A Hora Do Mercado

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Ensaios FEE, Porto Alegre, 8(2):143-l51,

1987

SUZANNE DE BRUNHOFF:
A HORA DO MERCADO*
Gentil Corazza e urea

Breitbach'

O presente texto constitui-se numa resenha comentada sobre o ltirii hvro de


Suzanne de Brunhoff,pubhcado na Frana com o ttulo LTieure du Marche: Critique
du Libralisme ( 1 9 8 6 ) ' . A importncia desse trabalho reside justamente na oportunidade do tema abordado: a retomada das idias liberais, o significado desse retorno
e a sua crtica.
A autora professora da Universidade de Nanterre e pesquisadora do Centre
National de Recherches Scientifiques (CNRS), dedicando-se particularmente a estudos na rea de moeda, capital financeiro e poltica monetria, como se pode observar pelos ttulos de seus livros publicados na Frana: Capitalisme Financier Public
(1965); La Monnaie chez Marx (1967); L'offre de Moimaie: Critique d'unConcept
(1971); La PolitiqueMontaire:un Essai D'interpretation Marxiste (1973), em colaborao com P. Bruini; tat et Capital (1976); Les Rapports D'argent(1979).^
Suzanne de Brunhoff adota os conceitos e os princpios metodolgicos da tradio marxista, dando continuidade, de certa forma, ao pensamento de Hilferding.
Seu enfoque fundamental reside em abordar a questo da moeda a partir do movimento da acumulao de capital. Isso implica dizer que a moeda no concebida
como um elemento externo economia, mesmo que possa, por vezes, ser a ela aditado de modo simples. Mas, ao contrrio, o comportamento do capital financeiro

*As citaes da obra original foram traduzidas pelos autores.


** Economistas da FEE.
' BRUNHOFF, Suzanne(1986). LTieure du marche: critique du libralisme. Paris, Presses
Universitaires de France. 154p.
A segunda, a quarta e a quinta obras encontram-se no Brasil, respectivamente, sob os seguintes ttulos:
BRUNHOFF, Suzanne (1978). A moeda em Marx. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
(1978). A poltica monetria: um ensaio de interpretao marxista. Rio de Janeiro,
Paz e Terra.
(1985). Estado e Capital: uma anlise da poltica econmica. So Paulo, Forense-Universitria.

como um todo est originalmente imbricado ao chamado capital produtivo, sendo


nada mais do que uma forma de manifestao do capital como relao social,
A peculiaridade da autora, dentre os pensadores atuais de formao marxista, reside no fato de que ela sabe ser contempornea, ou seja, procura analisar a reahdade do capitalismo de hoje luz das idias de Marx sem, entretanto, abandonar
a ousadia da criatividade, A par disso, no se percebe em Brunhoff o temor de assimilar contribuies de autores to diversos como Keynes e Kalecki por exemplo.
Essas caractersticas, sem dvida admirveis, fizeram com que nosso interesse
se voltasse para a leitura de seu ltimo livro, o qual tem como tema central, como j
foi referido anteriormente, a crtica s idias liberais ora em ascenso novamente.
No primeiro captulo,Suzanne de Brunhoff discute a idia da regulao econmica pe!p livre-mercado que, a partir do final dos anos 70, substituiu as idias
keynesianas. Para a autora, o argumento liberal de que o funcionamento do mercado uma garantia contra as crises no tem fundamento na realidade.
No segundo captulo, trata da crise do Estado-Providncia a partir da crtica
que lhe dirigida pelos novos liberais. A autora mostra que os liberais acusam o Estado de manter excessivos gastos sociais, o que, alm de proteger demasiadamente a
classe trabalhadora, leva a que o Estado deixe de prover as adequadas condies de
reproduo do capital.
No terceiro captulo, Brunhoff faz uma crtica concepo de moeda dos liberais que a consideram apenas como meio de circulao das mercadorias, como um
elemento acessrio s foras do mercado. Em contrapartida, a autora apresenta a
sua concepo de moeda como uma mercadoria especial, que parte integrante e essencial do modo de produo capitalista,
No quarto captulo, encontra-se uma discusso sobre a natureza do capital
financeiro, o papel do crdito e sua relao com a taxa de juros, onde a autora
mostra a importncia do capital-dinheiro, que abre e fecha o circuito da produo
capitalista.
O quinto e ltimo captulo dedicado ao exame da poltica econmica proposta pelos novos liberais, na qual o Estado deve agir de forma exterior ao mercado.
Trata-se de uma poltica restritiva para gerir a crise e retomar o crescimento das
taxas de lucro.
Como se pode depreender dessa rpida sntese dos contedos de cada captulo do livro de Brunhoff, o tema principal discutido com nfase em dois aspectos.
O primeiro leva em conta a situao atual do capitalismo a nvel intemacional, analisando a realidade histrica com o objetivo de apontar o contexto em que se d a
retomada do iderio liberal. Esse ponto encontra-se discutido principalmente nos
Captulos I, II e V. O segundo aspecto enfatiza o debate terico, onde a autora discute os contedos da tradio ortodoxa da regulao pelo mercado, demonstrando
ser ela incapaz de apreender as leis de movimento do capitalismo. Trata-se de uma
abordagem a nvel de teoria econmica, que levada a efeito basicamente nos Captulos I I I e IV. Essa diviso de nfases em relao ao tema principal do livro no
imphca, entretanto, conceb-lo partido em dois, mas foi utihzada unicamente com
o intuito de agilizar o ritmo da exposio. A seguir, trataremos de comentar os pon-

tos principais que se podem identificar no decorrer do livro. Comearemos com os


aspectos de ordem histrica.
A retomada do iderio hberal, que se d a partir do final da dcada de 70, origina-se da crise em que se encontraram os pases capitalistas da Europa e Estados
Unidos, e que, claro, trouxe reflexos para os demais. Para os novos liberais, como
para os antigos, a crise econmica tem sua causa num excesso de interveno governamental, que se efetivou durante um longo perodo de domnio das idias keynesianas. As novas correntes liberais tentam ressuscitar velhas idias que defendem um
mercado livre de quaisquer entraves por parte do Estado ou dos sindicatos como
mecanismo regulador da economia e gerador do bem-estar social. A soluo proposta simples: menos Estado e mais mercado.
No entanto um mercado puro nunca existiu, nem tem qualquer possibilidade
de existir. A concepo de mercado que se pode ter a partir de uma anlise do funcionamento da economia capitalista muito diferente da idia que a corrente da regulao pelo mercado prope. Nas palavras de Brunhoff, "(. . .) o papel econmico
real dos mercados, como lugar de circulao do capital, confundido com a sua caracterstica de regulador da atividade econmica" (p.l43). Ora, nesse contexto, os
argumentos de Keynes contra o dogma do Mssez-faire dos anos 30 so extremamente atuais: o laissez-faire, no perodo em que mais esteve em voga, no se sustentou
por si mesmo, mas devido situao histrica especfica, qual seja, a dominao financeira da Inglaterra que dava suporte ao regime monetrio do padro-ouro, aliada
ausncia de uma organizao sindical poderosa para garantir o nvel do salrio
real. A rigor, no se pode falar de liberalismo puro nem mesmo nesse perodo.
No perodo que se segue Segunda Guerra Mundial at meados dos anos
60 ~ chamado perodo keynesiano
a interveno do Estado revestiu-se de um carter de legitimidade, pois suas polticas contriburam para sustentar o crescimento
das economias capitahstas e garantir algumas conquistas sociais dos trabalhadores.
Sem dvida, esse perodo representou uma mudana ideolgica considervel em relao atividade econmica estatal. O Estado deixou de ser um parasita, que entravava a iniciativa individual e a liberdade do mercado, para se transformar num agente econmico particular, cujas atividades permeiam toda a economia.
A crise econmica atual, que afeta profundamente as economias capitahstas,
parece questionar a legitimidade das polticas keynesianas, uma vez que as novas
correntes hberais identificam a crise do "Wellfare State" como a causa da crise econmica. Ora, atribuir toda a responsabihdade da crise ao Estado, este como elemento externo economia, mais uma demonstrao da impossibihdade das teorias liberais de pensar a crise como algo inerente ao sistema capitalista. Efetivamente, h
estudos de longo prazo que comprovam uma queda da lucratividade do capital na
economia norte-americana desde meados da dcada de 60. Deve-se mencionar, ao
mesmo tempo, que essa queda de rentabihdade no foi provocada pela alta dos salrios nos Estados Unidos, pois, no mesmo perodo, eles tambm caram. No entanto, mesmo no sendo responsvel pela crise, a reduo dos salrios apontada como uma soluo para a mesma.
Brunhoff demonstra que a concepo do livre mercado no pode entender teo-

ricamente a crise porque incapaz de compreender a natureza de duas mercadorias


especiais da economia capitalista: a fora de trabalho e a moeda. Em suas palavras:
"(. . . ) a idia de uma ordem econmica que repousa sobre a auto-regulao dos mercados impede que se pense a crise como um aspecto do
funcionamento da economia. Pois a economia [para os liberais] apenas
mercado" (p.46).
As novas correntes liberais dirigem sua crtica a dois pontos fundamentais que
so o corporativismo das organizaes sindicais e o chamado Estado-Providncia.
Tal crtica pretende atingir e questionar direitos sociais adquiridos atravs de lutas
histricas das classes trabalhadoras organizadas em sindicatos: servios de saiide,
penses, seguro-desemprego, despesas com educao, etc. O que so questionados,
no fundo, so o prprio Estado-Providncia e o direito de os trabalhadores se organizarem com o objetivo de defender seus interesses, sob o argumento de que tanto o
Estado como o corporativismo sindical criam e mantm "rendas de situao", "falsos direitos" que, alm de no beneficiarem todos os trabalhadores, impedem a eficincia econmica pelo livre funcionamento do mercado.
O Estado-Providncia que hoje questionado intemamente por causa da
deteriorao dos servios que presta populao e externamente em relao sua
legitimidade e eficincia foi forjado no final do sculo X I X como resposta s reivindicaes socialistas do movimento operrio que denunciavam as pssimas condies de vida dos trabalhadores. A origem do Estado-Providncia , pois, historicamente anterior s idias intervencionistas de Keynes.^ Entretanto inegvel que essas medidas sociais encontraram legitimao, a nvel de teoria econmica, a partir
das posies de Keynes em favor das despesas pblicas.
O Estado-Providncia sofre o peso da crise econmica dos anos 70. Para a
ortodoxia liberal, a crise financeira do Estado-Providncia no conseqncia, mas
causa da crise econmica. O dficit estatal , em si mesmo, fonte de desequilbrio
e, como tal, causa dos distrbios econmicos.
No entanto, ao contrrio do que diz o diagnstico conservador, o dficit do
Estado-Providncia conseqncia da crise econmica por um motivo muito simples: com a crise, ao mesmo tempo em que aumentam o desemprego e a necessidade de assistncia, diminuem as contribuies sociais. Ou seja, o sistema de proteo
social se enfraquece justamente no momento em que se torna mais necessrio. A ortodoxia conservadora, no entanto, atribui a crise a um acrscimo de gastos do Estado, o que imphca um excesso de moeda, causa da inflao. Por isso, ela no tolera
dficits e prega a reduo das despesas pblicas a u m mnimo.
As crticas que as novas correntes liberais fazem s organizaes sindicais por

^ O reformismo conservador caminhou frente das reivindicaes operrias com o sentido de


abafar o aspecto contestatrio destas. Teria sido Bismark, nos anos de 1880, o primeiro a
colocar as polticas sociais como um objetivo do Estado, ao mesmo tempo em que intensificava a represso ao Partido Social Democrata Alemo.

defenderem suas conquistas sociais, sob o argumento de prticas de corporativismo,


visam, na realidade, atingir toda a organizao dos trabalhadores em si mesma e no
apenas algumas de suas atividades. Esses crticos, ao questionarem as desigualdades
no interior das classes trabalhadoras, certamente no so movidos por uma preocupao de igualdade social, mas, sim, pelo objetivo de recuperar a rentabilidade do
capital a custo de uma reduo ainda maior do nvel de vida de amplas camadas da
populao. Essa pretensa homogeneidade da pobreza dos trabalhadores no tem
fundamento na realidade do funcionamento da economia capitalista. A concentrao do capital leva a uma diferenciao do mercado de trabalho. O desemprego ,
certamente, um fenmeno desigualitrio. O corporativismo explica-se como urna
das formas assumidas pela concorrncia entre os trabalhadores em perodo de crise,
na impossibilidade de uma soluo coletiva de classe perante a mesma.
A denncia conservadora dirigida ao Estado-Providncia e aos sindicatos tem
o intuito real de provocar o fim da proteo social por ambos exercida, Para os novos hberais, interessa que haja trabalhadores desprotegidos, livres para se oferecerem no mercado em situao de igualdade com as demais mercadorias. Na verdade,
a ideologia sedutora de uma liberalizao individual e social da tutela estatal encobre uma forma de opresso muito mais brutal: a de um mercado "livre", onde trabalhadores e capitalistas se defrontam em situaes inequivocamente desiguais.
Nesse contexto geral, resta aos novos liberais proporem uma poltica econmica nitidamente restritiva e radicalmente oposta poltica keynesiana, uma vez
que, para eles, a gesto da crise e a retomada do crescimento da lucratividade dos
empreendimentos privados no passam pela questo da manuteno do emprego e
dos nveis de salrio.
No entanto interessante observar que, tanto pelos novos liberais como pelos
keynesianos, a interveno do Estado vista como a atividade de um sujeito poltico externo economia de mercado, o que pode ser nefasto ou benfico. Porm a
natureza do Estado provm de uma mesma lgica, a qual torna inintehgveis as formas polticas que assumem a concorrncia no mercado mundial, os afrontamentos
e compromissos entre Estados, etc.
Assim, sob o ponto de vista da acumulao de capital como o mvel da economia capitalista, salienta a autora que o Estado pode ser concebido como um agente inserido, de forma pecuhar, nesse processo, e no alheio a ele, o que, sem dvida,
contribui com maior substncia para a anlise.
O livro de Brunhoff comporta, tambm, toda uma crtica a nvel de teoria
econmica, onde a autora contrape seus argumentos queles da economia de mercado. Em sua opinio, necessrio compreender o funcionamento do capital financeiro, da moeda e do crdito para se chegar a uma noo mais exata do funcionamento do capitalismo, coisa que o iderio do livre-mercado no faz por limitaes
tericas inerentes a seu atrelamento poltico-ideolgico s classes hegemnicas. Para
Brunhoff, importante a insero de novas categorias de anlise para demonstrar
que a crise que atribuda pelos novos liberais a um desequililjrio provocado pela
atuao do Estado - fruto de contradies inerentes ao movimento de reproduo do capital em seu conjunto.

Assim, a autora prossegue analisando o papel do crdito e a natureza do capital financeiro, partindo da crtica noo ortodoxa, resgatando as contribuies de
Marx e Hilferding e discutindo as relaes do crdito com a taxa de juros.
Em primeiro lugar, necessrio esclarecer que Brunhoff considera a moeda
como um elemento inscrito no funcionamento do modo de produo capitalista e
no adicionado de fora. Dessa forma, crdito que considerado como emprstimo destinado ao financiamento da produo capitalista supe a existncia da
moeda como padro de preos e meio de pagamento. Entretanto o crdito no se
origina da moeda, mas, sim, de "(. ) uma relao econmica particular que imbricada na circulao do capital e afeta as modalidades da acumulao" (p. 125).
O exame dos princpios da concepo ortodoxa aponta o fato de que, estabelecendo uma ciso conceituai entre o "capital real" e o "capital financeiro", os
autores enquadrados nessa concepo enfatizam a importncia do primeiro, concebendo o segundo como "capital fictcio". Consideram que existe uma taxa de juro "real" que se refere a um mercado de capital in natura, ou seja, a ativos fsicos
e ttulos (mercado de capitais). Em contrapartida, a taxa de juros bancrios considerada como um preo fictcio, pois fixada fora de um verdadeiro mercado, vindo a representar um desequilbrio em relao a este. "Isso implica que os agentes
econmicos privados dispem livremente de seus recursos, no sendo pressionados
pelo sistema bancrio, este se apresentando exterior economia" (p.l28).
Segundo a autora, essa concepo que separa nitidamente a esfera produtiva da esfera financeira no pode dar conta da tarefa de precisar a natureza do crdito como emprstimo de dinheiro, tendo sido j questionada por Keynes e Kalecki,
os quais demonstraram como o investimento gera a poupana necessria a seu prprio financiamento. Assim, a taxa de juros no o preo de equilbrio da demanda
e da oferta de capital, mas, em ltima instncia, tem a funo de contribuir para a
preservao da propriedade privada do capital, cujas fronteiras so diludas graas
circulao do crdito.
Para Brunhoff, a grande fraqueza lgica da anlise ortodoxa deve-se ao fato de
a mesma ser praticamente reduzida a uma concepo quantitativa. Nesse ponto, ela
faz referncia a uma crtica de Keynes a Marshall, segundo a qual o ponto fraco de
Marshall seria ter utilizado o conceito de juros, que faz parte de uma economia monetria, dentro d um conjunto de idias que no leva em conta a moeda.
Uma vez constatada a insuficincia da concepo ortodoxa, a autora passa a
examinar a questo fazendo uso das categorias marxistas. Ressalta ela que
"(. ..) o capital no uma coisa ou um conjunto de objetos, mesmo
quando ele aparece sob uma forma material. Ele fundamentalmente
uma relao de produo entre capitahstas e assalariados ( . . .). Esta relao social constitui a unidade da noo de capital, atravs das diversas
formas da produo e da circulao" (p.l 29).
O "capital-dinheiro" deve ser relacionado dinmica da produo do lucro. Tanto
o "capital real" como o "capital-dinheiro" se articulam no circuito do capital, sendo que o segundo abre e fecha o circuito. o "capital-dinheiro" que permite a aquisio dos equipamentos e da mo-de-obra necessrios para dar incio ao processo.

A soma de dinheiro que d incio ao processo produtivo pode provir de um


autofinanciamento do empresrio, como tambm pode ser fruto de um emprstimo
que o capitalista industrial faz junto ao capitalista financeiro. Neste ltimo caso,
uma parte do lucro do empresrio destinada ao capitalista financeiro, sob a forma
de juros. Donde se conclui, portanto, que os juros e os lucros tm a mesma origem,
que a mais-valia ou trabalho excedente Da mesma maneira, o capitalista industrial
e o capitahsta financeiro pertencem classe de proprietrios de meios de produo,
embora essa origem comum no suprima a diferena de seus papis. Tanto assim
que o nvel da taxa de juros resultado da relao de foras entre tomadores e emprestadores que se enfrentam num mercado particular de capital de crdito. A diferena entre os dois capitalistas acompanha a diferena de forma que assume o capital quando aparece como capital-dinheiro e como capital fsico. Quanto essncia,
tomemos as palavras de Brunhoff: "( ) assim como no h mercadoria sem moeda, no h capital produtivo sem capital-dinheiro, nem capital industrial sem capital financeiro" (p.l31). O "capital fictcio" aparece desconectado da valorizao do
capital, dando a idia de um circulao financeira relativamente autnoma com respeito s mercadorias e ao processo de produo. Entretanto o "capital fictcio" no
oposto ao "capital real", mas em si mesmo uma reahdade composta segundo a
relao mais ou menos prxima que ele mantenha com o circuito produtivo. Assim,
preciso fazer distino entre o "capital fictcio" e a circulao financeira de ttulos de propriedade que representam o capital e do direito a uma parte da mais-valia. Os ttulos de propriedade podem ter um valor fictcio, na medida em que seus
preos variam em decorrncia de flutuaes na bolsa e de alteraes na conjuntura
econmica, sem, entretanto, deixar de refletir os movimentos da acumulao capitahsta.
em decorrncia disso que Marx define as funes do "capital financeiro" relacionado s operaes de crdito. Identificam-se dois aspectos do mercado de aes
que, embora complementares, podem apresentar oposio entre si: de um lado, h a
funo "necessria" que consiste na coleta e repartio de fundos para financiar os
investimentos; e,de outro, tem-se a funo "parasitria" que se refere ao fato de o
capital comportar-se de maneira relativamente independente do financiamento dos
investimentos produtivos. Essa segunda funo reflete a liberdade de manobra do
capital-dinheiro em relao a riscos julgados excessivos ou a ameaas de expropriao, traduzindo-se na especulao (que determina os preos dos ativos no mercado
financeiro). Nas palavras de Brunhoff: "A nica expropriao tolerada pelos detentores do dinheiro a que resulta do prprio jogo do mercado financeiro, quando se
produz uma absoro do capital pelo capital" (p.l34).
E interessante a forma como a autora demonstra a fragilidade da concepo
ortodoxa no que respeita ao funcionamento do mercado financeiro. Em perodos
de crise econmica, aumenta a concentrao financeira (sob a forma de fuses, absores, e t c ) , o que visto, pela tica ortodoxa, como simples realocao do capital de acordo com as necessidades da economia. A par disso, constata-se que o funcionamento efetivo do mercado dominado, permanentemente, por "investidores
institucionais" e grandes grupos industriais. A concepo ortodoxa, entretanto.

quando considera os efeitos dessa dominao, o faz como se fossem uma simples
imperfeio do mercado. Quanto expropriao, pelo jogo do mercado financeiro,
esta aparece como uma sano econmica normal. . . A concepo ortodoxa, conclui Brunhoff,
"(. . . ) incapaz de apreender a relao entre o funcionamento do mercado e as estruturas do capital. Por outro lado, a noo marxista de capital financeiro permite efetuar a anlise das relaes entre o capital
produtivo e o sistema de crdito, uma vez que ela leva em conta as particularidades do capital-dinheiro" (p.l35).
A despeito das formas diversas de manifestao da taxa de juros taxa do sistema bancrio (controlada pelo Banco Central) e taxa de juros no bancria (mercado de ttulos) , ela deve ser compreendida como categoria nica. J vimos que,
sob o ponto de vista da origem, ela derivada do lucro capitalista; porm h que se
reconhecer a diversidade de suas manifestaes.
Entre as duas manifestaes da taxa de juros, h uma relao de mercado.
Quando a taxa bancria elevada, os financistas sO incitados a aumentar o preo
do crdito. Pode-se ento falar de taxa de juros como se houvesse um mercado financeiro nico. Longe de ser auto-regulado, ele funciona de maneira tal que a centralizao operada pelo sistema bancrio atua em conjunto com as operaes financeiras privadas, descentralizadas. Entretanto essa unificao seguidamente confundida com a unidade sob a gide da taxa de juro monetria que seria imposta pela interveno do Banco Central.
A distribuio entre o lucro da empresa e a taxa de juros baseia-se nas modalidades da distribuio do "capital-dinheiro" entre capitalistas emprestadores de fundos (financistas) e tomadores (industriais). Sem a unidade do "capital-dinheiro" e a
diversidade da propriedade de fundos no possvel compreender a relao entre o
lucro e o juro.
Com isso, a autora demonstra a fragilidade dos princpios tericos do liberalismo ora em ascenso, uma vez que eles no contemplam aspectos essenciais do
funcionamento do capitahsmo, e, portanto, suas explicaes da crise resultam inconsistentes, bem como enganadoras so suas solues propostas.
O dogma do mercado livre, regulador da economia e promotor do bem-estar
social, moribundo e desacreditado nas ltimas dcadas, renasce agora com nova fora para investir contra a classe trabalhadora, contra suas organizaes e seus direitos
duramente conquistados ao longo de sua histria. Investe, tambm, contra o Estado-Providncia e suas polticas sociais, a pretexto de uma enganadora liberalizao
mdividual e social. Essa ideologia da liberdade no tem outro objetivo que garantir
os interesses do capital financeiro internacional. As polticas de austeridade conduzidas pelos governos conservadores, como os de Reagan e Thatcher dentre outros,
exigem em contrapartida um custo social sumamente elevado para serem aceitas em
silncio.
Nesse sentido, A Hora do Mercado, de Suzanne de Brunhoff, chega no momento certo, com a lucidez de sua anlise histrica e o peso de seus argumentos l-

gicos para o esclarecimento das insuficincias tericas e o desvelamento das falcias


do novo e do veliio liberalismo.
Resta a expectativa de que esse novo livro da autora, j bem conhecida no Brasil, tenha sua traduo levada a cabo, de modo a viabilizar o acesso a seu contedo
dentro do mais breve perodo de tempo possvel.

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