar se, apesar de o narrador não se identificar, o conto não seria afinal meramente um texto
memorialístico sobre um ficcionista, isto é, essencialmente autobiográfico e, ao mesmo tempo,
profundamente relacionado à ficção, tornando o jogo da leitura (a ―contradança promíscua‖, a que se refere
Candido), ainda mais intrincado para o leitor.
96

primeira estrela da tarde que em nada me adiantou. Ele teria percebido que eu não treinara mais a
Marcha turca e o Apanhei-te, cavaquinho? Que, por último, eu nem relava no bandolim?
O pai fez uns olhos pretos, miúdos, certeiros.
— É mais difícil ouvir do que tocar.132

A última fala do pai retoma aquele espírito sentencioso e proverbial que já vimos
aparecer em Lambões. Aqui, é interessante notar a reação ambígua que a súbita aparição do
pai exerce no menino. Apesar de serem companheiros inseparáveis de roda de choro, o
menino fica com medo ao ser flagrado pelo pai com a mão no instrumento. Num primeiro
momento, o leitor tende a imaginar que o pai o proibiria de tocar o bandolim. Mas o temor
do menino, ainda que indeterminado (―houve um medo‖), parece ser mais o de que, afinal,
o pai descubra que ele não tem tocado. Mas o desfecho da cena é ainda mais
desconcertante. Do alto de sua autoridade e de sua condição de pai, ele dirá que mais difícil
que tocar é ouvir. A frase vem travestida de sabedoria, ensino, aconselhamento. Mas ela é,
na verdade, prescritiva, autoritária, e impõe uma fórmula de conduta, um certo receituário
de bom comportamento.
O pai, assim, reforça a condição de criança e de passividade do menino. O recado é
claro: você ainda precisa ouvir muito antes de tocar. Ou: não adianta tocar se você ainda
não sabe ouvir. Qualquer que seja a alternativa escolhida, a situação é de castração da
vontade e da vocação do menino. Tiraram o choro da criança ou a criança do choro. Ou
melhor, o pai, sentencioso e proverbial, o impediu de tocar, conservando ainda a
ambiguidade sobre o próprio comportamento, apresentando-se a um só tempo como
protetor e incentivador do filho, acolhedor e conselheiro, mas assertivo e inibidor.
Esta passagem é importante também na estrutura do texto. A cena fecha uma seção
do conto, que daqui em diante irá, de um lado, concentrar-se na descrição da personalidade
paterna e no progressivo afastamento do menino das rodas de choro. Assim conta o
narrador — sem muitos detalhes, porém — como desvencilhou-se da armadilha em que o
choro o prendia: escolheu a escrita. Ou, antes, foi escolhido por ela. ―Caí para as escritas‖ é
a formulação que traduz a escolha para a literatura, indicando que a escolha teve algo de
involuntário, de inércia, de acidental, de acaso, de algo independente da vontade do próprio
escritor.

132
Dedo-duro, p. 97.
97

Sobre a época do choro, que colocou o menino num impasse, e o temperamento


temeroso de João Antônio, diz Rodrigo Lacerda:

Essa resignação, essa capacidade precoce de abrir mão de um desejo tão forte, em nome da
paz doméstica, ao que tudo indica, nasceu de um temperamento temeroso, bastante sufocado pelas
autoridades de pai e mãe. O amor platônico que, passivamente, da platéia das rodas de choro,
manteve durante alguns anos com o cavaquinho, mostra seu poder de resistência silenciosa. Assim
como o pai, João Antônio, criança, era de poucas falas. ―Ninguém dava nada pelo João‖ – conta o
irmão Virgínio, – ―ele não falava, só ouvia. João Antônio sentava nos lugares e ficava quieto, sempre
foi assim.‖133

O impasse, ou como dirá o narrador, o ―nó‖ em que a vida dele se encontrava — a


indecisão entre desagradar a mãe ou o pai — irá se desfazer aos poucos, à medida que o
menino se torna rapaz e encontra na escrita um mundo que permite substituir o choro e
desfazer o nó.

Não toco no correr da semana. Nas tardes e noites de folga, sigo papai. Estou numa prensa,
entalado e bem. O pai me quer enlaçando o instrumento, a mãe me esconde o bandolim.
Boca presa, boca de mocó. Não entregarei mamãe. Que, se o pai descobre, haverá frege.
Ficará fulo, tiririca, um bicho, desandará.
Guardarei com jeito, até onde eu puder, na tranca e no enruste. Esconderei dos dois, não
desconfiarei. A ciumada da mãe e o ensino do velho não se trombariam. Mas a minha vida, aos nove
anos, assim é um nó.134

O nó é a dificuldade de se desenredar de pai e mãe. Agradando a um, desagradava a


outro. Aqui, na infância, o narrador não sabe como desfazer o nó. Mas o nó será desfeito: o
menino deixará o choro de lado, agradando à mãe, e mantendo em suspenso a relação com
o pai. Deixar o choro de lado (deixar de praticar as composições que ele aprendeu)
significa, a princípio, evitar a boemia (satisfazendo a mãe) e permanecer um mero ouvinte
de choro (agradando também ao pai, e adiando um embate com a autoridade paterna).
Ainda assim, posteriormente o fio da vida de João Antônio voltará a enroscar, pois sabemos
que a boemia (que a mãe queria evitar) e a opção pela literatura como alternativa ao ensino

133
LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária, op.cit., p. 70-71.
134
Dedo-duro, p. 92.
98

e à predileção do pai (que o queria músico ou comerciante) serão as opções de João


Antônio, restabelecendo um nó que o autor teria de desembaraçar outras vezes, pois essas
escolhas, como veremos, o farão superar e recair no conflito edípico, que envolve a mãe e o
pai, isto é, o amor pela mãe e a reverência e o ódio ao pai e o necessário redirecionamento
desses sentimentos para deixar a infância.
A escolha será pela literatura. Essa saída do impasse — esse desembaraçar do nó —
, ainda que desafiadora, porque imprevista, preserva entretanto certo grau de passividade,
como dissemos. ―Caí para as escritas‖ é a construção que indicará a substituição da vocação
da música para a literatura, como se a afirmação de uma escolha própria estivesse impedida
para este menino fascinado e oprimido pelas figuras parentais.135
A ―queda‖ para as escritas revela que aos olhos deste narrador adulto houve um
rebaixamento e um desvirtuamento de sua vocação. A escolha pela música (e ainda mais
por uma música refinada como o choro) seria a opção elevada e correta. A opção pela
literatura vista como uma queda sugere também o caráter pecaminoso desta escolha, uma
espécie de expulsão do paraíso, perda da inocência, que marca a passagem da infância para
a juventude, da ingenuidade para a boemia, do choro ao samba, da assistência (da época do
choro) à ação (a carreira literária e seus feitos, suas ―glórias‖). Assim, apesar do caráter
inferior e pecaminoso da escolha da escrita, trata-se, aos olhos desse narrador, de uma
queda bem-vinda e bem sucedida, de uma queda para o alto, já que o rapaz tornou-se
homem feito, boêmio e escritor de sucesso.
Nesta altura, entretanto, ainda subsiste certa hesitação entre os dois momentos. A
passividade e a introspecção serão atribuídas sobretudo à forte presença do pai, que inclui o

135
Rodrigo Lacerda destaca que o próprio João Antônio acreditava que sua verdadeira vocação fosse a
música: ―Talvez eu seja uma vocação espúria de escritor. Quem sabe não passe de um músico frustrado, de
quem afastaram os instrumentos na primeira infância. (...) Ele [o pai] me colocou um instrumento musical na
mão logo aos oito anos de idade: um bandolim. E eu cheguei a tirar de ouvido, sem saber uma nota, alguns
trechos de choros difíceis como o Apanhei-te cavaquinho. A minha formação musical é incrível pois, embora
seja urbana, eu convivia com grandes músicos, como Garoto e João Pernambuco. Possuo ouvido musical
apurado, a ponto de fazer observações profundas em termos de musicalidade. Quem me afastou da música foi
o senso protetor de minha mãe que jamais pôde compreender a viabilidade prática da profissão musical.
Achava ela que os músicos eram, em geral, dissimuladores e que se valiam do fato musical para acobertar
suas farras, porres, boêmias, e, principalmente, pluralidade de mulheres. E, assim, em nome de um valor no
qual eu nunca acreditei, ou seja, a monogamia – para ambos os sexos –, acabei desembocando na literatura.
Caí na literatura, que parece ter, após um amor que já dura mais de vinte anos, todos os ingredientes do risco e
da paixão que tanto me fascinam. Mal sabia minha mãe que se eu me tivesse dedicado à música popular, hoje
seria um homem talvez melhor situado, em termo de status, do que é geralmente o escritor no Brasil‘.‖
Depoimento de João Antônio em STEEN, Edla Van. Viver e escrever. Porto Alegre: L&PM, 1981. Apud
LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária. op.cit, pp. 71-72.
99

menino no universo boêmio dos chorões mas ao mesmo tempo o mantém na condição de
ouvinte, como se denota pela declaração tachativa e paralisante do pai: ―Gosta de tocar?
(...) Ouvir é mais difícil‖. Revestido de pretensa sabedoria, o conselho, na verdade, é
inibidor. Ainda mais quando se sabe que o menino, além de querer e estar impedido de
imitar o pai (por conta da idade, sublinhada e até diminuída pela chupeta, e por conta da
condição de ouvinte, imposta pelo pai e pelos chorões mais velhos), não quer contrariar a
mãe, evitando pegar nos instrumentos. Resultado: se ele já evitava ―relar‖ no bandolim,
para não desagradar à mãe, aos poucos o envolvimento com o choro — intenso mas
marcado pela passividade da escuta — irá arrefecer, em consequência, provavelmente,
desta cena em que o pai exerce toda a sua autoridade, de pai e de chorão, para dizer ao
menino, por vias tortuosas e em tom impositivo, que a ele é melhor ouvir do que tocar, isto
é, melhor permanecer na condição de filho submisso.
O pai, como lembra Rodrigo Lacerda, citando depoimento do próprio João Antônio,
também cumpriu papel decisivo na passagem da música para a literatura:

(...) comecei a descobrir o gosto pela leitura porque meu pai, por medo que eu lesse coisas
que não prestassem, quando me via lendo alguma coisa, mandava que eu lesse em voz alta; então
comecei a perceber que aquilo tinha um ritmo; comecei a perceber que tinha frases que, por melhor
que eu lesse, não davam aquela melodia, aquele ritmo. Acho que aprendi literatura muito por ouvido,
de tanto ler em voz alta.136

A partir da cena em que o pai surpreende o filho tocando o instrumento de cordas e


o reprime, o conto praticamente deixará o choro para trás. As seções seguintes, umas curtas,
outras longas, concentram-se na personalidade do pai e, progressivamente, na passagem do
tempo de menino para o tempo de rapaz.
As páginas dedicadas ao pai caracterizam uma personalidade forte, que exerce
fascínio sobre o narrador quando menino:

De comum, seu ensino me batia de modo curto e pontudo:


— As mulheres são criaturas do sexo feminino.

136
Depoimento de João Antônio. In: RICCIARDI, Giovanni. Escrever. Libreria Universitaria de Bari, 1988.
apud LACERDA, R., op.cit., p. 72.
100

Vivo, falador, atiçado. Isso, com o bandolim contra o peito. Fora das rodas do chorinho,
descaía, amuava para dentro de si. Então, sério como um sapato.137

O pai é referência de ―ensino‖, um ensino que inquieta, intriga, cutuca o menino por
ser ―curto‖ e ―pontudo‖. Homem ―vivo, falador, atiçado‖ quando no ambiente da música,
com seu instrumento junto ao peito. Sem ele, ficava ―sério como um sapato‖. Como dirá o
narrador, o pai era ―homem de poucas falas‖, ―medidor‖, calado. Volta a aparecer aqui a
característica tão marcada em João Antônio Ferreira, o espírito proverbial e pedagógico do
pai, relembrado também pelo irmão do escritor, Virgínio: ―Meu pai tinha um
relacionamento com a gente em que tudo era ensinamento, tudo o que ele fazia conosco era
proposital, para que aprendêssemos alguma coisa. Às vezes deixava de ensinar que era para
descobrirmos, deixava inclusive de falar. Falava até a metade, por parábolas‖.138
Para a imagem que o narrador tem do pai, a relação com as mulheres merece
atenção. Às mulheres, ―não dava trela‖. Com elas era ―silencioso‖ e ―cordato‖, mas
também irritadiço. Ao ―falatório‖ das mulheres, diz o narrador, ele reagia com mais uma de
suas tiradas curtas: ―— Santa ignorância!‖. Ou quando saía do sério e se aborrecia a ponto
de não ―suportar‖ mais, o pai apelava para um xingamento, travestido de tratamento
pitoresco, que evidencia o desprezo pelas ―criaturas do sexo feminino‖: ―— São todas umas
catarinas, pafúncias e hermengardas‖.
Como se vê, era profunda no menino a impressão de que o pai era um homem rígido
e até ríspido, grave, sentencioso e severo. Mas não era apenas com ele próprio, o filho, que
o pai se comportava dessa maneira. Era assim também com as mulheres. Uma das seções
do conto, intitulada ―Imprescindível‖, descreve o comportamento ressabiado, austero e
recolhido do pai quando se formava a roda de homens, que falavam de futebol e de
mulheres. Era quando ―os machos remoçavam das canseiras da vida e uma alegria nova
corria‖,139 quando os homens, moços e velhos, reunidos, bebendo cachaça, jogavam prosa
fora e se dedicavam a fantasiar ―qualidades exuberantes‖: ―Havia pernas, havia rabos e
havia peitarias multiplicando atenção‖. Os homens falavam da zona (―trepar família, aquilo
na zona era melhor bem‖), falavam mal da sogra (―caricatura azeda, feiosa, desengonço‖),

137
Dedo-duro, p. 98.
138
O depoimento de Virgínio está em LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária, op.cit., p. 62.
139
Dedo-duro, p.101
101

contavam ―casos de corneação‖. O pai, segundo o narrador, sempre quieto. Até que alguém
o provocava e ele, mais uma vez, saía com uma de suas tiradas proverbiais: ―— O que dói
não é dar dinheiro às putas. É elas nos chamarem de meu bem‖. Ou, então, com a sentença
a que o título desta seção do conto se refere: ―— Mulher é imprescindível‖.
Com essa reafirmação da personalidade austera, severa e sentenciosa do pai se
confirma a noção profunda de ambiguidade com que o menino se relacionava com a figura
paterna: mistura de medo e fascínio, respeito e admiração, exemplo e incógnita, incentivo e
interdição. Mas apesar da dualidade com que o pai é visto e retratado, a conclusão sobre sua
influência, pelo menos na elocução do narrador, é positiva. O narrador voltará a reafirmar a
importância do aprendizado que a personalidade e as atitudes do pai lhe forneceram.
Curiosamente, no entanto, o ―ensino‖ do pai é também aquilo que o fez tomar gosto
pelo oposto de seu modelo: a brincadeira. Diz o narrador, afinal anunciando a passagem da
música para a literatura: ―Desses ensinos, outro me ficou, bulindo, cedo —um homem que
não sabe brincar vai morto no mundo. E como não brincava no bandolim, dei para outro
arremedo. Caí para as escritas. Melhor, pior? Haverei de saber. Sei, é diferente.‖140 Aqui o
ensino do pai concentra as contradições no campo da brincadeira: o pai severo ensina que é
preciso brincar. Mas a brincadeira do pai é no bandolim, brincadeira que estava justamente
interditada ao menino, tanto pelo pai quanto pela mãe. O pai que ensina e apresenta a
brincadeira do choro é o mesmo que reprime e interdita. Assim, a caída para as escritas é
acaso, mas também opção ―rebaixada‖, ―pecaminosa‖ e solitária, o que permite ao rapaz
uma saída pessoal, desfazer o nó em que sua vida se encontrava.
A passagem da meninice para a juventude será marcada, mais uma vez, pela
retomada dos ―ensinos‖ do pai e pela relação entre pai e filho. O texto traz duas indicações
de idade. Antes, quando imerso no mundo do choro, menino de nove anos. Depois, quando
―cai paras escritas‖, adolescente de dezesseis. Mas essa passagem não é apenas indicada
pelas duas idades. Há também mudança significativa de comportamento, que vai da
passividade e da contemplação respeitosa ao pai para a ousadia, o desprendimento e, afinal,
o desafio e a superação da figura paterna.
No desenvolvimento do conto, o narrador entra, a partir daqui, em sua fase
francamente literária, deixando para trás o mundo do choro. Esta nova fase descreve a

140
Dedo-duro, p. 103.
102

iniciação do narrador na literatura e na vida boêmia, não mais em companhia do pai e como
simples ouvinte, mas agora solitário, individualizado e protagonista da própria boemia.
Destacaremos algumas passagens do conto em que o narrador associa literatura, boemia e a
sua própria emancipação. Para esta análise, voltaremos nossa atenção para a questão do
nome e da profissão.

Iniciação literária

Na sequência do texto, quando conta dezesseis anos, o narrador relembra os


primeiros empregos, de início como estafeta ou office-boy na refinaria de óleo Anderson
Clayton, depois como escriturário do frigorífico Armour.141 Trabalhava de dia e
frequentava a escola noturna. Voltava para casa, agora não mais no Beco da Onça, mas na
Vila Anastácio, e parava para beber nos botequins e nas ―bibocas‖ do bairro suburbano.
Relembra a primeira relação sexual, a vida na ―zona‖ do Bom Retiro, entre as ruas Itaboca
(hoje Professor Cesare Lombroso) e dos Aimorés. Aparecem também as primeiras
incursões na sinuca, breve alusão ao tempo em que serviu ao Exército e ao tempo em que
estudou teatro no Arena, com Eugenio Kusnet.
Importante também é o tempo em que frequentou a Liberdade e se apaixonou por
uma nissei, ―mulher do amigo‖, história que lhe rendeu um conto. A alusão se faz
claramente a ―Fujie‖, conto do primeiro livro, que o narrador aqui chama de o conto ―da
japonesa‖, o primeiro que escreveu, depois de ―Um preso‖ — este, um texto nunca
publicado em livro e pelo qual não mostra apreço (―Digo que defequei aquilo, a que chamei
conto‖).
O despertar para a literatura e os primeiros sucessos, incluindo algumas publicações,
ganham no conto um tratamento vago. Já vimos que o narrador diz ter caído para as
escritas. Ele usará a expressão uma vez mais, depois de descrever o gosto por rodar a

141
Segundo Rodrigo Lacerda, João Antônio começou a trabalhar aos treze anos, logo depois da falência do
pai em um negócio feito com dois sócios: a administração de uma pedreira em Pirituba. João Antônio, pai,
teria sido trapaceado pelos sócios. Ainda segundo Lacerda, os credores lhe arrumaram na Vila Anastácio um
lugar para instalar um comércio. Foi assim que a família se instalou na casa da rua dos Botocudos e o pai
abriu o bar Gambrinus, na rua Conselheiro Ribas. O emprego de João Antônio na Anderson Clayton, segundo
depoimento do irmão Virgínio a Rodrigo Lacerda, foi conseguido pela mãe. LACERDA, R. op.cit., pp. 76-80.
103

cidade de bicicleta, até Moema, onde ficava a sede de um ―jornalzinho infanto-juvenil‖, O


Crisol.142 Diz o narrador:

De um lado a outro da cidade pedalando a minha magrela, chispa, trim-trim, firme envergo
o lombo do selim para o cano, ganho, são duas horas voadas no selim, a redação do jornalzinho
infanto-juvenil, num quartinho de fundos de uma casa em Moema, na Avenida Juriti, onde começo a
escrever. Ou antes, a exortar, em patriotadas, a elevação das honras de heróis no fragor de batalhas
que nem entendo. Mas imagino.
— Malandrando os seus dias.
Disso caí para as escritas. Destrambelhei-me no gosto pelas palavras e que me lembre, havia
uma, lá longe, nos tempos em que lia gibi, minha primeira criação: mononstro.(...)

O teor dessa passagem ainda é francamente jovial. O próprio jornalzinho é ―infanto-


juvenil‖, e a corrida de bicicleta ganha sonoridade onomatopaica. A fala, que é da avó Nair,
já aparecera anteriormente e retorna para marcar a malandragem despreocupada e
destrambelhada dessa fase, em que o gibi era a leitura predileta e a primeira ―criação‖ é
uma palavra inexistente, um neologismo ligado ao universo juvenil dos quadrinhos. E, de
novo, a expressão confirma algo de casual, de acaso, na escolha pela literatura: ―Disso caí
para as escritas‖.
Da época do Crisol, ficaram o gosto pelos quadrinhos, pelos álbuns de figurinhas,
por Monteiro Lobato, a descoberta dos primeiros dicionários e, provavelmente, um dos
primeiros livros lidos pelo autor, com fábulas de Esopo, que ganhou como recompensa
pelas colaborações no jornal.143
Vale a pena comentar mais detidamente dois aspectos potencialmente
transformadores da travessia da infância para a juventude, envolvendo o filho e o pai, que
mobilizam o narrador e levam a narrativa adiante: a capacidade de explodir e de ganhar
nome.

142
Trata-se do jornal O Crisol, dirigido por Homero Mazaré Brum, gaúcho de São Sepé, como registra
Rodrigo Lacerda (2006, p. 72). Segundo Mylton Severiano (2005, p.82), o autor fez sua estreia literária nas
páginas desse jornal em 1950.
143
O próprio João Antônio diz que Esopo foi fundamental na sua iniciação como leitor: ―Esse livro teve uma
influência fundamental na minha primeira dentição literária. Eu me apaixonava pelo escravo frígio e
tartamudo que tinha duas obsessões: a liberdade e a justiça. Era tão brilhante nessa perseguição, que acabou
jogado num abismo. Essa tragicidade da história de Esopo mexeu fundamentalmente comigo e terminei a
leitura apaixonado e revoltado‖. Depoimento de João Antônio. In: STEEN, Edla Van. Viver e escrever, Porto
Alegre, LP&M, 1981. Apud LACERDA, R. op.cit., pp. 74-75.
104

A contenção do narrador quando criança, tempo em que ainda não pode se afirmar,
é expressa por meio da recorrência da negação, utilizando vocábulos de forte conotação
negativa ou introspectiva, como ―enruste‖, ―espia‖, ―íntima‖, ―escondida‖, ―derrubada‖,
―desconfiar‖, ―represando‖.
Além disso, especialmente, o verbo ―explodir‖ vem a ocorrer mais duas vezes nesta
altura do conto, retomando o início do texto, em que o narrador diz: à noite ―expludo‖.
Depois, voltará a dizer o narrador que, no choro, a ―birra‖ nunca ―explode‖. O verbo
reaparecerá também, em negativo, para caracterizar o pai: ao comentar a personalidade
desconfiada, introvertida, rígida do pai, o narrador diz que ele parecia ―explodir por
dentro‖:

Difícil alguém desentranhar ou pilhar, ao acaso, ainda que de passagem, opinião sua. Quem
o buscasse, atirando um lero para colher coisa concreta, sairia de mãos abanando. Tempo e tempo,
ouvia quieto, medidor. Uma ruga na testa e ironia desconfiada, parada nos olhos. No canto da boca
fechada. Prosa não interessando, se aquietava mais. Aquela conversa fiada o punha abespinhado. Ou
calmo? Sei lá. Parecia mais de explodir por dentro. Avançava e não abria a guarda. Aí o freguês
vacilava, pejado, tropeçando, perdia a margem de manobra, vacilão. Desencorajado, desguiava.
Papai, nenhuma palavra, plantado, teimosamente. Mas em posição de cobrança.144

O pai parece explodir ―por dentro‖, assim como no choro, as rivalidades, as rixas, as
birras tomam corpo sem explodir. Portanto, aquele ―expludo‖ do começo do texto, que se
refere ao tempo do narrador adulto, indica uma diferença forte entre a época do choro, na
infância, e entre o narrador adulto e o pai. O narrador, agora adulto, é capaz de explodir,
deixando para trás o tempo do choro, de introspecção, introversão, espia, escuta, enruste.
Da mesma forma, o ―expludo‖ marca a diferença entre o narrador e o pai, aqui
caracterizado como alguém que explode, mas por dentro.
O tempo do choro também ensinou ao menino que leva tempo para um chorão
ganhar nome. Já vimos o trecho em que o narrador observa: ―A derrubada do choro faz
com que, só depois dos vinte e cinco, trinta anos um nome de chorão comece a correr as
rodas e se imponha considerado, temido, conhecido de longe‖.

144
Dedo-duro, p. 98.
105

Ganhar nome poderia ser apenas sinônimo de fama, mas sabemos que, no caso deste
narrador, a questão do nome não é apenas uma simples questão de ser conhecido ou
reconhecido. O conto se chama ―PMCMS‖, um nome escolhido pelo narrador, quando
jovem, para assinar os contos que mandou para uma editora. Ou seja, houve uma escolha de
um novo nome, quando da opção pela literatura.
Antes de vermos como o conto chega ao seu final, vale anotar mais algumas
passagens em que o nome ganha destaque no conto.
Ao comentar o trabalho de office-boy ou estafeta na refinaria Anderson Clayton, o
narrador observa:

Poucos conhecem este chão, estes cimentados e paralelepípedos das alamedas internas.
Eu viro e mexo. Conheço-os melhor que o gerente geral. Sei-lhes o cheiro. Do escritório à
funilaria, do tratamento de oxigênio à litografia-transporte, esta fábrica eu ando e ando e ando,
quilômetros e magro, capa branca irrepreensível, asseado e cordato, quatro iniciais pretas no bolso
externo de funcionário do escritório.
Convivo, me entendo, charlo com tudo quanto é pintor, funileiro, homem da sacaria e do
transporte, pedreiro, almoxarife, guarda, apontador, ajudante, operário sem nenhuma qualificação,
maioria salário mínimo, fresador, mecânico, motorista, caldeireiro e quando venho lá longe, muito
papel dentro da pasta-sanfona, o pessoal se vira e me conhece o nome. Operário não é funcionário
do escritório e, logo, me chama pelo prenome. Os do escritório pegaram manias com os gringos
mandões. Uma é tratar pelo sobrenome.145

As quatro iniciais pretas no bolso são, presumivelmente, JAFF, de João Antônio


Ferreira Filho. E a alegria do jovem estafeta é percorrer a fábrica e conviver com todos os
operários e outros profissionais de baixo escalão. Ao contrário dos funcionários do
escritório, que o tratam pelo sobrenome, como os estrangeiros, os operários o chamam pelo
prenome. Se o uniforme do escritório traz as iniciais e os colegas de escritório o chamam
pelo sobrenome — Ferreira, presume-se, ou Ferreira Filho —, a amizade com os operários
lhe permite ser, apenas e simplesmente, o João, ou João Antônio.
A questão do nome nos devolve, obviamente à relação entre João Antônio e o pai. O
futuro escritor, como se sabe, tinha o mesmo nome do pai. A diferença era apenas o Filho,
ao final do João Antônio Ferreira. A preferência de João Antônio pelo tratamento informal,

145
Dedo-duro, pp. 108-109.
106

como aquele que lhe destinam os operários da fábrica, diferencia-o e o afasta do pai. Já a
formalidade dos homens do escritório, herdada dos ―gringos mandões‖, o mantém colado
ao nome paterno.
A relação com o pai, que fora de tanto companheirismo na infância, ainda que
marcada pelo medo, como se viu, ganha aos poucos contornos mais ásperos. À medida que
o rapaz cresce, lança-se cada vez mais à ―zona‖ e à bebida. Certo dia, conta o narrador,
ficou até tarde no bar do Tico, em Vila Anastácio, jogando sinuca e bebendo. O juizado de
menores baixou no lugar. A passagem culmina na reação do pai ao ocorrido e no atrito
entre pai e filho:

(...) Pegaram-me com as duas mãos no taco. Os homens bem vestidos, investigadores,
ternos brilhantes, asseio, brilhantina nos cabelos, mãos manicuradas, sapatos polidos. Fui dizendo
que trabalhava na refinaria de óleo. Mandaram-me andar. E me correram:
— Você que volte aqui e a gente te esfria.
Levei nome de cadelo. Mas na manhã, minha coragem vira boato na boca das turmas. Sou
comentado e engrandecido — vou limpo: não me borrei, medroso, à chegada da polícia. Homem.
Mas quem pagou foi o dono do bar. Os homens da justa lhe recolheram as bolas, trancaram as mesas,
cataram o alvará, meteram-lhe multa de seiscentos cruzeiros.
O diz-que-diz bandeou tudo para o pé das orelhas do velho.
Os dois na mesa. Fechou o punho, crispou a cara quadrada, puxou um suspiro de boca
fechada. Devia sofrer, devia estar cansado — e bem. Minhas derrapagens desandavam em repetição.
Todo santo dia, pintando má notícia.
— Você tem todos os vícios que eu conheço e até os que eu não conheço.
Falou baixo e era como se urrasse. Pesava um azedume. Havia uma barreira, sei lá, uma
diferença me arranhava o peito e me tangia. Por que eu agredia e agredia, sonso ou de cara, aquele
homem? Um nada deste mundo e estávamos enfarruscados.
Estamos bem sós, eu percebo. Um estrago. Ele, vindo de mau negócio, rebordosa com uns
sócios que o roubavam. Soprava um vento contrário naquela vida.
Sós, na mesa. E atirei:
— Ora, eu não sou tão genial assim.
Não se buliu, não me chapuletou a cara. Recolheu a hostilidade, a testa enrugou-se e os
olhos pequenos brilharam, antes de baixarem. Pendeu a cabeça para o prato e comeu até o último. Eu
também sofria com aquilo e não podia dizer que me sentisse satisfeito. Mas arrostá-lo me dava força.
Aí me deu o golpe e me entravou:
107

— Eu já lhe dei categoria de adulto.146

O fato de o pai precisar relembrar ou avisar o filho de que já lhe havia dado
categoria de adulto significa que conceder categoria de adulto ao filho é insuficiente. O
sentido da via de crescimento mostra-se, assim, claramente invertido. Não adianta o pai
considerar o filho adulto. E o narrador parece saber disso: sabe que será ele quem precisará
dar a si mesmo categoria de adulto. E isso só é possível, no que concerne à relação entre pai
e filho, por meio do enfrentamento que o filho promove ao pai. O narrador se pergunta por
que agredia o pai. Ainda que não saiba por que precisa ―agredir‖ o pai, ele retém o mais
importante: ―Estamos bem sós, eu percebo‖. A necessidade de agressão, na relação pai e
filho, relaciona-se à necessidade de individuação. Na narrativa do filho, a individualidade
ganha acento de solidão, o que dá relevo mais uma vez à vida de ave noturna, mas também
se comunica com a atividade literária, sempre em contraponto à música. Escritor escreve
sozinho, não precisa de roda de choro.
É preciso enfrentar e derrotar o pai, ultrapassando-o. É preciso matar o pai. Isto é,
metaforicamente falando. E apesar de o pai (em sua própria visão, de pai) já o considerar
adulto, é isso, matar o pai, que faz o filho, respondendo a ele e o desafiando, como se viu
acima, mas também no golpe desferido sorrateiramente, ao adotar o pseudônimo: Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha. E depois o nome artístico: não João Antônio
Ferreira Filho, mas apenas João Antônio, sem mais, sobrenome paterno amputado.147
O enfrentamento da figura paterna precipita o desenrolar narrativo que vai culminar
na passagem que narra a revelação do pseudônimo que dá título ao conto. Depois da cena
da discussão com o pai, o narrador ainda fará mais considerações sobre o pai e a mãe,
chamando a atenção para o momento de dificuldades enfrentado pelo casal: ―O pai pelejava
e se batia, os nervos estalavam. Mamãe sofria e ia pra luta, se botava ao lado dele, dentro
do balcão. Ali, mexendo-se como formiguinhas insistentes, aturando bêbados, gringos e

146
Dedo-duro, pp. 118-119.
147
Segundo Rodrigo Lacerda, a iniciativa de encurtar o nome, adotando o nome artístico de João Antônio, foi
sugerida ao autor por Ricardo Ramos e Mário da Silva Brito: ―Até 1958, João Antônio assinava suas
publicações com o nome completo, ou seja, João Antônio Ferreira Filho. Mas, já em 1959, ele diria:
‗Costumo assinar João Antônio nos meus contos. Foi o Mário da Silva Brito e foi o Ricardo Ramos, quem me
puseram na cabeça: meu nome é muito comprido e não haveria cristão que o retesse (sic) guardasse. Bem.
Fiquei sendo João Antônio (...)‘‖. O trecho citado por Rodrigo Lacerda é do próprio João Antônio, em carta
de 1º set. 1959 a Ilka Brunhilde Laurito. Apud. LACERDA, R. op.cit., p.182.
108

ralados pelos credores, os dois começavam a envelhecer‖.148 A cena do embate com o pai
resulta em novo status ao jovem desregrado. Agora, ele sente os pais envelhecerem, um
primeiro sinal de que, afinal, ele os ultrapassa, adquirindo, ao mesmo tempo, certa culpa
por tê-los desafiado e confrontado.
A nova seção que se inicia, a penúltima do texto, leva o mesmo título do conto:
―Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖. O conto avança para o tempo do Exército
e para as descobertas literárias mais maduras: Graciliano149, Gorki, Jack London, Zola,
Steinbeck, Hemingway, Eça de Queiroz, entre outros. É aqui também que o narrador irá
falar de sua paixão pelos contos, paixão que lhe parecia ter nascido antes do seu próprio
nascimento. É nesta seção que ele vai relembrar a dificuldade de publicar ―a história da
japonesa‖. Foi com este conto, porém, diz o narrador do texto, que ―chamei a atenção dos
homens e um deles, Marques Rebelo, fez nascer a expressão clássico velhaco e que hoje
anda aí, em meu nome, pelos jornais, pelas revistas e até pela televisão‖.150
A publicação de ―Fujie‖, ou melhor, a publicação ―da história da japonesa‖, como
diz o narrador, lhe deu nome e, mais que isso, lhe rendeu um epíteto, ―clássico velhaco‖,
que segundo ele, depois de cerca de vinte anos, ainda corre em jornais, revistas e até na TV.
O início da carreira de escritor, portanto, marcou definitivamente a carreira deste narrador-
escritor, cujo nome — João Antônio, já sem a ligação filial com o sr. Ferreira — e epíteto
correm a grande imprensa, a mídia, fazendo sua fama.
Não se sabe em que ano aconteceu a famosa visita dos editores da Civilização
Brasileira à casa da família Ferreira em Vila Anastácio. No conto, o episódio não vem
claramente datado: registra-se o dia e o mês, mas não o ano. O fato é que a visita dos
homens bem vestidos, ali chegados em um carro importado, ecoa, no conto, um outro grupo
de homens bem vestidos, revestidos de autoridade. A visita dos editores liga-se, na
narrativa, ao episódio, descrito antes, em que o narrador foi surpreendido pela polícia no
botequim e que precipitou a cena de enfrentamento entre pai e filho.

148
Dedo-duro, p.120.
149
De todos esses, Graciliano Ramos é o autor mais importante para o texto em questão. Logo no início do
conto, o narrador conta um episódio relacionado à obra do escritor: ele viu uma palestra em que um estudioso
falava de Graciliano de maneira pernóstica e vazia, segundo avaliação dele próprio, narrador. A valorização
da influência de Graciliano em sua obra, relaciona-se, aqui, ainda que implicitamente, também ao fato de que,
um dos homens engravatados que visitaram a casa da família Ferreira atrás de Paulo Melado era Ricardo
Ramos, filho de Graciliano, e então editor da Civilização Brasileira.
150
Dedo-duro, pp. 127-8.
109

Ressabiado e prevenido pela fama do filho boêmio, o pai supõe que seja novamente
a polícia, agora à procura do filho desregrado, mas um filho que curiosamente atende por
outro nome, que o pai, entretanto, reconhece. Vejamos como a cena é narrada:

Esbornear, escrever, continuar. Um dia, mandei com pseudônimo maroto e lírico carta ao
Rio pedindo publicação de meus contos. E segui, tocando a vida. Que não há nada para ser tocada
quanto a vida, e se você está fora dos ambientes como é que vai ver a festa do mundo?
Era um sábado, era um sol, era um dia 28 de setembro. E, claro, eu bebera na sexta-feira
da semana inglesa. Ressaca na boca e nas pernas. Os olhos miúdos e inchados, a cara enorme.
Provavelmente precisaria de óculos escuros para enfrentar a luz do dia.
Esponjei-me na soleira do quarto. Naquele momento, o carro de quatro portas, americano
e cinza do romancista freava na porta do bar. Desciam quatro homens, paletós e gravatas. Eles se
chegavam para o balcão. A carta do Rio indicava o endereço do bar. Um deles falou o pseudônimo
mais sestroso que já usei até hoje — Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha.
— É aqui que mora o senhor...?
Meu pai abaixou a cabeça. Atarracado, triste, português envergonhado:
— Sim. Os senhores são da polícia?151

Finalmente, o leitor é apresentado a Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha.


O final do conto nos apresenta, como leitores, a uma identidade deste narrador, que até
então não havia sido nomeado. No domínio estrito do texto, o narrador agora ganha nome,
o que retoma o tema da fama e da autoridade, do status de virilidade e emancipação, que já
havia sido anunciado nas páginas sobre o choro.
Como não podemos, ao mesmo tempo, esquecer que se trata, afinal, de um texto
autobiográfico, a ligação com o nome de João Antônio também é imediata. O narrador, que
já havia anunciado discretamente o próprio nome, ao falar das iniciais no uniforme da
fábrica, agora assume outro nome, um ―pseudônimo maroto e lírico‖, com que pretende
ganhar a atenção para os seus contos.

151
Dedo-duro, p. 128. Sobressai aqui o enlevo do narrador, neste momento de glória precoce e de vitória
sobre o pai, ao se referir à vida: ―E segui, tocando a vida. Que não há nada para ser tocada quanto a vida, e se
você está fora dos ambientes como é que vai ver a festa do mundo?‖. O mundo é uma festa, para este narrador
que é um escritor consagrado e relembra seu momento de iniciação na carreira literária. Além disso, ―não há
nada para ser tocada quanto a vida‖. O otimismo e a crença na possibilidade de inserção (―fora dos
ambientes‖ se perde a ―festa do mundo‖) exprimem um desejo de inclusão e traem a alegria pela vida que se
cumpre, em festa, musical (a vida ―tocada‖). O verbo empregado também é sugestivo: a ambiguidade de tocar
(levar adiante, conduzir, mas também soar um instrumento musical) não deixa de ser irônica com a vocação
musical dificultada e, depois, interditada, abortada pelo pai.
110

Na narrativa, é curioso que o narrador descreva o momento em que os homens de


paletó e gravata dirijam-se ao seu pai, e anunciem a ele o pseudônimo ―maroto‖,
―sestroso‖. O pai se mostra diminuído e temeroso, ―triste, português envergonhado‖.
Interessante é que o pai não titubeia ao responder que sim, é ali que mora o tal Paulo
Melado do Chapéu Mangueira Serralha, inferindo que se trata do filho boêmio. O narrador
sublinha no pai características que o diminuem e fragilizam: é atarracado e português,
estrangeiro, isto é, está apequenado e fora de seus domínios. A caracterização contrasta
com o aspecto malandro e agigantado do pseudônimo: Paulo Melado do Chapéu Mangueira
Serralha.
O pai pergunta se os homens são da polícia, indicando que pressupõe que as
atividades do filho podem levantar suspeita e infringir a lei. Mas a maneira com que este
narrador descreve a cena confunde os papéis entre pai e filho. É o narrador que anuncia o
pseudônimo. Mas na cena não se pronuncia o nome. Algum dos visitantes dirige uma
pergunta que não está completamente formulada: ―É aqui que mora o senhor...?‖. O
complemento à pergunta pode ter vindo antes — é o pseudônimo. A forma com que o
narrador encadeia os acontecimento, no entanto, faz com que o complemento à frase fique
apenas sugerido, envolvendo o pai diretamente na ação.
A descrição da cena termina aí, em suspenso. E o conto ainda terá uma última
seção, curta, que comentaremos a seguir. Aqui, porém, é preciso dizer que, apesar de narrar
a passagem de maneira indireta, subentendida, o narrador o faz com propósito certo. Ele
narra o momento em que ganhou novo nome e esse novo status foi revelado de maneira
consagradora, ao menos no âmbito de sua família nuclear.
O novo nome, que o tornou conhecido no Rio e o fez ser procurado, ali no
―subúrbio mesquinho‖, por aqueles homens de paletó e gravata, por um ―romancista‖ de
carro ―americano‖, é um trunfo para este narrador que ―caiu‖ para as escritas. É a prova de
que seu talento, que foi desviado da música para a literatura, sobreviveu e ganhou
reconhecimento.
A cena, porém, é mais significativa que isso. Esta é a história do próprio João
Antônio, em seus passos iniciais como escritor. Este é o episódio que marca, para o
escritor, o momento de um primeiro reconhecimento literário e da possibilidade real de
assumir um novo nome.
111

Trata-se de um golpe, de um golpe violento e vitorioso, contra o pai. Este


acontecimento revela que o rapaz desacreditado e desregrado, boêmio e inconsequente, que
aos olhos do pai tem ―todos os vícios‖ e é procurado pela polícia, na verdade é um escritor
talentoso, capaz de ganhar novo nome e ser procurado não pela polícia, mas por
profissionais da melhor casa editorial do país, a Civilização Brasileira.
O filho caiu para as escritas. Esta queda, anterior, agora virou ascensão. A vida
boêmia, que pode levantar suspeitas policiais, revela-se não criminosa, mas frutífera e
consagradora.
O filho golpeia o pai: sua identidade não é mais a de filho de João Antônio Ferreira.
Ele, que se chama João Antônio Ferreira Filho, mostrou que pode muito bem trocar este
nome de batismo por um pseudônimo ―sestroso‖, ―maroto‖ e ―lírico‖. Em vez de João
Antônio Ferreira Filho, pode ser Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha.
Para além do impacto que a visita deve ter causado na família, nos parentes e na
vizinhança, a construção literária que o narrador engendra no conto, sublinha a vitória do
filho sobre o pai. E a vitória definitiva está implícita, ela não é enunciada no conto porque
não precisa ser enunciada, já que está pressuposta, eloquente, na capa do livro. Além de
Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha, o jovem aspirante a escritor vai adotar, não
um pseudônimo, mas um nome artístico: João Antônio.
Ao final, o leitor é apresentado a Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha. O
pseudônimo. Mas como o leitor permanece ligado ao autor pelo pacto autobiográfico, ele é
devolvido à identidade do João Antônio escritor, que assina o conto, ou, antes, assina o
livro, com seu nome artístico impresso na capa.
Entretanto, além de, mais uma vez, destacarmos que a revelação do pseudônimo,
nas circunstâncias em que se deu, marca uma vitória do filho sobre o pai, é preciso
reconhecer que a maneira com que o escritor narra sua mudança de nome — sem chegar a
narrar a mudança de nome mais definitiva, a de João Antônio Ferreira Filho para João
Antônio — também aponta para um certo temor deste gesto de suplantação do pai, no
âmbito da ação narrada. É como se a figura paterna ainda fosse capaz, no entrecho do
conto, de limitar, castrar, impor limites.
112

Fora dele, no âmbito da biografia de João Antônio, porém, sabemos que o golpe foi
certeiro. O primeiro livro seria publicado, com o nome artístico que omite o sobrenome,
―Ferreira‖, e sem o ―Filho‖, que ligam o Ferreira mais novo ao velho Ferreira.
O conto não conta o lançamento e o começo da carreira do escritor João Antônio. O
conto, em verdade, não é um conto sobre o escritor João Antônio, apesar de sê-lo. Em
essência, ele é um conto sobre o enfrentamento e o distanciamento do filho em relação ao
pai.
O desfecho deixa isso mais claro. Da revelação do pseudônimo, passa-se, na última
seção, com uma grande elipse, ao momento atual do narrador, aquele mesmo do começo do
texto, em que ele já é autor consagrado.
A seção final do conto chama-se: ―Nenhuma virtude, nenhuma: Bagdá‖.
Curta, não mais de uma página, a seção conta como o narrador descobriu uma
expressão que traduz o seu tempo de rapaz. Finalmente, diz ele, encontrou-a ―na
Nairlândia, uma cidade só de marafonas, a maior zona do Brasil, no caminho para
Apucarana, norte do Paraná‖. Ali, ele encontrou a definição de si próprio: ―pilhei uma
expressão querendo significar e valer assim: estar muito doido, à vontade; botar pra
quebrar, deixar cair‖.
Diz o narrador, fechando o conto: ―A expressão era e valia: Pra lá de Bagdá‖.
Aquilo que o define, a expressão rematada que delineia a sua personalidade revela
que a boemia, a liberdade e a despreocupação — um comportamento libertário, mas
descrito em termos ambíguos, que apontam, no limite, para a irresponsabilidade (―botar pra
quebrar, deixar cair‖) — são as características que este narrador reivindica para si próprio.
Aqui, depois da grande elipse que marca a passagem do tempo de rapaz, da época
em que era Paulo Melado, para o momento presente, retomando o início, o texto marca
ainda a retomada do tom francamente confessional e autobiográfico. É João Antônio autor-
narrador-personagem quem retoma o fio narrativo para indicar que sua personalidade é a de
um ―doido‖, folgazão, inconsequente, boêmio (―pra lá de Bagdá‖, recentemente, tornou-se
também expressão que significa ―estar bêbado‖ ou alterado, chapado, drogado).152

152
Antônio Hohlfeldt intitula ―Pra lá de Bagdá‖ a sua apresentação dos Melhores de contos de João Antônio.
Segundo Hohlfeldt, João Antônio e seus personagens se parecem: ―Também ele, à semelhança de suas
personagens, está fora do esquema, vê-se obrigado, permanentemente, a uma luta corpo-a-corpo com a vida.
Porque também ele, à semelhança de suas personagens, vive à margem, vive pra lá de Bagdá. Ele, como suas
113

A oposição, aqui, mais uma vez, é com a mãe e o pai. Foi na zona, em uma cidade
de ―marafonas‖, que ele descobriu a expressão que o define. Era o que a mãe mais temia:
que o filho caísse na vida boêmia, o que significava, é claro, trocá-la por outras mulheres. E
João Antônio fez mais que isso. Não apenas conheceu outras mulheres, mas conheceu,
como ele diz no texto, uma cidade inteiramente habitada por prostitutas. Em relação à
autoridade paterna, a opção pelo pseudônimo sestroso e maroto, o nome artístico que
amputa o sobrenome e a posição de ―Filho‖ — essa espécie de castração às avessas —, e o
sucesso literário, tão propalado no começo deste texto, tornaram possível a João Antônio
enfrentar o pai e, afinal, vencê-lo.153 Uma castração para a potência, uma queda para a
consagração.
O final de ―Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha‖ é enfático sobre a recusa
de João Antônio em trilhar os passos do pai. O texto conta a história do pseudônimo, mas
secretamente conta a história de como João Antônio Ferreira Filho se tornou João Antônio,
escritor, boêmio, doido, beberrão, ―à vontade‖, ―pra lá de Bagdá‖. O contraste com a
carreira de comerciante e com a personalidade severa, moralista, sentenciosa e autoritária
do pai não podia ser maior.

Abraçado ao próprio rancor

É surpreendente ler ―Abraçado ao meu rancor‖ depois da leitura de Lambões e de


―PMCMS‖. Se nos primeiros dois textos, a ênfase era na infância e na juventude deste

personagens, são heróis e vítimas deste capitalismo selvagem que entre nós medra‖. HOHLFELDT, A. ―Pra lá
de Bagdá‖. In: ANTÔNIO. João. Os melhores contos. Sel. Antônio Hohlfeldt. São Paulo: Global, 1997, p. 14.
153
Rodrigo Lacerda já chamara a atenção para a relação de conflito entre pai e filho, inclusive relacionando os
desentendimentos à recusa de João Antônio, em seu tempo de rapaz, em seguir a mesma carreira do pai: ―O
fato do pai só ter se esforçado para corrigir os defeitos de comportamento de ―Joãozinho‖ até o normal, como
nos disse Virgínio, não se deve, aparentemente, a qualquer satisfação com os rumos do filho. Ele ter recebido
―categoria de adulto‖ no início da adolescência significa que era precoce – intelectualmente, em sua
mobilidade por toda São Paulo –, mas essa maturidade antecipada não era, aos olhos dos pais, a mais
saudável. Continuava presente a frustração com a recusa do filho em trabalhar no comércio e agora ela se
somava à impotência diante da vocação do filho para a boêmia. Uma outra hipótese seria um certo desalento
em relação a sua própria concepção de mundo, após a falência da pedreira, em grande parte provocada por sua
ingenuidade e incapacidade de se impor perante os sócios. Ou ainda a culpa por ter, indiretamente,
contribuído para este gosto do filho pela malandragem. Afinal, vale notar que foi através do pai que João
Antônio esboçou seus primeiros passos no mundo da música, e que esta lhe serviu, num primeiro momento,
como ante-sala da malandragem da sinuca e, num segundo, da literatura. Irene, mãe do escritor, ao lhe tolher
o gosto pelas rodas de samba, possivelmente deu um tiro que saiu pela culatra, jogando-o em uma dimensão
mais radical da malandragem. (...)‖. LACERDA, R. op.cit. 2006, p. 93.
114

narrador-escritor que se tornou João Antônio, agora a narrativa não é mais uma
reconstituição memorialística de um tempo pessoal e comunitário; é um lamento das
mudanças que ocorreram e que, justamente, fizeram desaparecer aquele tempo, ou melhor
aqueles tempos: o da cidade, o da sociabilidade e o da juventude do narrador. É um retorno
do momento da busca, como já assinalou Simone Paulino dos Santos. Segundo a autora, o
percurso empreendido pelo narrador seria ―tentativa de reconstituir na memória uma
geografia íntima para sempre perdida‖. A busca seria aqui uma necessidade de ―reaver‖ a
cidade, necessidade que Simone Paulino liga à noção freudiana de melancolia:

A escolha do mesmo trajeto parece, portanto, determinada pelo anseio por alguma coisa
perdida, tal qual ocorre nos estado de melancolia, pois o melancólico carrega consigo a experiência
de uma perda afetiva e se sente incapacitado para ‗escolher um novo objeto de amor‘, o que equivale
dizer, escolher outro caminho para o seu desejo, rota diversa capaz de substituir o objeto de outrora,
de forma a restituir-lhe o prazer de viver.
O objeto em questão não precisa ter morrido concretamente (conforme ocorre na situação de
luto), basta apenas que tenha se perdido como objeto de amor para o sujeito — ainda que continue
existindo — deixando uma marca de tristeza profunda pelo passado perdido e medo quanto ao futuro
incerto.154

A interpretação da autora é precisa. Trata-se de buscar algo que já não existe mais,
mas diferentemente da inquietação inicial (a busca do conto ―Busca‖, como veremos no
capítulo 2). Trata-se agora de uma procura mais determinada, ainda que, de novo,
abrangente e pouco clara: a necessidade de substituir os antigos objetos de desejo. Essa
busca se mostra frustrada, pois os velhos objetos de desejo — os sambistas, os sinuqueiros,
os lugares da boemia — estão perdidos, e tampouco há novos objetos à vista.
Se não há novos objetos de desejo, o narrador irá procurar os antigos. Se a cidade
deu em outra, voltemos ao que restou da cidade antiga, a cidade da infância e da juventude.
É por isso que, ao final, o narrador retorna a casa, onde residem seus objetos de desejo
primordiais. Trata-se, portanto, de um conto sobre a busca, mas também um conto sobre a
volta, sobre uma volta pela qual se anseia, mas que se frustra.
―Amr‖ é, assim como os dois textos anteriores lidos aqui, um texto sobre o passado
e sobre a memória. A diferença decisiva, do ponto de vista formal, porém, é que neste conto
154
SANTOS, S. Nas esquinas do desejo. op.cit., p. 158.
115

a elocução e a ação narrada coincidem, isto é, narrador e narrativa se constituem em


situação, e o desenvolvimento narrativo se dá à medida que o leitor avança na leitura, sem
que se saiba, ao certo para onde, literalmente, caminha o narrador — e, por extensão, a
narrativa. Não há, como havia nos textos anteriores, distanciamento entre narrativa e fato
narrado. Esse aspecto faz com que o final do conto coincida com o final da ação narrada,
nos moldes do que ocorre, de maneira análoga, ao final de ―MPB‖, como veremos no
capítulo 3.
Antes de entrar no cerne formal e na análise do sentido do conto, vale insistir que,
mais uma vez, o caráter autobiográfico da narrativa vem carregado de ambiguidade. Trata-
se de um livro de contos (é o que indica a página de rosto e a ficha catalográfica da
primeira edição do livro), em que, entretanto, o texto que dá nome ao volume é uma longa
narrativa de teor autobiográfico (ainda que os textos de quarta capa e orelha não apontem
para essa combinação ambígua de autobiografia e ficção).155 Os demais textos do livro, por
outro lado, e confirmando a catalogação do volume, são em geral ficcionais. Alguns deles
são protagonizados por Jacarandá, personagem-tipo criado pelo autor. Dos dez textos do
livro, ele é o personagem principal de quatro: ―Guardador‖, ―Publicitário do ano‖,
―Televisão‖ e ―Sufoco‖.156 Além desses contos, podem ser classificados como ficcionais
―Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)‖ e, talvez, ―Eguns‖. Os demais — e
ressalte-se que talvez seja o caso também deste último — são textos em que o narrador
confunde-se com o próprio João Antônio, sem que isso, como de hábito, seja claramente
formulado na elocução do conto.
Dito isso, vale retomar a leitura do conto, que começamos a esboçar no começo
deste capítulo.
Já vimos como, em ―Amr‖, a figura paterna é chave para entender o sentimento de
pesar do narrador pelas mudanças urbanas e sociais. A própria apreensão da cidade, na
percepção do narrador, está colada à relação com o pai, como indica aquela construção,
―minha cidade de meu pai‖, que já apontamos. E outras figuras familiares fortes, como a

155
Nossa edição de referência é a primeira, da Editora Guanabara, de 1986. Os textos de orelha e quarta capa
da edição mais recente (Cosac e Naify, 2001) tampouco fazem referência a essas ambiguidades: na quarta
capa, há um trecho de Antonio Candido sobre o autor; na orelha, um texto que combina apresentação do autor
e sua obra e cita o prefácio de Alfredo Bosi; na ficha catalográfica, nenhuma referência ao gênero dos textos.
156
Os vários contos protagonizados por este personagem-tipo foram reunidos em ANTÔNIO, J. Um herói sem
paradeiro. Vidão e agitos de Jacarandá, o poeta do momento. São Paulo: Atual, 1993.
116

mãe, a avó e o avô paterno, serão lembrados no conto. A mãe, especialmente, exercerá
função narrativa decisiva, como veremos.
Mas a consequência maior da estrutura formal que faz coincidir elocução e ação é
que a galeria de personagens do conto pode ser reduzida a um: o próprio narrador. Sozinho,
o narrador caminha, relembra, reflete e narra. Também ao contrário do que ocorrera nos
contos autobiográficos anteriores, aqui a proximidade entre fato narrado e narrativa, entre
experiência e elaboração do vivido, é reduzida ao mínimo.
Para os temas do conto, isso também traz consequências. Solidão, errância, memória
e atuação no presente se desdobram nos campos temáticos abordados pelo narrador, quais
sejam: sua individualidade e inserção no espaço urbano, as transformações da cidade e da
sociabilidade, a opção profissional pelo jornalismo e o trabalho jornalístico em si mesmo,
isto é, a reportagem que ele prepara enquanto caminha pela cidade e que é, afinal, o que
motiva, a princípio, a escrita deste conto.
A escolha profissional, que já vinha ganhando corpo no texto autobiográfico
anterior, assume em ―Amr‖ o primeiro plano. A própria razão de ser do conto é motivada
pela atuação profissional do protagonista, um jornalista incumbido de vir a São Paulo,
cidade que detém o ―recorde brasileiro de turismo de negócios‖, para cobrir um evento de
promoção do turismo. No momento da escrita, o narrador diz que já está na cidade ―faz
cinco dias‖. Na noite anterior, compareceu a mais um dos eventos promocionais da
campanha de divulgação turística, e acordou de ressaca. É assim que ele se lança a
caminhar pela cidade, a princípio à procura do sambista desaparecido, Germano Matias.157
Lembra também, a certa altura do ―pedreiro Valdemar‖, depois de ouvir um louco de rua
pronunciar os versos de uma marcha carnavalesca. A busca por Germano Matias e a frase
reincidente ―— Você conhece o pedreiro Valdemar?‖ irão percorrer o texto.158

157
Nascido em 1934, o sambista Germano Mathias cantou e dançou em 2009 no programa de televisão Sr.
Brasil, apresentado por Rolando Boldrin: www.youtube.com/watch?v=XFDLVAfuYuY. No ano seguinte,
participou da Virada Cultural em São Paulo e foi objeto de reportagem da Folha de S. Paulo, que o visitou em
sua casa, em um conjunto habitacional na Vila Brasilândia:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u694405.shtml. Uma biografia do sambista foi lançada em
2008: Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias, de Caio Silveira Ramos.
158
A canção que o narrador ouve na rua é a marchinha ―Pedreiro Valdemar‖, de Wilson Batista: ―Você
conhece o pedreiro Valdemar?/ Não conhece?/ Mas eu vou lhe apresentar./ De madrugada toma o trem da
circular,/ faz tanta casa e não tem casa pra morar./ Seu Valdemar é mestre do ofício,/ constrói o edifício/ e
depois não pode entrar‖.
117

Logo, porém, suas buscas se multiplicam: são os salões de sinuca do centro da


cidade que não funcionam mais, os próprios sinuqueiros que não estão mais lá e a boemia
como um todo que já não tem lugar, nos lugares em que ele, narrador, a experienciou. A
busca se torna uma sucessão de lamentos por aquilo que era do apreço deste narrador e que
desapareceu.
O narrador se distancia de sua tarefa imediata, que é escrever uma reportagem sobre
São Paulo como polo turístico. Em outras palavras, melhor dizendo, ele está a trabalho e, o
conto, ao mesmo tempo, é um retrato negativo deste mesmo trabalho. Trata-se de narrar a
dificuldade e, talvez mesmo a impossibilidade deste narrador-escritor-jornalista executar a
tarefa que lhe é confiada. Como diz Alfredo Bosi:

Na sinuca, na bola e no samba, negacear é preciso: arte de viver de um povo engodado por
séculos mas que se diverte fingindo que vai mas não vai. Malícia sem maldade revela a inteligência
da própria condição apurada no homem que sobrevive confiando apenas na destreza do pulo de cada
dia.
Nesse corpo a corpo amoroso com os obstáculos do caminho não há, nem por um momento,
uma reificação mercantil do tempo vital. Pelo contrário, o tempo continua a fluir subterrâneo, sem
pressa, na alma do pobre que joga, que canta ou que dança. Felicidade que parece negada ao pequeno
intelectual preso às cadeias do capital: o servo da propaganda, ―esta dama loureira e senhoril‖ na
palavra de Machado de Assis, o tarefeiro das empresas, o manipulador de signos por empreitada
(vulgo free-lancer), o pesquisador de ocasião. Sobre todos recai a sátira crua do nosso Autor, que
não poupa seu desdém nobremente plebeu por toda essa fauna agarrada aos meios de comunicação
de massa, vampiros de idéias alheias, onanistas de frases de efeito, demagogos cujo verbo venal é
quase uma fatalidade. O mercado de leitor consumista se entrega baboso a quem grita mais forte,
aparece mais vezes e chega mais rápido.159

É exatamente com as lides traiçoeiras da comunicação de massa, do jornalismo e da


publicidade que vai se deparar o narrador deste conto. Aqui, o contraponto inicial à escrita
jornalística é a linguagem publicitária. À medida que caminha pela cidade, o narrador
relembra alguns slogans que constam dos folhetos de divulgação da campanha oficial de
promoção da cidade. Se o slogan é ―Compre em São Paulo o que o mundo tem de melhor‖,
o narrador lembrará que os moradores de Presidente Altino, de Jaguaré, do Morro da Geada

159
BOSI, A. ―Um boêmio entre duas cidades‖. Prefácio a ANTÔNIO, João. Abraçado ao meu rancor, Rio de
Janeiro, Guanabara, 1986.
118

―mal têm para comprar o arroz-e-feijão com que se tapeia‖.160 Há outros exemplos
similares, contrastando a linguagem turística à realidade nua e crua que ele, narrador,
conhece. Aos exemplos publicitários, ele contrapõe a sua própria visão, uma visão de
dentro e não oficial, melancólica e ―rancorosa‖.
Seria de se esperar que o jornalista empreendesse, afinal, uma recapitulação de
elementos e fatos ligados à cidade que desmentissem a versão oficial (turística) sobre São
Paulo. De certa forma, é o que ele faz, mas não o faz segundo uma orientação objetiva e
jornalística, generalizadora, mas sim de acordo com suas experiências singulares e pessoais.
Em suma, o que deveria ter se tornado uma reportagem sobre a campanha de
promoção do turismo em São Paulo resultou num conto, e num conto de feições
específicas: autobiográfico, melancólico, saudosista, ―rancoroso‖. As aspas em rancoroso
ou em ―rancor‖ se devem à indefinição deste sentimento, que merece exame mais detido.
Voltaremos ao assunto. Por ora, lembre-se que o título faz referência a um tango,
mencionado pelo narrador. Num trecho em que fala de seus ―espetos íntimos‖ e das
mudanças, para pior, pelas quais passou a cidade — cidade que é sua ―comoção de
antigamente‖ —,161 ele alude ao tango que remete ao título do conto: ―Sei lá, sei lá por quê.
Estou me lembrando de uma letra de tangaço. Carregada. E em que o osso, o buraco e o
nervo da coisa ficam mais embaixo. Diz, corta, rasga que me quero morrer abraçado ao
meu rancor‖.162
A letra do tango ―Como abrazado a un rencor‖ fala de um homem moribundo que
em seus últimos momento de vida dá ao mundo seu ―testamento de palavras amargas‖. Diz
querer morrer sozinho, e lamenta uma traição. Diz o refrão: ―Yo quiero morir conmigo,/ sin
confesión y sin Dios,/ crucificao en mis penas/ como abrazado a un rencor.// Nada le debo a
la vida,/ nada le debo al amor:/ aquélla me dio amargura/ y el amor, una traición‖.163 Na
sequência, diz ele que não quer palavras de consolo nem perdão. Apenas a uma pessoa, à
mãe, se fosse viva, ele daria o direito de acender velas, voltar o peito sobre sua ―herege
agonia‖, chorar sobre suas mãos e pedir-lhe o coração.

160
Amr, p. 86.
161
A ―comoção de antigamente‖ evoca, sem que isso esteja enunciado, os versos de Mário de Andrade: ―São
Paulo!, comoção de minha vida...‖, do poema que abre Pauliceia desvairada, ―Inspiração‖.
162
idem, p. 95.
163
A letra pode ser consultada e a composição pode ser ouvida no seguinte endereço:
http://www.todotango.com/english/las_obras/letra.aspx?idletra=640. Último acesso em 26 jun. 2012.
119

A letra do ―tangaço‖, como diz o narrador, não é citada no conto. Mas a alusão a
uma letra de tango reafirma o tom de lamento do texto. A solidão e o sofrimento vinham
enunciados desde o título do conto, mesmo que desconhecêssemos a referência ao tango. O
título alude a um abraço pesaroso e solitário. E o isolamento que se anuncia vem se
confirmar na sequência do texto. O narrador não irá encontrar o sambista desaparecido e
não irá travar contato com nenhum outro personagem — senão com a mãe, ao final do
relato. A letra do tango, portanto, ressoa na narrativa para reafirmar a solidão e o balanço
da vida de um sujeito sofredor, mas altivo.
Ocorre então que as experiências sobre a cidade se reduzem às experiências
individuais do próprio narrador, às suas lembranças, sentimento e ações. É como se a
cidade pudesse, afinal, ser reduzida à cidade que ele mesmo experienciou. É a ―minha
cidade de meu pai‖, como ele dirá. E também à cidade que ele encena, percorre, em
situação, no desenvolvimento do relato e da ação narrada.
No entanto, como o tom melancólico indica, esta é uma cidade que não se deixa
reduzir, nem mesmo à experiência pessoal. O João Antônio narrador parece concluir que,
além das transformações pelas quais a cidade passou, desfigurando a si própria e exilando
alguns de seus personagens — como Germano Matias, que já não se sabe onde foi parar, e
como os sinuqueiros anônimos, que se ―esquinizaram‖ —, parece concluir que a cidade
também, e talvez por isso mesmo, já não acolha as experiências dele próprio, nem as
passadas, tampouco as atuais.

A cidade deu em outra.


Deu em outra cidade, como certos dias dão em cinzentos, de repente, num lance. As caras
mudaram, muito jogador e sinuqueiro sumiu na poeira. Maioria grisalhou, degringolou, esquinizou-
se para longe, Deus saberá em que buraco fora das bocas-de-inferno em que eu os conheci. Ou a
cidade os comeu.
Mas o espírito o mesmo. Dureza, rebordosa, de déu em déu, frio, tropel, sofrência, ô solidão de
cimento armado e quanto se enfia represado e se enrosca e se intrinca, cinicamente ou desnorteado e
sem solução — transportes, serviços, inda mais para além da Lapa, no pedaço de Presidente Altino,
Jaguaré, Anastácio, Morro da Geada, Osasco.(...)164

164
Amr, p. 80.
120

―A cidade deu em outra‖. A ênfase é na mudança: no desaparecimento da aventura


da boemia, na extinção dos sinuqueiros, que foram consumidos, devorados pela cidade. No
entanto, como se lê no trecho acima, há algo que permanece: o espírito da cidade. E este
espírito é de solidão e confusão: ―sofrência‖, frio, tropel e avanços interrompidos ou
solavancos (―de déu em déu‖). A cidade mudou, devorou alguns de seus personagens, mas
mantém seu espírito impessoal, dificultoso, acelerado e conflituoso (―tropel‖), ao mesmo
tempo que acidentado, interrompido. Como se trata de ―espírito‖, subentende-se que seja
algo persistente, mas também algo do âmbito da experiência urbana que não é exatamente
próprio da cidade em si, mas que se reflete em seus moradores, no espírito das pessoas.
Mais especificamente no morador que é este narrador que retorna e recorre, de novo, aos
seus lugares de estima: Lapa, Presidente Altino, Jaguaré, Vila Anastácio, Osasco, Morro da
Geada.
A construção para falar do espírito frio, sofrido e solitário do cimento armado da
cidade também desvia a atenção narrativa da cidade para o narrador e de novo para a
cidade: a sofrência e a solidão são de cimento armado, mas também de ―quanto se enfia
represado e se enrosca e se intrinca, cinicamente ou desnorteado e sem solução —
transportes, serviços (...)‖.
Cidade e narrador parecem estar aqui em curto-circuito: um remete ao outro,
aparentemente ―sem solução‖, ao menos neste percurso que é o percurso antigo, um
percurso antigo que mudou, pois a cidade deu em outra, mas que mantém o mesmo espírito.
No narrador, esse curto-circuito se expressa e se formula. Diz ele que ―se enrosca e se
intrinca‖. E o curto-circuito manifesta-se numa espécie de represamento, em que se vai
―cinicamente ou desnorteado‖.
A cidade, diz o narrador, mudou, mas continua com o mesmo espírito. Vale dizer
que o espírito é, na verdade, o do narrador na cidade, cidade que mudou, mas que ainda
pode ser percorrida pelos mesmos circuitos, circuitos que, no entanto, agora estão em curto.
Cidade e narrador se relacionam e se embaralham, por conta da experiência passada, da
boemia que não existe mais e de um espírito duro que permanece nos ―transportes,
serviços‖ que vão dar na Lapa e além: vão dar no percurso de juventude deste narrador,
num passado que é de alta estima e, porém, não existe mais.
121

O trabalho da escrita

A ênfase neste lamento pelo que passou, sumiu e não pode mais ser vivido é no
desaparecimento da boemia, mas não menos importantes são as passagens em que o
narrador comenta o seu avesso, isto é, a faina do trabalho, a sua opção profissional. É aí que
entendemos morar o ―rancor‖, e não no universo da boemia e no seu desaparecimento.
Emoldurado pelo espírito duro, frio e sofrido da cidade, vai o narrador ―cinicamente ou
desnorteado e sem solução‖. A que se relacionam esses sentimentos de cinismo e falta de
norte? Certamente à boemia, que não existe mais, o que o desnorteia, mas também à opção
profissional do narrador, narrada aqui em ato, e que é examinada, entre o ―rancor‖, o
desnorte e o cinismo.
Não são poucos os trechos da narrativa em que o jornalista-escritor tece
considerações sobre sua ocupação. A primeira ocorrência se dá nas páginas iniciais do
conto, em que o narrador conta como recebeu a pauta sobre a campanha de divulgação do
turismo em São Paulo. Ele descreve a redação em que trabalha como um ambiente velho:
―um assoalho batido, ruço, gasto, feito resto estropiado da faina‖. E compara este tempo de
desânimo e esgotamento a outro tempo, em que ―a redação fora um lugar de entusiasmo,
rumor e movimento‖. O narrador dirá por que: ―Isso sem a ditadura‖. Agora, porém,
―transpirava-se nojo, derrota e, pior, um nhém-nhém-nhém, um chove-não-molha dos
capetas‖.165
A ocupação de jornalista, no momento atual da narrativa, ganha contornos
esmaecidos, derrotados. O narrador lembra a situação política: vive-se o regime militar, a
ditadura. Sem ela, ou melhor, antes dela, havia ―entusiasmo, rumor e movimento‖. Mas
agora a expressão e a possibilidade de atuação estão dificultadas: impera o ―nhém-nhém-
nhém‖, isto é, um discurso que não diz nada, e um infernal ―chove-não-molha‖, ou seja,
ações que não se efetivam.
A contextualização é importante, pois marca o tempo histórico e o pano de fundo
político em que se produz o texto — e chama a atenção, pois é pouco frequente na obra de
João Antônio.166 Mas a referência ao regime militar não ganha desenvolvimento na ação

165
Amr, p. 79.
166
As referências à ditadura são escassas na obra do autor. Não se tem notícias de que João Antônio tenha
tido problemas sérios no período. Ao contrário, Flora Süssekind, por exemplo, acredita que a ditadura e a
122

narrada. A situação política, apesar de claramente desfavorável à atuação dos jornalistas,


não irá ganhar, no desenvolvimento narrativo do conto, qualquer consequência. Em ―Amr‖,
as dificuldades para a atuação jornalística e para a expressão verbal vão se dar, isto sim, no
âmbito social e econômico, na contenda entre o discurso turístico (oficial e publicitário) e a
escrita literária (pessoal e jornalística, a seu modo), entre a pujança econômica (o recorde
do turismo de negócios) e a persistência da pobreza e das desigualdades sociais, que se
expressam no tecido traiçoeiro e maligno da cidade (a poeira, os buracos, as bocas-do-
inferno, o ―espírito‖ duro e frio de concreto armado e de ―sofrência‖). O trabalho, assim,
avulta como tema central do conto, em determinado contexto histórico, contraposto a um
momento anterior, em que se trabalhava com mais entusiasmo. Assim como a boemia, que
perdeu seu viço, desapareceu ou se mudou, também o trabalho já não tem o mesmo apelo e
entusiasmo, já não motiva como antes.
Centrais para a constituição e para o desenvolvimento do conto, as considerações
sobre o trabalho, portanto, merecem atenção. As passagens em que o autor aborda a prática
do jornalismo e da escrita são numerosas e extensas, e não haveria espaço aqui para um
exame minucioso dessas reflexões. O sentido geral foi muito bem apontado por Alfredo
Bosi: a instrumentalização e a orientação comercial da escrita, que afetam a publicidade e
também o jornalismo.
Vale notar, porém, que de início o trabalho aparece referido de maneira geral e
abrangente, algo entre o social e o metafísico, relacionado à cidade e à meditação sobre o
sentido da vida. Mas logo a reflexão se particulariza e é redirecionada para, mais uma vez,
a ocupação do próprio narrador. Essa passagem se dá sem escalas, o que indica uma
inclinação inicial de universalidade, que logo recai em particularização, ancorada no
depoimento, na experiência pessoal — em suma, na autobiografia.

censura favoreceram a recepção da obra de João Antônio. Para a autora, a censura fez ―vista grossa‖ aos
textos de denúncia de José Louzeiro e João Antônio, ―porque neles, como na maior parte da literatura-verdade
do período, percebem colaboradores bastante eficientes. Isto porque servem ao mesmo senhor: ao interesse de
representar literariamente um Brasil. E até o negativo da foto interessa à Política Nacional de Cultura. Em
positivo ou negativo, o texto-retrato tende a ocultar fraturas e divisões, a construir identidades e reforçar
nacionalismos pouco críticos‖. SÜSSEKIND, F. Literatura e vida literária. Polêmicas, diários e retratos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 27. Como se disse, nenhum livro do autor foi censurado, mas sofreu
censura prévia a edição da revista Extra – Realidade Brasileira. Malditos Escritores!, no. 4, ano I, mar. 1977.
Ver SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio, op.cit., p. 45.
123

Viver... Viver é assim, aturdir-se? Aqui se batalha e aqui não se pára. É preciso, hoje mais
amanhã, se aturdir pelo trabalho. Assim fazem as pessoas e será provavelmente para se esquecerem
de que vivem aqui. E bom não é. Mas viver é isto?
Esta profissão não presta. Com o tempo, você vai empurrando a coisa com a barriga, meio
pesadão. Sem qualquer alegria, garra ou crença, cutucado pela necessidade da sobrevivência.
Apenas. O pior, se existe um, é que esta ocupação sovina e instável acaba como que atraindo azares,
vícios, mortificações e levantando desejos de destruição, pespegando sentimentos culposos. A
bebida, alguma esbórnia, outros empurrões que se tenta dar nessa consciência só fazem afundar mais
o poço.
Muita vez, tenho achado. Devo estar já no fundo dele. E, assim futricado, só escrevo porque
tenho uma consciência culposa. Um homem limpo vai para casa e dorme. Ou vive, ama. E não há
fantasmas que o atormentem. Um homem de bem dorme.167

O trecho acima resume o tom e o caminho das reflexões. Começa com


considerações gerais, de inclinação abrangente e filosófica, sobre a vida e o trabalho, para
então particularizar o comentário, ao indicar de qual trabalho ou profissão se trata. Parece
ser o jornalismo, afinal, o tema em questão, já que se infere que é da escrita profissional
que se fala. O trecho preserva, porém, certa ambiguidade, ao tratar da ocupação de
escrever. Seria jornalismo ou literatura o tema da meditação? Ou ambos?
A princípio, é de jornalismo que se fala, pois o narrador trata de uma ―profissão‖,
em que se persevera, como que inerte (―pesadão‖), pela ―necessidade de sobrevivência‖. É
o jornalismo, certamente, o ganha-pão, a atividade que proporciona essa sobrevivência, e
não a literatura.
Essa mesma profissão atrai ―azares‖, ―vícios‖, ―mortificações‖, ―desejos de
destruição‖, ―sentimentos culposos‖. É uma ocupação ―sovina‖ e ―instável‖, que o faz
atingir o fundo do poço. E o fundo do poço continua a afundar ainda mais, por conta da
bebida e da esbórnia. Ainda se tem a impressão de que se fala do jornalismo, que causa
culpa, talvez neste caso por conta da instrumentalização da escrita, e que leva à boemia
desencantada, resumida à ―bebida‖, isto é, à libação sem charme ou prazer, reduzida ao
conteúdo líquido, e à ―esbórnia‖, ou seja, uma festividade desorientada, ou a uma bagunça,
uma animação caótica, sem rumo.

167
Amr, pp. 81-82.
124

O jornalismo parece, então, ser o objeto de análise e meditação, o trabalho e a


profissão a que o narrador se refere. No último parágrafo do trecho, porém, o narrador
parece ter trocado de objeto de análise. Diz que pensa já ter atingido o fundo do poço, mas
que continua escrevendo, não mais por necessidade, mas por ter uma ―consciência
culposa‖. São os ―fantasmas‖ que o fazem continuar a escrever, e não mais a necessidade
de sobrevivência. Trata-se, portanto, de escrever não por uma demanda material, não pela
sobrevivência, mas por necessidade espiritual ou psicológica.
Não seria então do jornalismo que se trata, mas de literatura, de uma escrita vital,
que se impõe apesar de todas as necessidades materiais de sobrevivência estarem atendidas.
Ou trata-se das duas coisas?
A ambiguidade permanece e é esta ambiguidade, em verdade, que talvez instaure a
culpa. Uma ambiguidade e uma divisão, digamos, que se manifesta em vários planos e que
define o momento maduro de João Antônio, de maneira atormentadora.
Nesse sentido, o título do prefácio de Alfredo Bosi a Amr é muito feliz: ―Um
boêmio entre duas cidades‖. Cidade do passado e cidade do presente, cidade paterna e
cidade própria, São Paulo e Rio de Janeiro definem, afetiva e geograficamente, a divisão
interna do autor, que neste conto ganha expressão tão clara na ação narrada. Lembre-se que
o conto narra a história deste jornalista de São Paulo, que mora no Rio e retorna à cidade
natal para escrever sobre ela, e já não a reconhece. Ele retorna para escrever uma
reportagem sobre a São Paulo turística, mas empreende um percurso por sua cidade de
infância e juventude e, não a encontrando, escreve não uma reportagem, mas um conto
autobiográfico sobre a cidade que não é mais, ainda sendo. A divisão geográfica é
acompanhada também pela divisão sobre a profissão ou ocupação, pela divisão entre
jornalismo e literatura, entre escrita jornalística (profissional, vendida, cínica, viciada) e
escrita literária (apaixonada e necessária, ao mesmo tempo fantasmagórica e vital).
O drama é também pessoal, e é o drama do próprio João Antônio. O narrador o
formula com precisão no que se refere à sua condição social: ―Desaprendi a pobreza dos
pobres e dos merdunchos. E, já creio, aprendi a pobreza envergonhada da classe média.‖168
É o próprio autor que é jornalista e escritor, é pobre e não é mais pobre, é merduncho e é de
classe média, que sofre a crise de ser e não ser mais.

168
Amr, p. 102.
125

Bosi também aponta para este impasse, ao comentar a volta do narrador à casa
materna: ―Ele não volta para sempre: parece impossível o retorno a quem já transpôs o
limiar da classe‖.169 Com ênfase não na posição social, mas no estado psíquico, Simone
Paulino destaca a persistência do rancor e da melancolia, associados à culpa: ―O emprego
da expressão ‗pespegando sentimentos culposos‘ é exemplar. O verbo ‗pespegar‘ tem o
sentido de assentar, comportando, por sua vez, a acepção de ‗depositar‘, sugerindo a
existência de um princípio de acumulação na subjetividade da personagem, em consonância
com a expressão ‗carregado de mim‘, da epígrafe, e, acentuada pela aliteração do ‗p‘,
representação metonímica da sensação de peso‖.170 A autora liga o rancor a um
ressentimento, algo que reincide e permanece, mantendo o autor, melancólico, ligado a um
sentimento antigo.
O narrador, entretanto, parece se revoltar contra esse estado de coisas. Ele prefere a
falta de norte ao cinismo, e a falta de norte se opõe mesmo ao cinismo. Mas gera rancor ou,
pelo menos, não é capaz de eliminar o rancor. O ―rancor‖ nasce ou padece desta falta de
norte, que se opõe ao cinismo, mas que não encontra destino, não encontra, obviamente,
orientação, novos caminhos, aventura, e redunda na ―ânsia deambulatória‖, de que fala Bosi
no prefácio ao livro. Abraçado ao próprio ―rancor‖ — esse sentimento vago e violento, que
se dirige contra algo que não se sabe bem o que é, mas se intui que seja relacionado à perda
(à desaparição da cidade de juventude), uma perda que é social, mas também é pessoal, e ao
sofrimento psíquico (o arrefecimento do entusiasmo pelo jornalismo, que hoje já não
empolga como antes) — abraçado ao próprio rancor, ele percorre a cidade, a princípio sem
rumo, desnorteado.
Até tomar uma atitude: decidir-se, afinal, ―ir para casa‖.
A falta de norte poderia se direcionar para a ―perdição‖, para a boemia ou para uma
errância sem fim, para a busca, tão primordial na obra de João Antônio, como sabemos.
Mas ela termina, nesta narrativa, por guiar o narrador não para a queda, para o desvio,
tampouco para a aventura da busca ou da boemia, mas para o retorno, para um caminho
antigo, para um caminho de regresso, e quiçá, regressivo. O narrador está ocupado com

169
BOSI, A. ―Um boêmio entre duas cidades.‖ In: Amr.
170
SANTOS, S. op. cit., p. 165.
126

―sentimentos culposos‖ e com uma ―consciência culposa‖. Culpado e ―rancoroso‖, sem


saber o que fazer, decide empreender uma volta.
A culpa, do ponto de vista psicanalítico, como se sabe, é fortemente vinculada ao
desejo de morte do pai. Freud a analisou em ―Dostoievski e o parricídio‖, ligando-a ao
sentimento ambivalente que o menino mantém em relação ao pai. Segundo Freud, ao
mesmo tempo que nutre ódio ao pai, e tenta se livrar dele como a um rival, também sente
amor e ternura por ele, tendendo a ver o pai como um modelo.

[...] As duas atitudes mentais se combinam para produzir a identificação com o pai; o menino deseja
estar no lugar do pai porque o admira e quer ser como ele, e também por desejar colocá-lo fora do
caminho. Todo esse desenvolvimento se defronta com um poderoso obstáculo. Em determinado
momento, a criança vem a compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria punida por
ele com a castração. Assim, pelo temor à castração — isto é, no interesse de preservar sua
masculinidade — abandona o desejo de possuir a mãe e livrar-se do pai. Na medida em que esse
desejo permanece no inconsciente, constitui a base do sentimento de culpa. [...]171

Os sentimentos culposos que ainda o atormentam, este narrador os liga à profissão,


isto é, ao jornalismo, mas também à sua atividade de escritor. Ainda que não mencione o
pai, nessa passagem, é clara a ligação desses sentimentos com o seu anterior confronto com
o pai, que, como vimos em ―PMCMS‖, se deu por conta dos hábitos boêmios e
desregrados. Mas o golpe final contra o pai, apesar da ênfase na descrição do
comportamento boêmio, foi desferido, no conto anterior, com a revelação do pseudônimo e
da visita dos homens da editora, o que significou, como já afirmamos, a consagração do
jovem João Antônio Ferreira Filho no âmbito familiar e comunitário.
A escolha pela literatura e depois pelo jornalismo, portanto, tem na raiz um claro
sentimento de contraponto ao pai, que, como vimos, o queria comerciante. Daí porque a
segunda escolha de João Antônio, o jornalismo depois da literatura, faça com que ele, de
alguma forma, recaia na mesma crise de infância e juventude, e no desejo inconsciente de
matar o pai. A dúvida, o impasse, a hesitação são componentes hamletianos, de um
personagem, como se sabe, consagrado pela inquietação do ―ser ou não ser‖ e pelo

171
FREUD, S. ―Dostoiévski e o parricídio‖. In: O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros
trabalhos (1927-1931). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.
XXI, Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp 188-189.
127

fantasma do próprio pai. Aqui, é o narrador, mas é também João Antônio — ocupado com
seus ―fantasmas‖, também ligados à figura paterna — que deseja ser algo que já não pode
ser mais. A ambiguidade e a hesitação parecem insolúveis.
Nesse momento em que o jornalismo se mostra uma profissão ―vendida‖,
perigosamente próximo da linguagem publicitária do turismo de negócios, o fantasma é o
fantasma do pai comerciante. Os desejos de matar o pai, inconscientes, voltam assim, na
forma de culpa em relação à escolha pelo jornalismo, mas também pela literatura. No caso
do jornalismo por ele ter se tornado um comerciante de palavras (como o pai) e no caso da
literatura por ter se tornado um artista da palavra (contrariando o pai, sentencioso e que o
queria comerciante ou, de maneira mais ambígua, músico). Em ambos os casos,
contrariando e contemplando as vontades paternas.172
O sentimento culposo é vago e indeterminado. Mas o impulso da ação é preciso. É
por isso que, a certa altura, o narrador decide retornar e termina, afinal, por encontrar
parada: a casa da família. ―Porque foi, porque não foi, no meio de um dos goles de chope,
resolvo ir para casa‖.173 De súbito, depois da jornada pela cidade, ocupado com a sua
divisão interna, ele decide ir para casa, para a antiga casa de infância, em Osasco. E ele vai

172
O depoimento da Carta ao pai, de Kafka, é eloquente sobre a tirania e o caráter castrador do pai contra o
filho: ―É fato que você nunca me bateu de verdade. Mas os gritos, o enrubescimento do seu rosto, o gesto de
tirar a cinta e deixá-la pronta nos espaldar da cadeira para mim eram quase piores. É como quando alguém
deve ser enforcado (...) Além do mais, das muitas vezes em que, na sua opinião declarada, eu teria merecido
uma surra, mas escapara por um triz por causa da sua clemência, se acumulava de novo um grande sentimento
de culpa. De todos os lados eu desembocava na sua culpa.‖ (p. 30). A relação de Franz com seu pai guarda
semelhanças, mas também diferenças com a de João Antônio Ferreira e João Antônio Ferreira Filho. Os
sentimentos positivos do nosso escritor sobre o pai são enfáticos, assim como as diferenças marcantes que os
separavam. A carta que João Antônio escreveu por ocasião da morte do pai (reproduzida no Apêndice desta
tese) e também algumas de suas cartas posteriores expressam claramente o afeto que sentia por ele e a
importância que reconhecia no pai para sua formação e para a sua sensibilidade estética, nas letras e na
música. No âmbito das diferenças, o trato severo do pai, em contraste com a simpatia bonachona e
inconsequente do filho (―pra lá de Bagdá‖), e a escolha pela vida boêmia e pela literatura (como vimos neste
capítulo, negando os desejos paternos de que se tornasse comerciante), também lembram a relação dos
Kafkas: o pai comerciante, ativo, burguês; e o filho atormentado pela repressão paterna, pela culpa,
―preguiçoso‖ e ocupado com a ―afirmação espiritual da existência‖. O trecho seguinte fala da influência do
pai nas relações interpessoais de Franz: ―A desconfiança que você procurou me ensinar, na loja e na família,
contra a maioria das pessoas (...) — essa desconfiança, que enquanto eu era pequeno não se conformou aos
meus próprios olhos em lugar nenhum, uma vez que eu via em toda a parte apenas pessoas inalcançavelmente
distintas, transformou-se na minha cabeça em desconfiança de mim mesmo e em medo permanente dos
outros.‖ (p. 45) E talvez se possa ver a literatura do nosso autor nos termos em que Franz Kafka refere-se à
influência paterna sobre sua obra: ―Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não
podia fazer no seu peito. Eram uma despedida intencionalmente prolongada de você; só que ela, apesar de
imposta por você, corria na direção definida por mim‖ (p. 52). KAKFA, F. Carta ao pai. Trad. Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
173
Amr, p. 130.
128

refazer esse caminho como uma espécie de expiação da culpa por ter deixado a casa paterna
e ter ascendido socialmente. Em vez de pegar um táxi, como vinha fazendo em seus
deslocamentos profissionais, ele decide tomar um trem para empreender mais uma vez o
percurso de juventude, até Presidente Altino.
Antes de chegar, durante o percurso mesmo, é importante notar que o narrador se
inclui entre os trabalhadores que vão com ele no trem. E a maneira com que faz isso, é
contrapor a estes os ―sabidos dos jornais‖:

[...] Aqui nos trens vamos mergulhados de cabeça, tronco e corpo numa vida sem retoque ou
frivolidade. Mas o lado de dentro da gente ferve. Aí, então, se nos entalam, vem uma depredação, e
os sabidos dos jornal nos lacram, somos chamados de nomes. Vândalos. Pior é que o tempo passa e
não há melhoria nos trens. Depredação pouco assusta quem tem a polícia a seu favor. E o povinho
toca a vida.174

Vê-se que a tentativa é se contrapor aos ―sabidos dos jornais‖, àquilo que,
justamente, ele se tornou ao deixar a casa paterna ou, em outras palavras, aquilo que virou
ao ultrapassar o pai, ao negar seguir o mesmo caminho. Esta nova recusa, aquela que o faz
se contrapor aos ―sabidos dos jornais‖, de alguma forma repõe o mesmo desejo: enfrentar o
pai, um sabido, um homem de espírito proverbial, e um comerciante, assim como são os
jornalistas, ―sabidos‖ comerciantes de palavras. Mas expressa também a culpa de ter se
tornado, ele próprio, um ―sabido‖, um intelectual de formação mais ampla e longa que a do
pai (e que a dos trabalhadores, entre os quais ele procura agora se incluir).
O termo sabido retoma ainda o trecho de ―PMCMS‖ em que ele defende uma escrita
―envenenada, escrachada, arreganhada‖, em oposição a como os ―sabidos‖ veem a vida
aqui fora, isto é, a realidade, em oposição à literatura. Vejamos de novo o trecho:

174
Amr, pp. 138-139. Note-se que o narrador ressalta que as os homens do povo, entre os quais ele se inclui,
são chamados de ―vândalos‖, ou seja, de bárbaros, presumivelmente pelos jornalistas, os ―sabidos dos
jornais‖. A imprensa os tacha de bárbaros, afirmando o pretenso caráter civilizador das classes altas e dela
própria, imprensa. O narrador, aqui, evidencia o processo por meio do qual a sociedade de ―bem‖ diminui e
marginaliza. Com isso, esboça a tentativa de relativizar, dado o seu ponto de vista interno, e mesmo inverter
os sinais dessa classificação excludente e estigmatizadora. A perspectiva, agora, é desencantada: ―o povinho
toca a vida‖, diz o narrador. A passagem contrasta com aquele enlevo do narrador de ―PMCMS‖ que dizia
que não há nada como a vida para ser tocada.
129

Nem me venham dizer os sabidos que a vida, aqui fora, fede de outro modo. Parece-me que
onde se está abrindo com a frase: ―Respeitável público!‖, talvez coubesse esta, assim: ―Detestável
público!‖. Afinal, deliberadamente ou não, o escriba é um servo da classe média. Então, não comece
com floreio de brilhareco, pois estará entrando exatamente no joguinho que essa classe espera
dele.175

O receio de se tornar um ―servo da classe média‖, que ele temia afetar a sua escrita
envenenada se consumou, não na literatura, mas no jornalismo. O narrador conseguiu
salvar a literatura do ―floreio de brilhareco‖ — por meio do rancor. Se o jornalismo não
empolga, tal com ele se apresenta neste momento de adversidade econômica e política,
resta a literatura, mas uma literatura que não compactue com os valores de classe média.
Uma literatura suja, arreganhada e envenenada, isto é, feita contra a classe média. Como
fazê-lo? Retornando, voltando à biografia e às origens.
O narrador volta ao lugar de origem: ―Fora daqui, por mais que me besuntem de
importâncias, fique conhecido ou tenha ares coloridos, um quê me bate e rebate. Foi desta
fuligem que saí. E é minha gente‖.176
Finalmente, ao voltar ao bairro de infância e a casa, descobrimos que a volta é uma
volta à mãe.

Piso o pedregulho úmido da estação, calado como os outros, cato a passagem de nível,
ganho as ruas esburacadas, de terra, onde água poluída se empoça esverdeada no meio-fio.
Não mais prédios, a vista vai se acostumando. Olho as casas baixas, descascadas no
sombreado das ruas que a iluminação expõe mal e mal; cães e algum gato vagabundeiam pelos
cantos. Sujeitos tristes nas portas, raros nas calçadas. Ou se discute futebol ou se entorna nos
botequins. Frio.
A noite caiu. Entro, peço grande e repito, espero arder na garganta. Que lá em cima venta
bravo.
E toco a subir o Morro da Geada. Um pensamento me passa, que empurro. Se tivesse de
viver de novo aqui, de onde me viria força? Vinte minutos sozinho, vento ou pernilongos enormes,
pretos, na picada do mato e da barba-de-bode.
Mamãe fica tímida, depois do beijo. Não querendo contrariar, só pergunta, jeitosa, como
estou e se volto. E se é para ficar. Não vou responder, no começo. Eu vou engolir café. Puxar um
cigarro, andar para a janela. Como se ouvisse os grilos.

175
Dedo-duro, p. 89.
176
Amr, p. 139.
130

Faço tenção de me explicar, que cheguei tarde da noite. Mas ela é minha mãe:
— A sua arte não permite dois amores.177

Fim da narrativa.
O narrador retorna ao Morro da Geada, onde, a fim de amainar o frio, para num
botequim para tomar um trago, que lhe arde a garganta. Finalmente chega a casa, onde
reencontra a mãe. O narrador observa que a reação da mãe é de timidez, de cuidado tateante
em relação ao filho.
A alternância dos tempos verbais entre presente e futuro, na passagem final, a do
reencontro com a mãe, é o artifício de construção verbal mais importante deste belo e
enigmático desfecho.
Os verbos da frase que descreve o comportamento intimidado da mãe, com a
presença inesperada do filho, estão no presente: ―fica‖, ―pergunta‖. O uso do presente do
indicativo aponta para a continuidade da ação narrada, pois a ação do narrador vinha sendo
assim descrita. Mas quando o narrador passa a descrever a sua própria reação de filho ao
reencontro com a mãe, ocorre uma mudança de tempo verbal, do presente para o futuro. A
passagem é gradual, pois começa com um verbo no presente, indicando futuro, ou melhor,
por uma locução verbal, ―vou responder‖, mas na negativa, ―não vou responder‖, seguida
de outra locução verbal no presente, indicando futuro: ―vou engolir‖. Depois, duas orações
sem sujeito, com verbo no infinitivo: ―Puxar um cigarro, andar para a janela‖.
O final do trecho retoma o presente do indicativo, a fim de levar a ação adiante, e
afinal encerrar a ação, ainda que a última palavra seja a da mãe. O narrador faz tenção de se
explicar, mas a mãe se antecipa, sintomaticamente glosando a divisão que é a marca deste
narrador: ―A sua arte não permite dois amores‖.
A frase nega a divisão da arte do narrador entre ―dois amores‖, e o leitor termina o
conto se perguntando que arte é essa e quais seriam esses dois amores.
Mais importante que isso, porém, o leitor fica se perguntando se o encontro com a
mãe realmente se deu. Como a construção verbal é ardilosa, entre presente e futuro, é
possível ler este desfecho do conto como algo irrealizado ou, talvez, imaginado. Como a
ação narrada no encontro com a mãe começa com o verbo no presente, o leitor é levado a

177
idem, pp. 141-142.
131

situar o encontro no plano da ação. Mas as locuções verbais no presente, indicando futuro,
sugerem que ação não se dá, ou melhor, pode se dar apenas na imaginação do narrador.
O final do conto indica que a ação pode ter sido interrompida imediatamente antes.
A ação pode ter terminado com o narrador subindo o Morro, pensando se teria forças para
voltar a morar ali. Ele chega mesmo a formular a si mesmo esta pergunta crucial: ―Se
tivesse de viver de novo aqui, de onde me viria a força?‖. Para esta pergunta, ele não
encontra resposta verbal, mas a responde com o corpo, incapaz de continuar. A pergunta o
paralisa: ―Vinte minutos sozinho, vento ou pernilongos enormes, pretos, na picada do mato
e da barba-de-bode‖.
Dizer que a ação termina antes do desfecho, significa que o encontro com a mãe
permanece no plano da imaginação. E que a reação dela é projeção do filho. Significa que o
filho gostaria de ser recebido pela mãe da maneira com que o encontro é narrado. E que a
mãe, por fim, reconhecesse que a sua ―arte‖ não permite ―dois amores‖. Arte pode ser a
literatura e um dos amores, o amor de mãe. A arte pode ser a escrita, e os dois amores
podem ser ―jornalismo‖ e ―literatura‖, esta sendo a escolha amorosa de sua preferência.178
Mas, a rigor, de qual arte se trata e quais amores seriam esses, o conto não diz.
O leitor, porém, entende que a mãe, resignada, percebe que o filho não voltou para
ela, isto é, não voltou em definitivo. A frase final, se imaginada pelo narrador na boca da
mãe, significa que ela sabe que o filho tem outro amor, e que a escolha do filho pela arte
resultou na fuga do filho rumo a outro amor, que não o dela. O conto não diz que arte é essa
e que amores são esses. Mas é possível (e desejável) ler a frase final do conto literalmente:
a arte o conduziu a outro amor. Um outro amor nega ou substitui o primeiro, o qual,
presume-se, seja o amor da mãe, aquela que enuncia a frase. A aparição da figura da mãe,
portanto, evidencia que a volta é a volta ao amor da mãe, ainda que esta mesma saiba que a
volta não é definitiva, é apenas uma visita.
A situação é paradoxal. Do ponto de vista profissional ou da vocação — abordagem
a que somos impelidos pelo uso da palavra ―arte‖ — não se sabe ao certo quais são os dois
amores ou, se estes são a literatura e o jornalismo, qual deles é o amor que o narrador não
troca pelo outro.

178
Em carta de 1993 a Mylton Severiano, diz o escritor: ―Esta fama que não põe mesa, esse desarvorado amor
pela literatura, essa paixão dos capetas, quanto mais eu embranqueço os cabelos, mais apaixonado fico. É
sina, é missão e é grande demais‖. SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio, op.cit., p.60.
132

Do ponto de vista pessoal, por sua vez, o reencontro com a mãe repõe o conflito
edípico. O narrador volta à mãe, que ainda o deseja só para si, mas ele, na verdade, não
quer voltar e não pode voltar. Ele volta para ficar com a mãe, mas não para sempre, em
definitivo, pois sabe que isso já não é possível. A mãe também sabe disso, por isso é capaz
de formular a frase enigmática, que relaciona arte e amor, referindo-se certamente à
vocação, ao talento, à profissão e ao amor, que tanto se relaciona às escolhas profissionais
como às opções pessoais, afetivas.
A mãe sabe que a arte do filho, isto é, sua escolha vocacional, seu talento e sua
atividade profissional — literatura e jornalismo confundidos — se relacionam com o amor.
E que a escolha da arte foi também a escolha de um amor.
A ambiguidade e a indeterminação são grandes, pois não se sabe se a afirmação
traduz uma resignação materna (a mãe que sabe que o filho tem outro amor) ou uma
afirmação segura da mãe (que sabe que o filho só ama mesmo a ela) ou ainda se é a
imaginação do narrador, antecipando o encontro, e nesse caso imaginando que a mãe,
afinal, aceita sua condição de filho desgarrado. Nesta última hipótese, essa volta que não é
uma volta é uma forma de o narrador tentar expiar sua culpa de tê-la procurado em outras
mulheres, a expressão da culpa por ter, afinal, superado o Édipo, de ter ido muito longe,
desgarrado, ―pra lá de Bagdá‖, até a Nairlândia, a cidade das marafonas.
O que o conto também não diz — mas coloca em cena — é por que o encontro se dá
apenas com a mãe. O pai está ausente deste desfecho, apesar de ter sido tão importante ao
longo do relato, ao menos no que se refere à relação do narrador com a cidade e, por
extensão, com a boemia e também com o trabalho. Ressalte-se que não se trata de uma
ausência com correspondência real: o pai do próprio João Antônio ainda era vivo, quando
da publicação de Amr.179
O que esta ausência paterna quer dizer?
A ausência do pai no momento da ação está de acordo com a volta à casa e à mãe. E
se relaciona também à impossibilidade da ação. Em outras palavras, a ausência paterna é
necessária e condizente com o desfecho da narrativa. O narrador, abraçado ao seu rancor,

179
João Antônio Ferreira, pai, morreu em 1988, quando o filho, João Antônio, estava na Alemanha. A
informação está em SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio. op.cit., p. 174. Em nossa pesquisa no Acervo
João Antônio, no Cedap da Unesp de Assis, localizamos uma carta do autor que registra a data precisa da
morte do pai: 13 fev. 1988. Cópia desta carta está reproduzida no Apêndice desta tese.
133

volta a casa, onde não pode encontrar o pai, pois o pai é, ao mesmo tempo, a figura que lhe
devolve ao passado, à cidade que não existe mais, e a figura que pede enfrentamento,
desafio, para que a ação e a aventura possam se realizar.
É, portanto, a ausência do pai — o fantasma do pai — que mantém o narrador neste
estado de rancor e melancolia, de ausência de ação. Ele sente culpa por ter deixado a casa
paterna, por ter se ―bandeado pelo mundo‖, por ter deixado de ser pobre e ter ingressado na
classe média, por ter se tornado jornalista e não escritor, ainda que as atividades de
jornalista e escritor convivam nele.
E, no entanto, de novo, ele sabe que o retorno é impossível.
A ausência do pai se coaduna com o teor geral do conto, que glosa a ausência ou o
desaparecimento ou a morte — da boemia, dos salões de sinuca, dos sinuqueiros, dos
sambistas —, ausências e buscas que fizeram José Paulo Paes180 e depois Simone Paulino
postularem a inserção deste conto no topos do Ubi Sunt?.
Como diz Simone Paulino dos Santos:

A evocação do sambista, figura lendária da malandragem paulistana, joga-nos


imediatamente no terreno da tópica do Ubi sunt?, revelando por essa pergunta oculta na evocação
(Onde estão os que neste mundo viveram antes de nós?) o fato inequívoco de estarmos novamente
diante do tema da busca, embora não mais a busca por algo que não se sabe precisar claramente
(―Busca‖ e ―Afinação‖) ou por algo da ordem do concreto como dinheiro, comida, jogo, sexo
(―Malagueta, Perus e Bacanaço‖). A busca agora é por aquilo que um dia se teve e já não se tem
mais, algo também difuso, que parece escapar aos olhos porque encoberto pela poeira do tempo.181

Aquilo que se teve e já não se tem mais, além da cidade da juventude, ao final do
conto se revela ser o pai e a mãe. Ele é o filho que se perdeu, que se ―bandeou pelo
mundo‖, e que retorna à casa paterna.182 No entanto, ele volta para reafirmar sua condição

180
PAES, José Paulo. ―Ilustração e defesa do rancor‖. O Estado de S. Paulo, 21 mar. 1987.
181
SANTOS, S. op.cit., p. 153.
182
Além da tópica do Ubi Sunt? (Onde estão os que neste mundo viveram antes de nós?), como assinalam J.P.
Paes e Simone Paulino, essa busca que se torna uma volta a casa, uma volta irresistível e impossível, é um
retorno do conflito edípico e insere o texto também em outra tópica: a tradição dos textos inspirados nas
histórias bíblicas da ovelha desgarrada e do filho pródigo. Evangelho segundo Lucas, cap. XV, vs. 1 a 32. O
trecho do conto a seguir é eloquente a respeito: ―Penei a infância aqui, nestas filas e trens encardidos,
apinhados. Olhem, isto me bole. Daqui me bandeei no mundo. Quando volto ao morro, quantas vezes, é
subindo feito cabrito escabriado, meio na culpa, de assim... mas também com alegria, porque o pessoal diz,
mal sabendo das coisas e me olhando as roupas, que sou feliz como um desgraçado‖ (Amr, p. 139).
134

de filho pródigo. Sabe que a volta à casa paterna é impossível. Intimamente sabe que volta
apenas para reafirmar essa mesma condição de ovelha desgarrada e de filho pródigo,
reincidente. Ele volta — assim fala o seu desejo imaginado — para ouvir da própria mãe
que ela sabe que sua arte ―não permite dois amores‖ e para não encontrar o pai. É uma
volta que o faz recair mais uma vez na condição edípica de amante da própria mãe e algoz
do próprio pai. A culpa e o rancor traduzem essa ambiguidade: ele anseia por uma volta à
origem que, ao mesmo tempo, recusa e que sabe ser impossível. A volta é expiação de
culpa e parada para seguir adiante, com rancor.
Como diz José Paulo Paes, o conto estabelece oposições: entre ―escritor‖ e
―escriba‖, entre proletário e pequeno burguês (―desaprendi a pobreza dos pobres e dos
merdunchos; aprendi a pobreza envergonhada da classe média‖, como diz o texto do conto
e lembra o crítico em sua resenha). O escritor, diz Paes, é visto como ―guardião da
linguagem como meio de desvelamento e apropriação da realidade‖ e o escriba avilta a
linguagem ―ao fazer dela uma técnica de escamoteamento ou cosmetização do real em
proveito dos interesses a cujo serviço voluntária ou involuntariamente se põe‖.
O sentimento rancoroso, segundo José Paulo Paes, permite exprimir um mea culpa
que é procedimento de resistência — e a prova dessa resistência é ―o próprio ato de
escrever um texto como o que está escrevendo‖. Nessa dinâmica, que inclui o próprio
escritor, José Paulo Paes vê carga de positividade no rancor:

Tanto a confissão religiosa dos pecados quanto a técnica psicanalítica da anamnese já


demonstraram à farta que a única maneira de alguém aliviar-se de um sentimento de culpa é
proferindo-o sem atenuantes, proclamando-o alto e bom som. No texto expiatório-confessional de
João Antônio, alto e bom som são sinônimos de rancor — e aqui deparamos enfim uma acepção
positiva deste sentimento que a moralidade convencional tem por negativo.183

Em leitura semelhante, João Luiz Lafetá identifica neste texto uma ―estética do
rancor‖. Lafetá observa que na maioria dos contos de Amr ―o foco está deslocado‖ da
―pobreza do lúmpem para os personagens de classe média‖: ―Seu centro não é mais o
malandro cheio de picardia, mas o escritor ressentido, que vê o capitalismo brasileiro
reduzir as artes da malandragem à miséria descorada, esfarrapada e pedinte‖. Além da

183
PAES, J. ―Ilustração e defesa do rancor‖. O Estado de S. Paulo, 21 mar. 1987.
135

mudança temática significativa do livro em relação aos textos anteriores do autor, não
escapou a Lafetá também a dimensão autobiográfica, autorreflexiva e crítica do relato:

Passeio longo, rancoroso. João Antônio perdeu aqui a facilidade feliz de representar os tipos
populares, facilidade que lhe deu fama, mas cuja ponta evidente de artifício levava a desconfiar de certa
falsificação pitoresca. O resultado é complexo, e não sei dizer se agora melhorou. Sei que o pitoresco
quase sumiu, dando lugar a uma matéria muito mais pesada, e o estilo ressente-se, perdendo em graça e
flexibilidade. Além disso, o texto carregado de referências autobiográficas, fiel mas pouco transfigu-
rado, corre o risco que José Veríssimo acusou no pioneiro Lima Barreto: a amargura ―legítima,
sincera, respeitável‖, atrapalhando a arte.
Mas como poderia Lima Barreto sujeitar-se a uma lei de recato, se nele o essencial eram
sentimentos e ressentimentos? — retrucou por sua vez Sérgio Buarque de Holanda. É verdade,
também para João Antônio, e o paradoxo está aí. Ele não o resolveu neste livro. No entanto, mesmo o
tal impasse de sua narrativa, por desajeitado que pareça do ponto de vista artístico, nos remete para um
significado sobre o qual devemos refletir.184

Apesar da ―desajeitada visão do processo social‖ e o impasse artístico também


―desajeitado‖ que a indignação intelectual expressa, Lafetá valoriza aqui o rancor como
índice de inconformismo e não cooptação.
O sentimento de rancor, assim, se liga a contradições fundamentais da vida e da
obra de João Antônio. Relaciona-se a sua condição de classe, a seu trabalho como jornalista
e ao seu amor pela literatura e por uma escrita de resistência, preservada das pressões
econômicas e políticas. Nesse percurso, o impulso de retorno revela uma necessidade de
expiação da culpa, que se relaciona à família, à cidade e à literatura, mas também ao
próprio autor e à constituição de seus textos, como sugere Lafetá.
É sintomático, nesse sentido, que o autor tenha inserido neste mesmo livro um texto
como ―Uma força‖, escrito tantos anos antes.185 Neste texto, autobiográfico e em primeira
pessoa, o narrador conta o encontro com um cágado nas ruas da Vila Ipojuca, na Lapa de
184
LAFETÁ, João Luiz. ―João Antônio e sua estética do rancor‖. In: ______. A dimensão da noite.
Organização de Antonio Arnoni Prado. Duas Cidades/Editora 34. São Paulo: 2004. Texto publicado
originalmente na Ilustrada, da Folha de S. Paulo, em 6 out. 1986.
185
O texto foi escrito em 1963 e remetido por carta a mais de um correspondente do autor, como indicam Ana
Maria Domingues e Telma Maciel da Silva, ao comentarem a correspondência de João Antônio com Jácomo
Mandatto. OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. ―Memória e ficção na
correspondência do escritor João Antônio‖, op.cit. Além de ter escrito e remetido o texto para amigos, o que
acentua o caráter íntimo do relato, o texto tem outro personagem que remete à biografia do autor: a menina
Aldônia, que será também personagem de ―Aact‖, conto de MPB.
136

São Paulo. Ele o recolhe e o leva para casa, como um bicho de estimação. O bicho ―tinha
um não sei que de sabedoria e sofrimento‖ com o que o narrador diz ter se encantado. Em
casa, diz o narrador, tiveram medo do bicho e depois quiseram lhe colocar nome de
imperador: Maximiliano. O narrador se recusou:

Nada disso. Meu cágado é o cágado. O cágado. Vão nesse nome sofrimento e anonimato —
o mesmo anuviado andante que nos uniu num instante duro lá numa subida de Vila Ipojuca. Afora o
quê, Maximiliano é nome de imperador, e não gosto de imperadores. Avesso a grandezas e
importâncias, como o cágado, pendo para as criaturas e viventes que se mexam com humildade e
tenham tolerância, humanas e boas. Como o cágado. Que se alimenta da sua persistência. A vida lhe
deu longo tempo de existência e dura carapaça. Além de olhos atentos.186

O cágado é um duplo do autor, mas também um bicho de estimação que faz as vezes
de duplo da namoradinha, Aldônia, também citada no texto.187 Como se infere pelo trecho
acima, o cágado é, portanto, um símbolo daquilo que o próprio autor se tornou e algo que já
era na juventude — maturidade e juventude reconciliadas numa espécie de animal totêmico
que o representa em suas características essenciais: vida ―semiterrestre‖, entre a sabedoria e
sofrimento, avesso a grandezas e importâncias, apreciador da humildade.
―Uma força‖, assim como ―Amr‖ também narra um retorno (ao bairro de infância, à
namoradinha de infância, à personalidade sofrida, resignada e renunciadora (que lembra a
do pai), uma volta narrada por meio do encontro com um duplo, encarnado num bicho de
forte simbologia zoomórfica nesta imagem totêmica de um cágado, um cágado essencial e
imutável (―Meu cágado é o cágado. O cágado.‖). O boêmio, malandro, de nome sestroso
(um jabuti das lendas), tornou-se um cágado, um bicho ancestral, persistente: um malandro
melancólico, mas resistente e atento.
Desamparado, ele quer uma casa, mas a casa é o ser: ―Sei que ele próprio carrega a
sua casa nele mesmo‖.188
O final de ―Amr‖, assim como ―Uma força‖, aponta para um desejo de reconciliação
do protagonista consigo próprio, na volta à cidade paterna, à casa (e à casa materna), uma
volta ao pai e à mãe, mas uma reconciliação que o próprio narrador sabe ser impossível, ao

186
Amr, p. 162.
187
Aldônia e o cágado, nesse sentido, são como a Teresa e o porquinho da índia de Manuel de Bandeira.
188
Amr, p. 162.
137

menos no plano familiar e social, já que ―a minha cidade de meu pai‖ já não existe, como
ele mesmo formula, e ao observar que desaprendeu a pobreza dos merdunchos, trocando-a
por uma vida de classe média. Também do ponto de vista profissional o narrador quer
voltar, quer deixar de ser o jornalista que se tornou, apartar-se dos ―sabidos dos jornais‖,
para viver apenas um amor, o seu amor pela literatura — ou o seu amor pela mãe e por
mais ninguém. No plano pessoal, o desejo de volta à casa, o reencontro, real ou imaginado,
com a mãe, indica a persistência do desnorteamento de uma crise que não se formula, mas
que se encena. O que não é dito revela também que, inconscientemente, o narrador sabe o
que precisa ser feito. Precisa, mais uma vez, reafirmar o amor pela mãe e ultrapassar o pai.
E ele de fato ―mata‖ o pai, ao suprimi-lo do final da narrativa. O filho pródigo só volta se
for para cometer o parricídio ainda necessário, necessário a este narrador para que possa
continuar a viver a boemia e a escrita literária, a aventura e a narração.
O que se constrói em ―Amr‖ é uma investigação das mudanças ocorridas no próprio
narrador, isto é, no João Antônio narrador, ou seja, no próprio João Antônio e no narrador
João Antônio, indissociáveis, assim como são coincidentes, aqui, a elocução e a ação. Mas
é justamente essa coincidência que será examinada e sofrida, ao longo da narrativa: apesar
da coincidência entre João Antônio e narrador, há um desacordo que não se deixa apaziguar
e reaparece, e reincide como rancor, como um sentimento vago e sem objeto, que se
contrapõe ao cinismo, mas que não se mostra consequente, do ponto de vista da aventura,
da ação. Trata-se de um narrador, aqui, desconfiado, que reconhece que a ação, no seu caso,
trai as origens e o faz aceder a um lugar social, a classe média, que ele não reconhece.
Mais: que ele recusa, não quer ser o ―animal bufo‖ da classe média, ainda que não a possa
recusar, por fazer parte dela e escrever para um público que é, também ele, de classe média.
Daí o rancor, sentimento negativo em que José Paulo Paes vê uma positividade. Um rancor
―semiterrestre‖, como o cágado, positivo e negativo.
A causa desses sentimentos contraditórios é a dificuldade em conciliar a profissão e
a vocação; o jornalismo e a escrita vital; a inserção social e a boemia; a ação e a culpa; a
ascensão social e a irmandade junto aos humildes, o impulso de rompimento e de
libertação, de um lado, e de outro o amor e a gratidão às origens. O rancor parece nascer
dessas tensões, dessas incompatibilidades que João Antônio encarnou e viveu, tensões
sobre as quais escreveu, contradições que parece não ter conseguido resolver. Ou melhor,
138

parece ter resolvido de maneira negativa e inconformada, ainda que melancólica: entre o
rancor e o cinismo, o narrador fica com o rancor. Um rancor que é resistência: negatividade
positiva.
Apesar da crise biográfica irresolvida, no plano literário, entretanto, a cena final
coroa a construção e resume as inquietações deste autor-narrador-personagem. A ação,
paradoxalmente, culmina em uma volta, em um impasse. Do ponto de vista literário, assim,
―Amr‖ é a expressão de uma crise: a crise do narrador, que já não é capaz de ação nem de
narrativa, senão em termos dilacerados, como este conto formula. De um narrador que viu
seu mundo desaparecer e não encontra um novo mundo que acolha seu desejo de liberdade,
de aventura, de boemia. Um narrador que se vê impelido a voltar a casa, ao porto que o fez,
justamente, se lançar à aventura. Para este narrador, a volta é vivida como um retorno
doloroso e castrador, que o desejo e a imaginação insistem em desafiar, criando uma
situação dilemática, entre ser e não ser, narrar e não narrar, impasse que o conto encena,
transformando em literatura.
O rancor que dá título ao conto vem — além do lamento pelas mudanças da cidade,
pelo arrefecimento da boemia e desaparição do sambista — também da impossibilidade de
se tornar o que se quer ser (escritor e não jornalista) e voltar a ser o que já não se é mais
(um escritor estreitamente ligado ao seu universo literário, ―conluiado‖ aos operários,
sinuqueiros, malandros e sambistas). Como já dissemos, esse narrador prefere o desnorte ao
cinismo, ainda que, para tanto, precise andar pelo mundo, perdido, feito ovelha desgarrada,
abraçado ao próprio rancor.
―Abraçado ao meu rancor‖ representa um ponto alto da carreira literária de João
Antônio, um ápice doloroso, em que o autor coloca a própria identidade em xeque. A crise
narrada neste conto, por si só, já seria um legado literário da maior relevância para a obra
de João Antônio. Mas, além disso, este texto autobiográfico permite compreender melhor
também a ficção de João Antônio, à qual voltaremos, para mostrar como alguns de seus
primeiros textos, como os ―Contos Gerais‖, ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ e ―Paulinho
Perna Torta‖, podem ser lidos à luz das contradições aqui entrevistas.
139

CAPÍTULO 2

AFINANDO A MALANDRAGEM

Dos “Contos Gerais” à sinuca


140

A análise dos três principais textos autobiográficos de João Antônio permite, como
vimos no capítulo anterior, localizar temas e formulações que pautam a literatura do autor e
atentar para modos de constituição de personagens e narradores. Na ficção, podemos
constatar motivos e procedimentos similares. Como as obras de juventude são fundadoras
de seu universo temático e de soluções formais decisivas, vamos iniciar nossa leitura dos
textos de ficção pelos primeiros contos do autor.
―Busca‖ não foi o primeiro conto escrito por João Antônio, mas é o primeiro conto
de seu primeiro livro. A escolha de abrir com ele o volume de estreia, Malagueta, Perus e
Bacanaço, faz desse texto uma espécie de marco inaugural da ficção do autor189 — e o
apreço de João Antônio pelo conto se manteve: ―Busca‖ foi inserido em um dos últimos
livros publicados por ele, Sete vezes rua,190 em 1996, ano de sua morte. É um conto que
permanece entre os favoritos do seu criador, do começo ao fim de sua produção.
Antonio Candido não o comenta explicitamente em seu ensaio sobre o livro de
estreia de João Antônio. Diz que em Malagueta, Perus e Bacanaço há ―certo ritmo, uma
espécie de crescendo, que serve para iniciar progressivamente o leitor nas camadas
essenciais de sua visão e da sua escrita, ao longo de três blocos, constituídos por três tipos
diferentes de contos, todos eles valiosos e interessantes, mas em graus diferentes de
qualidade‖.191 A predileção de Candido, como indica a ideia de crescendo e como o crítico
dirá com todas as letras, recai sobre as duas últimas narrativas: ―Meninão do Caixote‖ e
―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, esta a história que dá título ao livro. O ritmo de crescendo,
diz Candido, prepara o leitor para o percurso das histórias ―fáceis‖ às mais ―complexas‖.
João Alexandre Barbosa, um dos primeiros a resenhar o livro, em 1963, no ano
mesmo de seu lançamento, também não se refere ao primeiro conto, a não ser de maneira
muito geral, ao destacar ―o sopro de criação capaz de fazer viva a imagem percebida pelo

189
A pesquisa de Rodrigo Lacerda aponta a primeira publicação do conto em 1958, na Revista do Globo. Os
primeiros textos publicados de João Antônio remontam a 1954, quando o escritor contava 17 anos. É o caso,
segundo Lacerda, do conto ―Um preso‖, publicado em O Tempo. Entre os primeiros contos escritos estão
também ―Índios‖ (1956), que ganhou menção honrosa em concurso da revista A Cigarra e foi publicado em O
Estado de S. Paulo (em 6 fev. 1960), ―Meninão do Caixote‖ (1958) e ―Fujie‖ (publicado em 1958 no Última
Hora), provavelmente o primeiro dos contos de MPB a ser escrito. O escritor cogitou intitular seu primeiro
livro Fujie e outros contos, depois Meninão do caixote, além de Aluados e cinzentos. Sobre os primeiros
momentos de produção literária do escritor ver LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária, op.cit.
190
ANTÔNIO, J. Sete vezes rua. São Paulo: Scipione, 1996. O livro foi reeditado em 2007.
191
CANDIDO, A. ―Na noite enxovalhada‖. In: MPB, p. 7. O grifo é do autor.
141

criador por sob a chatice do quotidiano‖.192 A chatice a que se refere João Alexandre talvez
tenha relação direta com ―Busca‖, o primeiro conto a ser aqui analisado, como veremos.
Mas na resenha o crítico comenta outros contos do livro: ―Visita‖, ―Afinação da arte de
chutar tampinhas‖, ―Meninão do Caixote‖ e ―MPB‖, que considera a melhor narrativa do
volume.
Apenas recentemente ―Busca‖ passou a merecer leituras mais atentas e
iluminadoras, como as de Vima Lia Martin e Simone Paulino. Vima Martin identifica no
personagem do conto um comportamento antiburguês, que se volta contra o universo a que
ele próprio pertence, prevalecendo a ―recusa de Vicente em assumir um lugar socialmente
instituído‖.193 A circularidade da história, na visão da autora, atesta a ―busca identitária‖ do
protagonista. Ao comentar as constantes entre os dois primeiros contos de MPB, ―Busca‖ e
―Afinação da arte de chutar tampinhas‖, Vima Martin identifica os protagonistas de João
Antônio ao flâneur. Os personagens do escritor brasileiro seriam recriações dos flâneurs
baudelaireanos: ―Rejeitando a degradação moral que caracteriza tanto as relações da família
patriarcal como as relações de trabalho, sentem-se condenados a uma existência cotidiana
sufocante numa grande cidade, engendrando uma busca labiríntica por uma identidade que
não conseguem vislumbrar‖. As marcas desses personagens seriam a ―carência‖ e a
―passividade‖.
Simone Paulino também compara os personagens de ―Contos Gerais‖ ao flâneur e
identifica na busca o ―princípio de organização da obra‖; e Paulino transforma o tema da
busca em chave de leitura da obra de João Antônio. Segundo a autora, em João Antônio,
―as personagens estão quase sempre deslocadas e desconfortáveis em seus ambientes, por
não encontrarem um ponto fixo para se apoiar numa cidade que se metamorfoseia à sua
revelia, sendo recorrentemente empurradas para os extremos e colocadas nos limites de seu
espaço — físico, emocional e psíquico‖.194 Segundo Simone Paulino, a busca seria, assim,

192
BARBOSA, J. ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ (1963). In: Opus 60. Ensaios de crítica. São Paulo: Duas
Cidades, 1980, p. 138.
193
MARTIN, Vima Lia. Literatura e marginalidade: um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. São
Paulo: Alameda Editorial, 2008, p. 76.
194
Esse deslocamento dos personagens já havia sido realçado por Flávio Aguiar, como vimos na
―Introdução‖: ―O essencial é que nenhum personagem de João Antônio está em sua medida. Um sopro
transformador os desengonça a todos (...): eles se fazem símbolos, ao invés de ‗retrato fiel‘ à la naturalismo
do século XIX. São símbolos de uma peregrinação universal, daqueles que não têm nas mãos o próprio
destino. João Antônio não bate fotos. Pinta quadros apaixonadamente deformados.‖ AGUIAR, F. ―A palavra no
142

um expediente que lhes permite lidar com o sofrimento, ―valendo-se do caminhar sem
destino como meio de aliviar a angústia de uma condição de isolamento a um só tempo
geográfica e psíquica‖.195
A permanência de ―Busca‖ não se deve apenas ao gosto do autor e às recentes
leituras que o conto vem recebendo. Trata-se de uma história que se mostrará paradigmática
e fundante no que se refere à constituição dos personagens e do universo do escritor.
―Busca‖, ao lado de ―Afinação da arte de chutar tampinhas‖, conto que o sucede no
primeiro livro, subsiste como uma das mais importantes realizações de João Antônio. Além
de alinhavar grande parte dos temas dominantes da obra do escritor, ―Busca‖ já apresenta
uma das maiores contradições formais desta literatura: o impulso dos protagonistas à ação
revela uma propensão ao romance, à narrativa longa, caracterizada pela confrontação
áspera entre indivíduo e realidade, pela tentativa por parte dos heróis de realizar no mundo
o âmago de sua interioridade.196 E, no entanto, João Antônio escreveu sobretudo contos e
notabilizou-se como um dos grandes contistas brasileiros contemporâneos. As narrativas do
autor, assim, apesar de anunciar ações romanescas, terminam por se restringir aos limites
mais estreitos da forma conto — com raras exceções, como os contos longos, que tendem à
forma da novela, como ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ e ―Paulinho Perna Torta‖. Em
―Busca‖ e nos demais textos de ―Contos gerais‖ (a primeira parte do livro Malagueta,
Perus e Bacanaço), é possível identificar indícios de por que a literatura do autor, apesar de
sua vocação para o romance, terminou por se conformar com os limites menores do gênero
curto.
―Busca‖, especialmente, já apresenta as contradições fundamentais da ficção de
João Antônio. O conto opõe família e sociedade, trabalho e ócio, a horizontalidade da busca
empreendida pelo protagonista e a verticalidade das interações deste com os demais

purgatório‖. In: A palavra no purgatório. op.cit., p. 91. O desengonço e o deslocamento também ligam os
personagens do autor aos arquétipos do pobre-diabo e do Édipo.
195
SANTOS, Simone Paulino dos. Nas esquinas do desejo. Um estudo do tema da busca nos contos de João
Antônio. Dissertação de mestrado em Letras. FFCLH-USP, 2009, pp. 18 e 23.
196
Sigo aqui as definições de Georg Lukács sobre o romance de formação. A ideia de formação, que tem em
Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, sua conformação paradigmática para a literatura,
evidentemente não se aplica de maneira direta e sem problemas à literatura de João Antônio. Entretanto, o
modelo de aprendizado do indivíduo e de integração do herói ao mundo em que vive (―a reconciliação do
indivíduo problemático com a realidade social concreta‖, nos termos de Lukács) está no horizonte não apenas
da literatura de João Antônio, mas na própria concepção de sociedade burguesa (cuja constituição
problemática no Brasil de meados do século XX a literatura do autor evidencia) e na relação conflituoso entre
o eu e o mundo. Ver LUKÁCS, G. Teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000.
143

personagens. As tensões, que neste primeiro conto são colocadas em evidência, não
ganham resolução ou desdobramento consequente, o que, do ponto de vista formal resulta
em nova tensão, entre o recorte intensivo e a ação vertiginosa, típicos do relato curto, e a
distensão de ritmo e a ênfase na constituição e no drama de consciência do protagonista,
que são características da narrativa longa.

A angústia da busca

A história narrada no conto ―Busca‖ é relativamente simples. Vicente, um jovem


rapaz solteiro, operário, vive com a mãe num subúrbio de São Paulo. Ele decide sair de
casa, num domingo à tarde, para andar. Cogita pegar um trem para o centro da cidade, mas
acaba se decidindo por fazer uma visita a Luís, colega de trabalho na oficina onde o
protagonista é ―chefe da solda‖. Em suas andanças, evoca a lembrança do pai, que já é
falecido, e diz que procura algo que não sabe bem o que é. Depois do encontro com Luís,
com quem bebe em um boteco e joga bilhar, Vicente retoma a caminhada e volta a casa,
onde, lembra ele, precisa passar uma escova no tanque, sujo de limo.
Além da mãe e do colega, outros personagens aparecem na narrativa, ainda que não
participem da ação narrada: Daniel, provavelmente um vizinho, que convida o protagonista
para ver futebol na televisão; e Lídia, moça que se dá bem com a mãe de Vicente, com
quem faz trabalhos de costura, e que o narrador diz flertar com ele, puxando assunto sobre
―festas de casamento‖. No percurso, o personagem encontra duas crianças, brincando na
rua, primeiro um menino, depois uma garotinha, e o encontro com esta, especialmente, o
enternece: Vicente imagina que a menina poderia ser sua filha e então cogita, pela primeira
vez, casar-se com Lídia. Ao final, o conto retorna ao início, à casa da família. No meio da
narrativa, há um trecho, em flashback, em que o protagonista relembra os tempos em que
lutava boxe, mas teve de parar depois de ter passado por uma operação, por conta de um
problema no fígado, a conselho de Freitas, seu treinador.
Vicente não é mais criança, mas também não é um adulto maduro. Solteiro, ainda
vive com a mãe e está incomodado com o assédio de Lídia, que se aproveita da
proximidade com a mãe do rapaz para se insinuar, cortejando-o, falando indiretamente de
casamento, o que Vicente repudia, de início. No trabalho, ele é bem-sucedido, pois tem
144

cargo de chefia; no entanto, irrita-se com a adulação dos demais empregados. Daniel, que
vive nas proximidades, gosta da companhia do protagonista, pois o convida para assistir ao
futebol na TV, mas como Vicente não se interessa, o amigo expressa sua contrariedade:
acha que Vicente ―vive no mundo da lua‖, como relembrará o protagonista-narrador. A
mãe, mesmo no domingo, está sempre atarefada com ocupações domésticas, o que também
causa contrariedade no personagem-narrador. A irritabilidade e o desnorteamento do
protagonista apontam para uma personalidade problemática e imatura.
Vicente quer andar, deixar para trás a casa, o convite de Daniel para o futebol, a
paquera de Lídia, a mãe com suas tarefas domésticas, todo o mundo a que está
familiarizado. Não se trata de um comportamento extraordinário — ainda que um tanto
quanto intempestivo —, mas sim de um hábito recorrente, uma ―mania‖, como o definirá o
próprio Vicente. Desde quando, a mania? Desde a morte do pai.

Desde que papai morreu, esta mania. Andar. Quando venho do serviço, num domingo,
férias, a vontade aparece. O velho, quando vivo, fazia passeios a Santos, uma porção de coisas. Bom.
A gente se divertia, a semana começava menos pesada, menos comprida, não sei. Às vezes penso
que poderia recomeçar os passeios.
— Que horas tem trem para São Paulo?
Meia hora não esperaria. Fui caminhando para a Lapa. Mesmo a pé. Os lados da City, tão
diferentes, me davam uma tristeza leve. Essa que sinto quando como pouco, não bebo, ouço música.
Ou fico analisando as letras dos antigos sambas tristes — dores de cotovelo, promessa, saudade...
Essas coisas.197

Vicente vincula a mania de andar à morte do pai. A perda da referência paterna,


portanto, fez com que o personagem caísse em um estado de luto e de angústia cuja
consequência primeira é o ―andar‖ e a ―busca‖ a que o título alude. Andar e busca estão
relacionados: ―Andando tão devagar. Procurava alguma coisa na tarde‖, dirá o protagonista
a certa altura. A falta do pai faz com que ele tenha desenvolvido a mania de andar, o que
lhe parece ser apropriado para uma procura. A busca, porém, não é clara, não tem objetivo
certo, ainda que a saída de casa indique que o objeto da busca não faz parte de seu ambiente
familiar. E a ―tristeza leve‖ que o acomete ao se distanciar de casa e percorrer a City Lapa

197
MPB, p. 28.
145

(―tão diferente‖) aponta para uma inibição, uma dificuldade de se afastar. Há ao mesmo
tempo desejo e receio no impulso da busca.
Vima Lia Martin já destacara a vinculação entre busca e ausência paterna. Diz a
autora:

Relacionada à morte paterna, a mania de Vicente pode ser compreendida como uma busca
por preencher o vazio simbólico causado por sua ausência. Em vez de perpetuar as atitudes do pai e,
num certo sentido, assumir seu lugar social — casar, ter filhos, tornar-se um chefe de família —
Vicente parece entregar-se à procura incessante de outra identidade.198

O trecho do conto citado acima aponta para uma forte indefinição acerca do
protagonista. Ele sabe que quer andar e que o hábito teve início com a morte do pai, mas o
luto e a tristeza que advém desse luto se projetam e encontram eco em situações díspares: a
música, as restrições de alimentação e de bebida. A tristeza pela morte do pai transfere-se
para outras ausências e perdas (as dores de cotovelo dos sambas tristes), para carências de
comida e bebida, para atitudes comportadas, retraídas. O sentimento é nostálgico —
marcado por promessas, saudade, restrições, perdas e pouco definido — ―essas coisas‖,
arremata o narrador.
No momento narrativo, Vicente está ocupado com a morte do pai, que o leva a
andar. O protagonista vive um luto persistente que o projeta em um estado de melancolia e
de indeterminação. No entanto, em sentido contrário, ele busca algo, apresenta-se motivado
e inquieto. A angústia e o deslocamento incessantes apontam para um impulso vital, que
não pode ser desprezado, em dissonância com o pathos da melancolia, do luto, da perda e
da saudade. Este ―algo‖ a ser buscado — que não tem nome, é indeterminado — não está a
princípio no âmbito doméstico, como indica o trajeto da casa para a rua empreendido pelo
personagem. Assim, apesar de não ser definida pelo protagonista, a busca toma na ação
narrada contornos concretos e motivação claramente enunciada: o personagem sente
necessidade de andar; e andar, dirá ele, é uma ―mania‖, adquirida desde a morte do pai. É
por isso que o personagem decide deixar a casa e sair para a rua, sem direção definida.
Morte do pai, mania de andar e busca se aproximam e se mostram relacionadas. Como falta

198
Vima Lia Martin, op.cit., p. 75.
146

o pai, é preciso andar, buscar algo. Que algo é este e onde ele está? Vicente não sabe dizer e
não o encontra no tempo narrado pelo conto.
Vicente sai de casa, pois quer andar. Cogita pegar um trem para São Paulo. Mas
acaba se decidindo por uma visita ao amigo Luís. Apesar dos momentos vividos com o
colega, persiste a busca por ―alguma coisa‖. Ao final do conto, o personagem não a
encontra. Essa busca infrutífera por algo que ele não sabe o que é, mas intui que seja
relacionada à falta do pai e possa ser encontrada na companhia do amigo, é aquilo que o
protagonista parece querer decifrar — mas não consegue ou, ao menos, não o expressa. Ao
fim, Vicente, reconciliado com o mundo em que vive, retorna a casa, volta ao ambiente
familiar e à companhia da mãe, rende-se à ideia do casamento com Lídia. A narrativa
aponta para a falta de acontecimento, para a manutenção de um estado de coisas e para um
protagonista incapaz de ação. Por quê?

Personagem complexo e indefinido

Vicente, protagonista de ―Busca‖, é o personagem que inaugura o universo ficcional


de João Antônio. O protagonista-narrador é um homem jovem e solteiro, de classe baixa,
em conflito com seu universo doméstico e social, ocupado com questões de família,
vocacionais e existenciais. É um rapaz ainda envolvido em sentimentos infantis,
identificado com as crianças que encontra no percurso, indeciso com relação ao seu desejo
e, até mesmo, indefinido com relação à própria idade ou estágio de amadurecimento. A
idade do protagonista, aliás, não é informada e não pode ser inferida. Apesar dos cabelos
brancos, que apontam nas suas costeletas, ele ainda é solteiro, e a recusa a pensar em
casamento sugere que é um adulto jovem, que não se julga ainda em idade de casar.
Angustiado e indeciso, em atrito com o seu mundo familiar e profissional, em
dúvida sobre seu destino, é um herói problemático, tal como definido por Lukács:

Mundo contingente e indivíduo problemático são realidades mutuamente condicionantes.


Quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados com evidência imediata, e o
mundo, cuja construção os mesmos objetivos realizados levam a cabo, pode lhe reservar somente
obstáculos e dificuldades para a realização deles, mas nunca um perigo intrinsecamente sério. O
perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a ideias, quando estas se transformam em
147

fatos psicológicos subjetivos, em ideais, no homem. Ao pôr as ideias como inalcançáveis e — em


sentido empírico — como irreais, ao transformá-las em ideais, a organicidade imediata e não
problemática da individualidade é rompida. Ela se torna um fim em si mesma, pois encontra dentro
de si o que lhe é essencial, o que faz de sua vida uma vida verdadeira, não a título de posse ou
fundamento de vida, senão como algo a ser buscado.199

Vicente é um personagem problemático porque o sentido do vivido lhe escapa e não


porque ele não seja capaz de vislumbrar esse sentido, mas porque hesita em aderir ao
sentido que o seu meio familiar e social o oferece. Diz Lukács sobre o herói de romance,
como vimos acima: seus objetivos não ―lhe são dados com existência imediata‖. A angústia
indeterminada do personagem faz com que o leitor acompanhe com interesse suas
caminhadas, pois espera por uma resolução, por um encaminhamento, que ao final parece
se definir, mas afinal não vem. Vicente termina o conto sem conseguir dar contornos aos
seus objetivos e seus desejos, o que reafirma sua condição de personagem indefinido, em
processo.
Vicente busca algo, mas não sabe o quê. Indeciso sobre o próprio desejo, ele se
inclina à ação, mas se mostra, ao mesmo tempo, incapaz dela. Sua única ação, a rigor,
resume-se às caminhadas, à errância que empreende desde sua casa, num subúrbio de São
Paulo, até a Lapa, bairro próximo de onde ele reside, para a visita ao amigo, e de volta a
casa. Apesar da pobreza da família e do personagem, que é um proletário — trabalha como
―chefe da solda‖ em uma ―oficina‖ —, o que ocupa a atenção do rapaz e move seu impulso
para a ação não tem relação direta com a situação profissional em que se encontra ou com
ambições materiais. Sua motivação é difusa, a insatisfação que ele sente não se formula
com clareza, seu desassossego é indeterminado e a própria estrutura do conto e, mais que
isso, a própria elocução apresentam certa desarrumação, errância de estilo e de construção
narrativa que fazem do texto uma realização incompleta — mas também intrigante, pois
que em consonância com a matéria narrada.
Apesar da dispersão e da tendência à indeterminação vale ressaltar algo de preciso
em relação ao primeiro protagonista dos contos de João Antônio. Aliás, duas coisas dignas
de nota contrariam a dispersão e a errância, fazendo contraponto à busca, à horizontalidade
da ação e ao alargamento do espaço. A primeira, como se disse, é que a ação do conto, ao

199
LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000, p. 79.
148

fim e ao cabo, retorna ao início, conferindo circularidade à ação e também forte senso de
unidade. A segunda é que o rapaz tem nome e narra a ação, isto é, é um narrador-
personagem. Em outras palavras, há no conto um personagem forte e uma ação que se
desenvolve, ainda que de maneira errática, mas com começo, meio e fim, um fim que
coincide com o começo, e é desenvolvida sempre do ponto de vista do protagonista.
Chama-se Vicente o personagem central, o que lhe confere singularidade,
individualidade e, talvez antes de mais nada, caráter ficcional manifesto, se pensarmos,
como Anatol Rosenfeld, que ―a personagem realmente constitui a ficção‖.200 Com isso, o
personagem-narrador afasta-se, primeiramente, da identificação imediata com o escritor e
institui um ponto de vista narrativo próprio, que irá presidir a ação. Vale ressaltar esse
aspecto do primeiro conto, que será mantido na maioria dos contos do primeiro livro, quase
todos narrados em primeira pessoa. Mas o nome próprio dado ao personagem é exceção e
singulariza esta primeira narrativa, pois em outros textos do mesmo volume os
protagonistas simplesmente não têm nome ou atendem por seus apelidos, alcunhas ou
nomes de guerra. O fato de o estatuto ficcional do conto estar bem sublinhado desde o
primeiro texto é importante também para a constituição da obra como um todo de João
Antônio, que nesta primeira realização afirma-se claramente como ficção, diferentemente
de textos posteriores do autor, que, como vimos, são mais ambíguos quanto a esse caráter,
apoiando-se no limiar entre ficção e relato autobiográfico. Mais que isso, o personagem tem
aqueles traços fortes que o destacam enquanto criação ficcional, distanciando-o de um
indivíduo real.
Segundo a definição de Antonio Candido, o personagem é um ―ser fictício‖, que se
distingue da pessoa de carne e osso por conta de certas constantes de comportamento, que
permitem identificar ―a lógica da personagem‖ ou sua ―coerência interna‖201.
No caso de Vicente, sua lógica é a inquietação, a insatisfação e a falta de algo, que
ele não sabe o que é, mas que o faz andar, empreender um caminho de busca, a ―mania‖ de
andar. É um protagonista que sabe ocupar o seu posto de destaque na narrativa, acima dos
demais personagens, por justamente problematizar o próprio destino e expressar essa

200
ROSENFELD, A. ―Literatura e personagem‖. In: Antonio Candido et al. A personagem de ficção. São Paulo:
Perspectiva, 1976. 5ª edição, p. 27.
201
CANDIDO, A. ―A personagem do romance‖. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, s/d.
149

inquietação.202 Como define Lukács, comparando a epopeia ao romance, a psicologia do


herói romanesco se pauta justamente pela busca.203
Apesar de ser um narrador-personagem de um conto, o protagonista de ―Busca‖ tem
todas as características de um personagem de romance. Como o definiu Lukács, o herói de
romance é um indivíduo isolado cuja principal motivação é a procura do sentido do vivido
— ele ―busca‖ algo.
Vicente se insere em um quadro arquetípico204 de personagens que remete, pelo
menos, ao século XIX, mas também à tradição literária secular da ―busca‖. O personagem e
seus sucessores (os protagonistas anônimos de ―Aact‖ e ―Fujie‖) aproximam-se do flâneur,
como indicam as leituras citadas. É também um personagem de tons balzaquianos,
aparentado a Rastignac e Lucien de Rubempré, e ainda ao Julien Sorel de Stendhal e ao
Frédéric Moreau de Flaubert, mesmo que sem a potência arrivista e o trânsito social desses
rapazes. Nesse sentido, Vicente é um sucedâneo daquela linhagem de personagens que
Lionel Trilling chamou de ―young men from the provinces‖ (jovens rapazes das
províncias)205, mas cuja trajetória da província à cidade ou da periferia ao centro não se
completa. No entanto, para além dessa face moderna, que faz o jovem personagem do autor
se aparentar ao herói de romance, sua trajetória também deita raiz em arquétipos mais
antigos, que dizem respeito à história recorrente da busca ou procura, cujo parâmetro é a
demanda do Graal. Vicente, e como veremos, os outros jovens protagonistas de João
Antônio são protagonistas de uma história que se inspira em uma linhagem frutífera deste
arquétipo, aquilo que Frye chama de mythos do verão ou estória romanesca.206

202
LUKÁCS, G. ―A fisionomia intelectual dos personagens artísticos‖. In: Marxismo e teoria da literatura. 2ª
edição. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
203
―A epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e
construir, pela forma, a totalidade oculta da vida. A estrutura dada do objeto — a busca é apenas a expressão, da
perspectiva do sujeito, de que tanto a totalidade objetiva da vida quanto sua relação com os sujeitos nada têm
em si de espontaneamente harmonioso — aponta para a intenção da configuração: todos os abismos e fissuras
inerentes à situação histórica têm de ser incorporados à configuração e não podem nem devem ser encobertos por
meios composicionais. Assim, a intenção fundamental determinante da forma do romance objetiva-se como
psicologia dos heróis romanescos: eles buscam algo.‖ LUKÁCS, G. A teoria do romance. op.cit., p. 60.
204
Sigo aqui a concepção de arquétipo literário de N. Frye em Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973.
205
TRILLING, Lionel. ―The Princess Casamassima‖. In: The liberal imagination. Essays on literature and
society. Nova York: The Viking Press, 1950.
206
FRYE, N. Anatomia da crítica. op.cit. Ver o terceiro ensaio do livro, ―Crítica arquetípica: Teoria dos
mitos‖, pp. 131-219. Não se trata de classificar de ―história romanesca‖ este conto (e os demais ―Contos
Gerais‖, assim como ―MPB‖, aos quais também se aplica a definição de mythos de verão), mas de apontar
como neles predominam o mythos da aventura e da demanda, ainda que os textos tenham elementos de outros
mythoi ou ―enredos genéricos‖. Como diz Frye, os diferentes mythoi muitas vezes contrastam, mas também se
150

A contradição, que colabora com a construção do protagonista, é que Vicente é um


personagem que tende ao tipo e ao arquétipo, mas é também um herói problemático, que
questiona seu próprio destino e sua condição social e afetiva. No conto, a busca de Vicente
preserva elementos dos modelos arquetípicos de herói mítico, romanesco, o que faz dele
um personagem plano, ao mesmo tempo em que a psicologia hesitante e angustiada do
personagem aponta para um personagem esférico, de personalidade complexa, consciente
de si mesma, típica de um personagem de romance, ainda que esta condição permaneça
apenas latente e que ao final, o protagonista retorne ao ponto de partida, sem que mudanças
significativas tenham ocorrido, tendendo à planificação.207 Em outras palavras, o conto
―Busca‖ relaciona-se e deita raízes em tradições literárias antigas e modernas, sem que essa
contradição se resolva no âmbito da ação narrada.
Essa combinação inusitada de raiz mítica, inspiração romanesca e de constituição de
personagem de romance faz com que a história ganhe forma literária moderna e, ao mesmo
tempo, desenvolvimento modesto. Apesar da tendência ao romanesco e ao romance, a ação
se conforma em conto. Como veremos, a constituição das narrativas e dos protagonistas em
João Antônio vai culminar nas trajetórias mais distendidas de ―MPB‖ e ―PPT‖. Este último
conto, em particular, como tentaremos mostrar no capítulo 4, investiga, de maneira mais
consequente, as possibilidades narrativas e de constituição do herói na literatura do autor.
Em ―Busca‖, porém, a narrativa não se estende e a trajetória de Vicente resulta em uma
narrativa breve, que começa e retorna à origem, sem que seu comportamento ou sua
consciência sobre si próprio se altere ou sua procura tenham chegado a algum termo. A
construção de Vicente como personagem e a própria trama narrativa de ―Busca‖ lembram,
em negativo, a formulação de Modesto Carone ao definir o gênero de narrativa curta:

combinam: ―Se pensarmos em nossa experiência desses mythoi, perceberemos que formam dois pares
opostos. A tragédia e a comédia contrastam em vez de combinar, e assim também o romanesco e o irônico,
campeões, respectivamente, do ideal e do real. Por outro lado, a comédia funde-se insensivelmente na sátira,
num extremo, e na estória romanesca, no outro; pode a estória romanesca ser cômica ou trágica; a trágica se
estende do romanesco elevado ao amargo e irônico realismo‖ (p. 163). Como veremos no capítulo 4,
―Paulinho Perna Torta‖ enquadra-se na categoria ―estória romanesca trágica‖, combinando o que Frye chama
de os mythoi de verão e de outono. Da mesma forma, na teoria dos modos de Frye, os cinco modos (mítico,
romanesco, imitativo alto, imitativo baixo e irônico) caminham num círculo em que mito e ironia se tocam.
Também é o que acontece em ―PPT‖, que combina características do mito, da tragédia e, ao final, da ironia
trágica, na condição de phármakos ou bode expiatório (vítima típica do modo irônico) do protagonista.
207
A conhecida distinção entre personagens planos e redondos ou esféricos é de Forster, que define os
primeiros como tipos, personagens previsíveis, repetitivos, construídos ―em torno de uma ideia‖ ou
―qualidade simples‖, e os outros como capazes de ―surpreender de maneira convincente‖. Ver FORSTER, E.M.
Aspectos do romance. Trad. Sérgio Alcides. 4ª ed. revista. São Paulo: Globo, 2005, pp. 91-100.
151

segundo Carone, o conto é ―representação intensiva de um instante da existência no qual o


herói passa de um patamar de consciência para outro — superior‖.208 O leitor do conto
espera por uma reviravolta, pelo desenlace, pela mudança de consciência do protagonista,
mas ao final Vicente retorna à casa, sem que tenha alterado sua percepção do mundo ou de
si próprio.
Para acrescentar mais ingredientes contraditórios de elaboração literária, ao estatuto
ficcional e arquetípico bem marcados vem se juntar, em sentido contrário, a narração em
primeira pessoa, que acentua a aproximação entre: narrador-personagem e mundo narrado,
protagonista e demais personagens, universo ficcional e o leitor.
A narrativa que parte e se encerra no eu, no ponto de vista de Vicente, pede a
cumplicidade de todas as demais instâncias literárias. O foco narrativo em primeira pessoa
faz com que pisemos, todos, o mesmo chão. Estamos, assim, olhando o mundo de Vicente
por dentro, internamente ao mundo que se vai descortinando aos poucos, mas sempre
enredados na perspectiva do narrador-personagem.
Disso decorrem duas coisas importantes para a recepção e a compreensão do texto.
A primeira delas é que o leitor se inclina a aderir ao ponto de vista de Vicente. A segunda, é
que tende a se restringir ao universo — já bastante restrito — do personagem.
O ponto de vista interno e a restrição do universo em que vive Vicente são
elementos de construção literária que permitem melhor compreensão das contradições deste
conto de João Antônio.
Trata-se de uma narrativa sobre a busca, algo que falta e que o personagem não sabe
dizer o que é, justamente porque, assim como o foco narrativo em primeira pessoa restringe
o alcance do que se narra, o universo em que o personagem se insere é restrito do ponto de
vista social, cultural e psicológico.
Ainda que seja constitutiva da narrativa e concorra para dar verossimilhança à ação
e coerência ao personagem principal, a delimitação do foco narrativo e o universo de
atuação de Vicente estão a todo momento sendo colocados à prova. A busca desestabiliza a
unidade da ação e a coerência do ponto de vista: ao mesmo tempo que é sujeito da busca, o
protagonista sucumbe a ela e termina por fracassar. Os momentos críticos do conto, assim,

208
CARONE, M. ―Anotações sobre o conto‖. In: Boa Companhia - Contos. S. Paulo: Companhia das Letras,
2003.
152

são aqueles em que o encontro com outros personagens, no momento da ação narrada,
promete alterar os termos da busca, conduzindo-a a um desfecho revelador ou significativo,
o que a forma conto promete, gerando no leitor expectativa de desenlace, na trama, e
mudança de consciência, no protagonista.
Porém, os encontros mantêm a busca e, ao final, terminam por questioná-la e, com a
volta do personagem-narrador a casa, até anulá-la, destituindo sua necessidade ou sua razão
de ser. Veremos por quê.

Limites de um ponto de vista interno

Apesar de ser narrado em primeira pessoa, ―Busca‖ tem início não com o discurso
do narrador-protagonista, mas com uma fala de um personagem a outro, seguida de uma
ação do personagem-narrador em resposta a essa fala.

— Vicente, olha a galinha na rua!


Abri o portão, a galinha pra dentro. Mamãe tinha o avental molhado do tanque. Um balde pesava no
braço carnudo.
— Deixa qu‘eu levo.209

Trata-se de um conto que tem início dentro da ação já em desenvolvimento, como se


o leitor fosse inserido diretamente no quadro narrativo. A ação inicial se dá entre dois
personagens: Vicente, o protagonista-narrador, e a mãe dele, e se passa no ambiente
doméstico. O diálogo define certos contornos desse espaço: é uma casa simples, em que se
criam galinhas (ou pelo menos uma galinha, a galinha que escapuliu para a rua), e a mãe é
quem cuida dos afazeres de casa, pois tem um avental molhado do trabalho no tanque e
carrega um balde pesado no braço, o que aponta para o acúmulo de tarefas (o avental
remete não só ao tanque, mas à pia e ao fogão; o tanque, à roupa, lavada à mão; o balde, à
limpeza pesada).
A frase que abre o texto é uma fala da mãe do protagonista e narrador, Vicente. No
que se refere à ação do conto, como se disse, a frase insere o leitor diretamente no curso da
ação narrativa, como se os acontecimentos não tivessem se fixado com distanciamento na

209
MPB, p. 27.
153

elaboração de quem narra. É como se o narrador tivesse sido surpreendido, de supetão, por
algo que escapa ao controle dele próprio e, no entanto, tem relação direta com ele, ou
melhor, é de responsabilidade dele, como atesta a frase da mãe. A fala avisa que a galinha
escapou de casa e pede que ele faça algo. Ela é uma exclamação, mas também uma
reclamação velada. A reação do protagonista é de prontidão e anuência: ele abre o portão de
casa e põe a galinha para dentro. Acorre também para poupar a mãe do peso do balde.
A situação inicial configura uma relação de grande proximidade e dependência entre
mãe e filho, além de indicar certos elementos de condição social. Trata-se de uma casa
simples, devassada e até certo ponto vulnerável, como indica o trânsito da galinha entre
interior e exterior. Apesar de ser domingo, a mãe — chefe de família, já que falta o pai,
como o leitor saberá em seguida — ocupa-se dos afazeres domésticos, como se não fosse
dia de descanso ou folga.
A oposição entre casa e rua é marcada desde o princípio do conto, e os dois polos
encontram correspondência nos dois personagens centrais: a mãe personifica a casa e a
atração para o ambiente interior; o filho quer ganhar a rua, e seus pensamentos e desejos,
ainda que difusos, o impelem para fora.
É domingo. A mãe está ocupada em lavar roupa e com a limpeza de casa. Vicente
diz que Daniel — um vizinho, provavelmente —, o convidara para assistir futebol na TV.
Lembra de Lídia, moça que se dá bem com a mãe, pois costumam costurar juntas, e que
―cismou‖ com ele, ―vive de olhadelas, risinho, convite para festa de casamento‖. Enquanto
os pensamentos andam um pouco a esmo, o rapaz avança em seu passeio a pé, desde a casa
onde mora, com destino incerto: ―Atravessei a ponte. Tinha trocados no bolso, me enfiaria
num trem, acabaria na estação Julio Prestes. Daniel com a televisão e Lídia com costuras...
Eu queria andar‖.
A ação do protagonista, assim, é errática. Naquele domingo à tarde, em que não há
compromissos profissionais e a mãe toma conta da casa, ele recusa os convites do amigo e
da moça que lhe acena com interesse amoroso. Recusa, para resumir, o universo da casa, da
vizinhança e da família, tanto a família que ele tem, como a família prometida pelas
insinuações de Lídia e seu ―convite para festa de casamento‖.
Vicente quer andar. Quer outro espaço, ainda que ele não saiba dizer exatamente
qual ou por quê. A busca a que o título alude não é formulada com clareza. O objeto da
154

procura do protagonista, ele próprio não sabe dizer qual seja: ―(...) por dentro estava era
triste, oco, ânsia de encontrar alguma coisa (...)‖; e, mais adiante, quase no fim do conto:
―Andando tão devagar. Procurava alguma coisa na tarde. O vento esfriou. Não sabia bem o
quê, era um vazio tremendo. Mas estava procurando‖. Trata-se portanto de uma inquietação
sem nome, algo próximo da angústia.
O estilo da narrativa, isto é, a própria elocução do protagonista se mostra dispersiva,
sem norte. A esse respeito veja-se o final do conto, onde a expectativa de um desenlace é
frustrada, em função da permanência do devaneio sem rumo do narrador-protagonista:

Domingo chato, mole, balofo, parecia estar gestando alguma coisa. Uma idéia
extravagante:
— Preciso cortar à escovinha. Assim escondo os começos de cabelo branco...
Chegaria em casa, beijo na testa da mamãe, cumprimentos para Lídia. Ela repetiria o
jogo — indiretas, risinho, interesse, por que não faço isso, por que não gosto de... Mas o vazio
não passaria. Comer alguma coisa, botar o paletó. Andar de novo.
Na rua de pedregulho mal socado o sapato novo subia, descia. Sem pressa, mole. A
garotinha do jardim público poderia ser filha minha. Este pensamento agradou-me, jogou-me uma
ternura. Cortar à escovinha, que ideia! Lídia maneira, pequenina, talvez desse boa mulher.
Pensei com raiva nos sujeitos que me bajulam na oficina. Tontos! A prática que tenho, terão tam-
bém se quiserem. Mas ficam é com amabilidades falsas, favores bobos — ―tenha a bondade‖,
―Vicente, só você pode resolver‖. Murmurei entre os dentes:
— Ora, fossem plantar batatas...
Julguei muito necessário recomeçar os passeios a Santos, a Campinas... Eu e mamãe.
Talvez as semanas começassem melhores, menos compridas. Segunda-feira, não parecendo já o
cansaço de quarta...
Agora o sol descendo por completo. Uma lua em potencial, lá em cima, ganhava tons,
parecia uma bola de ocre. Enorme, linda. Meus olhos divisavam no fundo de tudo o Jaraguá,
mancha grande meio preta, meio azul... Meus olhos não precisavam. Era a hora em que as coisas
começavam a procurar cor para a noite.
Lembrei-me de que precisava passar uma escova no tanque. 210

O foco narrativo em primeira pessoa faz com que a elocução coincida com os
pensamentos de Vicente. Frases nominais, recordações, mudanças bruscas de opinião, a
percepção da passagem do tempo e, sempre, a caminhada, tudo se passa na interioridade de
210
MPB, p. 32.
155

Vicente. Próprias de um pensamento que se deixa deambular, em devaneio, a desarrumação


narrativa e a errância com que a elocução se dá conferem ao conto uma conformação pouco
definida, aberta e incompleta, em que a organização do espaço está sempre, potencialmente,
instável e em constante alargamento e expansão.
Não é fácil localizar neste primeiro conto, por exemplo, as sugestões de unidade de
tom e efeito, recomendadas por Edgar Allan Poe211, ou aquilo que Julio Cortázar212 chama
de ―acontecimento significativo‖ — o episódio crucial da ação, para o qual tudo concorre,
no qual os significados da narrativas se tornam evidentes e a partir do qual outros sentido se
abrem. A errância do personagem, o estilo centrífugo e dispersivo, ao contrário, levam a
ação e a própria narrativa a uma conformação solta, condizente com a ―busca‖ indefinida
que é, afinal, o tema do conto. Busca indefinida que, por sua vez, proporciona o devaneio, o
pensamento sem rumo, a indeterminação dos objetivos e desejos, típicos de um indivíduo
problemático.
A busca sem rumo conduz, assim, a uma elaboração errática e no plano da
composição a uma elocução desarrumada. O devaneio do protagonista, se por um lado
acentua o seu caráter de indivíduo isolado, desejante e fabulador, por outro confere à forma
certa inconstância, certa desarrumação e um inacabamento que corrobora a noção de um
conto esgarçado, sem ―acontecimento significativo‖.
Começo e final se equivalem, repondo a situação inicial. Vicente sai de casa,
passeia, deambula e devaneia, busca algo que não encontra e não descobre o que é. E
retorna a casa sozinho.
No entanto, apesar da solidão do protagonista, que se mantém do início ao fim do
relato, três encontros acontecem no momento presente da narrativa: o primeiro, com um
menino que joga bola na rua; o segundo, com Luís, na casa deste, que entretanto não parece
atender às expectativas de Vicente, mantendo-o em um estado de angústia, de busca sem
direção; e o terceiro, com a menina no jardim público, o que reconduz o pensamento de
Vicente não ao universo da busca, mas em direção ao mundo que ele já tem: a menina
poderia ser sua filha, ele mesmo conclui, e seus pensamentos retornam ao mundo familiar e
da família — a paquera de Lídia, a adulação dos colegas de trabalho, o convite do amigo

211
POE, Edgar Allan. ―Filosofia da composição‘. In: Poemas e ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
São Paulo: Globo, 1999.
212
CORTÁZAR, J. ―Alguns aspectos do conto‖. In: Valise de cronópio. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1993.
156

Daniel, a mãe e, finalmente, a casa, onde ele lembra que tem a tarefa de passar uma escova
no tanque.
Apesar desses três eventos importantes, a ação principal — o acontecimento
significativo, que ordena todas as demais ações da trama —, parece ter se perdido em
algum ponto das elucubrações do personagem-narrador.
Assim, os episódios se sucedem, e acompanham as reflexões, também erráticas, do
protagonista: Vicente sai de casa, atravessa a ponte, cogita pegar o trem até a Estação Júlio
Prestes mas vai caminhando para a Lapa, onde mora Luís, colega de trabalho na oficina; no
caminho, entra por uma rua desconhecida e sua atenção se dispersa pela vizinhança, onde
ele nota os jardins floridos, os moradores do bairro ainda de pijama em espreguiçadeiras;
depara-se com um menino que joga bola; relembra uma passagem de juventude, quando era
pugilista e teve de deixar o boxe por conta de uma operação no fígado; faz uma visita à casa
de Luís; continua a andar, para os lados do Piqueri, enquanto relembra o conhaque bebido
num boteco e a partida de bilhar com o amigo; senta-se num banco de jardim público, onde
enumera lembranças: o tempo de quartel, ―maluqueiras‖, ―farras‖, ―porres‖, boxe; uma
―frase qualquer‖ vem-lhe à cabeça e o faz lembrar dos primeiros cabelos brancos que
apontam ―incisivos‖ nas costeletas; uma menina, ainda criança, passa e lhe dá um tapinha
no joelho; ele conversa com a menina, e lhe oferece um sorvete de palito, até que a
empregada da criança aparece na praça e a leva embora; Vicente volta a andar e falar de sua
procura, ―alguma coisa‖; faz considerações sobre a ―gente de subúrbio mesquinho‖, que se
aperta nos ônibus durante a semana e no domingo vai ao cinema, ―grande coisa‖; continua a
andar e os pensamentos se voltam para o universo doméstico mais uma vez, onde
encontraria Daniel, Lídia e a mãe.
Como se vê, ressalte-se mais uma vez, os episódios se sucedem e não se organizam
claramente, tanto do ponto de vista da ação do conto quando no que se refere às reflexões
de Vicente. A sensação é de que nada acontece e que a narrativa é aberta, sem tônus, sem
tensão, sem desfecho, contrariando as recomendações de Poe e as expectativas do leitor, o
que poderia ser visto como índice de modernidade e experimentalismo, como se a ausência
de ênfase e de um final — um pouco à maneira de Tchékhov213 —, conformassem o texto.

213
Como observa Boris Schnaiderman a respeito da forma aberta de Tchekhov: ―O não-desfecho, ou melhor,
um desfecho diferente do consagrado, sugerindo continuidade, afastava o leitor do enclausuramento no
determinismo causal do século XIX. Neste sentido, Tchekhov prenuncia a subversão da noção consagrada de
157

O trajeto empreendido pelo protagonista parece perdido, e ao menos em uma leitura mais
ligeira, o conto parece ser daquelas narrativas abertas, em que a falta de consequência da
ação contraria as expectativas mais assentadas do leitor, que naturalmente espera que a
busca anunciada no título seja cumprida.
No entanto, em sentido oposto, o conto também se volta sobre si mesmo, ostentando
algo daquela ―esfericidade‖ ou ―forma fechada‖ a que se refere Cortázar.214 A
desorganização narrativa, que diz respeito à ação, mas também à elocução do narrador, só
não é mais exasperada justamente porque a circularidade espacial do relato e certos traços
do protagonista compensam a dispersão, conferindo coesão e certa completude de sentido,
na reconciliação que o retorno a casa proporciona. O leitor fica pensando se, talvez, a busca
do protagonista, afinal, não esteja dada no universo que ele já conhece.
O caráter circular da ação e a dimensão esférica, fechada, do ponto de vista diz
muito sobre o personagem-narrador. Vicente é um rapaz que, apesar da angústia que sente,
é incapaz de escapar aos limites em que está encerrado. Tais limites são espaciais, mas
sobretudo psicológicos, morais e culturais: não há referência a sua formação escolar; o
rapaz trabalha ―desde menino‖; é refratário ao desejo de Lídia, pouco importado se lhe
dizem que ―ela é direitinha‖, mas afinal se rende à ideia de casar com ela.
O personagem que se contrapõe a Vicente e permite identificar melhor as limitações
do protagonistas é Luís, o colega de trabalho. ―Sujeito diferente‖, é como Vicente se refere
a ele, antes de encontrá-lo. Diferente porque ―meteu-se com estudos à noite, esforça-se‖.
Vicente não consegue articular bem a própria elocução, mas Luís, por sua vez, é
desenvolto. Se Vicente está ocupado desde menino em um trabalho alienado, Luís se
mantém estudando e se formando para além da ocupação que tem hoje. Vicente é soldador,
Luís é desenhista. Se o protagonista gosta das letras de samba, o amigo, por sua vez, tem
livros em casa.
O encontro com Luís é indicativo da dificuldade de Vicente de estabelecer novas
relações sociais. O rapaz é visto como um colega ―ótimo‖, que não bajula e ―só abre a boca

tempo. Em termos de estória curta, na base de episódio na aparência sem maior importância, Tchekhov nos
aproxima de uma noção de tempo como a de Proust e como a de Virginia Woolf ‖. Posfácio a TCHEKHOV, A.
A dama do cachorrinho e outros contos. São Paulo: Editora 34, 1999, p. 335. Ver também TCHEKHOV, A.
Sem trama e sem final. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
214
CORTÁZAR, Julio. ―Do conto breve e seus arredores‖. In: Valise de cronópio. op.cit., p. 228.
158

para coisa aproveitável‖. No entanto, a visita215 que Vicente lhe faz resulta na manutenção
do estado de espírito angustiado e dispersivo do protagonista, que se sente diminuído ao
tomar contato com o universo íntimo e intelectual de Luís.
A maneira com que Vicente reage ao visitar o amigo acentua a percepção, por parte
do leitor, das limitações sociais, intelectuais, psicológicas e de formação do protagonista.
No entanto, o rapaz tem certa consciência das limitações que vive. A casa está precisando
de manutenção e a mãe vive sobrecarregada de ocupações. No trabalho, apesar do seu cargo
de chefia, a alienação das funções (―Vicente, só você pode resolver‖) e os favorecimentos
que se estabelecem (ele se sente ―adulado‖) fazem com que suas relações com os colegas
estejam desgastadas. Vicente é respeitado não pelo que ele é, mas por seu status de chefe. É
em relação ao ―subúrbio mesquinho‖ onde vive, porém, que o protagonista é mais enfático
quanto ao seu descontentamento:

Os ônibus passavam carregando gente que volta do cinema. Para essa gente de subúrbio
mesquinho, semana brava suada nas filas, nas conduções cheias, difíceis, cinema à tarde, pelo
domingo é grande coisa. Viaja-se encolhido, apertado. Os ônibus se enchem.
— Essas vilas por aí são uma miséria.

Aluado e dado a devaneios, Vicente gostaria de viver outra realidade, mas é parte do
subúrbio e das vilas em que circula e onde reconhece os moradores, que são todos da
mesma classe que ele. Gente que gosta de samba, de cinema e de passeios, como ele, gente
trabalhadora, que passa a ―semana brava suada nas filas‖, mas miserável (―essas vilas por aí
são uma miséria‖, como diz o narrador) e de moralidade estreita (como indica o adjetivo
―mesquinhos‖, de forte conteúdo moral, atribuído aos bairros suburbanos).
Como ressalta Vima Lia Martin, já tendo em vista as outras narrativas de João
Antônio, Vicente é um ―otário‖, em oposição aos ―malandros‖, na tipologia de personagens
que aparecerão posteriormente na obra do autor. A inserção de Vicente na ordem do
trabalho é clara e, de fato, aproxima o personagem do tipo, aos olhos dos malandros que o
considerariam um ―trouxa‖. No entanto, Vicente é um otário ou trouxa ―aluado‖, como

215
―Visita‖, narrativa do mesmo livro, inserido na seção ―Sinuca‖, é um conto que se assemelha a ―Busca‖,
mas um pouco maior. O protagonista, ao contrário de Vicente, porém, não é nomeado, apesar de o amigo ter
nome, Carlinhos. Entretanto, é um personagem mais consciente de seu conflito com o mundo, isto é, com a
sociedade em que se insere. E, ainda assim, como Vicente, é protagonista de uma busca infrutífera.
159

atesta a opinião de Daniel de que Vicente vive no mundo da lua (lembre-se aqui que o livro
teve como primeiro título, depois descartado pelo autor, Aluados e cinzentos).216 A grande
contradição, portanto, é que o rapaz, apesar de saber de suas próprias limitações e de irritar-
se com isso, está encerrado em seu próprio mundo.
Limitado do ponto de vista de sua formação, pois foi obrigado e a trabalhar ―desde
menino‖, insatisfeito com o trabalho que o mantém e no qual é bem-sucedido, descontente
com o círculo familiar e social, ele sente o impulso de romper com essa situação, mas seus
sentimentos são indeterminados, nostálgicos, e suas estratégias são pouco claras ou...
regressivas, pois ele se identifica fortemente com as crianças que encontra ao acaso e, ao
final, abre mão da busca, reconciliando-se com o universo doméstico, ao voltar para casa e
para a companhia da mãe, cogitando, inclusive a possibilidade de casar com Lídia, a moça
de eleição materna — costureira como a mãe do protagonista.
É a própria constituição do personagem, portanto, que está em questão no texto.
Ocupado com o luto pela morte do pai e com as atribulações domésticas, Vicente sai de
casa à procura de algo que não sabe o que é, mas encontra um confrontamento de si para
consigo mesmo. O isolamento do personagem o conduz a um exame de sua própria
situação — familiar, social, psicológica. O caminho que se insinua é o da emancipação, da
inserção social e do arrivismo, a trajetória da periferia para o centro — da casa para a rua
ou do ―subúrbio mesquinho‖ para ―São Paulo‖, nos termos do conto —, mas o que ocorre é
a reposição da situação familiar nuclear e a conservação dos valores morais ―mesquinhos‖ e
patriarcais, em que o papel de Vicente é o de filho obediente e dedicado; mais que isso,
como ele cogita ao final: seu destino é o de substituto do pai.
Ao final do conto, ressalte-se, o protagonista pensa em retomar, na companhia da
mãe, os passeios que o pai empreendia quando este, obviamente, ainda era vivo, o que
aponta para o passado, para a juventude e a infância do protagonista. Ultrapassar o lugar do
pai e romper com a ordem familiar, simbolicamente, seria a saída natural de emancipação
do personagem, mas a trajetória de Vicente é literal e conformada: ele sai rumo ao mundo
exterior, em busca de aventura e ação, mas ao final retorna ao seio familiar, onde vai
ocupar o lugar vago deixado pela figura paterna.

216
Além de Aluados e cinzentos, o autor também cogitou intitular o livro de Meninão do caixote e de Fujie e
outros contos, além de ter planejado diferentes versões do livro (e até de não incluir o conto ―Malagueta,
Perus e Bacanaço‖ no livro de estreia). Ver LACERDA, R. João Antônio: uma biografia literária. op.cit.
160

Porém, o percurso da busca, que é ao final retorno, é desestabilizado três vezes,


como se disse, em encontros que conferem tensão o desenvolvimento da ação narrada.
Vejamos como eles se dão.

Três encontros e um retorno

Ao sair de casa, Vicente se afasta da família e do que lhe é familiar. Não quer saber
da companhia da mãe, absorta com as ocupações domésticas, nem de Daniel, com o futebol
na televisão, nem de Lídia, a pretendente que ele evita. Em suas andanças, Vicente terá três
encontros, dois deles fortuitos, e apenas um deles premeditado. No percurso da busca,
portanto, alguns episódios refreiam o ímpeto horizontal de alargamento do caminho. Os
personagens com quem Vicente é confrontado suspendem a busca por alguns instantes,
fazendo a narrativa mudar de vetor, ganhando verticalidade.
A primeira pessoa com quem Vicente se depara é um menino que joga bola na rua.

Entrei por uma rua que não conhecia. Olhava para tudo. Jardins, flores, mangueiras
esquecidas na grama, gente de pijama estendida nas espreguiçadeiras. A bola de borracha subia e
descia no muro. Um menino veio. O que eu adoro nesses meninos são os cabelos despenteados.
Chutei-lhe a bola, que ela corria para mim. Transpirava, botou a mão no ar agradecendo.
— Legal!
Ele disparou, vermelho de sol.

Ao andar pela Lapa, o protagonista olhava para tudo, com uma espécie de espanto
ou, pelo menos de curiosidade. A descrição que ele faz do bairro, a City Lapa, que lhe dava
uma ―tristeza leve‖, como ele já havia dito, é a de um bairro tranquilo e relaxado, com
pessoas em espreguiçadeiras, com jardins bem cuidados, flores e crianças brincando na rua.
É um bairro residencial mais rico que o subúrbio onde Vicente mora.
O trecho prepara a chegada de Vicente à casa de Luís. Mas o encontro com o
menino, ainda que muito rápido e fortuito, é sugestivo, pois pela primeira vez na ação
narrada Vicente interage com outro personagem além da mãe. Vicente lhe chuta a bola e
faz uma observação interessante sobre os cabelos da criança: ―O que eu adoro nesses
meninos são os cabelos despenteados‖.
161

Os cabelos despenteados do garoto indicam que o menino tem cabelos compridos,


revoltos, desalinhados, e a descrição destaca a desarrumação do personagem. A forte
identidade entre ambos é rápida e não tem desenvolvimento. A criança agradece a
devolução da bola. Vicente observa que ―adora‖ os cabelos despenteados do menino. A
simpatia e o enlevo do protagonista para com o menino marca uma mudança de tom no
relato, depois da ―tristeza leve‖ e da irritação do protagonista com Daniel, Lídia e os
colegas que o adulam na oficina. E os cabelos do menino irão ecoar, um pouco à frente, na
observação que Vicente fará sobre o próprio penteado. Como o leitor será informado mais
adiante — sem que isso seja dito explicitamente, porém — é um tipo de cabelo parecido
com o que provavelmente Vicente também usa.
Depois do encontro com o menino, o desenvolvimento da ação no momento
presente da narrativa é interrompido. O conto ganha uma marcação gráfica, que separa esta
primeira parte do relato do que virá a seguir.217 Na parte que se segue, o tempo do conto
muda radicalmente, estruturando-se em flashback. Vicente relembra então o episódio que o
fez abandonar o boxe. Voltaremos a esse tema adiante. Por ora, é mais interessante
saltarmos esse trecho de evocação, pois quando este se encerra a ação narrativa segue com
o segundo encontro do protagonista.
O segundo encontro é com o colega de trabalho. Agora, afinal, Vicente chega à casa
de Luís. A descrição da casa acentua o contraste da condição de vida do amigo, em relação
à do protagonista:

Luís ficou muito contente. Jamais pensei que tivesse casa tão bem disposta. Capricho nas
paredes, tinhorões no jardim. Em seu quarto, mostrou-me livros, entusiasmou-se com uns desenhos
sobre a prancheta. Disse-lhe sem sentir, olhando linhas em nanquim preto:
— Você deve continuar. Desenho arquitetônico dá dinheiro, rapaz — lembrei-me de Freitas
naquela hora.

O relato, no encontro anterior, com o menino, já preparava o leitor para o contraste


entre o subúrbio onde Vicente mora e o bairro ao qual ele chega. A casa de Luís, assim
como as casas da City Lapa descritas por Vicente, tem jardim com plantas. Vicente observa

217
As divisões do conto, em edições anteriores, vêm assinaladas com asteriscos. Na edição mais recente, as
marcações são de espaços em branco.
162

que a casa é ―bem disposta‖ e que há capricho nas paredes. Não se sabe se as tais paredes
são internas ou externas, mas a descrição faz lembrar, por oposição, a situação inicial de
Vicente, ocupado com a sujeira, com ―o começo de limo nas paredes‖, da casa em que
mora com a mãe.
Ao adentrar a casa de Luís, e mais internamente ainda, o quarto do colega, o
contraste é ainda maior com o universo de Vicente. A elocução ressalta a surpresa de
Vicente com a diferença, e a própria construção linguística para falar do universo cultural
elevado de Luís se mostra mais refinada, a ponto de tornar-se empolada: a colocação
pronominal, o uso da ênclise em ―mostrou-me livros‖, indica que o mundo de Luís faz
Vicente tentar se mostrar mais educado, mais polido e sabido do que ele é de fato. O
mesmo se dá na tentativa de aconselhamento, depois de ver os desenhos do amigo. Luís
mostra os desenhos com entusiasmo, mas Vicente o aconselha, ―sem sentir‖, que siga
adiante, pois aquilo pode dar dinheiro. Incapaz de compartilhar o interesse, mais que isso, o
entusiasmo de Luís pelos desenhos, Vicente instrumentaliza, pragmático, a arte do amigo e
assume um tom conselheiro, paternal. A lembrança de Freitas, seu antigo treinador de
pugilismo, aponta para a relação hierarquizada, vertical, que Vicente assume para com o
colega e para a sua carreira interrompida — a de boxeador —, que talvez, em sua
concepção, pudesse ter lhe ―dado dinheiro‖, como ele infere da ocupação do amigo com
desenho arquitetônico.
Se o encontro inesperado com o menino que jogava bola na rua foi insuficiente para
alterar a narrativa e o estado de espírito de Vicente, a visita à casa de Luís tinha tudo para
conduzir Vicente para uma situação de maior clareza com relação ao seu desejo e à busca.
O impulso horizontal que move Vicente, a ―mania de andar‖, fez com que o rapaz fosse à
casa do amigo Luís. O protagonista intui, assim, que a busca tem relação com a amizade do
colega de trabalho. Mas a chegada à casa de Luís é decepcionante. Vicente parece não se
sentir à vontade na casa do colega — e não por falta de acolhida. As diferenças de
formação e de classe (apesar de colegas de trabalho, Luís parece estar em melhor situação
que Vicente) perturbam o protagonista.
O segundo encontro de Vicente, assim, poderia alterar os rumos da ação ou pelo
menos despertar no personagem maior consciência sobre a busca. No entanto, apesar da
receptividade com que é recebido na casa de Luís, dos momentos que eles passam juntos e
163

do sentimento de diferença de classe, a inquietação de Vicente não passa e sua formulação


da busca não muda:

Chateza na tarde. Ia para os lados do Piqueri. Havia bebericado conhaque num boteco,
jogado uma partida de bilhar com Luís. Fingira atenção nas tacadas, um capricho que não é meu.
Sorrira, pegara no giz, insinuara apostas. Mas por dentro estava era triste, oco, ânsia de encontrar
alguma coisa. Não parede verde de tinhorões e trepadeiras, nem bola sete difícil, nem Lídia, nem...
Tempo-será das crianças no jardim público. Sentei-me num banco, cigarros se sucediam.
Uma porção de lembranças — tempo de quartel, maluqueiras, farras, porres. Boxe, boxe! Uma frase
qualquer me veio na tarde. Ouvida na oficina, na casa de Luís, não a localizava precisa, nem onde.
Só sabia que falava dos primeiros cabelos brancos que tenho. Acima da costeleta, apontam incisivos;
provavelmente não demorarão em pintar tudo de branco. Uma criança passou-me, deu-me um
tapinha no joelho. Achei graça naquilo, sorri, tive vontade de brincar com ela. Ficamos nos
namorando com os olhos. Ela se chegou, conversamos. Perguntei essas coisas que se perguntam às
crianças. Em que ano do grupo está, quanto anos tem, gosta daquilo, disto... O sorveteiro com o
carrinho amarelo. Paguei-lhe um sorvete de palito, e ficamos eu e a menina até os aventais muito
brancos da empregada surgirem na praça.
Andando tão devagar. Procurava alguma coisa na tarde. O vento esfriou. Não sabia bem o
que, era um vazio tremendo. Mas estava procurando (...)218

Depois da visita a Luís, eis o terceiro encontro de Vicente, com a menina no jardim
público, o qual mais uma vez, como se percebe na sequência da ação, não altera o impulso
deambulatório do personagem e da elocução. Depois de se deparar com um menino que
jogava bola e ter-se encontrado com o amigo Luís, Vicente agora tem um encontro
significativo e, no entanto, mais uma vez ele volta a andar, sem que a ação principal do
conto pareça se alterar substancialmente.
O começo do trecho retoma o estado de espírito da angústia e do tédio, ou do
desconhecimento acerca do próprio desejo: ―Chateza na tarde‖. O impulso de
horizontalidade, de alargamento do espaço, se manteve depois do encontro com Luís, e
agora a horizontalidade se aproxima do ânimo do protagonista, encontrando
correspondência no estado de espírito entediado, que o faz estender à tarde a dimensão
―chata‖. A ―chateza do quotidiano‖ mencionada pela resenha de João Alexandre Barbosa se
expressa aqui na tarde de um domingo que prometia aventura, uma busca incerta, mas de

218
MPB, pp. 30-31.
164

possível sentido emancipatório, rumo à libertação do luto e da melancolia. Mas o impulso


da busca é refreado pela nostalgia, pelas lembranças da juventude de Vicente, momento da
vida mais orientado (no quartel, no boxe) e mais livre (tempo das ―maluqueiras‖, das
―farras‖ e dos ―porres‖).
A presença de outro personagem em cena poderia ter feito Vicente parar e decidir,
afinal, dar sentido à busca. Não é o que acontece. A permanência da angústia e do
desnorteamento mostra que os dois encontros anteriores conservaram Vicente no mesmo
plano — no chato, na horizontal —, sem conseguir alterar seu ponto de vista ou sua
compreensão acerca do próprio desejo, o que o mantém em movimento, mesmo depois dos
encontros que, a princípio, deveriam conferir certa verticalidade à trajetória do
protagonista.
O encontro com a menina é importante. Depois do encontro passageiro com o
menino, agora o tempo em que os dois, protagonista e criança, permanecem juntos é mais
longo e mais intenso. A interação também é maior que com o menino. Se antes havia a bola
como objeto de mediação entre um e outro, agora há contato físico entre os personagens: a
menina dá um tapinha no joelho de Vicente. Mais que isso, Vicente usa o verbo namorar
para definir a maneira com que ambos se olham, demoradamente. Depois, os dois, Vicente
e a menina, conversam, e ele lhe compra um picolé. Vicente parece perder a noção do
tempo em companhia da criança, pois diz que ficaram os dois ―até os aventais muito
brancos da empregada surgirem na praça‖.
É digno de nota que os dois momentos mais felizes da caminhada de Vicente se
deem na companhia de duas crianças. O enlevo que ele sente ao interagir com o menino e a
menina contrasta com o estado de angústia e tristeza que o personagem expressa ao longo
do conto — e as duas crianças serão os personagens que vão conduzir os pensamentos de
Vicente para a mudança de intenções que se observa ao final do relato. Primeiro: ainda
achando o domingo ―chato‖, diz que o dia parece estar ―gestando alguma coisa‖; ao que ele
mesmo acrescenta a ―ideia extravagante‖ de ―cortar à escovinha‖ para esconder os
―começos de cabelo branco‖. O possível corte de cabelo revela que Vicente usa um
penteado mais relaxado, o que remete aos cabelos despenteados do menino encontrado na
rua. Depois: é a lembrança da menina que vai determinar a alteração no pensamento de
Vicente: ―Na rua de pedregulho mal socado o sapato novo subia, descia. Sem pressa, mole.
165

A garotinha do jardim público poderia ser filha minha. Este pensamento agradou-me,
jogou-me uma ternura. Cortar à escovinha, que ideia! Lídia maneira, pequenina, talvez
desse boa mulher (...)‖. Assim, Vicente decide manter os cabelos brancos sem corte,
conservando um visual desalinhado, ainda que com isso deixe transparecer sinais de
envelhecimento. E admite, então, para si próprio, casar-se.
O encontro com as duas crianças faz Vicente passar em revista seu amadurecimento.
Primeiro com o menino, cujo índice de identificação com Vicente são os cabelos. O rapaz
diz adorar os cabelos despenteados de menino, para algumas linhas adiantes comentar sobre
a ideia extravagante de cortar os seus próprios cabelos ―à escovinha‖, curtos, para esconder
os fios brancos que apontam, ―incisivos‖. Talvez com isso renuncie às lembranças boas da
época do quartel, quando, como soldado, provavelmente usava o cabelo à escovinha. Mais
do que procurar compreender para onde vai o desejo e a orientação do protagonista, é
importante notar que as oscilações de tempos e de lembranças conservam Vicente em um
estágio indeterminado sobre a própria maturidade e indeciso quanto ao que ele pretende. A
identificação com o menino e com outras crianças faz o rapaz reencontrar também a sua
experiência de infância, onde se encontram sentimentos menos dolorosos que os do
momento presente da ação narrada. O ―tempo-será‖ da infância, que ele vive na companhia
das crianças brincando no jardim público, é revivido por ele próprio, indeciso sobre o seu
desejo como uma promessa de futuro. Os pensamentos, no entanto, remetem ao passado, a
lembranças de juventude e a uma frase ouvida, que ele não sabe localizar quando ou onde.
No outro encontro, com a menina, a identificação é ainda maior. Vicente a namora
com os olhos, fica com ela até perder a noção do tempo e, ao final, a construção de texto
que revela a chegada da empregada à praça é indicativa de que a perspectiva visual de
Vicente se igualou à da menina. A presença da empregada é sentida pela metonímia dos
―aventais‖. É como se, entretidos entre eles, brincando ou ―namorando‖, Vicente e a
menina percebessem a chegada da empregada de baixo, no nível dos aventais que ela usa.
Ambos os encontros, com o menino e a menina, portanto, fazem com que Vicente
volte a ser criança, ao menos simbolicamente, para depois reencontrar o estágio atual de
desenvolvimento afetivo, não sem antes examinar a possibilidade de ele se tornar,
rapidamente, um velho: os cabelos brancos, ele sente, em breve tomarão toda a sua cabeça.
Simbolicamente, portanto, o devaneio de Vicente acerca de si mesmo, acentua a indefinição
166

sobre sua própria idade, ou melhor, sobre sua maturidade. Numa única tarde, Vicente
experimenta a sensação psicológica de ser criança e de ser um senhor de cabelos brancos,
tudo isso sendo um jovem rapaz solteiro ocupado com questões de trabalho e casamento.
Essa passagem, da infância para a velhice, ou pelo menos, da infância para a
maturidade, para uma fase em que os cabelos brancos o distanciam de sua condição de
rapaz, se dá a partir do encontro com a menina: o ―namoro‖ que Vicente estabelece com a
menina do jardim público substitui, simbolicamente, o namoro que Lídia tenta, sem
sucesso, estabelecer com o rapaz. No plano doméstico, Vicente recusa o flerte com Lídia.
Ao sair de casa, porém, deixa-se levar pela ―investida‖ da menina na praça. Posteriormente,
em lembrança, a Vicente ocorrerá que a menina poderia ser sua filha. Mas no momento da
ação é sintomático que o rapaz, em sua busca, estabeleça um ―namoro‖, algo que não
admite deixar florescer em seu ambiente familiar.
A garotinha, assim, substitui a moça, assim como os encontros com o menino e com
Luís, da mesma forma, podem ser vistos como substituição do encontro recusado por
Vicente para o futebol na televisão com o vizinho Daniel.
Neste jogo de identificação e recusa, os dois únicos personagens que o protagonista-
narrador não consegue substituir durante a ação do conto são a mãe e o pai.

Romance familiar e questões edípicas

As estratégias de substituição simbólica de uma personagem pela outra, que a ação


do conto põe em cena, indicam que Vicente deixou a casa familiar para repor, no espaço
externo, relações análogas às que ele mantém em família. Pai, mãe e ―irmãos‖ (irmãos que
o protagonista não tem, mas que ganham sucedâneos em Lídia e Daniel) continuam a
ocupar seus pensamentos, mesmo durante a busca.
O pai é figura central nesse momento, ainda que sua presença se dê,
paradoxalmente, pela ausência definitiva. Esta centralidade espectral e enigmática da figura
paterna, que move o protagonista do conto, merece atenção especial.
As referências de Sigmund Freud à importância do pai para a constituição do sujeito
são inúmeras, permeiam sua obra inteira e estão no centro de um dos principais conceitos
por ele formulados, o do complexo de Édipo. As menções ao pai remontam à obra
167

fundadora da psicanálise, desde o prefácio à segunda edição do livro: ―(...) este livro tem
para mim, pessoalmente, outra importância subjetiva — uma importância que só apreendi
após tê-lo concluído. Ele foi, como verifiquei, parte de minha própria autoanálise, minha
reação à morte de meu pai — isto é, ao evento mais importante, à perda mais pungente da
vida de um homem‖.219
O papel que a figura paterna desempenha na formação psíquica do indivíduo e a
relação conflituosa que os meninos mantêm com o pai ganharão análise de Freud em A
interpretação dos sonhos no capítulo dedicado aos sonhos típicos, dentre os quais se
destacam os sonhos ―sobre a morte de pessoas queridas‖. Depois de examinar os
sentimentos de rivalidade que surgem entre os irmãos, por conta do ciúme do amor dos
pais, Freud examina os impulsos destrutivos da criança também em relação ao pai e à mãe.
A forte ligação do menino com a mãe e seus impulsos negativos em relação ao pai,
diz Freud, sobrevivem para além da infância e continuam a se manifestar com desejos de
morte do pai, lembrando que para as crianças, ressalta o autor, morte e ausência são a
mesma coisa. Os sonhos de morte do pai, portanto, seriam realização de desejo, um desejo
antigo, que remonta à infância e retorna posteriormente, em sonho ou em outras
manifestações inconscientes. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o outro, diz Freud, é
comum na mente de todas as crianças, e os sentimentos de amor e ódio que elas nutrem
pelo casal parental pode ser explicado por meio de um mito da Antiguidade. É quando
aparece uma das primeiras menções, na obra de Freud, ao Édipo:

Em minha experiência, que já é extensa, o papel principal na vida mental de todas as crianças que
depois se tornam psiconeuróticas é desempenhado por seus pais. Apaixonar-se por um dos pais e odiar o
outro figuram entre os componentes essenciais do acervo de impulsos psíquicos que se formam nessa época
e que é tão importante na determinação dos sintomas da neurose posterior. Não acredito, todavia, que os
psiconeurótícos difiram acentuadamente, nesses aspectos, dos outros seres humanos que permanecem
normais — isto é, que eles sejam capazes de criar algo absolutamente novo e peculiar a eles próprios. É
muito mais provável — e isto é confirmado por observações ocasionais de crianças normais — que eles se
diferenciem apenas por exibirem, numa escala ampliada, sentimentos de amor e ódio pelos pais, os quais
ocorrem de maneira menos óbvia e intensa nas mentes da maioria das crianças.
Essa descoberta é confirmada por uma lenda da Antiguidade clássica que chegou até nós: uma
lenda cujo poder profundo e universal de comover só pode ser compreendido se a hipótese que propus com

219
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 1999. p. 14.
168

respeito à psicologia infantil tiver validade igualmente universal. O que tenho em mente é a lenda do Rei
Édipo e a tragédia de Sófocles que traz o seu nome.220

Segundo Freud, o destino de Édipo ―comove-nos apenas porque poderia ter sido o
nosso — porque o oráculo lançou sobre nós, antes de nascermos, a mesma maldição que
caiu sobre ele. É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para
nossa mãe, e nosso primeiro ódio e primeiro desejo assassino, para nosso pai. Nossos
sonhos nos convencem de que é isso o que acontece. O Rei Édipo, que assassinou Laio, seu
pai, e se casou com Jocasta, sua mãe, simplesmente nos mostra a realização de nossos
próprios desejos infantis‖.221
A noção de complexo de Édipo ganhou centralidade na obra do autor e
desdobramentos posteriores, em textos como ―Romances familiares‖, ―O Eu e o Id‖,
―Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar‖ e ―Totem e tabu‖, entre outros. No
primeiro destes, Freud descreve a passagem que todo indivíduo realiza em relação aos pais
— ao sentir que não recebe todo o amor que deseja, por conta da rivalidade com os irmãos
ou outras pessoas —, qual seja: de um sentimento de identificação e devoção para o
desapontamento e a crítica, ao constatar que os pais em muitas ocasiões o rejeitam ou, ao
menos, neglicenciam-no.

Ao crescer, o indivíduo liberta-se da autoridade dos pais, o que constitui um dos mais
necessários, ainda que mais dolorosos, resultados do curso do seu desenvolvimento. Tal liberação é
primordial e presume-se que todos os que atingiram a normalidade lograram-na pelo menos em parte.
Na verdade, todo o progresso da sociedade repousa sobre a oposição entre as gerações sucessivas.
Existe, porém, uma classe de neuróticos cuja condição é determinada visivelmente por terem falhado
nessa tarefa.
Os pais constituem para a criança pequena a autoridade única e a fonte de todos os
conhecimentos. O desejo mais intenso e mais importante da criança nesses primeiros anos é igualar-
se aos pais (isto é, ao progenitor do mesmo sexo), e ser grande como seu pai e sua mãe. Contudo, ao
desenvolver-se intelectualmente, a criança acaba por descobrir gradualmente a categoria a que seus
pais pertencem. Vem a conhecer outros pais e os compara com os seus, adquirindo assim o direito de
pôr em dúvida as qualidades extraordinárias e incomparáveis que lhes atribuíra. Os pequenos fatos da
vida da criança que a tornam descontente fornecem-lhe um pretexto para começar a criticar os pais;

220
Idem, ibidem, p. 261.
221
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. op.cit., p. 263.
169

para manter essa atitude crítica, utiliza seu novo conhecimento de que existem outros pais que em
certos aspectos são preferíveis aos seus.222

Em ―Romances familiares‖, Freud comenta a necessidade psíquica que a criança


tem de desenvolver um ―romance familiar‖, isto é, de trocar seus pais por pais substitutos,
por conta da desconfiança de que aqueles que ela chama de pai e mãe não sejam, em
realidade, seus verdadeiros pais, pois ela ignora sua origem e não tem como se assegurar de
que os pais que cuidam dela são realmente seus pais. As fantasias que advêm dessa
suposição incluem a desconfiança de que ela pode ter sido encontrada ou de que ela, ou
seus irmãos, são na verdade filhos bastardos, e que aqueles que se dizem seus pais são na
verdade um padrasto e uma madrasta.
O estágio seguinte é o que Freud chama de ―romance familiar do neurótico‖. A
fantasia de substituição dos pais nessa altura do desenvolvimento infantil, assim, ―depende
da inventividade e do material à disposição da criança‖:

Essa atividade emerge inicialmente no brincar das crianças e depois, mais ou menos a partir do
período anterior à puberdade, passa a ocupar-se das relações familiares. Um exemplo característico
dessa atividade imaginativa está nos devaneios que se prolongam até muito depois da puberdade. Se
examinarmos com cuidado esses devaneios, descobriremos que constituem uma realização de desejos e
uma retificação da vida real.223

O romance familiar começa a se desenvolver nas atividades lúdicas, no brincar, e


com o tempo passa a povoar a imaginação da criança, tomando a forma de devaneios. No
entanto, como a criança, ao tomar conhecimento do conteúdo sexual da relação entre pai e
mãe, descobre que o pai é incerto, enquanto a mãe é comprovadamente sua mãe, tende a
desenvolver predominantemente fantasias de substituir o pai. Para Freud, porém, não se
trata de uma fantasia de eliminar o pai, mas bem ao contrário:

Dessa forma a criança não está se descartando do pai, mas enaltecendo-o. Na verdade, todo
esse esforço para substituir o pai verdadeiro por um que lhe é superior nada mais é do que a expressão

222
FREUD, S. ―Romances familiares‖. In: “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908). Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago,
1996, p. 219.
223
FREUD, Sigmund. ―Romances familiares‖. op.cit., p. 220.
170

da saudade que a criança tem dos dias felizes do passado, quando o pai lhe parecia o mais nobre e o
mais forte dos homens, e a mãe a mais linda e amável das mulheres. Ela dá as costas ao pai, tal como o
conhece no presente, para voltar-se para aquele pai em quem confiava nos primeiros anos de sua
infância, e sua fantasia é a expressão de um lamento pelos dias felizes que se foram.224

O romance familiar, portanto, permite que a criança comece a se libertar de sua


dependência psíquica dos pais verdadeiros, devaneando, fantasiando ser filha ou filho de
outros pais, ou figuras paternas substitutas. Nesse sentido, o romance familiar é a forma que
a imaginação encontra para resolver a crise definida pelo complexo de Édipo: a de amar a
mãe e odiar o pai, se ela é um menino, ou ao contrário, amar o pai e detestar a mãe, se ela é
menina.
É a partir deste texto de Freud que Marthe Robert desenvolve sua teoria sobre a
―fábula biográfica‖ da criança, que em sua teoria dará origem ao ―romance‖, entendido
como devaneio e também como gênero literário. As duas possibilidades acerca da própria
origem, que são características do ―romance familiar do neurótico‖, tal como descrito por
Freud, levaram Marthe Robert a desenvolver a classificação da narrativa do romance em
dois tipos de história recorrente: aquela protagonizada pela ―Criança Perdida‖ e aquela
protagonizada pelo ―Bastardo‖. Jogando com o duplo sentido da palavra ―romance‖, Robert
diz que assim como a criança precisa fazer seu ―romance familiar‖ para deixar a infância
para trás, substituindo os pais que a criaram por pais substitutos, o herói de romance, como
o romancista, também é um ―fazedor de romance‖.225 Assim, o romance das origens de
cada indivíduo se torna também a origem do romance, da fabulação, do devaneio e da ação
do herói.
Depois do primeiro estágio, em que a criança acredita ter sido adotada pelos pais
que conhece, mas que na verdade tem outros pais, mais nobres e mais amorosos que estes
que não atendem a todas as expectativas (é uma Criança Perdida), sobrevém a fase em que

224
Idem, ibidem.
225
Seguindo a definição do dicionário francês Littré, Robert lembra que ―fazer romance‖ é ―conquistar o
coração de uma pessoa de condição superior, como se vê nos romances‖ ou ―contar as coisas de modo
diferente do que aconteceram‖. Assim, conclui a autora, fazer romance é ―agir a exemplo do herói de romance
e mentir à maneira do romancista‖. Com isso, quem faz romance expressa um desejo de mudança: ou conta
histórias e muda o que é (isto é, o mundo) ou casa acima de sua condição e muda o que ele é (isto é, a si
próprio). ROBERT, M. Romance das origens, origens do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 28-29.
171

a criança, ciente do componente sexual da relação parental, acredita que ela é enjeitada (o
Bastardo):

A nova tendência do romance, dessa vez, portanto, sexual, trai seus motivos até nas
astúcias que urde para camuflá-los. Ao se declarar ilegítima, com efeito, a criança coloca-se numa
situação que, necessariamente pretendida por ela, permite deduzir suas verdadeiras razões e o
encaminhamento de seus desejos ocultos. Em primeiro lugar, ela mantém a mãe ao seu lado, e essa
proximidade cria uma intimidade ainda mais estreita na medida em que agora ela se impõe na
narrativa como único vínculo concreto; depois — mas os dois procedimentos mantêm-se ambos tão
próximos que mal se pode dissociá-los —, relega o pai a um reino de fantasia, a um além da
família que tem o sentido de homenagem e mais ainda de exílio, pois, para o papel por ela agora
desempenhado na ordem corrente da vida, esse pai-rei e desconhecido, esse eterno ausente
poderia igualmente com efeito não existir, ser um fantasma, um morto ao qual se pode decerto
consagrar um culto, mas também alguém cujo lugar é vazio, sendo tentador substituí-lo. Se
pensarmos que, para o maestro inconsciente que administra o arranjo do conto, toda
aproximação equivale à aproximação sexual, toda ausência à morte e toda supressão ao
assassinato (como o inconsciente ignora a morte, não a concebe senão sob a forma de uma ausência
prolongada), vê-se logo que a desigualdade social dos dois pais não responde apenas ao juízo de
valor que parece motivá-la, mas claramente antes a uma situação afetiva escabrosa, exatamente a
mesma que o romance tem como tarefa dizer e passar sob silêncio, enquanto se esforça para
desatá-la. O que se exprime aqui sob a capa de uma desigualdade de condição só pode ser
compreendido como alusão à prova mais dolorosa da infância, como evocação desse conflito a
que Freud vinculo o nome lendário de Édipo, mostrando que todo homem deve um dia enfrentar
seu duplo perigo, em qualquer lugar onde este venha a nascer.226

A tendência do romance familiar, portanto, é evoluir para a fase edípica e, dela,


―fazer romance‖, ou seja, superar a fase de fixação no pai e na mãe, situação em que a mãe,
nos termos de Robert, é ―o único vínculo concreto‖ e o pai é um ―pai-rei‖ desconhecido,
―eterno ausente‖. Isso se dá por devaneio, fantasia, imaginação, narrativa.
É justamente, guardando as devidas proporções, o tema do conto em questão e a
fase pela qual passa Vicente. Como se voltasse à infância, Vicente é um pequeno Édipo que
permanece fixado na mãe e na figura ausente e idealizada do pai. A forte ligação com a mãe
e a dificuldade de superar a perda paterna (conservando sua condição infantil de filho
―soldado‖ aos pais) apontam para a dificuldade de Vicente em se desvencilhar do casal
226
ROBERT, M. op. cit., pp. 40-41.
172

parental. A relação edípica irresolvida, que o protagonista, mesmo em idade avançada,


ainda carrega, indica que o Édipo é mais um dos modelos arquetípicos a que o protagonista
se liga.
O protagonista da busca, afinal, não é bem-sucedido em seu ―romance‖. Por quê?
Porque em Vicente persiste a necessidade de substituir os pais, o que envolve, como
sublinhou Freud, sentimentos de decepção e de agressividade, mas também de amor e
enaltecimento, em relação ao casal parental.
A história de Vicente dá grandes indicações nesse sentido.
A relação do rapaz com a mãe é de grande proximidade e dependência. É com ela
que o protagonista estabelece vínculos concretos. Ao mesmo tempo, o rapaz tem lá as suas
críticas a fazer à mãe: acha desnecessário que ela, mesmo no domingo, ocupe-se do
trabalho pesado de limpeza; é prestativo, mas não tem paciência com os afazeres
domésticos, deixados de lado em favor da andança que ele empreende pela cidade e
tratados com certo desprezo, desprezo que se estende a Lídia, ambas ―lá com suas costuras
e arrumações caseiras‖. Lídia é a mulher que pode substituir a mãe, mas permanece colada,
ou melhor, ―costurada‖ à mãe do rapaz e ―arrumada‖ com ela nas ocupações caseiras.
Vivendo com a mãe, Vicente precisa buscar outra mulher para ―fazer romance‖, mas a
única que se apresenta, no espaço do conto, é Lídia, uma espécie de ―irmã‖, pois que é
parte de seu universo social e companheira da mãe.
Com relação ao pai, as referências a ele são poucas, mas as recordações de Vicente
lhe são favoráveis: ―O velho, quando vivo, fazia passeios a Santos, uma porção de coisas.
Bom. A gente se divertia, a semana começava menos pesada, menos comprida, não sei. Às
vezes, penso que poderia recomeçar os passeios‖. É como se a morte do pai tivesse fixado
positivamente sua imagem, em uma idealização de boa companhia, que o levava a passeios
a Santos e aliviava o peso da semana de trabalho. Vicente identifica o pai, assim, à leveza
dos passeios, à diversão, ao fim de semana, à palavra ―bom‖. Ele cogita recomeçar os
passeios, isto é, retomar a mesma atividade que o pai lhe proporcionava. No entanto, em
vez dos passeios e da diversão, a morte do pai lhe impôs a ―mania de andar‖ e a ―busca‖.
Ou seja, a morte do pai faz com que ele assuma características que não eram paternas, mas
173

o mantém sem norte, o que indica que o luto gerado por essa ausência se prolonga, sem que
a falta da figura paterna tenha ganhado elaboração ou encaminhamento.227
Para além de seu núcleo familiar, as recusas afetivas se sucedem e a únicas
identificações do protagonista que permanecem são aqueles que ele estabelece com a mãe e
com o pai. Apesar do nome bem marcado, Vicente, que o identifica, e apesar do
enraizamento arquetípico como jovem rapaz que empreende o caminho do subúrbio para o
centro, em oposição à forte unidade familiar e moral em que está inserido, apesar de tudo
isso, a narrativa de ―Busca‖ apresenta um personagem que, ele próprio, tem contornos
pouco definidos, em contraponto à constância das caminhadas a esmo mas sempre movidas
por um desejo difuso. O romance familiar de Vicente, reatualizado em seus devaneios, faz
com que ele sinta a necessidade de se lançar na busca de outro pai. Infere-se que a busca
remonte à perda do pai: ―Desde que papai morreu esta mania‖. O hábito de andar, sem
rumo, persiste como sintoma do luto, desde a perda do pai. Essa busca então se manifesta
como uma andança sem rumo e sem objeto de desejo definido, mas com objeto perdido
bem claro.
Vicente revive o seu ―romance familiar‖ tal como definido por Freud, isto é, a
inclinação da criança a substituir os pais biológicos por pais substitutos, mas romance este
que não chega a se realizar, preservando os contornos de organização familiar tal como ela
se dava na infância do protagonista — e a busca pode mesmo ser vista como uma busca
pela elaboração de um ―romance‖, isto é, a atualização de uma crise edípica, e a
necessidade, malograda, diga-se, de ―fazer romance‖, isto é, um desejo de devaneio, para
imaginar uma situação em que o seu desamparo e o seu isolamento encontrem possibilidade
de superação.
Os encontros de Vicente com as crianças no caminho também o fazem reviver os
tempos infantis, como vimos. Esse retorno do personagem aos seus tempos de menino
indicam uma infância que retorna ou, se preferirmos, uma infância que nunca se foi. É
provável que o impulso nostálgico de Vicente se relacione a essa permanência de sua
condição infantil. Daí a impertinência para com Daniel, Lídia, os colegas de trabalho e até

227
Sobre o luto, ver FREUD, S. Luto e melancolia. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
174

para com Luís, em quem o protagonista vê um amigo, um parceiro, mas que se revela uma
espécie de rival no ―romance‖, isto é, alguém com mais capacidade de busca.
Recapitulando então os sentido da busca de Vicente: para Simone Paulino é um
expediente de alívio psíquico para a condição de isolamento; para Vima Lia Martin trata-se
de buscar outra identidade, e ocupar o lugar do pai; em nossa concepção trata-se de uma
busca por outro pai, um pai substituto que, entretanto, não se apresenta no horizonte do
personagem. Para Lukács, a busca é inerente à constituição do herói de romance. Em nosso
entendimento, a busca relaciona-se ao romance familiar, isto é, em resumo e em leitura
análoga à de Vima Martin e de Simone Paulino, é uma busca por outro pai e pela superação
ou alívio de seu sofrimento psíquico.
Mas, apesar das diferentes interpretações sobre o objetivo da busca, é importante
restituir a ela os termos em que ela se dá no próprio conto. Assim, a busca de Vicente se
mantém indeterminada, irresolvida, não elaborada. Ele busca algo, e este algo, no espaço do
conto, não é definido, permanece em suspensão.

Da família à sociedade e de volta à família

Não é possível localizar com precisão o tempo histórico em que se passa a ação de
―Busca‖, pois o conto não fornece marcações temporais explícitas. O livro, como se sabe,
foi publicado em 1963, mas o conto teve sua primeira publicação antes disso, por volta de
1958.228 É possível assumir, ao menos, portanto, que a ação do conto transcorra nos anos
1950, década em que foi escrito e publicado pela primeira vez.
Se o sentido da busca e o tempo histórico não estão manifestos no conto, o percurso
espacial, por outro lado, é bem definido.
As descrições de lugar e de sociabilidade permitem identificar um espaço urbano
que ainda conserva certos traços de localidade rural do interior: a galinha, as ruas de terra
que sujam os sapatos de Vicente, a vizinhança que se espreguiça nos jardins de casa, de
pijama, na tarde de domingo. Por outro lado, o espaço percorrido já ostenta características

228
Rodrigo Lacerda informa que o conto foi publicado na Revista do Globo, mas que a edição de sua
publicação não foi localizada. Em nossa pesquisa no Acervo João Antônio, no Cedap da Unesp de Assis,
também não deparamos com reproduções deste conto. Entre os contos desta época, pudemos consultar no
Acervo a reprodução em xerox de ―Natal na cafua‖ publicado no Última Hora em 8 jan. 1959. Essa
reprodução consta do Apêndice desta tese.
175

de metrópole: o trem que o protagonista decide não tomar, os ônibus cheios, a televisão que
transmite futebol, a própria atividade operária que Vicente exerce. Assim como a
maturidade emocional de Vicente, o estágio de crescimento e de organização da cidade é
indeterminado e complexo. Nela, assim como no protagonista, convivem tempos diferentes
e contraditórios.
O universo retratado diz respeito, provavelmente, à São Paulo dos anos 1950. Nesse
momento histórico, a revolução burguesa brasileira, tal como definida por Florestan
Fernandes, está em fase avançada — ou em sua segunda fase, circunscrita pelos limites que
vão da Crise de 1929 e da Revolução de 30 até o golpe de 1964 —, na qual ―o capitalismo
industrial reponta como a nova força aglutinadora do crescimento econômico do Brasil‖,
ainda que a situação social do país conserve traços do ―complexo econômico colonial‖,
mantendo nossa dependência do capital financeiro internacional.229 Assim, segundo
Florestan Fernandes, mesmo neste momento histórico avançado, a revolução burguesa
continua a se desenvolver de modo ―descontínuo, extremamente lento e desigual‖. O
padrão de crescimento econômico ―corresponde aos requisitos básicos da civilização
vigente, mas opera, tanto quantitativamente quanto qualitativamente, dentro dos limites que
essa civilização consegue vigência histórica no Brasil‖.230
Os aspectos sociais do momento narrado em ―Busca‖ guardam correspondência
com os estudos de Florestan Fernandes. O universo familiar e social em que Vicente está
inserido constitui o tempo em que, pós-Revolução de 30, uma série de oportunidades se
abriram para as camadas mais baixas da sociedade brasileira. Como destaca Antonio
Candido, houve a partir dos anos 30 do século passado uma ―rotinização‖ de aspirações que
já vinham de antes, como a ampliação ao acesso à cultura e à educação.231 Trabalho livre e
assalariado, leis trabalhistas e melhora sensível nas oportunidades de educação se tornaram
realidade no período, desde a Era Vargas, verdadeiro ―divisor de águas da história
contemporânea do Brasil‖, como sublinha Thomas E. Skidmore232, referindo-se ao
trabalhismo e aos programas de industrialização e bem-estar social de Getúlio Vargas.

229
FERNANDES, F. ―Crescimento econômico e instabilidade política no Brasil‖. In: Sociedade de classes e
subdesenvolvimento. São Paulo: Global, 2008, p. 124.
230
idem, ibidem, pp. 126 e 129.
231
CANDIDO, A. ―A revolução de 30 e a cultura‖. In: A educação pela noite e outros ensaios, Ática, 2a edição,
São Paulo, 1989.
232
SKIDMORE, T. Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 73.
176

O conto apresenta essa situação, em seus termos, por meio de elementos ficcionais,
ao mesmo tempo que indica também como o processo de modernização, de formalização
do trabalho e de democratização das oportunidades se deu de maneira desigual. As
diferenças entre Vicente e Luís mostram como, mesmo em uma mesma classe social, já que
os dois rapazes trabalham juntos, há grandes desníveis culturais e de oportunidade. A
situação material de Vicente parece ser mais frágil que a Luís. O protagonista, como indica
ele próprio, se viu forçado a trabalhar ―desde menino‖, em uma atividade braçal e
insalubre, como a de soldador. Não há referência à formação escolar de Vicente, ainda que
ele dê mostras de sensibilidade ao mundo da cultura, pois gosta de música popular e de
analisar letras de samba, como ele próprio diz. Luís, por sua vez, parece ter mais educação
formal e intimidade com a cultura letrada, pois tem livros em casa, e apesar de trabalhar
possivelmente também como operário, prossegue investindo nos estudos de desenho
arquitetônico.
A situação profissional do protagonista, que é estável, apesar de pouco valorizada,
está também relacionada à sua organização familiar. Se trabalha desde menino é — ainda
que a narrativa não indique isso claramente — por necessidade. É provável que Vicente
tenha sido obrigado pelo pai a começar a trabalhar desde cedo, pois as lembranças do pai
relacionam-se diretamente ao trabalho, ainda que Vicente o expresse de maneira enviesada:
os passeios que o pai promovia em família faziam as semanas começarem ―menos
pesadas‖, não tão cansativas. O pai, quando vivo, portanto, deve ter sido responsável pelo
início profissional precoce de Vicente, ao mesmo tempo que exercia papel de contrapeso ao
mundo do trabalho, proporcionando alívio nos fins de semana, com os ―passeios a Santos‖,
à atividade pesada que o personagem, soldador desde menino, exercia.
Situação familiar e profissional, portanto, vinculam-se mutuamente, e apontam para
a imbricação e a complexidade da busca do protagonista, num momento histórico de
grandes transformações, em que a revolução burguesa brasileira já se deu e ao mesmo
tempo permanece incompleta e desigual, conservando traços antigos da sociabilidade
nacional.
O lugar vazio deixado pelo pai faz com que o luto de Vicente persista e impeça que
o rapaz renove o seu romance familiar, aproximando-se de algo mais próximo de uma
nostalgia pela figura paterna. O pai não é nomeado e o narrador não se refere à vida e à
177

personalidade dele em detalhes. Como indicado, as referências ao pai no relato de Vicente


são parcas. As lembranças são permeadas de bons sentimentos, ligados ao tempo livre, à
viagem (os passeios a Santos e a Campinas) e a um universo mais largo (uma ―porção de
coisas‖). A perda, portanto, fez com que a lembrança do pai se cristalizasse como algo bom
e contrário ao universo do trabalho e da inserção social burguesa — ou, pelo menos, como
uma figura protetora e ―aliviadora‖ do peso das exigências de inserção social. Vicente
observa que a mania de andar, que sabemos ter relação com a morte do pai, aparece em
momentos de descanso: ―quando venho do serviço, num domingo, férias (...)‖.
Como já observou Simone Paulino, ―a vontade de andar só lhe assalta ao voltar do
trabalho, aos domingos ou nas férias, estando condicionada, portanto, aos raros momentos
de ócio, nos quais o sujeito se vê liberto da alienação do trabalho e pode dar vazão ao que
está para além das necessidades básicas cotidianas‖.233 A saudade do pai, portanto, é ligada
a um tempo que se relaciona ao universo do trabalho e, no entanto, aparece desvinculado do
trabalho, ou melhor, vinculado ao ―tempo morto‖ do descanso, o ―domingo chato‖ em que
se passa a ação narrada no conto.
Essa nostalgia do pai morto pode ser lida de acordo com outro texto bastante
conhecido de Freud, ―Totem e tabu‖, em que o autor delineia o mito da passagem do estado
primitivo da organização coletiva, a ―horda primeva‖, para uma ordem social organizada.
Em linhas gerais, de acordo com esse mito tal como descrito por Freud, no princípio um pai
tirânico controlava a tribo de acordo com a lei do mais forte e exercia sozinho o domínio
sobre todas as mulheres. A certa altura, os irmãos resolvem matar o pai e devorá-lo
coletivamente, na chamada a ―refeição totêmica‖. A partir do estudo do totemismo, Freud
faz uma analogia entre pais e filhos, associando o totem a um pai substituto:

A psicanálise revelou que o animal totêmico é, na verdade, um substituto do pai e isto entre
em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua
matança, no entanto, é uma ocasião festiva — com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado.
A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos e com
tanta frequência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de
substituto do pai.234

233
SANTOS, Simone Paulino dos. Nas esquinas do desejo. op.cit. p. 35.
234
FREUD, S. ―Totem e tabu‖. In: Totem e tabu e outros trabalhos (1913-1914). Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 144-45.
178

Para Freud o assassinato primordial e a substituição do pai morto por um totem dá


origem à organização social, às restrições morais e à religião. O assassinato do pai tornou-o
ainda mais forte, pois ele é lembrado, ―pranteado‖, gerando a culpa a que os filhos estão
submetidos. Simbolicamente, portanto, a morte do pai e a eleição de um totem que o
substitui lembra aos filhos que há certos limites que não podem ser desrespeitados. Os
filhos ―criaram, assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do
totemismo, que, por essa própria razão, correspondem inevitavelmente aos dois desejos
reprimidos do complexo de Édipo‖235. A matança original institui dois tabus: a adoração do
animal totêmico, que substitui o pai morto, e a exogamia, isto é, a proibição de possuir as
mulheres do próprio clã.
O mito da horda primitiva e do assassinato do pai tirânico, assim, é elaborado por
Freud para explicar a passagem mítica da humanidade em estado selvagem para um estado
civilizado, social, cultural e religioso. O assassinato do pai pelos filhos instaura a ―função
paterna‖, o pacto firmado entre os irmãos que institui o tabu do incesto e cria o indivíduo
enquanto sujeito do desejo inconsciente. Tomados simbolicamente, a morte do pai
primordial e sua substituição pela Lei (a moral, a cultura, a linguagem), a renúncia à posse
da mãe e das irmãs (o tabu do incesto) e o sentimento de culpa pelo crime (que gera
angústia e desejo) marcam, portanto, a passagem de um estado de ―selvageria‖ — em que
vigora a lei do mais forte, aquele poder absoluto do pai tirânico — a um estado de
―civilização‖ em que os limites são dados por funções paternas abstratas.
Ou, como anota Paulo Vidal:

Ao repartir o corpo do pai, os irmãos tinham criado, portanto, os germes de um direito


igualitário, deixando sem sucessor a glutonaria do pai. Porém, como o decorrer do tempo, a nostalgia
do pai sentida pelos filhos fará com que este perca a forma totêmica e reassuma a forma humana
como um deus muito acima do comum dos mortais, encarnação do ilimitado poder do pai originário.
Na igualitária sociedade clânica, sociedade sem pai onde a filiação é matrilinear, tal emergência de
deuses paternos logo ocasionará a reorganização do social em bases patriarcais. A família é de certo
modo uma reestruturação da horda primeva, pois restabelece o poder do pai, mas sem que as
conquistas do clã fraterno sejam abandonadas. Entre o pai de família submetido a obrigações e o
Urvater absoluto há, portanto, uma enorme distância, grande o bastante para fazer durar, nutrir o

235
Idem, ibidem, p. 147.
179

anseio religioso dos filhos, sua insaciável nostalgia do pai. Do ponto de vista político, paralelamente
à família aparecerão então sobre a terra reis divinos dispostos a governar patriarcalmente o Estado.236

Não temos notícia se os temas freudianos do totem e do tabu eram de conhecimento


de João Antônio, mas eram, ainda na época modernista, não apenas de conhecimento de
Mário e Oswald como se tornaram tema e inspiração para suas obras literárias. No
―Manifesto antropófago‖, como se sabe, Oswald lanças as bases daquilo que veio a se
tornar um princípio estético e cultural da maior relevância: a Antropofagia.237 A inspiração
em Freud é evidente (―A transformação permanente do Tabu em totem‖), e não apenas do
manifesto do que o autor chama de a Revolução Caraíba, mas também nas formulações que
se seguiram, nas quais Oswald postula a volta a um matriarcado em substituição ao regime
patriarcal da herança e da ordem burguesa.238
Mário de Andrade, por sua vez, interessava-se sobremaneira pelas teorias
freudianas, a ponto de ter debatido teoricamente com a psicanálise, por exemplo, em ―Do
cabotinismo‖ e de ter investigado a ―psicologia‖ (termo que ele preferencialmente
empregava) dos romances brasileiros contemporâneos. Mas também na ficção de Mário se
pode entrever o forte conteúdo emocional, psíquico, com que os personagens são
construídos — algo que, aliás, Mário advogava como ganho do momento modernista em
relação aos escritores realistas, com as exceções de Machado de Assis e, em menor grau,
Lima Barreto.239 Alguns de seus contos apresentam forte carga de investigação psicológica,
e já tivemos oportunidade de comparar os contrastes da ficção de Mário com a de Alcântara
Machado,240 este conhecido pela secura emocional de sua prosa e até pela ausência de
ternura para com seus personagens, como definiu o próprio Mário de Andrade. Nos contos
maduros de Mário, é possível identificar, assim como em João Antônio, uma elaboração

236
VIDAL, Paulo. Freud e a nostalgia do pai. In: BERNARDES, Angela C. (org.). 10 x Freud. Rio de Janeiro:
Azougue Editorial, 2005, p. 16-17.
237
ANDRADE, O. ―Manifesto antropófago‖. In: ______. A utopia antropofágica. 4ª ed. São Paulo: Globo,
2011.
238
Segundo Oswald, a antropologia provou que ―o matriarcado precedeu o patriarcado em toda a terra‖.
Seriam expressões patriarcais o casamento e a monogamia. Na formulação oswaldiana: ―Antes da instituição
do casamento, que regime poderia existir, senão o matriarcal?‖. Andrade, O. ―Variações sobre o matriarcado‖.
In: ______. A utopia antropofágica, op.cit., pp. 299-303.
239
Ver ―A psicologia em ação‖ e ―A psicologia em análise‖, in: Andrade, Mário. O empalhador de
passarinho. 3ª edição. São Paulo: Livraria Martins Editora; Brasília: INL/MEC, 1972.
240
ZENI, B. Fachada, sinuca e afasia. Alcântara Machado, João Antônio e Fernando Bonassi. São Paulo, ficção
no século XX. Dissertação de mestrado em Letras. Orientação de Joaquim Alves de Aguiar. FFLCH-USP, 2004.
180

psicológica de personagens e situações que permitem ser analisadas de acordo com as


sugestões freudianas. Lembrem-se de contos como ―O peru de Natal‖, em que a memória
do pai morto é substituída por um totem241 — justamente, o peru de Natal do título —, e
―Frederico Paciência‖, em que o narrador-protagonista, Juca, desenvolve verdadeira
adoração pelo amigo, em termos que lembram muito as relações entre os jovens
protagonistas de João Antônio e seus amigos (o par Frederico Paciência-Juca remete aos
pares Luís-Vicente, Toshi-narrador-protagonista de ―Aact‖, Carlinhos-narrador-
protagonista de ―Visita‖).
Mas é talvez ―A terceira margem do rio‖, de Guimarães Rosa, o paradigma do tema
da perda do pai na ficção brasileira. No conto, narrado pelo filho mais novo, o pai decide
mandar fazer uma canoa e, a certa altura, embarca nela e some no rio, com destino a uma
terceira margem que pode ser vista como uma viagem definitiva — a morte ou o além ou a
própria figuração do tempo — no símbolo poderoso do rio que corre sem cessar. Mas o
conto é sobre o filho e não o pai. É o narrador-personagem, filho mais novo, que não
consegue — ao contrário da irmã, que casa e se muda, e do primogênito, que vai para a
cidade —, deslindar-se da memória do pai, que o imobiliza e o submete, deixando-o preso,
fixado na figura paterna. A certa altura, o pai se transforma, na imaginação do filho em um
animal selvagem, espécie de totem: ―Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia
ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo,
de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho,
conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos
fornecia‖.242 Mas ao final é a imagem de um fantasma do pai que termina por se impor e
que assombra este filho que, já velho, não consegue destituir-se da sua condição infantil, de
indivíduo não desenvolvido. Não é capaz de suplantar a figura do pai ausente. Ao contrário,
decide tomar o lugar o pai, assim como acontece com Vicente, o protagonista de ―Busca‖.
Também em Freud, a passagem mítica da ―selvageria‖ para a ―civilização‖, se a
entendermos não mais no nível amplo e imemorial da instituição dos laços sociais
humanos, mas na evolução de cada ser, essa passagem também é reatualizada na chamada
ontogênese, na existência pessoal do indivíduo em seu processo de crescimento e

241
Nesse sentido, podemos dizer que, antropofágico, ―O peru de Natal‖ é um conto oswaldiano de Mário.
242
ROSA, G. ―A terceira margem do rio‖. Ficção completa. vol. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.
411.
181

maturidade. É por isso que o parricídio recorrente é visto por Freud como algo necessário
ao indivíduo em seu processo de amadurecimento, sempre que ―o fruto acalentado do
crime — a apropriação dos atributos paternos — ameaçava desaparecer‖.243
No mito das origens freudiano, escreve Maria Rita Kehl,

[...] um cadáver real se produziu como resultado de um ato fundador da civilização.


Quando aplicamos este mito filogenético à ontogênese, para explicar a constituição do sujeito
operada pela introdução da função paterna, não é mais de um crime que se trata, mas de uma
operação simbólica — embora, do ponto de vista da moeda com que o neurótico negocia sua
culpa, isto não faça a menor diferença.
Se o ato dos irmãos, no mito das origens, instituiu a função paterna, é a partir da cultura,
da linguagem, que esta função continua operando. O pai real, e as diversas autoridades que podem
substituí-lo, não fazem mais do que transmitir a Lei — à qual também estão como sujeitos...
assujeitados. Separar o pai (real) do pai simbólico equivale, na ontogênese, ao assassinato
primordial; refazer na vida pessoal o percurso da horda primitiva à coletividade civilizada é tarefa
que não se realiza sem a participação do semelhante.244

Na ontogênese, isto é, no desenvolvimento da vida individual, a passagem mítica


descrita por Freud ganha atualização. A passagem da infância para a idade adulta, com a
adolescência no meio, atualiza o mito totêmico e exige, como diz Maria Rita Kehl, a partir
da cultura e da linguagem, a substituição do pai real por pais simbólicos— ou totens, como
queria Oswald. O caminho e a busca, aqui, são aqueles da emancipação do ambiente
familiar e ingresso no mundo social. A lembrança recorrente do pai morto, no caso de
Vicente, reatualiza o romance familiar do rapaz e o relembra constantemente que o seu pai
real já não existe, mas sugere também que certa autoridade paterna persiste no nível da
cultura e das relações sociais, isto é, existe a Lei que institui uma série de restrições morais
e que limita a realização imediata do desejo. O romance familiar, que nasce da percepção
de abandono dos pais ou de rivalidade entre os irmãos pelo amor dos pais, evolui então para
a necessidade de encontrar outro pai e um irmão que seja não um rival, mas um ―igual‖, um
semelhante que instaure o que Kehl chama de ―semelhança da diferença‖.

243
FREUD, S. Totem e tabu. op.cit., p. 148.
244
KEHL, M. ―Existe uma função fraterna?‖. In: Função fraterna, R. de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 35.
182

Impulsos desorientados, promessas não cumpridas

Vicente não faz a passagem da família nuclear para a sociabilidade. Mostra-se


relutante em ―fazer romance‖ com Lídia, reticente em retribuir a boa vizinhança de Daniel
e incapaz de estabelecer uma relação fraterna, de parceria, com o amigo Luís. Em vez
disso, substitui Lídia pela menina do jardim público, e Daniel e Luís pelo menino com
quem depara jogando bola. O pai e a mãe, porém, que deveriam estar no centro de seu
―romance familiar‖, a fim de serem substituídos, são as únicas figuras de quem o
protagonista não consegue se distanciar.
Vicente está fixado no pai e na mãe. Para usar uma metáfora condizente com sua
ocupação profissional como chefe de solda, Vicente está de certa forma ―soldado‖ às suas
figuras parentais, o que o mantém em um estado regressivo de dificuldade de
relacionamento e de incapacidade de decisão sobre o seu próprio desejo.
Se a busca pelo pai perdido não é possível, é preciso algo que substitua o pai, como
o romance familiar exige. Mas a busca, como explicita o conto, se revela infrutífera, o que
indica que, simplesmente, o pai substituto não foi encontrado. A busca, na verdade, se volta
para o amigo Luís, um ―irmão‖, um ―semelhante‖, cuja companhia poderia ajudar a
compartilhar a dor e a culpa sentida pela ausência do pai. Em Luís, Vicente poderia ter
encontrado um ―irmão substituto‖ que o fizesse distanciar-se de si próprio, de maneira a
reavaliar valores, perspectivas, desejo — que o fizesse, enfim, reorientar a busca para algo
mais consequente e emancipatório. No entanto, o encontro com o amigo não modifica
substancialmente o comportamento de Vicente, e o final do conto o encaminha de volta à
casa, à mãe e ao lugar vazio deixado pelo pai ―real‖. Não há totem à vista, no percurso de
Vicente.
No momento em que Vicente narra, não há mais o caminho do boxe, em que
Freitas, o treinador, personificava a referência paterna forte. Também na oficina onde
trabalha, Vicente não encontra referências acima de si próprio, pois os colegas parecem tê-
lo colocado acima de todos, adulando-o. A parceria com Luís, ao contrário, em vez de
colocar Vicente em patamar de igualdade ―fraterna‖ (horizontal, como a de um irmão e
parceiro de aventura social), faz com que ele se sinta diminuído. A relação de verticalidade
que se estabelece com Luís, porém, não supre a ausência da figura paterna. O rapaz é um
183

colega, e Vicente adota em relação a ele uma falsa posição paterna, reagindo,
desconfortável, ao sentimento de inferioridade social, aconselhando-o ―sem sentir‖, como
se reagisse, de maneira postiça e empostada, ao acanhamento que sente na casa ―bem
disposta‖ do colega.
O trecho em flashback, que remete aos tempos do boxe, não é gratuito e corrobora a
permanência da condição infantil do protagonista. As reminiscências de Vicente a esse
respeito fazem-no reviver um momento anterior de promessa de emancipação. Freitas, o
treinador, cumpria então o papel de figura paterna, que apadrinha, dirige, aconselha. De
certa forma, Freitas era então o pai substituto que Vicente encontrou para se livrar da
relação ambígua com o pai real. O problema é que Freitas terminou por assumir uma
posição vertical de autoridade e de interdição, de pai substituto controlador e impositivo:
convenceu Vicente a ser operado. Assim, Vicente recaiu em uma relação de submissão ao
―pai‖, incapaz de cometer o parricídio contra o pai substituto que, vitorioso e onipotente, o
castrou: obrigou-o a abandonar os ringues.
O episódio é ilustrativo do impulso de Vicente para a ação (o ―boxe‖ aqui como
metáfora de atuação viril e agressiva para o inconformismo e a luta), assim como, em
sentido oposto, sua predisposição para a inação, a desorientação, a conformação à
autoridade paterna. As metáforas do boxe são sugestivas: o protagonista escolhe lutar, mas
encontra a queda (o nocaute para o adversário), o padecimento e, depois, a castração (ao
passar pela cirurgia do fígado, que o deixou incapacitado para o combate). Em vez de
desafiar o treinador e as recomendações médicas, Vicente aceita a cirurgia e deixa o palco
da luta.245
É como se Vicente soubesse que precisa de algo, intui que esse algo está
relacionado ao pai e, no entanto, não consegue fantasiar uma realidade para si próprio em
que a figura paterna seja desafiada e superada, permitindo-o desligar-se do universo
familiar. Vicente é um herói que não consegue ―fazer romance‖. Vicente não realiza o
romance que o permite ultrapassar o próprio universo da casa e do ―subúrbio mesquinho‖
em que vive, ainda que seu desejo aponte e o conduza, na mania de andar, para isso. A

245
A inação de Vicente já fora bem sublinhada por Vima Lia Martin, chamando a atenção para outra
metáfora, a do limo nas paredes de sua casa, que traduziria ―a necessidade de tirar o limo de sua própria vida‖.
Vima Lia Martin. op.cit., p. 77.
184

busca que ele empreende não se afirma e a elocução não formula claramente a contradição
fundamental do personagem: a vontade de se emancipar e a incapacidade de fazê-lo.
Ao relembrar, no presente, o episódio de sua desistência da luta — na metáfora da
promessa interrompida, a carreira no pugilismo — Vicente aponta para um conflito que
permanece: contrariar as recomendações paternas de que desista ou seguir na luta? Como
falta o pai verdadeiro, e sua lembrança está carregada de bons sentimentos, tornando a
figura paterna uma referência nostálgica e adorada, Vicente sente a premência da busca,
mas não consegue formular seu objetivo. A ausência de um pai substituto explica a angústia
irresolvida e a movimentação incessante do protagonista. A busca infrutífera do rapaz
mostra ainda que, na ordem social em que ele está inserido, a passagem de um estado de
―barbárie‖ para um estágio de ―civilização‖, pelo menos para alguém como ele, também
permanece impedida ou, pelo menos, incompleta.
Essa liberdade da andança sem rumo poderia redundar em um alargamento de
horizonte caso Vicente conseguisse, no plano social ou da cultura, encontrar alguma
referência acima de suas possibilidades. No entanto, o impulso da busca do protagonista é
horizontal, e as restrições (sociais, morais, econômicas) do mundo em que o rapaz se insere
impedem que essa busca se dê de maneira consequente.
O ―romance familiar‖ de Vicente, assim, guarda relação com a condição social do
protagonista e com seus limites existenciais. As tensões familiares que envolvem o
personagem-narrador não se restringem a ele e aos seus pais, nem dizem respeito apenas à
organização da família nuclear (apesar da ênfase com que, ao final, o rapaz decide retornar
a casa e à companhia da mãe, cogitando, inclusive ocupar o lugar vazio do pai). Como
aponta a própria noção de ―romance familiar‖, o impulso do protagonista se projeta para o
exterior.
O desejo de Vicente se move da família (a mãe, a casa) e da vizinhança (Daniel,
Lídia) para fora desses limites. A horizontalidade do deslocamento espacial que move o
personagem indica que ele sente a necessidade de alargar sua esfera de desejo e de ação,
estendendo o ―romance‖ a outros personagens e paisagens. A própria movimentação da
casa para a rua aponta para o alcance social do romance familiar.
É da família para a convívio social que Vicente se sente impelido, mas ao mesmo
tempo ele se mostra incapaz de estabelecer um novo romance. Já vimos como a
185

caracterização da casa, do ambiente familiar de Vicente, é modesta e restritiva. A própria


trajetória do personagem, que anda a pé e cogita pegar um trem para São Paulo, aponta
também para parcos recursos financeiros e uma liberdade reduzida de movimentação —
apesar do forte impulso deambulatório, ele desiste de esperar meia-hora pelo trem que o
levaria à cidade.
Também profissionalmente Vicente tem uma ocupação modesta. Apesar de
experiente e de ter cargo de chefia, é operário: chefe da solda em uma oficina. Diz que está
nesta ocupação ―desde menino‖, o que sugere a necessidade de ter começado a trabalhar
muito cedo. Não há referências à escola ou a estudos formais; o boxe, a luta, era uma
atividade mantida também ―desde menino‖ e que ―era tudo‖.
O ambiente em que Vicente cresceu dá mostras de ser bastante duro com a criança.
O trabalho braçal praticado desde cedo, a ausência de referências à educação formal e a
escolha de uma luta violenta como o boxe como atividade esportiva provavelmente fizeram
do menino uma criança com pouco tempo para ser criança. E as limitações de Vicente
persistem depois da infância. A estreiteza com que ele lida tem relação não apenas com sua
inserção familiar e social, mas com ele próprio, nos termos em que ele vive e convive com
os seus semelhantes. Sua inserção no âmbito da cultura e das letras, talvez em decorrência
da educação falha, também se mostra acanhada. A única referência à esfera artística, por
exemplo, é às ―letras dos antigos sambas tristes‖.
Apesar de ter consciência de que a organização familiar o limita, Vicente é incapaz,
no tempo da ação narrativa, de ―fazer romance‖ ou de estabelecer relações ―fraternas‖, de
semelhança na diferença, como diz Kehl, a não ser com o menino que joga bola na rua e
com a menina do jardim público. O ―namoro‖ que o rapaz estabelece com a garotinha e o
prazer do encontro com o menino indicam que o protagonista vive um estado emocional de
retorno à infância, do qual quer se libertar mas não consegue.
Seu único vislumbre de alteração da situação angustiante em que vive é ocupar o
lugar do pai morto. Em vez de romper com o suor da ―semana brava‖, com as filas, com as
conduções cheias, onde se viaja apertado, mesmo no domingo, ele deseja compensá-la,
retomando os passeios que o pai fazia a Santos, Campinas. Em vez das viagens ―difíceis‖
nas conduções apertadas de seu ambiente social, Vicente deseja os ―passeios‖ aprazíveis
que o pai promovia em família, a evasão para outros lugares — cujos nomes se ligam aos
186

universos da religião (Santos) e do campo (Campinas) — fugindo do urbano, da cidade, do


mundo social em que vive.
O pai-substituto não está disponível no universo em que vive Vicente, não aparece
dentro dos limites do conto que o próprio personagem conta. Vicente, o que vive, é incapaz
de ―fazer romance‖. Vicente, para viver, faz um conto.
Os limites impedem Vicente, mais uma vez, de realizar o seu romance familiar e,
assim, suplantar a perda do pai. Em parte, isso se deve ao mundo em que Vicente nasceu e
onde continua a circular: o ―subúrbio mesquinho‖, como ele mesmo se refere ao bairro em
que vive, a moral rígida da família e o universo do trabalho alienado na oficina. Este, aliás,
tudo indica, é herança da vontade onipotente do pai do protagonista. Isto é, o trabalho de
solda, em que Vicente está ―desde menino‖ e no qual permanece, é a continuidade da
vontade paterna quanto à sua vocação e o seu destino. Assim, explica-se por que a vontade
de andar apareça apenas nos momentos em que ele não está no trabalho: na volta do
trabalho, nas férias, num domingo como este em que ocorre a ação do conto. Vicente sai
em busca de outro pai, de um pai substituto que lhe permitam ultrapassar os limites de si
mesmo e de seu próprio mundo. Assim, permanece num estágio infantil de nostalgia do pai
real e adoração do pai morto, preso à situação familiar e social que o limita.
Vicente não é vagabundo nem malandro. É um otário, um trouxa, mas um trouxa e
um otário aluado. Trabalha desde menino, e desde menino, provavelmente, tinha o sonho
de ser pugilista. Fracassado o sonho de ser lutador de boxe, restou-lhe o trabalho na oficina,
onde se tornou chefe, graças, ao que parece, muito empenho, dedicação e competência. Mas
ali ele se sente adulado. A relação de puxa-saquismo, de forte conteúdo cordial, repõe no
trabalho elementos de origem familiar.
Seu impulso divide-se entre a permanência da condição infantil e uma angústia
difusa, desejo de mudança e emancipação que não consegue elaborar. Deseja ao mesmo
tempo a manutenção dos valores familiares mas também a ascensão social, o arrivismo e a
emancipação — para os quais, porém, ele não encontra o caminho. As limitações de seu
ambiente familiar e social o angustiam, pois ele sabe que para ultrapassar os limites do
―subúrbio mesquinho‖ precisa romper com ele — o que significa romper com a família,
com a vizinhança e consigo próprio, para mudar, caminhar e chegar em algum lugar,
libertando-se da mania de andar.
187

A figura paterna ausente, que poderia tê-lo liberado para o percurso de reinvenção
do próprio destino, no entanto, fez dele um saudoso do pai, que, morto, permanece como
uma figura a um só tempo protetora e castradora. Insatisfeito com o subúrbio mesquinho,
com as costuras da mãe e de Lídia, com o futebol na TV a convite de Daniel e com os
aduladores, Vicente não consegue imaginar para si outro caminho. Sua busca,
deambulatória e dispersiva, é motivada e dominada pela figura paterna: começa e retorna
para o pai, sem que este possa ser trocado por um totem ou figura paterna substituta.
Vicente está em um momento de crise pessoal, em que sua própria maturidade é
colocada em questão. Ao mesmo tempo que olha para o futuro, pensando em casamento e
na recomposição da ordem original de seu núcleo familiar, o rapaz volta-se para lembranças
que continuam a afetar sua predisposição à ação, tolhendo seu impulso de alargar os limites
de seu próprio mundo.
O reencontro com a condição infantil expresso nas cenas em que o protagonista
depara com as duas crianças na rua o faz reviver seu romance familiar, que no entanto não
pode, nos limites do conto, ganhar consequência e transformar-se em ação. Os devaneios de
Vicente, assim, direcionam-se para uma condição regressiva: a volta a casa, à mãe e ao
lugar vago deixado pelo pai, cogitando inclusive render-se ao casamento com Lídia, a
vizinha que é uma espécie de ―irmã‖ (adotada pela mãe do rapaz) ou simplesmente uma
espécie de ―mãe substituta‖. Em vez da expansão do próprio universo de atuação ou dos
limites do próprio mundo, Vicente vive uma busca que se volta para si mesma, para a
imagem paterna ausente e cultuada, para a mãe, ou para a mãe-irmã-vizinha que é Lídia, e
para as limitações de uma realidade social estreita.
Como primeiro conto do primeiro livro de João Antônio, ―Busca‖ faz jus à sua
posição inaugural na ficção do autor. O protagonista inaugura um projeto de ficção que tem
entre suas bases as possibilidades de atuação de um jovem rapaz brasileiro pobre dos anos
1950 e 60. ―Busca‖ aponta para os desejos e as limitações desse herói, insatisfeito com a
estreiteza moral e material do mundo em que vive, mas ao mesmo tempo incapaz de tomar
uma atitude consequente e contrária a essa configuração social e familiar.

Da “vagabundagem” à sinuca
188

Os dois outros ―Contos Gerais‖ do livro revisitam semelhante constituição dos


personagens e temas análogos ao de ―Busca‖. Uma diferença substancial, porém, marca a
composição de ―Aact‖ e ―Fujie‖: apesar de narrados em primeira pessoa, como o primeiro
texto, nestes dois contos os protagonistas-narradores não têm nome, o que causa certo
estranhamento e provoca no leitor uma espécie de inércia receptiva, como se a primeira
narrativa tivesse continuidade nas duas seguintes. Não diríamos que a ambiguidade aqui é
da mesma ordem ou intensidade daquela dualidade que marca os contos autobiográficos
(analisados no capítulo anterior), erigidos entre autobiografia e ficção. Apesar de o narrador
não vir identificado por nome próprio nos dois contos, não é possível confundir autor e
personagem, afinal trata-se claramente de um livro de ficção, cujo pacto com o leitor é
claro. Mas o que o leitor dos ―Contos Gerais‖ se pergunta, inicialmente, é se o protagonista
de ―Aact‖ e ―Fujie‖ não seria o mesmo Vicente de ―Busca‖. Não é a nossa hipótese, mas a
composição dos contos permite essa leitura; mais que isso, a ausência de nome próprio dos
dois outros protagonistas e a semelhança deles com Vicente faz com que a leitura dos três
contos, afinal reunidos sob uma mesma rubrica, contamine uns aos outros.
―Aact‖ é o mais longo dos três contos e aquele que desenha com mais clareza as
contradições futuras da ficção do autor, ainda que ―Fujie‖, como veremos, aponte para certa
resolução do impasse que marca os três ―Contos Gerais‖, aquele mesmo impasse que já
fora anunciado em ―Busca‖: a dificuldade dos protagonistas em formular seus romances
familiares e, afinal, solucioná-los, ultrapassando os limites da família nuclear, deixando a
infância para trás e integrando-se socialmente.
De ―Busca‖, ―Aact‖ mantém como tema central a indefinição de seu protagonista,
agora acentuada pela anonimia do personagem. A própria designação com que foram
agrupados, sob a rubrica ―Contos gerais‖, já apontava para traços de indeterminação, de
generalidade que dizem respeito ao tema mais fluido das narrativas, em oposição ao tema
forte da ―Sinuca‖, mas também às características pouco específicas, ―gerais‖, dos
personagens e até mesmo das próprias situações narradas. Ao contrário dos contos mais
conhecidos e mais apreciados do autor, que são intitulados com os nomes dos protagonistas
— ―Meninão do Caixote‖, ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, ―Paulinho Perna Torta‖ —,
nesses primeiros contos os títulos não remetem a personagens, mas a ações: ―Busca‖ e
―Afinação da arte de chutar tampinhas‖. A exceção, entre esses primeiros textos, é ―Fujie‖,
189

o terceiro dos ―Contos Gerais‖, que também é intitulado a partir do nome de uma
personagem — mas, note-se, não com o nome do protagonista, e sim com o nome da
personagem, Fujie, pela qual o protagonista-narrador se apaixona.
Em ―Aact‖, no entanto, apesar da ênfase na ação de chutar tampinhas, o conto
tematiza e problematiza, isso sim, a própria capacidade de ação do protagonista, como já
ocorrera em ―Busca‖, mas agora de maneira ainda mais acentuada, a começar, como
dissemos, da própria constituição indefinida e indeterminada do personagem-narrador —
aliás, como também no primeiro conto.
Vejamos como se desenrola o segundo conto de MPB.
Trata-se de um conto relativamente longo, com cerca de 10 páginas (com variações,
obviamente, dependendo da edição), dividido em 4 partes. Conta com três planos temporais
distintos: o presente da ação narrativa, a infância do personagem e o tempo de quartel
(rememorado a certa altura do texto). O número de personagens também é grande: o
protagonista-narrador, o pai, o irmão, Biluca, Noel, a mocinha Aldônia, o comandante e
seus dois filhos, as senhoras mães de família, a mãe do protagonista, a professorinha e,
claro, as tampinhas. Apesar dos três tempos distintos em que a narrativa se estrutura e dessa
profusão de personagens, ou talvez por isso mesmo, é difícil dizer com precisão qual é a
ação decisiva do conto.
O narrador não enuncia seu nome. Mas sua idade é menos oscilante que a de
Vicente, que como vimos é, a um só tempo, adulto, criança e adolescente.
O conto se inicia com a frase ―Hoje meio barrigudo‖, o que indica que estamos num
estágio da vida do protagonista em que a passagem do tempo já se faz notar na própria
constituição física do personagem. No entanto, não se trata de um velho, mas alguém num
estágio intermediário, no meio do caminho da existência, o que o advérbio ―meio‖
evidencia. Nem muito nem pouco barrigudo, mas ―meio‖. A barriga, que indica
sedentarismo, e a ausência de verbo nesta primeira frase, nominal, apontam também, desde
já, para um personagem marcado pela inação.
A frase inicial marca um tempo presente: hoje. Mas logo a partir da segunda oração,
a narrativa volta a um tempo passado: ―Mas já fui muito bom centro médio‖. O tema do
futebol aparece para marcar o tempo da infância. ―Centro médio‖ é uma posição de jogador
de futebol, meio-campista, como se diria hoje. De novo, a frase marca a posição
190

intermediária do personagem, agora no universo futebolístico, no qual, porém, ele diz ter
sido ―bom‖, qualificação que, por sua vez, confere conotação positiva a essa posição
intermediária e ao passado de jogador de futebol. No conto, o tema do futebol será
retomado adiante, na longa descrição do hábito (―mania‖, ―tarefa‖, ―trabalho‖, nos termos
do conto) de chutar tampinhas na rua.
A partir daí o narrador relembrará a infância, quando costumava jogar bola com
amigos e quando começou a se interessar por samba, em especial pelas composições de
Noel Rosa. É também quando ele relembrará o pai: ―Na Mooca, agora, eu via os moleques
do Caióvas F.C. Papai vivia me apertando na escola. Era o único jeito, porque não estudaria
de outro. Eu via os moleques e não podia jogar‖.246
A família vivia em Presidente Altino, pressupõe-se pela menção à U.M.P.A – União
dos Moços de Presidente Altino, e vai morar na Mooca. Assim, depois da mudança, o pai
passa a cobrar do menino bom desempenho escolar, o que o narrador liga a um
impedimento de praticar o futebol. Agora ele apenas ―via‖, não podia jogar. Autoridade
paterna e disciplina escolar ligam-se, nesta enunciação memorialística do narrador, à
interdição do prazer lúdico do futebol.
O narrador não fará mais nenhuma menção à escola, mas irá rememorar
acontecimentos que promoveram seu alargamento de horizonte e certo aprendizado. Porém,
não é o universo da educação formal que irá provê-lo de conhecimento, aprendizado e
compreensão do mundo, e sim o samba e o futebol: ―Aos domingos a gente trepava num
caminhão e ia jogar noutras vilas. Havia batucada na ida e na volta. Ou melhor, às vezes
voltávamos de cabeça baixa, maldizendo juiz, campo que a gente não conhecia, tudo para
justificar a derrota‖.247
O deslocamento espacial, depois da mudança da família, neste momento da infância
é proporcionado pelo futebol. Os meninos da Mooca vão ―jogar em outras vilas‖. E no
trajeto, ―havia batucada‖. O narrador a esta altura já tinha rememorado o costume de se
juntar com os amigos, à noite, na sede da U.M.P.A para batucar: ―Os mais velhos iam
ajeitando as coisas, Biluca no seu cavaquinho, eu repicava na frigideira. Havia um surdo
que um sujeito da Força Pública tocava (ele também era bom no pandeiro). As vozes se

246
―Aact‖, in: MPB, p. 37.
247
Idem, ibidem, p. 39.
191

chegavam, se uniam e a gente batucava com vontade‖.248 É na época do futebol e do samba


improvisado em Presidente Altino que o jovem narrador é despertado para a sensibilidade
estética, justamente pelas letras dos sambas:

Naquelas noites me surgia uma tristeza leve, uma ternura, um não sei quê, como talvez
dissesse Noel... Eu estava ali, em grupo, mas por dentro estava era sozinho, me isolava de tudo. Era
um sentimento novo que me pegava, me embalava. Eu nunca disse a ninguém, que não me parecia
coisa máscula, dura, de homem. Não os costumes que a turma queria. Mas eu moleque gostava, era
como se uma pessoa muito boa estivesse comigo, me acarinhando. As letras dos grandes sambas
falavam de dores que eu apenas imaginava, mas deixava me embalar, sentia.

Aos pés da santa cruz


Você se ajoelhou,
E em nome de Jesus
Um grande amor você jurou...249

O samba e o futebol, assim, promovem a individuação do narrador, que pela


primeira vez se sente destacado da turma, consciente de dores imaginadas, de uma ―tristeza
leve‖, de um sentimento novo. A letra de ―Aos pés da santa cruz‖, de Marino Pinto e Zé da
Zilda, arremata essa rememoração de uma espécie de educação sentimental do narrador-
protagonista, que é enunciada de maneira um pouco misturada, em estado de confusão, mas
atravessada pela experiência do samba — ―um não sei quê, como diria Noel‖, assinala o
narrador. As dores imaginadas pelo narrador se relacionam a algo que ele não sabe dizer o
que é. Mais que isso, o narrador-personagem sublinha que não conta a ninguém esses
sentimentos novos por não lhe parecerem viris, coisa de homem. Mas que ele gostava,
como se alguém o acarinhasse. As experiências do futebol e do samba se dão em grupo,
mas contribuem para a individuação do personagem. Mais que isso, para a sua solidão (―por
dentro estava era sozinho, me isolava de tudo‖). Samba e sensibilidade o tornam diferente
da ―turma‖.

248
MPB, p. 37-38.
249
Idem, p. 38.
192

As letras de samba, que acompanhavam o convívio com outros moleques e que


faziam parte da prática amadora do futebol, assim, iniciaram o personagem no universo da
cultura, da arte, das letras e dos sentimentos contraditórios, inconfessáveis. Ele receia
contar o que sente. Daí que o isolamento, a individuação, resulte também em um
encabulamento, uma dificuldade de falar dos próprios sentimentos ou, mais que isso, uma
dificuldade de falar, que é também marca desse personagem-narrador.
A diferenciação do protagonista, portanto, é problemática. Ele é da turma — gosta
de futebol e batucada. Mas é diferente — sensível às ―dores‖ das ―letras‖ dos ―grandes
sambas‖, que falam de amor e traição. A solidão do personagem-narrador irá ganhar
descrição acabada na seção do conto em que ele descreve o costume de chutar tampinhas.
Mas ela é definida aqui em função de sentimentos e de percepção do mundo, afetos e
aprendizado. A letras de ―Aos pés da santa cruz‖ fala de um amor, de uma traição, de
mentira e de pecado. Fala de dores, diz o narrador, que ele apenas imagina, mas que o
embalam e que ele sente. Há nos verbos acarinhar e embalar, empregados pelo narrador
uma forte conotação feminina e maternal, que contrasta com o ambiente masculino do
futebol. Estética, criação individual, música, dor, amor são elementos que o narrador
descobre no samba. Mas ele teme que isso não seja coisa ―máscula, dura, de homem‖.
Já vimos que a figura paterna, aqui, ao contrário do que ocorre com Vicente, é
presente e exigente. O pai o apertava na escola, diz o narrador. E o personagem do pai irá
reaparecer adiante, ainda nesta primeira fase do conto, quando o narrador relembra um
episódio de infância em que foi castigado. A namoradinha Aldônia (―uma espécie
desajeitada de namoro que eu andava engendrando‖) o pegou fumando escondido. A
menina o delata à família dele e presume-se, pela maneira com que ele narra o episódio,
que isso causou o rompimento do namoro. O menino apanhou duas vezes: a primeira por
ter fumado escondido, a segunda por ter escrito um bilhete xingando Aldônia:

Tolice enorme. Surra dobrada em casa. Papai me esperando com o bilhete na mão. A diaba
contava tudo porque sabia que eu apanhava mesmo. Aquilo já era me fazer de palhaço.
— Não fala mais comigo.
Engraçado — Aldônia até hoje não presta.250

250
Idem, ibidem, p. 40.
193

A ―surra dobrada‖ foi dada, claro, pelo pai, a quem a menina presumivelmente
entregou o bilhete com os xingamentos. A letra de ―Aos pés da santa cruz‖ ecoa aqui, pois
Aldônia é uma ―diaba‖, capaz de traí-lo, denunciando-o ao pai, com intenção de torturá-lo
(―porque sabia que eu apanhava mesmo‖). O final do trecho acima aponta para a
contrariedade persistente com que o narrador vê a antiga namoradinha. Mas antes disso,
vem uma fala, com marcação de diálogo, que o leitor fica sem saber exatamente quem a
profere: ―— Não fala mais comigo‖. Quem a enuncia? O protagonista ou Aldônia? Difícil
dizer. Mas a letra do samba, à qual este episódio se vincula, acarinha o narrador,
embalando-o e aliviando sua dor.
O samba, porém, não resolve as agruras sentimentais e a crueza dos elementos
afetivos persiste. Pai violento, disciplinador e castrador. Namoradinha pouco confiável.
Por ora são as duas figuras, uma masculina e outra feminina, que polarizam as
relações de afeto e autoridade mais intensas no relato. Mas a mãe será mencionada adiante,
já na última seção do conto, justamente a propósito de uma nova possibilidade de romance
que se apresenta ao protagonista:

Mamãe costuma dizer que eu não sou dos mais feios. Bem — veio morar cá no bairro
uma professorinha solteira, muito chata. Rapazes lhe dão em cima por causa de um dote, ou de
coisa parecida. Não sei. A vida dos outros nunca me interessou. Nem a dela, embora viva me
provocando. Quer casamento, com certeza. Olho para a mulher, para os modos, para o anel... Quer
casamento, eu não.
Dia desses no lotação. A tal estava ao meu lado querendo prosa. Tentava, uma olhadela, nos
cantos os olhos se mexendo. Um enorme anel de grau no dedo. Ostentação boba, é moça como
qualquer outra. Igualzinha às outras, sem diferença. E eu me casar com um troço daqueles?...
Parece-me que procurava conversa, por causa de um Huxley que viu repousando nos meus joelhos.
Eu, Huxley e tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se dão bem. Perguntou o
que eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras, delicada, talvez não querendo
ofender o silêncio em que eu me fechava. Quase respondi...
— Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma bossa.
Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas da rua. Não conheço
chutador mais fino.251

251
Idem, ibidem, p. 47-48.
194

A ação narrada é a de um encontro romântico. E como é esse encontro? Um fracasso


completo. Por quê? Esta é a pergunta-chave para se entender a narrativa e a atitude do
protagonista. O flerte não avança porque o personagem-narrador não dá bola para a
professorinha. Em que termos ele coloca a situação?
Primeiro, ele manifesta desprezo pela moça, chamando-a de ―a tal‖ e de ―troço‖,
quando antes já a tratara por ―professorinha‖. Além dos termos pejorativos e do diminutivo
com que ele se refere a ela, ele expressa também seu desdém também pelo ―enorme anel de
grau‖ que ela traz em uma das mãos, dizendo que aquilo é ―ostentação boba‖. O desprezo é
pelo ―dote‖, disputado pelo rapazes do bairro, pela superioridade intelectual, simbolizada
no anel de grau, que indica curso superior, e pela profissão de professora, ligada à escola, à
carreira do ensino, a um aprendizado formal, que para um amante de sambas e fino
chutador de tampinhas parece ostentação.252 Depois, ele recusa a conversa, evitando o
flerte. À pergunta sobre o que ele faz da vida, ele reage de maneira intempestiva e afirma a
sua especialidade vagabunda: chutar tampinhas da rua.
O trecho é aquele que define a ação mais importante do conto, que encaminha a
narrativa para o final e que deveria concentrar o momento significativo, aquele que revela,
afinal, o sentido do narrado. A rigor, porém, talvez nem se possa dizer que a ação de fato
ocorra. Por parte do narrador, pelo menos, ela definitivamente não ocorre. O que diz o
narrador? Que ela, a professorinha, lhe colocou a questão: o que você faz na vida? Ao que

252
A desconfiança com relação à escola e ao aprendizado formal, que a recusa à ―professorinha‖ resume,
lembra a ressalva à palavra escrita como expressa na literatura de Graciliano Ramos. Lembrem-se as
atribulações de Fabiano com as contas nos papéis do patrão, a dificuldade de escrita que perpassa toda a obra
de Graciliano (como ressalta Lafetá acerca de João Valério, Paulo Honório, Luís da Silva e o narrador das
Memórias do cárcere) e a dor com que o narrador de Infância repassa o aprendizado da leitura (o que também
remete ao aperto na escola e às surras que o protagonista de ―Aact‖ recebia do pai). Sobre essa violência
traumática do protagonista de Infância, João Luiz Lafetá observa que ―o processo de aprendizagem é,
simbolicamente um processo de castração‖ e liga o personagem-narrador de Graciliano ao arquétipo do bode
expiatório: ―O pharmakós, herói por excelência do modo irônico, é o ser desamparado. O menino de Infância
— desdobrado depois nos heróis de Graciliano — sofre de desamparo. (...) o centro de Infância é constituído
pela narrativa do aprendizado de leitura. Como todos os outros aprendizados, este se dá através de uma
sucessão de choques penosos, de traumas violentos que marcam a criança (...). Levanto a hipótese de que a
contenção irônica do estilo está relacionada com esta gênese traumática. Aí está o miolo do trabalho. A ironia,
técnica literária, é iluminada — e ajuda a iluminá-las — pelas condições sociais de vida e pelas reações
pessoais às determinantes da experiência. Literatura, sociedade e psicanálise juntam-se nesse ponto: o menino
explica o homem Graciliano (como disse Otávio de Faria), mas não apenas — as condições de vida do
menino ajudam a entender o homem e a constituição de sua escrita.‖ Neste artigo, Lafetá lê os romances de
Graciliano de acordo com três suportes teóricos: psicanalítico (Marthe Robert), sociológico (Lukács) e
literário (Frye). LAFETÁ, J. ―Três teorias do romance: alcances, limitações, complementaridade‖. In: ______.
A dimensão da noite. Organização de Antonio Arnoni Prado. Duas Cidades/Editora 34. São Paulo: 2004.
195

ele diz: ―Quase falei‖. Ou seja, o diálogo não se estabelece, e o narrador, na situação
narrada, não diz nada, permanece fechado em seu silêncio. O que se narra, então, é um
encontro malogrado. O que se anuncia como um flerte, um encontro romântico, como o
clímax do conto, revela-se ao final como uma espécie de não acontecimento, um incidente
sem consequência.
O texto ainda continua, com mais um último parágrafo, que, em vez de levar a
narrativa adiante, irá retomar os temas lá de trás, da infância do personagem e um tom de
desalento, de tristeza leve, que em algum momento havia sido deixado para trás e agora
reaparece, no epílogo, fechando a narrativa:

Mas não sei. A voz mulata no disco me fala de coisas sutis e corriqueiras. De vez em
quando um amor que morre sem recado, sem bilhete. Ciúme, queixa. Sutis e corriqueiras. Ou a
cadência dos versos que exaltam um céu cinzento, uma luva, um carro de praça... Se ouço um samba
de Noel... Muito difícil dizer, por exemplo, o que é mais bonito — o ―Feitio de oração‖ ou as minhas
tampinhas.

Em vez de o protagonista ficar com a professorinha, ele ―quase‖ lhe diz o que
realmente gosta. E, depois, afirma uma dúvida: ―Mas não sei‖.
Em vez de ficar com a mocinha, o mocinho fica com a ―voz mulata do disco‖, ―os
sambas de Noel‖253 e ―as tampinhas‖, como o narrador mesmo diz no último parágrafo. E
com o leitor, a quem o conto se destina, a quem o texto apela, clama por atenção.
O que pensar desse movimento narrativo que prepara um clímax conservador — um
motivo romântico forte, o flerte amoroso, e a possibilidade de um casamento —, mas que
não se realiza?
Como já ocorrera com Vicente, temos novamente um narrador que apresenta
resistência à ideia do casamento. Assim como Vicente, o narrador de ―Aact‖ hesita entre a
ordem familiar e o mundo mais largo das relações sociais. Na família ele é o filho torto.

253
―Feitio de oração‖, de Noel Rosa, a composição que o narrador cita como uma de suas preferidas, reafirma
a descrença na educação formal, em favor de um conhecimento espontâneo. Diz a letra: ―Batuque é um
privilégio/ Não se aprende samba no colégio.‖ O narrador prefere o ensino de Noel Rosa à conversa com a
professorinha, adota o samba e não a oração ou — para evidenciar a ambiguidade de sua exclusão-inserção
em seu contexto social e familiar — adota um samba ―em feitio de oração‖. O começo da composição diz
―Quem acha vive se perdendo‖, o que evidencia uma inversão promovida pelo sambista: achar-se é perder-se.
Invertendo-se a formulação: perder-se é achar-se, o que resulta numa defesa da perdição, do pecado, da
subversão, em consonância com o comportamento ―aluado‖ do protagonista.
196

Tem um irmão que é a camisa, enquanto ele é o avesso. Ele tem fama de aluado e farrista,
―uma porção de coisas que sou e que não sou‖.
Da infância solta e festeira — mesmo que introspectiva, também coletiva no
convívio com a turma de boleiros e batuqueiro — à vida de rapaz adulto e solitário que
―trabalha mal‖, ―aluado‖, ―farrista‖. Passa-se da infância, em que o samba e o futebol
apontavam para a modos de convivência e de aprendizado mais livres e prazerosos, para a
vida adulta, pautada pelas obrigações assumidas por pressão familiar e social.
No meio de tudo isso, quartel e as tampinhas. Há uma seção no conto para cada um
desses temas.
Sobre o quartel, o rapaz diz que nele ―nem me deixaram pensar em jogo de bola‖.
Ali, ele irá praticar jiu-jitsu e terá de aturar os filhos do comandante, de quem se torna
instrutor de luta. Diz, porém, que para ele o comandante era bom: ―Favores, dispensas, o
homem me dava um fio de liberdade. Porém, um defeito sem remédio. Eu nunca rasguei o
verbo. Senão, cafua‖.254
Para este personagem marcado pela solidão e pela hesitação, pelo caminho do meio,
o quartel é o único ambiente em que o protagonista se mostra um pouco mais enfático,
decidido. Ali, os lugares estão definidos. Senão, ―cafua‖, prisão. E, no entanto, é no quartel
que o personagem irá encontrar ambiente propício para burlar as regras, por meio de uma
trapaça, como veremos: o desvio de algumas garrafas de cerveja preta.
A autoridade do comandante no quartel é marcada no curto trecho sobre a época de
serviço militar. A hierarquia a que o personagem se submete no ambiente fechado e de
regras claras do quartel, porém, não é uma exceção. De certa forma, o protagonista já
conhecia esse regime de relacionamento: as relações interpessoais vividas pelo protagonista
são pautadas pela autoridade, sobretudo com outros homens, mas também com as ―senhoras
mães de família‖. Biluca, por exemplo, mandava no time, porque era dono das camisas. O
pai lhe apertava na escola e lhe surrava quando sua conduta não era correta. No quartel, o
comandante podia castigar ou prender, ainda que lhe desse um fio de liberdade. O irmão o
considerava um ―largado‖. No bairro, a fama dele era péssima.
É na companhia das tampinhas, então, que ele se encontra, ―homem se atilando
naquilo que faz‖. A chutação de tampinhas é ―mania‖, ―arte‖, ―tarefa‖, ―trabalho‖, palavras

254
MPB, pp. 40-41.
197

que o narrador emprega para definir sua atividade, aquilo que afinal o define, como ele dirá
à professorinha ao final do conto. Nesta nova ocupação, não é mais apenas um fio de
liberdade, concedido por uma figura de autoridade, mas uma nova realidade que se
apresenta. ―Fica outra a minha cidade!‖, diz o narrador. Essa cidade que é a mesma cidade,
mas que vira — ―fica outra‖ durante as madrugadas, aos sábados e domingos em que ―se
despovoa‖ —, é o espaço em que ele pode, afinal, dar vazão às suas fantasias, ser ele
mesmo, descobrir a sua arte, sua vocação e afinar seus sentimentos. E essa educação
sentimental se dá com as tampinhas:

Só um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um chute digno
para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que
vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem
baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa.
Sobem. Não demoram muito, que ainda não sou um grande chutador. Mas capricho, porque elas
merecem.
Minhas tampinhas... Umas belezas.255

É gritante o contraste entre o tratamento dispensado a elas, tampinhas, e o


tratamento que o protagonista reserva à professorinha. Não apenas a passagem acima, mas
todo o trecho em que ele faz uma tipologia da sua atividade de chutador é permeado de
afeto e de excitação, enlevo e discernimento sobre as tampinhas. Como vimos, ao final, ao
contrário, com a professorinha ele será ríspido e desconfiado, tenso e quieto. E afinal
melancólico de novo, depois do encontro.
O trecho final do conto concentra os temas da educação sentimental do personagem
— trabalho, literatura, relações afetivas — e retoma os motivos anteriores, das tampinhas e
do quartel. Os trechos das tampinhas e do quartel, por sinal, se comunicam em duas
passagens, uma na seção das tampinhas e outra no trecho final do conto, modulando, rumo
à malandragem, o comportamento ―vagabundo‖ e criativo do protagonista, capaz de
instaurar uma nova ordem, mais livre e afeita a ele mesmo, que nega a ―ordem‖, o mundo
―direito‖. Durante a descrição de suas perambulagens noturnas, ele relembra uma passagem
dos tempos de quartel, sugestionado pelas tampinhas de cerveja preta: ―Também me dedico

255
MPB, p. 42.
198

com simpatia às de cerveja preta. Provavelmente porque me lembram serões, almoços


improvisados, trechos duros da vida‖. Esses trechos duros são os tempos de serviço militar?
Provavelmente. Mas trechos duros que são compensados com pequenos confortos, como
cerveja preta, conseguidas, como o narrador irá contar, nos tais ―serões‖.
Na geladeira do aprovisionamento do quartel, havia sempre cerveja preta, reservada
aos sargentos. ―Difícil cavar cerveja preta‖, diz o narrador. Diz também que não era ―nem
tão trouxa nem tão caxias‖. Uma fala rememorada recomenda que ele se vire: ― — Você
não é praça? Se vira‖. E é o que ele faz: tomando conta do aprovisionamento, confere os
relatórios de produtos que chegam e se aproveita da malandragem do sargento:

Havia no quartel uma caixa delas. Reservadas para sargentos do dia. Cada um tinha direito a
uma. Na geladeira do aprovisionamento sempre havia. Difícil cavar cerveja preta. O comandante
me encarregou de tomar conta do aprovisionamento, ajudando o sargento Cunha. Pagar o
mantimento ao pessoal do rancho. Boa vida. Meu lugar bem que era outro, lá na secretaria.
Datilografando, esquentando a cabeça com números e preços na máquina de calcular. Mas eu
ensinava jiu-jitsu aos filhos do comandante, era peixe... As cervejas pretas eram inacessíveis. Todos
queriam. Os homens viviam de olho naquilo.
— Se sumir, desconta-se na folha de pagamento.
Na minha folha de pagamento, é claro. Ordem de não sei quem.
Eu me defendia de acordo. Pois um dia, o sargento Cunha esqueceu-se de uma caixa no
relatório. Ficavam cópias do relatório dentro do armário. Espiá-las. Era a primeira coisa que eu fazia
no começo de cada mês. Às vezes sobrava alguma coisa que faltava no relatório... Eu me ria.
— O sargento não é santo.
E quem é santo?
Disputa brava, então. Porque o homem percebia as minhas olhadelas no relatório. Um
tapeando o outro, se escondendo.
Faca de dois gumes.256

É assim, sendo mais malandro que o sargento malandro, que o praça consegue
desviar as cervejas pretas que não estavam contabilizadas no relatório. Um tapeando o
outro, ambos cientes da malandragem, faca de dois gumes, mas impossibilitados de
denunciarem um ao outro, o que seria, também, denunciar a si próprio.

256
MPB, p. 44-45.
199

É na ordem fechada e instituída do quartel, então que o rapaz irá aprender a ser
malandro. E no quartel ele também irá aprender um ofício e descobrir as vantagens de um
bom relacionamento. Ele trabalha ―datilografando‖, na contabilidade. E é ―peixe‖ do
comandante. É a dedicação e a competência com os números que o levam para o
aprovisionamento, onde ele irá ―tomar conta‖ das provisões. A indicação é do comandante,
de quem o rapaz é ―peixe‖, isto é, é amigo, protegido, apadrinhado. O trabalho e a relação
de hierarquia, portanto, são o lado direito que o praça vira em avesso: tapeação e
favorecimento. É malandragem em estado nascente, dentro do ambiente rígido, em
aparência, do regimento militar.
O desvio da caixa de cerveja é esperteza do narrador, que é possível graças à sua
inteligência, mas também graças ao funcionamento da malandragem já instalado no coração
da ordem militar. É, assim, conduta individual que só pode prosperar porque o ambiente é
propício. A malandragem do narrador do conto, assim, pode ser bem-sucedida porque se
reproduz sobre uma outra malandragem. Malandragem sobre malandragem. Malandragem
ao quadrado, em pleno quartel.
O protagonista não ―era trouxa nem tão caxias‖, como ele próprio diz. Era, desde
cedo, um praça que se vira, que sabe cavar257 aquilo que não tem. Nem trouxa, nem caxias:
malandro.
A malandragem incipiente do personagem lhe será de grande serventia, depois do
quartel: a ligação entre as tampinhas, os serões e a malandragem retorna no trecho
derradeiro do conto, ganhando condensação e agudização, rumo ao desenlace, ligando-se ao
trabalho e, depois, ao romance.
O trabalho que o protagonista arruma, à noite, é de ―escritas‖, contabilidade. Saindo
do escritório de contabilidade, onde faz serão, ele retoma a chutação das tampinhas:

Faço serão, fico até tarde. Números, carimbos, coisas chatas. Dez, onze horas. De quando
em vez levo cerveja preta e levo Huxley. (Li duas vezes o Contraponto e leio sempre). Não parei na
várzea da U.M.P.A, nas lições de distribuição de passes e centros que Biluca me dava.
Deixando o escritório. A madrugada costuma enegrecer tudo. Casas e homens. Só as minhas
tampinhas reluzem na calçada. Contraponto debaixo de um braço. Garrafa de cerveja preta no outro.
Assobiando, mãos nos bolsos.258

257
O verbo ―cavar‖ é utilizado também pelo narrador de Os ratos, de Dyonélio Machado, para descrever as
tentativas de o protagonista do romance, Naziazeno, conseguir algum dinheiro.
200

O trecho condensa, nas noites depois do serão no escritório de contabilidade, os


temas da constituição do protagonista e sua ação. É um personagem isolado, que conseguiu
um emprego ―chato‖, com números, em contabilidade. O que ele quer mesmo, não é a
chatice, mas o ―contraponto‖; não são os números, mas a escrita, e não a escrita de
contabilidade, mas a escrita literária,259 aqui representada pelo livro de Aldous Huxley, que
ele leu duas vezes e relê sempre.
Ele quer aprendizado, mas não quer a professorinha. A desconfiança, que nasceu
com o namoro frustrado com Aldônia e que o samba ecoa, é que ela o traia, delatando suas
malandragens: lá atrás o cigarro, fumado escondido; agora, talvez as tampinhas, a cerveja
preta, o samba, a boemia, a... malandragem.
Com a atividade solitária e noturna da chutar tampinhas, o protagonista consegue
realizar algo que os relacionamentos e as instituições não lhe permitem: a liberdade, o
alargamento de horizonte, a criação, o devaneio, a arte, o afeto, tudo concentrado nas
tampinhas.260 Nessa tentativa de encontrar a si mesmo e suas vocações, o personagem
promove uma série de substituições, algumas muito claras, outras apenas insinuadas no
conto. Algumas das mais evidentes: o personagem troca o dia pela noite, a ordem social
direita pelo seu avesso, o trabalho pela vagabundagem, o quartel pelas ruas, as mulheres
pelas tampinhas. Outras menos evidentes, apenas sugeridas: o protagonista troca a escrita
contábil pela escrita literária (como leitor de Huxley), troca Aldônia por Aldous (mas não
pela professorinha), as lições de passes e centros (do futebol de Biluca) pela leitura do
Contraponto de Huxley (troca de ―lições‖ por uma ―leitura‖, livre, artística, que, de novo,
nega a professorinha, ainda que atraia a atenção dela), troca a batucada coletiva pelo samba,
a religião pelo samba de Noel (samba em ―Feitio de oração‖ é o seu samba preferido; e,
afinal, como ele próprio, narrador, se pergunta: ―E quem é santo?‖).

258
MPB, p. 46.
259
Uma espécie similar de adaptação da vocação ocorre com o personagem Belmiro Braga, de Cyro dos
Anjos. Como a mãe do protagonista sonha para ele uma carreira literária e o pai o queria agrônomo, Belmiro
vai para as ―letras agrícolas‖, tirando ―carta de agrônomo‖. Aqui, em João Antônio, o rapaz arruma ocupação
com escrita contábil, o que indica uma análoga conjunção das letras com uma carreira mais instituída
socialmente. DOS ANJOS, Cyro. O amanuense Belmiro. Belo Horizonte: Livraria Garnier: 2001.
260
Ana Maria Domingues e Telma Maciel da Silva, além disso, associam as ―tampinhas‖ a ―palavras‖.
OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; SILVA, Telma Maciel da. ―Memória e ficção na correspondência do
escritor João Antônio‖. Teresa. Revista de literatura brasileira [8] [9]; São Paulo, p. 356-371, 2008.
201

Há, no protagonista de ―Aact‖, portanto, uma forte desejo de individualização e


libertação. Mas o personagem não consegue levar a termo esse processo. O crescimento e o
desenvolvimento do personagem permanecem num momento intermediário... de afinação.
Ele poderia ter trocado Aldônia pela professorinha, mas não o faz. Ele gostaria de trocar os
números pelas letras (de samba e de literatura), mas o faz apenas nas madrugadas e na
solidão. Em vez de Aldônia, agora ele tem Aldous, mas parece ter se fixado, acanhado e
obsessivo: lê e relê o livro de Huxley, assobia sambas de Noel, chuta tampinhas, não fala
com a moça que flerta com ele, pois a moça representa o que lhe atemoriza: o ensino
formal, a moralidade convencional do matrimônio, o trabalho ―bom‖.
Ele recusa os valores instituídos, preservando essa invenção excepcional: chutar
tampinhas na rua, o que faz dele um contestador da ordem, um malandro em estado latente.
A tarefa de chutar tampinhas é um rito moderno, totalmente criado e aperfeiçoado na
imaginação em ato deste protagonista que se recusa a aderir aos valores consagrados como
corretos. Nos termos de Maria Rita Kehl, chutar tampinhas na rua é uma atividade
―disruptiva‖, que permite uma experimentação de linguagem e de ação que se aproxima de
uma dimensão utópica ao questionar a ordem instituída, abrir sentidos imprevistos na
realidade e criar novas práticas. No caso, uma prática gratuita, lúdica e improdutiva. Em
certo sentido, a afinação da arte de chutar tampinhas — em afinidade com o samba e a
literatura — antecipa a malandragem da sinuca (sem o caráter eventualmente exploratório
do jogo) e cristaliza essa ―vagabundagem‖ como uma ação ―bárbara‖ e renovadora,
imprevista, sem lugar social, e por isso mesmo altamente contestadora e alternativa.
O que o protagonista deseja é se atilar,261 ser ele mesmo, aprimorando-se naquilo
que ele ―faz da vida‖: trabalha mal, mas assobia sambas de Noel com bossa e chuta
tampinhas na rua. A singeleza da resposta do personagem sobre suas vocações aponta para
um desejo e uma recusa contraditórios: ele quer ser ele mesmo, afirmar seus gostos e
idiossincrasias, mas não quer ingressar na ordem social tal como ela se apresenta, pois os
valores sociais instituídos ou respeitáveis, ―de bem‖, não reconhecem sua personalidade:
ele é ―aluado‖, ―farrista‖, ―vagabundo‖.

261
O uso do verbo ―atilar‖, que ocorre no conto duas vezes, é recorrente em João Antônio e traduz bem a
ambiguidade dessa espécie de aprendizado na malandragem: os jovens aspirantes a malandros como este
protagonista de ―Aact‖ (e depois os malandros de ―MPB‖) se aprimoram, atilando-se, isto é, tornando-se
Átilas. Ou seja, civilizam-se barbarizando-se. No primeiro capítulo, vimos como o narrador subverte a lógica
de chamar ―vândalos‖ aos pobres. Aqui, na ficção, a ambiguidade é mais sutil — e mais forte.
202

Embora proceda a uma série de substituições que fazem com que ele consiga, ao
menos para si mesmo, constituir-se enquanto indivíduo, o processo ainda está em fase de
aprimoramento, afinação, e a dimensão utópica da chutação de tampinhas não encontra
correspondência coletiva, pois a marca de solidão e isolamento do protagonista, que já
ocorria em ―Busca‖, acentua-se. Há substituições que não foram feitas, há personagens que
ele não abandona e há encontros que não são consequentes — ele é um personagem do
contraponto, como indica o título do livro de Huxley que ele carrega, lê e relê.262
Os personagens que ele não troca, ao menos explicitamente, são os pais. De novo,
como em ―Busca‖, repõe-se a dificuldade do romance/romance. A ação é abreviada, pois o
protagonista não consegue ir além de seus próprios domínios. Ainda que as tampinhas
proporcionem deslocamento, não são tarefa capaz de afastar o personagem de sua origens e
de sua constituição infantil. A corroborar a condição de infante, lembre-se o final do conto,
em que o protagonista nem mesmo conversa com a professorinha (―Quase falei‖) e a
dependência do círculo familiar (o emprego que ele arrumou serve para ―defender uns
cobres extras‖, o que sugere que ele ainda depende do que a família proporciona).
Fora do esquema que ele armou para si, permanecem, portanto, a família, o sustento
e o relacionamento amoroso. Conquistar novas dimensões familiares, de trabalho e de amor
são elementos da vida adulta que o personagem narrador permanece incapaz de conquistar
nos limites deste conto e nos termos que ele projeta para si mesmo. Ele quer se emancipar e
viver como indivíduo, mas hesita substituir os elementos que o mantêm dependentes de sua
origem.263 O dilema permanece: a história que ele conta não é um romance, isto é, não gera
desdobramentos de tema e forma. Não é relacionamento amoroso, vida adulta e
desenvoltura, romance; mas solidão, infância, acanhamento, conto.

262
Como afirma Vima Lia Martin, ―o mal-estar sentido pelo narrador do conto de João Antônio e o modo
como ele enfoca a questão dos relacionamentos amorosos encontram eco no romance inglês. Afinal, sua
aversão ao casamento deve-se a um profundo questionamento dos valores que sustentam as relações
socialmente instituídas e, nesse sentido, está em sintonia com a falência das relações amorosas apontada por
Huxley. Também a forma do romance, que busca aproximar a literatura da música, já que ele é escrito com
base na analogia do contraponto musical, encontra ressonância na forma do conto brasileiro que acaba por
reproduzir a cadência melancólica e comovente dos sambas mais sensíveis de Noel Rosa.‖ MARTIN, V.
Literatura e marginalidade: um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. op.cit., p. 87.
263
Nesse sentido, Vima Lia Martin afirma que Vicente e o protagonista deste conto ―se deslocam para a
margem de uma estrutura social pautada em valores essencialmente burgueses. Sem infringir as normas que
regulam nossa sociedade, os dois homens manifestam um profundo mal-estar pelo fato de suas condutas,
de certa forma, compactuarem com elas‖. Idem, ibidem.
203

Apesar do título, que chama a atenção para o tema do futebol vadio, o tema
permanece sendo o mesmo do primeiro conto: a hesitação do protagonista em aceitar o
caminho direito do trabalho, do bom comportamento e, sobretudo, do casamento, ou em
outras palavras, a resistência do personagem em ―fazer romance‖. Esta história ganha no
conto uma estrutura narrativa desarrumada, cuja principal evidência é a discrepância entre o
título e a ação significativa do relato. A força do conto reside, justamente, na ênfase
temática na atividade de chutar tampinhas e, com isso, no deslocamento da ação principal
do conto, que é o encontro do protagonista com a personagem da professorinha que o
corteja, o (anti)clímax do conto. O encontro amoroso — frustrado, na ação, enquanto
elemento romanesco, mas decisivo na estrutura do relato — é o momento significativo de
―Aact‖, mas está de certa forma escanteado, dados a relevância e o espaço que a atividade
de chutar tampinhas ocupa na narrativa.
Em outras palavras, chutar tampinhas é a atividade que mobiliza e ocupa o narrador,
é uma daquelas coisas que ele diz, ao final do relato, ―fazer da vida‖, mas para a economia
estrutural do texto, não é central, ainda que seja decisiva. No conto, a ação propriamente
dita, a ação que se encena e que marca o presente da enunciação, só ocorre realmente ao
final, quando o narrador-protagonista encontra a professorinha no lotação. Ou nem isso,
dado que o encontro não ganha desdobramento.
Em outras palavras, e então repondo a centralidade (deslocada) das tampinhas, a
recusa à professorinha é uma afirmação da boemia, da ―vagabundagem‖, da capacidade de
criar um rito, uma ação e uma arte que não se enquadra no esquema conservador que
envolve o protagonista.
Os elementos que caracterizam o personagem, segundo ele próprio, são
coincidências (―Eu, Huxley e tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se
dão bem.‖), o que confere caráter aleatório à constituição do personagem e da situação
narrada. Mas, ainda que gratuitas, as coincidências dos elementos são coerentes, pois se as
oportunidades e gostos se apresentam como casuais, o narrador procura ordená-las, como o
faz com as tampinhas, por meio do afeto e de seu desejo de diferença. Esse impulso de
diferenciação, porém, é castrado pelo pai (que o surrava), pelo irmão (que é o ―direito‖,
enquanto ele é o ―avesso‖), pelas senhoras mães de família (que lhe imputam a fama de
―farrista‖). O protagonista quer vagabundagem, samba e literatura. Mas o contexto familiar
204

e social exige trabalho, escola, hierarquia militar e casamento. A arte de chutar tampinhas,
porém, não é conformista ou purgadora, mas o princípio que ele próprio desenvolveu e que
lhe permite a recusa e do desafio à ordem vigente. E, ao final, ao desprezar o assédio da
professora, ele inverte os sinais que o senso comum e a moralidade convencional
estabeleceram: ele não quer casamento, e recusa o flerte com a professora, mulher de nível
social acima do dele e de maior formação educacional. ―Aact‖ é uma recusa ao romance.
―Aact‖ é um conto e um rito noturno da solidão, da individualização, da criação artística.
Em ―Aact‖, diferentemente do que ocorre em ―Busca‖, o protagonista não volta a
casa, e não há reencontro com o pai, tampouco com a mãe, apesar de mãe e pai não estarem
ausentes da ação narrada. Não há o retorno do filho pródigo, que vimos ser encenado nos
contos autobiográficos, também consorciado com ausência paterna.
Estamos, porém, num estágio um pouco mais avançado que o de ―Busca‖. E ainda
podemos levantar a hipótese de que o progressivo desaparecimento do pai do protagonista
ao longo do conto (o que ocorrerá também em ―Fujie‖) sugira um parricídio simbólico que
o tenha liberado para as artes da chutação de tampinhas, para o samba e para a literatura,
artes que o afastam e o libertam do casal parental, da família, dos valores burgueses,
devolvendo centralidade à chutação de tampinhas e fazendo afinal do conto uma narrativa
de forte conteúdo contestador da ordem.
Isso é possível porque, apesar de não substituir o pai no momento presente da
narrativa, ele já o substituiu anteriormente, transformando-o em totem. Vejamos uma
possível leitura antropofágica para essa afinação de chutar tampinhas.
A figura do sargento substitui o pai biológico: no ambiente deslocado do exército, o
protagonista irá encontrar no oficial uma figura paterna substituta. E o que ele faz com esse
pai substituto? Consegue lográ-lo, utilizando o mesmo artifício malandro de que o sargento
lançava mão, e então desvia algumas garrafas de cerveja preta para consumo próprio.
Assim, transforma as garrafas de cerveja preta em trunfo totêmico de sua malandragem: a
de ter enganado o sargento, figura paterna que é, assim, como o pai biológico, também
ultrapassada.
O protagonista transformou a autoridade paterna em libação de cerveja preta.
Antropófago, ele transmuta o tabu da autoridade paterna tirânica em totem de adoração e
celebração. As tampinhas de cerveja preta vão ganhar destaque em sua arte de chutar:
205

―Muito injusto esquecer-me de que as de cerveja preta são interessantes. Igualmente. Não
posso desprezá-las. Elas com seus símbolos no meio. Uma cabeça de bovino ou muar‖.264
As tampinhas que tem uma figura de boi ou de muar acentuam o caráter totêmico das
garrafas de cerveja preta. É por isso que, ao deixar o trabalho, à noite, o rapaz leva debaixo
do braço um livro de Huxley (a literatura, a escrita artística que o livra da castração do
ensino formal) e uma garrafa de cerveja preta, dois amuletos totêmicos que ele carrega
como que para garantir para si próprio sua devoração antropofágica da autoridade paterna, a
lembrança do festim totêmico (regado a literatura e cerveja preta) que o permitiu ―matar‖ o
pai e seguir seu caminho. Assim, a chutação de tampinhas é libertadora e se contrapõe aos
valores conservadores: trabalho alienado, moralidade convencional, casamento, ensino
formal e ostentação.
Mais uma vez, entretanto, apesar do parricídio simbólico que o protagonista
promove (primeiro o pai, ao ir para o exército, e depois o sargento, logrado em suas própria
artimanha), trata-se de um personagem que é incapaz de fazer romance. Isola-se e recusa a
ordem social, especialmente os valores sociais que se lhe apresentam: o aprendizado formal
(a escola, o anel de grau que sugere o título acadêmico), o trabalho (―trabalho mal‖,
―arrumei umas escritas‖) e as mulheres (Aldônia, a professorinha, as senhoras mães de
família), todas elas traidoras e castradoras, pois que o denunciam, expõem suas
transgressões e o recriminam (causam as surras, impõem comportamento ―adequado‖ de
bom moço, ―educado‖ e trabalhador).
No entanto, o conto termina irresolvido, no meio do caminho, num tempo suspenso,
das madrugadas, da vagabundagem, da afinação. Da afinação... da malandragem, já que a
escolha do protagonista se dá, mas é encenada em estado de hesitação, de processo e de
inconclusão, meio cá, meio lá. Porém, como o personagem escolhe as tampinhas, o samba e
a leitura, mais lá (no lado avesso, boêmio, noturno e artístico) do que cá (o lado direito,
burguês, diurno e convencional).
Há desejo: de liberdade (a individualidade, a vagabundagem), de escrita (a literatura
de Huxley, as ―escritas‖ noturnas), de afeto e posse (as tampinhas), de beleza estética, de
dança e jogo (os sambas, a arte de chutar tampinhas). Como o próprio título indica, o conto
marca ainda um momento de ―afinação‖, de processo, preparo de uma trajetória, de uma

264
MPB, p. 44.
206

situação que nos contos seguintes irá evoluir para a boemia, a sinuca, a malandragem e o
crime. Mas essa passagem ainda não parece ser possível na sociedade instituída, ou, mais
precisamente, nos limites do conto, no horizonte deste narrador-personagem.
Se passarmos então à leitura de ―Fujie‖, veremos que os ―Contos Gerais‖, afinal,
terminam com certa resolução, do ponto de vista da atuação do protagonista, e preparam os
desdobramentos não apenas dos demais contos de MPB, mas também da ficção de João
Antônio como um todo. Entretanto, a resolução de ―Fujie‖ indica, também, o impasse que
irá perdurar: a atuação do protagonista ganha consequência, mas esbarra nos limites dessa
mesma atuação, no contexto dado, já que, por conta mesmo das limitações dos
protagonistas, de suas origens e do universo em que estão inseridos, eles não conseguem se
desvencilhar do âmbito da família e das imposições estreitas de seu meio social. Não
conseguem ―fazer romance‖. E, posteriormente, se mostrarão reféns de uma malandragem,
destrutiva e autofágica, como veremos em ―MPB‖ e ―PPT‖.
Assim como ―Busca‖ e ―Aact‖, ―Fujie‖ é a história de um romance. De novo
dilemático. Entretanto, desta vez, realizado. Mas que, ainda assim, conduz ao impasse dos
limites familiares e sociais.
Se nos dois primeiros contos, os personagens hesitam em se entregar ao caso
amoroso, o protagonista de ―Fujie‖ não consegue... fugir.265 Não consegue evitar o que
deseja, mas que sabe ser proibido.
A história de ―Fujie‖ é a história de um triângulo amoroso e uma história de traição.
A história do ―conto da japonesa‖, como já vimos no capítulo 1, é aludida pelo narrador de
―PMCMS‖. Foi um dos primeiros contos escritos por João Antônio e, assim, como os
demais contos de MPB tem correspondências fortes com a biografia de João Antônio. A
inspiração autobiográfica não é o que nos interessa aqui, mas sim a mudança significativa
da ação, em relação aos dois primeiros contos, e ao mesmo tempo a persistência do impasse
no que se refere à atuação do protagonista. Trocando em miúdos: em ―Fujie‖, afinal, temos
um protagonista que se relaciona amorosamente com uma personagem feminina que não
faz parte de seu círculo familiar ou comunitário. No entanto, esta personagem é ―proibida‖,

265
Simone Paulino dos Santos levanta a hipótese de a pronúncia de ―Fujie‖ ser ―fugi‖, com a tônica recaindo
na última sílaba (fazendo rima e eco com Toshi e coincidindo com a primeira pessoa do verbo fugir
flexionado no pretérito perfeito: eu fugi). A hipótese é boa, mas, por outro lado, a pronúncia paroxítona, com
a tônica na primeira sílaba, confirma a associação do nome da protagonista com o monte Fujie, símbolo do
Japão, o que acentua o caráter civilizador (acesso à cultura japonesa) da conquista amorosa do protagonista.
207

é a mulher do amigo, a mulher do melhor amigo, quase como que um irmão do


protagonista, ou seja, ela é uma espécie de irmã, ou cunhada. Assim, além do escândalo da
trama que encena um triângulo amoroso, além do escândalo do tema do adultério, temos
aqui também a história de um romance de teor incestuoso e, não bastasse isso, a história
apresenta forte conteúdo homoerótico.
A história é simples, ainda que narrada com grande artifício e beleza.
O jovem protagonista relembra como se tornou amigo de Toshitaro, um colega de
judô que conheceu numa academia de luta no bairro da Liberdade, e como se afeiçoou
tremendamente ao amigo. A relação intensa entre os dois será ameaçada, do ponto de vista
do narrador-protagonista, pelo casamento de Toshi com Fujie. O narrador teme que a
mulher do amigo os afaste, interfira na convivência e estrague a amizade entre eles. A
amizade, porém, ao contrário do que supunha o protagonista, não esmorece, pois apesar de
casado o amigo ainda mantém o afeto e a proximidade que marcavam a amizade antes de
―entrar mulher na história‖266, como diz o narrador. O que de fato acontece e que pode de
fato ameaçar a amizade é que o protagonista se apaixona por Fujie. E esta alimenta o amor
proibido, insinuando-se para ele. O evento significativo, para o qual conflui a narração, é a
cena final, em que o protagonista cede aos acenos sensuais de Fujie e vai ao encontro dela
— pois sabe que Toshi está ausente — e faz amor com a mulher do amigo.
O tom do relato, desde o início, mas acentuado ao final, é uma combinação de
desnorteamento, sensualidade, atração, tristeza e culpa. A frustração se explica: apesar do
alargamento do horizonte que a cultura japonesa proporcionou — e é o que move o
protagonista, afetiva e profissionalmente — o final, ponto de onde se rememora e se narra,
repõe o impasse da dificuldade de extrapolar os limites familiares e sociais.
Vejamos como isso se dá no conto.
O protagonista não tem nome. Mas o pai dele tem: Antônio. É o pai quem o leva
para a academia de judô. E é a luta que faz com que o moleque da Penha percorra a cidade,
em ―provas‖: competições no Pacaembu, Lapa e, finalmente, Liberdade. Entre os judocas,
ele vai encontrar camaradagem: ―Muito bom o convívio com japoneses cá de São Paulo.

266
MPB, p. 56.
208

Sujeitos dóceis, cordatos, bem educados a ponto de parecerem moças. E quem os vê não
avalia o que podem na briga...‖.267
A observação sobre os japoneses marca uma posição de forte alteridade. São eles, os
japoneses, que são educados, dóceis, cordatos, enquanto ele, narrador-protagonista, é um
―touro‖, ―cabeludo que nem urso‖. E nas lutas ele sua como ―boi ladrão‖.268 As imagens
com que o narrador se define são, assim, marcadas por uma animalidade selvagem, que
contrasta com o universo da educação e da cultura japonesa. O convívio com os japoneses
fará o narrador conhecer uma cultura diferente, que ele não imaginava existir. A maneira
com que ele conta essas descobertas ressalta a sensação de ingresso em um mundo novo. E
essa entrada no universo da cultura, em oposição à situação de selvageria anterior, vem
associada ao encontro com o amigo Toshitaro.

Academia, disputa, camaradagem, mais coisas. Lá na Liberdade achei o ótimo Toshitaro.


Nunca vi ninguém como. Costumo dizer que o sujeito que não se der com Toshitaro não presta. Ou
não conhece Toshi.
Eu nunca havia sentido nada pelas coisas do Japão. Levou-me a beber saquê nos
restaurantes da Liberdade, mostrou-me cinema. Depois gravuras, depois pinturas, tatuagens. Fui
atingindo a dimensão mística de todas aquelas belezas. Percebi, por exemplo, que naquelas mulheres
passivas e tímidas e afáveis, mexendo-se dentro de quimonos enormes, quase aos pulinhos, e que o
cinema me trazia entre neve e casas do Japão, morava um mundo diferente de sensualidade. Poesia
naquelas coisas.
Gostei. Como quem descobre uma maravilha, gostei. Não me arredava daqueles ambientes.
Gostei demais. Judô, folclore japonês, depois teatro, fotografia.
Aquilo, sim, meu Deus, era um mundo!
À mesa, papai se admirava com meus entusiasmos. Gostava — rapazola, eu já era faixa
vermelha.
Toshitaro, com cinco anos à minha frente, me levava pela mão direita ao judô. Esquecia a
condição de faixa preta e o terceiro dan, me dava o lado direito na luta. Dava tudo. Sujeito
espetacular, enorme no tatame e fora dele. Aprendi mais com Toshi do que com os três professores
que já tive. Só me abro mesmo é com meu pai.269

267
MPB, p. 53.
268
Idem, ibidem, p. 53
269
MPB, p. 54.
209

São muitos os índices de costume, cultura e arte, ligados ao Japão, que a amizade
com Toshitaro proporciona: saquê, folclore, tatuagens, teatro, fotografia, cinema, gravuras,
pinturas. A introdução ao mundo cultural é, por assim dizer, completo, globalizante, a
ponto de o narrador associar os novos conhecimento aos conceitos amplos e totalizantes da
―beleza‖ e do ―mundo‖. A descoberta de uma sensibilidade estética, própria de uma vida
social complexa, no entanto, vem carregada de mistério, além de afeto e de sensualidade:
para o narrador é a ―dimensão mística de todas aquelas belezas‖, é a descoberta de uma
―maravilha‖, da sensualidade e da poesia, de algo muito maior do que ele próprio. Tudo
sempre, graças ao ―ótimo Toshitaro‖, ―sujeito espetacular‖, ―enorme‖, cuja ascendência
sobre o narrador é de maturidade (cinco anos mais velho) e de horizonte de conhecimento.
A fotografia, em especial, irá selar a ligação entre eles, por laços não apenas afetivos e
estéticos, mas também profissionais: o protagonista consegue emprego no laboratório de
fotos de seu Teikan, pai de Toshi.
Além da admiração que o narrador sente pelo amigo e da forte relação entre a figura
de Toshi e a descoberta do mundo novo da cultura japonesa (―aquilo sim, meu Deus, era
um mundo!‖), sublinhem-se neste trecho duas outras coisas: o aprendizado que o narrador
diz ter adquirido com Toshi, e não com os professores, e certa confusão entre as figuras de
Toshitaro e do pai do narrador. As lembranças do narrador se sucedem. Sobressai a
importância que o pai e Toshi assumem para a rememoração: Toshitaro é quem o conduz,
paternal e protetor (―pela mão direita‖) no universo do judô. Além disso, as duas última
frases do trecho citado apresentam um Toshi professor e um pai conselheiro e confidente, o
que indica que, pelo menos na memória e na recriação narrativa do protagonista, os papéis
de ambos de fato se aproximavam.
Este aspecto, o da correspondência entre as figuras do pai e de Toshi, é importante.
Vima Martin vê na relação entre o protagonista e Toshi uma relação de verticalidade, como
se Toshi representasse para o narrador uma espécie de pai substituto.270 A percepção de
Vima ampara-se ainda em outra passagem, também bastante relevante do conto, em que o
narrador assinala as etapas de vida pela qual ele e o amigo vêm passando:

270
MARTIN, Vima Lia. Literatura e marginalidade: um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. São
Paulo: Alameda Editorial, 2008, p. 88.
210

Quatro datas quase coincidentes: a primeira barba, dezoito anos, casamento de Toshi, minha
faixa marrom.
Fizeram lua-de-mel numa estação de águas.
Toshitaro casado. Papai engordando. Minha barba crescendo, pedindo segunda raspagem.
Três semanas sem ver Toshi e eu fiquei vazio. [...]

Nossa percepção, a qual já havíamos desenvolvido em trabalho anterior, é a de que


a relação entre os dois é horizontal, fraterna, de amigo para amigo. O par narrador/Toshi
reedita o par Vicente/Luís, de ―Busca‖, e ganhará nova versão no par narrador/Carlinhos,
de ―Visita‖. São parceiros que os narradores procuram para, juntos, empreenderem alguma
aventura e, assim, esgarçarem os limites comunitários, sociais e, até, de linguagem,
potência disruptiva que Maria Rita Kehl valoriza no que ela chama de ―função fraterna‖.
Entretanto, de fato a mistura entre o pai e Toshitaro salta aos olhos nos trechos
citados, conservando, porém, a relação de amizade que une os dois personagens. Talvez,
assim, possamos ver, na relação a um só tempo vertical e horizontal, paterna e fraterna que
se estabelece entre os amigos uma versão embrionária da contradição que iremos encontrar
expressa e desenvolvida em contos posteriores do autor: uma contradição própria das
interações de autoridade (portanto, verticais) entre iguais (por isso, horizontais). Os iguais
são parceiros, amigos, ―irmãos‖, manos, que vão, na busca pelo parceiro, encontrar
semelhantes, que por sua vez tendem a tentar se impor, ou figuras mais experientes, mais
velhas, mais malandras, que são leais, parceiras, mas também autoritárias. Essas
contradições e desníveis entre parceiros que deveriam ser iguais, mas que interagem por
meio de uma hierarquia desequilibrada e pautada pela violência, estruturam as relações da
malandragem e da criminalidade, onde elas são relações a um só tempo verticais e
horizontais, com consequências dramáticas, como mostram os contos de João Antônio.
Já aqui, em ―Fujie‖, é possível entrever os elementos e dilemas próprios dessa
mistura de autoridade e parceria, de ensino e camaradagem, de orientação e cumplicidade
que marcará também as relações entre malandros mais velhos e malandrecos, entre patrões
de malandragem e malandros iniciantes.
Mas os contos também apresentam elementos que podem aproximá-los dos
romances de formação, já que todos os grandes personagens de seus contos estão em maior
ou menor medida ocupados com o aprendizado. Como já observamos, não se trata de
211

aplicar à literatura de João Antônio o modelo do romance de formação,271 mas atentar para
o fato de que os jovens personagens do autor estão, em geral, ocupados com diversas
formas de aprendizagem, não apenas com o aprendizado formal, escolar, mas sobretudo
com um aprendizado informal, adquirido nas ruas, fundamental para a sobrevivência em
condições marginais, aprendizado que em ambos os casos, formal ou malandro, relaciona-
se com os impulsos ambivalentes de aptidão e sobrevivência, inserção social e resistência
aos valores instituídos.
Jesus Antonio Durigan vinculou os temas da busca e do caminhar à ―necessidade de
aprendizagem que invariavelmente acompanha toda a ficção de João Antônio‖:

Como acontece esse aprendizado? Na própria busca de sobrevivência que o malandro


realiza, perambulando pela cidade grande, sofrendo e aprendendo com os mais velhos,
malandros experientes. Por isso, na sua ficção, os atores andam o tempo todo, procurando por
todos os lados, vagueiam por diferentes lugares. Frequentemente, são os textos mesmos que se
estruturam a partir da movimentação dos atores, como ocorre, apenas para exemplificar, em
―Busca‖, ―Frio‖ e ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, verdadeira ciranda da malandragem em
que os três atores — representando as três idades da existência humana — realizam uma
trajetória circular que inicia e termina no bairro da Lapa.272

271
Se no modelo clássico do romance de formação, o protagonista recusa os valores burgueses a que está
destinado em favor de uma educação humanista, artística e multifacetada (nega o comércio em favor do
teatro), na obra de João Antônio o quadro é semelhante, ainda que não seja, por óbvio, equivalente. O modelo
do Wilhelm Meister, no entanto, faz-se sentir na biografia do escritor, como vimos, pois o escritor se recusou
a seguir a carreia do pai no comércio, preferindo lançar-se na boemia, na vida artística, na literatura. João
Antônio, aliás, chegou a se aventurar pelo teatro, em aulas com o grupo do Teatro Arena: Eugenio Kusnet,
Gianfrancesco Guarinieri, Vianinha. O aprendizado também é uma necessidade nos protagonistas da ficção do
autor, mas trata-se, em João Antônio, de uma atualização degradada do modelo do Bildungsroman — a
começar pelo fato de que o autor não escreveu romances. Além disso, a ―formação‖ por assim dizer ―formal‖
dos protagonistas é frustrada, não se completa, ainda que esteja sempre no horizonte pessoal de seus
protagonistas, os quais a recusam em favor de outras práticas. A afinação de chutar tampinhas, a literatura e o
samba (no caso de ―Aact‖) e o cinema, as artes, a fotografia e a cultura japonesa (em ―Fujie‖) são exemplos
de práticas e estudos que compõem a formação dos personagens do autor. Vima Lia Martin vê nos contos de
MPB uma homologia com outra tipologia do herói romanesco definida por Lukács, aquela do ―romantismo da
desilusão‖, isto é, personagens com ―a tendência de esquivar-se de lutas e conflitos externos, e não acolhê-los,
a tendência de liquidar na alma tudo quanto se reporta à própria alma‖. (MARTIN, op.cit., p. 71) E, de fato, no
caso dos textos do autor (repita-se: contos e não romances), não se pode falar em percurso formativo ou
desenvolvimento humanista das potencialidades, ainda que a aquisição da picardia, como veremos em ―PPT‖,
possa ser vista como um estágio formativo decisivo da vida malandra. Sobre o romance de formação ver
MAZZARI, M. ―Apresentação‖ a Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de J.W. Goethe. Trad. Nicolino
Simone Neto. São Paulo: Editora 34, 2006; e ______. Romance de formação em perspectiva histórica. São
Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
272
Jesus Antonio Durigan, ―João Antônio e a ciranda da malandragem‖, in: SCHWARZ, R. (org.), Os pobres na
literatura brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1983, pp. 216-217.
212

Em ―Fujie‖, o tema do aprendizado, do alargamento de horizonte do protagonista,


do desenvolvimento de suas potencialidades e, em consequência, da possibilidade de
alargamento da forma (do relato breve de uma situação que define o conto, à narrativa
longa que põe em cena uma trajetória de vida, o romance), parece anunciar finalmente certa
resolução e algum desenvolvimento. Neste conto, afinal, temos uma estrutura narrativa que
aponta para a necessidade, mais que isso, para o desejo ardoroso e culpado, de um
protagonista que quer ―fazer romance‖ e que, no entanto, recai, novamente, no dilema dos
limites impostos por sua formação estreita e pelas possibilidades exíguas de ampliação de
seus horizontes, tanto culturais como de trabalho, de convívio social e, resumindo tudo, de
emancipação e realização pessoal.
Neste conto, afinal, o protagonista avança em relação aos protagonistas anteriores.
Realiza o seu desejo, um desejo proibido, o de possuir a mulher do amigo, amigo que é
também uma espécie de pai. Realiza o seu destino edípico e, assim, ―criminoso‖, é tomado
pela culpa, por uma culpa indefinida, análoga à da busca indeterminada de Vicente. Com
―Fujie‖, encerra-se a seção ―Contos Gerais‖ e tem início ―Caserna‖, seguida de ―Sinuca‖.
Depois do crime afinal cometido, é sintomático que o livro enfeixe dois contos
sobre a experiência do cárcere, para então adentrar o terreno da sinuca, da boemia e da
malandragem. Não nos deteremos aqui sobre os contos de ―Caserna‖. E da seção ―Sinuca‖
empreenderemos a análise apenas de ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, no próximo capítulo,
com breves comentários sobre ―Meninão do Caixote‖, a seguir. Registre-se, porém, que nos
contos de ―Sinuca‖, a última seção do livro, a constituição dos protagonistas se mantém
muito semelhante à dos ―Contos Gerais‖. Especialmente nos dois textos narrados em
primeira pessoa, ―Meninão do Caixote‖ e ―Visita‖, os temas e dilemas dos protagonistas
são os mesmos dos personagens dos ―Contos Gerais‖.273
Em ―Visita‖, temos um narrador cujo nome não sabemos, mas com inquietação e
trajetória muito semelhantes às de Vicente. Ele também está insatisfeito com a situação
familiar e com o trabalho. Vive com a mãe, que o demanda com ocupações caseiras
(―probleminhas domésticos‖), e a irmã, que o irrita pela futilidade e extravagância (a irmã é

273
Narrada em terceira pessoa, a história de ―Frio‖, conto que não iremos comentar no espaço deste trabalho,
por sua vez, guarda parentesco com a trajetória do protagonista de ―Paulinho Perna Torta‖, ambas histórias de
meninos de origem desconhecida, desde cedo imersos no universo da malandragem, situação que, como
veremos no capítulo 4, também guarda relação com as interações entre indivíduo, família e sociedade.
213

―uma tonta‖, que ―sabe é ouvir novela, ler romancinhos para moças, discutir babados‖),
exageradas pelo narrador-protagonista.
O rapaz relembra o tempo em que curtiu desemprego e, trocando o dia pela noite, se
lançava aos salões de sinuca. Decide fazer uma visita ao ―ótimo Carlinhos‖, ex-colega de
trabalho na refinaria, por ocasião das festas de fim de ano, para retribuir um cartão de Natal
recebido. ―Carlos deveria ter uma irmã linda, cheia de modos e não cabeça oca. Nunca
estivera em sua casa. Sabia o endereço, que ele jamais esquece essas coisas. Eu não. Tanto
faz
A visita do protagonista é a Carlinhos, mas o desejo é o de que o colega tenha uma
irmã linda e não cabeça oca (ou seja, que não seja ―tonta‖, como a irmã dele próprio). A
busca, em Visita, portanto, ganha direção mais nítida. O rapaz busca uma mulher. E ao
chegar à casa do amigo, num ―cortiço‖, ―moradia de ferroviários‖, encontra uma mocinha
namorando um rapaz no portão. Era, de fato, a irmã de Carlinhos, mas o amigo não estava.
O rapaz entrega o cartão a ela e vai embora.
Depois da visita, o personagem lamenta não ter encontrado o ―excelente Carlinhos‖.
E formula o desejo: ―Por que não arranjo uma namorada?‖. Mas em seguida, ele recua
deste desejo, ao mesmo tempo degradando-o e idealizando-o: ―Que nada... arranjaria uma
dessas franguinhas bobas, que se ajustam a meninos bonitos. Ao pé do letreiro, um modelo
de dentes muito brancos, teria pernas bonitas como as da irmão do ótimo Carlinhos. Meu
dentes são amarelos, manchas de fumo. Ambas teriam coxas mornas, brancas‖. Em vez de
uma namorada, ele arrumaria uma franguinha ou sonharia com uma modelo de publicidade.
Em vez de uma namorada, uma mulher qualquer, ―franguinha‖, ou uma mulher inatingível,
idealizada, ―modelo‖.
O conto é repleto de passagens sugestivas, revisitando os temas que já apareceram
nos demais textos comentados. Aqui, por ora, basta ter em mente que o narrador está
ocupado com imprecações contra a escola, o trabalho, a própria ―vila mesquinha‖ e
―rodeada de fábricas‖ onde ele mora, contra o quartel ―indecente‖ pelo qual ele passa, os
―sujeitos bestas‖ do bar onde ele entre para beber e jogar sinuca e contra o próprio ―jogo
triste‖ de sinuca.
Apesar da diferença de tamanho entre ―Busca‖ e ―Visita‖ e de, neste, o personagem
conseguir elaborar um pouco mais os elementos da realidade em que vive, a situação se
214

mantém. A irritabilidade do personagem é maior, mas as contrariedades (com escola,


trabalho, círculo familiar, vizinhança) são semelhantes às dos protagonistas dos ―Contos
Gerais‖. A sinuca, apesar de acenar com possibilidades de aventura, ganhos e realização, é
também motivo de temor e ameaça de queda, como indica o sonho que abre o conto, em
que o personagem sonha com as grandes paradas, em companhia de Carlinhos, mas é
surpreendido com a queda da bola branca na caçapa.274 O jogo, em ―Visita‖, é ―o mundo de
dimensões do pano verde de uma mesa de sinuca‖.275 Aqui, a sinuca é meio de vida, é
prazer, é promessa, é habilidade e caminho, mas também é ameaça, chateação, azar, acaso,
descaminho, perdição.
―Meninão do caixote‖, por sua vez, volta a apresentar um protagonista em tudo
semelhante àqueles dos Contos Gerais, mas o conto já antecipa os movimentos posteriores
da ficção do autor, ensaiando motivos que reaparecerão, por exemplo, em ―Paulinho Perna
Torta‖. Ambos os contos, note-se, são narrados em primeira pessoa e intitulados com os
nomes de seus protagonistas.
Penúltimo conto do primeiro livro de João Antônio, ―Meninão do caixote‖ antecede
o conto que dá nome ao volume. Se o último conto apresenta personagens completamente
imersos no circuito da sinuca e os contos anteriores encenam a hesitação dos protagonistas
entre aderir ou não ao mundo da boemia, a história de Meninão narra a entrada do
protagonista no universo do jogo, mantendo entretanto o presente narrativo ancorado no
círculo familiar, o que acentua a comunicação entre as duas esferas, a da família e a da
boemia. O conto narra os acontecimentos que levaram o menino a se tornar jogador de
sinuca, à revelia dos pais, a ganhar nome entre os jogadores e a ultrapassar o malandro mais
velho, Vitorino, aquele que é seu ―patrão‖ no jogo de sinuca. A frase que abre o texto
aponta para a vitória do menino sobre o velho sinuqueiro: ―Fui o fim de Vitorino‖.
Os elementos do entrecho vêm confirmar as linhas de força que já organizavam as
narrativas anteriores. O protagonista, que narra a história, não informa o próprio nome.
Vive com a mãe e o pai. Ela é costureira, ele é caminhoneiro. A família mora na Vila
Mariana, onde o menino e o primo Duda brincam juntos, tomam banho na lagoa e apanham

274
A branca é a bola que o jogador atinge com o taco, de maneira que ela se movimente e colida com as
demais bolas. O objetivo do jogo é encaçapar as bolas coloridas por meio de tacadas na branca. Se
inadvertidamente a bola branca cai na caçapa, o jogador é penalizado com a perda de sete pontos (o valor da
maior bola, a preta) e cede a vez ao oponente.
275
MPB, p. 122.
215

quando chegam em casa de cabelos molhados, mal disfarçando a brincadeira que as mães
reprovavam (―nossas mães não eram sopa e com mãe havia sempre uma complicação‖276).
A certa altura, a família se muda para a Lapa.
No novo bairro, tudo piora: a rua onde moram é sem graça, o menino passa a sentir
saudade do primo, o pai está sempre viajando, em longas estadas distantes (―demorava
dois-três meses‖), a mãe passa os dias a costurar (―na casa vazia só os pés de mamãe
pedalavam na máquina de costura até a noite chegar‖), e a professora do grupo escolar era
exigente (―mandava a gente à pedra‖277).
A professora é, além de exigente, disciplinadora. Manda bilhetes para a mãe do
aluno: ―Coisas horríveis no bilhete, surra em casa‖. Já vimos algo semelhante ocorrer em
―Aact‖. Um bilhete de uma personagem feminina denuncia aos pais o mau comportamento
do protagonista. Antes, era Aldônia, a namoradinha. Agora a professora. Nos dois casos, os
protagonistas saem do episódio castigados.
Aqui, o menino relembra a vida na Lapa em tons desmaiados: a ausência do pai, a
escola como um lugar exigente e repressor, a falta do primo, a mãe sempre trabalhando ou
batendo nele (―quando papai não estava, os nervos de mamãe ferviam‖278). Até que ele
descobre um mundo novo: o da sinuca.
Por ironia, é a mãe quem, involuntariamente, o conduz ao salão de jogo. Ela pede
que ele vá buscar leite. Estava em falta no estabelecimento habitual. O menino então vai
comprá-lo no Bar Paulistinha, onde nunca havia entrado. No caminho, é apanhado pela
chuva, corre para o bar para se proteger e fica preso ali, por um tempo, esperando o tempo
melhorar. Descobre que no fundo do bar, depois do balcão, das mesas e de uma cortina, há
um salão de sinuca. O menino pergunta a um homem magro, de braços finos, chapéu e
olhos sombreados, ―lá no fundo da cara‖, se pode dar uma espiada no salão.

— Mas é claro, garotão!


Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito às surras, aos xingamentos leves e pesados que
um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita.279

276
MPB, p. 125.
277
Idem, p. 126 e 127.
278
Idem, 128
279
MPB, p. 130
216

A fala receptiva é de Vitorino, malandro velho, enfermiço, que conquista o menino


com sua combinação de amabilidade, habilidade de fala e decadência física. O aspecto
desleixado e o modo de falar amalandrado fazem ―picam‖ o menino:

— Larga a brasa, rapaz!


Aquela fala diferente mandava como nunca vi. Picou-me aquela fala. Um interesse pontudo
pelo homem dos olhos sombreados. Pontudo, definitivo. O que fariam os dedos tão finos e feios?280

A fala pica, ou seja, incomoda, mas também inquieta, desperta um ―interesse


pontudo‖. O campo semântico do verbo picar e do adjetivo pontudo relacionam-se à
animalidade da sinuca, agressiva, mas também à sexualidade, pois o menino fica excitado
com o novo ambiente. É uma realidade desconhecida que se apresenta: ―Para mim, Vitorino
abria uma dimensão nova‖.
Vitorino será o padrinho de sinuca, depois ―patrão‖ no jogo. De início, o menino irá
apenas espiar o jogo de sinuca. Mas começa a frequentar o salão e aos poucos fica
conhecido como ―Meninão‖. Até que um dia ele começa a jogar: ―Um dia peguei no taco.
Joguei, joguei muito, levado pela mão de Vitorino, joguei demais‖. De novo, sinuca e
sexualidade se aproximam e confundem: o menino pega no taco; com isso, mostra-se ativo,
habilidoso, contundente. Ele é iniciado por Vitorino, que o leva pela mão, paternal. O
malandro mais velho, pai substituto, é quem lhe apresenta essa ―nova dimensão‖, em que o
menino vira Meninão, jogador de sinuca e, logo, como ―atirador‖, ―bárbaro‖.
Como o menino era baixinho, para conseguir alcançar a mesa, passou a subir em um
―caixote de leite condensado que Vitorino arrumou‖.281 Assim, virou ―Meninão do

280
Idem, 130-131.
281
As duas referência ao leite são cruciais no conto. O menino se inicia no mundo da sinuca ao ser enviado
pela mãe à venda para comprar leite; depois, é um caixote de leite que irá possibilitar a ele alcançar a mesa de
sinuca e, afinal, praticar o jogo e sua habilidade. A simbologia do leite liga-se à maternidade, à pureza e à
alimentação infantil, o que intensifica a ligação do menino com a mãe e com a infância. Por outro lado, a ação
do conto o distancia do universo da casa e da infância e o elemento que o afasta é, justamente, a busca do leite
e o caixote de leite. Assim, em ―Meninão do Caixote‖, os elementos maternais e de sobrevivência, de nutrição
e de pureza ligam-se ao mundo ―sujo‖, desviante e promíscuo da sinuca, o que evidencia a proximidade entre
os mundos da ordem e da desordem, entre os polos ―positivos‖ e ―negativos‖, entre família e boemia, fome de
sobrevivência e fome de jogo. A centralidade de um elemento como o leite faz lembrar também o romance Os
ratos, de Dyonélio Machado, em que o protagonista precisa saldar sua dívida com o leiteiro para evitar a
interrupção do fornecimento de leite e salvar, assim, a família (ele, a mulher e o filho pequeno). Há grande
semelhança também de Os ratos com o conto ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖: a ação de ambos os textos
transcorre em um único dia e a busca dos protagonistas por dinheiro é marcada por uma espécie de contagem
217

Caixote‖. Ainda que o malandro mais velho não o tenha batizado de Meninão do Caixote,
como irá acontecer com Paulinho Perna Torta, rebatizado por Laércio Arrudão, é o
padrinho que arruma o caixote que lhe dará o novo nome. E sua fama começa a correr:
―Meninão do Caixote... Este nome corre as sinucas da baixa malandragem, corre Lapa, Vila
Ipojuca, corre Vila Leopoldina, chega a Pinheiros, vai ao Tucuruvi, chegou até Osasco‖.
Veremos, no capítulo 4, sobre ―Paulinho Perna Torta‖, como a aquisição de um novo nome
e a fama que corre, levando o nome do malandro para lugares onde nem mesmo ele chegou,
constrói uma situação contraditória de admiração e respeito, mas também rivalidade e
ameaça ao malandro. Em ―Meninão do Caixote‖, a habilidade na sinuca e a fama fazem
com que ele ganhe relativa independência em relação à família e à escola. Para ele,
―moleque afeito às surras, aos xingamentos‖ e às reprimendas da professora, é mais que um
alívio, é crescimento e libertação: ―Minha vida ferveu‖282.
Enquanto o pai estava ausente, viajando pelo país, ele fugia de casa e se lançava à
sinuca. Ao voltar, levava bronca da mãe, ―baixava a crista‖, mas ―a malandragem
continuava‖.283 O menino permanecia na escola, mas não conseguia se concentrar,
considerava os colegas uma ―cambada de trouxas‖.
A boemia e a malandragem da sinuca o levam à iniciação sexual e à aquisição do
dinheiro. Mas a sinuca não é feita apenas de ganhos e prazeres. Meninão do Caixote
descobre que ―sinuca é ambiente da maior exploração‖. Ele se torna, também ele, malandro
obrigado a compartilhar os lucros de sua malandragem: ―Estava era sustentando uma
cambada, sustentando Vitorino, seus camaradas, suas minas, seus...‖284. É a partilha do
dinheiro, que ele é obrigado a dividir com Vitorino, que vai fazer com que Meninão do
Caixote manifeste seu desagrado com a parceria.
A relação com as figuras paternas, o pai e Vitorino, indica que a sinuca proporciona
a aventura e a promessa de ascensão social e de autonomia que o protagonista não
reconhece no caminho instituído da escola, da família e do trabalho. Ele irá se dividir, até o
fim da narrativa, entre o mundo da ordem — a escola e sobretudo a família — e o mundo
do avesso, a sinuca. Ao final, no dia do seu último jogo, a revanche que Meninão concede

regressiva, marcada pelo transcurso inclemente do tempo cronológico. MACHADO, D. Os ratos. 10ª edição.
São Paulo: Ática, 1986.
282
MPB, p. 134.
283
idem, p. 135.
284
MPB, p. 137.
218

por insistência de Vitoriano a Tiririca, um dos maiores tacos da cidade, o protagonista volta
para casa, em companhia da mãe, que o vai buscar no salão. Ela leva um prato de comida,
uma marmita para o filho, que prometera voltar a tempo do almoço de domingo. Meninão
não consegue segurar o choro. A mãe já deixava o salão, também chorosa. Ele consegue
alcançá-la: ―Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos
subindo a rua‖.285
O final do conto, no reencontro com a mãe e a volta para a casa, acentua a ausência
paterna e a escolha do mundo da ordem. O pai, aos poucos, vai sendo deixado de lado, em
benefício, para o desenvolvimento da ação narrada, da figura de Vitorino. Meninão deixa o
pai de lado e adere à vontade de Vitorino, aceitando a partida final contra Tiririca, revanche
da qual Meninão sai vitorioso mais uma vez. Sai vitorioso, para ao final, abandonar a
sinuca e voltar de mãos dadas com a mãe para casa.
Teria sido mesmo o último jogo de Meninão? Talvez não. Seu comportamento
oscilante, que no fim do conto acena com uma volta a casa e o abandono da sinuca, permite
ao leitor supor. Ainda mais que sabemos, nós leitores, como teve início essa narrativa.
Aliás, fim e início se confundem, nesta narrativa.
O fim do conto está no final do texto, mas o final da ação narrada está, na verdade,
em seu início: ―Fui o fim de Vitorino‖. É do momento em que Vitorino é um malandro
decadente e decrépito que o protagonista narra sua história.
Se o final do conto tem algo de singelo, de ingênuo, de romântico e de regressivo, o
retorno ao seu começo, que é na verdade o final da ação, o ponto de fuga da história deste
narrador-personagem, revela que a narrativa é ácida e desencantada:

Fui o fim de Vitorino. Sem Meninão do Caixote, Vitorino não se aguentava.


Taco velho, quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas tacadas, deu-lhe uma onda de
azar, deu para jogar em cavalos. Não deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a
maconha, mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saía, voltava...
E assim, o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho, foi sumindo.
Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos.286

285
idem, p. 146.
286
MPB, p. 125.
219

É portanto de um momento futuro — posterior ao desenlace do conto, ao evento


significativo, a partida final — que narra este narrador, que optou pela sinuca, sem deixar a
família; que ficou com a família, mas fez nome na sinuca. Um aventureiro que, por ter
voltado a casa, é capaz de narrar. Um narrador, sedentário, que contempla, vitorioso, o
drama de um perdedor. Vitorino carrega em seu nome a ironia da malandragem: o sufixo
"ino", diminutivo que qualifica Vitório, aponta para um malandro capaz de vitórias no
diminutivo. Que termina apagado, ―sumindo‖.
Meninão do Caixote, por sua vez, é atirador, bárbaro, cobra, um taco, mas ainda é
um Meninão, taco novo, constatando a queda do taco velho. O protagonista é Meninão do
Caixote, como indica a perspectiva privilegiada de onde ele narra (o apelido é sua
identidade, é o nome que lhe deu fama e é o título de sua história), contemplando a
decadência do velho malandro, numa mistura de regozijo e mea culpa: ―Fui o fim de
Vitorino‖.
Veremos que a história do malandro novo, cujo nome corre e que ganha fama, mas
que cogita abandonar a boemia, ganha desdobramento em Paulinho Perna Torta, conta que
guarda correspondências significativas com ―Meninão do Caixote‖.
Até aqui, os temas da hesitação entre a ordem burguesa e a boemia, entre a escola
oficial e a escola das ruas, entre o trabalho, de um lado, e a vagabundagem, a malandragem
e o crime, de outro, são temas que os contos iniciais de João Antônio visitam e revisitam,
sem que ganhem desdobramentos consequentes na ação ficcional, já que todos os
personagens destes contos iniciais, mesmo os da seção ―Sinuca‖, como vimos, apesar de
flertar com a malandragem, permanecem ligados à família e à ordem do trabalho, da
moralidade instituída e da legalidade. São personagens em processo, que não se formaram,
ainda não se decidiram entre a permanência na ordem familiar e o ingresso na esfera social,
pois não reconhecem na ordem e nos valores burgueses campos de atuação em que possam
desenvolver suas potencialidades. Nesse percurso formativo, como veremos nos próximos
capítulos, a sinuca e a malandragem vão se apresentar como universos em que os
protagonistas vislumbram aventuras e narrativas capazes de os constituir.
Como vimos no capítulo anterior, são questões que dizem respeito ao próprio João
Antônio. De certa forma, suas primeiras obras, os contos de MPB, eram já uma tentativa de
elaboração de dúvidas e inquietações que o jovem rapaz com aspirações literárias
220

transformou em matéria de ficção. Mas o autor não se restringiu a uma reinvenção ficcional
de suas dilacerações pessoais — o que já seria algo extraordinário, diga-se. Nos contos
mais longos, João Antônio fez mais que isso. Levou adiante, na ficção, a investigação das
histórias de rapazes de origem humilde que, inquietos e insatisfeitos, encontram na boemia,
na malandragem e no crime horizontes de existência mais ricos, tanto do ponto de vista
existencial, no nível do tema e da experiência biográfica, quanto no que se refere à forma
artística, pois que as atividades boêmias — o samba, a sinuca e as façanhas malandras e
criminosas — proporcionam aventura, experimentação de linguagem e esgarçamento dos
limites morais, legais e estéticos.
Veremos no desenvolvimento deste trabalho que as questões centrais da obra de
João Antônio, aqui colocadas em estado latente, ganham desenvolvimento em seus contos e
livros posteriores. Com maior e muitas vezes menor dimensão literária, com soluções
formais mais arrojadas, mas também mais acanhadas, o autor irá explorar temas como a
problemática inserção social dos protagonistas, as limitações morais e econômicas dos
personagens em quadro, a passagem da hesitação e da reflexão sobre o próprio destino para
uma espécie de formação malandra, que é constituída de picardia e fantasia, habilidades e
disfarces, identidade e nome de guerra. E em ―MPB‖ e ―PPT‖, o reconhecimento trágico do
caráter destrutivo e autofágico da formação malandra e da própria malandragem.
A análise do desenvolvimento desigual da obra de João Antônio mostra que a
permanência das figuras paternas como referências fortes para os protagonistas repõe o
conflito entre ação e conformismo, entre a ordem social instituída e a malandragem, entre
os limites do mundo e os limites do indivíduo.
Depois da indeterminação da busca e da hesitação que marca os personagens dos
―Contos Gerais‖ — e que marca mesmo um protagonista como ―Meninão do caixote‖,
imerso no ambiente e no universo da sinuca (a prática do jogo) e da ―Sinuca‖ (última parte
do livro de estreia de João Antônio) —, os protagonistas dos contos maiores de João
Antônio (maiores em extensão e realização artística), ―Malagueta Perus e Bacanaço‖ e
―Paulinho Perna Torta‖, elevam o dilema dos rapazes pobres a um novo patamar: o drama
da malandragem, como veremos a seguir.
221

CAPÍTULO 3

DESTINO DE MALANDRO
É VIRAR LENDA

Sobre “Malagueta, Perus e Bacanaço”


222

―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ é, como se sabe, o conto mais conhecido de João


Antônio. Em relação aos textos do autor vistos aqui anteriormente — os chamados ―Contos
Gerais‖ (primeira parte do livro Malagueta, Perus e Bacanaço) e ―Paulinho Perna Torta‖
—, o texto agora em análise apresenta duas grandes diferenças: (1) é narrado em terceira
pessoa por um narrador onisciente, que não participa da história, ao contrário das narrativas
iniciais, em que os protagonistas eram os narradores de suas próprias histórias, e (2) não
tem apenas um protagonista, mas três personagens principais, como indica o título do texto,
que nomeia os três ―malandros‖ que se unem para jogar sinuca e tentar tirar dinheiro dos
―trouxas‖, por meio da trapaça no jogo.
As aspas em ―malandros‖ e ―trouxas‖ vão aqui com propósito de, desde já, chamar a
atenção para a identidade instável dos personagens assim identificados. Não só malandros e
trouxas trocam de lado,287 alternando-se nesses papéis de acordo com a situação em que se
encontram e com quem estão se relacionando (basta lembrar o final do conto, em que os
―malandros‖ caem por não identificar no ―trouxa‖ Ricardinho um grande ―malandro‖),
como a própria condição de malandro é instável, provisória, ou melhor, é circunstancial.
Quanto a este último ponto, é como se Malagueta, Perus e Bacanaço fossem malandros
apenas no espaço do conto. Em outras palavras, seus papéis de malandros não são apenas
identidades estáveis, mas identidades em situação. Eles são malandros (ou trouxas) na
situação narrada.
O conto narra a noite de três personagens que lançam mão da malandragem
(tornando-se ―malandros‖ ou ―trouxas‖) para tentar mudar a própria condição, aproveitando
os ventos da fortuna, aquilo que eles próprios — personagens e narrador — chamam de
marés de sorte e azar. A princípio sem dinheiro, eles decidem empenhar um relógio, para
levantar algum capital, e então sair em conluio para dar um ou mais golpes e conseguir, por
meio da sinuca — jogo em que ganha o mais habilidoso, mas também o mais sortudo ou o
mais malandro —, multiplicar o dinheiro. Ao final, como se sabe, terminam da mesma
maneira como começaram: sem dinheiro, com fome e estropiados.

287
Antonio Hohlfeldt e Jesus Antônio Durigan chamaram a atenção para as inversões de papéis de malandros
e trouxas no conto na obra de João Antônio. HOHLFELDT, A. ―Para lá de Bagdá‖, prefácio a Os melhores
contos. João Antônio. 2ª edição. São Paulo: Global, 1997. DURIGAN, J. ―João Antônio e a ciranda da
malandragem‖, In: Roberto Schwarz (org.), Os pobres na literatura brasileira. op.cit., pp. 214-218.
223

Do ponto de vista da estrutura narrativa, a grande mudança em relação aos textos já


vistos, como se disse, é que ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ é narrado em terceira pessoa.
Assim, há no conto um narrador que não participa da ação. No entanto, sua empatia com os
personagens o aproxima dos protagonistas e do universo narrado, a ponto de, em alguns
momentos não sabermos ao certo quem narra e quem fala pelas palavras do narrador — se
este mesmo ou se a personagem em foco. Sobressai aqui, como talvez em nenhum outro
conto do autor, o uso do discurso indireto livre, que aproxima e confunde voz narrativa e
pensamentos dos personagens. Antonio Candido, como já dissemos, sublinhou a
capacidade do autor em irmanar sua voz à de seus personagens.288
A carga de oralidade e narratividade que informa o conto também é digna de nota.
Malagueta, Perus e Bacanaço estão o tempo todo fantasiando grandes façanhas,
relembrando jogadores e malandros famosos (ou nem tão famosos assim, pois que
conhecidos apenas naquele círculo de malandragem). Os personagens centrais estão sempre
rememorando outras histórias, ao mesmo tempo em que vivem sua própria aventura.
Bacanaço recorda a história de Sorocabana e Bacalau. Perus sonha com os jogos de Vila
Alpina. Mesmo alguns dos personagens menores se põem a contar histórias do universo da
malandragem. Não são poucos os personagens coadjuvantes: Bacalau, Sorocabana, Durão,
Lima, Calói, Teleco, Carne Frita, Silveirinha, Maria, Marli, Robertinho, entre outros.
Alguns desses participam diretamente da ação narrada no conto. Outros, entretanto, são
apenas aludidos, aparecem em histórias contadas por outros personagens, em casos
rememorados sobretudo pelos protagonistas, mas também pelos personagens secundários.
O universo da malandragem, portanto, é um universo carregado de narratividade, o
que faz com que as trajetórias dos personagens estejam o tempo todo orbitando o terreno da
oralidade, da história contada de um indivíduo a outro — o domínio do conto, mas também
o domínio do mito, da lenda e da legenda (―formas simples‖, como as define André
Jolles289: formas artísticas não consolidadas, informadas pela oralidade e pela cultura
popular), característica que a circularidade da história reforça.

288
CANDIDO, Antonio. ―Na noite enxovalhada‖. In: MPB. Como indica a nota bibliográfica do livro de
Candido onde o ensaio foi recentemente republicado, este texto foi escrito em 1995, a pedido de João
Antônio, para servir de prefácio a uma edição ilustrada de MPB, que afinal não foi editada. CANDIDO, A. O
albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p. 154.
289
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 20.
224

No entanto, apesar da tendência à lenda, à fábula e à estrutura mítica, o resultado


disso é um conto, escrito por um escritor e narrado por um narrador. Este, especificamente,
é personagem que está de fora daquele universo e, simultaneamente, muito rente à ação
narrada. Clara Ávila Ornellas recentemente chegou a formular a hipótese de que o narrador
também seja um personagem, dada a intimidade que ele demonstra com o ambiente da
sinuca, num jogo ―especular‖ entre narrador e personagens.290
Segundo nossa leitura, as alternâncias de proximidade e distanciamento do narrador
em relação aos protagonistas e ao universo da malandragem são chave de interpretação
privilegiada para o conto. Nesse sentido, no que se refere à posição do narrador e à mistura
de elementos arcaicos e modernos na estrutura da obra, o conto de João Antônio propicia
também paralelos com Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
Como veremos, uma característica que é comum tanto ao narrador quanto aos
personagens é que, todos, precisam de alguma forma usar do subterfúgio do disfarce, da
supressão de sua própria identidade e do conluio com outros malandros, o que confere à
narrativa uma dinâmica de instabilidade que é reflexo do universo social narrado e também
artifício de sobrevivência, forma de vida malandra que é necessária para sobreviver em um
contexto marcado pela violência e pela lógica da espoliação e da lei da selva — selvageria
social a que os malandros estão submetidos e na qual são também atores.
Para melhor compreender o sentido deste conto de João Antônio é importante
entender, assim, a maneira com que os três malandros se relacionam entre si e com os
demais personagens que encontram ao longo da narrativa. Mais importante ainda, talvez,
seja entender a posição do narrador no conto.
O que distingue um protagonista do outro e um personagem dos demais é a relação
de hierarquia que se estabelece entre eles: no caso dos três malandros, Bacanaço os chefia,
é o patrão do menino Perus e do velho Malagueta. Os personagens que surgem ao longo da
história podem ser trouxas ou malandros, nunca muito bem identificados, e essa
indeterminação é fundamental para a dinâmica da história e do sucesso ou do fracasso do
conluio malandro que os protagonistas estabelecem entre si. O narrador não está fora desta
dinâmica: é também parceiro dos três, pois narra a história colado ao ponto de vista dos
personagens. Porém, em certas passagens se mostra superior e distanciado, para mostrar a

290
ORNELLAS, C. O conto na obra de João Antônio. op.cit. p. 105.
225

face cruel e iludida de seus ―malandros‖, mas também a vulnerabilidade da posição social
deles, pois os malandros podem virar trouxas a qualquer momento ou sofrer a condição
inferior e frágil de malandro, nas mãos da polícia ou na dinâmica instável da ―fortuna‖.
Veremos como essas relações se dão na situação narrada.
O universo da família, tão importante nos ―Contos gerais‖ foi deslocado do centro
da ação narrada para uma área de menor destaque (a volta ao ambiente doméstico e a
reconciliação familiar vividas pelos protagonistas dos primeiros contos não estão no
horizonte dos personagens de ―MPB‖). Mas apesar de o universo da família ser apenas
aludido em ―MPB‖, as relações verticais de autoridade se mantêm. Pode-se, assim,
averiguar como a malandragem e o alargamento social que marca este conto é, na verdade,
uma consequência e um desdobramento do esquema familiar que se anunciava nos contos
iniciais do autor. Família e malandragem, assim, mantêm uma relação de correspondência,
compondo também o jogo de disfarce e dissimulação necessários para sobreviver na
situação que o conto narra.
A malandragem é apresentada, em ―MPB‖, como um estilo de vida e uma estratégia
de sobrevivência que tende à selvageria (como atestam as inúmeras designações
zoomórficas com que os personagens são identificados291), mas ela se mostra também uma
organização social com forte correspondência com a organização familiar, privada e
afetiva, com consequências e expressão literárias interessantes.
O conto formula com muita habilidade as contradições entre oralidade e escrita,
ordem burguesa e malandragem, mito e representação realista, pois que essas ambiguidades
não saltam aos olhos — antes, são disfarçadas, em estratégia malandra que está em
conformidade formal e temática com a estrutura e o sentido do texto.

Três malandros e... um narrador-personagem?

Diferentemente dos contos antes analisados, ―MPB‖ é um conto sem protagonista


definido, ou melhor, com três protagonistas em vez de apenas um. Trata-se de um

291
No conto, a designação dos personagens por nomes de bichos constitui um verdadeiro bestiário: piranhas,
cobras, baratas, coiós, mocorongos, cavalos-de-teta, crocodilo, papagaio, periquito, frangalhos. Além disso,
um dos personagens chama-se Perus. Apesar de o apelido se referir a um bairro de São Paulo, onde o rapaz
mora com uma tia, é mais um animal que compõe a galeria.
226

alargamento do universo de personagens: os protagonistas que dão título ao conto têm


como companhia um sem-número de personagens secundários, alguns que participam da
ação, outros que são referidos e mais um tanto a que outros personagens aludem.
A narrativa se constitui em função dessa partição do herói em três, que na verdade
continua sendo um (os malandros conluiados),292 e na tensão constante entre forças opostas:
a união e a dispersão dos malandros, os papéis de ―malandros‖ e de ―trouxas‖, a ―fome‖
que sentem e o ―fogo‖ do jogo, o tempo cronológico, que corre contra eles, e a necessidade
urgente, de um lado, de arrumar ―parceiros‖ de jogo para conseguir dinheiro e, de outro, a
atemporalidade das grandes histórias da malandragem, que permanecem na memória, nas
lendas de malandros famosos e nos ―contos‖ que os boêmios contam uns para os outros.
Como bem observa Simone Paulino, diferentemente dos contos iniciais, em ―MPB‖
―as personagens passam a ser mobilizadas e se deslocam pelo espaço ficcional da cidade,
não mais por um mal-estar difuso que não sabem nomear, mas por necessidades concretas e
prementes como a fome e a falta de dinheiro‖.293
A condição de penúria social e marginalidade, associada à circularidade da história,
já foi apontada, com muita precisão, por Vima Lia Martin, que destaca o caráter
paradigmático da narrativa para o universo da malandragem que descreve:

A história apresenta claramente um caráter cíclico: começa e termina no mesmo lugar — a


Lapa — e, ao seu final, os três malandros se encontram na mesma situação de carência e desamparo
com que iniciaram sua peregrinação pela cidade. Desse modo, as aventuras desditosas vividas pelos
protagonistas adquirem uma dimensão paradigmática, podendo ser estendidas a outros malandros
como eles, que têm em comum a origem pobre e a condição marginal caracterizada sobretudo pela
294
recusa ao trabalho formal.

O conto narra uma história protagonizada por três personagens, como indica o título
do texto. São três homens, de idades diferentes, distintas fases da vida: um rapaz, Perus, um
velho, Malagueta, e um homem adulto, Bacanaço. Todos eles, como se nota, são tratados
292
Simone Paulino dos Santos formulou muito bem essa alternância de foco dos três malandros vistos em
conjunto para os personagens vistos individualmente: ―do três ao um, do um ao três‖, ―um por todos‖, ―todos
por um‖, ―ninguém por nenhum‖. SANTOS, S. Nas esquinas do desejo. Um estudo do tema da busca nos
contos de João Antônio. Dissertação de mestrado em Letras. FFLCH-USP, 2009.
293
SANTOS, S. op.cit., p. 24.
294
MARTIN, V. Literatura e marginalidade: um estudo sobre João Antônio e Luandino Vieira. São Paulo:
Alameda Editorial, 2008, pp. 132-133.
227

não por seus nomes mas pelos apelidos.295 Eles se encontram num boteco da Lapa e, em
conluio, saem, juntos, pela noite de São Paulo para jogar sinuca. Fazem o seguinte circuito:
Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros, Lapa. À medida que avançam pelas
ruas da cidade, deslocando-se por esses bairros da zona Oeste e pelo centro de São Paulo (a
Cidade), os três protagonistas encontram outros personagens, que compõem um universo de
boemia, prostituição e crimes. A sinuca é a atividade que sobressai nesse panorama, pois é
uma maneira ardilosa — e não criminosa — de arranjar dinheiro fácil.
Penúria social e caráter cíclico, fechado, da narrativa fazem com que o universo
noturno do conto ganhe autonomia, como se estivesse apartado do polo diurno e ―positivo‖
da sociedade, isto é, o mundo do trabalho, das ―famílias‖ e da moralidade convencional —
e até de nós, leitores, que não fazemos parte do mundo narrado.
Os movimentos do narrador, de apresentação e descrição de personagens e ação
narrada, porém, obedecem a um interessante jogo de aproximação e distanciamento, em
relação aos protagonistas, e de alternância entre euforia e melancolia no que diz respeito
aos estados de espírito destes e ao ritmo das ações. Este movimento do narrador inclui, por
assim dizer, o leitor nessa dinâmica, pois joga com os sentimentos de empatia e repulsa que
estabelecemos com os personagens. É como se o narrador incorporasse, também ele, um
comportamento próprio da malandragem, que exige posições móveis e ambíguas, e
estivesse também ele submetido à fortuna, isto é, às marés de sorte e azar, alternando
momentos de otimismo e de confiança com períodos de tédio e desalento.
Vejamos como isso se dá, primeiro na tarefa de apresentação dos protagonistas.
Os dois primeiros personagens a surgir em cena são Bacanaço e Perus. O conto tem
início com a ação em desenvolvimento. Num salão de sinuca da Lapa, Bacanaço tem os
sapatos polidos por um engraxate, e logo encontra o jovem Perus.

O engraxate batucou na caixa mostrando que era o fim.


Bacanaço se levantou, estirou uma nota ao menino. Os olhos dançaram no brilho dos
sapatos, foram para as cortinas verdes.

295
A ausência dos nomes de registro e a adoção de apelidos ou nomes de guerra retoma os temas da fama, do
―nome que corre‖, do tamanho e da identidade, que já apareceram nos contos autobiográficos e que veremos
retornar, com mais força, em ―PPT‖. Sobre a nomeação dos três malandros por seus apelidos, Clara Ávila
Ornellas observa que isso reforça a inserção dos personagens na ―zona de exclusão social‖. ORNELLAS, C. O
conto na obra de João Antônio, op.cit. p. 122. A autora também chama a atenção para a falta de moradia dos
personagens, tema do qual também trataremos no próximo capítulo.
228

Vestido de branco, com macio rebolado, Bacanaço se chegou:


296
— Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou está a passeio?

Nas linhas iniciais do conto é o malandro adulto quem ganha a primeira descrição,
como a indicar a proeminência deste personagem, apontando assim para um certo
protagonismo de Bacanaço. Desde as primeiras linhas do conto, como se vê no trecho
acima, as descrições de Bacanaço fazem dele um personagem privilegiado e dotado de
autoridade e elegância. Ele tem dinheiro para cuidar de seus sapatos. Veste branco, o traje
típico do malandro. Seus olhos ―dançam‖ ao aprovar o brilho que os sapatos ostentam
depois do serviço do engraxate. O ―macio rebolado‖ indica que ele anda com desenvoltura
e jogo de cintura, o que se confirma com a abordagem que em seguida ele fará a Perus,
interpelando o outro personagem. Diz o narrador que Bacanaço ―se chegou‖ ao malandro
mais novo, o que sugere uma proximidade física que, desde já, anuncia a intimidade e o
conteúdo afetivo, quase erótico, que pauta a relação entre os dois malandros.
A apresentação de Bacanaço, assim, desde o começo o instala em um lugar de
destaque e proeminência. É o primeiro personagem a aparecer, e é descrito de maneira a
reforçar sua vaidade e confiança: a maneira cuidadosa de vestir, a arte de se movimentar
com rebolado macio de malandro, os olhos que dançam e ecoam o brilho dos sapatos, a
desenvoltura e a superioridade com que ele trata os outros dois personagens, o engraxate e
Perus.
O narrador desde as primeiras linhas o contrapõe a duas figuras frágeis, menores e
mais jovens que ele. Primeiro, ao engraxate, um ―menino‖, a quem Bacanaço estende uma
nota como pagamento pelo brilho proporcionado aos sapatos. E depois, a Perus, também
um ―menino‖, que o malandro adulto vai abordar assim que o serviço do outro menino, o
engraxate, terminou. O contraste com Perus, como logo o leitor verá na sequência da
narrativa, acentua a posição de autoridade e protagonismo de Bacanaço, apelando à empatia
do leitor, convidado a ver em Bacanaço um exemplo bem-sucedido e folgazão de malandro
maduro.
O próprio nome do personagem, aliás, de certa forma já indicava a constituição de
um malandro com conotações, a princípio, positivas. Este personagem, indica seu apelido, é

296
ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4ª edição. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 149. Esta é a
edição que serve de base para este trabalho, aqui citada como MPB.
229

bacana, isto é, bom, amistoso e, como diríamos hoje, ―descolado‖. O sufixo ―aço‖,297
aumentativo que reforça as características citadas e ainda acrescenta a resistência do metal,
sugerindo uma constituição maciça e dura, faz do personagem, neste momento inicial, o
protagonista dotado de força e poder, aquele que conduz a ação e concentra as atenções e
expectativas do leitor.
Quando Perus entra em cena, o contraste que se anunciava entre Bacanaço e o outro
personagem, o engraxate, é reafirmado. Bacanaço chama o interlocutor de parceirinho, no
diminutivo, e pergunta ―Está a jogo ou está a passeio?‖. Perus é apresentado, então, sem
responder ao outro, mas, ao contrário, retraindo-se:

O menino Perus encolheu-se no blusão de couro. Os dedos de Bacanaço indo, vindo,


atiçando. Desafiavam.
— Está a jogo ou a passeio?
Calado. O anelão luzia no dedo do outro e o apequenava, largava-o de olhos baixos,
desenxabido. O menino Perus chutou para longe uma ponta de cigarro, arreou no banco lateral. Três
dedos enfiaram-se nos cabelos.
298
— Que nada! Tou quebrado, meu — os dedos voltaram a descansar nos joelhos.

Perus é interpelado por Bacanaço e se encolhe, recusando o desafio que o malandro


mais velho lhe propõe. Ao final do trecho, ele dirá que está ―quebrado‖, sem dinheiro. Mas
o recuo do menino não se deve apenas à realidade concreta, de falta de capital para o jogo.
Logo aparecem o sentimento de inferioridade e a falta de desenvoltura de Perus, em
oposição ao comportamento de Bacanaço. A caracterização de Perus, assim, se dá em
contraste com o outro malandro, mas também indica um comportamento menos impetuoso,
mais retraído, e isso se dá não apenas em relação à atitude desafiadora e incisiva de
Bacanaço. Perus, como se verá no desenvolvimento, é um rapaz imaturo, um malandro que
ainda não se formou. Apesar de ser um bom taco, não adquiriu outra capacidade essencial:
a desenvoltura verbal, a ―charla‖, a arte de falar e de narrar.

297
Simone Paulino dos Santos já chamou a atenção para a composição do sufixo ―aço‖ no nome do malandro.
SANTOS, S. Nas esquinas do desejo. Um estudo do tema da busca nos contos de João Antônio. op.cit.
298
MPB, p. 149.
230

Neste primeiro momento, porém, é interessante notar como a relação entre os dois é,
simultaneamente, de identificação e de contraste. Bacanaço e Perus são parceiros que já se
conhecem, companheiros de jogo com certa experiência conjunta.

Avistavam-se todas as tardes, acordados há pouco ou apenas mal dormidos. Dois tacos
conhecidos e um amigo do outro não pretendem desacato sério. Os desafios goram, desembocam
num bom entendimento. Perus e Bacanaço, de ordinário, acabavam sócios e partiam. Então,
conluiados, nem queriam saber se estavam certos ou errados. Funcionavam como parelha fortíssima,
como bárbaros, como relógios. Piranhas. Lapa, Pompeia, Pinheiros, Água Branca… Ou em qualquer
muquinfo por aí, porque todo muquinfo é muquinfo quando se joga o joguinho e se está com a fome.
299
Negaça, marmelo, trapaça, quando iam os dois. Um, o martelo; o outro era o cabo.

O narrador passa a apresentar Bacanaço e Perus como uma dupla, como ―amigos‖ e
―sócios‖. Conluiados, isto é, combinados, em sociedade, formando uma parceria, os dois
personagens tinham o hábito de percorrer os ―muquinfos‖ onde ―se joga o joguinho‖. Se
individualmente os dois poderiam se assemelhar aos ―vagabundos‖, aos ―viradores‖, aos
―erradios‖ (palavras do narrador) que frequentavam o salão — o mesmo salão onde eles se
encontram —, quando se unem os dois malandros passam a se comportar como ―parelha
fortíssima‖. Juntos, eles podem ser afinal, trapaceadores, fazer ―marmelo‖, ―negaça‖.
Juntos, ―martelo e cabo‖, então, eles se tornam malandros, o que não eram capazes
de se tornar sozinhos. Mesmo Bacanaço, tão típico em seu traje de malandro — o branco, o
sapato brilhante, o anelão no dedo —, sem dinheiro não é capaz de se lançar ao jogo e,
assim, não passa, por ora, de um sofredor, um trouxa. Em resumo, sozinho e sem dinheiro
ele está impedido de ascender à condição de malandro na sinuca. Voltaremos a isso ao final
deste capítulo, no item ―Malandragem: tipicidade e situação narrada‖.
Assim, como estão sem dinheiro, eles não veem perspectiva de mudança daquela
situação. Sem capital, estão impedidos de se lançar no jogo. ―Sem dinheiro‖, dirá o
narrador, ―o maior malandro cai do cavalo e sofredor algum sai do buraco‖. A frase, com
seu teor de dito popular, de sentença e sabedoria colhida na vida malandra, é sem dúvida
eco do universo da malandragem.

299
MPB, p. 149-150.
231

Insinua-se, portanto, talvez pela primeira vez no conto, o uso do discurso indireto
livre. O narrador, até então, restringia-se a descrever e apresentar os personagens e suas
ações. Mas agora ele parece de fato colado ao mundo narrado, ao estado de espírito e aos
pensamentos de seus personagens. A frase seguinte mantém o mesmo teor de ditado e de
sabedoria popular: ―Esperar maré de sorte? A sorte não gosta de ver ninguém bem.‖
O narrador do conto vai aos poucos apresentando e desvelando as identidades dos
personagens da história, ao mesmo tempo em que essas mesmas identidades vão ganhando
complexidade à medida que o conto se desenvolve. O discurso indireto livre aparece nos
momentos de individualização de cada um dos protagonistas e serve ao narrador como
processo pelo qual ele particulariza os comportamentos e ocupações dos personagens.
Também à medida que a narrativa caminha o narrador apresenta aspectos da intimidade e
da vida pessoal de cada um dos personagens, o que permite descortinar a existência desses
malandros para além dos limites temporais e espaciais da ação narrada.
Bacanaço, nestes primeiros momentos do conto, ainda na primeira parte, é o
personagem que recebe mais atenção do narrador, desde as primeiras linhas, como vimos.
Ainda quando os dois estão sem a companhia de Malagueta, o qual logo aparecerá
no salão, Bacanaço e Perus se põem a ―brincar‖, ―com a boca e com as pernas, indo e vindo
e requebrando‖, num jogo de simulação de briga que lembra a capoeira e o duelo
(Bacanaço chega a puxar a navalha, com a intenção de ―podar‖ o menino). Além dessa
brincadeira de malandros, para fazer o tempo passar enquanto o jogo de sinuca não ―ferve‖
no salão, os dois juntos se põem a ―contar façanha‖, lembrando aventuras de outros
parceiros.
Como estão impedidos de agir, de se lançar à aventura, eles se põem a contar.
Bacanaço lembra uma façanha de outros malandros e trouxas. O narrador passar a contar
esta aventura que está fora de cena, do presente da ação narrada. Agora evocada, ela
pertence ao universo de histórias da malandragem.
Depois de relembrar a história do ―coió-sem-sorte‖ Sorocabana e do ―malandro‖
Bacalau, faz-se ocasião de retomar a descrição de Bacanaço, que afinal era quem contava a
história, a façanha protagonizada pela dupla rememorada. Agora, a descrição do malandro
adulto ganha finalmente contornos mais definidos, ainda tendo a comparação com Perus
como parâmetro: ―Bacanaço era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da caixeta,
232

do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de


Bacanaço era uma para cada dia. Vida arrumada. De mais a mais, Bacanaço tinha negócio
com os mascates, aqueles que vendiam quinquilharias e penduricalhos nas beiradas da
Lapa-de-baixo, e era um considerado dos homens do mercado (...)‖.
A descrição de Bacanaço é feita de maneira objetiva pelo narrador, ainda que o
vocabulário e a pormenorização das atividades do malandro indiquem, mais uma vez,
grande intimidade com o assunto e o personagem. A descrição segue, destacando a força e
a valentia de Bacanaço, para depois contrabalancear essas características, ao dizer que o
malandro também era capaz de grande amizade e afeição: ―Agora, se gostasse, gostava. Era
igual, amigão. Ninguém botasse a mão em amigo seu. Porque seria como mexer com sua
cara ou bulir com amiga sua. Assim era Bacanaço com o menino Perus. E por isso o
menino o admirava.‖
O foco permanece em Bacanaço, mas o ponto de vista desloca-se agora para o
menino, indicando que a afeição e a admiração que o malandro jovem sente é expressa por
um narrador que também é capaz de se aproximar de Perus. É como se o narrador
deslizasse de perspectiva em perspectiva, em movimentos sutis, que o permitissem passar
do discurso indireto livre, colado ao ponto de vista de Bacanaço, para uma descrição
objetiva deste e, em seguida, mudar o foco mais uma vez, passando a expressar o ponto de
vista de Perus.
Quando ainda estão no primeiro salão de sinuca, onde a ação narrada tem início,
Bacanaço vai até a porta do estabelecimento e passa a observar o movimento das pessoas
nas ruas da Lapa. É ali que ele surpreende ―gente‖, ―gente mais gente‖, gente que ―se
apertava‖, ―gente que vem ou que vai‖, ―para a cidade ou para as vilas‖, os ―homens de
gravata‖ e os ―homens das fábricas‖. A oposição se faz entre o ambiente da sinuca e o
ambiente da cidade, entre Bacanaço e os trabalhadores, invertendo a ordem dos valores.
São os trabalhadores, e não ele, o malandro, que ―se apertam‖, que vão e vem, da cidade
para as vilas, parecendo não saber aonde ir. É mesmo o momento do ―lusco-fusco‖, como
assinala o narrador.
Outros personagens do bairro movimentado, nesse momento de saída do trabalho,
surgem na descrição do narrador em terceira pessoa, que a tudo registra, colado ao ponto de
vista de Bacanaço: uma cega que pede esmolas aos gritos, uma criança que chora porque
233

quer um sorvete, o barulho dos comerciantes, ―mascates‖, que dispõem mercadorias na rua
e entoam seus pregões, um casal de namorados encabulados e desajeitados, vistos ao lado
de um anúncio de venda de terrenos.
Este trecho em que Bacanaço contempla a cidade lá fora é pontuado pela
recorrência da frase ―Bacanaço sorri‖. A posição apartada do malandro parece lhe conferir
certo orgulho e soberba, contemplando a afobação dos trabalhadores, postura que o sorriso
cínico e inabalável acentua. Essa impressão se confirma quando o narrador afinal recorre ao
discurso indireto livre.

Trouxas. Não era inteligência se apertar naquela afobação da rua. Mais um pouco,
acendendo-se a fachada do cinema, viria mais gente dos subúrbios distantes. A Lapa ferveria.
Trouxas. Do Moinho Velho, do Piqueri, de Cruz das Almas, de Vila Anastácio, de… do diabo. Autos
berrariam mais, misturação cresceria, gente feia, otários. Corriam e se afobavam e se fanavam como
coiós atrás de dinheiro. Trouxas. Por isso tropicavam nas ruas, peitavam-se como baratas tontas.
Há espaços em que o grito da cega esmoleira domina. Aquela, no entanto, se defende com
inteligência, como fazem os meninos jornaleiros, os engraxates e os mascates. Com inteligência. Não
300
andam como coiós apertando-se nas ruas por causa de dinheiro.

Se a proximidade do narrador com Bacanaço já se insinuara anteriormente — em


sua descrição de ―malandro fino‖ e no uso do dito popular quanto à sorte, mantendo a
assertiva num estado de saber compartilhado, de conhecimento geral —, o trecho acima
indica que o narrador também é capaz de ir além e abrir espaço para o ponto de vista do
malandro adulto, identificando-se totalmente com ele.
Alternam-se, assim, descrições mais objetivas (como a que descreve o grito da cega,
destacado da algaravia das ruas) e frases que traduzem o ponto de vista do malandro.
Bacanaço enuncia um juízo de valor pessoal acerca dos trabalhadores: são trouxas, otários,
gente feia, baratas tontas. Aqui, o narrador acolhe a visão de Bacanaço de que os
trabalhadores são trouxas que vivem se afobam e se fanam como coiós, ―apertando-se nas
ruas por causa de dinheiro‖. O malandro destaca-se dessa multidão anônima, para se
colocar à parte, sentindo-se um pouco mais próximo de quem, como ele, se defende ―com
inteligência‖, como a velha cega esmoleira, os meninos jornaleiros, os engraxates e os

300
MPB, p. 156.
234

mascates. Bacanaço dá a entender que considera o trabalho correto algo alienante e pouco
satisfatório. As metáforas são sugestivas: trabalhadores formais, aqueles que cumprem
horário e se apertam nas ruas e conduções, vivem como animais desprezíveis (como
baratas), como tolos (coiós) ou como indivíduos não desenvolvidos, que podem ser
enrolados (trouxas).
Voltaremos à distinção entre malandros e trabalhadores. Por ora, é interessante
evidenciar como o narrador se porta nesse jogo de definições e identificações de seus
personagens. O narrador é o elemento narrativo que dá destaque objetivo à realidade
exterior, que está para além do espaço dos personagens, e ao mesmo tempo transmite as
impressões e os valores dos protagonistas na ação. Assim, Bacanaço vê a movimentação
geral do fim da tarde, a hora do rush, quando a jornada de trabalho se finda, e emite juízos
de valor a respeito dos personagens que a protagonizam — e paradoxalmente estão fora da
ação do conto, o que aponta para a estratégia ardilosa, malandra, do narrador.
Com Perus se passa algo parecido. A apresentação do personagem, como vimos, se
dá em situação, na relação que ele estabelece com Bacanaço, e destaca a sua retração, um
certo desânimo que tem a ver com a falta de dinheiro, mas também com a inferioridade que
o menino sente em relação a Bacanaço. Aos poucos, os contornos do personagem vão se
definindo melhor. O discurso do narrador, como apontamos, já deslizara discretamente para
o seu ponto de vista, no final da descrição de Bacanaço como malandro valentão e afetuoso,
protetor dos amigos. O narrador segue aproximando-se cada vez mais do malandro jovem
quando Bacanaço e ele se impacientam com a falta de jogo bom (jogado a dinheiro) — algo
que era comum naquele salão da Lapa, segundo registra o narrador.
Como estão acostumados a enfrentar oponentes na sinuca, valendo dinheiro,
Bacanaço passa a provocar os estudantes que estavam ali jogando apenas por jogar, por
divertimento, sem apostar para valer. O narrador, ecoando Bacanaço, os chama de
―frangalhos‖, e o malandro diz que ali só tem ―pixote‖. Perus, por seu turno, é menos
agressivo, mas o narrador dará lugar à sua frustração:

Perus encabulado. Onde andariam os trouxas, os coiós sem sorte, que o salão não tinha
jogo? Por que era assim, assim, sempre? Uma oportunidade não vinha, demorava, chateava,
aborrecia. Os castigos vinham depressinha, não demoravam não, arrasavam, vinham montados a
cavalo. E os trouxas? Noivando ou namorando, por aí, nas esquinas, nos cinemas. Ou dando dinheiro
235

a mulher, que é o que sabem fazer. Os tontos. E quando apareciam, gordos de dinheiro, otários
oferecidos, era fora de hora e era sempre outro malandro quem os abocanhava. Ele? Nem almoço
nem janta. Sinuca, grande estrepe... Pôs-se a tamborilar, lento, contando as batidas. Pensou nos
301
joguinhos de Vila Alpina.

Este trecho em que o ponto de vista de Perus e do narrador se unem tem início com
o estado de espírito de novo retraído do menino. E a maneira com que ele liga aquela
pasmaceira a um estado recorrente — ―por que era assim, sempre?‖ — mostra que o humor
deprimido do jovem malandro não é circunstancial, mas persistente. Perus é mais sofrido e
mais retraído que Bacanaço, como o narrador já indicara desde o início do conto. Neste
trecho, o discurso indireto livre reafirma essa caracterização do personagem.
O procedimento do narrador é assemelhado ao que ele já recorrera para mostrar
como Bacanaço percebe os trabalhadores se afobando e se fanando na rua. De novo, o
trecho começa com uma frase curta, cujo sujeito é o personagem. Lá, o verbo indicava uma
ação, com discreto cinismo, que aponta para um personagem ativo e senhor de si:
―Bacanaço sorri‖. Mas aqui, a frase é nominal, ―Perus encabulado‖, e a timidez, a retração,
a encabulação são sublinhadas pela forma verbal flexionada, ―encabulado‖, funcionando
como adjetivo, apontando para uma evidente passividade do jovem malandro. Como se a
timidez de Perus tivesse sido imposta por alguém, como se ele sofresse a ação de ser
encabulado, isto é, tivesse sido encabulado.
Outras características desse trecho apontam para a mesma caracterização de Perus: a
incidência de perguntas, expressando dúvidas e indefinições, o uso do diminutivo
(―depressinha‖ e ―joguinhos‖), as frases nominais ou fragmentadas (―Noivando ou
namorando por aí‖; ―Os tontos‖); e as expressões de negação, impasse e falta (―nem almoço
nem janta‖, ―sinuca‖, ―estrepe‖). São todas noções que partem do personagem, de quem o
narrador traduz os pensamentos, desde as duas interrogações que seguem à primeira frase,
passando por assertivas menos indeterminadas, mas ainda bastante subjetivas (―Ou dando
dinheiro a mulher, que é o que sabem fazer‖), até chegar às duas últimas frases, que
retomam a descrição mais objetiva, para depois fechar o intervalo (―Pôs-se a tamborilar,
lento, contando as batidas‖), indicando os pensamentos de Perus (―Pensou nos joguinhos de
Vila Alpina‖).
301
MPB, p. 158.
236

Em seguida é a vez de Malagueta aparecer na história, como veremos a seguir. Mas


o narrador, ainda nesta primeira parte do conto, ―Lapa‖, voltará à caracterização de Perus,
como já o fizera com Bacanaço, para complementar o retrato do menino. Dirá que tem 19
anos e mora com uma tia em Perus, bairro da zona noroeste, periferia de São Paulo, de onde
lhe vem o apelido. Apesar de não sabermos o nome do jovem, ficamos sabendo, assim, que
ele tem uma tia — e nenhuma notícia dos pais. A tia vive com um ―amásio‖, com quem o
menino mantém relação tumultuada: ―(...) isto entorta tudo, porque o homem e ele se
atracam muitas vezes. Grudam-se, se socam, rebolam como bichos, que a coisa por bem
não vai‖.
Repete-se aqui, com Perus, o que já acontecia com os jovens protagonistas dos
primeiros contos no que se refere às figuras paternas. O pai está ausente — não se sabe se
morreu ou não — e novas figuras paternas vêm substituir o pai biológico. O amásio da tia
(esta também uma substituta da mãe) não é reconhecido como pai nem como padrasto, pois
entre os dois ―a coisa por bem não vai‖. Diz o narrador em seguida que isso acontece ―por
causa dos muitos porres do amásio da tia e da vida errada do menino‖.
Não se diz o que é a vida errada de Perus, mas o leitor infere que diga respeito à
boemia e à sua atividade de sinuqueiro. Perus vive com uma ―tia‖, que também não faz as
vezes de mãe ou madrasta, pois não acolhe o personagem como as mães dos protagonistas
anteriores. Ao contrário, deixa-o à mercê do ―amásio‖, um pai substituto que o menino não
reconhece como pai nem como tio nem, tampouco, como companheiro da tia, como
sublinha a palavra depreciativa ―amásio‖, que aponta para a relação conjugal informal, não
formalizada, não oficial.
Sem lugar em casa, portanto, Perus vai encontrar na rua as figuras paternas que lhe
orientam, acolhem e o estimulam (ainda que estes pais substitutos sejam guiados menos
pelo afeto que pelo interesse). É o caso de Bacanaço, a quem o menino admira, como já se
viu, e dos ―patrões‖ da sinuca:

O menino Perus que tem seu lugar de taco, confiança de alguns patrões de jogo caro, devido
à habilidade que na sinuca logrou desenvolver nas difíceis bolas finas, colocadas em diagonal na
mesa. O menino Perus mal e mal se aguenta — fugido do quartel, foge agora de duas polícias. A
Polícia do Exército e a polícia dos vadios.
237

Uma semana, muitas vezes, na Lapa. Nas bocas do inferno se defende, se arranja pelas ruas,
trabalha nas conduções cheias, surrupia carteiras. Deixa-se ficar e fica uma semana. A mesma
camisa, o mesmo sono, a fome de dias. A fome raiada.
Mas pensa nos joguinhos famosos de Vila Alpina.
— Quando eu der uma sorte e a vida tomar jeito.
Vestiria panos bons, iria àquele fogo. Então, iria, dissimulado, aos jogos caros de Vila
Alpina, onde corria a grana e as melhores virações da sinuca funcionavam. Vila Alpina era falada na
boca de todos os malandros. E lá Perus não era conhecido.
Malagueta propunha-lhes o conluio fantasiando grandezas. Claro que se arrumariam, eram
302
firmes nas tacadas e davam muito juízo. Se Bacanaço os chefiasse...

A irrupção de Malagueta em cena como que interrompe o devaneio de Perus. Antes


de o velho malandro propor sociedade aos dois outros parceiros, o narrador vinha
conduzindo a divagação do menino por meio do discurso indireto livre. Perus sonha com os
jogos famosos de Vila Alpina, mas sua fantasia é interrompida por Malagueta.
O movimento, não nos deixemos iludir, é presidido pelo narrador, claro. O jovem
Perus é retratado como um bom jogador de sinuca, especializado nas tacadas finas, e bem
considerado pelos patrões de jogo caro. No entanto, o narrador, após chamar a atenção para
a habilidade do menino e para dizer que ele tem seu ―lugar de taco‖, na frase seguinte
reafirma a condição de precariedade e insegurança material em que vive o personagem:
―mal e mal se aguenta‖, passa fome, furta carteiras nas conduções, veste a mesma camisa
durante uma semana inteira.
Perus fugiu do quartel, e continua em fuga. Agora, foge de ―duas polícias‖, a do
Exército e a dos vadios. A ambiguidade da atuação da polícia, que ganhará desdobramento
quando os malandros, mais adiante na ação narrada, encontram o policial Silveirinha, já se
esboça aqui. A polícia do Exército tem seus motivos para buscar Perus, pois trata-se de um
desertor, que acaba de fugir do serviço militar (lembre-se que Perus tem 19 anos). A
―polícia dos vadios‖ (civil ou militar?), isto é, a polícia comum, digamos, também tem seus
motivos para vê-lo como suspeito, pois o menino é batedor de carteiras e jogador de sinuca,
um malandro de ―vida errada‖. Mas o narrador diz que Perus foge é da ―polícia dos
vadios‖, o que sugere que os vadios têm a sua própria polícia. Voltaremos a essa discussão

302
MPB, p. 160.
238

sobre o caráter policial da malandragem, aqui insinuado pelo narrador, e sobre o


embaralhamento das identidades de malandro e polícia.
O trecho acima revela ainda outra contradição inerente à condição de malandro
jogador de sinuca. Apesar de Perus ser bom no jogo e ter seu lugar de taco, não pode
ostentar sua habilidade. Ao contrário, para se dar bem nos jogos de Vila Alpina, que são o
seu sonho, ele precisa dissimular sua capacidade como jogador. Seu sucesso nos jogos
caros de Vila Alpina depende, justamente, de entrar no jogo incógnito — ―lá Perus não era
conhecido‖.
Perus é bom jogador e considerado dos patrões do jogo. Ao mesmo tempo, precisa
dissimular seu talento e procurar jogo onde ele passe anônimo e incógnito, de forma que
possa, por meio da surpresa e do segredo — ao esconder suas capacidades, para no
momento certo dar o bote, mostrar os dentes de ―piranha‖, partindo para cima do adversário
—, vencer a partida, dentro das regras ou por meio do ―marmelo‖. O jogo de identidade e
dissimulação, mérito e trapaça, traduz o modo de vida malandra e seus limites.
O trabalho do narrador, assim, vai constituindo os personagens paulatinamente, à
medida que a ação transcorre. Alternando descrições objetivas e o mergulho na consciência
dos protagonistas, ele aos poucos revela o que cada um faz e pensa. À medida que o retrato
dos malandros ganha corpo, o narrador também procura apontar para as contradições
inerentes às práticas e à condição da malandragem, ainda que dissimuladamente — à
malandra —, de dentro desse mesmo universo.
Essa proximidade entre narrador, mundo narrado e personagens é a característica
que, ao lado da estilização da oralidade, Antonio Candido destaca na obra de João Antônio.
A escrita do autor engendraria, segundo o crítico, um mundo próprio, ―uma segunda
natureza no reino da transfiguração criadora‖:

Prolongando a tradição estilística que remonta a Émile Zola, João Antônio inventou uma
espécie de uniformização da escrita, de tal maneira que tanto o narrador quanto os personagens, ou
seja, tanto os momentos de estilo indireto quanto os de estilo direto, parecem brotar da mesma fonte.
Aqui não há, com efeito, um narrador culto que reserva para si o privilégio da linguagem de outra
esfera através da imitação de sua linguagem irregular, que serve para manter a distância. Longe
disso, narrador e personagem se fundem, nos seus contos, pela unificação do estilo, que forma um
lençol homogêneo e com isso define o mundo próprio a que aludi. Não se trata, portanto, de mais um
autor que usa como pitoresco, como coisa exterior a si próprio, a fala peculiar dos incultos. Trata-se
239

de um narrador culto que usa a sua cultura para diminuir as distâncias, irmanando a sua voz à dos
marginais que povoam a noite cheia de angústia e transgressão, numa cidade documentariamente
303
real, e que no entanto ganha uma segunda natureza no reino da transfiguração criadora.

Narrador e personagens de fato se irmanam em uma linguagem comum, a ponto de


muitas vezes não sabermos ao certo quem fala pela voz do narrador, se ele próprio, se o
personagem em foco. Interessante é que essa uniformização da linguagem move a ação
narrada e aos poucos delineia os personagens. A descrição das personalidades dos
personagens e a própria constituição destes se dá em processo e em situação, o que permite
ao narrador ir dando a eles feições mais elaboradas e definidas, mas também apontar para
os limites e as contradições da vida malandra.
Assim como já fizera com Bacanaço e Perus, o narrador fará algo semelhante com
Malagueta: vai apresentar o malandro velho em situação — sua aparição se dá integrada à
ação narrada —, para aos poucos ir lhe definindo melhor os contornos da personalidade,
seu comportamento e sua condição.
É assim que o terceiro malandro surge na história:

Capiongo e meio nu, como sempre meio bêbado, Malagueta apareceu. No pescoço
imundo trazia amarrado um lenço de cores, descorado; da manga estropiada do paletó balançavam-
se algumas tiras escuras de pano.
Bacanaço lhe buliu:
— Quer jogo, parceiro velho?
O velho se escapuliu, foi procurar o último banco do salão, o seu lugar, e sentou. Era um
velho acordado e gostava de explicações. Dali tudo via, pernas cruzadas, na dissimulada, como
quem não visse nada. E ali embiocado não o enxergavam bem.
Bacanaço e Perus lhe voltaram.
— Está a jogo ou a recreio, meu?
Malagueta os olhava. Bacanaço boquejando, largando desafios e bazófias. Perus no
acompanhamento, feito um dois de paus. ―É‖, pensou, ―quando vocês iam no moinho buscar fubá,
eu, cá no meu quieto, já estava de volta com o bagulho empacotado‖. E soltou para si o risinho
canalha com que os malandros entendem, reconhecem. Risinho meio parado, metade na boca,
metade nos olhos. Pela charla que diziam e pela manha com que vinham... Ali não havia dinheiro.

303
CANDIDO, Antonio. ―Na noite enxovalhada‖, in MPB, pp. 10-11.
240

Então o velho se levantou, gingou nos seus sapatos furados e piscou o olho raiado de
sangue.
304
— A gente se junta, meus. Faz marmelo e pega os trouxas.

A descrição do malandro mais velho é a de um malandro doentio, desfazendo-se,


como a roupa que ele veste. Malagueta aparece ―capiongo‖, manquitolando, meio bêbado.
A figura desengonçada e descomposta parece que pode tombar ou se despedaçar a qualquer
momento. Usa um lenço gasto, de cores que já se apagaram e deixaram apenas um vestígio
do que foram um dia — talvez como o próprio malandro, hoje velho, seja o que restou de
um malandro de outros tempos. A roupa, que é pouca, pois ele está sempre ―meio nu‖, está
se desmilinguindo: a manga do paletó é estropiada, e a camisa, que ele veste por debaixo, é
um apanhado de tiras de pano escuras, dando ideia de uso e sujeira. Sapatos furados e o
olho raiado de sangue completam a descrição de um malandro maltrapilho e alquebrado,
enfermiço.
No entanto, Malagueta sobrevive no mundo da malandragem por deter certa
sabedoria adquirida naquele mesmo universo, por conhecer o comportamento típico dos
malandros. Diz o narrador: ―Era um velho acordado e gostava de explicações‖, destacando
uma esperteza e uma inteligência que resistem ao tempo e à decadência física do
personagem, permitindo que ele continue a frequentar os salões de sinuca. Além da
esperteza de malandro ―acordado‖, Malagueta parece ter incorporado o modo de vida da
malandragem, pois adota a dissimulação como conduta. Acossado pelos dois outros
malandros, ele consegue escapulir e procura o último banco do salão para se acomodar, um
ponto privilegiado, de onde pode ver tudo e ao mesmo tempo se preservar, ―na
dissimulada‖, como quem não visse, e ―embiocado‖, não fosse visto.
A malandragem de Malagueta permite, assim, transformar em trunfo, em vantagem,
a decadência física que o tornou um malandro maltrapilho e alquebrado. Malagueta é um
malandro que se esvai, magro e decrépito, mas ―acordado‖ e sorrateiro, capaz de ver sem
ser visto, como se fosse um espectro de malandro. Mas, se preciso, é também capaz de se
mostrar ―acordado‖, apelando à identificação de seus iguais. Sua sabedoria virou modo de
vida, marcando o corpo: capiongo, manco, ele cruza as pernas para sumir e sorri como

304
MPB, pp. 158-159.
241

malandro: pela metade, um ―risinho canalha com que os malandros entendem,


reconhecem‖. É um riso ambíguo, ―meio parado, metade na boca, metade nos olhos‖.
Sinal de sua esperteza de malandro ―acordado‖ é o fato de que parte justamente de
Malagueta a ideia do conluio entre os três jogadores. É dele também a sugestão de que
Bacanaço chefie a empreitada, o ―marmelo‖ para pegar os ―trouxas‖, sugestão que o
narrador apresenta por meio da frase incompleta que já tivemos oportunidade de ver, no
final de uma descrição de Perus: ―Malagueta propunha-lhes o conluio fantasiando
grandezas. Claro que se arrumariam, eram firmes nas tacadas e davam muito juízo. Se
Bacanaço os chefiasse...‖.
Malagueta deposita esperanças no conluio, pois assim como os outros está sem
dinheiro. Vive como um indigente, aliás, pois o narrador voltará a descrever a conduta
recente do velho, que se faz passar por mendigo. Para comer alguma coisa, roubara uma
maçã no mercado, e quase foi pego pelos guardas. Depois, esmolou, estendendo ―a mão que
roubou a maçã‖, ―com a aquela cara de sofredor, de Jesus Cristo‖. A identificação com
Jesus Cristo e com a vida de sofredor aponta mais uma vez para certa empatia do narrador e
para a inscrição do conto, pelo menos do personagem, em um pano de fundo social que
guarda também ligação forte com a religião e com a moralidade convencional.305
Reunidos os três malandros e surgida a ideia de conluio com que eles podem,
finalmente se lançar ao jogo, permanece o impasse: sem dinheiro, não podem fazer nada. O
dinheiro é necessário para entrar na ciranda da malandragem, na roda da fortuna, a fim de
mudar a ―maré de azar danado‖. Na falta do dinheiro, eles se entretêm fantasiando,
imaginando e contando façanhas.
O narrador, agora, se põe a descrever a ação dos três, em conjunto:

Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam marotagens, conluios, façanhas,


brigas, fugas, prisões — retratos no jornal e todo o resto —, safadezas e tramoias; arregos bem
arrumados com os caguetes, trampolinagens, armações de jogo que lhe dariam um tufo de dinheiro;
patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos longínquos, lá pelos longes dos
subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela polícia; principalmente imaginavam jogos
caros, parceirinhos fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento

305
Além disso, Frye associa Cristo ao arquétipo do ―incongruentemente irônico‖, a vítima inocente de todo,
excluída da sociedade humana, a quem se tenta transferir uma culpa que, assim, lhe confere ―algo da
dignidade da inocência‖. FRYE, N. Anatomia da crítica. op.cit., p. 48.
242

funcionavam. E os três comendo as bolas, fintando, ganhando, beliscando, quebrando, entortando,


306
mordendo, estraçalhando...

A aventura que os chama, aos malandros, é de natureza vária. São ―marotagens,


conluios, façanhas, brigas, fugas, prisões, safadezas, tramoias, arregos, trampolinagens,
armações de jogo, marmelo, traição, jogos longínquos‖. A diversidade de ações e situações
aponta para uma variação excepcional na vida da malandragem, que promete, a princípio,
liberdade, imprevisibilidade, risco e, de novo, aventura. Entende-se por que a malandragem
fascina o narrador: a conduta malandra é sinônimo de ação. Outra imagem chama a
atenção: essa variabilidade de procedimentos malandros está a serviço de uma esperança e,
até, de uma ilusão: arrumar um tufo de dinheiro. A miragem do dinheiro fácil, que pode ser
obtido sem esforço, por meio da esperteza e da habilidade para o jogo, move os malandros
para uma aventura que tem por essência a indeterminação e a dúvida, que pode conduzir à
―fortuna‖, ao dinheiro fácil e grande, por conta da ―fortuna‖, o acaso, as marés de sorte ou
azar — bem diferente da rotina do trabalho e da danação do crime. A malandragem, porém,
assemelha-se ao crime em sua dimensão demoníaca. Como diz o narrador, expressando a
imaginação dos três protagonistas, os malandros pensavam em jogo em bocas do inferno
nem conhecidas pela polícia. O inferno da malandragem, portanto, pode ser um inferno
isolado, longínquo, desconhecido até da polícia, ao mesmo tempo que se imiscui com a
polícia. Em outras palavras, a malandragem é algo maior que a polícia, que malandros e
trouxas, ela é um funcionamento que envolve e pressupõe a ação de todos, mas que se
expressa, muitas vezes, sem que todos os elementos estejam em situação.
A ―traição‖ aos ―patrões caros‖, então, é apenas uma consequência dessa pequena
mas significativa amostra do que a malandragem é capaz, tanto do ponto de vista da
façanha quanto da própria essência do seu funcionamento: a ilusão e o disfarce, que
ensejam o golpe, com definições variadas (como marotagens, conluios, façanhas, safadezas,
tramoias; arregos, trampolinagens, armações, marmelo, traição, jogos). A malandragem, de
certa forma, depende de uma carnavalização permanente, em que os papéis sociais se
invertam reincidente e continuamente.307

306
MPB, pp. 161-162.
307
Nesse sentido a malandragem em João Antônio ganha na sinuca um retrato ritualizado das relações e dos
conflitos sociais, no contexto histórico dado. Em certos momentos, ela parece abrir portas para que as
243

Tudo isso é façanha e gera notícia, é motivo para ―retratos no jornal e todo o resto‖.
A malandragem, como golpe e inversão de papéis, com desdobramentos imprevistos, é
acontecimento, aventura, e é fama, história e imagem. Ela pressupõe a façanha e a
narrativa, as ações e as histórias dessas ações. Não apenas na dinâmica da ação, isto é, no
golpe, mas também na dinâmica da narrativa a malandragem envolve a todos os atores em
jogo, sem que precisem, de novo, estar em cena.
A necessidade de deslocamento incessante, que os jogos longínquos reafirmam,
indica que a malandragem é a ocupação dos erradios, dos viradores, dos aventureiros, dos
pingentes sem eira nem beira — marginais à margem, mas dependendo do centro,
vagabundos que dependem de trabalhadores, ―pingentes‖ dependurados nos vagões do
progresso.
Mas a narrativa, aqui, se constrói de uma perspectiva bem localizada. Em ―MPB‖, o
narrador escolhe o ângulo dos malandros. Ele se aproxima dos três personagens, em
conjunto, conluiados, prestes a ganhar a noite de São Paulo para se lançar na aventura da
sinuca. ―Em pensamento funcionavam‖ é a frase que chama a atenção para o aspecto
imaginativo e competente da atividade de malandros. Pois se ainda estão ―quebrados,
quebradinhos‖, é apenas a fantasia que lhes proporciona algum consolo, projetando-os
juntos a um estágio de sucesso potencial. Aqui, o narrador está colado ao ponto de vista dos
malandros, retratando-os como um corpo único, e se expressa de maneira confiante,
simpático às fantasias dos personagens.
Mais à frente, à medida que a narrativa avança, mesmo os vendo em conjunto, o
narrador habilmente dará espaço para a individualidade de cada um. O recurso preserva a
identidade de cada protagonista, destacando as características recorrentes dos personagens,
aquilo que faz deles tipos,308 mas também personagens mais complexos. Ao mesmo tempo,

inversões se tornem libertadoras, no sentido de produzir protagonistas que se elevem, ganhem autonomia e se
entronizem como grandes jogadores, malandros que possam ser aceitos, inseridos, ainda que mantenham sua
conduta ―bárbara‖, erradia e ressabia em relação aos valores burgueses. No entanto, João Antônio também
encena os limites da carnavalização da malandragem, como atesta o final de ―MPB‖ e como veremos também
em ―PPT‖. Sobre a carnavalização e os ritos de inversão social ver BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987; e DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
308
Sobre a definição de personagem e a distinção entre tipo e personagem complexo, ver CANDIDO, Antonio
(org.). A personagem de ficção. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1976, e FORSTER, E.M. Aspectos do
romance. Trad. de Sérgio Alcides. 4ª edição revista. São Paulo: Globo, 2005.
244

o discurso indireto livre que ilumina a interioridade de cada um expressa as diferenças entre
os três personagens e também os desacordos e descompassos entre eles.

Haviam andado na noite quente! Bilhar após bilhar, namoraram mesas, mediram, estudaram
jogos lentamente. Não falavam não. Picava-lhes em silêncio, quieto mas roendo, um sentimento
preso, e crispados, um já media o outro. Iam juntos, mas de conduta mudada e bem dizendo, já não
309
marchavam em conluio.

Iam juntos, mas separados. Assim, o narrador prepara aos poucos a situação final da
narrativa: o conluio entre os três personagens encontra um limite e entra em colapso.
Os exemplos de discurso indireto livre se sucedem e não seria producente apontar
todos aqui. O interessante é que, por meio desse recurso, o narrador aprofunda a
representação de seus personagens e confere tintas fortes ao drama individual de cada um.
Em sintonia com a estratégia e o modo de vida malandros, mas também com
distanciamento eventual, o narrador vai revelando as faces mais sombrias dos personagens,
e em alguns pontos da narrativa se coloca entre os malandros, mas também acima deles e,
simultaneamente, apartado de seus personagens.
De início aliado ao ponto de vista dos protagonistas, o ponto de vista do narrador
vai se dissociando, a princípio de maneira sutil, dos personagens. Como vimos acima, na
passagem por Perdizes, o narrador os flagra em desacordo com o espaço e desconfortáveis
consigo próprios. A passagem marca um primeiro distanciamento do narrador, ainda que
este se mantenha por ora muito afinado ao estado de espírito dos malandros, talvez até
solidário com eles, pois o narrador ecoa uma percepção de desacordo e desconforto que
vem dos próprios personagens.
À medida que a narrativa avança, porém, o distanciamento do narrador vai se
agudizar para tornar o retrato dos malandros ainda mais nítido. É por meio do discurso
indireto livre que o narrador mostrará a face cruel de Bacanaço e a crise psicológica
profunda de Perus, como veremos a seguir.
Em Pinheiros, depois de terem deparado com o policial Silveirinha e de terem
escapado ilesos do achaque do policial, depois de terem ficado animados por escapar de
uma ronda policial em um salão onde, eles estão de novo desanimados, e a madrugada é
309
MPB, pp. 161-162.
245

alta, resta pouco para a noite terminar e eles precisam ainda de mais um salão aberto, com
trouxas disponíveis, mais jogo, mais um golpe.
Andando pelo bairro, Perus recorda um episódio de quando era engraxate e foi
incriminado por um roubo que não praticara. O ladrão em fuga deixou o dinheiro aos pés
do menino. Perus teve de se explicar à polícia:

[...] A rua estava azoada e a polícia chegou não querendo prosas fiadas. Houvesse explicações e
imediatamente. Ô atrapalhação ingrata que foi justificar aquele dinheiro... Assim sempre, pensava Perus,
trabalhando para os outros, curtindo as atrapalhadas dos outros. Papagaio come quieto, periquito leva a fama.
Como um pé-de-chinelo, como um dois de paus. Para que esperar um dia de maré de sorte? Para que
pretender os joguinhos caros e bons de Vila Alpina? O menino Perus achava que seria sempre um coió-sem-
sorte, sofredor amansando a vida deste e daquele. E lhe chegava a ideia velha, solução pretendida, única saída
dos momentos de fome.
310
— Um dia eu me apago.

O sofrimento psíquico de Perus ganha aqui um retrato extremo. O jovem malandro


pensa em se matar. E não é de hoje. A ideia é ―velha‖. E ela vem em resposta aos
momentos de fome. É uma solução que se relaciona à condição socioeconômica, mas está
também profundamente ligada aos desejos do menino. Para que esperar pela sorte? Para
que ―pretender‖, isto é, acalentar o desejo dos ―joguinhos caros e bons de Vila Alpina‖?
Além da fome, necessidade imediata e premente, Perus se pergunta também sobre suas
ambições de ascensão social. A própria fome, neste conto, é ambígua: é fome de alimento e
de dinheiro. Ele sonha com a Vila Alpina — o nome do bairro também aponta para a
ascensão (os Alpes da malandragem paulistana) —, sonha ascender por meio de um atalho
malandro aos jogos caros e bons, que lhe renderiam um bom dinheiro, certamente dinheiro
de sobra, para além da fome e da subsistência.
O padecer do menino, assim, tem um fundo de escassez material, mas liga-se
também à ilusão do dinheiro fácil e da ascensão fulminante, de uma emancipação que neste
momento lhe parece difícil, pois ele tem a sensação que será para sempre um sofredor
amansando a vida deste e daquele, sempre a serviço dos outros. Com isso, o narrador
completa o desenho do personagem, que além do suicídio, irá cogitar também uma saída

310
MPB, p. 203-204.
246

não menos angustiante: voltar para a vidinha besta em Perus e trabalhar na fábrica.
Voltaremos a essa caracterização de Perus.
Com relação a Bacanaço, o narrador vai aos poucos expondo a crueldade do
malandro. A face sombria do malandro fino e lustroso, elegante e boa gente, aparece com
força na mesma passagem do conto em que Perus está ocupado com seu impulso destrutivo
e ―regressivo‖ (suicida, trouxa e trabalhador). Bacanaço relembra suas ocupações que estão
além da sinuca, especialmente a atividade de cafetão:

Bacanaço andava agora com uma mina nova, vinte anos. Morena ou ruiva não se sabia, que
ficava loira de cabelos oxigenados, porque o mulato preferia loiras. Fazia a vida num puteiro da rua
das Palmeiras, tinha seu nome de guerra — Marli. A mina lhe dava uma diária exigida de mil, mil e
quinhentos cruzeiros, que o malandro esbagaçava todos os dias nas vaidades do vestir e do calçar, no
jogo e em outras virações. Quando lhe trazia menos dinheiro, Bacanaço a surrava, naturalmente,
como fazem os rufiões. Tapas, pontapés, coisas leves. Apenas no natural de um cacete bem dado para
que houvesse respeito, para não andar com bobice na cabeça e para que não se esquecesse
preguiçando na rua, ou bebericando nos botecos, ou indo a cinemas, em vez de trabalhar. Obrigação
sua era ganhar — para não acostumá-la mal, Bacanaço batia-lhe. Nas surras habituais, o porteiro da
pensão da Lapa surgia, assustado. Bacanaço o encarava.
— Olhe, camarada: entre marido e mulher, ninguém bote a colher.
E se o homem perguntava, solícito:
— O seu negócio deve ser cuidar de sua vida — e abria os braços — ou é cuidar da minha?
O tipo se ia, cabisbaixo, desenxabido, para o mesmo lugar donde viera.
Se a desobediência se repetia, o cacete se dobrava. Bacanaço se atilava em crueldades mais
duras. Para começo a trancafiava no quarto e partia para a rua, onde se demorava horas. Ia à
sinuca, ia andar a fim de pensar bem pensado; a mulher que lá ficasse aguentando fome e
vontades. Voltava tarde, bebido e abespinhado, usava o cabo de aço e agia como se Marli fosse
um homem. Proibia-a de gritar. Malhava aquele corpo contra as paredes, dava-lhe nos rins,
nos nós e nas pontas dos dedos. Encostava-lhe o cigarro aceso nos seios. As vezes, Marli
311
urinava.

O distanciamento do narrador, perto do fim do conto, se desenha de maneira


bastante evidente. É, a bem dizer, uma tomada de distância significativa, em um panorama

311
MPB, pp. 204-205. Note-se mais uma vez a ocorrência do verbo atilar, que como observamos no capítulo 2
concentra a ambiguidade dos malandros, que se aprimoram (eles se atilam) tornando-se ―bárbaros‖ (o verbo
atilar como sinônimo de se comportar como Átila).
247

geral de grande proximidade e afinidade. Sempre muito próximo aos personagens e colado
ao ponto de vista dos protagonistas, o narrador também é capaz de destacar-se do universo
narrado para apontar a crueldade do malandro ―bacana‖. Bacanaço é um rufião que explora
economicamente a prostituta Marli: bate nela e a tortura com o cabo de aço (―aço‖ inscrito
no nome de guerra do malandro) e com o cigarro aceso nos seios da mulher.
Assim como já fizera com Perus, visto à distância, para mostrar como o menino
pensa em suicídio, pensa em abrir mão da malandragem, voltar a trabalhar, mas que
também se mantém incapaz de sair da condição de malandro, o narrador agora, em relação
ao malandro adulto, é ainda mais prevenido e distante, ainda que mantenha o recurso do
discurso indireto livre, muito próximo da linguagem do personagem: ―Bacanaço a surrava,
naturalmente, como fazem os rufiões‖, diz o narrador, à distância, para em seguida aderir ao
ponto de vista do malandro: ―Apenas no natural de um cacete bem dado para que houvesse
respeito, para não andar com bobice na cabeça e para que não se esquecesse preguiçando na
rua, ou bebericando nos botecos, ou indo a cinemas, em vez de trabalhar‖. A alternância de
adesão e distanciamento se mantém: ―Se a desobediência se repetia, o cacete se dobrava‖
(posição do narrador entre a proximidade e a isenção); ―Bacanaço se atilava em
crueldades mais duras‖ (narrador afastado do personagem, para acusar de cruel seu
comportamento).
O papel do narrador no conto ainda não foi bem sublinhado, talvez porque,
justamente, sua constituição tenha por objetivo suprimir-se para conduzir a ação como se
ela se desenrolasse por si mesma, sempre em frente. A ênfase está mais no movimento, na
ação narrada e, menos, nos personagens. A própria caracterização dos protagonistas é
retardada pelo narrador, o qual está fora da ação, mas rente a ela.
Trata-se de um narrador maleável, cujo movimento é de aproximação e
distanciamento dos personagens. Neste sentido, ele se assemelha ao narrador de Vidas
secas. Veja-se este trecho do romance de Graciliano Ramos, uma das primeiras ocorrências
do discurso indireto livre no livro, que vem logo depois que Baleia caça um preá:

[...] Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver.
Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou
com segurança, esquecendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.
248

Sinhá Vitória remexeu na baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um
espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava,
aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos
animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debru-
çando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima. olhando as estrelas, que vinham
nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O
poente cobria-se de cirros — e uma alegria doida enchia o coração de Fabiano.
Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não
se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os
dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás?
Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia
chover.
Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a
bolandeira. Não sabia por quê, mas era. Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A lua
estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado
voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de
ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras,
sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria
312
toda verde.

A pergunta ―Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás?‖ introduz na narrativa
uma voz que é a do narrador, mas é também a de Fabiano, personagem cujo ponto de vista
vinha sendo traduzido pela posição onisciente e distanciada do narrador. Duas frases, um
pouco mais à frente, embaralham a perspectiva de narrador e personagem: ―E ele, Fabiano,
era como a bolandeira. Não sabia por quê, mas era‖. A primeira frase, sendo do narrador,
traz inscrita a perspectiva de Fabiano sobre ele próprio, pois retoma questão semelhante
àquela formulada na pergunta que ensejou o discurso indireto livre. A segunda frase é do
narrador, mas este passa a aderir ao ―espírito atribulado do sertanejo‖.313

312
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 14-15.
313
Idem, ibidem, p. 10.
249

Se aqui, no começo do romance, o narrador está ao mesmo tempo distanciado e


colado ao ponto de vista de Fabiano, mais à frente, quase ao final de Vidas secas, o
narrador alterna a objetividade da descrição às perspectivas de Fabiano e Sinhá Vitória:

[...] E talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado.
Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Por que não haveriam de ser
gente, possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira? Fabiano franziu a testa: lá vinham
os despropósitos. Sinhá Vitória insistiu e dominou-o. Por que haveriam de ser sempre desgraçados,
fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver
escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.
— O mundo é grande
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande — e marchavam,
meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos, que olhavam os montes distantes, onde havia
seres misteriosos. Em que estariam pensando?, zumbiu sinhá Vitória. Fabiano estranhou a
pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinhá Vitória renovou a
pergunta — e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora
desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem.
— Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinhá Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente,
arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça.
Vaquejar, que ideia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia
montes baixos, cascalhos, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não
voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles eram
bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam
314
costumes diferentes.

Como se percebe, o narrador de Graciliano, está ao mesmo tempo colado e


distanciado de seus personagens. A frase inicial do trecho está formulada como discurso do
narrador, mas ela é fala de Sinhá Vitória, como se infere pela reação de Fabiano, que
duvida do que se exprimiu, estirando o beiço. As perguntas que se sucedem são
inquietações de Sinhá Vitória, mas mescladas ao discurso do narrador, que afirma ―Com
certeza existiam no mundo coisas extraordinárias‖, a um só tempo contrapondo-se às dúvidas
da personagem, mas também formulando uma certeza que pode vir do pensamento desta.

314
RAMOS, Graciliano, op. cit., pp. 121-122.
250

Segue-se mais uma vez a reação de Fabiano, e o narrador chega a lhe registrar a fala,
enunciada por meio do travessão. Mais à frente, os pensamentos de Fabiano assumem o
primeiro plano, mas pelas palavras do narrador: ―Ela devia ter razão. Tinha sempre
razão‖. O narrador também dá voz aos pensamentos e falas de Sinhá Vitória:
―Vaquejar, que ideia!‖ é certamente uma objeção que parte dela. E o uso da forma
verbal do futuro do pretérito envolve a todos em uma perspectiva vindoura, desejada,
mas incerta. O arremate do trecho, com esta forma verbal construída por meio de uma
mesóclise, ―Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes‖, indica que o
narrador retomou o ponto de vista para si, de forma a adotar uma visada mais
distanciada, prevenida, em relação aos sonhos acalentados e formulados pelos
personagens.
O procedimento do narrador de João Antônio é análogo. No conto, ele é orientado e
determinado pela necessidade de estabelecer uma relação de proximidade com o universo
narrado, envolvendo narrador, personagens e também o leitor no mundo da malandragem,
mas também por uma necessidade tão importante quanto à anterior, uma necessidade de
distanciamento, para não perder a medida de brutalidade e violência deste mesmo mundo
— desconfiança e prevenção que fazem dele um narrador realista onisciente, com visada
crítica relevante.
O movimento do narrador também está em sintonia com o andamento da própria
matéria narrada: as ondas de maré de sorte e azar a que estão submetidos os personagens,
marés do acaso a que eles se referem várias vezes ao longo do texto, e a alternância de
euforia e melancolia que os acomete. Esse movimento oscilante da narrativa já foi
sublinhado muito bem por Vima Lia Martin: ―(...) há uma oscilação entre momentos em
que os malandros renovam a certeza de que estão ‗por baixo‘ e momentos em que eles se
permitem sonhar com uma situação menos dura, fantasiando dias mais venturosos. É esse
movimento que impulsiona os três homens na sua perambulação pelas sinucas da cidade.
Pessimismo e otimismo se alternam, assim, ritmando também o andamento da narrativa‖.315
A altura e o distanciamento de onde o narrador se coloca para, em alguns
momentos, retratar os personagens evidencia a fragilidade e a dimensão ―real‖ dos
malandros, para além de suas condutas corretas, erradas ou malandras.

315
MARTIN, Vima Lia, op. cit., p. 137.
251

O olhar do narrador, desencantado, conduz o leitor a um olhar também


desencantado, restituindo aos personagens uma estatura e uma potência reduzidas, típicas
da forma conto, e de um realismo complexo, que é ao mesmo tempo solidário e crítico a
esses personagens marginalizados e alquebrados que, entretanto, teimam em fantasiar
grandezas e façanhas.
Dois exemplos talvez bastem para evidenciar, uma vez mais, esse movimento
compreensivo, simpático, mas também patético e reflexivo do narrador. A primeira
passagem em que se percebe mais claramente o modo desencantado do narrador ocorre na
Barra Funda, quando ele descreve Malagueta e o aproxima de um cachorro vira-lata.

Pararam naquele boteco à beira dos trilhos do trem.


Veio o vira-lata pela rua de terra. Diante do velho parou, empinou o focinho, os olhos
tranqüilos esperavam algum movimento de Malagueta. O velho olhava para o chão. O cachorro
o olhava. O velho não sacou as mãos dos bolsos, e então, o cachorro se foi a cheirar coisas do
caminho. Virou-se acolá, procurou o velho com os olhos. Nada. Prosseguiu sua busca, na rua, a
fuça nas coisas que esperava ser alimento e que a luz tão parca abrangia mal. De tanto em tanto,
voltava-se, esperava, uma ilusão na cabecinha suja, de novo enviava os olhos suplicantes. O
velho olhando o cachorro. Engraçado – também ele era um virador. Um sofredor, um pé-de-
chinelo, como o cachorro. Iguaizinhos. Seu dia de viração e de procura. Nenhuma facilidade,
ninguém que lhe desse a menor colher de chá. Tentou golpe, tentou furto, esmola tentou, que
mendigar era a última das virações em que o velho se defendia.316

É nesta passagem melancólica pela Barra Funda, quando Malagueta se põe a refletir
sobre sua vida para além da sinuca e da boemia, quando recorda a relação que mantém com
a preta Maria, vendedora de pipoca de porta de cinema, que Malagueta se revela, ou
melhor, é revelado pelo narrador, em sua dimensão de fraqueza e fragilidade, em sua
condição não malandra, que também constitui sua malandragem:

316
MPB, p. 179. Comentando esta passagem, Vima Lia Martin liga o vira-lata à personagem Baleia, a
cachorra da família de retirantes de Vidas secas: ―A interação entre o velho e o cachorro e a humanização do
animal, capaz de criar ‗uma ilusão na cabecinha suja‘ evocam passagens do romance Vidas secas, de
Graciliano Ramos, que opera a personificação de uma cadela – Baleia – e a brutalização das personagens
centrais – Fabiano, Sinhá Vitória e os dois filhos do casal. Na narrativa do escritor alagoano, tal recurso
tem a mesma função que encontramos no conto de João Antônio: promover a denúncia social através do
apagamento das fronteiras que separam a condição de vida das pessoas marginalizadas e a condição de
vida dos bichos. Também o determinismo social, que já verificamos, assemelha-se à perspectiva expressa
pelo narrador de Vidas secas‖. MARTIN, op.cit., p. 144.
252

Assim, parado, se vendo pelo avesso e fantasiando coisas, Malagueta, piranha rápida,
professor de encabulação e desacato, velho de muito traquejo, que debaixo do seu quieto muita
317
muamba aprontava, era apenas um velho encolhido.

E o desalento derradeiro vem justamente ao final do conto, quando os três


malandros retornam à Lapa, de onde haviam partido:

A curriola formada no velho Celestino contava casos que lembravam nomes de


parceirinhos.
Falou-se que naquela manhã por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo
318
três cafés fiados.

O narrador, ao final, descola-se dos três personagens. Volta-se para a curriola, que
continua em sua tarefa de narrar, contar ―casos com nomes de parceirinhos‖. É a curriola
quem tem a última palavra. Na ação narrada, é a malandragem anônima que conta a história
de Malagueta, Perus e Bacanaço.

A arte de contar

Definir, detalhar e compreender o movimento do narrador, como fizemos até aqui,


nos leva a um segundo olhar para a característica mais forte do conto e que entra em atrito
com a ideia de distanciamento e desencanto do narrador: a profunda oralidade que permeia
a história, do começo ao fim, envolvendo narrador, protagonistas e personagens menores e
anônimos em um mesmo universo de histórias, contadas e recontadas de boca em boca.
Estamos no terreno da narratividade, do mito e da lenda — ou, neste último caso, para usar
o termo de André Jolles, da legenda.
No caso de ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ alguns aspectos permitem identificar o
conto a essas narrativas de fundo arcaico, inclusive à própria forma conto, em suas
características que também fazem desse gênero exemplo de ―forma simples‖: a oralidade, a

317
MPB, p. 181.
318
idem, p. 222.
253

circularidade, a zoomorfização e o tema em questão, a malandragem, que se liga à tradição


da literatura popular, mas também erudita.
Trata-se de um conto sobre uma única noite, sobre uma jornada em que os
malandros saem da Lapa, percorrem outros bairros, incluindo o centro da cidade, e
retornam à Lapa, cumprindo um percurso circular que, assim como já ocorrera com o conto
―Busca‖, confere a esta narrativa um caráter avizinhado à poesia, ao mito e à lenda. Esta
―ciranda da malandragem‖, como bem define a expressão de Jesus Antonio Durigan,319
aponta para o teor repetitivo, recorrente e inescapável das trajetórias dos personagens. É
como se a história de Malagueta, Perus e Bacanaço não tivesse começo nem fim, e eles
fossem prisioneiros do próprio destino de malandros.
A estrutura espacial é circular. E o tempo é bem marcado: uma noite. O transcurso
do tempo e o desenvolvimento da ação narrada, porém, oscilam no ritmo das marés de sorte
e azar que acometem os personagens, com influência no tom e no andamento, e expõem
uma contradição que estrutura o conto: a ação dos personagens se dá ―na noite‖, na boemia,
no universo da malandragem, ordem que parece destacada da sociedade, à margem da vida
―normal‖, do mundo burguês regido pelo trabalho, pela convenção moral e pela família; por
outro lado, a ação é acossada o tempo inteiro por uma espécie de contagem regressiva, que
tem horizonte temporal marcado, o fim da noite, e o que imprime essa aceleração, a
ansiedade pela passagem do tempo, é o dinheiro, valor maior do mundo burguês que os
malandros tanto desdenham.320
O primeiro ponto de virada da narrativa, aquela primeira centelha de ação que move
os personagens, se dá com a ideia de Bacanaço de empenhar o seu relógio. Com isso, eles
amealham ―uma quina‖, isto é, quinhentos cruzeiros, a título de capital inicial da jornada de
sinuca noturna. O gesto de trocar o relógio por dinheiro é bastante sugestivo. Assim, os
malandros ―abdicam‖ da linearidade temporal (simbolizada pelo relógio) em favor de uma
aventura que não é regida pelo tempo cronológico, mas por um tempo em ―suspensão‖ (o
universo da boemia, da ―noite‖, que só se extingue realmente ao nascer do sol, como o

319
DURIGAN, J. ―João Antônio e a ciranda da malandragem‖. In: Os pobres na literatura brasileira. op. cit..
320
Contagem regressiva similar, também por dinheiro, ocorre na busca de Naziazeno, de Dyonélio Machado,
em Os ratos.
254

conto tão bem irá mostrar) e também pela quina, isto é, simbolicamente por um golpe de
sorte, um dinheiro que se arruma por ―fortuna‖, acaso, contingência.321
Esta narrativa, portanto, em sua combinação de modernidade (a corrida contra o
relógio, a falta que move, a miragem do dinheiro fácil) e circularidade (a ―suspensão‖
temporal na noite, tendendo ao mito e ao universal), parece dizer que a malandragem é uma
prática a um só tempo atual e atemporal. Essa dualidade da temática — contemporânea e
antiga, nova e imemorial — também define a contradição que estrutura o conto enquanto
narrativa moderna e, ao mesmo tempo, de forte teor arcaico.
A noção que une as pontas dessa complexa arquitetura literária é a arte de narrar e a
caracterização dos personagens, também eles, como narradores. O mundo em que vivem
os personagens de João Antônio é povoado de narradores, que vêm se juntar ao narrador em
terceira pessoa, instância narrativa a princípio apartada da ação narrada, pois que,
justamente, instaura essa ação. No entanto, as identidades de narrador e personagem, como
vimos, tendem a se embaralhar, e a própria tarefa de narrar em alguns momentos é
compartilhada entre personagens e narrador.
O conto de João Antônio, à primeira vista não se relaciona com o universo mítico
tal como estamos acostumados a entender as narrativas tradicionais e o mito: relatos que se
contam e se recontam, de geração em geração, com o intuito de explicar a origem das
coisas, os fenômenos naturais, a ordem do mundo, tendendo ao universal e ao atemporal.
Ao contrário, o cenário, a realidade a que ele se reporta e a partir da qual se origina, como
se sabe, é bastante específico e localizado: a São Paulo da década de 1950. O universo é o
da malandragem dos anos 50 e começo dos anos 60. O texto não traz datas ou marcação
histórica evidentes, mas alguns elementos permitem localizá-lo nesse período. Não há, por
exemplo, referência a armas de fogo. Bacanaço provoca Perus munido de uma ―navalha‖.
Lima, o velho tira aposentado, conta a história de um malandro, Calói, que acabou os dias
no Juqueri, depois que a maconha lhe apodreceu o cérebro — nenhuma referência ainda à
cocaína. Os malandros assobiam um tango, ―Garufa‖, como código para avisar um ao outro
de que há ―otário nas proximidades‖, ―trapaças funcionando‖ e ―lucro em perspectiva‖.

321
Inspirada em conceituação de Milton Santos, Clara Ávila Ornellas vê no conto uma alternância entre
―tempo rápido‖ (hegemônico: a pressa, a curta duração da noite, as partidas de sinuca, o dinheiro) e ―tempo
lento‖ (o dos hegemonizados: a cidade e seus personagens marginais). ORNELLAS, C. O conto na obra de
João Antônio. op.cit., p. 118.
255

Quando eles passam por Perdizes, a descrição aponta para pessoas que tomam a fresca nas
calçadas, hábito que desapareceu do bairro. Acrescente-se a isso as declarações do próprio
João Antônio de que o conto se inspirou em suas próprias experiências de juventude, do
final dos anos 1950.
Trata-se, assim, como se sabe, de um conto realista, que se relaciona com a situação
social brasileira e paulistana de meados do século passado. No entanto, a literatura do autor,
como já tivemos oportunidade de observar em outros contos (como ―Busca‖ e, como
veremos, ―Paulinho Perna Torta‖), mantém ligações profundas com tradições narrativas e
literárias universais e antigas, que remetem, por exemplo, ao mito de Édipo.
Assim como na história da literatura a narrativa da lenda de Édipo vem se repetindo,
atualizando e ganhando novas leituras, na obra de João Antônio este mito retorna. O mito é,
aliás, segundo Vernant, aquele relato que se conta e se reconta, por gerações, sem esgotar
sua força narrativa e de explicação. No entanto, o mito, em sua forma pura, se narra e se
atualiza sem que essa história seja contada por um autor, como se dá nos textos literários.
Para Vernant, memória, oralidade e tradição ―são as condições de existência e
sobrevivência do mito‖.322 Mito, segundo A. Jolles, ―é a forma capaz de criar objetos a
partir de uma pergunta e de uma resposta‖323: perguntas e respostas sobre o mundo.
No caso, as perguntas latentes no conto em análise são: O que é a malandragem? O
que é ser malandro? Quem, nesta história, é de fato o malandro? Vale a pena ser malandro?
Há mesmo diferença entre ser malandro e ser trouxa? São perguntas enigmáticas, que
pedem decifração e permanecem sem resposta, no âmbito da narrativa, ainda que se possa
concluir, como o faz Vima Lia Martin, que João Antônio afirma uma perspectiva
profundamente melancólica sobre a realidade nacional, ela também fundada em impasses.
Para a autora, ―a ênfase negativa que o escritor imprime às consequências da transgressão
— desidealizando-a e potencializando o seu prejuízo para os malandros que dela dependem
para sobreviver —, presentifica o trauma constitutivo da história brasileira‖.324
Há, no entanto, para além da dimensão material do drama e do trauma brasileiros
presentificados pelos malandros, uma dimensão narrativa arcaica e de fundo lendário,
ligada à cultura popular desde a Antiguidade, que se traduz em uma pergunta enigmática,

322
VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, o homem. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 11.
323
JOLLES, op. cit., p. 98.
324
MARTIN, Vima Lia, op. cit., p. 163.
256

ligada a um mito antigo. Essa questão ganha, de fato, formulação difusa, mas resposta
desenvolvida neste conto de João Antônio: a história dos três malandros, um jovem, um
adulto e um velho responde — atualizando-a — a pergunta da esfinge, que Édipo decifrou.
Trata-se de um conto sobre as três idades do homem: Perus, o menino; Bacanaço, o adulto;
Malagueta, o velho.325
Além dessa moldura mítica que contorna o texto e o insere em uma tradição literária
e cultura antiga e ainda atuante — o mito, a fábula, a legenda —, o enquadramento social
de seus protagonistas — as camadas mais pobres e despossuídas, os ―coiós sem sorte‖,
―sem eira nem beira‖, ―pingentes‖ —, também permite identificar os personagens à tradição
cristã dos despossuídos e desterrados. Como bem define Flávio Aguiar, o universo literário
de João Antônio está inserido dentro de um quadro cristão:

O essencial a compreender na obra de João Antônio é que ela vive a partir de um universo
cristão. É claro que não de um cristianismo burocratizado, distante dos homens, perdido em
formalidades e fricotes incompreensíveis. Mas daquele cristianismo primevo, que fez o Messias
nascer e crescer entre os deserdados da terra, amigo dos pescadores e da gente simples, e que depois
transformou seus seguidores em mártires muito além do que prometia a força humana, pelo menos a
dos balofos imperadores romanos. Sem dúvida, a Bíblia foi um dos primeiros livros a fixar os
humildes na Terra como personagens dignos de debater e encarnar os grandes destinos da
humanidade, coisa antes reservada para nobres e próximos. Seres ―pequenos‖ — pescadores,
doentes, camponeses, prostitutas — se agigantam e batem às portas do universo da história do
326
Cristo.

O enquadramento dos personagens como seres errantes, peregrinos, que


perambulam sem encontrar parada, despossuídos, sem eira nem beira, permite identificá-los
aos humildes, aos ―sofredores‖ que se comportam e se inserem socialmente como
sucedâneos de Cristo. Talvez nem fosse necessário ligar os personagens diretamente à
figura mítica de Jesus, mas o narrador o faz, pelo menos no caso de Malagueta, ainda na
primeira parte da narrativa, logo depois de apresentar o personagem e definir suas

325
Vima Lia Martin sugere que os personagens ―simbolizam a ascensão, o apogeu e a queda típicos da
trajetória de um malandro‖. MARTIN, V. Literatura e marginalidade, op.cit., p. 133. Jesus Antônio Durigan
também já havia chamado a atenção para as três idades do homem representadas em cada personagem.
DURIGAN, J. ―João Antônio e a ciranda da malandragem‖. In: Os pobres na literatura brasileira. op. cit.
326
AGUIAR, Flávio. A palavra no purgatório. São Paulo: Boitempo Editorial, 1997, p. 90.
257

artimanhas de virador. A relação com o universo cristão, que é dos trouxas, mas também é
deles, malandros, aparece então não como sentimento religioso ou profissão de fé, mas em
função da estratégia de sobrevivência:

Malagueta esfriou, perdeu num átimo o alegre rebolado. Andava tudo ruim. E ele com a
fome. Maré de azar danado, nem quisessem saber. Comer? Surrupiando uma maçã duma prateleira lá
do mercado, quase o pilharam com a mão na coisa. Caíra no chão, botara aquela cara de sofrimento,
estendera a mão que roubou a maçã, esmolara. Com aquela cara de sofredor, de Jesus Cristo, talvez
algum trouxa lhe pingasse uma grana. Mas a onda de crepe era raiada — de olho vivo, andavam
327
guardas lá no mercado, finos como tiras.

Os personagens de João Antônio são ―sofredores‖ e pingentes que fantasiam e


narram. A experiência intercambiável, a capacidade de transmitir aquilo que se viveu e se
aprendeu, é a matéria-prima dos narradores, como registrou Walter Benjamin: ―A
experiência que se passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.
E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias
orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos‖.328 Benjamin distingue dois grandes
grupos de narradores, dois ―tipos fundamentais‖ que têm a capacidade de narrar: o
camponês sedentário e o marinheiro comerciante. São tipos que se complementam: ―A
extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendida
se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos‖.329 No entanto, como
também ressalta Benjamin, após a Primeira Guerra Mundial a própria noção de experiência
entrou em crise. É conhecida a afirmação do autor de que os soldados voltaram mudos do
campo de batalha.330
A própria noção de experiência estaria em vias de desaparecer, com reflexos na arte
de narrar, como sustenta Adorno.331 Esta ideia ganha contraponto, no conto em quadro, pois
o texto de João Antônio elenca uma série de personagens que têm por hábito contar

327
MPB, p. 161.
328
BENJAMIN, W. ―O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov‖. In Obras escolhidas. Magia e
técnica, arte e política. vol. 1. 4ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 198.
329
Idem, ibidem, p. 199.
330
BENJAMIN, W. ―Experiência e pobreza‖. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie. Sel. de Willi
Bolle. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986.
331
ADORNO, Theodor W. ―Posição do narrador no romance contemporâneo‖. In Notas de literatura I. Trad.
de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003.
258

histórias de malandragem. Entretanto, a confirmar a hipótese de Benjamin, a ideia de


narrador experiente, que tem algo a transmitir por conta de sua vivência, é também ela
colocada em questão no universo da malandragem em que se passa a história narrada.
No que se refere à importância da arte narrativa, o conto se desenvolve segundo a
tensão entre as histórias que se contam e a ação narrada, que empurra os personagens
sempre adiante. O momento de narrar é o momento do sedentarismo, mas as histórias
também precisam ser vividas, no momento da aventura.
Vale lembrar aqui que o ensaio de Antonio Candido sobre o livro de João Antônio
chama a atenção para a capacidade do escritor ―de criar linguagem a partir do que se fala no
dia a dia‖.332 É a propósito da oralidade e da elaboração estilística que o autor empreendeu
em ―MPB‖ que Candido irá relembrar o começo de São Bernardo, de Graciliano Ramos,
quando Paulo Honório conta que contratou um jornalista para escrever sua história e que o
profissional da imprensa ―acanalhou o troço‖, no dizer do personagem. Paulo Honório
decide, então, redigir ele mesmo o seu livro, escrevendo ―como se fala‖.
O momento vivido por Paulo Honório é o tempo do sedentarismo, em que ele se
estabeleceu como proprietário da fazenda São Bernardo. É também o momento de
Riobaldo, ―Narrador nostálgico do sertão que já não há, e pelo aburguesamento do ex-
jagunço aposentado e barranqueiro do São Francisco em que se transforma, dono, além do
mais, de suas possossas fazendas herdadas do padrinho (na verdade, pai) Selorico
Mendes‖.333
Ambos os personagens, Paulo Honório, de São Bernardo, e Riobaldo, de Grande
sertão: veredas, se tornaram narradores depois de uma vida de aventuras, como capataz e
jagunço. Neste momento em que ascenderam socialmente e se tornaram proprietários
sedentários, portanto, podem se dedicar a contar e construir a própria história. Como
mostrou José Antônio Pasta Jr., no caso de Riobaldo, a constituição problemática do eu faz
com que Riobaldo viva entre dois mundos: moderno e arcaico, indivíduo isolado e membro
de fratria ou clã, livre e dependente, homem de lei e de mando, de contrato e de pacto,

332
CANDIDO, Antonio. ―Na noite enxovalhada‖. In: MPB, op.cit., p. 7.
333
ARRIGUCCI JR., D. ―O mundo misturado. Romance e experiência em Guimarães Rosa‖, Novos Estudos
Cebrap, no 40, nov. 1994, p. 16.
259

letrado e iletrado. Segundo o crítico, Riobaldo se forma ―passando no seu outro‖ (de um
polo a outro, de um bando a outro, de uma convicção a outra, de um sexo a outro).334
A contradição de ser e não ser — entre o ―mesmo‖ e o ―outro‖ nos termos de Pasta
Jr. — que acomete o jagunço aposentado de Guimarães Rosa, tem correspondência no
universo da malandragem de João Antônio. No caso deste conto, os narradores não são
aventureiros estabelecidos, mas, ao contrário, aventureiros em pleno momento da ação, mas
ameaçados pelas marés de azar que, a todo momento, podem transformá-los no avesso, em
trouxas sedentários.
A vida de malandro certamente se aproxima mais daquela de um marinheiro
comerciante, sempre a navegar pela noite, pela boemia, intercambiando experiências e
―bens‖, por meio do jogo, dos pequenos golpes, dos furtos, da cafetinagem. No caso de
Malagueta, Perus e Bacanaço, a movimentação noturna, sem parada, indica que os três
malandros se enquadram nesta categoria de narradores.
A própria valorização da capacidade de narrar, entre os malandros, é evidenciada
pelo narrador, já na primeira ocorrência de uma história narrada dentro da ação, por um dos
personagens.
O elenco de personagens que contam histórias começa pelos próprios protagonistas.
Bacanaço é o primeiro dos personagens que, a certa altura do relato, se põe a contar
façanhas, proezas, histórias de outros personagens, que não participam diretamente da ação
narrada, mas são evocados para demonstrar alguma ideia, para relembrar características da
malandragem ou simplesmente para entreter narrador e ouvintes com suas histórias, lendas,
façanhas.
A primeira vez que isso ocorre é, ainda na primeira parte do conto, quando
Bacanaço e Perus estão à toa no Celestino, salão de sinuca da Lapa, e se põem a lembrar de
um episódio ocorrido ali mesmo, ―não fazia uma semana‖. A princípio, é o narrador quem
conta a história de Sorocabana, um ―trouxa‖, ―coió-sem-sorte‖, que colocou na roda um
salário-prêmio e foi derrotado por Bacalau, malandro que terminou por lhe ―morder os
últimos‖. Ao final deste episódio rememorado, porém, diz o narrador:

334
PASTA JR., José Antônio. O romance de Rosa. Temas do Grande sertão e do Brasil. Novos Estudos Cebrap
no 55, 1999, pp. 61-70. Nessa lógica, diz Pasta Jr., está a formação supressiva de Riobaldo: ―passando no seu
outro, ele vem a ser no e pelo movimento mesmo em que deixa de ser: ele se forma suprimindo-se‖ (p. 64).
260

Contava Bacanaço que sabia muito bem das coisinhas da façanha. O menino Perus também
sabia. Mas era um menino diante de Bacanaço e por isso ouvia quieto, só meneando a cabeça e de
acordo com tudo. Para final — Bacanaço era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da
335
caixeta, do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres (...)

Já vimos para onde caminha o trecho acima, para uma melhor definição de
Bacanaço, artifício narrativo e descritivo que irá culminar na exposição da crueldade deste
personagem. É interessante retomar a passagem aqui para tornar mais claro porque
Bacanaço ganha maior visibilidade neste momento da trama: é porque o malandro maduro
assumiu o centro da cena por sua capacidade de contar. Como aponta o narrador do conto,
Perus também sabia da façanha, ―mas era um menino diante de Bacanaço‖. A experiência
de vida, aqui, confere também maior capacidade de narrar.
Aquele momento específico vivido pelos dois personagens na ação narrada é
propício à narrativa de feitos da malandragem. Os dois estão ―quebrados‖, impossibilitados
pela circunstância de se lançar à aventura. A fortuna impôs a eles um tempo de
sedentarismo, ainda que breve, o que lhes abre oportunidade, então, para rememorar
histórias e narrar.
Algo parecido se dá na segunda passagem do conto em que ocorre outra narrativa de
façanha de malandro, agora narrada por Lima, um policial aposentado que frequenta o salão
de sinuca da Água Branca, na segunda parte do texto. É a história de Calói, um ―artista‖ da
sinuca, que acabou fraquejando por causa de mulher e de maconha. A história é contada por
Lima com intenção moralizante, para alertar que destino de malandro é o Juqueri ou a Casa
de Detenção.
Apesar de caracterizar o tira aposentado com traços desfavoráveis (―era um velho
gordo e estranho‖), o narrador também vai dizer que Lima era ―conselheiro dos mais
moços‖, e pelas palavras ―desusadas‖ desse personagem vai, mais uma vez reafirmar o
lusco-fusco moral em que se assenta a malandragem. Diz o personagem, aos demais
jogadores do salão:

335
MPB, p. 154.
261

— Tudo aqui é passageiro — arrotava. — Não é expediente de gente que se preze. Gente
336
moça namora, noiva e casa. É o caminho certo. Aqui, não; aqui é o fim.

E conclui Lima: ―— A maior malandragem, meus filhos, é a honesta‖.


Mas não são apenas os protagonistas, como Bacanaço, e os personagens menores,
como Lima, que são narradores e, no momento da ação narrada, colocam-se a narrar outras
história de malandragem. Também os malandros anônimos que apenas passam pela
história, aparecem também em franca atividade narrativa.
É o que se depreende do início da quarta parte do conto, ―Cidade‖. Depois de terem
jogado na Água Branca, de terem percorrido as ruas de Perdizes e de passarem pela Barra
Funda, os três parceiros agora chegam à Cidade, isto é, o centro de São Paulo. Ali, depois
da melancolia e do marasmo que encontraram na Barra Funda — lembre-se que a seção
anterior termina com a descrição de Malagueta como um velho encolhido —, os malandros
parecem ter chegado a um lugar totalmente diferente, e para melhor, como se depois da
ressaca da parte anterior do conto, eles vivessem nova maré de sorte. O tom do começo
desta parte é de animação, quase de euforia:

Uma, duas, três, mil luzes na avenida São João!


A curriola formada à esquina era de sete mais uma mulher, que era amiga de um deles. Fala
de bordel, falavam de casos passados, antigamente febris para a baixa malandragem. Fulano fez, fez,
acabou lá na cadeia; beltrano deu sorte, levantou duzentos contos nos cavalos, arrumou-se na vida —
hoje é dono disto e daquilo; mas um outro, seu parceiro, maconhava com exagero e endoideceu —
anda aí pelas ruas falando sozinho; sicrana navalhou a cara da outra, que era sua costureira, mas
337
andava com seu homem. Fosse chibar no diabo! (...)

Se a capacidade de narrar é, talvez, o grau máximo de habilidade com que um


malandro pode se exercitar na arte da linguagem verbal, antes disso, a fala desenvolta, a
―charla‖, é também uma capacidade com que se reconhece o malandro e sua inserção e
estatura no universo da malandragem. Em um nível semelhante, mas talvez acima da
charla, está o uso apropriado da sabedoria adquirida com a experiência de vida, nas ruas,
que se traduz no largo uso dos ditos populares, das frases feitas, das fórmulas assertivas

336
MPB, 168.
337
Idem, p. 182.
262

sobre a malandragem e, de modo geral, sobre a vida, seja a dos malandros, seja a dos
trouxas. O aprendizado, a charla, a habilidade no jogo e a picardia — a formação malandra
—, possibilita ação e aventura, subsistência e sobrevivência, fama e respeito, mas requer
uma ambiguidade própria da fantasia, do disfarce e de uma identidade instável e
impermanente que a troca do nome de batismo pelo nome de guerra consubstancia.
Salta aos olhos a profusão de assertivas proverbiais (frases feitas e ditos populares,
glosados), com que depara o leitor ao longo do conto, proferidas pelos personagens, mas
também pelo narrador. Alguns exemplos: ―A sorte não gosta de ver ninguém bem‖;
―Joguinho ladrão, ganha aqui quem der mais sorte‖, ―Quando vocês iam no moinho buscar
fubá, eu, cá no meu quieto, já estava de volta com o bagulho empacotado‖; ―Sem dinheiro o
maior malandro cai do cavalo e sofredor algum sai do buraco‖; ―Jogo acabado, quem
comeu regalou-se, quem não comeu estrepou-se‖; ―Não havendo capital, sofredor algum
tira o pé do buraco‖.
Essa capacidade de manejar a fala e o uso das frases feitas, aliás, também compõe a
estratégia de disfarce de que esses personagens lançam mão, para ao mesmo tempo se
colocar em evidência, mas se proteger, se escudar atrás de um código verbal compartilhado.
É como se os malandros estivessem a todo momento se medindo. ―Eu sou mais malandro
que você, mas veja bem, somos semelhantes, parceiros, iguais‖, poderia ser a fórmula das
relações interpessoais no mundo fechado da malandragem.338
O tom conselheiro que os malandros maduros assumem também permite classificá-
los como grandes narradores. Recorrendo de novo a Benjamin, vale lembrar que a
experiência e a sabedoria são as marcas da narrativa tradicional, que traduz a vivência
aventurosa e o sedentarismo sábio do narrador, e essa miríade de ditos populares que
aparecem no conto de João Antônio poderiam ser vistos como um tesouro vivo e coletivo
de conselhos, recomendações, fórmulas de conduta, uma ética do vivido que se transmite e
se perpetua, em função da sabedoria e da cultura. Mas em ―MPB‖, a experiência e a
narratividade, a charla e a capacidade verbal (e proverbial) não apenas se mostram muitas
vezes vazias de sentido, como via de regra se apresentam como facas de dois gumes —
estão a serviço da ambiguidade malandra. É já, portanto, uma sabedoria esvaziada,

338
Berthold Zilly também chamou a atenção para a importância da linguagem como disfarce no conto. ZILLY,
B. ―João Antônio e a desconstrução da malandragem‖. In: Brasil, país do passado?, organização de Ligia
Chiappini, Antonio Dimas e Berthold Zilly. São Paulo: Edusp/Boitempo, 2000.
263

experiência degradada, que pode ser aproveitada em benefício próprio ou usada contra
trouxas, malandros oponentes e inimigos. Uma pobreza de experiência que é expressão de
barbárie, mas uma barbárie, como diz Benjamin, positiva.339
Vale lembrar ainda qual é o contraponto definido por Benjamin em relação à
narrativa tradicional e à sabedoria do narrador. A grande ameaça ao narrador estaria em
uma ―nova forma de comunicação‖ que, ―ameaçadora‖, paulatinamente vinha substituir a
arte de contar: a informação. A contradição, encarnada em João Antônio, um autor que se
dividiu entre as atividades de jornalista e escritor de ficção, também está evidenciada em
suas maiores obras. Em outro dos grandes contos de João Antônio, ―Paulinho Perna Torta‖,
escrito pouco depois da publicação de MPB, como veremos no próximo capítulo, o
narrador-personagem dirá que os jornais andam ―encurtando‖ o seu nome. A imprensa
aparece como uma adversária, um ator social que tem a capacidade de fazer a fama e depois
descartar seus personagens, assim que outros acontecimentos tomem maior corpo. Aqui, em
―MPB‖, a menção à imprensa é sutil e aparece mais positivada. No entanto, já é possível
identificar a oposição entre universo da malandragem, mítico e oral, e mundo instituído dos
meios de comunicação, letrado e formal. Quando os três malandros encontram o já lendário
sinuqueiro Carne Frita, há menção a suas aparições na TV e no jornal:

À esquina da Santa Efigênia toparam Carne Frita, valente muito sério, professor de
habilidades. Havia na cidade e ainda noutras cidades bons entendedores e tacos atilados com
capacidade para fechar partidas, liquidando as bolas. Havia nomes e famas que corriam. Muitos,
muitos. Praça, Paraná, Detefom, Estilingue, Lincoln, Mãozinha... Eram artistas do pano verde. Mas
Frita... quem entendia de sinuca era ele. Em cima dele foram e gramaram muitos e muito esperto
perdeu o rebolado, e muito cobra ficou falando sozinho, esfacelado em volta da mesa, como coruja
cega. E muito patrão de jogo caro se perdeu em apostas contrárias, em lances para mais de vinte
contos. O homem ganhara tamanho, celebridade; uma curiosidade que se exibiu ensinando até na
televisão. Seu nome e fotografia em pose de jogo foram para o jornal numa reportagem que assim
dizia: ―sinuca de carne frita é falta de adversário!‖. Era Carne Frita. Botassem respeito, sentido e
distância com silêncio e consideração.
Moço, baixinho, com uns olhos de menino, esguio como os malandros do joguinho, que
andam quilômetros ao redor das mesas, ninguém daria nada àquele, parado, à esquina da Santa
Ifigênia, dando um gesto de mão a Malagueta, Perus e Bacanaço. Fossem ver... Perguntassem em

339
BENJAMIN, W. ―Experiência e pobreza‖. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie. p. 196.
264

Goiás, em Curitiba, em Porto Alegre, no Rio, em Fortaleza... Sua história abobalhava, seu jogo
desnorteou todos os mestres.
340
Quem de sinuca entendia era Frita.

O malandro que encontram na rua é famoso, uma ―celebridade‖. Segundo o


narrador, ele ganhara tamanho, como se sua imagem tivesse se tornado maior que ele
mesmo, ali reencontrado por acaso na rua pelos malandros. Frita é um malandro que já
virou lenda. Uma lenda viva, como se costuma dizer. Sua fama está acima da de outros
grandes nomes da sinuca, como os demais citados (Praça, Paraná, Detefom, Estilingue,
Lincoln, Mãozinha), e seus feitos são maiores que os de todos eles. Como uma espécie de
mago da sinuca, ele faz outros malandros perderem o rebolado, muito adversário (―cobra‖)
ficar falando sozinho, e desnorteia os oponentes, deixando-os esfacelados, como ―coruja
cega‖. Seu apelido, Carne Frita, aponta para uma ambiguidade enigmática, uma
agressividade destrutiva e ao mesmo tempo nutritiva: é um sinuqueiro, ele mesmo,
encarnado e fritado, mas que é capaz de fritar a carne dos adversários.
Além disso, Carne Frita é descrito com certa aura de santo: ―Botassem respeito,
sentido e distância com silêncio e consideração‖. Para acentuar a aura religiosa com que os
personagens veem Carne Frita, que surge como uma aparição na narrativa, o encontro se dá
na rua Santa Ifigênia. Como se sabe, esta rua do centro de São Paulo, não tem nada de
santa: é atualmente a rua de comércio especializado em artigos eletrônicos e de informática.
Mas à época fazia parte do circuito boêmio, e o narrador mesmo irá chamar a atenção para
o local em que se dá o encontro dos personagens com o lendário Carne Frita: ―Despediram-
se do maior taco do Brasil, ligeiros e firmes entraram pela Santa Ifigênia, rua de virações
como outras, àquela hora dormidas. Alcançaram o largo Santa Ifigênia, a igreja de um lado,
a sinuca do outro‖.
A Santa Ifigênia é uma rua de ―virações‖, como outras, um local simples, sem
suntuosidade, apesar da aura de santidade que o nome indica. Além disso, há uma igreja nas
proximidades, e um salão de sinuca. A oposição entre igreja e sinuca, uma de cada lado do
largo, a proximidade aponta para uma convivência pacífica, para uma existência
compartilhada, o que retoma a noção dos malandros como vadios ―sofredores‖, como seres

340
MPB, p. 188-189. Note-se que neste trecho a expressão tacos atilados generaliza a condição de ―bárbaros‖
(Átilas) para os bons jogadores de sinuca.
265

errantes, sem eira nem beira, sucedâneos de Cristo, como a narrativa já os havia
caracterizado.
A narrativa da vida de um santo também é considerada por André Jolles uma
―forma simples‖. Na tradição da hagiografia, a legenda ou lenda é a forma que narra a vida
de alguém considerado um modelo de virtude a ser seguido: ―O santo é o indivíduo em
quem a virtude se consubstancia e objetiva, o personagem que permite aos que o cercam
mais ou menos de perto imitá-lo‖.341 A vida do santo, ―êmulo de Cristo‖, é uma espécie de
sucedâneo do modelo inaugural, e a peregrinação dos seguidores uma atualização da via
crucis. Se aproximarmos as figuras lendárias dos malandros como modelos de imitação
para os malandros-seguidores, é possível ver os malandros como peregrinos que se movem
em função dos malandros-modelos, que aparecem nas histórias contadas sobre os grandes
malandros — ―heróis‖ lendários como Carne Frita, ou anti-heróis também lendários como
Calói ou Bacalau. Jolles opõe à legenda (a narrativa da vida de santo), uma espécie de
antilegenda, que seria a narrativa da vida de um antípoda do santo: o malfeitor ou
criminoso.342
Os três malandros, assim, são personagens que habitam um mundo em que as lendas
sobre as façanhas, algo próximo do ―milagre‖, são contadas e recontadas, transformando os
personagens em figuras lendárias — por suas virtudes ou por suas maldades. Santos ou
malfeitores, os boêmios, os sinuqueiros e os malandros estão sempre à beira de se tornarem
protagonistas de histórias extraordinárias, lendas que serão contadas e recontadas, fazendo
a fama de qualquer um que se lançar às aventuras várias do mundo da malandragem.
A contradição inerente à arte de narrar, que exige aventura e sedentarismo, é
exposta no conto ao contrapor, de um lado, a experiência, isto é, o aprendizado e a
capacidade de sobreviver no universo da malandragem, e de outro o acaso, as marés de
sorte e azar a que estão sujeitos os personagens — a fortuna, na qual, sintomaticamente,
eles depositam grandes esperanças, como a indicar a insuficiência da ―experiência‖ e da
―picardia‖ de malandros. O aprendizado e a sobrevivência permitem aos malandros narrar
suas experiências, suas aventuras passadas. Mas como eles não se estabeleceram — nem

341
JOLLES, p. 40.
342
A figura emblemática da antilegenda seria o Anticristo, mas o autor cita também personagens literárias
como Fausto e Don Juan, dentre outros. Entre as atualizações da legenda, Jolles cita as histórias de vida dos
grandes esportistas, cujos ―milagres‖ seriam os feitos de que são capazes, os recordes que estabelecem.
266

como trabalhadores (caso do policial aposentado Lima) nem como grandes criminosos —
eles permanecem na condição ambígua e instável de malandros, sujeitos às marés da sorte,
e, portanto, sempre na iminência de nova aventura.
Lembremos de novo o breve e excepcionalmente conciso encerramento do conto,
que se chama ―Lapa‖, assim como a primeira parte da narrativa: ―A curriola formada no
velho Celestino contava casos que lembravam nomes de parceirinhos. Falou-se que naquela
manhã por ali passaram três malandros, murchos, sonados, pedindo três cafés fiados‖.
O mundo da malandragem subsiste, à revelia dos três parceiros, que naquela manhã
voltaram ao lugar de onde partiram, mais uma vez quebrados, massacrados. No mesmo
Celestino de onde eles partiram, reúne-se de novo a curriola, para dar sequência ao ato de
contar, à narração de casos que lembram ―parceirinhos‖. O narrador descreve uma situação
em que, mais uma vez, narradores anônimos se põem a contar histórias de malandros,
inclusive a história de Malagueta, Perus e Bacanaço. Terminado o conto, tem início a lenda,
o mito, a narração.
Não se quer dizer, com isso, que o texto de João Antônio seja um relato mítico.
Trata-se obviamente de uma obra literária, um conto moderno, assinado por um autor e
realista a seu modo. Mas a estrutura circular, a suspensão temporal, noturna, no
desenvolvimento da ação, por um lado, e por outro a orientação dos personagens pelas
marés de sorte e azar, pela fortuna, fazem de ―MPB‖ um conto que se apoia na oralidade e
na arte de contar, num universo, a malandragem, em que a lenda e o mito ainda têm lugar.
E, no entanto, apesar de a experiência malandra se tornar experiência e narrativa, a fama, o
nome ―que corre‖, o estatuto de celebridade (a legenda) dos malandros também é
ameaçadora e os torna vulneráveis, visados pela polícia ou por rivais. De malandros acesos,
acordados, eles passam a malandros apagados ou trouxas, a qualquer momento.

Malandragem: tipicidade e situação narrada

Nem santos nem criminosos: malandros. Já vimos como Malagueta, Perus e


Bacanaço são personagens que vão, aos poucos, sendo delineados pelo narrador, que lhes
atribui comportamentos não apenas de malandros, mas também de trouxas, de pobres-
diabos, de criminosos. No entanto, é a identidade de malandro que prevalece, como indica o
267

final do conto, quando os personagens são, mais uma vez, chamados de malandros. Agora,
porém, ―murchos‖, ―sonados‖ e de novo sem dinheiro. Ao final, os personagens se
afiguram como malandros decaídos, o que lhes devolve à condição de sofredores, erradios,
sem eira nem beira. De novo, a ciranda se fecha: são malandros e são otários.
O importante a esse respeito é que o conto narra a noite de Malagueta, Perus e
Bacanaço enquanto malandros. Os personagens, como já dissemos, são malandros em
situação. A identidade dos três é instável, mas é a ação que os define como malandros, e
não como trouxas, coiós, vagabundos e criminosos — o que eles também são. Em outras
palavras, ―MPB‖ é um conto sobre a malandragem em ação.
Já vimos também que a estratégia de dissimulação é a essência do negócio da
malandragem. A própria condição de malandro pressupõe uma espécie de indefinição
constitutiva, que é expressa inúmeras vezes ao longo do relato. Bacanaço, por exemplo, é
um tipo: veste-se à malandra, de branco, camisa sempre bem passada, sapatos brilhantes,
anel no dedo. No entanto, é um rufião cruel, criminoso rematado, que tortura a prostituta
Marli, queimando-a com cigarros e a supliciando com cabo de aço. Perus é um menino,
caracterizado também como tipo, naquela concepção de personagem, tal como definida por
Antonio Candido, regido por uma lógica343: suas características recorrentes são a mudez, o
hábito de enumerar coisas, o sonho com os jogos caros de Vila Alpina e a inação.
Malagueta é capiongo, um velho encolhido. Os apelidos os identificam menos como
sujeitos complexos, e mais como peças. Os demais personagens da história também são
caracterizados como tipos, mas tipos instáveis. Na Cidade, os três protagonistas vão
encontrar personagens da noite que são ―malandros‖: jogador que parece senador, cafetões
que parecem deputados, ―invertidos‖, mulheres lindíssimas que ―berram erotismo‖,
―mulheres profissionais‖, camelôs, malandros pés-de-chinelo e malandros de turfe. As
identidades da boemia são mutáveis e ambíguas.
A malandragem por excelência, neste conto, porém, se dá obviamente em torno da
sinuca. A esse respeito, Antonio Candido diz que no conto, em torno da sinuca, ―se
desenham uma técnica, um ética e até uma estética, formando um modo de existir que é
sobretudo um modo de subsistir‖.344 O jogo, de fato, é o meio pelo qual os três parceiros

343
CANDIDO, A. ―A personagem do romance‖. In: A personagem de ficção. 5ª ed. S. Paulo: Perspectiva, 1976.
344
______. ―Na noite enxovalhada‖. In: MPB, p. 10.
268

decidem se lançar, na noite em questão, a fim de tentar multiplicar o capital arranjando


depois de terem empenhado o relógio.
É por meio das regras da sinuca e de certo comportamento compartilhado em torno
desse jogo que os malandros podem atuar, mas, justamente, trapaceando sempre que
possível as regras e o comportamento esperado pelos demais envolvidos na roda. Assim, a
―malandragem‖ extrapola o mundo do ―pano verde‖ para se tornar um estilo de vida, ligado
à sinuca, mas com consequências que vão muito além desse universo. O conto sugere a
correspondência entre o jogo e a vida, logo na primeira (e única, diga-se) passagem em que
o narrador descreve o jogo e os personagens em ação jogando sinuca.
É a primeira vez que os parceiros atuam como malandros. A primeira parada dos
três, depois de deixarem a Lapa, é no bairro da Água Branca. Ali, a ação se passa no salão
de sinuca Joana D‘Arc, onde alguns homens jogam o ―jogo de vida‖. É a primeira vez que
os protagonistas são confrontados por outros personagens — e não apenas de acordo com
as regras do jogo.
A sinuca e a vida são aproximadas, e desenvolve-se uma espécie de descrição de um
modo de comportamento que tem algo de prescrição de conduta, manual de boas maneiras
no universo da sinuca e da boemia. Talvez se possa ver aqui, a estética e a ética de que
Candido fala. Mas é, justamente, a dissimulação e o disfarce, a aceitação cínica das regras,
para subvertê-las, que permite ao conluio dos malandros funcionar. É preciso manter a
aparência de normalidade, para que a malandragem possa operar.
Os personagens precisam jogar como se fossem ―trouxas‖, mas ao mesmo tempo
desempenhar o papel a que estão destinados por hierarquia na malandragem. Bacanaço
chefia, Perus ―se atira às bolas‖ e Malagueta defende o menino no jogo de vida. As funções
estão bem definidas e concorrem para delinear com nitidez os personagens em situação.

Fervia no Joana d‘Arc o jogo triste de vida. Um bolo de vida vai a muito porque cresce.
Seis, sete ou oito homens dão bolos de bom tamanho. Quatro, cinco, até seis mil, começando por
baixo, baixo — cem cruzeiros por cabeça. O joguinho vai correndo como coisinha encrencada,
pequenina e demorada. Gente sai e entra gente. O bolo crescendo, o jogo ficando safado. Fica
porco, fica sujo como pau de galinheiro. Um homem quebra o outro comendo-o pela perna,
correndo por dentro dele.
Um bolo de vida fica grande para só um homem comer.
269

Então, o jogo exige porque diferente o jogo fica. Paciência, picardia, malandragem. Quem
não tem, tivesse... Uma sujeira do diabo, que costuma enviar o dinheiro do parceiro para a casa onde
o diabo mora. Um taco é um taco quando é amarrador, no jogo de vida. Se o parceirinho se
encabula, tropica. Perde vida, se perde, vai lá e tropica mais e cai do cavalo. Fica quebrado,
quebradinho, igualzinho à coruja — sozinho, feio e no escuro.
345
Corria no Joana d‘Arc o triste jogo de vida.

No salão Joana d‘Arc eles encontram o terreno propício para a malandragem.


Podem fazer o conluio que armaram. A ambiguidade do jogo de sinuca é de conhecimento
de todos, e por isso o jogo permite que a roda comece pequena e ―encrencada‖, para depois
o ―bolo‖ crescer e o jogo ficar ―safado‖. O relevo aqui é para a conjunção que se dá entre
jogo, dinheiro e caráter demoníaco da ação em cena, que vai ganhando contornos infernais
(o jogo é diferente, sujo, safado, e a situação é de perdição, queda e quebra). O jogo, tal
como ele é jogado pelos parceiros que apostam dinheiro, exige ―picardia‖, isto é, uma
habilidade que é tanto do conhecimento das regras e da competência técnica como de uma
capacidade de dissimular o próprio comportamento, a fim de estudar o comportamento
alheio e enganar, para não ser enganado.
Sobre o trecho acima, em que o narrador explica o funcionamento do jogo, Clara
Ávila Ornellas aponta muito bem para a constituição ambígua do narrador. Aqui, a autora
surpreende a presença do narrador como personagem do conto: ―Não é um personagem-
jogador que apresenta essa explicação, mas o próprio narrador, que, por alguns momentos,
deixa de lado a narração das aventuras dos personagens para atestar sua imergência no
mundo sobre o qual fala. Ao mesmo tempo em que essas explicações reforçam a
contextualização do ambiente representado, elas deixam a seguinte impressão: aquele que
narra é um jogador também, ou se faz passar por um deles.‖346
Narração, sinuca e malandragem, portanto, são atividades que se aparentam: para se
jogar sinuca é preciso malandragem, e para um malandro a sinuca é terreno propício, e as
histórias e as regras da sinuca precisam ser enunciadas, contadas, narradas.
Essa modalidade jogada no salão da Água Branca, o ―jogo de vida‖ serve à
perfeição para o narrador introduzir o leitor na malandragem, pois a regra, também no jogo,

345
MPB, pp. 164-165.
346
ORNELLAS, C. O conto na obra de João Antônio: uma poética da exclusão. op.cit., 2008, p. 105.
270

é a da dissimulação: cada jogador tem a sua bola e precisa defendê-la, procurando


encaçapar as demais, que são dos adversários. Pouco importa de quem é determinada bola,
basta defender a própria. A sinuca é um jogo em que se joga de acordo com as regras e que
premia o mais competente, não necessariamente o mais malandro. Mas é o mais malandro
que transformará um simples jogo em rito e depois em mito, em ação e em narrativa.
O subterfúgio malandro, então, é Malagueta defender a própria bola, mas também a
de Perus, isto é, sem procurar roubar a ―vida‖ do rapaz. Assim, Malagueta amarra o jogo,
permanecendo na mesa e evitando também a saída de Perus. Este, por sua vez, atua como
um franco-atirador, justamente ―atirando-se às bolas‖, como diz o narrador.
O jogo só é jogado desta maneira, à malandra, porque nele há também os parceiros
―fáceis‖, aqueles que jogam a sério e jogam pouco, que colocam o seu dinheiro no ―bolo‖ e
depois, ao perder a rodada, saem da mesa. Ficam aqueles que sabem jogar o jogo ―safado‖,
que vai ficando ―sujo‖ como ―pau de galinheiro‖, pois ao final haverá apenas um vencedor.

Quem visse aquela roda e não soubesse, diria que era aquele o natural do jogo. Para quem
está do lado de fora, como para os otários de jogo, as muitas coincidências do joguinho são
predestinações. Como se não houvesse tabelas, efeitos, puxadas, trucagens e outros recursos que em
sinuca se chamam picardia. Assim falam os trouxas e os coiós e os papagaios enfeitados e os
mocorongos e os cavalos-de-teta:
347
— Joguinho ladrão, ganha aqui quem der mais sorte.

Vê-se, portanto, que malandragem e sinuca foram feitas uma para a outra, pois a
dissimulação e embaralhamento das identidades estão pressupostos em ambas, sinuca e
malandragem, no jogo e na vida. A frase ―Joguinho ladrão, ganha aqui quem der mais
sorte‖ — proferida não se sabe por quê ou por quem, apenas que é uma convicção de um
―trouxa‖ — é mais uma vez uma espécie de ―sabedoria de salão‖ que traduz essa
ambiguidade da malandragem: a sinuca é um jogo de azar, pois ganha quem tem mais sorte,
mas também é um jogo que exige competência; e, no entanto, é uma atividade que
possibilita trapaças, marmelos, malandragem. Picardia é habilidade, mas também
―trucagens‖.

347
MPB, p. 170.
271

Na passagem citada do conto, o narrador estende essa ambiguidade à vida, por meio
dessa metáfora fácil, o ―jogo de vida‖, mas bastante apropriada no que se refere à
verossimilhança da ação narrada, pois trata-se de fato da denominação do jogo, como os
sinuqueiros mesmo chamam essa modalidade. O narrador, porém, vai além, ao mostrar que
nesse ―jogo de vida‖ é preciso não apenas sorte ou competência, mas também picardia, isto
é, capacidade, competência, ―efeitos‖ e ―outros recursos‖.
Tem lugar mais uma vez o jogo de dissimulação. Perus joga como realmente é: um
atirador. Malagueta finge jogar a sério, mas está ―amarrando‖ o jogo. O disfarce de
Bacanaço, por sua vez, está justamente em se manter fora da roda de sinuca, na assistência,
como se fosse um ―otário‖. Mas o narrador está sempre atento aos movimentos internos de
Bacanaço. O discurso indireto livre não deixa o leitor esquecer as intenções malandras do
protagonista:

Bacanaço sorria. Negócio dos bons era ser patrão dos dois. Aqueles não tropicavam, tinham
fome, iam, firmes, e sofredor desempregado dá tudo o que sabe no quente do jogo. Firma a tacada, se
mexe como piranha atenta, quer morder. E belisca porque vai com juízo. Talento já traz escondido na
massa do sangue e juízo a fome lhe dá. Bacanaço examinava o anelão como se não quisesse nada.
Chegava-se à mesa, estendia o maço de cigarros para Malagueta:
348
— Fuma, meu camarada?

Bacanaço fica de fora, e Malagueta não pode deixar que percebam que ele está
―amarrando‖ o jogo. Apenas Perus pode se manter fiel ao que de fato é: um rapaz imaturo e
hesitante, que apenas na sinuca sabe encontrar a linha reta.
No entanto, o disfarce de retos jogadores de sinuca é desmascarado por um novo
personagem da trama: Lima, o policial aposentado que frequenta o salão e ―é considerado‖
pelos demais frequentadores da roda, os ―homens da curriola‖, por conta da autoridade de
sua palavra. As palavras que ele usa e as histórias que conta fazem dele um ―conselheiro
dos mais moços, naquelas bocas de inferno‖.
O personagem de Lima faz par, às avessas, com o personagem de Malagueta. São
dois velhos que habitam o mundo da boemia. Mas Lima é um ―tira‖ aposentado ―desses
tipo encabuladores que ficam entre os malandros e são o quê? Viradores, curiosos?‖. Ele

348
MPB, p. 170.
272

diz qual é o caminho certo: ―gente moça namora, noiva e casa. É o caminho certo. Aqui,
não; aqui é o fim‖. Usa palavras antigas, tem sua fala respeitada e também é bom de contar
histórias, como já vimos, ao rememorar a história do sinuqueiro Calói, que terminou os dias
no hospício do Juqueri, depois que o cérebro ―apodreceu‖ de tanto ele fumar maconha.
É Lima quem vai, a certa altura do jogo, desconfiar que Malagueta está trapaceando,
pois o velho malandro deixou de encaçapar uma bola fácil.

Ali tinha coisa. A bola era fácil, fácil, Malagueta não liquidara. Por que raios o velho
Malagueta só amarrava o jogo, defendendo e defendendo aquela bola quatro? Lima não era um velho
coió. A quem pertencia a bola? Havia coisa.
Lima balançou o indicador no ar e mudou o tom daquela roda.
Botem fé no que digo, qu‘eu não sou trouxa não e nessa canoa não viajo. Tá muito
amarrado o seu jogo, seu velho cara-de-pau. Botem fé. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo uma
cadeia para os dois safados.
Bacanaço se alertou, a mão jogou o cigarro, o rosto se frisou. Diabo. Malagueta facilitara,
deixara entrever a proteção. Também não havia outra saída; derrubasse a bola quatro, teria quebrado
349
Perus num só lance, estariam os dois no buraco. Diabo. Aquele jogo poderia render mais.

O narrador aqui aproxima-se de Lima, para surpreender seus pensamentos e o


momento em que este descobre o marmelo de Malagueta e Perus. É então que Bacanaço, de
fora da mesa, intercede com a imparcialidade de quem supostamente não tem interesse no
jogo. O jogo de disfarces e de identidades atinge aqui um ponto crítico. Lima faz valer sua
autoridade de policial, ainda que aposentado, ao dizer que arrumaria cadeia para os
―safados‖.
Vê-se que não se trata de crime, é malandragem, e passível de punição pelo mando,
pelo poder que o velho tira conserva, com suas ligações com a polícia. Mas o velho Lima,
que o narrador volta a dizer ―não era um velho coió‖, também impõe sua identidade, não
sou trouxa não, e reafirma seu poder de policial decaído, mas residual, com poderes e
influências que podem voltar, se a situação exigir. Não se explicita, mas se trata certamente
de sua ligação com colegas policiais ainda na ativa.
Mas a maneira com que o narrador descreve a mudança de comportamento de Lima
e a forma com que este expressa sua alteração de humor, de percepção e de atitude têm algo
349
MPB, 176.
273

de mágico: ―Lima balançou o indicador no ar e mudou o tom daquela roda‖. É como se o


velho tira, num passe de mágica, pudesse alterar os rumos daquela situação.
Além do poder mágico, Lima também apela aos sentimento religioso: ―Botem fé‖.
A conotação religiosa é reafirmada pelo narrador, que ecoa os pensamentos dos malandros,
que invocam o ―diabo‖ para maldizer aquele mau passo.
Assim, Lima percebe que algo está fora das regras, que ―havia coisa‖, que pega o
―marmelo‖. Assim, pressentindo o conluio, Lima ameaça os malandros com sua autoridade
de policial, renovada, e recua do perigo, da aventura, ao dizer ―nessa canoa não viajo‖. Isto
é, o velho policial sabe que naquela aventura malandra é melhor não embarcar. Mas está
preso às regras e ao desenvolvimento da partida. Sem saber, embarcou em uma canoa
furada.
É curioso que esta é a única passagem do conto em que os malandros são retratados
jogando sinuca em ação. Em outras passagens, posteriores, o narrador fará referência a
outros jogos naquela noite, mas sem descrever os lances e os oponentes, as circunstâncias e
os subterfúgios usados pelos malandros. Assim vai a narrativa até a disputa final, quando os
três parceiros são confrontados por Robertinho, o malandro que os deixa mais uma vez
quebrados.
Com isso, o leitor acompanha as andanças dos três malandros sem que o jogo de
sinuca esteja no centro da ação. A malandragem então evolui e é apresentada pelo narrador
de outras maneiras.
Os parceiro continuam a rodar os salões de sinuca, mas nem sempre encontram boas
oportunidades. No centro da cidade, passam pelo Americano, um dos pontos mais
movimentados da malandragem.

Muita conversa. Sono, fome e vagabundos nos bancos laterais. Muitas falas daquela gente
parda e pálida no Americano, famoso ponto de aponto. Um reduto em que batedores de carteira,
rufiões e jogadores e o geral da malandragem se promiscuíam com tiras e negociantes de virações
graúdas e miúdas. Quando se pretendia um encontro, era o Americano para todas as espécies de
múltiplas arrumações. Mil e um conchavos. Ali funcionavam tipos de muitos naipes, desde a
malandragem das beiradas das estações até os comerciantes da rua 25 de Março. Tiras decaídos, tiras
274

atuantes, gente da Força Pública compareciam contemporizados à malandragem. Engraxate,


350
manicure, barbeiro ao fundo.

Como se nota pelo trecho acima, nem só de sinuca se faz a malandragem e


tampouco ela se faz apenas de malandros. O narrador registra que no Americano se
misturam os personagens que constituem a boemia, o trabalho e a malandragem. Policiais e
agentes da Força Pública ―contemporizavam‖ com a malandragem. São jogadores, mas
também são vagabundos, batedores de carteiras, rufiões, que se ―promiscuíam‖ com
negociantes e tiras, isto é, comerciantes e policiais, da ativa ou não, que fazem ―mil e um
conchavos‖. A inversão é digna de nota, pois, a princípio quem deveria se promiscuir
seriam os policiais e negociantes, em tese do lado ―correto‖ da sociedade, mas o narrador
enxerga a realidade do ponto de vista dos ―errados‖, e então diz que são os criminosos e
vagabundo que são os promíscuos, ao se misturar aos agentes da lei e da ordem.
É uma gente ―parda e pálida‖351 que frequenta o salão, na rua Amador Bueno, uma
rua ―triste‖, como já era ―triste‖ o jogo da vida dos malandros. Mais uma vez o narrador
embaralha as noções entre vida e jogo, malandros e policiais, negociantes e trapaceiros,
comerciantes e viradores, vagabundos e trabalhadores como manicure, engraxate e
barbeiro. Ali, têm lugar ―virações graúdas e miúdas‖, ―múltiplas arrumações‖.
A malandragem, portanto, é vista pelo narrador como um modo de viver que
permeia tudo. O funcionamento social em que vivem os personagens do conto é
permissivo, permeável a todo o tipo de conchavo e arrumação, com prejuízo dos mais
marginalizados e mais iludidos, aqueles que frequentam os salões de sinuca, tanto
malandros quanto otários, sempre à mercê dos que, neste universo de profunda violência,
mantém o poder de explorar, extorquir, prender — como diz o tira aposentado Lima,
―habitante daqui é futuro residente da Casa de Detenção‖.

350
MPB, p. 187.
351
O primeiro título do livro, cogitado por João Antônio, era Aluados e cinzentos. Com outro título ainda,
―Cinzentos vagabundo por aí‖, João Antônio chegou a publicar um trecho do conto, que inclui a passagem
aqui citada, quando os protagonistas ainda se chamavam Caculé, Lustroso e Chafrinha. O texto foi editado em
adendo, em separata, de Malagueta, Perus e Bacanaço, 4ª edição, Cosac e Naify, 2005. Um ano antes da
edição de MPB, o autor publicou outra parte do conto (aquela da partida no Joana D‘Arc), com o título de
―Conluio na Água Branca‖, em O Estado de S. Paulo, 14 jul. 1962. Curiosamente, no mesmo ano, mas
depois, em novembro, outro conto do autor traz os mesmos protagonistas com outros nomes: Malagueta se
chama Pirolito, Bacanaço é Lascado e Perus se chama Luisinho. ―Um velho e um cachorro‖. In: OESP, 17
nov. 1962. Este último conto corresponde à seção ―Barra Funda‖ de ―MPB‖. As páginas do jornal com os dois
textos estão reproduzidas no Apêndice desta tese.
275

Outra passagem do conto fornece a imagem rematada da promiscuidade entre


policial e malandro. Bacanaço e o tira Silveirinha aparecem confundidos, coincidentes, e
fazem um acordo. O encontro se dá de maneira imprevista. Os três parceiros estão na
Cidade, tentando encontrar um salão com jogo bom. Encontraram Carne Frita, o que lhes
parece indicar que estão no caminho certo (a aura de santidade lendária do sinuqueiro
parece ser o sinal da salvação). Chegam ao Paratodos, junto à igreja de Santa Ifigênia. Ali,
vão encontrar uma figura que contrasta com a do Santo Carne Frita.
O encontro se dá com a figura demoníaca do policial Silveirinha, que achaca Perus,
ameaçando o menino. O policial é direto. Quer dinheiro. O jovem malandro fica sem ação,
e os dois parceiros relutam em interceder pelo menino. A cena toda é bastante tensa e
arrastada, como se o narrador se demorasse para acentuar o calvário do jovem malandro,
que, como de hábito no caso de Perus, não consegue se expressar, argumentar com o
policial que o ameaça.
Bacanaço, finalmente, depois da insistência do velho Malagueta, resolve negociar
com Silveirinha. O policial imediatamente libera Perus. O policial e o malandro adulto,
então, sentam-se lado a lado. Silveirinha é o dono da situação:

Pediu bebida com desplante, indicou o tamborete, sentaram-se como iguais. Como colegas.
O malandro e o tira eram bem semelhantes — dois bem ajambrados, ambos os sapatos brilhavam,
mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não soubesse, saber não saberia quem ali era polícia,
352
quem ali era malandro. Neles tudo sintonizava.

Se o encontro com Silveirinha, depois da aparição de Carne Frita, prometia o


inferno da extorsão e da prisão, o procedimento de Bacanaço apela para a semelhança entre
ambos. A malandragem, assim, fala a língua da polícia, que por sua vez é também dona de
uma fala e de procedimentos típicos da malandragem. Se a malandragem lhes acenava com
a estatura de santidade de Carne Frita, a conduta malandra também lhes serve para
enfrentar a ameaça demoníaca da polícia. A ―charla‖ entre Bacanaço e Silverinha acomoda
as tensões e as diferenças, diluídas pelo dinheiro que o policial extorque do malandro.
Assim, o conto parece indicar que a exploração e a malandragem tomaram conta de
tudo. Policiais são malandros, sinuqueiros são malandros, malandros são trouxas, trouxas
352
MPB, p. 196.
276

são trouxas mas podem vir a ser malandros ou viradores ou pés-de-chinelo, sem eira nem
beira. A ―ciranda da malandrangem‖, como bem definiu Jesus Antonio Durigan, tira todos
para dançar.
Não há mais distinção clara entre os polos da ordem e da desordem,353 ou melhor,
estes polos são instáveis, movediços, dissimulados e, inesperadamente, podem revelar ser o
avesso do que aparentam. A tipologia do malandro definida por Candido, como se sabe,
tem como inspiração as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de
Almeida, e o modo de funcionamento social do Brasil imperial, em meados do século XIX.

Um século depois, a sociedade brasileira parece conservar certos aspectos daquela


oscilação entre ordem e desordem, mas com aprofundamento da violência e dos
mecanismos de marginalização, opressão e dissimulação. Depois de o malandro ter sido
cantado pelo samba nos tempos de Getúlio Vargas e ter permanecido forte no imaginário
coletivo brasileiro, o retrato que faz dele João Antônio ainda é romântico e conserva certa
potência latente de subversão da ordem burguesa estabelecida, mas ganha contorno de
marginalidade social mais exasperada.
Ainda é possível oscilar entre o polo da ordem e da desordem (como fazia o
personagem do século XIX e o malandro do começo do século XX), e recusar o mundo
burguês do trabalho, ainda que dependendo deste. Mas no caso dos malandros de João
Antônio, recorrer à malandragem é a única saída que resta depois de que todas as outras
possibilidades de subsistência parecem naufragar. Como bem define Vima Lia Martin, há
uma diferença decisiva entre Leonardo e os três parceiros de sinuca:

[...] se as personagens malandras de Malagueta, Perus e Bacanaço podem ser inseridas na


tradição que se inaugura com Leonardo Filho, a primeira personagem malandra da novelística
brasileira, é importante lembrar uma importante diferença que as afastam. Leonardo vive de maneira
um tanto gratuita, praticando a astúcia pela astúcia e manifestando um apreço pelo ―jogo em si‖,
enquanto que os malandros presentes na obra de João Antônio estão afastados da dimensão lúdica do
354
jogo, já que sua prática está ligada fundamentalmente à subsistência.

353
CANDIDO, Antonio. ―Dialética da malandragem‖. In: O discurso e a cidade. 2a edição. São Paulo: Ed.
Duas Cidades, 1998.
354
MARTIN, op. cit., p. 157-158.
277

A dimensão lúdica da sinuca não está elidida de todo na história. Lembre-se que os
malandros chamam uns aos outros para ―brincar‖. Mas a gratuidade da brincadeira vem
acompanhada de insinuações, dissimulações, de um cinismo que de fato corrompe o caráter
lúdico do jogo. Note-se que o verbo ―brincar‖, com que Bacanaço convida os parceiros ao
final do conto, antes da aparição de Robertinho, retoma o começo do conto, e relembra o
forte conteúdo erótico da briga encenada entre os dois malandros.355 No conto, como já
tivemos oportunidade de verificar, nas palavras do narrador e dos personagens, o universo
da sinuca e da boemia é ―promíscuo‖, e o jogo é ―sujo‖ e ―ladrão‖.
A ação do conto se passa, provavelmente, em meados dos anos 50, durante os anos
JK, e apesar de não dar indicações explícitas de localização temporal, exprime contradições
do desenvolvimentismo brasileiro, da constituição problemática de uma sociedade burguesa
que não é capaz de absorver toda a população. Segundo Ricardo Miyake, ―num momento
histórico preciso, de cruciais transformações no tecido social e econômico brasileiro, as
personagens de ‗Malagueta, Perus e Bacanaço‘ efetivamente representam os impasses da
política desenvolvimentista que, grosso modo, já se havia iniciado desde os primórdios da
década de 1930‖.356
Malagueta, Perus e Bacanaço vivem, como bem diz Vima Lia Martin, uma espécie
de ―malandragem de subsistência‖, mecanismo de defesa em uma sociedade que oferece
poucas oportunidades além do trabalho alienado, do crime, da exclusão, da mendicância e
das artes da trapaça e dos golpes. São também ―pingentes‖, prisioneiros de uma lógica que
os exclui, ao mesmo tempo que os mantém de certa forma ―pendurados‖ na mesma lógica
de exclusão social.
Os contos anteriores de João Antônio, como vimos, mostram como os personagens
passam de operários a vagabundos a malandros. Já neste primeiro livro do autor, é possível
ver os protagonistas como que transformados de ―pingentes‖ em ―merdunchos‖, como diz
Ligia Chiappini, lembrando algumas das metáforas usadas por João Antônio para falar dos
excluídos: ―Pingente, de enfeite a merduncho, o percurso é o mesmo que vai do menino que

355
O verbo brincar também ecoa o erotismo malandro de Macunaíma, personagem que, como se sabe, usava o
termo como sinônimo de prática sexual.
356
MIYAKE, R. Cidade, malandros e Capital: uma leitura dos contos de Malagueta, Perus e Bacanaço.
Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2004, p. 71.
278

se pendura na porta do ônibus como diversão ao trabalhador que arrisca a vida para não
perder a hora‖.357
Para Chiappini, a figura do pingente se liga à figura do jogo: ―Na brincadeira do
menino, há já um rito de iniciação para a inglória trajetória do adulto, um treino para
enfrentar a luta cotidiana contra a morte em que precisa se adestrar desde cedo, com muito
jogo de corpo e astúcia (...)‖. A autora vê a sinuca como metonímia do Brasil, os pingentes
como os brasileiros marginalizados e o jogo como metáfora da luta:

O jogo foi visto, originalmente, como símbolo de luta contra a morte (jogos funerários), contra
os elementos (jogos agrários), contra as forças hostis (jogos guerreiros), contra si mesmo (contra
seu medo, sua fragilidade, suas dúvidas). Para usar as categorias de Roger Caillois (Os jogos e os
homens), ele permite associar o combate, a sorte, o simulacro e a vertigem. João Antônio, em
certos momentos nos fala no jogo da vida, expressão que virou título do filme inspirado no conto
―Malagueta, Perus e Bacanaço‖. Em outros momentos nos mostra que para seus merdunchos a
vida é uma batalha cotidiana. Esse jogo é preparação para a luta e luta mesma desde a infância do
pingente-menino que pensa que apenas brinca. O jogo é sério, tão sério quanto aquele dos
jogadores noturnos que, na mesa de sinuca, disputam o pão nosso de cada dia. O jogo é um mundo
de chances e riscos, cujo resultado vai decidir, como para os jogadores de futebol, feito Garrincha,
quem vai ser vencedor para fazer parte do Brasil dourado e quem vai cair nos trens da Central do
Brasil. Por isso desde cedo carece aprender as regras do jogo para lidar com a sinuca de ter nascido
358
pobre num país que não sabe sair do ―atoleiro em que se meteu‖.

Interessante, porém, é tentar compreender por que, dentre as opções que se


apresentam — grosso modo, o trabalho, o crime e a malandragem — neste conto os três
parceiros ainda optem pela terceira opção, mas sem abrir mão das demais. Vale insistir que
Malagueta, Perus e Bacanaço são malandros na situação narrada, mas são também
criminosos (batedor de carteira, rufião) e dependem do mundo do trabalho, dos trouxas com
dinheiro, para poder operar suas artes da malandragem. Como ressalta Berthold Zilly, em

357
Chiappini toma a metáfora do ―pingente‖ das crônicas do próprio João Antonio. Em Malhação do Judas
carioca, livro do autor, há uma reportagem intitulada ―Pingentes‖, sobre os trabalhadores que viajam
pendurados nos trens da Central do Brasil. João Antônio, neste texto, refere-se explicitamente a Lima Barreto,
ao lembrar a frase de Lima de que o ―subúrbio é o refúgio dos infelizes‖. A precedência da metáfora do
pingente, porém, pode ser localizada não em Lima Barreto, mas em Graciliano Ramos. Ver ―Os passageiros
pingentes‖. In Linhas tortas. Graciliano Ramos. 21ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2005.
358
CHIAPPINI, L. ―O Brasil de João Antônio e a sinuca dos pingentes‖. In Brasil, país do passado?.
Organização de Ligia Chiappini, Antonio Dimas e Berthold Zilly. São Paulo: Edusp/Boitempo, 2000, p. 166.
279

João Antônio o malandro opera uma volta à criminalidade, sem deixar de ser malandro, o
que configura uma postura desmistificadora por parte do escritor:

Ele quis empreender a desmitificação do malandro, opondo-se à sua visão pitoresca e


folclorizada que conhecia muito bem, como músico amador. Quis mostrar que a modernização da
sociedade brasileira e as reformas urbanísticas de Getúlio Vargas até a ditadura militar obrigaram o
malandro, que tinha descido do morro nos anos 20, a voltar para lá, confinado no seu espaço de
359
origem, obrigando-o mais do que nunca à criminalidade ou à miséria.

João Antônio, de fato, escreve num momento em que a malandragem, digamos, se


marginalizou (se que é nesse processo cabe acentuação, se o malandro é também lumpem,
pingente, otário). Mas o conto em análise mostra que, ao mesmo tempo, malandros e otário,
malandros e policiais, malandros e senadores estão ―sintonizados‖, ―confundidos‖, o que
aponta para a permanência e a centralidade da malandragem. É verdade que João Antônio
desmistifica a malandragem, mas conservando elementos de seu caráter mítico e típico. Em
outras palavras, a malandragem se expressa em ―MPB‖ no tipo malandro e no
funcionamento amalandrado, em permanência e em ação.
Essa inquietação sobre a escolha da malandragem como tema parece encontrar
melhor formulação, para os nossos fins, se colocarmos a questão de outra maneira: por que
narrar um conto sobre a malandragem e não sobre o crime ou sobre o trabalho?
A escolha da matéria narrada e da forma narrativa nos parece ser motivada pela
permanência, na cultura e na sociedade brasileira, de uma tradição popular de oralidade e
de informalidade, favorável à literatura que se ocupa das camadas mais pobres da
população. Como tentamos mostrar aqui, a obra de João Antônio, além de refletir a situação
social brasileira e paulistana de meados do século passado, também deita raízes em uma
linhagem narrativa de origens ancestrais, que se relaciona com o mito e com a arte secular
de contar histórias.
A malandragem, assim, é uma prática que combina aventura e sedentarismo,
organizadas no relato guardado na memória do Narrador: o narrador do conto e os
narradores-personagens. De um lado, o deslocamento, a viagem (a errância, neste caso), a

359
ZILLY, B. ―João Antônio e a desconstrução da malandragem‖. In: Brasil, país do passado?, op. cit., pp.
182-183.
280

ilusão de um golpe de sorte e as ocasiões da ―fortuna‖, entendida como as marés de sorte e


azar, mas também como a possibilidade de angariar um dinheiro fácil, tomado como um
―tufo‖, tomado a um otário, colhido na selva da grande cidade; de outro, os momentos de
calmaria, pasmaceira e sedentarismo (uma ―aposentadoria‖ que é retirar-se da febre do jogo
e não regenerar-se), em que os malandros se põem a contar ―façanhas‖, ―fantasiando
grandezas‖, aconselhando os demais, especialmente os mais jovens, que no entanto são
também malandros e aspiram, da mesma forma às façanhas (a gesta, os milagres) e às
fantasias de grandeza (a ascensão social), compondo a roda-viva da malandragem, que é
também a roda da fortuna, a ciranda da qual todos são reféns.
Nesse quadro, o escritor soube tirar proveito do universo da boemia de São Paulo
nos anos 1950-60, para mostrar como, em tempos de desenvolvimento, a sociedade
brasileira que se moderniza, urbanizando-se e se industrializando, mantém características
antigas, que também se ―modernizam‖ e permanecem atuando e dificultando a
emancipação dos sujeitos, especialmente os mais pobres, sempre presos a ocupações
massacrantes (a condição de trouxas, o trabalho alienado e espoliador) ou ao mundo da
transgressão, em diferentes graus (golpe, trapaça, marmelo, malandragem, crime). Mais que
isso, que boa parte da sociedade brasileira nos anos 1950 e 60 permanece sem opção:
escolha o trabalho ou a transgressão, o indivíduo corre o risco de ser espoliado,
massacrado, achacado, violentado. Desde os ―Contos Gerais‖, os protagonistas parecem
desconfiar, hesitantes, das promessas do polo social ―positivo‖. Em ―MPB‖, vemos que os
personagens já não veem o trabalho e a norma social como opção, senão como avesso de
uma conduta que eles adotam, explorando e sendo explorados pelo lado ―direito‖.
Do ponto de vista da narrativa, a malandragem permite, sobretudo, delinear
personagens que são tipos, mas também são complexos: tendo como modelo as figuras
lendárias da sinuca, eles se lançam à aventura da própria malandragem, sonhando façanhas,
mas se mantêm ocupados com outras histórias, com os conselhos ouvidos de outros
malandros ou proferidos por eles próprios, sempre a partir de uma coleção de ditos e
sentenças populares tomadas da tradição brasileira, sedimentadas num saber compartilhado
que é também estratégia de sobrevivência em uma sociedade permeada da oralidade, em
que a Lei e a palavra escrita conservam seu poder e sua superioridade, mas não estão
281

acessíveis aos pingentes, excluídos, sem eira nem beira. A desconfiança da norma é
também desconfiança da palavra escrita, do aprendizado formal e da lei.360
O narrador do conto, como vimos, é o elemento literário que é o veículo e a ligação
desses mundos que se encontram: a oralidade (as narrativas da malandragem, contadas
pelos próprios malandros) e a escrita (a norma e a literatura, o conto contado pelo
narrador), a malandragem e a ordem, a simpatia aos malandros, vistos com proximidade, de
dentro do universo narrado, mas também de fora e à distância, para lhes desenhar como
cruéis, patéticos, imaturos. Neste conto, que se tornou o mais conhecido do autor, e
apresenta seus personagens mais conhecidos, sobressai assim a complexidade desse
―mundo misturado‖, como em Guimarães Rosa.361
João Antônio, neste texto e em contos posteriores, como veremos, desenvolveu uma
escrita que é realista e crítica, mas também é devedora de elementos antigos, próprios da
cultura oral e da tradição popular. Sua visão desse universo, da malandragem, é a um só
tempo romântica e ácida, desencantada e encantada, oscilando, pois, entre os polos da
fascinação e do desalento, da euforia e da melancolia, acompanhando as marés de sorte e
azar, de fantasia e ressaca de seus personagens.
Na situação narrada, portanto, Malagueta, Perus e Bacanaço são personagens que
permanecem, até o final, em conluio, ao mesmo tempo ―funcionando‖ como malandros,
como parceiros, e impedidos de romper com a ordem da malandragem, que os torna
prisioneiros dessa ciranda de exploração, espoliação e, a seu modo, também alienação,
assim como no mundo do trabalho, pois que a ação e a reflexão também são prisioneiras
dessa mesma lógica: é a aventura do golpe, que pode voltar contra eles próprios, e é
reflexão baseada nas lendas de outros malandros, nos ditos populares, em uma sabedoria de
experiência malandra (picardia) e de frases feitas que está a serviço do disfarce, da proteção
de suas próprias existências (restritas material e intelectualmente ao mundo em que vivem)
e também do golpe, fechando o circuito da ciranda.

360
Como vimos no capítulo anterior, a desconfiança com relação ao ensino formal, liga-se à violência do
processo de aprendizado, como ocorre também em Infância, de Graciliano Ramos. Sobre isso ver LAFETÁ, J.
―Três teorias do romance: alcances, limitações, complementaridade‖. In: ______. A dimensão da noite.
Organização de Antonio Arnoni Prado. Duas Cidades/Editora 34. São Paulo: 2004.
361
Para uma análise da combinação entre narrativa, mito, oralidade e romance de formação no Grande sertão:
veredas, ver o ensaio de Davi Arrigucci Jr., ―O mundo misturado. Romance e experiência em Guimarães
Rosa‖, Novos Estudos Cebrap, n. 40, nov. 1994, pp. 7-29.
282

Ponto de fuga: Perus, um infante entre velhos malandros

Haveria assim possibilidade de emancipação desse universo em que a malandragem


permeia tudo, isto é, deste mundo em que ser malandro é não apenas necessário como
inescapável? Qual a possível saída daquele mundo corrompido? Uma saída aventada pelos
malandros é a vingança, a rixa. Diante de um desaforo ouvido contra um outro malandro,
em um dos salões por que passam, o proverbial Malagueta se exaspera: ―— A gente fica até
coisa, meus. Aquilo nem é cinismo, é cinidez‖.362 À possibilidade de intervir naquele
evento específico, o malandro adulto generaliza a vontade de vingança:

— A gente ainda vai à forra, velhão. Bacanaço deu um tapa no paletó imundo de Malagueta.
— Deix‘estar. Tenteia, velho.
363
Só Perus não falou, inteiro no seu quieto.

A vingança, porém, está na lógica da malandragem, que abarca também o crime e a


rede de corrupção, achincalhe, acertos de contas — ―mil arrumações‖, como diz o narrador,
apresentando o mundo corrompido da malandragem e da sociedade de modo geral com
tintas nuançadas, pois o faz de dentro, já que também ele se sente parte do mundo
narrado.364
Apesar, portanto, de serem malandros conluiados — três personagens vistos como
apenas um —, a situação narrada caminha para o desmembramento do enlace e mais que
isso para detonar o arranjo que mantém os três unidos. A tensão entre os três protagonistas
vai apartá-los, ainda que isso, mais uma vez, não redunde em individuação com sentido
emancipatório.
Ao final, o conto evolui para um desenlace que desestabiliza essa igualdade
selvagem que se estabelece entre os malandros, para sugerir uma disputa de todos contra
todos, que está latente nesse mundo selvagem da malandragem, mas que não se afirma, pois
do ponto de vista narrativo seria como que passar da malandragem para a criminalidade. O

362
MPB, p. 198.
363
Idem, ibidem.
364
Para uma visão das relações entre vingança e malandragem, ver o ensaio de Edu Teruki Otsuka, ―Espírito
rixoso: para uma reinterpretação das Memórias de um sargento de milícias‖, Revista do IEB, n. 44, fev. 2007,
pp. 105-124.
283

conto insinua essa passagem, e não a cumpre: pouco antes de serem desafiados pelo
oponente final, Robertinho, os três protagonistas pensam em partir para cima uns dos
outros: ―Malagueta, Perus e Bacanaço preparavam-se para se devorar‖, diz o narrador,
como já vimos.
Neste momento crítico, em que os três parecem abandonar definitivamente o
conluio, a união de três em um, para voltarem a ser um contra os demais, a narrativa vê
surgir outro personagem em cena, Robertinho, que os malandros pensam ser um trouxa,
mas na verdade é um dos maiores tacos da cidade. Mantém-se, assim, o quadro da
malandragem. Surge uma oportunidade de os ―cobras‖ tentarem um último bote, tomar um
―tufo‖ de dinheiro do ―cavalo-de-teta‖ que se oferece, indefeso. A estratégia do disfarce e
da dissimulação se repõe. E os ―malandros‖ Malagueta, Perus e Bacanaço decidem
enfrentar o ―trouxa‖ Robertinho. Ao final, invertem-se os papéis: malandros são trouxas, o
trouxa revela-se um malandro.
O conto, então, afirma a manutenção dos personagens na ciranda da malandragem.
Mais que isso, o conto figura a permanência da malandragem e sua engrenagem de produzir
malandros e trouxas, alternando esses papéis de acordo com a situação.
Além da possibilidade da rixa, que apesar de se manter dentro da lógica da
malandragem poderia elevar a condição dos personagens de malandros para criminosos, o
conto apresenta outro ponto de fuga menos evidente, ainda que mais frágil: Perus.
Este personagem parece estar ainda mais deslocado que todos os demais na pele de
malandro. Perus é o único dos três protagonistas que não adquiriu a capacidade de contar,
não tem a ―charla‖, não é narrador como os demais. O personagem é construído em torno
dessa constante (a lógica do personagem): a dificuldade de falar.
A condição de infante, o que não fala, se relaciona certamente com sua juventude.
Mas a posição de Perus na hierarquia do conluio também revela algo interessante a respeito
da malandragem. A relação do jovem malandro com Bacanaço é, como vimos no início, de
admiração e de inferioridade. Na primeira parte do texto, o narrador chega a dizer que
Bacanaço, em tom de brincadeira, pensa em ―podar‖ o menino. Além disso, Perus sofreu na
própria pele a violência com que o malandro maduro costuma tratar aqueles que estão a seu
serviço. Lembre-se a passagem em que Perus relembra o esculacho que levou, certa feita,
284

de Bacanaço: ―— Vai levar muita porrada se quiser ser um virador, seu coió de mola!‖.365
O narrador, ecoando pensamentos do jovem malandro, registra que Perus não gostou do
tratamento, mas não reagiu.
Perus mantém uma relação de inferioridade em relação a Bacanaço. Diz o narrador
que o menino admirava Bacanaço, estabelecendo assim uma relação filial, que o mantém
entre esse sentimento positivo e a ameaça constante da violência e da castração. A grande
contradição da malandragem está aí: parceria horizontal, ―fraternidade‖ e respeito, mas
também hierarquia vertical, de autoridade e dominação. Por que Perus não consegue se
livrar dessa condição, apesar de dar sinais de que não quer seguir na malandragem e a certa
altura aventar a possibilidade de suicídio?
Um motivo prosaico é justamente aquele do qual viemos nos ocupando até aqui. A
malandragem proporciona a aventura e as promessas de liberdade, a errância e a distância
da família, uma ―vida errada‖ que a sociedade burguesa e a moral familiar não aceitam
como caminho reto. Assim como os demais malandros, portanto, Perus vê na sinuca a
possibilidade de persistir na boemia, sonhar com os jogos caros e talvez assim não ter de
continuar fugindo da polícia.
Mas é possível que haja ainda uma razão mais profunda para a impossibilidade de
Perus romper com essa configuração circular e demoníaca da malandragem: a configuração
psíquica do jovem malandro contribui para o seu mutismo e a sua inação; e além de estar
abaixo de Bacanaço na hierarquia da malandragem, e portanto manter uma relação ―filial‖
com o malandro mais velho, Perus é também um ―igual‖, um parceiro do malandro adulto,
um ―irmão‖ de malandragem.
A ―igualdade‖ entre os parceiros é um dos valores mais arraigados na ética da
malandragem. Como dizem os próprios malandros, no conto, ―Bacalau quis ser mais
malandro que a malandragem‖ e ―isso o perdeu‖. Essa igualdade, portanto, não é de fundo
fraterno ou solidário, mas de fundo opressivo, pois ela não é fruto de afeto, mérito,
sentimento religioso ou da ordem dos direitos perante a lei. Trata-se de uma igualdade
―selvagem‖, que pune aqueles que ousam se destacar ou se desgarrar da horda.
Essa condição de selvageria não é exclusiva de Perus; ao contrário, é comum a
todos os malandros. Os malandros permanecem em um estado intermediário entre a

365
MPB, p. 183.
285

passagem da ―selvageria‖ à ―civilização‖. São na definição do narrador ―bárbaros,


piranhas‖ que atuam como ―relógios‖ e se lançam à aventura da malandragem sem saber se
estão ―certos ou errados‖. As aspas, aqui, marcam a relatividade de conceitos que como
vimos João Antônio trata de questionar e mostrar como são instáveis e permutáveis, ao
encená-los em ação.
Perus, entretanto, é o único dos três que ostenta um sofrimento psíquico e uma
subjetividade diferenciada em relação aos demais malandros todos — como vimos, Perus
diz já ter pensado em se matar.
A metáfora usada por Perus para formular seu impulso de se suicidar é ―se apagar‖,
o que indica que guarda relação estreita e antitética com o ―fogo‖ do jogo. A metáfora do
fogo, ressalte-se, espalha-se pela narrativa. Os malandros sentem a ―febre‖ da ganância, vão
ao ―fogo‖ do jogo, enfrentam outros sinuqueiros no Joana D‘Arc, onde o jogo ―fervia‖,
como que justificando o nome do salão, batizado com o nome da heroína queimada na
fogueira da inquisição.
O fogo e o calor também remetem à dimensão demoníaca do jogo, que em certos
momentos é personificada na menção ao Diabo, ainda que este não seja personagem e não
tenha a ubiquidade de que desfruta, por exemplo, no sertão de Guimarães Rosa. No
universo da malandragem e na obra de João Antônio, o diabo e as metáforas demoníacas do
fogo vêm associadas não a um mistério transcendente, mas a questões materiais bem claras:
a ganância, o jogo e, em suma, o dinheiro. Lembre-se aqui a passagem de ―Paulinho Perna
Torta‖ em que o protagonista elenca uma série de designações para o dinheiro, mesmo
procedimento que se encontra em Grande sertão: veredas no que se refere aos nomes do
demônio.366 Retomaremos essa questão no próximo capítulo.
O mistério sobre a existência ou não do diabo, que perpassa o relato de Riobaldo,
não ocupa os personagens de ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖. Não há referências expressas
ao diabo enquanto entidade ou personagem, como se disse. Não há pacto com o diabo. O
pacto do conto aqui em análise, tácito, é o pacto da malandragem, que envolve a todos e

366
Em João Antônio, a associação entre o demônio e o dinheiro aponta para uma mudança significativa com
relação às obras de Rosa e Graciliano. A ascensão social, cujo momento do sedentarismo permite aos
personagens tornarem-se narradores, deixou de manter relação direta com a propriedade da terra e passou a se
relacionar à posse do dinheiro, o que aponta para o momento social posterior, de financeirização da
propriedade e das relações socioeconômicas, de onde nascem as histórias do escritor.
286

―contemporiza‖ malandros e trouxas, policiais e criminosos, num mundo misturado e sem


transcendência.
O mistério da existência ou não do diabo, o mistério do Mal, no conto aqui em
análise, porém, subsiste. Mas está introjetado. Saiu do mundo e migrou para dentro dos
personagens, e especialmente para um dos personagens, Perus, aquele que tem a psicologia
mais frágil e mais complexa entre os três protagonistas.
Ao final do conto, o menino expressa um sentimento de grande desamparo, ecoando
suas impressões e sensações na visão que ele tem do nascer do sol, que ―feriu, nascendo‖.
Ele não tem coragem de contar esse sentimento: ―Não podia explicar aquele sentir aos
companheiros. Seria zombado, Malagueta faria caretas, Bacanaço talvez lacrasse: — Mas
deixe de frescura, rapaz!‖. Perus, dirá o narrador, achava ―que aquele sentimento não era
coisa máscula, de homem‖. A emoção arrebatadora que sente, o menino não consegue
formular verbalmente. Ele sabe que o nascimento do dia tem outros nomes, e gosta de
―aurora‖. O nome, feminino e mítico — Aurora, deusa da manhã —, para o nascer do sol
resume a condição combinada da fragilidade do menino: Perus é um malandro infante,
enlevado pela aurora, por um nascimento que é ao mesmo tempo promessa de um novo dia
e desejo angustiado, impulso não verbal, pictórico.
O tom do céu, ao nascer do sol, concomitante ao cair da lua

era de um rosado impreciso, embaçado, inquieto, que entre duas cores se enlaçava e
dolorosamente se mexia, se misturava entre o cinza e o branco do céu, buscava um tom definido,
revolvia aqueles lados, pesadamente. Parecia um movimento doloroso, coisa querendo rebentar,
367
livre, forte, gritando de cor naquele céu.

O temperamento contemplativo do jovem malandro traduz, no âmbito da ação


narrada, um anseio e uma incapacidade. Perus é o único dos três malandros que não tem
capacidade de narrar ou desenvoltura com a charla ou com a sabedoria popular. Mais que
isso, o personagem de Perus é todo ele construído em função de sua incapacidade verbal e,
ao final — depois desse momento contemplativo, plástico, artístico em sua descrição
pictórica — de sua impossibilidade de falar.

367
MPB, p.210.
287

Em Perus, assim, preserva-se um manancial de desejo e de angústia, difusos, em


estado latente, de sentimentos não resolvidos, que se relacionam às noções vagas de
nascimento, feminilidade e arte (não verbal), características que ele vive com um pathos
singular, um sentimento que precede o cinismo de Bacanaço e de Malagueta, fazendo dele
um malandro imaturo e inquieto, angustiado, como os protagonistas dos ―Contos Gerais‖.
A emoção com que ele contempla a aurora indica que o espírito de Perus está em desacordo
com o mundo da malandragem e com a própria existência.
Perus poderia ainda, em seu estado latente de infante, desafiar as regras da
malandragem. Ainda que esteja o tempo todo sonhando com os joguinhos de Vila Alpina,
ele parece, em muitos momentos, inadaptado a esse mundo, e cogita, até mesmo, voltar a
morar em Perus e se tornar de novo um trouxa.
Além do caminho do trabalho ―honesto‖, alienado, porém, Perus também pensa em
―se apagar‖. Ele é o ponto de fuga que a narrativa rascunha, mas não chega a delinear, a
saída da ciranda, o desafio ao ―mundo fechado‖ de que fala Antonio Candido, constituído
da boemia, da sinuca, da malandragem, o avesso patético da ordem burguesa à brasileira,
em que se combinam trabalho alienado e moral familiar restritiva e conservadora.
Perus poderia ter evitado a disputa final, em que os parceiros são derrotados por
Robertinho e ficam, mais uma vez, completamente sem dinheiro. Mas está impedido, pelas
regras tácitas da malandragem, de ―denunciar‖ Robertinho, revelar que ele é um cobra, um
malandro, e não um trouxa, coió sem sorte, como pensam os ―malandros‖ Malagueta e
Bacanaço.
É uma última individuação que a ação narrada promove, a de Perus, contraposto a
Bacanaço e Malagueta. Mas o menino aceita sua inserção no universo da malandragem,
segue as regras, e evita falar — o que também está em consonância como sua
caracterização como personagem. Assim, o menino permanece em sua condição de infante,
de jovem imaturo, de parceiro menor, de malandro e, finalmente, de trouxa que vai terminar
a noite sem dinheiro, pedindo café fiado.
Ao contrário de Paulinho Perna Torta, o personagem do conto de mesmo nome,
Perus permanece na condição imatura de malandreco, incapaz de desafiar as autoridades
que lhe surgem pelo caminho: o amásio da tia, com quem ele se atraca, mas com quem não
rompe; Bacanaço, parceiro mais velho, espécie de pai substituto e irmão de malandragem,
288

já que parceiro de sinuca e conluio; o policial Silveirinha; o malandro Robertinho. Perus


não é, como Perna Torta, um parricida. Com isso, está preso à condição infantil e sofrida de
malandro imaturo.
Perus é aquele que poderia romper com a ordem da malandragem. Mas ele está
impedido de fazê-lo. Poderia enfrentar o amásio da tia, mas este é um ―tio‖, do qual ele
prefere fugir (ao aderir à malandragem) ou aceitar (quando pensa em virar trabalhador,
trouxa). Poderia enfrentar Bacanaço, mas este é, além de chefe (um pai substituto), também
um parceiro, um irmão de malandragem, em quem o menino deposita suas esperanças,
nunca realmente apagadas, de se tornar um grande malandro e de dar um golpe, arrumar um
parceirinho fácil:

Mas o joguinho virava, sorria, chamava, dava-lhe um parceirinho fácil em duas partidas de
duzentos e cinquenta cruzeiros. Os pensamentos bons iam embora, arranjava um patrão, caía
na sinuca. Ganhava um tanto, se arrumava por uns dias. Na continuação, de novo se estrepava, o
joguinho castigava. Perus combatia, entretanto. Doía-lhe na pele ver o capitalzinho juntado ir-
se minguando, pingado fora de seu bolso, feito coisa do alheio. Desnorteava-se nas tacadas,
com pouco estava sem nenhum, arruinado, sem dinheiro e sem patrão. Dias depois, se
368
mortificava com lamentações novas.

Ao não cometer o parricídio necessário à sua emancipação, Perus reafirma sua


inserção na ciranda, incapaz de romper com o conluio, ao menos no espaço da ação
narrada. Ele também é refém do caráter demoníaco da malandragem, sempre em círculos,
sempre na roda da fortuna, indeciso entre a vida reta de trouxa e a vida atirada de cobra da
sinuca, mas permanentemente seduzido pela malandragem, pela lógica das marés de sorte e
azar, que faz o dinheiro vir e ir, ―feito coisa do alheio‖, coisa feita, feito coisa do demo.
Além do suicídio, Perus cogita outra saída: abandonar a malandragem e voltar a ser
trabalhador, sem se decidir por uma ou por outra decisão, indicando que o demônio não é a
malandragem nem o dinheiro, nem está na boemia, tampouco no crime, mas na indecisão.
Como diz Davi Arrigucci a respeito do Mal no Grande sertão, Riobaldo ostenta um
―demonismo íntimo‖, ―uma interioridade partida entre as contradições fundas da
existência‖.369 Perus, da mesma forma, tem um demônio dentro de si — a angústia e o

368
MPB, p. 204.
369
ARRIGUCCI JR., D. ―O mundo misturado‖, op. cit., p. 9.
289

desejo — que o faz perseguir o demônio exterior, o dinheiro, sem que sua fome, de existir e
de ganhar, seja saciada, ainda que ele cogite, há muito tempo, apagar o fogo da própria
vida.
A contradição que permanece é a da constituição dos personagens malandros, que
são um, mas precisam ser três. Sozinhos e sem dinheiro, eles estão impedidos de ascender à
condição de malandro e, portanto, lhes restam estratégias, digamos, menos dignas, ao
menos para a concepção de mundo malandra e para a estratégia narrativa do narrador do
conto, quais sejam: o trabalho, a família, a moral, o mundo burguês tal como ele se
afigurava na São Paulo dos anos 1950 ou o crime.
A malandragem pressupõe uma estratégia de conluio, a relação entre um e outro
malandro, um mais malandro que os demais, a oposição entre um ―chefe‖ e um
―subalterno‖, uma relação de hierarquia que é ao mesmo tempo vertical e horizontal, já que
os malandros são parceiros, isto é iguais, que conservam a ideia de que há malandros mais
malandros que eles e que há sempre alguém no comando, um líder, um chefe que se
destaca. Essa relação ao mesmo tempo vertical e horizontal, paterna e fraterna a um só
tempo, os prende na lógica da dissimulação, que exige ser e não ser ao mesmo tempo.
Destino de malandro é virar lenda; é viver como um indivíduo excluído, um
pingente, que entretanto é parte da mesma conformação social que inclui aqueles que eles
desprezam, os trouxas; é ser e não ser.370
Esse destino contraditório e ambíguo da malandragem ganha neste conto de João
Antônio um retrato complexo, ―misturado‖, que combina elementos da literatura oral, das
formas simples, ao mesmo tempo que uma formalização contemporânea e realista, que
explora os aspectos antigos e modernos do gênero conto e da própria arte de narrar.
Talvez a constituição singular deste narrador de João Antônio seja uma resposta ao
impasse formulado por Adorno, de que ―não se pode mais narrar‖.371 E, no entanto, o conto,
assim como o romance, exige a forma narrativa, a ação que se desenrola no tempo. A
questão para Adorno é que o realismo da forma romance e sua objetividade épica não tem

370
Nesse sentido, os personagens se aproximam também da ―formação supressiva‖ de que fala José Antônio
Pasta Jr., e a autofagia dos personagens se liga ao que o crítico chama de ―luta de morte‖. PASTA JR., J. ―O
romance de Rosa. Temas do Grande sertão e do Brasil‖. op.cit.
371
ADORNO, T. ―Posição do narrador no romance contemporâneo‖. In Notas de literatura I. op.cit., p. 55.
290

mais lugar num mundo em que ―se desintegrou a identidade da experiência, a vida
articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite‖.372
João Antônio parece ter em mente essa questão — a experiência como fonte da
narração — ao criar um narrador ao mesmo tempo fascinado pela matéria narrada, cujo
ponto de vista se insinua entre os malandros, e apartado desse mesmo universo. O narrador
registra a fala e os pensamentos dos personagens, colado a eles, e narra, avança e recua,
distanciado, sugerindo a um só tempo a necessidade e a dificuldade da aventura e da
elaboração da experiência sobre ela — a narrativa.
A elaboração da experiência passa pela narração, pela capacidade de contar histórias
e pela constituição dos personagens. A façanha e a narração, no entanto, são ambíguas, pois
elas acarretam fama: fazem o nome do malandro e redundam em ameaça ao personagem.
A constituição dos personagens é central para sua sobrevivência e para a sua
atuação. A fama faz o malandro ganhar nome e muitas vezes ganhar nome de guerra,
tornando-o famoso. Já vimos como isso aconteceu com Meninão do Caixote. Aqui, ocorre o
inverso com Perus: ele precisa buscar jogo em bairros distantes, onde não é conhecido por
outros malandros e pela polícia. No universo da ―desordem‖, no polo ―negativo‖ da
sociedade, ter nome resulta, de novo, em sinuca: ganha-se fama e com isso passa-se a ser
respeitado, mas também temido e sobretudo visado (pela polícia e por outros malandros).
Veremos como essas contradições ganham representação mais elaborada em ―Paulinho
Perna Torta‖, no próximo capítulo.
Assim como se aproxima dos personagens, a ponto de se confundir e se misturar a
eles, o narrador também se mantém à parte e, algumas vezes, acima de seus personagens. A
posição de superioridade do narrador com relação aos personagens se evidencia em alguns
momentos do conto em que aquele se refere a estes de maneira ambígua. Os malandros,
para o narrador, são vagabundos, sofredores: ―Eram três vagabundos, sofredores, sem eira
nem beira‖, como registra o conto quando os malandros passam pelo bairro das Perdizes.
O narrador não usa a expressão pobres-diabos, mas os descreve como se fossem.
José Paulo Paes tem uma interessante distinção acerca dos personagens populares na
ficção brasileira. Para o autor, os personagens pobres são representados ora como
proletários, ora como lumpem. Mas o pobre-diabo é o ator literário mais interessante:

372
Idem, ibidem, p. 56.
291

Como acontece com alguma frequência nas frases feitas, o sal da expressão ―pobre-diabo‖ está
em seu caráter paradoxal. Nessa expressão, um núcleo de negatividade se abranda numa aura de
positividade. O foco da negatividade é evidentemente a palavra ―diabo‖, que nomeia o espírito do mal,
o decaído de Deus exilado para sempre no mundo inferior das trevas, de onde costuma se escapulir
para vir praticar maldades em nosso mundo terrestre e desviar-nos do caminho da salvação, que é o do
mundo celeste. E como a perdição constitui o máximo de feiúra moral, ―diabo‖ designa também
fígurativamente o ―homem de mau gênio‖ o ―indivíduo feio‖. Todo esse feixe de acepções negativas
de que o nosso espírito virtuosamente se retrai é abrandado, porém, por um adjetivo que não só as
neutraliza como chega até a lhes inverter o sinal. ―Pobre‖ se diz de quem se acha falto ou privado do
necessário; de quem foi mal dotado ou pouco favorecido; por extensão, de quem seja infeliz,
desprotegido, digno por isso de lástima e compaixão. Compadecer-se é, etimologicamente, padecer
junto, mas — atenção — em posição de superioridade. Magnanimamente abdicamos, por um
momento, do nosso conforto de não sofredores para, sem risco pessoal, partilhar o sofrimento de alguém
menos afortunado e por conseguinte inferior a nós. De alguém a quem possamos entre depreciativa
373
e compassivamente chamar de ―pobre-diabo‖.

No caso da tipologia de José Paulo Paes, a figura por excelência do pobre-diabo na


literatura brasileira é o pequeno funcionário público, de boa proveniência, cuja família já
teve dias melhores, mas que decaiu para uma condição de classe rebaixada e vulnerável ou
que conseguiu ascender ao funcionalismo ou a outra profissão liberal, como o jornalismo.
Os exemplos mais eloquentes do ensaio de Paes são o Luís da Silva, de Graciliano Ramos,
em Angústia, e o Isaías Caminha de Lima Barreto.374
Em João Antônio, os merdunchos, pingentes, sem-eira-nem-beira são pobres-diabos
ainda mais pobres, personagens de um lumpesinato que, por meio da malandragem, aspira a
melhorar de condição, mas que sabe que a ascensão social e a inserção no polo social
positivo são improváveis. Os merdunchos são excluídos e, no entanto, são parte dessa
mesma sociedade de bem que os exclui, isto é, são marginais, ligados à ―ordem‖ pela
condição de ―desordem‖ que lhes é destinada... pela ―ordem‖. A imagem do pingente,
consagrada pelo autor, traduz bem essa condição simultânea de exclusão e dependência do
polo social ―positivo‖, ordem da qual os personagens sabem que são reféns, pois não
pertencem a ela, mas da qual, como estão estão inseridos-excluídos, eles intuem que a

373
PAES, José Paulo. ―O pobre-diabo no romance brasileiro‖. In: Armazém literário. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
374
Além de Angústia, de Graciliano, e Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, José Paulo
Paes analisa em seu ensaio O Coruja, de Aluízio Azevedo, e Os ratos, de Dyonélio Machado.
292

malandragem pode oferecer alguma saída — um golpe, provisório e improvável, mas ainda
assim, sedutor, pois promete aventura, façanha, história, fama, narração.
O narrador do conto não é um pobre-diabo. Ele trata os personagens ao mesmo
tempo de maneira igual e superior, como se eles fossem pobre-diabos com quem ele se
identifica, mas de quem está à distância e acima. Mas apesar de, como vimos, o narrador se
colocar ao lado de seus personagens e à parte deles, seu ponto de vista distanciado não se
constitui, salvo engano, de maneira soberba ou moralmente superior, apelando ao pitoresco.
A narração tem capacidade de torná-los figuras dignas de serem cantadas e
relembradas. Assim, vagabundos se tornam malandros e viradores viram heróis. No mundo
desencantado e sem perspectivas da cidade grande brasileira nos anos 1950, a sinuca, o
jogo, o crime e os pequenos golpes a que se dedicam os personagens são ocasião para não
apenas proporcionar sobrevivência, permitir certa sobrevida, mas também galgá-los a um
status simbólico mais elevado de existência. É o jogo que confere sentido às existências e
permite que suas vidas ganhem relevo e estatuto literário. Como o mundo da pobreza, da
marginalidade e da sinuca é, digamos, desprovido de história oficial e cultura letrada, é na
oralidade das conversas, dos causos e das narrativas sobre malandros lendários que se
constrói a vida e a representação da malandragem.
Como já ocorrera em ―Busca‖, temos novamente um conto de estrutura circular, em
que a ação, do ponto de vista espacial, retorna ao ponto inicial. E o tempo do conto é regido
pela contradição entre a atemporalidade da noite e a cronologia do tempo do relógio, que
corre contra eles, mas que eles tentam ignorar, ou melhor, lograr, empenhar em troca de
dinheiro, como o gesto de Bacanaço indica.
Não é apenas o trajeto circular dos personagens que confere teor de mito e lenda ao
universo narrado. Além do desenho da ação, que começa, desenvolve-se e retorna ao
mesmo lugar, também o elenco e as falas (proverbiais e narrativas) dos personagens
corroboram a inscrição da boemia e da malandragem no universo do mito e da lenda. Além
da ação narrada — a história que descreve as andanças e golpes de Malagueta, Perus e
Bacanaço —, o conto apresenta outras histórias de malandros e otários, narradas por
personagens que, na situação narrada, são... narradores.
Talvez possamos, recorrendo à distinção de Octavio Paz dizer que o conto de João
Antônio, acompanhando a oscilação das marés de sorte e azar dos protagonistas, também
293

oscila entre a prosa e a poesia, o conto moderno e a narrativa antiga, entre o realismo da
literatura contemporânea e as histórias fabulares características da lenda e do mito:

Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a manifestar-se
como uma construção aberta e linear. Valéry comparou a prosa com a marcha e a poesia com a
dança. Relato ou discurso, história ou demonstração, a prosa é um desfile, uma verdadeira teoria de
ideias ou fatos. A figura geométrica que simboliza a prosa é a linha: reta, sinuosa, espiralada,
ziguezagueante, mas sempre para diante e com uma meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa
sejam o discurso e o relato, a especulação e a história. O poema, pelo contrário, apresenta-se como
um círculo ou uma esfera: algo que se fecha sobre si mesmo, universo autossuficiente e no qual o fim
é também um princípio que volta, se repete e se recria. E esta constante repetição e recriação não é
375
senão o ritmo, maré que vai e que vem, que cai e se levanta.

Destino de malandro é virar lenda. E este destino, como todo destino, precisa ser
cumprido. A história dos personagens mais conhecidos de João Antônio é uma narrativa
sobre narrativas da malandragem, sobre a própria arte de contar e suas limitações.
Malandros viram lenda por seus feitos, mas também por suas malfeitorias, e o momento da
constituição da lenda é o da glória, o reconhecimento do milagre, ou da danação, da queda,
da cadeia ou do hospício.
Por fim, o conto é também um conto sobre a investigação das três idades do homem,
a resposta ao enigma da esfinge, tal como formulada pela malandragem paulistana de
meados do século xx. O velho Malagueta, conselheiro e capiongo, é o retrato do malandro
sábio, mas estropiado, espoliado pela vida malandra. Bacanaço é o chefe dos malandros,
que é admirado, fino, mas também cruel e pouco reflexivo. Perus, como dissemos, é um
ponto de fuga que não se delineia com clareza, mantendo o desenho mítico dessa narrativa
que também é um crônica realista da malandragem. Sua juventude e sua inquietação
mostram que, nele, se esboça uma tangente da roda da fortuna, um ponto de saída da
ciranda, mas que a narrativa, fiel à sua mistura de mito e realismo, não formula na ação
narrada. O ponto de fuga está lá, justamente, em estado latente.
Apesar da ideia de que a narração não é mais possível, expressa por Adorno a
respeito do romance contemporâneo, a oralidade profunda que se apresenta no texto aqui

375
PAZ, Octavio. ―Verso e prosa‖. In: Signos em rotação. 3ª edição. Organização de Celso Lafer e Haroldo de
Campos. São Paulo: Perspectiva, 2003, pp. 12-13.
294

em análise, mostra que o universo da malandragem subsiste como um terreno de resistência


―ao mundo administrado, à estandardização e à mesmice‖,376 mas também como um mundo
dependente da ordem burguesa e do capital, contradição que o conto não resolve. Antes,
reafirma nas marés de sorte e azar, nas alternâncias de euforia e melancolia, na
dissimulação e no disfarce, nos golpes dados e sofridos pelos malandros, na metáfora do
fogo e do jogo, do diabo e da fortuna.
A permanência da lenda, do mito e da aura santa e nobre que se ergue em torno dos
malandros traz consequências literárias interessantes que dizem respeito à tragédia e à
realidade latente da sociedade brasileira, com desdobramentos na ficção, na biografia e na
autobiografia de João Antônio.
A continuação das leituras dos contos de João Antônio, especialmente de textos
como ―PPT‖, tema do próximo capítulo, permite compreender de que maneira o escritor
condensou, na ficção, as promessas e limites da malandragem, que também dizem respeito
à biografia do autor, em conexão com sua literatura.

376
ADORNO, T. ―Posição do narrador no romance contemporâneo‖. op.cit., p. 56.
295

CAPÍTULO 4

ASCENSÃO E QUEDA DO

MALANDRO

Sobre “Paulinho Perna Torta”


296

―Paulinho Perna Torta‖ é um dos textos mais conhecidos de João Antônio, mas não
dos mais comentados: a fortuna crítica do autor registra poucas leituras aprofundadas deste
conto. Como se sabe, é uma das principais realizações ficcionais do escritor, que Antonio
Candido definiu como obra-prima: ―João Antônio publicou em 1963 a vigorosa coletânea
Malagueta, Perus e Bacanaço; mas a sua obra-prima (e obra-prima em nossa ficção) é o
conto longo ‗Paulinho Perna Torta‘, de 1965. Nele parece realizar-se de maneira
privilegiada a aspiração a uma prosa aderente a todos os níveis da realidade, graças ao fluxo
do monólogo, à gíria, à abolição das diferenças entre o falado e o escrito, ao ritmo
galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a
vida do crime e da prostituição‖.377 O elogio de Candido foi feito em um ensaio, ―A nova
narrativa‖, em que o crítico procurava apresentar, no final da década de 1970, a prosa de
ficção brasileira contemporânea. Dentre outros autores, destaca Rubem Fonseca e João
Antônio, que diz terem inaugurado uma nova tendência da nossa literatura, um ―realismo
feroz‖. No entanto, Candido não faz uma leitura interpretativa de ―Paulinho Perna Torta‖.
Sua apreciação do conto se dá dentro de um contexto amplo, que ele avalia como de grande
dinâmica, experimentalismo e renovação na literatura nacional. No que se refere à prosa
realista, Candido valoriza os relatos em primeira pessoa, pois neles ―a brutalidade da
situação é transmitida pela brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se identifica a
voz narrativa, que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e
matéria narrada‖.378 A primeira pessoa, relato em que o narrador é também o protagonista
de sua própria história, é o foco narrativo de ―Paulinho Perna Torta‖, com implicações
formais e críticas decisivas, como veremos.
Jesus Antonio Durigan também destaca em ―Paulinho Perna Torta‖ a narrativa em
primeira pessoa, para valorizar a linguagem empregada, que o crítico chega a definir como
um ―saber narrar malandro‖, que se manifesta, segundo ele, por um processo de colagem:
―A competência que garante a sobrevivência do narrador está intimamente ligada à sua
capacidade de valer-se de textos (ditos populares, biografias, gírias, estereótipos etc.) e de
características textuais (ritmo, pontuação, sonoridade) alheias. Sua sobrevivência como

377
CANDIDO, Antonio. ―A nova narrativa‖. In: A educação pela noite & outros ensaios. op.cit., pp. 210-211.
378
Idem, ibidem, pp. 212-213.
297

narrador depende, em outras palavras, não do que cria, mas do que agarra do mundo dos
outros e maneja com a maestria gerada pela necessidade de sobrevivência‖.379
Tania Macêdo, em texto publicado na edição mais recente do livro, retoma a
importância do olhar narrativo interno, que orienta as três principais narrativas de Leão-de-
Chácara (além de ―Paulinho Perna Torta‖, ―Leão-de-chácara‖ e ―Joãozinho da Babilônia‖
são narrados em primeira pessoa, e apenas um dos relatos é narrado em terceira: ―Três
cunhadas – Natal 1960‖). A autora chama a atenção para a grandeza trágica do personagem,
que reflete sobre sua própria história. Para Macêdo, ao adquirir consciência sobre seu
destino, Paulinho Perna Torta ―defronta-se com a solidão e, nesse movimento de mirar-se
sem piedade, impregna-se de uma tragicidade que o engrandece sobremaneira‖.380 A
conjunção de ponto de vista interno e caráter trágico traduz bem o espírito do conto e
informam sua estrutura formal, como veremos.
Apesar de ter saído em volume de autoria de João Antônio apenas em 1975, quando
do lançamento de Leão-de-chácara, segundo livro do autor, ―Paulinho Perna Torta‖ foi
publicado pela primeira vez dez anos antes, em 1965, na coletânea Os dez mandamentos. A
participação de João Antônio no livro, organizado por Ênio Silveira, se deu a convite deste,
então editor da Civilização Brasileira.381 O volume trazia contos de escritores brasileiros,
como Jorge Amado, Carlos Heitor Cony, Marques Rebelo e Campos de Carvalho, entre
outros, inspirados nos preceitos bíblicos. O conto de João Antônio, o último da relação,
correspondia ao décimo mandamento: ―Não cobiçar as coisas alheias‖.
É, assim, um texto contemporâneo das primeiras realizações do autor, apesar de ter
sido incluído em seu segundo livro. Além da boa, ainda que escassa, recepção crítica,382 o
apreço do próprio autor com relação ao texto se manifestou em diversas ocasiões e se
manteve ao longo de sua trajetória.383

379
DURIGAN, Jesus Antônio. ―João Antônio: o leão e a estrela‖. In: ANTÔNIO, João. Leão-de-chácara. 7ª
edição. São Paulo: Estação Liberdade, 1989, p. 16.
380
MACÊDO, Tania. ―Malandros e merdunchos‖. In: ANTÔNIO, João. Leão-de-chácara. São Paulo: Cosac e
Naify, 2002, p. 12.
381
Sobre isso, ver o capítulo 2 do trabalho de Rodrigo Lacerda sobre João Antônio. LACERDA, Rodrigo.
João Antônio: uma biografia literária, tese de doutoramento, DTLLC, FFLCH-USP, 2006.
382
Ver trabalho de Jane Cristina Pereira sobre a recepção crítica da obra de João Antônio: ―Estudo crítico da
bibliografia de João Antônio (1963-1976)‖. Dissertação de mestrado, Unesp, Assis, 2001.
383
Em 1993, o conto ganhou edição voltada ao público infanto juvenil, pela editora Mercado Aberto, de Porto
Alegre. Em 1996, foi incluído na coletânea do autor Patuléia. Gentes da rua, pela Ática de São Paulo.
298

No ano de lançamento de Leão-de-chácara, 1975, já morando no Rio de Janeiro,


João Antônio comenta, em entrevista, a inspiração pessoal que o motivou a escrever o
conto: ―Eu sou paulista, nasci na Maternidade de São Paulo, dia 27 de janeiro de 37. Fui
criado em São Paulo uma boa parte de minha infância. Morei em muitos lugares de São
Paulo, principalmente lugares pobres, porque meus pais eram e são pobres. Morei nos
lugares mais diversos, Vila Pompéia, Osasco, Presidente Altino, moramos nas Perdizes,
meu pai mudava muito, questões de vida e tal. De forma que São Paulo é uma cidade
que conheci muito profundamente. A história de ‗Paulinho Perna Torta‘, evidentemente,
não é autobiográfica, mas muita coisa daquilo foi vivenciada, foi vista, fui
acompanhando, como a história ‗Malagueta, Perus e Bacanaço‘. A aventura ou
desventura da noite dos três jogadores, em cima da qual eu faço a novela ou conto, foi
vivida por mim muitas vezes. Meu conhecimento de São Paulo chegou a ser quase
milimétrico em certas áreas. E posso dizer até o seguinte: que com esses mesmos
nomes existiram jogadores de sinuca, Malagueta, Perus e Bacanaço‖.384 Nos últimos anos
de vida, o autor voltaria a declarar sua preferência pelos contos de juventude, como já
vimos nos capítulos 1 e 2, com especial predileção por ―Paulinho Perna Torta‖: ―Gosto de
todos os meus contos. (...) Gosto, creio que seja natural, um pouco mais dos filhos da
minha juventude, no caso os contos extraídos do livro Malagueta, Perus e Bacanaço. Mas
gosto também do ‗Paulinho Perna Torta‘‖.385
Apesar da semelhança e da contemporaneidade de ―Paulinho Perna Torta‖ com
relação aos contos de MPB, o conto dá um passo além das narrativas iniciais do escritor,
mantendo entretanto semelhanças importantes com os textos do primeiro livro. A mudança
formal mais significativa de ―Paulinho Perna Torta‖ em relação a, por exemplo,
―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ é que este, como vimos, é narrado em terceira pessoa,
enquanto aquele retoma o ponto de vista interno que marcava os ―Contos Gerais‖ e outros
contos do livro de estreia.
―Paulinho Perna Torta‖ é um conto narrado pelo protagonista ele mesmo: assim
como Vicente e Meninão do Caixote, Paulinho Perna Torta é o narrador de sua própria

384
―O [sub]mundo de João Antônio‖. Entrevista publicada em setembro de 1975, na revista Crítica. In:
ANTÔNIO, João. Leão-de-chácara, São Paulo, Cosac e Naify: 2002, p. 173.
385
―João Antônio: ‗Escrevo de dentro para fora‘‖. Entrevista com João Antônio. In: ______. Patuléia: Gentes
da rua. São Paulo: Ática, 1996, p. 3.
299

história. O arco de tempo em que a narrativa se desenrola, porém, é expressivamente maior


que em todos os relatos anteriores em primeira pessoa. Ademais, em consequência disso, o
conto se estende e ganha corpo, densidade narrativa, marcação histórica e maior número de
páginas. Dentre as narrativas ficcionais de João Antônio, ―PPT‖ é, ao lado de ―MPB‖, seu
texto mais longo e aquele que desenvolve com mais segurança a trajetória de ação e
ascensão do protagonista, além de se relacionar, intimamente, com a história social da
cidade de São Paulo — este conto sobre um malandro que se torna rei do crime guarda
relação com a história real de Hiroito de Moraes Joanides, ainda que não se inspire
diretamente nela.386
O conto narra a trajetória distendida do herói individualizado, que conta sua própria
história. O foco narrativo em primeira pessoa, além de obviamente proporcionar um olhar
interno ao próprio relato, cumpre no conto uma outra função, que ganha ênfase na
enunciação: reparar as inverdades que se contam sobre o personagem-narrador. Paulinho
Perna Torta se empenha em negar certas calúnias que, diz ele mesmo, são contadas a seu
respeito, por conta mesmo da fama que corre em seu nome. Nesse embate, estão o
protagonista, de um lado, e de outro os oponentes que espalham falsidades a seu respeito,
encurtam-lhe o nome e o perseguem: a imprensa, a polícia e outros malandros e criminosos.
Essas informações inverídicas, pretensamente falsas a respeito dele próprio, o
narrador as enuncia para negá-las: uma delas é a de que ele teria matado o próprio pai para
ficar com uma herança; outra, a de que ele começou na ―zona‖, isto é, sua iniciação na
malandragem e no crime teria se dado na região da antiga área do meretrício, no Bom
Retiro. Na verdade, diz ele, começou sua vida de virações muito antes, como engraxate e
menino de rua. A questão inicial e principal, entretanto, não é uma mentira que corre em
seu nome, mas, mais grave que isso, a ameaça ao seu nome de guerra.
As ambiguidades entre identidade, fama e ameaça ao nome (que é em verdade uma
ameaça ao próprio personagem) concentram no tema do nome a principal chave de
386
Originalmente publicado em 1977, o livro de Hiroito de Moraes Joanides que conta a sua própria trajetória
e a história da Boca foi republicado há cerca de dez anos: Boca do Lixo. São Paulo: Labortexto Editorial,
2003. Em entrevista incluída em Patuléia (1996), coletânea de seus contos voltada ao público jovem, João
Antônio comenta a inspiração em uma história real e a relação entre Perna Torta e Hiroito: ―Existiu um
malandro com esse apelido e até com a figura física do Paulinho Perna Torta. Já a sua história foi criada por
mim. Tempos depois, apareceu alguém e disse que eu havia escrito a história de um marginal famoso em São
Paulo, uma lenda viva, Hiroito Joanides. ‗Paulinho Perna Torta‘ chegou a ser bastante namorado pelo cinema
nacional, acabou tudo paralisado, nem me lembro por quê‖. ―João Antônio: ‗Escrevo de dento pra fora‘‖. In:
Patuléia. Gentes da rua, op. cit., p. 14.
300

interpretação do texto. O conto é intitulado com a alcunha do personagem, e a constituição


deste apelido e a progressiva amputação a que está sendo submetido são o cerne do
entrecho. Mais do que a história de formação de um bandido — o que o texto também é —,
―Paulinho Perna Torta‖ é um conto sobre o nome deste jovem criminoso que começou
como engraxate e moleque de rua e virou ―rei‖ do crime. O conto combina a história
pessoal deste personagem, narrada por ele mesmo, a uma reconstituição de fundo histórico,
pois ela se dá em um contexto mais amplo: o da constituição da Boca do Lixo paulistana e
do avanço da criminalidade em São Paulo nas décadas de 1940, 50 e 60.
O foco narrativo em primeira pessoa acarreta também mais uma dualidade que
contribui para tornar este conto uma realização rica em sentidos contraditórios. Além da
ambivalência encarnada no nome do protagonista — a de lhe dar fama e respeito e ao
mesmo tempo lhe tornar vulnerável e alvo da polícia, da imprensa e da ―curriola‖ —, outra
ambiguidade marca o relato: uma combinação de ferocidade e lirismo, de violência e
candura que marcam a personalidade e as ações do protagonista. Paulinho Perna Torta é um
bandido bonitão: tem olhos verdes, pinta de galã de cinema italiano e é chamado de ―meu
modelo‖ por Ivete, sua primeira mulher, a quem a certa altura ele passa a agenciar como
prostituta. De início hesitante, malandreco de hábitos desinteressados e inocentes (como os
passeios de bicicleta), ele se torna criminoso violento e voraz.
Além das ambiguidades do próprio personagem, sobressaem no texto as
contradições entre indivíduo e sociedade, trajetória singular e forma literária, experiência e
ficção. O conto narra a formação de um malandro, desde o começo de sua vida de virações,
como engraxate nas estações da Luz e Julio Prestes, até o seu auge como criminoso, ao
mesmo tempo que acompanha um momento histórico de transição: o fechamento da ―zona‖
(no Bom Retiro) e a constituição da Boca do Lixo. É ali que Perna Torta vira ―rei‖:
empresário de jogo, cafetão e traficante. No entanto, apesar das descrições sobre suas
atividades malandras e criminosas, não se trata de um conto sobre a malandragem ou o
crime. Trata-se de um conto, como indica o título, sobre um indivíduo, sobre a constituição
deste personagem, sobre sua crise e a autoconsciência — difusa, mas concreta, pois remete
ao seu nome e ao seu corpo — que ele adquire desta crise e da possibilidade de
aniquilamento a que ele próprio está sujeito.
301

O momento presente da ação é o de um Paulinho Perna Torta conhecido na cidade


inteira, perseguido pela polícia, falado pelos jornais e difamado pela malandragem. A ação
irá culminar na tomada de consciência do protagonista a respeito da própria trajetória na
criminalidade. É o ponto de tensão máxima do relato, o momento privilegiado que organiza
toda a narrativa, e com isso faz com que esse texto longo, que tende à novela, de fato ganhe
um teor de conto. Pode-se ler o relato de Paulinho Perna Torta segundo as noções de Edgar
Allan Poe e Julio Cortázar sobre o conto moderno, que já discutimos na leitura dos ―Contos
Gerais‖.387 No entanto, como veremos, ―Paulinho Perna Torta‖ é um relato que narra a
trajetória do embate entre indivíduo isolado e o mundo, nos termos de Lukács. Indivíduo
isolado que tende a ―fazer romance‖, como diz Marthe Robert,388 e que ao final, entretanto,
descobre que vive um destino trágico.
O final do relato faz convergir toda a inquietação e todo o desejo do protagonista em
um instante de hesitação e autoconsciência, retomando o pathos dos primeiros textos do
autor, mas com uma diferença fundamental: Paulinho Perna Torta, diferentemente de
Vicente e dos protagonistas de ―Aact‖ e ―Fujie‖, que eram jovens pobres indecisos entre a
norma e seu avesso, é um malandro imerso na criminalidade; é um malandro arrependido,
mas que não vê saída do crime; um criminoso que não pode retroceder; um personagem que
não pode retornar, pois não tem para onde retornar. Nesse sentido, ele anuncia também o
drama do próprio João Antônio, que como vimos, em ―Amr‖, empreende um retorno a casa,
arrependido, ―rancoroso‖ e ao mesmo tempo impedido de, de fato, voltar.
A cobiça que move o personagem o impele a uma trajetória progressiva e também
ascendente. Nesse caminho, Paulinho Perna Torta será apadrinhado por Laércio Arrudão,
malandro mais experiente, figura paterna que será seu guia na malandragem e no mundo do
crime. Aos poucos, porém, o padrinho será ultrapassado. A superação do pai postiço, o
padrinho de malandragem, indica que teve lugar um parricídio simbólico, permitindo ao
protagonista subir na carreira de malandro e criminoso.
Os temas principais do conto — a cobiça, o desejo, o dinheiro, o parricídio e o
destino de malandro e criminoso — percorrem todo o texto e em alguns trechos ganham

387
As ideias de Poe, retomadas por Cortázar, como vimos no capítulo 2 deste trabalho, constituem uma
reflexão sobre o conto que compreende as ideias de unidade de ação, tom e efeito, brevidade, intensidade e
―acontecimento significativo‖.
388
ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. Trad. de André Telles. São Paulo: Cosac
Naify, 2007, p. 28.
302

condensação, a mostrar que estão interligados, como nesta passagem, quando Paulinho
Perna Torta assume ―tamanho‖ de malandro:

Crio nome de piranha. Como os trouxas pela perna, cobiço. Torno a tomar a verba do
alheio. Corro por dentro dos pacatos. Há tipos basbaques, pivetes ainda, aprendizes principiantes na
roda da malandragem, que vêm de longe para me espiar jogando carteado. Porque atiço os dedos e
vou ao jogo alto, não querendo nem saber se ando certo ou errado. Vou lá. Sou um relógio. Mamo a
grana. Meu nome corre.
O diz-que-diz me exagera, começa a me pintar de negro. Anda por aí que, por uma herança,
matei meu pai a tiros... Trouxas!
O diz-que-diz não está me dizendo nada. Fama não me ilude e não me estorvando...
389
Interessa é a grana.

―Paulinho Perna Torta‖ é um conto sobre o nome e o desaparecimento do nome,


sobre o desejo e o dinheiro, a cobiça e a castração, o parricídio e a impossibilidade de
cometê-lo (um parricídio ainda que necessário e de certa forma cometido, ao menos
simbolicamente). Narrativa seminal no conjunto da obra de João Antônio, concentra os
principais temas e problemas críticos relativos à sua literatura e também, ainda que não
explicitamente, à sua biografia e à sua carreira literária. É um conto sobre um personagem
complexo — ser ―fictício‖, com ―lógica‖ própria,390 como Antonio Candido define o
personagem de romance —, sobre ―a capacidade do personagem atingir a autoconsciência‖
e sobre ―a tomada de consciência do próprio destino‖, como definiria Lukács.391 Mas, como
veremos, uma tomada de consciência que, apesar do caráter complexo desse conto e da
própria constituição problemática do protagonista como personagem de romance, aquele
que ―busca algo‖392 que persegue ―a possibilidade de uma atuação da personalidade‖,393

389
ANTÔNIO, João. Leão-de-chácara, São Paulo, Cosac e Naify, 2002, p. 133. Todos os trechos do conto
citados tomam por base esta edição, a partir daqui referida como Ldc.
390
CANDIDO, Antonio. ―A personagem do romance‖. In: ______ (org.). A personagem de ficção. 10ª edição.
São Paulo: Perspectiva, 2000.
391
Sobre o destaque que o protagonista assume em relação aos demais personagens, diz Lukács: ―(...) o
protagonista se eleva acima do personagem secundário precisamente porque a sua mais profunda
característica pessoal é a de não viver espontaneamente o próprio destino, tal como este se apresenta em sua
casualidade e imediatismo, bem como de não reagir a ele com espontaneidade sentimental. O núcleo de sua
personalidade, ao contrário, consiste na aspiração — vivida com toda a alma — a sair do imediatismo, do
dado acidental, a fim de viver o próprio destino individual em sua generalidade, em sua relação com o
universal. LUKÁCS, G. ―A fisionomia intelectual dos personagens artísticos‖. In: Marxismo e teoria da
literatura. Sel., apres. e trad. de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p.194.
392
LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000, p. 60.
303

assemelha-se mais ao reconhecimento trágico de um personagem preso a um destino que é


maior que ele.

O nome (e a imagem) do malandro

A primeira seção do conto tem início sem marcação de subtítulo (ou intertítulo) —
ao contrário das demais, intituladas ―Moleque de rua‖, ―Zona‖ e ―De 53 para cá‖. É uma
espécie de intróito que marca o momento presente da ação narrativa. Apresenta Paulinho
Perna Torta e anuncia sua inquietação inicial, ainda que a motivação do personagem não
fique clara, o que talvez antecipe também o teor indefinido, até certo ponto aberto, do final
da narrativa.394 Ela marca, entretanto, uma posição do narrador-protagonista em relação aos
seus oponentes e a contrariedade sobre o encurtamento do seu nome de guerra.

Que essa cambada das curriolas, que esses ratos da polícia e esses caras dos jornais, gente
esperta demais com seus fricotes, máquina e pé-ré-pé-pés, espalha que espalha mais brasa do que
deve.
Sei que deram para gostar ultimamente de encurtar o nome de Paulinho duma Perna Torta.
Paulinho duma Perna Torta. Paulinho da Perna Torta. Apenas.
Nos jornais, nas revistas. Também na televisão já vi essas liberdades. Leio e ouço por aí. E
assim, São Paulo inteiro acabará me chamando de Perna Torta.
395
Não gosto.

O texto tem início com uma construção verbal inusitada. A oração começa com um
pronome relativo ―que‖ a indicar algo que poderia ter vindo antes: estou tão enraivecido
(que essa cambada)... o pior é (que essa cambada)... sei (que essa cambada)... leio e ouço
por aí (que essa cambada)... etc. A frase iniciada no meio indica um estado de espírito
turbulento, como se o discurso tivesse sido iniciado de súbito, num rompante. A revolta,

393
idem, ibidem, p. 144.
394
Em entrevista de 1975, João Antônio comenta o caráter ―desdobrável‖ do protagonista: ―(...) o Paulinho
Perna Torta é um personagem muito desdobrável. Na batida em que ele vai, eu parei a novela onde eu quis.
Na batida em que ele vai, pode se transformar até em um líder. Ele pode ser, por exemplo, um cartola, um
dono do jogo-do-bicho, ele pode ser um contraventor de qualquer uma dessas espécies que andam por aí. Não
quero dizer que os cartolas sejam contraventores. Pode ser um dos donos do poder, seja o poder legal ou o
poder marginal. (...)‖. ―O [sub]mundo de João Antônio‖, entrevista citada. In: Ldc, pp. 174-175.
395
Ldc, p. 99.
304

irritação ou contrariedade do personagem-narrador é enunciada ao final do trecho, curta e


direta: ―Não gosto‖.
Antes disso, o narrador trata de apontar seus oponentes, aqueles que ―espalham
brasa‖.396 São a ―cambada das curriolas‖,397 os ―ratos da polícia‖ e ―esses caras dos
jornais‖. A definição dos oponentes é importante, pois, além de marcar, por contraste, a
individualidade deste narrador que não demora a anunciar o próprio nome, insere-o em um
contexto social marcado pelas oposições entre polícia, imprensa e a ―curriola‖ (outros
malandros e criminosos). Se havia nos contos anteriores a marca forte da busca e do
conluio, este conto, desde o início, apresenta um forte componente de individualidade e
isolamento do protagonista.
Do ponto de vista literário, o texto, por conta de sua extensão distendida e da
própria constituição de um personagem-narrador individualizado, faz com que a narrativa
tenda ao romance, como já era o caso, em menor grau, dos ―Contos Gerais‖. Vimos como a
ação e a constituição mesma dos personagens naqueles contos impediam desdobramentos
narrativos de maior fôlego. Em ―Paulinho Perna Torta‖, por outro lado, a ação é mais longa
e mais consistente. Da mesma forma, porém, o texto não é um romance, mas um conto,
talvez uma novela — e a mesma questão do acanhamento do alcance narrativo se impõe.
Mais uma vez, aliás, a narrativa vai tratar, justamente, desses limites, agora
consubstanciados na alcunha do personagem.
A inquietação inicial do narrador-protagonista, como se vê pelo trecho acima, é
justamente a do encurtamento do seu nome. Ele anuncia o nome de guerra, Paulinho duma
Perna Torta, para dizer que os seus oponentes ou inimigos o estão encurtando para Paulinho

396
O dicionário Houaiss registra o verbete ―espalha-brasas‖ e assim o define: ―que ou aquele que é ruidoso,
espalhafatoso, bagunceiro‖. Já vimos que a metáfora do fogo é central para o conto ―Malagueta, Perus e
Bacanaço‖. No relato de Paulinho Perna Torta, mais adiante, o narrador irá usar o termo ―braseiros‖ para se
referir aos prostíbulos. A zona era um ―braseiro isolado‖, que com a ação da polícia em 1953 se espalhou para
a região da Boca do Lixo. A ideia de espalhar a brasa, então, se liga também à dispersão e ampliação do
meretrício e da criminalidade.
397
No Houaiss, não consta o verbete curriola, mas uma das acepções para ―corriola‖ é: ―grupo de pessoas que
agem desonestamente ou de forma inescrupulosa; quadrilha‖. O Aulete on line registra as duas grafias e um
das definições é: ―Grupo de pessoas desonestas, mancomunadas, acumpliciadas; quadrilha‖. O termo
―corriola‖ aparece também em ―Desafio ao malandro‖, composição de Chico Buarque, feita para o filme
Ópera do malandro (1985), de Ruy Guerra (pode ser ouvida em:
http://www.youtube.com/watch?v=FuN853WAJu0). A letra da composição está em: BUARQUE, Chico.
Tantas palavras. Todas as letras e reportagem biográfica de Humberto Werneck. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
305

da Perna Torta. E o protagonista indica que este é um processo em andamento. Logo, diz
ele, começarão a chamá-lo apenas de Perna Torta.
A questão não se restringe ao nome, claro, pois o nome do personagem, como indica
o início do texto, é mais do que a maneira com que o próprio se identifica. É uma alcunha,
um nome pelo qual ele ficou famoso, um nome de guerra que ganhou projeção graças aos
seus feitos, tornando-o conhecido entre policiais e outros malandros. Mas também um
nome que ganhou as páginas dos jornais e até os programas de televisão, o que indica que
Paulinho Perna Torta se tornou objeto de narrativas jornalísticas, de versões de seus feitos
criminosos, que ele é malandro famoso, conhecido pela sociedade instituída, dita de bem,
aqui representada pela imprensa (e em outra passagem pelas ―famílias‖). Ele se contrapõe
algumas vezes a essa fama adquirida para diminuí-la, desclassificá-la e, até mesmo, negá-
la, como no caso do suposto parricídio.
A condição de afamado e difamado de Paulinho Perna Torta lembra a situação do
jagunço Damázio, do conto de Guimarães Rosa, intrigado com o epíteto de ―famigerado‖
que o ―moço do governo‖ lhe imputou. A esse respeito, José Miguel Wisnik lembra que a
inquietação do personagem rosiano tem a ver com os valores e tabus patriarcais, com a
regra de valentia que vige no sertão (onde a lei não vigora), com uma dúvida quanto à
origem do personagem e com a própria ambiguidade da palavra que lhe designa, entre
―fama‖ e ―infâmia‖. Como indica Wisnik, a palavra ―famigerado‖, assim como ―bárbaro‖,
pode designar a coisa e seu contrário, simbolizando uma condição dúbia que pede
significação, mas cujo sentido é sempre oscilante. A ambiguidade a que o famigerado
jagunço está submetido se repõe na situação do conto, pois ele está ―pronto a negar que é
matador matando‖.398

398
Como diz Wisnik, famigerado é uma ―palavra-fármacon‖: ―São palavras em que o excesso que elas
designam, no limite indizível, revira no seu contrário, como bárbaro e formidável, palavras-fármacon, ao
mesmo tempo veneno e remédio, a exemplo de ―merda‖, que, no seu uso como amuleto teatral
(trocado entre os atores antes do início do espetáculo), incorpora a menção-tabu ao fracasso – materializado
no dejeto caótico-malcheiroso –, tomando-a como irradiadora de força, imantação e voto de sucesso. Palavras
assim, semanticamente oscilantes, deixariam entrever o quanto toda significação é virtualmente equívoca,
flutuando e deslizando num eixo de polaridades cujo sinal pode se inverter, a depender do acento que nela
se imprima e do recado que a atravesse. Assim também certos palavrões emblemáticos, que servem para
expressar estados opostos: ―filho-da-mãe‖, ―filho-da-puta‖ e ―puta-que-o-pariu‖ podem implicar aviltamento
e estigmatização, ao mesmo tempo que euforia e entusiasmo intenso. As palavras-fármacon são palavras que
pendulam sobre o paradoxo e o excesso, transformando em totem aquelas zonas-tabu em que as dualidades
opositivas vacilam: o nó inexorável entre morte e vida, potencializado no veneno-remédio; o nó inextrincável
306

Paulinho Perna Torta, da mesma forma, é afamado, um famigerado a seu modo


também ambíguo, pois é conhecido como jogador habilidoso, modelo bem apessoado,
malandro do partido alto, bandido perigoso, matador. Sua a fama tem a ver com suas
―habilidades‖, digamos, e seus feitos e malfeitos, mas a fama corre com o nome.
A fama tem a ver com o nome e o nome tem a ver com a fama, são duas faces de
um mesmo processo. Acompanhar os momentos em que o nome do protagonista assume
primeiro plano nos conduz ao núcleo temático da ação, como sugere o começo do relato
que já vimos e que veremos retornar, glosado, no desfecho da narrativa.
Depois da introdução, o conto entra em uma longa seção chamada ―Moleque de
rua‖. O narrador-protagonista recua no tempo para relembrar os tempos de menino, quando
começou na ―viração‖, como engraxate. O tempo presente da narrativa não é abandonado.
Ao contrário, é ele quem ordena e orienta o curso dos acontecimentos e da motivação do
narrador. Ao lembrar da infância, o narrador dirá: ―Aguentei muito xingo, fui escorraçado,
batido e dormi de pelo no chão. Levei nome de vagabundo desde cedo. Lá na rua do
Triunfo, na Pensão do Triunfo, seu Hilário e dona Catarina‖.399 O narrador recua no tempo
para contar seus tempos de ―moleque de rua‖, quando morava em uma pensão e trabalhava
de engraxate nas estações Julio Prestes e Luz. Ele não relata nada a respeito de seus pais ou
de seu nome de batismo ou de registro. Desde cedo, como ele diz, ganhou ―nome de
vagabundo‖ e morava na pensão dirigida pelo casal Hilário e Catarina, dois personagens
que assumem ares de pais postiços, já que não há referência aos pais biológicos. Ainda
criança, o menino já convive com viradores e prostitutas: ―Aquilo, àquele tempo, já era o
casarão descorado dos dias de hoje, já pensão de mulheres. Mas abrigava também, à noite,
magros, encardidos, esmoleiros, engraxates, sebosos, aleijados, viradores, cambistas,
camelôs, gente de crime miúdo, mas corrida da polícia; safados da barra pesada, que mal e
mal amanhecia, seu Hilário mandava andar. Cada um para a sua viração‖.400
A origem do personagem, portanto, não se conhece. Talvez nem ele mesmo a
conheça.401 O narrador recua, porém, para contar esse momento inicial de sua formação na

de que a mãe, interditada, fez sexo.‖ WISNIK, José Miguel. ―O famigerado‖. In: Sem receita. Ensaios e canções. São
Paulo: Publifolha, 2004, pp. 131-132.
399
Ldc, p. 100.
400
idem, ibidem.
401
A questão da filiação e da origem do personagem está na origem do gênero romance e na própria
constituição do enredo das obras romanescas, como aponta Marthe Robert. A autora chega a distinguir duas (e
307

malandragem, na ―viração‖. Em seguida, ele retoma a questão inicial, sobre os boatos e a


fama que correm em seu nome:

Ainda escrevem aí que matei meu pai a tiros por causa de uma herança... Esses tontos dos
jornais me botam cabreiro.
Outra coisa errada que em meu nome corre é que comecei na zona. Que zona, que nada...
Zona foi vida boa. Foi depois de Laércio Arrudão me apadrinhar e me ensinar o riscado do balcão,
pra cima e pra baixo, servindo cachaça, fazendo sanduíche e tapeação nos trocos; misturando água
nas bebidas quando, noite alta, as portas do bar desciam e Laércio ia fazer a féria e eu as marotagens
nas garrafas. Sim. Mas antes dessa coisa de zona, me rebentei por aí.

Os inícios desse narrador-personagem são nebulosos. A fama que corre em seu


nome é que ele começou na zona e que matou o próprio pai, por causa de uma herança. A
fama que lhe atribuem, assim, é a de um filho bastardo (que se iniciou na zona do
meretrício), mas que apesar disso, devia saber quem era o pai, a ponto de tê-lo assassinado
para ficar com a sua ―herança‖. Esta palavra indica, obviamente, dinheiro. Mas, talvez, não
só. A herança a que o narrador alude é uma herança, o que sugere que poderia se tratar de
dinheiro ou não — talvez uma herança de outra natureza. Mas o artigo indefinido também
indica que a tal herança era, talvez, espúria: uma herança, adquirida pelo pai sabe-se lá
como e então tomada pelo protagonista ao assassiná-lo. Uma herança tomada de um pai que
talvez o protagonista nem saiba quem é.402
Não sabemos quem eram seu pai e sua mãe, onde nasceu, qual o seu verdadeiro
nome. Antes da zona, ele foi engraxate, e morava na pensão do Triunfo. E antes disso? Não
se sabe. Sua origem, repita-se, é desconhecida ou, ao menos, não é narrada.
O teor de indefinição, como se vê, interessa ao narrador-protagonista, que conduz o
relato de maneira a negar a fama que corre em seu nome, mas fazendo-o de maneira pouco

apenas duas) linhagens de romance, uma que conta a história de personagens de origem incerta e outra que
narra a vida de personagens enjeitados. Essas duas vertentes corresponderiam às fábulas da Criança Perdida e
do Bastardo (fases edípicas e pós-edípicas). A leitura de Robert parte da noção psicanalítica de ―romance
familiar‖ para classificar os romances nessas duas linhagens, que corresponderiam, assim, respectivamente
aos romances fantásticos ou fantasiosos (de autores como Cervantes, Defoe, Hoffmann, Melville, Kafka) e
realistas (de Dickens, Balzac, Flaubert, Dostoiévski, Tolstói). Ver: ROBERT, Marthe, op.cit., p. 58.
402
Como lembra Marthe Robert, a concepção freudiana de ―romance familiar‖ assenta-se sobre a ideia de que
a mãe é certa, mas o pai é sempre incerto. A noção está no texto de Freud, que alude à frase latina pater
semper incertus est. FREUD, Sigmund. ―Romances familiares‖. In: Gradiva de Jensen e outros trabalhos
(1906-1908). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.
308

clara, de forma a construir a própria história mantendo certo grau de indeterminação e


mistério que concorrem para dar relevo a essa mesma fama. O narrador não narra a própria
origem, acalentando a indeterminação e a dúvida, fazendo de si próprio fiador único e
seletivo do que narra e da verdade a seu próprio respeito.
O que de fato ele narra, isto sim, é a sua iniciação na malandragem: ―Comecei por
baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malandro, ganhar. Como
todo infeliz começa. Já cedinho batucava. — Vai um brilho, moço?‖.403 O início da viração
se dá como engraxate, atividade marcada pela posição de inferioridade e sofrimento. Mais
que isso, pela submissão a um outro, ―mais malandro‖. Sabemos, porém, que a situação
presente deste personagem é de destaque, de fama, de boatos e de inverdades que correm
em seu nome, um nome que está, ao mesmo tempo, em risco.
Já vimos, na leitura dos contos anteriores, como ganhar nome no mundo da
malandragem (assim como no universo do choro, no caso dos textos autobiográficos) é algo
decisivo e elementar — é como passar a existir socialmente ou, pelo menos, existir no
universo da boemia e da malandragem (como é o caso de ―Meninão do Caixote‖). O nome
de guerra indica um estatuto de respeito medo, fama e admiração, uma forma de
reconhecimento e muitas vezes de demonstração de poder e de força. Quem ganha nome
passa a ser não apenas conhecido e identificado, mas temido e visado. A narrativa de
Paulinho Perna Torta encaminha-se para a história de como esse menino que começou
como engraxate se tornou, justamente, um malandro de nome, famoso, mas que por isso
mesmo passou a ser não apenas admirado mas também mirado pela cambada das curriolas,
estampado nas páginas dos jornais e perseguido pela polícia.
Sabe-se, assim, desde o começo da narrativa que esta é uma trajetória ascendente.
Paulinho Perna Torta, este malandro famoso, que tem seu nome falado nos jornais, nas
revistas e até na televisão, começou por baixo, como todo ―sofredor‖. A trajetória, ao cabo,
é de sucesso, e os tempos de sofrimento ficaram para trás. Logo de início, como se viu no
trecho acima, anuncia-se a ―vida boa‖, a superação de um momento inicial de grande
inferioridade. E o que marca o começo da vida boa na zona é um apadrinhamento. Foi a
proteção e o ensino do malandro Laércio Arrudão que lhe introduziram na ―zona‖ e nas
―marotagens‖ de trapacear no troco e misturar água nas bebidas. Entretanto, o

403
Ldc, p. 99.
309

apadrinhamento de Laércio Arrudão marca a passagem da fase de sofrimento para a ―vida


boa‖, mas repõe a situação de inferioridade e submissão, em que ele trabalha para alguém
―mais malandro‖.
O impasse, como já vimos em ―MPB‖, é constitutivo da malandragem, e aqui ganha
um retrato mais acabado, com ênfase na aquisição do nome, na iniciação no crime, na
ascensão do protagonista e, afinal, na ameaça ao nome e à própria identidade do
personagem. Os avanços e recuos que marcam a vida da malandragem encontram campos
de sentido privilegiados nos temas do nome e nas relações horizontais e verticais de
autoridade, que se dão entre os malandros e os malandros mais velhos, irmãos e padrinhos
de malandragem.
Antes mesmo de ganhar o seu nome de guerra, o nome e a fama já eram
preocupações do personagem-narrador, como indica a passagem, ainda no início do texto,
que narra o primeiro gesto de maior ousadia malandra do protagonista. As passagens da
viração como engraxate vão culminar, na narrativa, no primeiro ato criminoso do
protagonista: ele decide furtar um ―tufo‖ de dinheiro do seu ―chefe‖, o dono da banca de
jornais da estação Júlio Prestes. Apanhado em flagrante, o personagem-narrador finta,
rebola, requebra, ginga e consegue escapulir. Porém, sabe que a fuga não termina ali:

Mas logo-logo percebi que caíra de dois pés num buraco só. Estava espetado, espetadinho,
engolobado. Como um martelo sem cabo.
Meu nome, na boca dos caras, ia correr as estações. E o Juizado atrás. Estava complicado;
404
eu que me cobrisse. Andasse dali.

A imagem do ―martelo sem cabo‖ ecoa a passagem de ―MPB‖ em que o narrador


diz que Perus e Bacanaço são um o martelo e o outro, o cabo. Aqui, PPT está sozinho, sem
cabo, parceiro para as suas malandragens e virações. Mas o processo da fama já está em
andamento, à revelia do personagem. Seu nome ia correr.
Mais uma vez o nome, este ―nome que corre‖, é algo ambivalente. O nome do
protagonista vai correr as estações, na ―boca dos caras‖, e chegará também ao
conhecimento do Juizado de menores. Assim, o feito de ter furtado o jornaleiro que o
explorava e ter escapado, graças à capacidade de gingar, requebrar e driblar aquele que o
404
Ldc, p. 107.
310

oprimia, é a um só tempo uma façanha, aos olhos dos ―caras‖, isto é, dos demais malandros
e trabalhadores, e um crime, aos olhos do Juizado. A contrastar com a velocidade com que
a fama se espalha — com que o nome corre —, o protagonista é levado a procurar uma
cobertura (―eu que me cobrisse‖) e a fugir (―andasse dali‖).
A ginga é, portanto, um dos atributos de sobrevivência do jovem malandro. É ela
que permite que ele drible seu oponente e consiga fugir, evitando o enfrentamento direto,
ainda que ele tenha afrontado o ―patrão‖ que o explorava. Ao comentar esta passagem do
conto, Benjamin Abdala Júnior vê a ginga como uma ―atualização de uma estrutura
articulatória‖, ―apropriação simétrica aos esquemas de conduta do futebol brasileiro‖.405
Segundo o crítico, há comunicação entre a ginga e a dinâmica do encurtamento do nome do
protagonista. E a ginga é também estratégia de sobrevivência e inserção do personagem:

Figurativamente, a ginga da personagem narradora do conto de João Antônio é, de um lado,


―Paulinho‖ e, do outro, ―Perna Torta‖. Na ascensão, seus passos são registrados pelos jornais como
os de um ―Paulinho de uma perna torta‖. Quando cai reduz-se apenas ao apelido ―Perna Torta‖. Na
determinação desse caminhar social, ele oscila entre seus pares e a polícia que se alimenta deles.
406
Precisa gingar para que seu triunfo se efetive dentro das brechas do sistema.

Na juventude de Paulinho Perna Torta, a ginga é uma atitude que combina o


confronto e o deslizamento, configurando um funcionamento amalandrado de lidar com as
situações difíceis, de conflito e ameaça. Ela permite transitar entre ―ordem e desordem‖,
para retomar a conhecida formulação de Candido.407 A ginga, porém, será também
elemento que irá escapar ao controle do protagonista, que ao final de sua trajetória não tem
como usar da ginga para escapar, justamente, à ameaça a seu nome. A ―ginga macumbeira‖
de Zião da Gameleira será, ao final do relato, mais um elemento da crise de consciência do
protagonista, que o conduz ao reconhecimento de seu próprio destino e a atitudes
autodestrutivas que confirmam este destino.
Portanto, a ginga é estratégia ambígua, pois serve ao malandro e também ao seus
oponentes, aos detratores de Paulinho Perna Torta. Como observa Abdala Júnior, ela está

405
ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Literatura, história e política: Literaturas de língua portuguesa no século XX.
Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 87.
406
idem, p. 93.
407
CANDIDO, A. ―Dialética da malandragem‖. In: O discurso e a cidade. Op.cit.
311

figurada no nome e no encurtamento latente do apelido. E no final da narrativa a ginga


estará também ligada à confusão, à ―encabulação‖ que o personagem sente como uma crise
de consciência e uma mudança de comportamento, antes malandro e voraz, depois evasivo
e autodestrutivo.
A ginga, no momento inicial de sua trajetória, permite afronta e deslizamento. A
trajetória do personagem, a partir deste primeiro momento de confronto e de fuga de uma
personagem paterna — de seu patrão explorador — será de perambulação. Ele vai percorrer
a cidade inteira, trabalhando com diversas atividades, todas elas informais, fazendo bicos,
esmolando, correndo da polícia, morando em favela, passando fome. O menino — moleque
de rua e engraxate — recomeça o seu ciclo de perambulações: ―(...) dei para bater perna de
novo, catando virações pelos cantos e longes da cidade‖. Então, elenca uma série de
aventuras que viveu em sua existência de malandro: lavou carro, esmolou nos subúrbios,
trabalhou em ferro-velho, ajudou pipoqueiros no Pacaembu e no hipódromo de Cidade
Jardim, trabalhou na feira, morou em favela no Piqueri, vendeu jornal nos trens da
Sorocabana. ―Andando por aí como um bicho‖, diz ter apanhado da polícia, aprontado tudo
isso e mais um pouco e que o pessoal da imprensa, interessado só na sua ―grandeza‖, nunca
escreveu. Diz a narrativa: ―Mas nas minhas perambulagens aprendi a ver as coisas. Cada
rua, cada esquina tem sua cara. E cada uma é cada uma. Não se repete mais. Aprendi.‖408
O aprendizado que Paulinho Perna Torta adquire da cidade, porém, não faz com que
ele se forme. Aprendizado, houve. Mas Paulinho ainda é garoto. É virador, malandro, mas
malandro não formado. Apesar de todas as suas andanças, apesar de ter percorrido a cidade
toda, sente que ainda lhe falta algo: picardia.

Muitos anos de janela, muito estrepe, muita subida e muita piora me permitem dar fé de
que tudo tem seu senão. Eu ainda era um trouxinha. Cadê picardia?
Uma criança que não conhecia o resto do balangolé — cadeia, maconha, furto, jogo,
mulher.
409
Pois. Assim, até os quinze anos, quando Laércio Arrudão e eu nos topamos.

408
Ldc, p. 109.
409
idem, p. 108.
312

O termo picardia, de forte conotação sexual, indica que, como o malandreco ainda
não a adquiriu, a passagem de menino a homem ainda não se deu. Ele se pergunta ―cadê
picardia?‖, pois não sabe onde encontrar a virilidade necessária para continuar sua vida de
malandro. Essa virilidade amalandrada, a picardia, ele não a localiza em si mesmo, mas a
entrevê na possibilidade de acesso ao mundo adulto, masculino e malandro, que o
apadrinhamento de Laércio Arrudão proporciona.
A combinação de peripécias que se sucedem e o aprendizado extensivo, mas
insuficiente, indicam que a trajetória de Paulinho Perna Torta situa-se num terreno
intermediário entre a picaresca e o romance. Sua história, que será pautada até o final por
esta oscilação entre experiência e incompletude — inserção instável, ascensão sem
acomodação, num processo movido pela ganância — indica que o personagem está entre o
pícaro e o herói de romance. Nos termos de Candido, ele vive a dialética da malandragem,
entre ordem e desordem. Mas ao contrário dos personagens malandros dos contos
anteriores, sobretudo Bacanaço, Perus e Malagueta, a inserção no mundo da malandragem,
sempre instável, vai se dar pautada pela mesma dinâmica entre a aprendizado e não
formação, conquista e ganância, ascensão e sedentarismo, dinâmica que o protagonista
acredita que irá se resolver por meio do apadrinhamento do malandro mais velho,
encontrando um equilíbrio dinâmico, que permitiria equacionar impulsos contraditórios.410
A segunda seção do conto, que se chama ―Moleque de rua‖, vai culminar,
justamente no encontro entre o protagonista e o malandro Laércio Arrudão. Tem início,
depois disso, a seção ―Zona‖.
Não percamos, apesar das peripécias, o fio: o nome do protagonista. É na zona,
graças a Laércio Arrudão, que o personagem ganhará seu nome de guerra. A descrição da
cena da briga em que ele machuca uma das pernas e passa a mancar é longa e não há
espaço para comentá-la. Registre-se que foi uma briga passional entre um ―invertido‖, Jane,

410
Em ―Dialética da malandragem‖, como se sabe, Antonio Candido discute a inserção do romance Memórias
de um sargento de milícias na tradição da novela picaresca, que tem em Lazarilho de Tormes seu
representante mais conhecido. O conceito de ―dialética da malandragem‖, formulado por Candido, procura
definir um modo de funcionamento social brasileiro, especialmente no que se refere aos homens livres (nossa
incipiente classe média do século XIX), ainda durante a vigência da escravidão. Nos termos de Candido,
Paulinho Perna Torta é uma espécie de combinação de pícaro e malandro, cuja trajetória irá avançar para a
criminalidade, conferindo a ele novo estatuto, nem pícaro, nem malandro, mas bandido, empresário e rei do
crime, sem deixar de ser pícaro, malandro e (anti)herói de romance, em uma formação e inserção às avessas,
negativa, que tem motivações psicológicas e sociais que estão intrincadas e expressam, como veremos,
conteúdos arcaicos da sociedade brasileira contemporânea.
313

e a prostituta Ivete, que já era então mulher do protagonista. Mas quem golpeou o
protagonista na perna, com uma cadeira, foi um cliente que saía do quarto de Ivete e entrou
na briga ao chamar o personagem de ―cafetãozinho‖.
Golpeado na perna, o protagonista consegue escapulir por uma janela. Mas a
sequela do golpe faz com que ele passe a mancar.

Tornei à Boca do Arrudão, encabulado, murcho como um balão furado. Horas depois,
capengando, capiongo e rasgado. Pegara um rabo-de-foguete. A façanha voou e Laércio já era
sabedor. Ria.
Ele quem me chamou primeiro de Paulinho duma Perna Torta.
Depois, só depois, os vadios da turma. Para adular Arrudão, os vagabundos fizeram o
acompanhamento estúpido. (Será que a mãe deles, na hora de pô-los para fora da barriga, também
não ficou com a perna torta?)
— Paulinho duma Perna Torta!
Paulinho duma Perna Torta. Fiquei.
Como outros malandros grandes e pequenos de São Paulo, eu ganhava um nome de guerra.
Que ia se exagerar e virar lenda na boca das curriolas, nas ocorrências da polícia e na mentirada
dos jornais. Como Saracura, como Bola Preta, Ivinho Americano, Diabo Loiro, Marrom e como
411
tantos outros.

O trecho narra o batismo do afilhado pelo padrinho, graças à façanha de ter


escapado da briga, da qual porém saiu com a sequela que lhe dá nome. A assunção do nome
de guerra marca nova fase em sua trajetória de malandragem. O apelido o torna selvagem e
voraz: ―Crio nome de piranha‖.412
A partir daí, Paulinho Perna Torta encosta a bicicleta, a ―magrela‖, deixa de
namorar as ―franguinhas direitinhas‖ das lojas da José Paulinho e, com as trapaças no
balcão e a habilidade no carteado, seu ―capital sobe na Caixa Econômica da Praça da Sé‖.
A subida não é apenas do capital. Ele próprio ascende na sua trajetória de malandro
e se equipara aos demais nomes da malandragem, como indica a enumeração de malandros
no trecho acima. Suas atividades ganham corpo e se diversificam, às raias do crime. Além

411
Ldc, p. 132.
412
idem, p.133.
314

de Ivete, passa a explorar também Valquíria, ex-doméstica que ele tira do emprego,
―deflora‖ e ensina a ―lidar com homem na cama‖.

Ivete sabe, está claro. Mas não abre o bico — meu nome de perverso anda falado. Boquejam
por aí que se me tiram do sério eu apago um. Que matei meu pai a tiros. Durmo com as duas. Cresço
a galope. Aos vinte anos, a crônica policial já me adula. ―Perigoso meliante.‖ Trouxas... Volta e
meia, dão o meu retrato e minúcias. Um desses tontos dos jornais me comparou, dia desses, a um
galã do cinema italiano...
Paulinho duma Perna Torta é respeitado, quase de igual para igual, pelos três maiores cobras
da malandragem baixa de São Paulo — Bola Preta, Diabo Loiro e Marrom.
Sou um nome. Laércio Arrudão me aprova a conduta. E atiça. Minha concentração é na
zona, mas reviro os quatro cantos da cidade.
Faço um conluio com a curriola de assaltos de Bola Preta. Mão armada, máquina na mão.
Assalto, surrupio carteira, Colt 45, vou gatunando por aí. Cinco passagens na Delegacia de Furtos. A
Captura já farejou atrás de mim. Carrego cinco processos no lombo, de que o Doutor Aniz Issara
cuida a bom preço. Trato Aniz de você, me impondo — e ele é o maior especialista do crime em São
Paulo.
Mas estou fichado apenas como ladrão e assaltante. Rufianismo, vadiagem e jogo, não.
Faço h. Sirvo a Laércio Arrudão somente para confundir os ratos da polícia. É um h. O
empreguinho é uma dissimulada que eu e Arrudão aplicamos e que me garante a carteira profissional
413
em dia.

―Sou um nome.‖ Assim, o apelido não apenas passou a identificar o malandro,


como o nome de guerra ganhou autonomia. Paulinho Perna Torta está se tornando um
malandro famoso e temido. Já ombreia com os principais malandros da cidade, ―quase‖ de
igual para igual. Para além isso, ele está virando criminoso. Mais que um simples malandro,
ele é fichado não por vadiagem, jogo e cafetinagem, mas por roubo e assalto. Ao mesmo
tempo em que sobe na carreira do crime, procura garantir-se na legalidade: mantém o
dinheiro na Caixa Econômica e tem como advogado o melhor criminalista de São Paulo.
A relação com Laércio Arrudão também se modificou. Aos poucos ele se distancia
também do antigo padrinho. Como indica o trecho acima, ele faz um ―h‖, mantendo-se
como empregado dele apenas para despistar a polícia. Paulinho Perna Torta começa a servi-
lo apenas para se escudar da polícia.

413
Ldc, p. 135.
315

O padrinho foi ultrapassado. Nada parece deter o protagonista. No entanto, como a


sua história é também a história de toda a malandragem — ainda em estágio comunitário,
reunida na zona do meretrício —, um revés vem se interpor à sua ascensão meteórica. O
governo decide ―fechar a zona‖. A polícia, com apoio das ―famílias da cidade‖ e dos
jornais, abre guerra contra a malandragem da área. A Boca do Arrudão é fechada, e o
padrinho de Paulinho Perna Torta foge para Santos ou Londrina (―ninguém viu‖). Muitos
malandros vão para a Casa de Detenção, outros fogem, ―se esquinizando pelas favelas e
pelos buracos‖.
O trio de malandros, Paulinho Perna Torta, Diabo Loiro e Bola Preta, faz acordo,
corrompe a polícia: ―Os ratos aceitam dinheiro‖. Mas a campanha da imprensa contra a
zona é intensa e a polícia, ―em massa‖, não demora a agir.
As páginas do conto que descrevem o massacre de malandros e prostitutas são fortes
e sufocantes. Ao entrever, pela veneziana do quarto de Ivete, que aproximam-se entre 150 e
200 policiais, Paulinho Perna Torta escapa alojando-se na caixa d‘água do bordel. À
iminente invasão da polícia, o bandido abandona Ivete dormindo e se esconde ali. De seu
esconderijo, ele verá a invasão e o massacre, inclusive a morte da prostituta, queimada pela
polícia: ―Minha boca fechada há muito, os lábios se mordendo. Ivete cai de vez‖.414
Com a invasão da zona pela polícia, a prisão dos malandros e o massacre das
prostitutas, encerra-se uma seção do conto, para começar a última parte da narrativa, ―De
53 para cá‖. Assim como os demais malandros haviam sido capturados no dia da invasão da
zona pela polícia, também Paulinho Perna Torta não demora a ser preso. Passa três anos na
Casa de Detenção, o Presídio do Carandiru.
O que poderia ter se configurado como um revés ou uma ―queda‖,415 como o
próprio narrador descreve o fechamento da zona, torna-se em verdade um novo começo
para a criminalidade de São Paulo, a começar do próprio Paulinho Perna Torta. Na prisão,
―corre maconha, tóxico, cachaça e carteado‖. Ali, diz ele, ―afino o meu joguinho (...) cobiço
e tomo tudo dos outros e penso mais demorado no jeito de roubar‖. A prisão se revela uma
escola de malandragem: ―E vou ficando malandro dos malandros‖.416

414
Ldc, p. 141.
415
idem, p. 142.
416
idem, p. 143.
316

De moleque de rua e engraxate a malandro dos malandros. O sentido da trajetória


será de ascensão até o fim, apesar da ameaça anunciada ao seu nome. Ao sair da cadeia,
Paulinho Perna Torta só faz crescer e subir no universo da malandragem. Quanto mais
cresce no âmbito da criminalidade, contraditoriamente, mais se afirma também no mundo
da legalidade e da ordem, simbolizados pela polícia e pela imprensa, indicando como os
dois universos, o do crime e o da lei, se imiscuem.

Passo para o partido alto. Manicuro as unhas, me ajambro com panos ingleses, fumo charuto
holandês, e a crônica policial comenta com destaque porque declarei, dia desses, que a minha marca
é só Duc George. Holandês. E caftinar é o negócio.
(...)
Nas madrugadas altas, entro no Parreirinha, ali na Conselheiro Nébias. Frequento, uma
boneca a tiracolo sempre, dessas putinhas de teatro de revista.
Sou tratado de doutor, jornalistas me adulam. E nessas umas e outras me estendem convites.
Com as equipes esportivas dos jornais e dos rádios, conheço a Argentina, o Uruguai e o Peru. É
417
Paulinho duma Perna Torta quem nessas delegações melhor ajambra a elegância de sua picada.

A ascensão social de Paulinho Perna Torta é tida como conquistada e definitiva pelo
próprio narrador-protagonista: ―Passo para o partido alto‖. E, ainda, o tratamento de doutor
e a maneira com que ele transita pela boemia, o teatro de revista, e por certas rodas
jornalísticas demonstram que o personagem de fato chegou lá. Entretanto, a inserção é
instável, já que as atividades com que conseguiu acumular o capital são criminosas. E sua
elegância extravagante, à antiga moda malandra, denuncia sua proveniência suspeita. É por
isso que, apesar de circular pelas altas rodas e manter relações íntimas e provavelmente
corruptas com certos jornalistas, a imprensa não o perdoa quando ele assassina o cafetão
Mandureba, concorrente na rua dos Gusmões, Boca do Lixo: ―Os jornais aprontam um
escarcéu preto com o nome de Paulinho Perna Torta e me espianto para Campo Grande,
Mato Grosso, enquanto Aniz Issara me cuida no fórum‖.418
O malandro ainda mantém, por conta do seu poder econômico, certo controle do
judiciário, por meio de seu advogado, que deve ―cuidar‖ de seus processos certamente por
meio da influência, do favorecimento e da corrupção. Mas essa curta passagem já anuncia

417
Ldc, pp. 146-147.
418
idem, p. 147.
317

certa mudança de tom na maneira com que o narrador-protagonista fala de si próprio e de


sua onipotência, antecipando o final da narrativa, em que o protagonista, melancólico, irá
questionar sua situação e, mais que isso, sua trajetória.
―Os jornais aprontam um escarcéu preto com o nome de Paulinho Perna Torta‖: pela
primeira vez, ele sucumbe à designação amputada de seu próprio nome, ainda que
atribuindo o tratamento de Paulinho Perna Torta, sem o ―duma‖, aos jornais. E a maneira
com que ele se refere à atuação de seu advogado aponta para uma situação de
vulnerabilidade: ―Aniz Issara me cuida no fórum‖. O verbo empregado sugere que o
malandro inspira cuidados, e talvez não apenas jurídicos, como logo saberemos, pois, em
seguida, a narrativa irá encaminhar-se para o desfecho.
O final do conto retoma a situação inicial e marca uma crise e uma tomada de
consciência do protagonista e que, como se disse, já se anunciava desde o começo do relato.
A marcação da mudança, de um estado de cobiça, ascensão e euforia que vinha marcando
até então a narrativa, para um estado de desnorte, desconfiança e melancolia, porém, não é
muito clara.
O narrador continuará a afirmar sua ganância e seus desejos onipotentes de
conquista (―Cobiço toda a Boca do Lixo, já me entendo como futuro dono único‖419),
continuará a tratar a si próprio de Paulinho duma Perna Torta e a imprensa continuará a
difamá-lo (―Os jornalecos me fervem outra vez‖420), mas as dúvidas e as inseguranças
começam a assumir o primeiro plano (―Nessa coisarada de façanhas, já não sei a quantas
ando‖421).
Após uma fuga para Curitiba, depois de Paulinho Perna Torta cometer mais um
assassinato422 — à morte de Mandureba segue a de outro malandro, Valdão ou

419
Ldc, p. 147.
420
idem, p. 148.
421
idem, ibidem.
422
Como mostra Edu Teruki Otsuka, a ―dimensão sombria da malandragem‖ compreende uma rede de
vinganças entre os mais pobres. Este ―espírito rixoso‖ que permeia a relação dos despossuídos — que vivem
na dialética entre a ordem e a desordem, o lícito e o ilícito, a norma e a infração da lei — é expressão da
própria lógica de uma sociedade estruturada na desigualdade profunda. Nesse sentido, a criminalidade
avançada do conto em análise atualiza o funcionamento da malandragem nos termos analisados por Antonio
Candido em Memórias de um sargento de milícia e aprofundados por Otsuka, situando o universo de Paulinho
Perna Torta nessa tradição ―sombria‖ da malandragem, que não afronta a ordem vigente ou a posição de
superioridade de proprietários e poderosos, reafirmando as desigualdades sociais. Como diz o autor, a respeito
da situação do Brasil escravista, mas em observação válida para os dias de Perna Torta, ―a percepção da
divergência de interesses existe, mas ela não contribui para insuflar nos pobres a vontade de modificar as
318

Valdãozinho, que caguetou Paulinho Perna Torta para a polícia —, a narrativa ganha uma
interrupção, marcada no texto por um espaço, do tamanho de um linha, para a continuação
da narrativa. O espaço indica uma elipse de tempo, que entretanto não é grande. Marca,
mais que isso, a mudança definitiva do tom do relato. Passa-se agora a narrar a crise de
consciência do malandro. Mas, como se vê, ela não se formula claramente: ―Não é mulher
bonita, nem gostar o que está me perdendo. Laércio Arrudão, os anos de janela e de
Detenção não me ensinaram tudo‖.423
Para reafirmar a indeterminação do que o incomoda, a partir daí, o narrador irá usar
a palavra ―encabulação‖, ligada à macumba de um malandro: ―A encabulação maior me
nasce de umas coisas bestas, cuja descoberta e matutação a ginga macumbeira de Zião da
Gameleira começou a me despertar. Uma virada do destino, na vida andeja deste aqui‖.424
Ao final do conto, o protagonista diz que, ao fazer trinta anos, se deu conta de que
talvez tenha se iludido esse tempo todo de malandragem: ―Tenho a impressão de que me
preguei uma mentirada enorme nestes anos todos‖. O presente da ação narrativa, anunciado
desde o início, coincide no final com o momento de tomada de consciência de Paulinho
Perna Torta, evento mais uma vez relacionado ao seu nome.

E é uma porcaria. Meu nome é ninguém. Paulinho duma Perna Torta, de quem
andam encurtando o nome por aí, é uma mentira. Como foram Saracura, Marrom, Diabo
Loiro, Bola Preta... e como são esses de hoje em dia, donos disso e daquilo, da putaria, do
jogo, das virações... A gente não é ninguém, a gente nunca foi. A gente some, apagado,
qualquer hora dessas, em que a polícia ou outro mais malandro nos acerte.
— O que é que eu tenho feito?
A gente pensa que está subindo muito nos pontos de uma carreira, mas apenas está
se chegando para mais perto do fim. E como percebo, de repente, quanto estou sozinho!
Uma parada sem jeito, ô encabulação! Agora a briga não é com ninguém, não. O
pior de tudo, o espeto é que eu mesmo estou me desacatando e me dando um esporro. E é o
maior enrosco!

relações vigentes. Como a própria revolta assume feição pessoal e não de classe, as diferenças sociais acabam
estimulando antes o desejo de obter vantagens no interior das relações de desigualdade (ao invés de
transformá-las).‖. OTSUKA, Edu Teruki. ―Era no tempo do rei. A dimensão sombria da malandragem e a
atualidade das Memórias de um sargento de milícias. Tese de doutorado, DTLLC, FFLCH-USP, 2005, p. 128.
423
Ldc, p. 149.
424
Ldc, 149-150.
319

425
Eu acho que ando muito cansado.

Depois de relembrar seus anos de formação na malandragem, sua passagem pela


cadeia e sua vitória no mundo da bandidagem, o malandro se dá conta de que talvez toda
essa trajetória tenha sido uma grande ―mentirada‖. A história pessoal do personagem é
vazia de sentido, já que depois ―que a polícia ou outro mais malandro‖ o acertarem restará
o nada. Paulinho Perna Torta vai se tornar um ―ninguém‖, destino de todos os bandidos de
origem pobre — a dimensão coletiva da catástrofe anunciada é expressa na narração do
personagem, que fala em nome da malandragem-bandidagem, como denota o sujeito ―a
gente‖ das orações em que Paulinho Perna Torta antevê seu destino de malandro-bandido.
Apesar de ter se tornado um criminoso temido, apesar de ter passado para o partido alto,
apesar de sua ascensão econômica, Paulinho Perna Torta percebe que não pode mais voltar
a ser reles malandro e que seu nome, assim como ele próprio, logo será apagado, tornando-
se uma ―mentirada‖, um ―ninguém‖.
A trajetória de Paulinho Perna Torta culmina, na consciência do próprio
personagem, na crise de identidade que se expressa na ameaça a seu nome. A crise
emocional é profunda, mas difusa, pois o personagem não sabe dizer por que, afinal, sente-
se culpado e solitário, já que conseguiu tudo o que cobiçou: dinheiro, fama e uma
namorada, de nome sugestivo, Maria Princesa,426 que lhe dá status.
O estado depressivo e autodestrutivo é uma ―encabulação‖, como ele próprio o
define, encabulação relacionada à macumba de Zião da Gameleira. O isolamento e o
desamparo do personagem ganham condensação na ameaça ao nome, que é ameaça a ele
próprio. Paulinho Perna Torta percebe a ambiguidade insolúvel relacionada ao seu nome de

425
idem, p. 150. Esta edição, que é a mais recente do livro e referência para as nossas citações neste trabalho,
traz um erro na passagem citada. O livro registra: ―E como percebo, de repente, quando estou sozinho!‖ (grifo
meu). O correto é quanto, como indicam todas as demais edições do livro consultadas: Melhores contos de
João Antônio. 3ª edição. São Paulo: Global, 2001; Leão-de-chácara. 7ª edição. São Paulo: Estação Liberdade,
1989; Patuléia. Gentes da rua. São Paulo: Ática, 1996, Paulinho Perna Torta. 12ª edição. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1993. No Arquivo João Antônio, na Unesp de Assis, tivemos oportunidade de consultar o
manuscrito do conto. A letra miúda, mas clara, do autor registra ―quanto‖. A reprodução do manuscrito com
este trecho do conto está no Apêndice desta tese.
426
É assim que o protagonista se refere a ela: ―E Maria Princesa, minha última de umas e outras fixas, é uma
boneca e novinha cheirando a broto do interior — tratada, vestida, desfila como rainha....‖. (p. 149). Veremos
adiante como os fumos de nobreza são ambição, fantasia e estratégia de sobrevivência do malandro.
320

guerra: é o apelido que lhe deu fama e ―tamanho‖, e é o nome que será perseguido,
amputado e apagado.
O nome que corre é o nome que encurrala.
E como o nome é a identidade e está inscrito no corpo do protagonista, é um nome
do qual o personagem não pode se desfazer.
Ao longo deste capítulo, voltaremos a examinar as ambiguidades relacionadas ao
nome do protagonista, que percorrem todo o texto. Além dessa questão, vale a pena
comentar dois outros aspectos do conto, um deles ligado a esse tema e outro que, apesar de
não assumir o primeiro plano narrativo, estrutura todo o relato. Trata-se, respectivamente,
do parricídio e do dinheiro, que se ligam à questão do nome e também à ascensão e à queda
do malandro — temas com os quais encerraremos este trabalho.

O desejo e o dinheiro

Para Paulinho Perna Torta, como ensina Laércio Arrudão, ―só o dinheiro interessa‖,
―só ele é positivo‖. Além da ameaça a seu nome e do fantasma do parricídio, o protagonista
se vê, desde o começo do relato, até o fim, às voltas com a falta do dinheiro e o imperativo
de consegui-lo, das mais diversas formas. A necessidade e a ubiquidade do dinheiro já
podiam ser localizadas, sempre latentes, em ―Malagueta Perus e Bacanaço‖, ainda que a
sinuca e a representação dos personagens assumisse o primeiro plano da ação e, de certa
forma, empurrasse para a sombra os motores do relato: a ganância e a miragem da grana.
Neste conto, porém, a cobiça é o tema central. Como já se disse, o texto foi escrito
sob encomenda para uma antologia de contos inspirados nos mandamentos bíblicos.
―Paulinho Perna Torta‖ inspirava-se no mandamento ―Não cobiçar as coisas alheias‖. O
conto, porém, não tem nada de bíblico ou de religioso, apesar de, como sempre em João
Antônio, relacionar-se em negativo com o universo cristão.
Não se trata, obviamente, de um conto que chancele o mandamento que o inspira.
Ao contrário, ele evidencia como o preceito cristão que condena a ganância não tem lugar
no contexto histórico e social em que a trama se desenvolve, senão enquanto instrumento
de dominação. No universo do conto, justo ao contrário, a cobiça é o que move o
321

protagonista. Em suas perambulações iniciais e, depois, como malandro e criminoso, a sede


do dinheiro é o que irá nortear seu caminho.
Em sentido afinado ao preceito bíblico, entretanto, cedo aparecem as forças
contrárias ao seu desejo de posse e enriquecimento. No conto, porém, o impedimento à
cobiça ganha tons não religiosos, mas sociais e psicológicos. São aqueles que estão acima
do protagonista, na escala social e no amadurecimento pessoal, que irão, sempre
implicitamente, impôr-lhe o mandamento bíblico, nunca enunciado no relato, mas evocado
pelo narrador em certos momentos, para marcar sua motivação e, depois, seu
arrependimento.
Antes de encontrar Laércio Arrudão, o menino se virava engraxando nas estações de
trem da cidade. Na Luz, tomavam-lhe o dinheiro. Então, ele decide procurar outro lugar
para a viração. Vai para a vizinha estação Júlio Prestes, onde passa a ser explorado pelo
dono da banca de jornais. Nesta fase de virações, o narrador dirá que era um ―trouxinha‖,
―moleque escorraçado‖. E o primeiro ato de desafio à situação opressora em que vive se dá
em função do dinheiro: ele quer se apoderar do ―tufo‖ de dinheiro daquele que o explora:

O dinheiro do cara era gordo, era um tufo. Com aquilo eu faria gato e sapato, mil e uma
presepadas, me arrumaria a vida. Ferveria.
427
Eu era um trouxinha que não sabia mandar o dinheiro do alheio.

A cobiça do protagonista aparece, desde cedo, como um desejo, como um desejo


reprimido pela violência de alguém mais forte: ―(...) os safanões que levei no meio das
ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar.
Parasse aí.‖428 Ele quer ter os sapatos dos clientes, mas os safanões o colocam no seu
devido lugar: ele é apenas um engraxate, moleque, trouxa. Seu desejo e sua cobiça,
portanto, são reprimidos e sua aventura está impedida. A ação do personagem está fadada à
rotina de trouxa: violência e frustração, exploração de sua força de trabalho e sofrimento.
A estrutura da narrativa, no entanto, que parte de um momento presente para voltar
às origens do protagonista na malandragem, apresenta ao leitor, simultaneamente, a
ambivalência constitutiva do personagem, também em relação ao dinheiro: ele é o Paulinho

427
Ldc, p. 106.
428
idem, p. 100.
322

Perna Torta que se tornou criminoso bem-sucedido e é o menino escorraçado, trouxinha,


sem dinheiro. É o narrador, já adulto, criminoso falado, que relembra seus tempos de
menino.

Eu bem podia me virar na Estação da Luz. Também rendia lá. Fazia muito freguês de
subúrbio e até de outras cidades. Franco da Rocha, Perus, Jundiaí... Descidos dos trens,
marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do escritório da estrada de ferro, todo
esse povo de gravata que ganha mal. Mas me largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o
tutu, o pororó, o mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o
concreto, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o agrião, o pinhão. O positivo, o algum, o
dinheiro. Aquele um de que eu precisava para me aguentar nas pernas sujas, almoçando banana,
pastéis, sanduíches. E com que pagava para dormir a um canto com os vagabundos lá nos escuros
da Pensão do Triunfo. Onde muita vez eu curti dor de dente sozinho, quieto no meu canto,
429
abafando o som da boca, para não perturbar os outros.

Neste momento em que relembra seus primeiros tempos na Pensão do Triunfo —


note-se a ironia do nome da pensão, habitada por toda a sorte de perdedores que sonham
com o triunfo —, Paulinho Perna Torta relembra a fome e as dores de dente que enfrentou,
sozinho, sem companhia, sem ter a quem recorrer: amigos, parentes ou instituições.
É sintomático que o narrador, neste momento que é o da juventude do malandro mas
já é também o do tempo presente da ação narrativa, isto é, que, neste tempo rememorativo,
ele, que irá se tornar o rei da Boca, relembre o tempo em que sofria de fome e de dor de
dente. A conquista futura do malandro que virou criminoso e se tornou soberano da Boca
ganha, assim, contornos ainda mais extraordinários, ligadas aos campos semânticos da
boca, da comida, da fome e da dor. Neste momento em que ainda não é criminoso, ele já
pratica as artes da viração, mas vive isolado, sem o amparo dos irmãos e do padrinho de
malandragem, e pode contar apenas com o dinheiro incerto, conseguido graças à viração.
A rememoração liga presente e passado. O personagem que narra relembrando fatos
que já ocorreram atualiza a experiência passada para atar sua história pregressa à situação
do momento presente, que ordena o desenvolvimento da narrativa. O elemento forte que faz
essa ponte entre o Paulinho Perna Torta de hoje, bandido poderoso, temido e ameaçado, e o
Paulinho Perna Torta menino de rua é o dinheiro.
429
idem, pp. 101-102.
323

O personagem arrola uma série de termos para nomear o dinheiro: ―o carvão, o


mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o mango, o vento, a granuncha, a seda, a gaita,
a grana, a gaitolina, o capim, o concreto, o abre-caminho, o cobre, a nota, a manteiga, o
agrião, o pinhão, o positivo, o algum, o dinheiro‖.430 O tempo desta cena é aquele em que o
protagonista ainda é engraxate, ganha uns trocos para subsistência (para comer, para dormir
em pensão, para se ―aguentar nas pernas sujas‖). Mas é já o personagem-narrador maduro
que narra aquele tempo desde o momento presente da narrativa, em que ele já é ―malandro
dos malandros‖, depois de ter encontrado Laércio Arrudão e de ter se tornado rei do crime.
A série de nomes identificados ao dinheiro será retomada adiante na narrativa, como já
vimos, quando o protagonista dirá que aprendeu com o padrinho. É Laércio Arrudão que o
ensinará que apenas o dinheiro importa, que ―só ele é positivo‖.431
A passagem enumera uma série de nomes para o dinheiro, como se a matéria fosse
fugidia, como se qualquer designação fosse insuficiente para estabelecer a permanência e a
definição deste. O caráter demoníaco do dinheiro fica ainda mais evidente se lembrarmos a
passagem de Grande sertão: veredas em que o protagonista fala do demo. A certa altura de
seu relato, Riobaldo elenca as seguintes palavras para se referir ao diabo: ―o Tal, o
Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o
Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o
Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, O-
sem-gracejos‖.432
A passagem de ―Paulinho Perna Torta‖ indica a dimensão ao mesmo tempo santa
(―o positivo‖) e demoníaca (―o maldito‖) que o dinheiro assumiu. Uma das designações que
o narrador usa para defini-lo é ―o abre-caminhos‖, o que indica, além da força econômica, a
potência espacial e a conotação mágica que o dinheiro apresenta para este narrador.
Além de comunicar o passado ao presente do protagonista, o dinheiro se liga aos
caminhos e ao desejo. É o dinheiro que poderá lançá-lo à aventura e à conquista. Sem ele, o
protagonista estava fadado apenas a ―ver e desejar‖. Paradoxalmente, porém, a força do

430
Ldc, p. 102.
431
idem, p. 121. A mesma passagem em que Laércio Arrudão ensina a importância do dinheiro a Paulinho
Perna Torta é uma das epígrafes ao conto: ―... quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas o dinheiro
interessa. Só ele é positivo. O resto são frescuras do coração.‖ A outra epígrafe é um trecho de ―Século do
progresso‖, composição de Noel Rosa: ―Um valente muito sério, / professor de desacatos / que ensinava aos
pacatos /o rumo do cemitério‖.
432
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, pp. 29-30.
324

dinheiro tem o poder de submeter tudo à sua lógica: desejo, aventura, memória, conquista e
perdição.
Segundo essa dinâmica, impulsos, afetos e ações direcionam-se à tomada do
dinheiro e à acumulação financeira, num jogo em que vale tudo e os mesmos valores e
procedimentos são positivos e negativos, violência e sedução se confundem, conduta certa e
errada não se distinguem: o desejo que Paulinho Perna Torta sente por Ivete logo se torna
violência e exploração; a mulher vira uma ―mina‖, de onde o personagem irá ―mamar‖ o
dinheiro; o trabalho, mesmo os trabalhos informais a que o protagonista se submeteu
quando menino, desaparece para dar lugar à exploração (a cafetinagem e a féria que um
malandro cobra do outro), ao jogo e ao tráfico; as instituições também se corrompem:
polícia, imprensa e Justiça estão submetidas ao poder financeiro e funcionam de acordo
com esse interesse.
Em um contexto social em que o dinheiro se tornou ubíquo e corroeu as instituições,
a malandragem é a normalidade. Para os que nasceram pobres é, além da regra de
funcionamento geral, um modo de existir, quando não inevitável, muito sedutor, pois
permite vislumbrar, além da pobreza e da penúria, promessas de ascensão e inserção. E,
entretanto, a malandragem assegura apenas a ambiguidade frágil e fugidia dessa promessa,
pois, como indica a narrativa de Paulinho Perna Torta, sua vida, assim como seu nome, está
ameaçada, até que ―um mais malandro o acerte‖.
Nesse sentido, Paulinho Perna Torta é um personagem social típico do autor, tal
como os define Jesus Antonio Durigan:

As personagens de João Antônio, em toda sua obra, constituem uma galeria de tipos
residuais, trapos humanos, marginalizados pela sociedade cruel que aparentemente abriga e
―protege‖ os otários, aqueles que são integrados. Aos malandros, personagens prediletas de sua
ficção — jogadores, gigolôs, prostitutas, viradores, praças, dedo-duros, artistas decadentes,
marginais — não lhes resta tão-somente a exclusão do sistema, mas lhes são negados até o direito e o
sonho de conseguir os mesmos objetivos da ‗gente bem‘, restando-lhes apenas a sobrevivência
difícil, só alcançada quando o malandro quer sobreviver e sabe como fazê-lo. Daí a necessidade de
seus personagens buscarem um aprendizado diário no submundo, na sarjeta, no prostíbulo, nos
433
grupos marginais.

433
DURIGAN, J. A. ―João Antônio: o leão e a estrela‖, in Leão-de-chácara, op. cit., p. 14.
325

Nesse contexto em que o dinheiro compra tudo e subsume tudo, aos mais pobres
resta sobreviver e conformar-se com a falta e a penúria ou sonhar com uma promessa de
ascensão, desde sempre latente e sedutora, mas incerta e tortuosa (se pela via da
malandragem) e promissora e acelerada (se trilhada pelos caminhos do crime). A ascensão,
para os merdunchos é vislumbrada, pois eles também são parte da sociedade, apesar de
excluídos da sociedade de ―bem‖ — o que o polo ―bem‖ não reconhece é que a
malandragem é parte mesmo dessa ―ordem‖ social. De todo modo, para a malandragem e
para o crime, a trajetória ascendente está sempre sujeita à difamação, à fuga, ao estrepe e —
antes da queda, perdição, morte —, à cadeia. Mas a prisão, porém, é uma queda, mas uma
queda para o alto, pois a cadeia, no universo da malandragem e do crime, é escola, o que
repõe o moto contínuo de alternância entre legalidade e ilegalidade, ordem e desordem.
Excetuando as opções da malandragem e do crime, para sobreviver os mais pobres
precisam vender o pouco que têm: os corpos e a força de trabalho. A remuneração da força
de trabalho, porém, nem sempre é garantida, como indicam as variadas opções de trabalho
informal que Paulinho Perna Torta exerce antes de entrar para a malandragem. E para
alguém sem origem definida, como Paulinho Perna Torta, sem casa e sem família, escola
ou emprego, sem instituições e sem Estado, sobrevivência confunde-se com malandragem,
que depois se torna crime, já que nele a cobiça e o vislumbre de ascensão encontram
terreno aberto e seguro, pois que ele é parte constitutiva dessa organização social.
A segurança e a liberdade, a amizade e o desafio, Paulinho Perna Torta vai
encontrar no dinheiro... e no padrinho. Quando Paulinho Perna Torta decide fugir, diz que
precisa de uma cobertura (―eu que me cobrisse‖). Quando encontra Laércio Arrudão e é
apadrinhado por ele, diz que pela primeira vez tinha uma ―casa‖.
A casa, porém, é a boca de Arrudão, lugar que é refúgio, mas também é alvo da
polícia e de outros malandros.
A casa de Paulinho Perna Torta é uma ―boca‖: lugar que alimenta e que devora,
onde ele entrou moleque de rua e se tornou malandro, onde é malandro, mas também
criminoso, onde trabalha, mas também onde faz trapaças e inicia a vida de cafetão, a
trajetória de empresário e depois de ―rei‖ do jogo e do tráfico. No entanto, nem mesmo na
boca ele encontra uma casa estável. A ciranda da fortuna e da malandragem fará com que
326

ele não tenha parada nem na boca nem mesmo em outra ―casa‖ onde ele ―encontra‖
refúgio: a Casa de Detenção.
Não surpreende, então, que nesse contexto em que o dinheiro se tornou ubíquo —
adorado e demoníaco, o positivo e o maldito — o último refúgio dos mais pobres, talvez o
único refúgio daqueles de origem pobre seja o corpo. 434
Às mulheres, resta vender o próprio corpo: a prostituição. Tornam-se ―minas‖ dos
malandros. Aos malandros, cumpre explorar: as prostitutas, os otários e os outros
malandros; e, no limite, matar.
A imprensa, a polícia e logo a cidade inteira vão deixar de chamar o protagonista de
Paulinho duma Perna Torta. Em breve, vão amputá-lo, o nome, para Perna Torta. Depois de
ter o nome amputado, também ele, o corpo, voltará a ser amputado, Paulinho Perna Torta
vai ser ―apagado‖.
É porque o corpo se tornou a casa — porque o corpo é a identidade de Paulinho
Perna Torta, que tem no seu nome de guerra a alusão a um desvio do seu corpo —, é
porque corpo e casa coincidem que a ameaça ao seu nome é também ameaça à sua morada,
à sua cobertura, ao seu corpo. É ameaça à própria existência de Paulinho Perna Torta, que,
ele mesmo percebe, será apagado, ele e o nome, sem restar sequer o nome ―para contar
história‖, como se diz.
Como o corpo e o nome se tornaram a última morada do malandro, Paulinho Perna
Torta, assim como já o fizera Laércio Arrudão, passa a cuidar da fama, mas também da
aparência, como um bom malandro de antigamente. Para passar para o partido alto, não
basta o dinheiro. Para ser do partido alto, é preciso parecer do partido alto. Para alguém de
origem pobre, é preciso passar a se vestir bem, cuidar das unhas, fumar charutos finos. É
preciso se fantasiar de alguém da alta classe: ―Manicuro as unhas, me ajambro com panos
ingleses, fumo charuto holandês (...)‖. Para esconder a origem plebeia, é preciso se

434
A conhecida fórmula de Lima Barreto ―O subúrbio é o refúgio dos infelizes‖ encontra então um novo
patamar histórico, em que os infelizes, apesar de não necessariamente estarem nos subúrbios, não encontram,
tampouco, refúgio onde quer que estejam, pois o último refúgio é o corpo e o nome, ameaçados ambos por
conta mesmo da informalidade e da vulnerabilidade impostas a eles. A malandragem em seu momento de
constituição, por meio do samba, tornava a favela nos morros cariocas uma alternativa ao subúrbio infeliz e
subvertia a noção de territorialidade, tornando o corpo um refúgio malandro, por meio da dança e do
rebolado. Mas a malandragem do jogo, da sinuca e do carteado, da prostituição, da ubiquidade do dinheiro e
da criminalidade em escala industrial transformou o corpo de refúgio em alvo.
327

fantasiar de nobre: Laércio Arrudão, ―bem ajambrado e já senhor, no terno claro de


brilhante inglês‖, tinha ―imponência‖ e ―batida de lorde num macio rebolado‖.
É o padrinho, Laércio Arrudão, quem ensina a importância do dinheiro, o positivo e
o maldito. É o padrinho o exemplo a ser seguido, como indica a fantasia de malandro,
estratégia de inserção amalandrada: não tendo lugar ―instituído‖ na sociedade burguesa, o
malandro se traveste de nobre. Lorde, como Laércio, que se veste com alinho e não
trabalha, ―faz a féria‖, apenas explora seus, digamos, súditos, os pequenos malandros que
lhe servem. Como já dizia Chico Buarque, ―o malandro é o barão da ralé‖.435
Paulinho Perna Torta irá emular o padrinho, ao passar para o partido alto e começar
a se comportar e se trajar como malandro das antigas: mãos manicuradas, roupa boa,
charuto fino, relações promíscuas com a polícia, a imprensa e a Justiça. Mas, como já se
disse, Paulinho Perna Torta não vai parar por aí. Sua cobiça e seu desejo de conquista o
fazem ultrapassar o padrinho, ainda que conservando a lealdade que lhe deve, seu afeto e
sua gratidão.
Seguir e emular o padrinho ou ultrapassá-lo, eis a questão do malandro.

Matar ou não matar o pai?

O encontro de Paulinho Perna Torta com o malando mais velho, Laércio Arrudão,
que o adota na zona, marca a passagem do protagonista de engraxate a virador, de menino a
malandro. A descrição do encontro com o padrinho é transbordante de afeto e admiração:

Engraxando lá uns tempos nas caixas da entrada da barbearia, que eu conheci, bem
ajambrado e já senhor, no terno claro de brilhante inglês, que fazia a gente olhar, mão luzindo um
chuveiro e dentes brancos muito direitinhos, um mulato muito falado nas rodas da malandragem,
professor de picardias, dono de suas posses e ô simpatia, ô imponência, ô batida de lorde num
macio rebolado! Laércio Arrudão.

435
A canção ―A volta do malandro‖ (1985), de Chico Buarque, feita para o filme A ópera do malandro, diz:
―Eis o malandro na praça outra vez / Caminhando na ponta dos pés / Como quem pisa nos corações/ Que
rolaram dos cabarés // Entre deusas e bofetões/ Entre dados e coronéis/ Entre parangolés e patrões/ O
malandro anda assim de viés // Deixa balançar a maré/ E a poeira assentar no chão/ Deixa a praça virar um
salão/ Que o malandro é o barão da ralé‖. Sobre a composição da música, ver HOMEM, Wagner. Histórias de
canções: Chico Buarque. São Paulo: Leya, 2009.
328

Que foi pelos meus olhos acesos e verdes ou pela minha cara de esperto muito acordado;
que foi pela mão de Deus ou por uma trampolinagem do capeta. Mas foi a minha maior colher de
chá, o meu bem-bom, a minha virada nesta vida andeja.
Laércio Arrudão me topou e me deu uma luz, me carregando para empregado lá na zona, no
boteco da Alameda Nothmann. Ali, no Bom Retiro. Pegado aos trilhos do bonde, na esquina da rua
Itaboca, defronte à rua dos Italianos; ali, naquele muquifo escuro, onde minha vida virou, é que os
vadios das curriolas, os trouxas das ruas, os tiras das rondas, as minas, as caftinas, os invertidos, as
empregadas da zona e os malandros encostavam o umbigo no balcão pedindo coisas, balangando
seus corpos e queimando o pé nas bebidas. E cujo nome, de muito peso e força, era repetido de
boca cheia na fala da malandragem. Boca do Arrudão.
436
Pela primeira vez eu morava em algum lugar.

Além de encontrar em Arrudão um padrinho que lhe dá ―cobertura‖ e lhe oferece


um local de trabalho e malandragem, é ali que Paulinho Perna Torta vai encontrar, pela
primeira vez, uma casa, como indica a última frase do trecho acima. Os termos com que o
malandro mais velho é descrito são carregados de uma afetividade a um só tempo infantil e
erótica (―minha colher de chá‖, ―meu bem-bom‖), revelando a relação umbilical (―os
malandros encostavam o umbigo no balcão pedindo coisas‖) que Paulinho Perna Torta
e os demais malandros mantêm com a Boca do Arrudão.
Laércio Arrudão é ―professor de picardias‖, ―lorde‖ de ―macio rebolado‖, ―bem-
ajambrado‖ e já ―senhor‖, mas ―imponente‖. Na figura do malandro mais velho, assim,
Paulinho Perna Torta encontra um modelo, padrinho, pai substituto, professor, provedor e
protetor. Arrudão é casa, sustento, ensino e malandro que apresenta ao malandreco a
picardia.
A relação de Paulinho Perna Torta com Laércio Arrudão é descrita, a princípio, com
enlevo e forte conteúdo afetivo e erótico. No entanto, mais adiante, a crueldade e a
violência da malandragem de Laércio Arrudão vão se tornar explícitas na enunciação. É
quando o narrador credita ao aconselhamento de Laércio Arrudão a sua mudança de atitude
com relação à prostituta Ivete, a fim de ―deixar de ser um pivete frouxo‖. Cansado de se
submeter às vontades dela, seguindo os conselhos do malandro mais velho, ele recorre à
força para se impor como cafetão desta prostituta.

436
Ldc, p. 111.
329

O brilho de simpatia nos olhos de Laércio Arrudão começou por me ensinar que quem
bate é o homem. E manda surra a toda hora e fala pouco. Quem chega tarde é o homem. Quem tem
cinco-dez mulheres é o homem – a mulher só tem um homem. Quem vive bem é ele – para tanto, a
mulher trabalha, se vira e arruma a grana. Quem impõe vontades, nove-horas, cocorecos, bicos-de-
pato e lero-leros é o macho. Homem grita, manda e desmanda, exige, dispõe, põe cara feia e pede
pressa. A mulher ouve e não diz um a, nem sim, nem não, rabo entre as pernas. Mulher só serve
para dar dinheiro ao seu malandro. Todo o dinheiro. Por isso, entre os malandros da baixa e da
alta, as mulheres se chamam minas.
Laércio Arrudão me ensinou.
— Mulher lava os pés do seu homem e enxuga com os cabelos.
Laércio Arrudão me ensinou.
— Outra coisa: duas ondas bestas podem perder um homem. Gostar e mulher bonita.
Malandro que é malandro se espianta e evita tudo isso.
Pousando as duas mãos nos meus ombros, falando baixo e sério um português bem
clarinho, Laércio começava a me escolar que quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas o
dinheiro interessa. Só ele é positivo. O resto são frescuras do coração.
Eu precisava tomar uns pontos na ignorância.
À noite, à toa, à toa, meti-lhe um sopapo na caixa do pensamento. Ela caiu e quis pôr a
boca no mundo. Chapoletei-lhe mais um muquete e se aquietou.
— Fale baixo comigo.
Agora, ganha porrada toda a mão que tenta uma liberdade. Às vezes, à frente das outras
mulheres do Salão Azul. Então, meu nome se espalha e começa a ganhar tamanho na zona.
Boquejam à boca pequena:
Um valente ponta firme.
Ivete se sente mulher de malandro e me agrada mais. Vem se aninhar como uma cachorra.
437
Sou temido e presenteado.

A passagem acima indica que graças aos conselhos de Laércio Arrudão, os quais o
protagonista leva à risca, finalmente ele ganhou fama de ―valente‖. Ao atender às
recomendações de bater em Ivete, prostituta de quem é cafetão, o protagonista não apenas
se torna malandro temido e respeitado por ela, mas também por outras pessoas que vivem
na zona. É ali que o seu nome ―se espalha e começa a ganhar tamanho‖.
A violência e a crueldade da cena em que o malandro passa a bater na prostituta
dispensam comentário. Vale destacar, porém, que as surras e outras violações que Paulinho

437
Ldc, pp. 120-121.
330

Perna Torta impõe a Ivete (e depois também a Valquíria) vêm emolduradas por contornos
de simpatia e lirismo. Seguindo a ambivalência com que ele próprio conta a sua história, o
narrador começa por dizer que foi o ―brilho de simpatia‖ do olhar do malandro mais velho
que lhe ensinou a bater em mulher. Além dessa introdução que pinta de tons positivos
(―brilho‖, ―simpatia‖) os conselhos do malandro experiente, a linguagem do trecho também
combina um vocabulário limpo e direto a certo linguajar colorido e dissimulado, para falar
dos gestos e atitudes violentos (―nove-horas‖, ―cocorecos‖, ―bicos-de-pato‖ e ―lero-leros‖).
Para completar a moldura lírica da crueldade de Paulinho Perna Torta, a passagem
vem toda ela rememorada durante um longo trecho em que o narrador empreende um
passeio de bicicleta pelas ruas da cidade: ―E zanzo demais por aí, em cima da minha
magrela. Gosto do pedal. Nele é bom curtir essa onda de andar. Sei lá por que gosto. Sei
que gosto. Atravesso essas ruas de peito aberto, rasgando bairros inteirinhos, numa chispa,
que vou largando tudo para trás — homens, casas, ruas. Esse vento na cara...‖.438
Após a cena da violência contra a prostituta o narrador retoma, na elocução, o
passeio de bicicleta, que irá culminar nos arredores do estádio do Pacaembu, onde o
protagonista fica ―namorando com os olhos‖ uma ―dona novinha‖, ―filha de bacana‖, uma
―princesa‖, uma ―boneca‖, uma ―gata‖, em quem, ele reconhece, não pode ―pular em
cima‖, pois ela, nas palavras dele próprio, ―é do partido alto e minha charla ali não dá pé‖.
O contraste com a maneira com que ele trata a prostituta e a menina da alta
sociedade é sintomático. Ele descreve como passou a tratar de Ivete como propriedade sua;
ao passo que a moça do partido alto, que vai aos arredores do estádio fazer aulas de direção
de automóvel, ele não tem como conquistar, nem pela força (―pulando em cima‖ da ―gata‖),
nem pela fala (a ―charla‖) — a única possibilidade, talvez, fosse passar por alguém do
partido alto, algo que o narrador ainda não entrevê. A dualidade de ternura e violência
culmina na frase final sobre a menina rica: ―(...) se pego essa criança costuro toda de
carinho‖.439
O flerte com a moça do partido alto aponta para um impulso de Paulinho Perna
Torta que o afasta da zona e que o distancia dos conselhos de Laércio Arrudão (―apenas o
dinheiro interessa, o resto são frescuras do coração‖), ainda que a ascensão que o possível

438
Ldc, p. 113.
439
Ldc, p. 122.
331

relacionamento com a moça pudesse proporcionar seja coerente com o ensino de que só o
dinheiro interessa. Os desejos de ascensão social, de passar para o partido alto, ganham
nesta passagem um momento que resume a contradição do relacionamento de Paulinho
Perna Torta e seu padrinho. O malandro mais velho é a um só tempo um igual, um irmão de
malandragem, a quem Paulinho Perna Torta deve lealdade e fidelidade, mas também um
pai substituto, que apesar de ter o respeito e a admiração de Paulinho Perna Torta, tende a
ser ultrapassado por ele. A moça que não faz parte do universo da zona, em contraste com
Ivete e Valquíria, o namoro no bairro ―bom‖, o Pacaembu, e não no bairro ―degradado‖, a
zona do Bom Retiro, indicam que o malandro mais novo permanece em conflito com a
figura paterna de Laércio Arrudão: sabe que só o dinheiro interessa, mas quer passar para o
partido alto, adquirindo não apenas capital, mas também status; explora a prostituta Ivete,
mas sonha com a moça da alta classe.
O conflito não enunciado com o padrinho de malandragem aponta para uma
contradição que é anunciada, afrontada e desfeita, mas que permanece operando na
trajetória de Paulinho Perna Torta. O malandro mais novo quer ultrapassar o padrinho, mas
lhe deve fidelidade. Trata-se de um relação de ambiguidade difícil de resolver.
Ao comentar os sentimentos conflituosos, a relação de amor e ódio em relação ao
pai, Freud observa, em ―Totem e tabu‖:

(...) a ambivalência implícita no complexo-pai persiste geralmente no totemismo e nas


religiões. A religião totêmica não apenas compreendia expressões de remorso e tentativas de
expiação, mas também servia como recordação de triunfo sobre o pai. A satisfação por esse triunfo
levou à instituição do festival rememorativo da refeição totêmica, no qual as restrições da
obediência adiada não mais se mantêm. Assim, tornou-se um dever repetir o crime de parricídio
muitas vezes, através do sacrifício do animal totêmico, sempre que, em conseqüência das
condições mutantes da vida, o fruto acalentado do crime — a apropriação dos atributos paternos
— ameaçava desaparecer. Não nos surpreenderá descobrir que o elemento da rebeldia filial
também surge nos produtos posteriores da religião, freqüentemente sob os mais estranhos disfarces
440
e transformações.

440
FREUD, S. ―Totem e tabu‖. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud. Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 174-175.
332

Os impulsos agressivos dos filhos em relação ao pai, como sugere Freud, têm papel
central nas organizações sociais, nas quais substitui-se o pai por figuras paternas ou totens,
na passagem da ―horda primitiva‖ para a ―civilização‖ ou ―cultura‖. Estariam aí as origens
dos sentimentos religiosos, que transformam o pai real em pai simbólico, ou Deus. E nos
produtos posteriores da religião, isto é, nas organizações sociais complexas, estaria na
simbolização da figura paterna a origem da disposição coletiva em obedecer a um conceito
abstrato de limite ou de lei, que faz as vezes de pai quando pai não há, isto é, quando se
vive em uma sociedade livre, laica, democrática, sem figura de autoridade tirânica,
tornando todos os indivíduos iguais perante certas normas e códigos definidos. Assim, os
sentimentos psíquicos que se estabelecem entre pais e filhos e entre filhos e filhos evoluem
para sentimentos que exigem transcender os laços pessoais e religiosos, avançando para
uma organização social baseada na abstração da lei perante à qual, em tese, todos são
iguais. Não vigem mais os impulsos selvagens nem os mandamentos religiosos, mas sim as
leis e normas sociais.
As reflexões freudianas sobre as relações conflituosas entre pai e filho, com reflexo
na dinâmica social, retomam suas leituras da tragédia de Édipo. Como já vimos, essas
reflexões vêm desde A interpretação dos sonhos, onde o autor assinala os sentimentos
contraditórios que a figura paterna desperta no filho, especialmente no filho homem,
quando este descobre nele um rival pelo amor da mãe.
Marthe Robert, como já observamos no capítulo 2, parte de um texto freudiano,
―Romances familiares‖, para mostrar como os romances encenam sempre dois tipos de
histórias sobre a origem de seus protagonistas: as fábulas da Criança Perdida e do Bastardo,
que correspondem, na teoria psicanalítica freudiana, às fases edípica e pós-edípica do
desenvolvimento do indivíduo. A fábula do Enjeitado ou do Bastardo corresponde ao
momento em que a criança descobre a sexualidade e, por consequência, as diferenças entre
os gêneros. Passa então a acreditar que a mãe é certa e que o pai que ela acredita ser pai
pode não o ser. Assim, a criança rebaixa a mãe a uma situação degradada e alça o pai — o
pai que ela não conhece — a uma condição admirável, elevada e nobre.441
Com isso, tende a ocorrer a dissolução do Complexo de Édipo, permitindo que a
criança, afinal, afaste seus impulsos eróticos em relação à mãe e agressivos em relação ao

441
Ver FREUD, S. ―Romances familiares‖, op. cit., e ROBERT, Marthe, op.cit, pp. 40-44.
333

pai, ou melhor, reprima esses desejos e os transforme em conteúdos latentes, inconscientes,


conferindo caráter simbólico à interdição do incesto (tornado tabu) e ao parricídio
(associando a figura do pai ao totem e à lei). Isso acontece, segundo Freud, no caso dos
garotos, por conta da ―ameaça da castração‖, que surge na psicologia da criança em
decorrência da descoberta da sexualidade e da diferença entre os gêneros.442
A construção do protagonista Paulinho Perna Torta concentra, em um único
personagem, as duas fábulas de explicação da origem, tanto a da Criança Perdida como a
do Bastardo. Ao contrário de Vicente, protagonista de ―Busca‖ — que encarna a fábula do
Bastardo, pois perdeu o pai e ainda tem na mãe um elo familiar concreto e seguro, que
coincide, nos termos daquele conto, com a sua própria casa —, Paulinho Perna Torta não
faz referência a seus pais biológicos, senão para negar a fama de parricida. A origem
nebulosa do personagem encena a fábula da Criança Perdida, a história de alguém que
nasceu sem saber quem são seus pais e que sonha em reencontrá-los, idealizando-os como
pais superiores, protetores e nobres. A certa altura, Paulinho Perna Torta de fato encontra
em Laércio Arrudão este segundo pai, um padrinho, pai postiço e substituto que o adota,
protege-o e o orienta.
Como diz o discípulo, palavra de Arrudão tem ―peso de lei‖.

A gente nunca diz apenas Laércio. É Laércio Arrudão.


Que só aparece à noite alta, vistoso e mandão, barbeado e luzindo. Dono da bola, sua
palavra tem peso de lei. Canta de galo aqui e não trabalha. Fiscaliza. Faz a féria, pede o livro. Dar
ordens é com ele. Os malandros ficam à sua roda ouvindo, aprendendo e adulando. Os irmãos
guardam distâncias. Seu andar é de doutor, de chefe, parece um deputado. Meu padrinho. Joga-me
um agrado.
— Ô batuta!
Tem o ouro e nunca ninguém soube com certeza sobre o quanto que lhe pertence. Sabe-se
que é ligado ao Jóquei Clube, fala-se que tem lá um cavalo no Haras Guarani; à boca pequena
boqueja-se que é dono de dois rendez-vous da rua Guaianazes; diz que tem negócio com jogo e

442
FREUD, S. ―A dissolução do Complexo de Édipo‖. In: Obras completas, volume 16. O Eu e o Id,
Autobiografia e outros textos (1923-1925). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2011. O sentimento da ameaça de castração, segundo Freud, ocorre, em geral, por meio da repressão ao hábito
da masturbação, mas tem sucedâneos: o desligamento do seio materno, a excreção e a descoberta pelo menino
do genital feminino, isto é, de que há outro ser humano, tão parecido com ele, mas sem pênis.
334

contrabando em Santos... A certeza ninguém tem. A gente jamais fica conhecendo Laércio Arrudão.
443
E se está sempre por baixo dele. É homem que não abre o seu jogo. Nem com reza brava.

A caracterização que Paulinho Perna Torta faz do padrinho Laércio Arrudão é a de


um pai onipotente, com ares de nobreza e aura misteriosa. Só aparece à noite alta, sempre
alinhado, ―vistoso‖. Manda e desmanda (―canta de galo‖) e ninguém sabe quanto dinheiro
tem. Não trabalha, como bom malandro, mas também como fidalgo, como o ―lorde‖ de
rebolado macio de que já falara o protagonista. É um pai, na visão do personagem, elevado
e dotado de capacidades extraordinárias, que escapam ao entendimento. Paulinho Perna
Torta associa-o a figuras paternas simbólicas que são a um só tempo malandras, burguesas,
fidalgas, poderosas, inseridas e criminosas: lorde, professor, jogador, contrabandista,
doutor, chefe, deputado.
Como o protagonista não tem pai, e não se sabe se ele de fato matou o pai, a adoção
dele por Laércio Arrudão o torna afilhado, protegido do velho malandro. Isso confere ao
malandro mais novo não mais a condição de Criança Perdida, mas o estatuto de Bastardo,
um estatuto, como diz Marthe Robert, ―vergonhoso‖ e ―glorioso‖, pois que o permite,
apesar da origem vexatória, engendrar, ele próprio, a mesma história de expansão e
conquista, com as capacidades paternas — tomadas do pai, ao transformá-lo em totem (nas
organizações tribais) ou em lei (nas sociedades democráticas) — capacidade de convívio
(ritual ou social), potência e procriação, em suma, uma capacidade essencial: a de participar
―ativamente da fabricação secreta da vida‖.444

O Bastardo nunca terminou de matar seu pai para substituí-lo, copiá-lo ou ir mais longe
que ele, decidindo ―tomar seu caminho‖. Criminoso em si, não por acidente, mas totalmente,
inclusive em virtude de sua inspiração, ele arrasta o romance em sua esteira no ciclo da
transgressão em que gira infinitamente em torno de sua consciência pesada e de sua revolta,
escandalizado pelas limitações de seu ser, culpado, envergonhado, assombrado pela expiação e o
445
castigo.

443
Ldc, pp. 126-127.
444
ROBERT, M. op. cit., p. 46.
445
idem, ibidem.
335

Paulinho Perna Torta é Criança Perdida e Bastardo. No relato que ele mesmo
empreende, como personagem-narrador, não há referência a casa ou à primeira infância.
Não se conhece a família, não há menções à educação formal, não há irmãos ou amigos que
compartilhem com o personagem a desventura. Isolado, solitário, o protagonista conta que
desde cedo teve de inventar o seu próprio caminho. Mas esta empresa, a de fazer a própria
história, é contada do ponto de vista de quem deixou de ser um perdido, ou simplesmente
um malandro, para se tornar um criminoso. Ele sabe que a sua história, a história que ele
próprio decide contar, como narrador de si mesmo, é uma história de ascensão, que ora está
ameaçada. Onde, quando e como ela terminará, não se sabe, assim como as origens também
são desconhecidas. Mas o início da ação é localizado pelo narrador, como já vimos:
―Comecei por baixo, baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malandro,
ganhar. Como todo infeliz começa. Já cedinho batucava. — Vai um brilho, moço?‖.446
Não se sabe de família na vida de Perna Torta. Ou melhor, sabemos apenas do pai,
dos boatos que contam de que ele matou o próprio pai: ―Ainda escrevem aí que matei meu
pai a tiros por causa de uma herança... Esses tontos dos jornais me botam cabreiro‖. A fama
que lhe colocaram é de parricida, o que ele nega, sem porém conseguir se desvencilhar
dela. Antes mesmo de encontrar um pai substituto — uma figura paterna protetora, na
pessoa do malandro Laércio Arrudão —, o personagem já encontrara outra figura paterna,
mas opressora, no jornaleiro que o explorava na estação Julio Prestes. Para escapar dele,
como já dissemos, o protagonista recorre à ginga e ao deslizamento, relacionando-se
antecipadamente e em negativo com destino de ―perna torta‖. Ainda antes de enfrentar esse
patrão explorador e de encontrar o padrinho, ele já observara que havia começado por
baixo, servindo malandros maiores. A maneira com que ele apresenta a própria história é
como se estivesse predestinado a ser explorado: ―como todo sofredor começa‖. Além disso,
a corroborar a predestinação, as primeiras virações confirmam o que lhe foi destinado: o
protagonista se achava em posição de inferioridade em relação aos malandros que lhe
tomavam o dinheiro na Estação da Luz. Para escapar destes, diz que teve de ―mancar‖,
―deslizando‖ dos malandros que o achacam:

446
Ldc, p. 99.
336

Bem. Na Estação da Luz me tomavam o dinheiro. Com o tempo me apavorei, achei que não
estava no tom aquela malandragem correndo para cima de mim e me manquei. Entendi. Parei de
estalo. Desguiei, me espiantei, me esquinizei e, deslizando dos malandros, bati perna, acabei me
447
escorando lá na Estação Júlio Prestes.

Assim como na história de Édipo, tal como contada na lenda e na tragédia grega,
Paulinho Perna Torta também ignora quem são seus pais verdadeiros. O paralelo com o
mito edípico é inevitável, ainda mais quando sabemos que, na lenda grega, o rei de Tebas
também era um ―perna torta‖. Como ensina Jean-Pierre Vernant, Édipo descende de uma
linhagem de ―gerações mancas‖: era neto de Lábdaco, ―o manco‖, e filho de Laio, ―o
desajeitado‖. Ao nascer, Édipo é confiado por Laio e Jocasta, seus pais, a um pastor, que
terá como missão dar fim à criança, pois os pais temem seu destino. Como previu o
oráculo, o menino está predestinado a matar o pai e dormir com a mãe. O pastor fere o pé
de Édipo para acorrentá-lo, mas termina por não o sacrificar e o entrega a outro pastor, que
por sua vez o entregará ao casal de reis de Corinto, onde Édipo será criado.

Mesmo se não manca no sentido literal da palavra, Édipo guarda em seu pé a marca
desse afastamento que lhe impuseram, da distância que está em relação ao lugar onde deveria
estar, e que constitui suas verdadeiras origens. Portanto, também se acha em um estado de
448
desequilíbrio.

De nascimento nebuloso, incerto, Paulinho Perna Torta está em desequilíbrio,


vulnerável e livre, solto no mundo, afastado de suas origens, que são desconhecidas.
Sozinho, de início, ele é capaz de deslizar, para enfrentar e fugir das figuras paternas que
encontra pela frente, negando o conflito direto. Quando conhece Laércio Arrudão, ele tende
a conservar o mesmo comportamento, mas irá ultrapassar o padrinho, evitando o confronto
com ele e, ao mesmo tempo, o vencendo. Irá sobrepujá-lo, ainda que se mantenha leal a ele
e inclinado a emulá-lo. Inconscientemente, terá de matar o pai postiço, confirmando a fama
de parricida, sem tê-lo feito, sem ter cometido o assassinato do padrinho.

447
Ldc, p. 104-105.
448
VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Trad. de Rosa Freire d‘Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 166.
337

Assim como Édipo, Paulinho Perna Torta está predestinado a matar o pai. Assim
como na lenda grega, Paulinho Perna Torta também carrega este fardo, sem que, na
narrativa, o parricídio tenha lugar, ao menos objetivamente, na ação narrada, ainda que na
enunciação o narrador insista em negar a fama que atribuem a ele. Note-se que o
protagonista relata outros crimes de natureza semelhante, como a morte de um malandro
rival. É a narrativa do próprio protagonista que declara que Paulinho Perna Torta apagou
Valdãozinho, um malandro que o denunciou à polícia e deu informações à imprensa, isto é,
Paulinho Perna Torta é impelido a matar aquele que ameaça seu posto de único dono da
Boca.
Por que, então, esse criminoso confesso nega ter matado o próprio pai?
A insistência com que ele evoca a fama de parricida indica que o personagem,
apesar de presumivelmente não ter assassinado o pai, carrega a fama e a culpa por tê-lo
feito, sem poder livrar-se delas. Simbolicamente, portanto, a persistência e a reincidência da
culpa indicam que o malandro sente o desejo latente de fazê-lo, revive inconscientemente o
impulso de matar o pai.
O gesto mais radical, porém, Paulinho Perna Torta termina por não cometer: a morte
do padrinho, o Arrudão. E talvez por isso o final do conto seja tão melancólico, de uma
tristeza profunda do personagem por perceber que a cobiça de ter tudo, de ter acumulado
riqueza, não o levou a lugar nenhum, e permanece a ameaça de que um ―mais malandro‖ o
apague.

Do eu ao mundo

Ao final do conto, melancólico e arrependido, Perna Torta evidencia o seu próprio


drama. Seu medo é ser apagado por alguém mais malandro que ele. O sentimento difuso de
melancolia e a instabilidade do mundo em que Paulinho Perna Torta vive indicam que o seu
feito de ultrapassar o ―pai‖, seu padrinho Laércio Arrudão, não faz com que ele tenha, de
fato, deixado para trás a infância e adentrado o mundo adulto. No plano social, indica que a
passagem da ―barbárie‖ para a ―cultura‖ não se deu, não se completou.
338

Figura-se um impedimento da passagem de uma horda de malandragem — dos


―bárbaros‖ que atuam como ―relógios‖, como João Antônio se refere aos malandros em
ação —, para uma possível civilização burguesa, em que o dinheiro é valor positivo, mas
com instituições que funcionem sem obedecer à sua lógica.
A questão é tanto psíquica quanto social e estrutura-se no conto, como já
sublinhamos, em torno da trajetória de um menino pobre, que se forma malandro, que vira
criminoso e quer passar para o partido alto, num dado contexto. A marcação de tempo
histórico, neste conto, entretanto, não é clara, mas é possível presumir que, orbitando em
torno da década de 1950, a narrativa avance até o começo da década seguinte. O tempo da
narrativa, portanto, é anterior ao golpe militar e à ditadura. Apesar disso, o conto foi
publicado em livro em 1975, o que o insere num contexto de publicação e recepção em que
viviam-se tempos duros do regime militar.
Como vimos, o pano de fundo de ―Abraçado ao meu rancor‖ e a própria
constituição do personagem neste conto da fase madura avançaram em relação a ―Paulinho
Perna Torta‖. Em ―Abraçado ao meu rancor‖, a referência à ditadura e à censura é explícita
— ainda que não assuma o primeiro plano da narrativa — e concorre para conferir
motivação mais concreta ao estado melancólico do protagonista.
No livro de ficção que se segue a Leão-de-chácara, Dedo-duro, publicado em 1982,
os contos curiosamente não trazem referência alguma ao panorama político — e mesmo o
tema do conto que dá título ao volume, a alcaguetagem, que poderia ganhar feições
políticas, em época de recentes perseguições, militância e luta armada, permanece num
nível apolítico, em que se enfrentam policiais e malandros, criminosos comuns.
Em resumo, no que se refere à representação da realidade política, apesar de ter sido
publicada durante o regime militar, a literatura de João Antônio parece não se ocupar da
ditadura no que se refere à construção formal e à ação narrativa. No entanto, se lembrarmos
da definição de Antonio Candido, em ―A nova narrativa‖ ao referir-se ao ambiente político
carregado, podemos identificar na literatura do autor o espírito combativo, ―do contra‖,
comum à literatura do período:

[...] vê-se que estamos ante uma literatura do contra. Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço
do país; contra a convenção realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma
escolha dirigida pela convenção cultural; contra a lógica narrativa, isto é, a concatenação graduada
339

das partes pela técnica da dosagem dos efeitos; finalmente, contra a ordem social, sem que com
isso os textos manifestem uma posição política determinada (embora o autor possa tê-la). Talvez
esteja aí mais um traço dessa literatura recente: a negação implícita sem afirmação explícita da
ideologia.
Estas tendências podem ser ligadas às condições do momento histórico e ao efeito das
vanguardas artísticas, que por motivos diferentes favoreceram um movimento duplo de negação e
superação. A ditadura militar — com a violência repressiva, a censura, a caça aos inconformados
— certamente aguçou por contragolpe, nos intelectuais e artistas, o sentimento de oposição, sem
com isso permitir a sua manifestação clara. Por outro lado, o pressuposto das vanguardas era
também de negação, como foi entre outros o caso do tropicalismo dos anos 60, que desencadeou
uma recusa trepidante e final dos valores tradicionais que regiam a arte e a literatura, como bom-
gosto, equilíbrio, senso das proporções.
É possível enquadrar nesta ordem de idéias o que denominei ―realismo feroz‖, se
lembrarmos que além disso ele corresponde à era de violência urbana em todos os níveis do
comportamento. Guerrilha, criminalidade solta, superpopulação, migração para as cidades, quebra
do ritmo estabelecido de vida, marginalidade econômica e social — tudo abala a consciência do
escritor e cria novas necessidades no leitor, em ritmo acelerado. Um teste interessante é a evolução
da censura, que em vinte anos foi obrigada a se abrir cada vez mais à descrição crua da vida
sexual, ao palavrão, à crueldade, à obscenidade — no cinema, no teatro, no livro, no jornal — ,
449
apesar do arrocho do regime militar.

Não se tem notícia de problemas que a literatura de João Antônio tenha tido com a
censura e com o regime militar. Flora Süssekind, em visada oposta, inclusive, acredita que
a ideologia nacionalista e ufanista da ditadura contribuíram para a popularização e o
sucesso da obra de João Antônio à época.450
É evidente, porém, que sua literatura pretende representar o avesso e a negatividade
da sociedade instituída, mostrando o quanto a ordem, a dinâmica econômica, a vigência da
lei e a própria presença efetiva do Estado favoreciam apenas certas parcelas da população.

449
CANDIDO, A. ―A nova narrativa‖. op.cit., p. 212.
450
Flora Süssekind entende que a literatura do autor foi favorecida pelo que ela chama de ―os delegados
Fleury das letras‖, que, em vez de censurar e se opor, incentivam certas obras, sobretudo as que retratam o
país. No que ela chama de ―literatura-verdade‖ de autores como José Louzeiro e João Antônio a ditadura
militar teria encontrado ―colaboradores bastante eficientes‖ (p. 27). A autora insere João Antônio no rol de
autores que seguiram a trilha de um ―neonaturalismo‖. Inspirada pela leitura de Davi Arrigucci em ―Jornal,
realismo, alegoria‖, ela entende que havia, então, uma ―ficção de mãos dadas com o jornalismo‖, em que o
romance-reportagem estabelece uma literatura parajornalística ―que se crê retrato‖, que pretende informar e
— tomando de empréstimo leitura de Silviano Santiago — procura ―nomear o assunto proibido‖ e ―despojar-
se dos recursos propriamente ficcionais na ficção.‖ (pp. 58-59). SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária:
Polêmicas, diários & retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
340

Nesse sentido, as contradições individuais de Paulinho Perna Torta expressam também


fraturas de ordem social. Matar ou não matar o pai, desafiar e ultrapassar ou não o
malandro mais velho, ascender socialmente e passar para o partido alto ou não, virar
―empresário‖ ou ―rei‖ do crime são questões que unem história individual e pano de fundo
sócio-histórico, representam um drama pessoal que se apresenta em uma organização social
dada e em desenvolvimento, cuja dinâmica tende a excluir os mais pobres e favorecer os
mais ricos, submetendo malandros, criminosos e otários à lógica do dinheiro, da corrupção
e da violência, com consequências desiguais. Para os sem-eira-nem-beira, dramáticas.
O que fizeram João Antônio e Rubem Fonseca, esses dois autores do realismo feroz,
foi mostrar como a violência urbana — que o senso comum associa aos estratos mais
baixos da sociedade, impondo aos marginalizados e mais pobres os estereótipos de
bandidos e de marginais —, está disseminada também nas classes mais altas, quando não é,
ela mesma, gerada no interior da elite, assim como a corrupção. Rubem Fonseca fez isso à
sua maneira, ao mostrar como a violência permeia as camadas sociais de alto a baixo, em
contos como ―Feliz Ano Novo‖, ―O cobrador‖ e ―Passeio noturno‖, entre outros. Nesses
contos, a leitura aguda de Boris Schnaiderman ouve ―vozes de barbárie‖ e ―vozes de
cultura‖. Na ficção do autor, ―as vozes de barbárie são contaminadas por algo que não se
coaduna com a palavra ‗bárbaro‘. E a crueldade máxima, o ápice da violência, está muitas
vezes matizada por algo que lhe é claramente oposto‖.451 Em Rubem Fonseca, segundo
Schnaiderman, ―a barbárie está muitas vezes presente nas atividades que, por definição,
pertencem à esfera da cultura‖. Nele, brutalidade e lirismo se alternam, muitas vezes num
mesmo personagem, como é o caso do protagonista de ―O cobrador‖, numa caracterização
que lembra também a ambiguidade com que João Antônio pinta Paulinho Perna Torta.
A estratégia de Rubem Fonseca, porém, difere da de João Antônio. A orientação
teleológica das histórias de suas narrativas, aliada à recorrência com que narradores e
personagens expressam e citam elementos da cultura erudita, aponta para um autor e para
narradores que, via de regra, pertencem ao território das classes privilegiadas, habitam esse
espaço ou o acessam. Os contos do autor na década de 1970 contam histórias em que a
violência extrema encontra o caminho da perversão, da escatologia, do cinismo e da...

451
SCHNAIDERMAN, B. ―Vozes de barbárie, vozes de cultura. Uma leitura dos contos de Rubem Fonseca‖. In:
FONSECA, R. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
341

violência extrema, sem perspectiva de acomodação ou resolução nos termos da ação


narrada. Não há tragicidade, como em João Antônio. Como o ponto de vista do autor é
marcadamente exterior ao seu universo ficcional, o ponto de fuga da ficção realista de
Rubem Fonseca paradoxalmente escapa ao realismo e tende à alegoria (―O cobrador‖, ―O
quarto selo‖), à autorreferência irônica (―Intestino grosso‖), à literatura que se dobra sobre
si mesma (―Lúcia McCartney‖, ―Pierrô da Caverna‖). A contradição do ponto de vista
interno, ―onde o narrador na primeira pessoa não tem qualquer afastamento temporal, mas
parece estar na própria duração do acontecimento‖, como anotou Antonio Candido sobre
os contos de Rubem Fonseca, redunda neste autor em cinismo, mas em cinismo que
mantém dissociados autor e narrador, o que faz do cinismo, em certas narrativas, como
―Passeio noturno‖ e ―Feliz ano novo‖, instrumento de crítica contundente.
Em João Antônio, por sua vez, a representação realista é levada, no que se refere à
ação, aos seus limites e impasses formais, que são investigados e esgarçados por meio de
uma figura de narrador que se aproxima do universo narrado, que ―dá voz aos excluídos‖,
fazendo com que estes ―existam acima de sua triste realidade‖.452 Em ―Paulinho Perna
Torta‖ especialmente é a própria constituição do personagem que está em jogo. O ponto de
vista interno que preside a ficção de João Antônio permite que narrador e personagens,
aproximados, quando não confundidos, expressem seus desejos, violências e limitações.
O drama que a ficção de João Antônio encena é o de um mundo do avesso, que é o
da malandragem, ou melhor, que é o mundo do crime e o mundo da polícia, conluiados, e
que é também a sociedade — esta sociedade cinzenta,453 em que não se distingue quem é
malandro, quem é criminoso, quem é otário. Neste mundo direito e avesso, positivo e
maldito, a condição de selvageria, anterior à da ordem civilizatória, está sempre latente e
mesmo os malandros estabelecidos não se sentem seguros da ordem que impuseram, por
meio das leis da malandragem, pois as ―leis‖ que vigoram são, na verdade, as leis da selva,
que na verdade não são leis, mas os instintos de satisfação e predação desgovernados, que
impõem uma barbárie latente.454 Como o ponto de vista do autor e do narrador são internos,

452
CANDIDO, Antonio. ―Na noite enxovalhada‖. In: ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. São
Paulo: Cosac e Naify, 2004, p. 11.
453
Como se sabe, Cinzentos e aluados foi o primeiro título cogitado para o livro de estreia do autor, depois
mudado para Malagueta, Perus e Bacanaço.
454
―Bárbaros‖, lembre-se mais uma vez, é como o narrador de ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖ se refere, a
certa altura, aos três malandros. O conto os toma por ―bárbaros‖ agindo como ―relógios‖.
342

a possibilidade de uma saída extrema se mostra limitada e os personagens se revelam


intricados nos próprios enredos.

Refinamento sem inserção

Paulinho Perna Torta não pode parar e não tem como voltar. Ele sabe que o retorno
a um estado selvagem não é possível, pois tem noção da importância de matar o pai, apesar
de negar tê-lo feito. Talvez por isso, a solidão que decorre da impossibilidade de matar
Laércio Arrudão — seu padrinho, mas seu igual — faz com que ele caia em melancolia. O
trecho a seguir está nas páginas finais do conto:

A rua está ruim.


Os jornais me desrespeitando, me encurtando o nome; as ratarias apertam, meu nome
está se apagando. Acabará. Estão limpando as ruas, arrancando os malandros das tocas mais
escondidas.
455
Eu me refinei, eu me refinei, não devia tanto.

É ao refinamento, isto é, ao enriquecimento e à passagem para um estágio mais


―civilizado‖, à perda da brutalidade, à ―encabulação‖, que ele atribui a sua queda. O estado
depressivo em que Perna Torta cai aponta para seu maior medo: o de ter perdido a
virilidade, a potência, a picardia. E, como vimos, refinamento é também o termo usado pelo
narrador-autor de ―Abraçado ao meu rancor‖ para entender a sua própria melancolia. A
confusão aqui, porém, é maior: há melancolia e culpa, mas ele não pode localizar ao certo
as causas desse sentimento — a ponto de creditar sua crise psicológica à macumba.
Paulinho Perna Torta é incapaz de ―matar‖ o padrinho, que é pai, mas também irmão de
malandragem; a ascensão (o ―refinamento‖, visto como aprendizado, enriquecimento e
acúmulo de bens materiais) se coaduna com a castração (o mesmo ―refinamento‖, visto
como fraqueza e tormento psíquico, melancolia, ―encabulação‖).
Qual é o lamento inicial de Perna Torta? É que a imprensa está lhe encurtando o
nome: deixaram de chamá-lo de Paulinho duma Perna Torta, eliminando o ―duma‖.
Passaram a lhe tratar apenas de Paulinho Perna Torta, e não demora vão começar a chamá-

455
Ldc, pp. 154-155.
343

lo apenas de Perna Torta. Quando ele começa a ser retratado como o rei da Boca do Lixo,
diz que não gosta de uma fotografia que saiu nos jornais porque está só ―de camisa esporte,
sem charuto na boca‖. E, ao final, volta a lamúria pelo nome encurtado e pela perda da
brutalidade, que ele associa a ―refinamento‖. O medo do malandro é o da impotência, da
castração. A imagem do malandro, em camisa esporte, sem charuto, despe-o da fantasia de
malandro dotado de picardia (à esportiva, sem o terno e o charuto que fazem dele um
―profissional‖, ele é um malandro amador e desarmado — castrado, como a ausência do
charuto na boca evidencia).
A posição de inferioridade é vista com insatisfação, mas também com temor,
repondo o medo de que uma ascensão possa vir a ser punida com a repressão e a perda da
potência. Algo que estava sugerido desde o início e que será confirmado, como sabemos,
pela amputação a que o nome do personagem está sujeito.
O que distingue este texto dos textos anteriores do autor, é que aqui o horizonte de
inserção do personagem já é, de saída, improvável. Trata-se de um malandro desde
criancinha, pois Perna Torta começa seu relato pelos anos que viveu como ―moleque de
rua‖, trabalhando como engraxate, dormindo em pensão na rua do Triunfo (na Boca do
Lixo paulistana). Desde cedo na ―viração‖. A primeira vez que ele é levado a cometer o
assassínio de um pai substituto ocorre ao furtar o homem que o explora na Estação Júlio
Prestes, isto é, ao tentar tomar à força a herança a este pai-substituto escolhido na selva da
cidade grande; ao fazê-lo, ele o enfrenta, mas não lhe toma o lugar. Paulinho Perna Torta
escapa por meio da ginga, do deslizamento, num gesto e jogo de corpo que são mais do
malandro que do criminoso parricida.
A jornada deste personagem, nas condições dadas, só pode ganhar desdobramento,
assim, contra a figura que o oprime e impede de trilhar o próprio caminho. Esta figura é,
primeiro, a do jornaleiro, de quem o personagem toma o ―tufo‖ de dinheiro e de quem
escapa por meio da ginga, e depois a de Laércio Arrudão, que o protagonista também está
impedido de matar, por ser, além de padrinho, um igual, um irmão de malandragem.
Como Freud observa em ―Dostoiévski e o parricídio‖ sobre a autoria do assassinato
paterno em Os irmãos Karamázov, ―é indiferente saber quem realmente cometeu o crime; a
344

psicologia se interessa apenas em saber quem o desejou emocionalmente e quem o recebeu


com alegria quando foi cometido‖.456
Saber se Paulinho Perna Torta matou de fato ou não o pai não é decisivo. Aliás, é
impossível, dado que nada, na enunciação, indica que o crime de fato ocorreu, e a narrativa
em primeira pessoa pressupõe que se confie no que narra o personagem. O crucial é que o
protagonista repete, por duas vezes, a acusação que lhe dirigem e sublinha sua
contrariedade para com essa fama, como quem confessa não o crime, mas a culpa por ter,
possivelmente, cometido este ato — o parricídio, que, aliás, ele tende a cometer de novo, de
maneira simbólica, ao longo do relato em sua trajetória ascendente, na qual encontra outros
malandros acima e, depois, abaixo de si.
É o que acontece depois de sua saída da cadeia, onde reencontra Laércio Arrudão.
Paulinho Perna Torta permanece dois anos e meio no presídio do Carandiru. Certo dia,
recebe uma visita do antigo padrinho:

Uns dois anos e meio aqui e me apareceu Laércio Arrudão. Duas semanas depois, a grana
correndo por mim lá fora, ganhei um alvará de soltura.
Paulinho duma Perna Torta pisa o meio-fio da Avenida Tiradentes e é fotografado. Mas não
liga aos tontos da crônica policial que estão à sua roda. Espera um táxi. Está com a grana, saiu de
casa com a cobiça raiada.
457
São Paulo ia ser meu.

Laércio Arrudão aparece depois de mais de dois anos em que seu pupilo estava
preso. E o texto sugere que foi por influência dele que o protagonista foi solto. A relação
ainda é de colaboração, de conluio, uma relação de fraternidade malandra. Mas ao sair, o
protagonista anuncia: ―São Paulo ia ser meu‖. A decisão indica que o jovem bandido não

456
FREUD, S. ―Dostoiévski e o parricídio‖. In: O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros
trabalhos. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI (1927-
1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 194. Neste texto, Freud investiga os impulsos parricidas do próprio
Dostoiévski e os relaciona a um bissexualismo latente na personalidade do autor russo, ligando esses impulsos
também à epilepsia e à obsessão pelo jogo, frutos do masoquismo e do sentimento de culpa pelos desejos
parricidas reprimidos. Freud vê nisso a explicação para a simpatia com que Dostoiévski via os criminosos: ―A
simpatia de Dostoiévski pelo criminoso é, de fato, ilimitada; vai muito além da piedade a que o infeliz tem
direito e nos faz lembrar do ‗temor sagrado‘ com que os epilépticos e os lunáticos eram encarados no passado.
Um criminoso, para ele, é quase um Redentor, que tomou sobre si a culpa que, em outro caso, deveria ter sido
carregada pelos outros. Não há mais necessidade que alguém mate, visto que ele já matou, e há que ser-lhe
grato; não fosse ele, ver-nos-íamos obrigados a matar. [...]‖.
457
Ldc, p.145.
345

pretende respeitar nem mesmo a figura do velho malandro, anunciando a disposição para o
parricídio do padrinho — ou pelo menos um impulso parricida que indica seu
descompromisso com o velho malandro.
O protagonista havia topado com Laércio Arrudão como um filho que encontra um
novo pai. O malandro mais velho se torna seu ―padrinho‖ no mundo do crime, pai
substituto que fará as vezes de guia e autoridade a ser seguida. A relação evoluiu à medida
que Paulinho Perna Torta subiu no crime, tornando-se uma relação de equilíbrio,
horizontal, como se fossem iguais, irmãos de malandragem.
A ambiguidade da figura do malandro mais velho, assim, é a de ser a um só tempo
um igual e um superior, um ―mais malandro‖, alguém que está um nível acima na
hierarquia do crime e dos afetos. É o que acontece com Perna Torta e Arrudão. O primeiro,
o malandreco, precisará suplantar o padrinho para se estabelecer, ele mesmo, como
malandro, também ele como uma figura, a um só tempo, fraterna e paterna que, por sua
vez, precisará impor autoridade em relação aos demais malandros. No entanto, precisa
manter a lealdade ao seu irmão de malandragem.
Talvez por isso Paulinho Perna Torta tenda a cometer o parricídio mas... não o
cometa. Ou, ao menos, não o narre.
A trajetória de ascensão contínua do personagem, entretanto, indica que os
obstáculos de figuras maiores, em posição mais elevada que a do protagonista, foram
vencidos. E que, portanto, o parricídio, simbolicamente, teve lugar.
É por isso que o sentimento de ter ido longe demais faz com que o protagonista se
questione sobre a própria conduta. A culpa que acomete o personagem, ao final do relato,
revive a dor e o arrependimento relacionados ao parricídio:

A rua está ruim.


Os jornais me desrespeitando, me encurtando o nome; as ratarias apertam, meu nome
está se apagando. Acabará. Estão limpando as ruas, arrancando os malandros das tocas mais
escondidas.
Eu me refinei, eu me refinei, não devia tanto. Fiz muito fricote, me escarrapachei
mais do que a conta, me empapucei. Ou foi essa vida que me ensinou a cobiçar tudo o que é
346

dos outros, iludindo, avançando, tomando, estraçalhando. Também por isso tenho uma
458
situação, carro, apartamento, telefone, viagens, bordel. Não nasci com isso não.

A situação presente da ação narrada retoma o conflito com a origem e com a relação
com o pai, de quem Paulinho Perna Torta teria tomado uma herança, por meio do
parricídio. O refinamento — a percepção de que a cobiça fez dele algo que o afasta de sua
origem (―não nasci com isso‖) — é motivo de culpa e arrependimento. Este parricídio
simbólico, o de ter tomado a herança de um pai que falta, um pai ausente, faz com que o
narrador carregue a culpa e o arrependimento pelo sentimento de cobiça, pelo refinamento,
que o afasta da origem pobre.
Mas o arrependimento não interrompe a narrativa. O protagonista não empreende
um recuo nem um retorno, ainda que o entreveja e o cogite: ―Estou com tóxico no caco e
uma idéia besta me passa — talvez eu devesse ter ficado com a magrela e as namoradinhas
do comércio das lojas do Bom Retiro. Ou tirado Ivete da vida‖.459 E, no auge de sua
trajetória no crime, aos trinta anos, ainda jovem, mas com extensa ficha corrida, ele
pressente que, ele próprio, se tornou alvo dos mais jovens: ―Dia mais, dia menos. Essa
rataria agora é moça. A molecada vai acabar me catando‖.460
Os elementos em jogo são sua origem desconhecida, a fama de parricida, a ascensão
vertiginosa no mundo do crime, a amputação de seu nome e a ameaça a ele próprio. Essa
combinação faz com que ele não possa parar e retornar. Faz também com que Paulinho
Perna Torta não tenha lugar nessa organização social burguesa corrompida. É por isso que
ele sabe que será apagado — e quando isso acontecer ele terá, afinal, o título de ―rei‖.

Um destino trágico, antes da catástrofe

A importância do nome próprio individual e singular para a constituição da


identidade pessoal está na origem do gênero romance. A maneira com que os escritores
modernos definem os personagens por meio de seus nomes, tal como eles são usados na
vida real, concorre para tornar o personagem de ficção um ser particularizado e mais

458
Ldc, pp. 154-155.
459
idem, p. 155.
460
idem, p. 152.
347

próximo da experiência comum. Como afirma Ian Watt ao analisar o tratamento que os
primeiros romancistas empregaram para nomear seus personagens, os nomes próprios

(...) são a expressão verbal da identidade particular de cada indivíduo. Na literatura, contudo, foi o
romance que estabeleceu esta função.
Nas formas literárias anteriores evidentemente as personagens em geral tinham nome
próprio, mas o tipo de nome utilizado mostrava que o autor não estava tentando criá-las como
entidades inteiramente individualizadas. Os preceitos da crítica clássica e renascentista
concordavam com a prática literária, preferindo nomes ou de figuras históricas ou de tipos. De
qualquer modo os nomes situavam as personagens no contexto de um amplo conjunto de
expectativas formadas basicamente a partir da literatura passada, e não do contexto da vida
contemporânea. Mesmo na comédia, onde em geral as personagens não eram históricas, mas sim
inventadas, os nomes deviam ser ―característicos‖, como nos diz Aristóteles, e tenderam a
461
permanecer como tal muito depois do surgimento do romance.

De fato, a constituição do nome dos personagens passa, no romance, a ser um


elemento de construção realista e singular, em sintonia com a própria caracterização do
indivíduo. Se antes os personagens tinham nomes emblemáticos e inspirados na história e
na tradição literária, na modernidade passarão a ser conhecidos por nome e sobrenome, de
maneira particularizada e individual, única. Além da eleição individualizada dos nomes,
nos primórdios do romance a identidade dos personagens se dá, também, por meio de sua
localização precisa no tempo e no espaço.462
Nas narrativas de João Antônio, sabemos como a escolha dos nomes dos
protagonistas se liga a características de personalidade e de determinadas situações vividas,
em momentos particulares da existência, que, por serem significativos, emprestaram nova
identidade aos seus atores. Não ocorrem, como nos romances, personagens com nome e
sobrenome, por conta mesmo do contexto social em que estes estão imersos — ao contrário
das classes altas, em que o sobrenome indica linhagem familiar, tradição e poder, nas
classes mais baixas, mas sobretudo no universo da malandragem, preponderam os apelidos
e os sobrenomes comuns, sem história e muitas vezes sem procedência conhecida.

461
WATT, I. Ascensão do romance. Trad. Hildegard Feist. S. Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 19-20.
462
D. Quixote e Robinson Crusoé, dois dos primeiros romances, têm início com a localização dos
protagonistas no tempo e no espaço e com a explicação da origem de seus nomes (e não, exatamente, da
origem dos próprios personagens). A importância do nome, aliás, está marcada no próprio título destas obras
de Cervantes e Daniel Defoe.
348

Na maioria dos casos, nos contos do autor, o leitor desconhece o nome de batismo
dos personagens, referidos por seus apelidos ou alcunhas de guerra. A própria instabilidade
ou fragilidade dos nomes dos protagonistas indica que a existência desses personagens
depende menos de suas origens, filiação e identidade formal, e mais de sua atuação e
daquilo que eles são capazes de empreender, mas também do acaso e da maneira com que a
proveniência ou os feitos desses personagens são recebidos e transmitidos, isto é,
compartilhados coletivamente pelos parceiros. O amplo uso dos nomes de guerra indica
que, na ficção de João Antônio, individualidade e coletividade concorrem para redefinir as
identidades dos personagens, que dependem de uma reinvenção de si próprios, ou melhor,
de um distanciamento de suas origens (muitas vezes desconhecidas ou nebulosas, mas
sempre humildes, inferiores) para que possam atuar, inserir-se socialmente, lançar-se à
aventura e, no limite, existir.
No caso de ―Paulinho Perna Torta‖, a importância da adoção e da consolidação de
um nome próprio atinge ponto máximo de tensão no que se refere à obra de João Antônio.
Sua origem é desconhecida. Não se sabe qual é seu nome de batismo. Mas sabemos que ele
começou ―por baixo‖, como ―sofredor‖. Depois de algumas aventuras, ele entra para a
malandragem e ganha um nome de guerra, à sua revelia, mas nome de guerra que adota
como se fosse sua própria identidade, a ponto de transformar a ameaça ao seu apelido em
crise pessoal e prenúncio de queda e aniquilamento.
A tomada de consciência de Paulinho Perna Torta, então, contraria a sua
constituição de herói moderno, de personagem individualizado, que se caracteriza por ser
único, singular e livre. Nos termos de Marthe Robert, a princípio Paulinho Perna Torta é
um ―fazedor de romance‖.463 Entretanto, apesar desse impulso inicial de ―fazer romance‖,
ao final Paulinho Perna Torta é um protagonista que se percebe incapaz de controlar sua
própria atuação, acuado e impotente em relação à trajetória que ele imaginava bem-
sucedida. A expansão de seus negócios e sua ascensão vertiginosa, percebe ele, não passam
de uma grande ―mentirada‖, o que antecipa a percepção de sua queda. Ele descobre que seu

463
―Nos antípodas do herói trágico ou épico, que sofre pela ordem de que é testemunha, o ‗fazedor de
romance‘ é em seu próprio projeto um fomentador de distúrbio, um difamador das qualidades e das classes,
até mesmo em seus esforços para conquistar as mais elevadas. Um arrivista, portanto, que funda suas
esperanças na intriga e na mitomania, mas também um espírito apaixonado pela liberdade, determinado a não mais
se inclinar diante do irreversível, rebelde às idéias tradicionais bem como às situações preestabelecidas, e
subversivo malgrado o conformismo ao qual acaba por obedecer.‖ ROBERT, M. op.cit, p. 29.
349

nome é ―ninguém‖ e que será, a qualquer hora, apagado pela polícia ou outro malandro.
Seu nome, que correu e ganhou fama, que se tornou lendário, revela-se ser nada,
―ninguém‖. E nesse dia, e talvez apenas nesse dia, Paulinho Perna Torta se torne ―rei‖.
A princípio, PPT poderia, como o fez Ulisses na Odisseia, disfarçar-se de Ninguém,
mas sua fama tornou-o famigerado, isto é, afamado e difamado, seu nome correu e sua
imagem, como indicam as fotografias que a imprensa registrou, está indelevelmente
associada a seu nome. O disfarce que ele ostenta, de malandro e de integrante do partido
alto, além de não esconder sua origem desconhecida, origem incerta deste que é um
ninguém — e poderíamos dizer um zé-ninguém, para usar uma expressão popular
consagrada — o disfarce também não encobre o corpo do malandro: a perna torta que é seu
nome e sua imagem. Em verdade, PPT é um ninguém, mas já não pode ser Ninguém, não
pode refugiar-se no anonimato, pois o corpo, casa do malandro, já não é refúgio. Ou
melhor, o corpo do malandro é refúgio, mas também é alvo.
Nesse sentido, Perna Torta é um malandro que virou bandido, isto é, virou um
renunciador, nos termos de Roberto Damatta,464 mas que não tem como assumir novo
nome. Sua conversão de malandro em vingador (justiceiro) ou santo está impedida por sua
condição de origem (desconhecida) e pela marca do seu corpo, que é também a marca de
seu nome. Ele está fadado a ser Paulinho Perna Torta ou ninguém, como a progressiva
amputação do nome indica (logo será apagado, como diz o próprio personagem). O nome
Paulinho Perna Torta, portanto, é o nome de um malandro que virou bandido — e que não
pode voltar (ser malandro) e não pode ir além (renunciar ao crime e se converter), pois não
tem para onde fugir e não tem como se livrar do nome, que está inscrito em seu corpo.
Paulinho Perna Torta não pode mudar de nome. Não tem a opção, por exemplo, de
Nhô Augusto: a opção de se tornar Matraga. A noção de que PPT é ―ninguém‖, aliás,
lembra o sentido do nome do personagem do conto de Guimarães Rosa: Matraga ―não é
nada‖. A passagem de Augusto Esteves a Nhô Augusto e daí a Augusto Matraga, como
sugere Roberto DaMatta, é a passagem do nome jurídico, para o nome social (um nome de
força, de posição de poder) e daí para o nome de santo, daquele que se converte e se coloca
fora da ordem social.465

464
DAMATTA. R. Carnavais, malandros e heróis, op.cit.
465
idem, ibidem. Ver cap. VI, ―Augusto Matraga e a hora da renúncia‖.
350

PPT é um malandro que, apesar de ter passado para o partido alto, não pode aceder
ao partido alto, pois é bandido matador e faz parte de uma rede de vinganças, da qual fazem
parte a polícia e outros bandidos. Assim, ele sente que sua única chance é a renúncia, mas
sabe também que a renúncia, na sociedade em que ele está inserido e de acordo com a sua
trajetória e sua condição não está a seu alcance. A hora e a vez de Paulinho Perna Torta não
virão, pois que ele carrega uma cicatriz, o estigma da perna torta, que não lhe permite ser
outro alguém. Ele só pode ser ninguém.
Renato Janine Ribeiro reflete sobre a importância social dos pronomes, em especial
de ninguém, ao comentar o canto IX da Odisseia, em que Ulisses derrota o ciclope
Polifemo ao se disfarçar de Ninguém. Inspirado nessa passagem de Homero, Janine Ribeiro
sustenta que a importância do pronome é a possibilidade de trocar de posição na
sociabilidade, ser outro e estar na posição de outro, algo que, justamente, PPT está
impedido de fazer. Por isso, a descoberta de que é ―ninguém‖ e não pode ser ―Ninguém‖ é
também a constatação do caráter irremediável de sua condenação, de sua queda.
Janine Ribeiro valoriza em Ulisses, no episódio em que o herói consegue lograr o
ciclope, a astúcia do mais fraco que vence o mais forte, que o filósofo liga à teoria do
Estado de Thomas Hobbes, segunda a qual o Estado garante a força dos fracos, pois
possibilita o uso da força por meio de astúcia ou coletividade.466 Porém, como em ―PPT‖ o
Estado ou, nos termos do conto, o governo é o inimigo — já que o governo persegue os
malandros, fazendo valer não apenas a lei, mas, antes dela, a força da polícia —, PPT não é
capaz de trocar de lugar, de ser outro, de deixar o crime, de retroceder ou de se refugiar no
anonimato. Sua perna torta faz dele o que ele é — nomeado, renomado, malandro famoso e
bandido famigerado —, e também o que ele não é, isto é, seu inverso, ninguém, um zé-
ninguém, alvo que, cedo ou tarde, será atingido pela polícia ou pela malandragem.
Talvez por isso ele recorra à ginga macumbeira de Zião da Gameleira. Se não pode
ser santo, Perna Torta terá de recorrer ao sobrenatural, à uma religiosidade laica e
sincrética, invocar uma divindade que dê jeito nessa sinuca de malandro-criminoso em que
se meteu e foi metido.

466
Sobre a importância social dos pronomes, em especial de ninguém, ver o texto de Renato Janine Ribeiro
sobre esse episódio de Homero: RIBEIRO, R. ―Meu nome é ninguém (sobre o canto IX da Odisseia),
disponível em: http://www.renatojanine.pro.br/Cultura/cultura.html.
351

Paulinho Perna Torta se imaginava personagem de romance, mas se descobre herói


trágico. O conto, porém, como é narrado pelo próprio protagonista, não coloca em cena a
catástrofe, a morte desse malandro que é aclamado rei do crime. Como o protagonista ele
mesmo afirma ao final de seu relato:

Outra vez o governo está vencendo Paulinho Perna Torta.


Mas não vou parar. Atucho-me de tóxico e me aguento. Para final, tenho ainda a grana e
Maria Princesa é uma boneca.
Eu só posso continuar. Até que um dia desses, na crocodilagem, a polícia me dê mancada,
me embosque como fez a tantos outros. E me apague.
467
E, nesse dia, os jornais digam que o crime perdeu um rei.

A narrativa interrompe a trajetória de Paulinho Perna Torta antes de seu final. Como
é narrado pelo próprio protagonista, o conto não encena a catástrofe. O que se narra é o
crescimento do personagem, sua expansão e ascensão, e o processo de amputação do seu
nome, a castração que faz com que o personagem caia num estado melancólico e destrutivo.
O reconhecimento de sua trajetória trágica se dá apenas na sua própria consciência,
indicando que o contexto social em que ele se insere é indiferente ao seu drama íntimo, mas
está esperando pela queda de sua pessoa pública, de seu nome e de sua imagem.
Mais que isso, o ―governo‖ e a ―sociedade‖ (as ―famílias‖, a imprensa) torcem e
conspiram contra ele. A polícia é o braço do Estado que atua em favor dos estratos sociais
privilegiados, expondo o temor e o privilégio de classe com que ―as famílias‖ condenam as
classes marginalizadas, revelando também o teor de hipocrisia que pauta a família nuclear
brasileira, já que mantém relação estreita com o mundo da prostituição e da malandragem,
como bem apontou Antonio Candido ao estudar a composição da família patriarcal
brasileira.468 Lembre-se que o machucado na perna do protagonista, que lhe rendeu o nome
de guerra, foi provocado por um cliente de Ivete, um ―otário‖ que frequentava a zona, um

467
Ldc, p. 156.
468
Em ―The Brazilian family‖, Antonio Candido apresenta a estrutura da família patriarcal brasileira, seu
―núcleo legal‖ em contato estreito com os estratos marginalizados pela sociedade, como os agregados e as
prostitutas. A mesma comunicação entre a o mundo da ordem e o mundo da informalidade estrutura
―Dialética da malandragem‖, o ensaio do autor sobre as Memórias de um sargento de milícias. CANDIDO,
Antonio. ―The Brazilian family‖. In: SMITH, T. L. e MARCHANT, A. (orgs.), Brazil, portrait of a half
continent. New York: The Dryden Press, 1951, e CANDIDO, Antonio. ―Dialética da malandragem‖. In: O
discurso e a cidade, São Paulo: Duas Cidades, 2a edição, 1998.
352

membro das famílias, integrante do polo ―positivo‖ da ordem social instituída, tanto do
ponto de vista econômico como no que se refere à moralidade.
Completando o quadro de atores conservadores que se opõem a Paulinho Perna
Torta, a imprensa, esta espécie moderna de coro de tragédia, encurta seu nome e anuncia
sua queda. E o próprio Paulinho Perna Torta sabe que a imprensa falará dele depois de seu
apagamento, cantando a morte deste ―rei‖ do crime.
De personagem de romance, que é capaz de fazer seu próprio caminho, a
personagem trágico: a narrativa de Paulinho Perna Torta, é um conto sobre a dualidade de
um indivíduo pobre e de origem misteriosa, que se torna rei da Boca Lixo, mas que
descobre, a certa altura, que é um ―ninguém‖, mesmo que ainda esteja no auge. Contra o
famigerado Governo, encarnado na polícia, ele sai perdendo. Será, cedo ou tarde, apagado,
pois não pode ser vingador nem santo nem voltar a ser malandro, quanto mais otário,
menino de rua.
O destino da malandragem, tal como narrado por um de seus malandros, um
―malandro dos malandros‖, é trágico. Mas esta malandragem descrita e vivida em
―Paulinho Perna Torta‖ está, de certa forma, em um momento posterior ao de ―Malagueta,
Perus e Bacanaço‖, em que a malandragem se circunscrevia a determinados lugares e às
práticas mais antigas da criminalidade, como o jogo, a prostituição e os pequenos golpes.
―Paulinho Perna Torta‖ narra um momento de ampliação do alcance da
malandragem e da criminalidade. O impulso de expansão e ascensão do protagonista se dá
na horizontal e na vertical. De um lado, com a dispersão da criminalidade para além do
antigo espaço da zona, o personagem pretende conquistar a cidade inteira. De outro, quer
atingir o topo da escala econômica, como de fato consegue, a certa altura, o que, aliás, vai
lhe causar o sentimento de vazio e de culpa que é também o ápice do conto.
Sua estratégia para conquistar a cidade é a da expansão do crime. Esse impulso de
horizontalidade faz com que novas formas de atuação precisem ser desenvolvidas. A
dissolução das fronteiras do crime se dá de maneira bastante marcada na narrativa: o
protagonista atribui essa disseminação à ação do governo e da polícia. A repressão ao
crime, à zona, à prostituição e à malandragem, acompanhada da lógica de corrupção com
que essa repressão se dá, faz com que o crime não apenas não desapareça, mas cresça e se
espalhe: ―A Delegacia de Costumes voltou a recolher arreglo das minas e vem nascendo a
353

Boca do Lixo. O formigueiro que era a zona está se espalhando por toda São Paulo. O
governo começa a perder‖.469
Estamos, portanto, em um momento e em uma escala de atividades malandras e
criminosas posterior àquela de Perus, Bacanaço e Malagueta, personagens que tinham lá
seu impulso horizontal, o circuito dos salões de sinuca do centro e dos bairros da zona
Oeste da cidade. Mas na cidade e na criminalidade de Perna Torta, o impulso horizontal
não tem limites, pois a escala e a escalada do crime se ampliaram e se disseminaram. Não
se trata apenas de pequenos golpes, sinuca, cafetinagem em nível individual (de gigolô para
prostituta) ou em pequena escala. Todas essas atividades se mantêm, mas ganharam
disseminação. E outras atividades criminosas vêm se juntar a elas, com destaque para o
tráfico de drogas, ainda que não haja, por ora, menção à cocaína.470
O impulso horizontal ganha força graças à atuação do protagonista como empresário
do crime, mas é precipitado pela intervenção da polícia (o poder público, o governo),
chancelada pela imprensa, ao fechar a zona e espalhar a criminalidade por toda São Paulo.
Com isso, os negócios de PPT logo se estendem não apenas à cidade inteira, mas também
ao interior do Estado, a outros Estados brasileiros e ao exterior (Uruguai e Argentina). É
menos, portanto, a atuação do próprio protagonista que o faz ampliar seus negócios e mais
o próprio ambiente social propício ao crime. Em outras palavras, é porque o crime já está
disseminado na sociedade (levando de roldão a polícia, a política, o Judiciário e, no limite,
a própria vigência da lei) que Paulinho Perna Torta pode expandir seus domínios e galgar
os degraus da fama e da criminalidade.
Ao alargamento de sua atuação criminosa corresponde a ascensão vertical do
protagonista, que de moleque de rua e engraxate passou a malandreco, malandro, malandro
dos malandros e empresário do crime. Esta ascensão, porém, não vem acompanhada de
inserção. Ao final, como diz o próprio protagonista, ―a gente pensa que está subindo muito
nos pontos de uma carreira, mas apenas está se chegando para mais perto do fim‖.
A ascensão de Perna Torta é a ascensão na carreira do crime, que entretanto ele
percebe ser o rumo do cemitério, como já anunciava a epígrafe de Noel Rosa. Como a

469
Ldc, p. 145.
470
―Lido com tóxicos. Desço à zona de Sorocaba e ao Retiro de Jundiaí. Compro o Pervitin a cem mangos e
passo por oitocentos. Passadores de fumo vêm comigo. Só se trabalha com a melhor maconha, a pura.
Cabeça-de-nego, vinda de Alagoas.‖ Ldc, p. 147.
354

própria constituição social é marcada pela promiscuidade e pela prostituição, a carreira


―positiva‖ que poderia se desenvolver redunda em trajetória ―criminosa‖, duas pistas que se
confundem nesta sociedade burguesa que ainda carrega um funcionamento arcaico, herdado
dos tempos coloniais escravistas e patriarcais.471
De moleque de rua a empresário e rei do crime. De malandro burguês a fidalgo do
crime. Daí a ―ninguém‖, quando ele descobre que será apagado e que ―nunca foi‖.
O reconhecimento que o conto opera, é o de um destino da malandragem: Paulinho
Perna Torta descobre que é ―ninguém‖. Este reconhecimento (a anagnorisis aristotélica) de
Paulinho Perna Torta é um autorreconhecimento e um reconhecimento negativo que
também faz com que a catástrofe seja anunciada, mas não ocorra no espaço da ação narrada
(no mythos).
Para Paulinho Perna Torta, ascensão e queda são uma coisa só. O destino de
Paulinho Perna Torta é trágico não apenas porque seu fim será a morte, será sumir,
―apagado, qualquer hora dessas, em que a polícia ou outro mais malandro nos acerte‖. O
destino de Paulinho Perna Torta é trágico porque sua ascensão leva a um destino que lhe
escapa, ao destino de todo malandro criminoso de origem pobre e desconhecida, revelado
ao final do conto como algo inevitável, apesar da ação deste personagem que se fez por si
só, como um personagem de romance, mas incapaz de suplantar o destino de criminoso: ser
morto por outro malandro ou pela polícia, sumir, apagar-se, aniquilar-se.

O lugar do escritor

A operação literária empreendida por João Antônio neste conto de fato é notável. Os
primeiros contos, e mesmo ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖, apesar da maior extensão deste
último, tinham como escopo narrativo o relato de algo pontual. ―Paulinho Perna Torta‖,
porém, combina as duas coisas: ação narrativa e constituição do personagem evoluem
simultaneamente.

471
Como lembra Florestan Fernandes, no Brasil ―a revolução burguesa surge dentro do contexto e como
episódio da expansão econômica do mundo rural‖ e ―assume um tempo e um ritmo que atestam a dificuldade
do país em realizá-la‖. Segundo o autor, desde o último quartel do século XIX até nossos dias (isto é, os anos
1960, quando o artigo foi escrito), esse processo tem sido ―lento, descontínuo e convulsivo‖. FERNANDES,
Florestan. ―A dinâmica da mudança sociocultural no Brasil‖. In: Sociedade de classes e subdesenvolvimento.
São Paulo: Global, 2008, p. 107.
355

Se nos ―Contos gerais‖ a delimitação da ação narrativa era mais restrita, como
vimos, aqui o arco de tempo é maior, e a própria extensão do conto indica que o teor do que
é narrado se alterou. Não se trata mais do momento em que os protagonistas precisam
decidir e hesitam. Agora, a formação do protagonista já se deu, ele já optou — há muito
tempo, aliás — pela malandragem e o momento é de, talvez, sair dela.
Contrariando o preceito clássico de que os homens piores e mais baixos, na escala
social, deveriam ser tratados pela comédia, e os mais elevados pela tragédia,472 o autor
criou uma obra de ficção que revela o destino trágico de um personagem que começou por
baixo e virou ―rei‖. A origem desconhecida, a trajetória ascendente e o embate com as
figuras paternas indicam que Paulinho Perna Torta é um fazedor de romance, um arrivista,
um bastardo, um Édipo moderno, personagem que, a princípio, faria um caminho pessoal,
singular e inovador, rumo ao topo social e à conquista do dinheiro e de uma mulher de
classe mais alta. No entanto, o seu auge coincide com a percepção de que ele é ―ninguém‖ e
que o título de nobreza que o consagrará como soberano do crime virá, mas apenas com a
sua própria morte, ansiada pelos jornais e acalentada pela polícia, tornando-o lenda, lenda
por sua vez também ameaçada, já que o nome, além dele próprio, também está em risco.
A jornada de Paulinho Perna Torta indica que, no contexto dado, para aqueles de
origem humilde, ―sofredores‖, o caminho mais rápido e aventuroso de ascensão social não
é o trabalho, sempre incerto e informal, destituído de valorização e de recompensa, mas a
malandragem e o crime, desde cedo convidativos e sedutores. Como indica a obra de João
Antônio, e este conto em particular, as possibilidades de inserção social se mostram
incertas, improváveis, ainda que a promessa de enriquecimento e de ascensão permaneça
latente, em uma sociedade em que o processo de financeirização transformou o dinheiro em
único valor ―positivo‖. Para além da trajetória individual deste protagonista pobre, que
flerta com a malandragem e termina imerso na criminalidade, o conto coloca em questão a

472
A formulação de Aristóteles é bastante conhecida: ―a Tragédia é a imitação de homens melhores do que
nós‖. (Poética, 1454b). Um crítico contemporâneo como Frye vê na literatura do século XX um retorno às
origens da literatura ocidental e classifica de ―tragédia imitativa baixa‖ as obras que encenam tragédias de
personagens comuns (no mesmo nível dos demais homens da sociedade em que vivem). Nos termos de Frye,
a trajetória de Paulinho Perna Torta seria provavelmente um caso de uma ironia trágica, que trata do
―isolamento trágico em si‖, sem correspondência com o caráter do herói. Apesar de ser criminoso, o erro de
Perna Torta (a hamartía) não é claro, o que talvez o aproxime da figura do bode expiatório (pharmakós) de
que fala Frye. Ver o capítulo ―Modos da ficção trágica‖ em FRYE, N. Anatomia da crítica. op.cit., pp. 39-72.
356

própria constituição desta sociedade em termos democráticos e burgueses, constituição que


é colocada em xeque — incompleta e já pervertida.
Para Paulinho Perna Torta, este personagem de origem pobre e nebulosa, a escalada
social se dá através da malandragem, mas sobretudo pelo crime. Trata-se de um malandro
que ultrapassou a malandragem e se estabeleceu como empresário do crime, graças não à
ausência de instituições mas à promiscuidade do crime com instituições corruptas: a própria
malandragem, a imprensa, a polícia, a Justiça. Nesta trajetória de ascensão em um contexto
de revolução burguesa incompleta, é uma ascensão negativa, já ela que se dá pelo crime,
mas também positiva, já que crime e legalidade não se distinguem, movidos pela força do
dinheiro — o ―positivo‖ e o ―maldito‖.
Apesar da ênfase na trajetória individual e de classe, singularizada mas coletiva (a
princípio de romance, mas ao final trágica) é a própria existência corrompida desta
sociedade que impede a conversão de Paulinho Perna Torta ao polo ―positivo‖ da ordem
social, o ―partido alto‖. No fundo, o que o conto explicita é que não se pode nem mesmo
falar em termos de positivo e negativo, de exclusão e inserção, já que no contexto social
dado os polos se embaralham. E, aos de origem pobre, o polo positivo não se oferece, senão
como miragem, fantasia.
É por isso que, apesar de sentir que ―a rua está ruim‖, Paulinho Perna Torta sabe
que não pode parar, ainda que cogite um retorno. A volta, ele sabe, é impossível, pois ele é
um criminoso perseguido e as feições da própria criminalidade mudaram, espalhando-se e
adquirindo nova escala. O criminoso não pode parar porque não tem como deixar o crime.
Não há saída para um personagem de origem pobre, sem filiação, que tem apenas o próprio
corpo, um nome que vem sendo amputado e a fantasia de malandro e de nobreza. Nem com
ginga, nem com macumba, nem com muito dinheiro, pois não se trata apenas de comprar a
imprensa, a polícia e a Justiça, pois num contexto em que só o dinheiro é positivo, essas
instituições que deveriam atender a valores como a verdade, a preservação da vida e a
igualdade, operam de acordo com interesses e pressões, de todo o tipo, mas sobretudo, de
novo, do dinheiro.
Nessa situação, a força do indivíduo de origem pobre, mesmo que depois de uma
trajetória que lhe proporcionou status e capital, não pode ser comparada à força das
instituições, que estão a serviço do dinheiro, e das classes altas, das ―famílias‖. Nem à força
357

de muito dinheiro, pois há algo que o dinheiro não compra: a possibilidade de este
personagem escapar ao destino trágico de criminoso de origem incerta ou de origem pobre
e bastarda, ilegítima. Num caso ou noutro, melancolia e culpa abreviam uma trajetória que,
de início, apontava para promessas de aventura e conquista.
A solidão e o isolamento dominam Paulinho Perna Torta, acometido também por
um sentimento que ele não sabe qual é, a ponto de creditar a sua queda ao sobrenatural, à
macumba de Tião da Gameleira. Ao final, a ginga — agora a ―ginga macumbeira‖ —
também é ameaça à sua capacidade de preservar o próprio nome e evitar o seu apagamento.
O enfrentamento do padrinho e a vitória sobre a figura paterna redundam em uma
arrancada acelerada para cima, para o alto da escala social e para a fama, que é também
uma ascensão para a queda — e o próprio Paulinho Perna Torta irá se tornar uma figura a
ser enfrentada, não apenas pelos outros malandros, mas também pela polícia, especialmente
pelos policiais mais jovens.
Num mundo em que só o dinheiro é positivo, este personagem-narrador de origem
nebulosa não é capaz de refazer a própria história. Paulinho Perna Torta é incapaz de
reinventar o próprio nome, que está sendo, paulatinamente, amputado, até que ele se torne
―ninguém‖.
Isso nos devolve ao núcleo temático da ação de ―PPT‖ e, então, ao ponto de vista do
autor.
O texto tem início com uma construção verbal inusitada, como dissemos, que insere
o leitor diretamente no curso dos acontecimentos. Ao final, vamos descobrir que a ação que
está em curso é a da consciência do protagonista sobre o próprio destino. Paulinho Perna
Torta descobriu que está enredado num destino que é o destino de um rapaz pobre,
malandro, criminoso, que sonhou com o ―partido alto‖, fez parte dele e pensou tê-lo
conquistado, mas que percebe que a ascensão social, na sociedade em que vive, é vivida
pelos mais pobres por vias tortuosas — malandragem e crime — que não garantem
inserção. O destino do criminoso rico e poderoso é se tornar rei, mas um rei sem trono,
soberano sem reino, pois que se vive uma ordem burguesa, ainda por cima incompleta e
corrompida. E um ―rei‖ que só receberá este título de nobreza depois da queda.
Em ―Paulinho Perna Torta‖, João Antônio reuniu as contradições de todos os seus
personagens. O protagonista deste conto é um menino pobre de origem desconhecida; é
358

também um bastardo fazedor de romance; um malandro que se torna criminoso; um


personagem trágico enredado no destino comum a toda uma coletividade da qual ele tenta
se distanciar, sem conseguir; um ―rei‖ sem reino e sem majestade, prestes a cair, que não
tem como evitar a catástrofe, pois só se tornará rei quando a catástrofe vier.
O título do conto, neste sentido, concentra as contradições desta narrativa e implica,
nesta dinâmica, o ponto de vista do autor. O conto não se chama ―Paulinho duma Perna
Torta‖, como o próprio personagem gostava de ser chamado, nem ―Perna Torta‖, como o
personagem intui que acabará sendo chamado, mas ―Paulinho Perna Torta‖. Essa nomeação
intermediária é do autor do texto, obviamente, que assim se inclui no processo de
constituição e desaparecimento de seu personagem. O fato de João Antônio ter intitulado o
conto como o fez indica que ele, como escritor, está implicado nesta lógica, a meio
caminho entre o fascínio e a ressalva à trajetória do protagonista, a simpatia e a recusa ao
malandro.
O ponto de vista interno, a capacidade de João Antônio de dar voz e vida a um
personagem marginal e marginalizado, a construção narrativa que se constrói à medida que
o protagonista se constitui, ascende e decai, que avança com o protagonista e definha com
ele, essa combinação define um ponto de vista complexo e crítico. O ponto de vista de João
Antônio o situa como um escritor de pé atrás com o processo que galgou Paulinho Perna
Torta a rei do crime. O autor e a perspectiva de sua ficção se estabelecem em algum ponto
que não coincide com o do malandro, o da imprensa, o da polícia e tampouco o da
sociedade instituída.
O lugar do escritor, aqui, também está em questão.
A narrativa é de João Antônio, mas a história é contada pelo personagem. O foco
narrativo em primeira pessoa, assim, cumpre mais uma função neste conto: a de contar uma
história de um ponto de vista interno, em que o protagonista se expressa, por meio de sua
linguagem e de sua perspectiva, mas uma narrativa que preserva a autonomia do ponto de
vista do autor.
Por que Paulinho Perna Torta conta a sua história? Porque sabe que, mais dia,
menos dia, irá desaparecer, seu nome irá se apagar, e assim também sua história. Sua
história talvez vire lenda — destino de todo malandro —, mas talvez não vire nada. Talvez
ele seja ―ninguém‖ e, depois de morto, permaneça sendo ―ninguém‖, cuja história vai se
359

perder nas matérias passageiras, simplistas e suspeitas dos jornais. Contar a própria história
é também passar para o partido alto da narrativa, inscrever seu nome na literatura, não nas
páginas degradadas da imprensa.
Por que João Antônio conta essa mesma história? Para mostrar, por dentro, o drama
e o destino de um menino pobre, que é malandro e criminoso violento, e continua sendo
menino pobre, de origem incerta; para contar a história deste personagem, que é também a
história de uma sociedade incompleta, malandra e oscilante, mas também moralista,
corrupta e excludente, vista por um de seus excluídos, que é malandro e criminoso sem
nunca ter deixado de ser moleque de rua.
360

Conclusão
361

―Paulinho Perna Torta‖ é o mais longo e ambicioso texto de ficção de João Antônio,
ao lado de ―Malagueta, Perus e Bacanaço‖. Escrito quando o autor ainda era muito jovem,
antes de seus trinta anos, permaneceu, por toda a carreira literária do autor como sua
realização ficcional mais complexa. Depois de Malagueta, Perus e Bacanaço e de Leão-de-
chácara, onde ―PPT‖ foi incluído, o escritor viria a publicar cerca de quinze outros livros.
Poucos deles, porém, podem ser elencados entre suas obras principais. E a própria produção
ficcional foi aos poucos perdendo espaço na carreira de João Antônio, dando lugar ao
jornalismo, ao chamado conto-reportagem e aos textos autobiográficos.
O universo temático da obra de João Antônio, comparado aos primeiros livros,
também não se alterou muito ao longo dos anos. Certo que ganhará desdobramentos e
ampliação, com especial proveito nos textos autobiográficos e nas narrativas sobre o
universo dos marginalizados, dos ―pingentes‖. No entanto, o círculo familiar e seus
sucedâneos (a prostituta, o malandro, o criminoso) permanecem sendo seu núcleo
dramático de predileção, e o tema favorito será, até o fim de sua carreira, o das
possibilidades de atuação e inserção social dos personagens de origem pobre.
Entre os livros de destaque da fase madura do autor, posteriores a MPB e Ldc, estão
Dedo-duro (1982) e Amr (1986). Este último, como já comentamos, reúne alguns contos
em que o personagem principal é Jacarandá, o tipo criado pelo autor que ganharia um
volume apenas com textos por ele protagonizados.473 A predileção pelos volumes
jornalísticos e pela crônica (Malhação do Judas Carioca, Casa de Loucos, Ô,
Copacabana!, A dama do encantado), a ficção protagonizada pelo personagem-tipo (Um
herói sem paradeiro), e os livros dirigidos ao público infanto-juvenil que se avolumam nas
décadas de 1980 e 90 (praticamente sem textos inéditos, porém), indicam uma perda de
interesse pelos grandes projetos de ficção. A produção ficcional do autor tem em ―PPT‖,
portanto, um ápice prematuro.
Alguns textos de ficção, apesar do alcance e das pretensões mais modestas,
merecem registro, por se relacionarem aos temas aqui comentados.
Em Dedo-duro, o volume de contos de 1982 que traz o autobiográfico ―PMCMS‖,
dois textos de ficção merecem breve comentário.

473
Um herói sem paradeiro: Vidão e agitos de Jacarandá, poeta do momento. 2ª ed. São Paulo: Atual, 1993.
362

―Dedo-duro‖ e ―Bruaca‖ narram, como já havia acontecido anteriormente na obra


do autor — em ―PPT‖, por exemplo —, a trajetória extensiva de dois malandros. O
primeiro deles, Zé Peteleco, alcunhado Carioca, torna-se informante da polícia e passa a
delatar aqueles que deveriam ser seus companheiros de vida bandida; o segundo, é um
velho trabalhador que se estabeleceu, malandramente, na vizinhança do Beco da Onça, na
Vila Pompeia, em São Paulo, vivendo de pequenos golpes e da mendicância.
O protagonista de ―Dedo-duro‖, Zé Peteleco, ou Zé Vesgo, como ele também é
conhecido, por conta do estrabismo, é um malandro fracassado, sem ―picardia‖, que
pretende arrumar um emprego na polícia, começando como informante, alcagueta, dedo-
duro, atividade que ele considera um ―degrau de uma carreira‖. Diz ele que a alcaguetagem
é a alma da polícia. Ele pensa em fazer jogo duplo, mas desiste, pois sabe que na
malandragem a delação é condenada com pena de morte. Zé Peteleco sabe que malandro
não tem futuro, então aspira a um emprego. E qual é o emprego que ele cobiça? Quer ser
investigador de polícia.
O narrador-personagem expõe as razões pelas quais não se estabeleceu na
malandragem:

Sendo um zé-mané qualquer, um pé-inchado, sem escola e sem padrinho, sem goma ou
endereço fixo, nunca tive jeito de mandar à frente qualquer plano. De repente, um cana me vem,
faz que se engraça, descubro que ser dedo-duro é caminho. Palmilhado direitinho, atenção e
474
juízo, pode desembocar num emprego bom.

Mais uma vez aparecem, neste momento tardio da obra de João Antônio, temas que
já haviam sido centrais para o autor, em sua ficção inicial, e certos elementos recorrentes,
como a busca por um caminho e a importância dos pés para os protagonistas. De novo, o
personagem principal alude ao problema da falta da formação e da ausência do pai.
Ele não teve escola e não tem padrinho. E parece, de novo, encarnar o Édipo
lendário, pois tem os pés inchados. A certa altura do conto, quando já está estabelecido
como dedo-duro, atividade que ele descobre ser o ―caminho‖, como diz o trecho acima, ele
observa:

474
Dedo-duro, p. 144.
363

Sirvo a um só tira, o falado Sebastião Pé de Chumbo, que traz anelão de chuveiro


na mão manicurada e troca camisa de preço todos os dias. Seu Sebastião diz que camisa é
como mulher. Não se pode ter só uma. Isso não tenho, ainda não. Apanho da mão dele o
meu jabaculê, a minha cara, magra, cada fim de mês. Grande coisa não. Mas tenho mulher
475
na vida, que me dá algum na mão e tenteio.

O pequeno malandro infiltrado na polícia é um Édipo desmilinguido, que afinal


encontra um pai substituto, que, por sua vez, como ele, é também um Édipo a sua maneira,
pois tem o apelido de Pé de Chumbo, indicando que se estabeleceu, com o peso do chumbo,
na condição de Édipo, sem pai a quem enfrentar. A estes Édipos malandros parece
interessar, justamente, que permaneça a condição de horda coletiva, anterior à ordem
―civilizada‖. Nessa condição de ―barbárie‖, em que a lei não serve a todos igualmente, mas
que, ao contrário, vigora a lei da selva da malandragem, em que malandro e polícia são uma
coisa só (não se distinguem e podem ser delatados de lado a lado), neste mundo cinzento
(como já o era nas obras iniciais), os malandros podem, por exemplo, ter muitas mulheres,
uma por dia, como quem troca de camisa (como indica o trecho acima), submetendo-as
também à ―selvageria‖.
Zé Peteleco sobe na hierarquia da polícia, mas sua atividade exige que ele continue
―de campana‖, isto é, mantenha o disfarce de malandro, confundindo-se com eles, para
poder conhecer seus planos e denunciá-los à polícia. É assim que ele adota o nome de
Carioca, para poder se infiltrar em uma quadrilha de contrabando. O final do conto, porém,
mantém a armação, sem que haja um desarranjo na ordem da malandragem policial a que
pertence Peteleco: ele precisa localizar o seu ―rato‖, o Pé de Chumbo, a quem serve, para
que possam dar o flagrante na quadrilha de Carniça, contrabandista que será vítima da
caguetagem.
―Dedo-duro‖ é, portanto, um conto sobre um malandro que recusa o mundo do
trabalho instituído, para arrumar um emprego na polícia corrupta, a qual se confunde com a
malandragem. O protagonista caminha para a ilegalidade por vontade própria e por
fraqueza, por conta de uma inaptidão para a vida ―direita‖.

475
Dedo-duro, p. 149.
364

O conto sugere, por meio da narrativa do próprio Peteleco, um retrato da impotência


que domina esse Édipo que não pode virar ―rei‖, como Perna Torta. Apesar de subir na
hierarquia da polícia e da malandragem, ele permanece ―servo‖, lacaio do Pé de Chumbo.
Assim como em Paulinho Perna Torta, em ―Dedo-duro‖ a constituição do
personagem está vinculada às sua dificuldade de inserção e seu começo marcado por
inferioridade e impotência, por falta de malandragem e picardia. Ao contrário de Perna
Torta, porém, Zé Peteleco vende-se para a polícia, associando-se de maneira corrupta com a
força da ordem, também corrupta e corruptora.
O texto retoma o tema da constituição de um personagem que começa por baixo,
que não tem a malandragem necessária para subir na vida e que só obtém a picardia graças
a uma atuação corrupta e traiçoeira. Para poder atuar e sobreviver, Zé Peteleco troca de
nome, assumindo a identidade de Carioca, disfarce de malandro que permite manter sua
identidade de policial infiltrado na malandragem. A atividade de delator, alcagueta, dedo-
duro é vista como traição imperdoável e alimenta a ciranda de rixas e vinganças, que só
fazem girar o motor da violência, da corrupção e da exclusão. Ao contrário da fantasia de
malandro de Perna Torta, que é abrigo e única identidade, o codinome de Carioca serve ao
policial Zé Peteleco como disfarce traiçoeiro, dentro da polícia corrompida, isto é, dentro
do avesso da malandragem, que é também malandragem a seu modo.
Os temas da investigação da identidade e das possibilidades de atuação —
malandras, criminosas ou corretas —, ganham em ―Bruaca‖476 (incluído no mesmo livro,
Dedo-duro) um relato de grande riqueza formal, um conto que se situa entre a memória e a
ficção, entre o cômico e o trágico.
O conto, em terceira pessoa, narra as artimanhas de um velho malandro, que
trabalhou num frigorífico da Lapa, de onde foi dispensado por conta de uma friagem que
pegou nas pernas. Além da doença adquirida no trabalho, por conta mesmo das condições
insalubres a que foi submetido, o narrador credita a demissão ao fato de Bruaca ser preto.
Era um grande jogador de sinuca, fez fama no Beco da Onça e depois saiu pelo
mundo, mas começou a beber e se perdeu. No Beco da Onça, acreditavam que era praga de
otário. Quando voltou à vizinhança que o havia acolhido, ―parecia um pardal molhado,

476
O conto, como já indicado no capítulo 1, teve uma versão anterior publicada na revista Extra – Realidade
Brasileira. Malditos Escritores!, no. 4, ano I, março de 1977.
365

enxovalhado e lambido, puxando de uma perna‖. Passou a dormir com os ratos na carvoaria
de seu Augusto, ―foi ficando e assim ficou‖ no Beco da Onça. Quando o tempo melhorava,
suas pernas se firmavam e ele virava um ―picardo‖ e ―aprontava bem‖. As artes da
malandragem têm o poder de rejuvenescer o velho, já de carapinha branca: ―Não lhe
faltando as pernas, Bruaca era um menino‖, diz o narrador. Trocava de nome por
necessidade. É assim que ele adota outros nomes de guerra, como Boca Murcha ou
Florzinha do Guarda-Chuva. Dividia-se entre a sinuca, em que era mestre, e a mendicância.
Diz o narrador que ―naquela manha de pechinchar é um relógio‖. Também se envolvia com
outras ―trampolinagens‖, como furtos e jogo do bicho. Quando em quando, pegava cadeia.
Certo dia, Bruaca aparece morto na calçada. E ali fica, esperando o rabecão da
polícia, o que indica que não tinha parentes e o povo do Beco da Onça, onde era
considerado, não se mobilizou para enterrar o velho malandro.
Diz o narrador que a morte saiu no jornal:

A gente ficou sabendo que era Orlando porque veio no jornal. Gaiato, morreu folgado,
num trono de caixotes de salão, com a coroa. O chapéu ensebado lá no alto da cabeça. Veio no
jornal com foto tirada em seu ponto ali no começo da rua Caiovás, quase Turiaçu, atrás do
campo do Palmeiras. (...)
A gente não vê, ela mais esconde que mostra. Olhem aí: não se percebe na fotografia,
que lhe faltava um dedo, o médio, na mão direita. Olhem aí: não se vê, no meio dos pelos, a
cicatriz da barriga, acima do umbigo, parecendo uma boceta.
Nos pés inchados que a barra da calça pega-ladrão não alcança, os tamancos
encardidos, saltos e bicos comidos, largados, tomam vento. Cambados.
477
São as pernas cruzadas, os braços estendidos que lhe dão a panca de rei.

O malandro velho, que adota alcunhas femininas (Caramba, em versão anterior do


conto, Bruaca, Boca Murcha, Florzinha), aparece morto. Só assim, revela-se seu nome
verdadeiro, sua identidade real. É a foto no jornal que lhe confere certa majestade, como diz
o narrador. O que a foto esconde, porém, são as falhas que ele carrega: falta-lhe um dedo, o
dedo médio, e ele tem uma cicatriz no tronco que parece uma ―boceta‖. Quem diz é o
narrador, que faz parte desta história, ainda que sua enunciação tenda a generalizar o relato,
por meio do uso da expressão ―a gente‖, que pode tanto significar ―nós‖ quanto ―as
477
Dedo-duro, pp. 179-180.
366

pessoas‖. Ele, narrador e a gente, as pessoas do Beco da Onça, não conheciam o nome
verdadeiro de Bruaca, mas sabiam que ele era um malandro impotente, sem o dedo médio e
dono de uma boceta no meio do corpo, elementos deste velho Édipo, de ―pés inchados‖,
carapinha branca, que é rei dos pobres apenas na hora da morte dele próprio. Um Édipo
mendigo, como Édipo em Colono, negro e excluído, efeminado e aleijado. Este Édipo
castrado, como o Édipo cego da velhice, depois da queda, entretanto, ainda mantinha, para
si mesmo, e aos olhos da comunidade em torno dele — a gente do Beco da Onça —, certa
arte malandra, cuja majestade é revelada, porém, apenas na hora de sua morte, assim como
ocorrera com Paulinho Perna Torta.
Ao contrário de Perna Torta, porém, Bruaca tinha a capacidade de trocar de nome,
de arrumar um disfarce qualquer — disfarce que é morada de malandro e que pode, a
qualquer hora, assumir nova configuração, se o malandro souber arrumar outra fantasia.
Perna Torta, ao contrário, por conta da fama, do nome que corre e da inscrição no próprio
corpo de seu nome de guerra não tem como trocar de identidade ou, com o perdão do
paradoxo redundante, disfarçar sua fantasia.
Além desses contos, ―Dedo-duro‖ e ―Bruaca‖, que retomam os temas dos contos de
juventude, ―Abraçado ao meu rancor‖ (incluído no livro seguinte do autor, publicado em
1986) revisita o tema de ―Paulinho Perna Torta‖, mas em chave autobiográfica.
Publicado vinte anos depois de ―PPT‖, ―Amr‖478 também apresenta um
protagonista que empreendeu uma trajetória de ascensão e que sente o momento presente
como um tempo de crise de identidade e de autoconsciência. À diferença de Paulinho
Perna Torta, o protagonista de ―Amr‖ pode empreender um retorno à sua origem, à casa da
família e da infância. O retorno, porém, como vimos no primeiro capítulo, é um retorno
problemático, que questiona a ascensão, a distância da origem e a própria volta à casa
familiar.
A volta a casa é um retorno impossível à mãe e ao pai, mesmo que o pai esteja
ausente, como se dá no final de ―Abraçado ao meu rancor‖. Não há volta possível para o

478
É possível que o autor tenha começado a escrever ―Amr‖ muito antes da publicação em livro, em 1986.
Em carta de 26 jan. de 1976 a Caio Porfírio Carneiro, João Antônio diz ter escrito um conto que, pela
descrição, se assemelha a ―Amr‖: ―Hoje estou como um limão espremido. Acabo de fazer um conto que me
vinha na cabeça há tempos e tempos, coisas espichadas, aí por volta de 34 laudas. Uma pauleira que me
esgotou; dei o batismo: ‗Cor de cinza‘. E meti uma espécie de subtítulo: ‗Visita à Cidade Natal‘. Total: boto a
língua pela boca de exaustão. Que aventura terrível é a literatura, Caio!‖. ANTÔNIO, J. Cartas aos amigos
Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. op.cit., p. 67.
367

narrador maduro criado por João Antônio — que se confunde com o autor, ainda que, como
tentamos mostrar no capítulo 1, seja problemática a equivalência com o próprio João
Antônio ele mesmo. A ascensão social e a opção pelo jornalismo e pela literatura o afastam
da origem, ainda que a casa mantenha sua importância, representada em especial na figura
da mãe, como o porto seguro e inicial que possibilita a busca, a aventura e a própria
existência autônoma e madura — distanciada da origem, mas vinculada a ela.
A relação com a mãe, aliás, também avulta, além da relação com o pai, na fase
madura, tanto nas narrativas autobiográficas, como vimos, quanto na ficção tardia. Em
textos como ―Mariazinha Tiro a Esmo‖ e ―Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)‖
— dois contos que não tivemos oportunidade de comentar neste trabalho —, as prostitutas
estão no centro do relato. E é curioso notar que mesmo textos de combinação jornalístico-
ficcional como ―Cais‖ (de Malhação do Judas carioca) e Ô, Copacabana!479 e de corte
autobiográfico como ―Amsterdam, ai‖ (de Amr) tenham prostitutas como protagonistas.
Mais que isso, sejam textos sobre a relação, expressa pelo narrador-protagonista, de
fascínio e dependência para com essas personagens.
A mãe é importante também nos textos da ficção inicial do autor, com destaque para
―Busca‖ e ―Meninão do caixote‖, como vimos. E em ―Paulinho Perna Torta‖, a relação
conflituosa com as figuras paternas, que o suposto parricídio de Paulinho Perna Torta
simboliza, vem acompanhada de uma relação maternal com as prostitutas. É sintomático
disso como narrador se refere à maneira de explorar as prostitutas: ―Vou mamando‖. Além
do pai substituto, encontrado em Laércio Arrudão, Perna Torta encontra em Ivete e em
outras prostitutas as mães substitutas, ―minas‖ em quem ele vai ―mamando‖.
―Paulinho Perna Torta‖, assim, pode ser visto como a narrativa de ficção que é a
síntese da obra do autor, onde João Antônio procurou investigar as possibilidades de
atuação individual e de investigação social, a partir da trajetória de um personagem pobre,
de origem nebulosa, mas que se afirma e se constitui por meio de uma existência marginal,
479
Apesar de ser uma narrativa sobre um dia na área do porto de Santos, ―Cais‖ se torna, na pena do autor um
texto sobre os bordéis e as prostitutas da zona portuária da cidade, com destaque para Rita Pavuna e Odete
Cadilaque. Em Ô, Copacabana!, é o próprio bairro que será comparado a uma prostituta, logo no início do
relato: ―Meu amor. Hoje, acordei encapetado. E me ganiu, profunda, alta, uma vontade de brigar contigo, te
chutar a barriga, sua marafona engalicada!‖. E também ao final, que retoma o começo: ―Copa injuriada, mal
lambida, prejudicada, velha antes do tempo, mijada e cagada pelos cachorros, marafona fanada, os letreiros
das fachadas de tuas lojas ficando passados, marafona muquirana, muquira, lambona, estuprada, matas
cachorro a grito e jacaré a beliscão, haja-te Deus, pasto de energúmenos, caxinguenta outrora linda, atopetada
de carros e viventes até onde não agüenta e diz chega. És a que nos resta‖.
368

malandra e afinal criminosa, que é reflexo e reflexão sobre a sociedade, sobre o indivíduo e
a interação entre eles. O conto encontra contraponto e desdobramento, vinte anos depois,
em ―Abraçado ao meu rancor‖, em que o protagonista também se questiona sobre a própria
existência, seus limites e possibilidades. Neste último conto, o contexto em que essa
narrativa foi escrita, e que emoldura a crise pessoal e profissional do narrador-protagonista,
não é mais a da malandragem antiga e do crime em pequena escala; são os tempos de
ditadura, de um processo econômico excludente — de escalada e dispersão do crime — que
o autor, fiel a seus impulsos de criação e de pesquisa literária mais pessoais, irá retratar
mais uma vez por meio de um personagem individualizado, que é acossado e ameaçado
pela dinâmica da sociedade em que está inserido: um jornalista, narrador e, mais que tudo,
um escritor que se afirmou como criador, crítico e intérprete da realidade, cujo lugar social
e a própria atuação estão em risco. ―Amr‖ é um ponto alto na carreira de João Antônio ao
combinar ficção e autobiografia, aventura e retorno, lamento e rancor como resistência à
lógica excludente e destrutiva das mudanças pelas quais São Paulo passou em pouco mais
de duas décadas.
As oposições e confluências entre vida e literatura, entre ficção e não ficção
acompanharam João Antônio até o fim de seus dias. Ao leitor que se dispõe ao esforço de
ler a totalidade da obra de João Antônio, chama a atenção a disparidade de formas
narrativas e modos de construção textual, ainda que, como se sabe, o autor tenha se mantido
fiel a poucos gêneros literários: o conto, a crônica, a reportagem; não escreveu poesia nem
romance, apesar de ter arriscado alguns versos e de ter mantido planos de realizar uma
narrativa longa. A sensação de dispersão formal de sua obra cresce à medida que o leitor
avança cronologicamente na lista de livros publicados pelo autor, culminando na produção
da década de 1990. Com exceção de Dama do encantado (editora Estação Liberdade,
1996), que reúne perfis inéditos em livro, os demais títulos do autor na última década
retomam e reagrupam textos anteriormente publicados em outros volumes, com escassos
textos inéditos.480

480
É o caso dos livros Patuléia. Gentes da rua. São Paulo: Ática, 1996; Sete vezes rua. São Paulo: Scipione:
1996; Paulinho Perna Torta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993; Um herói sem paradeiro. Vidão e agitos
de Jacarandá, poeta do momento. São Paulo: Atual Editora, 1993. Guardador. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1992; Meninão do caixote. São Paulo: Atual, 1991; Zicartola. São Paulo: Scipione, 1991.
369

Por outro lado, a leitura e a releitura de sua ficção revelam, em sentido contrário,
temas e características narrativas que se repetem, que se mantêm e que assumem variações,
desde o começo de sua carreia de escritor e o acompanham até as últimas realizações.
Sobressai um forte sentido de coerência no universo ficcional do autor. A unidade marcada
da obra de João Antônio se deve à sua poderosa capacidade de criar personagens marcantes
e sua ligação duradoura com o universo temático e humano de suas primeiras e mais
conhecidas obras — a ponto de, ao final da carreira, continuar republicando os contos de
juventude.
Certa diluição das fronteiras de gênero e a combinação de literatura e reportagem na
obra do autor podem ser vistas como condizentes com o momento em que foram
produzidas. Como indicam Antonio Candido e Davi Arrigucci Jr, a ―confusão de
gêneros‖481 e a tendência à ―literatura mimética‖, com ―lastro de documento‖482, deu a
tônica da ficção brasileira na década 1960 e 1970. E Alfredo Bosi também chama a atenção
para a ―surpreendente variedade‖, o ―caráter plástico‖ e a condição ―proteiforme‖483 do
conto brasileiro contemporâneo à época.
No entanto, entendemos que todas essas características, aparentemente
contraditórias, podem ser vistas e analisadas, segundo nossa leitura, de acordo com as
relações entre os narradores, os protagonistas e demais personagens dos textos de ficção de
João Antônio. Mais especificamente, essas características confluem na ficção e nos contos
autobiográficos para tensões expressas entre os personagens masculinos e as figuras
paternas a que eles estão submetidos e também às figuras paternas substitutas, às quais se
submetem por exigência social, por acaso e até por vontade própria. Nesse sentido, na
relação entre protagonistas e seus pais, entre os protagonistas e as figuras paternas
substitutas, entendemos que a literatura do autor, mais uma vez, carrega elementos
contemporâneos, que podem ser identificados como índices de modernidade literária e de
forte conteúdo psicanalítico, mas também de teor arcaico, informados pelo mito, pela
oralidade e por uma situação social que expressa as contradição de uma modernização que
não eliminou traços patriarcais, de herança colonial e escravista.

481
CANDIDO, A. ―A nova narrativa‖. In: A educação pela noite & outros ensaios. op.cit.
482
ARRIGUCCI JR., D. ―Jornal, realismo, alegoria: O romance brasileiro recente‖. In: Outros achados e
perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
483
BOSI, A. ―Situações e formas do conto brasileiro contemporâneo‖. In: O conto brasileiro contemporâneo.
4ª edição. São Paulo: Cultrix, 1981.
370

João Antônio trilhou o caminho de um ―realismo feroz‖, como diz Antonio


Candido, mas um realismo que procura constituir-se de dentro do universo que retrata, para
mostrar as possibilidades de atuação dos despossuídos e marginais num contexto social que
lhes é desfavorável, mas no qual eles insistem em trilhar um caminho de aventura e, talvez,
inserção, desde cedo promissora, mas improvável. Como bem apontou Candido, a
possibilidade de dar voz aos despossuídos, especialmente nos relatos em primeira pessoa,
faz do trabalho ficcional de João Antônio uma obra irmanada aos pobres, marginais,
malandros e criminosos, mas segundo nossa leitura também crítica e investigativa das
possibilidades e limites dessa representação.
Nesse percurso, João Antônio deixou cada vez mais a ficção, em favor da
reportagem literária, dos textos de corte mais ensaístico, dos perfis jornalísticos (reunidos
em Dama do encantado) e da escrita autobiográfica (as cartas e os contos autobiográficos).
Esta, sobretudo, percorre sua obra do início ao fim, desde a ficção de inspiração pessoal aos
contos autobiográficos da maturidade, passando pela intensa correspondência mantida pelo
autor ao longo da vida toda.
Não se trata de dizer que João Antônio virou personagem de si mesmo, 484 o que
talvez não seja de todo equivocado, mas de ressaltar como a produção ficcional de
juventude estava desde então marcada pela experiência do autor, o que viria a se confirmar
nos contos autobiográficos de vinte anos depois. A natureza dessa experiência pessoal, que
o autor usou como matéria-prima para sua obra literária, porém, não era apenas factual ou
como aquela que o senso comum costuma relacionar como correspondência entre vida e
literatura e que o próprio escritor, de certa forma, alimentou como um projeto literário.485

484
É o que registra Mylton Severiano, expressando opinião de Marília, ex-mulher do autor: ―João Antônio
era um personagem que ele mesmo criou, acha Marília, ‗dentro da literatura dele‘, que tinha que viver até as
últimas consequências, ainda que às raias da demência‖. (p. 150). No mesmo livro, diz Marília sobre a relação
entre eles e sobre os últimos anos do autor: ―Um ano antes de morrer, me ligou, totalmente bêbado: ‗Amor da
minha vida, procurei você nos braços de todas as mulheres‘. E eu com o meu marido do lado. ‗João Antônio,
você está bem?‘ ‗Estarei bem quando você voltar para mim.‘ ‗Mas você sabe que já casei de novo.‘ ‗Se
você ficar viúva, pode voltar para mim que eu te perdôo.‘ Achei que estava muito solitário. Comecei a ligar
mais, para ver se estava bem. Nunca esqueci o João Antônio, porque foi o primeiro homem da minha vida.
Não só sexualmente, mas também emocionalmente. Foi pai do meu primeiro filho. E foi traumático,
porque não me aceitava como mulher. Cheguei a esta conclusão depois de fazer terapia. Eu não fazia
parte daquele roteiro que ele fez para ele. Não era mulata! De acordo com o que ele pensava, era pequeno-
burguesa. Esquerda festiva. Não era puta!‖ (pp. 145-146). SEVERIANO , M. Paixão de João Antônio. São
Paulo: Casa Amarela, 2005.
485
Sobre isso, ver os textos ―Corpo-a-corpo com a vida‖. In: Malhação do Judas carioca. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1975; ―De Malagueta, Perus e Bacanaço‖. In: MPB; e as entrevistas: ―João Antônio:
371

João Antônio escreveu sobre o que viveu e sobre um universo que é fundado em
sua própria experiência, inspirado na observação da realidade mas também na elaboração
formal e, portanto, profundamente ficcional. Seus protagonistas, na ficção e nos contos
autobiográficos, nascem da vivência e da imaginação do escritor, mas se distanciam dele
próprio para ganhar o mundo, com existência e nomes próprios, enfrentando os percalços
que a ―realidade‖ impõe, no espaço ficcional. Dentre os obstáculos para o
desenvolvimento dos personagens de sua ficção, avulta o contraponto com as figuras
paternas, que são ambivalentes: provedoras, protetoras e orientadoras, mas também
violentas e castradoras.
Os pais, em João Antônio, são instâncias que precisam ser enfrentadas e superadas
para que, no nível pessoal, os protagonistas possam crescer, e no âmbito social
empreendam um caminho de conquista e inserção, sempre incertas, mas desejadas e
problemáticas: narradores e personagens fabulam trajetórias de ascensão e aventura, mas
permanecem fiéis à própria origem, irmanados aos marginais e inconformados, arredios
aos valores ―positivos‖ da sociedade em que vivem.
Ficção e autobiografia expressam, em João Antônio, questões pessoais — que se
relacionam ao homem que foi João Antônio —, mas também problemas críticos que dizem
respeito à interpretação literária e à historiografia da literatura brasileira. De Malagueta,
Perus e Bacanaço aos contos autobiográficos da maturidade, passando por ―Paulinho
Perna Torta‖, o autor investigou as possibilidades e as fronteiras da narrativa de ficção,
afirmando-se como escritor e jornalista, narrador e narrador de si mesmo, moldando na
literatura seus desejos e seus limites. Na obra do autor, a constituição de narradores, de
personagens e da própria ação está em processo, tematizada, debatida e investigada. E
João Antônio, ele mesmo, não escapou a essas contradições, tomando a ficção e a
autobiografia como campo de formação, atuação e identidade — problemático até o fim.
Como já indicou Rodrigo Lacerda:

João Antônio viu-se um homem traído pelos dois mundos que tinha, o seu de origem,
do qual seu auto-didatismo, entre outros elementos de sua personalidade, e seu novo status o
distanciavam; e o mundo literário, que o tirou da vida proletária mas não lhe deu a tão sonhada

‗Escrevo de dentro para fora‘‖. In: Patuléia. Gentes da rua. São Paulo: Ática, 1996; ―O leitor como parceiro‖,
in Ldc, pp. 159-162, e ―O leitor é um parceiro que eu vou procurar‖. In: Malagueta, Perus e Bacanaço. São
Paulo: Ática, 1987.
372

chance de viver exclusivamente de sua literatura, e, a partir de um certo momento, cassou o


trânsito fácil e prestigiado de seus textos, e ainda lhe roubou a força literária. Despontar para a
fama como escritor durante os anos 60 e 70, época de intensa modernização não apenas dos
valores na sociedade, mas também da indústria cultural, campo específico de sua atuação, deu-
lhe a impressão de que a sociedade iria permitir a ―muralha positiva‖, ou seja, a obtenção de
uma vida ganha exclusivamente como escritor, a dedicação completa a sua arte, àquele amor
que, como sua mãe mesmo disse, não admitia concorrentes. Daí sua defesa tão contundente da
profissionalização do escritor, sua guerra santa em nome do pagamento dos direitos do autor no
Brasil, cujo respeito, estranho que seja, não era a norma no mercado editorial da época (até hoje,
mais raramente). Daí as brigas que teve com quase todos os seus editores. Daí, em parte, o
gradual desaparecimento de seus livros das prateleiras das livrarias. Daí suas desilusões com a
televisão, ele que sonhava em ver os escritores ocupando lugar de destaque na tele-dramaturgia
e na programação como um todo. Daí suas desilusões com o jornalismo, que, após um espasmo
renovador, retrocedeu e abandonou as experimentações e a convivência com a literatura. Nunca
João Antônio se libertou da necessidade de ganhar dinheiro para sobreviver. Ele se livrou das
obrigações familiares, dos vínculos sentimentais, obstáculos para sua vida integralmente
486
literária, mas nenhum sacrifício foi suficiente.

Como vimos ao longo deste trabalho, essas contradições ganharam representação


literária, tanto ficcionais como autobiográficas, em João Antônio. Entender o percurso que
vai da casa para a rua e do ambiente familiar para o convívio social, que na obra do autor é
também a passagem da juventude para a idade adulta, permite compreender que essa
movimentação horizontal, a ―ânsia deambulatória‖487 dos protagonistas do autor, traz
consigo também um impulso vertical de subidas e descidas que faz com que os personagens
se lancem não apenas à deambulação sem rumo, mas também à ação, com consequências
dramáticas. Em certos casos, trágicas.
Esse impulso vertical se expressa na hierarquia que se estabelece entre os
protagonistas e na própria ideia de ascensão e queda — real ou imaginada — que marca a
trajetória dos personagens. É, portanto, um movimento de mão dupla. Vive-se a expectativa
e o desejo de ascensão ao mesmo tempo que se teme e se antevê a queda.
É preciso cometer o crime de parricídio, para passar da infância à idade adulta; é
preciso substituir o pai por pais substitutos, como o professor, o chefe, o patrão — e
também ―assassiná-los‖, isto é, suplantá-los, a fim de se livrar do seu jugo. Nos contos do
486
LACERDA, R. João Antônio, uma biografia literária, op.cit., pp. 449-450.
487
BOSI, A. ―Um boêmio entre duas cidades‖. In: AMR.
373

autor, porém, essa passagem não se dá. Pois os personagens estão, de certa forma, presos à
roda-viva da malandragem: malandros viram otários, que desejam ser malandros, mas na
verdade não passam de vagabundos mirrados, trouxas, que podem vir a ser malandros, mas
acabarão cedo ou tarde como trouxas, como indica ―MPB‖. Eles vivem a ―ciranda da
malandragem‖, como bem definiu Jesus Antonio Durigan. Com isso, as narrativas
ficcionais de João Antônio encenam situações de circularidade e de incompletude.
Para a ascensão é necessário ultrapassar o pai. No entanto, por uma certa constante
de comportamento, os protagonistas estão impedidos de cometer o parricídio. Isso se dá por
conta das regras da malandragem, no caso dos contos mais desenvolvidos, e também por
certa dificuldade psicológica relacionada à relação entre os protagonistas e as figuras
paternas, no caso dos contos iniciais, que apresentam personagens em processo. Assim, de
certa forma, os personagens do autor não podem (ou são incapazes ou estão impedidos) de
executar o crime que os permitiria ―fazer romance‖ ou que consubstanciaria a narrativa
trágica. E isso se torna um problema, impasse, sinuca, pois transforma os textos, que têm
impulso de romance e inclinação trágica, em contos e em tragédia anunciada e não
realizada. Daí a conexão entre o tom melancólico e a forma inacabada (em processo) de
alguns de seus textos. O impulso dramático para o conflito e a preferência pela desdita e
não pelo sucesso ou arrivismo tendem a conferir caráter trágico aos seus melhores contos.
A posição do narrador nos contos é uma boa porta de entrada e também de saída
interpretativa para a análise crítica da obra ficcional de João Antônio.
Os protagonistas são, em geral, como se disse, jovens pobres inseridos em uma
sociedade desigual, que além de não lhes permitir uma inserção estável, ainda faz com que
eles temam ser ainda mais rebaixados na escala social. São conhecidos os termos pelos
quais João Antônio os denominava: pingentes, sem-eira-nem-beira, pobres-diabos e, no
universo da malandragem, trouxas, coiós sem sorte, otários, que até podem virar
malandros... sem deixar de ser trouxas.
É notória também a capacidade de João Antônio ter se aproximado desses
personagens, conduzindo de maneira empática a fala de seu narrador para com a dos
despossuídos. No entanto, é preciso destacar também a distância que separa o narrador de
João Antônio desses personagens. Trata-se, assim, de um movimento duplo e recorrente, de
374

aproximação e distanciamento, que faz do narrador de João Antônio um figura literária de


interesse.
No terreno da ficção, o realismo praticado pelo escritor, apesar de, sem dúvida, ser
contemporâneo e atento às circunstâncias históricas em que se originou, apesar do sopro
renovador com que foi saudado, carrega desde as primeiras realizações um forte sentimento
de nostalgia. A escrita do autor é atravessada por um lirismo que a mantém vinculada ao
passado, não apenas histórico, mas também pessoal, tanto no que se refere a aspectos
biográficos, isto é, elementos da vida do próprio escritor, como no que se refere aos
personagens, sempre ocupados com a infância e com um sentimento dolorido de passagem
do tempo. Os reflexos dessa tendência de volta ao passado e de circularidade temporal se
dão no nível da forma: a prosa do autor mostra-se tributária de características narrativas
antigas, de grande oralidade, de um estilo tortuoso, que desacelera o ritmo do que se conta,
e de um forte pathos que aproxima sua escrita da melancolia, da culpa, do impasse, de uma
sinuca que em alguns momentos singulares de sua obra ganham perspectiva de resolução.
Personagens como Perus e Paulinho Perna Torta, como vimos, encarnam as ambiguidades
dessas trajetórias ascendentes e centrífugas, que tendem a escapar da ciranda, da lógica
perversa da marginalidade brasileira, mas que, também eles, se veem reféns das
contradições da malandragem e do crime.
Seus personagens são complexos e as escolhas de foco narrativo são ambíguas. São
muitos os textos em primeira pessoa, em que o próprio protagonista se põe a relatar a
história, em que a narração e ação coincidem. No entanto, como se disse, mesmo com a
adoção de um ponto de vista colado ao do narrador-protagonista que narra e vive a ação, as
voltas ao passado e o apelo à memória são uma constante nos contos do autor. Quando a
escolha recai sobre o foco narrativo em terceira pessoa, a posição do narrador dos textos do
autor, também se mostra tradicional, distanciada, objetiva e, simultaneamente, moderna,
aproximando-se dos personagens, incorporando a fala e a oralidade típicas da cultura
brasileira ao seu modo narrativo, por meio do discurso indireto livre, o que por sua vez
arrasta o modelo narrativo para o terreno da cultura oral, da história popular, do causo e da
lenda.
A imagem mais apropriada para caracterizar os contos do autor talvez tenha sido
fornecida pelos próprios contos e pelo funcionamento formal e temático das narrativas. O
375

andamento das ações nos contos do autor obedece ao ritmo das marés de sorte e azar, de
fortuna e desdita, de euforia e melancolia que atingem os personagens. A um só tempo
distanciado da trama e rente a ela, o narrador de João Antônio recorre a um jogo de disfarce
e de supressão — assim como seus personagens e personagens-narradores — que
acompanha o movimento da fortuna e da desdita, as marés de sorte e azar a que estão
submetidos seus personagens, fazendo dele, narrador, também um personagem do universo
narrado e relativizando, assim, o realismo onisciente da posição tradicional do narrador.488
Acrescente-se a isso a grande mobilidade vertical a que os personagens estão
sujeitos e chega-se a uma concepção trágica da existência — ou, mais especificamente, da
existência desses personagens, jovens brasileiros de origem pobre, em meados do século
XX, uma trajetória em que a ascensão é improvável, mas desejada, e a queda está sempre à
espreita.
Apesar de estar entre os fundadores do conto contemporâneo brasileiro, o parâmetro
narrativo dos textos de ficção de João Antônio, entretanto, são anteriores. A trajetória de
seus protagonistas aponta para modelos consagrados pelo romance do século XIX. As
histórias recorrentes de João Antônio atualizam um grande tema do romance: a história do
herói isolado que, apartado da sociedade, procura se inserir socialmente por meio de uma
trajetória individual e nova.
Mas, mais que isso, a questão principal que se coloca em relação à ficção de João
Antônio, e que se espraia para seus textos de não ficção (especialmente os autobiográficos)
é da própria constituição dos personagens e da narrativa em si mesma.
O narrador em João Antônio também está implicado na dinâmica de mobilidade e
ascensão, sujeito ao impulso vertical latente que confere caráter trágico aos contos — e não
apenas os narradores-personagens, mas também o narrador em terceira pessoa, como vimos
em ―MPB‖, já que está a um só tempo irmanado aos personagens mas também distanciado
e acima deles. Nesse quadro, destacam-se ―Amr‖ e ―PPT‖, contos em que a ascensão se dá,
um parricídio simbólico tem lugar e, entretanto, a sinuca se repõe: a nostalgia e a fidelidade
à origem mantêm os protagonistas presos à culpa e ao rancor.
Por conta, porém, desse impulso vertical que atua sobre os personagens, os
protagonistas que são em geral despossuídos — merdunchos, trouxas — estão sujeitos a

488
ADORNO, Theodor W. ―Posição do narrador no romance contemporâneo‖. In: Notas de literatura I. op.cit.
376

ganharem status e se tornarem maiores e mais poderosos do que são. Em outras palavras, os
jovens protagonistas sonham com grandes ―paradas‖ (―Visita‖), fantasiam grandezas
(―MPB‖), aspiram à aventura e ao partido alto (―PPT‖), sempre um pouco à deriva, sujeitos
às marés de sorte e azar que guiam a malandragem e a vida de otário. Trouxas e malandros
trocam de lugar, de acordo com a circunstância: otários podem se revelar grandes
malandros, grandes malandros podem cair para a condição de trouxas, assim como os
malandrecos podem se tornar grandes ases do jogo se tiverem picardia e se a fortuna os
favorecer.
O impulso ascendente, porém, nunca deixa de atrair os personagens e nos textos
mais complexos prevalece. Nesse sentido, os protagonistas de João Antônio, incluindo ele
próprio, são heróis trágicos. Vivem o drama da malandragem e, quando conseguem
ultrapassá-lo, escapando da sinuca, e adentrando o mundo do crime, como em ―PPT‖,
voltam a se deparar com um destino que lhes escapa, encontram a iminência da tragédia e
percebem que estão condenados a desaparecer. E ninguém vai contar sua história, a não ser
eles mesmos, malandros e criminosos. Daí porque João Antônio tenha assumido a tarefa de
narrar. Para contar a história dos merdunchos e dos malandros e para narrar a sua própria
história.
Assim, João Antônio experimentou as possibilidades de retrato e invenção do
merduncho, do malandro, do boêmio, do criminoso e do narrador, e o fez como narrador,
narrador-protagonista, jornalista, cronista e biógrafo de si mesmo, inovando e deixando
marca pessoal em todas essas modalidades de criação. Nesse percurso foi fiel e infiel a si
mesmo, ultrapassando a própria biografia. Sua concepção de escritor — de sua própria
atuação como escritor — não se resumiu a parâmetros estabelecidos, porque lhe
interessava, justamente, examinar as possibilidades de criação e liberdade, tanto pessoais
como literárias.
Para além das questões sociais e históricas que sua ficção aborda, mas incluindo e
fundando-se nelas, a obra de João Antônio expressa as possibilidades e os limites da arte
narrativa produzida por um escritor de origem pobre, que conseguiu, por méritos próprios,
afirmar-se como escritor e retratista complexo de seu próprio mundo, profundamente
interessado na investigação de suas origens, de sua trajetória e de suas possibilidades de
realização.
377

Por conta do forte conteúdo autobiográfico de sua obra, essas contradições dizem
muito sobre o próprio João Antônio, mas não apenas sobre ele. As características mais
complexas de sua obra também iluminam problemas críticos e de composição relacionados
ao realismo, à linguagem e à cultura urbanas no Brasil do século XX, que ainda pedem
desenvolvimento e continuam a desafiar críticos e influenciar escritores contemporâneos.
Nesse sentido, João Antônio persiste sendo um autor que tem muito a dizer ainda
hoje para a ficção e a crítica literária. Ancorada no mito, na oralidade, na modernidade
literária, na investigação da realidade e da psicologia de seus personagens e de si próprio, a
escrita de João Antônio é matéria e inspiração estimulantes para leitores e escritores
contemporâneos, para a crítica e a historiografia brasileiras. A combinação de realismo
inovador — enraizado na tradição não apenas brasileira mas universal — com retrato
íntimo, psicológico e social faz dessa literatura uma obra singular, um ―realismo feroz‖,
mas reflexivo, que continua a interessar e desafiar o leitor crítico.
O percurso analítico empreendido aqui, desde os primeiros contos de ficção,
passando pelos relatos de memória, como Lambões de caçarola e ―PMCMS‖, vão culminar
cronologicamente em ―Amr‖, conto autobiográfico que alia, de maneira poderosa — em
ação —, a ficção e a autobiografia. Se em Lambões, primeiro texto autobiográfico de maior
relevância, a atenção para o mundo objetivo, para a comunidade, para a história e para as
figuras paternas se mostra estruturante da narrativa, nos dois últimos outros contos
autobiográficos, ―PMCMS‖ e ―Amr‖, a identidade do próprio narrador-escritor é que passa
a ser examinada em primeiro plano.
Em todos os contos, e nos autobiográficos em particular, o embate com as figuras
paternas é determinante para a identidade do narrador. Em Lambões, o pai biológico e o
presidente se equiparam na relação que o narrador mantém com as figuras modelares, de
autoridade e identificação. Como vimos, aos poucos o narrador se distancia do presidente,
mantendo-o, entretanto, muito próximo do pai biológico, sem que consiga, ainda, formular
um contraponto consequente entre as duas figuras paternas e o próprio narrador. Em
―PMCMS‖, o escritor adquire maior centralidade, e o narrador examina a maneira com que,
a partir do enfrentamento da figura paterna, conseguiu afirmar-se e, mais que isso, afirmar
um modo de ser, em contraponto e oposição à figura paterna.
378

―Amr‖ representa um momento de maturidade, momento visto, entretanto, como


problemático. A identidade do escritor é colocada em xeque, pois ele não se reconhece mais
na cidade que o gerou (a cidade como um modo de ser) nem, tampouco, como o narrador
que se tornou ao narrar esta mesma cidade que desapareceu. Neste conto, cidade, lugares e
personagens são reduzidos ao próprio escritor, à sua percepção, ao lamento pessoal de um
narrador que não quer mais narrar, que recusa a aventura num mundo que não reconhece,
que não quer conquistar, onde não quer se afirmar nos termos que lhe restam. Ele
empreende uma volta a casa, uma casa, porém, que ele também recusa, por saber que não
pode voltar.
Pode-se dizer da obra de João Antônio o que Antonio Candido disse a respeito da
confluência entre ficção e confissão em Graciliano Ramos:

[...] O escritor vê o mundo através dos seus problemas pessoais; sente necessidade de lhe
dar contorno e projeta nos personagens a sua substância, deformada pela arte. [...]
A tendência para manifestar-se leva porém a uma encruzilhada: o romance, todas as suas
exigências formais, vai parecendo molde apertado e incompleto [...] Sente-se constrangido na ficção
e abandona-a para sempre no apogeu das capacidades, com apenas quatro livros publicados. O
desejo de sinceridade vai doravante levá-lo a retratar-se no mundo real em que se articulam as suas
ações; já instalado na primeira pessoa do singular como artifício literário, deslizará para a
489
experiência real dentro da mesma perspectiva de narração, mas sem qualquer subterfúgio.

Assim como Graciliano, João Antônio abandonou a ficção em favor da


autobiografia. No entanto, como tentamos mostrar, mesmo os textos autobiográficos do
autor, vêm carregados de ambiguidades que permitem enquadrá-los em uma categoria
fronteiriça, entre a ficção e a biografia. Desde o formato e a definição dos livros (a maneira
com que os paratextos apresentam as obras ao leitor), nota-se uma combinação entre os
dois aspectos, o biográfico e o ficcional, que fazem desses relatos memorialísticos ―contos
autobiográficos‖.
Do ponto de vista crítico, o problema que se apresenta é, portanto, entender em que
medida autor e narrador não coincidem e por que não coincidem. Como vimos, para o
escritor João Antônio, a dissociação se deu por conta de um impasse, de uma crise que é

489
Candido, Ficção e confissão, op.cit., pp. 64-65.
379

pessoal, social, política, econômica, mas também e sobretudo literária: a dificuldade ou,
talvez mesmo, a impossibilidade de narrar — a certa altura da vida e do processo social —
uma história que é localizada no tempo, mas também é atemporal, pois se relaciona com a
memória, com o mito, com a lenda, com o mistério da existência e de como narrar a
existência. Distanciado da origem e de seu universo de criação e fabulação, o escritor deixa
de frequentar a arena literária para manter-se fiel às origens e seu mundo literário de
formação: os personagens merdunchos, malandros e boêmios. Mas, paradoxalmente, não
pode mais deixar de ser o que é, de origem pobre e de classe média, boêmio e trabalhador
intelectual, escritor e jornalista, para voltar a ser merduncho, boêmio e escritor. Essa
hesitação entre ser e não ser, que é também a de seus personagens, ganha no próprio João
Antônio expressão complexa, como vimos nos contos autobiográficos.
O conto ―Amr‖ marca um momento da carreira de João Antônio em que ele ainda é
o escritor João Antônio, mas talvez já não consiga mais ser narrador. Daí porque sua
identidade, nos contos autobiográficos, paulatinamente deixe de ser a do escritor-narrador-
personagem que define os relatos autobiográficos. Assim como o narrador, também o
personagem João Antônio, de certa forma, encontra aqui sua última representação, pois
―Amr‖ é um conto sobre um narrador que perdeu o mundo em que nasceu, onde se criou,
que sonhou e no qual viveu, sobre um narrador que não tem mais o que narrar, pois o
passado desapareceu, e que não encontra mais motivos para se lançar à aventura, neste
mundo conspurcado pela violência política e econômica, que a ele parece ter se fechado às
possibilidades de ação. Um mundo em que a escrita literária também está em risco,
acossada pelo jornalismo, pela publicidade, pela televisão e pelo próprio funcionamento do
sistema literário brasileiro, que não permite viver de literatura.
Depois do livro Abraçado ao meu rancor, publicado em 1986, o autor publicaria
escassos textos ficcionais. Sintomaticamente, no mesmo ano deste livro, sai o volume de
Melhores contos do autor.490 E depois da publicação desses dois títulos, o escritor não
voltou a publicar um volume relevante de ficção, indicando um momento de chegada, uma
parada na criatividade e na carreira, que vão se revelar, aliás, definitivos.
―PMCMS‖ marca o momento da vida em que o jovem escritor se lançou como
autor. Como vimos, o rapaz boêmio e desregrado é capaz de ganhar nova identidade, a de

490
ANTÔNIO, J. Os melhores contos. Prefácio de Antônio Hohlfeldt. 2ª edição. São Paulo: Global, 1997.
380

um escritor lírico e sestroso, Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha, nome depois
abandonado em favor da assinatura literária: João Antônio.
―Amr‖, por sua vez, assinala o tempo da maturidade de escritor. Um autor de uma
arte que ―não permite dois amores‖, como se formula no texto, indicando que houve uma
escolha pela literatura, pela ficção e não pelo jornalismo, pela escrita factual, pela não-
ficção. Em ―Amr‖, a identidade do personagem é a de um escritor que ama a literatura, mas
sente-se inseguro quanto à capacidade de sustentar esse amor, de um jornalista que não
quer ser jornalista, mas que também não pode ser apenas escritor, ainda que seu amor seja o
amor pela escrita, pela escrita literária.
Essa contradição conduz a obra do autor ao tempo de uma maturidade problemática
e melancólica, em que os textos de ficção foram rareando e mesmo os textos inéditos
escassearam. Nos últimos anos de vida, João Antônio não voltou a desfrutar do sucesso e
do prestígio que alcançou nos anos 70. Depois do auge da carreira literária em termos de
vendagem e reconhecimento popular, quando chegou a ter um livro no topo das listas de
mais vendidos,491 o autor terminou seus dias editando velhos textos em formato infanto
juvenil, por várias editoras, e, como vimos, saudoso dos tempos passados e ligado aos
textos de juventude.
E, no entanto, apesar do final melancólico, a leitura das últimas cartas do autor, se
corroboram a ideia de um fim de vida sem glória literária, atestam também a permanência
do apreço de João Antônio pela literatura, pela arte e pelo caráter irrequieto de sua
personalidade, por um inconformismo que se manteve afiado e rancoroso, mas também
bem-humorado, até os momentos derradeiros.
As cartas, aliás, tornaram-se local privilegiado para a experiência literária de João
Antônio. Na troca de correspondências, o autor encontrou possibilidade de seguir
escrevendo criativamente e, ao mesmo tempo, ser fiel a si mesmo. Encontrou também
leitores fiéis a ele, algo que de certa maneira atendeu a seus desejos de interlocução e suas
necessidades de atenção e afeto, de acolhimento a seus impulsos de criação e
experimentação literárias.

491
Carta do autor a Caio Porfírio Carneiro, datada de 30 nov. 1975: ―... e Leão-de-chácara está sendo o livro
mais vendido do País (revista Veja). Como se vê, o danado de Leão ruge grosso‖. Cartas aos amigos Caio
Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. op.cit., p. 63.
381

Em nossa pesquisa no Acervo João Antônio, localizamos uma carta de fevereiro de


1988 em que o escritor, então na Alemanha, comenta a morte do pai.

Berlim, nevando, 23 de fevereiro de 1988.

Faz hoje seis meses que estou na Alemanha. (...)


A 13 de fevereiro, sábado de Carnaval, morreu meu pai em São Paulo. Eu soube com dez
horas de diferença. Foi uma porrada seca, rente, grossa e redonda como poucas levei em vida. Tive
que parar o que estava fazendo e chorar. Passei, a partir dali, a viver dois dramas. A perda de um pai
inesquecível, basta ler os meus livros para sentir o tamanho de meu pai; a impossibilidade de viajar
imediatamente ao Brasil. Eu estava em Berlim e era Carnaval. (...)
(...)
Claro que não sou tão incauto a ponto de cometer a ingenuidade, o que me custaria alto em
termos de decepção humana, de contar aos alemães a morte de meu pai.
De uns dias para cá, amigos me têm telefonado de São Paulo e Rio. Amigos valiosíssimos
me trazendo solidariedade, um recado de amor. Reconforta.
Estou vivendo uma fase dura. E, claro, certas dores não se podem confiar a qualquer um. Só
àqueles que as merecem.
São como alguns textos. Não basta ao sujeito saber escrever aquele texto. É preciso merecer
escrevê-lo. Essa conversa é de profundidade.
E, também, é tudo como Deus quer.

(assinatura)
JOÃO ANTÔNIO
*
Mas também tenho conhecido aqui alemães que, com grandeza humana, têm me dado
conforto e muita solidariedade. Claro, há o vazio da perda de um pai inesquecível, uma das
personalidades mais ricas, humanas e talentosas que já conheci. Mas há um aprendizado de vida e
humildade em todo esse sofrimento.
Virgínio, meu irmão, que conheceu meu pai milimetricamente e o amou no dia-a-dia duro
de Presidente Altino, me fez uma carta que é um momento único de amor filial. Minha mãe, dona
Irene, se comporta como uma rainha. Rainha da compreensão. Amigos meus têm me telefonado do
Brasil para exaltar a dignidade e a coragem daquela mulher.
492
Deus abençoe a todas essas boas almas que me confortaram.

492
No Apêndice desta tese, há reprodução fac-similar da cópia desta carta mantida no Acervo João Antônio.
Parte da carta já havia sido divulgada no trabalho de Telma Maciel da Silva, Posta restante: um estudo sobre
382

A morte do pai vai alcançar João Antônio em país estrangeiro, no inverno alemão.
Logo ele, que odiava o frio. Distâncias de tempo e espaço parecem acentuar a dor da perda
que o atinge. Ele diz ter recebido a notícia com ―dez horas de diferença‖, talvez por conta
do fuso horário ou pela dificuldade da família em contactá-lo. Mas ele não diz por quê, o
que acentua o sentimento de impotência, o golpe que o atinge fortemente: ―porrada seca,
rente, grossa e redonda‖. E o texto se abre chamando a atenção para o tempo longo em que
está distante do Brasil, para onde está impossibilitado de viajar imediatamente.
Além da dor da perda que a carta comunica, vale observar que a morte do pai, neste
momento ainda de luto, remete não apenas à pessoa perdida e aos sentimentos dele, João
Antônio, mas aos livros. É o que João Antônio anota, para sublinhar a notável importância
do pai para ele: ―basta ler os meus livros para sentir o tamanho de meu pai‖. A perda
efetiva do pai remete aos livros, à literatura publicada pelo autor, onde, como vimos e como
o escritor então sublinha, ―o tamanho‖, isto é, a presença e a ausência do pai já vinham
sendo investigadas.
O próprio teor de balanço desta carta que começa contando o tempo longe do
493
Brasil — neste momento em que neva na Alemanha e no Brasil é Carnaval, e ele está
longe e de luto — aponta para o teor literário deste texto. A carta não tem destinatário e,
apesar de começar da maneira usual com que o escritor escrevia aos amigos, assume um
caráter de diário. Não há destinatário explícito nem menção a um interlocutor como em
outras cartas do escritor, sugerindo ainda que a carta pode ter sido enviada a mais de uma
pessoa.
A princípio, trata-se de carta dirigida a alguém dando notícia da morte do pai e de
seus sentimento quanto ao evento, mas se lermos a carta como um texto sem destinatário
específico, o texto assume caráter de carta ao mundo, de texto literário escrito para atingir
muitos destinatários, isto é, os muitos leitores de João Antônio — os de então e os futuros.
O pacto da carta, então, é, mais uma vez, na escrita do autor, um pacto ambíguo, em que se
comunicam os teores autobiográfico, literário, autoral.

a correspondência do escritor João Antônio. Orientação de Ana Maria Domingues de Oliveira. Tese de
doutorado em Letras. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Unesp, 2009, pp. 229-230.
493
O teor de balanço seguirá nos trechos suprimidos na citação, pois o escritor alude às suas mudanças de
cidade e à chegada ao Rio de Janeiro, mais de vinte anos antes.
383

A permanência da importância do pai para João Antônio pode ser constatada em


outras de suas cartas já publicadas.
A correspondência com Fábio Lucas registra algumas referências sugestivas do
autor ao pai. Em outubro de 1990, escreve: ―Alguns me acham elegante escrevendo. Creio
que aprendi isso com meu pai, grande inspirador de elegâncias, inda mais no
comportamento e no conviver. Um grande humilde, que com certeza v. teria alegria em
conhecer‖.494 Em carta ao mesmo destinatário, já no último ano de vida, o pai volta a ser
evocado, em lembranças que se relacionam à literatura e à música: ―Metáfora é metáfora e
não devo abusar. Mesmo nas minhas licenças poéticas, que v. tão bem conhece e, segundo
sei, aprecia. Sem entrar em detalhes e sem contar o segredo, a verdade é que estou
consumindo cocaína e heroína ao mesmo tempo. Descobri baratos incomensuráveis. Nesse
momento, ouço Franz Liszt, Concerto para piano e orquestra no 4 e a palavra admirável é
fraquinha. Compreendo na alma, agora, por que meu pai tanto admirava o compositor e
pianista húngaro. Trata-se de um canalha a ser amarrado a um pelourinho e sovado de
modo exemplar para largar a mão de ser zombeteiro. Trata-se de um intimorato
sacanocrata. Um ousado.‖495
As lembranças do pai, relatadas em carta, indicam que a figura paterna se
relacionava fortemente à sensibilidade estética do autor. Na primeira das duas menções ao
pai, em 1990, João Antônio liga a pretensa elegância de sua escrita à pretensa elegância do
comportamento paterno. Ecoa, aqui, dois anos depois da morte do pai, a ideia de
refinamento, ligada à música e à arte, que era uma das características fortes de João
Antônio Ferreira, como os textos autobiográficos já indicavam. A segunda menção, em
1996, a poucos meses de sua morte, é ainda mais sugestiva, pois o escritor diz ter entendido
por que o pai gostava de Liszt. A formulação expressa contradições que dizem respeito a
pai e filho. João Antônio descobre que Liszt é um ―zombeteiro‖, e conclui, brincalhão, que
o compositor deveria ser castigado por isso. A afirmativa sobre o compositor húngaro
reflete, obviamente, a relação entre ele e João Antônio Ferreira. Zombeteira, a
personalidade do filho contrasta com a personalidade austera, sentenciosa, severa do pai.
Merecia ser castigado por isso, por ser ―ousado‖, um ―intimorato sacanocrata‖. Aqui, é

494
Carta de João Antônio a Fábio Lucas, datada de 17 de outubro de 1990. Cartas aos amigos Caio Porfírio
Carneiro e Fábio Lucas. op.cit., p. 118.
495
Carta a Fábio Lucas, 31 mar. 1996. In: Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas, p. 132.
384

João Antônio que adere ao ponto de vista do pai, sem deixar de ser João Antônio, o
zombeteiro e ousado, intimorato sacanocrata, isto é, alguém irônico, destemido e partidário
da sacanagem, que aos olhos paternos deveria ser castigado, para deixar de sê-lo. E João
Antônio não deixou de sê-lo, como sabemos e voltamos a verificar nesta carta. Aqui, a
ironia desbocada do autor localiza a ousadia e a sensualidade do compositor e goza, com
folga, aquilo que o pai censuraria no compositor, isto é, em Liszt, aqui identificado com ele
mesmo, ―compositor‖ João Antônio, ele mesmo um intimorato sacanocrata até os últimos
dias.496
As cartas a Fernando Paixão, enviadas no último ano de vida, dizem da mesma
persistência de espírito bonachão e inquieto, ainda disposto a pensar, refletir, ler novos
autores, escrever e se indignar com os problemas do país e da literatura. As cartas falam da
disposição do autor em trabalhar — e reclamar disso: ―Não gosto de trabalhar de graça num
domingo, creio que ninguém gosta‖.497 A mesma carta mostra a permanência do espírito
inflamado e do comportamento arredio às rodas literárias.

Quero ficar só com as coisas minhas. Muito mais que lindas, diria o poeta. Tenho boas
companhias por aqui. Desde os caquis que vou comendo, pois a temporada é deles, até alguns
ensaios supimpos que tenho lido graças à Maria José de Queiroz, que escreve elegante e límpido, é
culta e não bota banca, dá uma de vagamunda e é uma senhora ensaísta. Ensina-me e me convida a
pensar. Tão diferente da gentalha ou gentarada que gosta de aparecer e encher as medidas e
desmedidas. Egões, conforme v. mesmo diz. Quero distância deste festival das vaidades
arreganhadas. E dos anseios ressentidos. Deus me livre e guarde e toda a casa de Davi me salve. De
assim, quero ir cada vez menos aos lugares frequentados pela curriola dita letrada. Hei de fugir deles
como o diabo da cruz. E, em os vendo, me persignarei três vezes – na testa, na boca e no peito. O
ambiente dos letrados está pra lá de Deus me livre. Imagino um sujeito barbado, magro e alto, com
um relho na mão invadindo esses ambientes infectados e descendo o relho em todos os asquerosos. E
aos gritos quase bíblicos:

496
As cartas a Fábio Lucas, a quem João Antônio chama algumas vezes de Sábio Lucas, trazem ainda mais
uma menção ao pai do escritor, anterior a todas estas comentadas. Em dezembro de 1984, o autor conta a
Lucas que o pai teve de ser operado várias vezes e amputou a perna esquerda. Esta informação biográfica se
torna ainda mais importante, e pungente, se lembrarmos como o caminhar é algo importante para a obra de
João Antônio. Ganham também dimensão mais sofrida as dedicatórias de Lambões e de Ô, Copacabana!:
respectivamente ―Para João Antônio Ferreira — meu pai —, ainda firme na luta‖ e ―Para João Antônio
Ferreira / meu pai / firme ainda / e também andejo‖.
497
Carta de João Antônio a Fernando Paixão, 12 mar. 1996. PAIXÃO, F. ―João Antônio: cartas de desabafo‖.
Revista IEB, n. 51, mar/set 2010, p. 163.
385

— Ímpios e fariseus, ide lamber sabão com a vossa acrimônia! E o Diabo os tenha para todo
o sempre, mediocrões e ignorantaços! Não passais de reles preguiçosos a dormir no travesseiro de
498
Satanás.

Como se vê, apesar de ainda manter enlevo pela própria verve, cultivando o estilo e
a ironia, as imagens e as construções metafóricas, o autor não tinha mais paciência com as
rodas literárias, com a patota da literatura, com os círculos (infernais) da ―curriola dita
letrada‖.
Mais adiante, na mesma carta de março de 1996, vituperava ainda mais uma vez
contra os literatos:

Falei, Fernando, talvez até pelos cotovelos. Mas só completar para você o que eu entendo –
ou faço um desdobramento necessário, a meu ver – ao redor daquilo que v. chamou de carneirismo.
E, concordo, está difícil conviver com esse ambiente. Não sei até onde vai o obscurantismo atual e
começa uma gananciosa safadeza.
Machado neles. Lima neles. É preciso que o espírito desses dois negros volte e baixe. Com a
força estrondosa das arriadas de Ogum.
A dívida da chamada arte brasileira cresce diante do que vemos por aí.
Você sabe, e muito bem, que não me excluo da cambada de fariseus. Também eu tenho
dívidas com a realidade que já vi e não passei para o papel. Ninguém é perfeito, tenho muitas
dúvidas e miasmas. Muita vez, diante do meu texto, tenho a consciência de que estou perante uma
boa merda. Filho de quem sou, desconfio como meu pai – a idade faz velhos e não sábios. Mas me
recuso a viver num corre-corre pela própria promoção, a frequentar tudo quanto é festinha de coiós e
farsantes só pra ganhar notinha no jornal, a só me preocupar com o meu umbigo que, a bem dizer, é
499
uma das partes mais sujas do corpo.

De novo, a menção ao pai vem acompanhada de reflexões sobre sua própria escrita,
ainda que não se vincule diretamente a ela, pois a lembrança é de uma daquelas sentenças
paternas proverbiais, que lembram aforismas, ditos populares: ―A idade faz velhos e não
sábios‖. A asserção entretanto vem misturada a uma espécie de mea culpa sobre as
pretensas dívidas com a ―realidade‖ que, assim como a ―arte brasileira‖, ele diz também

498
Idem, ibidem, p. 165.
499
Idem, ibidem, pp. 167-168.
386

manter. Ele não se exclui da ―cambada de fariseus‖. E ainda assume que muitas vezes acha
o próprio texto uma ―boa merda‖.
Recorrer a uma das sentenças paternas permite, sob o manto da sapiência do pai,
reafirmar a culpa, expressar certa humildade e até menosprezo pela própria obra, mas tudo
isso para justificar sua ausência das rodas artísticas, seu apartamento dos círculos literários.
É de novo o pai atuando, na memória e na escrita de João Antônio, para a um só tempo
justificar, engrandecer e diminuir seus feitos literários.
Também naquela que possivelmente seja a última carta de João Antônio, há nova
referência a João Antônio Ferreira.

Copacabana, 10/10/1996 e não é novidade nenhuma dizer o quanto passa, arisco,


professor rápido, o tempo. Já ouvi isso em Hamburg e em outros lados do mundo.

Myltainho. Prezado.

Esse Grieg é um monstro da delicadeza com este ―Amanhecer‖ que vou ouvindo neste
horário de verão às quase oito da matina. Delicadeza e elegância. Com magia fina.
Espero que v. já esteja na ilha abençoada e que aí em Florianópolis estas o alcancem em paz
e contentamento, gozo de boa saúde e de apetites gerais. Fêmeas há, que sei.
Quanto à telefonia, eu a entrego a Deus. (Grieg é um monstro delicado.) Como deixei
gravado na sua secretária eletrônica em São Paulo, acabou-se a possibilidade de falar
telefonicamente com quem quer que seja após a chegada da secretária eletrônica.
Adorno teria razão com os seus sentimentos de horror diante das máquinas?
Rapaz, como o estive procurando aí em São Paulo no final da semana passada! É que meu
irmão Virgínio ajeitou, amorosamente, um churrasco no domingo que passou, 6/10, convidou
músicos. Barão, quase noventa anos, e mais Ascendino Theodoro Nogueira, o maestro, estiveram lá.
Mais um bandolim esperto na melodia. É por isso, Myltainho, que me cobro tanto. Rodou uma roda
de choro o dia todo. E seu Ascendino tocou valsas inesquecíveis no violino. Valsas do interior.
O Barão, figura lendária, acompanhou no violino. E havia um bandolim chamado Pacífico.
Que roda v. perdeu, Myltainho.
Agora, esse Grieg, já saiu da gruta do rei da montanha e vai no lamento de Ingrid, enquanto
sua dança árabe não vem.
Mas em Presidente Aluno, na casa que v. conhece e em que meu irmão Virgínio montou um
500
churrasco, amorosamente, o espírito de meu pai esteve presente. (...)

500
Carta de João Antônio a Mylton Severiano. In: SEVERIANO, M. Paixão de João Antônio. op.cit., pp. 28-29.
387

O churrasco na casa do irmão Virgínio reúne alguns músicos, que executam


composições ao bandolim e ao violino — choros, presume-se, ainda que o autor fale em
valsas. É por isso que o autor dirá que o espírito do pai esteve presente, pois o pai, como
sabemos, tocava bandolim, foi também chorão e possivelmente colega dos instrumentistas
presentes, Ascendino e Barão, além de Pacífico, que parece não ser da intimidade do autor.
Ao escrever para Myltainho, João Antônio relembra o churrasco recente, fala dos músicos,
de Grieg e, na sequência da carta, de Mozart, do amigo Maneco Müller, que lhe elogiou o
último livro, Dama do encantado, e de outros assuntos, como a miséria dos camelôs no
Largo de Pinheiros em São Paulo e a péssima distribuição de livros no Brasil, ―um país que
sofre de melancolia da escravidão e em que somos tratados como massa de manobra‖. E
termina de modo prosaico: pede que Myltainho, morando em Florianópolis, lhe compre
pijamas da marca catarinense Hering.
O espírito do pai, este fantasma paterno, cumpre de novo sua função inconsciente de
aguçar a sensibilidade artística do escritor e de infundir-lhe, mais uma vez, a culpa: ―É por
isso, Myltainho, que me cobro tanto‖, escreve ele ao amigo. O que cobra João Antônio de si
próprio? O fato de não ter seguido a carreira musical e sim a literatura? Mais uma vez, o
escritor não formula a culpa que sente e que vincula à figura paterna. Se a presença do pai,
quando o pai era vivo, era uma presença inibidora, o fantasma do pai, o espírito do pai
morto, continua a assombrar o escritor, até o fim.
João Antônio morreria alguns dias depois. Foi encontrado morto no apartamento da
praça Serzedelo Correia, em Copacabana, no dia 31 de outubro de 1996. Presume-se que
tenha morrido um dia depois de ali escrever esta última carta ao amigo Mylton Severiano.
As derradeiras cartas do autor divulgadas até aqui demonstram, assim, que João
Antônio, apesar da saúde debilitada que o levou finalmente à morte, mantinha, em seus
últimos meses uma vitalidade intelectual e uma inquietação — que beirava a indignação —,
bastante afiadas. A morte veio cedo e abreviou uma trajetória de escritor que ainda poderia
ter evoluído. Mesmo que a última década de vida de João Antônio tenha sido marcada por
reedições, as cartas permaneceram um espaço privilegiado de atividade e reflexão literárias,
inclusive sobre os temas que marcaram sua própria obra, para além do que registram suas
entrevistas, crônicas e reportagens, publicadas em vida. Para os que estudam e apreciam a
obra do autor, a extensa atividade de missivista do autor ainda reserva um campo de estudo
388

e análise promissor. E, como pretendemos mostrar neste trabalho, também a obra ficcional
e autobiográfica do autor permanecem desafiadoras e fonte de inspiração para a crítica.
As relações entre personagens e figuras paternas, narrador e protagonistas, autor e
mundo narrado, escritor e o pai, desdobram-se na obra de João Antônio, encenando
impasses e promessas de resolução, que anunciam ações e seus limites. Para a obra literária
do autor, essas contradições renderam a criação de um realismo singular, ancorado na
tradição literária e renovado, feroz e trágico, violento e lírico, de forma rematada mas
experimental, com impulsos latentes que esgarçam os limites do conto. Para a biografia do
escritor, as relações com o pai foram determinantes, até os últimos momentos. Além de
informarem sua literatura, também mantiveram acesas — na memória, nos fantasmas e na
fantasia imaginativa do autor — ambiguidades que o constituíram e que João Antônio
soube desafiar e ultrapassar, reinventando a si próprio, sem deixar de ser ele mesmo.
389

Bibliografia

BIBLIOGRAFIA DO AUTOR

ANTÔNIO, João. Malagueta Perus e Bacanaço. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
______. Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas. Cotia/SP: Ateliê
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Malagueta, Perus e Bacanaço, São Paulo, Ática, 1987.
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Paulo: Clube do Livro, 1987.
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______. Meninão do caixote. 2ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1984.
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Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro:
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390

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______. Malhação do Judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

BIBLIOGRAFIA SOBRE JOÃO ANTÔNIO

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de Males, no 19. Revista do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da
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Apêndice
400

LIVROS DE JOÃO ANTÔNIO E CONTOS QUE OS CONSTITUEM

MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO (1963)

Contos gerais
Busca
Afinação da Arte de Chutar Tampinhas
Fujie
Caserna
Retalhos de Fome numa Tarde de GC
Natal na Cafua
Sinuca
Frio
Visita
Meninão do Caixote
Malagueta, Perus e Bacanaço

LEÃO-DE-CHÁCARA (1975)

Três contos do Rio


Leão-de-chácara
Três Cunhadas – Natal de 1960
Joãozinho da Babilônia
Um conto da Boca do Lixo
Paulinho Perna Torta

MALHAÇÃO DO JUDAS CARIOCA (1975)

Problema
Mariazinha Tiro a Esmo
Galeria Alaska
Pingentes
Polícia
Carlinhos, o inconveniente
Conto-reportagem
Cais
Especial
Lapa acordada para morrer
Gente
40 Anos de Profissão – Paulo Gracindo
Costumes
Pequena História Matreira da Fila Carioca
Sinuca
401

Malhação do Judas carioca


Futebol
É uma revolução
Corpo-a-corpo com a vida

CASA DE LOUCOS (1976)

Protesto
Olá, Professor, há quanto Tempo!
Comportamento
55 anos de casados
Música Popular
Nelson Cavaquinho
Noel Rosa, poeta do Povo
Costumes
Merdunchos
As Virgens Blindadas do Footing
Futebol
Raul, meu Amor
Uma Banana para os Valentes
Gente
A Morte e as Vidas de Sérgio Milliet
Habitação
Testemunho de Cidade de Deus
Vida
A morte
Drama
Casa de Loucos

CALVÁRIO E PORRES DO PINGENTE AFONSO HENRIQUES DE LIMA


BARRETO (1977)

LAMBÕES DE CAÇAROLA (1977)

Ô, COPACABANA (1978, 2001)


Ô, Copacabana
Viva o Bicho
Carioca da Gema
(os dois último contos publicados apenas na reedição de 2001)

DEDO-DURO (1982, 2003)


Tony Roy Show
Dois Raimundos, um Lourival
Milagre Chué
Excelentíssimo
Uma Memória Imodesta no Coração da Pouca Vergonha
402

Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha


Dedo-Duro
Bruaca

MENINÃO DO CAIXOTE (1983)

Frio
Lambões de Caçarola (Trabalhadores do Brasil!)
Bolo na Garganta
Meninão do Caixote

10 CONTOS ESCOLHIDOS (1983)

Afinação da Arte de Chutar Tampinhas


Fujie
Retalhos de Fome numa Tarde de GC
Natal na Cafua
Leão-de-chácara
Joãozinho da Babilônia
Tony Roy Show
Milagre Chué
Dedo-Duro
Bruaca

ABRAÇADO AO MEU RANCOR (1986)

Guardador
Maria de Jesus de Souza (Perfume de Gardênia)
Publicitário do Ano
Televisão
Abraçado ao meu Rancor
Sufoco
Uma força
Eguns
Amsterdam, Ai
Tatiana Pequena

OS MELHORES CONTOS (1986)

Bolo na Garganta
Frio
Dois Raimundos, um Lourival
Três Cunhadas – Natal de 1960
As Virgens Blindadas do Footing
403

Mariazinha Tiro a Esmo


Olá, Professor, há quanto Tempo!
Testemunho de Cidade de Deus
Merdunchos
A Lapa Acordada para Morrer
Visita
Paulinho Perna Torta
Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha

ZICARTOLA (1991)

No Morro da Geada
Feira
Santas Teresas
Zicartola
Querida Praça Quinze XV
E que Tudo mais Vá para o Inferno!
Vibrações, Poeiras e Pulgueiros

GUARDADOR (1992)

Tatiana Pequena
Retalhos de Fome numa Tarde de GC
Guardador
Joubert – Maringá
Tuareg
Morre o Valete de Copos
É uma Revolução

PAULINHO PERNA TORTA (1993)

UM HERÓI SEM PARADEIRO: VIDÃO E AGITOS DE JACARANDÁ, POETA DO


MOMENTO (1993)

AFINAÇÃO DA ARTE DE CHUTAR TAMPINHAS (1993)

PATULÉIA (1996)

Milagre Chué
Sufoco
Malhação do Judas Carioca
Meninão do CAixote
Fujie
Televisão
404

Natal na Cafua
Afinação da Arte de Chutar Tampinhas
Paulinho Perna Torta

SETE VEZES RUA (1996)

Milagre Chué
Flagrante Pequeno da Miniguerra do Metrô
Mariazinha Tiro a Esmo
Busca
Dois Raimundos, um Lourival
Mendigos e Mafueiros
Morro da Conceição

DAMA DO ENCANTADO (1996)

Meus tempos de Menino


Fera
Almas da Galera
Garrincha Impossível
Pingentes
Antes que o Poeta Fizesse Oitenta anos
Leão de Juba Grande
Joubert – Maringá
Dalton Exporta a Lua Pálida dos Vampiros
Encantador e Lúcido João do Rio
Romancista com Alma de Bandido Tímido
Ajuda-me a Sofrer
Dama do Encantado
Capa de Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!). Porto Alegre: L&PM: 1977.
Páginas internas de Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!).
O sumário da primeira edição de Dedo-duro (1982) não distingue os contos do autor do
texto “Duas palavras”, prefácio de Paulo Rónai, e não inclui a “Apresentação”, texto de
Jorge Amado que vem imediatamente antes do texto de Rónai.
Além disso, a seção “Uma memória imodesta no coração da pouca vergonha” parece
se referir aos três últimos contos, mas é possível (como sustentamos no capítulo 1) que
diga respeito apenas ao conto “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha”.
Reprodução da página do jornal Última Hora com a publicação do conto “Natal na cafua”,
em 8 jan. 1959.
Fonte: Acervo João Antônio, Cedap, Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis.
“Índios”, um dos primeiros contos do autor, foi publicado no Suplemento Literário de
O Estado de S. Paulo em 6 fev. 1960. Fonte: Acervo on-line do jornal.
Renomeado para “Bolo na garganta”, foi publicado em Meninão do Caixote (1983).
O conto “Conluio na Água Branca” (Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, 14 jul.
1962), depois incluído na versão final de Malagueta Perus e Bacanaço (1963).
Fonte: Acervo on-line do jornal.
Os protagonistas já têm seus nomes definitivos. Curiosamente, no final do mesmo ano o
autor publicaria outra parte do conto, no mesmo jornal, com outros nomes para os protago-
nistas. Ver a reprodução na página seguinte.
O conto “Um velho e um cachorro” (Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo,
17 nov. 1962), depois incluído na versão final de Malagueta Perus e Bacanaço (1963).
Fonte: Acervo on-line do jornal.
Aqui, os protagonistas se chamam Pirolito, Luisinho e Lascado, depois renomeados para
Malagueta, Perus e Bacanaço.
Página do datiloscrito de “Paulinho Perna Torta”. O trecho reproduzido acima, do final do
conto, traz um adendo manuscrito (colado no centro da página) que foi de fato aproveitado
na composição final do conto. Fonte: Acervo João Antônio, Cedap, Unesp de Assis.
O trecho manuscrito confirma que há um erro na última edição em livro do conto (como indi-
cado no capítulo 4). Na página a seguir, o trecho em destaque.
Trecho do conto “Paulinho Perna Torta”, em detalhe do trecho do manuscrito do autor.
Esta reprodução e o cotejo com edições anteriores do conto comprovam que a palavra correta
é “quanto” e não “quando” na frase: “E como percebo, de repente, quanto estou sozinho!”.
Fonte: Acervo João Antônio, Cedap, Unesp de Assis.
Cópia de carta escrita por João Antônio por ocasião da morte de seu pai, João Antônio
Ferreira, ocorrida em 13 fev. 1988, como indica o texto.
Fonte: Acervo João Antônio, Cedap, Unesp de Assis.

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