Suzanne de Brunhoff A Hora Do Mercado

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Ensaios FEE, Porto Alegre, 8(2):143-l51, 1987

SUZANNE DE BRUNHOFF:
A HORA DO MERCADO*
Gentil Corazza e Áurea Breitbach'

O presente texto constitui-se numa resenha comentada sobre o últiriió hvro de


Suzanne de Brunhoff,pubhcado na França com o título LTieure du Marche: Critique
du Libéralisme ( 1 9 8 6 ) ' . A importância desse trabalho reside justamente na oportu-
nidade do tema abordado: a retomada das idéias liberais, o significado desse retorno
e a sua crítica.
A autora é professora da Universidade de Nanterre e pesquisadora do Centre
National de Recherches Scientifiques (CNRS), dedicando-se particularmente a estu-
dos na área de moeda, capital financeiro e política monetária, como se pode obser-
var pelos títulos de seus livros publicados na França: Capitalisme Financier Public
(1965); La Monnaie chez Marx (1967); L'offre de Moimaie: Critique d'unConcept
(1971); La PolitiqueMonétaire:un Essai D'interpretation Marxiste (1973), em cola-
boração com P. Bruini; État et Capital (1976); Les Rapports D'argent(1979).^
Suzanne de Brunhoff adota os conceitos e os princípios metodológicos da tra-
dição marxista, dando continuidade, de certa forma, ao pensamento de Hilferding.
Seu enfoque fundamental reside em abordar a questão da moeda a partir do movi-
mento da acumulação de capital. Isso implica dizer que a moeda não é concebida
como um elemento externo à economia, mesmo que possa, por vezes, ser a ela adi-
tado de modo simples. Mas, ao contrário, o comportamento do capital financeiro

*As citações da obra original foram traduzidas pelos autores.


** Economistas da FEE.
' BRUNHOFF, Suzanne(1986). LTieure du marche: critique du libéralisme. Paris, Presses
Universitaires de France. 154p.
A segunda, a quarta e a quinta obras encontram-se no Brasil, respectivamente, sob os seguin-
tes títulos:
BRUNHOFF, Suzanne (1978). A moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
(1978). A política monetária: um ensaio de interpretação marxista. Rio de Janeiro,
Paz e Terra.
(1985). Estado e Capital: uma análise da política econômica. São Paulo, Forense-Uni-
versitária.
como um todo está originalmente imbricado ao chamado capital produtivo, sendo
nada mais do que uma forma de manifestação do capital como relação social,
A peculiaridade da autora, dentre os pensadores atuais de formação marxis-
ta, reside no fato de que ela sabe ser contemporânea, ou seja, procura analisar a rea-
hdade do capitalismo de hoje à luz das idéias de Marx sem, entretanto, abandonar
a ousadia da criatividade, A par disso, não se percebe em Brunhoff o temor de assi-
milar contribuições de autores tão diversos como Keynes e Kalecki por exemplo.
Essas características, sem dúvida admiráveis, fizeram com que nosso interesse
se voltasse para a leitura de seu último livro, o qual tem como tema central, como já
foi referido anteriormente, a crítica às idéias liberais ora em ascenso novamente.
No primeiro capítulo,Suzanne de Brunhoff discute a idéia da regulação eco-
nômica pe!p livre-mercado que, a partir do final dos anos 70, substituiu as idéias
keynesianas. Para a autora, o argumento liberal de que o funcionamento do merca-
do é uma garantia contra as crises não tem fundamento na realidade.
No segundo capítulo, trata da crise do Estado-Providência a partir da crítica
que lhe é dirigida pelos novos liberais. A autora mostra que os liberais acusam o Es-
tado de manter excessivos gastos sociais, o que, além de proteger demasiadamente a
classe trabalhadora, leva a que o Estado deixe de prover as adequadas condições de
reprodução do capital.
No terceiro capítulo, Brunhoff faz uma crítica à concepção de moeda dos li-
berais que a consideram apenas como meio de circulação das mercadorias, como um
elemento acessório às forças do mercado. Em contrapartida, a autora apresenta a
sua concepção de moeda como uma mercadoria especial, que é parte integrante e es-
sencial do modo de produção capitalista,
No quarto capítulo, encontra-se uma discussão sobre a natureza do capital
financeiro, o papel do crédito e sua relação com a taxa de juros, onde a autora
mostra a importância do capital-dinheiro, que abre e fecha o circuito da produção
capitalista.
O quinto e último capítulo é dedicado ao exame da política econômica pro-
posta pelos novos liberais, na qual o Estado deve agir de forma exterior ao mercado.
Trata-se de uma política restritiva para gerir a crise e retomar o crescimento das
taxas de lucro.
Como se pode depreender dessa rápida síntese dos conteúdos de cada capítu-
lo do livro de Brunhoff, o tema principal é discutido com ênfase em dois aspectos.
O primeiro leva em conta a situação atual do capitalismo a nível intemacional, ana-
lisando a realidade histórica com o objetivo de apontar o contexto em que se dá a
retomada do ideário liberal. Esse ponto encontra-se discutido principalmente nos
Capítulos I, II e V. O segundo aspecto enfatiza o debate teórico, onde a autora dis-
cute os conteúdos da tradição ortodoxa da regulação pelo mercado, demonstrando
ser ela incapaz de apreender as leis de movimento do capitalismo. Trata-se de uma
abordagem a nível de teoria econômica, que é levada a efeito basicamente nos Ca-
pítulos I I I e IV. Essa divisão de ênfases em relação ao tema principal do livro não
imphca, entretanto, concebê-lo partido em dois, mas foi utihzada unicamente com
o intuito de agilizar o ritmo da exposição. A seguir, trataremos de comentar os pon-
tos principais que se podem identificar no decorrer do livro. Começaremos com os
aspectos de ordem histórica.
A retomada do ideário hberal, que se dá a partir do final da década de 70, ori-
gina-se da crise em que se encontraram os países capitalistas da Europa e Estados
Unidos, e que, é claro, trouxe reflexos para os demais. Para os novos liberais, como
para os antigos, a crise econômica tem sua causa num excesso de intervenção gover-
namental, que se efetivou durante um longo período de domínio das idéias keyne-
sianas. As novas correntes liberais tentam ressuscitar velhas idéias que defendem um
mercado livre de quaisquer entraves por parte do Estado ou dos sindicatos como
mecanismo regulador da economia e gerador do bem-estar social. A solução propos-
ta é simples: menos Estado e mais mercado.
No entanto um mercado puro nunca existiu, nem tem qualquer possibilidade
de existir. A concepção de mercado que se pode ter a partir de uma análise do fun-
cionamento da economia capitalista é muito diferente da idéia que a corrente da re-
gulação pelo mercado propõe. Nas palavras de Brunhoff, "(. . .) o papel econômico
real dos mercados, como lugar de circulação do capital, é confundido com a sua ca-
racterística de regulador da atividade econômica" (p.l43). Ora, nesse contexto, os
argumentos de Keynes contra o dogma dozyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLK
Mssez-faire dos anos 30 são extremamen-
te atuais: o laissez-faire, no período em que mais esteve em voga, não se sustentou
por si mesmo, mas devido à situação histórica específica, qual seja, a dominação fi-
nanceira da Inglaterra que dava suporte ao regime monetário do padrão-ouro, aliada
à ausência de uma organização sindical poderosa para garantir o nível do salário
real. A rigor, não se pode falar de liberalismo puro nem mesmo nesse período.
No período que se segue à Segunda Guerra Mundial até meados dos anos
60 ~ chamado período keynesiano a intervenção do Estado revestiu-se de um cará-
ter de legitimidade, pois suas políticas contribuíram para sustentar o crescimento
das economias capitahstas e garantir algumas conquistas sociais dos trabalhadores.
Sem dúvida, esse período representou uma mudança ideológica considerável em re-
lação à atividade econômica estatal. O Estado deixou de ser um parasita, que entra-
vava a iniciativa individual e a liberdade do mercado, para se transformar num agen-
te econômico particular, cujas atividades permeiam toda a economia.
A crise econômica atual, que afeta profundamente as economias capitahstas,
parece questionar a legitimidade das políticas keynesianas, uma vez que as novas
correntes hberais identificam a crise do "Wellfare State" como a causa da crise eco-
nômica. Ora, atribuir toda a responsabihdade da crise ao Estado, este como elemen-
to externo à economia, é mais uma demonstração da impossibihdade das teorias li-
berais de pensar a crise como algo inerente ao sistema capitalista. Efetivamente, há
estudos de longo prazo que comprovam uma queda da lucratividade do capital na
economia norte-americana desde meados da década de 60. Deve-se mencionar, ao
mesmo tempo, que essa queda de rentabihdade não foi provocada pela alta dos sa-
lários nos Estados Unidos, pois, no mesmo período, eles também caíram. No entan-
to, mesmo não sendo responsável pela crise, a redução dos salários é apontada co-
mo uma solução para a mesma.
Brunhoff demonstra que a concepção do livre mercado não pode entender teo-
ricamente a crise porquezyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDC
é incapaz de compreender a natureza de duas mercadorias
especiais da economia capitalista: a força de trabalho e a moeda. Em suas palavras:
"(. . . ) a idéia de uma ordem econômica que repousa sobre a auto-regu-
lação dos mercados impede que se pense a crise como um aspecto do
funcionamento da economia. Pois a economia [para os liberais] é apenas
mercado" (p.46).
As novas correntes liberais dirigem sua crítica a dois pontos fundamentais que
são o corporativismo das organizações sindicais e o chamado Estado-Providência.
Tal crítica pretende atingir e questionar direitos sociais adquiridos através de lutas
históricas das classes trabalhadoras organizadas em sindicatos: serviços de saiide,
pensões, seguro-desemprego, despesas com educação, etc. O que são questionados,
no fundo, são o próprio Estado-Providência e o direito de os trabalhadores se orga-
nizarem com o objetivo de defender seus interesses, sob o argumento de que tanto o
Estado como o corporativismo sindical criam e mantêm "rendas de situação", "fal-
sos direitos" que, além de não beneficiarem todos os trabalhadores, impedem a efi-
ciência econômica pelo livre funcionamento do mercado.
O Estado-Providência — que hoje é questionado intemamente por causa da
deterioração dos serviços que presta à população e externamente em relação à sua
legitimidade e eficiência — foi forjado no final do século X I X como resposta às rei-
vindicações socialistas do movimento operário que denunciavam as péssimas condi-
ções de vida dos trabalhadores. A origem do Estado-Providência é, pois, historica-
mente anterior às idéias intervencionistas de Keynes.^ Entretanto é inegável que es-
sas medidas sociais encontraram legitimação, a nível de teoria econômica, a partir
das posições de Keynes em favor das despesas públicas.
O Estado-Providência sofre o peso da crise econômica dos anos 70. Para a
ortodoxia liberal, a crise financeira do Estado-Providência não é conseqüência, mas
causa da crise econômica. O déficit estatal é, em si mesmo, fonte de desequilíbrio
e, como tal, causa dos distúrbios econômicos.
No entanto, ao contrário do que diz o diagnóstico conservador, o déficit do
Estado-Providência é conseqüência da crise econômica por um motivo muito sim-
ples: com a crise, ao mesmo tempo em que aumentam o desemprego e a necessida-
de de assistência, diminuem as contribuições sociais. Ou seja, o sistema de proteção
social se enfraquece justamente no momento em que se torna mais necessário. A or-
todoxia conservadora, no entanto, atribui a crise a um acréscimo de gastos do Esta-
do, o que imphca um excesso de moeda, causa da inflação. Por isso, ela não tolera
déficits e prega a redução das despesas públicas a u m mínimo.
As críticas que as novas correntes liberais fazem às organizações sindicais por

^ O reformismo conservador caminhou à frente das reivindicações operárias com o sentido de


abafar o aspecto contestatório destas. Teria sido Bismark, nos anos de 1880, o primeiro a
colocar as políticas sociais como um objetivo do Estado, ao mesmo tempo em que intensifi-
cava a repressão ao Partido Social Democrata Alemão.
defenderem suas conquistas sociais, sob o argumento de práticas de corporativismo,
visam, na realidade, atingir toda a organização dos trabalhadores em si mesma e não
apenas algumas de suas atividades. Esses críticos, ao questionarem as desigualdades
no interior das classes trabalhadoras, certamente não são movidos por uma preo-
cupação de igualdade social, mas, sim, pelo objetivo de recuperar a rentabilidade do
capital a custo de uma redução ainda maior do nível de vida de amplas camadas da
população. Essa pretensa homogeneidade da pobreza dos trabalhadores não tem
fundamento na realidade do funcionamento da economia capitalista. A concentra-
ção do capital leva a uma diferenciação do mercado de trabalho. O desemprego é,
certamente, um fenômeno desigualitário. O corporativismo explica-se como urna
das formas assumidas pela concorrência entre os trabalhadores em período de crise,
na impossibilidade de uma solução coletiva de classe perante a mesma.
A denúncia conservadora dirigida ao Estado-Providência e aos sindicatos tem
o intuito real de provocar o fim da proteção social por ambos exercida, Para os no-
vos hberais, interessa que haja trabalhadores desprotegidos, livres para se oferece-
rem no mercado em situação de igualdade com as demais mercadorias. Na verdade,
a ideologia sedutora de uma liberalização individual e social da tutela estatal enco-
bre uma forma de opressão muito mais brutal: a de um mercado "livre", onde tra-
balhadores e capitalistas se defrontam em situações inequivocamente desiguais.
Nesse contexto geral, resta aos novos liberais proporem uma política econô-
mica nitidamente restritiva e radicalmente oposta à política keynesiana, uma vez
que, para eles, a gestão da crise e a retomada do crescimento da lucratividade dos
empreendimentos privados não passam pela questão da manutenção do emprego e
dos níveis de salário.
No entanto é interessante observar que, tanto pelos novos liberais como pelos
keynesianos, a intervenção do Estado é vista como a atividade de um sujeito políti-
co externo à economia de mercado, o que pode ser nefasto ou benéfico. Porém a
natureza do Estado provém de uma mesma lógica, a qual torna inintehgíveis as for-
mas políticas que assumem a concorrência no mercado mundial, os afrontamentos
e compromissos entre Estados, etc.
Assim, sob o ponto de vista da acumulação de capital como o móvel da eco-
nomia capitalista, salienta a autora que o Estado pode ser concebido como um agen-
te inserido, de forma pecuhar, nesse processo, e não alheio a ele, o que, sem dúvida,
contribui com maior substância para a análise.
O livro de Brunhoff comporta, também, toda uma crítica a nível de teoria
econômica, onde a autora contrapõe seus argumentos àqueles da economia de mer-
cado. Em sua opinião, é necessário compreender o funcionamento do capital finan-
ceiro, da moeda e do crédito para se chegar a uma noção mais exata do funciona-
mento do capitalismo, coisa que o ideário do livre-mercado não faz por limitações
teóricas inerentes a seu atrelamento político-ideológico às classes hegemônicas. Para
Brunhoff, é importante a inserção de novas categorias de análise para demonstrar
que a crise — que é atribuída pelos novos liberais a um desequililjrio provocado pela
atuação do Estado - é fruto de contradições inerentes ao movimento de reprodu-
ção do capital em seu conjunto.
Assim, a autora prossegue analisando o papel do crédito e a natureza do capi-
tal financeiro, partindo da crítica à noção ortodoxa, resgatando as contribuições de
Marx e Hilferding e discutindo as relações do crédito com a taxa de juros.
Em primeiro lugar, é necessário esclarecer que Brunhoff considera a moeda
como um elemento inscrito no funcionamento do modo de produção capitalista e
não adicionado de fora. Dessa forma, crédito — que é considerado como emprésti-
mo destinado ao financiamento da produção capitalista — supõe a existência da
moeda como padrão de preços e meio de pagamento. Entretanto o crédito não se
origina da moeda, mas, sim, de "(. • •) uma relação econômica particular que é im-
bricada na circulação do capital e afeta as modalidades da acumulação" (p. 125).
O exame dos princípios da concepção ortodoxa aponta o fato de que, esta-
belecendo uma cisão conceituai entre o "capital real" e o "capital financeiro", os
autores enquadrados nessa concepção enfatizam a importância do primeiro, con-
cebendo o segundo como "capital fictício". Consideram que existe uma taxa de ju-
ro "real" que se refere a um mercado de capitalzyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONM
in natura, ou seja, a ativos físicos
e títulos (mercado de capitais). Em contrapartida, a taxa de juros bancários é con-
siderada como um preço fictício, pois é fixada fora de um verdadeiro mercado, vin-
do a representar um desequilíbrio em relação a este. "Isso implica que os agentes
econômicos privados dispõem livremente de seus recursos, não sendo pressionados
pelo sistema bancário, este se apresentando exterior à economia" (p.l28).
Segundo a autora, essa concepção — que separa nitidamente a esfera produti-
va da esfera financeira — não pode dar conta da tarefa de precisar a natureza do cré-
dito como empréstimo de dinheiro, tendo sido já questionada por Keynes e Kalecki,
os quais demonstraram como o investimento gera a poupança necessária a seu pró-
prio financiamento. Assim, a taxa de juros não é o preço de equilíbrio da demanda
e da oferta de capital, mas, em última instância, tem a função de contribuir para a
preservação da propriedade privada do capital, cujas fronteiras são diluídas graças
à circulação do crédito.
Para Brunhoff, a grande fraqueza lógica da análise ortodoxa deve-se ao fato de
a mesma ser praticamente reduzida a uma concepção quantitativa. Nesse ponto, ela
faz referência a uma crítica de Keynes a Marshall, segundo a qual o ponto fraco de
Marshall seria ter utilizado o conceito de juros, que faz parte de uma economia mo-
netária, dentro dê um conjunto de idéias que não leva em conta a moeda.
Uma vez constatada a insuficiência da concepção ortodoxa, a autora passa a
examinar a questão fazendo uso das categorias marxistas. Ressalta ela que
"(. ..) o capital não é uma coisa ou um conjunto de objetos, mesmo
quando ele aparece sob uma forma material. Ele é fundamentalmente
uma relação de produção entre capitahstas e assalariados ( . . .). Esta re-
lação social constitui a unidade da noção de capital, através das diversas
formas da produção e da circulação" (p.l 29).
O "capital-dinheiro" deve ser relacionado à dinâmica da produção do lucro. Tanto
o "capital real" como o "capital-dinheiro" se articulam no circuito do capital, sen-
do que o segundo abre e fecha o circuito. É o "capital-dinheiro" que permite a aqui-
sição dos equipamentos e da mão-de-obra necessários para dar início ao processo.
A soma de dinheiro que dá início ao processo produtivo pode provir de um
autofinanciamento do empresário, como também pode ser fruto de um empréstimo
que o capitalista industrial faz junto ao capitalista financeiro. Neste último caso,
uma parte do lucro do empresário é destinada ao capitalista financeiro, sob a forma
de juros. Donde se conclui, portanto, que os juros e os lucros têm a mesma origem,
que é a mais-valia ou trabalho excedente Da mesma maneira, o capitalista industrial
e o capitahsta financeiro pertencem à classe de proprietários de meios de produção,
embora essa origem comum não suprima a diferença de seus papéis. Tanto é assim
que o nível da taxa de juros é resultado da relação de forças entre tomadores e em-
prestadores que se enfrentam num mercado particular de capital de crédito. A dife-
rença entre os dois capitalistas acompanha a diferença de forma que assume o capi-
tal quando aparece como capital-dinheiro e como capital físico. Quanto à essência,
tomemos as palavras de Brunhoff: "(• • ) assim como não há mercadoria sem moe-
da, não há capital produtivo sem capital-dinheiro, nem capital industrial sem capi-
tal financeiro" (p.l31). O "capital fictício" aparece desconectado da valorização do
capital, dando a idéia de um circulação financeira relativamente autônoma com res-
peito às mercadorias e ao processo de produção. Entretanto o "capital fictício" não
é oposto ao "capital real", mas é em si mesmo uma reahdade composta segundo a
relação mais ou menos próxima que ele mantenha com o circuito produtivo. Assim,
é preciso fazer distinção entre o "capital fictício" e a circulação financeira de títu-
los de propriedade que representam o capital e dão direito a uma parte da mais-va-
lia. Os títulos de propriedade podem ter um valor fictício, na medida em que seus
preços variam em decorrência de flutuações na bolsa e de alterações na conjuntura
econômica, sem, entretanto, deixar de refletir os movimentos da acumulação capi-
tahsta.
É em decorrência disso que Marx define as funções do "capital financeiro" re-
lacionado às operações de crédito. Identificam-se dois aspectos do mercado de ações
que, embora complementares, podem apresentar oposição entre si: de um lado, h á a
função "necessária" que consiste na coleta e repartição de fundos para financiar os
investimentos; e,de outro, tem-se a função "parasitária" que se refere ao fato de o
capital comportar-se de maneira relativamente independente do financiamento dos
investimentos produtivos. Essa segunda função reflete a liberdade de manobra do
capital-dinheiro em relação a riscos julgados excessivos ou a ameaças de expropria-
ção, traduzindo-se na especulação (que determina os preços dos ativos no mercado
financeiro). Nas palavras de Brunhoff: "A única expropriação tolerada pelos deten-
tores do dinheiro é a que resulta do próprio jogo do mercado financeiro, quando se
produz uma absorção do capital pelo capital" (p.l34).
E interessante a forma como a autora demonstra a fragilidade da concepção
ortodoxa no que respeita ao funcionamento do mercado financeiro. Em períodos
de crise econômica, aumenta a concentração financeira (sob a forma de fusões, ab-
sorções, e t c ) , o que é visto, pela ótica ortodoxa, como simples realocação do capi-
tal de acordo com as necessidades da economia. A par disso, constata-se que o fun-
cionamento efetivo do mercado é dominado, permanentemente, por "investidores
institucionais" e grandes grupos industriais. A concepção ortodoxa, entretanto.
quando considera os efeitos dessa dominação, o faz como se fossem uma simples
imperfeição do mercado. Quanto à expropriação, pelo jogo do mercado financeiro,
esta aparece como uma sanção econômica normal. . . A concepção ortodoxa, con-
clui Brunhoff,
"(. . . ) é incapaz de apreender a relação entre o funcionamento do mer-
cado e as estruturas do capital. Por outro lado, a noção marxista de ca-
pital financeiro permite efetuar a análise das relações entre o capital
produtivo e o sistema de crédito, uma vez que ela leva em conta as par-
ticularidades do capital-dinheiro" (p.l35).
A despeito das formas diversas de manifestação da taxa de juros — taxa do sis-
tema bancário (controlada pelo Banco Central) e taxa de juros não bancária (merca-
do de títulos) —, ela deve ser compreendida como categoria única. Já vimos que,
sob o ponto de vista da origem, ela é derivada do lucro capitalista; porém há que se
reconhecer a diversidade de suas manifestações.
Entre as duas manifestações da taxa de juros, há uma relação de mercado.
Quando a taxa bancária é elevada, os financistas sãO incitados a aumentar o preço
do crédito. Pode-se então falar de taxa de juros como se houvesse um mercado fi-
nanceiro único. Longe de ser auto-regulado, ele funciona de maneira tal que a cen-
tralização operada pelo sistema bancário atua em conjunto com as operações finan-
ceiras privadas, descentralizadas. Entretanto essa unificação é seguidamente confun-
dida com a unidade sob a égide da taxa de juro monetária que seria imposta pela in-
tervenção do Banco Central.
A distribuição entre o lucro da empresa e a taxa de juros baseia-se nas modali-
dades da distribuição do "capital-dinheiro" entre capitalistas emprestadores de fun-
dos (financistas) e tomadores (industriais). Sem a unidade do "capital-dinheiro" e a
diversidade da propriedade de fundos não é possível compreender a relação entre o
lucro e o juro.
Com isso, a autora demonstra a fragilidade dos princípios teóricos do libera-
lismo ora em ascensão, uma vez que eles não contemplam aspectos essenciais do
funcionamento do capitahsmo, e, portanto, suas explicações da crise resultam incon-
sistentes, bem como enganadoras são suas soluções propostas.
O dogma do mercado livre, regulador da economia e promotor do bem-estar
social, moribundo e desacreditado nas últimas décadas, renasce agora com nova for-
ça para investir contra a classe trabalhadora, contra suas organizações e seus direitos
duramente conquistados ao longo de sua história. Investe, também, contra o Esta-
do-Providência e suas políticas sociais, a pretexto de uma enganadora liberalização
mdividual e social. Essa ideologia da liberdade não tem outro objetivo que garantir
os interesses do capital financeiro internacional. As políticas de austeridade condu-
zidas pelos governos conservadores, como os de Reagan e Thatcher dentre outros,
exigem em contrapartida um custo social sumamente elevado para serem aceitas em
silêncio.
Nesse sentido, A Hora do Mercado, de Suzanne de Brunhoff, chega no mo-
mento certo, com a lucidez de sua análise histórica e o peso de seus argumentos ló-
gicos para o esclarecimento das insuficiências teóricas e o desvelamento das falácias
do novo e do veliio liberalismo.
Resta a expectativa de que esse novo livro da autora, já bem conhecida no Bra-
sil, tenha sua tradução levada a cabo, de modo a viabilizar o acesso a seu conteúdo
dentro do mais breve período de tempo possível.

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