Traducao Das Bucolicas de Virgilio Ecloga I
Traducao Das Bucolicas de Virgilio Ecloga I
Traducao Das Bucolicas de Virgilio Ecloga I
Número 39
CALÍOPE
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
Presença Clássica
separata 5
1
Calíope: Presença Clássica | 2020.1 . Ano XXXVII . Número 39 (separata 5)
CALÍOPE
Presença Clássica
ISSN 2447-875X
separata 5
2
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
Faculdade de Letras
DIRETORA Sonia Cristina Reis
Organizadores
Fábio Frohwein de Salles Moniz
Rainer Guggenberger
Conselho Editorial
Alice da Silva Cunha
Ana Thereza Basilio Vieira
Anderson de Araujo Martins Esteves
Arlete José Mota Auto Lyra Teixeira
Ricardo de Souza Nogueira Tania Martins Santos
Conselho Consultivo
Alfred Dunshirn (Universität Wien)
David Konstan (New York University)
Edith Hall (King’s College London)
Frederico Lourenço (Universidade de Coimbra)
Gabriele Cornelli (UnB)
Gian Biagio Conte (Scuola Normale Superiore di Pisa)
Isabella Tardin (Unicamp)
Jacyntho Lins Brandão (UFMG)
Jean-Michel Carrié (EHESS)
Maria de Fátima Sousa e Silva (Universidade de Coimbra)
Martin Dinter (King’s College London)
Victor Hugo Méndez Aguirre (Universidad Nacional Autónoma de México)
Violaine Sebillote-Cuchet (Université Paris 1)
Zélia de Almeida Cardoso (USP)
Capa
Fábio Frohwein de Salles Moniz
Editoração
Fábio Frohwein de Salles Moniz
Revisão de texto
Fábio Frohwein de Salles Moniz
Revisão técnica
Fábio Frohwein de Salles Moniz
3
Calíope: Presença Clássica | 2020.1 . Ano XXXVII . Número 39 (separata 5)
Pedro Barbieri
RESUMO
Apresento uma tradução poética da primeira écloga das Bucólicas,
de Virgílio, tomando por base o texto da OCT, editado por Mynors
(1972). Teço ainda alguns comentários preliminares acerca das
minhas escolhas tradutológicas.
PALAVRAS-CHAVE
Virgílio; Bucólicas; poesia bucólica; poesia hexamétrica; tradução
poética
DOI https://doi.org/10.17074/cpc.v1i39.34782
4
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
E
ste artigo faz parte de um projeto de tradução integral
das Bucólicas, de Virgílio, que está sendo realizada aos
poucos.2 Seria um pouco fora de lugar apresentar o
autor e sua obra, muito mais em um periódico
especializado. Faço aqui apenas alguns comentários
referentes à tradução.
De início, optei por decassílabos, com tônicas
sempre na segunda, quinta, sétima e décima sílabas, e
cesura intermediária – ou seja, o verso pode ser lido
como duas metades, cada qual com um jambo e um
anapesto. A ideia aqui é propor dentro do conhecido
decassílabo épico uma outra possibilidade de prosódia,
que, embora não seja original, não é tão comum.
Tento obter um ritmo misto para o metro, ora lento (tempos
fortes), em conformidade com a ambientação bucólica 3, ora mais
acelerado (tempos fracos), que se adequa bem à imitação de um
discurso mais simples4. Recorro ao emprego de cesuras, que são,
inclusive, uma forma de emular o hexâmetro antigo e de
apresentar duas partes ao decassílabo em português, cujo ritmo,
em geral, é tripartido, com as cadências mais comuns sendo: 2-6-10,
3-6-10 e 4-7(8)-10. Ao propor o ritmo 2-5 // 7-10, busco em parte
reproduzir os efeitos e a disposição dos termos dentro do verso
como nos hemistíquios hexamétricos. Isso traz novas dificuldades
que devem ser solucionadas (e.g. a variação entre cesuras
pentemímeras e heptemímeras não é devidamente contemplada 5),
mas, ainda assim, é uma tentativa de verter a prosódia dos poemas
virgilianos.
Como exemplo, compare-se os dois versos iniciais do
poema em sua versão original e como os apresento:
5
Calíope: Presença Clássica | 2020.1 . Ano XXXVII . Número 39 (separata 5)
6
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
7
Calíope: Presença Clássica | 2020.1 . Ano XXXVII . Número 39 (separata 5)
8
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
MELIBOEUS MELIBEU
Tityre, tu patulae recubans sub tegmine fagi Tu, ó Títiro, és quedo ao véu da ampla faia e
siluestrem tenui Musam meditaris auena; o alento em tua flauta evoca a agra Musa.
nos patriae finis et dulcia linquimus arua. Nós, idos aos fins do lar, doce terra,
nos patriam fugimus; tu, Tityre, lentus in umbra do lar vamos. Lento à sombra, tu entoas
05 formosam resonare doces Amaryllida siluas. à doce floresta a airosa Amarílis.
TITYRUS TÍTIRO
O Meliboee, deus nobis haec otia fecit. Ó tu, Melibeu, este ócio é de um deus,
namque erit ille mihi semper deus, illius aram um deus que me é sempre; e amiúde o seu templo
saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus. é tinto em rês tenra, e nosso é o aprisco.
ille meas errare boues, ut cernis, et ipsum Vê, deu que meus bois errassem e eu mesmo
10 ludere quae uellem calamo permisit agresti. tocasse, ao meu gosto, tal flauta agreste.
MELIBOEUS MELIBEU
Non equidem inuideo, miror magis: undique totis Mas não sinto inveja, apreço só: toda
usque adeo turbatur agris. en ipse capellas a terra se aturde. Vê!, à mi’a frente
protinus aeger ago; hanc etiam uix, Tityre, duco. guio cabras, enfermo, e uma mal levo.
hic inter densas corylos modo namque gemellos, Aqui, entre aveleiras densas, sofreu:
15 spem gregis, a! silice in nuda conixa reliquit. deu gêmeos ao nu seixo, oh, fé da grei!
saepe malum hoc nobis, si mens non laeua fuisset, Lembro eu que amiúde o mal nos foi dito
de caelo tactas memini praedicere quercus. por raios nos robles – turva é mi’a mente.
[saepe sinistra cava praedixit ab ilice cornix.] [ Um corvo já o disse em roble oco e sestro. ]
sed tamen iste deus qui sit, da, Tityre, nobis. Mas, Títiro, diz-me qual deus é este.
TITYRUS TÍTIRO
20 Vrbem quam dicunt Romam, Meliboee, putaui Tinha eu, Melibeu, que a urbe que chamam
stultus ego huic nostrae similem, quo saepe solemus de Roma era qual a nossa, em mi’a inépcia:
pastores ouium teneros depellere fetus. lá onde o ovelheiro leva o anho tenro.
sic canibus catulos similis, sic matribus haedos Um cão co’ o filhote, a mãe co’ o petiz,
noram, sic paruis componere magna solebam. isso eu conhecia – opor o alto e o exíguo.
25 uerum haec tantum alias inter caput extulit urbes Mas ela ergueu o cimo tão mais que as outras,
quantum lenta solent inter uiburna cupressi. qual sói o cipreste entre arcos viburnos.
MELIBOEUS MELIBEU
Et quae tanta fuit Romam tibi causa uidendi? Por qual grave causa tu foste a Roma?
TITYRUS TÍTIRO
Libertas, quae sera tamen respexit inertem, Busquei Liberdade, e viu-me, morosa.
candidior postquam tondenti barba cadebat, O inerte era eu: fio mais alvo à lâmina.
30 respexit tamen et longo post tempore uenit, Mas viu-me ela e veio, após muito tempo.
postquam nos Amaryllis habet, Galatea reliquit. Já sou de Amarílis. – Foi Galateia.
namque (fatebor enim) dum me Galatea tenebat, Confesso que então servi Galateia
nec spes libertatis erat nec cura peculi. sem grão de ser livre ou posse a zelar.
quamuis multa meis exiret uictima saeptis, Malgrado mi’a cerca afluísse com abates
35 pinguis et ingratae premeretur caseus urbi, e queijo adiposo prenso à urbe ingrata,
non umquam grauis aere domum mihi dextra redibat. mi’a mão não voltava mais farta ao lar.
9
Calíope: Presença Clássica | 2020.1 . Ano XXXVII . Número 39 (separata 5)
MELIBOEUS MELIBEU
Mirabar quid maesta deos, Amarylli, uocares, “Por que, triste, urgir a um deus, Amarílis?,
cui pendere sua patereris in arbore poma; p’ra quem deixar penso o pomo à tua árvore?”
Tityrus hinc aberat. ipsae te, Tityre, pinus, – pensava eu. Tu estavas longe. E a ti, Títiro,
40 ipsi te fontes, ipsa haec arbusta uocabant. o pinho, a nascente e a relva invocavam.
TITYRUS TÍTIRO
Quid facerem? neque seruitio me exire licebat Que havia a fazer? Não foge o cativo
nec tam praesentis alibi cognoscere diuos. nem vêm ter com ele deuses propícios.
hic illum uidi iuuenem, Meliboee, quotannis Cá vi, Melibeu, um rapaz. Doze dias
bis senos cui nostra dies altaria fumant. por ano lhe esfumam ‘s nossos altares.
45 hic mihi responsum primus dedit ille petenti: De pronto, deu tal resposta ao meu rogo:
'pascite ut ante boues, pueri; summittite tauros.' “Pascei rês como antes, prole, e criai touros.”
MELIBOEUS MELIBEU
Fortunate senex, ergo tua rura manebunt Feliz velho!, então manténs teus terrenos,
et tibi magna satis, quamuis lapis omnia nudus co’ espaço abundante, mesmo com seixos
limosoque palus obducat pascua iunco: nus, brejos de limo e junco em teu pasto.
50 non insueta grauis temptabunt pabula fetas, Que estranho capim não teste a rês prenhe,
nec mala uicini pecoris contagia laedent. nem vil peste, azar de um gado vizinho!
fortunate senex, hic inter flumina nota Feliz velho!, aqui, entre rios conhecidos
et fontis sacros frigus captabis opacum; e sacras nascentes, fruis sombra amena.
hinc tibi, quae semper, uicino ab limite saepes Por cá, como sempre, a sebe vizinha,
55 Hyblaeis apibus florem depasta salicti que nutre as abelhas de Hibla com vime,
saepe leui somnum suadebit inire susurro; sutil, te induz sono em doces cicios.
hinc alta sub rupe canet frondator ad auras, Por cá, o podador canta o ar, à alta pedra.
nec tamen interea raucae, tua cura, palumbes Não hão de cessar nem rouco torcaz,
nec gemere aëria cessabit turtur ab ulmo. que estimas, nem pombo a chiar no auge do ulmo.
TITYRUS TÍTIRO
60 Ante leues ergo pascentur in aethere cerui Pois logo ágeis cervos no ar pascerão
et freta destituent nudos in litore piscis, e os fluxos darão nus peixes às margens;
ante pererratis amborum finibus exsul e logo errarão fronteiras: no exílio,
aut Ararim Parthus bibet aut Germania Tigrim, do Arar bebe o pártio, e o Tigre, a Germânia;
quam nostro illius labatur pectore uultus. – assim se sua face esvai de meu peito.
MELIBOEUS MELIBEU
65 At nos hinc alii sitientis ibimus Afros, Iremos, porém, uns, secos à África;
pars Scythiam et rapidum cretae ueniemus Oaxen à Cítia outros vão; e à Creta, ao lesto Oaxes;
et penitus toto diuisos orbe Britannos. e aos ermos britões, cindidos do orbe.
en umquam patrios longo post tempore finis Nunca hei de rever mi’as pátrias fronteiras?,
pauperis et tuguri congestum caespite culmen, nalgum tempo, a pobre telha ao casebre?,
70 post aliquot, mea regna, uidens mirabor aristas? quando hei de a’mirar meu reino de espigas?,
impius haec tam culta noualia miles habebit, será de ímpia tropa o novo alqueive?,
barbarus has segetes. en quo discordia ciuis do inculto, o milhal? Ah, fez-se discórdia
produxit miseros: his nos conseuimus agros! civil, que pesar! Lavramos por eles!
insere nunc, Meliboee, piros, pone ordine uitis. Que eu plante os perais e ordene ora as vinhas!
75 ite meae, felix quondam pecus, ite capellae. Ide, ó grei leda antes, ide, ó cabrinhas!
10
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
non ego uos posthac uiridi proiectus in antro Não mais vos verei, banido em verde antro,
dumosa pendere procul de rupe uidebo; suspensas ao longe em rochas musgosas!
carmina nulla canam; non me pascente, capellae, Não canto mais cantos, nem, mi’as cabrinhas,
florentem cytisum et salices carpetis amaras. vos pasço ao laburno flóreo e acres vimes.
TITYRUS TÍTIRO
80 Hic tamen hanc mecum poteras requiescere noctem Mas podes folgar comigo esta noite
fronde super uiridi: sunt nobis mitia poma, aos ramos. Cá temos pomos maduros,
castaneae molles et pressi copia lactis, macias castanhas, pressos lat’cínios.
et iam summa procul uillarum culmina fumant Distantes, já esfumam ‘s cimos das choças,
maioresque cadunt altis de montibus umbrae. caem do áp’ce montês maiores as sombras.
11
Calíope: Presença Clássica | 2020.1 . Ano XXXVII . Número 39 (separata 5)
ABSTRACT
I offer a poetic translation of Virgil’s first Eclogue, based on the OCT
text edited by Mynors (1972). I also make some preliminary
comments regarding my translation.
KEYWORDS
Virgil; Eclogues; Pastoral Poetry; Poetic Translation.
12
Tradução das Bucólicas, de Virgílio: Écloga I | Pedro Barbieri
REFERÊNCIAS
13
1
Agradeço pelos comentários dos pareceristas anônimos. Os deslizes
remanescentes são de minha responsabilidade.
2
Para minha versão da nona écloga, cf. BARBIERI, 2020b, texto no qual também
esboço um pouco dos meus pressupostos tradutológicos.
3
CLAUSEN, 1994, p. xxvi-xxx.
4
LIPKA, 2001, p. 127-133.
5
WEST, 1987, p. 19.
6
Outra possibilidade métrica para o primeiro verso teria sido: “Ó Títiro, entregue
ao véu da ampla faia…” – contudo, no que essa tradução ganha em destacar a
morosidade do personagem, perde-se o efeito característico da assonância
inicial: “Tu, ó Títiro” (Tityre, tu). Isso talvez pudesse ser resolvido admitindo a
topicalização inicial e um anacoluto entre o primeiro verso e o segundo, com a
alteração do sujeito, a saber: “Tu, ó Títiro, entregue ao véu da ampla faia, / o
alento em tua flauta...”. O termo “entregue” recupera bem recubo não tanto por
aludir ao movimento de inclinar-se à árvore, mas pelo provável juízo de valor e
contraste implícitos na fala de Melibeu (cf. Cic. De or. 3.63; Prop. 3.31; CLAUSEN,
1994, p. 34). Seja como for, essa segunda opção me soou por demais artificiosa.
7
Sobre essa problemática, cf. meu ensaio recente “As obras clássicas não
precisam de nós” (BARBIERI, 2020a).
8
Cf. EDWARDS, 2002, p. 99-104; PRADO, 2007 (em especial, p. 238-241).
9
O comentário aqui é válido porque a própria Fowler faz essa ressalva ao
introduzir seu texto, dando como exemplo a inserção do termo “Babylonian”
junto ao rio Tigre no v. 63 da primeira écloga (o que não consta do original).
Por certo, ao propor uma versão metrificada, também me comprometo com a
necessidade de dispor os termos de forma adequada ao ritmo e metro, mas as
soluções tomadas não podem refletir uma imposição do metro ao poema. Ou seja,
como o entendo, o critério formal da composição (e tradução) não deve ser
negligenciado, mas também não deve se sobrepor aos demais elementos do
poema. Apesar de ser uma crítica recorrente, o arranjo e as soluções dadas tendo
em vista o metro não são um defeito ou um capricho do poeta (ou dos
tradutores), mas as decisões mesmas que fazem parte da empreitada poética. Com
maior ou menor sucesso, são esses parâmetros que sigo aqui.
14