Terror Gótico - Varios Autores

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Contos e Poesias do

TERROR GÓTICO
Aos amantes do pavor, do horror,
do lúgubre, do fantástico e do pesar,
habitantes das charnecas escuras,
casas isoladas e montanhas enevoadas,
dos céus cinzentos e dos negros mares

Saudações!!!
CONTOS
A TRISTE HISTÓRIA DE
THANGOBRIND, O JOALHEIRO
Lord Dunsany

Quando Thangobrind, o joalheiro, ouviu aquela tosse ominosa,


voltou-se de imediato para o caminho estreito. Era um ladrão de alto
renome, patrocinado pelos grandes e eleitos, pois tinha roubado nada
menos que o ovo de Moomoo, e durante toda a sua vida roubara
apenas quatro tipo de pedras: o rubi, o diamante, a esmeralda e a
safira. E, como é comum aos joalheiros, sua honestidade era grande.
Agora havia um Príncipe Mercador que o procurara e oferecera a
alma de sua filha em troca do diamante que é maior que uma cabeça
humana e que se encontrava sobre o colo do ídolo-aranha, Hlo-hlo,
no seu templo em Moung-ga-ling, pois tinha ouvido que Thangobrind
era um ladrão de confiança.
Thangobrind untou o corpo e saiu de sua loja, enveredando
secretamente por vias secundárias, e chegou até Snarp, antes
mesmo que alguém soubesse que ele tinha saído outra vez a necócios
ou desse pela falta da sua espada, que ficava guardada num lugar sob
a caixa registradora. Então, passou a se mover somente à noite,
escondendo-se durante o dia e afiando a lâmina de sua espada, que
ele chamava de Camundongo porque era lépida e veloz. O joalheiro
tinha métodos sutis para viajar, ninguém o viu atravessar as planícies
de Zid, ninguém o viu chegar a Mursk ou Tlun. Oh, mas ele apreciava
as sombras! Certa vez a lua, despontando inesperadamente de uma
tempestade, traíra um joalheiro ordinário; mas não trairia
Thangobrind. A sentinela apenas viu arrastar-se uma silhueta furtiva
e sorriu. “É apenas uma hiena”, disseram. Uma vez, na cidade de Ag,
um dos guardiões o pegou, mas Thangobrind tinha se untado e
escapou de suas mãos. Mal se pôde ouvir o ruído de seus pés
descalços na fuga. Ele sabia que o Príncipe Mercador esperava pela
sua volta, seus pequenos olhos abertos durante toda a noite e
brilhantes de cobiça.
Sabia que sua filha jazia acorrentada e gritando noite e dia. Ah,
Thangobrind sabia. E, não estivesse em serviço, teria se permitido
uma ou duas risadas. Mas negócio é negócio, e o diamante que ele
buscava ainda estava sobre o colo de Hlo-hlo, onde permanecera
pelos últimos dois milhões de anos desde que Hlo-hlo criara o mundo
e dera ao mundo todas as coisas exceto aquela pedra preciosa
chamada Diamante do Morto. A jóia era roubada frequentemente,
mas sempre dava um jeito de retornar ao colo de Hlo-hlo.
Thangobrind sabia disso, mas não era um joalheiro comum e
esperava enganar Hlo-hlo, sem perceber a ponta de ambição e de
luxúria e que ambas são vaidades.
Com quanta ligeireza ele avançou entre as escarpas de Snood!
Ora como um botânico, perscrutando o chão; ora como um
dançarino, saltando entre saliências que desmoronavam. Já estava
escuro quando passou pelas torres de Tor, onde os arqueiros
atiravam flechas de marfim contra os estranhos, com o fim de
impedir que algum forasteiro alterasse suas leis, que são más, mas
que não são para serem alteradas por gente de fora. Atiravam à
noite guiando-se pelo som dos pés dos estranhos. Ó Thangobrind,
jamais houve um joalheiro como tu! Ele arrastou duas pedras atrás
de si, amarradas por cordas, e foi contra elas que os arqueiros
dispararam. Tentadora era a isca que haviam colocado em Woth, o
penduricalho de esmeraldas no portão da cidade. Mas Thangobrind
percebeu o cordão dourado que, a partir dele, ia até o alto da
muralha e os pesos que despencariam sobre ele se os tocasse, e
assim o deixou, embora o deixasse chorando, e por fim chegou a
Theth. Todos ali adoravam Hlo-hlo, embora tenham vontade de
acreditar em outros deuses, como atestam os missionários, mas
apenas como presas para as caçadas de Hlo-hlo, que traz as suas
auréolas – segundo dizem – penduradas em ganchos no seu cinto de
caça. E de Theth passou à cidade de Moung e ao templo de Moung-
ga-ling e, entrando, viu o ídolo-aranha, Hlo-hlo, sentado com o
Diamante do Morto a rutilar sobre seu colo, e olhando para o mundo
inteiro como uma lua cheia, mas uma lua cheia vista por um lunático
que dormiu demais sob os seus raios, pois havia no Diamante do
Morto um certo aspecto sinistro e uma porção de coisas por
acontecer que é melhor não mencionar aqui. A face do ídolo-aranha
era iluminada por aquela gema fatal. Não havia outra luz. A despeito
de seus membros estarrecedores e do corpo demoníaco, sua face era
serena e aparentemente inconsciente.
Um certo medo veio à mente de Thangobrind, um tremor
passageiro, não mais que isso. Negócio era negócio, e ele esperava o
melhor. Thangobrind ofereceu mel a Hlo-hlo e se prostrou diante
dele. Oh, como era esperto! Quando os sacerdotes saíram da
escuridão para apanhar o mel, tombaram inconscientes no chão do
templo, pois havia uma droga no mel que foi oferecido a Hlo-hlo. E
Thangobrind, o joalheiro, pegou o Diamante do Morto e o colocou
sobre o ombro e saiu do santuário. E Hlo-hlo, o ídolo-aranha, não
disse nada, mas sorriu discretamente quando o joalheiro fechou a
porta. Quando os sacerdotes despertaram do efeito da droga que
fora oferecida a Hlo-hlo junto com o mel, correram para uma salinha
secreta que tinha uma abertura para as estrelas e fizeram o
horóscopo do ladrão. Algo que viram no horóscopo pareceu
satisfazer os sacerdotes.
Por certo, Thangobrind não retornaria pela mesma estrada pela
qual viera. Não, ele foi por outra estrada, mesmo que conduzisse ao
caminho estreito, à casa-da-noite e à floresta-da-aranha.
A cidade de Moung se elevou, muito alta, atrás dele – sacadas e
mais sacadas, eclipsando metade das estrelas –, quando ele partiu.
Embora, quando um patear suave como de pés de veludo ressoou
atrás dele, ele se recusasse a reconhecer que poderia ser o que
temia, ainda assim os instintos de sua profissão lhe disseram que não
era nada bom que qualquer ruído seguisse um diamante à noite, e
este era um dos maiores que negócio algum jamais pusera em suas
mãos. Quando chegou ao caminho estreito que conduz à floresta-da-
aranha, o Diamante do Morto parecendo frio e pesado, e os passos
de veludo parecendo ameaçadoramente próximos, o joalheiro parou
e quase hesitou. Olhou para trás; não havia nada. Aguçou os ouvidos;
agora não havia som. Então pensou nos gritos da filha do Príncipe
Mercador, cuja alma era a paga do diamante, e sorriu e prosseguiu
altivamente. Lá o espiava, apática, aquela mulher sinistra e dúbia
cuja casa é a Noite. Ele ainda não chegara ao fim do caminho
estreito, quando a mulher emitiu monotonamente aquela tosse
hedionda.
A tosse foi por demais significativa para ser subestimada.
Thangobrind voltou-se e de repente viu o que temia. O ídolo-aranha
não ficara em casa. O joalheiro colocou delicadamente o diamante no
chão e sacou da espada chamada Camundongo. E então começou
aquela famosa luta no caminho estreito, na qual a mulher velha e
sinistra cuja casa era a Noite pareceu ter tão pouco interesse. Via-se
logo que, para o ídolo-aranha, era tudo uma horrível piada. Para o
joalheiro era um compromisso imperioso. Ele lutou e ofegou e foi
obrigado a recuar lentamente pelo caminho estreito, mas feriu
bastante, com talhos compridos e terríveis, o corpo profundo e macio
de Hlo-hlo, até que Camundongo ficou tinta de sangue. Mas, por fim,
a gargalhada persistente de Hlo-hlo foi demais para os nervos do
joalheiro, e este, ferindo mais uma vez o seu adversário demoníaco,
tombou perplexo e exausto junto à porta da casa chamada Noite, aos
pés da mulher velha e sinistra, a qual, depois que emitiu aquela tosse
hedionda, não mais interferiu no curso dos eventos. E então aqueles
a quem compete essa tarefa levaram Thangobrind para a casa onde
os dois homens enforcam e, cada um deles tirando do seu laço a mão
esquerda, puseram esse aventuroso joalheiro em seu lugar. Assim lhe
adveio o destino que receara, como todos os homens sabem, embora
tenha sido há muito tempo, e um pouco se aplacou a ira dos deuses
invejosos.
E a filha única do Príncipe Mercador sentiu tão pouca gratidão
por esse grande ato de libertação que passou a praticar a
respeitabilidade do tipo militante, tornando-se agressivamente
enfadonha, e deu ao seu lar o nome de Riviera Inglesa, e fez algumas
trivialidades de lã sobre a capa do bule de chá, e enfim nunca
morreu, mas simplesmente faleceu, em sua residência.
A CASA DA ESFINGE
Lord Dunsany

Quando cheguei à Casa da Esfinge já estava escuro. Deram-me


ansiosas boas-vindas. E eu, apesar do feito, fiquei contente em
escapar daquela ominosa floresta. Vi, de imediato, que ocorrera um
feito, embora um manto fizesse tudo o que um manto pode fazer para
ocultá-lo. O simples desconforto daquelas boas-vindas fez-me
suspeitar desse manto.
A Esfinge estava pensativa e silenciosa. Eu não viera bisbilhotar
os segredos da Eternidade nem investigar a vida privada da Esfinge,
e assim tinha pouco a dizer e poucas perguntas a fazer. Mas ao que
quer que eu dissesse ela permaneceu pesadamente indifererente.
Estava claro que ela suspeitava que eu estivesse atrás dos segredos
de algum de seus deuses, ou em ousada perquirição de seu tráfico
com o Tempo, ou então ela estava, sombriamente, absorvida a
lucubrar sobre o feito.
Logo vi que alguém mais além de mim seria recepcionado. Vi-o
pela maneira inquieta como olhavam da porta para o feito e de novo
para a porta. E estava claro que a recepção seria com uma porta
trancada. Mas que trancas, e que porta! Ferrugem e decadência e
fungo tinham se acumulado ali por tempo demais, e não havia mais
impedimento que pudesse barrar sequer a passagem de um lobo
decidido. E eles pareciam temer algo bem pior do que um lobo.
Um pouco mais tarde, consegui perceber, a partir do que
diziam, que alguma coisa imperiosa e perturbadora estava à procura
da Esfinge, e que alguma coisa que acontecera tornava certa a sua
vinda.
Pareceu-me que tinham estapeado a Esfinge, para fazê-la sair
de sua apatia e orar a um de seus deuses, que ela aninhara na casa
do Tempo; mas o seu silêncio pensativo tornara-se invencível, e sua
apatia oriental, desde que o feito acontecera. E, quando acharam que
não podiam fazê-la rezar, não havia mais nada a fazer senão prestar
pequenas e inúteis atenções à fechadura enferrujada da porta, e
olhar para o feito e matutar, e até mesmo fingir esperança, e dizer
que, afinal, isso talvez não atraísse aquela determinada coisa da
floresta, que ninguém nomeava.
Pode-se dizer que escolhi uma casa desastrosa, mas não se
pensaria assim se eu descrevesse a floresta da qual viera, e eu tinha
necessidade de algum canto onde minha mente pudesse descansar de
pensar nela.
Eu me perguntava insistentemente sobre que tipo de coisa viria
da floresta por motivo do feito, e tendo visto a floresta – como tu,
gentil leitor, não a viste – tinha a vantagem de saber que qualquer
coisa poderia vir. Era inútil perguntar à Esfinge: ela raramente
revela coisas, tal como o seu amante, o Tempo (os deuses a imitam),
e enquanto seu humor estivesse assim sombrio o amuo era certo.
Assim, em silêncio, pus-me a lubrificar a fechadura da porta. E, tão
logo viram esse ato simples, ganhei a confiança deles. Não que meu
trabalho tivesse qualquer utilidade – poderia ter sido feito muito
antes; mas viram que meu interesse se voltara, naquele momento,
para aquilo que eles reputavam como vital. Ajuntaram-se à minha
volta.
Perguntavam-me o que eu pensava da porta, se eu já tinha visto
melhor, e se eu já tinha visto pior; e eu lhes falei sobre todas as
portas que conhecia, e disse que as portas do batistério em Florença
eram portas melhores, e que as produzidas por certa firma de
construtores de Londres eram piores. E então lhes perguntei o que é
que estava vindo em busca da Esfinge por motivo do feito. E, a
princípio, não quiseram dizer, e parei de lubrificar a porta; e então
disseram que era o arqui-inquisidor da floresta, que é o investigador
e vingador de todas as coisas silvestres; e pelo que me disseram
pareceu-me que tal pessoa era muito branca, e que era um tipo de
loucura vazia que se abatia sobre um lugar, um tipo de névoa na qual
a razão não podia viver; e era o medo de tudo isso que os fazia
mexer nervosamente na fechadura daquela porta carcomida; mas
com a Esfinge não era tanto medo quanto estrita profecia.
A esperança na qual tentavam esperar seguia tal caminho, mas
eu não compartilhava dela. Estava claro que a coisa que eles temiam
era o corolário do feito – via-se mais pela resignação que se
estampava no rosto da Esfinge do que pela triste ansiedade de todos
em relação à porta.
O vento soprou, e os grandes círios oscilaram, e o óbvio medo
que tinham e o silêncio da Esfinge se tornaram mais do que nunca
parte da atmosfera; e morcegos voejavam incansáveis na penumbra
do vento que abatia os círios.
Então, ouviram-se gritos ao longe, depois um pouco mais perto,
e alguma coisa estava se aproximando de nós, gargalhando
terrivelmente. Às pressas, dei uma pancada na porta que eles
guardavam; meu dedo afundou na madeira macia – não havia
nenhuma chance de segurá-la. Não havia tempo para observar o seu
pânico; pensei na porta dos fundos, pois a floresta era melhor do que
aquilo. Apenas a Esfinge estava absolutamente calma, sua profecia
fora feita, e ela parecia ter visto o seu destino, de modo que nenhuma
novidade podia perturbá-la.
Mas por degraus carcomidos de escada e tão velhos quanto o
Homem, ao longo das bordas escorregadias do temível abismo, com
uma tontura ominosa em meu coração e um sentimento de horror nas
plantas dos meus pés, resvalei de torre em torre até que encontrei a
porta que procurava. E ela se abriu para um dos galhos mais altos de
um enorme e sombrio pinheiro, ao longo do qual desci até o chão da
floresta. E alegrei-me de estar de volta à floresta de onde havia
fugido.
E a Esfinge, na sua casa ameaçada – não sei como ela se saiu:
se ficou, para sempre, olhando desconsolada para o feito, lembrando-
se apenas, em sua mente perturbada, para a qual os garotos agora
fazem caretas, de que uma vez ela conheceu bem essas coisas diante
das quais o homem se sente perplexo; ou se no final ela escapuliu e,
tropeçando horrivelmente de abismo em abismo, topou finalmente
com coisas mais altas, e é ainda sábia e eterna. Pois da loucura quem
sabe se é divina ou se vem das profundas?
A NOIVA DO CAVALO-HOMEM
Lord Dunsany

Na manhã do seu ducentésimo quinquagésimo ano, Shepperalk,


o centauro, foi à arca dourada, onde estava guardado o tesouro dos
centauros, e, retirando de lá o precioso amuleto que seu pai, Jyshak,
em sua juventude, martelara no ouro da montanha e incrustara de
opalas barganhadas com os gnomos, ajeitou-o sobre a cintura, para,
sem dizer palavra, deixar a caverna de sua mãe. E levou consigo
também aquele clarim dos centauros, aquele famoso corno de prata,
que em sua época tinha intimado à rendição dezessete cidades do
Homem, e que durante trinta anos zurrara para muralhas estreladas
no cerco a Tholdelblarna, a cidadela dos deuses, época na qual os
centauros empreenderam sua fabulosa guerra e não podiam ser
vencidos por força de nenhum exército, mas se retiraram lentamente
numa nuvem de poeira ante o milagre final dos deuses, o qual Estes
sacaram, em Sua necessidade desesperada, do Seu último arsenal.
Apanhou-o e afastou-se, e sua mãe apenas suspirou e o deixou ir.
Ela sabia que hoje ele não beberia das águas da corrente que
provinha dos terraços de Varpa Niger, as terras interiores das
montanhas, que hoje ele não pararia para admirar o pôr-do-sol e
depois retornar trotando à caverna, para dormir sobre juncos
colhidos às margens de rios que o Homem ignora. Ela sabia que com
ele aconteceria como tinha acontecido com o seu pai há muito tempo,
e também com Goom, o pai de Jyshak, e também com os deuses num
passado ainda mais remoto. Assim, apenas suspirou e o deixou ir.
Mas ele, saindo da caverna que era o seu lar, passou pela
primeira vez além do pequeno riacho e, contornando a curva dos
penhascos, viu refulgir diante de si a planície mundana. E o vento do
outono que alourava o mundo, soprando das encostas da montanha,
bateu frio contra suas ancas nuas. Ele ergueu a cabeça e aspirou.
“Sou um cavalo-homem agora!”, gritou bem alto. E, saltando de
rochedo em rochedo, galopou entre vales e funduras, entre leitos de
rios e vestígios de avalanches, até chegar às léguas indomáveis da
planície, deixando atrás de si, para sempre, as montanhas
atraminaurianas.
Seu destino era Zretazoola, a cidade de Sombelene. Que lendas
acerca da beleza sobre-humana de Sombelene ou sobre as
maravilhas de seu mistério teriam fluído através da planície mundana
até o fabuloso berço da raça dos centauros, as montanhas
atraminaurianas, eu não sei dizer. No entanto, no sangue do homem
há uma vaga, uma antiga corrente marinha, que é de algum modo
aparentada ao crepúsculo, a qual traz até ele rumores de beleza
provenientes de todas as lonjuras, tais como vestígios flutuantes de
ilhas ainda não descobertas nos chegam pelo mar. E essa vaga
torrencial que visita o sangue do homem vem dos quadrantes
fabulosos de sua linhagem, do legendário, do antigo. Leva-o para as
florestas, para as colinas. Ele ouve a canção ancestral. Assim pode
ter sido que o sangue legendário de Shepperalk se agitou nessas
montanhas fabulosas, nos extremos do mundo, ao ouvir rumores que
somente o airoso crepúsculo conheceria e que apenas ao morcego
confidenciaria, pois Shepperalk era mais lendário ainda do que o
homem. O certo é que ele se encaminhou, desde o princípio, para a
cidade de Zretazoola, onde morava Sombelene em seu templo,
embora a planície mundana, seus rios e montanhas se interpusessem
entre o lar de Shepperalk e a cidade que buscava.
Quando os pés do centauro tocaram pela vez primeira a grama
daquela macia terra de aluviões, ele soprou alegremente o corno de
prata, saltitando e corcoveando, e galopou feliz através das léguas.
As distâncias vinham até ele como uma donzela com sua lâmpada,
uma nova e bela maravilha; o vento ria ao passar por ele. Ele
baixava a cabeça para sentir o aroma de uma flor, e levantava-a para
ficar mais perto de estrelas jamais vistas. Deleitou-se, atravessando
reinos; alcançou rios em sua carreira. Como vos direi – a vós que
viveis nas cidades –, como vos direi o que ele sentiu ao galopar?
Sentiu-se forte como as torres de Bel-Narana, leve como esses
palácios de gaze que a aranha encantada constrói entre o céu e o
mar ao longo das costas de Zith, ligeiro como algum pássaro que se
apressa de manhã para cantar entre os pináculos de uma cidade
antes de vir o dia. Era o companheiro devotado do vento. De alegre,
era uma canção. Os raios de seus ancestrais lendários, os deuses
primitivos, começavam a se misturar ao seu sangue; seus cascos
trovejavam. Veio às cidades dos homens, e todos os homens
tremeram, pois se lembraram das guerras antigas e míticas, e agora
aborreciam novas batalhas e temiam pela raça do homem. Nem por
Clio essas guerras são lembradas, a história não as conhece, mas e
daí? Nem todos nós já nos assentamos aos pés de historiadores, mas
todos aprendem fábulas e mitos sobre os joelhos de suas mães. E não
houve ninguém que não temeu guerras estranhas quando viu
Shepperalk voltear e correr ao longo das vias públicas. Assim ele
passava de cidade em cidade.
À noite ele se deitava apaziguado sobre os juncos de algum
pântano ou floresta. Antes da aurora, levantava-se triunfante e, no
escuro, bebia abundantemente de algum rio; e afastando-se trotaria
até algum lugar elevado para ver o nascer do sol e saudar o levante
com os ecos de sua jubilosa trompa. E, deuses!, o sol levante
acorreria aos ecos, e as planícies iluminadas pelo brilho novo do dia,
e as léguas se esparramando em volta como águas que jorram do
alto, e esse alegre companheiro, o vento bulhento e risonho, e os
homens e os medos dos homens e suas pequenas cidades; e, após
isso, grandes rios e vastidões e novas colinas enormes, e então novas
terras para além delas, e mais cidades dos homens, e sempre o velho
companheiro, o glorioso vento. De reino em reino ele passou, e no
entanto seu fôlego não se alterava. “É uma coisa áurea galopar
sobre boa turfa quando se é jovem”, dizia o jovem cavalo-homem, o
centauro. “Ah, ah”, dizia o vento das colinas, e os ventos da planície
respondiam.
Sinos bimbalhavam sobre torres frenéticas, sábios consultavam
alfarrábios, astrólogos perquiriam o portento nas estrelas, os velhos
faziam profecias sutis. “Ele não é veloz?”, diziam os jovens. “E como
é feliz!”, diziam as crianças.
Sucedendo-se, as noites o punham para dormir, e os dias
iluminavam seu galope, até que chegou às terras dos homens
atalonianos que vivem nos limites da planície mundana, e delas
passou às terras da lenda outra vez, tais quais aquelas onde se criara
no outro lado do mundo, e que bordejam a margem do mundo e se
mesclam ao crepúsculo. E ali um pensamento impositivo se
manifestou em seu coração infatigável, pois sabia estar perto de
Zretazoola, a cidade de Sombelene.
O dia tinha avançado quando se aproximou da cidade, e nuvens
coloridas de entardecer corriam baixas sobre a planície à sua frente.
Ele galopava em direção à sua névoa dourada, e quando ela ocultava
de seus olhos a imagem das coisas, os sonhos despertavam em seu
coração, e ele ponderava romanticamente sobre todos esses
rumores que costumavam chegar até ele vindos de Sombelene,
conduzidos pela camaradagem das coisas fabulosas. Ela morava
(dizia, em segredo, o entardecer ao morcego) num pequeno templo à
margem solitária de um lago. Um bosque de ciprestes ocultava-a da
cidade, de Zretazoola dos caminhos íngremes. E em frente ao seu
templo jazia o seu túmulo, seu triste sepulcro lacustre de porta
sempre aberta, para que sua beleza estonteante e os séculos de sua
juventude não alimentassem entre os homens a heresia de que a
adorada Sombelene fosse imortal: pois apenas a sua beleza e a sua
linhagem eram divinas.
Seu pai tinha sido meio centauro e meio divino, sua mãe era a
filha de um leão do deserto e daquela esfinge que guarda as
pirâmides; e ela era mais mística do que Mulher.
Sua beleza era um sonho, era uma canção, o único sonho de
toda uma vida sonhado entre orvalhos encantados, a única canção
cantada para alguma cidade por um pássaro imortal que alguma
tempestade do Paraíso tivesse arrebatado para longe de suas plagas
natais. Aurora após aurora nascendo sobre montanhas de romance,
ou crepúsculo após crepúsculo nunca poderiam igualar a sua beleza.
Todos os vaga-lumes não saberiam o segredo entre eles, nem todas
as estrelas da noite. Os poetas nunca a cantaram, nem o anoitecer
imagina o que ela significa; a manhã a invejava, e era interdita aos
amantes.
Ela não fora desposada, não fora jamais cortejada. Os leões não
vinham cortejá-la porque temiam sua força, e os deuses não ousavam
amá-la porque sabiam que ela devia morrer.
Isso foi o que o entardecer sussurrou ao morcego, isso foi o
sonho no coração de Shepperalk, enquanto trotava cego através da
bruma. E, de repente, apareceu sob os seus cascos, na escuridão da
planície, a depressão das terras lendárias, e Zretazoola aninhada na
depressão, a banhar-se ao sol do entardecer.
Rápida e habilmente ele desceu pelo despenhadeiro e, entrando
em Zretazoola através do portão externo que olha diretamente para
as estrelas, passou num galope pelas ruas estreitas. Muitos
acorreram às sacadas enquanto ele galopava, muitos enfiaram a
cabeça para fora das janelas, e esses são mencionados na velha
canção. Shepperalk não se deteve para saudações ou para responder
às advertências das torres marciais. Ele atravessou o portão que
levava através da terra como o raio de seus ancestrais e, tal como
Leviatã saltando sobre uma águia, levantou-se das águas entre o
templo e o túmulo.
Com os olhos semicerrados, subiu galopando os degraus do
templo e, vendo muito obscuramente através das pálpebras, agarrou
Sombelene pelos cabelos, ainda não ofuscado pela sua beleza, e
assim a arrastou para fora. Então, saltando com ela sobre o abismo
sem fundo onde as águas do lago caem para o esquecimento através
de um buraco no mundo, levou-a para não se sabe onde, a fim de ser
seu escravo para todos os séculos que são concedidos à sua raça.
Três grandes sopros ele deu, enquanto ia, naquela trompa de
prata que é o imemorial tesouro dos centauros. Esses foram os seus
sinos nupciais.
OS NOVOS DEUSES -
FRAGMENTO I
E. M. Cioran

Um homem interessado na procissão das ideias e das crenças


irredutíveis achará digno do esforço se deter por um instante sobre o
espetáculo oferecido pelos primeiros séculos de nossa era:
descobrirá aqui o verdadeiro modelo de todos os tipos de conflito que
se encontram, em formas atenuadas, a cada momento da história.
Perfeitamente compreensível: essa é a época em que o homem odiou
mais, crédito que se deve conceder aos cristãos – febris, intratáveis,
especialistas desde o começo na arte da detestação; ao passo que os
pagãos já não podiam se valer de nada além do escárnio. A agressão
é um traço comum aos homens e aos novos deuses.
Se algum monstro de amenidade, ignorante do tédio, quisesse
tornar-se mesmo assim versado no assunto, ou pelo menos aprender
o que ele vale, o método mais simples seria ler alguns autores
eclesiásticos, a começar por Tertuliano, o mais brilhante de todos, e
terminando, digamos, com São Gregório de Nazianzo, rancoroso mas
insípido, cuja oração contra Juliano o Apóstata nos dá ganas de
conversão ao paganismo.
Ao imperador não se concede nenhuma virtude; com uma
satisfação que mal se disfarça, sua morte heróica na Guerra Pérsica
é contestada, pois Gregório alega que Juliano teria sido despachado
por “um bárbaro que, como bufão profissional, acompanhava os
exércitos com o intuito de divertir os soldados, com suas piadas e
gracejos, frente às durezas da guerra”. Nenhuma elegância,
nenhuma preocupação em se tornar digno de tal adversário. O que é
imperdoável, no caso do santo, é que ele conhecera Juliano em
Atenas, na época em que, jovens, ambos frequentaram as escolas
filosóficas de lá.
Nada é mais odioso do que o tom daqueles que defendem uma
causa – que se acha comprometida em aparência, mas que de fato é a
vencedora; daqueles que não podem ocultar seu deleite ante a ideia
do triunfo, nem podem deixar de converter seus verdadeiros terrores
em ameaças. Quando Tertuliano, sardônico e trêmulo, descreve o
Último Julgamento, “o maior de todos os espetáculos”, como o
chama, imagina seu próprio riso ao contemplar tantos monarcas e
deuses “emitindo gemidos pavorosos nas profundezas do abismo...”
Essa insistência em lembrar aos pagãos que eles estavam perdidos –
eles e os seus ídolos – seria capaz de exasperar até os mais
moderados. Uma série de libelos camuflados em tratados, a
apologética cristã representa o acme de um gênero bilioso.
O homem só respira à sombra de divindades erodidas. Quanto
mais nos convencemos disso, mais nos lembramos, com terror, a nós
mesmos que, se tivéssemos vivido no momento da ascensão da
Cristandade, poderíamos ter sucumbido ao seu fascínio. Os começos
de uma religião (tal como os começos de qualquer coisa) são sempre
suspeitos. Só eles, porém, possuem alguma realidade, só eles são
verdadeiros; verdadeiros e abomináveis. Não assistimos à fundação
de um deus – qualquer que seja ou de onde quer que venha –
impunemente. Nem é recente tal desvantagem: Prometeu já tinha
chamado a atenção para ela, vítima ele próprio de Zeus e da nova
gangue do Olimpo.
Muito mais que a perspectiva da salvação, foi a raiva contra o
mundo antigo que se abateu sobre os cristãos num único impulso
destrutivo. Desde que vinham, em sua maioria, de outras partes, seu
acesso de fúria contra Roma é compreensível. Mas de que espécie de
frenesi participava um cidadão quando se convertia?
Menos preparado que aqueles, restava-lhe apenas um recurso:
odiar-se a si mesmo. Sem esse desvio do ódio, no começo atípico,
mas depois contagioso, a Cristandade teria permanecido só uma
seita, limitada a uma clientela estrangeira, capaz apenas de trocar os
antigos deuses por um cadáver cravejado. Que o homem que se
pergunta como teria reagido à mudança de política de Constantino se
coloque no lugar de um partidário da tradição, um pagão orgulhoso
de ser pagão: como compactuar com a Cruz, como tolerar que aquele
símbolo de uma morte desgraçada fosse gravado nos estandartes de
Roma? No entanto tais homens se resignaram a isso, e é difícil para
nós imaginar o cúmulo de derrotas internas de onde brotaria essa
resignação. Se, no plano moral, podemos concebê-la como a
consumação de uma crise e assim lhe conceder o status ou a
desculpa de uma conversão, tal resignação aparece como uma
traição tão logo a consideramos do ponto de vista político.
Abandonar os deuses que fizeram Roma seria abandonar a própria
Roma, para formar uma aliança com essa “nova raça de homens
nascidos ontem, não tendo país nem tradição, coligados contra
qualquer instituição religiosa e civil, perseguidos pela lei,
universalmente execrados por causa de suas infâmias, e no entanto
gloriando-se dessa execração comum”. A diatribe de Celso data de
178. Cerca de dois séculos mais tarde, Juliano escreveria: “Se nos
reinados de Tibério ou Cláudio se encontrar uma única mente
distinta que se tenha convertido às ideias cristãs, considerem-me o
maior dos impostores.”
A “nova raça de homens” seria capaz de tudo para vencer os
escrúpulos dos mais cultivados. Como acreditar nesses novos que
estavam surgindo das profundezas mais baixas e cujos gestos, todos
eles, convidavam ao desdém? Pois o caso era: de que maneira aceitar
o Deus daqueles que desprezamos e Que era, além disso, de
manufatura recente? Somente a idade garantia a validade dos deuses
– todos eram tolerados, contanto que não tivessem sido moldados há
pouco. O que se considerava particularmente problemático era a
absoluta novidade do filho: um contemporâneo, um recém-chegado...
Essa figura desestimulante, que nenhum sábio tinha previsto ou
prefigurado, é que “chocava” mais. Seu aparecimento foi um
escândalo que levou quatro séculos para ser assimilado. O Pai, um
velho conhecido, era admitido; por razões táticas, os cristãos se
voltaram para Ele e falaram em Seu nome: não eram os livros que o
celebraram e cujo espírito os Evangelhos perpetuaram, de acordo
com Tertuliano, muitos séculos mais velhos que os templos, os
oráculos, os deuses pagãos? Os apologistas, uma vez postos a
caminho, chegam ao ponto de alegar que Moisés antecede a queda
de Tróia em vários milhares de anos. Tais divagações destinavam-se
a combater o efeito de opiniões como esta, de Celso: “Afinal, os
judeus, muitos séculos atrás, se organizaram numa nação,
estabeleceram leis próprias que conservam ainda hoje. A religião
que seguem, o que quer que valha e o que quer que se diga a seu
respeito, é a religião de seus ancestrais. Permanecendo fiéis a ela,
não fazem mais do que os outros homens, que preservam sempre os
costumes de seu país.”
Sacrificar ao preconceito da antiguidade era, implicitamente,
reconhecer os deuses autóctones como os únicos deuses legítimos.
Os cristãos estavam prontos, por motivos egoístas, a curvar-se
também a esse preconceito, mas não podiam, sem se destruírem, ir
além e adotá-lo totalmente, com todas as suas consequências. Para
um Orígenes, os deuses étnicos eram ídolos, relíquias do politeísmo;
São Paulo já os tinha reduzido à categoria de demônios. O judaísmo
considerava-os todos falsos, a não ser um, o seu próprio. “Seu único
erro”, diz Juliano, acerca dos judeus, “é que mesmo quando procuram
satisfazer seu deus, não servem os outros ao mesmo tempo”. No
entanto os elogia pela sua repugnância em seguir a moda no que diz
respeito à religião. “Desprezo a inovação em todas as coisas e
especialmente naquilo que concerne aos deuses” – uma afirmação
que o desacreditou e que foi usada para tachá-lo de “reacionário”.
Mas que “progresso”, pode-se perguntar, a Cristandade
representa em relação ao paganismo? Não existe um “salto
qualitativo” de um deus para o outro, nem de uma civilização para a
outra, e muito menos de uma linguagem para a outra. Quem ousaria
proclamar a superioridade dos escritores cristãos sobre os pagãos?
Mesmo os profetas, conquanto de uma inspiração e de um estilo
diferente daquele dos Padres da Igreja – São Jerônimo o confessa –
produziam aversão no leitor que tivesse retornado a Cícero ou a
Plauto. O “progresso”, ao mesmo tempo, estava encarnado nesses
Padres ilegíveis: então, desviar-se deles era cair na “reação”? Juliano
estava perfeitamente certo em preferir Homero, Tucídides ou Platão
a todos eles. O édito pelo qual proibiu os educadores cristãos de
explicarem os autores gregos tem sido duramente criticado não
apenas pelos seus adversários, mas também pelos seus admiradores,
em todas as épocas.
Sem tentar justificá-lo, não se pode deixar de compreendê-lo.
Ele lidava com fanáticos; para obter seu respeito era preciso,
ocasionalmente, exagerar tanto quanto eles mesmos, emitir algum
nonsense em seu favor, ou então o teriam escarnecido como não
mais que um amador. Ele, assim, convida esses “instrutores” a imitar
os escritores que estavam expondo e a compartilhar as opiniões
deles sobre os deuses. “Contudo, se eles acreditam que esses
autores se enganaram quanto ao ponto mais importante, que vão às
igrejas dos galileus para oferecer comentários sobre Mateus e
Lucas!” Aos olhos dos antigos, quanto mais deuses você reconhece,
melhor você serve a divindade, da qual eles não são senão os
aspectos, as faces. Tentar limitar o seu número era uma impiedade;
suprimi-los todos em favor de um único, um crime. É desse crime que
os cristãos se tornaram culpados. A ironia contra eles já não era
apropriada: o mal que estavam propagando tinha se espalhado
demais. Toda a dureza de Juliano deriva da impossibilidade de tratá-
los levianamente.
O politeísmo corresponde melhor à diversidade de nossas
tendências e de nossos impulsos, aos quais oferece a possibilidade de
expressar-se, de manifestar-se – cada um deles estando livre para
buscar, de acordo com sua natureza, aquele deus que melhor lhe
quadra no momento. Porém como lidar com um deus único? Como
afrontá-lo, como utilizá-lo? Na sua presença, vivemos continuamente
sob pressão. O monoteísmo inibe nossa sensibilidade: aprofunda-nos
porque nos estreita. Um sistema de constrangimentos que nos
fornece uma dimensão interior ao custo do florescimento de nossas
forças constitui-se num bloqueio, impede nossa expansão, tira-nos
dos eixos. Por certo, éramos mais normais quando tínhamos muitos
deuses do que somos agora, com apenas um. Se a saúde é um
critério, que embaraço o monoteísmo!
Sob o regime de vários deuses, o fervor é compartilhado.
Quando se dirige a um deus somente, ele se concentra, se exacerba e
termina por converter-se em agressão, em fé. A energia já não se
dispersa, é inteiramente focalizada numa direção. O que havia de
mais notável no paganismo era que nele não se fazia nenhuma
distinção radical entre acreditar e não acreditar, entre ter fé e não
ter. A fé é uma invenção cristã, supõe um desequilíbrio tanto no
homem quanto em Deus, desequilíbrio que um diálogo dramático e
desordenado estimula. Daí provém o caráter frenético da nova
religião. A antiga, tão mais humana, permitia a você a possibilidade
de escolher entre o deus que você queria; e, já que não lhe impunha
nenhum, ficava a seu critério inclinar-se para um ou outro. Quanto
mais caprichoso você fosse, mais precisaria mudar de deuses, passar
de um para outro, estando quase certo de encontrar os meios de
adorar a todos no curso de uma única existência. Além do mais, eles
eram modestos, queriam somente respeito: você os saudava, não se
ajoelhava diante deles. Eram idealmente apropriados para o homem
cujas contradições não se resolviam nem podiam resolver-se – para a
mente inquieta e atormentada. Quão afortunado era ele – esse
homem –, na sua confusão itinerante, em poder experimentá-los a
todos e poder estar quase certo de topar com aquele de que mais
precisava na ocasião! Após o triunfo da Cristandade, a liberdade de
manobrar entre os deuses e de escolher algum, ao seu talante, se
tornou inconcebível. Teria algum esteta, exausto mas ainda não
inteiramente desgostoso do paganismo, aderido à nova religião se
houvesse adivinhado que esta se estenderia por tantos séculos?
Trocaria o capricho apropriado a um regime de ídolos
intercambiáveis por um culto cujo Deus iria gozar de uma
longevidade tão assustadora?
Ao que parece, o homem se deu os deuses por uma necessidade
de se ver protegido, garantido – na realidade, por uma gana de
sofrer. Desde que acreditou na sua multiplicidade, abriu espaço para
uma liberdade de escolha, para evasões. Na sequência, limitando-se
a um deus, passou a ser afligido por um suplemento de amarras e
embaraços. Certamente não há outro animal que se ame e se odeie
tanto, até o limite do vício, e que se daria o luxo de uma sujeição tão
pesada. Quanta crueldade para com nós mesmos – unir forças com o
grande Espectro e fundir o nosso fardo ao Dele! O único Deus torna
a vida irrespirável.
A Cristandade lançou mão do rigor jurídico dos romanos e das
acrobacias filosóficas dos gregos, não para liberar a mente, mas
para acorrentá-la. E, acorrentando-a, a Cristandade obrigou a mente
a se aprofundar, a descer ao fundo de si mesma. Os dogmas
aprisionam-na, traçam-lhe limites externos que ela não pode
ultrapassar de modo algum. Ao mesmo tempo, deixam a mente livre
para explorar seu universo particular, para escrutinar sua própria
vertigem e, a fim de escapar à tirania das certezas doutrinais, para
procurar o ser – ou o seu equivalente negativo – nos confins de toda
sensação. Experiência da mente enjaulada, o êxtase é, por
necessidade, mais frequente numa religião autoritária do que numa
liberal: isso acontece porque o êxtase é um salto para a intimidade
das profundezas, um recurso à introversão, uma fuga em direção ao
eu.
Não tendo tido, por tão longo tempo, nenhum refúgio além de
Deus, mergulhamos tão profundamente Nele quanto em nós mesmos
(um mergulho que representa a única exploração autêntica que
fizemos em dois mil anos). Sondamos o Seu abismo e o nosso,
erodimos os Seus segredos um por um, enfraquecemos e
comprometemos a Sua substância pela dupla agressão do
conhecimento e da prece. Os antigos não sobrecarregavam seus
deuses: eram demasiado elegantes para aborrecê-los a esse ponto ou
para convertê-los em objeto de estudo. Desde que a transição fatal
da mitologia para a teologia ainda não se fizera, eles nada conheciam
dessa tensão perpétua, presente tanto nos arroubos dos grandes
místicos quanto nas banalidades do catecismo. Quando a terra se
torna sinônimo do impraticável, e quando sentimos que o contato que
nos prende a ela é fisicamente cortado, o remédio não está na fé ou
na negação da fé (ambas expressões da mesma fraqueza), mas
naquele diletantismo pagão, mais precisamente na ideia que temos
dele, na ideia que forjamos.
A desvantagem mais séria que um cristão encontra é aquela de
não ser capaz de servir conscientemente a mais do que um deus,
embora tenha latitude bastante para aderir, na prática, a muitos (o
culto aos santos!).
Uma adesão salutar que permitiu ao politeísmo prosseguir,
apesar de tudo, indiretamente. Sem ela, uma Cristandade
excessivamente pura desembocaria, com certeza, numa
esquizofrenia universal. Com o devido respeito a Tertuliano, a alma é
naturalmente pagã. Qualquer deus, quando responde às nossas
necessidades imediatas, representa para nós um acréscimo de
vitalidade, um estímulo, o que não é o caso quando esse deus nos é
imposto ou quando não corresponde à necessidade. O erro do
paganismo foi não ter aceitado e acumulado muitos deles: morreu
por generosidade e excesso de compreensão – morreu por falta de
instinto.
Se, para vencer o eu, essa lepra, não nos fiamos em nada mais,
a não ser nas aparências, é impossível não deplorar o recuo de uma
religião sem cenas, sem crises de consciência, sem incitações ao
remorso – uma religião igualmente superficial nos princípios e nas
práticas. Na antiguidade, a filosofia, e não a religião, é que era
profunda; na época moderna, a Cristandade foi a causa única da
“profundidade” e de todas as dilacerações que lhe são inerentes.
São os períodos que não têm uma fé específica (o helenístico ou
o nosso) que se ocupam em classificar os deuses, enquanto se
recusam a dividi-los entre verdadeiros e falsos. A noção de que todos
os deuses valem alguma coisa – de que cada um vale tanto quanto o
outro – é, pelo contrário, inaceitável nos intervalos em que prevalece
o fervor. Não podemos orar a um deus que é provavelmente
verdadeiro. A prece não se rebaixa com sutilezas nem tolera
distinções dentro do Supremo: mesmo quando duvida, só o faz em
nome da verdade. Não exortamos à nuança. Tudo isso passou a
importar depois da calamidade do monoteísmo.
Para a piedade pagã, as coisas eram diferentes. Em seu
Octavius, Minúcio Félix, antes de defender a posição cristã, faz com
que Cecílio, seu representante do paganismo, diga: “Vemos os deuses
nacionais sendo adorados: em Elêusis, Ceres; na Frigia, Cibele; em
Epidauro, Esculápio; na Caldéia, Baal; na Síria, Astarte; em Tauris,
Diana; Mercúrio entre os gauleses, e em Roma todos os deuses
juntos.” E acrescenta, acerca do deus cristão, o único a não ser
aceito: “De onde vem ele, esse deus único, solitário, derrelito, não
reconhecido por nenhuma nação livre, por nenhum reino...?” De
acordo com um antigo decreto romano, ninguém deveria adorar
exclusivamente deuses novos ou forasteiros, se eles não fossem
admitidos pelo Estado, mais precisamente pelo Senado, a única
instância competente para decidir quais mereciam ser adotados ou
rejeitados. O Deus cristão, aparecendo na periferia do Império,
chegando a Roma por meios indeclaráveis, cobraria mais tarde uma
revanche terrível pelo fato de ter sido obrigado a entrar na capital
mediante fraude.
Uma civilização é destruída apenas quando seus deuses são
destruídos. Os cristãos, não ousando atacar de frente o Império,
emboscaram sua religião. Deixaram-se perseguir apenas para poder
arremeter contra ela de modo mais efetivo, a fim de satisfazer o seu
apetite irrefreável por execração. Quão miseráveis seriam se
ninguém se dignasse a promovê-los à categoria de vítimas! Tudo no
paganismo, inclusive a tolerância, os exasperava. Fortes em suas
certezas, não podiam entender a resignação à probabilidade, própria
do paganismo, nem a adesão a um culto cujos padres, simples
magistrados designados para as formas perfunctórias do ritual, não
impunham a ninguém o fardo da sinceridade.
Quando nos damos conta de que a vida só é suportável se
podemos mudar de deuses, e de que o monoteísmo contém em germe
todas as formas de tirania, deixamos de ter pena da velha instituição
da escravidão. Era melhor ser escravo e poder adorar uma forma
escolhida de divindade do que ser “livre” e se confrontar com uma
única variedade do divino. Liberdade é o direito à diferença; plural,
postula a dispersão do absoluto, sua resolução numa poeira de
verdades, igualmente justificadas e provisórias. Há um politeísmo
subjacente na democracia liberal (chamem-no de politeísmo
inconsciente); inversamente, cada regime autoritário compartilha de
um monoteísmo disfarçado. Curiosos os efeitos da lógica monoteísta:
um pagão, ao tornar-se cristão, tendia à intolerância.
Melhor naufragar com uma horda de deuses acomodatícios do
que prosperar à sombra de um déspota! Numa época em que, por
falta de conflitos religiosos, presenciamos os ideológicos, a questão
que se coloca para nós é, com efeito, a mesma que atormentou a
antiguidade decadente: como renunciar a tantos deuses em nome de
um? – ressalvado que, no entanto, o sacrifício que se nos exige se
situa num nível inferior, não mais aquele dos deuses, mas o das
opiniões. Tão logo uma divindade, ou uma doutrina, exige
supremacia, a liberdade é ameaçada. Se vemos um valor supremo na
tolerância, então tudo o que lhe faz violência deve ser considerado
como um crime, a começar por esses empreendimentos de conversão
nos quais a Igreja se mantém inigualável. E, se ela exagerou a
gravidade das perseguições a que foi submetida e inchou
absurdamente o número de seus mártires, ela precisava encobrir
seus crimes com pretextos nobres: deixar sem punição doutrinas
perniciosas – não teria sido uma traição àqueles que se sacrificaram
por ela? Assim, foi num espírito de lealdade que a Igreja se lançou à
aniquilação dos “desviados”, e que pôde, depois de ter sido
perseguida por quatro séculos, tornar-se perseguidora ao longo de
quatorze. Esse é o segredo, o milagre da sua perenidade. Nunca
houve mártires vingados com tão sistemática tenacidade.
Tendo coincidido o advento da Cristandade com o do Império,
certos padres (Eusébio, entre outros) sustentaram que essa
coincidência tinha um significado profundo: um Deus, um imperador.
Na realidade, tratava-se de abolir os empecilhos nacionais, da
possibilidade de circular através de um vasto estado sem fronteiras,
o qual permitia à Cristandade infiltrar-se, tornar-se audaciosa. Sem
essa oportunidade de se expandir, teria permanecido como uma
simples dissidência dentro do judaísmo, em vez de se tornar uma
religião invasora e, o que é pior, uma religião da propaganda. Todos
os meios se justificavam para recrutar, para reforçar e para
expandir até mesmo essas bajulações diárias cujo aparato era uma
ofensa tanto para os pagãos quanto para os deuses olímpicos. Juliano
observa que, de acordo com os legisladores de outrora, “desde que a
vida e a morte diferem completamente, os atos relativos a uma e à
outra devem ser executados separadamente”. Essa disjunção, os
cristãos, em seu proselitismo fanático, não estavam dispostos a
aceitá-la: tinham consciência da utilidade do cadáver, das vantagens
a extrair dele.
O paganismo não elidia a morte, mas tinha o cuidado de não
deixá-la à mostra. Para o paganismo, era um princípio fundamental
supor que a morte não é consoante com o dia claro, que a morte é
um insulto à luz. A morte pertencia à noite e aos deuses infernais. Os
galileus encheram os sepulcros, diz Juliano, que nunca chama Jesus a
não ser de “o morto”. Para os pagãos dignos do nome, a nova
superstição podia parecer apenas uma exploração, um
aproveitamento do repulsivo. Tanto mais amargamente iriam
deplorar o progresso que ela estava a fazer em cada setor. O que
Celso não pôde conhecer, mas que Juliano entendeu perfeitamente,
eram os levianos da Cristandade – aqueles que, incapazes de
submeter-se a ela de modo pleno, mesmo assim se esforçavam para
segui-la, temendo que, se se mantivessem à parte, seriam excluídos
do “futuro”. Tanto por oportunismo quanto por medo da solidão,
queriam estar ao lado desses homens “nascidos ontem”, mas logo
chamados a exercer o papel de mestres, de torturadores.
Embora legítima a sua paixão pelos deuses defuntos, Juliano não
teve chance de revivê-los. Em vez de trabalhar para isso, devia ter
se aliado, num ato de fúria, com os maniqueus e, junto com eles, ter
minado a Igreja. Sacrificando seu ideal, teria ao menos satisfeito seu
rancor. Que outra carta além da vingança ainda lhe restava na mão?
Uma carreira magnífica de demolição se abria diante dele, e ele
talvez a abraçasse, não tivesse sido obnubilado por uma nostalgia do
Olimpo. Não se movem batalhas em nome de uma mágoa.
Morreu jovem, é verdade – depois de magros dois anos de
governo. Com mais dez ou vinte à sua frente, que serviço não teria
prestado a nós todos! Não que tivesse reprimido a Cristandade, mas
a teria ao menos compelido a uma modéstia maior. Seríamos menos
vulneráveis, pois não viveríamos como se fôssemos o centro do
universo, como se tudo, inclusive Deus, girasse à nossa volta. A
Encarnação é a bajulação mais perigosa de que fomos objeto. Ela
nos terá concedido um status excessivo, fora de qualquer proporção
com o que somos. Elevando a anedota humana à dignidade de um
drama cósmico, o cristianismo nos enganou quanto à nossa
insignificância, lançandonos na ilusão, naquele mórbido otimismo
que, a despeito de toda evidência, identifica o progresso com a
apoteose. Mais prudente, a antiguidade pagã colocava o homem em
seu lugar. Quando Tácito se pergunta se os eventos são regidos por
leis eternas ou se acontecem por acaso, procura se esquivar de
responder, deixando a questão em aberto; e essa indecisão
representa muito bem o sentimento geral dos antigos.
Mais do que qualquer outro, o historiador, confrontado com a
mistura de constantes e aberrações de que o processo histórico é
composto, necessariamente se vê forçado a oscilar entre o
determinismo e a contingência, o acidente e a lei, a física e a fortuna.
Não há desastre que não possamos remeter, conforme o quisermos,
a uma distração da Providência ou à indiferença do Acaso, ou
finalmente à inflexibilidade do Destino. Essa trindade, tão
convenientemente aplicável para qualquer um, especialmente para
uma mente desabusada, é a coisa mais confortadora que a sabedoria
pagã tem a propor. Nós modernos relutamos em recorrer a ela, tal
como não somos menos relutantes em esposar a noção
(especificamente antiga) de acordo com a qual tanto bênçãos quanto
desastres representam um total invariável que não pode sofrer
modificação. Com nossa obsessão do progresso e da regressão,
admitimos implicitamente que o mal muda, que diminui ou aumenta.
A identidade do mundo consigo próprio, a noção esplêndida de
que está condenado a ser o que é e de que o futuro não acrescentará
nada de essencial aos dados existentes, não tem mais nenhum apelo.
Isto, precisamente porque o futuro, objeto de horror ou de
esperança, é o nosso verdadeiro lugar; vivemos nele, ele é tudo para
nós. A obsessão com o advento, que é essencialmente cristã,
reduzindo o tempo ao conceito do iminente e do possível, torna-nos
inaptos a conceber um momento imutável que repouse em si mesmo,
livre do flagelo da sucessão. Mesmo privada do menor conteúdo, a
expectativa é um vazio que nos gratifica, uma ansiedade que nos
conforta, tão pouco propensos somos à visão estática. “Deus não tem
necessidade de corrigir Suas obras” – eis uma opinião de Celso, e
também a de toda uma civilização, que vai contra nossas inclinações,
contra nossos instintos, contra nosso próprio ser. Podemos ratificá-la
somente num instante inabitual, num lapso de sabedoria. Vai contra,
até mesmo, aquilo a que o crente se agarra, pois o de que mais se
censura Deus nos círculos religiosos é Sua boa consciência, Sua
indiferença à qualidade da Sua obra e Sua recusa em mitigar suas
anomalias. Precisamos ter um futuro a qualquer preço. A crença no
Juízo Final criou as condições psicológicas para uma crença no
significado da história.
Melhor ainda: todas as filosofias da história são meramente um
subproduto da ideia do Juízo Final. Não importa o quanto nos
inclinemos para uma teoria cíclica, a inclinação é apenas uma
aderência abstrata de nossa parte; comportamo-nos, de fato, como
se a história seguisse um desdobramento linear, como se as várias
civilizações que nela se têm sucedido umas às outras fossem meros
estágios ocupados, a fim de se manifestar e de se completar a si
mesmos, por um vasto desígnio, cujo nome varia de acordo com
nossas crenças ou nossas ideologias.
AS ABOMINAÇÕES DE YONDO
Clark Ashton Smith

A areia do deserto de Yondo não é como a areia de outros


desertos, pois Yondo é aquele que está mais próximo dos extremos
do mundo; e estranhos ventos, provenientes de um golfo que nenhum
astrônomo jamais sondou, esparramaram sobre os seus campos
devastados a poeira cinzenta de planetas corroídos, as cinzas negras
de sóis extintos. As montanhas escuras e ovaladas que se elevam de
sua superfície escavada, rugosa, não lhe pertencem de todo, pois
algumas são asteróides caídos, meio sepultos na areia abismal.
Algumas coisas vieram rastejando dos espaços inferiores, nos quais
os deuses de todas as terras decentes e bem ordenadas proíbem
incursionar; mas não existem tais deuses em Yondo, onde vivem os
gênios vetustos de estrelas abolidas e demônios decrépitos que
perderam o lar com a destruição de infernos antiquados.
Foi no entardecer de um dia de primavera que emergi daquela
interminável floresta de cactos na qual os inquisidores de Ong me
haviam abandonado, e vi aos meus pés os começos cinzentos de
Yondo. Repito: foi no entardecer de um dia primaveril; mas naquela
mata fantástica eu não encontrara o menor indício ou lembrança de
primavera; e as elevações inchadas, fulvas, mortiças e meio podres
através das quais eu abrira caminho não eram como os outros
cactos; antes, exibiam formas tão abomináveis que mal se poderia
descrever. O próprio ar pesava com os odores estagnados da
decadência; e liquens leprosos manchavam com frequência cada vez
maior o solo negro e a vegetação castanho-vermelha. Víboras verde-
claras erguiam suas cabeças de cactos prostrados e me observavam
com olhos de um brilho ocre, destituídos de pupilas ou pálpebras.
Essas coisas me inquietaram durante horas; e desgostaram-me os
fungos monstruosos, dotados de apêndices descoloridos e cabeças
infirmes, de repulsiva cor malva, que brotavam dos lábios úmidos de
fétidos poços; e as ondulações sinistras que surgiam e desapareciam
sobre a água amarela quando me aproximei não pareciam
encorajadoras para alguém cujos nervos ainda estavam tensos de
indizíveis torturas. Então, quando até mesmo os cactos manchados e
doentios se tornaram escassos ou nanicos, e veios de areia cinzenta
serpenteavam entre eles, comecei a suspeitar de quão enorme fora o
ódio que minha heresia despertou entre os sacerdotes de Ong e fiz
ideia da extrema malignidade de sua vingança.
Não entrarei em detalhes quanto às indiscrições que me
levaram – um desprevenido estrangeiro de terras distantes – de
encontro ao poder desses mágicos e mistagogos temíveis, que
servem a Ong, o que tem cabeça de leão. É doloroso recordar essas
indiscrições e os pormenores de meu aprisionamento; e aquilo que
menos quero lembrar são os estiradores de tripa de dragão cobertos
com pó de diamante onde os homens são estendidos nus, ou aquele
cômodo escuro, com janelas de seis polegadas junto ao chão por onde
vermes gordos entravam às centenas, vindos de uma catacumba
próxima. Basta dizer que, após terem gasto os recursos de sua
medonha fantasia, meus inquisidores me trouxeram vendado, em
lombo de camelo, durante horas incontáveis, para abandonar-me ao
primeiro clarão da aurora naquela floresta sinistra. Estava livre,
disseram-me, para ir aonde quisesse; e, como prova da clemência de
Ong, deram-me uma côdea de pão áspero e uma garrafa de couro
contendo água intragável, à guisa de provisão. Foi na tarde daquele
mesmo dia que alcancei o deserto de Yondo.
Até então, eu não pensara em retornar, não obstante os
terrores desses cactos apodrecidos ou as coisas malignas que viviam
entre eles. Agora, parei, conhecendo as lendas abomináveis da terra
para a qual viera, pois Yondo é um lugar aonde apenas uns poucos
tinham ido de sã consciência e por vontade própria.
Menos numerosos ainda foram os que retornaram – balbuciando
acerca de horrores desconhecidos e estranhos tesouros; e a eterna
paralisia que faz tremer os seus membros emaciados, junto com o
brilho louco de seus olhos em sobressalto, por baixo de frontes e
pálpebras descoradas, não serve de incentivo para os outros. Assim
foi que hesitei no limiar dessas areias cinzentas e senti o tremor de
um novo medo invadir-me as entranhas. Seria horrendo prosseguir, e
horrendo retornar, pois eu estava certo de que os sacerdotes tinham
se preparado para esta última eventualidade. Então, após um
instante, continuei a andar, cantarolando baixo a cada passo, e
seguido por alguns insetos de pernas compridas que encontrara
entre os cactos. Esses insetos tinham a cor de cadáveres de uma
semana e eram do tamanho de tarântulas; mas, quando me voltei e
pisei no que vinha à frente, um cheiro mefítico se exalou, o qual me
pareceu mais nauseante até do que a própria cor. A partir de então,
passei a ignorá-los o mais que podia.
Com efeito, tais coisas erram horrores menores no meu
infortúnio. À minha frente, sob um sol imenso, de um escarlate
doentio, Yondo se estendia interminável, tal como a terra de um
sonho de haxixe, contra o escuro do céu. Ao longe, na fímbria mais
distante, jaziam aquelas montanhas ovaladas que mencionei; mas em
meio estavam os horríveis vazios de desolação cinzenta e colinas
baixas, desnudas, semelhantes a dorsos de monstros semi-sepultos.
Lutando para avançar, avistei grandes poços onde meteoros
afundaram, e jóias multicores que eu não saberia nomear brilhavam
e cintilavam sobre a poeira. Havia ciprestes caídos que apodreciam
junto a mausoléus arruinados, sobres cujos mármores manchados de
liquens se arrastavam camaleões gordos levando pérolas reais em
suas bocas. Escondidas pelas cristas mais baixas, havia cidades das
quais sequer uma estela jazia intacta – cidades vastíssimas,
imemoriais, desintegrando-se, de fragmento em fragmento, de átomo
em átomo, para alimentar infinitos de desolação. Arrastei os
membros exaustos de tortura através de vastos montes de ruínas que
um dia foram templos imponentes; e deuses caídos franziam o cenho
em meio ao arenito decadente ou miravam de entre o pórfiro
despedaçado aos meus pés. Sobre tudo pairava um silêncio mau,
interrompido apenas por um gargalhar satânico de hienas, um ciciar
de cobras por entre as moitas de espinheiros mortos ou antigos
jardins consumidos pela urtiga e pela fumária.
No topo de um dos muitos platôs em forma de monte, vi as
águas de um lago estranho, insondavelmente escuro e verde como
malaquita, das quais surgiam refulgentes depósitos de sal. Essas
águas estavam muito abaixo de mim, numa abertura em forma de
xícara, mas quase junto aos meus pés, sobre as encostas gastas pelas
águas, havia montes daquele sal antigo; e compreendi que o lago
nada mais era que os resíduos amargos e escassos de algum mar.
Descendo, aproximei-me das águas escuras e comecei a lavar as
mãos; mas havia uma ardência cortante e corrosiva naquela água
salobra e imemorial, e logo desisti, preferindo o pó do deserto que
me envolvia como um lento sudário. Decidi descansar por um
momento; e a fome forçou-me a consumir parte da ração minguada e
risível que os sacerdotes me deram.
Era minha intenção prosseguir, se minhas forças o permitissem,
e alcançar as terras ao norte de Yondo.
Essas terras são desoladas, por certo, mas sua desolação é de
um tipo mais comum do que aquela de Yondo; e sabe-se que certas
tribos de nômades as visitavam ocasionalmente. Se a fortuna me
favorecesse, eu poderia juntar-me a uma dessas tribos.
A ração escassa me reanimou; e, pela primeira vez em semanas
das quais eu perdera a noção, ouvi o sussurro de uma débil
esperança. Os insetos de cor cadavérica há muito deixaram de me
seguir; e depois deles, a despeito do silêncio sepulcral e tétrico e dos
montes de poeira de ruínas intemporais, eu nada encontrei que fosse
tão horrível. Comecei a pensar que os terrores de Yondo tinham sido
exagerados. Foi então que ouvi uma risota diabólica na colina acima.
O som começou com uma subitaneidade aguda que me estarreceu
para além de qualquer razão e continuou, indefinidamente, sem
jamais variar numa nota sequer, tal como o riso de um demônio
idiotizado. Voltei-me e vi a boca de uma caverna escura denteada de
estalactites verdes, que eu não percebera antes. O som parecia vir
de dentro da caverna.
Com uma atenção medrosa, olhei através da abertura negra. O
riso tornou-se mais alto, mas por um instante nada vi. Finalmente,
percebi um fulgor esbranquiçado na escuridão; então, com a
velocidade de um pesadelo, uma Coisa monstruosa emergiu. Seu
corpo era pálido, sem pêlos, em forma de ovo e volumoso como o de
uma cabra prenha; e esse corpo era amparado por nove pernas
trêmulas, com muitas junções, como as pernas de uma aranha
descomunal. A criatura passou por mim, correndo até a margem da
água; e vi que não havia olhos em sua face estranhamente oblíqua;
mas duas orelhas compridas, em forma de facas, se elevavam de sua
cabeça; e um focinho fino, rugoso, pendia sobre a boca, cujos lábios
flácidos, abertos naquele gargalhar eterno, deixavam ver fileiras de
dentes de morcego. Bebeu da água amarga, ácida, e então, satisfeita
a sede, voltou-se e pareceu notar minha presença, porquanto o
focinho rugoso se ergueu e apontou em minha direção, farejando
alto. Se a criatura fugiria ou se intentava atacar-me nunca saberei;
pois, sem poder suportar por mais tempo essa visão, pus-me a
correr, as pernas tremendo, por entre as grandes elevações e as
grandes jazidas de sal à margem do lago.
Totalmente sem fôlego, parei afinal e vi que não fora seguido.
Sentei-me, ainda tremendo, à sombra de uma elevação, mas apenas
para obter um breve descanso, pois aí começou a segunda dessas
aventuras bizarras que me obrigaram a crer em todas as lendas
insanas que ouvira. Mais estarrecedor do que aquela risota diabólica
foi o grito que ecoou junto ao meu cotovelo, surgido da areia salina –
o grito de uma mulher possuída por uma agonia atroz ou atacada por
demônios. Voltando-me, deparei-me com uma verdadeira Vênus, de
uma brancura perfeita, mas imersa até o umbigo na areia. Seus
olhos, arregalados de terror, imploravam-me e suas mãos de lótus se
estendiam num gesto de súplica. Saltei para junto dela – e toquei uma
estátua de mármore, cujas pálpebras esculpidas estavam imersas
numa sonho enigmático de ciclos extintos e cujas mãos estavam
enterradas junto com a graça perdida dos quadris e das coxas.
Novamente fugi, tomado pelo terror, e novamente ouvi o grito de
uma mulher em agonia. Mas desta vez não me voltei para ver os
olhos e as mãos suplicantes.
Subindo a longa encosta ao norte daquele lago maldito,
tropeçando em meio às elevações de basalto e às arestas cortantes,
recobertas por metais esverdeados, avançando por entre poços de
sal ou sobre terraços esculpidos pelas águas evanescentes em éons
ancestrais, fugi como um homem foge de um sonho sinistro a outro
sonho numa noite demoníaca. Às vezes, soava um sussurro frio junto
à minha orelha, que não era causado pelos ventos da fuga; e, olhando
para trás, enquanto alcançava um dos terraços mais elevados,
percebi uma sombra singular que corria no mesmo ritmo que a
minha. Essa sombra não era a sombra de um homem, nem de um
macaco, nem de nenhum animal conhecido; a cabeça era grotesca e
alongada demais, o corpo demasiadamente arqueado, e eu não pude
determinar se a sombra tinha cinco pernas ou se o que me pareceu
ser a quinta era apenas uma cauda.
O terror me restituiu as forças; e só quando alcancei o topo da
colina é que tive coragem de olhar para trás outra vez. Mas a
sombra fantástica ainda me seguia passo a passo; e agora me
chegava um odor curioso e nauseante, medonho como o odor de
morcegos que tivessem pendido num matadouro em meio a montes
de podridão. Corri por léguas, enquanto o sol vermelho se punha lá
adiante, por sobre as montanhas dos asteróides, a oeste; mas,
embora tivesse o comprimento da minha, a estranha sombra
mantinha sempre a mesma distância atrás de mim.
Uma hora antes do pôr-do-sol, cheguei a um círculo de pequenos
pilares que jaziam miraculosamente intactos em meio a ruínas que
eram como uma vasta pilha de cacos. Ao passar por entre os pilares,
ouvi um gemido, tal como o gemido de um animal feroz, entre a raiva
e o medo, e vi que a sombra não me seguira para dentro do círculo.
Parei e aguardei, conjeturando ter encontrado um santuário onde
meu indesejável acompanhante não se atreveria a penetrar; o que a
ação da sombra confirmou, pois a Coisa hesitou e então correu em
volta do círculo, parando às vezes entre dois pilares; e por fim, sem
deixar de gemer, fugiu e desapareceu no deserto, no rumo do sol
poente.
Durante meia hora, não ousei me mexer; então, a iminência da
noite, com todas as suas promessas de renovado terror, forçou-me a
prosseguir desesperadamente em direção ao norte; pois agora eu
estava bem no coração de Yondo, onde poderiam habitar demônios
ou fantasmas que talvez não respeitassem o santuário das colunas
intactas. Agora, enquanto eu avançava, a luz do sol mudava
estranhamente; pois o globo vermelho próximo ao horizonte
irregular afundava e ardia num cinturão de névoa miasmática, onde a
poeira erguida de todos os templos e necrópoles destroçados de
Yondo se misturava aos vapores aziagos que subiam para o céu,
exalando de enormes golfos negros que jaziam para além da orla
mais extrema do mundo. A essa luz, a vasta desolação, as montanhas
redondas, as colinas serpenteantes, as cidades perdidas eram
banhadas num escarlate fantasmal e escuro.
Então, do norte, onde as sombras se adensavam, veio surgindo a
figura curiosa de um homem alto, inteiramente coberto por uma cota
de malha – ou, antes, o que pensei ser um homem. Quando a figura se
aproximou, produzindo ruídos pressagos a cada passo que dava
sobre o solo coberto de cacos, vi que sua armadura era feita de
bronze salpintado de verde; e um elmo desse mesmo metal,
guarnecido de chifres espiralados e de uma crista, se elevava bem
alto sobre sua cabeça. Digo sua cabeça, pois a escuridão aumentava,
e eu nada podia ver claramente; mas, quando a aparição chegou mais
perto, percebi que não havia face alguma por detrás da viseira do
capacete bizarro cujos contornos se delinearam por um momento
contra a luz evanescente. Então a figura passou e, chocalhando
funestamente, desapareceu.
Mas, em seus calcanhares, antes que o pôr-do-sol se
completasse, veio uma segunda aparição, dando incríveis passadas e
parando quase junto de mim sob o crepúsculo vermelho – a
monstruosa múmia de algum rei antigo, ainda coroado num ouro sem
manchas, mas impondo ao meu olhar uma visão que mais do que o
tempo ou os vermes haviam devastado. Bandagens partidas
adejavam em torno às pernas de esqueleto, e, sobre a coroa
cravejada de safiras e rubis alaranjados, alguma coisa negra se
mexia e balançava horrivelmente; mas, por um instante, sequer
sonhei com o que poderia ser. Então, no meio dela, dois olhos
oblíquos e vermelhos se abriram e brilharam como brasas infernais,
e dois caninos ofídicos cintilaram numa boca de macaco. Uma cabeça
achatada, sem pêlos, disforme sobre um pescoço de extensão
desproporcional abaixou-se, indizivelmente, e sussurrou ao ouvido da
múmia. Então, com uma passada, o morto-vivo titânico encurtou pela
metade a distância que nos separava, e de entre as dobras
esfarrapadas do tecido mofado, um braço esquálido surgiu, e dedos
descarnados, aduncos, carregados de gemas brilhantes, se ergueram
e tentaram agarrar minha garganta.
De volta, de volta através de éons de loucura e terror, num voo
precipitado, vertical, corri e me afastei desses dedos que se erguiam
sempre atrás de mim na escuridão; de volta, de volta para sempre,
sem pensar, sem hesitar, de volta a todas as abominações por que
passara, de volta, no espesso crepúsculo, às ruínas fragmentadas,
inomináveis, ao lago assombrado, à floresta dos cactos malignos, e
aos inquisidores cruéis e cínicos de Ong, que aguardavam o meu
retorno.
PROVÁVEL AVENTURA DE TRÊS
LITERATOS
Lord Dunsany

Quando vieram os nômades para El Lola, já não tinham mais


canções, e a ideia de roubar a caixa áurea se impôs com toda a
magnitude. Por um lado, muitos haviam procurado pela caixa áurea,
receptáculo (como bem sabem os Etíopes) de poemas de valor
fabuloso, e o destino desses é conhecido por toda a Arábia; por outro
lado, era melancólico sentar-se à noite em volta da fogueira, sem
novas canções.
Foi a tribo de Heth que discutiu esses assuntos num anoitecer
das planícies que estão ao pé do pico de Mluna. Sua terra natal
estava na rota dos andarilhos que percorrem o mundo; e os mais
velhos se aborreciam porque não havia novas canções; ao passo que,
intocado pelas preocupações humanas, intocado até mesmo pela
noite que dissimulava as planícies, o pico de Mluna, calmo sob o
lusco-fusco, se elevava sobre a Terra Dúbia. E era lá, na planície, do
lado conhecido de Mluna, logo que a estrela da tarde veio surgindo
como um ratinho e as chamas da fogueira agitaram suas plumas sem
o acompanhamento de nenhuma canção, que aquele plano temerário
foi concebido às pressas pelos nômades – plano que o mundo chamou
de Em Busca da Caixa Áurea.
Precaução mais sábia os nômades mais velhos não poderiam ter
tomado do que escolher para chefe aquele exato Slith, aquele mesmo
ladrão que (ainda agora, enquanto escrevo) em quanta sala de aula
as governantas ensinam roubou uma marcha ao Rei de Westalia. No
entanto o peso da caixa era grande, e outros teriam de acompanhá-
lo; e Sippy e Slorg não eram mais ágeis ladrões do que se podem
encontrar hoje em dia entre vendedores de antiguidades.
Assim, no dia seguinte esses três galgaram os cimos de Mluna e
se ajeitaram para dormir conforme puderam entre as suas neves – o
que era melhor do que arriscar-se a passar a noite nas florestas da
Terra Dúbia. E a manhã surgiu radiante, e os pássaros estavam
cheios de cantos, mas a floresta que se estendia abaixo e a vastidão
que havia para além dela e os rochedos nus e ominosos sugeriam
uma ameaça indizível.
Embora Slith tivesse uma experiência de vinte anos de roubos,
pouco falou. Apenas, se o pé de algum dos outros fazia uma pedra
rolar ou, mais tarde na floresta, se algum deles pisava num graveto,
ele murmurava, secamente, para eles as mesmas palavras: “Isso não
é negócio”. Ele sabia que não podia fazer deles ladrões melhores
durante uma viagem de dois dias, e quaisquer que fossem a suas
dúvidas não mais interferiu.
Dos cumes de Mluna entraram nas nuvens, e das nuvens
passaram à floresta, para cujos bichos nativos – como bem sabiam os
três ladrões – toda carne era alimento, fosse carne de peixe ou de
homem. Ali, os ladrões tiraram, com certa idolatria, de seus bolsos
cada qual um deus separado e rezaram por proteção na mata
funesta, e contavam assim com uma chance tríplice de escapar, já
que se qualquer coisa comesse um deles era certo que comeria os
outros, e confiavam em que o corolário seria verdadeiro e que todos
escapariam se um deles o fizesse. Se um desses deuses foi propício e
estava desperto, ou se todos os três, ou se foi o acaso que os
conduziu através da floresta sem serem abocanhados pelos bichos
horrendos, ninguém sabe. Mas certamente nenhum dos emissários
do deus que eles mais temiam nem a ira do deus específico daquele
lugar ominoso trouxe a fatalidade para os três aventureiros naquela
hora. E assim foi que chegaram ao Agreste Trovejante, no coração
da Terra Dúbia, com suas colinas tempestuosas, que os terremotos
ninaram por um tempo. Algo tão imenso que aos homens pareceria
injusto que se movesse com tamanha suavidade estacou
esplendidamente perto deles, e tão logo o notaram e correram uma
só palavra ecoou em suas três imaginações: “Se... se... se...” E
quando esse perigo passou, puseram-se outra vez a caminho,
cautelosamente, e de repente viram o pequeno e inofensivo mipt,
meio fada e meio gnomo, a emitir chiados agudos e contentes na orla
do Mundo. E então passaram ao largo, despercebidos, pois sabiam
que a bisbilhotice do mipt se tornara fabulosa e que, mesmo
inofensivo, não era de guardar segredo. Porém tiveram repugnância
do modo como ele rói ossos brancos, e ele não admitiria que tivessem
repugnância, pois não é comum que aventureiros se preocupem com
quem come os seus ossos. Seja como for, passaram ao largo do mipt
e deram quase imediatamente com a árvore retorcida, meta de
chegada da sua aventura, e sabiam que ao lado deles estava a fenda
do Mundo e a ponte entre Mal e Pior, e que logo abaixo estava a
casa rochosa do Possuidor da Caixa.
Seu plano era simples: enfiar-se pelo corredor sobre o paredão
de cima, passar correndo, sem fazer barulho (descalços,
naturalmente), sob o aviso aos viajantes que está gravado na rocha,
o qual os intérpretes entendem como significando “É melhor não”;
não tocar os pomos que lá estão de propósito, na ladeira embaixo, à
direita, e assim chegar até o guardião do pedestal que dormira por
mil anos e poderia estar dormindo ainda; e entrar através da janela
aberta. Um dos homens deveria esperar do lado de fora, perto da
fenda do Mundo, até que os outros saíssem com a caixa áurea; e, se
chamassem por socorro, tentaria de imediato desprender o grampo
que segura a fenda. Quando tivessem agarrado a caixa, viajariam
durante toda a noite e o dia seguinte, até que as massas de nuvens
que envolviam as encostas de Mluna estivessem entre eles e o
Possuidor da Caixa.
A porta no paredão rochoso estava aberta. Eles desceram, sem
um murmúrio, pelos degraus frios, Slith a guiá-los por todo o trajeto.
Um olhar cobiçoso, não mais do que isso, foi o que cada qual dirigiu
aos belos pomos. O guardião ainda dormia sobre o seu pedestal.
Slorg subiu por uma escada, que Slith sabia onde ficava, até o
grampo de ferro na fenda do Mundo, e esperou aí, com uma lâmina
na mão, ouvindo atentamente, enquanto seus amigos invadiam a
casa; e não houve som algum. E finalmente Slith e Slippy
encontraram a caixa áurea: tudo parecia acontecer como tinham
planejado, apenas restava conferir se era a caixa certa e levá-la para
fora daquele lugar amedrontador. Sob o abrigo do pedestal, tão
perto do guardião que podiam sentir seu calor – que paradoxalmente
teve o efeito de gelar o sangue do mais corajoso deles –, quebraram
a trava de esmeralda e abriram a caixa áurea. E puseram-se a ler, à
luz de engenhosas fagulhas que Slith sabia como produzir, e até essa
pouca luz eles esconderam com os seus corpos. Que enorme alegria,
mesmo nesse momento perigoso, postados entre o guardião e o
abismo, ao verem que a caixa continha quinze incomparáveis odes
em metros alcaicos, cinco sonetos que eram de longe os mais bonitos
do mundo, nove baladas à maneira de Provença que não tinham rivais
entre os tesouros do homem, um poema dedicado a uma mariposa em
trinta e oito estrofes perfeitas, uma peça em versos brancos de mais
de cem linhas num nível ainda não atingido por homem nenhum, bem
como quinze liras nas quais negociante algum se atreveria a pôr
preço. Eles os teriam lido outra vez, pois eram coisas que trariam
lágrimas de alegria a qualquer um e recordações de coisas feitas na
infância, e que convocavam doces vozes de sepulcros distantes; mas
Slith apontou, imperiosamente, para o caminho pelo qual tinham
vindo e apagou a luz. E Slorg e Sippy suspiraram, e enfim pegaram a
caixa.
O guardião dormia ainda o sono que sobreviveu por mil anos.
Quando se afastaram, viram aquela cadeira propícia perto da
orla do Mundo na qual, desde a última vez, o Possuidor da Caixa teria
se sentado para ler, egoísta e sozinho, as mais belas canções e os
mais belos versos com que poeta algum jamais sonhou.
Chegaram em silêncio ao pé da escada, e aconteceu que,
enquanto se aproximavam em segurança, na hora mais secreta da
noite, alguma mão acendeu uma luz indiscreta na câmara superior –
acendeu-a e não fez barulho.
Por um instante poderia ter sido uma luz ordinária, tão fatal
quanto qualquer uma seria num momento como aquele, mas, quando
começou a segui-los como um olho e a se tornar mais e mais
vermelha enquanto os vigiava, então até o otimismo se desesperou.
E Sippy, desorientado, tentou a fuga, e Slorg, igualmente
desorientado, tentou se esconder; mas Slith, sabendo bem por que
aquela luz tinha sido acesa naquela câmara secreta e quem a tinha
acendido, saltou para além da borda do Mundo e está caindo até hoje
através da treva silenciosa do abismo.
HOMEM, O ANIMAL INSONE
E.M. Cioran

Quem quer que tenha dito que o sono é o equivalente da


esperança teve uma intuição penetrante da assustadora importância
não só do sono mas também da insônia! A importância da insônia é
tão colossal que sou tentado a definir o homem como sendo o animal
que não pode dormir. Por que chamá-lo de animal racional, se há
outros igualmente razoáveis? Mas não existe outro animal em toda a
criação que queira dormir e não possa. O sono é esquecimento: o
drama da vida, suas complicações e obsessões se desfazem
completamente, e cada despertar é um novo começo, uma nova
esperança.
Assim a vida mantém uma agradável descontinuidade, a ilusão
de uma permanente regeneração. A insônia, por sua vez, da à luz um
sentimento de tristeza irrevogável, de desespero e agonia. O homem
saudável – o animal – apenas chapinha na insônia: ele nada sabe
sobre esses que dariam um reino por uma hora de sono inconsciente,
esses que se horrorizam tanto diante de uma cama quanto diante de
uma mesa de tortura. Há um vínculo estreito entre a insônia e o
desespero. A perda da esperança vem com a perda do sono. A
diferença entre o paraíso e o inferno: pode-se sempre dormir no
paraíso, mas nunca no inferno. Deus puniu o homem tirando-lhe o
sono e dando-lhe o conhecimento. Não é a privação do sono uma das
torturas mais cruéis praticadas nas prisões? Os loucos sofrem
enormemente com a insônia, daí as suas depressões, o seu desgosto
com a vida, e os seus impulsos suicidas. Não é a sensação –típica das
alucinações acordadas – de mergulhar num abismo uma forma de
loucura? Os que cometem suicídio atirando-se de pontes para dentro
dos rios ou de edifícios sobre os calçamentos, motiva-os por certo um
desejo cego de cair e a atração ofuscante das profundezas abismais.
Minha alma é caos, como pode então ser? Tudo está em mim:
procura e encontrarás. Sou um fóssil que data do princípio do mundo:
nem todos os seus elementos cristalizaram completamente, o caos
inicial ainda transparece. Sou a absoluta contradição, o clímax das
antinomias, o último limite das tensões; em mim tudo é possível, pois
sou aquele que no momento supremo, diante do nada absoluto,
gargalhará.
O MUNDO ETERNO
Clark Ashton Smith

Chistopher Chandon foi até a janela do seu laboratório, para


olhar pela última vez a solidão montanhosa que se estendia adiante, a
qual com toda probabilidade ele jamais veria de novo. Sem qualquer
hesitação e, no entanto, não sem algum pesar, ele contemplou o
desfiladeiro acidentado logo abaixo, onde a penumbra gótica dos
abetos e dos açafrões era atravessada pelo fio de prata de um
pequeno córrego rumorejante.
Avistou a escarpa granítica à sua frente e os dois picos mais
próximos das Sierras, cujo cinza-azulado estava coberto pelas
primeiras neves do outono; e viu a passagem entre eles, que jazia
alinhada com a sua rota presumível através do contínuo espácio-
temporal.
Então se voltou para o estranho aparato cuja construção lhe
custara tantos anos de labor e de experimentações. Suspenso sobre
uma plataforma no centro do cômodo, havia um grande cilindro,
semelhante a uma campânula de mergulho. As paredes mais baixas,
formando a base, eram de metal, e a metade superior era feita
inteiramente de um vidro indestrutível.
Uma rede, inclinada num ângulo de quarenta graus, se estendia
entre as duas partes. Nela, Chandon pretendia atar-se com
segurança, garantindo a si mesmo toda a proteção possível contra as
velocidades inauditas do voo que intentava fazer. Olhando através do
vidro, poderia observar com conforto qualquer fenômeno visual que a
jornada viesse a oferecer.
O cilindro fora montado diretamente em frente a um enorme
disco com dez pés de diâmetro, sobre cuja superfície prateada havia
uma centena de perfurações. Por trás dele se distribuía uma série de
dínamos, desenhados para produzir uma força obscura, a qual, por
falta de nome melhor, Chandon chamara de força negativa do tempo.
Tal força ele a isolara, ao custo de infinitos esforços, da energia
positiva do tempo – essa gravidade quadridimensional que gera e
controla a rotação dos eventos.
A força negativa, amplificada mil vezes pelos dínamos, ejetaria a
uma distância incalculável no tempo e no espaço atuais qualquer
coisa que se achasse em seu caminho. Não estava destinada a
permitir uma viagem através do passado ou do futuro, mas a produzir
uma projeção instantânea através da corrente temporal que envolve
todo o cosmo em seu fluir sempre inalterado e constante.
Infelizmente, Chandon não fora capaz de construir uma máquina
dotada de mobilidade, na qual pudesse viajar, como num foguete, e
talvez retornar ao ponto de partida. Ele deveria mergulhar
audaciosamente e para sempre no desconhecido. Mas tinha equipado
o cilindro com reservas de oxigênio, luz elétrica e calor, bem como
com suprimentos de água e de alimentos suficientes para um mês.
Mesmo que seu voo terminasse no espaço vazio ou em algum mundo
cujas condições fossem totalmente impróprias à sobrevivência
humana, ele ao menos viveria o bastante para fazer uma observação
completa dos arredores.
Sua teoria era, porém, de que a jornada não terminaria no mero
éter, mas de que os corpos cósmicos fossem núcleos de gravidade
temporal e que a diminuição da força propulsora permitiria que o
cilindro fosse atraído por um deles.
Os perigos de sua aventura estavam mais do que previstos, mas
ele os preferia às certezas monótonas e seguras da vida terrena.
Sempre o exasperara um sentimento de limitação, que o fizera
aspirar pelas vastidões inexploradas. Ardia nele o pensamento de
outros horizontes além destes que nunca foram ultrapassados.
Com um estranho tremor em seu peito, ele abandonou a
paisagem alpina e deu início à tarefa de se fechar no cilindro. Tinha
instalado um mecanismo de tempo, que automaticamente dispararia
os dínamos a uma hora determinada.
Amarrado à rede com tiras de couro afiveladas sobre a cintura,
tornozelos e ombros, ele ainda tinha algo como um minuto de espera,
antes que a força fosse ligada. Nesses momentos, pela primeira vez,
baixou sobre ele, em torrente, todo o amplo terror e o sentimento
dos riscos de sua experiência. E sentiu-se quase tentado a se desatar
e a abandonar o cilindro antes que fosse tarde. Tais sensações eram
semelhantes às de quem está prestes a ser lançado através da boca
de um canhão.
Suspenso num extraordinário silêncio, do qual todo som fora
excluído pelas paredes hermeticamente vedadas, ele se entregou ao
desconhecido, em meio às mais conflitantes conjeturas acerca do que
ocorreria. Poderia ou não sobreviver à passagem por dimensões
desconhecidas, numa velocidade que faria parecer vagarosa a
própria luz. Mas, se sobrevivesse, poderia alcançar num átimo as
galáxias mais distantes.
Seus medos e conjeturas foram interrompidos por alguma coisa
que veio com a subitaneidade do sono – ou da morte. Tudo pareceu
se dissolver e se dissipar numa fulguração aguda, e então passou
diante dele um panorama fervilhante e fragmentado, uma babel de
impressões inefáveis, variadas e múltiplas. Era como se ele possuísse
um milhar de olhos com os quais apreendia num único instante o fluxo
de muitos éons, o tropel de mundos incontáveis.
O cilindro parecia já não existir, e ele se sentiu como se não se
movesse. Mas todos os sistemas do tempo passavam por ele, que
agarrava os retalhos e fragmentos de um milhão de cenas: objetos,
faces, formas, ângulos e cores dos quais se recordaria depois como
quem recorda as visões de delírio amplificadas e distorcidas que
certas drogas proporcionam.
Viu as gigantescas florestas sempre verdes de líquen, os
continentes de grama de Brobdingnag, em planetas mais remotos
que os sistemas de Hércules. Diante dele desfilaram, como uma
arquitetura cenográfica, as cidades altíssimas que ostentam
atmosferas suntuosas e variegadas de rosa e esmeralda e púrpura,
envolta nos raios convergentes de triplos sóis. Contemplou coisas
inomináveis em esferas não catalogadas pelos astrônomos. Acorreu
sobre ele todo o ciclo tremendo e ilimitado da vida trans-estelar, o
ciclorama das morfologias inesgotáveis.
Pareceu-lhe que os limites de sua mente tinham sido ampliados
para incluir todo o fluxo cósmico; que seu pensamento, tal como a
teia de algum aracnídeo colossal e divino, se estendia entre mundos e
mundos, galáxias e galáxias, por sobre o golfo tremendo do contínuo
infinito.
Logo, tão subitamente quanto começara, a visão terminou,
sendo substituída por alguma coisa de qualidade totalmente diversa.
Só depois é que Chandon se deu conta do que tinha acontecido e
pôde perceber a natureza e as leis do novo ambiente para dentro do
qual havia sido projetado. A esse tempo (se se pode empregar uma
palavra tão inexata quanto “tempo”), ficou totalmente incapaz de
qualquer coisa além de uma impressão de visualidade contemplativa
– o estranho mundo para o qual ele olhava através da parede
transparente do cilindro: um mundo que poderia ter sido o sonho de
algum geômetra louco pela infinitude.
Era como uma geleira planetária, adornada por formas de uma
ordem grotesca, banhada por uma luz branca e imóvel e obedecendo
a leis de perspectiva estranhas às do nosso mundo. As distâncias
para as quais ele olhava eram literalmente intermináveis. Não havia
nenhum horizonte, e no entanto nada parecia diminuir em tamanho
ou definição, por mais remoto que estivesse. Parte da impressão que
Chandon tinha era de que esse mundo se curvava sobre si próprio,
tal como a superfície interior de uma esfera oca, e de que as imagens
retornavam sobre sua cabeça depois de desaparecerem de sua visão.
Mais próximo dele do que qualquer objeto no cenário e
preservando a mesma distância relativa que em seu laboratório, ele
percebeu uma larga seção circular de entabuamento bruto – aquela
porção da parede do laboratório que ficara no caminho do raio
negativo. Jazia imóvel no ar, tal como se suspensa por um campo de
gelo invisível.
O espaço para além de entabuamento estava ocupado por
inúmeras fileiras de objetos que sugeriam tanto estátuas quanto
formações cristalinas. Pálido como mármore ou alabastro, cada um
deles exibia uma mistura de curvas simples e ângulos simétricos, os
quais pareciam incluir em latência um infindável desenvolvimento
geométrico. Eram gigantescos, com uma divisão rudimentar de
cabeça, membros e corpo, como se fossem criaturas vivas. Por trás
deles, a distâncias indefinidas, havia outras formas que poderiam ser
brotos ou florações de uma vegetação desconhecida.
Chandon não tinha qualquer noção do tempo enquanto espiava
através do cilindro. Não se lembrava de nada, não imaginava nada.
Não tinha consciência de seu corpo ou da rede sobre a qual jazia,
exceto como imagens entrevistas na orla de sua visão. De algum
modo, naquela impressão estranha e gelada, sentia o dinamismo
inerte das formas ao seu redor: o trovão silencioso, os relâmpagos
represados, como de deuses catalépticos; o calor e a chama contidos
no átomo, como de sóis não acesos. Inescrutáveis, pairavam imóveis
à sua frente, como tinham estado por toda a eternidade e como
continuariam a estar para sempre.
Neste mundo, não devia haver transformações nem eventos:
todas as coisas preservariam o mesmo aspecto e a mesma atitude.
Como notou depois, sua tentativa de alterar a própria posição
na corrente do tempo havia conduzido a um resultado imprevisto. Ele
se projetara para além do tempo em direção a um cosmo distante
onde o próprio éter talvez era um não-condutor da força-tempo e no
qual, portanto, eram impossíveis os fenômenos da sequência
temporal.
A velocidade extrema de seu voo o tinha alojado na fímbria
desta eternidade, tal como um explorador ártico capturado pelo gelo
eterno. Ali, obedecendo às leis da intemporalidade, ele estava
condenado a permanecer. A vida, como a conhecemos, era impossível
para ele; e no entanto – desde que a morte envolveria uma sequência
de tempo – lhe era igualmente impossível morrer. Estava fadado a se
manter na posição em que pousara, a reter o mesmo sopro de
respiração que tivera no momento do impacto contra a eternidade.
Estava preso a uma catalepsia dos sentidos, num nirvana brilhante
de contemplação. Parecia, segundo toda lógica, não haver
escapatória de tal apuro. No entanto devo agora relatar a coisa mais
estranha de todas – a coisa que era aparentemente inenarrável, que
desafiava todas as leis prováveis da esfera intemporal.
Penetrando o campo glacial de visão de Chandon e cortando as
fileiras de figuras imutáveis e sem horizonte, começou a se
intrometer um objeto – algo que se movia como se ao longo de éons,
que foi aparecendo aos poucos com a lentidão de um milenar recife
de coral num mar cristalino.
Desde seu aparecimento, o objeto era plenamente alienígena
em relação ao cenário: era, obviamente, tal como o cilindro de
Chandon e os escombros da parede, de origem não-eterna. Era
negro e lustroso, com algo mais que o negrume do espaço
interestelar ou dos metais exilados da luz no interior dos planetas.
Impunha-se à visão com uma solidez ultramaterial e, contudo,
parecia repelir toda a claridade cristalina, isolando-se do esplendor
invariável de ao redor.
A coisa assumia a forma de uma cunha aguda e enorme,
conduzida para dentro do éter adamantino, e formando, pelo mesmo
ato violento de irrupção, uma nova imagem visual nos olhos
paralisados de Chandon. Desafiando as leis mentais do ambiente,
levava-o a conceber uma ideia de duração e movimento.
Em seu todo, tratava-se de uma imensa embarcação em forma
de fuso, parecendo, comparado ao cilindro de Chandon, um cruzador
oceânico diante de um escaler. Flutuava à distância e separadamente
– verdadeira massa de ébano maciço, alargando-se no equador e
afunilando-se num ponto em cada extremo.
A forma parecia calculada para penetrar algum meio resistente.
A substância de que era feita e a sua força motora estavam
além das conjeturas de Chandon. Quem sabe teria sido arrastada por
alguma concentração tremenda de força-tempo, com a qual ele
brincara de maneira tão ignorante e inepta.
A embarcação invasora, totalmente estacionária, pendia agora
entre as fileiras de entidades estáticas que estavam mais à frente em
seu campo visual. Entre gradações infinitas, uma enorme porta
circular pareceu abrir-se em sua base, e da abertura surgiu uma
espécie de braço ou grua, feita do mesmo material negro. O braço
terminava em numerosas barras pendentes, que de algum modo
sugeriam a flexibilidade de dedos.
Desceu sobre a cabeça de uma das estranhas imagens
geométricas, e a miríade de barras, dobrando-se e estendendo-se
com infinita mobilidade, se enroscaram em volta do cristalóide como
um feixe de correntes.
Então a figura foi arrastada para cima, como por meio de um
esforço hercúleo, e desapareceu totalmente, junto com o braço, no
interior da embarcação.
Outra vez o braço emergiu, para repetir a abdução bizarra e
impossível, retirando outra daquelas coisas enigmáticas de sua
eterna imobilidade. E outra vez o braço desceu, e uma terceira
entidade foi apanhada, tal como se fosse o roubo de mais um outro
deus de mármore de seu marmóreo céu.
Tudo isso se passou no mais profundo silêncio – a lentidão
imensurável do movimento sendo abafada pelo éter e nada criando
que o ouvido de Chandon pudesse apreender como som.
Após desaparecer pela terceira vez com sua estranha presa, o
braço retornou, estendeu-se diagonalmente, atingindo um
comprimento maior do que antes, até que os dedos negros
envolveram o cilindro de vidro de Chandon e se fecharam em torno
num irresistível abraço.
Ele mal podia notar algum movimento, mas pareceu-lhe que as
colunas de figuras brancas e as paisagens sem horizonte e sem
perspectiva desapareciam lentamente de seu campo visual, como um
mundo que afundasse. Viu a grande massa de ébano da embarcação,
em direção à qual estava sendo arrastado pelo braço, até que ela
ocupou todo o seu campo visual. Então o cilindro foi alçado para
dentro da abertura trevosa, onde parecia que a luz não era capaz de
penetrar.
Chandon não podia ver nada, não estava certo de nada a não ser
da compacta escuridão que cercava o cilindro tal como o tinha
cercado a luz branca e acromática da intemporalidade. Sentiu à sua
volta algo como uma longa, tremenda vibração, uma pulsação
silenciosa que parecia se estender em círculos a partir de um centro
dinâmico, passando sobre ele e para além dele ao longo de écons,
como se proviesse de um coração titânico cujas batidas desafiassem
a eternidade ao redor.
Simultaneamente, reparou que seu próprio coração começara a
bater outra vez, com a mesma prostração desse pulsar ignoto, e que
o ritmo de sua respiração obedecia àquela vibração cíclica. Em seu
cérebro entorpecido, despontou uma ideia de espanto – os primeiros
sinais de uma sequência natural de pensamento. Seu corpo e sua
mente começavam a funcionar novamente, sob a influência do poder
que tinha sido eficaz o bastante para se introduzir no universo
intemporal e retirá-lo do éter petrificado.
A vibração acelerou-se, estendendo-se em ondulações
poderosas. Tornou-se audível, como um martelar ciclópico, e
Chandon de algum modo concebeu a ideia de um maquinismo
gigantesco, a girar e a palpitar numa prisão subterrânea. A
embarcação parecia estar avançando com uma força irresistível
contra uma barreira material. Sem dúvida, estava se libertando da
dimensão eterna, abrindo à força o seu caminho de volta para o
tempo. A escuridão persistira por um momento, mais como uma
radiação positiva do que como ausência de luz. Por fim clareou
totalmente e foi substituída por uma iluminação brilhante e
avermelhada. Ao mesmo tempo, a vibração ruidosa, semelhante à de
um motor, tornou-se uma palpitação em surdina. Talvez a escuridão
tivesse estado associada ao pleno desenvolvimento da estranha força
que tinha permitido à embarcação mover-se e funcionar no meio
ultratemporal. Com o retorno ao tempo e a diminuição de força,
desaparecera.
As faculdades de pensamento, sentimento, cognição e
movimento, sob seus aspectos temporais corriqueiros, retornaram
todas a Chandon tal como se um dique fosse aberto. Ele se tornou
apto a relacionar tudo o que lhe havia acontecido e a inferir, até
certo ponto, o significado daquela experiência única. Com espanto e
perplexidade crescentes, estudou o cenário que a sua posição na
rede lhe descortinava.
O cilindro, com as bizarras figuras cristalóides jazendo
próximas, pousou dentro de um recinto imenso, provavelmente o
compartimento principal da embarcação. O interior dessa sala era
curvo como uma esfera, e por toda parte se viam maquinarias
gigantescas e desconhecidas. Não muito longe ele viu a grua ou
braço recolhido. Parecia que a força da gravidade agia em todas as
superfícies internas da embarcação, pois certas criaturas de aspecto
peculiar passeavam em frente a Chandon enquanto ele olhava,
correndo paredes acima até penderem do teto com um à-vontade de
moscas.
Havia talvez uma dúzia dessas criaturas à vista. Ninguém
dotado dos pressupostos biológicos terrenos poderia sequer tê-las
imaginado. Cada uma delas possuía um corpo vagamente globular,
com o hemisfério superior dilatando-se entre o pólo e o equador,
para formar duas cabeças cônicas e desprovidas de pescoço. O
hemisfério terminava em muitos membros ou apêndices, alguns dos
quais eram usados para caminhar e outros para a apreensão.
As cabeças eram disformes, mas uma membrana cintilante e
semelhante a uma teia se estendia entre elas, tremendo
continuamente. Alguns dos apêndices inferiores, ondulando como
tentáculos inquisitivos, terminavam em órgãos que poderiam servir
de olhos, ouvidos, narinas e bocas.
Tais criaturas emitiam uma luz prateada e pareciam ser quase
translúcidas. No centro das cabeças pontudas, uma mancha de
carmesim brilhava ardentemente e se apagava com uma
regularidade pulsante; e os corpos esféricos escureciam e clareavam
como se seguindo o intercâmbio rítmico das zonas de sombra que se
estendiam como costelas sob suas superfícies. Chandon sentiu que
eram formadas de alguma substância não-protoplasmática, talvez um
mineral que se tivesse organizado em células vivas.
O homem da Terra ficou paralisado diante de tudo aquilo. Entre
conjeturas vãs e fantasiosas, tentou sondar o mistério. Quem eram
essas criaturas e qual teria sido o seu propósito ao penetrar na
dimensão eterna?
Por que teriam removido alguns de seus habitantes juntamente
com ele mesmo? Para onde estaria indo a embarcação? Estaria
retornando, em algum ponto do espaço e do tempo, ao mundo
planetário de onde teria zarpado em sua inusitada missão?
Ele não tinha certeza de nada, porém sabia que tinha caído nas
mãos daqueles seres supercientíficos, os quais seriam navegadores
exímios do espaço-tempo. Tinham sido capazes de construir uma
embarcação com a qual ele apenas sonharia e talvez tivessem
explorado e mapeado todas as profundezas desconhecidas,
planejando deliberadamente sua incursão pelo mundo congelado e
distante.
Se eles não o tivessem resgatado, ele jamais teria escapado à
condenação da intemporalidade, em direção à qual fora arremessado
mediante o seu desajeitado esforço de atravessar a corrente secular.
Meditando, voltou-se para os gigantes que eram seus
companheiros. Mal podia reconhecê-los sob a luz vermelha: seus
pálidos ângulos e planos pareciam ter sofrido um sutil rearranjo, e a
luz estremecia sobre eles em reflexos sanguíneos, conferindo-lhes
um calor estranho, uma sugestão de vida. Mais do que nunca, davam
a impressão de força latente, de dinamismo congelado.
Então, de repente, percebeu um movimento inequívoco numa
das entidades-estátuas e reparou que ela começara a mudar de
forma! A substância fria e marmórea pareceu fluir como mercúrio. A
cabeça rudimentar assumiu uma forma embrionária, indefinida, tal
como se pertencesse ao quase-deus de um mundo alienígena. Os
membros se acenderam, e novos membros de função indeterminada
foram expostos.
As curvas e ângulos simples se multiplicaram com misteriosa
complexidade. Um olho em forma de diamante, refulgindo com um
fogo azul, apareceu na face e foi rapidamente seguido por outros. A
coisa pareceu passar, em poucos instantes, pelo processo inteiro de
alguma evolução há muito suspensa.
Chandon viu que as outras figuras estavam sofrendo alterações
singulares, embora em cada caso o desenvolvimento subsequente
fosse todo individual. As facetas geométricas começaram a se abrir
como botões e fluíam em linhas de beleza e grandiosidade celestiais.
A palidez boreal se enchia de uma iridescência não-terrestre, com
tons opalinos que chispavam e estremeciam em padrões vivos, em
arabescos compridos, em hieróglifos irisados.
O observador humano sentiu a insurgência de um élan
imensurável, de um intelecto superestelar nesses seres memoráveis.
Um estremecimento de terror, elétrico, sinistro, percorreu-o. O
processo a que ele assistira era verdadeiramente incalculável,
tremendo. Quem ou o que poderia limitar e controlar as atividades
desatreladas desses Eternos, uma vez despertos de seu sono?
Certamente ele estava em presença de seres aparentados aos
deuses, aos demônios ou gênios dos mitos. Presenciar tudo aquilo era
como abrir os vasos submersos de Salomão.
Viu também que a maravilhosa transformação tinha sido
percebida pelos donos da embarcação. Essas criaturas, surgindo de
todas as partes do interior esférico, começaram a apinhar-se em
torno das entidades atemporais. Seus movimentos mecânicos,
espasmódicos, o erguer e o baixar de certos membros que
terminavam em órgãos semelhantes a olhos, traíam uma excitação e
uma curiosidade inumanas. Pareciam inspecionar as formas
transfiguradas com um ar de biologistas experientes que estivessem
preparados para um tal evento e agora assistissem à sua
consumação.
Os atemporais – pareceu-lhe – também estavam curiosos em
relação a eles. Seus olhos flamejantes devolviam o olhar dos
tentáculos periscópicos, e certos apêndices estranhos, em forma de
chifres, de suas altas coroas começaram a tremer de modo
inquisitivo, como se recebessem impressões desconhecidas.
Então, subitamente, cada um dos três pôs para fora um único
braço sem juntas, emitindo no ar, em forma de leque, sete longos
raios de luz roxa em vez de mãos.
Os raios, sem dúvida, eram capazes de receber e de produzir
impressões tácteis. Lenta e deliberadamente, como dedos tateantes,
eles se estendiam, e cada um dos leques, curvando-se aereamente
onde houvesse uma superfície redonda, começou a brincar, num
fulgor rítmico, em torno da criatura de cabeça dupla que se achasse
mais próxima.
Esses seres, como se alarmados ou desconfortáveis, recuaram e
procuraram evitar os raios. Os dedos roxos estenderam-se,
circundaram-nos, sem poderem ser evitados, percorrendo em volta
deles zonas cada vez mais abrangentes e compactas, como para
explorar toda a sua anatomia. Desde as duas cabeças até os discos
almofadados que lhes serviam de pés, os seres eram fustigados
inteiramente por anéis fluidos e estrias de luz.
Outros membros da tripulação, fora do alcance dos raios
curiosos, recuaram para uma distância ainda mais segura. Um deles
levantou alguns de seus membros num gesto rápido e enfático. Pelo
que Chandon pôde ver, a criatura não tocara em nenhum dos
maquinismos da embarcação. Mas, como se obedecendo ao gesto,
um enorme mecanismo, arredondado e parecido com um espelho,
começou a girar em seus caixilhos, logo acima, ao redor de eixos
potentes.
O mecanismo parecia feito de alguma substância pálida e
brilhante, nem vidro nem metal. Cessando a rotação, como se
tivessem alcançado o foco pretendido, as lentes emitiram um raio de
luz homogênea, que de algum modo lembrou a Chandon a cintilação
fria e imóvel do mundo eterno. Esse raio, atingindo as entidades
atemporais, produziu efeitos fortemente repressivos.
Imediatamente os raios tateantes desistiram da perquirição e
retornaram para os braços sem articulações, que por sua vez se
retraíram. Os olhos fecharam-se como jóias escondidas, os padrões
opalinos tornaram-se frios e baços, e os seres estranhos, meio
divinos, pareceram perder seus ângulos complexos, para recobrar
sua quietude original de cristais imóveis. No entanto, de algum modo,
estavam vivos ainda, retinham ainda as linhas nascentes de sua
eflorescência sobrenatural.
Em seu medo e seu espanto perante esse quadro miraculoso,
Chandon automaticamente se libertara das ataduras de couro,
erguendo-se da rede, e estava de pé com a face colada à parede do
cilindro. Tal mudança de posição foi notada pela tripulação, que por
um momento voltou para ele todos os tentáculos-olhos, erguendo-os e
baixando-os, enquanto acompanhavam a involução dos Atemporais.
Então, em resposta a outro gesto enigmático de um dos
membros, as lentes gigantes rodaram mais um pouco, e o raio glacial
começou a mudar e a se alargar, até que atingiu o cilindro, incluindo
em seu descolorido alcance as figuras dinâmicas.
O homem da Terra teve a sensação de ser capturado pela
torrente imóvel de alguma coisa que era indizivelmente densa e
viscosa. Seu corpo pareceu congelar, seus pensamentos se
arrastaram com dolorosa lentidão através de algum meio resistente
que permeava o seu próprio cérebro. Não era a suspensão total dos
processos vitais que o seu contato com a eternidade acarretara. Era,
antes, a desaceleração desses processos, a sujeição a algum ritmo
indizivelmente retardado de movimento temporal e sequência.
Anos inteiros pareceram transcorrer entre as batidas do
coração de Chandon. O simples dobrar de seu dedo mínimo teria
levado quinquênios. Através do tempo tediosamente esticado, sua
mente esforçava-se para formar um único pensamento: a suspeita de
que seus captores tivessem se alarmado com sua mudança de
posição e exercessem alguma turbulenta demonstração de força
sobre ele, tal como sobre os Atemporais.
Só depois de mais algumas décadas é que ele concebeu outro
pensamento: que ele mesmo fosse, talvez, tomado como um dos seres
semidivinos pelos alienígenas que viajavam no tempo. Tinham-no
encontrado na eternidade, entre as colunas imensuráveis, e como
iam saber que ele, tal como eles próprios, viera originalmente de um
mundo temporal?
Com seu senso de duração alterado, o homem da Terra não
podia formar uma concepção apropriada da extensão da viagem no
espaço-tempo. Para ele, foi como uma outra eternidade, pontuada a
intervalos de lustros pela rumorejante vibração da maquinaria. Para
a sua percepção visual retardada, a tripulação da nave parecia
mover-se com incrível morosidade, por gradações imperceptíveis.
Ele, junto com seus estranhos companheiros, tinha sido segregado
pelo raio congelante numa prisão de tempo lento, enquanto a nave
ela mesma mergulhava nas dimensões sem fundo da infinitude
secular e cósmica!
Finalmente a viagem terminou. Chandon sentiu o alvorecer
gradual de uma luminosidade insinuante que substituiu o brilho rubro
da embarcação por uma aguda brancura. Por gradações infinitas, as
pareces tornaram-se perfeitamente transparentes, junto com os
maquinismos, e ele notou que a luz provinha de um mundo exterior.
Imagens imensas, multiformes e intrincadas, começaram a brotar
com a morosidade da própria criação sobre o esplendor coruscante.
Então – sem dúvida com o fim de permitir a remoção dos cativos – o
raio retardador foi desligado, permitindo a Chandon recobrar suas
faculdades normais de cognição e movimento.
Ele descobriu uma visão impressionante através da parede
translúcida, cuja transparência se devia talvez ao completo
desligamento da força motriz da embarcação. Viu que a embarcação
repousava sobre uma área em forma de diamante, cercada por
colunas arquitetônicas cuja magnitude se impunha como um peso
inamovível aos seus sentidos.
Lá em cima, num céu laranja de sonho, distinguiu as volutas
bulbosas de pilares atlânticos com capitéis em plataforma, miríades
de estranhas torres em forma de cruzes; avistou, com espanto, a
maravilha misteriosa de cúpulas antinaturais, que se pareciam com
pirâmides invertidas. Viu os pináculos espiralados que pareciam
suportar um fardo inacreditável de terraços, as paredes oblíquas,
como escarpas estriadas de montanhas, as quais formavam a base de
cúmulos inimagináveis. Todos eram feitos de algum tipo de pedra
negra e brilhante, algum tipo de mármore extraído de um Érebo
ultracósmico. Interpunham suas massas pesadas, ameaçadoras e
sinistras, entre Chandon e as chamas de um sol oculto que seria
incomparavelmente mais brilhante que o nosso.
Cegado pelo clarão e atordoado por essas altíssimas
construções, consciente também de uma opressão incomum em todas
as suas sensações corporais, sem dúvida devida ao aumento de
gravidade, o homem da Terra voltou sua atenção para o espaço à sua
frente. A área em forma de diamante – via agora – estava apinhada
de gente parecida com a tripulação da nave. Como insetos
gigantescos, prateados, de corpos globulares, afluíam de todas as
direções para o pavimento escuro. Formando um cordão em torno da
nave, havia espelhos colossais, da mesma espécie que aquele que
emitia o raio retardador. As pessoas que chegavam paravam a uma
curta distância, deixando um espaço vago entre as máquinas de raios
e a embarcação, como se para o desembarque da população e dos
prisioneiros.
Agora, como se obedecendo a algum mecanismo oculto, uma
enorme porta circular se abriu na parede inconsútil. O braço
recolhido começou a estender-se e cobriu um dos seres atemporais
com sua rede de tentáculos. Logo a misteriosa entidade, até então
imóvel e passiva, foi carregada através da abertura e depositada no
pavimento do lado de fora.
O braço retornou e repetiu a operação com a segunda figura, a
qual, nesse meio tempo, aparentemente notara a cessação do raio
retardador e parecia menos submissa do que a sua companheira.
Ofereceu uma resistência algo hesitante e começou a inchar
enquanto os tentáculos a envolviam, exibindo pseudópodes e
lançando raios tateantes que tocaram delicadamente na malha
apertada. Porém, em instantes, esse segundo ser se juntou a seu
companheiro no mundo exterior.
Ao mesmo tempo, uma espantosa mudança começou a
manifestar-se na terceira figura. Chandon sentiu como se
presenciasse a epifania de algum deus há muito recolhido e velado, o
qual agora mostrava o seu verdadeiro aspecto, ao romper a crisálida
da matéria. A transformação que ocorreu foi como se alguma rija
estalagmite desabrochasse numa forma indescritível de nuvem e
fogo. Num momento apocalíptico, a coisa pareceu expandir-se,
arremessar-se para o alto, mudar de substância, desenvolver órgãos
e atributos que só poderiam pertencer a um estágio supermaterial da
evolução. Éons de vida estelar, de vida terrena, da lenta alquimia dos
átomos, foram abreviados naquele único instante.
Chandon não podia formar nenhuma ideia clara do que estava
acontecendo. A metamorfose escapava por demais ao alcance
interpretativo dos sentidos humanos. Ele viu alguma coisa elevar-se
à sua frente, enchendo a embarcação até o teto e pressionando
terrivelmente contra a superfície curva e transparente.
Então, com violência incalculável, a nave se partiu em mil
fragmentos alados, brilhantes e vítreos, os quais uivaram com uma
nota alta e aguda de coisas torturadas enquanto voavam e se
precipitavam em todas as direções.
Antes que os últimos fragmentos caíssem, o cilindro do tempo foi
apanhado e elevado no ar como por uma mão poderosa. Se o gigante
o tinha agarrado com um de seus membros não-humanos ou se o
cilindro fora erguido por força magnética, Chandon nunca o saberia.
Tudo o de que se lembraria depois era de uma subida leve e aérea,
na qual experimentou um alívio súbito e completo da pesada
gravidade daquele planeta desconhecido.
Ele pareceu flutuar rapidamente até uma altura difícil de
estimar, devido à ausência de uma escala familiar, e então o cilindro
pousou no ombro nebuloso do Atemporal, estabelecendo-se ali com a
segurança com que teria pousado na borda de algum mundo distante,
isolado e altíssimo no espaço.
Achou-se além de todo espanto, surpresa ou confusão. Como
num sonho cataclísmico, ele se entregou aos desdobramentos do
rápido milagre. Espiando lá do alto, viu logo acima, como o mais
elevado topo de alguma montanha escarpada, exibindo sóis
tempestuosos em lugar de olhos, a cabeça do ser que havia
despedaçado a nave do tempo e se erguera sobre as ruínas como
algum gênio rebelde recém-libertado.
Muito abaixo, discerniu a área negra em forma de diamante,
coberta por um enxame daquele povo prateado. Do pavimento se
elevaram para o céu, como as nuvens de uma monstruosa explosão,
as formas crescentes e móveis dos outros atemporais. Tumultuosas,
aterradoras, ciclônicas, postaram-se ao lado do primeiro, para
completarem a trindade rebelde. No entanto, por mais vastos e altos
que tivessem se tornado, as construções à sua volta eram ainda mais
altas; os pináculos com os terraços, a multidão de pirâmides, as
torres cruciformes pareciam ainda encará-los, em meio à atmosfera
cintilante e ardente, como guardiões colossais e negros de algum
inferno transgalático.
Mil impressões acorreram a Chandon. Sentiu as energias
divinas e ilimitadas, despertadas de seu sono eterno, que agora
afloravam com tamanha violência no tempo. E sentiu, a lutar contra
elas, num esforço de subjugá-las e restringi-las, as radiações
irritantes e as forças malignamente concentradas do novo mundo. A
própria luz se tornou inimiga e tirânica jorrando violentamente, o
negrume dos domos e peristilos sombrios era como a pancada
esmagadora de um milhar de maças silenciosas, brandidas pelos
zangados, cruéis e silenciosos anaquins. As grandes lentes sobre o
pavimento, rodopiando, refulgiam para o alto como os olhos de
ciclopes boreais, assestando seus raios paralisadores contra os
gigantes. A intervalos, o céu resplandecia entre clarões brancos e
ardentes, como o reflexo de um milhão de fornalhas remotas; e
chegavam até Chandon, por toda parte através do ar palpitante,
clangores ásperos, graves, como sinos batendo ou tambores
ribombando tão alto como se mundos explodissem.
As grandes colunas ao redor pareceram escurecer, como se
tivessem acumulado em si algum negrume mais positivo e maligno e o
estivessem irradiando para entorpecer os sentidos. Mas, para além
disso, para além de toda percepção física, Chandon sentiu o
magnetismo negro que aflorava em ondas incessantes, as quais
intentavam romper as barreiras de sua vontade, procurando usurpar
sua mente para subjugar e moldar seus pensamentos em formas de
monstruosa escravidão.
Inexprimíveis e envoltos por um atropelo de imagens de uma
terrível estranheza, chegavam a ele os apelos de uma malignidade
inumana, de um ódio trans-estelar. Até mesmo as pedras dos
colossais edifícios pareciam juntar-se aos cérebros daquela gente
exótica num esforço para retomar o controle sobre Chandon e os
três Atemporais!
Obscuramente, o homem da Terra compreendeu. Ele devia não
somente se submeter aos seres prateados, como também obedecer
em tudo à sua vontade. Ele e seus companheiros foram trazidos da
eternidade com um propósito único: ajudar os seus captores em
alguma guerra estupenda contra uma gente rival do mesmo mundo.
Tal como a humanidade emprega na guerra explosivos de potência
titânica, as criaturas prateadas tinham pretendido empregar as
energias não-temporais dos Eternos para desequilibrar o poder dos
inimigos! Tinham descoberto a rota que leva, através de dimensões
secretas, do tempo à intemporalidade.
Com audácia quase demoníaca, tinham planejado e executado a
inaudita abdução, supondo que Chandon fosse uma das entidades
eternas, a concentrar um imenso élan e um poder quase divino.
As ondas de maléfica cooptação elevaram-se ainda mais.
Chandon sentiu-se inundado, alagado. Com uma clareza assombrosa,
surgiu em sua mente a imagem do inimigo contra o qual fora aliciado.
Viu os panoramas aberrantes de lugares remotos, não-terrenos, os
ajuntamentos imensuráveis de cidades inumanas, a estender-se sob
um sol incandescente e mais vasto que Antares. Por um momento,
sentiu brotar em si o ódio contra essas terras e cidades, mesclado a
um rancor indescritível de psicologia alienígena.
Então, como se tivesse sido elevado muito acima dele pelo
gigante sobre cujo ombro viajava, Chandon reconheceu que o mar
negro já não o fustigava. Estava livre do mesmerismo viscoso e não
mais lhe ocorriam as imagens e emoções que tinham invadido sua
mente. Um bem-estar milagroso e uma segurança sublime o
envolveram: ele era o centro de uma esfera de força resistente e
resiliente, que nada podia sobrepujar ou penetrar.
Como se sentado num trono no alto de uma montanha, viu que a
tríade demiúrgica, desdenhando e desafiando os pigmeus lá embaixo,
tinha retomado seu crescimento mágico, continuando a subir até
ultrapassar o nível dos mais altos torreões. Um momento mais, e ele
podia enxergar através das fileiras babélicas de pedra, cheias de
gente prateada, e ver as avenidas exteriores de uma metrópole
titânica, entrevendo, mais além, os horizontes profundíssimos do
planeta sem nome.
Pareceu-lhe conhecer os pensamentos dos Atemporais, quando
olharam adiante para esse mundo cujo povo impiedoso sonhara
escravizar a sua essência ilimitada. Soube que eles tudo viram e
compreenderam num lance. Sentiu que se detinham com
momentânea curiosidade e sentiu a ira rápida e implacável, a decisão
irrevogável que se seguiu.
Logo, deliberada e experimentalmente, como se testassem seus
poderes ainda não exercitados, os três seres começaram a destruir a
cidade. Da cabeça daquele que transportava Chandon emanou um
círculo de chama carmesim, que se interrompeu por um instante, que
rodopiou e cresceu num grande redemoinho enquanto vergava para
baixo e atingia um dos edifícios mais altos. Sob aquela coroa
flamejante, os domos sobrenaturalmente oblíquos e as pirâmides
invertidas estremeceram e pareceram expandir-se como um
nevoeiro negro. Perderam seus contornos sólidos, brilharam,
adquiriram o aspecto de areia em movimento, subiram para o céu em
círculos rítmicos de irisações sombrias e mortiças, apagando-se e
desaparecendo com o fulgor intolerável.
Dos Atemporais emanavam os agentes visíveis e invisíveis da
aniquilação – lentamente, a princípio, e depois com uma aceleração
de ciclone, como se sua raiva aumentasse ou como se estivessem
cada vez mais absorvidos naquele jogo aterrador e semidivino.
De seus corpos celestiais, como de altos penhascos, jorravam
rios vivos e furiosas cataratas de energia, despencavam raios,
globos, carretéis elipsóides de fogo branco ou multicor, caindo sobre
a cidade condenada como uma chuva de meteoros devastadores. Os
cumes dos edifícios se derretiam numa lava disforme, as colunas e os
terraços se dissolviam em vapor, colhidos pela tempestade candente.
A cidade escorria em torrentes de lava, desaparecia em espirais de
poeira espectral, elevava-se para o ar em chamas negras, em
auroras tenebrosas.
Os Atemporais avançavam sobre as ruínas, abrindo passagem
com facilidade. Às suas costas, sobre os descampados negros que
iam deixando, focos de dissolução apareciam e mesmo o solo e as
pedras se dissolviam em vórtices velozes, espiralados, que
devoravam a superfície do planeta e escavavam sua crosta. Como se
absorvessem em sua própria substância as moléculas e os elétrons
de tudo o que destruíam, os Atemporais se tornavam mais altos e
mais volumosos.
Com sobrenatural distanciamento e isenção, Chandon a tudo
assistia do seu fantástico observatório. Numa zona móvel de paz
inviolada, ele assistia à chuva demoníaca que consumia aquela
Sodoma ultragalática, via os cinturões de devastação que se
espraiavam e irradiavam, alargando-se por todos os quadrantes. De
uma altura cada vez maior, espiava para vastos horizontes, que
fugiam como se num terror desvairado frente aos gigantes
atemporais.
Cada vez mais rápido agiam os globos e raios letais.
Multiplicando-se em pleno ar, geravam outros, incontáveis, sendo
lançados a toda parte, como os dentes do dragão da fábula, para
alcançar todas as longitudes do grande planeta até os pólos. A cidade
abatida foi logo deixada para trás, e os gigantes marcharam sobre
mares e desertos monstruosos, sobre largas planícies e altos
paredões, do topo dos quais outras cidades eram vistas a reluzir
como punhados de seixos.
Vagalhões de fogo atômico seguiam adiante, varrendo os Alpes
prodigiosos. Globos alados, implacáveis, evaporavam num átimo
mares inteiros, transformando desertos em oceanos de lava
encapelada. Surgiam arcos, círculos, quadriláteros de aniquilação,
crescendo sempre, os quais afundavam depois nas entranhas da
terra.
Um negrume caótico embaciava o fulgor do meio-dia. Como um
ciclope sangrento, um Laocoonte vermelho a pelejar contra
serpentes de nuvens e sombra, o poderoso sol parecia vacilar em
pleno céu, oscilando de um lado para o outro enquanto o mundo
embaixo turbilhonava sob aquele tropel de macrocósmicos titãs.
Fumaradas mefíticas velavam as paisagens, erguendo-se por um
instante para revelar o naufrágio de continentes ofegantes.
Uma vez libertas, as energias do mundo condenado se somavam
àquele caos estupendo. Nuvens que eram negros Himalaias
recortados por raios colossais seguiam o rastro dos destruidores. O
solo partia-se, deixando vazar os fogos internos em gêisers
vulcânicos, em catadupas que subiam até o céu. O nível dos mares
baixava, revelando picos e ruínas há muito submersas, enquanto as
águas bramiam em seus canais inferiores e eram sugadas por fendas
abertas pelo terremoto para alimentar os caldeirões ferventes de
uma irrupção infernal.
Como se Tifão se libertasse de seu cárcere subterrâneo, o ar
enlouqueceu de trovões, de bramidos que eram como se espirais de
chamas saltassem das profundezas rubras de um inferno em
derrocada, de gemidos e vagidos como se gênios fossem aprisionados
pelo desmoronamento de montanhas em algum abismo imensurável,
de uivos como o de demônios frenéticos libertados de seus túmulos
primevos.
Por sobre o tumulto, subindo cada vez mais, Chandon pairava,
até que viu tudo da calma altitude do éter, até que olhou para baixo,
de um mirante que era como o sol, para um orbe fervente e
despedaçado e viu de frente o próprio sol nas alturas do espaço. O
gemido cataclísmico, o trovão furioso pareceu esmorecer. Os mares
de ruína catastrófica turbilhonavam como um remanso raso aos pés
dos Atemporais.
Os maelstroms furiosos e devoradores nada mais eram que um
jorro efêmero de pó levantado pela passada casual de um transeunte.
Então, embaixo, não havia mais a ruína nebulosa de um mundo.
O ser sobre cujo ombro ele repousava, como um átomo sobre uma
amurada planetária, caminhava através do vazio cósmico; e,
impulsionado pela sua partida, o globo ruinoso foi arremessado para
o abismo, seguindo o sol agonizante em torno do qual havia girado
com todos os seus enigmas mortos de vida e civilização alienígena.
Vagamente, o homem da Terra viu a vastidão inconcebível que
os Eternos haviam alcançado. Distinguiu o seus contornos
luminescentes, as massas imprecisas de suas formas, com as estrelas
por detrás, vistas como a cauda luminosa dos cometas. Estava
pousado sobre uma espécie de nebulosa, imensa como a órbita dos
sistemas, que se movia com velocidade superior à da luz,
atravessando galáxias desconhecidas e dimensões jamais sondadas
do espaço e do tempo. Sentiu o torvelinho imensurável do éter, viu o
rodopio labiríntico das estrelas, que se formavam e desapareciam e
eram substituídas pelos padrões fugidios de outros labirintos
estelares. Numa segurança sublime, dentro de sua esfera de
conforto e movimento onírico, Chandon foi carregado sem saber por
que nem para onde e, como o participante de um sonho prodigioso,
sem sequer se colocar questões como essas.
Após infinitos de luz moribunda, de vazios a rodopiar e a
desmoronar, após a travessia de muitos céus, de inumeráveis
sistemas, veio-lhe a sensação de uma parada súbita. Por um
momento, do abismo silencioso, avistou um pequenino sol com seu
cortejo de nove planetas, e se perguntou vagamente se não seria
algum corpo astronômico familiar.
Depois, com velocidade e leveza inefáveis, sentiu-se caindo em
direção a um dos mundos mais próximos.
As massas imprecisas e cada vez maiores de seus mares e
continentes vieram ao seu encontro. Era como se ele descesse,
meteoricamente, para uma região de montanhas escarpadas, cujos
cumes nevados se elevavam em meio às agulhas dos pinheirais.
Ali, como se tivesse sido depositado por uma mão todo-
poderosa, o cilindro pousou, e Chandon olhou para fora com o
espanto e o susto de um sonhador que desperta, para ver ao seu
redor as paredes de seu próprio laboratório nas Sierras! Os
Atemporais, oniscientes, por algum benevolente capricho, tinham-no
trazido de volta ao seu próprio lugar no tempo e no espaço e então
partiram, talvez para a conquista de outros universos, talvez para
encontrar de novo o mundo branco e eterno de sua origem e para se
encasular outra vez no pálido nirvana da contemplação imutável.
O DESAFIO DO ALÉM
C. L. Moore, A. Merritt, H. P. Lovecraft,
Robert E. Howard e Frank Belknap Long

[C.L. Moore]
Em meio à névoa do sono, George Campbel abriu os olhos e
ficou espiando durante alguns minutos, através da abertura na tenda,
para a noite pálida de agosto, erguendo-se apenas o bastante para se
perguntar pelo que o teria despertado. Havia nesses ares claros e
cortantes das florestas canadenses um soporífico tão potente quanto
qualquer droga. Campbel jazeu imóvel por um momento,
atravessando de volta, lentamente, as fronteiras deliciosas do sono,
consciente de uma agradável fadiga, uma sensação incomum de
músculos bem usados – repouso, após a labuta, na noite doce e clara
da floresta.
Voluptuosamente, enquanto sua mente afundava de novo no
esquecimento, ele pensou mais uma vez que três longos meses de
liberdade o aguardavam – libertação das cidades e da monotonia,
libertação do magistério e da universidade e dos estudantes sem
quaisquer resquícios de interesse pela geologia com a qual ele
ganhava seu sustento buzinando-a todos os dias em seus ouvidos
obstinados. Libertação do...
Súbito, a deliciosa sonolência se despedaçou à sua volta. Lá
fora, em algum lugar, um som de lata batendo contra lata invadiu sua
paz. George Campbel se ergueu de um salto e apanhou a lanterna.
Então sorriu e baixou-a outra vez, forçando os olhos através da fraca
luminosidade noturna para constatar que, lá fora, um animalzinho
negro e anônimo da noite vagueava em meio aos vasilhames caídos.
Ele esticou um braço comprido e buscou uma pedra em frente à
porta da tenda para jogar. Seus dedos se fecharam em torno de uma
pedra grande, e ele recuou a mão no movimento de lançar.
Mas nunca a lançou. A coisa que encontrara na noite era
bastante estranha. Quadrada, lisa como cristal, obviamente artificial,
com as arestas arredondadas. A estranheza das superfícies da rocha
em seus dedos era tão notória que ele apanhou de novo a lanterna e
acendeu a luz sobre o objeto que tinha nas mãos.
Toda a sonolência se esvaiu quando ele observou o que tinha
encontrado ao tatear distraidamente na escuridão. Era transparente
como cristal de rocha aquele cubo esquisito e polido. Quartzo, sem
dúvida alguma, mas não na sua forma hexagonal cristalizada, como é
comum. De alguma maneira – ele não podia imaginar o método –,
tinha sido esculpida em forma de um cubo perfeito, com as faces
desgastadas de cerca de quatro polegadas. Pois estava incrivelmente
desgastado. O cristal, bastante duro, tornara-se arredondado até que
seus cantos quase desaparecessem e o objeto começasse a assumir
os contornos de uma esfera. Eras e eras de desgaste, anos quase
incontáveis deviam ter transcorrido sobre aquela coisa estranha e
clara.
Mas o mais curioso era aquela forma que ele podia entrever
obscuramente no coração do cristal; pois incrustado no centro havia
um pequeno disco feito de uma substância clara e desconhecida, com
alguns caracteres entalhados sobre a superfície que o cristal
recobria. Caracteres em forma de cunha, a evocar vagamente a
escrita cuneiforme.
George Campbel franziu o cenho e, perplexo, observou de perto
o pequeno enigma que tinha nas mãos.
Como uma coisa daquelas podia ter sido incrustada dentro do
puro cristal? Uma lembrança remota de antigas lendas que diziam
ser o cristal de quartzo gelo que se solidificara demais a ponto de
não poder derreter novamente flutuou em sua mente. Gelo – e
caracteres cuneiformes – sim, não tinha esse tipo de escrita se
originado entre os sumérios, os quais vieram do norte nos
remotíssimos começos da história para se estabelecer no vale da
Mesopotâmia primitiva? Então, retomou o controle sobre seus
sentidos e sorriu. O quartzo, por certo, tinha se formado nos
períodos geológicos mais primários, quando não havia nada em parte
alguma além de impactos e rochas empilhadas. O gelo não viria
senão dezenas de milhões de anos depois de aquela coisa ter se
formado.
E, no entanto, aquela escrita... Feita à mão, certamente,
embora os caracteres não fossem familiares a não ser pela vaga
sugestão das notações cuneiformes. Ou poderia ter havido, no mundo
paleozóico, seres capazes de linguagem e em condições de gravar
aquelas cunhas intrigantes sobre o disco no centro do quartzo? Ou...
Poderia uma coisa daquelas ter caído lá do espaço, como um
meteoro, sobre o rochedo informe de um mundo ainda não
solidificado? Poderia...
Então ele se conteve e sentiu seus ouvidos arderem sob as
imprecisões de sua própria imaginação. O silêncio e a solidão e a
estranha coisa em suas mãos estavam conspirando para pregar
peças em seu senso de realidade. Ele deu de ombros e depositou o
cristal na beirada do colchão, apagando em seguida a luz. Talvez a
manhã e uma cabeça fresca pudessem trazer-lhe uma resposta para
as questões que agora lhe pareciam insolúveis.
Mas o sono não veio facilmente. Por uma coisa, ele percebeu,
quando apagou a luz: era que o pequeno cubo tinha brilhado por um
momento, como se contivesse luz própria, antes de se desvanecer na
escuridão circundante. Ou talvez ele estivesse errado. Talvez
tivessem sido apenas os seus olhos ofuscados que deram a impressão
de ver a luz desaparecer devagar, bruxuleando nas entranhas
enigmáticas do objeto com uma persistência esquisita.
Ele permaneceu ali, inquieto, por um longo tempo, a revolver e
a revolver em sua mente essas perguntas sem resposta. Havia
alguma coisa no cubo de cristal que, para além de um passado
imensurável – talvez da aurora mesma de toda história –, propunha
um desafio que não o deixaria dormir.

[A. Merritt]
Permaneceu ali, pareceu-lhe, durante horas. Sua mente fora
capturada pela luz hesitante, pela luminescência que se mostrara tão
relutante em desaparecer. Era como se alguma coisa no coração do
cubo tivesse despertado, se mexesse preguiçosamente, se tornasse
subitamente alerta... e começasse a observá-lo.
Pura fantasia, tudo isso. Ele se agitou, impaciente, e acendeu a
luz sobre o relógio. Perto de uma hora; três horas mais, e já seria
manhã. O facho baixou e caiu sobre o morno cubo de cristal. Ele o
manteve em foco por alguns minutos. Então o tomou e o observou.
Não havia dúvidas agora. Quando seus olhos se acostumaram à
escuridão, ele viu que o estranho cristal brilhava com diminutas luzes
furtivas em seu interior, como se fossem fios de relâmpagos
safirinos. Estavam bem no centro e pareceram-lhe provir do disco
pálido com suas gravações perturbadoras. E o disco ele mesmo
começava a crescer... as marcações mudando de forma... O cubo
estava crescendo... Seria uma ilusão gerada pelos pequeninos
relâmpagos?...
Ouviu um som. Era quase o fantasma de um som, tais como os
fantasmas de cordas de harpas tangidas por dedos fantasmais. Ele se
curvou mais. Provinha do cubo...
Havia um vagido na vegetação rasteira, uma agitação de corpos
e um lamento agonizante, tal como o de uma criança que nasce e que
logo se cala. Alguma pequena tragédia de selvageria – matador e
presa. Ele deu alguns passos em direção ao bulício, mas não pôde ver
nada. Tomou de novo a lanterna e iluminou a tenda. Sobre o solo
havia uma pálida cintilação azulada. Era o cubo. Ele se abaixou para
apanhá-lo; então, obedecendo a um aviso obscuro, retirou de volta a
mão.
E de novo ele viu: o brilho decaía. Os pequenos raios cor de
safira brilhavam intermitentemente, recuando de volta para o disco
de onde tinham vindo. Não havia nenhum som.
Ele se sentou, observando a luminescência aumentar e diminuir,
aumentar e diminuir, mas cada vez se tornando mais turva. Ocorreu-
lhe que seriam necessários dois elementos para produzir o
fenômeno. O próprio raio elétrico e a sua atenção absorta. Sua
mente devia viajar ao longo do brilho, prender-se no coração do
cubo, cuja pulsação oscilava, até que... O quê?
Ele sentiu um arrepio de vida, como se proveniente do contato
com alguma coisa alienígena. Era alienígena, ele sabia, não vinha
desta Terra. Não da vida desta Terra. Ele conteve um tremor,
apanhou o cubo e o levou para dentro da tenda. Não era quente nem
frio; a não ser pelo peso, ele não teria consciência de o estar
segurando. Colocou-o sobre a mesa, mantendo o facho da lanterna
desviado dele; então foi até a porta da tenda e fechou o cortinado.
Retornou à mesa, puxou a cadeira de acampamento, e assestou
o facho diretamente sobre o cubo, dirigindo-o o máximo que pôde
para o seu centro. Dirigiu toda a sua vontade, toda a sua
concentração, por meio dele, enfocando a vontade e a vista sobre o
disco tal como fizera com a luz.
Como se obedecendo a um comando, os relâmpagos safirinos
explodiram. Saltaram do disco para o corpo do cubo de cristal; em
seguida ricochetearam de volta, banhando todo o disco e as
gravações. De novo estas ultimas começaram a se transformar,
mudando, movendo-se, avançando e recuando sob a claridade azul.
Não eram mais cuneiformes. Eram coisas – objetos.
Ouviu a música murmurante, o dedilhar de cordas de harpa. O
som se tornou mais e mais alto, e agora todo o corpo do cubo vibrava
ao ritmo delas. As faces do cristal começaram a amolecer, tornando-
se nebulosas, como se formadas de uma névoa de diamantes. E o
próprio disco estava crescendo – as formas mudando, dividindo-se e
multiplicando-se, como se alguma porta tivesse sido aberta e
multidões de fantasmas entrassem por elas. Mais e mais brilhante se
tornava a pulsação da luz.
Ele sentiu um pânico repentino, tentou desviar sua vista e sua
vontade, deixou cair a lanterna. O cubo não precisava mais do
facho... e ele não podia se esquivar... não podia se esquivar? Ora, ele
mesmo estava a ser sugado por aquele disco que era agora um globo
dentro do qual dançavam formas inomináveis ao som de uma música
que banhava o globo com um brilho constante.
Não havia tenda. Havia apenas uma vasta cortina de névoa
cintilante atrás da qual refulgia o globo... Ele se sentiu mergulhar na
névoa, tragado por ela como por um vento forte – mergulhar
diretamente no globo.

[H. P. Lovecraft]
Quando a luz nevoenta dos sóis azulados se tornou mais intensa,
os contornos do globo oscilaram à frente e se dissolveram num caos
pululante. Seu palor e seu movimento e sua música – tudo se
misturou numa névoa envolvente, dando-lhe uma cor pálida de aço e
imprimindo-lhe um movimento ondulante. E os sóis de safira,
também, se derreteram imperceptivelmente numa infinidade
acinzentada de pulsações disformes.
Ao mesmo tempo, a sensação de se mover para a frente e para
fora se tornou intolerável, incrível e cosmicamente veloz. Qualquer
padrão de velocidade conhecido na Terra pareceria pouco, e
Campbel compreendeu que um voo desses na realidade física
significaria morte instantânea para qualquer ser humano. Tal como
era – nessa hipnose estranha e infernal de pesadelo –, a impressão
quase visual de ser arremessado como um meteoro chegava a
paralisar sua mente. Conquanto não houvesse pontos reais de
referência no vazio cinzento, pulsante, ele sentiu que estava se
aproximando da velocidade da luz e mesmo ultrapassando-a.
Finalmente sua consciência sucumbiu, e uma treva benfazeja engoliu
tudo.
Foi muito subitamente, e em meio à escuridão mais
impenetrável, que os pensamentos e as ideias de George Campbel se
recompuseram. Quantos momentos ou anos ou eternidades tinham se
passado desde sua queda através do vazio cinzento ele não podia
estimar. Sabia apenas que parecia estar imóvel e sem dores. Com
efeito, a ausência de toda sensação física era a qualidade mais
evidente em sua situação.
Fazia até a escuridão parecer menos escura e compacta,
sugerindo que ele era mais uma inteligência desencarnada num
estado para além das sensações físicas do que uma criatura corpórea
cujos sentidos tivessem sido privados de seus objetos costumeiros de
percepção. Ele podia pensar aguda e rapidamente – quase
sobrenaturalmente –, sem no entanto formar qualquer ideia acerca
de sua situação.
Meio por instinto, reparou que não estava mais em sua tenda.
Decerto, devia ter despertado lá de um pesadelo para um mundo
igualmente escuro, porém sabia que não era isso. Não havia
nenhuma cama de acampamento debaixo dele; ele não tinha mãos
para sentir os cobertores ou a superfície da lona – nenhuma abertura
através da qual pudesse vislumbrar a noite pálida lá fora... Alguma
coisa estava errada, medonhamente errada.
Recuando em seus pensamentos, reviu o cubo fluorescente que
o tinha hipnotizado e tudo o que se seguira. Compreendera que sua
mente estava indo, mas não fora capaz de retornar. No último
momento houvera um medo pânico e perturbador, um medo
subconsciente para além mesmo daquele causado pela sensação do
voo demoníaco. Tinha vindo de alguma vaga recordação momentânea
ou remota – o quê, ele não pôde dizer de imediato. Um grupo de
células na parte de trás de sua cabeça parecera descobrir uma
qualidade nebulosamente familiar no cubo, e essa familiaridade vinha
carregada de um sombrio terror.
Agora ele tentava lembrar por que a familiaridade e o terror.
Aos poucos lhe ocorreu. Certa vez, há muito tempo, em conexão
com seu trabalho de geólogo, lera a respeito de qualquer coisa
parecida com esse cubo. Tinha a ver com aqueles discutíveis e
inquietantes fragmentos de argila chamados de os Cacos de Eltdown,
escavados de estratos pré-carboníferos no sul da Inglaterra havia
trinta anos. Sua forma e inscrições eram tão inusitadas que alguns
especialistas sugeriram artificialidade, fazendo as mais desvairadas
conjeturas acerca de sua origem. Provinham, por certo, de um tempo
em que os seres humanos ainda não existiam no globo – mas seus
contornos e aspectos eram terrivelmente intrigantes. Foi assim que
receberam tal nome.
Não foi, contudo, nos escritos de algum cientista sisudo que
Campbel vira essa referência a um globo de cristal contendo um
disco. A fonte era bem menos respeitável e infinitamente mais vívida.
Por volta de 1912 um clérigo de Sussex, profundo conhecedor de
assuntos ligados ao ocultismo – o reverendo Arthur Brooke Winters-
Hal –, alegara ter identificado as gravações nos Cacos de Eltdown
com os assim chamados “hieróglifos pré-humanos” tão
insistentemente encarecidos e esotericamente manueseados em
certos círculos místicos, e publicara a expensas próprias o que dizia
ser uma “tradução” das desconcertantes “inscrições” primais – uma
“tradução” ainda frequente e seriamente citada por escritores
ocultistas. Nessa “tradução” – uma brochura surpreendentemente
longa se comparada ao número limitado dos “cacos” existentes – é
que aparecia a narrativa, de autoria supostamente pré-humana, na
qual figurava a presente referência assustadora.
Segundo a história, habitava um mundo – e, provavelmente,
incontáveis outros mundos – do espaço exterior uma ordem de
poderosas criaturas em forma de vermes, cujos conhecimentos e cujo
controle da natureza ultrapassavam tudo o que a imaginação
terrestre poderia conceber. Bem cedo tinham dominado a arte das
viagens interestelares e assim povoaram cada planeta habitável em
sua própria galáxia – exterminando as raças que encontravam.
Para além dos limites de sua própria galáxia – que não era a
nossa – não podiam navegar em pessoa, mas em sua busca de
conhecimento através do espaço e do tempo descobriram uma
maneira de abrir certos atalhos intergaláticos com suas próprias
mentes. Confeccionavam objetos peculiares – cubos estranhamente
energizados de um cristal peculiar contendo talismãs hipnóticos e
protegidos por envelopes esféricos, resistentes ao espaço, feitos de
uma substância desconhecida – que podiam ser expelidos para além
dos limites de seu universo e que só reagiriam à atração de matéria
sólida e fria.
Esses objetos, alguns dos quais pousariam necessariamente em
vários mundos habitados nos universos exteriores, formavam as
pontes etéreas necessárias para a comunicação mental. A fricção
atmosférica incendiaria a cápsula protetora, expondo o cubo e
deixando-o sujeito a ser descoberto por mentes inteligentes do
mundo onde caísse. Por sua natureza intrínseca, o cubo atrairia e
fixaria a atenção. Isso, conjugado com a ação da luz, era suficiente
para colocar em ação as suas propriedades especiais.
A mente que notasse o cubo seria tragada para dentro dele pela
força do disco e seria enviada através de um fio de energia obscura
para o lugar de onde o cubo viera, o mundo remoto dos exploradores
espaciais em forma de vermes, atravessando estupendos abismos
entre as galáxias. Recebida numa das máquinas com a qual o cubo
estivesse sintonizado, a mente capturada permaneceria suspensa
sem corpo ou sentidos até que fosse examinada por alguém da raça
dominadora. Então seria, por um processo obscuro de intercâmbio,
esvaziada de todo o seu conteúdo. A mente do explorador poderia
agora ocupar a estranha máquina, enquanto a mente cativa ocuparia
o corpo vermicular do explorador. Em seguida, num outro
intercâmbio, a mente do explorador saltaria através dos espaços
ilimitados para o corpo vazio e inconsciente do cativo no mundo
transgalático, animando o hospedeiro alienígena na medida do
possível e explorando o novo mundo na forma de um de seus
naturais.
Finda a exploração, o aventureiro usaria o cubo e seu disco
para realizar o retorno, e às vezes a mente capturada seria
devolvida intacta ao seu mundo distante. Nem sempre, porém, a raça
dominadora era tão generosa. Às vezes, quando uma raça
potencialmente importante e capaz de realizar viagens espaciais era
encontrada, o povo vermicular usaria o cubo para capturar e
aniquilar mentes aos milhares e extirparia assim a raça por razões
diplomáticas, usando as mentes exploradoras como agentes de
destruição.
Noutros casos, seções do povo vermicular ocupariam
permanentemente o planeta transgalático, destruindo as mentes
capturadas e dizimando os habitantes remanescentes em condições
de ocupar corpos alienígenas. Nunca, entretanto, poderia a raça mãe
ser duplicada em tais casos, desde que o novo planeta não conteria
todos os materiais necessários para as realizações do povo
vermicular. Os cubos, por exemplos, só podiam ser feitos no planeta
lar.
Apenas alguns dos inumeráveis cubos lançados chegavam
eventualmente a pousar e a encontrar resposta num mundo habitado,
desde que não havia tal coisa como direcioná-los para metas além da
visão e do conhecimento. Apenas três, dizia a história, teriam alguma
vez pousado em mundos habitados deste nosso universo particular.
Um deles teria alcançado um planeta na periferia da galáxia há dois
milhares de bilhões de anos, enquanto outro aterrissara há três
bilhões de anos num mundo próximo ao centro da galáxia. O terceiro
– e o único que se sabe ter alguma vez entrado no sistema solar –
alcançou nossa própria Terra há certa de cento e cinquenta milhões
de anos.
Era principalmente desse último que a “tradução” do doutor
Winters-Hal tratava. Quando o cubo atingiu a terra, escreveu ele, a
espécie terrestre dominante era uma raça de seres enormes, em
forma de cones, que ultrapassavam todas as anteriores ou
posteriores em realizações e inteligência. Essa raça era tão
avançada que teria de fato enviado mentes ao exterior, através do
tempo e do espaço, para explorar o cosmo, tendo tomado consciência
do que acontecera quando o cubo caiu do céu e certos indivíduos
sofreram transformações mentais ao olharem para ele.
Certos de que os indivíduos modificados representavam mentes
invasoras, os líderes da raça os destruíram, mesmo ao preço de
terem deixado as mentes desalojadas em exílio no espaço alienígena.
Haviam tido experiência mesmo com transições mais estranhas.
Quando, mediante uma exploração mental do espaço e do tempo,
formaram uma ideia aproximada do que era o cubo, eles
cuidadosamente isolaram a coisa da luz e da vista, considerando-a
uma ameaça. Não quiseram destruir uma coisa tão rica em
possibilidades de experimentação posterior. De vez em quando,
furtivamente, algum aventureiro afoito e inescrupuloso obteria
acesso a ele e testaria seus poderes perigosos, a despeito das
consequências, mas todos esses casos foram descobertos e tratados
com segurança e drasticamente.
Dessas intrusões malignas o único resultado mau foi que a
distante raça vermicular descobriu, a partir dos novos exilados, o
que aconteceu com seus exploradores na Terra e tomaram um ódio
violento pelo planeta e por todas as suas formas de vida. E o teriam
despovoado, se pudessem, tendo mesmo enviado cubos adicionais
através do espaço na esperança malsã de atingi-lo acidentalmente
em locais desguarnecidos, mas tal evento jamais aconteceu.
As criaturas terrestres em forma de cone mantiveram o único
cubo existente guardado num santuário especial, como uma relíquia
e uma base para experimentos, até que, depois de eras, ele se
perdeu em meio ao caos da guerra e da destruição da grande cidade
polar onde era mantido. Quando, há cinquenta milhões de anos, os
seres enviaram suas mentes através do futuro infinito com o intuito
de evitar o perigo inominável do interior da terra, o paradeiro do
cubo sinistro proveniente do espaço se tornou desconhecido.
Tudo isso, de acordo com o erudito ocultista, constava dos
Cacos de Eltdown. O que agora tornava o relato tão furtivamente
amedrontador para Campbel era a minúcia e a exatidão com que o
cubo alienígena fora descrito. Todos os detalhes eram dados:
dimensões, consistência, o disco central com os hieróglifos, os efeitos
hipnóticos. Enquanto matutava no assunto em meio às trevas de sua
estranha situação, começou a se perguntar se toda a sua experiência
com o cubo de cristal – de fato, a própria existência do mesmo – não
seria apenas um pesadelo despertado por alguma caprichosa
lembrança subconsciente dessa velha peça de literatura
extravagante e charlatã. Se fosse assim, o pesadelo devia estar em
andamento, já que seu presente estado de desincorporação nada
tinha de normal.
Quanto tempo durou essa rememoração e essa reflexão confusa
Campbel não saberia dizer. Tudo em seu estado era tão irreal que as
dimensões e mensurações ordinárias se tornaram sem sentido.
Pareceu uma eternidade, mas talvez não tivesse demorado tanto, até
que aconteceu a primeira e brusca interrupção. O que ocorreu foi
tão estranho e inexplicável quanto a escuridão que veio antes. Houve
uma sensação – mais da mente do que do corpo –, e subitamente
Campbel sentiu que seus pensamentos eram varridos ou sugados, de
uma maneira tumultuada e caótica, para fora de seu controle.
Lembranças fluíram desordenadas e confusas. Tudo o que ele
sabia – todo o seu passado pessoal, tradições, experiências,
conhecimento, sonhos, ideias e inspirações – se escoou abruta e
simultaneamente, com uma velocidade estonteante e uma
abundância que em breve o tornou incapaz de seguir o fio de cada
conceito separado. O desfile de todos os seus conteúdos mentais
tornou-se uma avalanche, uma cachoeira, um vórtice. Era tão
horrível e vertiginoso quanto seu voo hipnótico através do espaço
quando o cubo de cristal o atraiu. Finalmente, esvaziou sua
consciência e trouxe o puro esquecimento.
Outro vazio imensurável – e então um lento ressurgir das
sensações. Desta vez era físico, não mental. Luz azulada, e um som
lento e distante. Havia impressões táteis; ele podia sentir que estava
deitado sobre alguma coisa, embora houvesse uma atordoadora
estranheza no sentimento dessa postura. Ele não podia conciliar a
pressão da superfície de apoio com os seus próprios contornos – ou
com os contornos de uma forma humana. Tentou mover os braços,
mas não obteve resposta definida a essa tentativa. Em vez disso,
havia pequenas e ineficazes contrações nervosas por toda a área que
parecia ser o seu corpo.
Tentou abrir mais os olhos, mas descobriu-se incapaz de
controlar o seu mecanismo. A luz azulada chegava de um modo
difuso, nebuloso e não podia ser em parte alguma enfocada
voluntariamente e com definição.
Gradualmente, porém, imagens visuais indecisas e peculiares
começaram a se formar. Os limites e características da visão não
eram aqueles com os quais estava acostumado, mas ele podia
relacionar vagamente a sensação com o que conhecera como sendo a
visão. Quando tal sensação atingiu certo grau de estabilidade,
Campbel notou que ainda devia estar a viver as agonias de um
pesadelo.
Parecia estar num cômodo de extensão considerável – de altura
mediana, mas com uma área bastante ampla. Em cada face – e era
como se ele pudesse ver todas as faces ao mesmo tempo – havia
fendas altas e estreitas que sugeriam portas e janelas combinadas.
Havia mesas baixas e pedestais singulares, mas nenhuma mobília de
natureza ou proporções normais. Através das fendas jorravam
cascatas de luz safirina, e para além delas se podiam ver,
nebulosamente, as faces e os telhados de edifícios fantásticos
parecidos com cubos empilhados. Nas paredes – nos painéis verticais
que havia entre as fendas – viam-se estranhas inscrições de
caracteres desconhecidos e inquietantes. Demorou um pouco para
Campbel descobrir por que o perturbavam tanto – e então ele viu
que eram, repetidos em certos aspectos, precisamente iguais a
alguns dos hieróglifos do disco no cubo de cristal.
O verdadeiro elemento de pesadelo foi, porém, algo mais do que
isso. Começou com a coisa viva que de repente entrou por uma das
fendas, avançando decididamente em sua direção e segurando uma
caixa de metal de proporções bizarras e superfícies vítreas e
espelhadas. Pois tal coisa não tinha nada de humana – nada de
terrena –, nem mesmo nada de algum mito ou sonho humano. Era um
verme ou centopéia gigantesca, de cor cinzenta clara, com a largura
de um homem e o comprimento de dois, exibindo uma cabeça em
forma de disco, aparentemente destituída de olhos, guarnecida de
cílios e com um orifício central avermelhado. Deslizava sobre seus
pares de patas traseiras. Ao longo de sua espinha dorsal havia um
curioso pente arroxeado e uma cauda em leque formada por um tipo
de membrana cinzenta que arrematava o todo grotesco. Havia um
anel de pontas vermelhas e flexíveis em torno ao seu pescoço, e das
contorções dessas pontas provinham estalidos e zunidos num ritmo
medido e deliberado.
Aqui, de fato, estava o pesadelo em sua quintessência – a
fantasia caprichosa em seu ápice. Mas não foi ainda essa visão de
delírio que fez com que George Campbel tombasse outra vez na
inconsciência. Houve uma outra coisa – um toque final, insuportável –
que o levou a isso. Quando o inominável verme avançou com sua
caixa iridescente, o homem deitado captou, na superfície espelhada,
um vislumbre do que deveria ser o seu próprio corpo. No entanto –
horrivelmente consciente de suas sensações desordenadas e
desconhecidas – não era de todo o seu próprio corpo que ele viu
refletido no metal polido. Era, em vez disso, o aspecto asqueroso,
cinza pálido, de uma das grandes centopéias.

[Robert E. Howard]
Desse ultimo mergulho na inconsciência ele emergiu com um
entendimento pleno de sua situação. Sua mente estava aprisionada
no corpo de um dos amedrontadores nativos do planeta alienígena,
enquanto, em alguma parte do outro lado do universo, seu próprio
corpo hospedava a personalidade do monstro.
Ele teve de superar um terror irracional. Olhada de um ponto
de vista cósmico, por que sua metamorfose deveria causar-lhe
horror? A vida e a consciência eram as únicas realidades do
universo. A forma não importava. Seu corpo atual era hediondo
apenas para os padrões terrestres. O medo e a repulsa afogaram-se
na excitação de uma aventura titânica. O que era o seu corpo
anterior senão um invólucro, que a morte um dia lançaria fora de
qualquer maneira?
Ele não tinha ilusões sentimentais sobre a vida da qual tinha
sido exilado. O que lhe dera ela senão trabalho, pobreza, frustração
contínua e repressão? Se esta vida que o aguardava não lhe
oferecesse mais, pelo menos não lhe oferecia menos. A intuição lhe
dizia que oferecia mais – muito mais.
Com a honestidade que se torna possível apenas quando a vida é
desnudada até os seus fundamentos, teve consciência de que se
lembrava com prazer apenas das delícias físicas de sua vida anterior.
Mas há muito ele já havia exaurido todas as possibilidades físicas
contidas naquela vida terrena. Esgotaram-se os estímulos da Terra.
Mas na impressão deste corpo novo e alienígena ele pressentia as
promessas de deleites estranhos e exóticos.
Uma exultação selvagem o invadiu. Ele era um homem sem
mundo, livre de todas as convenções ou inibições da Terra ou deste
planeta estranho, livre no universo de todo recalque artificial. Ele
era um deus!
Com grande satisfação, pensou em seu velho corpo a se mover
entre os negócios e a sociedade na Terra, com um monstro
alienígena a olhar através das janelas que eram os olhos de George
Campbel para pessoas que fugiriam dele se soubessem.
Que ele caminhasse pela Terra e matasse e destruísse à
vontade. A Terra e suas raças não tinham mais qualquer significado
para George Campbel . Lá ele tinha sido apenas uma entre bilhões
de não-entidades, fixada em seu lugar por uma acumulação
montanhosa de convenções, leis e costumes, fadada a viver e a
morrer em seu sórdido nicho. Mas num salto cego ele se elevara
acima da realidade comum. Isto não era a morte, mas um
renascimento – o nascimento de uma mentalidade amadurecida, dona
de uma liberdade recém-descoberta que pouco se importava com o
cativeiro físico em Yekub.
Sobressaltou-se. Yekub! Era o nome deste planeta, mas como
ele soubera? Então ele sabia, tal como sabia o nome daquele cujo
corpo agora ocupava: Tothe. A memória, inscrita profundamente no
cérebro de Tothe, brotava nele como sombras do conhecimento que
Tothe possuía. Gravadas bem fundo nos tecidos físicos do cérebro,
falavam obscuramente, como instintos implantados, a George
Cambel , e sua consciência física se apoderava deles e os traduzia
para mostrar-lhe o caminho não apenas para a segurança e a
liberdade, mas para o poder a que sua alma – lavada de seus
impulsos primitivos – aspirava. Não viveria como um escravo em
Yekub, mas como um rei! Tal como os bárbaros antigos tinham se
sentado no trono de impérios senhoriais.
Pela primeira vez voltou sua atenção para os arredores. Ainda
estava deitado sobre aquela espécie de colchão no meio daquele
cômodo fantástico, e o homem-centopéia estava à sua frente,
segurando o objeto de metal polido e estalando as pontas em seu
pescoço. Desse modo ele falava, Campbel sabia, compreendendo de
algum modo o que era dito, por meio dos processos de pensamento
herdados de Tothe, enquanto descobria que a criatura era Yukth,
senhor supremo da ciência.
Mas Campbel não deu ouvidos, pois tinha feito seu plano
desesperado, um plano tão inusitado para os costumes de Yekub que
estaria além da compreensão de Yukth, pegando-o totalmente
despreparado.
Yukth, tal como Campbel , via o fragmento de metal pontiagudo
numa mesa próxima, mas para Yukth era apenas um instrumento
científico. Sequer sabia que poderia ser usado como uma arma. A
mente terrestre de Campbel forneceu o saber e a ação que se
seguiu, levando o corpo de Tothe a fazer movimentos que nenhum
homem de Yekub jamais fizera antes.
Cambel arrebatou a lasca pontuda e atacou, cortando
brutalmente para cima. Yukth recuou e tombou; suas entranhas
jorraram para o piso. Num instante, Campbel já deslizava para a
porta. Sua velocidade era espantosa, exultante, primeiro
cumprimento da promessa de novas sensações físicas.
Enquanto corria, guiado inteiramente pelo conhecimento
instintivo implantado nos reflexos físicos de Tothe, era como se ele
fosse sustentado em suas patas por uma consciência particular. O
corpo de Tothe o transportava através de uma via que fora
percorrida milhares de vezes antes, quando animado pela mente de
Tothe.
Correu por um corredor sinuoso, subiu por uma escada,
atravessou uma porta, e os mesmos instintos que o tinham levado ali
lhe diziam que encontrara o que procurava. Descobriu-se num
recinto circular, com um teto abobadado do qual jorrava uma luz
lívida e azulada. Uma estranha estrutura se erguia no meio do piso
de cores irisadas, camada sobre camada, cada qual de uma cor
diferente e vívida. A última camada era um cone púrpura, de cujo
ápice subia uma névoa azul em direção a uma esfera que pairava no
ar – uma esfera que brilhava como se fosse marfim translúcido.
Isso, diziam as memórias gravadas de Tothe a Campbel , era o
deus de Yekub, conquanto a razão pela qual o povo de Yekub o temia
e o reverenciava tivesse sido esquecida há milhões de anos. Um
verme-sacerdote se achava entre ele e o altar que nenhuma mão ou
carne jamais haviam tocado. Tocá-lo seria uma blasfêmia que nunca,
em tempo algum, ocorrera a qualquer habitante de Yekub. O verme-
sacerdote jazeu paralisado de horror até que o fragmento de metal
de Campbel lhe arrancasse a vida.
Com suas pernas de centopéia, Campbel galgou as camadas do
altar, indiferente aos seus estremecimentos súbitos, indiferente à
transformação que começou a ocorrer na esfera flutuante,
indiferente à fumaça que agora se acumulava em nuvens azuis. A
sensação de poder o embriagava. Não temia as superstições de
Yekub mais do que temia as da terra. Com aquele globo nas mãos,
ele se tornaria rei de Yekub. Os homens-vermes não se atreveriam a
lhe negar coisa alguma quando se tivesse apoderado de seu deus.
Ergueu uma mão até a esfera – não mais da cor de marfim, mas
vermelha como sangue...

[Frank Belknap Long]


O corpo de George Campbel saiu da tenda para a noite pálida
de agosto. Movia-se de maneira lenta e trêmula em meio aos vultos
de enormes árvores, caminhando por uma senda na floresta
recoberta por folhas de pinheiro docemente aromáticas. O ar era
seco e frio. O céu era uma tigela invertida de prata gelada, salpicada
de pontos brilhantes, e à distância, ao norte, a aurora boreal
estendia faixas de fogo.
A cabeça do caminhante oscilava grotescamente para um lado e
para o outro. Dos cantos de sua boca semiaberta escorriam grossos
fios de espuma ambarina, a qual estremecia na brisa noturna. Ele
caminhou ereto a princípio, como um homem caminharia, mas
gradualmente, à medida que a tenda desapareceu, sua postura se
modificou. Seu torso começou quase imperceptivelmente a vergar-se,
e seus membros a encurtar.
Num distante mundo do espaço exterior, a criatura centípede
que era George Campbel estreitava ao peito um deus cuja cor era
vermelha como sangue e atravessava, contorcendo-se como um
inseto, um salão irisado e, através de maciços portais, saía para a luz
brilhante de sóis alienígenas.
Perambulando por entre as árvores da Terra numa atitude que
sugeriria o trotar de um animal, o corpo de George Campbel se
encaminhava para um destino irracional. Longos dedos terminando
em garras arrastavam folhas do tapete de olorosas agulhas de
pinheiro, enquanto avançava em direção a uma vasta extensão de
água iluminada.
No distante mundo extragalático do povo de vermes, George
Campbel se movia por entre blocos ciclópicos de alvenaria negra,
descendo por longas avenidas guarnecidas de samambaias, enquanto
segurava o deus vermelho e redondo.
Houve um grito áspero de animal em meio à vegetação perto do
lago iluminado na Terra, onde a mente de uma criatura vermicular
ocupava um corpo que se movia por instinto. Dentes humanos
cravaram-se em macio pêlo animal, rasgaram carne de animal preto.
Uma pequena raposa prateada meteu suas garras, numa retaliação
frenética, num pulso humano coberto de pele e se debateu
aterrorizada, enquanto seu sangue jorrava. Lentamente, o corpo de
George Campbel se levantou, a boca manchada pelo sangue fresco.
Com os membros superiores agitando-se de um modo estranho,
caminhou para as águas do lago.
Enquanto a criatura multiforme que era George Campbel
rastejava por entre os blocos negros de pedra, milhares de formas
vermiculares se prostraram na névoa cintilante que o precedia. Um
poder divino parecia emanar do seu corpo rastejante quando se
movia com um movimento lento e ondulante em direção ao trono de
um império espiritual que transcenderia todas os potentados da
terra.
Um caçador exausto, vagueando por entre as densas florestas
da Terra próximo à tenda onde a criatura vermicular ocupara o
corpo de George Campbel , veio até as águas iluminadas do lago e
discerniu qualquer coisa a boiar ali. Tinha estado perdido na floresta
durante toda a noite, e o cansaço já o cobria como uma capa de
chumbo sob a luminosidade pálida da lua.
Mas a forma era uma provocação que ele não podia ignorar.
Achegando-se à margem, ele se ajoelhou sobre o solo úmido e esticou
o braço em direção ao volume flutuante. Lentamente, puxou-o para a
terra.
Ao longe, no espaço infinito, a criatura em forma de verme que
segurava o deus brilhante e vermelho subia ao trono que luzia como
a constelação de Cassiopéia sob uma abóbada de hiper-sóis. A
grande deidade que ele segurava no alto energizava seu corpo
vermicular, queimando num fogo branco de espiritualidade
ultramundana os últimos vestígios de animalidade.
Na Terra, o caçador olhou com horror indizível para a face
enegrecida e peluda do afogado. Era uma face bestial, de contornos
repulsivamente antropóides, e de sua boca retorcida e deformada
escorria uma baba escura.
“Aquele que buscou o seu corpo nos abismos do tempo ocupará
uma habitação incontrolável”, disse o deus vermelho. “Ninguém que
nasceu em Yekub pode dominar o corpo de um humano.
“Em toda a Terra, criaturas vivas se submetem umas às outras,
e se regalam com indescritível crueldade sobre os seus próprios
parentes. Nenhuma mente-verme pode controlar um bestial corpo
humano quando este decide se libertar. Apenas as mentes dos
homens, instintivamente condicionadas através de dez mil gerações,
podem conter os instintos humanos. Seu corpo se destruirá a si
mesmo na Terra, buscando o sangue de seus semelhantes, buscando
a água fria onde possa chafurdar à vontade – buscando sua eventual
destruição, pois o instinto de morte é mais poderoso nele do que os
instintos de vida, e se destruirá a si mesmo procurando retornar à
lama de onde emergiu.”
Assim falou o deus vermelho e redondo de Yekub a George
Campbel num longínquo segmento do contínuo espácio-temporal,
enquanto este último, purgado de todo desejo humano, se sentou num
trono e regeu um império de vermes mais sábia, cordial e
bondosamente do que qualquer homem da Terra jamais regeu um
império de homens.
UM CAVALEIRO NO CÉU
Ambrose Bierce

Por uma tarde ensolarada do outono de 1861, um soldado jazia


deitado sob uns loureiros junto a certa estrada no oeste de Virgínia.
Estava deitado de bruços, as pontas dos pés tocando o chão, a
cabeça apoiada no antebraço esquerdo. A mão direita, estendida,
segurava frouxamente o rifle. Não fosse a disposição algo metódica
de seus membros, e um vago movimento rítmico da cartucheira no
dorso do cinturão, se poderia pensar que estivesse morto. Dormia
em seu posto de vigilância. No entanto, se detectado, morreria
imediatamente, sendo a morte a penalidade legal para esse crime.
A moita de loureiros na qual jazia o criminoso situava-se no
ângulo de uma estrada que, após ascender a pino em direção ao sul
até aquele ponto, dobrava bruscamente para oeste, correndo sobre o
cimo por talvez uma centena de jardas. Daí virava para o sul outra
vez e ziguezagueava para baixo através da floresta. Na saliência
daquele segundo ângulo havia uma grande rocha achatada, que se
projetava para o norte por sobre o vale profundo de onde subia a
estrada. A rocha coroava um alto precipício: uma pedra atirada de lá
cairia por uns bons mil pés antes de atingir o topo dos pinheiros. O
ângulo onde se encontrava o soldado ficava na outra ponta do
precipício. Se estivesse desperto, teria uma ampla visão não só do
curto trecho de estrada e do rochedo eminente, mas também de toda
a face do abismo por baixo dele. Poderia ter uma vertigem ao olhar.
Árvores cobriam a paisagem por toda parte, falhando apenas ao
pé do vale, ao norte, onde havia um pequeno descampado; através
dele fluía um regato que mal se avistaria da orla do vale. Essa área
descoberta pareceria pouco maior que um pátio de entrada comum,
mas tinha de fato muitos acres de extensão. Seu verde era mais vivo
do que o da floresta circundante. Para além dele erguia-se uma linha
de gigantescos despenhadeiros, semelhantes àquele em que nos
postamos agora para observar essa cena selvagem, e em meio a eles
a estrada, de algum modo, conseguia galgar até o cimo. Com efeito, a
configuração do vale era tal que, deste ponto de observação,
pareceria inteiramente enclausurado; e se poderia perguntar de que
maneira a mesma estrada que levava para fora dele penetrava nele,
e de onde vinham e para onde iam as águas do regato que
atravessavam a campina a mais de mil pés abaixo.
Cenário algum seria tão selvagem e difícil, mas os homens farão
dele um teatro de guerra. Ocultos na floresta, ao pé daquela ratoeira
militar, onde meia centena de homens guarnecendo as saídas teriam
obrigado um exército inteiro a se render por inanição, havia cinco
regimentos da Infantaria Federal. Tinham marchado durante todo o
dia e durante toda a noite anterior e agora descansavam. Ao cair da
noite retornariam à estrada, subiriam até o lugar onde sua sentinela
irresponsável estava dormindo e, descendo pelo outro lado, se
lançariam sobre o acampamento inimigo por volta da meia-noite.
Depunham esperança na surpresa, pois a estrada conduzia à
retaguarda do acampamento. Em caso de fracasso, sua posição teria
sido perigosa em extremo. E certamente falhariam, se algum
acidente ou vigilância notificasse o inimigo a respeito desse
movimento.
A sentinela adormecida na moita de loureiros era um jovem de
Virgínia, chamado Carter Druse. Era filho único de pais ricos e tinha
desfrutado das facilidades, do cultivo e do alto padrão de vida que a
riqueza e o gosto são capazes de proporcionar na região montanhosa
a oeste de Virgínia. Sua casa ficava a poucas milhas do local onde ele
estava agora. Certa manhã ele se levantou da mesa, após o café, e
disse, em tom compenetrado e grave:
– Pai, um regimento da União chegou a Grafton. Vou me juntar a
ele.
O pai ergueu a cabeça leonina, olhou em silêncio para o filho
durante um momento e respondeu:
– Bem, vá, meu senhor. E, aconteça o que acontecer, faça aquilo
que você concebe como sendo o seu dever. A Virgínia, para a qual
você é um traidor, deve passar sem você. Se vivermos até o fim da
guerra, falaremos mais tarde sobre o assunto. Sua mãe, como o
médico informou a você, se encontra numa situação bastante crítica.
No máximo, poderá estar entre nós por mais algumas semanas, mas
esse tempo é precioso. Seria melhor não perturbá-la.
Então Carter Druse, fazendo uma reverência ao pai, que
correspondeu à saudação com uma cortesia altiva em que se
ocultava um coração partido, deixou o lar de sua infância para se
alistar. Pela consciência e pela coragem, por atos de devoção e de
audácia, ele logo se tornou respeitado entre os camaradas e os
oficiais.
E era a essas qualidades e a certo conhecimento da região que
devia agora ter sido selecionado para a presente e perigosa tarefa
na posição extrema. Entretanto a fadiga foi mais forte que sua
resolução, e ele adormeceu. Que bom ou mau anjo veio num sonho
despertá-lo de seu estado criminoso, ninguém saberá.
Sem o menor movimento, sem um som, no profundo e lânguido
silêncio da tarde, algum mensageiro invisível do destino tocou com o
dedo os olhos de sua consciência; sussurrou no ouvido de seu espírito
a misteriosa palavra do despertar que nenhum lábio humano jamais
pronunciou, nenhuma memória humana jamais recordou. Ele
levantou devagar a fronte, que se apoiara no braço, e olhou através
da camuflagem dos ramos de loureiro, fechando instintivamente a
mão sobre a coronha do rifle.
Sua primeira sensação foi a de um extremo deleite artístico.
Num portentoso pedestal, o precipício – imóvel na extremidade da
rocha superior e nitidamente recortado contra o céu –, via-se uma
estátua equestre de impressionante dignidade. A figura do homem
completava a figura do cavalo, rígida e marcial, mas com o repouso
de um deus grego esculpido no mármore que limita a sugestão de
atividade. O traje cinzento se harmonizava com o fundo aéreo; o
brilho metálico dos equipamentos e dos jaezes era amenizado e
suavizado pela sombra; a pele do animal não tinha pontos de luz
excessiva. Uma carabina drasticamente amputada estava presa ao
cocuruto da sela, segura em seu lugar pela mão direita que a
sustinha pelo gatilho; a mão esquerda, segurando a rédea, estava
invisível. Silhuetado contra o céu, o perfil do cavalo se recortava com
a nitidez de um camafeu; olhava através das alturas em direção aos
precipícios lá adiante. O rosto do cavaleiro, voltado para outra
banda, deixava entrever apenas um princípio de têmpora e de barba.
Olhava para baixo até o fundo do vale. Aumentado pela sua
elevação contra o céu e pela sensação patente, que o soldado
experimentou, da grandeza de um inimigo próximo, o grupo
pareceria de um tamanho heróico, quase colossal.
Por um instante Druse teve uma sensação estranha, meio
indistinta, de ter dormido até o fim da guerra e de estar olhando para
um nobre trabalho de arte erguido sobre aquele píncaro para
comemorar os feitos de algum passado heróico do qual ele teria sido
um participante inglório. A sensação foi dispersada por um sutil
movimento do grupo: o cavalo, sem mover as patas, afastara o corpo
ligeiramente da borda, sendo que o homem permaneceu imóvel como
antes. Cada vez mais desperto e consciente da situação, Druse
apertou a coronha de seu rifle contra o queixo e enfiou com cuidado
o cano por entre os arbustos. Armou o cão, olhando através da mira,
e visou um ponto vital no peito do cavaleiro. Um toque no gatilho, e
tudo estaria bem com Carter Druse. Nesse instante, o cavaleiro
voltou a cabeça e os olhos na direção de seu adversário oculto –
pareceu fitar mesmo em seu rosto, em seus olhos, em seu coração
bravo e apaixonado.
Será tão difícil matar um inimigo na guerra – um inimigo que
surpreendeu um segredo vital à segurança de alguém e de seus
camaradas – um inimigo mais formidável pelo que sabe do que todo
um exército por seus números? Carter Druse empalideceu: seus
membros tremeram, falharam; e ele viu o grupo escultural à sua
frente, como figuras negras que subiam, caíam, oscilavam em arcos
de círculos sobre um céu de sonho.
Sua mão se afastou da arma, sua cabeça caiu lentamente até
que o rosto repousou sobre as folhas em meio às quais ele jazia. A
intensidade da emoção quase fez desmaiar esse soldado corajoso e
robusto.
Não durou muito. No momento seguinte seu rosto se ergueu da
terra, suas mãos retornaram ao rifle, seu indicador buscou o gatilho.
Mente, coração e olhos estavam limpos, conscientes, e a razão era
clara. Não havia esperança de capturar aquele inimigo. Alarmá-lo
teria sido apenas remetê-lo de imediato ao acampamento com sua
notícia fatal. O dever do soldado era estrito: o homem tinha de ser
alvejado por emboscada – sem aviso, sem preparação espiritual,
quando muito com uma prece tácita, antes de ser liquidado. Mas não
– há uma esperança: ele pode não ter descoberto nada, talvez esteja
apenas admirando a sublimidade do cenário. Se permitido, daria
meia volta e galoparia descuidado em direção ao lugar de onde viera.
Com certeza, será possível julgar, no instante de sua retirada, o
quanto saberá. Pode até ser que a fixidez de sua atenção – Druse
voltou a cabeça e olhou para as profunduras lá embaixo, como quem
olha da superfície para o fundo de um mar translúcido. Viu galgar
através da campina verdejante uma linha sinuosa de figuras de
homens e de cavalos – algum comandante imbecil estaria permitindo
aos soldados de sua escolta dar água aos animais à vista aberta e
plena de uma dúzia de picos!
Druse desviou os olhos do vale e os fixou outra vez sobre o
grupo de homem e cavalo no céu, e outra vez através da mira do
rifle. Mas desta vez seu alvo estava no cavalo. Em sua memória,
como um mandado divino, soaram as palavras de seu pai quando
partiu: “Aconteça o que acontecer, faça aquilo que você concebe
como sendo o seu dever.” Estava calmo agora. Seus dentes se
fecharam com firmeza, mas não rigidamente. Seus nervos estavam
tranquilos como os de um bebê que adormeceu; sequer um tremor
agitava um único músculo de seu corpo. Sua respiração, suspensa até
então no ato de mirar, tornou-se regular e lenta. O dever prevaleceu.
O espírito disse ao corpo: “Paz, fique quieto.” Atirou.
Um oficial da Força Federal, o qual, num espírito de aventura
ou de busca de conhecimento, tinha deixado o bivaque escondido no
vale e, um tanto a esmo, abrira caminho até a extremidade mais
baixa de um pequeno espaço aberto ao pé do precipício, considerava
o que teria a ganhar se levasse mais longe a exploração. À distância
de um quarto de milha em frente, mas aparentemente ao alcance de
uma pedrada, elevava-se da franja dos pinheiros a gigantesca face da
rocha, atingindo uma altura tal que lhe daria vertigem olhar para
cima em direção à linha escarpada e aguda que se recortava contra o
céu. Seu perfil se apresentava claro e vertical contra o azul do céu,
indo até um ponto mais abaixo, acompanhado das colinas distantes,
pouco menos azuis, e daí seguia até os topos das árvores na sua
base. Levantando os olhos para a estonteante altitude do cimo, o
oficial teve uma visão estarrecedora – um homem montado a cavalo
descia para o vale através do ar!
O cavaleiro mantinha-se a prumo, bem ao modo militar, sentado
firme na sela, segurando com força as rédeas para controlar sua
montaria num salto tão impetuoso. De sua cabeça desnuda flutuavam
longos cabelos, saindo dela como fumaça. As mãos estavam ocultas
pela nuvem da crina levantada. O corpo do animal permanecia
nivelado, como se as quatro patas encontrassem o apoio da terra.
Seus movimentos eram como os de um galope selvagem, mas
cessaram enquanto o oficial olhava, todas as patas lançando-se para
a frente, como no ato de pousar após um salto. Mas isso era um voo!
Cheio de espanto e terror devido à aparição do cavaleiro no céu
– e quase se acreditando já o escriba escolhido de algum novo
Apocalipse –, o oficial se viu subjugado pela intensidade de suas
emoções. Suas pernas falharam, e ele caiu. Quase no mesmo
instante, ouviu o ruído dos galhos se partindo – um som que não
produziu eco –, e tudo se aquietou.
O oficial se levantou, tremendo. A sensação familiar de uma
canela esfolada lhe restituiu a faculdades ofuscadas. Recompondo-se,
correu para baixo, afastando-se do sopé do penhasco, para um ponto
onde esperava encontrar o homem, o que não adiantou. No instante
fugidio de sua visão, sua imaginação fora de tal maneira arrebatada
pela graça, facilidade e intencionalidade aparente da maravilhosa
performance que não lhe ocorreu que a linha de marcha da
cavalgada aérea era diretamente para baixo e que os objetos de sua
busca poderiam ser encontrados bem ao pé do penhasco. Meia hora
depois ele retornou ao acampamento.
Esse oficial era um sábio, que conhecia muito bem a hora de
não contar uma verdade incrível. Não disse nada sobre o que vira.
Mas, quando o comandante lhe perguntou se, em sua batida,
descobrira qualquer coisa de vantajosa para a expedição, respondeu:
– Sim, senhor, não existe estrada para este vale a partir do sul.
O comandante, que bem sabia, sorriu.
Depois de atirar, o soldado Carter Druse recarregou o rifle e
retomou a vigilância. Mal se passaram dez minutos, e um sargento
dos federais engatinhou com cautela até ele. Druse não se voltou,
nem olhou para ele, mas permaneceu imóvel, sem dar sinal de
reconhecimento.
– Você atirou? – murmurou o sargento.
– Sim.
– Em quê?
– Num cavalo. Estava sobre aquela pedra – bem ali. Mas não
está mais lá. Voou para o precipício.
A cara do homem estava branca, mas ele não mostrava outros
sinais de emoção. Tendo respondido, desviou os olhos e não disse
mais nada. O sargento não entendeu.
– Olhe aqui, Druse – disse, depois de um silêncio –, é melhor não
fazer mistério. Ordeno que dê o relato.
Havia alguém sobre o cavalo?
– Sim.
– Então?
– Meu pai.
O sargento se levantou e se afastou.
- Deus do céu! – disse.
O DEDO MÉDIO DO PÉ DIREITO
Ambrose Bierce

Sabe-se que a velha mansão Manton é assombrada. Pessoa


alguma de mentalidade aberta duvida disso. A incredulidade
restringe-se a esses indivíduos de opinião que ainda serão chamados
de excêntricos tão logo a palavra penetre nos recessos intelectuais
do Marshal Progressista. A evidência de que a casa seja assombrada
é de dois tipos: o parecer de testemunhas desinteressadas, que
alegam provas oculares, e aquele da própria casa. O primeiro pode
até ser dispensado ou tratado com os vários níveis de objeção que os
mais engenhosos costumam evocar nesses casos. Mas fatos que
concernem à observação de todos são materiais e controláveis.
Em primeiro lugar, a mansão Manton não tem sido ocupada por
mortais há mais de dez anos, e suas fachadas se acham em lento
estado de deterioração – uma circunstância que, por si mesma, os
judiciosos não se atreverão a ignorar. Situa-se um pouco fora da
extremidade mais solitária da estrada que liga Marshal a Harriston,
num descampado que um dia foi uma fazenda e que se acha agora
desfigurado pelas ruínas de uma cerca apodrecida e meio coberta
pelos espinheiros que infestam um solo pedregoso há muito
esquecido pelo arado. A casa mesma se encontra num estado
tolerável de conservação, embora muito manchada pelo tempo e a
carecer dos cuidados de um vidraceiro – a população masculina
menor da região tendo atestado, à sua maneira, certa desaprovação
quanto ao fato de haver ali uma residência sem residentes.
De formato quase quadrado, tem dois pavimentos e a entrada
cortada por um portal que, de cada lado, uma janela de rótulas altas
guarnece. Janelas correspondentes na parte de cima, não protegidas
por rótulas de madeira, permitem a entrada de luz nos cômodos do
pavimento superior. Grama e ervas crescem livremente por toda
parte e algumas árvores copadas, que canalizam o vento, e todas
inclinadas numa só direção, parecendo fazer um esforço conjunto
para fugir. Em suma, como o humorista de Marshal explicou nas
colunas do Progressista, “a proposição de que a mansão Manton é
assombrada é a única conclusão lógica das premissas”. O fato de
que, nessa casa, o sr. Manton julgou por bem, certa noite, se
levantar da cama e cortar as gargantas de sua esposa e de seus dois
filhos pequenos, mudando-se em seguida para outra parte do país,
ajudou sem dúvida a despertar a atenção do público para a perfeita
adequação do lugar aos fenômenos sobrenaturais.
A essa casa, numa tarde de verão, chegaram quatro homens
numa carroça. Três deles apearam imediatamente, e o que conduzia
a carroça amarrou o cavalo ao único mourão remanescente do que
fora outrora uma cerca. O quarto permaneceu na carroça.
– Venha – disse um dos companheiros, aproximando-se dele,
enquanto os outros se afastavam em direção à casa. –Este é o lugar.
O interpelado não se moveu.
– Por Deus – disse rudemente –, isso é uma peça, e me parece
que vocês estão preparando alguma.
– Talvez eu esteja – o outro disse, olhando-o no rosto e falando
num tom que continha uma ponta de desprezo. – Você se lembrará,
porém, de que a escolha do lugar foi deixada, com o seu próprio
assentimento, para o oponente. Obviamente, se está com medo de
fantasmas...
– Não estou com medo de nada – o homem interrompeu com
uma praga, e saltou para o chão.
Os dois então se juntaram aos outros na porta, que, com
dificuldade, devido à ferrugem da fechadura e das dobradiças, já
tinha sido aberta por um deles. Entraram. Estava escuro por dentro,
mas o homem que destrancara tirou do bolso uma vela e fósforos e
acendeu uma luz. Então, destrancou uma porta à direita, enquanto os
outros aguardavam. Isso lhes permitiu entrar num cômodo amplo,
quadrado, que a vela iluminou precariamente. Uma camada espessa
de poeira cobria o piso, abafando em parte o ruído de seus passos.
Havia teias de aranha por todos os cantos, pendentes do teto como
longas tiras podres que fizessem movimentos ondulatórios no ar
perturbado. O cômodo tinha duas janelas em ângulos adjacentes, mas
através delas nada se podia avistar senão a madeira interna dos
pranchões, a poucas polegadas do vidro. Não havia lareira, nem
mobília. Não havia nada, a não ser teias de aranha e poeira. Os
quatro homens eram os únicos objetos ali que não faziam parte da
estrutura.
Pareciam bem estranhos à luz amarelada da vela. Aquele que
apeara com relutância era singularmente espetacular – poderia
mesmo ser chamado de sensacional. De meia idade e compleição
robusta, o peito fundo e os ombros largos, olhando-se para a sua
figura se diria que tinha a força de um gigante; e, olhando-se para
sua aparência, que a usaria como um gigante. Estava barbeado, os
cabelos cinzentos aparados rente ao crânio. Sua testa baixa era
vincada de rugas em cima dos olhos, rugas que se tornavam verticais
ao redor do nariz. As pesadas sobrancelhas negras seguiam o mesmo
padrão, exceto ao se curvarem para cima no que, de outro modo,
teria sido seu ponto de contato. Afundados por baixo bruxuleavam
dois pares obscuros de olhos de cor incerta, mas certamente
pequenos. Havia qualquer coisa de ameaçadora na sua expressão, a
qual não era ajudada pela boca cruel e pelo queixo largo. O nariz
parecia bem, como qualquer nariz, até porque não se espera muito
de narizes. Tudo o que havia de sinistro na face desse homem
parecia acentuado por uma palidez desumana: era como se ele fosse
totalmente exangue.
A aparência dos outros era bastante comum: tratava-se de
pessoas que podemos encontrar por aí e esquecer que encontramos.
Todos eram mais jovens do que o homem descrito, que
aparentemente não mantinha boas relações com o mais velho dos
três, o qual permanecia à parte. Evitavam olhar-se um ao outro.
– Cavalheiros – disse o homem que segurava a vela e as chaves
–, acho que tudo está bem. Está pronto, sr. Rosser?
O homem que se afastara do grupo acenou com a cabeça e
sorriu.
– E você, sr. Grossmith?
O pesadão acenou também, com uma carranca.
– Façam a gentileza de removerem seus trajes exteriores.
Chapéus, paletós, coletes e lenços foram tirados e jogados
através da porta, no vestíbulo. O homem da vela fez um sinal com a
cabeça, e o quarto – aquele que incitara Grossmith a deixar a
carroça – sacou do bolso de seu sobretudo duas longas facas de caça,
de aparência mortífera, que extraiu das bainhas de couro.
– São exatamente iguais – disse, estendendo uma para cada um
dos protagonistas; pois, a essa altura, até o mais obtuso observador
já teria entendido a natureza do encontro. Ia acontecer um duelo de
morte.
Cada contendor apanhou uma faca, examinou-a com cuidado à
luz da vela e testou a resistência da lâmina e do cabo contra o joelho
erguido. Suas pessoas foram examinadas em seguida, cada uma por
sua vez, pelo auxiliar do oponente.
– Se lhe apraz, sr. Grossmith – disse o homem que segurava a
luz –, faça o favor de ir posicionar-se naquele canto.
Indicou o ângulo do cômodo mais distante da porta, para o qual
Grossmith se retirou, seu auxiliar se afastando também com um
aperto de mão que nada tinha de cordial. No ângulo mais próximo à
porta, o sr.
Rosser se colocou de pé; e, após uma consulta cochichada, seu
auxiliar o deixou para se juntar ao outro perto da porta. Nesse
momento a vela se apagou bruscamente, deixando-os na mais
profunda escuridão.
Isso poderia ter sido causado pelo deslocamento de ar da porta
aberta. Qualquer que fosse a causa, o efeito foi assustador.
– Cavalheiros – disse uma voz que soou estranha naquela nova
situação, que afetava as relações entre os sentidos –,cavalheiros, não
se movam enquanto não tenham ouvido a porta externa se fechando.
Seguiu-se um som de passos, e então a porta interna se fechou.
E finalmente a porta externa bateu com um estrondo que abalou todo
o edifício.
Alguns minutos mais tarde, o filho de um fazendeiro, que
passava por ali a desoras, avistou uma carroça leve que disparava
furiosamente em direção à cidade de Marshal . Declarou que atrás
das duas figuras do acento frontal havia uma terceira, de pé, com as
mãos agarradas aos ombros curvos dos outros, os quais pareciam
lutar em vão para se livrarem desse aperto. Essa figura, ao contrário
das outras, se vestia de branco, e teria sem dúvida subido na carroça
quando ela passou pela casa assombrada. Como o garoto podia se
gabar de considerável experiência anterior com o sobrenatural local,
sua palavra pesou como o testemunho de uma autoridade. A história
(em conexão com os eventos do dia seguinte) apareceu até no
Progressista, com ligeiros retoques literários e uma declaração
conclusiva de que os referidos cavalheiros teriam permissão de usar
as colunas do jornal para exporem sua própria versão da aventura
noturna. Mas esse privilégio nunca foi demandado.
Os eventos que culminaram nesse “duelo no escuro” foram
bastante simples. Numa certa tarde três rapazes da cidade de
Marshal estavam sentados num canto sossegado da varanda do hotel
do vilarejo, fumando e discutindo esses assuntos que três rapazes
educados de um lugarejo do sul considerariam naturalmente
interessantes. Seus nomes eram King, Sancher e Rosser. A uma
distância que lhe permitia ouvir, mas sem tomar parte na conversa,
sentava-se um quarto. Os outros não o conheciam. Apenas sabiam
que, ao chegar na diligência naquela tarde, tinha anotado no registro
do hotel o nome de Robert Grossmith. Parece não ter falado com
ninguém a não ser com o funcionário do hotel. Dava mostras de não
apreciar nenhuma companhia a não ser a de si mesmo – ou, como se
expressou a equipe do Progressista, “amplamente dado às más
sociedades”. Mas, para sermos justos, seria preciso dizer, quanto ao
forasteiro, que a equipe estaria, ele mesmo, muito pouco inclinado a
julgar com isenção alguém que tivesse opiniões diferentes,
principalmente depois de ter experimentado uma pequena decepção
em sua tentativa de obter uma “entrevista”.
– Odeio qualquer tipo de deformidade numa mulher – disse King
–, seja natural ou... adquirida. Tenho uma teoria de que a todo
defeito físico corresponde o equivalente defeito moral e mental.
– Infiro, pois – disse Rosser gravemente –, que uma senhora a
quem falte a superioridade moral de um nariz estaria em maus
lençóis se quisesse tornar-se a sra. King.
– É, pode-se colocar dessa maneira – foi a resposta. – Mas, no
duro, uma vez joguei fora uma garota das mais atraentes só porque
descobri, acidentalmente, que ela tinha sofrido a amputação de um
dedo do pé.
Minha atitude foi brutal, caso você queira; porém, se eu tivesse
me casado com aquela moça, teria me tornado infeliz para o resto da
vida, e a teria feito infeliz também.
– Ao passo que – disse Sancher, com uma curta risada –,
casando-se com um cavalheiro de opiniões mais liberais, ela escapou
com uma garganta cortada.
– Ah, você sabe a quem me refiro. Sim, casou-se com Manton,
mas nada sei sobre sua liberalidade. Não tenho certeza, mas ele
cortou a garganta dela ao descobrir que lhe faltava aquela coisinha
excelente da mulher, que é o dedo médio do pé direito.
– Olhem para esse cara! – disse Rosser, em voz baixa, os olhos
fixos no forasteiro.
“Esse cara” estava, obviamente, ouvindo com atenção a
conversa.
– Que impudência! – murmurou King. – Que faremos?
– Muito fácil – Rosser respondeu, levantando-se. – Senhor –
continuou, dirigindo-se ao forasteiro –, penso que seria melhor que
você removesse sua cadeira para o outro extremo da varanda. A
presença de cavalheiros não é, com certeza, uma situação a que
esteja familiarizado.
O homem saltou da cadeira e avançou com as mãos crispadas,
as faces brancas de raiva. Todos se colocaram de pé. Sancher deu
um passo e ficou entre os dois.
– Você é precipitado e injusto – disse a Rosser. – Este cavalheiro
nada fez para merecer tal linguagem.
Mas Rosser se recusou a retirar suas palavras. Pelos costumes
da região naquela época, só uma consequência seria possível para a
quizília.
– Exijo a satisfação devida a um cavalheiro – disse o estranho,
que se acalmara um pouco. – Não conheço ninguém nesta região.
Talvez você, senhor – e acenou com a cabeça para Sancher – fará a
gentileza de me representar nesta questão.
Sancher aceitou o encargo, com alguma relutância, admitamos,
pois a aparência e as maneiras do homem não eram inteiramente do
seu agrado. King, que durante a conversa mal tirara os olhos do
estranho, e que não dissera palavra, consentiu, num aceno, em
auxiliar Rosser. E o desfecho foi que, ao se retirarem os
protagonistas, um encontro ficou combinado para a próxima noite. A
natureza dos procedimentos já estava estabelecida. O duelo de facas
num cômodo escuro terá sido certa vez um aspecto mais comum da
vida do sudoeste do que poderá voltar a ser algum dia. E o quanto
era fina a camada do verniz “cavalheiresco” que recobria a
brutalidade essencial do código a partir do qual tais encontros se
tornavam possíveis é o que veremos a seguir.
À forte luminosidade de um entardecer de verão, a velha
mansão Manton mal se poderia conservar fiel às suas tradições. Era
da terra – terrena. O brilho do sol acariciava-a calorosa e
apaixonadamente, com evidente desprezo por sua má reputação. A
grama verde que se esparramava à sua frente parecia crescer não
desgrenhada, mas com exuberância natural e feliz, e as ervas floriam
como plantas ornamentais.
Repletas de luzes atraentes e de sombras e de pássaros de
vozes agradáveis, as árvores copadas não mais lutavam para fugir,
mas se curvavam com reverência sob seu fardo de sol e de cantorias.
Mesmo nas janelas superiores, que não tinham vidros, havia uma
expressão de paz e contentamento, proveniente da luz do interior.
Através dos campos pedregosos o calor visível dançava com vivo
tremor, incompatível com a gravidade que se atribui ao
sobrenatural.
Esse era o aspecto sob o qual o lugar se apresentou ao xerife
Adams e aos dois homens que tinham vindo de Marshal para dar uma
olhada nele. Um desses homens era o sr. King, o auxiliar do xerife; o
outro – que se chamava Brewer – era um dos irmãos da falecida sra.
Manton. Com base numa benéfica lei do Estado, relativa às
propriedades que, tendo sido abandonadas durante algum tempo por
donos cuja residência não se pôde localizar, o xerife era o
responsável legal pela fazenda Manton e pelas benfeitorias a ela
pertencentes. Sua visita atual era apenas para cumprir certa ordem
da corte, perante a qual o sr. Brewer litigava a posse da
propriedade, na condição de herdeiro de sua irmã doente. Por mera
coincidência, a visita foi feita no dia seguinte ao da noite em que o
auxiliar King destrancara a casa para um outro e bem diferente
propósito. Agora, sua presença ali não era um ato de escolha: tivera
ordens de acompanhar seu superior e, no momento, não podia pensar
em nada mais prudente do que uma simulada alacridade em
obediência ao mandado.
Abrindo com descuido a porta da frente, que para sua surpresa
não estava trancada, o xerife espantou-se de ver, sobre o piso do
vestíbulo para o qual ela dava entrada, um amontoado confuso de
roupas masculinas. O exame mostrou que consistia de dois chapéus e
o mesmo número de paletós, de coletes e de lenços, todos em ótimo
estado de conservação, não obstante um pouco sujos da poeira em
que jaziam.
O sr. Brewer também ficou espantado, mas as emoções do sr.
King permaneceram misteriosas. Com um renovado interesse em
suas próprias ações, o xerife agora destrancava e empurrava a porta
à direita, e os três entraram. O cômodo estava aparentemente vazio
– não: quando seus olhos se acostumaram à fraca luminosidade,
alguma coisa se tornou visível no ângulo oposto da parede. Era uma
figura humana – a figura de um homem agachado a um canto.
Qualquer coisa na sua atitude fez os intrusos estacaram logo que
cruzaram os umbrais. A figura se definiu cada vez mais. O homem se
apoiava sobre um joelho, as costas apertadas contra o ângulo das
paredes, os ombros erguidos até o nível das orelhas, as mãos diante
do rosto, palmas para diante, os dedos abertos e crispados como
garras. A face pálida estava voltada para cima, sobre o pescoço
contraído, com uma expressão de indizível medo, a boca aberta, os
olhos arregalados. Estava morto. No entanto, com exceção da faca
de caça, que certamente teria caído de sua mão, não havia nenhum
outro objeto no cômodo.
Sobre a poeira grossa que cobria o piso havia algumas pegadas
confusas próximo à porta e acompanhando a parede em que esta se
abria. Também ao longo de uma das paredes adjacentes, até para
além das janelas cobertas por tábuas, se via a trilha feita pelas
pegadas do homem antes de chegar àquele canto.
Instintivamente, ao se aproximarem do corpo, os três homens
seguiram a trilha. O xerife agarrou um dos braços estendidos: estava
rígido como ferro, e a aplicação de um pouco de força fez todo o
corpo girar sem alterar a relação entre as partes. Brewer, pálido de
excitação, olhava atentamente para a face contorcida.
– Deus de misericórdia! – gritou de repente. – É Manton!
– Você tem razão – disse King, numa mal disfarçada tentativa de
acalmar. – Eu conhecia Manton. Usava barba cheia e cabelos
compridos na época, mas é ele.
Poderia ter acrescentado: “E eu o reconheci quando desafiou
Rosser. Contei a Rosser e a Sancher quem ele era, antes de lhe
pregarmos esta peça horrível. Quando Rosser deixou este cômodo
escuro atrás de nós, esquecendo suas roupas de tão excitado e se
pondo a caminho, junto conosco, em mangas de camisa
– durante todos esses eventos sabíamos quem era e com quem
estávamos lidando, esse assassino covarde!”
Mas o sr. King não disse nada disso. Com o máximo esforço,
tentava penetrar no mistério da morte desse homem. Que não
tivesse se afastado do canto onde estacionara; que sua postura não
era nem de ataque nem de defesa; que tinha deixado cair a arma;
que, obviamente, perecera devido ao profundo horror a qualquer
coisa que viu – essas eram circunstâncias que a perturbada
inteligência do sr. King não podia articular totalmente.
Tateando na escuridão intelectual por uma pista que conduzisse
para fora de seu labirinto de dúvidas, seu olhar, dirigido
mecanicamente para baixo, como acontece quando ponderamos
sobre assuntos graves, caiu por acaso sobre alguma coisa que, à luz
do dia e na presença de companheiros vivos, o encheu de terror.
No pó que se acumulara durante anos sobre o piso, partindo da
porta pela qual eles entraram, atravessando o cômodo e parando à
distância de uma jarda do cadáver agachado de Manton, havia três
linhas paralelas de pegadas – leves mas bem definidas impressões de
pés descalços; as exteriores, de crianças pequenas; as interiores, de
uma mulher. Do ponto onde cessavam elas não retornavam:
apontavam todas numa só direção. Brewer, que as notara no mesmo
instante, se inclinou para a frente, pálido, numa atitude de absorção
enlevada.
– Olhem para isso! – gritou, apontando com ambas as mãos para
a pegada mais próxima, do pé direito da mulher, no ponto onde ela
aparentemente tinha parado. – Falta o dedo médio. É Gertrude!
Gertrude era a falecida sra. Manton, irmã do sr. Brewer.
NUMA NOITE DE VERÃO
Ambrose Bierce

O fato de estar enterrado não parecia provar a Henry


Armstrong que ele tivesse morrido: sempre fora um homem difícil de
convencer. Que ele estivesse realmente enterrado o testemunho de
seus sentidos o levava a admitir. Sua postura – deitado de costas, as
mãos cruzadas sobre o estômago e atadas com alguma coisa que ele
partiu facilmente, sem melhorar muito a situação –, o confinamento
estrito de toda a sua pessoa, a escuridão negra e o silêncio profundo,
tudo isso compunha um corpo de evidência impossível de contradizer;
e ele o aceitava sem objeção.
Mas morto – não. Ele estava apenas muito, muito doente. E
tinha, além disso, a apatia dos inválidos, sem se preocupar demais
com o destino incomum que lhe fora reservado. Não era filósofo –
apenas uma pessoa ordinária e rasa, dotada, naquele momento, de
uma indiferença patológica: o órgão do qual temia consequências
estava entorpecido. Assim, sem nenhuma apreensão particular
quanto ao seu futuro imediato, dormiu, e tudo estava em paz com
Henry Armstrong.
Mas alguma coisa se passava logo acima. Era uma noite escura
de verão, rasgada por clarões ocasionais de relâmpagos que
dardejavam contra uma nuvem baixa, a oeste, anunciando
tempestade. Essas iluminações breves, balbuciantes, faziam
aparecer, com nitidez espectral, os monumentos e as lápides do
cemitério, tal como se os colocasse para dançar. Não era uma noite
em que uma testemunha qualquer pudesse, de modo crível,
perambular por ali, de modo que os três homens que lá apareceram,
a cavar o túmulo de Henry Armstrong, se sentiam razoavelmente
seguros.
Dois deles eram estudantes da faculdade de medicina, que
ficava algumas milhas adiante. O terceiro era um negro gigantesco,
chamado Jess. Por muitos anos, Jess tinha sido empregado no
cemitério como uma espécie de faz-tudo, e era o seu bordão favorito
dizer que conhecia “todas as almas do lugar”. Pela natureza do que
estava a fazer agora, inferia-se que o lugar não era tão populoso
quanto o registro o teria demonstrado.
Do lado de fora do muro, numa parte distanciada da estrada
pública, estavam um cavalo e uma carroça a esperar.
O trabalho de escavação não era difícil: a terra com que o
túmulo fora coberto poucas horas antes oferecia pouca resistência,
sendo logo retirada. Remover o esquife de dentro do nicho foi menos
fácil, mas não impossível, pois se tratava de uma habilidade de Jess, o
qual desparafusou a tampa com cuidado e a colocou de lado, expondo
o corpo com suas calças pretas e a camisa branca. Nesse exato
instante o ar se inflamou, o estrondo ensurdecedor do trovão abalou
o mundo, e Henry Armstrong se sentou tranquilamente.
Com gritos inarticulados, os homens fugiram de pavor, cada um
numa direção. Por nada no mundo dois deles teriam sido persuadidos
a retornar. Mas Jess era de outra têmpera.
No lusco do amanhecer, os dois estudantes – pálidos e exaustos
do terror e da ansiedade causados pela aventura precedente, que
ainda latejavam tumultuários em seu sangue – se encontraram na
faculdade de medicina.
– Você viu? – gritou um deles.
– Meu Deus, sim! Que vamos fazer?
Foram até os fundos do edifício, onde viram um cavalo atrelado
a uma carroça e amarrado a um mourão junto à porta da sala de
dissecação. Entraram mecanicamente no cômodo. Sentado num
banco, oculto pela obscuridade, estava Jess. Levantou-se, sorrindo,
todo olhos e dentes.
– Estou esperando pelo meu pagamento – disse.
Estendido nu sobre uma mesa comprida jazia o corpo de Henry
Armstrong, a cabeça lambuzada pelo sangue e pela lama de uma
pazada.
O ESTRANHO
Ambrose Bierce

O homem saiu da sombra para o pequeno círculo de luz de nossa


fogueira e se sentou numa pedra.
– Vocês são os primeiros a explorar esta região – disse.
Ninguém retorquiu a essa declaração. A prova do que dizia era
ele mesmo, que não pertencia ao nosso grupo e devia estar por perto
quando acampamos. Mais: devia ter companheiros nos arredores,
pois aquele não era lugar para se viver ou viajar sozinho. Por mais de
uma semana só tínhamos visto, além de nós mesmos e de nossos
animais, pequenos seres como lagartos e sapos de chifres. Num
deserto do Arizona não se coexiste por muito tempo apenas com
essas criaturas: precisa-se de ter animais de carga, suprimentos,
armas – “equipamento”, enfim. E tudo isso implica camaradas. Houve
dúvida quanto ao tipo de homens a que pertenceriam os camaradas
desse estranho que aparecera sem cerimônia, bem como, em suas
palavras, qualquer coisa tão impenetrável quanto um desafio, o que
fez com que nossa meia dúzia de “aventureiros” se sentasse, com as
mãos nas armas, numa atitude que significaria, dada a hora e o lugar,
ostensiva expectação. O estranho não prestou atenção e começou a
falar de novo no mesmo tom deliberado e monótono com que
pronunciara a primeira frase:
– Trinta anos atrás Ramon Galegos, Wiliam Shaw, George W.
Kent e Berry Davis – todos de Tucon – atravessaram as montanhas
Santa Catalina em direção a oeste, avançando tanto quanto a
configuração do território o permitiria. Fazíamos prospecção, e
nosso intuito, se não achássemos nada, era seguir até o rio Gila, num
ponto próximo de Big Bend, onde supúnhamos haver um
assentamento. Tínhamos um bom equipamento, mas nenhum guia –
só Ramon Galegos, Wiliam Shaw, George W. Kent e Berry Davis.
O homem repetiu os nomes devagar e com nitidez, como se para
gravá-los na memória da audiência, cujos membros agora o
observavam atentamente, mas com uma ligeira apreensão quanto à
possibilidade de haver companheiros ocultos na treva que nos
enclausurava como uma parede negra. Na atitude desse historiador
voluntário não havia sugestões de qualquer propósito inamistoso.
Seus modos eram mais os de um lunático inofensivo do que os de um
inimigo. Nem estávamos tão desacostumados ao campo para
ignorarmos que a vida solitária de muito camponês tem uma
tendência a desenvolver excentricidades de conduta e de caráter que
nem sempre se distinguem da aberração mental. Um homem é como
uma árvore: na floresta dos seus semelhantes, ele crescerá tão reto
quanto sua natureza genérica e individual o permitir.
Sozinho, em lugar aberto, cederá às pressões e às torções
deformadoras que o envolvem. Alguns desses pensamentos me
vieram enquanto eu observava o sujeito através da sombra de meu
chapéu, puxado para baixo a fim de quebrar a luz do fogo. Um pobre
imbecil, sem dúvida, mas o que estaria fazendo ali, no coração do
deserto?
Tendo empreendido contar esta história, gostaria de poder
descrever a aparência do homem, o que seria natural. Infelizmente –
ou estranhamente – não me acho em condições de fazê-lo com
segurança, pois mais tarde nem sequer dois de nós concordaríamos
quanto ao que ele vestia e quanto à sua aparência. E, quando tento
ajuntar minhas impressões, elas me escapam. Qualquer um pode
contar histórias; a narração é uma das forças elementares da raça.
Mas o talento para a descrição é um dom.
Como ninguém quebrasse o silêncio, o visitante prosseguiu:
– Esta região não era o que é agora. Não havia sequer um
rancho entre o Gila e o Golfo. Havia alguma caça aqui e ali nas
montanhas, e perto dos raros olhos d’água havia grama suficiente
para impedir que os animais morressem de fome. Se tivéssemos a
boa sorte de não encontrar índios, podíamos ir passando.
Mas, dentro de uma semana, o objetivo da expedição mudou da
descoberta de riquezas para a preservação da vida. Tínhamos ido
longe demais para podermos retornar, pois o que estivesse à frente
não seria pior do que o que ficara para trás. Então continuamos,
viajando à noite, para evitar os índios e o calor intolerável, e nos
escondendo durante o dia, tanto quanto pudéssemos. Às vezes,
depois de esgotar nossas reservas de carne selvagem e de esvaziar
nossos cantis, passávamos dias sem comida e sem água. Então um
olho d’água ou um poço raso no fundo de um arroio restauravam de
tal maneira nossas forças e nossa sanidade que nos sentíamos em
condições de matar os animais silvestres, que também os
procuravam. Às vezes era um urso, outras um antílope, um coiote,
um puma – o que Deus provesse: tudo era alimento.
“Certa manhã, quando batíamos uma linha de montanhas,
procurando por alguma passagem, fomos atacados por um bando de
apaches que seguiram nossa trilha até uma ravina, não muito longe
daqui.
Sabendo que seu número era de dez para um contra nós,
abandonaram suas costumeiras precauções de covardia e caíram
sobre nós a galope, atirando e gritando. Lutar estava fora de
questão: picamos nossos fracos animais através da ravina, até onde
houvesse piso para os cascos; apeamos e subimos até o chaparral de
um dos sopés, abandonando todos os nossos pertences ao inimigo.
Mas conservamos nossos rifles, cada um de nós – Ramon Galegos,
Wiliam Shaw, George W. Kent e Berry Davis.
– O mesmo povo de sempre – disse o humorista de nosso grupo.
Era um homem do Leste, pouco familiarizado com as observâncias
mais decentes do convívio social. Um gesto de desaprovação de
nosso líder o fez silenciar; e o estranho prosseguiu com sua história:
– Os selvagens desmontaram também, e alguns deles subiram
pela ravina, avançando para além do ponto onde a tínhamos deixado,
cortando qualquer retirada por aquela direção e forçandonos para o
flanco.
Infelizmente o chaparral se estendia só por uma curta distância
sopé acima, e quando chegamos à parte aberta no alto recebemos o
fogo de doze rifles. Mas os apaches atiram mal quando estão com
pressa, e Deus providenciou para que nenhum de nós fosse atingido.
Umas vinte jardas para o alto, no sopé, além da linha da vegetação,
havia despenhadeiros verticais, em meio aos quais se via, bem à
frente, uma estreita abertura. Corremos para ela, desembocando
numa caverna pouco mais larga do que um cômodo comum de
residência. Aqui, por algum tempo, estivemos a salvo: um único
homem com um rifle de repetição poderia defender a entrada contra
todos os apaches do lugar. Mas contra a fome e a sede não tínhamos
defesa. Coragem ainda tínhamos, mas a esperança era só uma
reminiscência.
“Nem um só desses índios nós vimos mais tarde; mas pela
fumaça e pelo fulgor de suas fogueiras na ravina sabíamos que dia e
noite eles nos vigiavam, com os rifles prontos, na extremidade do
mato.
Sabíamos que se tentássemos alguma coisa nenhum de nós
viveria para dar três passos além da abertura.
Durante três dias, revezando a guarda, nos aguentamos, até que
o sofrimento se tornou insuportável. Então – era a manhã do quarto
dia – Ramon Galegos disse:
“– Señores, não sei muito sobre o Deus bom ou sobre o que
agrada a Ele. Vivi sem religião e não tenho conhecimento daquela de
vocês. Perdão, señores, se os escandalizo, mas para mim chegou a
hora de bater o jogo dos apaches.
“Ajoelhou-se no chão de pedra da caverna e encostou a pistola
contra a fronte. ‘ Madre de Dios’ – disse –
‘vem agora a alma de Ramon Galegos’.
“E então nos deixou – Wiliam Shaw, George W. Kent e Berry
Davis.
“Eu era o líder: cabia a mim falar.
“– Ele era um bravo – eu disse –; sabia quando morrer e como
morrer. É tolice enlouquecer por causa da sede e tombar diante das
balas dos apaches, ou ser esfolado vivo; é de mau gosto. Juntemo-nos
a Ramon Galegos.
“– Tudo bem – disse Wiliam Shaw.
“– Tudo bem – disse George W. Kent.
“Estiquei os membros de Ramon Gal egos e coloquei um lenço
sobre seu rosto. Então Wiliam Shaw disse:
– Eu gostaria de ter esse aspecto, nem que por um instante.
“E George W. Kent disse que também queria o mesmo.
“– Há de ser assim – eu disse. – Os diabos vermelhos esperarão
uma semana. Wiliam Shaw e George W.
Kent, saquem as armas e se ajoelhem.
“Fizeram-no, e eu fiquei diante deles.
“– Deus todo-poderoso, nosso Pai – eu disse.
“– Deus todo-poderoso, nosso Pai – disse Wiliam Shaw.
“– Deus todo-poderoso, nosso Pai – disse George W. Kent.
“– Perdoai nossos pecados – eu disse.
“– Perdoai nossos pecados – disseram eles.
“– E recebei nossas almas.
“– E recebei nossas almas.
“– Amém!
“– Amém!
“Deitei-os ao lado de Ramon Galegos e cobri seus rostos.”
Houve uma rápida comoção do lado oposto do acampamento: um
membro de nosso grupo se pôs de pé, a pistola em punho.
– E você – gritou ele –, você ousou escapar? Ainda ousa estar
vivo? Seu cachorro covarde, farei com que se junte a eles.
Enforquem-me se...
Mas com um salto de pantera o capitão o deteve, segurando-lhe
o pulso.
– Contenha-se, Sam Yountsey, contenha-se!
Estávamos todos de pé agora, a não ser o estranho, que
permanecia imóvel e aparentemente desatento.
Alguém agarrou o outro braço de Yountsey.
– Capitão – eu disse, – há qualquer coisa errada aqui. Esse
sujeito ou é um lunático ou é um simples mentiroso: um mero
mentiroso ordinário a quem Yountsey não tem razão de querer
matar. Se esse homem pertencia ao grupo, então haveria cinco
membros, um dos quais (provavelmente ele mesmo) ele não nomeou.
– Sim – disse o capitão, soltando o insurgente, o qual se sentou –,
há alguma coisa... incomum. Há alguns anos quatro corpos de
homens brancos, escalpelados e lamentavelmente mutilados, foram
achados junto à boca daquela caverna. Estão enterrados lá, eu vi os
túmulos; poderemos conferir amanhã.
O estranho se levantou, colocando-se de pé à luz do fogo que
expirava – fogo que, no sufoco de nossa atenção, esquecemos de
manter.
– Havia quatro – ele disse – Ramon Galegos, Wiliam Shaw,
George W. Kent e Berry Davis.
Com essa reiterada lista de chamada dos mortos ele penetrou
nas trevas, e não o vimos mais. Nesse momento, um membro do
nosso grupo, que tinha estado de vigia, caminhou para nós, algo
excitado e de rifle em punho.
– Capitão – disse – durante a última meia hora três homens
estiveram ali, no platô. – Apontou na direção que o estranho tomara.
– Pude vê-los bem, pois havia luar; mas, como não tinham armas, e eu
os cobria com a minha, pensei que estavam de passagem. Mas não se
moveram, com os diabos! Deram-me nos nervos!
– Volte para o seu posto e fique lá até que os veja de novo –
disse o capitão. – O resto vá se deitar de novo, ou jogo todos na
fogueira.
A sentinela se retirou, obediente, resmungando, e não voltou
mais. Enquanto ajeitávamos nossos cobertores, o estouvado
Yountsey disse:
– Peço mil desculpas, capitão, mas quem diabos você pensa que
eles são?
– Ramon Galegos, Wiliam Shaw e George W. Kent.
– Mas e quanto a Berry Davis? Eu devia ter atirado nele.

Sem necessidade. Você não o teria deixado mais morto. Vá


dormir.
A MISSA DAS SOMBRAS
Anatole France

Eis o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em


Neuvilled'Aumont, me contou debaixo da latada do Cavalo-Branco,
numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à
saúde de um morto muito abastado, que ele havia enterrado
honrosamente naquela manhã mesma, sob um tecido cheio de belas
lágrimas de prata.
Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida,
coveiro. Era de humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua
profissão, porque se tem reparado que as pessoas que trabalham nos
cemitérios possuem espírito jovial. A morte não os atemoriza
absolutamente; jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou
falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão serenamente
quanto no caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro
um espectro, não me inquieto absolutamente com isso, porque reflito
que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios, da mesma
forma que eu dos meus.
Conheço os hábitos dos mortos e seu caráter. Sei a tal respeito
coisas que os próprios sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria
surpreso se lhe contasse tudo que tenho visto. Mas, nem todas as
verdades são próprias para serem contadas, e meu pai, que, todavia,
gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima parte do que
sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas
e. ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de
Catarina Fontaine.
Catarina Fontaine era uma velha solteirona, que ele se
lembrava de ter visto em criança. Não me surpreenderia se ainda
houvesse na região, até, uns três velhos que ainda se recordem de
ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida e
considerada, embora pobre. Morava numa esquina da Rua das
Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de
um velho palacete arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas.
Há. nessa torrezinha, figuras e inscrições meio apagadas. O falecido
pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia aí estar escrito, em latim,
que "o amor é mais forte que a morte". O que se refere,
acrescentava, ao amor divino.
Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia
rendas. O senhor sabe que as rendas de nossa região eram,
antigamente, muito afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos
seus. Dizia-se que amara, aos dezoito. anos, o jovem cavaleiro
d'Aumont", com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem
não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de
uma história que fora imaginada, porque Catarina Fontaine lembrava
mais - uma dama, que uma operária, conservava sob seus cabelos
brancos os vestígios de uma grande beleza, possuía um ar triste e se
lhe podia ver, na mão, um desses anéis em que o ourives colocara
duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos
trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significa.
Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e,
todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis
horas, em Santa Eulália.
Ora, uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu
pequeno quarto, foi despertada pelo toque dos sinos; certa de
estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-
se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada que se não viam
absolutamente as casas; claridade alguma era perceptível, no céu
negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas - que nem penso um
cão ladrava ao longe - que a pessoa se sentia completamente
separada do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia
cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos
fechados, alcançou, sem dificuldade, a esquina da Rua das Freiras
com a Rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira
que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave.
Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja
estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios.
Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa reunião,
que enchia a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos
presentes, e estava surpresa ao ver - aquelas pessoas trajadas de
veludo e de-brocado, - plumas no chapéu e trazendo espada, à
maneira dos tempos de antanho. Havia senhoras que seguravam
longas bolsas de castão de ouro e damas com toucados de nadas,
presos com um pente em diadema. Cavaleiros de e Luís davam a mão
a essas senhoras, que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do
qual só era visível um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-
se em seu lugar, sem o menor ruído, e não se ouvia,, enquanto
andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçagar dos
tecidos.
As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de
casaco pardo. calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela
cintura raparigas lindíssimas, rosadas, que conservavam os olhos
baixos. E, junto ás pias de água benta, camponesas de saia vermelha
e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a tranquilidade dos
animais domésticos . enquanto uns mocetões, de pé atrás delas, -
alavam os olhos, rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas
fisionomias silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no
mesmo pensamento, suave e triste. Ajoelhada em seu lugar
costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar para o altar,
precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem
os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa, na qual
não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o
rumor da sinéta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob
o olhar e sob a influência de seu misterioso vizinho e, tendo olhado,
sem quase volver a cabeça reconheceu o jovem cavaleiro d'Aumont-
Cléry, que a havia amado e que morrera fazia quarenta e cinco anos.
Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuía sob a Orelha
esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cílios negros
em seu rosto. Vestia o traje de caça, com botões dourados, que ele
usara no dia em que tendo-a encontrado no bosque de São Bernardo,
roubara-lhe um beijo. Conservava a Sua Mocidade e seu bom
aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo.
Catarina disselhe, baixinho: Senhor, vós que fostes meu amigo e a
quem dei outrora o que uma jovem possui de mais precioso, Deus vos
tenha em sua graça! Possa ele me inspirar, finalmente, o pesar pelo
pecado que cometi convosco: porque é verdade que, de cabelos
brancos e próxima da morte, ainda não me arrependo de vos ter
amado. Mas, finado amigo, meu belo senhor, dizei-me, quem são
essas pessoas trajadas à maneira antiga, que estão assistindo aqui a
esta silenciosa missa.
O cavaleiro d'Aumont-Cléry respondeu com uma voz mais débil
que um sopro e, não obstante, mais clara que o cristal:
— Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do
purgatório, que ofenderam a Deus, pecando, a nosso exemplo, pelo
amor das criaturas, mas que nem por isso estão desligadas de Deus,
porque seu pecado foi, a exemplo do nosso, sem maldade.
Enquanto separadas daqueles que amavam sobre a terra, elas
se purificam no fogo do purgatório, padecem as dores da ausência, e
para elas esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um
anjo do céu se apiedou de seu martírio de amor. Com o
consentimento de Deus, reúne, todos os anos, durante uma hora da
noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é permitido
assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a
verdade. Se me foi permitido ver-te aqui antes de tua morte,
Catarina, tal coisa não se realizou sem a permissão de Deus.
E Catarina Fontaine lhe respondeu:
— Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos
dias, meu finado senhor, em que te dava de beber na floresta.
Enquanto falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso
recolhia as esmolas e apresentava uma grande salva de cobre aos
presentes, que ali deixavam cair sucessivamente moedas antigas,
desde muito tempo fora de circulação: escudos de seis libras, florins,
ducados, nobres com a rosa, e as moedas caíam em silêncio.
Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o cavaleiro
depositou um luís, que não fez mais ruído que as outras moedas de
ouro ou de prata.
Depois, o velho cônego parou em frente de Catarina Fontaine,
que procurou em seu bolso, sem nele encontrar, um real. Então, não
desejando recusar sua dádiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro
lhe dera na véspera de sua morte, e atirou-o na concha de cobre. O
anel de ouro, ao cair. ressoou como um pesado badalo de sino e, ao
ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o cônego, o oficiante, os
agitaram, as damas, os cavaleiros, toda a assistência desapareceu;
os círios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas Trevas".
Tendo concluído assim sua narrativa, o sacristão bebeu um
grande copo de vinho, ficou um instante a meditar e depois
prosseguiu, nestes termos: Contei-lhe esta história exatamente como
a ouvi muitas vezes de meu pai e creio que é verdadeira, porque
corresponde a tudo o que tenho observado das maneiras e dos
costumes peculiares dos defuntos.
Convivi com os mortos, desde minha infância, e sei que eles
costumam voltar a seus amores.
— É por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas
proximidades dos tesouros que eles esconderam durante a vida.
Montam boa guarda à volta de seu ouro; mas os cuidados que eles
tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos, e não é raro
descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sítio
frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos
vêm atormentar, à noite, suas mulheres, casadas em segundas
núpcias, e eu poderia indicar muitos que vigiaram melhor suas
esposas depois de mortos do que o haviam feito em vida...
Esses são dignos de censura, porque, em boa justiça, os
defuntos não deveriam ser ciumentos. Mas lhe estou Contando o que
tenho observado. Por isso é que se deve ter cuidado quando se
desposa uma viuva. Aliás, a história que lhe relatei tem sua
comprovação no seguinte fato:
Na manhã seguinte a essa noite extraordinária, Catarina
Fontaine foi encontrada morta em seu quarto. E o padre de Santa
Eulália encontrou, na salva de cobre que servia para o peditório, um
anel de ouro, com duas mãos entrelaçadas. Aliás, não sou homem que
conte histórias para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de
vinho?..."
AVATAR
Théophile Gautier

Ninguém podia compreender qual a doença que ia consumindo


lentamente Otávio de Saville. Não se encontrava acamado, conduzia
vida regular, nunca um lamento lhe saiu dos lábios; entretanto,
definhava a olhos vistos. Examinado pelos médicos, que a solicitude
dos parentes o obrigavam a consultar, não acusava nenhum
sofrimento determinado, e a ciência não descobria sintoma algum
grave. Mas a vida afastava-se dele, fugindo por umas dessas frestas
invisíveis, de que, segundo Terêncio, o homem está repleto.
Às vezes, uma singular síncope o tornava branco e frio qual
mármore. Durante um minuto ou dois, passava por morto, mas logo
se reanimava, e Otávio parecia estar despertando de um pesadelo.
Fizera uma estação de águas, viajara, mas nem mesmo sob o belo sol
de Nápoles obtivera melhores resultados, pois, onde os "lazzaroni"
seminus se bronzeavam, Otávio sentira-se gelar.
Voltara, portanto, ao seu apartamento da Rua São Lázaro, e
retomara, aparentemente, seus velhos hábitos. Aquele apartamento
de solteiro, mobiliado com elegância, com todo conforto, parecia
sofrer a influência e o pensamento de quem ali habitava, pois
também era triste, apesar do luxo que nele reinava. João, o velho
servo de Otávio, qual uma sombra, na ponta dos pés, porque,
impressionado pela melancolia do patrão, perdera sua habitual
loquacidade. Estatuetas, troféus de caça, máscaras artísticas. armas,
pendiam das paredes. Uma carta mal começada. livros abertos,
permaneciam pelas mesas. Embora habitado. o apartamento parecia
deserto. A vida estava ausente dali e os raros visitantes tinham a
impressão de receber no rosto um sopro de ar gélido, do que sai das
sepulturas quando se abrem.
Nessa lúgubre morada, onde jamais uma mulher jovem pusera
pé, Otávio se encontrava mais à vontade do que em qualquer outra
parte: o silêncio, o abandono, a tristeza, convinham-lhe. Fugia ao
tumultuar das festas, cessara de lutar contra aquela misteriosa dor e
deixara o tempo correr, entregando a Deus a solução do seu caso.
Todavia, antes de assim enlanguescer, Otávio tinha sido o que
se chama um belo rapaz: espessos cabelos negros, crespos e
brilhantes nas têmporas, olhos longos e aveludados, de azul
profundo, encimados por sobrancelhas recurvas, davam a impressão
de pertencerem a algum oriental; tez olivastra, mãos finas e
delicadas, pés pequenos e arqueados. Trajava-se bem, sabia explorar
seus dotes naturais, e recepções.
E por que esse moço, belo e rico, tendo tudo para ser feliz, ia
definhando lentamente?
orque os médicos não atinavam a causa de sua moléstia, porque
a alma não fora ainda secionada. nos laboratórios anatômicos de
Paris.
Estava nesse ponto, quando resolveu procurar um médico
famoso, recém-chegado das índias, gozando da fama de operar curas.
miraculosas. Otávio, porém, parecia temer esse encontro com o
doutor Baltasar Cherbonneau, que sua mãe, tão aflita, lhe
recomendara.
Quando o médico chegou, o jovem estava estendido no divã,
debaixo de um cobertor, tendo ao lado a mesinha repleta de vidros
de remédios. Não fora pela sua palidez e a atonia profunda do olhar,
seu aspecto seria de uma pessoa sadia.
Embora já indiferente a tudo, a presença do médico o chocou.
Baltasar Cherbonneau dava a impressão de uma figura fugida de um
conto fantástico de Hoffmann. Rosto bastante escuro, que terminava,
ao alto, num crânio enorme, cuja calvície tornava ainda mais vasto,
liso e brilhante como marfim. Os raros cabelos, grisalhos, estavam
ajeitados em mechas, junto às orelhas e na nuca. Porém o que mais
atraia a atenção eram seus olhos. Naquele rosto magro e ossudo,
pele de pergaminho, onde a ciência havia impresso sua marca, eles
resplendiam. como duas estrêlas azuis, límpidos, frescos, cheios de
mocidade. Seu trajo era o mais clássico dos médicos: casaco
comprido, calças negras, camisa branca, ande, no peitilho, reluzia um
enorme diamante. Sua magreza era impressionante, dando-lhe um
aspecto de um faquir, ossudo, comprido. Passava por dandy ou
gentleman rider.
— Então, meu senhor? - disse o médico, após um silêncio, que
lhe serviu para uma rápida inspeção - já vi que o senhor não é um
caso de patologia vulgar, não tem nenhuma dessas moléstias que os
médicos curam ou pioram e, depois de examiná-lo, fique certo de que
não lhe darei nenhum papel rabiscado, desses que os farmacêuticos
tanto gostam de aviar.
Otávio sorriu debilmente, mas o médico prosseguiu:
— Dê-me a mão.
Quando Cherbonneau tomou nas suas mãos ossudas, que
pareciam garras, a mão delicada e úmida do moço, este sentiu uma
ansiosa emoção, pois lhe parecia que o outro lhe arrancasse a alma,
com aquela pressão.
— Meu caro senhor, - sentenciou o médico, abando, dando a
mão do jovem - suas condições são muito mais graves do que está
pensando, e a ciência, ao menos a européia, nada pode fazer. O
senhor não possui mais vontade de viver, sua alma se destaca
lentamente do corpo. Caso raro e curioso: se eu não me opuser, o
senhor acabará morrendo, sem qualquer lesão interna ou externa.
Fez bem em chamar-me, porque o espírito está preso à matéria por
um fio. Mas, saberemos dar-lhe um belo nó.
E o médico esfregou alegremente as mãos, com um grotesco
sorriso.
— Senhor Cherbonneau, não sei se irá curar-me, nem tenho
desejo que assim o faça, mas devo confessar que de relance a causa
do misterioso estado em que me encontro. A vida para mim não
passa de uma pantomima, que eu represento ainda para não afligir
mais minha Pobre mãe, pois já me sinto fora da esfera humana.
— O senhor está com uma impossibilidade de viver. Que dor lhe
dilacera o fígado? De que alta ambição tombou? É muito moço para
essas coisas... Alguma mulher o enganou?
Love's labours lost, que quer dizer, se me não engano, penas de
amor perdidas...
Precisamente... - e Otávio empalideceu. ao ralar. - Mas. não
espere nada de romanesco, doutor, é uma aventura comum, tão
vulgar, que até sinto acanhamento em confessar a um homem tão
viajado e vivido... Pois bem, doutor, eu estou morrendo de amor...
Encontrava-me em Florença, em 184... em fins do verão, a
melhor estação para se ver Florença. Eu possuía tempo, dinheiro,
boas cartas de recomendação, e era um rapaz bem humorado, que
desejava divertir-se. Visitei todos os museus e pontos pitorescos da
cidade, divertime a valer, passei um mês dos mais felizes de minha
vida, mas minha ventura não podia durar. Um dia, uma rica e nobre
carruagem passou por mim. Era uma caleça aberta, com criados de
libré e brasão impresso aos lados. Nela estava uma dama trajada de
verde, mas de um verde prateado, uma loura esplendorosa, dessas
cuja beleza é até um insulto, tanto estava segura de si. Seu rosto
tinha, como auréola, um chapeuzinho da mais fina palha florentina e
a sua única jóia era um bracelete de ouro, marchetado de turquesas.
Testa cândida e pura, cílios que lembravam miniaturas
medievais, boca divinal, e seus olhos azuis tinham estranhas
mutações. Tudo nela me encantou, fazendo-me esquecer os amores
passados. Uma nova vida começou para mim, depois daquele fatal
encontro.
Soube, mais tarde, que era a condessa Prascóvia Labinski,
lituana de ilustre linhagem, riquíssima, cujo marido fazia dois anos
que combatia no Cáucaso. Graças a minhas influências, consegui ser
recebido por ela, e, se sua maravilhosa beleza me encantara, mais
ainda me seduziu seu espírito. Não lhe confessei meu amor, pois em
sua presença eu ficava inibido até de pensar. Vinte vezes tomei essa
resolução, porém, uma incrível timidez me impedia as palavras. Saía
de sua casa, murmurando-lhe o nome, baixinho, e experimentava um
singular prazer em pronunciar-lhe as sílabas repetidamente. E
traçava aquele nome adorado em tudo quanto era papel que me
surgisse à frente. Deixei de ler, de escrever, de ir a festas, não mais
me importavam as cartas que recebia de França.
Contentava-me em amar, sem nada pedir, sem a menor sombra
de esperança, pois a virtude da condessa era inatacável.
Um dia, porém, não mais podendo conter o desejo de rever a
minha visita habitual.
Encontrei-a a sós, reclinada no canapé. Nunca me pareceu tão
linda como naquele langoroso abandono.
Acenou-me uma poltrona a seu lado. Sentei-me, e reinou entre
nós, por alguns momentos, um desses silêncios que se tornam tão
penosos em certas circunstâncias. Meu cérebro estava em chamas,
ondas de fogo me subiam do coração à boca e meu amor me gritava:
"Não perca esta suprema ocasião!" Não sei que teria dito, quando a
condessa, talvez adivinhando a causa de minha perturbação,
estendeu para mim sua linda mão, como para fechar-me a boca, e
disse:
— Não diga uma palavra, Otávio. O senhor me ama, sinto-o, mas
não o culpo, porque o amor é involuntário. Outras mulheres, mais
severas, poderiam ofender-se, mas eu o lamento, porque não posso
corresponder-lhe, e dói-me vè4o sofrer. Amaldição o capricho que
me fez vir para cá. Pensei, a princípio, que minha indiferença poderia
faze-lo desistir, mas o verdadeiro amor não recua nunca. Eu devo,
porém, proteger meu nome e do meu marido, o conde Labinski, a
quem adoro, e que é louco por mim.
Uma torrente de lágrimas brotou-me dos olhos, ante essa
declaração, tão franca, nobre e leal. Prascóvia, comovida, passou o
lenço pelos meus olhos.
— Não chore, está proibido de chorar. Faça de conta que
morri, viaje, pratique o bem, viva, console-se na arte, em outro
amor... Pode continuar a visitar-me, que será sempre bem recebido,
mas creio que será melhor afastar-se de mim, a distância deve ser o
remédio mais adequado. Penso que, daqui a dois anos... poderemos
encontrar-nos sem perigo.
No dia seguinte, deixei Florença, mas nem as viagens nem o
estudo e tampouco o tempo tiveram a força de diminuir-me os
sofrimentos, e sinto-me morrer. Não mo impeça, doutor!
— Nunca mais viu a condessa? - perguntou o médico, cujos olhos
brilhavam singularmente.
— Não, mas ela se encontra aqui, em Paris...
E, ao responder, apresentou um cartão de visita, onde se lia: "A
condessa Prascóvia Labinski recebe às quintas-feiras".
Dois anos haviam transcorrido desde que a condessa Labinski
sustara nos lábios de Otávio a declaração de amor que ela não devia
ouvir. O rapaz, caído do alto de seu sonho de amor, afastara-se,
levando consigo a devoradora mágoa, e nunca mais dera notícias de
si a Prascóvia. Mais de uma vez, porém, a condessa pensara, com
tristeza, em seu pobre admirador. Tê-la-ia esquecido? Sua alma bem
formada sofria em pensar que alguém era infeliz por sua causa.
Prascóvia e Olaf amavam-se desde a infância e, ao voltar ele da
guerra, o amor entre ambos aumentara. Nada poderia perturbar sua
felicidade. O conde era esbelto, elegante, e, sob uma aparência
delicada, ocultava músculos de aço. Sua presença, em grande
uniforme, nas festas, provocava a inveja dos homens e a admiração
das mulheres. Era realmente um rival contra quem nada poderia
fazer Otávio de Saville. Desde sua chegada a Paris, a condessa
enviara aquele cartão e, ao ver que ele não aparecia, dizia entre si,
com mal contido prazer: "Ele ainda me ama!" Apesar disso, era uma
mulher angelicamente pura e casta como a neve dos mais excelsos
cumes do Himalaia.
— Sua história prova-me que qualquer esperança de sua parte
seria quimérica, pois a condessa jamais correspondera ao seu amor, -
sentenciou o médico. - Mas existem poderes ocultos que a ciência
moderna desconhece, e dos quais se conserva a tradição nesses
estranhos países chamados bárbaros por uma ignorante civilização.
Aqueles sábios, que possuem visões estranhas e que seguem de
êxtase em êxtase as ondulações que deixam as eras desaparecidas
sobre o oceano da eternidade, percorrem o infinito em todas as
direções, assistem à criação dos universos, à gênese dos deuses e às
suas metamorfoses.
São tidos por loucos, mas são quase deuses!
Otávio ouvia, perplexo. Que conexão poderia haver entre os
sábios hindus e sua paixão pela condessa? O doutor lia-lhe o
pensamento, e prosseguiu: Paciência, meu caro senhor.
Vai ver que não me entrego a digressões inúteis. Farto de
interrogar cadáveres, que não me respondiam, nas frias pedras do
necrotério, concebi um projeto, tão ousado quanto o de Prometeu,
que escalou o céu para roubar o fogo: o pensamento de chegar até à
alma, surpreendê-la, analisa-la e secioná-la. Abandonei a ciência
materialista, cuja vacuidade eu sentira. Tentei o hipnotismo,
catalepsia, sonambulismo, tudo foi por mim observado.
Estudei os arcanos gregos, hebraicos, egípcios, mas meu sonho
científico não estava concretizado. A alma me fugia sempre: entre
mim e ela, permanecia um véu tênue de carne, que eu era incapaz de
remover. parti para a índia, buscando encontrar a chave do enigma.
Aprendi o sânscrito, conversei com os brâmanes, decifrei as
esculturas simbólicas e os emblemas dos deuses híbridos e
exuberantes como a própria natureza da índia.
Meditei sobre o círculo de Brama, de Visnu, a cobra de Siva, e
todas essas figuras monstruosas me diziam, em sua linguagem de
pedra: "Não somos mais que formas, o espírito agita a matéria".
E, após tantos anos de pesquisas, encontrei, junto a um velho e
santo sacerdote, Brama-Logum, o que eu tanto procurava: conseguir
destacar a alma do corpo! Visnu, o deus das dez encarnações,
revelara-lhe a palavra misteriosa, que lhe guiara as várias formas,
em seus, Avatares.
E agora, meu caro senhor, se assim me aprouvesse, após fazer
os gestos rituais, eu pronunciasse aquela palavra, a= alma iria
habitar o corpo do homem ou do animal que eu lhe designasse. Só eu
possuo, no mundo, este segredo!
— Que está dizendo, doutor? - exclamou Otávio, assustado.
— Quero dizer que a condessa Prascóvia seria demasiado sábia
se conseguisse reconhecer a alma de Otávio de. Savifie rio corpo de
Olaf Labinski...
O doutor Baltasar Cherbonneau estava em seu misterioso e
exótico consultório, sempre imerso em suas lucubrações - Nos
cantos, viam-se os mais fantásticos ídolos de todas as religiões, e
obras de pintores famosos, representando os nove AvaWes
cumpridos por Visnu, em peixe, tartaruga, porco, leão de cabeça
humana, anão brãmane, rã, herói combatendo gigantes, menino
prodígio, em que certos sonhadores vêem um Cristo hindu, e, no meio
da via-láctea, esperando sua última encarnação em cavalo branco
alado, cujos coices irão provocar o fim do universo.
O conde Olaf Labinski ouvira falar nos milagres operados pelo
médico, e sua curiosidade semi incrédula despertara. As raças
eslavas possuem uma tendência inata para lo sobrenatural. Quando
ele penetrou no gabinete, sentiu sufocar-se de calor, todo o sangue
lhe afluiu às têmporas, os ouvidos zumbiram, mas bastou o médico
traçar umas fórmulas mágicas no espaço e a temperatura se tornou
agradável.
— Está melhor, agora, senhor conde? Seus pulmões, habituados
às brisas do Báltico, devem sofrer, neste ambiente calidíssimo, mas
no qual eu tremo de frio. Certamente, o senhor já ouviu falar em
meus jogos de prestidigitação e deseja pôr à prova minha
habilidade...
— Não, senhor, minha curiosidade não é assim tão frívola;
respeito a ciência.
— Não sou um cientista, no sentido que aqui dão a essa palavra.
Apenas, estudei as potências ocultas, espreito a alma. O espírito é
tudo, a matéria não existe, o universo talvez não passe de um sonho
de Deus. O senhor já deve ter ouvido falar no espelho mágico, onde
Mefistófeles fez o doutor Fausto ver a imagem de Helena. Queira
curvar-se sobre essa inocente taça de água, e pense intensamente na
pessoa que deseja ver. Viva ou morta, próxima ou distante, ela
atenderá ao seu apelo, do outro lado do mundo ou da profundidade
da História!
O conde inclinou-se sobre a taça, e logo viu a água turvar-se e
um círculo, irisado por todas as cores do prisma, se espalhou pelas
orlas do vaso, emoldurando o quadro que se esboçava sob a nuvem
alvacenta. Logo a névoa se dissipou. Uma jovem senhora, de olhos
verde-mar e cabelos de ouro, sentada ao piano, que, em trajes de
casa, passava suas mãos distraídas por sobre o teclado, desenha-se
na água, que se tornara transparente; era Prascóvia Labinski, que,
ignara de tudo, atendia à apaixonada invocação do marido.
— E, agora, passemos para algo mais curioso - disse o médico,
apanhando a mão do conde e pousando-a numa das varetas de aço
que estavam sobre a mesa.
Mal tocou o metal carregado de fulgurante magnetismo, caiu
como se fora atingido por um raio. Baltasar Cherbonneau recebeu-o
nos braços, levantou-o qual uma pluma e colocou-o num divã. Em
seguida, chamou o criado e disse:
— Mande entrar o Senhor Otávio de Saville.
Quando Otávio - viu o conde Olaf Labinski estendido, imóvel,
pensou logo num assassínio, e emudeceu de horror, mas, após um
exame mais atento, percebeu que o homem apenas estava
adormecido.
Otávio, perturbado pela estranheza das coisas, nada respondia;
continuava a fitar Olaf, que jazia com sua nobre figura, qual uma
efígie desses cavaleiros que se vêem nas sepulturas góticas. Sentia
um vago remorso só em pensar que em breve iria furtar-lhe o corpo.
O médico, ao vê-lo assim pensativo, sorriu com desdém, e preveniu-o:
— Se não estiver firme em sua convicção, posso reanimar o
conde, mas, pense bem, ocasião como esta talvez nunca mais se
apresente. Todavia, por muito que seu amor me comova e por mais
vivo que seja meu desejo de realizar uma experiência nunca tentada
na Europa, não devo ocultar-lhe que essa permuta de almas tem seus
perigos. Interrogue bem seu coração. Está disposto a arriscar
francamente sua vida nesta suprema cartada?
— Estou pronto - foi a simples resposta.
— Está bem, rapaz - exclamou o médico, esfregando as mãos
mornas e secas, com grande rapidez, à maneira dos selvagens
quando acendem o fogo. - Essa paixão, que nada faz recuar, agrada-
me. Ali, meu velho Brama-Logum. você vai ver, do fundo dos céus da
Índia, que não me ensinou em vão a palavra mágica!
Sente-se nessa poltrona, à minha frente, e confie em mim. Olhos
nos olhos, mãos nas mãos... O encantamento já está agindo... as
noções do tempo e do espaço desaparecem, a consciência do eu se
evola, as pálpebras se fecham, os músculos não recebem mais ordens
do cérebro, relaxam-se; o pensamento se embota, todos os delicados
fios que prendem a alma se soltam. Brama, em seu ovo de ouro, onde
sonhou durante dez mil anos, não estava mais separado das coisas
exteriores. Saturemo-lo de eflúvios, inundemo-lo de raios... - e o
médico, ao murmurar essas frases, não parava de traçar círculos
mágicos, de seus dedos brotavam faíscas luminosas, que iam atingir -
testa e o coração do paciente, em redor do qual se formava, aos
poucos, uma áurea visível e fosforescente.
Isto feito, envergou com solenidade um roupão de linho, lavou as
mãos em água perfumada, apanhou de diferentes caixas certos pós,
com que traço, nas faces e na testa do moço, sinais hieráticos, cingiu
nos braços o cordão brâmane, leu alguns poemas sagrados, abriu
totalmente as bocas dos aquecedores e logo a atmosfera se tornou
tórrida, insuportável.
— É necessário que estas duas centelhas de fogo divino, que
agora irão encontrar-se nuas e despojadas de seu invólucro mortal
por alguns segundos, não venham a empalidecer-se e apagar-se em
nossa atmosfera glacial - murmurou o médico, olhando para o
termômetro, que marcava 1209 Fahrenheit.
Entre aqueles dois corpos mortos, Cherbonneau, em suas
brancas vestes, parecia o sacerdote daquelas religiões sanguinárias,
que atiravam corpos humanos nas fogueiras de seus deuses.
Aproximou-se do conde Olaf, que jazia imóvel, e pronunciou a
inefável sílaba, que depois repetiu sobre Otávio, imerso em sono
profundo. Ninguém reconheceria naquela figura hoffinaniana, que
exercitava aquele sinistro ritual, o médico de pouco antes.
Aconteceram, então, coisas estranhas. Otávio de Saville e Olaf
Labinski foram tomados, simultaneamente, uma convulsão quase
agõnica: seus rostos se decompuseram, leve espuma subiu-lhes aos
lábios, a tez se lhes cobriu de mortal palidez, ao passo que duas
chamazinlias azuis e tênues cintilavam, trêmulas, sobre suas
cabeças. A um gesto fulmíneo do médico, que traçava o caminho que
elas deviam seguir, no ar, as duas faúlhas fosforescentes moveram-
se, deixando atrás de si um sulco luminoso, indo para suas novas
moradas; a alma de Otávio ocupou o corpo do conde e, a deste, o
corpo de Olaf. O avatar fora cumprido!
Um leve rubor indicava que a vida já reentrara naquelas figuras
de argila, tornadas exanimes por alguns segundos e das quais o Anjo
Negro não tardaria a apossar-se, sem o poder do médico, cujas
pupilas flamejavam de triunfo.
— Médicos e cientistas de todas as eras, um humilde faquir sabe
mil vezes mais que vocês! Que importa o ,`cadáver, quando se
governa o espírito? Agora, despertemo-los.
E, após um singular bailado, sacudindo os dedos a todo instante,
o estranho personagem fez Otávio Labinski (assim chamaremos,
doravante, o jovem francês) despertar e sentar-se. Otávio passou as
mãos pelos olhos e olhou em redor de si, atônitamente, pois sua
consciência ainda estava adormecida. Quando recobrou a lucidez, a
primeira coisa que viu foi seu próprio corpo sobre um divã. Lançou
um grito, e aquela voz, que não era mais a sua, aterrorizou-o.
— Então, que lhe parece sua nova residência? - interrogou
Cherbonneau, depois de gozar bastante com o espanto do moço. -
Não deseja mais morrer? Agora, as portas do palácio Labinski estão
abertas para o senhor.
— Doutor... o senhor possui o poder de um Deus. . ou de um
demônio...
— Oh, não tenha medo, não lhe farei assinar nenhum pacto
infernal! Nada mais simples, o que aqui ocorreu. O Verbo, que criou
a luz, pode mudar uma alma de lugar.
— Como pagar este inestimável serviço, doutor?
— Nada me deve. Seu caso me interessava. Revelou-me o
verdadeiro amor. Ande, levante-se, caminhe, veja SC seu invólucro
não o embaraça!
Otávio Labinski obedeceu, deu alguns passos. Embora a alma
fosse outra, o corpo do conde conservava o impulso de seus hábitos
antigos e o hóspede recente entregou-se àquelas recordações físicas,
gostando de tomar o porte, o andar, os gestos do proprietário
expulso.
— Se não tivesse eu mesmo efetuado essa troca de almas, não
acreditaria - comentou o médico, cheio de orgulho. - Mas, é quase
meia-noite, vá para junto de Prascóvia Labinski, antes que ela o
censure pela demora. Não comece sua vida conjugal com discussões,
seria de mau augúrio.
Otávio Labinski reconheceu a justeza das ponderações e
retirou-se logo. Aos pés da escadaria de entrada, estava uma
riquíssima carruagem. Otávio entrou e deu ordem ao cocheiro para
seguir rumo ao palácio.
Aquela imponente mansão impressionou-o, a princípio, pois mil
pensamentos lhe turbilhonavam na mente. E não era para menos,
pois ignorava os labirintos internos e os hábitos do conde. Ao chegar
ao salão, puxou o cordão de uma campainha; surgiu uma camareira,
que lhe disse:
— A Senhora. está à sua espera.
Olaf de Saville (assim ficará sendo chamado, agora) saiu qual
um fantasma dos limbos do profundo sono, tendo a impressão de
haver sofrido um doloroso pesadelo. Os espetáculos estranhos a que
assistira, antes de adormecer, aquele recinto abafado, repleto de
figuras estranhas e tétricas, tudo o assustava. A sua frente, porém,
se encontrava Baltasar Cherbonneau, sorrindo, bonachão.
— Está satisfeito, o senhor conde, com minhas experiências?
Agora, acreditará que o magnetismo não é um jogo de
prestidigitação, como dizem os cientistas!
Olaf de Savílle acenou afirmativamente e apressou-se em sair.
Estranhou, na verdade, a voz do cocheiro, que não tinha sotaque
húngaro. Seu espírito ainda se debatia nas estranhas cenas a que
presenciara e caiu numa espécie de modorra, despertando somente
quando o carro parou. Isso o trouxe novamente a si. Baixou o vidro,
olhou para fora e viu uma rua desconhecida, uma casa que não era a
sua.
- Onde me trouxe ? Este não é o palácio Labinski!
Perdão, senhor, - murmurou o cocheiro - não entendi bem.
— Imbecil, você deve estar bêbado ou louco! - berrou .Olaf de
Saville, empurrando o homem.
— Bêbado ou louco deve estar o senhor - retrucou o cocheiro.
— Cale-se, animal, bandido! Saia daqui, antes que suje minhas
mãos no sangue ignóbil de um lacaio! É trata seu amo, o Senhor de
Labinski?
Aos primeiros gritos, acorrera a criadagem, e um dos fâmulos
adiantou-se e disse:
— Já que o senhor pretende ser o Conde Labinski, olhe para
cima e veja-o descer as escadas.
Um suor frio banhou as têmporas de Olaf de Saville. jovem
elegante, de rosto oval, olhos negros, nariz a os bigodes louros, o
qual não era outro senão um espectro modelado pelo diabo, dirigiu-
se a ele numa atitude fria e altiva.
— Senhor, pare de insultar os criados. Se deseja falar o conde
Labinski ele o receberá do meio-dia às duas. A condessa recebe, às
quintas-feiras, as pessoas que tiveram a honra de ser-lhe
apresentadas.
Dito isto. o falso conde retirou-se tranquilamente, ao - que Olaf
dé Saville era levado para dentro da casa, desmaiado.
Quando recuperou os sentidos, jazia numa cama que não era a
dele, num quarto desconhecido, e junto a si estava Um criado
estranho, que lhe segurava a cabeça e dava-lhe - Para cheirar.
— O senhor está melhor? - perguntou julgando estar falando
com Otávio.
— Sim, mas deixe-me só.
O criado acendeu a luz dos candelabros e saiu. Olaf de Saville
foi até o espelho, onde viu a imagem de alguém de cabelos negros e
bastos, olhos de um azul escuro, suave.
Pálido, melancólico, ornado por uma barbicha, que olhava para
ele com ar espantado. A princípio, pensou que fosse brincadeira de
algum amigo. Passou a mão por trás de si mas nada encontrou.
Notou que suas mãos eram mais compridas e que, no anular direito,
havia um anel com um brasão baronal. Nunca tinha visto aquela jóia.
Pôs a mão no bolso e encontrou alguns cartões de visita, com este
nome: Otávio de Saville. Uma completa transformação se operara
nele, sem que o soubesse. Algum mago, ou demônio, roubara-lhe a
personalidade, deixando-lhe somente a alma. E o pior é que não
poderia fazer valer seus direitos de conde Labinski, pois passaria por
louco ou impostor, sua própria esposa o repeliria. Uma ideia atroz
picou-lhe o coração!
— Mas esse conde fictício, a estas horas, em forma de vampiro,
habita meu palácio, está pondo seu pé de cabra no recinto sagrado
de Prascóvia, e esta lhe sorri e se entrega a ele.
O sangue subia-lhe à cabeça, qual fogo ardente; gritava, mordia
os punhos, vagava pelo quarto como fera enjaulada. Estava prestes a
enlouquecer. Afinal, readquiriu a calma e mergulhou a cabeça
n'água, dizendo a si mesmo que aquilo talvez não passasse de uma
brincadeira de mau gosto daquele feiticeiro negro. Atirou-se à cama
e mergulhou num sono pesado, opaco, semelhante à morte.
O conde abriu os olhos e lançou em torno de si um olhar
indagador. Viu um quarto bem mobiliado, onde abundavam cortinas e
bibelôs, mas que em nada se parecia com o do palácio em que vivera
até então. João aproximou-se.
— O senhor vai levantar-se? - perguntou o servo, apresentando
ao amo o traje que Otávio costumava usar pela manhã.
Embora lhe repugnasse vestir a roupa de um estranho, o conde
vestiu-a e, a outra pergunta de João, respondeu que desejava o
almoço à hora de sempre. Depois, abriu a correspondência, revistou
as gavetas, e convenceu-se de que Otávio de Saville existia mesmo,
que não era nenhum fantasma. Recebeu a visita do Senhor. Alfredo
Humbert, que, após achá-lo algo abatido, convidou-o para uma ceia,
à noite. A tristeza do conde ia aumentando gradativamente. João, o
criado, tomara-o pelo patrão, os amigos de Otávio também, mas
faltava a derradeira prova. A porta abriu-se, e entrou uma senhora
de cabelos grisalhos, muito da com o retrato que se via numa das
paredes da sala de estar.
— Como vai o meu querido filho? - perguntou ela, sentando-se
no divã. - João disseme que você ontem chegou muito tarde, num
estado de debilidade que até assustava. Cuidado, meu filho, sabe
quanto o amo, apesar do desgosto que me dá em não querer confiar-
me suas penas.
— Não se impressione, mamãe, estou bem melhor, hoje.
A boa senhora, tranquilizada, levantou-se e saiu, pois sabia
quanto seu filho amava ficar só.
— Eis-me, então definitivamente, Otávio de Savifie! desabafou o
conde, quando a Senhora de Saville se retirou. - Ninguém
reconheceu minha alma neste invólucro. Mas saberei fugir desta
túnica de Nesso! E porque não posso voltar ao meu palácio. Vamos
ver o que há nesta carteira...
Ao abrir a carteira, encontrada no bolso, seu espanto
argumentou. Como se encontrava ali o retrato de sua esposa? Aquela
Prascôvia, tão religiosamente amada, teria descido de seu pedestal
para entregar-se a outro? Sentia que a luz da - estava prestes a
deixá-lo-ei, louco de dor e desespero. foi lendo algumas frases que
constavam de várias M" que acompanhavam o retrato, de traços
incertos, talvez desenhado de memória.
Jamais ela me amará... li a sentença de morte em meigo olhar...
Que infeliz sou eu...
Não posso dormir só em pensar em Prascóvia... Se adormeço,
ela me surge, em sonhos, mais bela que nunca... Ouço espectro
invisíveis oficiando a missa fúnebre de meu coração morto. Ela no
paraíso e eu no inferno... Oh, como é aquele estrangeiro. Que
sublime vida anterior houve nele para Deus recompensá-lo desta
forma?
Inútil seria ler mais. Estava claro que Prascóvia se conservara
fiel. Otávio de Saville devia ter feito algum pacto com o demônio,
para roubar-lhe o amor de Prascóvia o maneira. A lembrança do
demo sugeriu-lhe uma visita ao doutor Baltasar Cherboneau.
O estranho médico estava, como sempre, sentado, de pernas
cruzadas, sobre o tapete, segurando um pé, embebido em suas
meditações, alheio às coisas deste mundo. Ao ouvir passos, levantou
a cabeça.
— Oh, é o senhor, meu caro Otávio? Bom sinal quando o doente
vem visitar o médico.
— Sabe muito bem que não sou Otávio, mas sim o conde Olaf
Labinski, porque ontem, nesta mesma sala, o senhor roubou-me o
corpo, mediante suas exóticas bruxarias! - retrucou o conde, cego de
raiva.
O médico prorrompeu numa gargalhada convulsa, depois disse,
secamente:
— Estou vendo que preciso mudar de tratamento, pois a sua
melancolia está-se transformando em loucura.
— Não sei o que me contém que o não estrangule, médico do
inferno!
Cherboneau, sorrindo, tocou-lhe o braço com uma varinha. Olaf
de Saville recebeu tamanho choque que lhe pareceu ter partido o
braço.
— Oh, nós temos meios de reduzir à impotência os doentes
recalcitrantes - disse o médico, lançando no moço um olhar gelado
como as duchas que domam os loucos. - Vá para casa e tome um
banho para acalmar sua super-excitação.
O conde, atordoado pelo choque elétrico, foi procurar o doutor
B., em Passy.
— Encontro-me presa de forte alucinação - disselhe.
Quando olho para o espelho, meu rosto me parece com traços
diferentes... tenho a impressão de não ser mais eu Mesmo.
— Em que aspecto se vê? O engano pode ser dos olhos ou do
cérebro.
— Vejo-me com cabelos negros, olhos azuis, rosto pálido e
barba negra.
— É o que o senhor é na realidade.
— Então, que devo fazer? Não estou louco, tenho certeza. Sou o
conde Olaf Labinski. mas, desde ontem, me chamam Otávio de
Savilie.
— È exatamente o que penso. Q senhor é Saville e julga-se
Labinski. Venha passar quinze dias em minha clínica. Os banhos, o
repouso, o convívio com a natureza, dissiparão esses fluidos. .
O conde agradeceu e prometeu voltar. Não sabia mais que
pensar de seu caso. Ao reentrar em seu quarto, viu casualmente o
convite da condessa Labinski.
— Com este talismã, - murmurou - poderei vê-la amanhã.
Enquanto o conde vivia as torturas do inferno, Otávio de
Labinski se encontrava no paraíso terrestre. Seguiu-se e penetrou no
recesso de sua deusa. junto à janela, num delicioso abandono,
cabelos soltos pelos ombros, radiante de viço e beleza, esperava-o
Prascóvia Labinski, numa visão de sonho! Naquela displicência, era
ainda mais bela do que em Florença. Se Otávio não estivesse já louco
de amor, teria ensandecido ali. A angústia saía-lhe à garganta,
emudecendo-o. Mas reagiu e adiantavam-se, a passos resolutos.
— Ah, é você, Olaf? Veio muito tarde, esta noite! exclamou ela,
sem voltar-se, pois a camareira estava ajeitando-lhe as tranças.
— Otávio Labinski apanhou a mão suave como uma flor, que ela
lhe estendia, e imprimiu-lhe um beijo ardente, onde todo o fevor de
sua alma.
Não sabemos que instinto de divino pudor, que irracional
intuição lhe brotou do coração, mas a mulher retirou logo a mão,
entre pejada e indignada. Os lábios de Otávio haviam produzido a
sensação de ferro em brasa. Entretanto, logo reagiu e sorriu de sua
própria puerilidade. - Você não me responde, caro Olaf. Sabe que já
faz mais de seis horas que o não vejo? - disse,- Nunca me abandonou
tanto assim. Pensou em mim, ao menos?
— Sempre - respondeu o moço (e era verdade). Oh, não! Eu sei
quando você pensa deveras em mim. Esta noite, por exemplo, quando
eu estava ao piano, percebi sua alma voejar perto de mim. Por isso,
não minta, pois eu adivinho seus pensamentos.
Prascóvia, com certeza, referia-se ao instante em que Olaf lhe
evocara a imagem, no laboratório do médico. Após a saída da
camareira, Otávio Labinski ali permaneceu, seguindo os movimentos
de Prascóvia, com olhos acesos. Perturbada, abrasada por aquele
olhar, ela envolveu-se em um peignoir, de onde se via somente sua
encantadora cabeça, ainda desnorteada pela expressão que lia nos
olhos do marido, que, ela lembrava, sempre tinham sido calmos,
suaves, inocentes como os dos anjos. Agora, uma paixão terrestre
incendiava aquelas pupilas. E mil hipóteses lhe atravessaram o
pensamento. Seria ela, agora, para Olaf, nada mais que uma mulher
vulgar, uma cortesã, desejada apenas pela sua beleza? A sublime
harmonia de suas almas ter-se-ia rompido? A corrupção de Paris
teria afetado aquele coração, que fora sempre tão casto? Um
misterioso pavor a possuía, como se estivesse ante um perigoso
desconhecido. Levantou-se, agitada, nervosa, e correu para seu
quarto. Otávio Labinski seguiu-a e cingiu-lhe a cintura, tal como vira
Otelo fazer com Desdêmona. Mas, quando chegaram à porta,
Prascóvia virou-se, parou um instante, lançou no moço um olhar de
terror, depois entrou e fechou violentamente, a chave.
— O olhar de Otávio! - murmurou, caindo, semi desfalecida,
numa poltrona.
Quando se reanimou, disse entre si: "Como pude ver aquele
olhar nos olhos de meu marido? No entanto, eu o vi, havia neles
aquela chama sombria e desesperada... Teria Otávio morrido? Seria
um último adeus de sua alma, antes de deixar este mundo? Olaf, Olaf,
perdoe-me se cedi loucamente a vãos temores! Mas, se o recebesse
esta noite, estaria certa de entregar-me a outro. "
Deitou-se, mas a noite toda foi presa de pesadelos, de
sentimentos de angústia, e somente ao amanhecer conseguiu
adormecer. Sempre aqueles olhos ardentes a lançar-lhe jactos de
fogo. O conde Olaf também lhe apareceu, mas era um sonho absurdo,
o marido estava revestido de uma forma estranha.
Não tentaremos descrever a desilusão de Otávio ao dar com a
cara na porta. Sua suprema esperança desmoronava-se! Recorrera
às potências infernais, arriscando sua vida neste mundo e a própria
salvação eterna no outro, para conquistar uma mulher, que, afinal,
lhe fugia das mãos. Fora repelido como amante e agora o era,
também, como marido. A soleira do quarto nupcial, ela lhe aparecera
qual um anjo fulminando o espírito do mal.
Todavia, não podia permanecer a noite inteira ali, naquela
ridícula condição. Procurou o quarto do conde e caiu no leito,
esgotado de tantas emoções que sofrera durante o dia, amaldiçoando
o doutor Baltasar Cherbonneau.
Acordou bem disposto. O criado ajudou-o a vestir-se. E foi a
passos tranquilos que Otávio Labinski seguiu o camareiro, pois não
sabia onde ficava a sala de refeições.
Admirou, de passagem, as armas e os quadros, as várias
manifestações de luxo e esplendor que reinavam no suntuoso palácio.
A mesa estava posta à moda russa. Flores, riquíssima baixela, e dois
criados de libré, aos lados, imóveis quais estátuas.
Mal sentara, quando ouviu um passo leve deslizar pelo tapete.
Um breve roçagar de sedas fê-lo voltar a cabeça para trás. Era a
condessa Labinski, que entrava. Após um sinal amistoso, ela sentou-
se também. Vestia um penteador de tafetá quadriculado, em verde e
branco, mas seus cabelos de ouro, enrolados em vistosas tranças,
davam-lhe o aspecto nobre de uma escultura grega. Parecia um
pouco pálida e uma auréola mal perceptível lhe circundava os lindos
olhos, incutindo-lhe um ar lânguido e cansado. Sua beleza, porém,
assim, era mais penetrante, tinha algo de humano, a deusa se
tornava mulher. Otávio moderou o ardor de suas pupilas, disfarçou
seu mudo êxtase com a máscara da indiferença.
A condessa, sacudindo levemente os ombros, como que
desejando repelir um último calafrio de febre, fixou os belos olhos
naquele homem que julgava seu marido, e, com voz harmoniosa e
meiga, plena de carícias, disselhe uma frase em polonês. Em
Florença, ela. Lhe falara sempre CM francês ou italiano. A ideia de
aprender o idioma de Mckiewicz nunca lhe ocorrera. O pobre
enamorado ficou
— Sim, - respondeu o verdadeiro Saville - está louco de amor!
Positivamente, condessa Prascóvia, você é demasiado bela!
Duas horas depois dessa cena, o falso conde recebeu uma carta,
com o sinete de Otávio de Saville. Continha poucas linhas, que
denotavam grande nervosismo de parte de quem as escrevera:
— Lida por qualquer outra pessoa, esta carta poderia parecer
vinda do manicômio, mas o senhor me compreende. Circunstâncias
jamais vistas no mundo obrigam-me a escrever a mim mesmo. De que
tenebrosas maquinações eu tenha sido vítima, ignoro-o, mas o senhor
deve saber. E este segredo, se o senhor não for um covarde, vai
perguntar-lhe na ponta do cano de minha pistola. Um de nós dois
deve morrer, amanhã. Este vasto mundo é pequeno para conter-nos
a ambos. Eu matarei meu corpo, habitado pelo seu espírito impostor,
ou o senhor matará o seu, onde minha alma se revolta por estar ali
presa. Não tente fazer-me passar por louco, pois, onde eu o
encontrar, o insultarei. As minhas testemunhas irão entender-se
consigo, quanto à hora, o local e as condições".
Tal desafio deixou Olaf de Saville perplexo. Repugnava-lhe
bater-se contra si mesmo; ante ser insultado publicamente, resolveu
aceitar o duelo. Mas, onde ir buscar suas testemunhas? Apanhou dois
cartões de visita, ao acaso. Eram todos de nobres estrangeiros, o
que atestava a vida nômade de Olaf, que tinha amigos em todos os
países.
Apanhou dois, sem escolher. Eram do Marquês de Sepúlveda e
do conde Zamoieczki.
Ambos aceitaram a missão.
De sua parte, o falso Otávio também esbarrava com
dificuldades, mas, usando a mesma tática do rival, escolheu Alfredo
Humbert e Gustavo Raimbaud, embora estes estranhassem tal
atitude num homem que fazia um ano que vivia recluso.
Quando tudo ficou estabelecido, era quase meia-noite. Otávio
bateu de leve à porta do quarto da esposa, que recusou recebê-lo,
aconselhando-o a voltar depois de reaprender a língua - polonesa.
Na manhã seguinte, o doutor Cherbonneau - veio buscá-lo, em
companhia das testemunhas. Subiram ambos num carro, enquanto o
conde e o marques seguiam num cupê.
— Então, meu caro Otávio, a aventura virou tragédia? - disse o
médico - Eu devia ter deixado o conde dormir uma semana, em meu
divã. Mas, sempre nos esquecemos de algo... E agora, conte-me
como a condessa Prascóvía recebeu seu apaixonado de Florença, em
sua transfiguração.
— Creio que me reconheceu, apesar da metamorfose, ou seu
anjo da guarda lhe murmurou algo ao ouvido. Encontrei-a casta e
pura como a neve polar. Sinto-me ainda mais infeliz de quando a
visitei pela primeira vez.
— Quem poderá assinalar os limites da alma? - murmurou o
médico, pensativo - Ainda mais quando ela se conserva
incontaminada pelo barro humano, tal qual saiu das mãos de Deus, na
luz, na contemplação do amor. Sim, ela o reconheceu, seu instinto a
protege.
Tenho pena de si, pobre Otávio, pois seu mal é realmente sem
cura. Se estivéssemos na Idade Média, eu lhe aconselharia o
claustro.
— Já pensei nisso.
Tinham chegado. Aquela hora matutina, o bosque apresentava
um aspecto pitoresco, mas a poesia da natureza, em toda a beleza do
seu despertar, pouco impressionou os dois adversários e suas
testemunhas. A vista do doutor Cherbonneau causou desagradável
impressão no conde Labinski, que soube, porém, dominar-se.
Mediram as espadas e designaram os lugares dos combatentes,
que, em mangas de camisa, puseram-se em posição de guarda, ponta
contra ponta.
— Vamos, senhores! - gritaram as testemunhas.
O duelo começou, mas suas condições eram sobremaneira
estranhas para os adversários, que tinham à sua frente, cada qual, o
próprio corpo. Surgiram vários ataques de parte a parte, bem
contidos. O conde, graças à sua educação, era ótimo esgrimista, mas
não contava com um braço firme para obedecer-lhe. Otávio, ao
contrário, no corpo, do conde, sentia um vigor que jamais possuíra.
Olaf lançava golpes ousados, porém Otávio, mais frio e mais
calmo, inutilizava-lhe os esforços. A cólera começava a apoderar-se
do conde, que desejava, a todo custo, matar aquele corpo impostor,
mesmo ao preço de permanecer para sempre Otávio de Saville.
Sem meditar no perigo, tentou, num só golpe, atravessar o
corpo e a alma do rival, mas este conseguiu desarmá-lo, atirando-lhe
a espada distante.
A vida do marido de Prascávia ficou à mercê de Otávio, que,
longe de aproveitar-se dá oportunidade, também lançou fora sua
espada, e, fazendo um sinal às testemunhas, foi até o conde, que
ficara atônito, e levou-o para dentro da mata.
— Por que não me matou? - indagou o conde lá sabe muito bem
que o sol não deve projetar nossas duas sombras na arena e que a
terra deverá tragar um de nós.
— Ouça-me com paciência - retrucou Otávio - Sua felicidade
está em minhas mãos. Eu posso guardar para sempre este corpo, que
lhe pertence. Se recomeçarmos a luta, eu o matarei. O conde Olaf
Labínski é mais forte do que Otávio de Saville, que o senhor encarna.
Sentirei muito em matá-lo, só em pensar a dor que causaria a minha
mãe. Além disso, já deve saber que, durante três anos, morri de
amores pela condessa Labinski, sem esperança alguma.
— Sim, eu sei... - respondeu Olaf, mordendo os lábios de ódio.
— Pois bem, para chegar até ela, recorri ao doutor
Cherbonneau, que realizou, por mim, uma obra prodigiosa, um
milagre de estarrecer todos os taumaturgos do mundo. Após
adormecer a ambos, trocou-nos as almas. Milagre inútil! Prascóvia
não me ama. No corpo do esposo, reconheceu a alma do amante.
Otávio falava com tamanho poder de convicção, e de suas
palavras transparecia tanta mágoa, que o conde ficou comovido e
acreditou no que dizia.
— Sou um homem enamorado, mas nunca um ladrão -
acrescentou o moço - já que aquilo que mais desejo na terra não pode
pertencer-me, não sei por que continuar de posse do que é seu.
Vamos, dê-me o braço, mostremo-nos reconciliados, agradeçamos às
testemunhas, levemos conosco o medico e retornemos ao laboratório
mágico de onde saímos transfigurados. O velho brâmane saberá bem
desmanchar o que fez.
Sustentando ainda seu papel de conde Labinski, Otávio disse às
testemunhas:
— Senhores, meu adversário e eu nos reconciliamos. Nada para
esclarecer bem as ideias como cruzar espadas.
Durante o percurso do Boís de Boulogne para a casa do médico,
Otávio perguntou a este:
— Caro doutor, vou pôr à prova mais uma vez sua ciência.
Precisa reintegrar nossas almas em seus respectivos domicílios
naturais. Não lhe será difícil, dado seu poder sobrenatural.
— A operação, desta vez, será mais fácil - concordou
Cherbonneau. - Os imperceptíveis filamentos que ligam a alma ao
corpo ainda não tiveram tempo de se reajustarem. O senhor conde
saberá perdoar a um pobre cientista, que não resistiu ao desejo de
realizar uma difícil experiência. Considerem esta metamorfose
apenas como um sonho e talvez, mais tarde, vocês me agradecerão
por haverem sentido a estranha sensação de terem sido alma de dois
corpos. A metamorfose é uma ciência antiga, mas, antes de praticá-
la, as almas devem beber da taça do esquecimento, pois nem todos
podem, como Pitágoras, se recordarem de haver assistido à guerra
de Tróia.
— O benefício de restituir-me a individualidade equivale ao dano
de haver-me expropriado dela - respondeu gentilmente o conde - Não
quero que o Senhor de Saville leve a mal estas palavras, porém.
Otávio sorriu, mas pensava em suas esperanças frustradas, na
sua derrota, e sentia que os liames da vida se lhe haviam novamente
partido. Não desejava infligir a sua boa mãe a desolação de seu
suicídio e procurava um meio de morrer tacitamente. Alma
obscuramente sublime, sabia somente amar ou morrer.
Ao chegarem, o médico conduziu ambos para o recinto Olide
fora efetuada a primeira transformação. Girou o disco da máquina
elétrica, agitou as varetas, abriu as bocas do aquecedor, para
aumentar a temperatura, leu algumas linhas dos exóticos papiros e,
dali a minutos, disse aos dois jovens:
— Senhores, estou pronto! Podemos começar?
Enquanto procedia aos preparativos, perturbadoras reflexões
assaltavam o cérebro do conde.
— Quando eu adormecer, que fará de minha alma, esse velho
macaco? Não será um novo ardil? Contudo, a situação não pudera
ser pior do que esta. Otávio podia ter-me morto, e ninguém o
acusaria. Pensemos em Prascóvia, e nada de falsos temores.
Tentemos a única solução para reconquistar minha esposa.
E tal como já havia feito Otávio, Olaf também segurou a vareta
que Cherbonneau lhe apresentava. Fulminados pelos condutores
metálicos repletos de fluidos magnéticos, os dois caíram num torpor
tão profundo que qualquer um os tomaria por mortos. O médico
cumpriu o ritual, pronunciou as poderosas sílabas e, logo, duas
pequenas centelhas surgiram sobre os dois corpos imóveis, numa luz
tremeluzente.
Ele reconduziu à sua primitiva morada a alma de Olaf Labinski,
a qual obedeceu, com um rápido voo, ao sinal do magnetizador. Mas,
a alma de Otávio de Saville ia-se afastando lentamente do corpo do
conde e, ao invés de retornar ao seu próprio, subia, subia, jubilosa de
sentir. se livre, relutando em volver à sua prisão. Baltasar Cher,
bonneau ficou tomado de infinita piedade por aquela Psique, que se
debatia, palpitava hesitante, e perguntou a si mesmo se seria mesmo
um beneficio deixá-la neste vale de lágrimas.
Durante aquele minuto, a alma subia sempre e quando o médico,
recordando-se de seu dever, repetiu, com acento misterioso, a
palavra mágica e projetou um gesto de comando, a débil luz trêmula
já estava fora de sua esfera de ação. Transpôs o vidro superior da
janela e desapareceu.
Charbonneau cessou os esforços agora já inúteis e acordou
Olaf. Este, ao ver-se num espelho, em seu verdadeiro invólucro,
lançou um grito de alegria. Mal olhou para os despojos de Otávio e
saiu correndo, após apertar a mão do médico.
O velho encontrou-se a sós com o cadáver de Otávio.
— Diabos, abri a gaiola e o pássaro fugiu! Deve estar, agora,
tão distante deste mundo que nem o próprio Brama Loguni. o
apanharia. E aqui estou eu, com um cadáver nas mãos ... Poderia
dissolvê-lo num banho corrosivo, mas, depois ...
E, aqui, uma ideia luminosa brilhou no espírito do médico.
Apanhou uma pena e escreveu, velozmente, algumas linhas numa
folha de papel, que guardou na gaveta da mesa. Eis o que escrevera:
— Não tendo parentes, nem colateraís, lego todos meus haveres
ao Senhor Otávio de Saville, a quem me liga particular afeição,
deixando-lhe apenas a obrigação de pagar a quantia de cem mil
francos ao hospital brâmane de Ceilão, para animais velhos,
cansados ou enfermos, de passar rima renda vitalícia de mil e
duzentos francos ao meu servo hindu e ao meu camareiro inglês e de
remeter à Biblioteca Mazarina meu manuscrito das leis de Manu.
Este testamento, feito por um vivo a favor de um morto, parece
uma das mais bizarras coisas de nossa história, mas logo ela se
tornará clara.
O médico tocou o corpo de Otávio de Saville, que o calor da vida
ainda não abandonara. Viu, no espelho, seu rosto velho e rugoso, com
ar de supremo desdém, e, fazendo em si mesmo o gesto de quem
atira fora uma roupa velha, murmurou a fórmula de Brama Logun.
Incontinenti, o corpo do doutor Baltasar caiu fulminado no tapete e o
de Otávio se levantou, forte, ágil, vivaz.
Otávio Cherbonneau permaneceu algum tempo contemplando
seus magros restos mortais, ressequidos, ossudos, lívidos, que, não
mais escorados pela alma poderosa onde estiveram até então,
exibiam os sinais de uma extrema senilidade e tomaram logo o
aspecto cadavérico.
— Adeus, pobre farrapo humano, mísero invólucro que arrastei,
durante setenta anos, por todas as partes do mundo. Você prestou-
me bons serviços e deixo-o com alguma tristeza. Mas, neste jovem
envoltório, que minha ciência saberá tornar robusto, ainda poderei
trabalhar, estudar, ler mais palavras do grande livro, sem que a
morte o feche à página mais atraente, dizendo: Basta!
Depois desta oração fúnebre, dirigida a si próprio, Otávio
Cherbonneau saiu tranquilamente, para ir tomar posse de sua nova
residência.
No dia seguinte, revestido de sua nova -aparência, acompanhou
seu antigo corpo ao cemitério, viu-se enterrar, ouviu, com ar
compungido, muito bem simulado, os discursos que foram
pronunciados à beira de sua cova, e nos quais se deplorava a
irreparável perda que sofrera a ciência. Depois, voltou para a Rua
São Lázaro, e esperou a abertura do testamento escrito a seu
próprio favor.
Nos vespertinos, entre os faits divers, lia-se:
— O doutor Baltasar Cherbonneau, bastante conhecido pela sua
longa permanência na Índia, seus conhecimentos filológicos, suas
curas maravilhosas, foi encontrado morto, ontem, em seu gabinete. O
exame minucioso do cadáver eliminou inteiramente qualquer suspeita
de crime. O Senhor Cherbonneau sucumbiu, sem dúvida, devido a
excessivos trabalhos intelectuais, ou, talvez, por causa de alguma
audaz experiência.
Dizem que um testamento ológrafo, descoberto na escrivaninha
do médico, deixou à Biblioteca Mazarina preciosos manuscritos e
constitui seu herdeiro universal um jovem pertencente a respeitável
família: O Senhor O. de S.".
UM LOUCO?
Guy de Maupassant

Quando me contaram: "Sabe que Jacques Parent morreu numa


casa de saúde?", um doloroso calafrio, um calafrio de medo e
angústia me percorreu pelos ossos; e revi bruscamente, depois de
tanto tempo, aquele corpulento e estranho louco, talvez, maníaco
inquietador, medonho mesmo.
Era um homem de quarenta anos, alto, magro, meio curvo, com
olhos de alucinado, olhos negros, tão negros que não se lhe
distinguiam as pupilas, móveis, inquietas, enfermas, angustiantes.
Aquele ser singular, perturbador, que emanava, que lançava em
redor de si um vago mal-estar, da alma, do corpo, uma dessas
incompreensíveis reações nervosas que fazem crer em influências
sobrenaturais.
Ele possuía um sestro aborrecido: a mania de esconder as
mãos. Porque jamais ele as deixava errar como nós fazemos sobre
todos os objetos, em cima das mesas. jamais ele agarrava as coisas
com aquele gesto familiar que todos temos. jamais ele as conservava
nuas, aquelas mãos ossudas, magras, algo febricitantes.
Ele as afundava nos bolsos, sob as axilas, ao cruzar os braços.
Diziam que receava que elas praticassem, à sua revelia, algum gesto
proibido, que cometessem alguma ação vergonhosa ou ridícula, caso
as deixasse livres em seus movimentos.
Quando era obrigado a servir-se delas, para os usos comuns da
vida, fazia-o por movimentos bruscos, rápidos impulsos dos braços,
como se não lhes quisesse dar tempo de agir por si próprias, de
fugirem à sua vontade, de executarem outros movimentos. À mesa,
servia-se do copo, do garfo ou da faca tão rapidamente que nunca se
tinha tempo de prever o que iria fazer antes que ele completasse o
gesto.
Então, certa noite, tive a explicação da surpreendente doença
de sua alma.
Ele vinha passar, de tempos em tempos, algum dia comigo no
campo, e, naquela noite, apareceu-me particularmente agitado.
Uma tempestade desenhava-se no céu, abafado e negro, depois
de um dia de calor atroz. Nenhum sopro de ar movia as folhas. Um
calor de forno oprimia os rostos, fazendo os peitos ofegarem. Eu me
sentia mal, agitado, e desejava ir para a cama.
Quando percebeu que me levantava para sair, Jacques Parent
segurou, me pelos braços, num gesto sobressaltado.
— Oh, não, fique mais um pouco! - exclamou.
Fitei-o com surpresa, e murmurei:
— Essa tempestade próxima abala-me os nervos.
Ele gemeu, ou melhor, berrou:
— E a mim, então? Oh, fique, rogo-lhe, pois não posso estar
sozinho!
Pareceu-me desvairado.
Perguntei-lhe:
— Que tem você? Perdeu a cabeça?
— Sim, em alguns momentos, como em noites assim, noites
plenas de eletricidade. . . eu tenho... eu tenho... tenho medo... tenho
medo de mim mesmo ... Não me compreende? É que sou dotado de
um poder ... não, de uma potência... de uma força... Enfim, não sei
explicar o que seja, mas existe em mim uma ação magnética tão
extraordinária que me apavora, que me faz temer a mim mesmo,
como lhe disse há pouco.
E, ao falar, sentia estranhos arrepios, suas mãos vibravam,
ocultas, por baixo do paletó.
E eu mesmo me senti logo invadido de um temor confuso,
poderoso, horrível. Tive vontade de partir, salvar-me, de nunca mais
vê-lo, de jamais tornar a ver aqueles olhos errantes pousarem em
mim, e depois se afastarem, fixarem-se no teto, à procura de algo, de
algum canto sombrio onde se firmarem, como se ele quisesse ocultar,
também, seu temível olhar.
Balbuciei a custo:
— Você nunca me disse isso.
E ele retrucou:
— E quer que conte isso a qualquer um? Vamos, ouça, esta noite
não mais me posso calar. E apraz-me, realmente, que você fique
sabendo de tudo. Sim,- até poderá socorrer-me, se for preciso.
— O magnetismo! Sabem lá o que é? Não. Ninguém o sabe.
Todavia, o constatam. Reconhecem-no os próprios médicos, que o
praticam. Um dos mais ilustres, Charcot, professa-o; então, sem
dúvida, existe.
Um homem, um ser, possui o poder terrível e incompreensível
de adormecer, com a força de sua vontade, outro ser, e, durante o
sono deste, rouba-lhe o pensamento, ou melhor, sua alma; a alma,
esse santuário, esse recesso do Eu, a alma, esse segredo que o
homem julga impenetrável, a alma, esse refúgio dos indecifráveis
pensamentos, de tudo que ocultamos, de tudo quanto amamos, de
tudo que desejamos furtar aos olhos humanos.
E ele a abre, viola-a, escancara-a, mostra-a em público! Não é
isso atroz, .criminoso, infame?
— Porque, como se pode fazer tal coisa? Quem poderá sabê-lo?
Tudo é mistério. Nós não nos comunicamos com as coisas senão
por meio de nossos miseráveis sentidos, incompletos, frágeis, tão
débeis que mal têm o poder de verificar o que nos rodeia. Tudo é
mistério. Pense na música, essa arte divina, essa arte que nos
arrebata a alma, que a transporta, que a embriaga, que a
enlouquece; e que e ela, então?
Nada!
Você não me compreende? Ouça. Dois corpos se chocam. O ar
vibra. Essas vibrações são, mais ou menos, numerosas, mais ou
menos rápidas, mais ou menos fortes, segundo a natureza do choque.
Agora, nós temos no ouvido uma pequena membrana, que recebe
essas vibrações do ar e as transmite ao cérebro, em forma de som.
Imagine que um copo de água se transforme em vinho em sua boca.
O tímpano realiza essa incrível metamorfose, esse surpreendente
milagre de transformar o movimento em som. E isso é tudo.
A música, essa arte complexa e misteriosa, exata como a
álgebra e vaga como um sonho, essa arte feita de matemáticas
vibrações, resulta, portanto, da estranha propriedade de uma
membrana. Se não existisse essa membrana, o som também não
existiria. porque ele, em si, não passa de uma vibração. Sem o
ouvido, se tornaria ele em música? Não!
Pois bem, nós somos rodeados de coisas que Jamais
perceberemos, porque nos faltam os órgãos necessários que no-las
revelem.
O magnetismo pode ser uma dessas coisas, talvez. Nós não
podemos senão pressentir-lhe o poder, mal tentamos timidamente
sentir a proximidade dos espíritos, sem poder explicar esse novo
segredo da natureza, porque não possuímos o instrumento revelador.
Quanto a mim - Quanto a mim, sou dotado de um poder
espantoso. Dir-se-ia haver outro ser encerrado em mim, que deseja,
sem cessar, evadir-se, agir à minha revelia, um ser que se move, que
me rói, que me possui. Quem é ele? Nada sei, mas somos dois em
meu pobre corpo, e é ele, o outro, que frequentemente é o mais
forte, como acontece esta noite. Basta-me apenas olhar para as
pessoas para adomecê-las. como se lhes houvesse ministrado ópio.
Basta-me estender as mãos para produzir coisas... coisas horríveis.
Você quer saber? Sim, você quer saber! Meu poder estende-se não
só sobre os homens mas também sobre os animais e, mesmo... sobre
os objetos. E isso me atormenta e me apavora. Quantas vezes me
assaltou o desejo de vazar os olhos e decepar as mãos! Mas eu
quero... quero que você saiba de tudo! Venha! Vou mostrar-lhe
aquilo... não sobre criaturas humanas, que isso todos sabem fazer,
vê-se: em toda parte, mas sobre... sobre... um animal. Chame Mirca!
Ele caminhava a passos largos, feito um alucinado, e suas mãos
saíram dos bolsos. Elas surgiram assustadoras, como se ele houvesse
desnudado duas espadas.
Eu lhe obedecia maquinalmente, subjugado, vibrando de terror,
mas devorado por uma espécie de desejo impetuoso de ver, de saber.
Abri a porta e assobiei para minha cadela, que dormia no vestíbulo.
Ouvi-lhe logo o raspar das unhas junto às escadas e ela surgiu alegre,
balançando o rabo.
Em seguida, fiz-lhe sinal para deitar-se numa poltrona; ela
obedeceu e Jacques começou a olhar para ela, afagando-a.
A princípio, a cadela parecia inquieta: estremecia, virava a
cabeça. a fim de evitar o olhar fixo do homem, tomada de um medo
sempre crescente. De repente, principiou a tremer, como tremem os
cães. Todo seu corpo palpitava, sacudido de longos arrepios, e quis
fugir dali. Mas Jacques pousou a mão sobre o crânio do animal, que
emitiu, ao ser tocado, um desses longos uivos que se ouvem à noite
pelos campos.
Sentei-me, também assustado, estarrecido, tanto, como se
estivesse enjoando a bordo de um barco em mar agitado. Eu via os
móveis caindo, moverem-se pelas paredes. E gaguejei:
— Chega, Jacques, chega!
Mas ele não mais me escutava, olhava para Mirza com um olhar
fixo, contínuo, assustador. Ela cerrou os olhos enquanto deixava
tombar a cabeça como se houvesse adormecido. Jacques olhou para
mim.
— Está feito, agora você já viu.
E, atirando seu lenço para o outro lado do quarto, gritou: —
Traga-mo!
O animal então se levantou e, tropeçando, cambaleando, como
se estivesse cego, mexendo suas patas a custo, como os paralíticos
fazem com suas pernas, seguiu na direção do lenço, que parecia uma
mancha branca no chão. Ela tentou várias vezes pegá-lo na boca,
mas mordia aos lados, sem atingi-lo, como se não o visse. Afinal
alcançou-o e voltou para nosso lado, sempre . parecendo um cão
presa de sonambulismo.
Era um espetáculo horrível de ver. Jacques ordenou: — Deite-
se!
Ela deitou-se. Então, ele lhe tocou a testa e disse: — Uma lebre!
Pega, pega!
— E o animal, sempre de lado, tentou correr movendo-se como
se estivesse dormindo, e emitiu, sem abrir muito a goela, pequenos
latidos de ventríloquos.
Jacques parecia ter enlouquecido. O suor jorrava-lhe da testa.
Gritou: — Morda, morda seu patrão!
A cadela teve dois ou três terríveis sobressaltos. Eu teria jurado
que ela estava resistindo à ordem, que relutava. Ele repetiu: —
Morda-o!
Então, levantando-se, a cadela veio para meu lado. e eu recuei
para junto da parede, fremindo de medo, o pé levantado para repeli-
la.
Mas Jacques ordenou:
— Aqui, depressa!
Ela obedeceu-lhe. Então, com suas mãos enormes, ele pôs-se a
esfregar a cabeça do animal, parecendo desembaraçá-lo de invisíveis
liames.
Mirza reabriu os olhos:
— Pronto, está acabado, - disse Jacques.
Não ousei sequer tocá-la, e enxotei-a até à porta, por onde saiu.
Caminhava lentamente, insegura, esgotada, e ouvi suas unhas
novamente arranharem o chão.
Jacque; dirigiu-se a mim novamente:
— E isso não é tudo. O que mais me espanta, eis aqui, tome! Os
objetos me obedecem também.
Ele tinha posto sobre a mesa uma espécie de corta, papel, de
que me servia para cortar as páginas dos livros. Estendeu a mão
para o objeto, que parecia rastejar, aproximando-se lentamente; e de
súbito eu vi, sim, o corta-papel estremecer, depois agitar-se, deslizar
suavemente, sozinho, sobre a madeira, rumo à mão que o aguardava,
colocando-se-lhe entre os dedos.
Pus-me a gritar de terror. Também acreditei ter enlouquecido,
mas o agudo de minha voz logo me acalmou.
Jacques recomeçou:
— Todos os objetos vêm, assim, à minha ordem. É por isso que
oculto as mãos. Que será isso? Magnetismo, eletricidade, ímã? já não
sei mais nada, porém, isso é horrível. E compreende você, também,
por que é horrível? Quando estou só, assim que me encontro só, não
posso impedir-me de atrair tudo quanto me rodeia. E passo dias
inteiros mudando as coisas de lugar, não deixando nunca de
experimentar esse abominável poder, como para verificar se ele não
me deixou!
Ele havia metido de novo suas enormes mãos nos bolsos e
olhava para as trevas, além da vidraça. Um pequeno ruído, um leve
movimento pareceu sacudir a folhagem, por entre o arvoredo.
Era a chuva que começava a cair.
Murmurei:
— É espantoso!
Fie acrescentou:
— É horrível.
Um estrondo percorreu a folhagem, semelhante a uma rajada
de vento. Era o aguaceiro, a pancada d'água, chovia
torrencialmente.
Jacques começou a respirar a plenos pulmões, soerguendo o
tórax.
- Deixe-me, - disse - a chuva vai acalmar-me. Neste momento,
desejo ficar só.
METEMPSICOSE
Walter Poliseno

Os últimos golpes de picareta ressoaram no silencio do vale.


Havia, em todos nós, uma estranha trepidação, porque chegara,
finalmente, o momento esperado, havia meses: a porta de mármore
do túmulo do Faraó estava aberta.
Voltei-me, durante um momento, a contemplar o vale dourado
pelo sol que descia para o ocaso. Ao longe, divisava-se o magnífico
templo branco de Der-Al-Barhi, com suas colunatas, que pareciam
imitar o estilo dórico. O templo, cortado na rocha calcária do vale de
Tebas; e, coroado por uma gigantesca cadeia de rochedos,
assemelhava-se a um anfiteatro, aberto sobre o deserto. O vento
soprava através do desfiladeiro do vale, num murmúrio misterioso. O
deserto imenso, de um lado, e a maciça barreira de rochedos, do
outro, faziam com que nos sentíssemos mesquinhos e perdidos,
intimidados pela sua grandeza. Não passávamos de minúsculos
pontos no deserto e o próprio templo milenar, visto a distância e no
conjunto do quadro, parecia pequeníssimo.
O baque de uma pedra, que se despenhou, acordo num
devaneio. A vista e o pensamento voltaram-se para o túmulo de
Néfer, cuja abertura negra, na areia dourada, parecia prestes a
engolir-nos.
Quer entrar primeiro? - perguntou-me o professor
— Não seria melhor deixar tudo para amanhã? Agora já é tarde.
Clarence mordeu os lábios, com um estranho sorriso.
— Se assim quer, assim seja. Mas, tenho pressa de regressar ao
Cairo. Há um mês que estamos neste vale sombrio e silencioso...
Podíamos dar-lhe, ao menos, uma olhada.
— Como queira - disse eu, precedendo-o, aborrecido, por ter
lido uma nota de ironia no seu olhar. Clarence pensava,
provavelmente, que eu tivesse medo e que, como já acontecera a
tantos outros, as superstições e as velhas histórias que circundam,
com um ar de mistério e terror, as pesquisas arqueológicas no vale
do Nilo, me houvessem impressionado também. Descemos por uma
estreita passagem, até uma câmara de paredes inclinadas, que se
encontravam no alto, para formar o teto. Daí, abriam-se dois
corredores, que conduziam, evidentemente, a duas salas, em que
estavam dois sarcófagos.
— Vou explorar esta passagem - disse Clarence, enveredando
por aquela que ficava à nossa direita, fazendo sinais aos outros que o
seguissem.
— Seria incomodo para o Senhor, explorar esse outro corredor?
- perguntou-me, a seguir.
Não lhe dei resposta, e entrei pelo corredor à esquerda, com
paredes de pedra coberta de hieróglifos. Cheguei a uma saleta, e a
luz da minha lâmpada destacou um baixo relevo de pedra calcária,
que continha algumas passagens do Livro dos Mortos. Ao. longo das
paredes, havia místilas e sobre elas estavam dispostos os objetos
mais variados: figurinhas de madeira esculpidas, pintadas com cores
vivas, porta-perfumes de alabastro, jarras azuis, em forma de flores
de lótus, vasos de Cánapo, recipientes de alabastro para cosméticos.
Num ângulo, havia um cofre baixo, com entalhes de majólica
azul, marfim e ébano. Nele estavam gargantilhas, amuletos,
braceletes e anéis, leques de ouro e ébano, espelhos, mancais de
bronze e cobre.
Compreendi que havia penetrado no túmulo de uma jovem
egípcia, talvez filha de Néfer. Aproximei-me do sarcófago coroado
por Bah, a ave-alma, em forma de falcão, com semblante humano, e
por uma estátua, de pedra preta, de Anúbis, o deus do mundo
subterrâneo. Sobre a tampa, estava esculpido e pintado em cores
muito vivas, com raro poder de expressão, o retrato de uma moça.
Na imobilidade misteriosa da pedra, ela parecia fitar-me, de modo
estranho. Seus olhos, negros e profundos, e os lábios, numa atitude
de impenetrável sorriso, davam-lhe uma aparência de vitalidade que
me impressionou
Amun-Eti, filha de Néfer II... contemplei o seu simulacro,
absorto, como se ela estivesse viva. Era maravilhosamente bela...
mas isso não bastava para explicar aquilo que eu sentia. Havia, nos
seus olhos, no seu rosto, na sua expressão, qualquer coisa que
suscitava misteriosas harmonias na minha alma, e senti como se
aquela criatura, que vivera milhares de anos antes de mim, estivesse
junto do meu espírito, fosse parte de mim mesmo, mais do que
qualquer outra pessoa viva...
Seguiram-se para mim dias de estranha perturbação e
abatimento moral. O pequeno rosto, encantador e misterioso, do
sarcófago, atormentava-me, perseguia-me. Via aqueles olhos em
todos os cantos; onde quer que pousasse a vista, descobria aquele
sorriso doce e impenetrável.
Estávamos catalogando as peças descobertas no túmulo:
trabalho de semanas. Mas aquele trabalho, que sempre me havia
apaixonado, até então, encontrava-me, agora, ausente, cansado,
abúlico. Tinha guardado para mim, antes que outros entrassem na
sala de Amun-Eti, um belíssimo colar de lápis-lazúli, que fazia parte
de seu enxoval funerário.
Queria àquele objeto como a um penhor de amor. Todas as
vezes que podia, sem dar nas vistas, quase escondido de mim mesmo,
corria a contemplar a figura do sarcõfago, viva na imperecível
vivacidade das côres egípcias.
Que é que me acontecia? Estaria para cair doente? Iria ficar
louco? Às vezes, pensava naqueles que admiram a Gioconda de
Leonardo, em Paris, e dela se enamoram, exaltados.
Mas, eu, sempre fora homem prático e atido à realidade,
espírito científico, antípoda de semelhantes exaltações românticas.
E então?... Amun-Eti!
Contemplando aquele vulto, procurando penetrar o mistério
daquele olhar, o segredo daquela vida, sentia subir em mim uma
incomparável paz espiritual. Mas, tinha que lutar, subtrair-me àquela
fascinação secreta, antes que meus nervos, por demais tensos, me
pregassem qualquer partida perigosa.
Certamente, tudo isso era efeito da solidão e da estranha
atmosfera, encantada e quase mórbida, do Vale dos Túmulos dos
Reis.
Dei-me pressa em fazer embalar o sarcófago de Amun-Eti,
prometendo a mim mesmo não mais pôr-lhe a vista em cima. Mas,
estava inquieto, nervoso... E, quando partimos para o Cairo, eu já
sabia que não me esqueceria de Amun-Eti, não seria capaz de
subtrair-me ao desejo de tornar a vê-la, nem jamais me separaria do
colar de lápis-lazúli, símbolo daquela estranha aventura.
O sarcófago, com seu enxoval funerário, ocupou uma pequena
sala do Museu do Cairo.
O diretor insistiu para que eu dirigisse o arrolamento da sala,
mas recusei, alegando um pretexto. Queria evitar tomar a vê-la, lutar
contra aquele sentimento impossível, a que não sabia que nome dar,
mas que me dominava inteiramente o espírito.
A sala foi aberta ao público e uma semana mais tarde fui lá.
— O louco vai ter medo das sombras - dizia eu para mim mesmo.
Aqui, numa grande cidade como o Cairo, e coisa ficaria reduzida a
suas justas proporções; verificaria que tudo quanto se passara fora
efeito dos nervos e da atmosfera do deserto. Riria de mim mesmo.
O sarcófago estava exposto dentro de um armário de cristal.
Alguns visitantes contemplavam a beleza das figuras esculpidas e das
cores resplandecentes. A presença deles, sem motivo algum, irritava-
me como se fossem intrusos. Esperei ficar, para aproximar-me.
Sentia o coração bater apressado, por mais que dissesse a mim
mesmo que era um idiota e um sonhador. Fiquei longo tempo a
contemplar Amun-Eti. E, de repente, estremeci. Colheu-me uma
sensação de vertigem. Fechei os olhos. Agora, sim, devia ter
enlouquecido. Porque, refletido no cristal do armário, tinha visto o
rosto de Amun-Eti animar-se e sorrir. Voltei-me, instintivamente, e
mal pude reter um grito de pasmo. Perto de mim, estava a
encarnação viva de Amun-Eti, não um fantasma, mas a cópia viva e
palpitante da figura do sarcófago.
A moça olhou para mim e sorriu-me. Era muito jovem. Tinha
olhos pretos, com longos cílios. A sua pele era vagamente de uma cor
azeitonada. O sangue egípcio revelava-se-lhe nos lábios carnudos e
nos zigomas, ligeiramente proeminentes, que davam a seu rosto um
acentuado caráter oriental. Trazia um pequeno turbante, de um azul
pálido, não diferente do penteado da mesma Amun-Eti. O seu vestido
de crepe, cor de canela, desenhava-lhe as formas esbeltas, bem
torneadas, revelando as curvas sensuais do corpo moço, que
encarnava as linhas ideais do velho Oriente. Afastei-me,
embaraçado.
— Desculpe-me - disse. - Fiquei a contemplá-la como um louco.
Sinto-me verdadeiramente mortificado.
— Compreendo o seu espanto. Pareço-me tanto assim?... Ou
melhor: pareço-me realmente com ela?
Concordei, e ela continuou:
— Vim, picada pela curiosidade, pois me disseram justamente...
- deteve-se, incerta.
Pareceu-me que compreendeu, então, que estava falando a um
desconhecido.
— Sou o professor Dyman... Henrique Dyman - disse eu,
apresentando-me. - O acaso quis que fosse eu o primeiro a penetrar
no sepulcro de Amun-Eti.
Ela estendeu-me a mão.
— Chamo-me Henet Scott... Então o senhor fazia parte da
missão arqueológica de Tebas?
Começamos a conversar, mas eu não conseguira tirar os olhos
do seu rosto. Amun-Eti tinha-se reencarnado. O milagre de Pigmalião
repetira-se. Parecia-me que aquela mulher houvesse sido criada,
naquele momento, pelo meu íntimo desejo, que vivesse somente para
mim, emanação e animação dos meus sentimentos. Soube que seu pai
era inglês, falecido havia muitos anos, mas sua mãe era egípcia: uma
senhora copta, de nobre ascendência, cuja família se gabava de
pertencer aos últimos faraõs Saites e que, embora cristã, havia
conservado o culto tradicional das antigas divindades locais.
— Amun-Eti seria, em definitivo, uma de suas ante-passadas,
não é verdade?
— Se a genealogia, a que minha mãe liga tanta importância, for
exata...
Olhou para o sarcófago, enquanto lhe aflorava aos lábios um
leve sorriso. Eu vacilei, dominado por um súbito frémito de terror
surpersticioso, pois, naquele momento, ela possuía a idêntica
complicada expressão do retrato de Amun-Eti...
— Amun-Eti deixa-me curiosa - disse ela, depois.
Foi um acaso realmente feliz que eu tenha encontrado
justamente o senhor, Professor Dyman. Desejava saber algo mais a
seu respeito... tudo quanto possa dizer-me.
— Ficarei muito contente em aceder a seu desejo.
— Quer vir tomar chá conosco? Minha mãe ficará muito
contente em conhecê-lo. Tudo quanto diga respeito ao antigo Egito
provoca o seu mais apaixonado interesse.
Foi assim que comecei a frequentar a casa dos Scotts. Desde
aquela manhã, sabia o que em mim sucedera, mas não me entristecia
por isso. . . O meu sentimento transpusera-se da fantástica Amun-Eti
para Henet. Agora, porém, não havia inquietação, incerteza ou
aborrecimento, no meu coração. Eu amava uma mulher muito bela,
inteligente, culta, refinada: gozava do seu sorriso, da sua companhia,
do seu pensamento. E fugira àquele incubo estranho, àquela
obsessão que talvez se viesse a converter em loucura.
Entretanto, o British Museum estava organizando outra missão,
ao Vale dos Túmulos dos Reis, e fui convidado a dirigi-la. Era uma
proposta tentadora. Mas, teria que renunciar a ver Henet, durante
vários meses. . .
Naquela noite, fui convidado a jantar em casa dos Scotts. Henet
notou imediatamente que alguma coisa me preocupava. Depois do
jantar, saímos juntos para o jardim, onde havia uma fonte de
mármore verde, semi-oculta entre os canteiros de plantas tropicais.
Há alguma coisa que o perturba, professor Dyman. Que é? -
perguntou, com sua voz quente.
— Fui convidado pelo British Museuni para dirigir as
escavações no Vale de Tebas - respondi.
Henet hesitou um instante.
É uma grande oportunidade que se lhe oferece disse,
destacando as palavras. - Está contente?
Peguei-lhe na mão.
— Teria ficado contente há um mês, antes de conhecê-la. .. mas,
como poderei aceitar ir remexer a poeira do passado e as sombras
da morte, quando, aqui, junto de si, encontrei a vida?
Ela voltou para mim, interrogativamente, aqueles seus grandes
olhos, semelhantes a gemas luminosas, na alvura de seu rosto que,
repentinamente, se tornara pálido. Alguns dias antes, fizera-lhe eu
presente do colar de lápis-lazúli de Amun-Eti. E, naquela noite, ela
trazia-o. As pedras azuis, betadas de ouro, brilhavam como se
fossem mágicos fogos aprisionados.
— Se o senhor se explicasse melhor... eu... murmurou.
— Amo você. já a amava, antes de encontrá-la! Antes de
conhecê-la, já estava loucamente apaixonado. Agora, sonho apenas
em viver a seu lado, amá-la, torná-la feliz...
Ela continuou a fitar-me e, durante um momento, calou-se. O
cicio da água da fonte causou-me uma estranha impressão. Os lábios
da moça tremiam ligeiramente.
Estreitei-a nos meus braços e beijei-a.
— Henet, Henet! Você é o amor da minha vida. Eu ficaria louco,
se pensasse que você não existisse e eu tivesse nascido, tarde
demais, para conhecê-la! Quer casar comigo, Henet?
Um mês depois, parti para o Vale dos Reis, como chefe da
Missão Arqueológica.
Henet tomara-se minha mulher, e acompanhava-me.
Aquele período permanecerá na minha memória como o tempo
mais feliz da minha vida, de uma felicidade estática, sem limites.
Além de seu apaixonado amor, Henet oferecia-me a sua preciosa
colaboração e revelou-se uma companheira utilíssima, no delicado
trabalho da Missão, sobretudo pelo conhecimento da língua egípcia e
dos caracteres hieroglíficos das diversas dinastias. Eu amava-a com
um amor que, por vezes, me espantava por sua violência, como se
pudesse amar uma criatura perdida nos séculos, na noite dos tempos,
que, finalmente, se encontrou e se receia perder.
A não ser os componentes da Missão, estávamos sós no Vale dos
Reis, sós no deserto imenso, entre os restos de uma civilização
milenária, que nós próprios estávamos trazendo a lume. Às vezes,
parecia-me viver num estranho encantamento, sair da realidade do
tempo e estar junto de Amun-Efi, preso a ela por um amor que
houvesse desafiado os séculos.
Cada dia se me relevava um aspecto novo da complexa
personalidade de Henet; a sua cultura, a sua força de caráter, e
sobretudo, a sua ardente e apaixonada vitalidade. A sua ânsia de
viver era febril e revelava-se em todo o seu comportamento e quase
em cada uma de suas palavras. Às vezes, desconcertava-me não
descobrir os seus pensamentos e os segredos da sua alma. Uma vez,
ouvi-a, num momento de intimidade e euforia, à vista da gigantesca
estátua de Ammon-Ra, entre as ruínas do templo de Der-Al-Bahri,
desafiar a morte para atingi-la. Não era uma brincadeira, mas sim
uma desconcertante manifestação de quanto de oriental havia no seu
espírito.
— Ficarei sempre consigo... estarei sempre a seu lado,
enquanto você tiver vida - disseme, depois. - A morte não terá poder
sobre mim, porque o amo demais.
— Não fale dessas coisas absurdas, querida.
— Mas eu penso assim... E penso que não poderei morrer,
enquanto nos amarmos assim. Sabe o que é a morte? É a fraqueza de
vontade de quem não tem força de viver. O homem cede
inteiramente à morte, unicamente pela fraqueza da sua vontade.
Eu sorri:
— Teoria tipicamente faraônica.
— Não. Foi um escritor seu patricio quem o disse: Glanvill.
Uma vez, quando regressava das escavações, encontrei Henet
que brincava com o seu colar de lápis-lazúli.
Estava estendida numa cadeira, com fundo de tela. A expressão
abstrata, ausente, do seu rosto, impressionou-me. Assim como me
impressionara sempre a predileção que manifestava por aquele
colar, se bem que possuísse outros mais belos e mais preciosos.
Sentei-me, em silencio, a seu lado.
— Quero dizer-lhe uma coisa curiosa, Meryt... disse ela, em
certo momento, chamando-me Meryt, que, em egípcio, quer dizer
amado, dileto, - quando você me deu este colar, tive a impressão de
havê-lo já possuído, de conhecê-lo em cada veio das suas pedras. É
uma impressão bizarra, hipnótica, que se agita no meu espírito e faz
surgir imagens que não me atrevo a definir, como fragmentos de um
sonho sobre o qual a gente tenta fixar a atenção, mas que se esvai.
Apertei os lábios com ceticismo, e ela continuou:
— Lá lhe sucedeu andar por um lugar onde nunca e achá-lo
estranhamente familiar, como se a ele esteve estivesse ligado uma
parte desconhecida da sua vida?
— Uma vez ou duas... mas, deixei de acreditar em certas
histórias, quando completei sete anos...
Fingi rir à sua custa, mas fitava-a preocupado, pois me parecia
realmente conturbada.
Não devia esquecer que ela era metade egípcia, tinha sempre
vivido no Egito e não podia subtrair-se inteiramente ao peso de
crenças e superstições milenares.
— A atmosfera deste lugar começa a fazer-lhe mal observei. -
Ficaria muito mais sossegado se você voltasse ao Cairo, Henet.
— Não. nunca mais o deixarei. Nunca mais.
Mas, ao contrário, deixou-me...
A Missão devia ultimar os seus trabalhos durante o mês de
julho, pois, naquela época, começa a inundação do Nilo. As chuvas,
porém, começaram a cair, antes do tempo previsto, com inaudita
violência. Devíamos notificar dali e dirigir-nos imediatamente para
Keneh, o centro mais próximo, onde passa a grande estrada de ferro
que, costeanck)o Nilo, atravessa o deserto arábico, até ao Cairo e
Alexandria.
Todos os homens da Missão trabalhavam febrilmente, na
preparação do comboio.
Sabíamos que um grave perigo nos ameaçava, pois Keneh
estava sobre a outra margem do Nilo e não poderíamos chegar até
lá, se as águas houvessem ultrapassado as eclusas de Del-AI-Bahri.
Quando os quatro jeeps se puseram em movimento, todo o Vale
dos Reis estava convertido num lago cinzento, sobre o qual se
acumulavam nuvens muito baixas, entre as quais os relâmpagos
ziguezagueavam, de improviso. A água escorria dos bancos dos
jeeps, dos vidros, dos cofres. As rodas giravam em falso, enterrando-
se na lama. Foi preciso que todos os homens os empurrassem,
durante muito tempo, a muito custo.
Henet estava no carro da frente do comboio. Com dificuldade,
consegui colocar-me a seu lado. O vento soprava violento, cortando a
respiração, e a água tolhia a vista, invadindo tudo. Em certo
momento, tive a impressão de encontrar-me no meio de uma
paisagem irreal, apocalíptica, debaixo d'água. Do maciço
montanhoso, precipitavam-se torrentes, formando cascatas,
arrastando pedras, cascalhos, detritos de toda a espécie. O céu
tornava-se cada vez mais escuro, embora fosse ainda pleno dia. Cada
vez mais frequentes, os relâmpagos lívidos fuzilavam, por entre as
nuvens, iluminando o deserto revolto e os rochedos, dom uma luz
sinistra. Eu olhava, com apreensão, para a água que escorria, em
catadupas, da montanha para - o Vale. Tínhamos que andar depressa,
depressa...
Atingimos a grande ponte de Lameth, lançada sobre o Vale do
Der-Ai-Bahri. Por baixo de nós, abria-se um abismo que, em certos
pontos, ultrapassava mais de cem metros.
Agora, a água corria impetuosa, investindo contra os pilares e
fazendo tremer toda a ossatura da ponte. Os carros caminhavam
com cautela, enfrentando um vento de: violência extrema. . .
Estávamos quase chegando à saída da ponte, quando ouvi um fragor
sinistro, e me pareceu que toda a montanha se precipitava em cima
de nós. Das alturas, massa enorme de água, de pedras, de troncos de
árvores, descia sobre a ponte, com um ruído estranho, ensurdecedor.
Um dos lados do carro foi atirado violentamente de encontro ao
parapeito, com um fragor de ferragens e vidros quebrados. Por um
instante, pareceu que o automóvel fosse alçar voo: ficou suspenso,
com as rodas anteriores no vácuo, capotou e rolou pela escarpa. Eu
havia sido atirado fora. A chuva não deixava ver nada, o vento uivava
a meus ouvidos. Nas mãos, eu segurava qualquer coisa, que
contemplava, atônito: era o colar de Henet que, instintivamente,
tinha agarrado, no instante da desgraça, e se havia despedaçado. Os
outros carros haviam parado, Os homens da Missão gritavam,
agitavam-se. Alguém começava a subir pela escarpa. "Henet!",
gritei, com voz rouca. Aproximei-me dos destroços. Henet estava ali,
imóvel, os olhos fechados, o rosto branco, sob um véu de lama.
Apoderou-se de mim um terror desesperado, enquanto tentava
levantá-la. "Heneti Heneti" - gritava eu.
O seu rosto contraiu-se num espasmo. Abriu os olhos, onde já
pairavam as sombras... Harry... Meryt. . . - murmurou - Não o
deixarei, não posso deixá-lo, Meryt.
Tentou abraçar-me, e eu apertei-a desesperadamente.
— Henet, meu anjo!... minha pequenina...
— Eu voltarei... voltarei a você. Espete-me, Harry Havemos de
encontrar-nos ainda.
O trágico fim de Henet deixou-me estupefato. Nos meses que se
seguiram, invadiu-me uma espécie de torpor interno e foi como se me
houvesse tornado incapaz de sofrer, fechado e indiferente a tudo que
me rodeava. Depois, a pouco e pouco, voltei à realidade, ao
encontrar-me num universo novo, esquálido, estranho. Decidi sair do
Egito.
Não me era possível permanecer onde cada pedra me
recordava Henet, o amor perdido.
Por isso, voltei à Inglaterra, deixando ao tempo a missão de
sanar-me as feridas do espírito... E assim aconteceu, de fato; de tal
modo que, quatro anos depois da tragédia da ponte de Lameth, casei-
me com uma senhorita da nobreza provinciana inglesa, Miss Laura
Doyle, filha de um baronet, do condado de Sussex.
Não estava propriamente enamorado de Laura; não ais capaz
de amar, naquele frio despertar, que se seguira ao sonho
maravilhoso que tinha vivido. Mas sentira-me, insensivelmente,
atraído para ela, pela sua afetuosa simplicidade, pela sua doce
personalidade, confortadora e repousante. Não podia compará-la a
Henet. Agora, ao pensar nisso, posso dizer que uma e outra eram
duas antípodas, física e espiritualmente.
Henet era uma ardente beleza oriental; Laura, tipicamente
anglo-saxônia, de olhos azuis luminosos, num rosto um pouco
exangue às manifestações mais secretas do seu espírito.
A nossa vida transcorria tranquila, sem ardor de paixão,
fundada apenas na sólida base de uma reciproca estima, em nossa
moradia de campo, entre os prados e as colinas do Sussex. Penso que
Laura havia adivinhado que houvera um drama terrível em minha
vida, embora eu jamais lhe houvesse falado, nem ela me tivesse feito
qualquer pergunta a tal respeito. E. às vezes, seus olhos velavam-se
de melancolia... Talvez fosse a intuição de não conseguir fazer-me
esquecer e tornar-me feliz.
Mas, eu estava convicto de ter esquecido... Tanto era verdade
que, mal me chegou às mãos uma carta do British Museum, com a
proposta de voltar ao Vale dos Umulos dos Reis, falei nisso,
ligeiramente, a Laura.
Seus olhos acenderam-se de entusiasmo.
— Vai ser maravilhoso!... Eu o acompanharei, naturalmente.
— Mas, eu não tenho intenção de voltar mais lá.
A desilusão estampou-se em seu rosto, e eu tornei, persuasivo:
— Veja, querida, a África e o deserto não são semelhantes às
nossas campinas do Sussex.
— Seria tão romântico!
— O deserto é romântico somente no cinema e nos cartões
postais ilustrados. Aqui, no Sussex, temos tudo quanto...
— Eu não quero ficar decrépita, entre as comodidades do
Sussex.
— Mas, acredite no que lhe digo, Laura. É a sua moldura
natural. Na África, você se sentiria como um peixe fora d água.
Era isso. Eu exprimira a essência do meu modo de pensar, a
respeito de Laura. Os tépidos prados de esmeralda, a caça à raposa,
o campo de golfe - isso era o ambiente natural de Laura, assim como
um deserto de fogo, as solidões misteriosas, as ruínas milenárias do
antigo Egito eram a moldura de Henet. Eu não conseguia imaginar
Laura montando um camelo, sob um sol a pino ou entre as ruínas das
sepulturas. Ela, porém, tanto insistiu que acabei aceitando o encargo
do British Museum.
Nesse ponto, não tive motivos para mudar de decisão. Enquanto
fazíamos nossos preparativos, Laura apareceu-me sob uma nova luz,
alegre como jamais fora, impaciente por conhecer aquele mundo
longínquo, diferente, através do qual esperava talvez conhecer uma
parte importante da minha existência, dos meus pensamentos, da
minha vida espiritual.
Poucos dias antes da partida, ocorreu um incidente que me
perturbou. Entrava eu em casa, e Laura veio ao meu encontro,
alegre, sorridente. Trazia no pescoço c, colar de lápis-lazúli, que fora
de Amun-Eti e, depois, de Henet. Experimentei um mal-estar
indefinível, quase uma obscura sensação de terror. Laura riu-se da
minha surpresa.
— Mau! Tinha escondido este belo colar; não quis fazer-me
presente dele.
— Eu tinha a certeza de que não estava mais comigo... Onde o
encontrou?
— Numa velha roupa colonial. Com o fecho quebrado.
A terrível cena da ponte de Lameth sulcou-me o espírito como o
fulgor de um relâmpago. Uma sensação de vertigem apoderou-se de
mim e fechei os olhos: pareceu-me afundar num abismo. ---Harry!...
Merytl... Eu voltarei a você. Encontrar-nos-emos ainda!"
Tomei a ouvir a trágica invocação, no fragor da tempestade.
— Que tem você? -. perguntou Laura, admirada. Desconfiou do
colar. - Não quer que eu...
Fiz sinal que não.
— É um velho colar egípcio. Pertencia a uma... princesa, morta
muito jovem. Não gosto de vê-la tocar esse colar, porque dizem que
traz desgraça, como se possuísse um poder maléfico.
Laura olhou fixamente para mim, e depois riu.
— Se é só por isso, desafio todas as maldições.
Algumas semanas mais tarde, estávamos no Cairo. Mas, depois
de haver encontrado novamente o colar, eu não me sentia muito
seguro de ter feito bem em regressar ao Egito.
O passado voltava ao assalto, como que em ondas constantes
que ameaçassem tragar-me.
Antes de partir do Cairo para o Vale de Tebas, Laura quis
visitar o museu arqueológico.
Assim, contra minha vontade, quase atraído por uma força
misteriosa e fatal, encontrei-me em frente da arca de cristal de
Amun-Eti. Aproximei-me, sem sentir, como num estado de hipnose e,
em dado momento, experimentei uma sensação vertiginosa de
extravio. Amun-Eti estava diante de mim, no esplendor policromo do
sarcófago, remota, arcana, maravilhosamente bela. Henet fitava-me,
através dos olhos de pedra da princesa. Sentime envolto numa nuvem
pesada, que me sufocava. Nela, somente os olhos eram vivos, aqueles
olhos escuros e misteriosos, que eu tanto tinha amado.
— Harry... Meryt. . - Eu voltarei a você. Encontrar-nos-emos
ainda! tinha dito Henet. -
Agarrei-me à balaustrada e senti um arranco dentro de mim.
Henet, meu grande amor, não voltaria nunca mais. No passado, no
presente, no futuro, em nenhum lugar do universo, jamais poderia
encontrá-la novamente.
A voz de Laura chamou-me à realidade.
— É maravilhosamente belo! Tem qualquer coisa de moderno e
fascinante... Mas, Harry! Sente-se mal! - exclamou logo, notando
minha perturbação.
— Não é nada. Apenas um breve delíquio... Vamo-nos embora
daqui.
Iniciamos imediatamente os trabalhos no Vale. Tornou-se
evidente, desde logo, que a nossa Missão seria mais afortunada, com
a descoberta de documentos de importância.
Fiquei assim absorvido pelas minhas pesquisas e tive pouco
tempo para ocupar-me de Laura - Eu percebia que ela era estranha e
longínqua àquele mundo, mas não se mostrava, embora fosse certo,
menos entusiasta do que quando havíamos partido. Arrependime de
deixá-la demasiado tempo sozinha e, um dia, quis levá-la a Keneh, o
mais próximo centro habitado, na margem do Nilo. Atravessávamos a
ponte de Lameth: era a primeira vez que por ali passava, após tantos
anos. Ao centro da ponte, o carro parou, sem razão aparente, e eu
desci, resmungando, para dar um golpe de vista ao motor. Estava
inclinado sobre a caixa, quando ouvi um grito: "Harry". Era Laura.
Desceu do automóvel e correu aos meus braços. Estava mortalmente
pálida.
O corpo inteiro tremia-lhe, Procurei acalmá-los, sem ela
recobrou-se, a pouco e pouco, mas não consegui compreender o que
a tinha perturbado tão violentamente.
Experimentei de súbito uma sensação de angústia, o
pressentimento ou a percepção de uma coisa atroz. Aflorou-me ao
rosto qualquer coisa fria, como a asa da morte.
Escutei, inquieto, o que ela dizia; depois, pus o carro em
movimento. Ela agarrou-se a meu braço, tremendo.
— Não! Pára!
Parei.
Então, que há?
Peço-lhe, voltemos para trás. Quero voltar para trás. Para trás!
Sua ansiedade era febril.
— Desculpe, querido! Não sei que tenho! Voltemos
Embora, no dia seguinte, Laura tivesse aparentemente quase
esquecido aquele estranho episódio, cuja culpa atribuía aos seus
nervos, não tornou a ser a mesma. Às vezes, parecia absorta, como
que escutando alguma misteriosa mensagem a seu ouvido. Outras
vezes, a sua linguagem tinha lapsos bizarros, que eu não sabia
explicar: no meio de uma conversa, escapavam-lhe algumas palavras
que Lauta não podia ter pensado; como se, por um instante fugaz,
houvesse deixado de ser a mesma. Assaltou-me uma sensação de
pânico.
Que é que acontecia? . Estava quase decidido a perder tudo e
voltar para a Inglaterra. Mas, como justificar tal decisão a mim
mesmo? Sentia-me inquieto, sem saber por quê. Uma noite, acordei
tom a impressão de que Laura houvesse murmurado alguma coisa, no
sono.
Acendi o candeeiro de petróleo e inclinei-me sobre ela, tocando-
lhe, quase, a boca com a minha. Percebi efetivamente um murmúrio
indistinto, em que me pareceu perceber uma palavra. Uma sensação
de gelo apoderou-se de mim e senti os cabelos eriçarem-se-me na
cabeça. "Meryt... Meryt, murmurava Laura! Eu devia ter-me
enganado. Não era uma alucinação, pois Laura, em estado de vigília,
não conhecia uma única palavra de egípcio antigo ou moderno.
Invadiu-me um terror obscuro e incoercivel, que me regelou.
Naquele momento, Laura acordou, em sobressalto. Olhou para mim,
com um olhar espantado, e pareceu não me reconhecer. Depois, um
relâmpago de compreensão acendeu-se nas suas pupilas, abandonou-
se nos meus ombros e desatou a chorar, sacudida de soluços
histéricos. Sonhara, mas não conseguia recordar-se de nada, a não
ser da sensação de terror que a dominava.
No dia seguinte, Laura voltou, sozinha, à ponte de Lameth. Fui à
sua procura, pois não a enc6ntrara em nossa barraca. Levava-me
uma vaga intuição.
Ela estava absorta na contemplação do abismo dos rochedos, as
mãos contraídas no parapeito, arquejante. Tive que chamar por ela
várias vezes, antes que desse assustado.
Um pensamento horrível, uma daquelas ideias horripilantes, que
não ouso confessar, com receio de passar por doido varrido,
começava a aflorar-me no espírito.
— Por que é que veio aqui, Laura? - perguntei.
Hesitou um pouco, antes de responder, depois disse: Para
verificar o que foi que me espantou, outro dia. Por mim... Eu
começava a ficar Que é que foi? - insisti, ansioso.
— Não sei. Há qualquer coisa, nesta ponte. . . qualquer coisa à
espera... de mim.
— Não compreendo. Agora, voltemos. Quer?
Ela segurou-se a meu braço e olhou para mim, no fundo dos
olhos.
— Harry. . . tenho medo de enlouquecer - disse, em voz baixa e
incolor, que me fez estremecer. - Às vezes, penso que não sou eu,
parece-me conhecer coisas que ignoro...
Mas não sou capaz de analisar aquilo que sinto. É como se uma
força estranha tentasse arrebatar-me a mim mesma... Olhe, jamais
poderei explicar! ...
No dia seguinte, escrevi à diretoria do British Museum, pedindo
minha substituição.
Mas, a catástrofe ocorreu justamente naquele dia, mesmo antes
que eu pudesse supor. . .
Era noite alta, e eu estava trabalhando, a catalogar as peças
arqueológicas que havíamos encontrado. Em dado momento, ouvi um
cicio, como de alguém que viesse de fora. Fiquei a escutar. Tudo
estava em silencio. Só de um ponto muito afastado chegava o uivo de
um animal noturno. Um grito monótono, incessante, perseguidor,
como que o chamado implacável de uma obsessão. Não fiquei
tranquilo, e fui ver o que Laura estivesse fazendo. Mas, não a
encontrei em nossa barraca!
Procurei por todo o campo, numa inquietação crescente e
esmagadora. Não estava...
Recordei-me novamente da ponte de Lameth e um presságio de
desgraça atravessou-me a alma, como um relâmpago ofuscante.
Resolvi logo tudo, com uma pressa febril.
Chamei um chofer do pessoal egípcio. Pusemos um jeep em
movimento e corremos, na noite escura. Quem sabe se conseguiria
alcançá-la antes que...
Sim, ela estava sobre a ponte. A luz deslumbrante dos faróis
destacou-a nitidamente e eu soltei um brado, que se juntou ao seu
grito mortal. Pois Laura galgara o parapeito da ponte e precipitara-
se no vácuo.
O jeep, que eu mandara voltar ao campo, regressou com
socorros de urgência, passada meia hora. Em lentos passos, Laura
foi transportada até à barraca: um silencioso cortejo de lúgubres
sombras, no deserto iluminado fantasticamente pelas tochas
elétricas. O doutor Carson, médico da Missão, excedeu-se
imediatamente em cuidados. Laura havia perdido os sentidos. Tinha
o rosto ensanguentado, a respiração apressada e curta. O médico
abanou a cabeça: seu vulto, à luz dos candeeiros de querosene,
parecia extremamente pálido, espectral.
— É grave? - perguntei, em voz baixa.
Ele fez que sim, e compreendi que Laura estava perdida.
— Fratura da base do crânio - murmurou. Deixei-me cair num
escabelo. O médico estava fazendo tudo quanto estava em seu poder
e eu fitava-o, espantado, sem seguir-lhe os movimentos, atormentado
pela interrogação: Por que teria ela feito isso? Qual foi a força que a
impelira a precipitar-se no abismo?
Via-me na impossibilidade de compreender, com a inteligência e
com os sentidos, aquilo que acontecera, ligado ao terror
supersticioso das coisas desconhecidas e incognoscíveis... Como se
algo a houvesse atraído, como se um destino tremendo tivesse de
cumprir-se.
Já a palidez da morte começava a espalhar-se pelo seu
semblante. Tudo era silente no campo, como se tudo houvesse
parado, à espera que a tragédia se cumprisse. Eu estava só com ela
e via que a vida lhe fugia, através da respiração ansiosa, enquanto,
entre nós, se erguia um muro invisível, que já nos separava: por tras
desse muro, tra-vava-se a última luta entre a vida e a morte. Em
certo momento, o rosto exangue de Laura coloriu-se levemente de
encarnado. Vi-a agitar-se, como num supremo es-forço. Depois, dir-
se-ia que as forças da destruição tivessem levado a melhor. . . Mas
não estava tudo acabado, ainda: uma alma queria viver num corpo
que estava condenado a morrer. Certamente, perdi então o controle
da minha faculdade de inibição, pois a cena que se seguiu, na sua
alucinante irrealidade, não podia ser verdadeira, não podia ser senão
o fruto de uma fantástica obsessão. . . Foi seguramente uma
alucinação... Laura mexeu-se, e eu ajoe]hei-me a seu lado, beijando-
lhe as mãos. Ela abriu os olhos.
— Minha Laura - disse, soluçando. Então estremeci e sentime
viver num incubo.
Qualquer coisa se regelou dentro de mim, ao contemplar
aqueles olhos. Porque eu conhecia aquele olhar, conhecia aquela
expressão enigmática. E aquele não era o olhar de Laura! "Shewa-n
em debat... Nefra-n entot hena-Y" ouvi que ela sussurrava.
Experimentei, então, uma sensação indefinível, semelhante
àquela que teria sofrido com o desabar fulminante do mundo que me
circundava. Aqueles dizeres eram egípcio antigo, língua inteiramente
desconhecida de Laura. Os lábios da moribunda haviam dito:
"Seremos felizes, com você junto de mim".

Henet, Henet! - gritei, num paroxismo de terror e de exaltação,


impossível de exprimir. Mas, subitamente, a respiração
arquejante cessou e foi como se em todo o universo, naquele
momento em completo silencio, tudo ficasse imóvel ao redor do
grande mistério.
CAMAROTE 105, BELICHE
SUPERIOR
Marion Crawford

Alguém pediu charutos. Instintivamente, olhamos todos para a


pessoa que falara.
Brisbane era um homem de trinta e cinco anos, notável por
aquelas qualidades que geralmente atraem a atenção dos homens.
Era forte. As proporções exteriores de sua figura não apresentavam
nada de extraordinário apesar de ser de altura acima do vulgar.
Tinha mais de seis pés de altura, e era razoavelmente largo de
ombros; não parecia gordo mas também não era magro; a cabeça
pequena assentava-se sobre um pescoço forte e vigoroso; as mãos
grandes e musculosas tinham uma habilidade notável em partir nozes
sem o auxilio do respectivo instrumento, e, ao vê-lo de perfil,
ninguém podia deixar de notar a extraordinária largura de suas
mangas e a grande largura de seu tórax. Era um desses homens de
quem vulgarmente se diz que as aparências enganam; quer dizer,
apesar de forte, era, na realidade, muito mais forte ainda do que
parecia. Com respeito às feições, pouco tenho a dizer. A cabeça era
pequena, tinha pouco cabelo, olhos azuis, nariz grande, pequeno
bigode e queixo quadrado. Toda gente conhece Brisbane, e, quando
pediu um charuto, todos olharam para ele.
— É uma coisa singular - disse Brisbane. Deixaram todos de
falar...
Tenho viajado muito, e, como preciso atravessar o Atlântico
bastantes vezes, tenho cá minhas preferências. Muita gente as tem.
já vi um homem esperar, num bar da Broadway, durante três quartos
de hora até que passasse O carro que preferia. Creio que o dono do
bar fazia um terço de seu rendimento com a preferência daquele
homem.
Tenho o hábito de esperar por determinados navios, quando
tenho de atravessar aquele tanque de patos. Será uma asneira, mas
nunca tive uma travessia tão má, a não ser uma vez. Recordo-me
muito bem: foi numa manhã quente de junho, e os empregados da
alfândega, que andavam de um lado para outro, à espera de um
vapor que já largara da Quarantine (Lazareto), tinham um aspecto
notavelmente sombrio e pensativo.
Eu não levava muita bagagem - nunca a tenho muita. Misturei-
me com a multidão de passageiros, moços de frete, e daqueles
maçadores vestidos de azul, com botões de latão, que parecem
nascer como cogumelos do convés dum navio atracado, para impor
violentamente os seus serviços desnecessários ao passageiro
independente. já tenho muitas vezes observado, com certo interesse,
as evoluções espontâneas destes diabos. Quando se chega, ninguém
os vê; cinco minutos depois do piloto ter dito: Pra vante! eles, ou,
pelo menos, os casacos azuis e os botões de latão desaparecem do
convés e do portaló tão subitamente como se tivessem sido tragados
pelo inferno. Mas, no momento da partida, lá estão eles, barbeados,
vestidos de azul e esfomeados por gorjetas. Apressei-me a ir para
bordo. O Kamtschatka era um de meus navios favoritos. Digo, era,
porque deixou de o ser. Não posso conceber coisa alguma que me
obrigue a viajar outra vez nele. Sim, já sei o que vão dizer. Que tem
uma marcha muito rápida, que é bastante alto da proa para não se
encharcar, e que a maior parte dos beliches de baixo são duplos.
Tem muitas vantagens, mas não torno a viajar nele. Desculpem a
digressão. Fui para bordo. Chamei por um criado, cujo nariz
vermelho e cujas suíças ainda mais vermelhas me eram igualmente
familiares.
— Camarote 105, beliche de baixo - disse ele, no tom decidido
de um homem que faz tanto caso em atravessar o Atlântico como de
beber um coquetel de uísque no Demoníaco.
O criado pegou-me na mala, no casaco e na manta. Nunca me
esquecerei da expressão do seu rosto. Não que ele ficasse pálido. Os
teólogos eminentes asseveram que nem os milagres podem alterar o
curso da natureza. Não hesito em dizer que não ficou pálido, mas
pela sua expressão pensei que ia chorar ou espirrar ou deixar cair a
mala. Como esta continha duas garrafas de velho Xerez, muito bom,
que me tinham sido dadas pelo meu velho amigo Quigginson Van
Pickyns, sentime sobressaltado. Mas o criado não fez nenhuma
dessas coisas.
— Diabo me levem!... - disse ele em voz baixa, e pôs-se a
caminhar na minha frente.
Supus que o meu Hermes, que assim me conduzia para as
regiões inferiores, tivesse tomado a sua pinga, mas nada disse, e
segui-o. O camarote 105 ficava a bombordo, bastante à popa. Não
tinha nada de notável. O beliche de baixo, como a maior parte dos do
Kamtschatka eram duplos. Havia muito espaço: tinha o lavatório do
costume, bom para dar uma ideia de luxo aos índios da América do
Norte; havia os inúteis porta-escovas do costume, nos quais é mais
fácil pendurar um grande chapéu de chuva do que uma escova de
dentes vulgar de Lineu. Sobre os poucos convidativos colchões,
estavam cuidadosamente dobrados aqueles lençóis que um grande
humorista moderno comparou muito bem a pastéis de massa frios. A
questão das toalhas ficava inteiramente a cargo da imaginação. As
garrafas de vinho estavam cheias dum líquido transparente e
ligeiramente acastanhado, e exalavam um cheiro mais intenso que a
cor do líquido, mas muito menos agradável, subindo às narinas como
uma longínqua e nauseabunda reminiscência de óleo de máquinas.
Cortinas duma cor triste fechavam quase completamente o beliche
de cima.
A luz baça de junho iluminava fracamente aquela cena
desoladora. Puf! Que má impressão tenho daquele camarote!
O criado pôs minha bagagem no chão e olhou para mim como se
quisesse ir-se embora provavelmente à procura de mais passageiros
e mais gorjetas. É sempre bom estar em boas relações com esses
funcionários, e por isso lhe dei imediatamente algum dinheiro.
— Farei todo o possível para que o senhor seja bem servido -
observou ele, metendo o dinheiro na algibeira.
Contudo, havia na sua voz um tom duvidoso que me
surpreendeu. Naturalmente, a sua tabela de gorjetas tinha subido e
não se contentava. não se considerava satisfeito; apesar disso, quis-
me antes parecer que ele talvez tivesse tomado um copinho a mais.
Não tinha razão, e fiz àquele homem uma injustiça.
Nada de especial aconteceu, durante aquele dia. Largamos do
cais pontualmente e foi muito agradável começar a navegar, porque
o dia estava quente e abafado e o movimento do vapor produzia uma
brisa muito fresca. Todos sabem o que é o primeiro dia de viagem no
mar. Os passageiros passeiam pelo convés, olham uns para os outros
e, de vez em quando, encontram-se com gente conhecida cuja
presença a bordo não suspeitavam. Há a incerteza do costume com
respeito à excelência da comida, até que as duas primeiras tirem
todas as dúvidas; há a incerteza do costume a respeito do tempo, até
que o navio dobre a Ilha do Fogo. As mesas, ao princípio, estão
cheias e, depois, se despovoam subitamente.
Pessoas pálidas abandonam repentinamente os seus lugares e
precipitam-se para as portas, e os viajantes experimentados
respiram mais livre mente, quando o vizinho enjoado lhes foge do
lado, deixando-lhes mais lugar para os cotovelos e um direito
ilimitado sobre a mostarda.
Todas as travessias do Atlântico se parecem umas com as
outras. E nós, que as fazemos muitas vezes, não viajamos em busca
de novidades. Baleias são sempre objetos dignos de interesse, não há
dúvida, mas, apesar disso, as baleias parecem-se todas entre si e
raramente se vê um iceberg suficientemente de perto. Para a maior
parte, o momento mais agradável do dia, a bordo dum transatlântico,
é quando damos o último passeio no tombadilho, fumamos o nosso
último charuto, e, tendo conseguido fatigar-nos, nos sentimos em
liberdade de nos irmos sossegadamente deitar. Na primeira noite de
viagem, sentime muito preguiçoso e fui deitar-me no 105, mais cedo
do que tenho por costume.
Quando entrei, fiquei muito surpreendido ao ver que ia ter um
companheiro. Uma mala muito semelhante à minha estava no canto
oposto, e, no beliche de cima, tinha sido colocada uma manta,
cuidadosamente dobrada, uma bengala e um chapéu de chuva.
Esperava ficar só, e estava desapontado, mas desejei saber
quem seria o meu companheiro e resolvi espreitá-lo.
Pouco tempo depois de me haver deitado, entrou ele.
Era, pelo que podia ver, um homem muito alto, muito pálido, de
cabelo e barbas cor de estopa e com uns olhos de um castanho muito
desbotado. Tinha, pensei eu, um ar de elegância duvidosa; como
aqueles homens que se encontram em Wall Street, sem que se saiba
precisamente o que lá fazem - que frequentam o Café Anglais,
parecem estar sempre sós e que bebem muita champanha;
encontram-se também nas corridas de cavalos, sem que pareçam
estar ali fazendo alguma coisa. Têm um modo estranho de vestir,
bastante afetado, e são um pouco excêntricos. Há sempre três ou
quatro dessa espécie a bordo dos transatlânticos. Resolvi-me a não
tomar conhecimento com ele e adormeci dizendo comigo que trataria
de lhe estudar os hábitos para me esquivar a quaisquer relações. Se
ele se levantasse cedo. eu me levantaria tarde; se deitasse tarde,
deitar-me-ia cedo. Não queria conhecê-lo. Se uma vez travamos
conhecimento com gente desta espécie, nunca mais nos largam.
Pobre diabo! Não era preciso incomodar-me a tomar mais decisões a
seu respeito, porque nunca mais o tomei a ver, depois dessa primeira
noite no 105.
Estava dormindo profundamente, quando fui acordado por um
grande estrondo. A julgar pelo , o meu companheiro devia ter saltado
dum pulo do seu beliche para o chão.
Senti-o mexer na fechadura da Porta, que se abriu
imediatamente. Depois, ouvi os seus Passos correndo a toda pressa
pelo corredor, enquanto deixava a porta aberta atrás de si. O navio
balançava bastante, e esperava ouvi-lo tropeçar ou cair, mas ele
corria como se fosse livrar o pai da forca. A porta girou nos gonzos,
com o movimento do navio, e o barulho incomodou-me. Levantei-me,
fechei-a, e voltei, às apalpadelas, na escuridão, para o meu beliche.
Tornei a dormir, mas não tenho a mínima ideia de quanto tempo
dormi.
Quando acordei, ainda era completamente escuro, mas senti
uma sensação desagradável de frio e pareceu-me que o ar estava
úmido. Conhecem o ar particular dum camarote, depois de ter sido
molhado com água do mar. Cobri-me melhor que pude e tornei a
adormecer, ruminando queixas que havia de fazer no dia seguinte e
pensando nas palavras mais violentas que havia de empregar. julguei
ouvir o meu companheiro, ao virar-se no beliche de cima.
Provavelmente, tinha voltado enquanto eu dormia. Uma vez,
pareceu-me ouvi-lo gemer, e julguei que estivesse enjoado. E isso é
particularmente desagradável, quando se está por baixo. Apesar
disso, continuei a dormir até de madrugada.
O navio balouçava muito, muito mais que na noite antecedente,
e a luz acinzentada que vinha pela vigia mudava de cor conforme o
movimento do navio e fazia inclinar para o céu ou para o mar. Estava
muito frio - demasiado, para o mês de junho. Voltei a cabeça, olhei
para a vigia e vi, com espanto, que estava aberta de par em par e
presa atrás. julgo ter praguejado em voz alta. Depois, levantei-me e
fechei-a. Quando voltava, olhei para o beliche de cima. As cortinas
estavam completamente corridas; com certeza meu companheiro
tinha sentido tanto frio como eu. Veio-me a ideia de que já tinha
dormido bastante. O camarote estava pouco confortável, conquanto,
o que era extraordinário, não sentisse a umidade que me tinha
acordado durante a noite. O meu companheiro dormia ainda - bela
ocasião de o evitar, e por isso vestime à pressa e fui para o
tombadilho.
O dia estava quente e enevoado, com um cheiro oleoso na água.
Eram sete horas, quando saí - muito mais tarde do que tinha
imaginado. Encontrei o médico, que estava tomando a sua primeira
pitada de ar matutino. Era um rapaz do oeste da Irlanda - um
rapagão de cabelo preto e olhos azuis, já começando a engordar;
tinha um ar bonacheirão e saudável, que o tornava bastante
atraente.
— Bela manhã! - observei eu, para encetar a conversação.
— Sim - disse ele, olhando-me com interesse; é, e não é. Não
estou lá muito de acordo.
— Sim... não será lá muito boa - retruquei.
— É o que chamo um dia estúpido - volveu o médico.
— Esteve bastante frio, esta noite - continuei. - Naturalmente,
foi por a vigia ter ficado aberta. Não o tinha notado, quando me
deitei. O camarote também estava úmido.
— Úmido! exclamou ele. - Em qual está o senhor?
— No 105...
Com grande espanto meu, o médico estremeceu visivelmente e
olhou para mim admirado.
— O que é? perguntei admirado.
— Nada. . . respondeu ele - É que, nestas últimas três viagens,
todos se têm queixado desse beliche.
— Também me vou queixar, - respondi - Não foi bem arejado. É
uma vergonha!
— Não me parece que isso tenha remédio - respondeu o médico
- Tenho ideia de que aí há qualquer coisa, mas não me compete
assustar os passageiros.
— Não tenha medo de me assustar. Suporto bem a umidade. Se
me constipar, irei ter consigo.
Ofereci um charuto ao doutor, que o examinou demoradamente.
— Não é tanto por causa da umidade - explicou ele
Apesar disso, espero que não se dê mal. Não tem um
companheiro?
— Tenho, sim; um diabo que sai a correr no meia da noite e
deixa a porta aberta.
O doutor olhou outra vez para mim, dum modo esquisito.
Depois, acendeu o charuto e ficou sério.
— Tornou a voltar? - perguntou, daí a pouco.
— Tornou. Estava dormindo, mas acordei e vi-o mexer-se.
Depois, senti frio outra vez.
Esta manhã, encontrei a vigia aberta.
— Olhe, - disse o doutor, sossegadamente - não me importo
muito com este navio. Não me importo absolutamente nada com sua
reputação. Vou dizer-lhe o que vamos fazer.
Tenho um bom camarote, lá em cima. Venha partilhá-lo comigo,
apesar de nunca o ter visto mais gordo.
Fiquei muito surpreendido com esta proposta. Não podia
imaginar donde lhe vinha este súbito interesse pelo meu bem-estar.
Contudo, a maneira como falava do navio era singular.
— É muito amável, doutor, - respondi. - Mas continuo a pensar
que o camarote se podia arejar ou limpar, ou fazer-se qualquer coisa.
Por que é que não gosta do navio?
— Nós, os médicos, não costumamos ser supersticiosos, mas o
mar nos faz assim. Não o quero assustar nem sobressaltar, mas, se
quiser-seguir o meu conselho, mude-se para o meu camarote. Antes
queria vê-lo pela borda afora do que saber que o senhor ou outro
qualquer iam dormir no 105.
— Deus do céu! Por quê?
— Porque, nas três últimas viagens, as pessoas que lá dormiram
foram pela borda afora - respondeu ele, com modo grave.
Confesso que isto era para espantar e muito desagradável.
Olhei fixamente para o médico, para ver se ele estava troçando de
mim, mas tinha um ar absolutamente sério.
Agradeci-lhe calorosamente a oferta, mas disselhe que
tencionava ser a exceção à regra pela qual todo o que dormisse
naquele camarote iria pela borda afora. Não respondeu, mas
continuou cada vez mais sério e insinuou que, antes de acabarmos a
viagem, havia provavelmente de reconsiderar. Entretanto, fomos
almoçar; poucos passageiros lá estavam. Notei que um ou dois
oficiais que almoçavam conosco estavam preocupados.
Depois do almoço, fui ao camarote buscar um livro. As cortinas
do beliche de cima continuavam completamente corridas. Não se
ouvia uma palavra. Certamente, meu companheiro continuava
dormindo.
Quando sai, encontrei o criado ao cargo do qual eu estava.
Disseme em voz baixa que o capitão desejava falar-me. E safou-se
pelo corredor, como se desejasse evitar qualquer pergunta. Dirigi-
me para o camarote do capitão, onde o encontrei à minha espera.
— Senhor, - disse ele, - quero pedir-lhe um favor.
Respondi que faria tudo para lhe ser agradável.
— O seu companheiro desapareceu, - disse ele - Sabe-se que
deitou cedo, a noite passada. Notou alguma coisa extraordinária nos
seus modos?
Vindo esta pergunta, como veio, confirmar exatamente os
receios que o médico tinha mostrado havia meia hora, ela assustou-
me.
— Não quer com isso dizer - que ele foi pela borda afora? -
perguntei.
— Receio que sim - respondeu o capitão.
Isso é a coisa mais extraordinária comecei.
— Por quê? - perguntou ele.
— Então é ele o quarto, - respondi.
Em resposta a outra pergunta do capitão, expliquei, sem
mencionar o médico, que já tinha ouvido a história do 105.
Pareceu ficar bastante encabulado ao saber que eu a conhecia.
Contei-lhe o que se tinha passado durante a noite.
— O que o senhor me diz - respondeu, - coincide quase
exatamente com o que me disseram os companheiros de dois dos
outros três. Saltam da cama e correm pelo corredor.
Dois deles foram vistos ir pela borda afora, pela vigia. Paramos
e lançamos os escaleres ao mar, mas não foram encontrados.
Ninguém, contudo, viu ou sentiu o homem que se perdeu ontem à
noite, se ele está realmente perdido. O criado, que é muito
supersticioso, talvez esperando que tivesse acontecido qualquer
coisa, foi procurá-lo, esta manhã, e encontrou o seu beliche vazio, as
roupas espalhadas, como as tinha deixado. O criado era a única
pessoa a bordo que o conhecia, e tem andado a procurá-lo Por toda a
parte.
Desapareceu! Agora, quero pedir-lhe o favor de não mencionar
nada disto aos outros passageiros; não quero que o navio tome mau
nome, e nada se agarra tanto a um navio como histórias de suicídios.
Pode escolher qualquer dos camarotes dos oficiais que preferir,
incluindo o meu, até o fim da viagem. É isto razoável?
— Bastante, , disse eu. - E estou-lhe muito obrigado. Mas, desde
que me encontro só e tenho o camarote somente para mim, prefiro
não me mudar. Se o criado tirar as coisas daquele desgraçado,
preferirei ficar onde estou. Nada direi a respeito deste assunto, e
julgo que lhe posso prometer que não seguirei o exemplo do meu
companheiro.
O capitão procurou dissimular, dissuadir-me do meu propósito,
mas eu antes queria ter um camarote só para mim do que ser
companheiro de qualquer dos oficiais de bordo. Não sei se procedi
com juízo, mas, se tivesse tomado o seu conselho, não teria mais
nada a contar. Haveria a desagradável coincidência de se terem
dado diversos suicídios dos homens que tinham dormido no mesmo
camarote, mas isso teria sido tudo.
Entretanto, não foi este o fim da questão. Tinha-me resolvido
obstinadamente a não me deixar intimidar por aquelas histórias, e
cheguei, mesmo, a discutir o assunto com o capitão. O camarote
tinha qualquer coisa. Era bastante úmido. A vigia tinha sido aberta à
noite passada. O meu companheiro podia ter adoecido, quando veio
para bordo e ficado delirante depois de se ter deitado. Podia, mesmo,
estar escondido a bordo e ser encontrado mais tarde. O camarote
precisava ser arejado, e o fecho da vigia consertado. Se o capitão
desse licença, eu trataria de mandar fazer já o que julgasse
necessário.
— Já se sabe que o senhor tem o direito de ficar onde quiser -
respondeu ele, um pouco de mau modo. - Mas preferia que o senhor
saísse e me deixasse fechar o camarote para acabar com isto.
Eu não via as coisas assim, e deixei o capitão, depois de lhe
prometer que não diria nada a respeito do desaparecimento de meu
companheiro. Este não tinha conhecidos a bordo, e a sua falta não foi
notada durante o dia. A tarde, encontrei o doutor, que me perguntou
se já tinha mudado de parecer. Disselhe que não.
— Há de fazê-lo muito em breve - observou ele, gravemente -
Jogamos o whist durante a noite e fui para a cama tarde. Confesso,
agora, que senti uma sensação desagradável ao entrar no camarote.
Não podia deixar de pensar no homem alto, que tinha visto na noite
antecedente, agora morto, afogado, boiando no mar agitado, 200 ou
300 milhas à popa. O seu rosto aparecia-me distintamente, enquanto
me despia, e cheguei, mesmo, a afastar as cortinas de cima, como
para me persuadir que ele efetivamente não estava lá. Fechei a
chave a porta do camarote. De repente, notei que a vigia estava
aberta e presa atrás. Era mais do que eu podia suportar! Vesti
apressadamente o meu robe-de-chambre, e sai à procura do
Roberto, o criado do camarote. Recordo-me que estava deveras
zangado, e, quando o encontrei, puxei violentamente até a vigia
aberta.
— Para que diabo deixa você a vigia aberta todas as noites, meu
patife? Não sabe que, se o navio adernasse e água começasse a
entrar, nem dez homens seriam capazes de a fechar? Vou fazer
queixa ao capitão, meu patife, por pôr o navio em perigo!
Estava deveras zangado. O homem começou a tremer,
empalideceu e começou a fechar o grande vidro, com pegados fechos
de latão.
— Por que não responde? - perguntei, com aspereza.
— Não há ninguém a bordo que possa conservar esta vigia
fechada, de noite... - gaguejou Roberto - O senhor mesmo pode
experimentar! Não fico mais a bordo deste navio, isso é que não fico!
Mas, se eu fosse o senhor, iria dormir com o cirurgião, lá isso é que
igual.
— Olhe cá, isto está bem fechado? Experimente o senhor a
vigia, se ela se move sequer uma polegada!
Experimentei a vigia e vi que estava perfeitamente cerrada.
— Pois bem - continuou Roberto, com voz triunfante, Perca eu
minha reputação de criado de primeira classe se em meia hora ela
não estiver aberta outra vez. E atada atrás, senhor, isso é que é
terrível, atada atrás!...
Examinei o parafuso e a porca.
— Se ela se abrir durante a noite, Roberto, dou-lhe uma libra.
Não é possível, pode ir-se embora.
— Uma libra, disse o senhor? Muito bem. Obrigado, senhor.
Muito boa noite, estimo que durma bem.
Roberto safou-se, encantado por se ver livre. Já se sabe que
pensei que ele procurava desculpar a sua negligência, com uma
história tola, para me assustar, e não o acreditei. A consequência
disto foi que ele apanhou a libra e que passei uma noite muito
desagradável.
Meti-me na cama e, cinco minutos depois de me haver enrolado
nos lençóis, o inexorável Roberto apagou a luz, que estava acesa por
detrás da bandeira, ao pé da porta.
Conservei-me tranquilo na escuridão. tentando adormecer, mas
depressa vi que isso era impossível. Tinha sentido algum prazer em
zangar-me com o criado, e isto havia feito desaparecer a sensação
desagradável, que sentira a princípio, quando pensava no afogado
que tinha sido meu companheiro de quarto, mas já não tinha sono e
conservei-me acordado durante algum tempo, olhando, de vez em
quando, para a vigia, que podia ver de onde estava, e que, na
escuridão, parecia um prato de sopa um pouco luminoso, suspenso
nas trevas. julgo que estive assim durante uma hora, e ia adormecer,
quando fui despertado por uma corrente de ar frio e por sentir
distintamente a espuma do mar bater-me na cara. Pus-me em pé de
repente, e, não tendo dado desconto na escuridão, ao balanço do
navio, fui violentamente arremessado através do camarote sobre o
sofá que estava colocado por baixo da vigia. Levantei-me
imediatamente e pus-me de joelhos em cima dele. A vigia estava
outra vez aberta, e amarrada atrás.
Ora, isto são fatos! Estava completamente acordado, quando me
levantei, e mesmo se o não tivesse teria acordado com a queda que
dei. Além disso, esfolei muito os cotovelos e joelhos e, na manhã
seguinte, as contusões tê-lo-iam provado, se por acaso eu estivesse
em dúvida.
A vigia que estava completamente aberta e presa atrás, coisa
tão extraordinária que me lembro muito bem ter sentido mais
espanto do que medo quando dei por isso. Fechei imediatamente o
vidro e atarrachei o fecho com toda a minha, força. Fazia muito
escuro, no camarote. Refleti que a vigia se tinha aberto pouco mais
ou menos uma hora depois que Roberto a fechara na minha
presença, e resolvi observar se ela se tornava a abrir.
Aqueles fechos de latão são muito pesados e nada fáceis de
mover; não podia acreditar que o gonzo se tivesse movido com o
estremecer do parafuso. Fiquei a olhar através do vidro grosso para
as faixas, alternadamente brancas e cinzentas, do mar que espumava
ao lado do navio.
Devia estar ali durante um quarto de hora.
De repente, quando me pus em pé, ouvi distintamente alguma
coisa mover-se, atrás de mim, num dos beliches, e, um instante
depois, quando instintivamente me virava para olhar - apesar de não
poder ver na escuridão - senti um gemido muito fraco. Dei um pulo
através do camarote, e afastei as cortinas do beliche de cima,
metendo as mãos dentro para ver se estaria lá alguém. Estava lá
alguém, efetivamente.
Lembro-me que a sensação que tive, quando estendi as mãos, foi
a de as ter mergulhado no ar duma cave úmida. E. detrás da cortina,
veio uma lufada de vento, que cheirava horrivelmente a água salgada
que se tivesse estagnado. Agarrei em qualquer coisa que tinha a
forma dum braço humano, mas liso, molhado e frio de gelo. De
repente, porém, quando puxava, a criatura saltou violentamente
sobre mim, numa massa peganhosa e lamacenta, segundo me
pareceu, pesada e úmida, mas dotada duma espécie de força
sobrenatural. Cambaleei e, num instante, a porta abriu-se e a coisa
saiu. Não tive tempo de me assustar e, levantando-me rapidamente,
voltei pela porta e corri atrás daquilo com toda a minha velocidade,
mas já era tarde. Dez varas adiante de mim, pude ver - tenho a
certeza que vi! - uma sombra escura movendo-se na luz incerta do
corredor, tão depressa como a sombra dum cavalo ligeiro projetada
numa noite escura pela lanterna.
Mas num instante desapareceu e dei comigo agarrado ao
corrimão que volta do corredor para a escotilha. Tinha os cabelos
em pé e um suor frio corria-me pela cara. Estava muito assustado, do
que não me envergonho nada,
Apesar disso, duvidava ainda dos meus sentidos e tentei
raciocinar friamente. Era absurdo, pensava eu. O coelho Welsh , que
comera ao jantar, tinha-me feito mal. Tinha sido um pesadelo. Voltei
para o camarote e entrei nele com esforço. Cheirava tudo a água
salgada que se tivesse estagnado como quando acordara na noite
antecedente. Tive que empregar toda a minha força moral para
entrar e procurar, às apalpadelas, uma caixa de fósforos de cera.
Quando acendi uma lanterna portátil, que ler, depois de se estava
outra vez aberta e começou a apoderar-se de mim uma espécie de
terror que nunca tive e que não desejo tornar a sentir. Todavia,
comecei a examinar o beliche de cima, esperando encontrá-lo cheio
de água do mar.
Mas fiquei desapontado. A cama tinha sido ocupada e o cheiro
do mar era muito forte; mas as roupas estavam perfeitamente secas.
Pensei que Roberto não tivera ânimo para fazer a cama, depois do
acidente da noite passada, tudo tinha sido um sonho horroroso!
Abri as cortinas o mais possível e examinei tudo
cuidadosamente. Estava bem enxuto.
Mas a vigia se achava outra vez aberta.
Numa espécie de profundo terror, tornei a fechá-la e, metendo
uma bengala muito forte na argola do parafuso, apertei-o com toda a
força até que ele começou a entortar. Depois, pendurei a lanterna no
veludo encarnado, à cabeceira da cama, e sentei-me para tentar
refazer-me do susto, se pudesse. Fiquei ali toda a noite, sem poder
pensar em descansar, sem quase poder pensar. Mas a vigia
continuou fechada, e eu não cria que agora se pudesse abrir sem
uma força extraordinária.
A manhã despontou, por fim, e vestime vagarosamente,
pensando era tudo o que tinha acontecido durante a noite. Estava um
belo dia, e fui para o tombadilho, satisfeito por ir para o sol límpido
da manhã e por respirar a brisa que vinha da água azul, tão diferente
do cheiro insalubre e estagnado que havia no camarote.
Instintivamente, dirigi-me para a popa, ao camarote do médico. Ele
lá estava, de cachimbo na boca, gozando o ar da manhã, exatamente
como no dia antecedente.
— Bons dias! - cumprimentou, tranquilamente, mas, olhando
para mim com evidente curiosidade.
— Doutor, o senhor tinha razão, - disse eu. - Há, efetivamente,
qualquer coisa naquele camarote.
— Bem me parecia que havia de mudar de opinião! volveu ele,
em tom triunfante. -
Passou mal a noite, não é verdade? Quer que lhe dê um cordial?
Tenho uma receita esplêndida!
— Não, obrigado, - agradeci. - Mas gostaria de lhe contar o que
aconteceu.
Tentei, em seguida, explicar, tão claramente quanto possível o
que se tinha passado, não escondendo que levara um susto como
nunca apanhara na minha vida. Demorei-me mais particulamente no
caso da vigia, que era um fato que eu podia afirmar, mesmo que o
resto tivesse sido ilusão.
Havia-a fechado duas vezes, durante a noite, e, da segunda vez,
tinha até torcido o fecho, ao apertá-lo com a bengala. Tenho ideia de
que insisti muito neste ponto.
— O senhor parece pensar que duvido da sua história, - disse o
doutor, sorrindo-se, ao ouvir a descrição minuciosa do estado da
vigia. - Não tenho a menor dúvida. Tomo a fazer-lhe o mesmo
convite: traga as suas malas e venha para o meu camarote.
— Venha o doutor para o meu, por uma noite. Ajude-me a
investigar o fundo de tudo isto.
— O senhor vai investigar, mas é outra qualidade de fundo, se
persistir em tentar isso.
— Qual? - perguntei eu.
— O fundo do mar. Vou deixar este navio. Não é seguro.
— Então, não me ajuda a procurar?...
— Qual história! - exclamou o doutor vivamente. Tenho
obrigação de conservar o juízo e não de me ir meter com fantasmas
e coisas do outro mundo!
— Mas pensa que, na realidade, seja um fantasma? perguntei,
eu, um pouco desdenhosamente. Mas, de repente, lembrei-me da
horrível sensação de qualquer coisa sobrenatural que se apoderara
de mim na noite antecedente. O doutor voltou-se decidido para mim.
— Acha alguma explicação racional para esses fatos? -
perguntou ele. - Não, não acha!
— Bem, o senhor diz que há de arranjar uma explicação. Eu
afirmo que não arranjará, muito simplesmente porque não há
explicação alguma.
— Mas, meu caro senhor, - retorqui eu, - então o senhor, um
homem de ciência, diz-me que essas coisas não se podem explicar?
— Digo, - respondeu ele, com energia. - E, se o pudessem ser,
eu é que não quereria tomar parte na explicação.
Não me agradava nada passar outra noite sozinho no camarote,
contudo, estava resolvido a determinar a origem daquilo tudo. Não
creio que haja muitos homens que dormissem lá sozinhos, depois de
passarem as duas noites que eu passei. Mas resolvi tentá-lo, se não
encontrasse alguém que quisesse ficar comigo. Evidentemente, o
médico não se sentia inclinado a tentar a experiência. Dizia que era
médico, e que, no caso de se dar algum acidente a bordo, precisava
estar a postos. Tinha de estar com a cabeça no seu lugar. Talvez
tivesse razão, mais inclino-me a pensar que todas estas precauções
eram causadas pelo medo. Informou-me que não havia ninguém a
bordo que me acompanhasse nas minhas investigações, e, depois de
mais algumas palavras, deixei-o. Dai a pouco, encontrei o capitão e
contei-lhe o caso. Disselhe que, se ninguém quisesse passar a noite
comigo, pedia que deixassem a luz acesa toda a noite e que eu
tentaria a experiência sozinho.
— Olhe, - disse ele, - vou lhe dizer o que farei. Ficarei consigo, e
veremos o que acontece. Tenho a certeza de que nós ambos havemos
de dar com o caso. Talvez haja alguém escondido a bordo, que
apanhe uma passagem de graça, assustando os passageiros. Talvez
haja mesmo alguma coisa a consertar no beliche.
Observei que seria bom levarmos o carpinteiro, para examinar
o beliche; fiquei muito satisfeito com o oferecimento do capitão para
passar a noite comigo. Mandou chamar o carpinteiro e disselhe que
fizesse o que eu ordenasse. Descemos imediatamente.
Desmanchei a cama do beliche de cima e examinamos tudo para
ver se haveria alguma tábua solta ou algum caixilho que pudesse ser
aberto ou empurrado. Experimentamos todas as tábuas, sondamos o
chão, desaparafusamos o beliche de baixo e desmanchamo-lo todo;
em suma, não houve um centímetro quadrado que não fosse revistado
e experimentado. Estava tudo em perfeita ordem e pusemos tudo
outra vez no seu lugar.
Quando estávamos acabando a nossa tarefa, Roberto chegou à
porta e olhou para dentro.
— Então, senhor, o que é que encontrou? - perguntou ele com
um sorriso macabro.
— Tinha razão, a respeito da vigia, Roberto, disse eu, dando-lhe
a libra prometida.
O carpinteiro trabalhava em silêncio e com jeito, seguindo as
instruções que lhe dava.
Quando acabou, disseme:
— Eu sou um homem franco, senhor. Tenho a convicção de que
o melhor era o senhor tirar daqui as suas cousas, e deixar que eu
aparafuse a porta do camarote. Este camarote ainda não deu nada
de bom. Já, aqui, morreram quatro pessoas, que eu saiba, e isto em
quatro viagens. É melhor deixá-lo, meu senhor, é melhor deixá-lo!
— Vou experimentá-lo ainda uma noite, - atalhei.
— É melhor deixá-lo, meu senhor, é melhor deixá-lo! Não sai
daqui nada bom, - repetiu o carpinteiro, metendo a ferramenta no
saco e indo-se embora.
Todavia, tinha ficado muito animado com a perspectiva de ter a
companhia do capitão e formei tenção de não deixar que me
impedissem de chegar até o fim daquele estranho caso. Abstive-me,
nessa noite do Welsh rabbitt e do grog e nem sequer tomei parte na
partida de whist do costume. Queria confiar absolutamente nos meus
nervos e a minha vaidade fazia com que desejasse mostrar boa figura
aos olhos do capitão.
O capitão era um daqueles lobos do mar valentes e cuja
coragem, presença de espírito e sangue frio, no momento de perigo,
fazem com que chequem naturalmente às posições de maior
confiança. Não era homem para se deixar levar por histórias e
bastava o fato de ele desejar reunir-se a mim nas minhas
investigações para provar que ele pensava que havia qualquer cousa
séria que não podia ser explicada, pelas teorias vulgares, nem tida
como =a superstição ordinária. Aliás, a sua reputação, bem como a
do navio, também estava envolvida no caso. Não era brincadeira
perder passageiros pela borda afora, e ele bem o sabia.
Pelas oito horas da noite, quando fumava o meu último charuto,
ele veio ter comigo e levou-me para um canto, fora do caminho dos
outras passageiros, que passeavam no convés.
— Isto é cousa muito séria, Senhor Brisbane! - disse ele. -
Temos que nos conformar: ou a não ver nada ou a Passar um mau
bocado. Como vê, não posso levar isto a rir e peçolhe que ponha o
seu nome no relatório do que se passar. Se não acontecer nada, esta
noite, continuaremos. amanhã e depois. Está pronto?
Seguimos para baixo e entramos no camarote. Quando fomos
para dentro, pude ver Roberto, o criado, que estava um pouco para
baixo do corredor, observando-nos com o seu sorriso habitual, como
se tivesse certeza de que qualquer coisa terrível ia acontecer. O
capitão fechou a porta a chave.
— Talvez fosse melhor põr a sua mala encostada à porta, -
recomendou. - Um de nós podia se sentar nela. Assim, ninguém
poderá sair. A vigia está fechada?
Estava como a tinha deixado de manhã. De fato, sem usar uma
alavanca, como eu fiz, ninguém a podia abrir. Afastei as cortinas do
beliche de cima, para poder olhar bem para dentro. Por conselho do
capitão, acendi minha lanterna portátil e coloquei-a de modo a que
iluminasse os lençóis de cima. Insistiu em ficar sentado na mala,
dizendo que queria poder jurar que tinha estado encostado à porta.
Depois, pediu-me para darmos uma busca ao camarote,
operação que se fez depressa, por consistir simplesmente em olhar
por baixo do beliche inferior e por baixo do sofá que ficava ao pé da
vigia. Estava tudo vazio.
— É impossível que algum ente humano entre aqui.
— Bem, - disse o capitão, sossegadamente. - Se agora virmos
alguma coisa, ou é imaginação ou qualquer coisa sobrenatural.
Sentei-me na borda do beliche de baixo.
— A primeira vez que isto aconteceu, - disse o capitão, cruzando
as pernas e encostando-se à porta - foi em março. O passageiro que
dormia aqui, no beliche de cima, averiguou-se que era um doido, pelo
menos sabia-se que era fraco da cabeça e tinha tomado a passagem
às escondidas dos amigos. Correu para fora, no meio da noite, e
deitou-se ao mar antes que o oficial de quarto o pudesse evitar.
Paramos e deitamos um escaler; a noite estava serena, mas não foi
possível encontrã-lo. O seu suicídio foi, mais tarde, atribuído à
loucura.
— Acontece isso muito? - perguntei, distraidamente.
— Não... muitas vezes, não - respondeu o capitão. Nunca me
aconteceu, se bem que tenha ouvido dizer que tem acontecido
noutros navios. Ora, como estava dizendo, isto teve lugar em março.
Na viagem seguinte...Para onde está o senhor a olhar? - perguntou
ele, suspendendo repentinamente a sua narração.
Creio que não respondi. Tinha os olhos pregados na vigia.
Parecia-me que o parafuso se estava movendo muito devagar, mas
tão devagar que não tinha a certeza que se estivesse movendo. Olhei
com atenção, procurando fixar na mente a posição e tentando
certificar-me se a mudava.
— Mexe-se! - disse ele, num tom de convicção. Não, não se
mexe... - acrescentou, daí a pouco.
— Se fosse o parafuso que estivesse solto, - observei - já se teria
aberto durante o dia.
Mas encontrei-o, esta tarde, tão bem apertado como o deixei
esta manhã.
Levantei-me e experimentei o parafuso. Estava de fato lasso,
porque, com um certo esforço, podia movê-lo com as mãos.
— O que é esquisito, - disse o capitão, - é que a segunda pessoa
que desapareceu, parece que se atirou por aquela vigia. Que noite
terrível que passamos! Foi alta noite, e o mar estava encapelado,
deu-se um alarma que havia uma vigia aberta e que a água estava a
entrar por ela adentro. Desci e encontrei tudo inundado; a água
entrava sempre que o navio se inclinava e a vigia estava pendente
pelos fechos de cima. Bem, conseguimos fechá-la, mas a água causou
algumas avarias. Desde essa noite que este camarote, de tempos a
tempos, cheira a água salgada. Supusemos que o passageiro se
tivesse atirado pela vigia, mas só Deus sabe como ele o conseguiu
fazer. O criado dizia-me, sempre, que não podia ter aqui nada
fechado. Palavra que me cheira, agora; não lhe cheira? - perguntou
ele, aspirando o ar, desconfiado.
— Cheira-me... e muito! - concordei, estremecendo, à medida
que aquele cheiro de água estagnada se tornava mais forte no
camarote.
— Ora, para cheirar assim é necessário que o camarote seja
úmido, - continuei, - e, apesar disso, quando eu e o carpinteiro o
examinamos, esta manhã, estava tudo perfeitamente seco. É deveras
extraordinário. . . olá!
A minha lanterna portátil, que estava pendurada no beliche de
cima, apagou-se de repente. Ainda vinha bastante luz da bandeira de
vidro fosco da porta, por detrás da qual brilhava a lâmpada do
costume. O navio balouçava muito e a cortina do beliche de cima
vinha até o meio do camarote e voltava para trás. Levantei-me
rapidamente da borda da cama, e, no mesmo instante, o capitão pôs-
se também em pé, dando um grito de surpresa.
Tinha-me voltado para apanhar a lanterna e examiná-la, quando
lhe ouvi a exclamação e em seguida gritar por socorro. Saltei para o
seu lado. Lutava com toda a força com o parafuso de latão da vigia.
Parecia mover-se-lhe nas mãos, apesar dos seus esforços.
Pequei na bengala, um pesado pau de carvalho que costumava
trazer sempre comigo, meti-o pela argola e puxei por ele, com toda a
força. Mas a forte madeira estalou de repente e eu cai no sofá.
Quando me levantei, a vigia estava completamente aberta e o capitão
encostado à porta, pálido de morte.
— Há qualquer cousa naquele beliche!. disse ele, numa voz
estranha e com os olhos quase a saírem-lhe da cara. - Segura a
porta, enquanto eu vejo... desta vez, não há de escapar-nos, seja lá o
que for!
Mas, ao invés de ir ocupar o seu lugar, saltei a cama de baixo e
agarrei em qualquer cousa. que estava no beliche de cima.
Era qualquer coisa sobrenatural, horrível, indizível, e movia-se
nas minhas mãos. Era como o corpo duma pessoa afogada havia
muito tempo, contudo, mexia-se e tinha a força de dez homens vivos.
Mas agarrei com toda a força, naquela coisa escorregadia,
lamacenta, horrível. Os olhos, brancos e mortos, pareciam olhar para
mim no meio da escuridão; tinha o cheiro podre de água salgada que
se tivesse estagnado e os cabelos luzidios caíam-lhe em madeixas
molhadas, pela cara cadavérica. Lutei com aquela coisa morta;
deitou-se sobre mim fez-me recuar e quase que me quebrou os
braços; enrolou os seus braços cadavéricos à roda do meu pescoço,
subjugou-me e, por fim, gritei, caí e larguei a presa.
Quando caí, aquela coisa saltou por ciIna de mim e atirou-se ao
capitão. A última vez que o vi àc pé, tinha a cara pálida e os lábios
cerrados. Pareceu-me que deu uma grande pancada naquela coisa e,
depois, também ele caiu para diante, com um grito inarticulado de
dor.
A coisa parou um instante pareceu pairar sobre o corpo
estendido, e eu teria gritado de terror, se ainda tivesse voz. Aquilo
desapareceu de repente, e pareceu-me aos sentidos desordenados
que saía pela vigia aberta; como foi isso possível, é que ninguém pode
dizer. Fiquei muito tempo no chão e o capitão ao meu lado. Por fim,
recobrei os sentidos parcialmente e vi logo que tinha o braço
partido: o rádio do antebraço esquerdo ao pé do pulso.
Levantei-me com dificuldade e, com a mão que me restava,
tentei levantar o capitão.
Gemeu, moveu-se e afinal, voltou a si. Não estava ferido, mas
parecia atordoado.
Acabei a viagem no camarote do médico. Tratou-me do braço
partido e aconselhou-me a que não me tornasse a meter com
fantasmas e com coisas do outro mundo. O capitão estava muito
calado, e nunca tomou a navegar serviço. E naquele navio, apesar de
ele ainda estar de também eu não tenciono tornar a embarcar nele.
RATOS DO CEMITÉRIO
Henry Kuttner
O Velho Masson, zelador de um dos mais antigos e relaxados
cemitérios da cidade de Salem, vivia eternamente às voltas com os
ratos. Há gerações atrás, tinham vindo eles dos molhes, dos cais, e
se instalaram no cemitério, uma verdadeira colônia de enormes
ratos.
Quando Masson passou a ocupar o atual cargo, após o
desaparecimento inexplicável do outro zelador, decidira dar-lhes
caça. A princípio, deitara-lhes armadilhas, envenenara comida, que
largava pelos buracos, e, mais tarde, experimentara matá-los com
uma espingarda, mas nada conseguiu. Os ratos continuavam,
multiplicavam-se, infestando o cemitério, com suas hordas
inextinguíveis.
Eram enormes, mesmo para o "mus decumanus", que as vezes
chega a medir quinze polegadas, excluindo-se o rabo cinza e rosa.
Masson entrevira alguns tão grandes quanto gatos e, quando, certa
vez, os coveiros remexeram em suas tocas, os mal odorosos túneis
eram tão largos, que permitiriam a passagem de um homem
agachado.
Vieram de distantes portos Salem, trouxeram consigo. Os
navios, que gerações atrás para os cais arrebentados de estranhas
cargas.
Masson frequentemente se admirava do tamanho desses túneis.
Lembrava-se vagamente de lendas perturbadoras, que ouvira ao
chegar àquela Salem, antiga e povoada de contos de feitiçaria -
narrativas de uma vida inumana, moribunda, que se dizia ter existido
em tocas esquecidas, nas profundezas da terra. Os velhos dias em
que Cotton Mather perseguira os cultos diabólicos, que veneravam
Hécate e a Magna Mater, orgias infernais, tinham passado. Mas,
escuras e tétricas casas de torres pontiagudas ainda se inclinavam
perigosamente umas para as outras em ruelas estranhas. E segredos
blasfemos atestavam que, nas suas cavernas e adegas subterrâneas,
celebravam-se ainda os ritos negros, que desafiam a sanidade
mental. Meneando gravemente a cabeça branca, os mais velhos
afirmavam que havia. Poucas cousa piores que ratos infestando a
terra esburacad dos antigos cemitérios de Salem.
E, aqui, voltamos à curiosa questão dos ratos. Masson odiava e
respeitava os ferozes roedores, pois conhecia o perigo que se
desprendia de seu pêlo luzidio e caninos aguçados. Não entendia,
porém, o horror que os mais velhos ressentiam pelas casas
abandonadas de viventes e infestadas de ratos. Ouvira vagos
rumores sobre - espectrais, que perambulam pelos subterrâneos e
cujo poder se exerce sobre ratos, a organizá-los como um verdadeiro
exército. Os ratos, murmuravam os mais velhos, são os mensageiros
entre este mundo e o outro, que se oculta sob a terra de Salem.
Cadáveres tinham sido roubados de seus túmulos, para os festins
subterrâneos, assim diziam.
Masson não cuidava muito dessas histórias. Não
confraternizava com seus vizinhos e tudo fazia, na verdade, para
ocultar a existência dos ratos aos intrusos. Investigações, pensava
ele, não sem razão, significariam a abertura de inúmeros túmulos. E,
conquanto alguns caixões e corroídos, esvaziados mesmo, pudessem
ser atribuídos à ação dos ratos, Masson achava difícil explicar os
corpos atirados, que jaziam em algumas das tumbas.
O ouro, o mais puro, é usado na obturação de dentes, o esse
ouro não é removido por ocasião do sepultamento. Roupas, está
claro, são outro assunto, pois o agente funerário se encarrega de que
seu cliente vista as mais baratas possíveis. Mas o ouro não. E, mais
ainda: estudantes de Medicina e médicos de reputação duvidosa
estão sempre à cata de cadáveres e não se incomodam
absolutamente em conhecer a origem desse fornecimento.
Por isso, Masson, até agora, conseguira impedir as
investigações. Negara firmemente a existência dos ratos, embora
estes lhe roubassem frequentemente a presa. Masson pouco se
incomodava com o que acontecesse aos corpos, depois que neles
tivesse exercido sua operação, e os ratos, exoravelnente,
arrastavam, o cadáver, através do buraco, roíam na parede do
caixão.
O tamanho desses buracos, às vezes, preocupava Masson.
Acrescia, ainda, a estranha circunstância dos sarcófagos serem
sempre abertos na parte correspondente às extremidades, nunca no
cimo ou nos lados. Poder-se-ia crer que trabalhavam sob as ordens
de algum líder impassível e extraordinariamente inteligente.
Neste momento, Masson achava-se de pé, em uma cova
descoberta, atirando para o lado os últimos montes de terra. Chovia,
uma garoa miúda e fria, que, por semanas a fio, castigava a terra. O
cemitério parecia um lamaçal amarelo, de que se destacavam as
tumbas, como monstros desordenados.
Os ratos haviam-se retirado para suas tocas e fazia dias que
Masson não punha os olhos sequer num. Seu rosto barbudo e de
expressão dura estava totalmente enrugado. O caixão que pisava era
de madeira.
O corpo tinha sido sepultado dias antes, mas Masson ainda não
ousara desenterrá-lo.
Um parente do morto viera ao cemitério, por diversas vezes,
arrostando o mau tempo.
Confiava, porém, agora, em que não apareceria a horas tão
tardias, por maior que fosse a sua dor, pensava Masson, a fazer
caretas das mais horríveis. Descansou por instantes.
Da colina, em que estava situado o velho cemitério, divisava as
luzes de Salem, tremeluzindo, através da neblina. Tirou uma lanterna
do bolso. Precisaria de luz, agora.
Empunhou a pá, inclinou-se e examinou a fechadura do caixão.
Parou abruptamente. Sua atenção foi despertada por um leve
mexer, sob seus pés, como se algo se movesse dentro do caixão. Um
medo supersticioso tomou conta dele, detendo-lhe a respiração, até
que percebeu o significado daqueles ruídos. Os ratos tinham-no
precedido, despojando-o de sua presa.
Num paroxismo de ódio, Masson arrebentou as ligaduras do
caixão, enfiando a ponta da pá entre a tampa e o esquife:
propriamente dito. Iluminou-o com a lanterna.
A chuva caiu de encontro ao cetim branco, do forro. O caixão
estava vazio. Masson percebeu movimento na extremidade do
sarcófago e dirigiu a lanterna para ela. Um buraco enorme deixava
entrever um sapato preto, que se arrastava vagarosamente, e o
homem compreendeu que os ratos o haviam precedido de apenas
alguns minutos.
Caiu sobre os joelhos e tentou agarrar o sapato, deixando
tombar a lanterna dentro do caixão. O sapato não foi, alcançado e
ele ouviu um guincho agudo, excitado. Tomou novamente a lanterna,
iluminando o buraco.
Era bem grande. Tinha que ser, ou o cadáver não poderia ter
sido arrastado por ali.
Masson espantou-se ainda uma vez ante o tamanho de ratos,
que podiam agúentar com o cadáver de um homem, mas a certeza do
remover, que carregava no bolso, confortou-o.
Provavelmente, se o cadáver fosse de uma pessoa comum,
Masson o deixaria entregue aos raptores e jamais se aventuraria
naquela toca, mas estava bem lembrado de que o cadáver vestia uma
camisa de linho finíssimo e que seu alfinete de gravata era de pérola.
Sem quase refletir, pendurou a lanterna na cinta e engatinhou no
buraco.
Era apertado. mas conseguiu passar. Bem à sua frente, podia
ver os sapatos que andavam por sobre a terra úmida das
profundezas do túnel. Engatinhou o mais rapidamente que pode, às
vezes tendo que se arrastar de barriga, por falta de altura.
O ar era irrespirável. Se não alcançasse o corpo em um minuto,
decidiu Masson, voltaria. Terrores subconscientes começavam a
fazer-lhe companhia, sem que pudesse evitar, mas o ódio impelia-o
para a frente. Arrastou-se, atravessando túneis, que se entroncavam.
As paredes eram limosas e por duas vezes bolas de lama caíram
sobre e atrás dele. Da segunda vez, parou. Não enxergava. Desatou
a lanterna da cinta e iluminou a escuridão.
Torres de terra amontoavam-se atrás dele e o perigo sua
posição, de repente, tornou-se real, pavoroso. Com medo de ficar
sepultado vivo, resolveu abandonar a perseguição, embora quase
alcançado o cadáver e o ser invisível, que o arrastava. Mas, não
pensara em uma cousa. O túnel era muito estreito, para permitir que
ele se virasse. O pânico assaltou-o, mas lembrou-se: de um túnel que
atravessara havia instantes e de costas; entrou nele girando aos
poucos, até poder prosseguir de frente. Rápido tentou encontrar o
caminho de volta. conquanto " Joelhos estivessem machucados e
trêmulos.
Uma dor aguda paralisou-lhe a perna. Um dente agudo se
enterrara em sua carne.
Masson se bateu freneticamente. Ouviu guinchos excitados e o
mover de muitos pés.
Iluminando com a lanterna, Masson prendeu a respiração, num
choque causado pelo susto, ao perceber uma dúzia de enormes ratos,
que o contemplavam firmemente, seus olhos rasgados, brilhando
àquela luz. Eram enormes, tão grandes como gatos, e atrás deles
entreviu uma sombra negra, que deslizou suavemente. Masson
estremeceu ante o descomunal daquela cousa invisível.
A luz os detivera momentaneamente, mas, agora, se
aproximavam, os dentes alaranjados devido à iluminação. Masson
conseguiu sacar a pistola do bolso e mirou cuidadosamente. Sua
posição era péssima. Firmou os pés nas paredes limosas, para não
desperdiçar o tiro.
O ruído espantoso da explosão ensurdeceu-o por instantes e a
fumaça provocou-lhe tosse. Quando pode ver e ouvir novamente, os
ratos tinham desapareci o. Recolocou a pistola no lugar e quis
prosseguir a caminhada de volta, mas, entre guinchos e arrastar de
pés, já estavam de novo em cima dele.
Treparam em suas pernas, mordendo e guinchando loucamente.
Masson estremeceu, ao procurar o revólver. Atirou sem mirar e
unicamente a sorte o livrou de arrancar o próprio pé. Desta vez, os
ratos não foram longe, mas Masson corria o melhor que podia,
pronto para atirar ao primeiro ruído suspeito.
Novo ruído de pés e o homem iluminou, com a lanterna, atrás de
si. Um enorme rato cinzento parou e vigiou-o. Seus longos bigodes
moviam-se e o rabo, escabroso e sem pêlos, balançava de um lado
para outro. Masson gritou, e o rato afastou-se.
Prosseguiu, detendo-se ante um túnel negro, bem à altura de
seu cotovelo, bloqueado por uma massa, que julgou, por instantes,
ser terra, desmoronada do teto, para logo verificar, horrorizado, que
se tratara de um corpo humano.
Era uma múmia marrom, enrugada, e, por pior que aquilo lhe
parecesse, a cousa se movia.
Arrastava-se na sua direção e, à luz da lanterna, a cara
horrenda mergulhou na sua. Era um esqueleto de muitos anos, a
viver uma vida diabólica. Não tinha olhos, mas buracos, que.
inexplicavelmente, brilhavam, através de sua cegueira. E aquilo
gritava à medida que avançava para Masson, a boca entreaberta e
retorcida. Masson enregelou de pavor e nojo.
Antes que aquele horror o tocasse, Masson enterrou-se no túnel
ao lado. Ouviu um arranhar de garras atrás dele, olhando de
esguelha, gritou, gritou, enquanto mais enterrava no buraco estreito.
Arrastou-se desajeitadamente, sentindo que pedrinhas agudíssimas
lhe dilaceravam as mãos e os joelhos. A sujeira penetrara-lhe os
olhos, mas não ousava parar.
Engatinhava, blasfemando, respirando com dificuldade e
rezando histericamente.
Guinchando triunfalmente, os ratos chegaram-se a ele, a fome
horrenda escrita nos olhos. Masson quase sucumbiu ante os dentes
agudos, mas conseguiu afastá-los. A passagem estreitava-se cada vez
mais. No paroxismo do terror, Masson deu pontapés, gritou.
Achou-se, engatinhando, sob enorme pedra, incrustada no teto,
que pesava cruelmente nas suas costas. Moveu-se Um pouco, quando
foi atingido por seu corpo. Uma ideia atravessou a mente quase
enlouquecida do homem. Se pudesse arrancar a pedra e bloquear o
túnel!
A terra estava úmida, devido às chuvas e, de cócoras, Masson
começou a escavar em torno da pedra. Os ratos se aproximavam
cada vez mais. Via-lhes os olhos que brilhavam, a cada tremeluzir da
lanterna. A pedra começava a ceder.
Um rato se aproximou - o monstro, que já entrevira. Cinzento e
leproso, avançava, com os dentes alaranjados à mostra, rebocando
aquela cousa morta; que guinchava à medida que se arrastava.
Masson esforçou-se, trabalhando, desesperado, e sentiu que a pedra
ia cair. Rápido, continuou a arrastar-se pelo túnel.
Atrás, a pedra ruiu fragorosa, e ouviu-se súbito guinchar de
agonia. Torrões de pedra caíam sobre as pernas de Masson, que
custava a livrar-se deles. Todo o túnel ia desmoronando!
Respirando com dificuldade, amedrontado, Masson impeliu-se
para a frente, percebendo que a terra úmida queria engoli-lo. O túnel
estava-se estreitando de tal maneira que já não podia usar mais as
mãos e pernas para se mover.
Deitou-se de barriga no chão, coleando como uma enguia, mas
de repente, quando experimentou erguer-se, descobriu que o teto se
achava apenas a centímetros de suas costas. O pânico assaltou-o.
Quando o horror cego lhe bloqueara o caminho, atirara-se
desesperado para um túnel lateral, túnel que parecia não ter saída!
Só agora entendia. Estava num caixão, um caixão vazio, cuja
extremidade, como de costume, tinha sido roída pelos ratos.
Experimentou voltar-se de costas, mas não pôde. Se ao menos
pudesse levantar a tampa do caixão! Impossível. E, se pudesse
escapar do sarcófago, como faria para remover a cinco pés de terra?
Masson arfava. O ar irrespirável, fétido, era de um calor
infernal. Num paroxismo de terror, arranhou, raspou o cetim do
forro, até que este se despedaçou. Com os pés, tentava cavar o
monte de terra desmoronada, que lhe bloqueava a saída. Se ao
menos pudesse mudar de posição, se pudesse encontrar um pouco de
ar... ar...
Agonia amarela, morna, espalhou-se por seu rosto e turvou-lhe
os olhos. Sua cabeça parecia intumescer, crescendo, aumentando,
sempre mais.
E, de repente, ouviu o guinchar triunfal dos ratos. Pôs-se a
gritar feito louco, mas já não conseguia afastá-los. Por momentos,
buscou histericamente um refúgio dentro de sua estreita e estranha
prisão, e depois aquietou-se, tentando respirar.
Seus cílios desceram sobre os olhos, a língua preta lançou-se
fora da boca e ele mergulhou na escuridão da morte, enquanto os
ratos, desatinados, banqueteavam-se em suas orelhas.
A MÃO DO HINDU
Arthur Conan Doyle

Toda a gente sabe que Sir Dominick Holden, o famoso cirurgião


da Índia, fêz-me seu herdeiro, e, desse modo, transformou um médico
pobre num opulento proprietário.
Muitos, também, sabem que, pelo menos, cinco pessoas se
atravessaram em meu caminho, por julgarem a escolha de Sir Holden
arbitrária ou caprichosa. A estas, posso assegurar que estão
redondamente enganadas e que, embora eu conhecesse Sir Holden
apenas nos últimos tempos de sua vida, ninguém fez mais por lhe
merecer a estima. Posso mesmo afirmar que, em toda sua vida,
ninguém fez mais por ele. Não pretendo que aceitem a minha
afirmativa. nem que creiam no que vou contar; parece obra de pura
imaginação; mas, como me sinto no dever de contá-la, aqui a ponho,
quer me creiam, quer não.
Sir Dominick Holden foi o mais notável cirurgião da Índia, no
seu tempo. Começou no Exército mas, depois, estabeleceu-se, como
particular, em Bombaim, donde era clamado para todos os pontos da
Índia. Seu nome está muito liqado ao Hospital Oriental, por ele
fundado e mantido. Tempo veio, entretanto, em que a sua
constituição de ferro começou a dar sinais de cansaço, fazendo com
que seus colegas (talvez não desinteressadamente) fossem unânimes
em aconselhá-lo a voltar para a Inglaterra.
Sir Holden resistiu quanto pôde, até que seu estado se agravou
e ele ressurgiu em Londres, alquebrado, em busca de Wiltshire, sua
terra de nascimento. Lá, adquiriu uma grande propriedade, na
fímbria da Alisbury Plain, e consagrou seus últimos anos ao estudo da
Anatomia Comparada. que era sua vocação e na qual se tornara
autoridade Mundial..
Nós, da família, ficamos muito excitados com a volta já esperada
de tio tão rico e sem filhos. Sir Holden, embora nada exuberante na
hospitalidade, mostrou que tomava os parentes em linha de conta, a
cada um de nós mandando, alternativamente, convite para uma
estada lá. Desejava conhecer-nos. Por um primo, tive informação de
que essas estadas eram bem melancólicas, e, em vista disso, foi com
ideias mal definidas que me dirigi para lá, quando minha vez chegou.
Minha mulher fora tão deliberadamente excluída do convite, que o
meu primeiro ímpeto foi recusá-lo; mas, havia interesses em jogo -
interesses dos filhos - e, movido pela insistência de todos, pus de lado
o ressentimento e, numa tarde de outubro, parti para lá, sem, nem
por sombras, imaginar o que iria suceder.
A propriedade de meu tio estava situada na planície de terras
aráveis, alternadas com morretes de grés, caraterísticas do condado
de Wiltshire. Quando desci na estação de Dinton, ao apagar-se
daquele dia de outono, sentime impressionado pelo tom de magia da
paisagem. Os escassos cottages de camponeses ficavam tão
minúsculos diante dos restos da vida pré-histórica, que o presente se
me afigurava um simples sonho e, o passado, uma realidade
esmagadora. O caminho coleava ao sabor de vales rasgados entre
morros, em cujos topos se erguiam fortificações, redondas umas,
outras quadradas, desafiadoras da ação dos ventos e das chuvas
através dos séculos. Uns as atribuem aos romanos; outros, aos
bretões; mas, a sua verdadeira origem está muito entrelaçada de
possibilidades para que possa ser tirada a limpo. A espaços, nas
encostas escarpadas, emergem restos de túmulos. Neles subsistem
as cinzas dos cadáveres cremados, da raça que esburacou daquela
maneira a montanha. Uma urna de barro em cada túmulo conta que
ali se dissolveu um homem que já viveu sob o sol.
Foi através dessa impressionante paisagem que me aproximei
da residência de meu tio, em Rodenhurst, solar que se casava
harmoniosamente com o meio. Dois pilares, corroídos pelo tempo e
encimados de, emblemas heráldicos, flanqueavam o portão de
entrada. Um renque de olmos seguia-se, agitado pelo vento gelado e
a desfazer-se das folhas amarelecidas. Ao fim desse túnel vegetal,
uma lâmpada. Era já quase noite, mas pude apanhar a vivenda em
visão de conjunto - uma casa baixa, que se estirava em duas alas
desiguais, bem no estilo dos Tudors. Certa janela, com persianas,
mostrava luz dentro - era o gabinete de meu tio, para onde me levou
um criado.
Encontrei-o junto à lareira, tiritando ao áspero frio do outono
inglês. Não estava acesa a lâmpada, de modo que vi Sir Holden à luz
do braseiro - cabeça grande, nariz de índio, rosto sulcado de rugas,
como marcas sinistras de oculto fogo vulcânico. Sir Holden ergueu-se
para receber-me, num gesto de cortesia grata às tradições do velho
solar. Um criado veio acender as lâmpadas e pude ver que um par de
olhos, penetrantes como o das águias, escondidos debaixo do espesso
das sobrancelhas - perdigueiros atrás das moitas - estavam lendo o
meu caráter e os meus pensamentos, com a facilidade dum mestre
nos segredos da vida.
Eu não podia despegar dele os meus olhos, porque jamais vira
diante de mim uma criatura mais digna de nota. Um verdadeiro
gigante, mas despido de carnes e só em osso.
Suas roupas pendiam pelos ombros, pareciam vazias, como as
que se vê num cabide de quarda-roupa. As mãos eram só nós; as
pernas, magríssimas. Os olhos, porém, aqueles perscrutadores olhos
azuis, impressionavam mais que tudo. Não pela cor, apenas, nem
pelo fato de estarem emboscados sob as sobrancelhas espessas -
mas pela expressão. Do seu todo agigantado e senhoril, era de
esperar-se, naqueles olhos, uma expressão de arrogância; ao invés
disso, tinha a que emana de um espírito acovardado e agachado, com
o furtivo e expectante do olhar do cachorro que vê o senhor levantar
o chicote.
Mentalmente, murmurei o meu diagnóstico, com base naquela
expressão. Vi que meu tio estava em luta com alguma doença mortal,
dessas que extinguem uma vida repentinamente - e percebi que isso
o aterrorizava. Era o chicote erguido. Tal foi o meu diagnóstico - mas
errado, como os acontecimentos o provaram. Menciono-o para que o
leitor acompanhe a marcha das minhas impressões.
A recepção de meu tio foi, como já disse, cortês e, uma hora
depois, vi-me sentado entre ele e sua esposa, à mesa de jantar,
diante de iguarias requintadas, e servido por criados do Oriente. O
velho casal voltava, tragicamente, ao viver antigo dos começos do
casamento, agora que se viam no fim da vida, sozinhos, sem amigos
íntimos, já com a missão cumprida e à espera apenas do ponto final.
Os que chegam a essa estação, com suavidade e amor, os que
transformam o seu inverno em outono, saem da vida como
vencedores. Lady Holden era uma criatura franzina e viva, com
olhares para o marido, que eram certificados do nobre caráter do
velho companheiro. Entretanto, embora eu lesse amor mútuo
naqueles olhos, também lia um mútuo terror, que interpretei como o
medo do fim. A conversa de um ou de outro era, às vezes, alegre, às
vezes, triste - mas percebi esforço na nota alegre e muita
naturalidade na nota triste - o que me esclareceu sob o estado real
dos corações que lhes palpitavam no peito.
Estávamos no primeiro copo de vinho, e os criados já haviam
deixado a sala, quando a conversa tomou rumo imprevisto. Não me
lembro o que nos pôs naquele caminho, a debater o sobrenatural,
assunto que me levou a discorrer sobre estudos psíquicos, aos quais
me tenho devotado, como muitos outros neurologistas. Expus a
experiência feita com membro da Psychical Research Society,
quando, com mais três colegas, passara uma noite num prédio
assombrado. Era um caso de nenhum modo excitante, ou
convincente; mesmo assim, interessou meus tios no mais alto grau.
Ouviram-me em completo silêncio, trocando, a espaços, olhares que
não pude compreender. Logo depois, Lady Holden ergueu-se da mesa
e saiu da sala.
Sir Holden ofereceu-me charutos e pusemo-nos a fumar em
silêncio. Notei que sua mão, toda ossos, estremecia ao levar o
charuto à boca, e por esse detalhe conheci que seus nervos vibravam
como cordas de violino. Pressenti que estava na iminência duma
confissão e calei-me, para melhor precipitá-la. Por fim, voltou-se na
cadeira e teve um gesto de quem lança de si os últimos escrúpulos.
— Do pouco que sei, vi e ouvi do senhor, Dr. Haracre, disseme
e, verifico que é exatamente o homem que procuro.
— Encantame muito ouvir isso, Sir.
— Sua cabeça me parece firme e fria. Não suponha que eu
esteja a lisonjeá-lo. As circunstâncias são por demais sérias para que
eu perca tempo com insinceridades. O senhor tem conhecimentos
especiais destes assuntos e os vê de um ponto de vista filosófico, que
lhes tira toda a vulgaridade. Diga-me: acha que poderia assistir a
uma aparição, sem impressionar-se de maneira desastrosa?
— Perfeitamente, Sir.
— E interessa-se por isso?
— Profundamente.
— Como observador psíquico, pode o senhor ponderar sobre o
fato, de um modo impessoal, como o astrônomo pondera sobre um
cometa que surge?
— Exatamente, Sir.
O velho deu um prolongado suspiro.
— Creia-me, Dr. Hardacre, que houve tempo em que eu não
podia falar como estou agora falando. Minha calma ficara famosa, na
Índia. Ainda durante os dias trágicos da insurreição dos cipaios, essa
calma não me abandonara por um só instante. E, no momento, veja
ao que me acho reduzido. Sou a mais apavorada criatura de todo o
condado de Wiltshire. Não fale muito arrogantemente dessa matéria,
que se arrisca a um terrível teste como o que tive - um teste que
poderá levá-lo ao hospício ou ao túmulo.
Esperei pacientemente que Sir Holden entrasse no âmago da
sua confidência. Aquele prefácio enchera-me de curiosidade.
— De alguns anos a esta parte, - começou ele a minha vida, e a
de minha mulher, tornou-se profundamente miserável, por um motivo
que parece grotesco. E a familiaridade com esse motivo, ao invés de
tudo atenuar, como faz toda familiaridade, mais e mais me destrói os
nervos pelo atrito constante. Se o senhor não sente o medo físico,
Dr. Hardacre, eu terei muito gosto em ouvir sua opinião sobre o
fenômeno que tanto nos perturba.
— Embora pouco valha minha opinião, estará ela inteiramente
ao seu serviço, Sir.
Poderei saber a natureza desse fenômeno?
— Creio que sua opinião terá maior valor se de nada for
informado antecipadamente. O senhor sabe muito bem a ação das
impressões subjetivas sobre o objetivo, e deve guardar-se de tê-las a
prejudicar a experiência.
— Que devo fazer, então?
— Vou dizer. Quer ter a bondade de acompanhar-me? e, assim
dizendo, Sir Holden levou-me para fora da sala, rumo a um grande
laboratório, cheio de instrumentos científicos. Uma prateleira corria
pela parede, com dezenas de vidros contendo preparações
anatômicas.
— O senhor vê que eu ainda insisto nos meus velhos estudos, -
disse o famoso cirurgião. - Estes frascos constituem os
remanescentes da preciosíssima coleção que perdi no incêndio de
minha casa, em Bombaim, no ano de 1892. Foi um grande desastre
na minha vida, sob vários aspectos. Eu possuía exemplares únicos,
em matéria de desvios anatômicos. Restam-me estes sobejos.
Corri os olhos pela coleção, e notei que eram realmente objetos
de grande valor, pela raridade do ponto de vista patológico - órgãos
anormais, ossos mal formados, distúrbios parasitários, uma singular
exibição de transtornos orgânicos, coletados na Índia.
— Temos, aqui, um divã - disse o velho sábio. - Nunca foi minha
intenção oferecer a um meu hóspede tão incomodo leito; mas, já que
as coisas chegaram a este ponto, seria interessante que o senhor
consentisse em passar a noite neste laboratório. Isso, caso não lhe
repugne fazê-lo. Decida com toda a sinceridade.
— Bem pelo contrário, Sir. Será com grande prazer que me
submeterei à experiência.
— Meu quarto é o segundo à esquerda e, se necessitar de mim,
para o que quer que seja, não tenha escrúpulos em chamar-me.
— Espero não ser forçado a perturbar o seu repouso, Sir.
— Não receie acordar-me. Raro durmo. Estarei sempre alerta,
e às suas ordens.
Não foi afetação ou exagero de minha parte dizer que sentiria
prazer em passar a noite ali. De nenhum modo pretendo ter mais
coragem física do que qualquer outro; mas a familiaridade com um
assunto atenua a sua impressão sobre nós. O cérebro humano é
capaz duma só emoção forte cada vez, mas, se está tomado de
curiosidade, ou entusiasmo científico, não cabe nele o medo. É
verdade que eu ouvira de meu tio o contrário disto - atribuí o fato à
fraqueza e decadência dos seus nervos. Eu, pelo contrário, estava
perfeito de saúde e nervos, e, por isso, ansioso como o caçador pela
caça. Fechei a porta do laboratório e deitei-me no divã.
Não era o ambiente ideal para um quarto de dormir. Ar pesado
e impregnado de cheiros de drogas, entre os quais predominava o do
álcool metílico. As decorações, igualmente, eram nada sedativas.
Havia a odiosa prateleira de relíquias de doenças horrorosas a
tomar-me os olhos para onde quer que os voltasse. As janelas não
tinham cortinas, de modo que a lua, em minguante, punha na parede
fronteira um quadrilátero de prata. Quando apaguei a lâmpada, essa
claridade assumiu singular importância. Silêncio absoluto pela casa
inteira, e tal que o rumor das brisas nas árvores, lá fora, chegava até
mim. E, ou fosse o embalo hipnótico desses sussurros externos ou o
cansaço dum dia de viagem, cheio de emoções, breve me senti
imerso em sono profundo.
Fui despertado por um rumor qualquer, que imediatamente me
fez sentar no divã.
Algumas horas já se haviam passado, de modo que o
quadrilátero de luar mudara de posição, aproximando-se de mim. O
resto da sala desaparecia, imerso na escuridão. A princípio, nada vi;
depois, à medida que meus olhos se iam afazendo à penumbra,
verifiquei, com um arrepio pelo corpo, que qualquer coisa movia ao
longo da prateleira.
Um som macio, como de sandálias, chegou-me aos ouvidos, e,
vagamente discerni um vulto humano, que caminhava cauteloso. Ao
cruzar pela faixa de luz, pude distingui-lo com precisão. Era um
homem atarracado, vestido duma espécie de burel escuro, que lhe
caía, liso, dos ombros aos pés. Tinha a cor do chocolate e, na cabeça,
uma massa de cabelos negros enrodilhada atrás, como certas
mulheres usam. Caminhava lentamente, com os olhos fixos na
direção dos frascos cheios dos horríveis resíduos humanos.
O vulto ergueu as mãos. Não foi bem isso. Ergueu os braços, em
gesto de desespero, e percebi que tinha nó uma das mãos. O braço
direito terminava em um coto. Em tudo mais, era um homem
qualquer, podendo passar por um dos criados de Sir Holden que ali
houvesse entrado em busca de qualquer coisa. Unicamente a sua
súbita aparição e que me sugeriu algo de sinistro. Levantei-me,
acendi a lâmpada e examinei cuidadosamente a sala. Não havia sinal
do meu visitante e tive de concluir que sua aparição representava
algo fora das leis naturais que conhecemos. Fiquei acordado pelo
resto da noite, porém, nada mais aconteceu.
Sou madrugador, mas o meu tio o era ainda mais. Quando deixei
o laboratório, já o encontrei medindo passos, à frente da casa. Ao
ver-me, precipitou-se ao meu encontro.
— Então?! - exclamou. - Viu-o?
— Um indiano sem uma das mãos?
— Sim.
— Vi-o, sim.
Contei-lhe tudo quanto ocorrera. Ao concluir, Sir Holden
encaminhou-se para o seu gabinete.
— Temos algum tempo antes do breakfast, - disse ele. - Bastará
para que eu lhe dê uma explicação deste mistério - se é que posso
explicar o inexplicável. Em primeiro lugar, se eu lhe disser que, de
quatro anos para cá, tanto em Bombaim como a bordo ou aqui, ainda
não se passou uma só noite sem que o meu sono fosse perturbado por
essa aparição, o senhor compreenderá o motivo deste meu miserável
estado. O programa é sempre o mesmo. Surge à beira do meu leito,
sacode-me rudemente pelos ombros, segue para o laboratório,
caminha lento na direção da prateleira e desaparece. Por mais de mil
vezes, já fez isso.
— Que é que ele quer?
— Quer a sua mão.
— Sua mão ...
— Sim, só quer isso. Vou contar. Fui, uma vez, chamado, o
Peshawer, para uma consulta, dez anos atrás, e, nessa ocasião, tive
ensejo de examinar um hindu, que passava numa caravana afegã.
Esse hindu das montanhas, lá do outro lado de Kaffristã, falava um
dialeto pushtoo. Foi tudo quanto pude saber. Sofria duma inchação
sarcomatosa, na junta de um dos metacarpos, e verifiquei que
somente lhe amputando a mão poderia salvar-lhe a vida. Após muita
luta, o homem consentiu em ser operado e, depois da operação,
pediu-me a conta. O pobre homem não passava dum quase mendigo,
de modo que a ideia de conta soava absurda e respondi, brincando,
que aceitava, como pagamento, o membro amputado, para o ter na
minha coleção.
Para surpresa minha, o hindu resistiu à proposta, explicando
que, de acordo com as suas crenças, era matéria muito importante
que o corpo se apresentasse inteiro, depois da morte. Esta crença é
muito espalhada, e encontrei-a também no Egito. Lembrei-me que a
mão já estava cortada e que ele não tinha meios de conservá-la para
reuni-la ao corpo, depois que morresse.
Respondeu-me que a conservaria em sal, trazendo-a sempre
consigo, o que me fez alegar que estaria mais segura comigo, pois
possuía melhor meio de conservá-la do que o sal. O homem
compreendeu minha alegação e cedeu, dizendo: "Sim, Sahib, mas
lembre-se de que quero que ma devolva, depois que eu morrer". Ri-
me dessa exigência e o caso ficou por aí. Voltei à minha vida habitual,
enquanto o operado, já de vida salva, pode pensar na sua viagem
para o Afeganistão.
Mas, como lhe contei ontem, fui vítima daquele incêndio, em
Bombaim. Metade de minha casa foi destruída e, com ela, quase toda
a minha coleção. O que salvei foi quase nada. A mão do hindu perdeu-
se no incêndio.
Dois anos depois, fui, certa noite, despertado por um vigoroso
puxão na manga. Sentei-me na cama, certo de que meu cachorro
entrara no quarto. Em vez do cachorro, vi diante de mim o hindu
operado, vestido no burel que lá usam, a olhar-me com expressão de
censura, enquanto estendia o braço sem mão. Em seguida, caminhou
ao longo da prateleira de frascos, que nessa época eu conservava em
meu quarto. Examinou-os todos e, com um gesto de cólera,
desapareceu. Compreendi que acabara de falecer e que, tal como
prometera, tinha vindo buscar a mão que me dera para guardar.
Eis aí o caso, Dr. Hardacre. Todas as noites, desde essa época,
e à mesma hora, o fato se repete. Isso há já quatro anos. O efeito
causado em mim pode equiparar-se ao do suplício do pingo d'água.
Trouxe-me a insônia, porque não há dormir possível com o
pensamento no que a horas tantas vai fatalmente suceder. Isso
envenename os últimos anos de vida, e também os de minha mulher,
que é companheira em tudo.
Nesse momento, soou a campainha, anunciando o breakfast.
— Vamos para a sala de jantar. Minha mulher deve estar
ansiosíssima por saber como o senhor passou a noite. Estou muito
grato pela coragem com que nos assistiu. porque o fato de uma
terceira pessoa haver testemunhado a aparição tira-nos um peso da
alma - a hipótese de ser loucura nossa - minha e de minha mulher.
Foi essa a história que Sir Holden me narrou - uma história que
para muitos parecerá da mais grotesca impossibilidade mas que,
depois da minha experiência daquela noite, e também por causa das
minhas experiências anteriores sobre a matéria, fui forçado a admitir
como verdade pura. Após o breakfast, surpreendi meus hospedeiros
com a notícia de que ia regressar a Londres pelo primeiro trem.
— Meu caro doutor, disse Sir Holden tomado de surpresa, o
senhor faz-me crer que errei em perturtar a sua estada aqui, pondo-
o no conhecimento da minha estranha história.
— É justamente esse assunto que me leva a Londres, respondi,
mas de nenhum modo suponha que a minha experiência desta noite
me fosse desagradável. Ao contrário, tanto que peço permissão para
voltar à tarde, a fim de passar mais uma noite naquele divã.
Meu tio sossegou, e eu parti. Fui reler, em meu consultório, a
passagem dum livro recente sobre ocultismo, que não me estava
clara na memória. Essa passagem dizia assim: Quando uma ideia
muito forte obseda uma criatura no momento de morrer, basta isso
para mantê-la presa a este mundo material. Tornam-se quais
verdadeiros anfíbios desta vida e da outra, e capazes de passar de
uma para outra como a tartaruga passa da água para a terra. As
causas que tão fortemente podem amarrar uma alma à vida que o
corpo abandonou são as emoções violentas. Avareza, vingança,
ansiedade, amor e piedade têm efeitos bastante conhecidos, neste
pormenor. Em regra, tudo provém dum desejo violento, e só quando
esse desejo se satisfaz o espírito se acalma. Há muitos casos que
mostram a estranha insistência desses visitantes, ou o seu
desaparecimento, depois que o desejo que os move é satisfeito ou
quando um pacto se realiza".
— Quando um pacto se realiza - esta era a frase sobre a qual eu
estava incerto e queria firmar-me. No caso de Sir Holden, só um
pacto poderia atender à situação. Quem sabe se não estava ali o
remédio que ele tanto procurava? Tomei o primeiro trem para o
Shadwell Seamen's Hospital, onde o meu velho amigo Hewett era
cirurgião. Sem entrar em explicações, fi-lo compreender exatamente
o que eu queria.
— Uma mão morena! - exclamou Hewett, atônito. Que raio quer
fazer com ela?
— Não se preocupe com as minhas razões. Depois contarei
tudo. Neste momento, preciso duma mão hindu e sei que há, aqui,
muitas.
— Isso lá é, mas... - e o meu amigo, depois de refletir uns
segundos, tocou a campainha.
— Travers, disse ao auxiliar que apareceu, que fim levaram as
mãos daquele lascar operado ontem? Aquele camarada da East India
Dock, que foi colhido numa engrenagem?
— Estão no necrotério, Sir.
— Embrulhe-me uma delas e traga-ma.
Foi assim que regressei a Rodenhurst, com aquele estranho
embrulho, a tempo de alcançar o jantar. Nada contei a Sir Holden e,
à noite, antes de deitar-me no divã, coloquei a mão morena num dos
frascos de conserva, a certa distância de mim.
Tão interessado fiquei pelos resultados da minha experiência,
que nem pensei em dormir. Sentei-me, com a lâmpada bem
sombreada pelo shade, e pus-me a esperar, com toda a paciência.
Dessa vez, vi tudo claramente, desde o começo. O hindu apareceu na
direção da porta, como na véspera, mas apareceu nebuloso; depois,
fixou-se nas formas humanas. Trazia sandálias vermelhas, sem salto,
o que explicava o macio do andar.
Corporificou-se, e fez tudo como fazia sempre, caminhou na
direção da prateleira de frascos e deteve-se diante do que continha a
mão amputada. Agarrou o frasco, examinou-o, mas, com todos os
sinais da fúria no rosto, arremessou-o por terra. O barulho inundou a
casa - e o hindu desapareceu imediatamente. Um momento depois, a
porta abriu-se e Sir Holden entrava.
— Não está ferido? Que houve?
— Ferido, não. Apenas desapontado.
Sir Holden olhou com espanto para os destroços do frasco e
para a mão morena, que jazia sobre o assoalho.
— Meu Deus! Que é isto?
Contei-lhe, então, tudo. Sir Holden ouviu-me atento e meneou a
cabeça.
— Foi bem pensado, disse ele, mas receio que não seja fácil por
termo aos meus sofrimentos. Numa coisa, porém, insisto. É que
nunca mais durma aqui, nem se preocupe por mais tempo com este
caso. Meu pavor de que alguma coisa lhe houvesse acontecido,
quando ouvi o barulho, foi maior que todas as agonias lentas que
ando sofrendo. Não quero exporme a ver a repetição disso.
Sir Holden, entretanto, permitiu-me passar o resto da noite ali,
onde fiquei a lamentar o desastre da minha experiência. A luz da
manhã veio iluminar a mão do lascar ainda no chão. Pus-me a mirá-
la, e de súbito uma ideia me fuzilou no cérebro, que me fez saltar do
divã, trêmulo de emoção. De fato, a mão do lascar era a esquerda!
Pelo primeiro trem, corri ao Seamen's Hospital, terrivelmente
apavorado com a hipótese de que a mão direita do hindu já houvesse
ido para o forno crematório. Meu susto não durou muito tempo.
Ainda lá estava o precioso objeto, que iria salvar a vida de um
homem de ciência. E voltei para Rodenhurst, com a mão direita do
lascar.
Sir Holden, entretanto, não quis, nem por nada, que eu dormisse
de novo no laboratório. Foram inúteis todas as minhas tentativas.
Achava que isso ia de encontro a todas as regras da hospitalidade.
Tive de colocar a mão direita do lascar no laboratório e ir acomodar-
me num quarto próximo.
Mas, a despeito disso, meu sono foi do mesmo modo
interrompido. Altas horas da noite, meu tio apareceu-me no quarto,
de lâmpada em punho. Seu vulto agigantado vinha envolto num
enorme pijama, e sua aparição seria mais terrível para um espírito
desprevenido do que a do próprio hindu sem mão. Todavia, não foi a
sua entrada o que me espantou e sim a expressão do seu rosto.
Parecia remoçado vinte anos. Os olhos brilhavam, todo seu rosto
irradiava e sua mão erguia-se no ar, em gesto de triunfo.
Sentei-me na cama e arregalei os olhos.
— Deu certo! Deu certo! - gritava ele. - Meu caro Hardacre,
como poderei pagá-lo do benefício que me fez?
— Explique-me isso. Que é que deu certo. Sir Holden?
— Creio que o meu amigo não ficará aborrecido de ser
arrancado ao sono, para ouvir a grande nova.
— Mas, que é?
— Não tenho mais dúvida nenhuma - e tudo o devo ao meu
querido sobrinho. Nunca esperei isto de homem nenhum. Que
poderei fazer que pague tão enorme beneficio? Foi a Providência que
o mandou aqui para me salvar. Salvou-me a vida e a razão, porque eu
não suportava mais este inferno em vida. O manicômio ou o túmulo já
estavam à minha espera. E minha pobre mulher, a coitada! Nunca,
nunca imaginei que essa carga pudesse ser arredada dos nossos
ombros - e, dizendo isto, abraçava-me com alegria infantil.
— Foi apenas uma experiência, uma tentativa, e estou
encantado que desse resultado.
Mas, como sabe que está tudo bem? Viu alguma coisa?
Sir Holden sentou-se à beira da minha cama.
— Vi tudo, - disse ele. - O senhor sabe que, a horas certas, a
criatura aparecia infalivelmente em meu quarto. Hoje veio, como de
costume, e despertou-me, ou antes, puxou-me pela manga ainda mais
violentamente que das outras. Parece que a decepção da véspera o
irritara ao extremo. Olhou-me cheio de cólera e afastou-se, rumo ao
laboratório.
Poucos instantes após, vi-o de volta e, desde o inicio da sua
perseguição, era a primeira vez que voltava ao meu quarto. Vinha
sorrindo. Vi-lhe os dentes alvíssimos de fora. Parou na minha frente e
por três vezes curvou-se, no clássico salaam, que é o modo solene de
despedir-se dos orientais. Na terceira curvatura, seus braços
ergueram-se à altura da cabeça e eu vi - vi duas mãos desenharem-se
no ar. Depois, esvaiu-se e creio que para sempre.
Eis narrada a curiosa experiência que me conquistou a afeição e
gratidão desse meu famoso tio. Suas suposições realizaram-se,
porque, desde essa noite, nunca mais foi perturbado pelas visitas do
hindu maneta. Sir Dominic Holden e Lady Holden tiveram uma
velhice muito feliz, sem nuvens, vindo a morrer por ocasião da
grande epidemia de gripe, com diferença de semanas um do outro.
Pelo resto de sua vida, nunca mais o bom velho deixou de consultar-
me sobre tudo quanto dizia respeito à vida inglesa, da qual se
afastara por muitos anos. Também o auxiliei na compra de outras
propriedades, que lhe aumentaram os domínios. Não foi, portanto,
nenhuma surpresa para mim quando o seu testamento me colocou na
frente de cinco furiosos sobrinhos e me transformou de modesto
médico de província em chefe de uma importante família de
Wiltshire. Graças ao hindu de mão cortada, meu destino mudou-se
completamente.
WILLIAM WILSON
Edgar Allan Poe

Imaginai por um momento que me chamo William Wilson. Meu


nome verdadeiro não deve manchar a página virgem que tenho
diante dos olhos. Demais, tem ele sido o horror e a abominação do
mundo, a vergonha e o opróbrio de minha família. Não terão os
ventos indignados levado a sua infâmia incomparável até às regiões
mais longínquas do globo?
— Oh! Sou o mais abandonado de todos os proscritos! O mundo,
as suas honras, as suas flores, as suas aspirações douradas, tudo
acabou para mim. E, entre as minhas esperanças e o céu, paira
eternamente uma nuvem espessa, lúgubre, ilimitada!
Ainda que pudesse, não quereria encerrar nestas páginas todas
as lembranças dos meus últimos anos de miséria e de crime
irremissível. Esse período recente da minha vida atingiu, de repente,
tais dimensões de torpeza que seria tão horrendo como difícil
descrevê-lo. O que quero é simplesmente determinar a origem desse
súbito desenvolvimento de perversidade. Os homens, em geral,
corrompem-se gradualmente; mas, de mim, a virtude desligou-se num
momento, de uma vez, como se fora um manto. De uma perversidade
relativamente ordinária, passei, com um salto gigantesco, a
enormidades mais que heliogabálicas.
Permiti que vos conte do princípio ao fim o caso, o acidente
fatal, que motivou essa maldição. A morte aproxima-se e a sombra,
que a precede, lançou, já, no meu coração, influência benéfica de
arrependimento e de paz.
Próximo a atravessar o sombrio vale, suspiro pela piedade (ia
dizer pela simpatia) dos meus semelhantes. Quereria convencê-los de
que fui arrastado por circunstâncias superiores à resistência
humana. Desejaria que descobrissem, na vasta seara de crime que vi
desenrolar, algum pequeno oásis de fatalidade para mim. Que
concordassem. (e talvez não possam deixar de concordar) que nunca,
num mundo cheio de tentações, apareceu alguma coisa igual a esta e
que jamais criatura humana sucumbiu vítima de torturas
semelhantes.
Em verdade, tudo isto não será um sonho? Acaso não morrerei
vitima do horror e do mistério da mais estranha visão de todas as
visões sublunares?
Sou o descendente de uma raça conhecida, desde longo tempo,
pela força da imaginação e pela extrema irritabilidade de
temperamento, e confirmei desde pequeno o caráter tradicional de
minha família, caráter que a idade desenvolveu e que veio, mais
tarde, prejudicar-me de modo tão terrível como extraordinário.
Meus pais, fracos de espírito e, além disso, sofrendo do mesmo
mal, quase nada podiam fazer para modificar os maus instintos que
me distinguiam. Ainda assim, fizeram algumas tentativas, mas tão
fracas e mal dirigidas, que abortaram inteiramente, convertendo-se
em completo triunfo para mim. Desde então, minha voz foi a lei
doméstica; e, numa idade em que poucas crianças pensam ainda sair
do regaço materno, fui abandonado ao meu livre arbítrio, senhor
absoluto de todas minhas ações.
As primeiras lembranças da minha vida de estudante estão
ligadas a um casarão exótico, do estilo Isabel, situado numa aldeia
tristonha da Inglaterra, semeada de árvores gigantescas, onde as
casas eram todas de antiguidade respeitável. Na verdade, era um
lugar fantástico, aquela aldeia antiga e venerável, e bem próprio
para excitar a imaginação. Mesmo neste momento, sinto no espírito
as impressões refrigerantes das suas avenidas, respiro as emanações
das suas matas rumorosas, estremeço ainda, com indefinível
voluptuosidade, à lembrança das badaladas profundas do sino,
atravessando, de hora a hora, com o seu rugido súbito e moroso, a
quietação da atmosfera escura. onde mergulhava o campanário
gótico da igreja.
A recordação destas lembranças do colégio constitui, hoje, o
único prazer que me é dado ainda sentir, imerso na desgraça, como
estou (desgraça, ai, demasiado real); perdoar-me-ão procurar
consolo bem ligeiro e bem curto nestas minúcias pueris e errantes.
Além disso, por vulgares e insignificantes que pareçam, não podem
deixar de ter na minha imaginação uma importância circunstancial,
por motivo de sua íntima conexão com a época em que distingo agora
os primeiros avisos ambíguos do destino (que depois me envolveu tão
profundamente na sua sombra. Deixai-me, pois, recordar).
Como acabo de dizer, a casa era velha e irregular; a
propriedade, grande, circundada por um muro de tijolos, alto e
sólido, encimado por uma camada de argamassa e vidros quebrados.
Aquela muralha, digna de uma prisão, formava os limites do nosso
domínio.
Não saíamos dali senão três vezes por semana; uma vez aos
sábados de tarde, para uns passeios curtos e monótonos pelos
campos vizinhos, em companhia dos prefeitos, e duas vezes aos
domingos, quando íamos, com a regularidade de um regimento em
parada, assistir aos ofícios da manhã e da tarde, na única igreja da
aldeia.
O cura dessa igreja era o reitor do colégio. Com que profundo
sentimento de admiração e de dúvida o contemplávamos do nosso
banco reservado, quando subia ao púlpito, com passo solene e
vagaroso. Aquele personagem venerável, com aspecto tão modesto e
tão benigno, vestes tão novas e tão clericalmente ondeantes,
cabeleira tão perfeitamente empoada, tão direito e tão importante,
podia ser o mesmo homem que, ainda agora, arrenegado e
carrancudo, com as roupas todas sujas de tabaco, fazia executar, de
palmatória na mão, as leis draconianas do colégio? Oh! gigantesco
paradoxo, cuja monstruosidade não tem solução!
Mas, voltemos à descrição do edifício. Num ângulo da parede
maciça, havia uma porta ainda mais maciça, solidamente carregada
de fechaduras e terminada por um bosque de ferragens denticuladas.
Essa porta (que sentimentos profundos ela inspirava) não se abria
senão para as três saídas e entradas de que falei. Então, em cada
crepitação dos seus gonzos possantes, achávamos uma
superabundância de mistério, um mundo completo de observações
solenes e de meditações ainda mais solenes.
O recinto da propriedade era de forma irregular e dividido em
muitas partes, das quais três ou quatro das maiores constituíam o
pátio do recreio. Esse pátio, situado por detrás da casa, era alisado e
coberto de areia, sem árvores nem bancos, nem coisa alguma
semelhante: lembro-me perfeitamente. A frente do edifício, havia um
pequeno jardim, plantado de buxo e outros arbustos; mas esse oásis
sagrado só nos era franqueado em ocasiões solenes, tais como à
entrada no colégio, à saída definitiva, ou ainda quando, convidados
por algum parente ou amigo, partíamos alegremente para a casa
paterna, nas férias do Natal ou de São João.
E a casa? Que curiosa construção apresentava! Para mim, que
verdadeiro palácio mágico! Era um nunca acabar de recantos, de
subdivisões incompreensíveis. Em qualquer parte que nos .
achássemos, era difícil dizer ao certo se estávamos no primeiro ou no
segundo andar. De sala para sala, havia sempre três ou quatro
degraus a subir ou a descer.
Depois, as subdivisões laterais eram incompreensíveis,
inumeráveis, com tantas voltas e reviravoltas, que as nossas ideias
mais exatas, relativamente ao conjunto da edificação, não eram mais
aproximadas do que as que tínhamos do infinito. Durante cinco anos
que ali residi, nunca me foi possível determinar exatamente a
situação do dormitório que eu ocupava, em comunidade com mais
dezoito ou vinte escolares.
A sala do estudo era a maior de todas da casa (e até de todo o
mundo, pelo menos me parecia). Era muito comprida, muito estreita,
com os tetos baixos e as janelas ogivais.
Num canto afastado, de onde emanava o terror, havia um
recinto quadrado de oito ou dez pés, que representava o "Sanctum"
do nosso reitor, o Rev. Dr. Bransby, durante as horas de estudo.
Noutros dois cantos, viam-se outros compartimentos análogos,
objetos de muito menos veneração: contudo, ainda era alvo de terror
assaz considerável: um era a cadeira do mestre de belas letras; o
outro a do mestre de inglês e de matemática. Espalhados pelo meio
da casa, cruzavam-se, numa irregularidade completa, inumeráveis
bancos e estantes carregadas de livros velhos e sujos; estas últimas,
negras e antigas, estragadas pelo tempo, cobertas de cicatrizes, de
letras e de nomes, de figuras grotescas e de outras numerosas obras-
primas de canivete, conservavam apenas uns restos do pouco feitio
original que noutros tempos haviam tido.
A uma extremidade da sala, estava um enorme balde cheio
d'água e, na outra, o relógio de tamanho prodigioso.
Encerrado nos muros daquele colégio venerável, passei,
todavia, sem aborrecimento nem mágoas, os anos do terceiro lustro
de minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo
inferior acidentado para se entreter ou divertir; por isso, na
monotonia aparente da escola, encontrei impressões mais vivas e
mais intensas que todas as que a minha virilidade procurou depois, na
devassidão e no crime.
O meu primeiro desenvolvimento intelectual foi extraordinário,
desregrado até. Em geral, os acontecimentos da vida infantil não
deixam sobre a humanidade senão impressões mal definidas. Tudo
são sombras, lembranças fracas e irregulares, confusão vaga de
prazeres ligeiros e de penas fantasmagóricas. Comigo não acontece
assim. É necessário que tenha sentido minha infância com a energia
de homem feito; tudo o que encontro ainda hoje me está gravado na
memória, com traços tão vivos, tão profundos e tão duradouros como
as faces das medalhas cartaginesas.
E no entanto, debaixo do ponto de vista ordinário, esses dias
mereciam pouca recordação. O levantar, o deitar, o estudo das
lições, as recitações, os feriados periódicos e os passeios, o pátio do
recreio, com suas lutas, os seus passatempos as suas intrigas, e nada
mais; mas, tudo isso, por uma magia física que passou, continha uma
superabundância de sensações, um mundo rico de incidentes, um
universo de emoções variadas e de excitações inebriantes. Oh! bom
tempo foi o desse século de ferro!
A minha natureza ardente, entusiasta e imperiosa, deu-me um
lugar distinto entre os outros rapazes e pouco a pouco, como era
natural, adquiri um poderoso ascendente sobre todos os que não
eram mais velhos do que eu; sobre todos, exceto sobre um. Este um
era o aluno que, sem ter comigo parentesco algum, tinha o mesmo
nome de batismo e o mesmo nome de família (circunstância pouco
notável em si, porque o meu nome, não obstante a nobreza da
origem, era um destes apelidos vulgares, que parece ter sido, desde
tempo imemorial, por direito de prescrição, propriedade comum do
povo). Nesta narrativa, o nome de Wilson (nome fictício, mas que não
está muito afastado do verdadeiro) - só o meu homônimo, entre todos
os que, segundo a linguagem do colégio, compunham a nossa classe,
ousava rivalizar comigo nos estudos das aulas, nos jogos e nas
disputas do recreio, recusar fé absoluta às minhas asserções e
submissão completa à minha vontade; em suma, contrariava minha
ditadura em todos os casos possíveis. Se jamais houve no mundo
despotismo supremo e sem restrição, é o que uma criança de gênio
exerce sobre as almas menos enérgicas dos seus camaradas.
A rebelião de William era para mim fonte perene de desgostos,
tanto mais que, não obstante a bravata com que afetava tratá-lo, e as
suas pretensões, no fundo, temia-o. Não podia deixar de encarar a
igualdade que mantinha tão facilmente comigo, como uma prova de
verdadeira superioridade, porque, pela minha parte, não era sem
grandes e contínuos esforços que conseguia conservar-me à sua
altura. Contudo, essa igualdade, ou, antes, essa superioridade, não
era reconhecida senão por mim; os outros rapazes, com uma
cegueira inexplicável, pareciam não dar por isso.
Wilson parecia igualmente destituído da ambição que me
impelia a dominar, e da energia que me dava autoridade. Dir-se-ia
que o único móvel da sua rivalidade era o desejo caprichoso de me
contradizer, de me assustar, de me atormentar, posto que muitas
vezes não pudesse deixar de notar, com sentimento confuso de
espanto, de cólera e de humilhação, que o meu rival misturava às
impertinentes contradições certos ares de afetuosidade, os mais
intempestivos e os mais desagradáveis do mundo. Não podia explicar
a mim próprio semelhante conduta, senão supondo-a o resultado de
uma presunção insolente, permitindo-se o tom da superioridade e da
proteção.
A nossa homonímia, junto ao fato, puramente acidental, de
termos entrado ao mesmo tempo no colégio, espalhara, entre os
nossos condiscípulos das classes superiores, a ideia de que éramos
irmãos. Ordinariamente, os rapazes grandes não indagam com muita
exatidão da vida dos menores. Já disse que William não era, nem no
grau mais remoto, aparentado com minha família. Mas, se fôssemos
irmãos, teríamos sido gêmeos, porque, depois de ter deixado a casa
do Doutor Bransby, soube, por acaso, que o meu homônimo nascera
no dia 19 de janeiro de 1813, sendo precisamente esse dia
(coincidência notável) o do meu natalício.
Parece incrível que, não obstante a rivalidade de Wilson e o seu
insuportável espírito de contradição, não tivéssemos chegado a
odiar-nos absolutamente. É verdade que tínhamos todos os dias uma
questão, na qual, concedendo-me publicamente a palma da vitória,
Wilson não deixava de me fazer sentir, por qualquer forma, que era
ele que a tinha merecido. Contudo, um sentimento de orgulho da
minha parte, e da sua, uma verdadeira dignidade, mantinha-nos
sempre nos termos da estrita conveniência. Ao mesmo tempo, a
quase igualdade dos nossos caracteres havia despertado em mim um
sentimento que, sem aquela situação hostil, teria progredido em
amizade. Realmente, é-me difícil definir os verdadeiros sentimentos
que nutria. por ele. Era uma mistura variegada e heterogênea:
animosidade petulante, que não chegava a ser ódio; estima, respeito,
muito receio e uma curiosidade imensa e inquieta. Para o moralista,
é escusado acrescentar que William e eu éramos camaradas
inseparáveis.
Em consequência dessa ambiguidade de relações, todos os meus
ataques contra ele (e, francos ou dissimulados, esses ataques eram
numerosos) tinham mais a forma da ironia e da brincadeira, que a da
hostilidade séria e determinada. Mas, os meus esforços neste sentido
não obtinham grande triunfo, por mais engenhosamente que os
planasse - porque o meu homônimo tinha no caráter muita dessa
austeridade plácida e reservada que dá aos que a possuem o
privilégio de ferir os outros, sem mostrarem nunca o calcanhar de
Aquiles. Nunca pude achar nele senão um ponto vulnerável; e isso
mesmo era um pormenor físico que, procedendo talvez de uma
enfermidade de construção, teria sido respeitado por qualquer
antagonista menos encarniçado do que eu. O meu homônimo tinha
fraqueza do aparelho vocal, que o impedia de levantar a voz acima de
um murmúrio muito baixo. Era dessa imperfeição que eu tirava as
minhas pequenas desforras.
Wilson tinha diferentes espécies de represálias, mas havia
particularmente uma que me fazia ir aos ares. Não sei como chegou
a perceber que semelhante futilidade produzia em mim tão grande
efeito. Mas, desde que o descobriu, foi o seu gênero de tortura
predileto.
O meu nome de família, tão desengraçado e deselegante, e o
meu nome próprio, tão trivial senão tão completamente plebeu, eram
para mim, e toda a vida tinham sido, assuntos de grande desgosto.
Ora, quando se apresentou no colégio, no mesmo dia da minha
chegada, um segundo William Wilson, sentime logo disposto contra
ele, unicamente por se chamar assim, porque seria causa de eu ouvir
pronunciar o dobro das vezes essas sílabas que me torturavam os
ouvidos, porque a sua vida, no ram-ram das funções ,do colégio,
seria, muitas vezes e imitavelmente, confundida com a minha. E, por
todas essas razões, desgostei-me ainda mais do nome.
Este sentimento de irritação aumentava em cada circunstância,
que tendia a pôr em evidência qualquer semelhança física ou moral
entre mim e o meu homônimo. Nesse tempo, ainda eu não tinha
descoberto o fato muito notável da paridade das nossas idades; mas
via que éramos da mesma altura e achava até certa semelhança nas
nossas fisionomias, o que me contrariava solenemente. A fama que
corria, e que era geralmente acreditada, nas classes superiores, de
que éramos parentes, exasperava-me do mesmo modo. Numa
palavra, não havia nada que me encolerizasse mais (bem que eu me
contrafizesse o mais possível para não dar a conhecer) do que uma
alusão qualquer à nossa semelhança, quer física, quer moral, ou ao
suposto parentesco. Todavia, nada me levava a crer que essas
analogias tivessem dado lugar a comentários ou houvessem sequer
sido percebidas pelos nossos camaradas de classe. Que Wilson as
observasse com tanta atenção como eu, era natural; mas o que não
era natural era ter descoberto em semelhantes circunstâncias mina
tão rica de contrariedades para mim.
Tendo, pois, percebido quanto essas semelhanças me
desagradavam, o meu homônimo aumentava-as ainda, arremedando-
me com habilidade verdadeiramente prodigiosa.
Copiava-me o gesto, as minhas palavras; adotava o meu
vestuário, o meu andar, as minhas maneiras, enfim, nem mesmo a
minha voz lhe havia escapado, não obstante o seu defeito
constitucional. Não me podia imitar as notas altas, mas o timbre e a
entonação eram idênticos. Quando falava baixo, a sua voz era
perfeitamente o eco da minha.
Não tentarei dizer-vos até que ponto aquele retrato curioso me
apoquentava (porque não posso chamar-lhe. propriamente uma
caricatura). A minha única consolação era que só eu notava essa
perfeitíssima cópia; assim, não tinha a suportar senão os sorrisos
misteriosos e singularmente sarcásticos de Wilson que, satisfeito de
produzir no meu coração o efeito desejado, parecia deleitar-se, em
segredo, na punhalada que me infligia, sem curar dos aplausos
públicos, que o seu engenho lhe teria facilmente conquistado.
Como é que os nossos camaradas não compreendiam, não se
percebiam as manobras, não tomavam parte naquela maliciosa
zombaria? Durante meses de inquietação, foi isto um enigma
insolúvel para mim. Talvez que a lentidão graduada da imitação a
tornasse menos notável; ou talvez devesse eu, antes, a minha
salvação à perfeita mestria do copista que, desprezando a letra"
(coisa única que os espíritos broncos podem apreciar na pintura),
não se ocupava senão do espírito original. para maior admiração e
desgosto da minha pessoa.
Já falei muitas vezes dos cruciantes ares de proteção que ele
tomava para comigo e da sua intervenção oficiosa em quase todas as
minhas vontades. Essa intervenção vinha, muitas vezes, sob a forma
de conselho, conselho que não era dado francamente, mas sugerido,
insinuado, 1 e que eu recebia com má vontade, a qual aumentava, à
medida que me ia tornando mais velho. Contudo, nesta época
longínqua, quero fazer-lhe a estrita justiça de confessar que tôdas as
sugestões do meu rival eram ajuizadas e superiores à sua idade,
ordinariamente destituída de reflexão e de experiência; que o seu
bom-senso, os seus talentos e o seu conhecimento do mundo estavam
muito acima dos meus; e que eu seria, hoje, melhor, e, por
conseguinte, mais feliz, se não tivesse rejeitado tantas vezes os
conselhos encerrados nessas assisadas sugestões, que então me
inspiravam tamanho ódio e desprezo.
Por fim, revoltei-me inteiramente contra a sua odiosa vigilância.
detestando cada vez mais o que eu considerava insolência
intolerável. Disse que, nos primeiros anos da nossa camaradagem, os
meus sentimentos para com ele poderiam, noutras circunstâncias,
ter-se convertido em amizade; mas, durante os últimos meses que
passei no colégio, não obstante a importunidade das suas maneiras
habituais ter diminuído consideravelmente, esses sentimentos, numa
proporção quase semelhante, tinham propendido para o ódio
positivo. Uma vez, presumo que patenteei isto muito claramente, e,
desde então, Wilson evitou-me ou simulou evitar-me.
Foi pouco mais ou menos nessa época (se a memória não me
engana), numa altercação que tivemos, durante a qual ele perdeu a
reserva ordinária, falando e portando-se com negligência quase
estranha à sua natureza, que descobri ou imaginei descobrir na sua
voz, nos seus modos e na sua fisionomia, geral, alguma coisa que me
era muito familiar. Essa descoberta, primeiro, fiz-me estremecer,
depois, interessou-me vivamente, trazendo ao espírito visões
obscuras da minha primeira infância, recordações confusas,
estranhas, resumidas, de um tempo que a memória não podia
alcançar. Era como uma ideia extravagante e pertinaz de já ter visto
o ser que me falava, em época muito antiga, em período
extremamente remoto, Essa ilusão, todavia, desvaneceu-se tão
rapidamente como tinha vindo; não a menciono senão para
determinar o dia da última altercação, que tive com o meu singular
homônimo.
O velho casarão do colégio, nas suas inumeráveis subdivisões,
compreendia muitos quartos grandes, que comunicavam entre si e
serviam de dormitório à maior parte dos alunos. Além disso, havia
(como não podia deixar de ser numa edificação tão desastrada) uma
quantidade de cantos e recantos, (sobras e remates da construção)
que o talento econômico do Doutor Bransby tinha igualmente
transformado em dormitórios; mas, como eram gabinetes pequenos,
não podiam comportar mais de um indivíduo. Um destes quartos era
ocupado por Wilson.
Uma noite, no fim do meu quinto ano de colégio, depois da
alteração de que falei, levantei-me, enquanto todos dormiam, peguei
num candeeiro e dirigi-me furtivamente, através de um labirinto de
corredores estreitos, ao quarto do meu rival. Havia muito que
projetava pregar-lhe uma partida, uma das tais troças que eu lhe
fazia muitas vezes mas das quais, é preciso confessá-lo, nunca
colhera grande resultado. Nessa noite, tinha resolvido pôr o meu
plano em execução, disposto a fazer-lhe sentir toda a força da
acrimônia que me animava contra ele. Quando cheguei ao seu
quarto, entrei, sem fazer bulha, deixando o candeeiro à porta,
coberto com um guarda-luz, e avancei até sentir o ruído da sua
respiração tranquila. Tendo adquirido a certeza de que dormia
profundamente, voltei à porta, pequei no candeeiro e aproximei-me
novamente do leito.
As cortinas estavam fechadas. Ao abri-las, com todo o cuidado,
para executar o meu projeto, a luz bateu em chapa no rosto do
dormente; ao mesmo tempo o meu olhar caiu sobre a sua
fisionomia... Penetrou-me instantaneamente uma sensação de gelo; o
coração pulou-me no peito, vacilaram-me os joelhos; apoderou-se de
toda a minha alma um horror espantoso, inexplicável! Respirei
convulsivamente, aproximando ainda mais o candeeiro.
Aquelas feições eram realmente as de Wilson? Sim, eram!
eram! Que havia pois de extraordinário no seu semblante para
produzir em mim tal impressão? Contemplei-o durante alguns
momentos, trêmulo, convulso; o meu cérebro girava sob a ação de
mil pensamentos incoerentes. Ele não era assim, não! nunca chegara
a ser assim nas horas ativas em que contrafazia a minha pessoa!
Estaria verdadeiramente nos juizes da possibilidade humana, que o
que eu via agora fosse unicamente , resultado dessa hábil imitação
sarcástica? Gelado de espanto, apaguei o candeeiro, saí
silenciosamente do quarto, e deixei para sempre o recinto daquela
escola velha e extraordinária.
Depois de um lapso de alguns meses, que passei em casa de
meus pais, na completa ociosidade, entrei para o Colégio de Eton.
Esse pequeno intervalo bastara para dissipar as lembranças do
Colégio Bransby, ou pelo menos para mudar consideravelmente a
qualidade dos sentimentos que essas lembranças me inspiravam. O
acontecimento, que me induzira a deixar o colégio, parecia-me agora
efeito de pura imaginação. A realidade, o lado trágico do drama tinha
desaparecido completamente. Quando me lembrava de semelhante
aventura, admirava até onde pode chegar a credulidade humana, e
ria-me da prodigiosa força de imaginação que havia herdado de
minha família.
Ora, a minha vida em Eton não era nada própria para diminuir
aquela espécie de ceticismo. O turbilhão de loucura em que
mergulhei imediatamente varreu tudo, absorvendo de uma vez e
inteiramente as impressões sólidas e sérias do passado.
Não pretendo, todavia, traçar aqui o curso dos meus miseráveis
desregramentos, que nenhuma lei ou vigilância podia deter. Três
anos eram passados; três anos perdidos em loucuras, durante os
quais a minha alma se habituou ao vício e o meu corpo adquiriu
desenvolvimento quase anormal. Um dia, depois de uma semana
inteira de dissipação brutal, convidei alguns estudantes dos mais
dissolutos para uma orgia secreta no meu quarto. Reunimo-nos a
altas horas da noite, devendo o deboche prolongar-se religiosamente
até a manhã do dia seguinte. O vinho corria livremente, e outras
seduções, talvez ainda mais perigosas, não tinham sido esquecidas.
Quando a aurora despontava no oriente, o delírio e a extravagância
tinham chegado ao apogeu.
Furiosamente inflamado pela embriaguez e pelas cartas,
obstinava-me a propor um "toast" de todo indecente, quando a minha
atenção foi subitamente distraída pela entrada precipitada de um
criado, anunciando-me que alguém, que parecia estar com muita
pressa, pedia para me falar no vestíbulo.
Excitado como estava pelo vinho, aquela interrupção inesperada
causou-me mais prazer do que surpresa. Saí do quarto cambaleando,
e em poucos segundos achei-me no vestíbulo da casa, uma sala baixa,
estreita, alumiada apenas pela fraca luz da aurora, que penetrava
através das janelas arqueadas. A pessoa que me esperava era um
rapaz pouco mais ou menos da minha altura, vestido com uma roupa
de casimira branca, exatamente irmã da que eu trazia nesse
momento. Apenas me viu, avançou para mim, agarrou-me pelo braço
com um gesto imperativo de impaciência, e murmurou-me ao ouvido:
William Wilson. Aquelas palavras a minha embriaguez dissipou-se
como por encanto. Havia nos modos do estrangeiro, no tremor
nervoso do seu dedo erguido diante dos meus olhos, o que quer que
seja sobrenatural. A importância, a solenidade da repreensão contida
nas suas palavras baixas e sibilantes, o caráter, o tom, a chave
dessas sílabas, simples, familiares, contudo misteriosamente
segredadas, fizeram-me estremecer como se na minha alma se
houvesse produzido a descarga de uma pilha voltaica.
Durante alguns segundos, o espanto e o terror aniquilaram-me o
entendimento; quando voltei a mim, o rapaz tinha desaparecido.
Aquele acontecimento produziu um efeito poderosíssimo sobre
minha imaginação desregrada. Contudo, esse efeito foi-se
desvanecendo pouco a pouco. Pensei nisso, é verdade, durante
muitas semanas, ora entregando-me a sérias investigações, ora
permanecendo dias e dias engolfado em mórbidos pensamentos. A
identidade do indivíduo, que se intrometia tão obstinadamente nos
atos da minha vida, não me deixava dúvidas. Mas, quem era? Quem
era William Wilson, de onde vinha e quais os seus fins?
Esses pontos ficaram sempre obscuros para mim. De todas as
indagações que fiz a seu respeito, só pude saber que um
acontecimento súbito o obrigara a deixar o colégio na mesma tarde
do dia em que eu fugira. Entretanto, passado certo tempo, deixei de
pensar nisso, para me entregar inteiramente aos projetos da minha
partida para Oxford.
Apenas cheguei àquela cidade (permitindo-me a generosidade
pródiga de meus pais o luxo e a opulência tão caros ao meu coração)
comecei a rivalizar em prodigalidades com os primeiros herdeiros
dos condados mais ricos da Grã-Bretanha.
Incitado ao vício por semelhantes meios, dei largas à natural
propensão, calcando, na embriaguez louca dos meus
desregramentos, os obstáculos vulgares da honra e da decência.
Mas, seria absurdo demorar-me nos debates de tais extravagâncias.
Basta dizer que as minhas dissipações ultrapassaram as de Herodes.
Inventando uma multidão de loucuras novas, ajuntei copioso apêndice
ao longo catálogo dos vícios que reinavam então na universidade
mais devassa da Europa.
Enfim, arrastado pela corrente impetuosa da libertinagem e da
cobiça, rebaixei-me ao ponto de adquirir as manhas mais vis dos
jogadores de profissão, praticando habitualmente essa ciência
desprezível como meio de aumentar a minha fortuna, já avultada, à
custa da dos meus camaradas. A enormidade do 4tentado,
incompatível com todos os sentimentos de honra e de dignidade, era
por isso mesmo a minha salvaguarda.
Qual dos meus camaradas, mesmo dentre os mais depravados,
teria ousado conceber tal suspeita, do alegre, do franco, do generoso
Willíam Wilson, do rapaz mais nobre e mais liberal de Oxford, aquele
cujas loucuras, diziam os seus parasitas, não eram senão expansões
da mocidade desenfreada, cujos erros não eram senão inimitáveis
caprichos, e cujos vícios tenebrosos não passavam de ligeiras
extravagâncias!
Deste modo alegre, tinha eu passado dois anos, quando chegou
à universidade um rapaz de nobreza recente, chamado Glendinning,
rico, diziam, como Herodes Attico, e que não punha muita dúvida em
gastar a sua fortuna. Tratei de travar conhecimento com ele, e,
vendo que era fraco de inteligência, assinalei-o desde logo para
vítima dos meus talentos.
Convidei-o a jogar muitas vezes, deixando-o ganhar a princípio,
somas consideráveis (conforme a manha habitual dos jogadores). Por
fim, o meu plano estando bem pensado, encontramo-nos (eu com a
intenção bem firme de fazer das minhas) em casa de um dos nossos
camaradas, M. Preston, igualmente conhecido de ambos, mas que,
devo dizê-lo, não tinha a menor tenção de fazer jogo em sua casa.
Para dar a tudo aquilo melhor aparência, trouxe comigo uma
sociedade de oito a dez rapazes, preparando as coisas de modo quê a
introdução das cartas parecesse perfeitamente acidental e que a
ideia do jogo partisse da própria vítima. Em resumo (para abreviar
assunto tão vil), não esqueci nenhuma das espertezas empregadas
em casos idênticos, espertezas tão estúpidas e tão sabidas que, custa
a crer, haja sempre pessoas assaz simples que se deixem enganar
por elas. O jogo meu favorito foi o "écarté".
A noite ia já em mais de meio, quando operei enfim de maneira a
ficar com Giendinning por único adversário. As outras pessoas,
interessadas pelas proporções grandiosas que ia tomando o nosso
combate, tinham largado as cartas e faziam galeria à roda de nós.
Glendinning baralhava, dava as cartas e jogava de modo
singularmente nervoso; mas, como eu o fizera beber copiosamente
durante a primeira parte da noite, imaginei que aquele estado era só
efeito da embriaguez. Em pouco tempo, devia-me soma considerável.
Então, depois de ter bebido mais um copo de Porto, fez exatamente o
que eu tinha previsto: quis dobrar a parada, já muito extravagante.
Com uma feliz afetação de resistência e só depois da minha recusa
reiterada lhe ter provocado palavras azedas e duras, que deram ao
meu consentimento a forma de vingança, cedi. O resultado foi o que
devia ser. A presa caíra perfeitamente no laço; em menos de uma
hora, a sua dívida tinha quadruplicado. Então, notei, com espanto, a
palidez terrível ,que substituíra, quase repentinamente, na fisionomia
do meu adversário, a vermelhidão do vinho. Digo com espanto,,
porque, segundo as informações cuidadosas que tomara sobre
Glendinning, imaginava-o prodigiosamente rico, e as somas que ele
tinha perdido até ali, se bem que realmente fortes, não podiam (pelo
menos assim o supunha eu) embaraçá-lo àquele ponto.
Imaginei, ainda, que toda a sua perturbação era produzida pelo
vinho e não por qualquer motivo de desinteresse; mas, unicamente
para salvaguardar perante os outros rapazes a reputação do meu
caráter, ia insistir peremptoriamente para acabar o jogo, quando
algumas palavras pronunciadas ao meu lado e uma exclamação de
Glendinning, exprimindo o mais completo desespero, me fizeram
compreender que o tinha totalmente arruinado. Ser-me-ia difícil
dizer a conduta que teria adotado em semelhante circunstância. A
situação deplorável da minha vitima sensibilizava e entristecia a
todos.
Durante alguns minutos de profundo silêncio, senti, a meu pesar,
ruborizarem-se-me as faces sob os olhos ardentes de repreensão que
me dirigiam os menos endurecidos da sociedade. Confessarei,
mesmo, que senti o coração aliviado dum peso intolerável à
interrupção extraordinária que se seguiu. De repente, abriram-se de
par em par as portas pesadas do aposento com uma impetuosidade
tão vigorosa, que toda, as velas se apagaram como por encanto. Mas,
antes de se extinguir, a luz deixou-nos ver alguém que entrava, u
homem proximamente da minha estatura, embuçado nu capote. Não
obstante, as trevas sendo agora completas, só o podíamos sentir no
meio de nós. Antes de alguém ter voltado a si do espanto excessivo
que produzira em todos aquela violência, ouvimos a voz do intruso:
— Meus senhores, - disse ele com voz muito baixa, mas distinta,
uma voz inolvidável, que me gelou até à medula dos ossos, - meus
senhores, não peço desculpa da minha conduta, porque, procedendo
assim, não fiz mais que cumprir um dever. Não conheceis decerto o
caráter da pessoa que acaba de ganhar no "écarté" uma soma
enorme a Lorde Glendinning. Vou, pois, propor-vos um meio rápido
de chegardes a esse importantíssimo conhecimento. Peço-vos,
examinai bem o forro do canhão da sua manga esquerda e algumas
cartas que achareis nas algibeiras assaz vastas do seu casaco.
O silêncio em que o escutavam era tão profundo, que teria
ouvido o ruído de um alfinete caindo ao chão. O desconhecido, mal
acabou de falar, partiu tão bruscamente como havia entrado. Quanto
a mim, não posso descrever, nem mesmo sei quais foram as minhas
impressões! Sentime agarrado por muitos braços, depois vieram
luzes; seguiu-se uma pesquisa na minha pessoa. No forro da manga,
acharam-me todas as figuras essenciais do "écarté" e, nas algibeiras
do casaco, certo número de baralhos de cartas exatamente iguais
aos que usávamos nas nossas reuniões, com a diferença de que as
minhas eram daquelas chamadas propriamente boleadas. As cartas
principais, sendo ligeiramente convexas do lado pequeno, e as
ordinárias imperceptivelmente convexas do lado grande. Graças a
esta disposição, o "ingênuo", que corta o baralho (como se faz
habitualmente) no sentido do cumprimento, corta, invariavelmente,
de forma a dar ao parceiro uma carta principal, enquanto que o
"esperto", cortando no sentido da largura, não dará à sua vítima nada
que possa levar-lhe vantagem.
Uma tempestade de indignação ter-me-ia feito sofrer menos que
o silêncio desdenhoso e os sorrisos sarcásticos que acolheram aquela
descoberta.
— Sr. Wilson, - disse o dono da casa, apanhando do chão uma
capa magnífica forrada de peles preciosas, - Sr. Wilson, isto é seu
(como o tempo estava frio, eu tinha efetivamente trazido uma capa,
que tirara ao entrar na sala do jogo); creio - acrescentou, mirando as
pregas da capa, com um sorriso amargo - creio que será escusado
procurar aqui mais provas da sua arte: bastam-nos as que temos.
Espero que compreenderá a necessidade de deixar Oxford; em todo
o caso, sairá imediatamente de minha casa.
Aviltado, humilhado até a lama, é provável que tivesse castigado
imediatamente aquela linguagem insultante: com alguma violência
pessoal, se a minha atenção não estivesse, naquele momento, toda
absorvida por um fato verdadeiramente pasmoso. A minha capa era
um traste riqussimo, forrada de peles esplêndidas, duma variedade e
dum preço extravagante (é inútil dizê-lo). O feitio era de fantasia,
inventado por mim, porque me ocupava muito de todas essas
futilidades luxuosas, levando o furor do dandismo até ao absurdo. Por
isso, quando M. Preston me entregou a capa, que apanhara do chão,
vi, com espanto vizinho do terror, que já trazia a minha no braço e
que aquela, até nos pormenores minuciosos, era perfeitamente
semelhante. Não perdi, contudo, a presença de espírito; pequei-a,
coloquei-a sobre a minha, sem que os outros dessem por isso, e sai
da sala com um olhar ameaçador. Na madrugada seguinte, deixei
precipitadamente Oxford e fugi para o continente, coberto de
vergonha e de terror.
Fugia em vão! O meu destino maldito perseguiu-me triunfante,
provando-me que o seu poder misterioso tinha apenas começado.
Mal pus os pés em Paris, tive logo uma prova da jurisdição de Wilson.
Decorreram anos sem tréguas para mim. Miserável! Em Roma, com
que desvelo importuno, com que ternura de espectro, veio interpor-
se entre mim e a minha ambição! E em Viena! E em Berlim! E em
Moscou! Aonde podia eu ir, que não achasse logo uma razão amarga
para o amaldiçoar do fundo do coração? Atacado por um pânico
indescritível, fugia diante da sua tirania como diante da peste. Fugi
até ao fim do mundo, mas fugi em vão!
E sempre, sempre interrogando secretamente: a alma, repetia
as minhas perguntas: Quem é? De onde vem?
Que quer? E analisava, então, com minucioso cuidado, as
formas, o método, as feições características da sua insolente
vigilância. Mas, nem nesse ponto achava nada que pudesse servir de
base a uma conjetura. Era uma coisa verdadeiramente notável, que
nos casos numerosos em que Wilson tinha recentemente,
atravessado o meu caminho, todos os planos derrotados por ele eram
loucuras que, se tivessem progredido, teriam fatalmente rematado
por uma desgraça. Triste justificação, na verdade, de uma autoridade
tão imperiosamente usurpada! Triste indenização dos direitos
naturais do livre arbítrio, tão teimosa e insolentemente denegados!
Havia muito tempo que o meu carrasco, posto que exerceu
sempre escrupulosamente e com destreza milagrosa a sua mania de
"toilette" idêntica à minha, se apresentava em todas as suas
intervenções, de maneira a não me mostrar o rosto. Quem quer que
fosse esse danado Wilson, por certo semelhante mistério era o
cúmulo da afetação e da toleima.
Podia, acaso, supor que no meu conselheiro de Eton, no
destruidor da minha honra em Oxford, naquele que tinha contrariado
a minha ambição em Roma, a minha vingança em Paris, os meus
amores em Nápoles e no Egito a minha cobiça, que nesse ente, meu
grande inimigo e meu gênio mau. eu não reconhecia o William Wilson
do colégio, o homônimo, o camarada, o rival temido e execrado da
casa Bransby? Era impossível! Mas, deixai-me chegar à terrível cena
que fechou o drama.
Até então, havia-me submetido covardemente ao seu domínio
imperioso. O profundo sentimento de respeito com que me habituara
a considerar o caráter elevado, a majestosa sabedoria, a
onipresença e onipotência aparentes de Wilson, misturando com não
sei quê de sensação e de terror, que inspiravam as outras feições da
sua natureza e certos privilégios, tinham-me incutido a ideia da
minha completa fraqueza e impotência, aconselhando-me,
humildemente, sem restrição, posto que cheia de tristeza e de
repugnância, submissão à sua arbitrária ditadura. Mas, ultimamente,
tinha-me abandonado de todo ao vinho, e a sua influência irritante
sobre o meu temperamento hereditário tornava-me cada vez mais
rebelde a toda qualidade de censura. Entrei a murmurar, a hesitar, a
resistir. Depois, pouco a pouco, comecei a sentir a inspiração de uma
esperança ardente. Por fim, alimentei, em segredo, no pensamento, a
resolução desesperada daquela escravidão.
Era em Roma, durante o carnaval de 18 ... ; achava-me num
baile de máscaras, no palácio do Duque Di Broglio, de Nápoles.
Nessa noite, tinha abusado do vinho ainda mais do que o costume, e a
atmosfera sufocante das salas cheias de gente irritava-me de modo
insuportável. A dificuldade de abrir caminho através da multidão não
contribuiu pouco para me exasperar, porque procurava com
ansiedade (não direi com que indigno fim) a jovem, a alegre e bela
que, numa confiança assaz imprudente, me havia confiado o segredo
do "costume" que ela devia trazer ao baile. Tendo-a avistado,
finalmente, ao longe, apressava-me a chegar até ela, quando senti
alguém que, ao de leve, me tocava o ombro, e depois o tom no meu
ouvido!
Voltei-me furioso para aquele que assim me interrompia e
agarrei-o violentamente pela gola. Trazia, já se vê, costume igual ao
meu; manto espanhol de veludo azul e espada suspensa à cintura por
um boldrié carmesim; a cara inteiramente coberta com uma máscara
de seda preta.
— Miserável! - exclamei, com a voz enrouquecida pela cólera,
que me aumentava a cada sílaba que proferia, - miserável! impostor!
Celerado não voltarás mais a perseguir-me, a atormentar-me! Vem
comigo ou mato-te aqui mesmo!
Dizendo aquelas palavras, abria caminho da sala do baile para
uma pequena antecâmara contígua, arrastando-o irresistivelmente
atrás de mim.
Apenas entrei, atirei com ele para longe, de encontro a uma
parede; depois, fechei a porta, com uma praga tremenda, e mandei-o
desembainhar a espada. Hesitou um segundo; por fim, suspirando
ligeiramente, pôs-se em guarda, com silêncio e tranquilidade
extraordinárias.
O combate não foi longo. Exasperado como estava, por ardentes
excitações de toda espécie, sentia no braço a energia e o poder de
um exército. Dentro em poucos segundos, levei-o contra a parede e
ali, tendo-o à discrição, cravei-lhe repetidas vezes a espada no peito,
com a ferocidade de um bruto.
Nesse momento, mexeram na fechadura da porta. Apressei-me
a prevenir alguma invasão e voltei imediatamente para junto do meu
adversário agonizante. Mas que linguagem humana pode traduzir o
espanto e o horror que se apoderaram de mim ao espetáculo que se
me deparou!
Durante o curto instante que me afastara, produzira-se nas
disposições locais do aposento uma mudança material.
No lugar onde me recordava de não ter visto nada, estava agora
um espelho enorme (no estado de perturbação em que me achava,
assim se me afigurou) e, como eu caminhasse para ele, cheio de
terror, a minha própria imagem, mas com a cara horrivelmente
pálida e toda salpicada de sangue, avançou para mim a passos lentos
e vacilantes.
Tal se me afigurava, digo, mas realmente não era assim. Era o
meu adversário, era Wilson moribundo, que se erguia diante de mim.
A sua máscara e o seu manto estavam no chão. Não havia um fio no
seu vestuário, nem uma linha em toda a sua figura (tão caracterizada
e tão singular) que não fosse meu, que não fosse minha; era o
absoluto na identidade!
Era Wilson, mas Wilson sem murmurar já as suas palavras!
Falando alto, e de modo que me pareceu que era a minha própria
voz, que dizia:

Venceste e eu sucumbo. Mas, doravante também estás morto,


morto para o mundo, para o céu e para a esperança! Em mim
existias; e, agora, olha para a minha morte, vê nesta imagem,
que é a tua, como te assassinaste a ti próprio!
O FANTASMA INEXPERIENTE
H.G. Wells

Meu pensamento volta-se, constantemente, para a derradeira


história que Clayton contou, relembrando-a em todos os seus
pormenores. Ele passara a maior parte do tempo no sofá, junto à
lareira, estando a seu lado Sanderson, fumando um daqueles
cachimbos especiais, que trazem seu nome gravado. Evans e Wish,
este o famoso e tão modesto ator, faziam parte do reduzido grupo.
Era um sábado de manhã, e havíamos chegado ao clube todos
juntos, exceto Clayton, que ali pernoitara, o que motivou esta
história. jogáramos golfe até ao escurecer e, depois de cear,
caíramos naquele estado de bem aventurança, quando se fica em
condições de ouvir qualquer fantasia que nos contem. E assim que
Clayton iniciou sua extraordinária narrativa, quisemos tachá-lo de
mentiroso. A princípio, julgamos que se tratasse, apenas, de uma de
suas anedotas reais, no que ele era mestre.
— Já sabem que passei a noite sozinho, aqui? interrogou ele,
depois de ter ficado muito tempo fitando as fagulhas que saiam das
brasas, reanimadas por Sanderson.
— Com os criados... - emendou Wish.
— Sim, mas que dormem na outra ala - retrucou Clayton, que,
antes de prosseguir, soltou mais algumas baforadas do charuto. E,
sem perder sua habitual fleuma, declarou, calmamente: — Apanhei
um fantasma.
— Um fantasma! - exclamou Sanderson. - E onde está ele?
Evans, que passara quatro semanas na América e era grande
admirador de Clayton, gritou com sua voz anasalada: — Você
agarrou mesmo um fantasma, Clayton? Extraordinário! Vamos,
conte, logo, como tal aconteceu!
Clayton pediu que fechássemos a porta e, olhando para mim, à
guisa de desculpa, disse: — Não quero chamar ninguém de
bisbilhoteiro, mas não desejo divulgar a história e assustar nossos
excelentes servidores. Os cantos escuros e os estranhos adornos da
arquitetura do prédio dão margem à imaginação... E o fantasma a
que me refiro, quero que saibam, era um fantasma incomum. E talvez
nunca mais volte...
— Mas... você não o prendeu? - perguntou Sanderson.
— Faltou-me ânimo para tanto - respondeu Clayton.
Enquanto nós desatamos a rir, Sanderson dava mostras de
surpresa e Clayton parecia perturbado.
— Parece mesmo singular, - disse, sorrindo contrafeito - mas a
verdade é que lidei realmente com um fantasma, tão certo quanto
estar aqui conversando com vocês. Nada de gracejos, sei bem o que
falo.
Sanderson mamava seu cachimbo, com mais vigor,
concentrando seus olhos congestionados em Clayton e, após expelir
uma espessa coluna de fumaça, resmungou algo a que Clayton não
prestou atenção.
— Nunca me ocorrera uma aventura tão singular. Os amigos já
conhecem minha descrença a esse respeito, mas, quando menos
pensava nisso, apanho um fantasma, num dos cantos do prédio.
Mergulhou de novo em reflexões e puxou do bolso outro
charuto.
— Conversou com ele? - perguntou Wish, curioso.
— Uma hora, mais ou menos.
— E que lhe contou? - indaguei, chegando mais perto dos
incrédulos.
— O coitado pareceu-me encabulado...
— Ele chorou? - perguntou outro.
Clayton suspirou, ao pensar nessa circunstância.
— Sim, coitadinho, chorava que dava dó.
— E onde o apanhou? - quis saber Evans, com seu sotaque
americano.
— Jamais poderia ter imaginado que um fantasma fosse uma
coisa tão lamentável, prosseguiu Clayton, ignorando a pergunta.
E, após essas palavras, deixou-nos de novo em suspenso,
fingindo que declarava em encontrar os fósforos e acendia, depois, o
charuto.
— Apenas, consegui aproveitar uma oportunidade disse, afinal,
como que respondendo à pergunta anterior.
E, como ninguém o interrompesse, prosseguiu:
— Posso afirmar que, mesmo sem o seu corpo, o caráter de uma
pessoa permanece invariável, embora constantemente nos olvidemos
disso. Indivíduos de vontade firme e forte dão espectros de firme e
forte vontade. A maioria desses fantasmas obsedados que andam por
aí deve ter uma ideia fixa qualquer, como qualquer maníaco, e se
demonstram mais obstinados que um burrico. O meu pobre fantasma,
porém, era diferente.
Levantou subitamente os olhos, de maneira estranha, e seu
olhar pesquisou todos os cantos do recinto.
— Afirmo-o com a minha melhor boa-fé, pois é a pura verdade.
Logo de início, percebi que se tratava de um débil mental. - Soltou
umas baforadas e continuou. - Agarrei-o no fim do longo corredor.
Ele me dava as costas e, por isso, eu o vi antes que me percebesse.
Certifiquei-me imediatamente de que era um espectro, tanto era
transparente e esbranquiçado. Através de seu tórax, eu distinguia o
reflexo dos vidros da janelinha. Pelo seu físico e atitudes, deduzi-lhe
a fraqueza. Ele não sabia, absolutamente, o que iria fazer.
Segurava um dos adornos da janela, com uma das mãos, e a
outra passava-a constantemente pela boca. Desta maneira...
— Qual seu aspecto?
— Muito magro. Seu pescoço parecia formar duas calhas, nas
costas, aqui e aqui.
Cabeça pequena, cabelos despenteados, orelhas disformes.
Ombros imperfeitos e mais estreitos que os quadris. Usava um
colarinho caído, casaco curto, calças remendadas, à altura dos
joelhos, e mais alguns rasgões, logo abaixo. Tal seu aspecto. Eu ia
subindo sossegadamente as escadas, sem levar luz, já que as velas
costumam ficar cá embaixo, e ali existe uma lâmpada. Ao subir, vi-lhe
os chinelos. Estaquei de súbito, ao notá-lo. . . e examinei-o. Não me
incutiu medo algum. Creio que, na maior parte de casos assim, o
indivíduo não se assusta tanto como se poderia supor. Somente fiquei
intrigado e surpreso.
— "Meu Deus!" exclamei, para mim mesmo. "Finalmente, vejo
um fantasma! E justamente eu, que nunca acreditei nisso!"
— Hum! - rosnou Wish.
— Ao chegar ao patamar, o fantasma deu pela minha presença.
Virou de novo a cabeça e dei com a cara de um jovem, nariz fino,
bigode ralo e um esboço de barbicha. Ficamos alguns instantes a
olhar um para outro. Olhava-me por cima do ombro. Afinal, pareceu
recordar-se de suas altas funções. Esticou-se, virou-se de completo,
espichou o rosto, estendeu a mão, no clássico estilo dos espectros, e
veio para meu lado. Deixou cair seu pequeno queixo e emitiu um
prolongado, mas fraco "Bu! No..." Como veem, nada de apavorante.
Eu havia ceado muito bem e esvaziado uma garrafa de champanha, e,
depois de ter ficado sozinho, tomara mais alguns copinhos de uísque,
por isso me encontrava mais firme que uma rocha e não mais
amedrontado do que se tivesse visto uma rã.
— Bu! - retribuí-lhe eu. - Deixe de ser bobo. Você não tem nada
que fazer aqui.
Notei que ele estremecia.
— Buuu! - repetiu.
— Bu! Vá para o diabo! Você é sócio cá do clube? Mexeu-se
algo, como que querendo sair do caminho, mas seu aspecto parecia
abatido.
— Não... não sou sócio do clube, - respondeu o espectro, ante a
insistente interrogação de meus olhos. - Sou um fantasma.
— Muito bem, mas isso não o autoriza a frequentar o Clube
Mermaid. Está procurando alguém por aqui?
Dito isto, acendi logo minha vela, para que ele não julgasse que
meu tremor era de medo e não por causa do uísque que eu ingerira.
Perguntei-lhe: — Que está fazendo aqui?
O espectro deixou pender os braços, parando de rosnar, e ali se
ficou, meio sem jeito, acabrunhado, nítida imagem de um fantasma
frouxo, inocente, sem vontade de ação.
— Estou dando uma voltinha... - respondeu, afinal.
— Seu lugar não é aqui, procure outras paragens.
— Eu sou um fantasma... - murmurou, como desculpa.
— Pode ser, mas aqui não é seu lugar. Este é um clube
particular, bastante respeitável.
Aqui, vêm, com frequência, pessoas com crianças, pajens, e, se
alguma delas o encontrar por aí, pode ficar louca de susto. Não
pensou ainda nisso?
— Não me havia ocorrido ainda essa hipótese, senhor.
— Pois devia ter pensado. Creio que não possui nenhum motivo
ponderável para vir aqui, pois não? Suponho que não morreu
assassinado nem sofreu morte violenta.
— Oh, não, meu senhor... mas, como esta casa é velha, possui
seus enfeites de madeira, julguei...
— O pretexto é demasiado pueril - interrompi-o, fitando-o firme.
- Foi um erro, sua vinda aqui - ajuntei, com amistosa superioridade.
Disfarcei, procurando fósforos nos bolsos, e olhei francamente
para ele.
— Sabe que faria eu, em seu lugar? Procuraria evaporar-me,
sumir daqui, antes do galo cantar.
Tais palavras deixaram-no perturbado.
— Na verdade, meu senhor...
— Eu me evaporaria - repeti, com insistência.
— Mas, então... eu não posso...
— Não pode, não?
— Não, porque me esqueci de algo. Tenho andado vagando por
aqui, desde a última meia-noite, escondendo-me nos armários dos
quartos desocupados... e já meio desorientado, tonto. Fiquei
desconcertado, pois nunca rondara, antes.
— Ficou desconcertado?
— Sim, senhor, não me saio nunca bem. Parece que olvidei
alguma coisa... e não consigo lembrar-me de quê...
— Essa circunstância impressionou-me bastante - afirmou
Clayton. - Ele olhava para mim, tão desanimado, que me deixou
incapaz de continuar mantendo aquele tom altivo e fanfarrão que
adotara.
— Isso é muito singular - disselhe.
Nesse instante, julguei ouvir rumor, no andar inferior.
— Vamos para meu quarto e conte-me tudo, porque, até agora,
nada compreendi . Convidei-o.
Procurei puxá-lo por um braço, mas, está claro, foi como se
tentasse segurar uma nuvem de fumaça. Penso que até me esquecera
o número do quarto. Assim, entrei em vários aposentos, antes de
descobrir o meu, e foi sorte estar ali sozinho, naquela parte do
prédio.
— Bem, agora, sente-se e conte-me sua história - disselhe,
sentando-me também. -
Pelo que vejo, meu amigo, meteu-se numa enrascada.
O fantasma declarou não desejar sentar-se e que preferia ficar
andando pelo quarto.
Não me opus e, dali a instantes, estávamos numa prosa
animada. Assim que me libertei dos vapores do uísque, comecei a ter
noção do caso absurdo, fantástico, em que me enredara. À minha
frente, se encontrava, meio transparente, o tradicional fantasma,
sem outro ruído a não ser o de sua voz sideral, e seu nervoso vaivém
pelo quarto, recoberto de tapetes. Através do seu corpo, eu podia
vislumbrar o reluzir dos candelabros de cobre, o resplendor dos
abajures e os quadros nas paredes, ao passo que ele me ia narrando
sua desditosa e breve odisséia. Sua feição não era lá muito honrada,
mas podem crer que falava a verdade, tanto era transparente.
— Como? - interrogou Wish, levantando-se de pronto.
— Que quer saber? - perguntou, por sua vez, Clayton.
— Porque era transparente... não podia deixar de dizer a
verdade?... Não estou entendendo nada - explicou Wish.
— Muito menos eu - ajuntou Clayton, com incrível seriedade. -
Contudo, era essa minhá impressão. Juro até que não se afastou por
nada da pura verdade. Contou-me como morrera - descera a um
porão londrino, para verificar um escapamento de gás, com uma vela
na mão. E, quando isso ocorreu, exercia as funções de professor,
numa escola particular de Londres.
— Pobre homem... - lamentei eu.
— Também fiquei com pena dele, e mais ele falava mais me
comovia. Não tinha objetivo algum na vida e ficara fora dela. Falou-
me, com desprezo, sobre seu pai, sua mãe, a respeito de seu
professor, na escola, e de todos quantos conhecera no mundo. Tinha
sido exageradamente impressionável e nervoso. Ninguém o havia
apreciado verdadeiramente e muito menos o compreenderam,
conforme contou. Penso que não chegou a ter nenhum amigo sincero
nem jamais obtivera êxito algum. Mantivera-se alheio das diversões
e fracassara em vários exames.
Alegou que esquecia tudo, quando entrava na sala de exames.
Estava noivo, naquela época, prestes a casar-se com outra pessoa
igualmente impressionável, quando o escapamento de gás pôs termo
aos seus amores.
— E onde foi você parar, depois da morte? - perguntei-lhe. -
Não será em...
A respeito disto, foi algo confuso. Parecia encontrar-se numa
espécie de estado impreciso, intermediário, num lugar reservado às
almas demasiado inexistentes para coisas tão positivas como o
pecado e a virtude. Não soube explicar direito. Era bastante egoísta
e indiferente para fornecer-me uma ideia clara quanto ao lugar ou
região em que se encontrava. Muito além das coisas, estivesse onde
estivesse, ele caíra, suponho, no meio de uma série de espíritos da
mesma natureza; fantasmas de jovens londrinos, fracos, com os
mesmos prenomes, entre os quais se devia falar muito em rondar.
Sim, sair e rondar.
Parece que, para esses fantasmas, o "rondar" fosse uma grande
aventura e a maior parte deles não parava de falar nisso. Instigado,
curioso, meu fantasma resolvera sair e... rondar.
— Ora, será isso possível? - perguntou, descrente, Wish.
— São as conclusões que tirei - respondeu Clayton,
modestamente. - É bem possível que eu também me encontrasse num
estado d'alma pouco favorável para discernir, mas essa impressão foi
ele que ma deu. Não cessava de andar de um lado para outro,
falando com voz fininha do seu mísero ego, porém sem nunca emitir
uma declaração nítida e firme, do princípio até ao fim. Era bem mais
minucioso, ingênuo e monótono do que se estivesse vivo e real. Se
estivesse vivo, aliás, não o teria deixado em meu quarto. Teria saído
dali a pontapés!
— Sim, - concordou Evans - há tipos dessa espécie.
— Mas que possuem tantas propriedades de ser fantasmas
como os demais.
O que lhe dava algum interesse era sua convicção de lhe ser
impossível desaparecer. A confusão que resultara de sua aventura
deprimira-o de maneira incrível. Disseram-lhe que aquilo seria um
mero passeio, e viera para cá esperando que assim fosse, mas
encontrou apenas mais um fracasso a ajuntar aos de seu longo rol.
Confessou-me, e acreditei, que jamais tentara coisa alguma, na vida,
que não houvesse resultado num desastre e que isso continuaria
acontecendo, pela eternidade afora. Caso tivesse encontrado
simpatias, talvez... Não terminou e ficou a olhar para mim. Disseme,
ainda, que, por mais incrível que pareça, ninguém lhe havia
dispensado nunca a dose de simpatia que eu lhe demonstrava.
Adivinhei logo aonde queria chegar e decidi libertar-me dele, no
mesmo instante. Pode ser que isso seja brutalidade de minha parte,
mas, ser o único amigo sincero, o confidente de um desses débeis
egoístas, seja ele homem ou fantasma, era algo superior à minha
resistência física. Levantei-me de supetão.
— Não se iluda - disselhe. - O melhor que lhe resta a fazer é ir-
se embora, sair imediatamente. Reúna suas forças e experimente.
— Não consigo... - murmurou.
— Experimente! - intimei-o.
E ele experimentou.
— Experimentou?! - exclamou Sanderson. - E de que modo?
— Com passes - respondeu Clayton.
— Com passes?
— Sim, uma série de complicados movimentos, executados com
as mãos. Fora assim que viera, e, assim, devia ir-se embora. Meu
Deus! Que trabalho lhe custou!
— Mas, com uma série de passes. .. - comecei.
— Meu amigo, - interrompeu Clayton, voltando-se para mim e
dando uma entonação especial às palavras - você quer que tudo seja
bem explicado. Sei, apenas que ele executou esses passes. Após
muitos esforços, conseguiu realizá-los perfeitamente, sumiu.
— Você prestou atenção nos passes? indagou Sanderson,
lentamente.
— Sim, - respondeu Clayton, que parecia refletir.
Foi uma coisa extraordinariamente inédita. Estávamos ali,
ambos, o vago e transparente fantasma e eu, naquele silencioso
quarto, naquela casa silente e vazia, numa silenciosa noite de sexta-
feira, na pequena cidade. Não se ouvia o menor ruído, exceto nossas
próprias vozes e um ligeiro arfar, que produzia o espectro ao
executar seus gestos.
Estávamos iluminados pela vela do quarto e por outra, que havia
no aparador. Nada mais.
Uma ou outra vez, as velas produziam, durante alguns
segundos, uma chama alta e esquia.
E, então, se passaram coisas estranhas.
— Não, não posso... - gemia o fantasma. - Nunca mais.
Sentou-se subitamente numa cadeira e começou a soluçar. Deus
meu! Que modo horrível de chorar!
— Reúna suas forças! - disselhe.
Tentei dar-lhe umas palmadinhas nas costas, porém minha
maldita mão atravessou por ele. Nesse instante, devem
compreender, já não me sentia tão... firme como quando chegara à
escada. Notava perfeitamente tudo quanto ocorria de incomum.
Recordo-me de que retirei a mão dele, com um leve estremecimento,
e que fui até à mesa do aparador.
— Reúna suas forças, - repeti - e experimente.
E, no intuito de animá-lo e auxiliá-lo, procurei experimentar,
também.
— Como! - exclamou Sanderson. - Os passes?
— Exatamente, os passes.
— Mas - disse eu, levado por uma ideia que não sabia traduzir.
— Muito interessante - comentou Sanderson, batendo a cinza do
cachimbo. - Quer dizer que esse fantasma lhe revelou...
— Sim, fez tudo quanto pode para revelar o segredo da maldita
barreira.
— Mas não o conseguiu, - interveio Wish, - nem poderia fazê-lo,
pois, do contrário, você também teria sumido.
— Essa é precisamente a questão - concordou Clayton, olhando,
pensativamente, para as chamas.
Houve um breve silêncio.
— E, afinal, conseguiu? - perguntou Sanderson.
— Finalmente, conseguiu-o. Envidei enormes esforços para que
não desanimasse, mas, enfim, conseguiu-o. .. e bastante
bruscamente. Estava já desesperado, tivemos uma cena, todavia, de
súbito se levantou e pediu-me que fizesse todos os movimentos
lentamente, para que os pudesse ver. Creio, confiou-me, que, se
pudesse ver bem, descobriria o que não estava certo. E tal ocorreu.
— Agora já sei! - exclamou enquanto me observava os
movimentos.
— Sabe o quê? - perguntei-lhe.
— Sim, já sei - repetiu, ajuntando, a seguir, mal-humorado. - Se
fica assim a olhar para mim, nada posso fazer. Na verdade, não
posso. E é por isso que até agora nada fiz. Sou de tal modo nervoso
que o senhor me desconcerta.
Entabulamos uma discussão. Certamente, eu queria ver como
fazia, mas ele era mais teimoso que um burro, e eu me senti, de
súbito, exausto, sem forças.
Virei-me para o espelho do armário próximo da cama.
Iniciou uma série de movimentos, muito rápidos. Procurei
acompanhá-lo pelo espelho, para ver qual deles tinha esquecido. Seus
braços e mãos rodopiavam, assim e assim, e depois veio,
precipitadamente, o gesto final, - o corpo erguido e os braços
abertos - e nesta atitude ficou. E, de repente, não mais o vi! já ali não
se encontrava! Rodei sobre meus calcanhares e olhei. Nada! Eu
estava só, diante da chama das velas, e com o espírito vacilante. Que
teria acontecido? Tudo teria sido um sonho?. . . E aí, num tom
absurdo de remate final, o relógio do patamar julgou chegado o
momento de dar UMA hora. Assim: Ping! E eu me encontrava tão
sério e tão atento quanto um juiz, sem vestígios de minha champanha
nem de meu uísque. Mas, presa de estranha sensação,
compreendem?
Horrivelmente estranha! Singular! Santo Deus!
Olhou um momento para a fumaça do charuto e acrescentou:
— E foi tudo quanto aconteceu.
— E, depois, foi deitar-se? - indagou Evans.
— Que mais poderia fazer?
Olhei Wish, bem dentro dos olhos. Queríamos gracejar, mas
havia algo na voz e nos gestos de Clayton que se opunha ao nosso
desejo.
— E os passes? - perguntou Sanderson.
— Creio que seria capaz de executá-los, neste momento.
— Oh! - exclamou Sanderson, puxando um canivete e raspando a
cinza do cachimbo. -
Por que não os faz, agora?
— Vou fazê-los já! - disse Clayton.
— Nada conseguirá - profetizou Evans.
— Mas, se conseguir. . . - observei.
— Ouça, eu preferiria que o não fizesse - disse Wish.
— Por quê? - interveio Evans.
— Eu preferiria que o não fizesse, repetiu Wish.
— Mas, se já aprendemos bem ... volveu Sanderson, enchendo
de fumo o cachimbo.
— De qualquer modo, eu preferiria que não o fizesse! insistiu
Wish.
Discutimos com Wish, o qual afirmava que, permitir a Clayton
executar tais gestos, era como que brincar com algo de sério, de
misterioso.
— Mas você não vai acreditar nisso, vai? - disse eu.
Wish lançou um olhar de esguelha a Clayton que, com os olhos
presos ao fogo, refletia sobre qualquer determinação de seu espírito.
— Eu creio... pelo menos, mais da metade, sim, acredito... -
respondeu Wish, em tom sério.
— Clayton, - falei - você é um inventor de histórias bom demais,
para nós todos. Quase tudo quanto você contou estava certo. Mas...
essa coisa de desaparecer... não me convenceu muito. Vamos, fale,
trata-e de um conto terrorífico?
Clayton ficou de pé, sem prestar atenção às minhas palavras,
pondo-se ao centro do tapete, bem na frente de mim. Por alguns
minutos, olhou pensativamente para os próprios pés e passou, depois,
a fitar intensamente a parede oposta, com expressão decidida.
Ergueu lentamente ambas as mãos à altura dos olhos e, assim,
começou...
Agora, muito bem, Sanderson era mação e pertencia à loja dos
Quatro Reis, que, com tanta pericia, se dedica ao estudo e
esclarecimento de todos os mistérios da maçonaria passada e
presente. E, entre os pesquisadores dessa loja, Sanderson não era de
maneira alguma dos mais insignificantes. Acompanhava os
movimentos de Clayton, com invulgar interesse, refletido em seus
olhos avermelhados.
— Não vai indo mal - observou, quando Clayton terminou. - Na
verdade, você consegue fazer isso de maneira assombrosa. Falta,
todavia, um pequeno detalhe.
— Já sei! - respondeu Clayton. - E penso que lhe poderei dizer
qual.
— Sim?
— Veja, este - disse Clayton, fazendo um movimento, que
consistia em retorcer as mãos e atirá-las para a frente.
— Exatamente.
— Quero que saibam que este era o que ele não conseguia
executar bem, mas, como VOCÊ ...
— Eu não entendo quase nada desse negócio e, principalmente,
como pode você inventá-lo - retrucou Sanderson - esse gesto, porém,
eu o conheço, está claro. - Refletiu um instante e continuou: - Em
resumo, trata-se de uma série de sinais relativos a certo ramo de
maçonaria esotérica ... Com certeza, você os conhece... pois, do
contrário … como?
Tornou a refletir mais ainda, e prosseguiu:
— Não penso que haja mal algum em revelar-me o sinal exato.
Além disso, se você já o conhece, melhor para si, mas, se o não
conhece, fica tudo na mesma.
— Eu nada sei, além do que me ensinou o pobre, naquela noite -
declarou Clayton.
— Então, tanto faz - murmurou Sanderson, pousando o
cachimbo, cuidadosamente, no modilhão. Em seguida, passou a
executar rápidos movimentos, com as mãos.
— É assim? - perguntou Clayton, imitando-o.
— Isso mesmo! - certificou Sanderson. voltando a pegar o
cachimbo.
— AGORA, - disse Clayton - sou capaz de executar a série
toda... bem.
Encontrava-se de pé, diante do fogo, que ia morrendo, e sorria
para nós. Contudo, pareceu-me haver certa hesitação naquele
sorriso.
— Vou começar... - preveniu-nos.
— Em seu lugar, eu não começaria, - observou Wish.
— Nada poderá acontecer - afirmou Evans. - A matéria é
indestrutível. Você não irá pensar que uma invenção dessas seja
capaz de lançar Clayton para o mundo das sombras.
Teria graça! Quanto a mim, Clayton, pode bracejar à vontade,
até que seus braços se separem dos punhos.
— Não concordo com isso - atalhou Wish, que se levantou e pôs
a mão no ombro de Clayton. - Saiba que quase me fez acreditar em
sua história, por isso, não quero que faça tal coisa.
— Valha-me Deus! - exclamei - Parece que Wish está assustado!
— Sim, estou - confessou Wish, com veemência real, ou
notavelmente fingida. - Penso que, se fizer tais gestos esotéricos,
acabará desaparecendo.
— Nada disso acontecerá! - exclamei. - Os homens somente
podem sair deste mundo por um caminho, e Clayton ainda tem mais
de trinta anos à sua frente. Você não julga que...
Wish interrompeu-me, todo agitado. Saiu de entre nossas
poltronas e, parando junto à mesa, gritou: — Clayton, você está
maluco!
Clayton voltou-se sorrindo, com um brilho humorístico no olhar.
— Wish tem razão - disse - e vocês; todos estão equivocados.
Desaparecerei. Levarei até ao fim estes passes, e, quando o
derradeiro movimento rasgar o ar ... pronto! Este tapete ficará
vazio, a sala ficará inundada de mudo assombro, e um cavalheiro de
noventa e cinco quilos, decentemente trajado, mergulhará em cheio
no mundo das sombras! Tenho certeza disso, e vocês também não
tardarão em tê-la. Desisto de continuar a discussão por mais tempo.
Que se faça a prova!
— NÃO! - intimou Wish, dando mais um passo à frente.
Mas estacou, e Clayton ergueu as mãos, mais uma vez, para
repetir os passes do fantasma.
Naquele instante, nos encontrávamos numa deplorável tensão
de espírito, principalmente por causa da atitude de Wish.
Permanecíamos imóveis, olhares fixos em Clayton, e eu, pelo menos,
experimentava uma estranha sensação de tensão e rigidez, como se,
desde a nuca aos músculos, meu corpo fosse de aço. Nesse ínterim,
com uma gravidade imperturbável e serena, Clayton se inclinava,
movimentava-se e agitava as mãos e braços, à nossa frente. Ao
aproximar-se o fim, nossa tensão nervosa se tornou insustentável e
percebi que rangiam os dentes. O derradeiro movimento, como já
disse, consistia em abrir completamente os braços, com o rosto
voltado para cima. Quando, finalmente, iniciou esse gesto, cheguei a
conter a respiração. Podia ser uma coisa ridícula, evidentemente,
mas vocês já irão conhecer a impressão que causam essas histórias
de fantasmas. E notem, ainda, que isso acontecia numa casa fora de
comum, escura e antiga. Chegaria, depois de tudo, a ... ?
Durante um estarrecedor momento, Clayton permaneceu
naquela posição, de braços abertos e cara virada para o alto, firme e
resplandecente, sob o fulgor da lâmpada. Todos nós nos quedamos
em suspenso durante aquele lapso de tempo, que nos pareceu um
século, e, depois, brotou de nossas gargantas um som que era, ao
mesmo tempo, um suspiro de infinito alivio e um NÃO! tranquilizador,
pois, que, visivelmente... Clayton...
não desaparecia. Tudo aquilo não passara de uma mentira.
Clayton nos contara uma história banal, infantil, e quase nos fizera
acreditar nela. Nada mais que isso! ... Mas, exatamente naquele
momento a fisionomia de Clayton se transformava.
Mudou-se completamente. Tal como se transforma uma casa
iluminada, quando se lhe apagam subitamente as luzes, assim se
transformou seu semblante. Seus olhos se vidraram bruscamente, o
sorriso se lhe gelou nos lábios, subitamente exangues, e ele
continuou de pé, imóvel. E assim se conservou, balançando-se
suavemente.
Mas, aquele momento valeu, também, por um século. E, pouco
depois, as cadeiras bailavam, objetos caíam ao chão, e todos nós nos
sentíamos em movimento. Os joelhos de Clayton deram a impressão
de que iam dobrar-se e ele tombou para a frente, ao passo que Evans
dava um pulo e o amparava nos braços...
Isso nos deixou atônitos. Durante o espaço de um minuto, creio
que nenhum de nós disse nada coerente. Estávamos vendo; no
entanto, custávamos a acreditar... Sai de minha estupefata
admiração para me encontrar ajoelhado junto ao corpo estendido.
Seu casaco e sua camisa estavam rasgados, e Sanderson lhe
auscultava o coração.
Esse gesto, tão simples, podia ter sido deixado para mais tarde,
para quando estivéssemos menos emocionados, pois não tínhamos
pressa alguma em compreender. O cadáver permaneceu ali cerca de
uma hora, mas ainda se conserva em minha memória, negro e
desconcertante como então. Clayton passara, efetivamente, para
aquele mundo que se encontra tão perto, e, ao mesmo tempo, tão
distante de nós. Clayton fora para lá, realmente, pelo único caminho
que pode seguir um mortal. Mas, que para lá seguiu unicamente
graças aos conjuros daquele inexperiente fantasma ou
repentinamente atacado de apoplexia, no decorrer de uma história
banal, - como o médico-legista nos deu a entender - é o que não posso
precisar. De qualquer maneira, trata-se de um dos muitos enigmas
que hão de permanecer sem explicação até que estejamos em
condições de compreender todas as coisas misteriosas que nos
cercam. Tudo quanto posso garantir, porém, é que, no próprio
momento, no instante exato em que Clayton acabava de executar
aqueles passes esotéricos, transfigurou-se, cambaleou e tombou no
chão, bem diante de nós... morto!
A MÃO DO MACACO
W W Jacobs

Lá fora, a noite era fria e úmida, mas, na pequena sala de estar


da Vila Lakesnam, as gelosias estavam cerradas e o fogo brilhava
alegremente. Pai e filho estavam jogando xadrez, e o primeiro, que
possuía ideias sobre jogo, envolvendo uma mudança radical de tática,
punha o rei em tão desesperados e desnecessários perigos que
provocou comentários até da velha senhora de cabelos brancos, que
estava fazendo, placidamente, crochê perto do fogo.
— Escuta esse vento! - disse o Senhor White, que, tendo notado
um erro fatal quando já era tarde demais, desejava evitar, com
habilidade, que o filho o notasse também.
— Estou escutando - disse o outro, observando atentamente o
tabuleiro, ao mesmo tempo que estendia a mão. Xeque!
— Estava achando muito difícil que ele viesse esta noite - disse o
pai, com a mão erguida sobre o tabuleiro.
— Matei - prosseguiu o filho.
— Isso é o que tem de pior, viver assim tão afastado! - vociferou
o Senhor White, com súbita e inesperada violência; - De todos os
lugares idiotas, lamacentos e fora de mão para se morar, este é o
pior. O caminho é um atoleiro e, a estrada, um rio. Não sei o que
essa gente pensa. Acho que, porque somente duas casas da estrada
estão alugadas, entendem que não tem importância.
— Não te importes, querido - disselhe a esposa,
conciliatoriamente; - talvez ganhes a próxima partida.
O Senhor White ergueu bruscamente a vista, mesmo em tempo
de interceptar um olhar de compreensão, trocado entre mãe e filho.
As palavras morreram-lhe nos lábios, e escondeu um sorriso
contrafeito, na barba rala, grisalha.
— Aí está ele! - exclamou Herbert White, ao ouvir o portão
bater com estrondo e pesados passos, que vinham em direção à
porta.
O velho levantou-se com solicitude hospitaleira, e, enquanto
abria a porta, puderam ouvi-lo lastimando-se do tempo, com o recém-
chegado. Este também se lastimou, de maneira que a Senhora White
disse: "Chut! Chut!" e tossiu de leve, quando o marido entrou no
aposento, seguido por um homem alto e corpulento, de olhos
salientes e faces rubicundas.
— Sargento-major Morris - disse, apresentando-o.
O major trocou apertos de mão, e, tomando a cadeira oferecida
junto ao fogo, observou, com satisfação, que o anfitrião trazia uísque
e copos e punha uma pequena chaleira de cobre no fogo.
Ao terceiro copo, seus olhos ficaram mais brilhantes e começou
a falar, enquanto o pequeno círculo da família olhava, com agudo
interesse, aquele visitante de terras longínquas, que encostava os
ombros robustos no espaldar da cadeira, falando de cenas estranhas
e feitos denodados, de guerras e pestes e de povos exóticos.
— Vinte e um anos disto - disse o Senhor White, acenando, com
a cabeça, para a esposa e o filho. - Quando partiu, era um belo moço,
no armazém. Agora, olhem para ele.
— Não parece ter-se dado muito mal - observou a Senhora
White delicadamente.
— Eu gostaria de ir à Índia, também, - disse o velho cavalheiro -
só para ver como aquilo é, sabem?
— Foi melhor ficar por aqui mesmo - retrucou o major,
abanando a cabeça. Pousou o copo vazio e, suspirando de leve,
sacudiu-a outra vez.
— Gostaria de ver aqueles velhos templos, e faquires, e
pelotiqueiros - insistiu o velho.
— O que era que ia começar a contar-me no outro dia, a
respeito de uma mão de macaco, ou coisa que o valha, Morris?
— Nada - respondeu o soldado, muito depressa. -Pelo menos,
nada que valha a pena ouvir-se.
— Mão de macaco? - indagou a Senhora White, com
curiosidade.
— Bem, apenas o que se poderia chamar magia, talvez -
respondeu o major, de maneira vaga.
Seus três ouvintes curvaram-se para a frente, interessados. O
visitante, alheadamente, levou o copo vazio aos lábios e depois
tornou a pousá-lo. O anfitrião encheu-lho de novo.
— À simples vista - disse o major, remexendo no bolso - é
apenas uma pequena mão comum, seca e mumificada.
Tirou qualquer coisa do bolso e exibiu-a. A Senhora White
recuou, com uma careta, mas o filho, pegando no objeto, examinou-o
com curiosidade.
— E que é que há de especial nela? - perguntou o Senhor White,
tomando-a das mãos do filho e pousando-a sobre a mesa, depois de
examiná-la.
— Possui um encantamento, que lhe foi posto por um velho
faquir - explicou o major - um homem muito velho. Queria mostrar
que o destino segue a vida dos homens e que aqueles que interferem
com ele o fazem para seu próprio mal. Pôs-lhe um encantamento,
para que três homens distintos pudessem satisfazer, cada um, três
desejos.
Suas maneiras eram tão impressionantes que os ouvintes tinham
a consciência de que seus risos alegres soavam um pouco falsos.
— Bem, e por que não formula três desejos, senhor? - perguntou
Herbert White, inteligentemente.
O soldado olhou-se, da maneira que um homem de meia-idade
olha para a mocidade presunçosa.
— Já formulei. . . - disse, devagar, e o seu rosto corado
empalideceu.
— E obteve, realmente, que esses três desejos se realizassem? -
perguntou o Senhor White.
— Obtive - respondeu o major, e o copo tilintou. de encontro aos
seus dentes brancos.
— E alguém mais já desejou?
— O primeiro homem também satisfez seus três desejos, sim. . .
- foi a resposta. - Não sei quais foram os dois primeiros, mas o
terceiro foi a morte. Foi assim que obtive a mão.
Seu tom era tão grave que um silêncio caiu sobre o grupo.
— Se já obteve os seus três desejos, não lhe serve para mais
nada; então, Morris, - disse o velho, por fim, para que a conserva?
O soldado abanou a cabeça.
— Fantasia, suponho - disse, devagar. - Tive uma vaga ideia de
vendê-la, mas não creio que o faça. já causou infortúnios demais.
Além disso, ninguém a compraria. Alguns acham que é uma história
fantástica, e os que acreditam alguma coisa dela, querem
experimentar primeiro e pagar-me depois.
— Se pudesse formular outros três desejos, perguntou o velho,
fitando-o atentamente fá-lo-ia?
— Não sei, - respondeu o outro não sei.
Pegou na mão, e, balançando-a entre o indicador e o polegar,
jogou-a de súbito no fogo. White, com um pequeno grito, curvou-se e
tirou-a.
— É melhor que a deixe queimar-se - sentenciou o soldado,
solenemente.
— Se não a quer, Morris, - pediu o velho - dê-ma.
— Não farei isso - respondeu o amigo, com rabugice. Atirei-a ao
fogo. Se a quiser guardar, não me censure pelo que possa acontecer.
Jogue-a no fogo de novo, como um homem de juizo.
O outro abanou a cabeça e examinou atentamente sua nova
aquisição.
— Como se faz? - perguntou.
— Segura-se levantada, com a mão direita, e faz-se o pedido em
voz alta - disse o major - Mas, previno-o... contra as consequências.
— Parece coisa das Mil e Uma Noites - exclamou a Senhora
White, enquanto se levantava e começava a preparar tudo para a
ceia. - Não achas que poderias desejar quatro mãos para mim?
O marido tirou o talismã do bolso e, então, os três desataram a
rir, enquanto o major, com um ar de susto no rosto, o segurava pelo
braço.
Se quer formular um pedido, - disselhe, severamente - faça-o de
maneira inteligente, O Senhor White deixou cair de novo o talismã no
bolso, e, chegando as cadeiras, conduziu o amigo à mesa. Com o
entretenimento da ceia, o objeto foi em parte esquecido, e, depois, os
três ficaram sentados, escutando, atentos, uma segunda série das
aventuras do soldado da índia.
— Se a história a respeito da mão do macaco não for mais
verdadeira do que as outras que ele nos esteve contando - disse
Herbert, quando a porta se fechou às costas do hóspede, apenas em
tempo para este apanhar o último trem - não conseguiremos grande
coisa com ela.
— Deste-lhe alguma coisa por ela, meu velho? - perguntou a
Senhora White, olhando para o marido, com atenção.
— Uma bagatela - respondeu ele, corando de leve. - Não queria
aceitar, mas obriguei-o.
E insistiu de novo comigo para que a jogasse fora.
— Não faça isso! - exclamou Herbert, com pretenso horror. -
Ora essa! Vamos ficar ricos, famosos e felizes. Deseje ser imperador,
papai, para começar; depois, não poderá ser dominado pela esposa.
Correu em volta da mesa, perseguido pela indignada Senhora
White, armada de uma vassoura.
O Senhor White tirou a mão de macaco do bolso e olhou para
ela, indeciso.
— Não sei o que hei de desejar, esta é a verdade... disse,
lentamente. - Parece-me que tenho tudo o que quero.
— Se liquidasse a hipoteca da casa, seria completamente feliz,
não é verdade? sugeriu Herbert, pousando dou-lhe a mão no ombro.
Pois bem, deseje duzentas libras, então; é justamente o que falta.
O pai, sorrindo, meio envergonhado da própria credulidade,
ergueu o talismã, enquanto o filho, com ar solene, que um piscar de
olhos à mãe desmentia, sentava-se ao piano e fazia soar alguns
acordes majestosos.
— Desejo ter duzentas libras - pediu o velho, em voz alta.
Uma bela ressonância do piano saudou aquelas palavras,
interrompida por um grito assustado do velho. O filho e a esposa
correram para ele.
— Mexeu-se!... - exclamou ele, com um olhar de receio para o
objeto que jazia no chão. - Quando formulei o desejo, contraiu-se-me
na mão qual uma cobra.
— Bem, não vejo o dinheiro... e aposto que nunca o verei
atalhou o moço.
— Deve ter sido impressão tua, meu velho - disse a esposa,
olhando para ele com ansiedade.
O marido abanou a cabeça.
— Não importa, porém. Não aconteceu nada de mau, mas levei
um choque, assim mesmo.
Sentaram-se novamente, junto ao fogo, enquanto os dois homens
acabavam de fumar seus cachimbos. Lá fora, o vento estava mais
forte do que nunca, e o velho teve um sobressalto nervoso ao som de
uma porta batendo no primeiro andar. Um silêncio insólito e
deprimente pesou sobre os três, e prolongou-se até que o casal de
velhos se levantou para recolher-se.
— Espero que encontre o dinheiro amarrado em um grande
maço, no meio da cama, - gracejou Herbert, ao curvar-se para dizer-
lhes boa noite - e qualquer coisa terrível agachada em cima do
quarda-roupa, espiando-o, enquanto o senhor se apossa da fortuna
mal ganha.
Na manhã seguinte, na claridade do sol de inverno iluminando a
mesa do café, Herbert riu-se do susto dos pais. Havia um ar de
saudável banalidade, no aposento, que faltava na noite anterior, e a
pequena mão de macaco, suja e enrugada, estava pousada sobre o
aparador, com um pouco caso que não demonstrava grande fé nas
suas virtudes.
— Suponho que todos os soldados são a mesma coisa - disse a
Senhora White. - Que ideia, a nossa, de dar ouvidos a tais
contra,sensos! Como poderiam realizar-se simples desejos, hoje em
dia? E, se pudessem, como haveriam de fazer-te mal duzentas libras,
meu velho?
— Podiam cair-lhe do céu na cabeça - chasqueou o frívolo
Herbert.
— Morris contou que as coisas aconteciam tão naturalmente -
disse o pai - que se poderia, querendo, atribuí-las a mera
coincidência.
— Bem, não vá gastar o dinheiro todo antes que eu esteja de
volta - recomendou Herbert, levantando-se da mesa. - Receio que se
transforme em um mesquinho avarento e que tenhamos de
desconhecê-lo.
A mãe riu-se, e, acompanhando-o até a porta, observou-o
enquanto seguia pela estrada abaixo, e depois, voltando à mesa do
café, divertiu-se muito às custas da credulidade do marido. O que não
a impediu de precipitar-se para a porta, quando o carteiro bateu, e
nem tampouco de resmungar qualquer coisa sobre majores
reformados, de hábitos biliosos, quando verificou que o correio lhe
trazia apenas uma conta do alfaiate.
— Herbert vai dizer mais algumas pilhérias, espero, quando
voltar - disse ela, quando se sentavam para jantar.
— Imagino que sim, - concordou o Senhor White, mas, servindo-
se de cerveja, seja como for, aquela coisa mexeu-se na minha mão;
isso eu posso jurar.
— Pensaste que se moveu - observou a velha senhora,
meigamente.
— Digo que se mexeu! - replicou o outro. - Não resta a menor
dúvida. Eu tinha... que foi?
A esposa não respondeu. Estava observando os misteriosos
movimentos de um homem, lá fora, que, espreitando de maneira
indecisa para a casa, parecia estar tentando resolver-se a entrar.
Em conexão mental com as duzentas libras, notou que o estranho
estava bem vestido e usava uma cartola de seda, brilhante e nova.
Três vezes parou ao portão, mas, depois, se afastou de novo. Da
quarta vez, parou com a mão pousada nele, e, com súbita resolução,
abriu-o e caminhou em direção à casa. A Senhora White, no mesmo
instante, levou as mãos às costas e, desatando apressadamente os
cordões do avental, colocou aquela útil peça de roupa sob a almofada
da sua cadeira.
Trouxe o estranho, que parecia pouco à vontade, para dentro do
aposento. Ele olhava furtivamente para a Senhora White, e escutava,
com ar preocupado, enquanto a velha senhora pedia desculpas pela
aparência da sala, e pelo sobretudo do marido, um agasalho que,
geralmente, ele reservava para o jardim. Ela esperou, tão
pacientemente quanto o seu sexo o permitia, que o homem
desembuchasse o que tinha para dizer, mas, a princípio, ele
conservou-se num silêncio embaraçado.
— Pediram-me... para vir aqui - disse, por fim, e curvou-se para
tirar um fiapo de algodão das calças. Venho de parte de Naw &
Naggins.
A velha senhora sobressaltou-se.
— Que foi? - perguntou, com a respiração alterada. Aconteceu
alguma coisa a Herbert?
Que é? Que é? O marido interpôs-se.
— Vamos, vamos, minha velha - disse, apressadamente. - Senta-
te, e não tires conclusões antecipadas. Não é portador de más
notícias, estou certo, senhor - e observava o outro atentamente.
— Sinto muito. . . - começou o visitante.
— Está ferido? - perguntou a mãe.
O visitante curvou-se, confirmando.
— Gravemente ferido, mas já não sofre coisa alguma.
— Oh! graças a Deust - exclamou a velha senhora, juntando as
mãos. - Graças a Deus, por isso. Graças...
Interrompeu-se de súbito, ao perceber o sinistro significado da
afirmativa do outro e viu a terrível confirmação dos seus receios na
cara compungida que ele fez. Suspendeu a respiração, e voltando-se
para o marido, menos vivo em compreender do que ela, pousou a
mão trêmula na dele.
Houve um longo silêncio.
— Foi colhido por uma máquina, disse o visitante por fim, em
voz baixa.
— Colhido por uma máquina repetiu o Senhor White, de maneira
vaga.
— Sim.
Ficou sentado, olhando confusamente pela janela; e, tomando a
mão da esposa entre as suas, apertou-a como costumava fazer nos
velhos tempos em que se namoravam, quase quarenta anos atrás.
— Era o único que nos restava - disse, voltando-se gentilmente
para o visitante. - É duro.
O outro tossiu, e, levantando-se, caminhou lentamente até à
janela.
— A firma encarregou-me de transmitir-lhes a sua sincera
simpatia pela grande perda que sofreram - disse, sem voltar a olhar.
- Peço-lhes para compreenderem que sou apenas um empregado e
que estou obedecendo a ordens recebidas.
Não houve resposta; a face da anciã estava branca, os olhos
vítreos, a respiração mal audível; no rosto do marido, havia uma
expressão que devia ser semelhante à do seu amigo major ao entrar
pela primeira vez em ação.
— Devo-lhe dizer-lhes que Naw & Naggins negam qualquer
responsabilidade - continuou o outro. - Não admitem qualquer
obrigação, mas, em consideração aos serviços prestados por seu
filho, desejam oferecer-lhes certa importância em dinheiro, a título
de compensação.
O Senhor White deixou cair a mão da esposa, e, pondo-se em pé,
fitou o visitante com um olhar horrorizado. Seus lábios secos
balbuciaram a palavra:
— Quanto?
— Duzentas libras - foi a resposta.
Inconsciente do grito da esposa, o ancião sorriu debilmente,
estendeu as mãos feito um homem cego, e caiu, qual um farrapo,
inerte, no assoalho.
No vasto cemitério novo, a umas duas milhas de distância, os
anciãos enterraram o morto querido e voltaram para a casa, agora
ímersa em sombras e silêncio. Acontecera tudo tão rapidamente que,
a princípio, mal podiam compreendê-lo, e tinham ficado em um
estado de expectativa, como se alguma coisa mais devesse acontecer
- alguma coisa que aliviasse aquela carga demasiado pesada para os
seus velhos corações suportarem. Mas os dias se passaram. e a cruel
expectativa cedeu lugar à resignação - a resignação irremediável dos
velhos, às vezes erroneamente chamada apatia. Às vezes, mal
trocavam uma palavra, porque agora não tinham sobre que falar, e
seu dias eram longos e enfadonhos.
Foi cerca de uma semana depois daquilo que o ancião
acordando de súbito, uma noite, estendeu a mão e verificou que se
achava sozinho na cama. O quarto estava em trevas e vinha da janela
um som de soluços abafados. Sentou-se na cama e escutou.
— Mais frio estará sentindo meu filho - respondeu a anciã, e
soluçou mais alto.
O som dos soluços morreu nos ouvidos dele. A cama estava
quente e, seus olhos, pesados de sono. Dormitou um pouco, agitado, e
depois adormeceu, até que um súbito grito selvagem da esposa o
acordou em sobressalto.
— A mão do macaco! - gritava ela, selvagemente. A mão do
macaco!
Ele despertou, alarmado.
— Onde? Onde está? Que foi que aconteceu?
Ela veio cambaleando pelo quarto, em direção a ele.
— Quero-a - disse, calmamente. - Tu não a destruiste?
— Está na sala, na prateleira - respondeu ele, muito admirado. -
Por quê?
Ela chorava e ria-se ao mesmo tempo e, curvando-se, beijou-o
na face.
— Só agora me lembrei disso - disse, histericamente. - Por que
não me lembrei antes?
Por que não te lembraste tu?
— Lembrar de quê?
— Dos outros dois desejos - respondeu ela, rapidamente. - Só
formulamos um.
— E não foi bastante? - perguntou ele, com vio-léncia.
— Não! - exclamou ela, triunfalmente. - Formularemos mais um.
Vai lá embaixo. traze-a depressa, e manifesta o desejo que teu filho
esteja vivo de novo.
O homem sentou-se na cama e afastou as cobertas de sobre os
membros trêmulos.
— Santo Deus, estás louca! - exclamou, aterrado.
— Vai buscá-la, - insistiu ela. - Vai buscá-la e pede. Oh, meu
filho, meu filho!
O marido riscou um fósforo e acendeu a vela.
— Volta para a cama - disse, irresolutamente. -Não sabes o que
estás dizendo.
— Obtivemos a realização do primeiro desejo, - disse a anciã,
com fervor; - por que não havemos de obter o segundo?
— Uma coincidência... gaguejou o ancião.
— Vai buscá-la e pede, gritou a anciã, arrastando-o para a
porta.
Ele desceu, no escuro, tateou o caminho para a sala e depois
para o aparador. O talismã estava no seu lugar, e um horrível medo
de que o desejo não formulado trouxesse o filho mutilado à sua
presença, antes que ele pudesse fugir do aposento, apoderou-se do
seu espírito. Susteve a respiração, quando viu que perdera a direção
da porta. Com a testa úmida de suor, encontrou o caminho em volta
da mesa, e foi-se arrastando, ao longo da parede, no estreito
corredor, com aquela coisa nojenta na mão.
Até o rosto da esposa pareceu-lhe mudado, quando entrou no
quarto. Estava branco e expectante, e, para seu receio, parecia ter
um ar sobrenatural. Teve medo dela.
— Pede! - gritou ela, em voz forte.
— É uma tolice inútil - esquivou-se ele.
— Pede! - repetiu a esposa. E ergueu a mão. - Quero meu filho
vivo de novo.
O talismã caiu no assoalho e o velho fitou-o, estremecendo.
Depois, deixou cair-se, tremendo, em uma cadeira, enquanto a
esposa, com os olhos ardendo, se dirigia à janela e levantava a
gelosia.
Ficou sentado até sentir-se enregelado de frio, olhando de vez
em quando para a figura da anciã, espreitando para fora pela janela.
O coto da vela, que ardera até abaixo do anel do castiçal de
porcelana, lançava sombras oscilantes sobre o teto e as paredes, até
que, com uma palpitação mais forte do que as outras, extinguiu-se. O
ancião, com indizível sensação de alívio pelo fracasso do talismã,
voltou à cama, e, um minuto ou dois após, a anciã veio, silenciosa e
apática, para junto dele.
Nenhum dos dois falou e ambos ficaram deitados
silenciosamente, escutando o tique-taque do relógio. Um degrau da
escada estalou e um camundongo assustado correu ruidosamente por
dentro da parede. A escuridão era opressiva; depois de ficar algum
tempo deitado, reunindo coragem, o marido pegou na caixa de
fósforos e, riscando um, desceu as escadas para buscar uma vela.
No último degrau, o fósforo apagou-se, e ele parou para
acender outro, mas, naquele momento, uma batida tão leve e furtiva
que mal era audível, soou na porta da rua.
Os fósforos caíram-lhe das mãos. Ficou imóvel, com a
respiração suspensa, até que a batida se repetiu. Então, voltou-se e
correu velozmente até o quarto, fechando a porta atrás de si. Uma
terceira batida ressoando pela casa.
— Que foi isto? - exclamou a anciã, sobressaltando-se.
— Um rato - disse o ancião, em voz trêmula. - Um rato. Passou
por mim, nas escadas.
A esposa sentou-se na cama, escutando. Uma batida forte
ressoou pela casa.
— É Herbert! - gritou ela. - É Herbert!
Correu para a porta, mas o marido colocou-se diante dela e,
agarrando-a pelo braço, segurou-a com força.
— Que vais fazer? - sussurrou, asperamente.
— É meu filho, é Herbert! - gritou ela, lutando mecanicamente. -
Tinha-me esquecido de que eram duas milhas de caminho. Por que
me seguras? Solta-me! Tenho de abrir a porta.
— Pelo amor de Deus, não o deixes entrar! - disse o ancião,
tremendo.
— Tens medo do teu próprio, filho! - exclamou ela, debatendo-
se. - Deixa-me ir! Já vou, Herbert, já vou!
Houve outra batida, e mais outra. A anciã, num súbito arranco,
libertou-se a saiu correndo do quarto. O marido seguiu-a até ao
patamar e chamou-a insistentemente, enquanto ela corria escadas
abaixo. Ouvia a corrente de segurança ser retirada e a lingueta da
chave abrir-se, rangendo. Depois, a voz da anciã, áspera e
palpitante.
— O ferrolho! - gritou, alto. - Desce, não posso atingi-lo!
Mas o marido estava de gatas, arrastando-se ferozmente pelo
chão, à procura da mão do macaco. Se pudesse ao menos encontrá-
la, antes que aquela horrível coisa lá de fora entrasse! Uma
verdadeira saraivada de batidas repercutiu pela casa, e ele ouviu o
arrastar de uma cadeira, que a esposa estava colocando junto da
porta. Ouviu, ainda, o ruído do ferrolho ao ser aberto lentamente; no
mesmo instante, achou a mão do macaco, e, freneticamente, bradou
seu terceiro e último desejo.
As batidas pararam de súbito, embora o seu eco inundasse,
ainda, a casa. Ouviu a cadeira sendo arrastada para trás e a porta
abrir-se. Um vento frio encanou pelo vão das escadas, mas o longo e
sonoroso lamento de decepção e agonia da esposa deu-lhe coragem
para descer até onde ela estava, e abriu a porta por trás dela. O
lampião, que piscava em frente, mostrou-lhe a estrada, calma e
deserta.
A DONZELA E O FANTASMA
Oscar Wilde

I
Quando mister Hiram B. Otis, o Embaixador americano,
adquiriu o Parque Canterville, não faltou gente a adverti-lo de que
cometia uma loucura, porque na habitação apareciam,
indubitavelmente, almas do outro mundo. Na verdade, o próprio
lorde Canterville, cujo caracter era dos mais exigentes em
escrúpulos, supusera do seu dever sublinhar o facto, chegado o
momento de discutirem as condições do negócio.
- Até nós mesmos tínhamos já muito pouca vontade de residir
aqui - disse lorde Canterville - desde que a minha tia-avó, a duquesa
donatária de Bolton, desmaiou de terror (ela nunca pôde
restabelecer-se desse abalo moral) quando as mãos de um esqueleto
lhe assentaram nas espáduas, numa ocasião em que se vestia para o
jantar. Devo igualmente dizer-lhe, mr. Otis, que o fantasma tem sido
visto por muitos membros ainda vivos da minha família, assim como
pelo cura da paróquia, o Reverendo Augustus Dampier, agregado do
King's College, em Cambridge. Depois do desgraçado acidente
sucedido à duquesa nenhum dos nossos criados novos quis manter-se
ao serviço, e lady Canterville raramente conseguia conciliar o sono
durante a noite por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor
e da biblioteca.
- Lorde Canterville, - respondeu o Embaixador - eu sou
comprador da propriedade e do fantasma pelo valor que lhes seja
atribuído. Venho de um país moderno em que se tem tudo quanto o
dinheiro pode obter. Não é certo que a nossa atrevida mocidade
revoluciona o Velho Mundo? Não vos arrebatam as melhores
actrizes e prime donne? Se existisse um fantasma na Europa, dentro
em pouco o teríamos lá, estou convicto disso; ele seria exposto num
dos nossos museus ou exibido nas ruas.
- Pois muito receio que o fantasma ainda, de facto, exista
- disse, sorrindo, lorde Canterville. - Pode ser que haja resistido
às propostas dos vossos arrojados empresários. É bem conhecido
desde há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca
deixou de fazer a sua aparição em vésperas do falecimento de cada
pessoa da nossa família.
- Oh! em todas as famílias o médico faz exactamente o mesmo,
lorde Canterville. Vamos, fantasmas, é coisa que não há. Não creio
que as leis da natureza abram excepção a favor da aristocracia
inglesa.
- Os senhores, na América, são, não há dúvida, muito naturais -
comentou lorde Canterville, sem bem compreender a última
observação de mr. Otis - e, se lhe é indiferente ter um fantasma de
portas a dentro, estamos entendidos.
Passadas umas semanas a transacção estava concluída, e, já
quase no termo da época, o Embaixador e a família foram instalar-se
no Parque Canterville.
Mistress Otis, em solteira, miss Lucrécia R. Tappan, de West 53
rd. Street, havia sido célebre em Nova-Iorque pela sua beleza. Era
agora mulher de meia idade, muito agradável, com belos olhos e
soberbo perfil.
Muitas americanas, ao abandonarem o país natal, dão-se ares
de mulheres atingidas por um mal incurável, imaginando ser essa
uma das formas da subtileza europeia; mas mrs. Otis não caíra nunca
em semelhante erro.
Desfrutava uma compleição invejável e possuía maravilhoso
equilíbrio animal. Em boa verdade e sob numerosos aspectos, era
muito inglesa e oferecia excelente exemplo de que a Inglaterra e a
América não têm hoje nada que as distinga uma da outra, salvo, bem
entendido, a linguagem.
O filho primogénito, a quem, num impulso de patriotismo que ele
jamais deixara de lamentar, os pais haviam posto o nome de
Washington, era um rapaz de cabelos louros e muito bem encarado;
parecia integralmente dotado para entrar na diplomacia americana,
pois levava de vencida os Alemães, três estações a fio no casino de
Newport. A reputação de exímio dançarino que havia conquistado
precedera mesmo a sua chegada a Londres.
As gardénias e o pariato eram as únicas fraquezas do seu
espírito; abstraindo de isso, mostrava ter muito bom-senso.
Miss Virgínia E. Otis era uma rapariguinha de quinze anos,
graciosa e ágil como corça recém-nascida e cujos olhos rasgados e
azuis reflectiam uma bela franqueza.
Era uma admirável amazona. Certo dia batera, em corrida, o
velho lorde Bilton, dando duas voltas ao parque em cima do seu
poltro e ganhando por comprimento e meio, precisamente em frente
da estátua de Aquiles, isto com grande enlevo do jovem duque de
Cheshire. O duque logo nesse instante tinha pedido a mão dela, e,
remetido nessa mesma tarde para o colégio pelos encarregados da
sua educação, regressara a Eton derramando lágrimas torrenciais.
A seguir a Virgínia contavam-se os gémeos, correntemente
designados por «os condenados ao açoite». Eram ambos adoráveis
rapazinhos e, com o digno Embaixador, os únicos verdadeiros
republicanos da família.
Como o Parque Canterville se encontra a sete milhas de Ascot, a
estação ferroviária mais próxima, mr. Otis telegrafara no sentido de
os irem buscar de carruagem; e, cheios de alegria, puseram-se todos
a caminho.
Era por uma linda meia tarde de Julho, em que o aroma dos
pinheiros embalsamava o ar. De quando em quando ouviam um
pombo bravo arrulhar docemente, ou enxergavam, escondido entre
os rumorosos fetos, o brilhante peitilho de plumagem de um faisão. À
sua passagem, pequenos esquilos, no seio da rama das faias, ficavam-
se a olhá-los, e, alcançado a cauda branca, os coelhos fugiam a bom
fugir através dos silvados ou galgavam os cômoros recobertos de
musgo.
Todavia, na ocasião em que se entranhavam na alameda do
Parque Canterville o céu cobriu-se subitamente de nuvens, uma
calma estranha pareceu envolver a atmosfera, um bando de gralhas
passou silenciosamente por cima deles e, antes que houvessem
atingido a casa, começaram a cair grossas gotas de chuva.
Uma mulher já idosa acolheu-os no alto dos degraus. A maneira
como se apresentava era irrepreensível. Envergava um vestido de
seda preta, avental branco e touca desta mesma cor. Era mrs.
Umney, a governanta. Mrs.
Otis, a instâncias de lady Canterville, consentira em conservá-la
ao seu serviço. Quando puseram pé em terra, ela fez a cada um dos
seus novos amos uma rasgada mesura e disse, com solenidade já
desusada: - Desejo que sejam bem-vindos ao Parque Canterville.
Seguiram-na e, depois de terem atravessado um belo átrio no
estilo Tudor, entraram na biblioteca, sala de grande extensão, de
tecto baixo e ao fundo da qual se via uma ampla janela com vitrais.
Fora aí que se preparara o chá, e, após terem-se despojado das
vestes de viagem, sentaram-se e puseram-se a olhar em volta,
enquanto mrs. Umney os servia.
De súbito, mrs. Otis descobriu no soalho, nas peças de madeira
embutidas, perto do fogão, uma mancha de tom vermelho escuro, e,
longe de suspeitar o que aquilo significava, disse a mrs. Umney:
- Estou em crer que caiu e alastrou ali qualquer coisa.
- Sim, minha senhora, - respondeu em voz baixa a antiga
governanta - é sangue.
- Mas é horrível! - exclamou mrs. Otis. - Não gosto nada de ver
manchas de sangue nos salões. É necessário fazer desaparecer isso
imediatamente!
A velhota sorriu e informou, na mesma voz baixa e misteriosa:
- É o sangue de lady Eleanor de Canterville, assassinada
precisamente neste sítio pelo marido, sir Simon de Canterville, em
1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos e desapareceu de súbito,
em circunstâncias muito estranhas. O corpo dele nunca se encontrou,
mas o seu espírito culposo vagueia ainda por esta casa. A mancha de
sangue provocou sempre o pasmo dos visitantes e dos turistas. De
resto, não se pode fazer desaparecer.
- É absurdo! - exclamou Washington Otis -. O Pinkerton, o rei
dos sabões para tirar nódoas, fá-lo-á desaparecer num abrir e fechar
de olhos.
E antes que a governanta, apavorada, pudesse intervir,
Washington, pondo-se de joelhos, esfregava vigorosamente o
parquete com um rolo de um pauzinho que tinha parecenças com
cosmético negro.
Instantes depois a mancha desaparecera por completo.
- Eu sabia que o Pinkerton dava resultado! - proclamou o rapaz
relanceando um olhar pela família, toda ela em atitude admirativa.
Mas, mal acabara de pronunciar aquelas palavras, iluminou por
inteiro o sombrio compartimento um terrível relâmpago e um
estrondoso ribombo de trovão fê-los erguer bruscamente, ao passo
que mrs. Umney perdia os sentidos.
- Que monstruoso clima! - proferiu com serenidade o Ministro
americano, acendendo um charuto. - Este vetusto país é, suponho,
tão excessivamente povoado que não há bom tempo que chegue para
todos os seus habitantes. Foi sempre opinião minha que a emigração
era a solução única para a Inglaterra.
- Meu querido Hiram - gritou mrs. Otis - que havemos de fazer
de uma mulher que perde assim os sentidos?
- Suspender-lhe-emos o ordenado quando tal suceda, de sorte
que acabará por renunciar aos desmaios.
Mrs. Umney não deixou de voltar a si dentro em breve.
Estava porém, indubitavelmente, muito comovida. Com ar
grave, preveniu mrs. Otis de que não tardariam a registar-se
acontecimentos perturbadores.
- Tenho visto com os meus próprios olhos - asseverou ela -
coisas de pôr os cabelos em pé, e durante noites sobre noites não
tenho podido pegar no sono, por causa do que de terrível se passa
aqui.
Mr. Otis e a esposa afirmaram à boa mulher que não tinham
medo de fantasmas, e depois de ter impetrado as bênçãos da
Providência para os seus novos amos e procedido de jeito a obter
aumento de salário, a velha governanta recolheu ao seu quarto
coxeando levemente.

II
Naquela noite a tempestade desencadeou-se com violência, mas
nada aconteceu de particular. Todavia, na manhã seguinte, ao descer
para o pequeno almoço, os Otis verificaram que a horrível mancha de
sangue reaparecera.
- Seguramente, a culpa não é do sabão para tirar nódoas - disse
Washington - pois sempre o empreguei com êxito. Isto deve ser o
fantasma.
E o rapaz conseguiu fazer desaparecer a mancha pela segunda
vez; no dia imediato, porém, ela estava de novo patente. No outro dia
a seguir, a mancha lá se via, se bem que a biblioteca tivesse sido, na
véspera à noite, fechada por mr. Otis em pessoa, que levara a chave
para o seu quarto.
O interesse de toda a família encontrava-se agora desperto.
Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido excessivamente
dogmático ao negar a existência de fantasmas. Exprimiu o propósito
de pedir a sua inscrição na Sociedade de Estudos Psíquicos, e
Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers e
Podmore, acerca da «Persistência de manchas de sangue após o
crime».
Nessa noite todas as dúvidas a respeito da existência objectiva
de espectro se dissiparam para sempre. O dia tinha estado quente
soalheiro, e quando a proximidade da noite trouxe alguma frescura a
família completa partiu para um passeio de carruagem. Não
regressaram todos senão às nove horas e tomaram em seguida uma
ligeira ceia. De modo nenhum a conversa incluiu a menor alusão
sequer a fantasmas, de maneira que se não poderiam pôr em causa
essas preliminares condições de expectativa e auto-sugestão que
tantas vezes precedem a aparição dos fenómenos psíquicos, Como
mr. Otis mo contou mais tarde, a discussão apegou-se aos triviais
assuntos que constituem a conversação dos americanos cultos da
melhor sociedade: a superioridade imensa de miss Fanny Davenport,
como actriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho
verde, bolos de trigo mouro e polenda, mesmo nos melhores
estabelecimentos ingleses; a importância de Boston no
desenvolvimento do espírito universal; as vantagens do sistema de
registo das bagagens; a suavidade da pronúncia das palavras em uso
em Nova-Iorque comparada com o pronúncia arrastada de Londres.
Nenhuma menção de coisas sobrenaturais. Nenhuma alusão a sir
Simon de Canterville. Dadas as onze horas, a família recolheu-se e,
às onze e meia, todas as luzes estavam apagadas.
Decorrida uma porção de tempo, mr. Otis foi despertado por um
ruído singular que vinha do corredor, perto do seu quarto. Dir-se-ia
um tinido de metais que se entrechocam, e o ruído parecia de cada
vez mais próximo.
Levantou-se imediatamente, acendeu um fósforo e viu o relógio.
Era uma hora em ponto. Muito calmo, mr. Otis tateou o pulso. Não
se tratava de febre. O ruído estranho continuava e, dentro em pouco,
mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou as pantufas, tirou do
seu estojo de toilette uma garrafinha oblonga e abriu a porta.
Diante de si, à pálida claridade do luar, via um horrendo ancião.
Os olhos dele, que se assemelhavam a carvões em brasa, lançavam
clarões vermelhos. Caíam-lhe sobre os ombros os cabelos compridos
cor de cinza, em madeixas emaranhadas. A roupa que vestia, de
corte antigo, estava cheia de nódoas e em farrapos.
Pesadas cadeias, todas cheias de ferrugem, pendiam-lhe dos
pulsos e dos tornozelos.
- Meu caro senhor, - disse mr. Otis - perdoe-me importuná-lo,
mas é absolutamente necessário que unte essas correntes. Pensando
na sua pessoa, peguei neste frascozinho de lubrificante. Dizem ser
muito eficaz logo à primeira vez que se aplique. No prospecto junto
achará muitos atestados dos mais eminentes sábios do país. Vou
deixá-lo aqui, o frasco, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras
feliz em arranjar-lhe outro se tiver precisão dele.
Ao dizer isto, o Ministro dos Estados-Unidos colocou o frasco
sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou
a meter-se na cama.
O fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de
uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o
frasco ao chão encerado, sumiu-se ao longo do corredor a soltar
grunhidos cavernosos e projectando em redor terrificantes clarões
verdes.
Ao atingir, porém, o alto da grande escadaria de carvalho,
abriu-se bruscamente uma porta, apareceram dois pequenos vultos
vestidos de branco, e um rotundo travesseiro passou-lhe, zumbindo,
rente à cabeça!
Decididamente, não havia tempo a perder e, adoptando como
rápido meio de salvação a quarta dimensão do espaço, esvaiu-se
através do revestimento de madeira das paredes, após o que a
habitação recuperou a sua calma.
Tendo alcançado uma alcouvazinha secreta situada na ala
esquerda do edifício, apoiou-se, para retomar fôlego, num raio de
luar e pôs-se a reflectir no que lhe acabava de suceder. Em toda a
sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca fora
insultado tão grosseiramente. Recordou o estado de terror em que
lançara a duquesa donatária quando ela se contemplava ao espelho,
taful de diamantes e rendas; as quatro criadas que haviam tido uma
crise de nervos muito simplesmente porque ele, rindo
escarninhamente, as espreitara através dos cortinados de um dos
quartos de hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um
sopro quando ele saía uma noite da biblioteca, onde se retardara um
pouco mais, e que depois, vítima de acidentes nervosos, estivera a
ser tratado por sir William Gul; a velha senhora de Tremouillac, a
qual, tendo acordado de manhã muito cedo e visto um esqueleto
sentado numa poltrona, junto do fogão, imerso na leitura do seu
diário íntimo, foi obrigada a conservar-se de cama durante seis
semanas, presa de uma febre cerebral. A duquesa, logo que se vira
curada, reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações
com o senhor de Voltaire esse céptico notório.
O fantasma lembrou-se também da terrível noite em que esse
patife do lorde Canterville foi encontrado no seu gabinete de vestir
meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta;
precisamente antes de morrer confessara ter trapaceado ao jogo por
meio dessa carta e roubado a Charles James Fox, em casa do
Crockford, cinquenta mil libras esterlinas. O fantasma, jurava ele,
obrigara-o a engolir a carta.
O fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas mais
belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na copa, se
suicidara com um tiro de revólver por ter visto uma mão verde bater
nos vidros; depois, e da bela lady Stufield, que se intimou a trazer
sempre em volta do pescoço uma fita de veludo negro, para ocultar a
marca que cinco dedos de fogo haviam imprimindo na sua pele
branca de leite, e que acabara por se afogar no lago das carpas, ao
fim da alameda do Rei.
Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o fantasma
passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um
sorriso cheio de azedume recordou-se da sua última aparição como
«Ruben, o Vermelho, ou o Bebé Estrangulado», da sua estreia no
papel de «Gibéon, o Vampiro de Bexley Moor», e da agitação que
provocara, numa encantadora tarde de Junho, jogando muito
simplesmente o chinquilho com a sua própria ossada, em cima da
relva do campo de ténis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miseráveis
americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante e arremessar-
lhe travesseiros à cabeça!
Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma nenhum fora
tratado daquela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e até romper a
aurora permaneceu em atitude de profunda meditação.

III
Na manhã seguinte, durante o pequeno almoço, o fantasma
constituiu o objecto de prolongada discussão. O Embaixador dos
Estados-Unidos estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver
que a sua dádiva não tinha sido aceite.
- De modo nenhum tive a intenção de dirigir ao fantasma uma
injúria pessoal, e, sendo certo que ele reside na casa há tantíssimo
tempo, vocês devem confessar que é muito pouco delicado atirar-lhe
travesseiros à cabeça... Lamento ter de declarar que, perante esta
justa advertência, os gémeos desataram às gargalhadas.
- Por outro lado - prosseguiu o ministro - se ele se recusa,
teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos de confiscar-lhe
as cadeias. É impossível dormir, com um barulho assim no corredor!
Mas durante todo o resto da semana o fantasma não os
incomodou absolutamente nada. A coisa única a excitar a atenção
era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no parquete da
biblioteca. E essa era uma estranha coisa, porque mr. Otis fechava a
porta à chave todas as tardes e mandava correr bem as janelas.
O facto de a mancha mudar tantas vezes de tom como um
camaleão provocava igualmente numerosos comentários. Em
determinadas manhãs, aparecia de um vermelho escuro, quase um
vermelho indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto; no outro dia,
era um violeta sumptuoso; e até uma vez, quando os Otis todos
desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de
simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal,
verificaram que a mancha era de um verde-esmeralda esplendente. É
bem de ver, estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a
família; e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito. A
única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena
Virgínia, que, por qualquer ignota razão, parecia sempre
consternada ao ver a mancha de sangue e esteve pertíssimo de
desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-
esmeralda.
A segunda aparição do fantasma efectuou-se no Domingo à
noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama, foram de
súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo.
Descendo precipitadamente a escada, verificaram que uma grande e
antiga armadura, despegada da sua peanha, fora projectada para o
lajedo, enquanto o fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de
alto espaldar e com uma expressão de angústia, esfregava os joelhos.
Os gémeos, que se tinham munido das suas zarabatanas,
descarregaram imediatamente dois pequenos projécteis sobre o
fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios
exercícios, tendo por alvo um professor de escrita, pode dar,
enquanto o Ministro dos Estados-Unidos, mantendo-o sob a ameaça
do seu revólver, lhe intimava, segundo a etiqueta, que pusesse as
mãos ao alto.
O fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de
raiva, e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando
na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os em
escuridão completa.
Ao alcançar o cimo da escadaria o fantasma recobrou ânimo e
decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade
mais de uma vez havia experimentado.
Contava-se que aquilo fizera embranquecer, no decurso de uma
noite apenas, a cabeleira postiça de lorde Raker, e que provocara a
demissão de três das governantas francesas de lady Canterville antes
de findo o seu primeiro mês de serviço. Por conseguinte, riu com o
seu riso mais horroroso, até o velho tecto abobadado repercutir com
o estrépito desse riso infernal. Mas, mal extinto o último eco, abriu-
se uma porta e mrs. Otis apareceu embrulhada num roupão azul
pálido.
- Receio que o senhor não esteja bem de saúde. Trago-lhe aqui
um frasco de tintura do Doutor Dobell. Se é uma indigestão, verá que
o remédio é excelente.
O fantasma fixou-a, cheio de fúria, e esteve prestes a
transformar-se num canzarrão negro, realização que lhe tinha valido
um justo renome e ao qual o médico da família atribuía sempre a
idiotia incurável do tio de lorde Canterville, o nobre Thomas Horton.
Mas um rumor de passos que se aproximavam fizeram-no hesitar no
cruel projecto. Contentou-se em tornar-se levemente fosforescente,
e esvaiu-se com um grunhido sepulcral no momento preciso em que
os gémeos chegavam à altura em que se encontrava.
Tendo regressado ao seu quarto, num enorme abatimento,
dentro em pouco apossou-se dele a mais violenta agitação. O
desplante dos gémeos e o materialismo grosseiro de mrs. Otis eram,
sem sombra de dúvida, extremamente aborrecidos; mas o que o
consternava mais era não ter podido envergar a armadura.
Acrisolara suas esperanças em que até mesmo uns americanos
modernos não deixariam de perturbar-se à vista de um espectro com
armadura guerreira, senão por inteligentes razões ao menos por
respeito por Longfellow, seu poeta nacional (3), cujos versos
graciosos e cheios de encanto o tinham ajudado mais de uma vez a
passar o tempo durante a ausência dos Canterville. Para mais, era a
sua própria armadura. Ostentara-a com grande êxito no torneio de
Kenilworth e recebera os mais calorosos cumprimentos da Rainha-
Virgem em pessoa. Mas quando quisera, agora, enfiar a armadura,
fora de todo em todo esmagado pelo peso da enorme couraça e do
elmo de aço, e caíra desamparadamente sobre o lajedo, esfolando a
valer os dois joelhos e contundindo as articulações da mão direita.
Esteve doente durante muitos dias e não saiu do quarto senão
para manter a nódoa de sangue. Todavia, com grandes cuidados,
restabeleceu-se e resolveu fazer terceira tentativa para aterrorizar
o Ministro dos Estados-Unidos e sua família. Escolheu a sexta-feira,
14 de Agosto, para a nova aparição, e ocupou a maior parte desse
dia a passar em revista o seu guarda-roupa. Optou, por fim, por um
chapéu de abas largas ornado de uma pluma vermelha, um sudário
recortado nos punhos e no pescoço e uma adaga ferrugenta.
No decurso do serão surdiu uma violenta tempestade. O vento
soprava tão forte que sacudia janelas e portas da velha moradia. Era
exactamente este o tempo de que o fantasma gostava. Eis o plano em
que assentara.
Iria de manso e manso até o quarto de Washington Otis; junto
do leito, soltaria gritos e enterraria três vezes a adaga na sua
própria garganta, ao som de uma lânguida música. Alimentava uma
razão de queixa especial contra Washington, por saber muito bem,
como sabia, que era ele quem, com o seu sabão para tirar nódoas,
fazia incessantemente desaparecer a famosa mancha de sangue dos
Cantervilles. Após ter submetido o descuidado e audacioso rapaz a
um estado de abjecto terror, dirigir-se-ia então ao quarto ocupado
pelo Embaixador dos Estados-Unidos e sua mulher; pousaria na testa
de mrs. Otis a mão cheia de visco, ao mesmo tempo que insinuaria ao
ouvido do esposo, todo ele numa tremura, os horríveis segredos de
além-túmulo.
Quanto à pequena Virgínia, ainda nada decidira. Era meiga e
bonita e nunca o insultara. Alguns grunhidos roucos e profundos
vindos de dentro do guarda-fato seriam, pensou, mais do que
suficientes, e se por acaso eles a não despertassem poderia puxar
com os dedos descarnados e trémulos o couvre-pied da rapariguinha.
Na parte concernente aos gémeos estava deveras decidido a
dar-lhes uma lição. Naturalmente, a primeira coisa a fazer era
sentar-se sobre o peito deles, de maneira a produzir a sufocante
sensação do pesadelo; depois, ficando as suas camas tão juntinhas,
surgiria de permeio sob a forma de um cadáver verde e gelado, até
que os manos se pusessem paralíticos de medo; por último,
despojando-se do sudário, rojar-se-ia em volta de todo o aposento
com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tempo girar as
meninas dos olhos, numa imitação de «Daniel o Mudo, ou o Esqueleto
do Suicida», papel no qual produzira grande efeito em muitíssimas
ocasiões e a que atribuía a mesma importância que à sua famosa
personagem de «Martinho, o Louco ou o Mistério Mascarado».
Às dez horas e meia percebeu que a família se ia deitar.
Esteve um bocado de tempo perturbado pelas sonoras risadas
dos gémeos, os quais, com a descuidada alegria de estudantes,
certamente se divertiam antes de se enfiarem na cama. Mas às onze
e um quarto tudo estava em sossego e, ao soar a meia-noite, ele
partiu para a sua expedição.
O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo
crocitava no cimo do velho teixo e o vento vagueava em volta da
casa, gemendo como alma penada.
Mas a família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o
cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruído
do temporal. O fantasma esgueirou-se para fora da madeira das
paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel
desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás de
uma nuvem quando ele passou junto da grande janela ogival ornada
de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas
e as da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra funesta
e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a
chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido de um cão subia da Granja
Vermelha. Prosseguiu caminho, resmungando pragas do século
dezasseis e brandindo de quando em quando a adaga corroída de
ferrugem.
O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia
ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento
sacudia-lhe as madeixas compridas de cor de cinza e fazia ondular de
maneira grotesca e fantástica o sudário de morto. O quadro
inspirava indizível horror. O relógio soou então o quarto de hora.
Compreendeu que tinha chegado o momento.
Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e transpôs a esquina
do corredor. Mas, mal tinha dado aí um passo, logo recuou com um
lamentoso gemido de terror e logo também ocultou nas suas mãos
ossudas a face macilenta.
Diante de si erguia-se um horrível espectro, tão imóvel como
uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A
cabeça dele era calva e luzidia, a face redonda, gorda e branca. Um
riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão
eterna de zombaria. Dos olhos escorriam-lhe clarões escarlates. A
boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta,
semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico.
Um letreiro contendo uma inscrição em caracteres estranhos e
antigos ornava-lhe o peito: sem dúvida, um certificado de infâmia, a
narrativa de medonhas faltas, uma lista de crimes espantosos. Com a
mão direita, brandia um gládio de aço brilhante.
Nunca tendo visto, até à data, nenhum fantasma, sentiu
naturalmente um grande pavor. Lançou, rápido outro olhar ao
terrível espectro e desatou a fugir para o seu quarto, tropeçando, ao
seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou
cair a adaga ferrugenta dentro das grossas botas do Embaixador,
onde o mordomo a foi encontrar no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da
estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Mas
transcorrido um pedaço de tempo a antiga coragem dos Cantervilles
recuperou os seus direitos.
Decidiu ir falar com o outro fantasma, logo que nascesse o dia.
E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao sítio onde havia, pela
primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espectro,
raciocinando que, no fim de contas, dois fantasmas valiam mais do
que um, e que com a ajuda do seu novo colega talvez vencesse
melhor os gémeos.
Mas quando ali se encontrou, no mesmo lugar, um horrível
espectáculo feriu seus olhos. Era de todo evidente que acontecera
qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera
completamente das órbitas, o gládio brilhante escorregara-lhe da
mão e o corpo encostava-se à parede numa atitude de
constrangimento e incómodo.
Precipitou-se para ele e tomou-o nos braços. Mas, com
assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o corpo foi-se
também abaixo, e percebeu que estreitava apenas um cortinado de
cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo,
uma machada de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz
de compreender esta curiosa transformação, pegou no letreiro com
pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras
abomináveis: o fantasma Otis é o único, autêntico e original.
Desconfiai das falsificações!...
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado
uma partida! A característica expressão, dos Cantervilles perpassou-
lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes e, levantando muito alto,
acima da cabeça, as mãos descarnadas, jurou, segundo a fraseologia
pitoresca da escola antiga, que, quando o galo fizesse ouvir mais
duas vezes o seu alegre apelo, haviam de dar-se ali acontecimentos
sangrentos e a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos
passos.
Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, de
uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um galo. O
fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após
hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha, o galo não
repetiu o canto. Por fim, às sete e meia, a chegada dos serviçais
obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou
ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu
abortado plano. Consultou então muitas obras a que dedicava
particular apreço e que tratavam da antiga cavalaria. Aí verificou
que, de todas as vezes que tal juramento havia sido formulado,
sempre o galo cantara segunda vez.
- Diabos levem aquele maldito volátil! - resmungou ele. -
Ah! não me encontrar ainda no tempo em que, com minha
intrépida lança, lhes trespassaria a gorja e em que o teria obrigado a
cantar só para mim até perder o sopro!
Depois estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, em que
permaneceu até o cerrar da noitinha.

IV
No dia imediato o fantasma estava muito fraco e muito cansado.
Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro
últimas semanas. Com os nervos quebrados, até o menor ruído o
sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por
fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca.
Se a família Otis não queria aquilo, claro estava que nem por
sombras era digna do caso. Com plena evidência, essas pessoas
viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram em
absoluto incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenómenos
sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o
desenvolvimento dos corpos astrais eram, sem dúvida, coisas
diferentes e alheias à atenção daquela gente. Ele, fantasma, tinha
como missão, como missão solene, aparecer no corredor uma vez por
semana e ulular através de um janelão em ogiva na primeira e na
terceira quartas-feiras do mês, e não via maneira de poder subtrair-
se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora
culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em
tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Três sábados a fio o fantasma atravessou, portanto, o corredor
como de costume, entre a meia-noite e as três da manhã, tomando
mil precauções para não ser visto nem ouvido. Tirou os sapatos,
pisou tão levemente quanto possível as faixas do parquete roídas pelo
caruncho, enrolou-se num amplo manto de veludo negro e decidiu-se
a empregar o lubrificante para untar as suas cadeias. É-me forçoso
reconhecer que não foi sem dificuldade que veio a adoptar este
derradeiro meio de protecção; mas, uma noite e à hora em que a
família da casa se preparava para ir jantar, introduziu-se nos
aposentos de mr. Otis e lançou mão do respectivo frasco. Ao fazê-lo
experimentou, a princípio, um pouco de humilhação, mas logo
adquiriu a inteligência bastante para se inteirar de que a invenção
estava longe de ser má e de que, até certo ponto, lhe favorecia os
planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz.
Estendiam constantemente cordas no corredor, nas quais,
quando estava escuro, tropeçava; e uma vez em que se encontrava
vestido para desempenhar o papel do «Negro Isaque ou o Caçador
de Hogley Woods», deu uma queda muito grave sobre um
resvaladouro que os gémeos haviam armado e que ia desde a Sala
das
Tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última
afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro
esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social.
Decidiu pois uma visita, para a noite imediata, aos juvenis e
insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de «Ruperto, o
Arrisca-Tudo ou o Conde-sem-Cabeça».
O fantasma já não fazia qualquer aparição mascarado desta
maneira desde mais de setenta anos atrás, precisamente desde que,
assim vestido, aterrorizara a gentil lady Bárbara Modish, ao ponto
de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô
do lorde Canterville actual e fugido para Gretna Green com o belo
Jack Castleton, declarando que nada deste mundo a decidira a entrar
numa família que deixava um tão horroroso fantasma percorrer o
terraço, ao cerrar-se o crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi
morto em duelo por lorde Canterville em Wandsworth Common, e
lady Bárbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge
Wells antes de findo esse mesmo ano; de sorte que, sob todos os
aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma «composição» extremamente difícil
(se me é permitido usar esta expressão de teatro a propósito de um
dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo
científico, do mundo supra-normal), e foram-lhe precisas três boas
horas para executar os preparativos. Tudo se aprontou, finalmente.
Estava muitíssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas botas de
montar que condiziam com o trajo eram um tanto largas de mais
para ele, e não tinha podido achar senão uma das pistolas dos coldres
da sela; mas, em suma, estava muito contente, e, à uma hora e um
quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente
para o corredor.
Chegado ao quarto que os gémeos ocupavam (designavam-no
por «o quarto azul», por causa do tom das pinturas), encontrou a
porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito,
empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro
de água entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-
lhe pela espádua esquerda. No mesmo instante, risadas que alguém
procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso
que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu
esconderijo com a maior celeridade. No dia seguinte, muitíssimo
constipado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que
lhe restava era de não ter levado a sua própria cabeça nesta
expedição; de contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado
as mais graves consequências.
O fantasma abandonou então toda a esperança de assustar
aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, com
percorrer de pantufas de solas de feltro os corredores, o pescoço
envolvo num espesso cachené vermelho por causa das correntes de
ar e empunhando um bacamartezinho com receio de ser atacado
pelos gémeos. Foi em 19 de Setembro que ele recebeu o golpe final.
O fantasma descera ao vasto hall de entrada, certo de que aí
ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar com observações
satíricas as grandes fotografias do Ministro dos Estados Unidos e de
sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos
da família dos Cantervilles. Vestia-o um longo sudário, muito simples
mas decente, salpicado de manchas de lama vinda do cemitério.
Atara os queixos com uma ligadura de tela amarelada e segurava
uma pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra,
estava disfarçado para o papel de «Jonas, o Morto sem Sepultura, ou
o Ladrão de Cadáveres de Chertsey Barn», uma das suas mais
notáveis criações, da qual ora os Cantervilles tinham excelentes
razões para se lembrar, porque fora essa a verdadeira origem do
pleito com o seu vizinho, lorde Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã. O
fantasma poderia afirmar que todos os moradores da casa
repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de passeio, para a biblioteca,
no fito de ver se ainda restava qualquer vestígio da mancha de
sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro, dois
vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe
berravam «U-u! U-u!» aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo
natural, precipitou-se para a escadaria: aí, porém, esperava-o
Washington com a grande mangueira de rega do jardim. Cercado de
todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu
no interior do enorme fogão, que, felizmente para si, não estava
aceso. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e
alcançou o seu quarto num lamentável estado de sujidade, desarranjo
e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições nocturnas. Os
gémeos muitas vezes se esconderam à sua espera e, todas as noites,
juncavam de cascas de nozes os corredores, coisa que aborrecia
bastante os país e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o
fantasma, ferido em seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em
consequência, mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a «História
do Partido Democrático», em que trabalhava havia uma porção de
anos.
Mrs. Otis organizou um maravilhoso clam-bak, que causou
espanto em toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao
écarté, ao poker e a outros jogos nacionais americanos. E Virgínia
percorreu no seu poldro todos os caminhos circunvizinhos, em
companhia do duque de Cheshire, que tinha vindo passar no Parque
Canterville a sua última semana de férias. Supôs-se, naturalmente,
que o fantasma abalara dali, e mr. Otis escreveu a lorde Canterville
a informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande
prazer, e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do Ministro.
Mas os Otis enganavam-se, porque o fantasma permanecia
ainda na casa e, se bem que estivesse agora quase inválido, não tinha
de forma nenhuma a intenção de ficar quieto, sobretudo desde que
soube que, entre os convidados, se encontrava o duquezinho de
Cheshire, cujo tio-avô, lorde Francis Stilton, apostara um dia cem
guinéus em como jogaria aos dados com o fantasma de Canterville,
vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da
sala de jogo completamente paralítico. Não obstante ter vivido até
avançada idade, nunca mais pôde dizer senão isto: «duplo-seis!».
A história era bem conhecida na época em que sucedera o caso;
mas, para poupar o sentimento de duas famílias nobres, tudo foi
tentado para abafar a coisa.
Todavia, encontrar-se-á uma sua narrativa pormenorizada no
terceiro volume da obra de lorde Tattle: «Memórias Relativas ao
Príncipe Regente e seus Amigos».
Era, por conseguinte, natural que o fantasma quisesse provar
que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais o unia
um parentesco afastado, devido a uma sua prima-irmã ter casado em
segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os duques de
Cheshire, como se sabe, descendem em linha directa.
Consequentemente, tomou as suas disposições para aparecer ao
juvenil enamorado de Virgínia na sua célebre criação do «Monge
Vampiro, ou o Beneditino Exangue», espectáculo tão horrível que a
velha lady Startup, ao dar com os olhos nele, o que lhe sucedeu nessa
fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos,
que terminaram por um ataque de apoplexia; morreu três dias
depois, não sem ter deserdado os Canterville, seus mais próximos
parentes, e deixado todo o dinheiro que possuía ao seu boticário de
Londres.

V
Passados dias, andavam Virgínia e o seu apaixonado de cabelos
em anéis a percorrer a cavalo as pradarias de Brockley, eis senão
quando a rapariguinha, sentindo-se presa num silvado, rasgou o
vestido de amazona tão desastradamente, que, ao reentrar em casa,
decidiu tomar a escada secreta para que ninguém lhe pusesse a vista
em cima. Ao passar, porém, a correr, diante da Sala das Tapeçarias,
cuja porta precisamente estava aberta, julgou perceber a existência
de alguém no interior. Vindo-lhe à ideia que seria a criada de quarto
da mãe, a qual às vezes ia para ali costurar, entrou para pedir à
mulher que lhe consertasse a saia.
E, com imensa surpresa sua, Virgínia viu o fantasma de
Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela, a contemplar
o ouro das árvores amarelentas, a ver as folhas rubras rodopiarem
como loucas na grande alameda. A cabeça apoiada na mão, toda a
sua atitude traía uma depressão extrema. Na verdade, ele
apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena
Virgínia, cujo primeiro movimento foi fugir e encerrar-se no quarto,
tomada logo de piedade resolveu tentar reconfortá-lo. Os passos de
Virgínia eram tão leves e a melancolia do fantasma tão profunda, que
este não teve consciência.
- Sinto-me contristada por sua causa - disse Virgínia - os meus
irmãos voltam amanhã para Eton e, se o senhor se portar bem,
ninguém o atormentará.
- Pedirem-me que me porte bem! Mas é absurdo! - respondeu
ele com os olhos escancarados de espanto à vista daquela gentil
donzelinha que ousava dirigir-se-lhe.
- É completamente absurdo! É imprescindível que eu faça
ranger as minhas cadeias e ulule pelos buracos das fechaduras e
passeie por aí de noite, se é a isto que a menina faz alusão. Essa é a
minha única razão de existência.
Mas, à última hora, o terror que lhe causavam os gémeos
impediu o fantasma de abandonar o seu quarto. E, na câmara real, o
duquezinho dormia em paz no vasto leito de baldaquino ornado de
plumas e sonhava com Virgínia.
- Isso não e uma razão de existência, e o senhor bem sabe que
tem sido muito mau. Mrs. Umney dissenos, no dia da nossa chegada
aqui, que o senhor matou a sua mulher.
- Bem, concordo - disse com vivacidade o fantasma -; mas trata-
se de um assunto de família com o qual os outros nada têm.
- É multo mal feito matar alguém - insistiu Virgínia, que, vezes,
mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana,
herdada de qualquer antepassado da Nova Inglaterra.
- Oh, detesto esse corriqueiro rigor da ética abstracta!
Minha mulher era feia, não engomava nunca convenientemente
a minha gola de folhos e não percebia nada de cozinha. Olhe, eu tinha
matado um veado nos bosques de Hogley, um veadozinho magnífico.
Quer saber como ela o fez aparecer à mesa? Mas que importa o
caso, presentemente?! Tudo isso acabou. Não creio, porém, que
fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de
fome, embora eu a tenha matado.
- Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor fantasma... quero dizer,
sir Simon... o senhor tem fome? Trago ali uma sanduíche no meu
saco de costura. Quere-a?
- Não, obrigado, já não como nada, agora. Mas é, apesar de
tudo, muita amabilidade da sua parte. A menina é muito mais gentil
do que o resto da sua horrenda família, grosseira, vulgar, indigna!
- Cale-se! - bradou Virgínia batendo com o pé no chão. -
Quem é grosseiro, horrendo e vulgar, é o senhor; e, quanto a
indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem roubou as
bisnagas da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridícula
mancha de sangue na biblioteca. Primeiramente, deitou mão a todos
os meus encarnados, sem esquecer o vermelhão, e tive de deixar de
pintar o pôr do Sol; depois arrebatou o verde-esmeralda e o amarelo
cromado; e, finalmente, só me restavam o anil e o branco da China,
de modo que só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem
tanto quando as olhamos e que são tão pouco fáceis de executar. Eu
nunca disse nada contra o senhor; contudo, andava muito aborrecida
e tudo aquilo era bastante ridículo. Já se viu sangue de tom verde-
esmeralda?
- Mas - disse o fantasma acalmando-se um pouco -, que hei-de eu
fazer? Nestes nossas dias, é muito difícil encontrar sangue
verdadeiro e, visto que foi o seu irmão a romper com o tira-nódoas,
não vejo motivo para não lançar mão das bisnagas que lhe
pertencem. Quanto à cor, é simples questão de gosto: os
Cantervilles, por exemplo, têm sangue azul, o mais azulado de
Inglaterra, mas sei que vós outros, os americanos, troçais a valer de
tudo isto.
- O senhor nada sabe a esse respeito, e o melhor que tem a
fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não deixará de
sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma passagem gratuita. O
senhor não encontrará dificuldade alguma na alfândega, onde todos
os funcionários são democratas. Uma vez em Nova-Iorque, alcançará
o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil
dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma
na família.
- Tenho a convicção de que não gostaria da América.
- Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades - disse
Virgínia ironicamente.
- Nem ruínas! Nem curiosidades! - replicou o fantasma - Mas
tendes a vossa marinha e essas vossas maneiras!
- Adeus! Vou pedir ao meu papá que conceda aos gémeos uma
semana suplementar de férias.
- Não, não vá, miss Virgínia! - implorou o fantasma. - Estou tão
só e tão desgraçado e não sei verdadeiramente o que fazer. Quero
dormir e não posso.
- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às vezes
é difícil a gente manter-se acordada, na igreja sobretudo, mas é coisa
bem fácil dormir. Até os bebés sabem isso; todavia, não são muito
inteligentes.
- Há trezentos anos que não durmo, - disse ele com tristeza (os
belos olhos azuis de Virgínia dilataram-se de espanto).
- Há trezentos anos que não durmo, e estou tão cansado!
O rosto de Virgínia tornou-se grave e os labiozinhos puseram-
se-lhe a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e,
ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para a velha face
pergaminhanda.
- Pobre, pobre fantasma! - murmurou - Não há então sítio onde
possa dormir?
- Além em baixo, para lá do pinhal - respondeu ele numa voz
lenta e meditativa -, há um jardinzinho. A erva cresce ali, espessa e
alta, salpicada das grandes estrelas brancas da cicuta, e o rouxinol
canta lá toda a noite. Toda a noite ali canta o rouxinol, e a fria lua de
cristal reclina-se para ver melhor, e o cipreste estende seus braços
gigantescos sobre os dormentes.
Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o
rosto nas mãos.
- Quer aludir ao jardim da Morte - murmurou.
- Sim, da Morte! A morte deve ser tão bela! Repousar na terra
doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o
silêncio! Não ter ontem nem amanhã! Esquecer o tempo! Esquecer a
vida, estar em paz! A menina pode ajudar-me. Pode abrir para mim
as portas da casa da Morte, porque traz o Amor consigo e o Amor é
mais forte do que a Morte.
Virgínia pôs-se a tremer, percorreu-a toda um frémito gelado e,
durante momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar
sonhando um terrível sonho.
O fantasma voltou então a falar, e a sua voz ressoava como um
suspiro do vento.
- Já leu alguma vez a velha profecia inscrita nos vitrais da
biblioteca?

Oh, muitas vezes! - exclamou a donzelinha erguendo os olhos. -


Conheço-a multo bem. Está pintada em curiosas letras a negro e
é difícil de ler. São apenas seis versos:

Quando uma criança de coração puro conseguir


Colher dos lábios pecaminosos uma prece,
Quando a estéril amendoeira florescer,
Quando dos olhos puros brotar uma lágrima,
Esta casa ficará para todo o sempre tranquila
E a Graça voltará a Canterville.

«Mas não sei o que isto quer dizer.


- Quer dizer - respondeu ele tristemente - que a menina deve
chorar comigo pelos meus pecados, porque eu já não tenho lágrimas,
e rezar comigo pela minha alma, porque nada me resta de fé. Então,
se tiver sido sempre meiga e boa, o Anjo da Morte terá piedade de
mim. Há-de ver, na escuridão, vultos horríveis, vozes maldosas falar-
lhe-ão ao ouvido, mas não sofrerá mal nenhum porque o Inferno nada
pode contra a pureza de uma criança.
Virgínia não respondeu e o fantasma torceu as mãos com
desespero, baixando o olhar sobre a cabeça coroada de cabelos de
ouro reclinada perto dele. A jovem ergueu-se de súbito, muito pálida.
Um estranho clarão lhe perpassou nos olhos.
- Não tenho medo - disse ela com firmez -. Rogarei ao Anjo que
tenha piedade de vós.
O fantasma endireitou o busto ao mesmo tempo que soltava um
débil grito de alegria, e, inclinando-se com uma gentileza já há muito
fora de moda, pegou na mão da rapariguinha e beijou-lha. Os dedos
de sir Simon tinham a frialdade do gelo e seus lábios queimavam
como fogo, mas Virgínia não sentiu o menor desfalecimento enquanto
ele a fazia atravessar o compartimento cheio de sombras. Bordadas
nas tapeçarias, cujo tom verde fora desbotando, viam-se figurinhas
de caçadores.
Estes sopraram nas suas trompas ornadas de glandes e, com as
minúsculas mãos, fizeram-lhe sinal para que arrepiasse caminho.
- Retrocede, Virgíninha - gritavam eles - vai-te embora!
Mas o fantasma estreitava-lhe a mão com mais força e Virgínia
fechou os olhos para os não ver. Horrorosos animais de cauda
semelhante à dos lagartos, olhos salientes de cabeça, pestanejaram-
lhe repetidamente, de cima do fogão esculpido, e murmuraram: -
Toma cuidado, Virgininha, toma cuidado, olha que talvez nunca mais
te tornemos a ver!
Mas o fantasma deslizou com mais celeridade e Virgínia não deu
ouvidos àqueles. Ao atingirem a extremidade da sala, o fantasma
parou e murmurou palavras que Virgínia não podia compreender. Ela
abriu os olhos e viu a parede desaparecer lentamente como um
nevoeiro, após o que se encontrou diante de uma grande caverna
negra. Envolveu-os um vento áspero e frio e a jovem sentiu que a
puxavam pela saia.
- Depressa! Depressa! - gritou o fantasma -. Senão será
demasiadamente tarde.
Num instante o forro de madeira tornou a cerrar-se por detrás
deles. A Sala das Tapeçarias ficara deserta.

VI
Daí a dez minutos, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia
não descesse, mrs. Otis mandou-a chamar por um dos criados.
Passado um momento, este voltou para dizer que não tinha
encontrado miss Virgínia em parte nenhuma. Como a jovem adquiria
o costume de ir todas as tardes colher flores para o jantar, mrs. Otis
não se inquietou; mas ao soarem as seis horas sem que a filha tivesse
reaparecido, começou verdadeiramente a alarmar-se e mandou os
rapazes à sua procura, ao mesmo tempo que ela própria e mr. Otis
percorriam a casa, compartimento por compartimento.
Às seis e meia estavam de volta os rapazinhos sem terem podido
achar o mais leve vestígio da irmã. Todos se encontravam agora na
maior agitação e não sabiam que fazer, quando mr. Otis se lembrou
de repente que, uns dias antes, concedera licença a um bando de
ciganos para acamparem no parque. Imediatamente partiu para
Blackfell Hollow, onde, sabia-o, os ciganos deviam agora estar.
Acompanhavam-no seu filho mais velho e dois criados da granja. O
duquezinho de Cheshire, louco de ansiedade, insistiu veementemente
em se lhes juntar, mas mr. Otis opôs-se temendo que se travasse ali
uma desordem. Ao chegar, porém, ao sítio em vista, descobriu que os
ciganos haviam desaparecido. O lume, que ardia ainda, e alguns
pratos dispersos pelo solo denunciavam claramente uma retirada
repentina.
Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que
explorassem as circunvizinhanças, mr. Otis regressou a toda a
pressa e expediu telegramas para todos os inspectores de polícia do
Condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora
raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que lhe
selassem o cavalo, intimou a esposa e os três rapazes a tomarem o
seu jantar e, acompanhado de um lacaio, dirigiu-se para Ascot. Mas
mal percorrera duas milhas ouviu atrás de si um galope. Voltando-se,
descortinou o duquezinho, que vinha montado no seu poldro, o rosto
muito afogueado e cabelos ao vento.
- Lamento muito - disse o rapazinho numa voz ofegante -, mas
não poderei jantar enquanto Virgínia não for encontrada. Peço-lhe
que não se zangue. Se o senhor tivesse consentido, o ano passado, no
nosso ajuste de casamento, nada disto teria sucedido. Não vai
mandar-me para trás, não é verdade? Eu não quero ir para casa!
Não quero ir para casa!
O Ministro não pôde impedir-se de sorrir ao juvenil e
encantador doidivanas e sentiu-se muito comovido com a devoção
dele por Virgínia. Inclinando-se do alto do seu cavalo, deu uma
palmada no ombro do rapaz e disse:
- Pois bem, Cecil, se você não quer ir para casa, tenho de levá-lo
comigo, suponho. Comprar-lhe-ei um chapéu em Ascot.
- O chapéu que vá para o diabo! Da Virgínia é que eu preciso! -
exclamou, a rir, o duquezinho.
Galoparam até à estação do caminho de ferro, onde mr. Otis
perguntou se não tinha sido ali vista, na gare, qualquer pessoa
correspondendo aos sinais de Virgínia; mas não pôde obter qualquer
indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as
outras estações da linha e prometeu fazer exercer por toda a parte
uma severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o
duquezinho a um comerciante de novidades, que ia precisamente
naquele momento encerrar a sua loja, mrs. Otis dirigiu-se para
Bexley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito,
era local de encontro dos ciganos, por lá haver um prado comunal.
Chegados a esse sítio, mr.
Otis e o seu companheiro acordaram o guarda campestre mas
não puderam extrair dele a menor informação e, após terem
percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa e
alcançaram o Parque Canterville pelas onze horas da noite,
completamente esgotados e desesperados. Washington e os gémeos
esperavam-nos ao pé do gradeamento com lanternas, porque a
alameda estava muito escura.
Não se conseguira descobrir o mais leve rasto de Virgínia.
Os ciganos tinham sido concentrados nas pradarias de Brockley,
mas a jovem não se encontrava entre eles. Uma confusão de datas
explicava a sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava
mais cedo do que pensavam, obrigara-os a abalar a toda a pressa. A
verdade é que até eles haviam ficado consternados ao saberem do
desaparecimento de Virgínia, porque guardavam grande
reconhecimento a mr. Otis por este lhes ter permitido acamparem no
seu parque, e quatro companheiros do bando ficaram para trás a fim
de colaborarem nas pesquisas. O tanque das carpas fora esvaziado e
todo o domínio batido de lés a lés, mas sem resultado. Era forçoso
renderem-se à evidência: pelo menos naquela noite, Virgínia estava
perdida para eles; e, profundamente abatidos, mr. Otis e os rapazes
dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia à mão os
dois cavalos e o poldro.
Encontraram no átrio um grupo de criados cheios de medo. A
pobre mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi-louca
de inquietação e de pavor; a velha governanta banhava-lhe a fronte
com água de Colónia. Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para
que tomasse qualquer alimento e mandou servir o jantar para todos.
Foi uma bem triste refeição, em que quase se não proferiu
palavra. Os próprios gémeos estavam aterrados, amachucados,
porque adoravam a irmã. No fim do jantar mr. Otis, não obstante os
rogos do duquezinho, ordenou que todos se deitassem, dizendo que
nenhuma outra coisa poderia ser feita nessa noite e que, no dia
seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard (5), para lhe serem
enviados imediatamente alguns agentes.
Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar soava
a meia-noite no relógio da torre e, quando retiniu a décima segunda
pancada, ouviram todos um enorme estrondo, seguido de um grito
penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma
harmonia irreal flutuaram no espaço, no alto da escadaria abriu-se
um dos panos das paredes e, no patamar, apareceu Virgínia, muito
pálida, com um cofrezinho na mão.
Foi um instante enquanto todos se precipitaram para ela.
Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o duque afogou-a com a
violência dos seus beijos, e os gémeos executaram em volta do grupo
uma dança guerreira.
- Santo Deus, donde vens tu?! - perguntou mr. Otis numa voz
bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma
partida insensata -. Cecil e eu cavalgámos toda a região, à tua
procura, e tua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-
te a não voltares a entregar-te a farsas tão estúpidas como esta.
- Excepto contra o fantasma! Excepto contra o fantasma! -
bradaram os gémeos entre mil piruetas.
- Minha querida, graças a Deus tenho-te aqui! É preciso que
nunca mais me deixes - murmurou mrs. Otis, enlaçando a criança, a
qual tremia e alisava os seus caracóis de ouro todos emaranhados.
- Papá - disse Virgínia num tom calmo - eu estava com o
fantasma. Ele morreu. Devem ir vê-lo. Era muito mau, mas
arrependeu-se verdadeiramente do que fez e, antes de morrer, deu-
me este cofrezinho com maravilhosas jóias.
Toda a família a fitava, os olhos escancarados de surpresa, mas
ela permanecia grave e séria; desviando-se, guiou-os através de uma
abertura no forro de madeira das paredes até um estreito corredor
secreto.
Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de
cima da mesa. Chegaram por fim a uma grande porta de carvalho
ornada de pregos cheios de ferrugem. Quando Virgínia lhe tocou a
porta girou nos gonzos, e encontraram-se todos numa salinha baixa,
de tecto de abóbada e cujo único meio de renovação do ar era uma
minúscula janela gradeada. Uma enorme argola de ferro estava
chumbada à parede e, encadeado à argola, via-se um grande
esqueleto estendido ao comprido no chão de pedra, parecendo tentar
agarrar uma escudela velha e uma bilha colocada fora do seu
alcance. A bilha devia ter contido outrora água, porque se mostrava
por dentro coberta de bolor. Na escudela não existia senão urna
camada de pó.
Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas
mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto a horrível tragédia cujo
segredo lhe era assim revelado.
- Olhem! - gritou de repente um dos gémeos, o qual se
dependurara da janela para observar em que ala da edificação se
situava aquele quarto. - Olhem! A velha amendoeira toda sequinha
está em flor! Vêem-se muito bem as flores, à claridade do luar.
- Deus perdoou-lhe - proferiu gravemente Virgínia, erguendo-se;
e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.
- És um anjo! - exclamou o duquezinho, que lhe lançou um braço
à volta do pescoço, estreitando-a contra si.

VII
Quatro dias após estes curiosos acontecimentos, um préstito
fúnebre deixava o Parque Canterville pelas onze horas da noite. Oito
cavalos negros puxavam o carro mortuário e sobre as cabeças deles
agitavam-se grandes penachos de plumas de avestruz. Um
sumptuoso pano cor de púrpura, que as armas dos Cantervilles,
bordadas a ouro, ornavam, cobria o caixão de chumbo. Junto do
carro marchavam os criados empunhando tochas e todo o cortejo
assumia singular imponência.
Lorde Canterville dirigia o enterro. Tinha vindo expressamente
do País de Gales para assistir à cerimónia e ocupava a primeira
carruagem, acompanhado da jovem Virgínia. A seguir iam o Ministro
dos Estados Unidos e a esposa, depois Washington e os três rapazes,
e por fim, na carruagem da cauda, mrs. Umney.
Partiu-se da convicção de que a governanta, que durante mais
de cinquenta anos havia sido apoquentada pelo fantasma, tinha o
direito de o ver desaparecer para sempre. Fora cavada num canto do
cemitério uma profunda sepultura, precisamente sob a ramagem do
velho teixo, e as preces foram proferidas pelo Rev.
Augustus Dampier da maneira mais impressionante.
No termo da cerimónia, os criados, conforme um costume
tradicional na família Canterville, apagaram as suas tochas e no
momento da descida do caixão ao coval Virgínia avançou e depôs
sobre ele uma grande cruz tecida de rosas e flores de amendoeira.
Simultaneamente, a Lua surgiu de trás de uma nuvem e, com as suas
ondas silenciosas e argênteas, iluminou o pequeno cemitério; e do
recesso de uma moita, a distância, subiu o canto de um rouxinol. A
jovem recordou a descrição que o fantasma fizera do Jardim da
Morte. Velaram-se-lhe de lágrimas os olhos e mal articulou palavra
durante o caminho de regresso.
No dia seguinte de manhã, antes do lorde Canterville partir
para Londres, mr. Otis conferenciou com ele a respeito das jóias
dadas a Virgínia pelo fantasma.
Eram de notável magnificência, em especial certo colar de rubis
com um engaste veneziano, admirável trabalho do século dezasseis,
e o valor delas todas era tal que mr. Otis sentia grandes escrúpulos
em consentir que a filha as aceitasse.
- Lorde Canterville - disse o Ministro -, eu sei que o regime dos
bens chamados de mão-morta é aplicável neste país tanto às jóias
como às terras, e parece-me evidente que estas jóias de família lhe
pertencem, por conseguinte. Devo, pois, pedir-lhe que as leve para
Londres e que as considere simplesmente como uma parte da vossa
herança, agora restituída em inesperadas circunstâncias. Quanto à
minha filha, ela é ainda uma criança e (sinto-me feliz em dizê-lo) não
presta mais do que medíocre interesse a esses vãos acessórios de
luxo. Para mais, minha mulher, que, ouso afirmá-lo, é em matéria de
arte uma autoridade com a qual é necessário contar - ela gozou do
privilégio de passar muitos Invernos em Boston quando ainda solteira
- comunicou-me terem essas jóias elevado valor monetário. Postas à
venda, atingiriam altíssimo preço. Nestas condições, lorde
Canterville, estou certo de que compreenderá não poder eu permitir
a nenhum membro da minha família conservá-las na sua posse.
E, em boa verdade, todos esses frívolos, adornos, por mais
adequados ou indispensáveis que sejam à dignidade da aristocracia
inglesa, estariam em absoluto deslocados entre pessoas educadas
nos princípios severos e, suponho, imortais, da simplicidade
republicana. Talvez me seja lícito acrescentar que Virgínia deseja
vivamente que a autorize a guardar para ela o cofrezinho, a título de
recordação dos desvairos e dos infortúnios desse vosso antepassado.
Visto que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez o
senhor julgue razoável deferir o pedido. Pela minha parte, confesso
estar bastante surpreendido vendo um dos meus filhos exprimir
simpatia pelas coisas medievais, seja sob que aspecto for, e não
posso explicar isto a mim próprio senão pelo facto de Virgínia ter
nascido num dos vossos arrabaldes londrinos pouco tempo depois da
chegada de minha mulher, que regressava de uma viagem a Atenas.
Lorde Canterville escutou com muita gravidade o discurso do
digno Ministro, repuxando de quando em quando as pontas do seu
bigode grisalho para dissimular um sorriso involuntário; e quando
mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão cordialmente e disse: -
Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou a sir Simon,
meu infeliz avoengo, um serviço de importância, e eu e a minha
família devemos muito à maravilhosa coragem dela. Claro está que
as jóias lhe pertencem; e, por minha fé, creio que se eu tivesse tão
pouco coração que lhas tirasse, o maroto do velho sairia, antes de
quinze dias decorridos, do seu túmulo e arranjar-me-ia uma vida de
inferno. Quanto a constituírem jóias de família, tal só seria possível
se figurassem num testamento ou em documento legal, e a existência
dessas jóias era-me completamente desconhecida. Asseguro-lhe que
não tenho mais direitos sobre elas do que, por exemplo, o seu
mordomo, e, ouso dizê-lo, quando miss Virgínia for crescida
desvanecer-se-á ao usar esses lindos objectos.
O senhor esquece também, mr. Otis, que comprou em conjunto
a propriedade e o fantasma passou, implícita e imediatamente, para a
sua posse, pois por maior actividade de que sir Simon tenha dado
sinal durante a noite, nos corredores da casa, ele estava
verdadeiramente morto do ponto de vista jurídico, e a aquisição feita
pelo senhor tornou-o possuidor dos bens dele.
Mr. Otis, muito comovido com a recusa de lorde Canterville,
suplicou-lhe que reconsiderasse na sua decisão, mas o excelentíssimo
membro da Câmara Alta inglesa permaneceu firme e, acabou por
persuadir o Ministro a que consentisse à filha guardar o presente do
fantasma.
E quando, na Primavera de 1890, a jovem duquesa de Cheshire
foi, por ocasião do seu casamento, apresentada a primeira vez na
recepção da Rainha, as jóias que ostentava tornaram-se tema da
admiração geral. Porque Virgínia recebeu a coroa, que é a
recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou
aquele que a amava desde a infância logo que ele atingiu a idade
conveniente.
Eram ambos, tão sedutores e amavam-se tanto, que esta união
encantava toda a gente, salvo a velha marquesa de Dumbleton, que
havia tentado apoderar-se do duque para uma das suas sete filhas
ainda solteiras e que, com esse desígnio, dera nada menos que três
dispendiosos jantares; e se bom que possa parecer estranho, também
não encantava o próprio mr. Otis. O ministro sentia pelo duquezinho
uma grande afeição, mas, em teoria, não era partidário de títulos
nobiliárquicos e, para empregar mesmo palavras suas, «temia um
tanto que, por causa da influência amolecedora da aristocracia
apaixonada pelo prazer, os verdadeiros princípios da simplicidade
republicana fossem esquecidos». Mas houve quem deitasse por terra
as suas objecções; e creio bem que, ao avançar com a filha pelo
braço, na nave da igreja de S. Jorge, da Praça Hanover, não houve,
no instante, homem mais orgulhoso do que ele na Inglaterra inteira.
Após a sua «lua de mel», o duque e a duquesa voltaram ao
Parque Canterville; e no dia seguinte ao da chegada foram, pela
tarde, de passeio até ao cemitério solitário circunvizinho do pinhal.
A escolha da inscrição para a lousa tumular de sir Simon tinha
levantado muitas dificuldades, mas fora finalmente decidido mandar
gravar nela as simples iniciais do velho aristocrata e os versos
inscritos na biblioteca.
A duquesa havia levado consigo umas rosas adoráveis, que
espalhou sobre a sepultura; e depois de se conservarem em
recolhimento bastantes minutos, os jovens foram, sempre passeando,
até ao santuário em ruínas da velha Abadia. Sentou-se então a
duquesa numa pilastra mutilada do templo, enquanto o marido,
estendido a seus pés, fumava um cigarro, o olhar fito nos belos olhos
da rapariga. De súbito, arremessando para longe o cigarro, pegou-
lhe na mão e disselhe: - Virgínia, uma mulher não deve ter segredos
para seu marido.
- Querido Cecil, não tenho segredos para ti.
- Tem-los, sim - replicou ele a sorrir; - tu nunca me disseste o
que te aconteceu quando estiveste encerrada com o fantasma.
- Nunca o disse a ninguém - respondeu Virgínia com ar grave.
- Sei isso, mas podias dizermo a mim.
- Não me peças tal, Cecil; eu não posso dizer-to. Pobre sir
Simon! Devo-lhe muito. É verdade; não rias, Cecil. Mostrou-me o que
é a Vida, o que significa Morte e porque razão o Amor é mais forte
do que a Vida e a Morte.
O duque, pondo-se de pé, abraçou com ternura sua mulher.
- Podes reservar o teu segredo por tanto tempo quanto eu
guardarei o teu coração - murmurou.
- Ele sempre te pertenceu, Cecil
- E di-lo-ás um dia aos nossos filhos, não é verdade?
Carminaram-se, de pejo, as faces de Virgínia.
A VALSA
Dorothy R. Parker

- Ora essa, muito obrigada. Gosto imenso.


- Não, não quero dançar com ele. Não quero dançar com
ninguém e se quisesse, não era com ele. Seria o último dos últimos
que eu escolheria. Bem vi como dança; parece o que é costume
fazer-se na noite de S. Walpurgis.
- Imagine-se que ainda há poucos minutos eu estava sentada e
com imensa pena da pobre rapariga que dançava com ele. E agora
vou ser eu a pobre rapariga.
- Ora, ora. O mundo é tão pequeno.
- E tem coisas como esta. Um autêntico patife. As suas proezas
são tão inesperadas e fascinantes, não são? Aqui estava eu, metida
comigo, não fazendo mal nenhum. De repente surge-me ele com o
seu sorriso e boas maneiras, pedindo-me a honra de uma
inesquecível mazurca.
- Porquê? Ele a bem dizer que não sabe o meu nome, pondo de
lado a sua significação, que é Confusão, Futilidade, Desespero,
Degradação e Assassínio Premeditado; mas ele não o sabe. Também
eu não sei o dele; não faço a mínima ideia. Pela expressão dos olhos,
parece-me que seja Jukes. Como está, senhor Jukes? E como vai o
seu irmão que tem um olhinho na testa?
- Ah, porque viria ele para junto de mim, com os seus pedidos
insistentes. Porque me impedirá de seguir o meu caminho? Eu desejo
tão pouco - apenas que me deixem no meu cantinho, sozinha,
pensando nos meus desgostos. E vem ele com as suas vénias, as suas
delicadezas e o seu «dá-me a honra desta». E eu lá tenho de ir e
dizer que gosto muito de dançar com ele. Não sei como não caí logo
fulminada. Sim e cair morta seria bom, em comparação com ter de
dançar com este rapaz. Mas que havia eu de fazer? Excepto eu e ele,
todos se tinham levantado da mesa para dançar. Assim, fui apanhada.
Apanhada como um rato na ratoeira.
- Quando um homem nos pede que dancemos com ele, o que se
há de dizer? Não vou, primeiro havemos de nos encontrar no inferno.
Ora essa, muito obrigada, gostava imenso, mas estou com as dores
de parto. Oh, sim, dancemos - é tão agradável encontrar um homem
que não se importa de ser contagiado pelo meu tifo. Não, não podia
fazer outra coisa senão dizer: gosto imenso. Bem, vamos acabar com
isto. Pois bem, Carmonball, vamos por esses campos fora. Ganhaste
a partida; és tu quem guia.
- Para dizer a verdade, parece-me mais do que uma valsa. Não
será? Escutemos a música um segundo. Não lhe parece? Ah, sim é
uma valsa. Não se importa? Estou verdadeiramente encantada.
Gostava muito de valsar consigo.
- Gostava de valsar consigo. Gostava de valsar consigo.
- Gostava de cortar-lhe as amígdalas. Gostava de estar num
fogo, à meia-noite, no mar alto. Bom, agora é muito tarde. Vamos
então a isso. Ai, ai, vida. Ai, ai, vida, vida, vida. Mas isto é pior do que
eu julgava. Creio que é a única lei certa da vida - tudo é sempre pior
do que se julga. Oh, se eu fizesse ideia do que seria esta dança, teria
lembrado ficarmos sentados. No fim, é o mesmo. Se ele continua
assim, dentro em pouco sentamo-nos no chão.
- Estou contente por lhe ter feito ver que era uma valsa o que
estavam a tocar. Sabe Deus o que aconteceria se julgasse que era
outra coisa mais rápida. Deitávamos as paredes abaixo. Porque
quererá ele sempre estar onde não está? Porque não há-de ele ficar
num lugar o tempo necessário para nos habilitarmos? Isto é o
contínuo «corre-corre» do terror da vida americana. É a razão
porque todos nós somos tão... Ui! Pelo amor de Deus, seu parvo, não
dê tantos pontapés.
- Ai, a minha canela, a minha pobre canela que tive sempre
desde pequenina.
- Oh, não, não, não. Por tudo, não. Não, não me magoou nada.
- E além disso, a culpa foi minha. Palavra que foi. A sério.
- Oh, você é muito gentil em dizer isso.
- De verdade a culpa foi minha.
- Ainda gostava de saber o que seria melhor - aguardar e deixá-
lo morto de cansaço, ou, com as minhas mãos ávidas de sangue matá-
lo já. O melhor é não fazer cenas. Parece-me que me vou baixar e vê-
lo ser absorvido pelo espaço. Não é possível que continue assim toda
a vida - é de carne e osso. Não quero pertencer ao tipo dos ultra-
sensíveis, mas penso que aquele pontapé foi de propósito. Freud diz
que não há acidentes. Não tenho passado a vida enclausurada, tive
pares que me estragaram os sapatos e rasgaram os vestidos, mas
quando se chega aos pontapés, acho que é afrontar a minha
dignidade de Mulher. Quando apanhares uma canelada, sorri.
- É possível que não o fizesse por mal. É possível que mostre
assim as suas gracinhas. Acho que devo estar contente por um de nós
se divertir. E, se chegar ao fim com vida, devo considerar-me feliz.
Talvez seja absurdo pedir a um homem, a bem dizer, desconhecido
que me deixe as canelas tal qual as encontrou.
- Vendo bem, o pobre rapaz está a fazer o melhor que pode.
- Possivelmente foi criado na aldeia e nunca recebeu lições de
dança. Calculo que o deitaram de costas para lhe calçarem os
sapatos.
- Sim, é linda, não é? Verdadeiramente encantadora. Não há
valsa mais bonita. Não é assim? Oh, também a acho linda.
- Estou a ser realmente transportada para o Triple Threat.
- Ele é o meu herói. Tem os nervos de um búfalo e um coração
de leão. Vejam-no - nunca tive medo da sua cara a fazer caretas, com
as faces a arder e os olhos brilhantes. E poderei dizer que estou
arrependida?
- Não, mil vezes não. É alguma coisa para mim, passar os dois
anos mais chegados com um aparelho de gesso? Vamos, Butch, para
o meio deles! Quem quer viver eternamente?
- Oh. Oh, querido. Oh, graças a Deus, está bem. Supus, por um
momento, que teria de ser levado em braços para fora da sala. Ah,
não suportaria que lhe acontecesse alguma coisa. Eu amo-o. Não há
ninguém neste mundo que goste mais dele. Reparem como se diverte
com uma valsa vulgar e maçadora; que insignificantes parecem os
outros ao pé dele. Ele é a juventude, a coragem, a força, ele é a
alegria, o vigor e... Ui! Tira-te de cima do meu pé, aldeão bruto! O
que julgas que sou?... - um capacho? Ui!
- Não, de verdade não me magoou. Nem um bocadinho. Palavra!
E a culpa foi minha. Sabe, aquele seu passinho, que é tão bonito, é
traiçoeiro para se seguir logo à primeira. Ah, foi inventado por si?
Ah, foi? Oh, você é formidável! Ah, agora parece-me que já o aprendi.
- Oh, acho-o estupendo! Estive a apreciá-lo quando dançava.
Faz um bom efeito quando se repara nele.
- Faz um bom efeito quando se repara nele. Penso que também
faço imenso efeito quando se repara em mim. O cabelo cai-me pela
cara abaixo, sinto a testa húmida e tenho a saia toda torcida. Devo
lembrar uma vítima de «A queda da casa de Usher».
- Isto dá uma nota desagradável de uma mulher da minha idade.
E foi ele quem inventou este passinho, ele e mais a sua habilidade
corrompida. Ao princípio era um pouco traiçoeiro, mas agora já sei:
duas topadas, escorregar e andar dez metros aos encontroes. Sim. Já
sei.
- Sei também mais coisas incluindo uma canela partida e um
coração angustiado. Tenho ódio a esta criatura com quem ando
enlaçada. Odeio-a desde que lhe vi a cara estúpida olhando-me de
soslaio.
- Aqui estou eu fechada nos seus braços, incómodos, durante os
trinta e cinco anos que tem durado esta valsa. Esta orquestra nunca
mais acabará de tocar?
- Ou durará até ao fim do mundo este torpe disfarce de uma
valsa?
- Oh, vão repetir. Que bom! Oh, é óptimo. Cansada? Nunca me
canso. Gostaria de andar toda a vida assim.
- Nunca me canso. Morta estou eu. Morta e de que maneira! E
a música nunca mais acaba e nós continuamos a galopar até à
eternidade. Calculo que não me aborrecerei tão depressa, pelo
menos nos próximos mil anos. Nunca mais me importarei com coisa
alguma, nem com o calor, nem com a dor, nem com a terrível fadiga,
nem com o coração destroçado. Ora! Nada disso me poderá suceder
tão depressa.
- Gostava de saber porque não lhe disse que estava cansada?
- Porque não lhe teria lembrado voltarmos para a nossa mesa?
- Podia ter-lhe dito, vamos ouvir a música, sim? Se ele
concordasse, era a primeira vez que, em toda a noite, lhe teria dado
atenção. Disse George Jean Nathan que os maravilhosos ritmos da
valsa deviam ser ouvidos em silêncio e não acompanhados do corpo
humano. Julgo que foi o que ele disse. Acho que foi George Jean
Nathan. De qualquer maneira, dissesse o que dissesse, estivesse
onde estivesse, ou faça o que fizer, está muito melhor do que eu.
Está no seguro.
- Todas as pessoas que não estejam a valsar com esta vaca da
senhora Ó Leary, que aqui encontrei, passam bem o tempo.
- Assim mesmo, se voltássemos para a mesa, possivelmente,
teria de conversar com ele. Olhem para ele - o que se há-de dizer a
uma coisa assim! Este ano foi ao circo, como soletra gato, qual é o
sorvete que prefere?
- Julgo que é melhor estar aqui. Estou tão bem, como se
estivesse dentro de um misturador de cimento a funcionar.
- Não sinto nada já. Quando me pisa, a única coisa que posso
dizer é que oiço os ossos estalarem. E toda a minha vida me passa
diante dos olhos. Uma vez assisti a um furacão nas Índias Ocidentais,
doutra vez, num choque de táxis, parti a cabeça, uma noite, uma
senhora embriagada atirou com um cinzeiro de bronze ao seu amor e
apanhou-me em lugar dele e houve um verão em que o meu barco à
vela meteu água. Ah, que bom tempo eu passei até vir aqui parar
com este Swifty.
- Desconhecia o que eram trabalhos antes de ter sido arrastada
para esta danse macabre. Parece-me que já estou a delirar. Acho
mesmo que a orquestra vai parar. Não pode ser; não, não pode ser.
Todavia nos meus ouvidos há como que o som de vozes angelicais...
- Oh, os maçadores pararam. Não tocam mais. Oh, diabos os
levem. Ah, acha que poderiam continuar? Acha que sim, se lhes desse
vinte dólares? Oh, isso era óptimo. Olhe, diga-lhes que toquem a
mesma coisa. Eu acho adorável continuar nesta valsa.
AVENTURAS DUM
CONFERENCISTA
Knut Hamsun

Decidira fazer uma conferência sobre literatura moderna na


cidade de D... Esperava alcançar assim um ganhozito dos mais
apreciáveis, sem que tal me exigisse demasiado esforço.
Num belo dia do fim do Verão achava-me, pois, instalado num
comboio que rodava para a dita cidade. Passava-se isto no ano de
1886.
Não conhecia viva alma em D... Tendo-me descuidado de
anunciar a conferência pela via normal dos jornais, por esse facto
tão-pouco me conhecia ali qualquer pessoa; mas, no começo do
Verão, num momento de desafogo económico mandara imprimir
quinhentos cartões de visita, os quais me propus distribuir por hotéis,
restaurantes e armazéns de certa importância, a fim de atrair a
atenção do público para o acontecimento. Esses cartões não estavam
precisamente ao meu gosto; até o meu nome aparecia ali errado.
Todavia, com um pouco de boa vontade, chegava-se a decifrar o
significado da coisa; sendo, de resto, absolutamente desconhecido o
meu nome, que importância teria um erro de ortografia?
Sentado no comboio, fazia cálculos, e o resultado da operação
não me desencorajou. Havia muito tempo que me habituara a sair de
apuros com dinheiro ou sem ele; e no período em questão, devo
confessá-lo, a minha fortuna era assaz magra para que pudesse
apresentar-me nessa cidade estrangeira de uma maneira digna da
minha alta missão estética. Mas, com muita economia, levaria sem
dúvida a cabo a empresa. Nada de prodigalidades! Em primeiro
lugar, para as refeições, encafuar-me-ia, ao lusco-fusco, numa dessas
baiúcas que há em toda a parte, e, quanto à dormida, encontraria
decerto qualquer quarto de aluguer. Outras despesas, para quê?
Enquanto o comboio corria, estudava eu a conferência: queria
falar do poeta Alexandre Kielland.
Os meus companheiros de viagem, campónios de volta de uma
ida à capital, passavam alegremente de mão em mão uma garrafa.
Ofereceram-me também da pinga, que recusei agradecendo.
Momentos depois, como é próprio de pessoas avinhadas e
bonacheironas, renovaram as suas tentativas de aproximação, às
quais não dei melhor acolhimento. Por fim, devido à minha atitude e
por me verem garatujar tantas notas, foram levados a compreender
que eu era um doutor, com a cabeça entulhada de ciência, e
deixaram-me em paz.
Ao chegar à cidade de D... desci do comboio e levei a minha
mala de mão para cima de um banco da gare, na intenção de me
concentrar um pouco antes de penetrar no burgozinho. Verdade,
verdade, eu não tinha necessidade nenhuma desta mala; trouxeraa
unicamente porque era mais fácil, ouvira já dizer, entrar numa
hospedaria e sair dela quando se exibem «bagagens». Ora esta
pobre mala forrada de pano havia adquirido, à força de anos e de
uso, um aspecto de tão grande vetustez que não condizia nada bem
com um literato em viagem, ao passo que a minha indumentária, um
fato azul completo, era muito mais decente.
Um moço de hotel, boné ornado de letras, avançou para mim e
ofereceu-se para conduzir a malinha. Declinei os seus serviços,
explicando-lhe que nada decidira ainda quanto ao meu hotel...
Precisava primeiro de avistar-me com alguns directores de jornais;
porque era eu o cavalheiro que ia fazer uma conferência sobre a
literatura moderna...
- Mas, disseme ele, seja como for, o senhor precisa de um hotel;
tem de alojar-se em qualquer parte. (O seu hotel era, sem
comparação possível, o melhor da terra; campainhas eléctricas,
banhos, sala de leitura, nada faltava lá). - É a dois passos, meu caro
senhor; sobe-se esta rua, volta-se depois à esquerda... - e toca a
agarrar na pega da mala.
Detive-o.
- O senhor mesmo é que vai transportar a sua bagagem para o
hotel?
- Sim, de facto é a minha intenção - respondi-lhe. - Por acaso,
vou para o mesmo lado do que a minha bagagem e, veja V., basta-me
suspendê-la do meu dedo meiminho para que ela me siga!
O rapaz mediu-me de alto a baixo com o olhar; compreendeu
logo que eu não era um cavalheiro chique, e abalou direito ao
comboio em busca de outros viajantes; não os encontrando, volveu a
mim para retomar as negociações. No termo da lengalenga deixou-
me até entender que, a falar verdade, fora só por minha causa que se
dirigira à estação.
Ainda bem! Vista assim, a coisa mudava de aspecto... Talvez
aquele rapaz fosse o delegado dalguma comissão que tivesse ouvido
falar da minha chegada... talvez fosse representante da Associação
Operária... Sem dúvida, a cidade de D.. devia ser foco duma vida
intelectual muito intensa e, provavelmente, sentia-se ali a
necessidade de ouvir boas conferências... Quem sabe se, a esse
respeito, a cidade de D... não seria superior à Capital?...
- Faça favor, pegue na minha bagagem - disse ao homem. - E, a
propósito, há vinho no seu hotel, vinho às refeições?
- Vinho? Temo-lo, e das melhores lavras, meu caro senhor.
- Bom; pode ir. Já lá vou ter; tenho de visitar algumas
redacções.
O homem tinha ar de não ser parvo de todo, pelo que lhe pedi
conselho:
- Diga-me cá, qual dos directores me recomenda você? Porque
não me empenho em dirigir-me a todos eles...
- O sr. Arentsen é incontestavelmente o mais importante; é
homem que sabe do seu ofício. Toda a gente o procura.
O sr. Arentsen, o Director, não estava, escusado seria dizê-lo,
na redacção. Fui encontrá-lo na própria residência e expus-lhe o fito
da minha visita: tratava-se de literatura.
Afirmou-me que na cidade de D... havia medíocre interesse por
essas coisas. Sucedera até que, no ano anterior, a um estudante
sueco, ali vindo para falar da paz perpétua, a experiência custara
bem bom dinheiro.
- Mas é de literatura que eu venho falar.
- Bem sei; não estabeleci equívoco sobre o sentido das suas
palavras - respondeu-me o Director. - Apenas o previno de que
sangrará a algibeira, o senhor também... Sangrar a algibeira?! Era
boa, aquela! E pensei: este senhor Arentsen imagina talvez que sou
caixeiro-viajante, representante duma grande casa...
Pus-lhe a questão, directamente:
- Sabe se a grande sala da Associação Operária está livre?
- Não - respondeu o Director - não está livre; alugaram-na para
amanhã à noite. Vai lá realizar-se uma sessão de prestidigitação anti-
espiritista; além disso, exibir-se-ão macacos e feras. A não ser esse,
só conheço outro local capaz, o pavilhão do parque.
- Recomenda-me esse recinto?
- É espaçoso e arejado... O preço? Isso, não sei. Mas consegue-
o, sem dúvida, em conta. Terá de dirigir-se à direcção.
Optei pelo pavilhão do parque. Era exactamente o que me
convinha. Os edifícios das Associações Operárias eram, por via de
regra, muito acanhados, incómodos.
- Quem constitui a direcção?...
Constituíam-na um advogado, um comerciante de peles e um
livreiro. Pus-me a caminho para consultar o advogado. Ele habitava
muitíssimo longe, no campo, e tive de marchar bastante para chegar
lá.
Depois de exposto o objectivo da minha viagem, perguntei se
consentiriam em alugar-me o pavilhão do parque, que se prestava
maravilhosamente a um acontecimento tão raro.
O sr. advogado escutou-me, reflectiu e abanou com a cabeça.
- Mas por que não? O recinto era grande demais? Concorde,
meu caro senhor, que seria desagradável ver muitas pessoas
voltarem para casa pelos mesmos passos, por falta de lugares -
argumentei.
O sr. advogado expôs-me mais amplamente o seu ponto de vista;
em resumo, só podia desaconselhar-me o empreendimento. Aquelas
coisas interessavam tão pouco os habitantes da cidade... Um
estudioso sueco, igualmente aplicado numa série de conferências
nesta região...
- Já sei, já sei - repliquei. - Simplesmente, ele falava da paz
perpétua; ao passo que eu falarei de literatura, das belas-letras.
- Acresce que o senhor chega numa ocasião má - prosseguiu o
advogado. - Acabam de anunciar um espectáculo anti-espiritista na
Associação Operária, e deve haver lá também macacos e feras.
Sorrindo, contemplei o homem; parecia ser de boa fé e
abandonei-o às suas convicções.
- Quanto querem os senhores pelo aluguer do pavilhão? -
interroguei, abreviando o caso.
- Oito coroas - respondeu. - Aliás, o aluguer será decidido em
assembleia plena do conselho de administração. Dentro de dois ou
três dias lhe darei a resposta definitiva. Mas creio poder, desde já,
prometer-lhe que terá o recinto à sua disposição.
Com rapidez, fiz um cálculo aproximado: despesas de dois dias
de espera, à razão de coroa e meia diárias, três coroas ao todo;
custando o pavilhão oito, somaria isto onze; uma para o porteiro,
doze; com vinte e quatro entradas, a cinquenta cêntimos cada, cobria
os encargos; os cem ou duzentos ouvintes mais que assistissem
representariam, portanto, um lucro líquido.
Concordei. O pavilhão estava alugado.
Procurei o hotel e entrei. Uma criada perguntou-me:
- Deseja quarto no rés-do-chão ou no primeiro andar?
Calmamente e com candura, respondi:
- Desejo um quarto barato, o mais barato possível.
A criada inspeccionou-me dos pés à cabeça, com os olhos, a
avaliar-me. Tratar-se-ia de um farsante, que tirasse prazer do
regatear o preço dum quarto? Não era eu o sujeito que inquirira o
corretor a respeito de vinhos? Ou talvez a minha modesta atitude
visasse evitar cerimónias da parte do pessoal do hotel...
Com singular vivacidade, abriu de par em par uma porta. Tive
um instintivo movimento de recuo.
- Eis o seu quarto - disseme ela. - A bagagem de V. Ex.a já ali
está; tem a bondade de entrar...
Tive de obedecer... e penetrei no salão mais elegante da casa.
- Mas onde está a cama?
- O divã, lá ao fundo. Seria pouco prático ter aqui uma cama
armada durante o dia. Aquele divã desdobra-se e forma um leito - e
dizendo isto, a criada retirou-se.
O meu bom humor cobriu-se de sombras: a visão da minha
miserável mala naquele ambiente, os meus sapatos também pouco de
harmonia com ele, após o longo passeio que dera... tudo contribuía
para me tornar rabugento. Não tardei a praguejar. Imediatamente a
criada meteu a cabeça pela semiabertura da porta e, solícita,
inquiriu:
- V. Ex.a deseja?
Que maçada! Já nem sequer se pode pronunciar palavra com os
nossos próprios botões sem que acorra logo uma nuvem de criados!
- Nada - respondi num tom severo. - Olhe, sim, traga duas
sanduíches.
Fitou-me e perguntou ainda:
- Não toma nada quente?
- Não, nada quente.
Ao trazer as sanduíches empunhava uma lista de vinhos de pasto
e generosos. Aquela criatura cheia de etiqueta não me deixou
respirar à vontade todo o serão...
Mal amanheceu, saltei da cama cheio de nervosismo e, tiritante,
comecei a vestir-me. O diabo do divã era curto demais para mim e
dormira por isso mal. Toquei a campainha. Ninguém apareceu. Sem
dúvida, era excessivamente cedo porque nem o menor ruído subia da
rua; tranquilizando-me então um pouco, reparei em que não era
ainda bem dia claro.
Pus-me a examinar o compartimento; era dos mais sumptuosos.
Perturbadoras ideias se apoderaram de mim no instante.
Toquei outra vez. Enterrado até os artelhos num fofo tapete, e a
pensar que talvez fossem ali extorquir-me tudo, até à minha última
moeda, ou que nem chegasse sequer o que tinha na algibeira, decidi
contar a toda a pressa o dinheiro que me restava da viagem... Nisto,
ouvindo passos no corredor, suspendi a operação.
Ninguém. O que supusera ouvir não passara de alarme falso do
meu espírito inquieto. Voltei a contar. A minha incerteza tornou-se
medonha. Em que se convertera a criada de quarto tão serviçal e
importuna da véspera à noite? Dormia ainda, a preguiçosa? Era já
quase dia...
Por fim, meio vestida, um xaile pelos ombros, ela apareceu:
- Foi V. Ex.a quem tocou?
- Há-de dar-me a minha conta - disselhe eu com placidez
forçada.
A conta?... A patroa dormia, eram ainda só três horas... A coisa
não requeria urgência... A criada encarou comigo, numa expressão
perplexa.
Que tinha ela que me encarar assim?... Que é que lhe dizia
respeito que eu deixasse quando bem entendesse o seu hotel?
- Pouco importa, concluí. - Preciso da conta, sem demora.
A criada desapareceu. A ausência dela prolongou-se por uma
eternidade. O que me aumentava a perturbação era o receio de que
me calculassem o preço do quarto pelo tempo, à hora... Não tinha a
menor noção a respeito das normas dos hotéis de luxo e achava
plausível que me aplicassem esse processo de cálculo...
De resto, um aviso colado na parede prevenia os viajantes de
que os quartos não desocupados até às seis da tarde seriam contados
como com mais um dia inteiro de ocupação. Todas estas reflexões me
enchiam de terror até ao ponto de aturdirem a minha cabeça de
literato.
Finalmente, a criada bateu à porta trazendo a conta. Nunca, oh!
nunca esquecerei esta mercê do Destino! Duas coroas e setenta
cêntimos, ao todo! Uma ninharia, apenas! Precisamente uma
gorjetazinha a dar a uma criada, para um maço de ganchos para o
cabelo!
Fiz saltar algumas coroas no tampo da mesa.
- Tome mais uma Guarde o resto. É para vossemecê.
Apesar de tudo, é preciso saber viver... E aquela rapariga era,
sem sombra de dúvida, admirável, uma rapariga rara, de excelente
coração, atirada para um hotel da cidade D..., submetida aos
caprichos dos viajantes... Mulheres como esta já se não fazem; é
raça extinta. E de que deferências ela me rodeou até ao fim,
testemunhando que me considerava pessoa afortunada e de
categoria:
- O rapaz conduzirá a bagagem de V. Ex.a.
- Isso é que não, isso é que não - protestava eu, embora temesse
contrariá-la. - Uma malinha, que futilidade! e, para mais, uma
malinha tão miserável. Devo aliás dizer: esta mala acompanha-me
sempre que ando na minha missão de conferencista; não suporto
outra, constitui uma particularidade minha viajar com ela...
Protestos inúteis. O rapaz estava já à espera, diante da porta.
Ao ver-me, dardejou para a mala um olhar penetrante denunciando a
vontade de se apoderar dela.
- Vou levar-lha - disse.
Não precisava eu de poupar o dinheiro que me restava? Podia
contar com outros recursos antes da conferência? Decidi, portanto,
pegar eu na mala. Mas o rapaz, desfazendo-se em solicitude, tinha-a
já na mão, conduzia-a ingenuamente, sem esforço, parecia resolvido
a arrostar mesmo com a morte em favor daquele que possuía uma
mala assim.
- Alto lá! - gritei bruscamente, parando. - Mas, em suma, para
onde leva você a mala?
O homem, sorrindo, respondeu-me:
- Isso, é a V. Ex.a que compete determiná-lo.
- Tem razão. Compete-me determiná-lo, e não há-de ser para
onde lhe dê, a você, na cabeça.
De qualquer forma, queria desembaraçar-me dele. Acabávamos
de passar por uma cave com escritos indicativos de aluguer de
quartos. Simplesmente, desejava não intrometer no negócio o
funcionário dum hotel concorrente. Queria dirigir-me ali sozinho.
Extraindo do bolso uma moeda de cinquenta cêntimos, dei-a ao
rapaz.
- Também lhe levei a mala ontem à tarde - observou ele, mão
estendida.
- Aí está pelo serviço de ontem - repliquei.
- E acabo de trazer-lha.
O diabo do rapaz depenava-me!
- Aqui está pelo de hoje. Agora espero que se ponha ao fresco.
O moço foi-se, não sem voltar muitas vezes a cabeça
espreitando-me pelo canto do olho.
Avistei um banco e sentei-me. Fazia frio... Mas o Sol surgiu
finalmente e amaciou a temperatura. Decorrido um bom pedaço,
apareceram transeuntes na rua, aqui e ali começaram a fumegar as
chaminés. Dirigi-me então para o hotel de pernoitar e combinei o
preço com uma santa mulher: cinquenta cêntimos por noite.
Dois dias depois voltei a casa do advogado. Repetiu-me o seu
conselho, tentando ainda dissuadir-me do meu projecto; mas
permaneci inabalável.
Entretanto, fiz publicar no periódico do sr. Arentsen um anúncio
da minha conferência, marcando dia, local e assunto.
Vendo que eu queria pagar imediatamente o aluguer da sala - o
que, aliás, me teria deixado escorrido de fundos - o advogado, esse
homem admirável respondeu-me logo:
- O senhor pode liquidar depois da conferência.
- Depois da conferência?! Provavelmente V. Ex.a supõe que não
tenho oito coroas? - observei melindrado, equivocando-me quanto à
sua intenção.
- Oh! não, não é isso, asseguro-lhe. Mas, falando-lhe com
franqueza, não é absolutamente certo que V. Ex.a utilize o recinto e,
desde que o não utilize, nada terá de pagar.
- Eu já anunciei a conferência.
Fez-me um sinal afirmativo com a cabeça.
- Sim, eu li...
Após um pequeno silêncio, perguntou:
- O senhor falará mesmo que não compareçam cinquenta
pessoas?
Fiquei um pouco deslumbrado, mas, tendo reflectido, respondi
que meio cento de pessoas era público sobremodo restrito; todavia,
falaria mesmo assim.
- Mas, claro, não falaria para dez apenas...
Desatei a rir ruidosamente.
- Desculpe; não, lá isso é verdade... há limites.
Ficámos por aqui e não paguei adiantadamente o aluguer.
Conversámos sobre literatura. O advogado parecia-me agora
mais simpático do que por ocasião da minha primeira visita. Era, sem
dúvida possível, um homem de viva inteligência; para mim, porém, as
suas opiniões não tinham grande valor comparadas com as minhas.
À despedida, desejou-me uma sala a transbordar, para a
conferência.
Em suma, lastrado de esperança, voltei para o meu
subterrâneo. Estava tudo a postos para a batalha. Um homem,
contratado por coroa e meia, havia percorrido a cidade da parte da
manhã, distribuindo os meus quinhentos cartões de visita. O
acontecimento doravante deixara de ser ignorado, quer nos castelos
quer nas choupanas.
A ideia da grande causa que ia defender encheu-me de um
sentimento quase solene; de súbito, achei-me constrangido nessa
baiúca frequentada por um público tão ordinário. Todos esses
indivíduos sentiam forte curiosidade de saber quem era eu e o motivo
por que permanecia ali. A patroa, por detrás do seu balcão, explicava
conforme podia que eu era um homem erudito, um sábio, que passava
o dia inteiro a escrever e a estudar; fazia assim compreender que
ninguém tinha o direito de me incomodar com perguntas. Grande
socorro o que ela me prestava, deste modo.
Os fregueses eram pobres diabos mal vestidos, assalariados,
descarregadores de carvão de pedra; vinham ali para beber um café
ou petiscar, comendo morcela de queijo ou de manteiga. Às vezes
vociferavam contra a patroa por causa do pão ser duro ou de serem
pequeninos demais os ovos.
Tendo ouvir dizer que eu ia falar no pavilhão do parque,
quiseram saber o preço dos bilhetes. Entre eles havia alguns que de
bom grado iriam assistir à minha conferência; simplesmente,
cinquenta cêntimos era muito dinheiro, e ousaram regatear... Disse
de mim para mim: ninguém deve deixar embaciar a sua dignidade;
torna-se evidente que estes indivíduos são totalmente desprovidos de
cultura.
O meu vizinho de quarto era um cavalheiro. Exprimia-se numa
inconcebível linguagem de trapos, mistura dos idiomas sueco e
norueguês. A patroa tratava-o por «Senhor Director». Sempre que
entrava no botequim, no seu passo lesto e elegante, despertava a
mais viva atenção.
Tinha por costume sacudir o pó da cadeira, com o lenço, antes
de se sentar. Era, não há dúvida, um homem de extraordinária
distinção. Ao pedir sanduíches, por exemplo, exigia, invariavelmente,
«pão fresco e manteiga da melhor».
- É o senhor que vai fazer uma conferência? - perguntou-me.
- Sim, é ele - respondeu a dona da casa.
- Mau processo de exploração - disseme o Senhor Director
continuando a dirigir-se-me. - Vejo que não faz publicidade; não tem
visto como eu procedo?
Descobri, por estas palavras, que era ele o anti-espiritista, o
homem das feras.
- Mando imprimir cartazes grandes como este - prosseguiu - e
colo-os por toda a parte onde encontro espaço. Já viu os caracteres
dos meus cartazes? Ilustro-os também com desenhos de animais.
- A minha conferência versa assuntos das belas-letras - objectei.
- Trata-se da Arte, de coisas intelectuais.
- Ora!... Que importância tem isso? - respondeu. E, com ousadia,
comentou: - As coisas seriam de modo bem diferente se o senhor
entrasse para o meu serviço.
Faz-me falta, precisamente, uma pessoa que dê explicações a
respeito dos animais, e eu preferiria que fosse um estrangeiro, um
desconhecido na região.
Porque, está a ver, se um homem do país se apresenta logo o
público se põe a gritar: «Olha é Fulano, é o Petterson! Mas que diabo
saberá ele, o Petterson, da vida dos animais dos trópicos?»
Perante tanta insolência, afastei-me do homem, sem dar
resposta, com todo o meu desprezo.
- Pense no caso - disse o Sr. Director. - Examine a minha
proposta. Pago cinco coroas por noite.
Levantei-me e deixei o botequim: era unicamente o que tinha a
fazer. O Sr. Director, tornava-se-me fácil adivinhá-lo, tinha muito
medo da minha concorrência; eu ia atrair todo o público da cidade, e
ele desejava uma combinação comigo, contratar-me... Nunca, disse
eu com os meus botões, nunca ninguém me fará trair a causa
intelectual! O meu caminho é o do idealismo.
Chegou o grande dia. Escovei cuidadosamente o fato, vesti
roupa lavada e dirigi-me para o pavilhão do parque. Eram sete horas.
Aplicara-me a estudar bem o discurso; repleto o espírito das palavras
belas e claras que ia pronunciar, entrevi mentalmente um êxito
certo. Quem sabe se a batalha que me preparava para travar não
iria pôr em movimento até o próprio telégrafo?...
Chovia; o tempo não se mostrava dos mais propícios. Não
obstante, reflectia eu, um pouco de chuva nunca terá o poder de
reter em casa um público apaixonado por literatura. Na rua, ia
encontrando bastantes pessoas, algumas abrigadas aos pares
debaixo do mesmo chapéu de chuva, e (coisa surpreendente!) nem
uma sequer dessas pessoas marchava na direcção que eu levava.
«Pff!, murmurei, todos estes são provavelmente os papalvos da
cidade, que vão para a sala da Associação contemplar os macacos.
O porteiro achava-se no seu posto.
- Já está muita gente? - inquiri.
- Ainda não - respondeu ele; - mas ainda falta uma boa meia
hora.
Entrei no recinto; os meus passas ressoavam na sala enorme
como ressoariam os cascos dum cavalo. Santo Deus! - se ali houvesse
uma sala à cunha, filas cerradas de cabeças, de damas, de
cavalheiros, aguardando apenas o orador! Mas nem um gato sequer!
Depois de ter esperado uma estirada meia hora, fui ter com o
porteiro, a pedir-lhe a opinião.
Apesar da sua reserva, ele consolou-me. O porteiro era do
parecer de que não estava tempo para conferências, nessa noite;
quando chovia assim ninguém saía de casa. Aliás, acrescentou, é
agora, nos derradeiros minutos, que é provável chegar o público.
Esperámos ainda.
Finalmente, apresentou-se em passo apressado um homem, todo
escorrendo água. Pagou um bilhete de cinquenta cêntimos e entrou.
- Começam agora a vir - disseme o porteiro, com um aceno de
cabeça; - é um hábito absurdo que tem esta gente, o de chegar em
multidão à última hora...
Continuámos à espera; não veio mais ninguém. Por fim, o meu
único auditor saiu da sala, dizendo:
- Que tempo danado!
Era o sr. Advogado.
- Receio que não apareça ninguém mais, esta noite - disse ele. -
Que dilúvio!
Reparando no meu ar desencorajado, acrescentou:
- Eu bem adivinhara, em face do barómetro; veja o senhor,
baixou muito rapidamente. Foi esse o motivo por que lhe
desaconselhei a conferência.
O porteiro, esse, encarava sempre as coisas com optimismo:
- Teremos de esperar mais uma meia hora. Só pelo diabo não
haviam de vir, pelo menos, vinte pessoas.
- Não creio - sentenciou o sr. Advogado, abotoando o
impermeável. E, voltando-se para mim: - Em vista disto... nada terá
de pagar pelo recinto, escusado seria dizê-lo.
Tirou o chapéu, cumprimentando, e abalou.
O porteiro e eu, teimando em esgotar até o fundo a
probabilidade da vinda de auditores, esperámos pacientemente.
Era um negócio aborrecido, aquele, e sentia-me extremamente
humilhado. Demais a mais, o sr. Advogado retirara-se deixando a sua
moeda de 50 cêntimos, que lhe deveríamos ter restituído. Fiz
menção de correr atrás dele, mas o porteiro dissuadiu-me disso.
- Guardá-la-ei eu, pronto! Deste modo, o senhor só me deverá
meia coroa.
Dei-lhe, todavia, uma coroa, querendo assim testemunhar-lhe
quanto apreciava a lealdade da sua atitude para comigo.
Agradeceu-me sinceramente e apertou-me a mão, à despedida.
Farto de tudo, encaminhei-me para a minha pousada. Vencido,
desapontado, mole e inerte, deixava-me vaguear pelas ruas.
Para cúmulo da infelicidade, achava-me agora sem recursos
para regressar à Capital.
A chuva continuava a cair. Chegando diante dum grande
edifício, vi da rua um guichet iluminado, num sítio de passagem. Era a
sede da Associação Operária.
De quando em quando, apresentavam-se retardatários ao
guichet e desapareciam pela porta que dava para a grande sala.
Perguntei se havia lá dentro muita gente. «A sala está quase à
cunha», responderam-me. Aquele miserável tinha, sem dificuldade,
ganho a partida...
Em passos furtivos caminhei para o meu albergue, onde me
encafuei logo na cave; e sem comer nem beber nada, tratei de
meter-me na cama o mais silenciosamente possível.
A horas avançadas da noite bateram à porta do meu quarto.
Era o sr. Director, de castiçal na mão.
- E a sua conferência? - interrogou-me.
Noutras circunstâncias teria mandado o sujeito rodar sobre os
calcanhares; mas estava por demais sucumbido para armar em
valentia e respondi-lhe que adiara a minha palestra para data mais
oportuna.
Ele sorria.
- O tempo não estava capaz para discorrer sobre belas-letras -
expliquei.
Ele sorria sempre.
- Se o senhor soubesse como o barómetro baixou! - acrescentei
ainda.
- Pois eu tive uma sala cheia até mais não - respondeu ele.
De resto, cessara de sorrir e até me pediu desculpa de me ter
ido incomodar: tinha uma proposta a fazer-me.
A sua proposta era - à fé de quem sou! - muito curiosa: oferecia-
me novamente um contrato como pregoeiro das suas
representações.
Mortificado até às camadas mais recônditas do meu ser, pedi-
lhe instantemente que me não privasse do sono por mais tempo.
Em vez de se ir embora, sentou-se muito confiadamente aos pés
do leito, com o castiçal na mão, e falou... Explicou-me que o homem
de D..., que contratara para apresentar ao público os animais era
conhecido de toda a gente.
Ele, o Director, pela sua parte, obtivera um êxito monstro com
as suas sortes anti-espiritas, mas o outro, o orador da cidade, tinha
estragado tudo.
- Ponha na sua ideia que desataram todos a gritar: «Olha o
Björn Pederson! Onde o desencantaste tu, a esse texugo?» Pederson,
entretanto explicava, como recebera ordem para fazer e conforme o
programa que o animal que lhes exibia não era de modo nenhum um
texugo: era uma hiena do país dos Boschimanos, ou homens das
selvas na África meridional, a qual hiena havia já devorado três
missionários... Então os espectadores protestaram, gritando que
estávamos a troçar deles. Todavia, acentuou o sr. Director, eu
procedera cuidadosamente à caracterização da cara do homem e
encaixei-lhe na cabeça uma cabeleira postiça; mesmo assim o público
o reconheceu.
Sendo-me indiferente tudo aquilo, voltei-me para a parede.
- Medite no assunto - insistiu o sr. Director antes de se retirar. -
Talvez eu possa ir até às seis coroas por noite se o senhor se sair
bem da tarefa.
Nunca eu me baixaria a desempenhar um tão vil papel como o
que ele me propunha.
Quê?! Todos nós temos os nossos pontos de honra!
No dia seguinte o sr. Director veio solicitar-me o favor de
lançar uma vista de olhos pelo texto da apresentação das feras; eu
corrigi-lo-ia e, pelo meu trabalho, ganharia duas coroas.
Apesar de tudo, aceitei o encargo. Pura complacência da minha
parte: fazia-o a título de serviço prestado à literatura. E depois...
(aqui para nós) eu tinha necessidade das duas coroas. Mas intimei-o -
está claro! - a guardar rigoroso sigilo sobre a minha colaboração.
Trabalhei o dia inteiro naquele pedaço de eloquência.
Refundi-o de extremo a extremo, introduzi-lhe muito
sentimento, muito espírito, adornei-o de ricas metáforas; a labuta
apossava-se de mim cada vez mais. Só com grande esforço se
conseguia converter neste luxo de imagens literárias uma pobre
colecção de bichos de feira. Quando, já muito pelo serão dentro, li
em voz alta a minha obra ao sr. Director, este ficou visivelmente
impressionado. Nunca ouvira um reclamo assim. Por isso, em sinal de
reconhecimento, deu-me três coroas.
- Contanto que eu tenha agora um homem em condições de o
declamar... - disse o sr. Director, perplexo. - Aqui não há nenhum.
Pus-me a reflectir. Seria, de facto, lamentável que um Björn
Pederson qualquer pusesse a pata em cima daquele pedaço de prosa,
assassinando-o por meio de uma dicção defeituosa... Não pude
suportar tal pensamento.
- Pode ser que, sob certas condições, eu lhe recite a prosa -
disse eu.
O sr. Director teve um sobressalto.
- Em que condições? Dar-lhe-ei sete Coroas...
- Bem, está entendido. O essencial é que isto fique entre nós.
- Quanto a isso, prometo-lho...
- É que... compreende sem dúvida... a um homem da minha
vocação e da minha categoria não ficaria bem exibir-se a apresentar
feras.
Oh! ele compreendia muito bem.
- E fique o senhor sabendo: se a prosazinha não fosse, por
inteiro, obra literária minha, muito pessoal, nunca teria consentido
no caso.
Isto também ele compreendia.
- Espero não ter de me arrepender de lhe prestar este serviço -
disse eu por último.
O sr. Director agradeceu-me.
Às sete horas fomos juntos para a Associação Operária. Eu
devia observar os animais e pôr-me um pouco ao corrente das suas
manhas.
Havia ali dois macacos, uma tartaruga, um urso, dois lobozinhos
de mama e um texugo.
A minha prosa não continha uma palavra sequer acerca dos
lobos e do texugo; em compensação, tinha-me alongado em
considerações a respeito de «uma hiena do país dos Boschimanos, de
uma zibelina e de uma marta, conhecidas das páginas da Bíblia»,
assim como de um enorme urso pardo da América.
- Onde estão a zibelina e a marta? - perguntei.
- Ei-las! - respondeu o Director, mostrando-me os lobozinhos.
- E a hiena, onde está ela?
Sem hesitar, apontou-me com o dedo o texugo, respondendo:
- Aqui está a hiena.
De cólera, subiu-me o sangue à cabeça. Declarei:
- Desta maneira, a coisa não marcha! É me indispensável ter
crença no que publico; necessita de que tudo esteja na minha mais
profunda convicção.
- Não vamos agora entrar em discórdia por uma tolice destas
- disseme o sr. Director.
Extraindo de um recanto uma garrafa de aguardente, ofereceu-
me uma pinga.
Para lhe provar que não queria mal à sua pessoa mas apenas à
sua mesquinha trampolinice, peguei no copo e esvaziei-o.
Em seguida bebeu ele também.
- Não me atire para a desgraça, não me condene ao desastre
- implorou o homem. - O seu discurso é soberbo, as feras não
são más de todo, não são nada más, realmente. Veja que enorme
urso! Basta que o senhor declame a sua prosa para tudo ir bem.
Apareceram as primeiras pessoas na sala e a inquietação do sr.
Director avolumou-se... A sorte dele estava nas minhas mãos; seria
simples generosidade da minha parte não abusar do meu poder.
Reconheci, aliás, a impossibilidade de fazer todas as correcções
precisas no pouco tempo que me restava. Além disto, como empregar
na descrição dum texugo o mesmo sentimento que na duma terrível
hiena? Era quase impraticável fosse para quem fosse. A minha obra
literária sairia mutilada com esses retoques; não poderia, pois,
consentir neles, e isto fiz saber ao sr. Director.
Ele compreendeu tudo, num relance. Levou-me a beber outra
vez, e eu bebi.
O espectáculo começou perante uma sala a trasbordar. O anti-
espiritista executou sortes de que nem o diabo teria percebido
patavina, tirando lenços de dentro do nariz, fazendo sair o valete de
paus da algibeira duma senhora idosa, no meio dos espectadores,
obrigando a caminhar uma mesa sem ninguém lhe pôr dedo em cima.
Por último, o sr. Director, metamorfoseando-se em puro espírito,
desapareceu do estrado por um alçapão. O público, em delírio,
aplaudia, sapateando no chão, alegremente.
Agora era a vez das feras. O próprio sr. Director apresentou-as
uma a uma, competindo-me narrar as suas respectivas histórias.
Imediatamente percebi que não atingiria o nível do êxito do sr.
Director; todavia, mantive a esperança de interessar com a minha
exposição as pessoas de melhor entendimento que se encontravam
entre o auditório.
Com efeito, esta esperança não ficou malograda.
Exibida a tartaruga do mar, só me restava ocupar-me dos
animais terrestres, e escolhi, como ponto de partida, Noé, ao qual
haviam levado um casal de cada espécie. O exórdio desenvolveu-se,
contudo, sem entusiasmo; o público perdera o seu ar jovial. Nem a
zibelina nem a marta foram apreciadas segundo os seus méritos,
apesar da inumeração que eu fiz de todas as peles preciosas destes
animais postas pela Rainha de Sabá quando da sua visita ao Rei
Salomão. Todavia, senti que a coisa começava a ir melhor: excitado
pelo assunto bíblico e pelos dois copos de aguardente, o meu
discurso tornou-se belo e rico de colorido, e pus de parte os meus
papéis, preferindo improvisar.
Quando acabei, houve vozes que exclamaram «bravo!» e a sala
inteira aplaudiu.
- Encontrará um copinho por detrás do pano - cochichou-me o
sr. Director.
Ao retirar-me, avistei logo o copinho cheio e, à ilharga, a
garrafa. Sentei-me por um instante...
Entretanto, o sr. Director exibia nova fera. Voltei a beber e a
sentar-me outra vez. A demora devia ter parecido excessiva ao sr.
Director, porque encetou ele mesmo a explicação na sua arenga
ininteligível. Com grande aflição, percebi que se tratava da hiena; ele
enganara-se até, sem querer: chamara-lhe texugo.
Indignado ante a sua incompetência, entrei em cena, afastei o
sr. Director com um grande gesto do braço, e tomei eu a palavra. «A
hiena» era o número de mais efeito do espectáculo; para o salvar
tinha de falar como nunca na minha vida falara. Logo desde a minha
entrada, desde aquele largo gesto ao afastar o sr. Director,
conquistara a simpatia do público.
Desculpando o sr. Director, afirmei que era a vez primeira que
ele via uma hiena, e desatei a descrever a existência cruel destas
feras. Os copinhos faziam efeito, o meu entusiasmo atingiu altitudes
vertiginosas; ouvia o voo das minhas próprias palavras, que se
tornavam de cada vez mais vermelhas, mais veementes, enquanto «a
hiena», estendida sobre as quatro patas diante do sr. Director,
pestanejava docilmente luzindo os seus olhos pequeninos. «Prenda-a
bem!» gritei de súbito. «Ela espreita-me, prepara o salto sobre mim
para me rasgar o corpo até às entranhas!...»
O sr. Director, também cheio de nervoso, puxou para si a trela -
a corda quebrou-se e o animal meteu-se-lhe por entre as pernas. Da
sala subiram gritos agudos, que mulheres e crianças soltavam; bem
metade dos espectadores se ergueu de chofre. Neste momento era
grande e contagiosa a comoção. Depois a falsa hiena, saltitando,
afastou-se de nós, atravessou a cena e refugiou-se na sua jaulazita. O
sr. Director fez a porta bater após ela entrar.
Todos recuperámos o fôlego... Terminei, em breves palavras, a
minha palestra. Tínhamos escapado de boa, desta vez, afirmei ao
público. Mas doravante, a partir dessa noite, iríamos recorrer a uma
grossa corrente de ferro para prender o monstro. E retirei-me
saudando sempre.
Os aplausos estalaram então de todos as lados; reclamava-se «o
orador!... o orador!» Reapareci, saudei de novo; a falar verdade,
obtive um êxito prodigioso.
Até mesmo já ao pé da porta, o último espectador, ao abandonar
a sala, batia palmas... Mas tinham-se também ouvido gargalhadas.
O sr. Director estava radiante; agradeceu sinceramente a
minha assistência. Pela certa, teria a sala à cunha ainda bastantes
vezes.
À saída, vi que um homem me esperava. Era o meu porteiro do
pavilhão do parque. Assistira ao espectáculo e achava-se
entusiasmado. Louvou calorosamente os meus dons de orador e
obrigou-me a jurar que não desistia do meu projecto da conferência;
agora é que era a ocasião azada de a anunciar, dizia ele, visto os
habitantes da cidade terem verificado o meu valor.
Propôs-me uma repetição do discurso sobre a hiena, por
exemplo - sobretudo se me fizesse acompanhar pela fera.
Ora, no dia imediato, o sr. Director cometeu a imprudência de
me não querer pagar. Se eu me não comprometesse por escrito a
exibir-me do mesmo modo na noite seguinte, processar-me-ia por
perdas e danos - declarou-me ele. Oh! o patife! Oh! o bandido!
Acabámos por estabelecer, à boa paz, um acordo: dar-me-ia cinco
coroas. Juntas às três que já me entregara, perfaziam oito, e eu tinha
assim com que tomar o meu bilhete de regresso. Simplesmente, ele
teimava em conservar-se na posse do meu texto de explicação
zoológica.
Discutimos longamente este ponto, porque eu sentia desgosto
em abandonar a minha obra à profanação absoluta. Por outro lado,
era indiscutivelmente propriedade sua, visto que a pagara. Resignei-
me por fim: o homem apreciava tão elevadamente aquele trabalho!...
- Nunca tinha ouvido um trecho de prosa assim - asseverava ele.
- Ontem à noite arrebatou-me mais do que todo e qualquer sermão.
- Veja, veja o senhor - respondi-lhe - a omnipotente influência da
literatura sobre os espíritos!
Foram as minhas últimas palavras. Ao meio-dia meti-me no
combóio para regressar à Capital.
A PESTE BUBÔNICA
Boccaccio
1313 – 1375
Passava já o ano 1348 da fecunda encarnação do filho de Deus,
e a cidade de Florença, nobre entre as de maior fama na Itália, foi
presa de uma mortal epidemia.
Obra de influências astrais, consequência das nossas baixezas
que Deus, na sua justificada cólera, houvesse atirado sobre os
homens, a fim de punir os respectivos crimes, a verdade é que a
peste se declarara anos antes no Oriente, onde vitimara incontáveis
vidas. Prosseguindo imparável a sua marcha, propagou-se, para mal
nosso, ao Ocidente. Nenhuma medida sanitária resultou. Se bem que
se tenham dado ordens específicas aos encarregados das limpezas na
cidade para redobrarem de zelo; se bem que a todos os doentes
fosse proibida a entrada na cidade e se multiplicassem as ordens
quanto à higiene; se bem que se houvesse recorrido às súplicas e
orações na forma de procissões, e ainda às de cariz diferente, em
que os fiéis quase renegam Deus, tudo foi inútil. Mal se declarara a
Primavera do ano a que fiz referência, o horrível flagelo manifestou
de maneira surpreendente as suas implacáveis devastações.
Todavia, não aconteceu como no Oriente, onde o sangrar do
nariz constituía prenúncio infalível de morte próxima; fossem
mulheres, fossem homens, na nossa terra produziam-se inchaços nas
virilhas ou nas axilas, quando a epidemia se declarou. Os tamanhos
desses inchaços variavam, tornando-se alguns semelhantes a maçãs,
outros a um ovo, etc.. Deu-se-lhes a designação de bubões. E
passando dos locais em que inicialmente se haviam declarado, os
bubões, para melhor semearem a morte, rapidamente se declararam
nas mais diferentes partes do corpo.
Passado algum tempo, os sintomas tiveram nova modificação e
surgiram na forma de manchas escuras ou lívidas localizadas nos
braços, nas pernas ou em qualquer outra parte do corpo, por vezes
de grande envergadura e espaçadas, por outras pequenas e muito
próximas entre si. Da mesma forma que inicialmente o bubão fora
indício e ainda se mantinha de morte certa, também as manchas
tinham idêntico significado para os que as contraíam. Tratar a
doença, ou precavê-la, era coisa impossível. Nem receita médica,
nem médico algum, conseguiam combatê-la, ou dar qualquer alívio
aos pacientes condenados. O mal em si vencia os remédios? Seria
culpa dos médicos?
Para além daqueles que estavam devidamente diplomados,
crescera de forma incrível o número de pessoas de ambos os sexos
que exerciam "medicina" sem o mais ínfimo conhecimento prévio.
Seria com esta ignorância que se encontraria o antídoto capaz de
vencer a doença, descobrindo primeiro a origem do mal? Verdade
seja dita, todavia, que as curas eram raras. Três dias após os
primeiros sintomas, fossem eles de que natureza fossem, a vítima
morria. Havia casos de evolução mais acelerada ainda, mas na
generalidade o paciente nem sofria de febres ou tão-pouco de
qualquer perturbação física aparente, para além dos sintomas já
descritos.
A epidemia foi sempre crescendo, em razão dos contactos dos
indivíduos contaminados com aqueles que ainda estavam sãos, tal
como as chamas se propagam na vizinhança de lenha seca ou de
matérias gordurosas. Todavia, o que mais propagou o mal não foi o
contacto dos práticos, devidos ou indevidos, com os doentes, que
depois transmitiam a morte às pessoas sãs; foi também, e
principalmente, o mais simples dos contactos com roupas ou
utensílios dos contaminados, pois através desses objetos a peste
transmitia-se como o vento. Tomem atenção para o prodígio que vou
contar-vos.
Se não o tivesse visto com os meus próprios olhos, aliás como a
muitas outras coisas, dificilmente me atreveria a acreditá-lo, e muito
menos ainda a relatá-lo, ainda que a informação me tivesse chegado
de pessoas cujo crédito fosse irredutível. O flagelo em causa
transmitia-se de uns para os outros com tal intensidade e com uma
naturalidade tão espontânea, que não passava apenas de homem
para homem, antes se verificava assiduamente um fenômeno muito
mais estranho. Fosse um objeto pertença de um doente ou vítima do
mal, tocado por ente sem qualquer relação com os humanos e a
criatura ficava imediatamente contagiada e, além disso, morria num
curtíssimo espaço de tempo.
Atentemos naquilo que entre muitas outras coisas – conforme já
vos disse – os meus olhos viram um dia. Na via pública haviam sido
abandonados os andrajos de um infeliz, vítima da epidemia. Neles
afocinharam dois porcos – é um habito desses animais – e trataram
de despedaçá-los com as patas e os dentes. Logo em seguida
apresentam sintomas de envenenamento, denunciando vertigens e
caindo por terra, mortos, sobre os andrajos que em má hora haviam
arremetido.
Casos como este, e outros ainda bem piores, provocaram, entre
os que sobreviviam ainda, obsessões e pânicos de vária ordem, os
quais, na generalidade, culminavam numa mesma cruel atitude: a
fuga ao contaminado e a tudo o que o rodeava. Intimamente, cada um
pensava ser esta a única forma de obter a própria salvação.
Havia quem pensasse que um viver sóbrio, a abstenção de tudo
quanto parecesse supérfluo, eram condição imposta para o combate
a tão terrível ataque. Assim, formavam o seu clã e mantinham-se
afastados dos outros. Reclusos voluntários, agrupados em casas onde
não havia doentes e nas quais a vida sempre era mais agradável,
ingerindo com a maior moderação alimentos delicados e requintados
vinhos, negando todo e qualquer deboche, sem permitir a quem quer
que fosse que lhes falasse, recusando crédito a qualquer notícia
exterior acerca de mortes ou de doentes, ocupavam-se com a música
e outros entretenimentos austeros.
Outros, porém, procediam de modo bem diverso. Pensavam
estes que o melhor remédio contra vaga tão atroz seria entregarem-
se completamente à bebida e aos prazeres, expandir a alegria pelas
ruas da cidade, trazendo canções nos lábios e satisfazendo tanto
quanto possível apetites e paixões, escarnecendo e minorando os
acontecimentos mais tristes. A fim de aplicarem tais princípios,
saltitavam dia e noite de taberna em taberna, entregando-se ao
vinho, sem conta nem medida. Todavia, nas residências particulares
faziam ainda pior, caso se lhes afigurasse que no respectivo interior
encontrariam os meios para se distraírem. Aliás, era facílimo. Toda a
gente perdera já a esperança de sobreviver, e não deixava apenas os
bens ao abandono, como até as suas próprias pessoas. Assim, a
maior parte das casas pertencia já ao domínio público; e quem lá se
havia impropriamente instalado procedia como se fora o
proprietário, e desnecessário será dizer-se que não só agia com a
brutalidade lógica de tal situação, como ainda queria, a todo o custo,
apartar-se dos empestados.
Face à extraordinária aflição e miséria em que a cidade se
atolava, fácil foi, infelizmente, que o prestígio e a autoridade das leis
divinas e humanas se esboroassem e caíssem por completo. Os
ministros da lei e seus guardas estavam doentes, ou incapazes de
contar com auxiliares passíveis de lhes permitir qualquer
observância das suas funções. Todos podiam, pois, agir de acordo
com os respectivos caprichos momentâneos.
A par destes indivíduos, praticantes dos dois tipos de vida já
referidos, havia muitos que preferiam um meio termo. Sem a mesma
preocupação dos primeiros em restringir a função alimentar,
também não se entregavam a excessos de bebida, e tão-pouco caiam
no deboche dos segundos. Tudo faziam com conta, peso e medida, na
direta razão das suas necessidades. Ao contrário dos que se
encerravam dentro das casas, deambulavam pelos arredores da
cidade, tão depressa mostrando flores que empunhavam, como ervas
aromáticas e várias especiarias. Por vezes, levavam-nas ao nariz, e
pareciam deleitar-se com a preservação do cérebro por meio da
aspiração de perfumes, uma vez que a própria atmosfera dir-se-ía
atacada e envenenada pelo pestilento cheiro dos cadáveres, dos
próprios doentes e dos remédios. Outros, manifestavam maior
crueldade, mas talvez mais prudência, também. Afirmavam ser a
fuga o mais seguro meio de defesa contra os germes do mal.
Imbuídos desta convicção, preocupavam-se apenas consigo próprios,
e grande número de homens e de mulheres abandonavam a cidade,
deixando atrás de si os parentes, os bens móveis e imóveis que eram
sua pertença em demanda das províncias vizinhas; ou, quando muito,
até aos arredores de Florença. Dir-se-ia crerem que a cólera de
Deus, servida pelo Flagelo, se dispensaria, onde quer que eles
estivessem, de atacar as iniquidades dos homens, e que, uma vez
desencadeada, essa cólera se limitaria a abater-se sobre os que
haviam ficado adentro dos muros da cidade. Talvez que os fugitivos
pensassem que ninguém se arriscaria a ficar na cidade e que havia
chegado para Florença o dia do Juízo Final.
Ora, se o simples fato de ser seguido um ou outro método não
significava forçosamente a morte, o certo é que nenhum conseguia
escapar ao seu destino, e fossem quais fossem os princípios seguidos,
eram muitos os que ficavam atingidos, e fosse onde fosse. E eles
próprios, até porque caiam também doentes, haviam servido de
exemplo aos que continuavam sãos. Será necessário salientar que os
cidadãos de Florença fugiam uns dos outros, e que nenhum se
preocupava com os vizinhos? As visitas familiares, se e quando
aconteciam, eram raras e só de longe em longe. A calamidade
incutira tanto terror entre os homens e as mulheres, que irmão
abandonava o irmão, tio desprezava o sobrinho, irmã esquecia o
irmão, e bastas vezes o mesmo acontecia até em relação a mulher e
marido. E o que é pior ainda e quase inaceitável – pais e mães
evitavam visitar e dar auxílio aos filhos, tal como se eles não mais
lhes pertencessem.
Para os doentes de ambos os sexos – o número era incalculável
– não havia apoio algum além da caridade dos amigos e bem poucos
foram aqueles privilegiados dessa forma. Restava ainda a avareza
dos criados. Dados os enormes ordenados que lhes ofereciam, muitos
mantinham-se ainda ao serviço. Todavia, e mau grado os aliciantes
salários, não aumentara o número de serviçais, ao passo que todos,
homens ou mulheres, procediam de rude modo e, na grande maioria
dos casos, não tinham qualquer prática do serviço doméstico.
Limitavam as suas funções à entrega aos amos daquilo que eles
pediam, e a assisti-los quando chegava a morte. E mesmo assim,
precisamente por causa do alto preço com que lhes pagavam os seus
serviços, corriam amiudadamente para a sua própria perdição.
Ora, uma vez que vizinhos, parentes e amigos desprezavam os
doentes, e devido ao crescente rarear de criadagem, foi estabelecida
uma prática jamais conhecida entre os florentinos. Fosse qual fosse a
elegância, a beleza ou a categoria social de uma mulher atingida pela
praga, não tinha ela o mínimo escrúpulo em ser assistida pelo
homem, fosse que homem fosse, jovem ou velho, e tão-pouco de lhe
mostrar, sem o mínimo pudor, todas as intimidades do seu corpo,
exatamente como teria feito se assistida por uma mulher. E natural
terá sido que, entre aqueles que acabaram por se curar, tais práticas
originassem costumes mais dissolutos.
Os abandonados causavam a morte em muitas pessoas que, a
serem socorridas a devido tempo, talvez pudessem ter sido salvas. E
porque os doentes não recebiam os devidos cuidados, e a epidemia
não deixasse de alastrar, os cidadãos que morriam dia e noite
somavam número tão elevado que se teria ficado abismado ao ouvi-
lo; e mais abismado ainda, se do caos se fosse testemunha. Por fim,
forçados pela necessidade, foram estabelecidos entre os que
sobreviviam costumes totalmente opostos aos antigos.
Era costume e persiste ainda nos nossos dias – que senhoras,
primas ou vizinhas de um morto, se reunissem na casa do defunto
para juntar as suas lágrimas àquelas que vertiam os parentes mais
próximos. Também frente à casa mortuária vizinhos e muitos outros
burgueses reuniam-se em grupo, com a família do defunto. Os padres
também estavam presentes, em número equivalente à categoria
social do morto. Em seguida, pessoas da mesma condição do defunto
carregavam o féretro aos ombros e levavam-no para igreja escolhida
antes da morte. Todavia, uma vez iniciada a epidemia em toda a sua
violência, estas práticas ou cessaram de todo em todo, ou pelo menos
em grande parte. Em sua substituição outras foram estabelecidas.
Grande número de pessoas falecia sem que ao seu redor houvesse a
presença costumada de numerosa assistência feminina. Outras
morriam sem quaisquer testemunhas. E raras foram as que
morreram sem que lhes faltassem as piedosas lamentações e os
amargos cânticos de todos os seus. Agora, ao riso e às brincadeiras
costumados de um grupo a quem a festa torna eufórico, haviam
sucedido os antigos ritos. Esquecidas da sua natural piedade quanto
às coisas próprias da saúde, as mulheres, e em geral faziam-no
satisfeitas, curvavam-se perante os novos costumes. Assim, muito
raros foram aqueles cujos corpos surgiram à entrada da igreja
acompanhados por dez ou doze vizinhos.
Todavia, nem mesmo nesses casos se tratava de pessoas
distintas nem de burgueses cotados, antes não se sabe que espécie
de coveiros oriundos da ralé, que se haviam arvorado papa-defuntos
e cujos serviços foram regiamente pagos. Agarravam no caixão,
levavam-no à pressa, e não iam para a igreja que o morto escolhera
antes de morrer, mas sim, e geralmente, para aquela que ficava mais
perto. À frente deste estranho cortejo seguiam sacerdotes, entre
quatro e seis, gritando um escasso salmo, que por vezes nem sequer
existia. Auxiliados pelos papa-defuntos, e sem se preocuparem com a
efetivação de um ofício longo e solene, depunham o caixão, o mais
depressa possível, na primeira cova vazia que encontravam.
De resto, a gente humilde e, talvez até grande parte da classe
média, oferecia um espectáculo de uma miséria muitíssimo mais
dolorosa. A miséria (ou então qualquer vaga esperança de chegar à
salvação) mantinha dentro de casa a maioria das pessoas. Não se
afastavam do bairro e, assim, eram milhares os que diariamente
caiam doentes. Porque não tinham ninguém que os socorresse ou os
servisse, obviamente morriam sem redenção. Muitas dessas pessoas
expiravam de dia ou de noite em plena via pública; e grande número
de outras, apesar de morrerem em casa, davam a conhecer aos
vizinhos a sua própria morte, através de um infecto cheiro de carne
em decomposição. Por todos os lados viam-se desses cadáveres, e os
cadáveres de outros que por todos os lados caiam mortos.
Entretanto, via-se entre os vizinhos dos mortos a seguinte
atitude ditada pelo terrível perigo representado pela putrefação dos
corpos e pelo descuido com que alguns defuntos foram conservados
em casa: Os próprios vizinhos, sempre que possível e com a ajuda de
alguns serventes, tiravam os corpos do interior das casas e
expunham-nos frente às respectivas portas. Quem por essas
localidades passasse especialmente de manhã veria um considerável
número de cadáveres.
Mais tarde, vinham os caixões e, se o pedido da urna ficava sem
efeito, depunha-se o corpo sobre uma tábua. Aconteceu mais do que
uma vez um caixote servir de transporte a um, a dois ou a três
cadáveres. Era igualmente normal que as mesmas tábuas
contivessem marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, enfim,
qualquer par deste tipo. Haverá alguém que possa enumerar quantas
vezes dois padres, empunhando a cruz, ao acompanharem um
enterro, não foram seguidos por três ou quatro caixões levados pelos
carregadores? Julgando ter apenas um morto para sepultar, os
sacerdotes, por vezes, deparavam com sete ou oito ou mais ainda.
Nem assim, todavia, os infelizes eram louvados com as lágrimas, com
os carpires ou cortejo. Ora, esse mérito tornara-se tão banal, que as
pessoas ficavam tão preocupadas com o desaparecimento de uma
outra, como hoje o desaparecimento de uma cabra preocupa as
pessoas. Então, o que a vida comum e a fraca sucessão das nossas
desgraças nem sequer aos homens mais avisados ensinara a suportar
despreocupadamente, foi conseguido pela amplitude da catástrofe, a
qual, como se verificou então, ensinou as mentes mais simples a não
dar significado às coisas de grande importância.
Face à massa de cadáveres a que já me referi, cujos transportes
convergiam todos os dias e a quase todas as horas para todas as
igrejas, em breve os cemitérios se tornaram incapacitados para
tanta sepultura, sobretudo na observância da antiga tradição, que
obrigava a doação a cada um dos cadáveres de um local próprio.
Mas como chegasse o dia em que todas as tumbas estavam ocupadas,
abriram-se nos cemitérios contíguos às igrejas algumas valas mais
profundas, para o interior das quais foram atirados, às centenas, os
recém-chegados cadáveres. Tal como nas amuradas dos navios a
mercadoria é empilhada em diversas camadas, também os cadáveres
em causa eram cobertos com uma pazada de terra, e imediatamente
atiravam sobre eles outros cadáveres, até que se atingisse a
superfície da vala.
Privemo-nos de passar uma revista pormenorizada a todos os
males que atingiram a cidade, mas direi que esses dias tão
desastrosos para Florença nem tão-pouco pouparam os campos
vizinhos. Esqueçamos as aldeolas, afinal cidades mais pequenas, mas
nos lugarejos que pontilhavam a planície não havia o socorro de um
médico, nem tão-pouco criados que pudessem prestar qualquer
auxílio. Nas estradas, nos campos ou nas residências, os infelizes
camponeses e as respectivas famílias morriam de noite e de dia, mais
como animais do que como seres humanos. Presas de uma
indiferença em nada inferior à dos habitantes da cidade quanto às
práticas quotidianas, abandonavam os seus bens e dir-se-ia
esperarem a qualquer hora a chegada da morte; e em vez de
cuidarem do rendimento dos rebanhos, das terras e de tudo quanto
exige esforço de preparação, pois o dia seguinte não lhes
interessava, pensavam apenas em gastar o que haviam ganho até
então. Consequentemente, bois, burros, ovelhas, cabras, porcos,
frangos e mesmo cães – os mais leais amigos do homem – eram
expulsos dos próprios recintos e, entregues a si próprios, erravam
pelos campos (cujas searas não haviam ainda sido ceifadas, nem tão-
pouco mondadas). Muitos desses animais, a exemplo dos seres
racionais, comiam bem ao longo do dia e à noite regressavam à
herdade, sem que fosse necessário ter-se erguido o chamamento do
pastor.
Deixemos, porém, o campo, e regressemos à cidade. Que mais
se poderá dizer? A crueldade do céu – e talvez a dos homens – foi tão
rígida, foi tal a violência da epidemia que grassou de Março até
Julho, a multidão de doentes foi tão mal socorrida, ou mesmo
abandonada numa indigência tal – devido ao medo que inspirava às
pessoas não atingidas – que é calculável com segurança em mais de
cem mil o total de pessoas que perderam a vida adentro dos muros
de Florença. E antes desta calamidade é bem possível que ninguém
calculasse ter a nossa cidade tal quantidade de gente. Quantos
palácios, quantas belas casas, quantas habitações igualmente cheias
de criados, de senhores e de damas, ficaram sem ninguém, até
mesmo sem o mais humilde servidor! Quantas famílias ilustres,
quantas importantes mansões, quantas famosas fortunas, ficaram
sem herdeiros legítimos! Quantos senhores nobres, damas belíssimas
e graciosos jovens, aos quais não apenas a Faculdade, mas também
Galeno, Hipócrates e mesmo Esculápio, teriam passado atestados de
robusta compleição física, se sentaram para a refeição matinal na
companhia dos pais, dos camaradas e dos amigos, para nessa mesma
noite se sentarem à ceia com os antepassados, já no outro mundo!
Todavia, até eu sinto uma certa repugnância em relatar-lhes
todos os pormenores de tamanha miséria. E de agora em diante
evitarei focar qualquer tema, seja ele qual for, desde que possa
silenciá-lo.
DOIS TALENTOS
Gueorgui P. Stamatov

Irmov desceu do fiacre diante do hotel, que mais parecia uma


estalagem, mandou descarregar as malas, pagou a corrida, sem se
esquecer da gorjeta, e entrou no café do rés-do-chão.
O dono acolheu-o respeitosamente.
- Mande-me o preciso para me lavar, acender o lume e arranjar
para o jantar qualquer coisa leve: um caldo de frango e dois ovos
escalfados. Tenho o estômago fraco - desculpou-se.
O dono prometeu tratar de tudo. Os estômagos fracos pagavam
bem e, além disso, aquele cavalheiro parecia ser alguém. O corte do
sobretudo revelava que era de Sófia.
Os clientes do café examinaram atentamente o recém-chegado.
A ementa encomendada fê-los sorrir: seria possível que um estômago
búlgaro não fosse capaz de digerir qualquer coisa?
Precedido pelo novo cliente, o estalajadeiro subiu ao primeiro
andar, o que deu livre curso aos comentários.
- Quem será?
- Um engenheiro. Passam por cá alguns.
- Um inspector...
- Um inspector? Para inspeccionar o quê? Não há na região cem
moedas na mesma caixa.
- Talvez esteja apenas de passagem...
- Para ir aonde? Estamos no fim do mundo.
Uma hora depois, Irmov desceu - lavado, friccionado, com outro
fato - e sentou-se a uma mesa juncada de jornais em que se não
atreveu a tocar por estarem muito sujos.
- O meu jantar está pronto? - perguntou.
- Queira passar para a sala ao lado, senhor. Pus-lhe a mesa na
sala de jantar dos senhores funcionários.
Irmov dirigiu-se para a divisão contígua, onde já se encontravam
cinco ou seis notáveis. Uns liam o jornal, outros falavam de culinária,
criticando o cozinheiro do ano anterior. O recém-chegado sentou-se,
tossiu e depois de entalar a ponta do guardanapo no colarinho da
camisa esperou, mexendo maquinalmente no talher. Os comensais
largaram os jornais, calaram-se e puseram-se a examiná-lo com olhos
curiosos e invejosos. Odiavam instintivamente aquele homem vindo
de um mundo estranho que não podiam esperar conhecer. O intruso
nem sequer os via ou simulava não os ver, o que só contribuiu para
excitar a sua animosidade. De boa vontade arranjariam maneira de
zombar dele se não fosse o receio de toparem com algum figurão
importante que os varresse com um piparote. Cada um julgava ver
nele um emissário do seu céu administrativo.
Acabado o jantar, Irmov pediu que lhe levassem o café ao
quarto e o acordassem cedo e retirou-se.
Todas as bocas se abriram imediatamente para interrogar o
estalajadeiro.
Foi grande a decepção quando souberam que o viajante se
inscrevera como escritor.
- E eu que o julgava o inspector-chefe!
- Malditos escritores! Essa gente só se alimenta de caldos?
Os espíritos acalmaram-se. Aqueles que momentos antes
receavam a inspecção das suas caixas pediram o tabuleiro do gamão.
Tanto pior para o escritor, que talvez já estivesse a estigmatizá-los lá
em cima com a pena acerada! Não era perigoso; não podia
perturbar-lhes a quietude; não era um inspector.
No dia seguinte, Irmov foi ao liceu a fim de falar com um
professor que lhe poderia arranjar documentação para o seu futuro
romance histórico. O homenzinho quase sucumbiu ao saber com
quem falava, antes de reconhecer que mal lera as obras do seu
interlocutor.
- Ah, Sr. Irmov, se soubesse como a província dá cabo de um
homem! Sobretudo de nós, professores. Suga-nos o sangue,
transforma-nos em conserva. Não é que não gostemos de ler, mas
que ganhamos com isso? Para viver e morrer aqui até já li de mais. A
Bulgária sacrifica-nos e nós resignamo-nos em troca de um bocado
de pão. Aqui perde-se toda a vontade de viver e quando não apetece
viver, um homem, se não é um cadáver, é pelo menos um doente.
Passamos a vida a fazer dieta.
E como Irmov não dissesse nada, prosseguiu:
- Dir-me-á que a leitura é um fim em si e não um meio... Engana-
se! Um livro não passa de um livro e nunca poderia substituir um ser
vivo. Há momentos em que preferiria a companhia de um bom amigo,
mesmo ignorante, a todos os alfarrábios.
O livro, sem o contacto humano, é assustador. Provoca sonhos e
apetites que há muito tempo nos estão profissionalmente vedados.
Acredita se lhe disser que às vezes me dá vontade de fugir deste
buraco e de ir para um lado qualquer? Não me importaria de ir para
Sófia e tornar-me criado de café. Lá a vida sempre é menos vazia. Se
fosse Napoleão destruiria estes recantos perdidos, onde o isolamento
é mais terrível do que a miséria e a fome... este isolamento perpétuo.
Aqui somos capazes de saltar de alegria, como garotos, diante de
uma locomotiva ou até de um simples fiacre. Desabituamo-nos da
poesia, da música, das canções e esquecemos as carícias de uma
mulher. Às vezes uma camponesa entusiasma-nos mais do que vos
seduzem as vossas beldades decotadas nos bailes. Atrofiámo-nos e
parecemos múmias que, no entanto, respiram, pensam e sentem -
dentro dos limites prescritos pelo orçamento e pelo ministério.
Irmov, que o escutava, compreendia perfeitamente e no mais
íntimo do coração agradecia ao acaso tê-lo poupado a semelhante
provação. Nunca conseguiria resignar-se... «Pobres homens!»,
pensou, sem sequer procurar uma palavra de consolação.
Passeando sem destino, passaram por uma grande casa de
primeiro andar, cujo rés-do-chão estava ocupado por uma loja. Da
parte de trás adivinhava-se um pátio amplo.
No primeiro andar havia uma varanda.
- De quem é esta casa?
- Pertence a um velho ricaço cujos bens são todos administrados
pelo genro, Linovski. Duvido que o conheça. É o senhor incontestado
da região. Não tardará nada que não seja deputado, embora há
muito mereça a forca.
- Linovski?... Conheci noutros tempos um Linovski que estudava
Direito em Franca.
Mais tarde teve contas a ajustar com a justiça a propósito de
uma história de diploma falso.
- Isso são águas passadas. Agora até falsifica o leite que os
filhos bebem, mas nisso a lei não pode fazer nada.
- Trata-se, portanto, do mesmo Linovski?
- Provavelmente. É impossível haver dois do mesmo quilate;
deve ser único na Bulgária. Só visto: não teme Deus nem o Diabo.
Não tardaram a separar-se e Irmov dirigiu-se para o
restaurante.
A sua mesa estava ocupada por numeroso grupo constituído por
homens e mulheres.
Tinha o talher no mesmo sítio, mas para passar teve de
incomodar alguns comensais.
- «Pardon» - disse delicadamente.
Pediram-lhe desculpa por lhe terem ocupado a mesa...
- Por quem são, não tem importância! É um prazer para mim...
Cinco minutos depois conhecia toda a gente.
- Dr. Ivanov!...
- Rankov, magistrado...
- Markov, professor...
- Capitão Chevronov...
- Sra. Untel... Etc.
Quando souberam que Irmov tencionava visitar no dia seguinte
uma aldeia vizinha, decidiram acompanhá-lo até casa do comandante
dos guardas-fronteiras.
- Levaremos comida e bebidas...
- Haverá lua cheia...
- Mas nada de fiacre! De trenó! - insistiam as senhoras.
- E dividiremos as despesas - concluiu uma voz.
A ideia do piquenique excitou os espíritos e cada um olhou
disfarçadamente para os outros na esperança de ver alguém
oferecer uma rodada.
Mas ninguém se decidia. Por fim, Irmov chamou o dono do
restaurante.
- Cerveja, por favor!
- Quantas?
- Como quantas? Tantas canecas quantos estamos sentados à
mesa: dez.
O grupo esboçou um sorriso beato.
- E aperitivos - acrescentou Irmov. - Qualquer coisa leve. E para
as senhoras?
- Também bebem cerveja - respondeu uma voz de homem.
As senhoras sorriram modestamente.
Veio a cerveja e toda a gente bebeu à saúde de Irmov, que se
esforçava por ser amável interrogando todos acerca da sua vida, dos
seus amigos e das suas distracções.
- Nem me fale nisso! - redarguiu o capitão. - Um verdadeiro
túmulo. Um homem deixa o Clube Militar de Sófia e cai nesta
pocilga...
- Vocês, militares, não têm razão para se queixar! São os
meninos bonitos da Bulgária - interveio o doutor. - Que faz você
aqui? De dia descansa e de noite diverte-se por aí enquanto espera
pelo princípio do mês para receber o seu soldo de 400 leva ou mais...
- Não é bem assim. Guardamos a fronteira: Os Sérvios, hem...
Parece que se preparam para atacar a Áustria...
- Não me venha com histórias dessas. O mais que os Sérvios
podem preparar para a Áustria é chouriços! Fale-me antes da sorte
que nos está reservada a nós, pobres diabos. Durante todo o mês
corremos a região de uma ponta à outra, acordam-nos de noite ao
mais pequeno sinal de febre e quando o doente se apanha tratado
somos todos amigos e conhecidos e ninguém nos paga as visitas.
Como se a medicina fosse um negócio de amigos!
- Qual é o estado sanitário da região? - perguntou Irmov.
- Só lhe digo isto: as consultas deviam dar dez mil leva por ano,
mas não tiro mais de cinquenta. A gente destes sítios é assim:
prefere morrer a pagar as consultas.
- Portanto, os seus honorários não lhe chegam?
- Nem sequer para o pão, e a ciência avança! É preciso comprar
livros e revistas, estar a par do progresso.
- Cala-te aí! Só pelos certificados que passaste aos taberneiros
recebeste quinhentos leva. E nós? Duzentos e trinta e seis leva -
duzentos e trinta e seis! -, quer chova, quer faça vento! A região está
à nossa mercê, dispomos da vida das pessoas e podemos mandá-las
para a forca, mas vivemos como amanuenses. Nem sequer temos
dinheiro para nos casarmos! - interveio o magistrado.
- Porque não exerce a advocacia?
- É o que tenciono fazer daqui a dois anos, depois de me
reformar.
Em suma, ninguém estava contente com a sua sorte, todos
tinham razões de queixa contra o país. Irmov fazia o possível para
não os interromper.
- Em meu entender - perorava o capitão -, ou se tem um exército
como deve ser ou não se tem! O exército é a trave mestra do Estado.
Não nos esqueçamos de que um oficial não é um civil! «Se quereis a
paz, preparai a guerra», dizia Napoleão. «Ergo», pagai bem aos
vossos oficiais.
- Acima de tudo o povo deve ser saudável: povo doente, cidadãos
doentes, exército doente. «Mens sana in corpore sano». Logo, os
médicos deveriam ser os mais bem pagos.
- O objectivo final de todas as coisas é a justiça e nós
distribuímo-la aos civis e aos militares, aos doentes e aos que têm
saúde... «A Inglaterra», disse não sei que filósofo, «mantém a sua
esquadra e o seu exército para assegurar a alguns magistrados as
suas prebendas.» Aqui têm por que motivo a situação do magistrado
deve ser a mais estável.
O grupo contava também com um professor primário rural que
escutava os outros sem se atrever a queixar-se, com vergonha de ter
de revelar o montante do seu vencimento, tanto mais que ainda por
cima não conhecia nenhum sábio que pudesse citar a favor dos
professores primários búlgaros.
Irmov não tardou a pedir segunda rodada. Pouco a pouco, a
conversa perdeu o seu carácter abstracto e cedeu o lugar às
anedotas da terra. As senhoras presentes tomaram então ares
virginais a ponto de perderem toda a graça. Depois cantou-se e
Irmov mandou vir terceira rodada que lhe conquistou as simpatias
gerais. Chegaram a perguntar-lhe onde poderiam encontrar as suas
obras.
- Escritor, hem?... Os escritores são uns felizardos, segundo me
consta...
- Oh, sabem-na toda! Botam uma história no papel num abrir e
fechar de olhos e pumba! Cem leva. Parece que Vazov tem mandado
fazer casas graças aos seus romances.
- Ao passo que nós esprememos os miolos por duzentos leva por
mês.
Depois de cantarem, dançaram. Encostaram as mesas às
paredes e improvisaram uma pista de dança animada por dois
violinistas ciganos acordados em sobressalto.
A boa disposição atingiu o cúmulo quando, saudado com um
«hurra!» unânime, Irmov declarou que pagava toda a conta.
- Não está certo - cochichou uma voz. - Nós é que o convidámos
e deixá-lo pagar...
- Ele é que quis...
- Deveríamos pagar ao menos uma parte. Que irá pensar? Se se
lembrasse de nos retratar em qualquer dos seus livros...
- Seria o bastante para reembolsar a despesa.
O serão prolongou-se até às quatro horas da manhã, quando
resolveram sair, o dono satisfeitíssimo com o cliente, correu ao seu
encontro com o sobretudo. Na rua, a algazarra acordou todo o burgo
mergulhado num sono patriarcal. Mas o comissário acompanhava-os
e a patrulha nocturna fez vista grossa.
Depois da sua conversa com o professor, Irmov encontrou
Linovski diversas vezes, mas ou deu meia volta ou meteu por uma rua
lateral. Em estudante não quisera estender a mão a semelhante
homem; com mais forte razão se devia abster agora de lha apertar,
uma vez que o sabia rico e senhor incontestado da região, o que
provava terem razão aqueles que o consideravam capaz de tudo.
Mas uma dia encontraram-se cara a cara, Irmov não o pôde
evitar e parou involuntariamente.
- Irmov! És tu? Procurei-te quando soube da tua chegada e
informaram-me que andavas a visitar as aldeias à procura de
elementos para um novo livro... Um romance? Não percebo muito
disso, mas tenho lido as tuas obras. Continuas a viver nas nuvens, os
teus heróis são marcianos... todos honestos... nem um só mau.
Ainda ficas por cá uns dias, não é verdade? Gostaria de te voltar
a encontrar, de conversar um bocadinho contigo. Há quantos anos
não nos víamos! Não me esqueço que fomos companheiros de
escola... Esta noite jantas connosco! Não, não, está decidido!
- Receio não poder aceitar - respondeu Irmov indeciso. - Esta
noite tenciono trabalhar...
- Deixa lá isso! Trabalharás em Sófia. Que trabalho pode render
nesta atmosfera?
Olha, vamos directamente para minha casa.
- Estão à minha espera. Combinei encontrar-me com um
professor do liceu.
- Ele que espere... Mandarei o meu empregado preveni-lo. Por
outro lado, que espécie de jantar te espera no hotel? Kolio dá aos
seus clientes comida que os meus porcos recusariam.
- Ele faz-me as refeições à parte.
- Cuidarei da tua dieta. Quanto ao vinho, nunca bebeste nenhum
tão bom. Forneço vinho para toda a região, mas vinho, o que se
chama vinho, sou o único que o bebo!
Os funcionários comem o que lhes dão. Não têm o direito de ser
exigentes. Os seus estômagos estão preparados para resistir às
mixórdias de Kolio durante quinze anos. Depois... acabou-se: funeral,
pensão para as viúvas e para os órfãos-futuros-funcionários... Mas
basta de tagarelice. Vamos! Não imaginas como estou contente.
- Sinceramente, não posso, sinto-me cansado.
- Escuta, Irmov: começo a suspeitar que não queres ir a minha
casa. Esses cavalheiros devem ter-te contado só Deus sabe que
histórias a meu respeito.
- Não digas isso! Quem me poderia falar de ti!
- Todos! Se pudessem, afogavam-me numa gota de água. Não
conseguem perdoar-me que eu, um estrangeiro, os tenha humilhado.
Mas os mosquitos não me metem medo: não picam, limitam-se a
zumbir. Sei muito bem que na universidade ninguém me gramava,
incluindo tu... mas o que lá vai, lá vai. Agora, és um escritor, uma
celebridade... Um dia, talvez dêem o teu nome a esta rua, porque
passaste por cá; mas eu moro aqui mesmo e tens de me visitar!
Irmov não se atreveu a insistir mais na sua recusa. A delicadeza
levou a melhor. «No fim de contas, tenho curiosidade de ver de perto
este homem e o que ainda possa ter de humano», disse de si para si.
Pouco depois entraram numa taberna. Havia camponeses
sentados em grupos à volta das mesas nuas, muito sujas. Um cheiro
insuportável a aguardente feriu o nariz delicado do desprevenido
habitante de Sófia, que fez involuntariamente uma careta.
- Aqui está o nosso perfume nacional! - exclamou, rindo,
Linovski. - Não é tão agradável como o que evocam as tuas novelas...
À direita ficava uma porta que dava para uma loja atulhada de
mercadorias em desordem. Outra porta deitava para o pátio. Junto
da escada chafurdavam diversas porcas prenhes. Um pouco mais
longe, dois homens derrubavam um boi, enquanto outro brandia uma
faca que pouco depois desapareceu no pescoço do animal.
Convulsões horríveis sacudiram a massa viva. Os cascos batiam
no chão e as cordas seguras pelos torcionários pareciam prestes a
partir-se, de tão tensas. O boi morria lentamente, com os olhos
esbugalhados, consciente da violência de que era vítima, sem fazer a
mais pequena ideia da sorte dos seus congéneres ocidentais, que
morrem sem terem tempo de o pressentir. Sem querer, Irmov
desviou a vista.
Linovski esteve um bocado a olhar calmamente o boi e depois
dirigiu-se a Irmov.
- Isto não se parece nada com os teus temas, mas é a vida. O
tema é rude... carece de inspiração artística... Os lucros são, porém,
respeitáveis, muito mais importantes do que os teus honorários.
Repara naquela porca que se espoja na lama: dir-se-ia que se julga
no Hotel Rosa... Sabes que gastei mais dinheiro a criá-la do que
recebeste de prémio no último concurso pela tua obra? Peço
desculpa deste paralelo, mas é assim. O ambiente não é poético, mas
para mim só o resultado conta. O dinheiro é só um: tanto serve para
pagar a quem escreve um romance sentimental como a quem limpa
latrinas. É isto que a humanidade não quer compreender e é por isso
que existem infelizes. Sei que és doutra opinião. Para vocês, o
dinheiro tem o seu «curriculum vitae» e deve ser limpo, nobre. Mas o
mundo está feito assim: os trabalhos sujos rendem mais porque nem
todos se querem dedicar a eles.
Saíram e dirigiram-se para casa de Linovski.
Irmov observava-o de soslaio e admirava-se da sua calma, da
sua indiferença e da sua boa disposição. «Não sentirá nada? Terá
esquecido tudo? Será possível que o contacto com as porcas tenha
destruído nele todo o impulso humano?»
Chegaram por fim, subiram ao primeiro andar percorreram um
corredor e entraram numa grande sala de jantar mobilada como as
de Sófia: grande mesa quadrada cadeiras de espaldar alto e um
grande guarda-louça encostado à parede. Os talheres estavam no
seu lugar rodeando uma bateria de garrafas cheias de aguardente e
de pratos repletos de aperitivos. Através de uma porta aberta
divisava-se a sala de visitas. Debaixo do retrato de um príncipe, o
inevitável piano e paisagens nas outras paredes. Por toda a parte
cadeiras estofadas e sem cobertura.
Irmov estava impressionado. Já virá interiores mais opulentos -
não o seu, evidentemente -, mas aquele causava-lhe um mal-estar
inexplicável. Linovski adivinhou-lhe os pensamentos.
- Isto surpreende-te, hem? «Será este o mesmo Linovski a quem
ninguém emprestava um chavo por saber que se absteria de o
pagar?» Mas que vale isto comparado com o teu destino? Glória,
imortalidade, monumentos... Nota, porém, uma coisa: apesar de
tudo, nós contamos na vida, embora escondamos da mão direita o
que faz a esquerda...
- Uma mão esquerda que vale mais do que muitas direitas... -
interrompeu-o Irmov rindo. - Pela minha parte, nunca conseguiria
ganhar tudo isto, nem que trabalhasse cem anos.
- Vocês transpõem tudo para pensamento e imagens, ao passo
que nós trocamos o cérebro por bom metal sonante.
Neste momento ouviu-se no corredor uma algazarra
comparável à que faria um grupo de soldados a tomar a casa de
assalto. A porta abriu-se com estrépito e deu passagem aos filhos de
Linovski, que entraram esbaforidos.
- Como vês, só sei criar porcos - disse o pai sorrindo.
Os garotos rodearam-nos e examinaram com curiosidade o
convidado.
- Cumprimentem este senhor.
Uma a uma, as crianças estenderam a mãozinha a Irmov.
- Bonitos e fortes rapazes - observou Irmov.
- Vivem em completa liberdade e os castigos corporais estão
proibidos. Também tenho os meus princípios. Se quisermos que as
crianças nunca temam ninguém, não as devemos assustar. Os
estudos não os tentam por aí além, e de resto também não insisto
muito com eles para que estudem, mas todos tirarão o seu curso dos
liceus. Em seguida procederemos à escolha. Sobretudo nada de
funcionários! Não precisam de reforma; já a assegurei a cada um
deles. Eh, Ivan, chega aqui!
Um dos garotos aproximou-se.
- Ouve, gostavas de ser oficial?
- Não, paizinho.
- E funcionário?
- Não.
- Professor?
- Também não, paizinho. Os professores trazem as calças rotas.
- Então que gostarias de ser?
- Comerciante como tu.
- Porquê?
- Para toda a gente me vir pedir dinheiro e eu não o dar a
ninguém.
Linovski riu e Irmov franziu o sobrolho.
- Agora, meus filhos, retirem-se. Hoje jantarão nos vossos
quartos. Petre levá-los-á de carro à quinta. Querem ir?
- Sim, sim!
E os garotos saíram.
- Disciplina e tratamento humano... sem qualquer espécie de
pieguice nem violência.
- A tua educação é um bocadinho original. Sufocas nos teus
filhos toda a veleidade humana. Há muito tempo que os preparas
para o ofício de usurário?
- Continua, continua. Conheço essas teorias. Ter-me-iam
deixado sem eira nem beira se não tivesse tomado o cuidado de me
livrar delas. Em todo o caso, espero que reconheças que não quero o
mal dos meus filhos.
- Pois sim, mas a tua teoria é falsa. A vida é um duche frio
mesmo para os jovens mais românticos, sem que seja necessário
fazê-los passar por uma escola especial.
Portanto, se ainda por cima lhes despertares desde pequenos os
instintos primários, farás deles feras, canibais.
- Não tenho a mais pequena intenção de os fazer missionários. A
vida é um jardim zoológico e, se queres saber a minha opinião, não
compreendo a quem destinas os teus livros. Li alguns e vi um dos
teus dramas no teatro. Para ser franco, não compreendo que pessoas
sensatas possam acreditar no advento do mundo com que sonhas.
- Devemos então regressar ao estado selvagem?
- Porquê regressar? Já estamos nele! Escuta, Irmov não fomos
feitos para nos entendermos, tu e eu. Não somos da mesma massa.
Tu não pertences a este mundo, ao passo que eu sou búlgaro da
cabeça aos pés, com uma grande barriga no meio. É por ela que
adivinho, sinto, vejo e sei que um dia os meus filhos me abençoarão.
Dir-me-ás que sou rico, que o seu futuro está assegurado... e nesse
caso que adianta dar-lhe esta educação? Perdão, meu caro! Não há
nada absolutamente seguro na Terra. Claro que tu não tens nada a
recear, pois ninguém te pode penhorar o cérebro, mas o mesmo não
acontece com outras coisas. Até os edifícios mais sólidos estão
sujeitos a desaparecer «como fumo»! Para isso basta às vezes
aparecer um oficial de diligências com uma citação judicial. Tu não
os temes, mas pergunta em toda a região o que mais receiam: se a
cólera ou o oficial de diligências. Se amanhã fechar os olhos, tudo se
desmoronará. Conselho de família, tutela, advogados, tribunais... Sei
alguma coisa a esse respeito. Aqui tens por que motivo lhes ensino a
mostrarem as presas desde pequenos. Não me esqueço que vivemos
na Bulgária. Mas já basta... Vamos jantar e, «en attendant» (,
bebamos um copo! Conhaque ou slivova?
- Tanto me faz.
Linovski encheu os copos.
- À tua! Serve-te de aperitivos, não faças cerimónia. Estou muito
contente por tornar a ver-te. Bem sei, bem sei, não vale a pena
desculpares-te, este encontro não te foi agradável... Mas não te
quero mal por isso. O mundo é assim e cada um é como é.
Eu surpreendo-te e tu surpreendes-me. Seria preferível que
ninguém surpreendesse ninguém. Nunca encontrei aqui nada que me
surpreendesse desde que cheguei.
Para onde estás a olhar? Para o piano? O instrumento faz supor
a existência de um pianista? De modo nenhum. Talvez tenhas
vontade de me perguntar se o comprei para a minha mulher ou para
os meus filhos... Nem por sombras: só para ter o prazer de o
possuir! Para que toda a gente saiba que o possuo e que sou o único
que tenho um piano neste buraco.
Neste instante apareceu uma mulher elegante, muito bonita,
alta, e Linovski apresentou-a a Irmov. «Que beldade!», pensou este,
olhando involuntariamente para o seu anfitrião.
Linovski sabia que a mulher causaria impressão e sorria
satisfeito consigo mesmo.
O seu olhar parecia dizer: «Como vês, também nisto soube
escolher bem.»
O jantar foi servido, abundante e magnificamente regado.
Quando acabaram, Linovski estava com um grão na asa e praguejava
sem ter em conta a presença da mulher. Ouviu-se uma voz infantil na
sala contígua e a dona da casa retirou-se.
Linovski enchia os copos, brindava à saúde de Irmov que mal
tocava no seu e, esquecido das conveniências bebia sozinho sem
nunca se calar. Não tardou a embebedar-se. Estava corado e nos
olhos em brasa brilhava-lhe uma sinceridade canalha.
- Eu sei, compreendo tudo... Não sou escritor nem filósofo, mas
leio nos teus olhos o que pensas de mim. Falaram-te, contaram-te
tudo a meu respeito...
- Ninguém me disse nada.
- Vai impingir essa a outro! Conheço a humanidade mas não
tenho o hábito de lhe devassar a alma. Para que serve a alma das
pessoas? Vale menos do que uma pele de cabra. Basta de falsidade...
Tu ao menos conheces a história do meu diploma e não tens prazer
nenhum em estar aqui comigo, um falsário. Tens vergonha de mim,
mas eu não tenho vergonha de ninguém, ouviste? De ninguém! Na
Bulgária não vale a pena ter vergonha; toda a gente rouba, cada um
a seu modo. Só vocês fogem à regra; alimentam-se de ar e de glória
e não precisam de dinheiro. Meu caro amigo, vocês são escritores e
psicólogos... Conhecem o homem, mas não conhecem a Bulgária.
Escrevem livros, têm experiência da vida, mas não sabem viver.
Toda a Bulgária te conhece e apontam-te a dedo em Sófia. Repartes
a tua sabedoria com o mundo inteiro, mas não possuis casa própria.
Sei que voas muito alto, que para ti não passo de um insectozinho
nojento - um piolho -, que te repugna estares aqui a ouvir-me e que,
se ainda cá estás, é porque ninguém te vê. Se me encontrasses em
Sófia, evitar-me-ias metendo por outra rua, mas alguma vez te
debruçaste sobre a minha vida? Toda a Bulgária me caiu em cima
quando descobriram que o meu diploma era falso. Voaram
telegramas para todos os centros universitários da Europa, o
Ministério Público perdeu a tramontana e pouco faltou para me
comerem vivo. Fui incriminado, mas o processo desapareceu e, claro,
toda a gente suspeitou de mim. Para quê negar? Roubei-o. E se o não
tivesse conseguido roubar, não hesitaria em deitar fogo ao Palácio da
Justiça, em incendiar Sófia. Meu amigo, é fácil pregar acerca dos
homens, das ideias puras, da fidelidade aos princípios, quando se
nasceu de pais decentes, num quarto bem aquecido e desde a escola
primária se usaram luvas quentes e galochas; quando, aluno do liceu,
se teve relógio e pasta e se foi acompanhado por um pai que nos
matriculou numa universidade ocidental e instalou numa pensão
familiar, a fim de preservar de possíveis danos o nosso estômago
sensível. Eu tive a rua desde que nasci, nu em pêlo, andei na
vadiagem até aos dez anos e fui aprendiz de estalajadeiro,
taberneiro e barbeiro. Por fim, um pobre imbecil recolheu-me,
alimentou-me e mandou-me para o liceu. Que vida passei em casa
dele! Antes nunca soubera o que fosse comer todos os dias. Os
estudos não me corriam muito bem, mas mesmo assim consegui
passar cinco anos seguidos. Depois pôs-me na rua: o canalha acusou-
me de ter roubado o colar de moedas de ouro da mulher. Como vês,
não escondo nada... Agora esfolo toda esta região e sou capaz de
arrancar um filho ao seio da mãe desde que tenha, evidentemente,
um título executório. Enveneno todo um distrito com o meu vinho
falsificado e alimento os meus criados com carne estragada. Sou um
gatuno, um canalha, um porco mais nojento do que a porca que viste
na minha taberna, mas não roubei o colar. Não foi porque não
tivesse necessidade de dinheiro ou não soubesse onde encontrá-lo...
Não. Não o roubei porque então era um imbecil como tu... ainda
tinha princípios: roubar era um crime, aguentar a fome uma proeza.
Saí, pois, de casa do meu benfeitor e tornei-me funcionário,
amanuense. Nessa época viam-nos com os mesmos olhos com que
vocês, escritores, nos vêem agora. Mas pagavam-nos. Passados dois
anos tinha escarpins nos pés, uma bengala na mão e até algumas
economias. Decidi formar-me em Direito. Então admitia-se todo o
bicho careto nas faculdades. Matriculei-me e estudei durante ano e
meio. Faltava-me outro tanto para acabar o curso. Simplesmente,
estava teso. Vocês, os que estiveram no Ocidente, cinco, dez anos,
recebendo todos os meses o seu chequezinho, alguma vez souberam,
porventura, o que fosse estar sem dinheiro, escrever a toda a gente e
não receber um chavo? Então vocês desprezavam-me porque nem
sequer tinha com que comprar tabaco; agora não me toleram porque
os posso comprar. Criticam-me e invejam-me ao mesmo tempo. Tu
também. Julgam que ganhei todo este dinheiro de uma forma vil...
Seja! Mas sabes o que é a vileza? Não, não sabes. É também um
talento, como o teu. Nasce-se escritor como se nasce vigarista.
Compreendes?
Fez uma pausa para deitar mais vinho, despejou o copo e,
depois de limpar os lábios, prosseguiu:
- Lembro-me tão bem do que se passou como se tivesse sido
ontem. Havia três dias que não comia nada. Foi então que me
ocorreu a ideia - apesar dos meus estudos de Direito - de que a
justiça não era deste mundo. Por toda a parte por onde andara,
através da Europa, em busca de trabalho, só conseguira arranjar o
indispensável para viver. Por isso um dia, sem o mais pequeno
remorso, forjei um diploma. Em boa verdade, merecia-o mais do que
muitos outros. Agora defendo todas as minhas causas pessoalmente,
sem precisar de advogados, e não olho a meios para conseguir os
meus fins. Arruinei os maiores trafulhas destes sítios e quando passo
na rua não há ninguém que não trema ao ver-me! Introduzi-me em
todo os cérebros, na alma e na algibeira de cada um, o que não me
impede de dormir tão tranquilo como um recém-nascido. Nem
insónias nem falta de apetite. Porque estás a olhar para mim dessa
maneira, Irmov? Estás espantado, custa-te a acreditar? Julgas que
brinco, que exagero, que estou bêbedo? É verdade que o vinho me
soltou a língua, mas também penso assim quando estou sóbrio. És um
homem singular! Quem és tu para me olhares com essa arrogância,
como se estivesses no cimo da Torre Eiffel? Vocês não foram feitos
para subir tão alto. Têm vertigens com demasiada facilidade, sofrem
de atracção do abismo. Não se julguem eleitos, nascidos para
estabelecer a ordem cá em baixo. Não, Irmov! E não és o único a
quem isso está vedado. Nem Ibsen nem Tolstoi endireitarão alguma
vez o mundo. Mas eu e outros da minha têmpera instauraremos a
ordem na Bulgária, porque sou uma força, o poder... E esmagarei
todo aquele que tentar atravessar-se no meu caminho. Hoje só valho
alguma coisa entre a escumalha; amanhã ver-me-ás no Parlamento.
Forjarei leis e obedecer-me-ás, não serei eu que te obedecerei.
Continua, pois, a rabiscar os teus livros, se não tens nada melhor
para fazer!
Os olhos coruscavam-lhe e o rosto toldava-se-lhe. Um clarão
sinistro iluminava-lhe o olhar, como se revivesse os seus tormentos e
ameaçasse alguém que considerasse responsável pelo que passara.
Irmov estava farto de tudo: de Linovski, da casa dele e do jantar
dele. A náusea dominava-o. E subitamente desejou apenas uma coisa:
sair dali.
- São horas de ir andando, Linovski - disse com um sorriso
forçado, levantando-se.
- O quê, já te queres ir embora? Aborreci-te, estás farto de me
aturar, vexei-te... Tens vergonha de mim, hem? Lamentas ter vindo.
No entanto, não me queiras mal por isto... De qualquer modo, não
serei eu que te farei mudar de ideias. Quando me vires em Sófia, não
me evites; ainda poderás precisar de mim um dia... Sinceramente, se
tivesse feito um esforço para ser como tu, ficaria certamente
amanuense toda a vida e a pensar que a Bulgária era um bom país
para todos, excepto para mim.
- Adeus - despediu-se Irmov.
- Adeus... E quando chegares a Sófia escreve imediatamente um
artigo acerca dos jardins zoológicos da província, desanca-me em
prol das gerações futuras e manda-me o jornaleco, que prometo não
me zangar. Conheço-me bem e se viesse segunda vez ao mundo
viveria da mesma maneira. Com todo o respeito que me mereces,
Irmov, se algum dia vejo os meus filhos escreverem versos corto-lhes
as mãos! Adeus.
No dia seguinte, Irmov deixou a cidade.
Sentado no fiacre, esforçava-se por pensar no seu novo
romance, evocando a memória dos bons búlgaros doutros tempos,
mas, apesar da sua vontade, a imagem de Linovski não lhe saía da
cabeça, nem o som da sua voz.
Chegou à estação e meteu-se no comboio.
Mas mesmo sentado nas almofadas confortáveis do seu
compartimento nada se modificou; não conseguia pensar na capital,
onde a mulher o esperava, nem nos seus camaradas, nem na sua
profissão...
O comboio entrou na estação de Sófia. A mulher de Irmov
esperava-o na gare.
Reparou pela primeira vez que era menos bonita e menos cara
ao seu coração do que imaginava. E, como sempre, a sua saia e
casaco estava um bocadinho coçada.
Tomaram um fiacre. Irmov entrou no seu gabinete de trabalho -
um quartito esconso, mobilado com uma mesa de madeira branca
encostada à parede e coberta de livros e brochuras em desordem - e,
sem saber porquê, sentou-se e mergulhou nos seus pensamentos.
- Irmov - chamou-o a voz da mulher -, vem jantar!
- Vou já - respondeu irritado.
E reviu o grande pátio onde Linovski pontificava sorrindo
encantado ao lado da sua jovem mulher - bonita, elegante e também
sorridente -, enquanto, erguida nas patas traseiras, uma porca exibia
junto deles os dentes querendo, talvez, como ambos, escarnecer
dele.
BALTASAR
Anatole France

Nesse tempo, Baltasar, que os gregos chamaram Sarraceno,


reinava na Etiópia. Negro, mas belo de rosto, era de espírito simples
e de coração generoso. Durante o terceiro ano de seu reinado, que
era o vigésimo segundo de sua idade, saiu para visitar Balkis, rainha
de Sabá. Acompanhavam-no o mago Sembobitis e o eunuco Menkera.
Seguiam-no setenta e cinco camelos, carregados de cinamomo,
mirra, ouro em pó e dentes de elefante. No decorrer da caminhada,
Sembobitis ensinava-lhe não só a influência dos planetas como
também as virtudes das pedras e Menkera cantava-lhe canções
litúrgicas; mas ele não os ouvia e distraía-se a olhar os pequenos
chacais sentados, de orelhas em pé, contra o horizonte de areia.
Enfim, após doze dias de viagem, Baltasar e seus companheiros
sentiram um perfume de rosas, e, dentro em pouco, avistaram os
jardins que contornavam a cidade de Sabá.
Nesse lugar, iam encontrar moçoilas que dançavam debaixo de
romeiras em flor.
- A dança é uma prece, disse o mago Sembobitis.
- Vender-se-iam por elevado preço essas mulheres, disse o
eunuco Menkera.
Assim que entraram na cidade, maravilharam-se da grandeza
das lojas, dos galpões e depósitos que diante deles se estendiam e,
ainda, da quantidade de mercadorias que neles se acumulavam.
Caminharam muito tempo pelas ruas cheias de carretas e
carregadores, de asnos e almocreves, e depararam, quando menos
esperavam, com as muralhas de mármore, os pavilhões de púrpura,
as cúpulas de ouro do palácio de Balkis.
Recebeu-os a rainha de Sabá num pátio refrescado por
chafarizes de água perfumada que se desmanchava em pérolas com
límpido murmúrio. De pé, vestindo uma túnica de pedrarias, ela
sorria.
Assim que a viu, Baltasar foi tomado de grande perturbação.
Parecia-lhe ela mais doce que o sonho e mais bela que o desejo.
- Senhor, disselhe baixinho Sembobitis, cuidai de ajustar com a
rainha um bom tratado de comércio.
- Acautelai-vos, senhor, acrescentou Menkera. Dizem que ela
emprega a magia para se fazer amada pelos homens.
Em seguida, depois de se prosternarem, o mago e o eunuco
retiraram-se.
Ao ficar a sós com Balkis, Baltasar tentou falar, abriu a boca,
mas não pôde dizer uma única palavra. Pensou então consigo mesmo:
“A rainha irá aborrecer-se com o meu silêncio”.
No entanto, ela estava a sorrir e não tinha ar de enfado. Foi a
primeira a falar, e disse com voz mais suave que a mais suave
música:
- Sede bem-vindo e assentai-vos junto de mim.
E com o dedo, que a um raio de luz clara se assemelhava,
indicou-lhe os coxins de púrpura espalhados pelo chão.
Exalando profundo suspiro Baltasar acomodou-se e, agarrando
uma almofada em cada mão, exclamou de repente:
- Senhora, quisera que estes dois coxins fossem dois gigantes,
inimigos vossos, para que eu lhes torcesse o pescoço.
E, assim dizendo, cerrava tão fortemente as almofadas nas
mãos, que o estofo se rompeu, deixando sair uma nuvem de
pequeninas plumas brancas. Uma delas voltejou por momento no ar e
depois foi pousar no colo da rainha.
- Senhor Baltasar, disse Balkis corando, por que desejais matar
gigantes?
- Porque vos amo, respondeu Baltasar.
- Dizei-me, indagou Balkis, se em vossa capital é boa a água das
cisternas?
- Sim, respondeu surpreso Baltasar.
- Também tenho curiosidade de saber, prosseguiu Balkis, como
se fabricam os doces secos na Etiópia.
O rei não sabia o que responder. Ela insistiu:
- Dizei, dizei, que me agradareis.
Então, fazendo grande esforço de memória, ele descreveu os
processos dos cozinheiros etiópicos, que confeiçoam marmelos com
mel. Ela porém não o ouvia.
De repente interrompeu-o:
- Senhor, dizem que amais a rainha Candace, vossa vizinha. Não
me enganeis: ela é mais bela do que eu?
- Mais bela, senhora, exclamou Baltasar caindo a seus pés, será
possível?...
A rainha prosseguiu:
- Sim! seus olhos? sua boca? sua tez? seu colo? ... Baltasar
estendeu os braços para ela e suplicou: - Deixai-me remover a
plumazinha que em vosso colo pousou e dar-vos-ei a metade de meu
reino mais o sábio Sembobitis e o eunuco Menkera.
Ela porém ergueu-se e afastou-se rindo sonoramente.
Quando o mago e o eunuco retornaram, encontraram o seu
senhor em inusitada atitude pensativa.
- Senhor, não haveis concluído um bom tratado comercial?
inquiriu Sembobitis.
Nesse dia, Baltasar ceou com a rainha de Sabá e bebeu vinho
de palmeira.
Enquanto ceiavam, Balkis tornou a perguntar-lhe:
- Então, é verdade? A rainha Candace não é tão bela quanto eu?
- A rainha Candace é negra, replicou Baltasar.
Balkis encarou vivamente Baltasar e comentou:
- Pode-se ser negro sem ser feio.
- Balkis! exclamou o rei.
Mais nada pôde acrescentar. Tomando-a nos braços, inclinara
sob os seus lábios a fronte da rainha. Mas viu que ela chorava.
Falou-lhe então em surdina, com voz carinhosa e um pouco cantante,
tal como fazem as amas, e chamou-a sua pequena flor e sua pequena
estrela.
- Por que chorais? perguntou ele. E que é preciso fazer para
que não choreis mais? Se tendes algum desejo dizei-me, para que eu
possa realizá-lo.
Já não chorava mais, porém ficou absorta. Durante muito
tempo, Baltasar instou para que ela lhe confiasse o seu desejo.
Enfim ela acedeu:
- Eu quisera ter medo.
Como Baltasar parecesse não ter compreendido, explicou-lhe
que há muito sentia necessidade de correr algum perigo
desconhecido, coisa que não lhe era possível, pois os guardas e os
deuses sabeus velavam por ela.
- Contudo, acrescentou suspirando, quisera sentir durante a
noite o delicioso frio do pavor penetrar em minha carne. Quisera
sentir arrepiarem-se-me os cabelos. Oh! seria tão bom ter medo!
E, enlaçando os braços ao pescoço do rei negro, disselhe com a
voz de uma criança que suplica:
- Eis que já chegou a noite. Partamos disfarçados para a cidade.
Quereis?
Ele assentiu. Correu Balkis então à janela e pela rótula olhou a
praça pública.
- Um mendigo, disse ela, está deitado junto ao muro do palácio.
Dai-lhe as vossas roupas e pedi-lhe em troca o seu turbante de pêlo
de camelo e o pano grosseiro que lhe cinge os rins. Apressai-vos, que
me vou aprontar.
E saiu correndo da sala do banquete a bater palmas para
melhor manifestar a sua alegria.
Baltasar tirou sua túnica de linho, bordada de ouro, e cingiu-se
com o saiote do mendigo. Tinha assim a aparência de um verdadeiro
escravo. A rainha reapareceu dali a pouco, vestindo a saia azul sem
costura das mulheres que trabalham nos campos.
- Vamos! disse ela.
E guiou Baltasar por estreitos corredores até uma pequena
porta que se abria para a campina.
Escura era a noite e, dentro da noite, Balkis parecia mais
pequena ainda.
Conduziu ela Baltasar a uma tasca onde brutamontes e
carregadores da cidade se reuniam com prostitutas. Nesse lugar,
assentados a uma mesa, viam, à luz de infecta lâmpada, em
atmosfera espessa, homenzarrões mal cheirosos que trocavam
murros e facadas por uma barregã ou por um caneco de bebida
fermentada, enquanto outros roncavam, de punhos fechados, debaixo
das mesas. O taverneiro, recostado sobre uns sacos, observava
prudentemente, com o canto dos olhos, as rixas dos beberrões.
Avistando uns peixes salgados que pendiam das traves do teto,
Balkis declarou ao companheiro:
- Bem que eu gostaria de comer um desses peixes com cebola
esmagada.
Baltasar ordenou que a servissem. Quando ela acabou de
comer, o rei percebeu que não havia trazido dinheiro. Mas isto não
lhe causou nenhuma inquietação por supor que poderiam sair sem
pagar a despesa. O taverneiro barrou-lhes porém o caminho,
chamando-lhes vilão, escravo e sórdida vagabunda. Com um soco
Baltasar estendeu-o por terra. Vários bebedores atiraram-se de faca
em punho contra os dois desconhecidos. Mas o negro, munindo-se de
um enorme pilão, que era usado para amassar cebolas do Egito,
desancou dois dos agressores e obrigou os outros a recuarem. Ao
mesmo tempo, sentia o calor do corpo de Balkis enroscado no dele, e
por isso era invencível. Os amigos do bodegueiro, não mais ousando
se aproximar, atiraram contra Baltasar, do fundo da espelunca,
jarras de óleo, canecos de estanho, tochas acesas e até o enorme
caldeirão de bronze onde se cozinhava um carneiro de uma só vez. O
panelão atingiu com horrível estrondo a fronte de Baltasar e lhe fez
um enorme corte na cabeça. Por momentos ele ficou aturdido, mas
em seguida, recuperando as forças, arremessou de volta o marmitão,
porém com tamanho vigor que o seu peso foi decuplicado. Ao choque
do bronze misturaram-se uivos inauditos e estertores de morte.
Aproveitando-se do pânico dos sobreviventes e temendo que Balkis
pudesse ser ferida, tomou-a nos braços e com ela fugiu pelas ruelas
sombrias e desertas. O silêncio da noite envolvia a terra, e os
fugitivos ouviam decrescer atrás deles o clamor dos bebedores e do
femeaço, que os perseguiam ao acaso na escuridão. Logo nada mais
ouviam a não ser o fraco ruído das gotas de sangue que caíam,uma a
uma, da testa de Baltasar sobre o colo de Balkis.
- Amo-te! murmurava a rainha.
E a lua, irrompendo de uma nuvem, permitiu ao rei ver um
clarão úmido e nevoento nos olhos entre cerrados de Balkis.
Desceram ambos ao leito ressequido de uma corrente. De repente, o
pé de Baltasar escorregou nos musgos e os dois caíram abraçados.
Pareceu-lhes que se haviam afundado num delicioso abismo sem fim e
o mundo dos vivos deixou de existir para eles.
Gozavam ainda do fascinante esquecimento do tempo, do
número e do espaço, quando, à aurora, as gazelas vieram beber no
côncavo das pedras.
Nesse momento, uns salteadores que passavam viram os dois
amantes deitados no musgo.
- São pobres, disseram, mas nós os venderemos por bom preço,
pois são jovens e belos.
Então se aproximaram do casal, amarraram os dois e, atando-os
à cauda de um asno, prosseguiram seu caminho.
O negro, acorrentado, proferia contra os bandidos ameaças de
morte. Mas Balkis, tiritando ao ar frio da manhã, parecia sorrir a
algo de invisível.
Caminharam por desolados desertos até que se acentuou o
calor do dia. Já ia alto o sol quando os facínoras desamarraram os
prisioneiros e, fazendo-os assentarem-se ao pé deles, à sombra de
um rochedo, jogaram-lhes um pedaço de pão bolorento, que Baltasar
desdenhou de apanhar, mas que Balkis comeu avidamente.
Ela ria. O chefe dos salteadores perguntou-lhe por que ria:
- Rio-me, respondeu-lhe ela, por pensar que vos mandarei
enforcar a todos.
- De verdade! zombou o chefe dos assaltantes. Eis um estranho
intento na boca de uma lavadeira de escudelas como tu, minha
querida! Sem dúvida é com a ajuda de teu galante negro que nos
farás enforcar?
Ouvindo tão ultrajantes palavras, Baltasar foi tomado de grande
furor. Atirou-se sobre o bandido e apertou-lhe tão fortemente a
garganta que quase o estrangulou.
Mas este enterrou-lhe até o cabo uma faca no ventre. O pobre
rei, rolando por terra, volveu a Balkis um olhar de moribundo, que se
extinguiu quase no mesmo instante.
Nesse instante, ouviu-se grande estrépito de homens, cavalos e
armas, e Balkis reconheceu o bravo Abner que, à frente de sua
guarda, vinha livrar a rainha, de cuja misteriosa desaparição desde a
véspera tivera conhecimento.
Depois de prosternar-se três vezes aos pés de Balkis, .mandou
avançar uma liteira de antemão preparada para recebê-la. Enquanto
isso, os guardas amarravam as mãos dos assaltantes.
Voltando-se para o chefe deles, disselhe com suavidade a
rainha:
- Não me censurarás, amigo, de te haver feito vã promessa
quando garanti que serias enforcado.
O mago Sembobitis e o eunuco Menkera, que ladeavam Abner,
puseram-se aos gritos mal viram o seu príncipe estendido no chão,
imóvel, com uma faca enterrada no ventre. Soergueram-no com
precaução. Sembobitis, que excelia na arte da medicina, viu que ele
ainda respirava. Fez-lhe um rápido curativo, enquanto Menkera
enxugava a baba que escorria da boca do rei. Amarraram-no, em
seguida, sobre um cavalo e conduziram-no vagarosamente até o
palácio da rainha.
Durante quinze dias Baltasar esteve subjugado por violento
delírio. Falava sem cessar no panelão fumegante, no musgo do
córrego e chamava aos gritos por Balkis. Finalmente, no décimo
sexto dia, abrindo os olhos, viu à sua cabeceira Sembobitis e
Menkera, mas não avistou a rainha.
- Onde está ela? Que faz ela?
- Senhor, respondeu-lhe Menkera, ela está encerrada com o rei
de Comagena.
- Combinam, sem dúvida, trocas de mercadorias, ajuntou o sábio
Sembobitis. Mas não vos perturbeis dessa forma, senhor, porque
vossa febre recomeçará.
- Quero vê-la! exclamou Baltasar.
E atirou-se em direção do apartamento da rainha sem que o
ancião ou o eunuco pudessem retê-lo. Ao chegar diante da alcova,
dela viu sair o rei de Comagena todo coberto de ouro e brilhante
como um sol.
Balkis, reclinada sobre leito de púrpura, sorria, de olhos
fechados.
- Minha Balkis, minha Balkis! soluçou Baltasar.
Ela porém nem voltou a cabeça e parecia prolongar um sonho.
Baltasar, aproximando-se, tomou-lhe uma das mãos que ela
retirou bruscamente.
- Que quereis de mim? perguntou a mulher.
- Sois vós que perguntais! respondeu o rei negro desfazendo-se
em lágrimas.
Balkis volveu-lhe uns olhos tranquilos e duros, e Baltasar
compreendeu que ela de tudo esquecera.
Recordou-lhe então, a noite da torrente.
- Na verdade, não sei que pretendeis dizer, senhor. Não vos fez
bem o vinho de palmeira! Estivestes sonhando por certo.
- Como! exclamou o infeliz príncipe torcendo os braços, teus
beijos e a facada de que guardo o sinal, são por acaso sonhos! . . .
Ela se levantou. As pedrarias de sua veste produziram ruído
semelhante à saraiva e expediram cintilações.
- Senhor, disse ela, esta é a hora em que se reúne o meu
conselho. Não disponho de tempo para esclarecer os sonhos de vosso
cérebro enfermo. Ide repousar. Adeus!
Baltasar, sentindo-se desfalecer, esforçou-se por não mostrar
sua fraqueza à perversa mulher, e correu para sua câmara, onde
tombou desmaiado, com a ferida reaberta.
Três semanas permaneceu insensível e feito morto, mas,
sentindo-se reanimado no vigésimo segundo dia, segurou a mão de
Sembobitis, que o velava em companhia de Menkera, e protestou
soluçando:
- Oh! meus amigos, quanto sois felizes, um por ser velho e outro
por aos velhos assemelhar-se! ... Mas não! Não há felicidade no
mundo, nele tudo é mau, pois que o amor é um mal e Balkis é má.
- A sabedoria restitui a felicidade, respondeu Sembobitis.
- Gostaria de experimentar, disse Baltasar. Mas partamos
imediatamente para a Etiópia.
Como perdera o que amava, resolveu consagrar-se à sabedoria
e vir a ser um mago. Se esta resolução não lhe dava prazer, trar-lhe-
ia, ao menos, um pouco de calma. Toda a noite, sentado no terraço
de seu palácio, em companhia do mago Sembobitis e do eunuco
Menkera, contemplava ele as palmeiras imóveis no horizonte, ou
atentava, à luz da lua, para os crocodilos que, como troncos de
árvores, flutuavam sobre o Nilo.
- Nunca se cansa de admirar a natureza, dizia Sembobitis.
- Sem dúvida, respondia Baltasar. Mas há na natureza coisas
mais belas que as palmeiras e os crocodilos.
E assim falava porque se lembrava de Balkis.
Sembobitis, que era velho, retomava:
- Há o fenômeno das enchentes do Nilo que é admirável e que já
expliquei. O homem é feito para compreender.
- Ele é feito para amar, retrucava Baltasar suspirando. Há
coisas que não se explicam.
- Quais? perguntava Sembobitis.
- A traição de uma mulher, respondia o rei.
Contudo, estando Baltasar resolvido a ser um mago, mandou
construir uma torre do alto da qual se descortinavam diversos reinos
e toda a extensão do céu. Era de tijolos e elevava-se acima das
demais torres. Levou dois anos a ser construída e nela despendeu
Baltasar todo o tesouro do rei seu pai. Toda noite subia ele ao topo
dessa torre, e, lá, observava o céu sob a direção de Sembobitis.
- As figuras do céu são os signos de nossos destinos, dizia-lhe
Sembobitis.
Ao que o rei replicava:
- É preciso admitir que esses signos são obscuros.
Mas, enquanto eu os estudo, não penso em Balkis, o que é um
grande bem.
O mago ensinava-lhe, entre outras verdades de útil
conhecimento, que as estrelas são fixas como pregos na abóbada
celeste e que há cinco planetas, a saber: Bel, Merodach e Nebo, que
são machos, e Sin e Mílita que são fêmeas.
- A prata, dizia-lhe ele ainda, corresponde a Sin, que é a lua, o
ferro a Merodach, o estanho a Bel.
E o bom Baltasar dizia:
- Eis aí conhecimentos que desejo adquirir.
Enquanto estudo a astronomia, não penso nem em Balkis nem
no que quer que seja deste mundo. As ciências são benéficas: elas
impedem os homens de pensar. Sembobitis, ensiname os
conhecimentos que destroem nos homens a paixão e eu te cumularei
de honrarias entre o meu povo.
Eis por que Sembobitis ensinou a sabedoria ao rei.
Com ele Baltasar aprendeu apotelesmática, segundo os
princípios de Astrampsicos, de Gobrias e de Pazatas. Baltasar, à
medida que observava as doze casas do sol, pensava menos em
Balkis.
Menkera, que disso se apercebeu, demonstrou grande alegria:
- Confessai, senhor, disselhe um dia, que a rainha Balkis
ocultava debaixo das vestes de ouro pés fendidos como são os das
cabras...
- Quem te contou semelhante tolice? perguntou o rei.
- É a crença pública, senhor, tanto em Sabá quanto na Etiópia,
respondeu o eunuco. Todos por aí afirmam que a rainha Balkis tem a
perna cabeluda e o pé feito de dois chifres pretos.
Baltasar deu de ombros. Sabia que as pernas e os pés de Balkis
eram feitos como os pés e as pernas de outras mulheres e
perfeitamente belos. No entanto, essa ideia prejudicou-lhe a
lembrança daquela que tanto amara. Pareceu-lhe afrontoso que a
beleza de Balkis não estivesse isenta de ofensas na imaginação dos
que a ignoravam.
A ideia de que possuíra uma mulher, na verdade bela, mas que
passava por monstruosa, provocou verdadeiro mal-estar e não
desejou mais rever Balkis. De alma simples era Baltasar, mas o amor
é sempre um sentimento assaz complicado.
A contar desse dia, o rei fez grandes progressos em magia e em
astrologia. Era extremamente atento às conjunções dos astros e
tirava os horóscopos com tanta exatidão quanto o próprio sábio
Sembobitis.
- Sembobitis, dizia-lhe, tu respondes com a cabeça pelo acerto
dos meus horóscopos?
E o sábio Sembobitis respondia-lhe:
- Senhor, a ciência é infalível, mas os sábios sempre se
enganam.
Baltasar tinha um belo talento natural, e afirmava:
- Nada existe de mais verdadeiro do que o que é divino, mas o
divino nos é oculto. Procuramos em vão a verdade. Contudo, eis que
descobri uma estrela nova no céu. É bela, parece vivente e, quando
cintila, dir-se-ia um olho celeste que pisca com doçura. Feliz, feliz,
feliz, quem nascer sob essa estrela! Sembobitis, vê que olhar nos
lança esse astro encantador e magnífico.
Mas Sembobitis não viu a estrela, porque não a queria ver.
Sábio e velho, não gostava de novidades.
E Baltasar repetia sozinho no silêncio da noite:
- Feliz, feliz, feliz, quem nascer sob essa estrela!
Ora, por toda a Etiópia e pelos reinos vizinhos propagou-se o
rumor de que o rei Baltasar não mais amava Balkis.
Quando a notícia atingiu o país dos sabeus, Balkis indignou-se
como se tivesse sido traída. Correu para o rei de Comagena, que na
cidade de Sabá esquecia o seu império, e exclamou:
- Sabeis, amigo, do que acabo de ter conhecimento? Baltasar
não mais me ama.
- Que importa! respondeu sorrindo o rei de Comagena, se nós
nos amamos.
- Mas não sentis, então, a afronta que esse negro me faz?
- Não, respondeu o rei de Comagena, não a sinto.
Balkis despediu-o ignominiosamente e ordenou ao seu grão-vizir
tudo preparar para uma viagem à Etiópia.
- Partiremos esta noite mesmo, disse ela. Se antes do pôr-do-sol,
não estiver tudo preparado, mando cortar-te a cabeça.
Depois, quando se viu sozinha, pôs-se a soluçar:
- Amo-o! Ele não mais me ama e eu o amo! suspirava com toda a
sinceridade de seu coração.
Ora, certa noite em que estava no topo da torre, a observar a
estrela miraculosa, Baltasar, descendo o olhar para a terra, viu uma
longa fileira negra, que serpenteava ao longe, sobre a areia do
deserto, como um exército de formigas. Pouco a pouco, o que lhe
parecera formigas avultou e tornou-se assaz nítido para que o rei
verificasse que eram cavalos, camelos e elefantes.
Aproximando-se da cidade a caravana, Baltasar distinguiu as
cimitarras resplandecentes e os cavalos negros dos guardas da
rainha de Sabá. E, reconhecendo a própria rainha, sentiu-se
fortemente perturbado. Percebeu que ia amá-la outra vez. A estrela
brilhava no zênite com esplendor maravilhoso. Embaixo, Balkis,
reclinada numa liteira de púrpura e ouro, era pequena e brilhante
como a estrela.
Baltasar sentiu-se atraído para ela por uma força violenta.
Todavia, num esforço desesperado, voltou a cabeça e, levantando os
olhos, reviu a estrela.
Então a estrela assim falou:
- Glória a Deus nos céus e paz na terra aos homens de boa
vontade. Apanha uma medida de mirra, bom rei Baltasar, e segue-
me. Eu te conduzirei aos pés do menino que acaba de nascer num
estábulo, entre o asno e o boi. Esse menino é o rei dos reis. Ele
consolará os que querem ser consolados. Ele te chama, Baltasar, a ti
cuja alma é tão sombria quanto o rosto, mas cujo coração é simples
como o de uma criança. Ele te escolheu porque sofreste, e ele te
dará a riqueza, a alegria e o amor. Ele te dirá: sê pobre com júbilo,
essa é a verdadeira riqueza. Ele te dirá ainda: a verdadeira alegria
está na renúncia à alegria. Ama-me e não ames as criaturas senão
em mim, porque somente eu sou o amor.
A estas palavras, uma paz divina difundiu-se como uma luz sobre
o semblante sombrio do rei.
Baltasar, arrebatado, escutava a estrela. E sentia que estava se
tornando um novo homem.
Sembobitis e Menkera, prosternados, as frontes tocando a
pedra, também a adoravam.
A rainha Balkis observava Baltasar e compreendeu que jamais
haveria amor para ela naquele coração transbordante do amor
divino. Empalideceu de despeito e deu ordem à caravana de
regressar imediatamente às terras de Sabá.
Quando a estrela cessou de falar, o rei e seus dois
companheiros desceram da torre. Em seguida, preparada a medida
de mirra, organizaram uma caravana e saíram para onde os conduzia
a estrela.
Viajaram longo tempo por desconhecidas terras, sendo que a
estrela marchava adiante deles. Um dia, achando-se num lugar onde
três caminhos se encontravam, viram eles dois reis que avançavam
com numeroso séquito. Um era jovem e branco de rosto. Saudou
Baltasar e disselhe:
- Chamo-me Gaspar, sou rei e vou levar ouro como presente ao
menino que acaba de nascer em Belém de Judá.
O segundo rei adiantou-se por sua vez. Era um velho cuja barba
branca lhe cobria o peito.
- Chamo-me Melchior, disse ele, sou rei e vou levar incenso à
divina criança que vem ensinar a verdade aos homens.
- Sigo o mesmo caminho de vós, respondeu Baltasar; venci
minha luxúria, e por isso a estrela me falou.
- Eu venci meu orgulho, disse Melchior, e por isso fui chamado.
- Eu venci minha crueldade, disse Gaspar, e por isso vou
convosco.
E os três reis magos prosseguiram juntos a viagem. A estrela,
que eles tinham visto no Oriente, precedeu-os sempre até que se
deteve ao chegar sobre o lugar onde estava o menino.
Ora, vendo parar a estrela, eles se alegraram profundamente.
E, entrando no estábulo, encontraram o menino com Maria, sua
mãe, e, prosternando-se, adoraram-no. E, abrindo seus tesouros,
ofertaram-lhe ouro, incenso e mirra, tal como está dito no
Evangelho.
O CRISTO DO MAR
Anatole France

Naquele ano, vários pescadores de Saint-Valéry afogaram-se no


mar. Os corpos, atirados à praia pela maré, foram encontrados de
mistura com os restos dos seus barcos, e durante nove dias foram
vistos, na trilha montanhosa que conduz à igreja, esquifes carregados
nos ombros e acompanhados por viúvas em pranto, sob grandes
mantos negros, como as mulheres da Bíblia.
Assim, foram o patrão Jean Lenoël e seu filho Désiré depostos
na grande nave, sob a mesma arcada a que haviam pouco antes
pendurado, em oferenda à Santa Virgem, um navio com todo o seu
massame. Tinham sido homens justos e tementes a Deus, e o abade
Guillaume Truphème, vigário de Saint-Valéry, tendo-lhes dado a
absolvição, disse em voz lacrimosa:
- Jamais foram depostas em solo sagrado, para aí aguardarem o
juízo do Senhor, criaturas mais virtuosas e cristãos mais devotos que
Jean Lenoé e seu filho Désiré.
E enquanto os barcos com seus donos pereciam ao longo da
costa, grandes navios soçobravam ao largo, e não se passava dia sem
que o oceano produzisse algum destroço. Então, certa manhã,
meninos que remavam num batel viram uma figura em decúbito à
tona do mar. Era um Cristo, em tamanho de homem, esculpido em
madeira dura, pintado em cores naturais, e parecia uma obra antiga.
O Cristo flutuava nas águas de braços estendidos. Os meninos o
guindaram para bordo e o conduziram a Saint-Valéry. A coroa de
espinhos cingia-lhe a fronte. Os pés e as mãos estavam traspassados.
Mas faltavam os cravos, assim como a cruz. Com os braços ainda
abertos para oferecer-se e bendizer, tinha a mesma postura em que
o haviam visto José de Arimatéia e as santas mulheres no momento
de o amortalhar.
Os meninos o levaram ao vigário Truphème, que lhes disse:
- Esta imagem do Messias é de valor antigo, e quem o executou
certamente de há muito não pertence aos vivos. Ainda que os
negociantes de Amiens e de Paris vendam hoje por cem francos, e até
mais, estátuas primorosas, é necessário reconhecer que os artesãos
de outrora tinham também o seu merecimento. Mas o que me alegra
é sobretudo o pensamento de que, se o Salvador vem assim, de
braços abertos, a Saint-Valéry, é para abençoar a paróquia tão
cruelmente provada, e mostrar a sua piedade por essa pobre gente
que na pesca arrisca a sua vida. Ele é o Deus que caminhou sobre as
águas, e abençoou as redes de Cefas.
E o cura Truphème, tendo mandado depositar o Cristo na igreja,
sobre a toalha do altar-mor, tratou de encomendar ao carpinteiro
Lemerre uma bela cruz em lenho de carvalho.
Pronta esta, nela pregaram o Cristo com pregos novos, e o
colocaram na nave, por sobre o banco dos mordomos.
Foi então que se viu que os seus olhos estavam repletos de
misericórdia e pareciam umedecidos por uma celeste compaixão. Um
dos tesoureiros, que assistia à instalação do crucifixo, acreditou ver
lágrimas correrem pela divina face.
Na manhã seguinte, entrando com o acólito na igreja para dizer
a missa, o vigário surpreendeu-se ao ver na parede a cruz vazia, e o
Cristo deitado sobre o altar.
Tão logo acabou de celebrar o santo ofício, mandou chamar o
carpinteiro e perguntou-lhe por que ele havia tirado o Cristo da cruz.
Mas o carpinteiro respondeu que não lhe havia tocado. E, depois de
interrogar o sacristão e os fabriqueiros, o abade Truphème
assegurou-se de que ninguém entrara na igreja desde o momento em
que o Cristo for a dependurado.
Ocorreu-lhe então que aquelas coisas fossem milagrosas, e
meditou sobre elas com prudência. No domingo seguinte referiu-as
na prédica aos seus paroquianos, e convidou-os a contribuir com
donativos para a ereção de uma nova cruz mais bela que a primeira e
mais digna de suster o Redentor do mundo.
Os pobres pescadores de Saint-Valéry deram todo odinheiro que
puderam, e as viúvas entregaram as suas alianças. Com o que o
abade Truphème pôde ir imediatamente a Abbeville encomendar
uma cruz de madeira negra, muito reluzente, encimada por uma
tabuleta com a inscrição INRI em letras douradas.
Dois meses mais tarde plantaram-na no lugar da primeira, e a
ela pregaram o Cristo entre a lança e a esponja.
Mas Jesus deixou-a como à outra, e foi, depois do anoitecer,
estender-se sobre o altar.
Ao encontrá-lo de manhã, o vigário caiu de joelhos e orou por
muito, tempo. A notícia do milagre espalhou-se por toda a redondeza,
e as damas de Amiens promoveram peditórios para o Cristo de Saint-
Valéry. O abade Truphème recebeu de Paris dinheiro e jóias, e a
mulher do ministro da Marinha, Sra. Hyde de Neuville, enviou-lhe um
coração de diamantes. Com todas essas riquezas, um ourives da Rue
de Saint-Sulpice compôs, em dois anos, uma cruz de ouro e
pedrarias, que. foi inaugurada em meio a grande pompa na igreja de
Saint-Valéry, no segundo domingo após a Páscoa do ano de 18.
Mas Aquele que não recusara o madeiro doloroso escapou-se
daquela cruz tão rica e foi de novo estender-se sobre o linho branco
do altar.
Com medo de ofendê-lo, deixaram-no ficar desta vez, e ele ali
repousava por mais de dois anos quando Pierre, filho de Pierre
Caillou, veio dizer ao senhor cura Truphème que tinha encontrado na
areia da praia a verdadeira cruz de Nosso Senhor.
Pierre era um inocente, e como não tivesse entendimento
bastante para ganhar a vida, davam-lhe pão, por caridade; e
gostavam dele, porque era incapaz de fazer mal. Mas costumava
engrolar coisas sem nexo, a que ninguém dava ouvidos.
Contudo, o abade Truphème, que incessantemente matutava no
mistério do Cristo do mar, deixou-se impressionar pelo que contara o
pobre idiota. Com o sacristão e dois fabriqueiros, dirigiu-se ao lugar
onde o rapaz afirmava ter visto uma cruz, e ali encontrou duas
pranchas guarnecidas de pregos, que as vagas haviam rolado durante
muito tempo, e que efetivamente formavam uma cruz.
Eram detritos de um antigo naufrágio. Em uma das pranchas
distinguiam-se ainda duas letras pintadas em preto, um J e um L, e
não cabia duvidar que fosse um fragmento do barco de Jean Lenoel
que, cinco anos antes, perecera no mar com seu filho Désiré.
Vendo aquilo, o sacristão e os fabriqueiros começaram a rir de
um inocente que tomava as tábuas esfaceladas de um barco pela
cruz de Jesus Cristo. Mas o vigário Truphème lhes atalhou as
zombarias. Ele meditara muito e muito orara desde que o Cristo do
mar fizera a sua aparição em meio aos pescadores, e o mistério da
infinita caridade começava a se lhe revelar. Ele ajoelhou-se na areia,
recitou a oração pelos fiéis defuntos, depois ordenou ao sacristão e
aos fabriqueiros que carregassem aos ombros o destroço e o
depositassem na igreja. Feito isto, ergueu o Cristo de sobre o altar,
colocou-o sobre as pranchas do barco e pregou-o, com suas próprias
mãos, com os pregos corroídos pelo mar.
Por ordem sua, a nova cruz ocupou, a partir do dia seguinte,
sobre o banco dos mordomos, o lugar da cruz de ouro e pedrarias. E
nunca mais o Cristo do mar dali se despregou. Aprouve-lhe
permanecer naquele lenho sobre o qual homens morreram a invocar-
lhe o nome e o de sua Mãe. E ali, entreabrindo a boca augusta e
dolorosa, ele parece dizer: “A minha cruz é feita dos sofrimentos dos
homens, pois em verdade vos digo que eu sou o Deus dos pobres e
dos desvalidos.”
A MULHER-VAMPIRO
E.T.A. Hoffmann

O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim


de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo
antes. O solar da famíliaera situado numa das mais pitorescas
regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embeleza-lo
custosamente. O conde resolveu reproduzir ali tudo o quedurante as
suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência e bom
gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que
começaram logo a embelezar,ou para melhor dizer, a reconstruir o
castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso
estilo, onde se encravaram, como dependências, a igrejaparoquial e o
cemitério.
Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em
pessoa os trabalhos e entregou-se completamente a esta ocupação.
E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela ideia ir
brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital,
sob os olhares das meninascasadoiras, afim de desposar a melhor, a
mais bela e a mais nobre de todas.
Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma
nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai.
Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou-se logo de que
o pai se lhe referia sempre com a mais profunda indignação, de
mistura com certo receio. Semexplicar o perigo que havia na
convivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se
teimavam em pedir-lhe explicações, o conde respondiaque havia
coisas em que era melhor não falar.
O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de
um processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera
envolvida e em consequênciado qual se havia separado do marido e
fora obrigada a retirar-se para o campo. Todavia o príncipe
perdoara-lhe.
Hipólito experimentou uma sensação desagradável à
aproximação da pessoa detestada pelo pai apesar de desconhecer as
razões dessa aversão. Os deveres dahospitalidade, que se respeitam
principalmente no campo, impunham-lhe, porém, a necessidade de
receber a importuna visita.
A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma
produzira no conde repugnância tão manifesta.
Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar
incendiado, mas logo baixou os olhos, e pediu-lhe desculpa da sua
visita nos termos mais aviltantesde rasteira humildade.
Lastimou que o pai do conde, possuído das mais extraordinárias
prevenções inspiradas maldosamente pelos seus inimigos, a
tivesseodiado de maneira tão acirrada. Apesar de ter caído em
profunda miséria, chegando quase a padecer de fome, o conde nunca
a socorrera.
Ia agora refugiar-senuma cidade da província, tendo acabado de
receber inesperadamente uma pequena quantia. Rematou dizendo
que não pudera resistir ao desejo de ver o filhodo homem, a cujo ódio
irreconciliável sempre correspondera com profunda estima.
Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade,
conseguiram comover o conde, para o que também muito contribuiu
a presença da graciosa e encantadoramenina que acompanhava a
baronesa. Calou-se esta finalmente, mas o conde pareceu não
reparar em tal, e ficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu-
lheentão desculpa duma falta em que o embaraço a fizera incorrer e
apresentou-lhe a sua filha Aurélia.
Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o
conde suplicou-lhe que lhe permitisse reparar os agravos do pai,
devidos certamente a uma inadvertência,oferecendo-lhe
hospitalidade no castelo. Ao certificar-lhe as suas boas disposições,
pegou-lhe na mão e estremeceu de terror. Sentiu-lhe os dedos
gelados,sem vida, ao mesmo tempo que o vulto descarnado da
baronesa, que fixava nele uns olhos embaciados, tomava o aspecto de
um cadáver vestido de brocado.
— Valha-me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! —
exclamou Aurélia.
E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua
desgraçada mãe tinha às vezes ataques de catalepsia, mas que estas
sincopes passavam de prontosem auxílio de remédios.
O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava
nervosamente e, no arroubamento dum amor nascente, pegou na de
Aurélia cobrindo-a de beijos.
Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela
primeira vez uma forte paixão, tornando-se-lhe impossível dissimular
o que sentia, tanto mais que eraanimado pela graça encantadora com
que Aurélia lhe acolhia as amabilidades.
A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se
recordar do que lhe tinha acontecido. Afirmou ao conde que se sentia
honrada com aquele convite,e que este procedimento lhe apagava
para sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.
Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente.
Chegava a crer que um favor especial do destino lhe trouxera a única
pessoa que podia, como esposa,dar-lhe a suprema ventura.
A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria,
reservada, deixava a propósito transparecer uma alma cheia de paz
e de bons sentimentos. O condeacostumara-se àquele rosto
singularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e
atribuía tudo à má saúde da sua hospeda e ao gosto que elatinha por
sombrios passatempos. Com efeito os criados contaram-lhe que a
baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do
cemitério.
Sentiu-se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo,
pelas prevenções do pai, e o tio velho despendeu em vão a
inesgotável facúndia, exortando-oa renunciar ao sentimento que o
dominava e a relações que um dia poderiam desgraça-lo. Convencido
de que Aurélia o amava, pediu-a em casamento. É fácilde imaginar o
quanto a baronesa ficou encantada com esta proposta, que a
arrancava à miséria e lhe assegurava uma existência feliz.
A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma
expressão de invencível pesar, e as delícias do amor deram-lhe aos
olhos suave brilho e às facesfrescura e colorido.
Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos
desejos do conde. Na manhã do dia da boda, encontraram a
baronesa estendida e sem movimentono parque, a pouca distância do
cemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de levantar-
se e pusera-se à janela, pensando com embriaguez na felicidadeque
ia gozar, quando trouxeram a baronesa para o castelo. Pensou que
se tratava dum ataque cataléptico, como era costume, mas todos os
meios empregadospara a chamar à vida foram inúteis. Estava morta!
Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia
consternada e atónita por causa deste imprevisto golpe do destino,
mas não verteu urna única lágrima.
O conde, temendo melindra-la, observou-lhe, com precaução e
delicadeza infinitas, que era necessário pôr de parte as
conveniências e apressar o mais possívelo casamento não obstante a
morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi-lo,
Aurélia deitou-lhe os braços ao pescoço e, derramando
muitaslágrimas, exclamou:
— Sim, pela minha salvação, consinto!
O conde atribuiu esta exaltação à desconsoladora ideia de que,
órfã e sem asilo, Aurélia não tinha para onde ir e que o decoro lhe
não permitia ficar nocastelo. Teve o cuidado de colocar junto de
Aurélia, até ao dia fixado para a cerimónia, uma aia, matrona
respeitável.
No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente
mais da angústia cruciante que a perseguia incessantemente, do que
do desgosto causado pelamorte da mãe.
Um dia, quando conversava amorosamente com o conde,
ergueu-se de súbito, pálida, num mortal terror, e banhada em
lágrimas refugiou-se-lhe nos braços comose quisesse fugir a um
perseguidor invisível. Exclamou: — Não, nunca, nunca!
Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum
contratempo, é que a perturbação e a ansiedade de Aurélia
pareceram dissiparem-se.
Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração
de sua esposa existisse alguma causa desconhecida, que a
atormentava. Contudo, foi bastantedelicado para não a interrogar
enquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntou-
lhe o que produzira aquela extraordinária disposição deespírito.
Aurélia significou-lhe que ia com vivo prazer patentear o coração ao
esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a perturbação
de Auréliaprovinha do procedimento criminoso da mãe.
— Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo-nos
obrigados a aborrecer, e odiar a nossa própria mãe?
Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não se
haviam enganado, e que a baronesa captara este último por meio de
requintada hipocrisia.
O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe
parecia mercê da Providência, mas Aurélia declarou-lhe que fora
precisamente a morte da mãe quea enchera de pressentimentos
sombrios, e que o receio de que não poderia ainda triunfar, lhe dizia
que a mãe havia de ressuscitar algum dia, para vir precipita-lanum
abismo, depois de arranca-la dos braços do seu amado esposo.
E falou das recordações que tinha conservado da sua infância.
Eram estas.
Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem.
Abriam-se e fechavam-se as portas com estrondo, ouviam-se gritos
soltados por vozes desconhecidas.
Quando o sossego se restabeleceu, a ama de Aurélia pegou-lhe
ao colo e levou-a para uma vasta sala onde estava muita gente.
Sobre uma grande mesa, no meioda casa, viu estendido um homem,
que brincava sempre muito com ela e lhe dava bolos, e a quem a
pequena chamava papá. Estendeu-lhe os braços para o beijar,mas
aqueles lábios, que tinha conhecido quentes e cheios de vida,
estavam gelados. Desatou a chorar sem saber porquê.
Dali a ama levou-a para uma casadesconhecida, onde ficou por
muitos dias. Passado tempo a mãe foi busca-la de carruagem e levou-
a para a capital.
Completava Aurélia dezasseis anos, quando se apresentou em
casa da baronesa um homem a quem ela recebeu com alegria e
familiaridade, como antigo conhecimento.
Multiplicaram-se as visitas e dentro em pouco operou-se
considerável mudança na vida da baronesa. Em vez de morar numa
água-furtada, de vestir pobremente,de passar mal, foi habitar uma
casa esplêndida no melhor bairro da cidade, passou a ter fatos
magníficos, e mesa lauta, sendo seu inseparável comensalo
desconhecido, e, finalmente, não faltava a nenhum divertimento
público.
Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil
de conhecer, provinha do desconhecido. Não vestia melhor do que
dantes e estava sempre fechadano quarto, ao passo que a mãe ia às
festas com o tal homem.
Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia
muito mais novo. Bonito de semblante e esbelto de figura, nem por
isso deixava de repugnara Aurélia, porque às vezes era ordinário e
desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que
tinha a homem amável e afidalgado.
Por este tempo, começou a deitar à mocinha certos olhares, que
lhe infundiam inexplicável horror.
Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara-se a
dizer-lhe o seu nome e que o barão era um parente afastado,
possuidor de colossal fortuna.
Outra vez, gabou-lhe os dotes físicos e perguntou à filha que tal
o achava e, como esta não ocultasse a repugnância que tinha por ele,
acoimou-a de tolae dardejou-lhe um olhar de meter medo, mas
passou depois a trata-la com agrado, deu-lhe bons vestidos, e levou-a
aos divertimentos. O intitulado barãomanifestava tanta solicitude e
um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe tornou
verdadeiramente insuportável, tanto mais que ela um dia
presenciou,cheia de mágoa, uma cena escandalosa, que lhe tirou
todas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este,
meio ébrio, apertou-a nos braços, mostrando-lheclaramente as suas
intenções abomináveis. O desespero deu forças à donzela que repeliu
o miserável com vigor, fazendo-o cair para trás, e correu a fechar-
seno quarto.
A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que
se deixasse de esquisitices fora de propósito, pois era o titular quem
fazia todas as despesasda casa. Como não estava para recair na
miséria de outros tempos, aconselhou-a a ceder à vontade do barão,
o qual, em caso de recusa, já ameaçara deixa-las.
Longe de se impressionar com as lágrimas e queixumes de
Aurélia, a velha recebeu-os às gargalhadas e com zombaria
provocante. Gabou-lhe impudicamente umaligação, que lhe
ofereceria todas as voluptuosidades mundanas, servindo-se de
termos tão abomináveis e vergonhosos que Aurélia ficou
aterrorizada.
Julgando-se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou
meio de apanhar a chave da porta da rua, e à meia noite, depois de
fazer uma trouxa com as coisasmais indispensáveis, encaminhou-se
para a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que
a mãe estaria dormindo e ia já para sair, quando alguémsubiu
precipitadamente a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelos
grisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a descoberto
os braços e opeito, a baronesa entrou na antecâmara e foi cair aos
pés de Aurélia. O suposto barão perseguia-a, armado com um bordão
nodoso, e bradando: — Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do
inferno, espera que já vou dar-te a refeição de núpcias!
E, arrastando-a pelos cabelos para o meio da casa, começou a
maltrata-la cruelmente, espancando-a com o bordão.
A baronesa desatou a gritar desesperadamente e Aurélia, quase
desfalecida, abriu a vidraça e clamou por socorro. Por acaso ia
passando uma patrulha policiale acudiu logo.
— Prendam-no! — bradou aos soldados a baronesa, louca de
aflição e de raiva. Prendam-no! Olhem-lhe para o ombro, que está a
descoberto! É Urian!
Assim que ela pronunciou este nome, o sargento comandante da
patrulha deu um grito e disse:
— Olá! Apanhei-te finalmente!
Os guardas agarraram o desconhecido e levaram-no, a despeito
da resistência que empregava para desvencilhar-se.
Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa
percebeu o que a filha estivera prestes a fazer. Agarrou-a
brutalmente por um braço, empurrou-apara o quarto e fechou a
porta à chave, sem dizer palavra.
No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto
Aurélia, ali encerrada não viu nem ouviu pessoa alguma, e padeceu
as torturas da fome e da sede.
Nos dias seguintes não recebeu muito melhor tratamento. A
mãe deitava-lhe por vezes uns olhos cintilantes de cólera e parecia
meditar qualquer projectosinistro. Afinal recebeu, certa noite, uma
carta que pareceu alegra-la, e disse a Aurélia: — Foste tu, criatura
disparatada, a causa de tudo isto, mas agora, felizmente, tudo vai
bem e Deus queira que evites o terrível castigo, que o demônio
tereservava.
Dali por diante tornou-se mais complacente, e Aurélia, que
desde que Urian se fora já não pensava em fugir, passou a gozar de
mais ampla liberdade.
Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu
um grande barulho na rua.
A criada de quarto entrou precipitadamente e disselhe que a
polícia levava preso o filho do carrasco de .... O facínora, acusado do
crime de roubo à mãoarmada, fora, tempos antes marcado a ferro
em brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à
escolta.
Desta vez não lograria escapar, certamente.
Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela.
Adivinhara. Era o suposto barão que ia passando algemado e
amarrado a uma carroça. Transferiam-nopara outra prisão, a fim de
cumprir a pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo
furioso olhar que o malvado ergueu para ela, ao mesmo tempo quelhe
fazia um gesto de ameaça, Aurélia sentiu-se esmorecer e foi cair
numa poltrona.
A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao
abandono, pensando tristemente nas desventuras que ainda lhe
estariam iminentes.
A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena
nocturna, e, sabendo que o ladrão tivera relações íntimas com a ama,
disse um dia a Aurélia quelastimava sinceramente a senhora
baronesa, por ter sido enganada tão indignamente por aquele
infame. Aurélia bem sabia o que havia de pensar a este respeito.
Parecia-lhe impossível que os guardas, que tinham prendido
Urian em casa da baronesa, não ficassem cientes das verdadeiras
relações que existiam entreambos, pois que ela lhes dissera o nome
do criminoso e indicara o sinal infamante que ele tinha no ombro.
Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava-se
muito àquele respeito.
Andava de boca em boca a atoarda de que a justiça fizera uma
severasindicância e que ameaçara a baronesa com a prisão, porque o
filho do carrasco tinha revelado casos verdadeiramente
extraordinários.
A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da
mãe, visto que, depois daquele terrível acontecimento ela continuava
ainda a residir na capital.
A baronesa viu-se enfim reduzida à necessidade de sair de uma
cidade onde estava exposta a infames suspeitas, aliás muito bem
fundadas, e de fugir paralugar distante. Durante esta viagem é que
tinha ido ter ao castelo do conde.
Aurélia considerava-se sumamente venturosa e ao abrigo de
receios, mas qual não foi o seu espanto quando, num dia em que
manifestava à mãe a alegria queo céu lhe concedera, esta, com os
olhos cintilantes, exclamou desabridamente: — Foste a causa da
minha desgraça, criatura adjeta e maldita; mas ainda que a morte me
leve repentinamente, a vingança virá surpreender-te no meio da
tuaimaginária felicidade. É nestes acessos nervosos, cuja origem
remonta ao teu nascimento, que os artifícios de Satanás...
A mulher do conde calou-se de repente, e, abraçando-se ao
marido, pediu-lhe que a dispensasse de repetir as palavras que a mãe
pronunciara numa crise defuror insensato.
Sentia o coração esfacelar-se, ao recordar as medonhas
ameaças daquela possessa do demônio, ameaças que excediam todos
os horrores imagináveis.
O conde consolou a esposa o melhor que pôde, sem contudo
esquivar-se a ter medo.
Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que
os crimes da baronesa, apesar de ela já ter falecido, haviam lançado
uma sombra funesta numaexistência futura cheia de felicidade.
Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A
palidez do rosto e o olhar extinto pareciam indicar doença, mas ao
mesmo tempo os seus modos extraordináriose inquietos faziam
suspeitar novo mistério. Afastava-se de todos, até do marido;
fechava-me no quarto ou buscava os sítios mais solitários do parque;
quandoaparecia, trazia os olhos vermelhos de chorar, o rosto
desfigurado, denunciando o pesar que a devorava.
Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham
a mulher naquele estado.
Aurélia caiu em profundo abatimento, de que saiu somente
depois deconsultar uma celebridade médica.
O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade
nervosa da condessa e os seus incômodos de saúde podiam fazer
conceber a esperança de queia ter fruto aquele casamento
venturoso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia.
Esta, a princípio, não deu atenção à conversa do doutorcom o conde,
mas aplicou depois o ouvido, quando ouviu falar nos singulares
caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a que não
podiam resistirsem prejuízo da sua saúde e até da saúde do filho. Fez
então ao médico perguntas sobre perguntas, e este não se cansou de
lhe citar muitos fatos, algunsaltamente burlescos.
— Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos
desregrados, que levaram diversas mulheres a ações
verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulherdum ferreiro
sentia irresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços
baldados para se dominar, mas um dia em que o viu entrar em casa
embriagado,atirou-se a ele com uma faca, e feriu-o tão cruelmente,
que o desgraçado expirou poucas horas depois.
Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa
desmaiou, e as convulsões que se seguiram ao desmaio acalmaram-se
com grande dificuldade.
O médico reconheceu que andara mal contando semelhante
aventura na presença duma senhora tão impressionável.
Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no
estado da condessa, dando-lhe algum sossego, mas pouco depois caía
ela novamente num acessode profunda melancolia.
Brilhavam-lhe os olhos com estranho fulgor e o rosto cobria-se-
lhe de palidez mortal, sempre crescente. O conde tornou a inquietar-
se com a saúde da esposa.
Havia no seu estado uma coisa inexplicável: não tomava o
mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas as
iguarias, especialmente pela carne.
Quando se servia qualquer prato desta substância, era obrigada
a levantar-se da mesa, dando evidentes sinais de nojo.
Foi improfícua toda a ciência do médico, porque Aurélia não
quis nunca tocar em remédios, apesar das súplicas do marido.
Passaram-se semanas e meses sem que a condessa tomasse
alimento algum. O mistério continuava impenetrável e o médico era
de opinião que havia ali qualquercoisa que frustrava o saber humano.
Afinal despediu-se, apresentando um vago pretexto, mas o conde
percebeu claramente que o estado da esposa pareceramuito
perigoso e enigmático ao hábil clínico e que ele não quisera tratar
por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava
absolutamente impossívelde curar.
Imaginem-se as desagradáveis disposições em que estaria o
infeliz. A desgraça, porém, ainda havia de ir mais longe. Um criado
velho aproveitou um momento,em que o encontrou sozinho, para o
avisar de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de
madrugada. O conde estremeceu e lembrou-se deque, havia tempos,
ao soar a meia noite, se apossava dele uma extraordinária
sonolência. Atribuiu-a a qualquer narcótico, que a condessa lhe
ministrassesem ele dar por isso, para poder sair clandestinamente do
quarto de cama, que tinham em comum infringindo o estabelecido na
sua classe. Aguilhoado pelasmais terríveis suspeitas, Hipólito
recordou-se da sogra e do espírito mau de que ela estivera possuída,
e que talvez houvesse passado para a filha. Lembrou-setambém do
filho do carrasco e suspeitou de qualquer ligação adultera.
A noite seguinte ia desvendar-lhe o mistério abominável, causa
única do estado singular de Aurélia.
Tinha ela por hábito ir deitar-se depois de fazer o chá, que só o
conde bebia. Teve este o cuidado de não o tomar naquela noite,
meteu-se na cama, leu comode costume, e não sentiu a sonolência
habitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu
que dormia profundamente. A condessa levantou-seentão, sem fazer
o mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido, examinou-o
por momentos, e saiu devagarinho do quarto.
Todo a tremer, o conde ergueu-se, embuçou-se numa capa e
seguiu a mulher cautelosamente. Esta já ia longe, mas como fazia
luar, avistava-se distintamenteo seu vestido branco. Atravessou o
parque e dirigiu-se para o cemitério, desaparecendo por trás do
muro Hipólito segui-a, quase de corrida; achou abertaa porta e
entrou.
Viu à claridade do luar um espetáculo medonho.
A curta distância, aparições hediondas acocoravam-se no chão,
formando círculo. Eram velhas seminuas, de cabelos desgrenhados,
dilacerando com os dentes,como feras, o cadáver dum homem.
E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e
profundo horror o desgraçado fugiu àquela cena infernal! Correu ao
acaso pelas alas do parque,e só caiu em si quando, de madrugada, se
encontrou em frente da porta do castelo. Subiu rápida e
maquinalmente a escadaria, atravessou as salas e entrouno quarto. A
condessa parecia dormir serenamente.
Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que estava ainda
úmida do orvalho a capa. Ainda assim tentou persuadir-se de que
tinha sido joguete duma alucinação.
Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a
cavalo. A beleza da manhã, os aromas dos bosques, o gorjeio das
aves fizeram-lhe esquecer osfantasmas noturnos.
Voltou mais tranquilo ao castelo e sentou-se à mesa com a
mulher. Quando, porém, serviam um prato de carne cosida e a
condessa quis retirar-se mostrandorepugnância, o conde reconheceu
a realidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com
violência: — Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que
provém a tua aversão pelo comer dos homens. É nas sepulturas que
te vais banquetear!
Mal ouviu estas palavras, Aurélia atirou-se a ele rugindo, e
mordeu-o no peito, com a fúria duma hiena. O marido repeliu
violentamente a possessa, que expirouno meio de atrozes convulsões.
Veio a enlouquecer o desgraçado.
EM LEGÍTIMA DEFESA
Daniel Defoe
Certo fidalgo, senhor de uma avultada fortuna, casou com uma
dama, também de bons cabedais, de quem teve um filho e uma filha
apenas, após o que anos passados, ela se finou. Em breve contraiu
segundas núpcias; e a segunda esposa, posto que de mais baixa
condição e menores haveres que a primeira, tomou a peito aborrecer
e maltratar os filhos que ele tivera da outra mulher, o que fez a
desarmonia da família, tanto no que respeita às crianças como no que
toca ao próprio pai.
O primeiro resultado de tal comportamento da madrasta no seio
da família foi o filho, mal principiou a sentir-se homem, ter pedido ao
pai que o deixasse viajar por terras estranhas. A madrasta,
conquanto desejasse ver-se livre dele, como ele precisava de uma
soma considerável para se manter no estrangeiro, opôs-se
violentamente, fazendo com que o pai o não deixasse partir, depois
de lhe ter dado autorização para isso.
Tão arreliado ficou o rapaz que, depois de haver renovado o seu
pedido ao pai, com todo o respeito, quer directamente quer por
intermédio de alguns parentes, sem ter conseguido o seu intento,
encorajado algum tanto por um tio, irmão da sua mãe, primeira
mulher do pai, resolveu partir de casa sem licença; e se assim o
pensou melhor o fez.
Por que parte do mundo viajou não me lembro; parece que o pai
se manteve em contacto com ele por algum tempo e em condições de
lhe fazer chegar às mãos uma razoável pensão, para sua mantença, a
qual o rapaz mandava receber por meio de cartas de crédito,
regularmente pagas; mas, algum tempo depois, governando a casa a
madrasta, uma dessas cartas foi recusada e, depois de protestada,
devolvida sem aceite; após o que, não mandou mais nenhuma nem
nunca mais escreveu, e o pai nunca mais ouviu falar dele durante
quatro anos, pouco mais ou menos.
Desse longo silêncio tirou a madrasta vários benefícios;
primeiro começou por querer convencer o marido de que, tendo o
rapaz necessariamente morrido, os bens dele deviam ser dispostos a
favor do mais velho dos filhos dela (pois ela tinha vários filhos). O pai
opôs-se firmemente a essa proposta, mas a mulher continuou a
acossá-lo com importunações; e eram dois os argumentos contra ele,
isto é, como quem diz, contra o filho.
Primeiro, se ele tivesse morrido, não havia lugar para
objecções, pois o filho dela era o herdeiro legítimo.
Segundo, se ele não tivesse morrido, o seu comportamento para
com o pai, a quem não escrevia há muito, era indesculpável, e este
devia estar ressentido com isso, e proceder como se o filho tivesse
morrido: que nada tão legitimamente o podia desobrigar e que,
portanto, ele, seu pai, devia proceder como se ele, seu filho, fosse
morto, e tratá-lo em conformidade, porque quem procedia assim para
com o próprio pai como morto devia ser considerado quanto às suas
relações filiais e ser tratado como merecia.
O pai, no entanto, opôs-se por muito tempo, alegando não poder
decidir em consciência; que muita coisa podia ter acontecido no
mundo que impedisse o filho de escrever; que podia ter sido feito
prisioneiro dos turcos e levado como cativo; que podia achar-se entre
os persas ou os árabes (o que parecia ser o caso), e assim não poder
enviar novas suas, e que não se conformaria em deserdá-lo antes de
verificar se tinha ou não razão para o fazer ou se o filho o tinha ou
não ofendido.
Esta resposta, conquanto justa, estava longe de calar as queixas
da mulher, queixas tamanhas que não dava descanso ao marido,
fazendo a inquietação de toda a família; causava um grande mal
estar e, numa palavra, compelia os filhos a fazerem o mesmo; e o
fidalgo via-se tão consumido que uma ou duas vezes esteve a ponto
de anuir, mas o coração repontou e ele voltou atrás com a sua
palavra, recusando.
Como quer que fosse, o facto de o ter levado tão longe,
constituiu um encorajamento para ela prosseguir com as suas
impaciências e solicitações. Por fim, ele acabou por aceitar um ajuste
provisório, pelo qual, se não ouvisse falar do filho durante um certo
lapso de tempo, consentiria numa nova distribuição dos bens.
A mulher não ficou satisfeita com este ajuste condicional, mas,
vendo-se incapaz de obter qualquer outro, sentiu-se forçada a aceitá-
lo tal como ele se lhe apresentava; como muitas vezes lhe disse,
estava, no entanto, pouco satisfeita com o prazo por ele fixado em
quatro anos, como atrás ficou dito.
De tanto ouvir falar na mesma coisa, ele acabou por se
enfurecer, respondendo que ela se devia dar por muito satisfeita,
pois o tempo era escasso em relação às circunstâncias em que o filho
se podia encontrar.
O certo é que ela tanto o atormentou que acabou por persuadi-
lo a reduzir o prazo para um ano; mas, antes de tal consentir,
disselhe, um dia, num ataque de cólera, que esperava, mais tarde ou
mais cedo, que o espectro do filho lhe aparecesse a ele e lhe dissesse
que estava morto e que convinha que ele fizesse justiça aos seus
demais filhos, pois ele nunca mais voltaria para reclamar os seus
bens.
Quando, por fim, ele acabou, contra vontade, por consentir na
redução do prazo para um ano, disselhe esperar que o espectro do
filho, posto que o não tivesse por morto, lhe aparecesse a ela, e lhe
dissesse estar vivo, antes de o prazo findar. «Por que não hão-de as
almas injuriadas dos vivos,» disse ele, «andar por esse mundo como
as dos mortos?».
Aconteceu que uma tarde, depois disto, estando numa áspera
quezília por causa do mesmo assunto, certa mão surgiu, subitamente,
num postigo, como se tentasse abri-lo. Como todos os postigos de
ferro usados nesse tempo abrissem para fora, embora se fechassem
e prendessem por dentro, a mão parecia procurar, debalde, abrir o
postigo. O fidalgo não deu por isso, mas a mulher, que viu, ergueu-se
repentinamente, como que assustada e, esquecendo a briga, levantou
as mãos para o céu. «Valha-me Deus!» disse ela. «Há ladrões no
jardim.»
O marido correu imediatamente para a porta da sala onde se
encontravam e, abrindo-a, espreitou para fora. «Não está ninguém
no jardim,» disse ele; dizendo o que, fechou de novo a porta e voltou
para o seu lugar. «Tenho a certeza,» replicou ela, «que vi um homem
ali.
- Então, era o diabo,» disse ele, «pois estou certo de que não há
ninguém no jardim.
- Eu ia jurar,» tornou ela, «que vi um homem meter a mão para
abrir o postigo, mas, achando-o preso, e, suponho eu,» acrescentou,
«vendo-nos aqui, fugiu.
- É impossível ter fugido,» replicou ele, «não corri eu para a
porta imediatamente?
Além disso, sabes bem que os muros que cercam o jardim não o
deixavam fugir.
- Suplico-te,» exclamou ela colericamente, «não estou
embriagada nem muito menos a sonhar, sei muito bem reconhecer
um homem, e não estava escuro, o sol ainda não se pôs de todo.
- Estás apenas assustada com alguma sombra,» disse ele (e
cheio de maldade) «coisas destas só costumam acontecer às pessoas
que não têm a consciência tranquila; quem sabe se era o diabo.
- Não, não!... Eu não me assusto facilmente,» disse ela, «se era
o diabo, era o diabo no espectro do teu filho, que deve ter vindo
dizer-te que está no inferno e por isso deves dar os teus bens ao mais
velho dos teus filhos bastardos, já que desprezas o legítimo herdeiro.
- Se fosse o meu filho,» disse ele, «é que vinha dizer-nos estar
vivo, isso te garanto eu, e perguntar como podes ser tão diabólica
que o queiras deserdar;» e dizendo isto: «Alexandre!» exclamou em
voz alta, por duas vezes, erguendo-se impetuosamente da cadeira,
«se estás vivo, aparece, e faz com que eu deixe de ser insultado
todos os dias por causa da tua morte.»
Estas palavras não eram ditas quando o postigo onde a dama
tinha visto a mão se abriu por si mesmo e Alexandre em pessoa,
fitando a mãe com um irado semblante, gritou: «Estou aqui!... »
desaparecendo no mesmo momento.
A dama, até aí tão senhora de si, soltou um espantoso grito que
alarmou toda a casa; a criada dela correu à sala para ver o que tinha
acontecido, mas a ama tombara desmaiada num cadeirão.
Não caíra por terra, porque, estando ali uma grande cadeira, se
apoiara a um dos braços dela, onde imediatamente a ampararam; só
muito depois, no entanto, recuperou os sentidos.
O marido tinha corrido imediatamente para a porta do salão, e,
abrindo-a, saiu para o jardim, onde não viu ninguém; depois dirigiu-se
a outra porta praticada directamente sobre o jardim e em seguida a
outras duas que conduziam para fora dele, uma ao pátio da
cavalariça e outra ao campo que se estendia para além da cerca;
todas estavam bem fechadas e trancadas; vendo a um canto o
jardineiro em companhia de um rapaz que arrastava um cilindro de
pedra, perguntou-lhes se ninguém ali tinha estado, ao que eles
responderam muitas vezes que não, que só eles ali se encontravam,
cilindrando o passeio junto da casa.
Depois disso, voltou para dentro, sentou-se outra vez, e não
disse palavra por muito tempo; as mulheres e os criados andavam
numa azafama, fazendo quanto podiam para reanimar a senhora
Algum tempo depois, ela veio a si o bastante para poder falar; e
as primeiras palavras que proferiu foram: «Va... lha-me Deus! Que
foi isto?
- Nada,» disse o marido. «Naturalmente foi o Alexandre.
Ao ouvir isto, acometeu-a um ataque e pôs-se a soltar gritos e
ais cada vez mais medonhos.
O marido, sem saber que é que a tinha levado àquilo, procurou
aplaca-la, dizendo-lhe que não era nada; mas nada conseguiu, tendo-
se visto obrigado a conduzi-la à cama e a mandar chamar o físico;
durante alguns dias esteve muito mal.
Fosse como fosse, graças a isto, durante um certo tempo, não
voltou a referir-se a conveniência de deserdar o enteado.
Mas o tempo, que endurece o espírito em coisas ainda piores,
foi lentamente consumindo a lembrança do ocorrido, e ela acabou
por fazer reviver a mesma questão outra vez, posto que, de princípio,
com menos ardor do que antes.
No entanto, o marido usou para com ela de uma certa má
vontade também, e sempre que a questão vinha à baila, tapava-lhe a
boca ou dizia-lhe que, se ela pronunciasse mais alguma palavra sobre
o caso, ele pediria outra vez ao Alexandre que abrisse o postigo.
Isto agravou muito as coisas; e, se é certo tê-la atemorizado
durante algum tempo, a verdade é que, por fim, o exaspero dela era
tamanho que lhe disse estar certa de que ele tinha pacto com o
diabo, a quem se vendera apenas com o intuito de lhe meter medo.
O marido pôs-se a brincar com ela, dizendo que qualquer esposo
se sentiria grato para com o diabo que lhe calasse a mulher
turbulenta e que se considerava muito feliz por ter encontrado
maneira de o conseguir, embora isso lhe custasse.
Tão exasperada ela ficou que o ameaçou, caso voltasse a fazer
uso das suas artes diabólicas, de o denunciar como feiticeiro e
homem de tratos com o demónio; coisa bem fácil de provar, disse,
pois a verdade é que ele tinha conjurado o diabo de propósito para a
intimidar.
A disputa acabou nessa noite com palavras ruins e explosões de
mau génio, mas ele nunca pensou que a mulher pusesse em prática a
sua ameaça: de modo que, no dia seguinte, tudo esquecera e estava
de tão bom humor como se nada tivesse ocorrido.
A mulher, porém, apareceu-lhe pesarosa e mui atormentada,
toda ressentida, ameaçando-o com o que resolvera fazer.
Como quer que fosse, ele pouco pensou que ela tentasse pôr em
prática a maldade que tinha em mente, e propôs-lhe conversarem
amistosamente; ela, todavia, repeliu-o com desdém, dizendo estar
disposta a levar por diante o que dissera, pois não queria viver com
um homem que mandava o diabo entrar em sua própria casa, sempre
que lhe apetecia, com intenção de a matar.
O marido procurou apazigua-la com boas palavras, replicando-
lhe a ela falar sério; numa palavra, o caso tornou-se grave, pois a
verdade é que a dama se dirigiu à justiça, onde declarou, sob
juramento, que o marido tinha pacto com o demónio e que a vida dela
corria perigo, obtendo assim um mandato de captura contra ele.
Resumindo: trouxe para casa a dita ordem de captura, mostrou-
a ao marido, e disselhe que a não tinha confiado à autoridade por lhe
querer conceder a liberdade de se apresentar voluntariamente ao
juiz de paz, esperando que lhe participasse quando estava pronto
para isso, pois ela o estava também, tendo tenção de pedir a alguns
amigos seus que a acompanhassem.
Grande foi a surpresa dele, pois nunca pensara que ela tivesse
falado a sério, e pôs-se a apaziguá-la o melhor que sabia; mas ela viu
que o tinha assustado deveras, o que era verdade, pois, posto que
aquilo nada tivesse em si de condenável, era óbvio que seria um
escândalo, e contrariava-o a ideia de se dar em espectáculo; eis por
que usou para com ela de todos os rogos de que era capaz, pedindo-
lhe que não fizesse tal coisa.
Quanto mais ele se humilhava, porém, maior era o triunfo dela.
A insolência foi tanta que, por ela lhe disse que justiça seria feita,
como o advertira, que era certa de o fazer castigar se continuasse
obstinado e que não estava disposta sujeitar-se a encantamentos e
feitiçarias, pois a verdade era ignorar até onde ele seria capaz ir.
Para abreviar a história: tão grande ascendente ganhou sobre
ele, que o marido acabou por propor que o caso fosse presente a
pessoas imparciais, amigos das duas partes, os quais, convocados
umas poucas de vezes, nunca chegaram a qualquer conclusão. Os
amigos dele diziam que aquilo não tinha importância e que ele não
devia intimidar-se; o acto de ele chamar pelo filho e alguém abrir o
postigo e gritar: «Estou aqui», não era prova de feitiçaria e insistiam
em que ela nada podia fazer contra ele.
Os amigos dela comportavam-se altivamente, por ela instigados;
alegando que ela estava pronta a jurar que ele a tinha ameaçado com
o fantasma do filho; porque ele fizera aparecer um espectro,
chamando pelo rapaz, evidentemente já falecido, e o fantasma
aparecera imediatamente; que ele não poderia ter pedido ao diabo
que lhe apresentasse o filho se ele próprio não tivesse pacto com o
demónio e se não falasse com os espíritos, e que isto era de graves
consequências para ela.
Perante tudo isto, o fidalgo carecia de coragem para resistir,
sendo grande o seu receio de um escândalo: eis por que parecia
dolorosamente perplexo, sem saber que fazer.
Quando ela percebeu que ele já estava suficientemente humilde,
disselhe que, se lhe queria fazer justiça (como quem diz, dispor da
herança a favor do filho dela), ela estava pronta a renunciar a tudo o
mais, com a condição de ele lhe prometer não a tornar a assustar
com o diabo.
Esta parte da proposta exasperou-o de novo, e lançou-lhe em
rosto que aquilo não passava de uma calúnia, que estava pronto a
afrontá-la e que ela podia provocar a sua própria desgraça.
Assim quebrou o acordo e ela outra vez o começou a ameaçar.
Como quer que fosse, persuadiu-o, finalmente, a condescender,
entregando-lhe ele um documento escrito pelo seu próprio punho,
feito na presença de alguns amigos dela, no qual prometia cumprir o
desejo da mulher, se o filho não chegasse nem desse novas dentro de
quatro meses.
A dama ficou satisfeita com isto e voltaram a ser amigos como
dantes, tendo-lhe ele confiado o dito documento; mas, quando lho
entregou, na presença de duas testemunhas, tomou a liberdade de
lhe dizer, numa espécie de discurso, grave e solene: «Escuta,» disse
ele, «tanto me atormentaste com o teu impaciente génio que fizeste
com que eu assinasse este contrato contrário à justiça, à moral, e à
razão; no entanto, embora dependente dele, estou certo de que
nunca o executarei.»
Uma das testemunhas disse: «Porquê, senhor? Então isto não
serve para nada. Se estais resolvido a não cumprir o contrato, para
que o assinais? Para que prometeis o que não tendes a intenção de
fazer? Isto apenas servirá para acender nova disputa quando o prazo
expirar.
- Porque, no meu foro íntimo,» disse ele, «estou convencido de
que o meu filho está vivo.
- Vamos, vamos,» disse a mulher para o fidalgo que discutia com
o marido, «deixai-o assinar o contrato e eu me encarregarei de o
obrigar a cumpri-lo.
- Está bem,» disse o marido, «terás o contrato, mas depois hás-
de me deixar em paz: estou convencido de que nunca me pedirás
para o cumprir; e, no entanto, não sou um feiticeiro,» acrescentou
ele, «como tu maldosamente insinuaste.»
A dama replicou que podia provar que ele tinha pacto com o
diabo, pois bastava que chamasse pelo nome do filho para surgir uma
alma penada: e pôs-se a contar a história da mão e do postigo.
«Vamos,» disse o fidalgo para o amigo, «dai-me a pena: em toda a
minha vida nunca tive pactos senão com um diabo, e esse diabo está
aqui sentado,» virando-se para a mulher; «e acabo de fechar com ela
um contrato que mulher alguma, a não ser o diabo, seria capaz de
obrigar o próprio marido a assinar, e eu assino-o. Mas também vos
garanto, dai-me a pena, que nem ela nem todos os diabos do inferno
serão capazes de mo fazer cumprir; lembrai-vos do que vos acabo de
dizer.»
Ela começou a protestar, preparando-se uma nova disputa, mas
os fidalgos entrepuseram-se e o marido, assinando o escrito, pôs fim
à quezília por aquela vez.
Ao fim dos quatro meses, ela exigiu o cumprimento do contrato,
tendo sido designado um dia para isso, e os dois amigos que tinham
servido de testemunhas foram convidados para jantar nessa ocasião,
crendo que o marido cumpriria as cláusulas do contrato; e, de acordo
com isso, os escritos foram todos apresentados e lidos por inteiro,
bem como alguns velhos contratos, assinados no acto do casamento
pelos curadores, que foram exibidos para serem cancelados de
maneira a ela ficar quite na mesma parte da herança, no que dizia
respeito ao filho. O marido foi convidado ou por modos pacíficos ou à
força, talvez por estar de humor, antes por modos pacíficos, a
executar as cláusulas do contrato, deserdando o filho, sendo-lhe dito
que, se na verdade ele tivesse morrido, isso não o prejudicaria, e, se
estivesse vivo, o facto de lhe não dar novas suas por um tão longo
espaço de tempo era prova de desobediência e grossaria.
Além disso, alegaram que, se ele viesse a aparecer depois disto,
o pai (cuja riqueza muito tinha prosperado) podia dar-lhe outros bens
como justa satisfação pela perda que ele teria de sofrer na parte dos
bens paternos.
Perante tais considerações, o pobre pusilânime marido estava
quási a anuir, ou, pelo menos, quer tivesse anuído ou não, as coisas
iam-se fazer de acordo com o que tinha sido causa daquela reunião.
Quando acabaram de discorrer acerca de todas estas
particularidades e, como acima ficou dito, lidas as novas cláusulas,
ela ou o marido pegou nos velhos documentos para os cancelar; creio
que a história diz que, indo a mulher, não o marido, rasgar os selos,
se ouviu, subitamente, um ruído no salão onde estavam, exactamente
como se alguém tivesse penetrado pela porta que comunicava com o
átrio e entrasse na sala, a caminho da porta do jardim, que estava
fechada.
Todos se mostraram surpreendidos, pois isto foi perfeitamente
notório, mas nada viram. A dama empalideceu, cheia de pavor; no
entanto, como nada descortinara, reanimou-se um pouco, mas para
começar, de novo, a implicar com o marido.
- Quê?» disse ela. «Tramaste nova conspiração para que os
diabos tornassem a aparecer?»
O marido permaneceu sereno, posto que, no seu foro íntimo, não
pouco surpreendido também.
Um dos dois fidalgos disselhe: «Que quer isto dizer?
- Garanto-vos, senhor,» disse ele, «que sei tanto do que se trata
como vós. «Então, que será?» disse o outro fidalgo. «Não faço a mais
pequena ideia,» replicou o marido. «Não percebo absolutamente
nada destas coisas.
- Não ouvistes dizer nada do vosso filho?» perguntou o fidalgo.
«Nem uma só palavra,» respondeu o pai; «não, nem a mais pequena
palavra durante estes últimos cinco anos.
- Haveis-lhe mandado dizer alguma coisa,» voltou o fidalgo,
«acerca deste contrato?
- Nem uma palavra,» disse ele; «não sabia para onde escrever-
lhe.
- Senhor,» disse o fidalgo, «tenho ouvido falar muito de
aparições, mas nunca vi nenhuma na minha vida nem nunca acreditei
que houvesse qualquer verdade nisso; com efeito, contínuo sem nada
ver agora mesmo; mas não há dúvida de que passou algum corpo,
algum espírito ou coisa que o valha por esta sala: ouvi distintamente.
Estou certo de que há aqui qualquer coisa invisível, tão certo como
se a visse.
- Ainda mais,» disse a outra testemunha, «eu senti o ar deslocar-
se quando passou por mim. Dizei-me, peço-vos,» disse ele, voltando-
se para o marido, «estais vendo alguma coisa?
- Não, pela minha honra,» replicou ele, «absolutamente nada.
- Contaram-me,» disse a primeira testemunha «e li algures que
uma aparição pode ser visível para umas pessoas e invisível para
outras, embora todas juntas na mesma sala».
Como quer que fosse, o marido protestou solenemente, perante
todos os presentes, que nada tinha visto. «Peço-vos, senhor,» disse a
primeira testemunha, «haveis visto alguma coisa já noutra ocasião,
haveis ouvido ruídos ou vozes ou haveis tido algum sonho acerca
disto?
- É certo,» disse ele, «que tenho sonhado muitas vezes que meu
filho está vivo e que falo com ele, e uma vez que lhe perguntei por
que era tão desobediente e me desprezava tanto que me deixasse
sem notícias durante tanto tempo, sabendo, como sabia, que eu o
podia deserdar.
- Muito bem, e que respondeu ele?
- Nunca os meus sonhos duraram tanto que ele me pudesse
responder; acabei sempre por acordar.
- E que pensais de tudo isso?» disse a testemunha; «pensais que
ele tenha morrido?
- Não, nunca,» disse o pai, «penso, no fundo da minha
consciência, que ele está vivo, tão vivo como eu próprio, e eis-me
prestes a praticar um acto tão iníquo como homem algum ainda
praticou.
- Na verdade,» disse a segunda testemunha «isto principia a
incomodar-me; não sei que hei-de pensar destas coisas; não me
quero intrometer mais neste assunto, pois me desagrada compelir
um homem a praticar um acto contrário à sua consciência».
Ao ouvir isto, a mulher, que, como eu disse, se reanimara algum
tanto e se sentia particularmente animada por nada ter visto,
ergueu-se repentinamente. «A que propósito vêm todos estes
discursos?» disse ela. «Pois ainda não está tudo regularizado? Que é
que nós aqui viemos fazer?
- Além disso,» disse a primeira testemunha, «penso que não nos
encontramos aqui para discutir o que se passa, mas para dar
cumprimento às cláusulas do contrato. Por que estamos nós
assustados?
- Não estou assustada,» disse a mulher. «Eu não; vamos,» disse
ela para o marido, altivamente «assina o documento; era capaz de
cancelar as escrituras antigas, mesmo que estivessem quarenta
diabos dentro da sala.» E, dizendo isto, pegou num dos documentos,
pronta a rasgar o selo.
Naquele instante o tal postigo abriu-se de novo, posto que
estivesse fechado por dentro, exactamente como da outra vez, e viu-
se a sombra de um corpo, que parecia estar fora no jardim, com a
cabeça metida no postigo, o rosto voltado para a sala, fitando
directamente a dama, com um severo e irado semblante. «Alto!»
disse o espectro, como se se dirigisse a ela, e imediatamente o
postigo se fechou, desaparecendo o fantasma.
Impossível descrever o estado de desalento em que esta
segunda aparição lançou toda aquela gente; a dama, que até aí se
tinha mostrado tão corajosa, capaz de rasgar os selos, mesmo que
quarenta demónios entrassem na sala, soltou um grito semelhante ao
de uma mulher com um ataque, deixando cair os documentos das
mãos; as duas testemunhas estavam extraordinariamente
assustadas, embora não tanto como os demais; mas uma delas pegou
na sentença que ambas tinham assinado e onde o marido era
compelido a cumprir o contrato dispondo dos bens do filho. «Atrevo-
me a afirmar,» disse ele, «quer se trate de um bom quer de um mau
espírito, que é seu desejo que isto não se cancele;» não dito o que,
riscou o nome da sentença, no que foi seguido pela outra testemunha,
e ambas se ergueram dos seus lugares dizendo que nada mais tinham
a fazer ali.
O mais inesperado de tudo, porém, foi o próprio marido ter
desfalecido de susto, não obstante tudo ser a seu favor, como era
evidente.
Isto pôs ponto final a toda aquela questão, não só naquele
momento, mas para sempre, como depois vim a saber.
***
A história tem muitas outras particularidades, longas de mais
para que eu vos enfade com elas: mas duas há que não posso omitir,
a saber:
1) Que dentro de cinco meses, pouco mais ou menos, a contar
desta segunda aparição, o rapaz voltou das índias Orientais, para
onde embarcara em Lisboa, num navio português, havia quatro anos.
2) Que tendo sido particularmente interrogado acerca de todas
estas coisas e em especial sobre se tivera tido algum conhecimento
delas, ou se alguma aparição, vozes, ou qualquer intimação lhe
tinham dado a conhecer o que ocorrera em Inglaterra, ele afirmou
repetidamente que de nada tivera notícia, salvo uma vez ter sonhado
que o pai lhe escrevera uma carta colérica, ameaçando-o, caso não
voltasse para casa, de deserda-lo, não lhe deixando um único xelim.
Mas acrescentava que nunca tinha recebido em sua vida carta
alguma do pai ou de qualquer outra pessoa.
LA MÉRE BAUCHE
Anthony Trollope
O vale dos Pirenéus, onde estão situadas as termas de Vernet, é
tão pouco conhecido dos ingleses como de quaisquer outros
viajantes. Os turistas, em busca ao mesmo tempo de bons hotéis e de
sítios pitorescos, raramente se aventuram até aos Pirenéus
Orientais. Raro ultrapassam Luchon: e com razão assim findam as
suas peregrinações no mais belo recanto destas montanhas. Ao
verem-se, em geral, enganados, espoliados, desencaminhados por
guias, estalajadeiros e alquiladores, naquele local tão delicioso por
tantas outras razões, perdem a vontade de ir mais além. Nem os
inválidos de lugares distantes frequentam Vernet. Gente de bom tom
vai para Eaux Bonnes e para Luchon e os que realmente estão
doentes para Barèges e Cauterets. É aí que se nos deparam muitos
parisienses e filhas e esposas dos ricos comerciantes de Bordéus com
uma mistura, então nada para desprezar, de ingleses e inglesas. Mas
os Pirenéus Orientais continuam ainda sem frequência.
E provavelmente assim se conservarão; embora se encontrem
aí deliciosos vales - de entre todos é o vale de Vernet talvez o mais
delicioso - a verdade é que essa região não pode competir com o
cenário de montanhas de outros pontos da Europa, estimadas pelos
turistas. Em Port de Venasquez e na Brèche de Roland, nos Pirenéus
Ocidentais, ou antes, para falar com mais propriedade, nas regiões
das próximas vizinhanças da entrada daquelas famosas montanhas
em Espanha, qualquer pessoa pode estabelecer confrontos com a
Suíça, o Norte da Itália, o Tirol e a Irlanda, sem que esse confronto
corra o risco de ser injurioso para a paisagem que tem diante dos
olhos. Mas isto dificilmente acontecerá com as montanhas do
Oriente. Os picos não se encontram aí tão estreitamente reunidos em
grupos pitorescos; as gargantas dos vales, embora bastante densas,
não se fecham umas contra as outras, coroadas de rochas abruptas,
sendo tão escassas em majestade como em beleza. Eis por que,
consequência natural de tudo isto, os hotéis não são tão bons como
era mister que fossem.
Uma montanha há, porém, entre elas com direito a reclamar um
lugar ao lado do Pic du Midi ou da Maledetta. Ninguém tem o direito
de desdenhar do severo e velho Canigou, imenso e solitário, solene e
grandioso, lá postado entre as duas estradas que de Perpignan
conduzem a Espanha, uma por Prades e a outra por Le Boulon.
Abaixo do Canigou, para oeste, ficam as termas de Vernet num
fechado e estreito vate, como disse atrás, o mais doce rincão destes
Pirenéus Orientais, pelo menos em meu juízo.
Havia anos que estas termas eram quase inteiramente
frequentadas pelos habitantes das povoações não muito afastadas,
como Perpignan, Narbonne, Carcassonne e Béziers, não sendo, por
isso mesmo, afamadas, luxuosas ou dispendiosas; todavia, aqueles
que acreditavam nelas, criam nelas com verdadeira fé; era facto
homens e mulheres que chegavam cansados pelo trabalho, esgotados
e exaustos pelos prazeres, regressarem sãos e fortes, uma vez mais
em condições de afrontarem a vida com todas as suas calamidades.
Não me parece que as coisas hajam mudado nos últimos tempos,
posto que a roda dos seus fanáticos tenha aumentado algum tanto.
Naquele tempo a mais notável e ilustre individualidade do lugar
de Vernet era La Mère Bauche. Que houvera um Pére Bauche de
todos era sabido, e por isso mesmo é que existia um Fils Bauche, na
companhia da mãe, mas que tal Pére Bauche existira de todos
parecia olvidado. Em Vernet nunca usufruíra nomeada. La Mère
Bauche era filha da terra, mas a sua vida de casada decorrera longe
dali, onde ela apenas voltara, após uma prematura viuvez, para se
tornar proprietária e gerente, ou, por outras palavras, o coração e a
alma do Hotel Bauche, de Vernet.
Este hotel era um grande e algo tosco estabelecimento
destinado à acomodação dos doentes que a Vernet vinham tratar da
saúde Fora directamente edificado sobre uma das nascentes termais,
que permitia que as águas jorrassem logo das entranhas da terra
para as banheiras. Tinha acomodações para setenta hóspedes,
estando sempre cheio durante os meses de verão e do outono. No
inverno e na primavera bastantes por ali apareciam também, porque
os preços de Madame Bauche eram acessíveis e as acomodações
razoáveis.
Quanto a isto, e, na verdade, quanto a tudo o mais, Madame
Bauche passava por ser uma mulher séria. Lá tinha os seus preços,
que considerações de espécie alguma seriam capazes de modificar, e
os seus almoços, jantares, banhos e camas, consciênciosamente
mantidos, estavam em relação com os preços. Tais traços no
carácter de uma hoteleira não podiam deixar também de ser
altamente louvados, tendo a sua natural retribuição na frequência do
público. No entanto, outros seus traços havia que, embora
ocasionais, eram motivo de queixa para alguns na conduta de
Madame Bauche.
Em primeiro lugar faltava-lhe aquele agradável sorriso de
urbanidade que deve ser timbre do gerente de qualquer
estabelecimento que recebe hóspedes.
Habitualmente era severa e calada para com os hóspedes,
autocrática, autoritária e algumas vezes contraditória para com os
seus, e inteiramente irracional e quezilenta sempre que qualquer
alteração lhe era proposta, por um dia que fosse, ou quando qualquer
rumor de desagrado lhe chegava aos ouvidos.
Efectivamente, quanto às queixas contra o estabelecimento era
de uma completa intolerância. A esse respeito só tinha uma resposta.
Aquele ou aquela que mostrasse razão de queixa estava autorizado a
deixar a casa quando lhe aprouvesse. Havia sempre gente pronta
para ocupar os seus lugares. Só a modicidade dos seus preços lhe
permitia proceder assim, e isso era-lhe muito agradável.
Os banhos eram a horas diversas, consoante o conselho médico,
mas em geral de manhã, das cinco às sete. O déjeuner, ou o pequeno
almoço, era às nove; o jantar, às quatro. Depois destas horas não se
forneciam no Hotel Bauche refeições nem bebidas de espécie
alguma. Existia um café na povoação onde os cavalheiros e as damas
poderiam tomar o seu café ou o seu copo de eau sucré; nada disto,
contudo, se podia tomar no estabelecimento balnear. Não havia
suborno nem argumentos que tornassem possível tomar-se qualquer
refeição no hotel fora das horas regulamentares. O hóspede que
penetrasse na salle à manger dez minutos depois de soar o último
toque seria olhado por Madame Bauche, sempre postada à cabeceira
da sua mesa, com o maior azedume. Caso alguém aparecesse meia
hora mais tarde, apenas receberia por quinhão o que restasse após
todos os outros hóspedes se terem servido. Mas, servido que fosse o
último prato, seria absolutamente escusado fosse a quem fosse
entrar na sala.
O aspecto de Madame Bauche na época desta história não era
dos mais lisonjeiros.
Devia andar pelos sessenta anos, era muito corpulenta e tinha o
pescoço curto. Os cabelos grisalhos, sempre penteados à hora do
jantar, durante o resto do dia fugiam-lhe da touca, em desordem.
Tinha sobrancelhas grandes e espessas; no entanto, elas, só por si,
não bastariam para lhe dar às feições o aspecto de indómita
severidade que as caracterizava. Com efeito, as sobrancelhas eram
temíveis, mas não tão temíveis como os óculos verdes que trazia
sempre em cima delas. Os que a conheciam pensavam que o grande
segredo da autoridade de Madame Bauche residia nos seus óculos
verdes.
Era seu hábito andar de um lado para outro dentro do
estabelecimento, todos os dias, desde o pequeno almoço até a hora
em que se devia ir vestir para o jantar.
Visitava quarto por quarto e casa de banho por casa de banho,
dava uma ou duas voltas à salle à manger e entrava repetidas vezes
na cozinha; metia o nariz em todos os recantos e buracos, e
espiolhava tudo com os seus óculos verdes; nem sempre era um
grande prazer dar de cara com ela durante um destes passeios.
Costumava caminhar muito vagarosamente, em geral com as
mãos atrás das costas: raro dirigia a palavra aos hóspedes, a menos
que eles lha dirigissem primeiro, e, quando isso acontecia, quase
nunca se afastava da conversa trivial. Se alguém tivesse qualquer
coisa a dizer relativamente aos serviços da casa, ela ouviria e depois
daria a sua resposta, - poucas vezes agradável de ouvir.
Tal era o caminho que seguia no mundo aquela velha grave,
firme e solene, não de todo isenta de certas apaixonadas explosões,
mas honesta, aliás, e não sem certa íntima benevolência e verdadeira
bondade. Filhos, tinha tido muitos, uns sete ou oito. Um ou dois eram
falecidos, outros haviam casado; todos viviam muito longe de casa, à
excepção de um, sujeito à autoridade materna ao tempo a que nos
reportamos.
Adolphe Bauche era o único dos seus filhos de quem se deviam
lembrar muitos dos estrangeiros presentes e frequentadores do
hotel. Era o mais novo, e, tendo nascido pouco tempo depois do
regresso a Vernet de Madame Bauche, ali fora inteiramente criado.
Toda a gente daqueles sítios pensava, e com razão, ser ele o filho
querido da mãe - querido como nenhum dos outros filhos o tinha sido
- a menina dos seus olhos, a jóia da sua vida. Naquele tempo andava
ele pelos vinte e cinco anos, tendo estado ausente de Vernet havia
dois por motivos que em breve saberemos. Estivera em Paris, para
ver mundo, e aprender a falar francês em lugar do patois dos seus
vales. Depois de sair de Paris viera para o sul, para o Languedoc,
onde se demorara colhendo ensinamentos de agricultura que
pensava pôr em prática nas propriedades do vale de Vernet. E agora
era em breve esperado em casa, de regresso, para grande alegria da
mãe.
O ela ser bondosa e afável para com o filho favorito não era
grande prova da sua caridade, mas também fora boa e afável para
com a criança que um vizinho deixara órfã, para mais tratando-se da
filha de um estalajadeiro rival. Em Vernet tinha havido mais do que
um estabelecimento de banhos, mas o proprietário do outro morrera
alguns anos antes de Madame Bauche ali se ter estabelecido. A casa
dele não tinha prosperado, e o seu único rebento, uma rapariguinha,
ficara no mundo absolutamente sem nada.
A pequenita, Marie Clavert, foi recolhida em casa por Madame
Bauche logo depois da morte do pai, não obstante esta haver sempre
cordialmente odiado aquele. Marie era então de colo e Madame
Bauche aceitara o encargo de a criar sem querer saber do futuro.
Mas a verdade é que cumprira sempre cabalmente os seus deveres
de mãe para com a pequenita, que se tornara o ai Jesus de todo o
estabelecimento, o brinquedo favorito de Adolphe Bauche - e, por
fim, naturalmente, a sua primeira namorada.
E então, como era de esperar, certas coisas aconteceram em
Vernet.
É claro que toda a gente daqueles sítios tinha visto, muito antes
que Madame Bauche desse por isso, o que se passava e o que
provavelmente aconteceria. Mas, por fim, veio-lhe ao espírito a ideia
de que o seu filho Adolphe Bauche, o herdeiro de todas as suas
virtudes e de todas as suas riquezas, a flor dos rapazes daquele e dos
vizinhos vales, estava absolutamente decidido a casar com a pobre
orfãzinha, Marie Clavert!
Que alguém se pudesse enamorar de Marie Clavert, eis o que
nunca tinha passado pela cabeça de Madame Bauche. Sempre olhara
a criança apenas como uma criança, uma pobre abandonada, indigna
de ser considerada pelo mundo como coisa diferente daquilo que era:
uma pobre Marie. Madame Bauche, graças aos seus óculos verdes,
nunca reparara que Marie Clavert era uma linda criatura, cheia
daqueles encantos da maturidade que os rapazes tanto apreciam.
Marie era empregada por Madame Bauche numa infinidade de
pequenos serviços domésticos e a velha senhora reconhecia e
apreciava devidamente o seu valor. Mas, por isso mesmo, habituara-
se a considerar Marie apenas com um vulgaríssimo, embora útil,
bicho de cozinha. Gostava muito da sua protegida e tanto que a ouvia
em assuntos relativos aos negócios da casa, coisa que não acontecia
com mais ninguém. Mas a beleza, a doçura e a graça feminina de
Marie tinham sido menosprezadas por «Maman Bauche», como
Marie lhe chamava. Desgraçadamente, porém, não tinham sido
menosprezadas por Adolphe. Este tinha apreciado, o que era
naturalíssimo, tudo quanto fora indiferente à mãe; e evidentemente
acabara por se enamorar.
Adolphe, como até então em muito poucas coisas fora
contrariado, pensava que todas as dificuldades seriam banidas mal
ele dissesse à mãe que queria casar com Marie Clavert. Mas Marie,
graças ao seu instinto feminino, não pensava assim.
Tremera, e quase se arrepiara de medo, quando ele lhe
confessara gostar dela; e correu a esconder-se quando Adolphe se
decidiu a pedir à mãe consentimento para se casarem.
A indignação e a cólera de Madame Bauche datavam de havia
dois anos antes desta história, eis por que me não parece necessário
alargar-me mais sobre isso.
Começou por ser injuriosa e azeda, o que foi mau para Marie,
mas depois passou a ser azeda e calada, o que foi pior. Foi logo
evidentemente resolvido que Marie fosse enviada para qualquer asilo
de órfãs ou de pobres desprotegidos - numa palavra, fosse para onde
fosse longe dali. Que importância tinha o seu futuro, a sua felicidade,
ou mesmo a sua existência? Não era o futuro e a felicidade de
Adolphe que deviam ser considerados acima de tudo em Vernet?
Mas este aspecto terrivelmente crítico da questão não durou
muito. La Mère Bauche escondia por debaixo dos óculos verdes um
coração que era, na verdade, terno e afectuoso, e depois dos
primeiros dias de cólera concluiu que alguma coisa se podia fazer por
Marie Clavert. Ao quarto dia, reconheceu que a vida do hotel, a sua
própria vida, não poderia continuar tão bem sem Marie como com
ela. Além disto, Madame Bauche tinha um amigo com quem às vezes
se costumava aconselhar em casos graves. Este amigo dissera-lhe
que, desde que era preciso alguém sair de casa, muito mais atinado
seria que esse alguém fosse Adolphe; que muito proveitoso lhe seria
passar alguns meses longe dos vales que o tinham visto nascer; e que
um ou dois anos de ausência o ensinariam a esquecer Marie, mesmo
que não chegassem para que Marie o esquecesse a ele.
É talvez oportuno dizer uma ou duas palavras acerca deste
amigo de Madame Bauche. Em Vernet era habitualmente conhecido
por Monsieur le Capitaine, embora, de facto, nunca tivesse atingido
aquele posto. Estivera na tropa e perdera uma perna quando apenas
sous-lieutenant. Reformado, ficara impedido de trilhar mais além o
árduo caminho que leva à glória. Nos últimos quinze anos vivera
debaixo das telhas de Madame Bauche, primeiro como simples visita,
fora e dentro, e depois, havia muitos anos já, tão assiduamente como
ela própria.
Era tão correntemente tratado por Le Capitaine que raro se lhe
ouvia o verdadeiro nome. Convém talvez saber, no entanto, que se
chamava Théodore Campan. Era um homem alto, boa figura; vestia
sempre fatos pretos, ordinários, é certo, mas sempre
escrupulosamente limpos e escovados. Devia rondar, talvez, os
cinquenta anos, conspícuos, graças à rígida firmeza da sua coluna
vertebral - e de uma negra perna de pau.
Esta perna de pau, eis, talvez, o traço mais notável do seu
carácter. Era ele, por suas próprias mãos, quando as ocasiões o
exigiam, quem a pintava, polia ou envernizava, pelo que andava
sempre negra de azeviche. Assim como o capitão era mais alto do
que o vulgar, também a sua perna era mais cumprida do que
costumam ser as pernas de pau. No entanto, nada parecia impedir a
rígida e nimiamente escrupulosa propriedade dos seus movimentos.
Não havia nada na sua conduta comparável com a das pessoas que
costumam usar pernas de pau. Para que a sua se tornasse mais
distinta, cingia-a, a meio, na barriga da perna, para melhor dizermos,
com uma faixa de cobre brilhante, que cintilava como oiro polido.
Tinha-se tornado costume do capitão, havia anos, recolher-se
todas as tardes, por volta das sete horas, ao sanctum sanctorum dos
aposentos de Madame Bauche, a escura salinha particular onde ela
tirava as suas contas e dava balanço aos lucros, e aí se regalava na
presença dela - e, para falar verdade, à sua custa - pois esta despesa
nunca aparecia nas contas - com café e conhaque. Eu disse que
nunca se comia nem bebia no estabelecimento depois da hora
regulamentar das refeições; quando assim falava, referia-me às
pessoas em geral. Isso era verdade no capítulo dos negócios; mas no
capítulo da amizade o Capitaine usufruía por aquele tempo desta
concessão.
Era nesses momentos que Madame Bauche discutia os seus
assuntos particulares e sobre eles dava e recebia conselhos. Apesar
de tudo, Madame Bauche era mortal; nem os seus óculos verdes
chegavam, sem outra ajuda, para conduzi-la através de todas as
calamidades da vida. Fazia então cinco anos que a gente de Vernet
descobrira que La Mère Bauche ia casar com o Capitaine; e durante
oito meses todo Vernet estivera cheio disso; qualquer que seja,
porém, a paciência de cada um, sempre acaba por se esgotar, e,
como além da chávena diária de café nada mais se verificou, o
assunto acabou por esquecer - completamente desdenhado pela
Mère Bauche.
Madame Bauche, contudo, embora não pensasse no seu próprio
casamento, pensava muito no casamento dos outros; e naqueles
últimos tempos, entre a chávena de café e o conhaque da noite, iam
discutindo um projecto matrimonial. Já se sabe que o Capitaine
pleiteara em favor de Marie quando rompeu o furor indignado de
Madame Bauche; e por fim Marie ficou em casa, sendo Adolphe
quem partiu, conforme o conselho dele. «Mas o Adolphe não pode
ficar toda a vida fora de casa,» tinha Madame Bauche advogado, na
sua oposição. E o Capitaine admitiu que assim fosse, embora Marie,
disse ele, pudesse casar com qualquer outra pessoa antes dos dois
anos decorridos. E assim principiou a história.
Com quem havia ela de casar? A esta pergunta respondeu o
Capitaine, com inteira inocência, que La Mère Bauche estava em
muito melhores condições para escolher do que ele, que ignorava a
situação económica de Marie. Se Madame Bauche lhe quisesse
conceder um pequeno dot, o caso, pensava o Capitaine, seria muito
mais facilmente resolvido.
Todas estas coisas levaram meses a tratar e durante esse
tempo Marie lá foi desempenhando as suas obrigações com
melancólica indiferença. Só tinha um lenitivo. Adolphe, antes de
partir, havia-lhe jurado, sob a cruzinha que ela lhe dera, que nada
deste mundo os separaria; mais cedo ou mais tarde, casaria com ela.
Sem esta gota de água, Marie ter-se-ia sentido incapaz de abrir a
boca ou de dar mais um passo.
E então, depois de madura meditação, La Mère Bauche
descobriu uma saída, que ela própria comunicou ao Capitaine, depois
de uma chávena de café, onde deitara mais uma colher de conhaque
do que o costume. Por que não havia de ser ele o homem escolhido
para casar com Marie Clavert?
Ora ali estava uma proposta verdadeiramente inesperada, pois
a ideia de casar com quem quer que fosse nunca havia passado pela
cabeça do Capitaine em período algum da sua vida; mas La Mère
Bauche tinha maquinado as coisas de maneira que a sua proposta
não fosse inteiramente inaceitável. No que tocava a dote, estava
disposta a ser mais do que generosa. Como gostava muito de Marie,
prontificava-se a dar-lhe fosse o que fosse excepto o seu filho, o seu
Adolphe. Eis o que ela propôs.
Adolphe nunca ficaria com o estabelecimento balnear. Se o
Capitaine casasse com Marie, esta, declarou Madame Bauche, seria
a proprietária da casa depois da sua morte, com a condição, é claro,
de se estabelecerem certas compensações aos interesses
pecuniários de Adolphe.
O plano foi discutido uma centena de vezes e, por fim, levado a
tal ponto que se resolveu dá-lo a conhecer a Marie, mandada vir à
presença de Madame Bauche e do seu futuro marido. A pobre
rapariga não manifestou desgosto perante o rígido e desajeitado
noivo que lhe tinham escolhido, cuja figura era, na aparência, quase
tão de madeira como a sua própria perna. Efectivamente, Marie
gostava do Capitaine e tinha-o como amigo, além de que um tal
casamento não seria uma excepção naqueles sítios. O Capitaine
ultrapassara talvez um pouco a idade em que um homem geralmente
se considera no direito de pedir a uma rapariga que lhe sirva de
enfermeira e esposa, mas a verdade é que ela muito pouco tinha de
seu para lhe dar, além da juventude, da beleza e da bondade.
Não lhe era possível, porém, dar o seu inteiro consentimento;
pois não estava ela ainda comprometida com Adolphe? Eis por que,
perante as grandes vantagens pecuniárias que lhe foram
apresentadas uma por uma, e perante o derradeiro argumento
exibido pela Mère Bauche, segundo o qual a mulher do Capitaine
passaria a ser considerada não como uma criada mas como a
segunda proprietária do estabelecimento, ela apenas pôde deixar
correr as lágrimas e murmurar que não sabia. «Serei muito bom
para ti,» disse o Capitaine; «o melhor que eu puder.»
Marie pegou-lhe na rude e mirrada mão e beijou-a; depois fitou-
o com suplicantes olhos, que não podiam deixar de o comover. «Não
precisas de dar já uma resposta,» disse o Capitaine. «Temos muito
tempo.»
Mas, não obstante toda a sua comoção, uma coisa era certa:
Marie não podia casar com Adolphe. Como ele tinha dado a sua
inteira adesão a esta ideia, não a podia abandonar sem perder de
todo a sua posição no estabelecimento de Madame Bauche. E, além
disso, a sua consciência não o aconselhava a achar razoável um tal
casamento. Seria demais. Onde iria parar o mundo, se se fosse a
permitir que qualquer rapariga bonita casasse com o primeiro rapaz
que se enamorasse dela?
E em breve se reconheceu que o tempo urgia - que o tempo já
não era muito. Dentro de três meses, Adolphe estaria de volta. E, se
até lá nada estivesse resolvido, tudo podia ir ainda por água abaixo.
E então Madame Bauche fez-lhe uma última pergunta: «Já não
pensas, pois não, em casar com o Adolphe?» E ao dizer isto, o
costumado terror dos seus óculos verdes fez-se infinitamente maior.
Marie apenas pôde responder com uma nova explosão de lágrimas.
O caso acabou finalmente por ficar assente. Marie declarou que
consentiria em casar com o Capitaine desde que ouvisse da própria
boca dele, Adolphe, que a não amava já. Confessou, entre lágrimas,
que as suas promessas, feitas solenemente, e os seus compromissos
não lhe consentiam prometer mais nada. Não era culpa sua - de
qualquer maneira sem remédio já - gostar do namorado. Não era
culpa sua - agora, pelo menos - estar ligada por promessas. Desde
que ouvisse da sua própria boca que ele a desligava dessas
promessas, então casaria com o Capitaine - ou estaria pronta a
sacrificar-se por qualquer outra forma que La Mère Bauche
ordenasse. Que poderia isso significar para ela?
Os óculos de Madame Bauche permaneceram imóveis, mas não
o seu coração.
Marie, disse ela ao Capitaine, quando se chamasse Madame
Campan, seria sua igual no estabelecimento e passaria a ser por ela
considerada como uma verdadeira filha. Teria a sua chávena de café
todas as tardes, jantaria na mesa grande, iria à igreja com um
vestido de seda e as criadas tratá-la-iam por «madame»; uma bela
carreira lhe estava reservada, se ela se deixasse desses tolos,
juvenis, infantis amores por Adolphe. E todas estas grandes
promessas foram repetidas a Marie pelo Capitaine.
Uma só coisa, no entanto, tinha valor neste Mundo aos olhos de
Marie; o coração de Adolphe Bauche. Fora disso, nada mais existia;
com isso - certa disso, esperaria pacientemente até ao dia de juízo.
Cartas foram enviadas a Adolphe durante todos estes
extraordinários acontecimentos; e uma carta sua chegou dizendo que
muito apreciava o amor de Marie, mas, como estava claramente
demonstrado que o casamento não seria vantajoso para ele nem para
ela, estava disposto a acabar com aquilo. Consentia que ela se
casasse com o Capitaine e manifestava a sua gratidão à mãe pelos
imediatos benefícios pecuniários que lhe oferecia. Oh, Adolphe,
Adolphe! Ai de nós, ai de nós! pois não é assim o coração de tantos
homens - e o de algumas mulheres!
Esta carta foi lida diante de Marie, não tendo, porém, produzido
sobre ela maior efeito do que seria de esperar de qualquer seco
documento legal. Naquele tempo e naquelas paragens nem os
homens nem as mulheres confiavam muito em cartas; nem mesmo
quando as escreviam exprimiam nelas muito dos seus sentimentos e
afectos. Marie teria compreendido, tinha a certeza, só pelo olhar de
Adolphe ou pelo tom da sua voz; por aí perceberia logo o que o seu
namorado, de facto, quereria dizer, qual o seu desejo, e aquilo que no
íntimo do seu coração ele pretenderia realmente que ela fizesse.
Mas nada percebia daquele duro e reservado documento.
Foi por isso assente que Adolphe voltasse, comprometendo-se
ela a aceitar o destino que de viva voz por ele lhe fosse aconselhado.
O Capitaine, que conhecia melhor a natureza humana do que a pobre
Marie, sentia-se bastante seguro da noiva. Depois de ter visto
alguma coisa do mundo, Adolphe já se não devia preocupar por aí
além com uma rapariga dos sítios. Dinheiro e prazer e uma certa
posiçãozinha no mundo breve o deviam ter desiludido daquela
paixão; e então Marie acabaria por aceitar o destino - como tantas
outras raparigas na sua situação o haviam feito desde que França
era França.
E eis que era chegada a tarde do tão esperado regresso de
Adolphe. La Mère Bauche lá estava discutindo o caso com o
Capitaine, após a sua habitual chávena de café. Nos últimos tempos
Madame Bauche andava um tanto nervosa, pois começara de pensar
que tinham sido inconsiderados transigindo tanto com Marie.
Afigurava-se-lhe estar absolutamente nas mãos dos dois
namorados resolver se sim ou não se haviam de casar. Ora nada
neste mundo era tão estranho às intenções de Madame Bauche como
isso. Estava decidida a cumular de graças todas as pessoas que
dependiam dela - contanto que lhe fosse sempre dado dirigi-las para
onde lhe aprouvesse; mas desde que as não pudesse dirigir para onde
queria, cumulá-las-ia de tudo menos de graças. Tinha o seu código de
moralidade neste capítulo. Estava pronta a fazer todo o bem que
pudesse às pessoas conhecidas, com a condição de não tentarem
induzi-la a consentir no casamento do Adolphe com Marie Clavert. Se
tal viesse a acontecer, teria corrido de casa com Marie, com o
Capitaine e até com o próprio filho.
Eis por que se tornara um tanto quezilenta e obstinada nas suas
discussões com o amigo. «Não sei,» disse ela nessa mesma tarde;
«não sei. Tudo pode correr bem, mas, se o Adolphe se revolta contra
mim, que havemos nós de fazer então?
- Mère Bauche,» disse o Capitaine, beberricando o café e
soprando o fumo do charuto, «Adolphe não se revoltará contra nós.»
Muita gente tinha reparado já que o Capitaine estava mais à sua
vontade naquela casa, e algo mais livre de maneiras quando falava
com Madame Bauche, desde que se assentara na sua aliança
matrimonial. A própria Madame Bauche observara isso, não com
grande satisfação; mas, que podia ela fazer agora? Depois do
casamento, pô-lo-ia no seu lugar, a despeito de todos os seus
compromissos para com Marie. «Mas se ele vem dizer que gosta da
rapariga?» continuara Madame Bauche. «Esteja descansada, minha
amiga, que ele não dirá tal coisa. Nestes dois anos deve ter visto
muitas raparigas bem mais bonitas do que ela. E, além disso, a
senhora tem em seu poder a carta que ele lhe escreveu.
- Isso não quer dizer nada, Capitaine. É homem para engolir a
carta com a mesma facilidade com que o senhor devora uma omeleta
aux fines herbes».
O Capitaine era particularmente expedito em omeletas aux fines
herbes. «Mas, Mère Bauche, não se esqueça também de que tem a
bolsa nas suas mãos; ele bem deve saber que não pode engolir coisas
dessas sem o seu consentimento.
- Ah!» exclamou Madame Bauche, «pobre rapaz! Não tem nada
de seu cá neste mundo além do que eu lhe dou. » Mas dir-se-ia que
esta reflexão não era lá muito desagradável para ela. «Agora o que o
Adolphe já deve ser é um homem experimentado», prosseguiu o
Capitaine. «Ele bem sabe que se não deve pôr tudo de parte neste
mundo por uns simples lábios rosados. Isso são loucuras de rapaz, e
o Adolphe já não é nenhum rapaz. Pode crer, Madame Bauche, tudo
acabará bem.
- E, depois, aí vamos ter a Marie infeliz e doente, meia morta
nos nossos braços» disse Madame Bauche.
Eis o que não era muito lisonjeiro para o Capitaine, e ele bem o
percebeu. «Talvez sim e talvez não,» disse ele. «Mas, seja como for,
tudo há-de passar. Aí está uma doença de que as raparigas poucas
vezes morrem - especialmente quando há mais alguém disposto a
casar com elas.
- Ora!» exclamou Madame Bauche; e com esta palavra se
vingou das liberdades que o Capitaine ultimamente se permitia. Ele
encolheu os ombros, tomou uma pitada de rapé e, sem esperar que
lha oferecessem, serviu-se de outra colher de conhaque. Depois
acabou a conferência, e na manhã seguinte, antes do almoço, chegou
Adolphe Bauche.
Naquela manhã a pobre Marie mal sabia como ter-se de pé. Um
ou dois meses antes, ou mesmo nos últimos dois dias, sentira uma
espécie de confiança na sinceridade com que Adolphe lhe falara: mas
com a aproximação do momento fatal essa confiança desvanecera-se.
Compreendeu que aqueles dois velhos e espertos conselheiros
andavam conspirando contra a sua felicidade, e que ela nada podia
esperar de bom daqueles dois terríveis inimigos. Na véspera à noite
Madame Bauche encontrara-a no corredor e beijara-a quando ela lhe
dera as boas noites.
Marie pouco sabia acerca de sacrifícios, mas percebeu que
aquele era um beijo sacrificial.
Naqueles tempos uma espécie de diligência com as malas
postais para Olette passava de manhã cedo em Prades, eis por que
enviaram um carro de Vernet para conduzir Adolphe às termas.
Nunca príncipe ou princesa fora aguardado com maior ansiedade.
Muito antes da hora já Madame Bauche estava levantada e vestida,
tendo exclamado já umas cem vezes estar certa de que ele não viria.
O Capitaine fora para a estrada e lá ia caminhando com a sua perna
de pau quase tão negra e direita como um poste de candeeiro. Marie
também estava levantada, mas ninguém a tinha visto. Erguera-se e
saíra antes que alguém se tivesse mexido em casa; no entanto agora,
que começava a haver movimento, escondera-se como uma lebre na
toca.
Finalmente ouviu-se o velho char-à-banc rodar em frente da
porta e Adolphe saltar dele para os braços da mãe. Estava mais
gordo e bonito do que a última vez que ela o vira, com uma barba
maior, fatos mais apresentáveis e, efectivamente, com mais aspecto
de homem. Marie, lá da sua janelinha, também o viu e pensou que ele
parecia um deus. Seria possível, murmurou de si para consigo, que
uma tal divindade ainda quisesse saber dela? A mãe estava
deslumbrada com o filho, que tagarelava no mais completo à
vontade. Apertara cordialmente a mão do Capitaine, que ele sabia
ser o marido escolhido para a namorada, e, ao entrar em casa, de
braço dado com a mãe, perguntara por ela. «E que é feito da
Marie?» disse ele. «A Marie! Oh! está lá em cima: vê-la-ás depois do
pequeno almoço», respondeu La Mère Bauche.
E penetraram em casa, indo sentar-se a almoçar no meio dos
hóspedes. Toda a gente tinha ouvido falar da história; e todos
estavam alerta para ver o rapaz cujo amor ou quebra de amor eram
considerados de tão grande importância. «Vai ver que tudo acaba
bem», disse o Capitaine, erguendo a cabeça bem para o alto. «Penso
que sim, penso que sim,» disse La Mère Bauche, que, agora que o
Capitaine tinha razão, o não queria contrariar. «Eu bem sabia que
tudo havia de acabar bem» disse o Capitaine. «Eu bem lhe disse que
o Adolphe havia de voltar homem feito; e aí o tem homem. Olhe para
ele; quer ele lá saber agora da Marie Clavert»; e o Capitaine, pondo
grande eloquência no seu gesto, atirou uma pedrinha que trazia na
mão para cima de um muro próximo.
E então todos se puseram a almoçar com grandes mostras de
aparente alegria. E, na verdade, não sem alguma íntima alegria, pois
Madame Bauche pensava ver o filho curado da sua paixão.
Entretanto, Marie continuava lá em cima receosa ainda de se
mostrar. «Ele já veio,» exclamou uma rapariga, criada na casa,
abrindo a porta do quarto de Marie. «Bem sei,» disse Marie. «Bem o
vi chegar.
- E, ai, que bonito ele vem!» disse a criada, erguendo as mãos
juntas, de olhos em alvo. Marie, no íntimo do seu coração, desejaria
bem que ele não tivesse metade daquela beleza, desse modo teria
muito mais esperanças de que ele fosse seu. «As pessoas falavam
com ele como se ele fosse o prefet» disse a rapariga. «Quero lá
saber com quem é que ele tem estado a falar,» tornou Marie; «vai-te
embora e deixa-me - deves ter que fazer.» Por que é que ele não veio
logo falar com ela? Porquê, se era certo ele ter sido sincero? Ai!
começava a acreditar que ele o não fora. E então? Que havia ela de
fazer então? E, tristemente calada, pensando no outro marido que
lhe tinham escolhido, assim ficou.
Mal findou o almoço, Adolphe foi chamado ao quarto da mãe.
Madame Bauche tinha discutido longamente consigo própria se devia
convidar o Capitaine a assistir a esta entrevista. Por muitos motivos
teria desejado que ele não estivesse presente. Não queria que o filho
julgasse que ela não era capaz de gerir os seus próprios negócios e
bem agradável lhe teria sido dar a perceber ao Capitaine que sua
assistência lhe não era absolutamente necessária. Mas receou que
os seus óculos verdes já não tivessem a influência de outros tempos
sobre Adolphe, quando ele ainda não vira mundo nem se fizera
homem. Podia vir a ser preciso que ao filho, homem como era agora,
se opusesse outro homem. Eis por que o Capitaine foi convidado a
assistir à entrevista.
É escusado contar pelo miúdo o que se passou. Estiverem os
três fechados durante duas horas e saíram todos juntos. A fisionomia
de Madame Bauche era serena e agradável; as suas esperanças de
vitória eram agora mais fortes do que nunca. A cara do Capitaine
tinha uma mascara semelhante a dos grandes diplomatas: marchava
plácido e hirto, erguendo a perna de pau com uma facilidade e uma
perícia absolutamente extraordinárias. Mas o semblante do pobre
Adolphe era sombrio. Sim, sim, pobre Adolphe! Pobre, pelo menos de
espírito. Comprometera-se a abandonar Marie, aceitando a liberal
mesada que a mãe lhe oferecia; agora, porém, restava-lhe comunicar
isto mesmo à própria Marie. «Por que não lho diz a mãe?» dissera
ele a Madame Bauche ostentando na face bem pouco daquele brio
que era agora todo o orgulho dela. Mas ela explicara-lhe que fazia
parte do combinado que Marie ouvisse essa resolução da própria
boca dele. «Isso não tem importância,» observou o Capitaine, com o
ar mais indiferente deste mundo. «A rapariga esta à espera disso
mesmo. Tem lá aquela infantilidade de pensar que apenas se
desligara de ti quando tu próprio o consentires. Não creio que se vá
mostrar impertinente.» Neste momento, Adolphe sentiu quanto lhe
seria agradável poder pôr o Capitaine fora da casa da mãe.
E onde se haviam eles de encontrar? No átrio do balneário,
sugeriu Madame Bauche, pois, observou ela, podiam andar à vontade
de um lado para outro que ninguém aí entrava àquela hora do dia.
Mas Adolphe objectou que esse sítio era muito frio, triste e
melancólico.
O Capitaine lembrou a salinha de Madame Bauche; mas esta
não gostou da sugestão. Ouvia-se tudo do outro lado, como ela bem
sabia, e ela tinha a certeza de que a reunião não acabaria sem
soluços amargos e possivelmente ruidosos. «Digam-lhe que vá para a
gruta e eu lá irei ter com ela,» propôs Adolphe. E com isto todos
concordaram. A gruta era uma escavação natural no alto de uma
rocha debruçada sobre o estabelecimento balnear. Havia ali um
alcantilado caminho em ziguezague, com degraus que nunca mais
acabavam, ao longo da penedia, partindo de um jardinzinho junto à
casa, que ficava mesmo debaixo da montanha. Rente à fachada do
Hotel corria um rumorejante riacho que mal deixava espaço entre
ele e a porta para um caminho; sobre o riacho havia uma ponte de
madeira que dava passagem para o jardim, e a duzentas ou trezentas
jardas da ponte principiavam os degraus por onde se subia à gruta.
No pino da época, e com tempo quente, era aquele sítio muito
frequentado. Havia lá em cima uma mesa verde, quatro ou cinco
cadeiras de pinho e um banco de jardim, que tinha sido removido
para a parte mais funda da escavação por ter as pernas de trás um
tanto escangalhadas. Uma parede de dois pés de altura
aproximadamente o rodeava a toda a volta, resguardando os
visitantes do precipício. De facto não se tratava propriamente de
uma gruta, mas de uma pequena escavação na rocha, como é vulgar
nas penedias dos vales, por cima das nossas cabeças, a qual, graças
àqueles alcantilados degraus, se transformara numa fonte de
exercício e diversão para os frequentadores do Hotel.
Encostados ao muro podíamos ver o jardim em baixo, assim
como o cintilante telhado de ardósia da casa de Madame Bauche, e à
direita, o sombrio e silencioso cume nevado do velho Canigou, rei dos
montes nos Pirenéus Orientais.
E assim Madame Bauche tratou de enviar Marie à gruta e
Adolphe tratou de ir ter com ela. Estávamos na primavera; posto que
não houvesse vento nem neve nos picos mais baixos, o ar ainda era
fresco e cortante, não havendo o perigo de qualquer hóspede do
estabelecimento se aventurar até ali. «Mande-a pôr qualquer coisa
na cabeça, Mère Bauche,» disse o Capitaine, a quem não agradava
que a noiva se pudesse constipar nas vésperas da boda. Madame
Bauche soltou uma exclamação de desdém, como se não pensasse
prestar a mais pequena atenção a tais recomendações, vindas da
parte do Capitaine. No entanto, quando, uns quinze minutos depois,
Marie atravessou, sorrateiramente, a pequenina ponte, levava um
lenço na cabeça e ia muito embrulhada numa capa castanha escura.
A pobre Marie pouco atentava no frio, mas sentia-se contente
por poder assim, de qualquer maneira, esconder a cara. Quando
Madame Bauche a foi procurar ao seu quarto e, com um sorridente
semblante e um beijo afável, a mandou ir a gruta, ela percebeu, ou
julgou perceber, que tudo estava acabado. «Ele quer dizer-te a
verdade - como estão as coisas», disse La Mère Bauche. «Queremos
fazer tudo quanto pudermos, bem sabes, para te fazermos feliz,
Marie.
Mas deves lembrar-te o que o Sr. Prior nos disse o outro dia.
Não podemos ter tudo neste vale de lágrimas, isso ficará para
quando um dia a nossa pobre alma for expurgada de todas as suas
fraquezas. E agora vai, filha, e leva a tua capa.
- Pois sim, mamã.
- E o Adolphe irá ter contigo. Faz por te portares bem, como
uma rapariga sensata.
- Está bem, mamã,» e assim partiu, levando no rosto outro beijo
sacrificial e no coração um intolerável pressentimento de desgraça!
Adolphe saiu de casa antes dela e tendo ficado no pátio do
estábulo, bem cozido com o portão, para que ela o não visse, ouviu-a
atravessar vagarosamente a ponte e subir o primeiro lanço de
escadas. Tinha-a visto subir muitas vezes aqueles degraus e muitas
vezes a tinha seguido. Ela, ao ouvi-lo, punha-se a correr; e então ele
apanhava-a, exausta, lá no alto, beijando-a, ao vê-la sem forças para
se lhe furtar, cansada pela fuga. Agora, porém, não havia corridas
nem perseguições nem ocasião para se pensar em beijos.
Quanto a ele, se pudesse, desejaria bem esconder-se e evitar
aquela entrevista.
Mas não tinha coragem para isso; e deixou-se ficar à espera,
vacilante, uns dez minutos, trocando uma ou outra palavra com o
empregado dos banhos, ali perto, exactamente para se mostrar à
vontade. Mas o homem percebeu que ele o não estava. Subterfúgios
destes raramente dão resultado - raramente convencem quem quer
que seja. E então, daí a uns dez minutos, num andar tão vagaroso
como o de Marie, Adolphe começou a subir para a gruta.
Marie tinha-o visto lá de cima, mas de maneira a não ser vista.
Ele, no entanto, nem uma só vez levantara a cabeça para olhar para
ela; com os olhos no chão, todo o caminho foi meditando. Quando
chegou, ela estava parada no meio da gruta, cabisbaixa, as mãos
atrás das costas. Tinha-se retirado da parede, de tal modo que
nenhuns olhos a podiam ver a não ser os do seu falso namorado. Aí se
manteve depois de ele chegar, procurando estar imóvel, mas
tremendo como um vime.
Só ao atingir o alto da escada, ele decidiu o que devia fazer.
Talvez, no fim de contas, o Capitaine tivesse razão; talvez ela
estivesse resignada. «Marie,» exclamou ele, com uma voz que se
esforçava por parecer prazenteira, «que lugar tão estranho para nos
encontrarmos depois de uma tão grande separação,» e estendeu-lhe
a mão. A mão apenas! Não lhe oferecia sequer um beijo. Não lhe
beijava sequer a face, fraternalmente. Devemos lembrar-nos que
Marie conhecia muito pouco as leis do mundo. Antes de ter sido seu
namorado, ele tinha sido seu irmão.
Mas Marie pegara-lhe na mão, dizendo: «Sim, há tanto tempo
já.
- E agora, que estou de volta,» começou ele por dizer, «parece
que estamos bastante embaraçados. Nunca me vi numa situação
destas. Seja como for, tudo há de acabar bem, estou certo.
- Talvez», disse Marie, que continuava a tremer violentamente e
a olhar para o chão.
Depois seguiu-se entre eles um silêncio de um minuto, pouco
mais ou menos. «Vou dizer-te do que se trata, Marie,» disse Adolphe,
finalmente, deixando cair a mão, num grande esforço para sacudir de
si aquele peso. «Receio bem que tenhamos sido ambos bastante
patetas. Não concordas com isso também? Parece-me evidente que
nunca nos poderemos casar um com o outro. Não é assim que vês as
coisas?»
Marie sentiu a cabeça à roda, mas não era pessoa para
desmaios. Deu três passos para trás, e amparou-se à parede da
caverna. Também ela procurava pensar na melhor maneira de dirigir
a sua batalha. Não haveria esperança de vitória para ela?
Não prevaleceria a eloquência, o amor? Pouco contava com a
sua própria beleza; mas não poderiam as suas súplicas conseguir
alguma coisa? E a referência às velhas promessas que entre eles
tinham sido juradas tantas vezes com tamanha veemência e
solenidade? «Nunca nos poderemos casar!» disse ela, repetindo as
palavras dele. «Nunca, Adolphe? Nunca nos poderemos casar?
- Palavra de honra, querida, receio bem que não. Bem vês como
a minha mãe se opõe a isso.
- Mas podemos esperar, não podemos?
- Ah, mas é isso precisamente, Marie. Não podemos esperar.
Temos de decidir isso agora, - hoje. Bem vês que não posso fazer
nada sem o dinheiro de minha mãe - e, quanto a ti, sabes bem que ela
não te deixará ficar aqui senão casando tu com o velho Campan,
imediatamente. É um bom tipo, embora seja velho. Se te casares
com ele, como sabes, poderás ficar em casa, e isso dar-te-á direito a
teres o melhor quinhão em todas estas coisas. E, quanto a mim,
poderei vir aqui de vez em quando para te ver e nada me impedirá de
seguir o meu caminho livremente.
- Queres então que eu case com o Capitaine, Adolphe?
- Palavra, parece-me que é o melhor que tens a fazer. Assim
penso, na verdade.
- Oh, Adolphe!
- Que poderei eu fazer por ti, não me dizes? Supõe que eu ia
daqui ter com minha mãe e lhe dizia que resolvera fazer de ti minha
mulher, que aconteceria? Encara as coisas por este lado, Marie.
- Ela não te poderá mandar embora - tu, o seu próprio filho!
- Mas mandar-te-ia a ti; e a todo o vapor, garanto-te, palavra de
honra.
- Que me importa isso a mim,» e fez um gesto com a mão, como
a mostrar que lhe era indiferente que a tratassem assim. «Tanto se
me dava, desde que tu ainda gostasses de mim.
- Mas que iríamos nós fazer?
- Eu trabalharia. Há mais casas além desta» e apontou para o
telhado de ardósia do estabelecimento balnear de Madame Bauche.
«E eu - sem cinco réis neste mundo,» disse Adolphe.
Marie caminhou para ele e tomou-lhe a mão direita entre as
dela, apertando-a com efusão. Oh! com que efusão! «Terias o meu
amor,» exclamou ela; «o mais profundo, o mais ardente, o melhor
amor do meu coração. Por mim, não quereria mais nada, nada mais
sobre a terra, desde que te tivesse a ti.» E inclinou-se-lhe contra o
ombro e fitou-o profundamente nos olhos. «Mas isso é absurdo,
Marie, não vês?
- Não, Adolphe, não é absurdo. Não te deixes levar por eles.
Que valeria o amor de outra maneira? Oh, Adolphe, é certo gostares
de mim, gostas ou não?
- Sim, gosto,» disse ele, vagarosamente - como se o não tivesse
dito, se pudesse deixar de dizê-lo. E então passou-lhe o braço
vagarosamente pela cintura, como se também não pudesse deixar de
o fazer. «E como havia eu de não gostar?» disse a apaixonada
rapariga. «Oh, gosto de ti, muito, apaixonadamente, com todo o meu
coração, com toda a minha alma. Adolphe, gosto tanto de ti que te
não posso deixar. Não jurei eu que seria tua? Não o jurei mais de mil
vezes? Como posso eu casar com aquele homem? Oh, Adolphe, como
podes tu querer que eu case com ele?» E colava-se a ele, cravava os
olhos nos dele, implorava-o com a vista. «Eu não queria isso... mas...
» e então Adolphe calou-se. Era difícil confessar-lhe que estava
pronto a sacrificá-la ao velho por precisar do dinheiro da mãe. «Mas,
o quê? É impossível, Adolphe, que queiras tal coisa. Não me juraste
tu que eu seria tua mulher? Olha, olha para isto»; e tirou do peito um
cordãozinho que ele lhe tinha dado em troca da cruz! «Não te
lembras que o beijaste quando me juraste diante da imagem da
Virgem que eu seria tua mulher? E não te lembras que eu tinha medo
de jurar por tua mãe já se ter zangado tanto? E que foste tu que me
obrigaste? E depois disto, Adolphe! Oh, Adolphe! Diz-me que posso
ter um bocadinho de esperança. Esperarei; oh, esperarei
pacientemente!»
Adolphe afastou-se dela, deu uns passos, inquieto, de um para o
outro lado da gruta. Amava-a...; amava-a como todo e qualquer
homem pode amar uma rapariga afectuosa e bonita. O calor da mão
dela, a suavidade do seu contacto, a pura e brilhante paixão
resplandecendo-se nos olhos cheios de lágrimas haviam reanimado
aquele débil fogo de amor que jazia no fundo da sua alma. Mas, que
havia ele de fazer? E se resolvesse pôr de lado as imediatas
esperanças doiradas que a mãe alimentava para ele, por onde
começar, como levar a bom fim a sua obra de devoção? Marie seria
expulsa de casa e ele tornar-se-ia uma vítima nas mãos da mãe e
daquele inflexível soldado perna de pau;... uma vítima sem vintém,
para ali desanimado, sem uma ponta de influência ou um pouco de
alegria. «Mas que havemos nós de fazer?» exclamou ele outra vez,
ao encontrar de novo os olhos súplices de Marie. «Sermos
verdadeiros e honestos, e esperar,» disse ela, cingindo-se a ele e
amparando-se-lhe no braço. «Eu não tenho medo; e ela não é minha
mãe, Adolphe.
Não deves ter medo da tua própria mãe.
- Medo! Não, é claro que não tenho medo. Mas não sei que
diabo havemos de fazer agora.
- Deixa-me dizer-lhe que não quero casar com o Capitaine; que
não quero quebrar a promessa; e então poderei deixar a casa à
vontade.
- Isso não pode ser.
- Pode, Adolphe, se me prometeres uma vez mais; se eu puder
ouvir na tua voz uma vez mais o eco do amor. Não te lembras deste
sítio? Foi aqui que me obrigaste a dizer-te que gostava de ti. E é
então aqui que tu me queres dizer que fui iludida?
- Não é que eu te queira desiludir,» disse ele. «Espanta-me que
sejas tão injusta para mim. Deus sabe quanto isto me contraria!
- Bem; se eu sou uma contrariedade para ti, está bem. Faz o
que quiseres,» e inclinou-se para trás, contra o muro da penedia, e,
cruzando os braços sobre o peito, afastou dele a vista e fitou os olhos
na crista granítica do Canigou.
Adolphe começou outra vez a passear de um lado para o outro
da gruta. Havia nele amor que bastava para o levar a desposá-la,
amor suficiente, então, naquele momento, para a ideia do casamento
dela com o Capitaine lhe parecer odiosa; suficiente, provavelmente,
para fazer dele um marido menos mau, caso o destino o pusesse em
circunstâncias de casar com ela; mas insuficiente para suportar o
castigo que sobre ele fatalmente cairia em virtude da indignação da
mãe. Além disso tinha-lhe prometido que deixaria Marie - havia dado
plena adesão ao plano do casamento dela com o Capitaine.
Reconhecera que o caminho traçado pela mãe era o único que lhe
convinha seguir na sua qualidade de homem. Encarava a perspectiva
dos seus deveres como um homem especialmente incitado a cumpri-
los, graças a eloquência do Capitaine. E o velho Campan tinha ganho
em absoluto a partida. Era fácil ganhar o assentimento de rapazes
assim tão fracos de cabeça como de algibeira, oferecendo-lhes a
perspectiva de uns duzentos francos anuais! «Vou dizer-te o que
tenho a fazer,» disse ele, por fim. «Vou ver se apanho a minha mãe
sozinha e pedir-lhe que deixe ficar as coisas como estão.
- Se isso o incomoda, Mr. Adolphe,» e a orgulhosa rapariga
continuou, - as mãos cruzadas sobre o peito, fitando as montanhas
em frente. «Não percebes o que eu digo, Marie. Não imaginas como
ela e o Capitaine me atormentam.
- Mas, diz-me, Adolphe, gostas de mim?
- Bem sabes que sim, mas...
- E não me queres deixar?
- Vou pedir a minha mãe. Experimentarei se consigo que ela
consinta.»
Marie não podia ter grande confiança nas promessas do
namorado; no entanto, mesmo assim, embora fracas e indecisas,
sempre valiam mais que um completo desengano. Por isso lhe
agradeceu, prometendo-lhe, com lágrimas nos olhos, que lhe seria
sempre fiel, e então propôs-lhe que descesse para casa. Seguí-lo-ia,
disse ela, logo que pudesse passar despercebida.
Então olhou para ele como na esperança de descobrir-lhe sinal
de um renovado amor. Mas não pode ver sinal algum. Agora, que ela
ansiava sentir-lhe o contacto dos lábios na face, isso lhe era negado.
Adolphe seguiu o conselho que ela lhe dava; partiu sozinho num
vagar ocioso; e, pouco mais ou menos meia horas depois, Marie
seguiu-lhe as pisadas, e, sem ser vista, trepou para o quarto.
De novo omitiremos o que se passou entre mãe e filho; mas,
nessa noite, já tarde, depois dos hóspedes se terem retirado para os
quartos, Marie recebeu um recado de Madame Bauche para ir ter
com ela a uma pequena sala situada no fundo da casa. Esta
dependência destinava-se à sala de visitas particular, sempre que
chegava qualquer estrangeiro que pretendia tais acomodações, e por
isso raramente servia. Ai encontrou Madame Bauche sentada numa
cadeira de braços, por detrás de uma mesinha em que havia duas
velas; num sofá, junto à parede, sentava-se Adolphe. O Capitaine não
estava presente. «Fecha a porta, Marie, e vem sentar-te aqui,» disse
Madame Bauche. Fácil era perceber pelo tom de voz que estava
irritada e severa, inflexivelmente irritada e severa, e resolvida a
traduzir à letra as ameaças contidas nos seus terríveis óculos.
Marie fez o que lhe ordenaram. Fechou a porta e sentou-se na
cadeira mais perto. «Marie,» disse La Mère Bauche - e aos ouvidos
da pobre rapariga a voz ressoou altiva - uma chama de ira cintilou
através dos óculos verdes «que significa tudo isto que me chegou aos
ouvidos? Ousaste dizer que teimas em que o meu filho se
comprometeu a casar contigo?» E então a majestosa mãe calou-se, à
espera de uma resposta.
Marie, porém, não tinha resposta a dar. Olhou suplicante para o
namorado, como a implorar-lhe que sustentasse a batalha por ela.
Mas, se ela não se sentia com forças para lutar pela sua própria
causa, era certo ele não o fazer por ela. A pequena capacidade de
combate que havia nele fora completamente aniquilada antes da
chegada dela. «Quero uma resposta, e imediatamente,» disse
Madame Bauche. «Não estou disposta a deixar-me arrastar na
ignomínia e na desgraça pela pessoa que recebi por caridade. Não te
apanhei eu, menina, numa valeta, e não te matei a fome quando era
mais que certo teres sido levada para um asilo? É assim que mostras
a tua gratidão para comigo? Não te basta teres sido alimentada,
vestida e acarinhada por mim, ainda me queres roubar o meu filho?
Fica pois sabendo que o Adolphe nunca casara com uma mendiga
como tu.»
Marie permaneceu imóvel, aturdida com a dureza destas
palavras. La Mère Bauche repreendera-a muitas vezes; tinha-a
descomposto mais que uma vez, era verdade; mas sempre a
repreendera como uma mãe costuma repreender uma filha. E,
quando a história dos amores de Marie lhe chegara aos ouvidos,
irritara-se muito; a sua ira, porém, nunca atingira aquele estado. De
facto, Marie nunca tinha encarado o caso por aquele lado. Nunca lhe
tinham lançado em rosto, até então, o pão que lhe haviam dado por
esmola. Nunca lhe ocorrera que isso a tornaria indigna de ser
mulher de Adolphe. Ali, naquele vale, toda a gente era tão
aproximadamente semelhante que nunca lhe passara pela cabeça a
ideia da sua própria inferioridade.
Mas agora...!
Quando a voz se calou, Marie olhou outra vez para Adolphe;
mas desta vez já não com um olhar de súplica. Também ele a
censuraria? Eis o que os olhos dela perguntavam agora. Não; ela não
podia afirmar que assim fosse. Afigurou-se-lhe que toda a energia de
Adolphe estava agora principalmente ocupada a desfazer a borla da
almofada do sofá. «E agora, menina, diga-me sem tardar, se vamos
acabar ou não com este disparate,» continuou La Mère Bauche; «e
dir-lhe-ei desde já que não estou disposta a mantê-la em minha casa
para conspirar contra o nosso bem estar e a nossa felicidade. Como
Marie Clavert, não ficará aqui. O Capitaine está disposto a casar
consigo; se quiser ser mulher dele, cumprirei a minha palavra para
consigo, embora não o mereça. Se se recusar a casar com ele, terá
de se ir embora. Quanto ao meu filho, está aqui; ele vai dizer-lhe, na
minha presença, que declina inteiramente a honra que lhe ofereceu.»
E então calou-se, à espera de uma resposta, batendo na mesa
com o sinete que por acaso tinha à mão; mas Marie não disse nada.
O testemunho de Adolphe também fora invocado, mas Adolphe ainda
não dissera palavra. «Bem, menina?» disse La Mère Bauche.
Então Marie ergueu-se e, dando volta à sala, tocou levemente
no ombro de Adolphe. «Adolphe», disse ela, «é a ti que te compete
falar. Farei o que mandares».
Ele despediu um longo suspiro, olhou primeiro para Marie e
depois para a mãe, estremeceu ligeiramente e murmurou: «Palavra
de honra, Marie, penso que a mãe tem razão. Não nos devemos
casar. É impossível, realmente.
- Bem, então está decidido,» disse Marie, voltando para o seu
lugar. «E casarás com o Capitaine?» perguntou La Mère Bauche.
Marie limitou-se a mover a cabeça em sinal de assentimento. «Ora
aqui estamos amigas outra vez. Vem cá, Marie, dá-me um beijo.
Deves compreender que tenho o dever de olhar pelo meu filho. Mas
não quero estar zangada contigo, desde que isso se pode evitar. Não
quero, podes crer. Quando fores Madame Campan, serás minha filha,
e terás o quarto da casa que queiras... bem vês!» E uma vez mais
imprimiu um beijo na fria testa de Marie.
Como saíram da sala e se dirigiram para os seus quartos é coisa
que dificilmente saberei dizer. Mas cinco minutos depois deste último
beijo estavam separados. Lá Mère Bauche tinha dado uma palmada
em Marie e rira-se para ela, chamando-lhe a sua boa madamezinha
Campan, a sua jovem patroazinha do Hotel Bauche, acabando por se
retirar para o quarto, toda satisfeita com a vitória.
Os meus leitores não devem ser muito severos para com
Madame Bauche. Ela já tinha feito bastante por Marie Clavert; e
quando se viu uma vez mais ao lado da sua cama, pediu a Deus que
lhe perdoasse a crueldade que sentia ter mostrado para com a órfã.
Mas, ao fazer estas orações, com o seu crucifixo favorito numa das
mãos e a imagenzinha da Virgem diante dela, advogava os seus
deveres para com o filho. Não estaria ela no direito, perguntava à
Virgem, de o salvar de um mau casamento? E então prometia muitas
recompensas à Virgem e a Marie: um novo enxoval para cada uma,
círios para a Virgem e um relógio de oiro e uma cadeia para Marie,
quando ela casasse com o Capitaine. Tinha sido cruel, reconhecia-o.
Mas não seria justificável num caso daqueles? E a recompensa seria
tão generosa!
Houve, porém, outro encontro naquela noite, muito curto, é
certo, mas não menos significativo. Não muito depois de se terem
separado, o tempo suficiente para que toda a casa estivesse em
sossego, Adolphe, sentado ainda no seu quarto, meditando no dia que
tinha passado, ouviu uma leve pancada na porta. «Entre,» disse ele,
como costumam fazer os homens; e Marie, abrindo a porta, apareceu
no limiar do quarto. No seu semblante nada havia já daquele suave
aspecto de suplicante ternura que ela mostrara na gruta nem nada
daquele vencido e subjugado semblante que aparentara diante da
mãe. Tinha a cabeça um pouco mais erguida do que de costume e os
olhos francamente fitos nele lá no fundo das suas doces
sobrancelhas. Talvez ainda houvesse neles algum amor, mas era
amor orgulhosamente refreado. Quando Adolphe deu com os olhos
nela, teve medo. «Está então tudo acabado entre nós, Monsieur
Adolphe?» disse ela. «É verdade. Não achas que foi melhor assim,
eh, Marie?
- E é tudo quanto valem os juramentos e as promessas trocadas
entre nós tão solenemente?
- Então, Marie, não ouviste o que a minha mãe disse?
- Oh, cavalheiro! Eu não vim aqui pedir-lhe outra vez que goste
de mim. Oh, não!
Não penso em tal coisa. Mas isto seria um ultraje se eu ficasse
com ele; teria vergonha de usar isto depois de ser mulher daquele
homem. Tome,» e estendeu-lhe o pequeno fio que sempre trouxera
ao pescoço desde que ele lho oferecera. Ele pegou nele,
abstractamente, sem saber que fazia, e poisou-o em cima do
toucador. «E o senhor,» prosseguiu ela, «ainda quer conservar
aquela cruz? Oh, não! Deixe-a ver. Lembrar-lhe-ia demais as suas
falsas promessas.
- Marie,» exclamou ele, «não deves ser tão severa para comigo.
- Severa!» disse ela, «não. Para severidades já basta. Não
quero ser severa para consigo, Adolphe. Mas dê-me a cruz; seria
maldição para si se ficasse com ela.»
Adolphe abriu uma caixinha que estava em cima da mesa, tirou
dela uma cruz e entregou-a a Marie. «Então, adeus,» disse ela.
«Pouco mais teremos a dizer um ao outro. Compreendo agora que foi
um erro ter gostado de si. Eu devia ter sido para si como qualquer
das outras raparigas da casa. Mas, oh! como o poderia eu evitar?»
Ele nada respondeu a isto, e ela, fechando a porta suavemente,
dirigiu-se para o quarto. E assim findou o primeiro dia de Adolphe
Bauche depois do regresso à casa materna.
Na manhã seguinte, o Capitaine e Marie estavam formalmente
noivos. Isto foi feito durante uma cerimóniazinha, na presença de
todos os hóspedes então no estabelecimento e com toda a sorte de
manifestações acerca das virtudes de Marie.
Dir-se-ia que La Mère Bauche não podia ser mais cortês para
com ela. Não se falou mais no facto de ela ter sido recolhida por
caridade; não se falou mais na valeta. La Mère Bauche ofereceu, por
suas próprias mãos, um bolo e um cálice de vinho, depois de
anunciado o casamento, fez-lhe uma festa na cara e chamou-lhe a sua
muito querida Mariazinha Campan. E então caíram sobre o Capitaine
inúmeras atenções, todos os hóspedes desejaram felicidades a Marie
e as criadas principiaram a compreender que ela era uma pessoa
digna de respeito. Como tudo aquilo era diferente do áspero ataque
de que ela fora alvo na noite anterior! Só Adolphe se conservou
afastado, sozinho. Embora presente, não dissera palavra. Só ele não
apresentara cumprimentos.
No meio de toda esta festa a própria Marie pouco disse ou
nada. La Mère Bauche percebeu-o, mas perdoou. Embora se tivesse
zangado ao ter conhecimento de que Marie ousava gostar do seu
filho, reconhecia, no fundo do seu coração, que um tal afecto era
natural. Não pudera ter pena dela enquanto o filho estivera em
perigo; mas agora sentia quanto a lamentava. Eis por que tudo eram
mimos e encorajamentos para Marie, embora ela se mantivesse
durante os seus afazeres quotidianos intratável e silenciosa.
Quanto ao Capitaine, tudo lhe corria bem. Era um homem
experimentado. Não podia esperar ser de facto preferido con amore
a um mocetão como Adolphe. Mas esperava que Marie, como
qualquer outra rapariga, fizesse o que lhe convinha e que, dentro de
poucos dias, voltasse ao seu perfeito juízo e se reconciliasse com a
vida.
E então o casamento foi marcado para um dia muito próximo,
pois, como La Mère Bauche dissera, «Para que é que servia esperar-
se? Tudo estava a postos; quanto mais cedo eles se casassem,
melhor». Não pensaria assim o Capitaine?
O Capitaine disse que sim.
E então interrogaram Marie. Era o mesmo para ela, disse.
Estava disposta a fazer fosse o que fosse do agrado de Madame
Bauche; apenas se recusava a ser ela a marcar o dia. Realmente não
queria fazer nem dizer fosse o que fosse que concorresse para
auxiliar aquele casamento. E concordou bastante pacificamente,
senão de boa vontade, com tudo o que as outras pessoas disseram ou
fizeram; e assim o casamento foi marcado para a semana seguinte
àquela em que Adolphe havia regressado a casa.
Toda aquela semana se passou mais ou menos da mesma
maneira. As criadas falavam à boca pequena da perversidade, da
teimosia e da ingratidão de Marie em virtude de ela não se sentir
agradecida ou não corresponder com gratidão às cortesias de
Madame Bauche; mas La Mère Bauche não dava mostras de enfado
por isso. Marie tinha condescendido, e era quanto ela desejava. E ia-
se lembrando das palavras duras de que se tinha servido para ganhar
aquela causa; e reflectia em tudo aquilo que Marie tinha perdido. Por
isso era clemente e não exigia nada - nada, a não ser o sacrifício que
Marie ia fazer de acordo com os seus desejos.
E o acto consumou-se. Casaram-se no grande salon, na sala de
jantar, logo depois do pequeno almoço. Madame Bauche, com um
vestido novo, de seda cor de pulga, tinha um aspecto
magnificentíssimo naquele momento. Ria, sorria, e parecia alegre,
mesmo apesar dos óculos; logo que a cerimónia começou, apertou
com firmeza na mão a cadeia e o relógio de ouro que prometera a
Marie mal o casamento se tivesse realizado.
O Capitaine estava vestido como sempre, apenas eram novas
todas as peças do seu trajo. Madame Bauche tinha procurado
convencê-lo a vestir uma jaqueta azul, mas ele replicara estar certo
de que uma tal mudança não seria do agrado de Marie.
Para falar verdade, mesmo que ele se tivesse apresentado
vestido de vermelho, Marie não teria dado por isso.
Adolphe, em todo o caso, estava muito bem posto, embora não
se quisesse tornar notado naquela ocasião. Marie olhava para ele a
miúdo, posto que ninguém desse por isso; e seria capaz de descrever
minuciosamente o trajo dele, o trajo, sim, e cada um dos seus
olhares. «Como pode este homem,» dissera ela, por fim, de si para
consigo, «estar aqui a olhar para tudo isto?»
Marie também tinha um vestido de seda. Deixara pôr em cima
de si o que eles tinham querido e suportava o fardo dos seus atavios
de noiva sem queixa e sem orgulho. Na sua face não havia o mais
pequeno rubor ao encaminhar-se para a mesa onde estava o padre
nem a mais pequena hesitação na sua voz baixa quando proferiu as
respostas da praxe. Pôs a mão na do Capitaine quando foi preciso; e
quando lhe enfiaram o anel no dedo, estremeceu, mas ligeiramente.
Ninguém deu por isso, a não ser La Mère Bauche. «Dentro de uma
semana estará afeita a isto, e então todos seremos felizes,» disse La
Mère de si para consigo. «E eu... eu hei-de ser tão boa para ela!»
E assim que se realizou o casamento, o relógio foi
imediatamente entregue a Marie. «Obrigada, mamã,» disse ela,
preso que foi o fecho ao cinto. Se lhe tivessem dado uma almofadinha
de pataco, teria sentido o mesmo regozijo.
E então vieram os bolos, os doces e os vinhos; e alguns minutos
depois, Marie desaparecia. Durante uma hora ou mais esteve o
Capitaine ocupado a receber as felicitações dos amigos e a manter o
seu novo estado com à-vontade; mas depois principiou a mostrar
desassossego por não ver a esposa junto de si. Às duas ou três horas
da tarde dirigiu-se a Mère Bauche e disse: «Esta lamechice idiota
não me agrada. - Seja como for, agora é tarde. Marie faria bem
melhor se viesse para junto de nós e se se mostrasse satisfeita com o
marido.»
Mas Madame Bauche tomou o partido de Marie. «Não deve ser
tão áspero para ela,» disse. «Tem sofrido muito nestes últimos
tempos e é muito nova; em compensação, Capitaine, o senhor não é
nenhuma criança.»
O Capitaine limitou-se a abanar os ombros. Entretanto,
Madame saiu para ir ver ao quarto a sua protegida e voltou dizendo
que ela estava com dores de cabeça. Não podia assistir ao jantar,
disse Madame Bauche, mas viria à pequena reunião da noite. E
perante isto o Capitaine não teve remédio senão resignar-se.
O jantar, por conseguinte, decorreu sossegadamente sem a
presença de Marie, tal como um jantar de qualquer outro dia. Depois
houve um intervalo durante o qual os cavalheiros foram beber café e
fumar o seu charuto ao botequim, entre dois dedos de cavaco, e as
senhoras arranjar os cabelos ou enfeitar os vestidos triviais com
qualquer adorno. Por duas vezes, entretanto, Madame Bauche subiu
ao quarto de Marie, cheia de solicitude. «Ainda não, mamã, ainda não
estou bem de todo,» dizia esta, magoadamente, entre lágrimas, e por
duas vezes os óculos verdes tiveram de abandonar o quarto
enxugando os olhos que também não estavam secos. Ah! que tinha
ela feito? Que tinha ela ousado fazer? E já não podia voltar atrás.
Então escureceu de todo nos corredores e fora de portas e os
hóspedes reuniram-se no salon. La Mère entrou e saiu umas três
vezes, com um andar desassossegado e um aspecto preocupado.
Toda a gente começou a perceber que as coisas não corriam bem.
«É capaz de estar mal,» dizia um. «Tem andado numa excitação,»
disse outro; «e ele é tão velho,» murmurou um terceiro. E o
Capitaine lá ia de um lado para o outro, muito direito na sua perna de
pau, cheirando rapé, e fazendo por parecer indiferente; mas lá no
seu foro íntimo também estava inquieto.
Num dado momento La Mère Bauche voltou outra vez, num
passo mais rápido do que antes, e disse qualquer coisa, primeiro a
Adolphe e depois ao Capitaine, e neste comenos ambos a seguiram
fora da sala. «Não está no quarto dela?» perguntou Adolphe. «Então
é que está no nosso,» disse o Capitaine. «Não está em nenhum
deles,» replicou La Mère Bauche numa voz cheia de gravidade; «não
está em casa!»
Eis acabadas todas as atitudes de indiferença da parte de
qualquer deles. Havia neles fosse o que fosse - menos indiferença. O
Capitaine pedia ansiosamente que aquilo não chegasse aos ouvidos
dos hóspedes. Marie tinha sido sempre romântica, dizia ele,
naturalmente saíra a passear pelas margens do ribeiro. Eles os três
e o velho banheiro iriam saber dela. «Mas está negro como breu,»
disse La Mère Bauche. «Levaremos lanternas,» respondeu o
Capitaine. E saíram precipitadamente, pondo-se a caminhar em
silêncio pela areia do jardim de modo a não serem ouvidos pelos que
estavam dentro de casa, todos em busca da jovem recém-casada.
«Marie! Marie!» gritava La Mère Bauche, num tom suplicante.
«Volta para casa. Peço-te!
- Cale-se!» murmurou o Capitaine. «Lá dentro vão ouvi-la
chamar.» Não podia conformar-se que o mundo soubesse que casar
com ele era assim uma coisa tão terrível para Marie. «Marie!
Querida Marie!» voltara Madame Bauche mais alto, completamente
indiferente ao que dizia o Capitaine; mas Marie não respondia. No
íntimo da sua alma, La Mère Bauche desejava agora que aquele
casamento estivesse desfeito.
Adolphe ia na frente, de candeia alçada, mas sem se atrever a
olhar para o sítio onde era mais natural que ela estivesse refugiada.
Como havia ele de se encontrar outra vez sozinho com ela na
gruta? Dos quatro, era ele o único moço. A ele competia,
evidentemente, subir lá acima. «Marie!» gritou «estás aí?» assim que
começou a subir vagarosamente a longa escada.
Mas mal tinha principiado a subir quando lhe chegou aos
ouvidos uma espécie de rumor, assim como de uma ave que
esvoaçasse, e sentiu que o ar à sua roda se tinha agitado; depois,
ouviu-se um baque na mais baixa plataforma da penedia, um gemido,
que se repetiu duas vezes, muito debilmente, um sussurrar de seda, e
uma ligeira agitação que lhe pareceu a uns vinte passos; e então de
novo tudo ficou quieto e silencioso no ar da noite. «Que foi aquilo?»
perguntou o Capitaine numa voz rouca. Tinha avançado até meio do
jardinzito e estava também a umas catorze ou quinze jardas da
plataforma da rocha. Adolphe, porém, não tinha forças para
responder. Desmaiara e a candeia caíra-lhe das mãos e rolara até ao
fundo dos degraus.
Mas o Capitaine, embora o coração se lhe tivesse congelado no
peito, ainda teve forças para avançar até à rocha; e então, erguendo
a lanterna à altura dos olhos, viu o que restava da sua noiva.
Quanto à La Mère Bauche, nunca mais se sentou à cabeceira da
mesa, nunca mais deu sentenças aos hóspedes -, nunca mais proferiu
conselhos acerca da conduta fosse de quem fosse. Durante uns sete
monótonos anos para ali esteve, uma pobre entrevada, até que, por
fim, lá foi para junto dos pais.
Quanto ao Capitaine - mas isso que importa? O Capitaine era
feito de um rijo estofo.
E que importa, além disso, o destino de uma pessoa da laia de
Adolphe Bauche?
NUMA NOITE DE OUTONO
Wladyslaw S. Reymont
O caminho de terra, molhado e empapado pela chuva insistente,
era um rio de lama que fluía através do negro campo árido; por ele
caminhava um camponês bêbedo.
Era já noite, uma fria e chuvosa noite de Novembro. O
lamacento mundo chorava com a incessante e penetrante chuva; os
campos esfarrapados, na escuridão quase total, brilhavam apenas
com a capa de água que os cobria. Os barrancos e sulcos
distinguiam-se graças ao brilho da água: as árvores desfolhadas
inclinavam-se inertes sobre o caminho, tiritando de frio e de
humidade. Um silêncio de morte repousava nos campos saturados de
água.
O camponês caminhava depressa; dando guinadas, tropeçava,
maldizia, mas seguia para diante. De súbito, deteve-se, e com ébria e
enrouquecida voz entoou: Ai, bela, minha bela, todo o mundo é uma
família; mas quando a morte te der o puxão esquece-te da salvação!
- Ai, ai!
Porém, o eco não duplicou a voz do canto, que foi amortecendo
na humidade do ar até se perder nas trevas. Uma sombra humana
deslizava um pouco atrás do camponês, e quando este se deteve por
um instante, afastou-se do caminho, submergindo-se na sombra ainda
mais profunda das árvores que o ladeavam.
O camponês continuava a caminhar depressa, mas tropeçou
numa pedra ou na raiz duma árvore e caiu no lodo como um pesado
tronco.
Durante algum tempo nada se ouviu a não ser o monótono e
incessante cair da chuva e o oscilante e nervoso murmúrio das
árvores. Depois a sombra aproximou-se até inclinar-se sobre o
bêbedo.
- Patrão! Patrão! - instou em voz baixa.
O camponês afastou o sono; tentou levantar-se, mas as pernas e
as mãos inchadas escorregavam na lama sem poder encontrar um
ponto de apoio; por fim, quase inconsciente, esqueceu a intenção,
acomodou-se o melhor que pôde e murmurou entre sonhos: - Aqui
está-se bem, sem frio. Sim, vou ficar aqui a descansar.
- Não, não. Levante-se. A água vai cobri-lo. Vai-se afogar...
- Maldita! Tem cuidado porque te dou uma arrochada, vais ver!
- gritou com fúria o bêbedo.
- Patrão!
- Não me acordes, mulher! Olha que é para teu bem!
O camponês julgava estar a beber com um judeu.
- Borracho como um porco!... Deitado na lama!...
- Sim, estou bêbedo, e depois? Não te disse, judeu? Dá-me
aguardente e não álcool puro; vou-te arrancar os bigodes, filho duma
cadela, vais ver... Cala-te mulher... Se o patrão descansa é porque
esse é o seu gosto, e pronto. Nem é assunto teu, não és mais que
uma mulher... Cala-te, mulher... Descansa o patrão, trabalham os
moços... As bestas farão o trabalho por... Descansa, patrão...
descansa...
Mas a mulher não deixou que ele continuasse deitado na lama, e
tanto o sacudiu que o fez voltar a si, e, com a sua ajuda, ele levantou-
se.
- Marcycha - murmurou ao ver-lhe o rosto. - Marcycha! -
repetiu instintivamente; acomodou o gorro na cabeça e dando
terríveis bordos começou a caminhar como se fugisse de alguma
coisa; pouco depois, o ruído dos seus passos dissipou-se no imenso
redobre da chuva.
Marcycha ficou atrás, a uma distância considerável. Caminhava
devagar, pois os socos de pau resvalavam do lodo e enchiam-se
constantemente de água, que tinha de retirar a cada momento.
Também a roupa andrajosa, carregada de água, dificultava a
caminhada. Apertava contra o peito uma criança envolvida num xaile,
que chorava baixinho. Com os olhos fitos na noite cada vez mais
profunda, arrastava-se quase morta e meio inconsciente.
- Meu Jesus, Jesus misericordioso! - murmurou, e a esmagadora
tristeza brotou nos seus olhos com a amargura das lágrimas. Quanto,
mas quanto havia chorado!...
Havia chorado pelas pessoas, pelo mundo, pela sua desgraçada
sorte, pela sua orfandade. Era uma órfã, sem lar. Sim, uma órfã que
ia caminhando por toda a terra como essas nuvens cinzentas que se
arrastavam pesadamente pelo céu, como esse húmido vento que
uivava sobre o campo e desaparecia sem deixar marcas, como essa
horrível noite de Novembro... Porém, ninguém se apiedava dela: nem
tinha quem a socorresse, alguém a quem queixar-se... Desterrou-a o
destino arrojando-a para a perdição, e como defesa tinha apenas as
suas lágrimas e a sua dor, como um cachorro que ainda cego
afastaram da cadela para o atirar para o fundo de um fosso,
deixando-o defender-se da morte com os seus uivos lastimosos.
- Ai, Jesus, Jesus! - queixava-se de vez em quando.
A noite começou a penetrá-la de terror, enquanto procurava
uma qualquer luz. Porém, ao redor apenas crescia a escuridão
profunda, impenetrável. As aldeias pareciam mortas sob a sombra e
o silêncio. Nem mesmo os cães ladravam. Não se ouviam rumores de
carroças. As vozes humanas tinham-se perdido não sei onde. Apenas
reinava o silêncio, cortado pelo monótono murmúrio da chuva.
O menino começou a chorar lastimosamente.
- Quieto, pobrezito... Quieto, não chores... - sentou-se debaixo
de uma árvore; levou a boca do menino ao seu vazio peito e ficou
afundada em silêncio, com o ouvido atento ao som longínquo, apenas
perceptível, que chegava misturado com a chuva.
- O moinho! Claro que é o moinho! - sussurrou, apurando os
ouvidos.
Animada pela esperança, levantou-se e tornou a caminhar com
mais brio; depois, a incerteza, fê-la tremer.
- Pietrus! Pietrus! - moveu os lábios. - Não me mandará
embora! Não é possível que faça isso! - e com repentina ternura
apertou o menino com mais força contra o peito. - Petruchna!
Pouco a pouco, o seu espírito lacerado pelo sofrimento foi
invadido por uma melancólica doçura. Volviam a ela as recordações
da sua antiga Primavera, que assomavam através das lágrimas do
infortúnio. Renasciam as claras imagens do passado, e em cada uma
delas a personagem principal era ele, Petruchna!
O menino, transido e faminto, começou outra vez a chorar.
- Calado! - resmungou, levantando a mão como para bater-lhe.
- Não, como poderia fazê-lo? Se é o filho dele... - pensou com
ansiedade, e começou a beijar apaixonadamente o molhado rosto do
menino.
O murmúrio ouvia-se claramente, e dele emergia o bater surdo
da roda do moinho.
A chuva amainou um pouco. O vento corria entre os ossudos
ramos dos álamos que se erguiam aos lados do caminho, fazia-os
oscilar pesadamente, e com o seu múltiplo sopro ressoava ao cruzá-
lo. Do bosque, que se levantava junto ao caminho como uma negra e
lúgubre parede, revoou uma voz triste e mansa, algo assim como um
gemido das árvores nas trevas ou como um choro sufocado pela noite
e a chuva. Enormes nuvens que juntavam os seus corpos começaram
a correr velozmente sob o céu desfalecido.
O espanto cruzou voando sobre a terra; um medo poderoso que
fez estremecer a alma de Marcycha. Dirigiu um assustado olhar em
redor, baixou o lenço para a testa e com todas as suas forças correu
para os cada vez mais próximos estrondos do moinho.
A crescente fúria do vento seguia-a, açoitava-lhe as costas
inclinando-a para a terra, cortava-lhe o caminho chicoteando-lhe a
cara com a águas dos charcos, lançava contra ela pequenos ramos,
silvava agudamente nos seus ouvidos. E era tanta a força que a
obrigava a parar para ganhar alento.
No entanto, esporeada pelo terror, continuava a correr. As filas
de álamos balançavam sobre a sua cabeça, sussurravam ao redor, e
ela sentia sobre si os seus poderosos troncos, os seus ramos nus,
semelhantes a garras, que se estendiam para segurar-lhe os braços,
arrancar-lhes as roupas, ferir o seu rosto e agarrá-la. E isso a fazia
correr através do espanto.
Recobrou a calma ao chegar ao dique que levava ao moinho, de
tão pouca altura este que os seus telhados se achavam ao nível do
dique e das águas que brilhavam lugubremente na escuridão; uma
espessura de negros amieiros rodeava-o por todos os lados, uma
espessura impenetrável através da qual rugia e borbulhava a água
que caía das rodas.
O enorme e negro edifício estremecia com o seu rítmico bater.
Atravessou com cuidado a borda do dique e entrou no moinho. Mal
cruzou o umbral deixou-se cair sobre um saco de farinha, esgotada
pelo esforço.
O enorme interior do moinho enevoava-se com o fino pó branco
que o triturado trigo soltava. Uma candeia que pendia do tecto
empurrava dificilmente a sua débil luz avermelhada para alumiar
apenas as paredes e os vultos das engrenagens.
Tudo tremia, tudo se movia envolvido em pó farinhoso; tremia o
resvaladiço solo, as paredes brancas, o tecto de que pendiam
enfarinhadas teias de aranha; tremiam as compridas e brancas
arcas, e atrás delas, num fundo cinzento, moviam-se
automaticamente as enormes e negras rodas pelas quais corria com
estrondo um grosso e verde jorro de água; a sua desgrenhada e
espumosa cabeça caía sobre as agudas estacas com tanta força que
até os alicerces tremiam e a terra gemia.
Nada se ouvia a não ser o estrepitoso girar das rodas
hidráulicas; apenas por vezes ressoava do primeiro andar o som
estridente da sineta cuja voz fazia sair as pessoas correndo
apressadamente da casa do moleiro, que se encontrava num canto do
moinho.
Marcycha aproximou-se, sentou-se atrás da peneira que servia
para limpar o cereal e esperou pacientemente. Tinha medo de
entrar, embora ouvisse claramente a voz de Pietrus e das outras
pessoas.
Abandonou-a a coragem: aproximou o ouvido da delgada parede
e escutou. A cada momento alguém saía correndo da habitação, e
atrás, uma onda de risos, de luz e de calor invadia a sala das
máquinas.
No quarto pequeno havia um calor de forno, na grande chaminé
ardia a turfa lançando uma chama azul. Um grupo de homens
rústicos estava sentado em redor do fogo. O cheiro a tabaco, a turfa
e a peixe frito, enchia o quarto.
Pietrus estava recostado na cama, sobre um montão de peles, e
troçava do camponês bêbedo que no meio da casa cambaleava
sonolento.
- Vai para casa, Mateusz, porque senão a velha dá-te pauladas
como...
- Pauladas? A mim, pauladas? A mim, ao patrão? Não; pelo
contrário... Mete-me debaixo dos cobertores, serve-me uma vodka
com comida abundante, ou talvez alguma coisa ainda melhor...
- Mete-te é na pocilga por te teres embebedado assim!
- Sim, estou bêbedo! E o caso é que eu lhe disse: judeu, dá-me
aguardente! Porém, o canalha não fez caso e deu-me álcool puro...
Hei-de arrancar-lhe a cabeça, valha-me Deus, que lha arranco... Se o
patrão mandou servir aguardente, a obrigação era obedecer-lhe. E
já que não o fizeste, hei-de agarrar-te por esses bigodes amarelos e
atirar-te à água.
- Michal! Sai do cesto! - gritou o moleiro ao ouvir a sineta.
Um mocetão jovem levantou-se da lareira e saiu
apressadamente, deixando a porta aberta.
Marcycha esgueirou-se por ela e deteve-se no limiar.
- Louvado seja... - sussurrou baixinho.
O moleiro levantou-se da cama e gritou, furioso:
- Que queres? Sai daqui, cadela!
A rapariga cambaleou; lançou um olhar impreciso aos homens,
deixou o menino na cama do moleiro e fugiu a correr.
- Um presente para ti, Pietr - murmurou maliciosamente
alguém.
- Que grande sarilho! - acrescentou outro, quando a criança
começou a chorar.
- Quem na Primavera mete a pata, do castigo no Inverno não
escapa...
- Agarre alguém esse miúdo, senão ainda se afoga por aí...
- Bem. Queres mamar, ou quê?
Alguém levantou o menino e o aproximou do lume; todos o
contemplaram...
- Terá uns dois meses, não mais...
- Parece-se contigo, Pietr. Tem mesmo o nariz do papá...
- Serve-te de ajudante, e já...
- Ou põe-lo a trabalhar como moço em qualquer casa daí.
Assim te cairá mais algum dinheiro...
- Põe-lhe em cada costado um quarto de farinha; o garoto
alimentar-se-á melhor que um bezerro.
- Grita com gana. Podias fazer dele um organista, Pietr, e isso
seria bom porque é uma honra; além disso, bom dinheiro cobram
pelas bodas e pelos enterros.
- Sim, Pietr. Já que provaste o mel, come agora a cera.
- Porém a mãe também é elegante, dessas que usam socos
novos que valerão uns seis «checos». A saia custará mais de um zloty
e meio. E quanto ao focinho...
Parece uma cala... Numa palavra; é uma mulher valente, com
certeza.
- Basta que a laves e penteeis um pouco e ficará pronta para
acender os braseiros nas casas dos judeus.
Faziam chacota de Pietr sem compaixão, enquanto ele
continuava sentado na cama sem saber que fazer. Sufocava-se de
raiva e de vergonha, mas não podia mover-se nem afastar os olhos,
pois o atraía o branco rosto do menino a quem os homens tiraram os
cueiros, que puseram no grosso assento da chaminé, aquecendo-os
até que saiu vapor dos trapitos molhados.
De repente, Pietr levantou-se de um salto e saiu a correr para o
vestíbulo. Ao cabo de alguns instantes ouviram-se pancadas e gritos
selváticos.
- Com certeza que falam de amor - observou um dos
camponeses.
- Quem é ela?
- Marcycha, a filha de Jantek e de Wola. Expulsaram-na do
emprego e de casa... Tinha de ir para algum lado, não?
- Oh, oh! Pietrek é um carrasco com as raparigas.
- Tão carrasco como velhaco, e canalha dos piores...
- Deixa-me ouvir - gritou alguém.
- Pietrus, Pietrus! Não me batas mais! - suplicava Marcycha,
arrastando-se aos pés dele. É teu filho, lembra-te... Expulsaram-me
do trabalho... Expulsaram-me de casa... Aonde havia eu de ir, uma
pobre órfã? Petruchna!
Ai, Jesus misericordioso! Ajuda-me, Jesus!... Jesus, Maria! -
gritou em voz desgarradora. Pietr tinha-lhe dado no peito um
pontapé tão forte que ela caiu pesadamente.
Pouco depois tudo ficou calmo. Apenas se ouviu abrir a porta
exterior, um breve forcejar e depois, nada, excepto as pancadas da
roda do moinho.
- E se a mata?
- Não acontecerá nada. Abandonou o filho. Nada mais.
- Cadela. Deixou o filho e foi-se embora...
A criança voltou a chorar cada vez mais intensamente.
Alguém agarrou num pedaço de açúcar que havia na mesa do
moleiro, envolveu-o num trapo, esmagou-o com o tacão, submergiu-o
um instante em água e pô-lo na boca do menino; este começou a
chupar com avidez.
Entretanto, Mateusz, que dormitava na cama, despertou e
disse: - Eu levo o menino. No fim de contas, é como um órfão...
- Faz o que quiseres. Tu não tens filhos. Mas a velha bate-te de
todas as maneiras...
- A mim? Não. Não me baterá. Resmungará um pouco, isso sim.
É uma boa mulher... Vem, orfãozinho... Vais com o patrão... Vem,
orfãozinho... - e com uma decisão de bêbedo, levantou-se, abriu o
capote forrado de pele de cordeiro, enfiou o molhado gorro de pele
de carneiro na cabeça e inclinou-se para a criança...
- Vem cá, miúdo, vem cá... Não tens mãe nem pai, e a partir de
agora serás meu.
- É varão, não?
- Claro que é varão...
- Então, poderá ser pastor... Terás um moço, patrão...
- Mas antes tens de conseguir uma ama ou separar a vaca do
bezerro para que o alimente.
Sem fazer caso das troças, envolveu o menino nos trapos já
secos, cobriu-o com o gabão, e com forte e uniforme passo saiu do
quarto procurando a saída.
Já lá fora, talvez sob a influência do ar, orientou-se com rapidez
e dirigiu-se para o dique. Com dificuldade subiu até à borda. O vento
forte açoitava-lhe a cara, empurrando-o para o caminho resvaladiço.
Deixou atrás as represas, dobrou à esquerda e encaminhou-se para a
aldeia.
Caminhava com os pés afundados na água, pois o vento
empurrava a água para fora das lagoas com tal força que saltava o
dique e açoitava as pernas de Mateusz em ondas.
- Não chores, miúdo. Vou dar-te leite, faço-te um berço de
verga... Vais gostar de estar comigo, orfãozinho, vais gostar... não te
faltará nada... Terás os teus trapitos... Compro-te uma navalha na
feira... Irás com o gado ou atrás dos gansos... Não chores, miúdo... -
murmurava, e cuidadosamente, como melhor podia, com as mãos
hirtas de frio, segurava a criança dentro do gabão.
De repente calou-se, pois começara a dar-lhe o soluço, e o
agudo e frio vento não o deixava pronunciar palavra. Mais além do
dique, o caminho atravessava as turfeiras e os grandes açudes. Os
velhos e desgarrados vidoeiros inclinavam-se sobre o caminho e
gemiam lastimosamente, açoitados pelo vendaval. A lama chegava-
lhes até aos joelhos. A chuva parou por completo e agora só o vento
frio se levantava na lama. Tinha tanto sono que marchava à beira da
inconsciência.
Só o vento frio o despertava um pouco, de vez em quando.
A aldeia estava já perto.
Agora cambaleava menos, porém, por causa do sono, ignorava
para onde ia. Caminhava como um autómato; de quando em quando,
apalpava maquinalmente o gabão... O menino... As pernas
enredavam-se-lhe, o frio entrava nele até aos ossos, porque o abrigo
desabotoado no peito e molhado não o protegia bastante do vento...
Por fim, soltou a dobra e esfregou as mãos contra os braços, e com a
sua ébria e sonolenta voz entoou: Ai, bela, minha bela, todo o mundo
é uma família; mas quando a morte te der o puxão esquece-te da
salvação!
- Ai, ai!
Respondeu-lhe da lama o leve e sufocado grito da criança e uns
próximos... apressados passos...
Mas ele não ouviu nada. Continuou entre sonhos o seu caminho
e na noite profunda se foi perdendo na distância a sombra imprecisa
do seu corpo.
O ELIXIR DA LONGA VIDA
Honoré de Balzac

Nos começos da vida literária do autor, um seu amigo, morto


há muito tempo, deu-lhe o assunto para este estudo, que mais tarde
encontrou numa colecção publicada nos princípios deste século.
Segundo as suas conjecturas, trata-se de uma fantasia devida a um
tal Hoffman, de Berlim, publicada nalgum almanaque alemão e
esquecida pelos editores das suas obras.
A «Comédia Humana», é suficientemente rica de imaginação
para que o autor possa confessar um inocente plágio. Não se trata,
portanto, de uma dessas brincadeiras à moda de 1850, em que
todos os escritores inventavam atrocidades para regalo das
meninas da época.
Assim, quando tiverdes chegado ao engenhoso parricídio de D.
Juan, tentai advinhar a conduta que teriam, em circunstâncias mais
ou menos semelhantes, as pessoas honestas que, no Século XIX,
recebem uma pensão vitalícia sob o pretexto de um catarro ou as
que alugam casa a uma velha para o resto dos seus dias.
Ressuscitariam essas pessoas os seus providenciais credores? Por
outra, desejaríamos que juizes conscienciosos determinassem o
grau de semelhança que pode existir entre D. Juan e os pais que
casam os seus filhos na mira de ambicionadas heranças.
A sociedade humana que, no entender dos filósofos, caminha
na via do Progresso, considera como um passo para o bem
individual a arte de esperar pela morte de alguém abastado. Esta
expectativa deu lugar a profissões tidas por honestas, mercê das
quais se vive à custa de futuros defuntos. Há mesmo aqueles que
têm como condição social aguardar o falecimento de parentes ricos.
Parecem agachar-se todas as manhãs para chocarem os seus
futuros cadáveres e fazem disto, todas as noites, o seu confiado
travesseiro. São, por vezes, gente digna, como eminências,
coadjutores, empregados supranumerários ou associados dessas
instituições de previdência chamadas tontinas. Juntemos-lhes
aqueles indivíduos empenhados em adquirir uma propriedade cujo
preço excede as suas posses, mas que calculam a frio as
probabilidades de vida que restam a seus pais ou sogros,
octogenários ou septuagenários, dizendo consigo: «Antes de três
anos herdarei necessariamente, e então...» Qualquer assassino
repugna-nos menos que tais espiões da Morte. O assassino cedeu,
talvez, a um movimento de loucura; poderá arrepender-se,
reabilitar-se.
Mas os ditos espiões são sempre espiões, na cama, à mesa,
fazendo a sua vida quotidiana. São vis em cada momento que passa.
E que espécie de assassino seria tão mesquinho como os referidos
espiões? Acaso não reconheceis na sociedade humana uma turba de
entes levados pelas nossas leis, costumes e usos a pensar
constantemente na Morte dos seus, a desejarem-na? Calculam o
preço dum funeral enquanto compram tecidos caros para as suas
mulheres, quando pensam ir ao teatro ou tomar uma carruagem de
aluguer. Chegam a assassinar deste modo no próprio momento em
que os próprios filhos, com enternecedora inocência, lhes
apresentam, à noite, as frontes para receberem um beijo,
proferindo: «Boa noite, pai». Vêem a todo o momento olhos que
desejariam fechar e se reabrem todas as manhãs à luz, como os de
Belvidero neste estudo. Só Deus sabe o número de parricídios que
se cometem em pensamento!
Toda a civilização europeia assenta sobre a lei da Herança,
como sobre um eixo, que seria loucura fazer desaparecer. No
entanto, não poderíamos, como nas máquinas que fazem o orgulho
da nossa Era, aperfeiçoar tal engrenagem?
Se o autor utilizou esta forma de preâmbulo ao Leitor - num
trabalho em que se esforça por usar todas as formas literárias, foi
para introduzir uma nota relativa a alguns estudos, incluindo o
presente. De resto, cada um destes trabalhos é baseado em ideias
mais ou menos novas, cuja expressão lhe parece útil. O autor
poderá mesmo arrogar-se à prioridade de certas locuções que
passaram depois para o domínio da Literatura e assim se
vulgarizaram. A data de publicação de cada estudo não deve pois
ser indiferente ao leitor que desejar fazer justiça ao seu autor.
A leitura proporciona-nos amizades ignoradas - e que bom
amigo não é um nosso leitor? Em contrapartida há amigos nossos
que não lêem qualquer das nossas obras!
O autor espera saldar uma dívida dedicando esta obra aos seus
leitores desconhecidos.
***
Num sumptuoso palácio de Ferrare, certa noite de inverno, D.
Juan Belvidero recebia festivamente um príncipe da casa de Este.
Nessa época uma tal recepção constituía espectáculo maravilhoso
que só os tesouros reais ou o fausto dum grande senhor poderiam
proporcionar.
Sentados à volta de rica mesa iluminada por velas perfumadas,
sete mulheres alegres trocavam frases ligeiras, num ambiente de
admiráveis obras primas de decoração, com os mármores brancos
sobressaindo de paredes de estuque vermelho, a contrastarem com
preciosas tapeçarias turcas. Vestidas de cetins e resplandecendo
ouro e pedrarias que fulguravam menos que os seus olhos, todas
falavam de paixões intensas e diversas como os seus tipos de beleza.
Só não diferiam nas palavras nem nas ideias, a que o ar, um olhar,
certos gestos prestavam um comentário libertino, sensual,
melancólico ou zombeteiro.
Uma afirmava: «Os meus encantos sabem aquecer o coração
gelado dos homens já idosos».
E outra: «Gosto de estar recostada em coxins, para pensar, com
embriaguez, nos meus adoradores».
Uma terceira, noviça nesta espécie de banquetes, sentia-se
inclinada a corar: «No fundo do meu coração, dizia, sinto um
remorso. Sou católica e receio o Inferno, mas amo tanto, oh! tanto!,
que poderei sacrificar pelo meu amor a Eternidade!».
A quarta, esvaziando uma taça de vinho de Chio, exclamava:
«Viva a alegria! Eu encarno uma existência nova em cada dia que
passa. Esquecida do passado, ébria ainda dos meus sucessos
quotidianos, todas as noites esgoto uma vida de felicidade,
trasbordante de amor».
Aquela que estava sentada junto de Belvidero fixava-o com olhar
ardente. Conservava-se silenciosa e pensava: «Se o meu amante me
abandonasse, nem por isso me entregaria a excessos para o matar!»
Logo sorriu, mas a sua mão convulsa destruía uma caixa de
amêndoas, em ouro, maravilhosamente cinzelada.
- Quando será Grão-Duque? perguntou a sexta mulher ao
Príncipe, com expressão de alegria cruel nos lábios e um brilho de
bacante nos olhos.
- E tu, dize-me, quando morrerá o teu pai ? - indagou a sétima,
lançando o seu raminho de flores a Belvidero, com um delicioso gesto
traquinas. Era uma rapariga de ar inocente, habituada a divertir-se
com as coisas sagradas.
- Ah! não me falem disso! - exclamou o jovem e belo D. Juan. Há
neste mundo um único pai eterno, e a desgraça quer que seja o meu!
As sete cortesãs de Ferrare, os amigos de Belvidero e o próprio
Príncipe soltaram uma exclamação de horror.
Duzentos anos depois, no tempo de Luís XV, as pessoas de bom
tom ter-se-iam rido daquele dito de espírito. Mas, talvez que as
almas conservassem ainda, no começo dum festim, a sua lucidez.
Apesar do clarão das velas, do fremir das paixões, do aspecto dos
vasos de ouro e prata, dos vapores do álcool e da presença de
encantadoras mulheres, subsistiria ainda no fundo dos corações um
pouco do respeito pelos sentimentos humanos e as coisas divinas, que
luta até a orgia o afogar nas últimas gotas dum vinho espumoso.
No entanto, já as flores se estiolavam, os olhos desumanizavam-
se e a embriaguez chegava, segundo a expressão de Rabelais, à
ponta dos pés. E neste momento de silêncio abriu-se uma porta e,
como no banquete de Baltazar, o Diabo surgiu sob a aparência de
velho criado, de cabeça encanecida, o andar vacilante e as
sobrancelhas contraídas. Fez a sua entrada com ar triste e com o
olhar murchou as grinaldas, amorteceu o brilho das pratas douradas,
o viço das pirâmides de frutos, o esplendor da festa, o vermelho dos
rostos e a cor dos coxins amarfanhados pelos níveos braços das
mulheres; lançou, enfim, a tristeza no estonteamento, proferindo em
voz cava estas palavras sombrias: - Senhor, vosso pai está a morrer.
D. Juan ergueu-se lançando aos seus convidados um gesto que
poderia traduzir-se por: «Desculpem-me, isto não sucede todos os
dias». A morte dum pai não surpreende os jovens entre os
esplendores da vida ou as loucas expansões dum festim. É tão brusca
nos seus caprichos como uma bacante nos seus desdéns, embora,
mais fiel do que estas, nunca iluda ninguém.
No momento em que D. Juan fechou a porta da sala do banquete
e caminhou por uma extensa galeria, tão álgida como escura
esforçou-se por tomar uma atitude hipócrita porque, pensando na sua
dignidade de filho, tinha posto de lado a alegria juntamente com o
guardanapo. A noite estava lôbrega. O discreto serviçal que conduzia
D. Juan ao aposento paterno iluminava mal o seu amo, de maneira
que a Morte, ajudada pelo frio, o silêncio e a obscuridade pôde
suscitar na sua alma, talvez por uma reacção da embriaguez,
algumas reflexões graves. Assim interrogou o seu passado e ficou
cabisbaixo como um acusado caminhando para o tribunal.
Bartolomeu Belvidero, pai de D. Juan, era um nonagenário que
passara a maior parte da vida em grandes transacções comerciais.
Tendo percorrido as mais frequentes vezes as regiões enfeitiçadas
do Oriente, adquirira avultadas riquezas e, segundo dizia,
conhecimentos mais preciosos que o ouro e os diamantes, a que já
então nenhuma importância ligava. «Prefiro um dente a um rubi e o
poder ao saber», declarava sorrindo. Este excelente pai gostava de
ouvir D. Juan contar-lhe as estúrdias da juventude e dizia, com ar
chocarreiro: «Meu querido filho, faz todas as asneiras que te possam
divertir». Devia ser o único velho que sentia prazer diante dum
jovem, pois iludia assim a sua velhice com a contemplação de uma
vida tão radiosa como era a de D. Juan.
Aos sessenta anos Belvidero apaixonara-se por um anjo de
beleza e de inocência. O filho fora o único fruto desse tardio e breve
amor. Havia quinze anos que o velho chorava a morte da sua querida
Joana. A numerosa criadagem e o filho atribuíam a esta dor os
hábitos singulares que o ancião contraíra. Refugiado na álea menos
confortável do palácio, de onde raramente saía, o próprio D. Juan
não entrava ali sem a sua prévia autorização. Quando este estranho
anacoreta passeava pelo palácio ou nas ruas de Ferrare, parecia
procurar qualquer coisa que lhe faltava, caminhando abstracto,
hesitante, meditabundo, como que em luta com uma ideia ou uma
recordação. Enquanto o filho dava festas e o palácio ressoava com as
expansões da sua alegria, enquanto os cavalos escarvavam nas
cocheiras ou os pagens discutiam jogando os dados pela escadas,
Bartolomeu Belvidero comia diariamente sete onças de pão e só
bebia água. Se consentia em servir-se de um prato de galinha era
para dar os ossos a um cão-de-água preto, seu fiel companheiro. Não
o incomodava o ruído. Quando doente, se o som duma corneta ou o
latido dos cães o estremunhavam, contentava-se em dizer: «Ah!, é D.
Juan que volta!»
Jamais existiu um pai tão compreensivo e indulgente. Por isso o
jovem Belvidero, habituado a tratá-lo sem cerimónia, tinha todos os
defeitos das pessoas amimadas, vivendo com seu pai como uma
cortesã caprichosa com amante velho, conseguindo o perdão de
qualquer impertinência com um sorriso, vendendo o seu bom humor e
deixando-se amar. Reconstituindo no pensamento o quadro dos seus
anos de mocidade, D. Juan compreendeu que lhe seria difícil
descobrir uma razão de queixa do autor dos seus dias.
Agora, ao atravessar a galeria que o levava ao quarto de
Bartolomeu moribundo, sentiu despertar um remorso no fundo do
coração e inclinava-se a perdoar-lhe ter vivido tanto tempo. Nutria
sentimentos de piedade filial, como um ladrão que preza a
honestidade ante a possível posse de um milhão bem roubado. Em
breve entrou nas desconfortáveis e enormes salas que compunham
os aposentos do pai. Depois de experimentar os efeitos de uma
atmosfera húmida, em que o cheiro a mofo se exalava das velhas
tapeçarias e dos armários cobertos de pó, encontrou-se no quarto do
velho, diante do seu leito nauseabundo, junto da lareira apagada. O
candeeiro disposto sobre a mesa gótica projectava, a intervalos
desiguais, manchas de luz mais ou menos intensas sobre o leito e
mostrava o rosto do ancião sob aspectos que variavam. O frio
entrava pelas frinchas das janelas mal fechadas e a neve, fustigando
as vidraças, produzia um ruído surdo. Esta cena contrastava tão
chocantemente com a que D. Juan acabava de abandonar, que ele
não pôde deixar de estremecer. Percorreu-o um arrepio quando, ao
aproximar-se da cama, um clarão do candeeiro provocado por uma
lufada do vento, iluminou a cabeça do velho. Tinha as feições
descompostas e a pele, colada aos ossos, apresentava tons
esverdeados, que a brancura da almofada tornava ainda mais
horríveis.
Contraída pela dor, a boca entreaberta e desdentada deixava
escapar uns gemidos lúgubres, que pareciam prolongados pelos uivos
da tempestade. Não obstante estes sinais de destruição, dimanava
daquela cabeça uma força sem limites. Dir-se-ia um espírito superior
em luta com a Morte. Os olhos encovados pela enfermidade
conservavam uma fixidez singular. Parecia que Bartolomeu
procurava abater com o seu olhar um inimigo postado junto do leito.
A sua mirada, fixa e gélida, tornava-se tanto mais terrível porquanto
a cabeça se mantinha imóvel como os crânios lívidos que se vêem nas
mesas de anatomia. O corpo, desenhado por inteiro pela cobertura
da cama, denunciava a mesma fixidez nos membros. Tudo morrera
nele menos os olhos. O ralo que se escapa da sua boca tinha qualquer
coisa de mecânico.
D. Juan procurou vencer um retraimento para se aproximar do
moribundo, ostentando ainda ao peito o raminho de flores oferecido
pela cortesã, trazendo assim para junto da morte de seu pai os
perfumes da festa e o cheiro do vinho.
- Divertias-te? - murmurou o velho ao deparar com ele.
Nesse instante a voz pura, suave da cantora que deliciava os
convivas, acompanhada pelos acordes dum violino, fez esquecer os
uivos do temporal ressoando no quarto fúnebre. D. Juan desejaria
bem que não se tivesse feito ouvir ali tão crua afirmativa à pergunta
do moribundo.
Este prosseguiu:
- Não te quero mal por isso, meu filho...
Tais palavras, repassadas de doçura, feriram D. Juan que, no
íntimo não perdoou essa pungente bondade paternal: - Que remorso,
pai! - suspirou hipocritamente.
- Pobre Juanin - insistiu o moribundo com voz lúgubre. -
Fui sempre tão indulgente para ti que não poderás desejar a
minha morte.
- Oh! - exclamou D. Juan, se fosse possível restituir-lhe a vida,
daria para isso uma parte da minha! «Estas coisas podem sempre
dizer-se», pensou discretamente. «Parece que estou a prometer o
mundo à minha amante».
Mal tinha completado este pensamento o cão ladrou. Aquele
ladrido cheio de perspicácia fez estremecer D. Juan.
Afigurou-se-lhe ter sido compreendido pelo animal.
- Sabia muito bem, meu filho, que podia contar contigo -
continuou Bartolomeu. Viverei pois, e ficarás satisfeito.
Viverei, mas sem roubar um só dos dias que te pertencem. «Já
delira!», comentou para si o filho.
Depois acrescentou, em voz alta:
- Sim, querido pai, viverá pelo menos tanto como eu, porque a
sua imagem nunca se apagará no meu coração.
- Não se trata dessa espécie de vida - replicou o velho, reunindo
as poucas forças para se erguer um pouco pois sentia-se abalado por
uma dessas suspeitas que só despertam sob o travesseiro dos
agonizantes.
- Escuta, Juanin - prosseguiu, enfraquecido por aquele último
esforço: desejo tanto morrer como tu privares-te de amantes, de
vinho, de cavalos, de cães, enfim de dinheiro... «Assim o creio»,
conjecturou ainda D. Juan, ajoelhando à cabeceira do leito e beijando
uma das mãos daquele quase cadáver: - Pai, querido pai - disse,
temos de nos submeter à vontade de Deus.
- Deus, sou eu! - resmungou o velho.
- Não blasfeme! - suplicou o jovem, deparando no pai com uma
expressão de ameaça. Tenha cuidado, porque recebeu já a extrema-
unção, e eu nunca me resignaria vendo-o morrer em pecado!
- Queres ou não escutar-me?! - vociferou o agonizante,
rangendo os maxilares.
D. Juan calou-se. Caiu no quarto um silêncio sinistro. Por entre
os silvos surdos do granizo, lá fora os acordes do violino e o canto
melodioso ouviam-se novamente, ténues como a luz dum dia que
desponta. O ancião sorriu: - Agradeço-te teres convidado cantoras e
músicos. Há festa, mulheres jovens e belas, brancas e de cabelos
negros, os melhores prazeres da vida... Dize-lhes que fiquem, porque
eu vou renascer. «É já o auge do delírio!», pensou o filho, quando
Bartolomeu lhe disse de súbito:
- Descobri o meio de ressuscitar. Olha: Procura na gaveta da
mesa; poderás abri-la carregando no botão que esta oculto pelo
entalhe que figura um grifo.
- Pronto, meu pai.
- Bem. Tira de lá o frasquinho de Cristal.
- Está aqui...
- Gastei vinte anos... - ia o moribundo a contar, mas sentiu que o
seu fim chegava e esforçou-se por acrescentar: - Logo que eu tenha
soltado o último suspiro, fricciona-me todo o corpo com esse líquido,
e eu ressuscitarei...
- Há muito pouco - notou D. Juan.
Entretanto, Bartolomeu, se já não podia falar, tinha ainda a
faculdade de ouvir e ver. As palavras do filho fizeram-lhe voltar a
cabeça num movimento brusco.
Ficou com o pescoço torcido como o duma estátua de mármore
condenada pelo escultor a olhar eternamente de lado. As suas
pupilas dilatadas tinham tomado uma imobilidade odiosa. Estava
morto.
Expirara ao perder a sua última e única ilusão. Ao procurar a
sua derradeira salvação no coração do filho, encontrara neste um
túmulo mais profundo do que o preparado pelos homens para jazida
dos seus mortos. Os cabelos eriçaram-se-lhe de pavor, só o seu olhar
pareceu exprimir ainda alguma coisa. Era já como um pai que se
erguia do sepulcro para suplicar vingança a Deus.
- Pronto! O homenzinho acabou... - cuidou D. Juan.
Na ânsia de observar o misterioso frasco à luz do candeeiro à
semelhança de um apreciador que examina a sua garrafa no fim do
repasto, olhava perplexamente para o pai e o frasco. A seu lado, o
cão-de-água observava da mesma maneira, ora o frasco ora o dono
morto.
O candeeiro projectava clarões movediços. O silêncio tornara-
se mais solene. O violino e a voz da cantora tinham emudecido. O
jovem estremeceu, parecendo-lhe que o defunto se mexera.
Intimidado pela fixidez acusadora dos seus olhos, foi cerrar-lhos
como teria fechado uma persiana batida pela rajada em noite
invernosa.
Conservou-se de pé, imóvel, perdido num caos de pensamentos.
De súbito um ruído seco, lembrando o duma mola emperrada, cortou
a mudez. Surpreendido D. Juan quase deixou cair o frasco. Inundou-o
um suor mais frio do que aço de punhal. O galo de madeira pintada
do relógio familiar surgiu e cantou três vezes.
Era daqueles maquinismos engenhosos, de que se serviam os
sábios da época para despertarem à hora fixada para as suas
lucubrações. A aurora avermelhava já as janelas. D. Juan tinha
passado dez horas a reflectir.
O velho relógio era mais fiel do que ele ao cumprimento dos
seus deveres para com Bartolomeu.
Aquele mecanismo compunha-se de corda, alavanca e rodas
dentadas, enquanto ele tinha o músculo peculiar aos homens, que se
chama coração. Para não se arriscar a perder o precioso líquido, D.
Juan voltou a guardá-lo, cepticamente, na gaveta da mesinha gótica.
Nesse instante ouviu nas galerias do palácio um tumulto confuso.
Eram vozes indistintas, risos abafados, todo o rumor dum grupo
alegre procurando conter-se. Finalmente, a porta abriu-se e o
Príncipe, com os restantes convidados aparecerem com a desordem
estonteada dos dançarinos surpreendidos pela claridade da manhã,
quando o sol luta ainda com a pálida chama das velas. Vinham para
dar ao jovem herdeiro as condolências da etiqueta.
- Terá o nosso D. Juan tomado a peito esta morte? - perguntou o
Príncipe ao ouvido da Brambilla.
- Talvez - respondeu ela, porque o pai era um homem
extremamente bondoso.
As meditações nocturnas de D. Juan tinham-lhe gravado no
rosto uma tal expressão que o grupo se sentiu perplexo. Os homens
permaneceram hirtos. As mulheres, com os lábios ressequidos pelo
álcool, as faces maceradas pelos beijos, ajoelharam e rezaram. O
órfão não pôde deixar de estremecer à vista das alegrias contidas,
dos risos desfeitos, dos cantos sumidos, da juventude apagada, da
beleza desvanecida, de tudo aquilo que personificava o melhor da
vida perante a Morte. Porém naquela amável Itália do tempo, o
Pecado e a Religião, conjugavam-se de tal maneira que se
confundiam.
O Príncipe apertou afectuosamente a mão a D. Juan e todos os
rostos esboçaram simultaneamente uma idêntica expressão, meio
triste, meio indiferente. Depois toda esta fantasmagoria protocolar
desapareceu, deixando mais vazio o aposento mortuário. Era bem a
imagem da Vida.
Ao descer a escadaria, o Príncipe confiou a Rivabarela:
- Quem teria julgado assim o nosso D. Juan, um fanfarrão da
impiedade?... Afinal, adorava o pai!
- Reparou no cão?... - indagou Brambilla.
- Aí temos o nosso amigo fabulosamente rico - sugeriu,
suspirando, a Bianco Cavatolino.
- Que importa...? - desdenhou a orgulhosa Veronese, que
destruíra, com mão nervosa a dourada caixinha de amêndoas.
- Não te importo...? - clamou o Duque. Pois com os seus escudos
será tanto um príncipe como eu!
A princípio D. Juan, cedendo a mil pensamentos, hesitou entre
vários partidos a tomar. Depois de ter avaliado os tesouros
acumulados por seu pai, voltou, de noite, para o quarto fúnebre, a
alma esmagada sob feroz egoísmo. Encontrou todos os serviçais
ocupados em ordenar os paramentos do catafalco em que o falecido
senhor seria exposto no dia seguinte, ao centro duma sumptuosa
câmara ardente - espectáculo de grande curiosidade, que toda a
Ferrara viria admirar.
A um sinal de D. Juan, os criados detiveram-se interditos e
trémulos.
- Deixem-me só - ordenou com a voz alterada. Continuarão
depois de eu sair.
Quando os passos do velho Mordomo, que foi o último a retirar-
se, deixaram de se ouvir sobre as lajes, D. Juan fechou
precipitadamente a porta e disse consigo: - Experimentemos...
O corpo de Bartolomeu fora deitado sobre uma longa mesa.
Para ocultarem o odioso espectáculo de um cadáver a que
extrema decrepitude e magreza davam o aspecto de simples
esqueleto, os embalsamadores tinham envolvido num lençol todo o
corpo, excepto a cabeça. Esta espécie de múmia jazia no meio da
dependência, com o sudário a desenhar-lhe vagamente as formar
esguias e agudas. No rosto já apareciam largas manchas violáceas,
que indicavam a necessidade de se apressar o embalsamamento.
Apesar de escudado pelo seu cepticismo, D. Juan hesitou em
desrolhar o frasquinho de cristal.
Tremia tanto quando se aproximou da cabeça do defunto que se
sentiu constrangido a aguardar um momento. Porém, este jovem,
bem cedo corrompido completamente pelos costumes duma corte
dissoluta, foi encorajado por uma ideia digna do famoso Duque de
Albin, ao mesmo tempo que era aguilhoado pela curiosidade.
Dir-se-ia que o próprio Diabo lhe segredava estas palavras, que
lhe ecoavam no coração: «Humedece um dos olhos». Pegou num
pano e, depois de o embeber àvaramente no precioso líquido, passou-
o ao de leve sobre a pálpebra direita do cadáver. O olho abriu-se...
- Ah! - exclamou D. Juan, enclavinhando os dedos no frasco, tal
como apertamos, em sonhos, a haste de que nos suspendemos num
precipício.
Via aquele olho pleno de vida, como olho de criança na cabeça
dum morto, a luz cintilando no seu humor líquido juvenil, apenas
velada por belos cílios negros, trazendo à memória essas singulares
claridades que o viajante avista nos campos desertos, em noites de
Inverno.
Aquele olho resplandecia, parecia querer precipitar-se para D.
Juan, pensava, acusava, condenava, ameaçava, vociferava, mordia.
Todas as paixões humanas se agitavam nele, as súplicas mais ternas,
a cólera dos reis, o amor de uma donzela pedindo misericórdia aos
seus algozes. Tinha, por fim, a mirada profunda que um homem lança
aos outros do último degrau para o cadafalso. Havia tanta vivacidade
naquele fragmento de vida que D. Juan recuou, apavorado. Passeou
pelo aposento sem ousar fixar aquele olho, que ele revia no chão, nas
tapeçarias, por toda a parte.
Toda a dependência estava semeada de pontos luminosos,
fulgurantes de vida, de inteligência. E todos esses pontos que eram
outros tantos olhos, perseguiam, cercavam D. Juan. «Será capaz de
viver mil anos», calculou ele incontidamente, ao voltar junto do pai,
levado por uma atracção diabólica a contemplar aquela centelha de
luz vivente.
De súbito a pálpebra fechou-se e voltou a abrir-se ágil, como a
de uma mulher que concede. Se uma voz lhe tivesse dito: «Sim», D.
Juan não se sentiria mais aterrado.
- Que fazer? - pensou.
Ainda teve coragem para tentar cerrar aquela pálpebra, mas os
seus esforços foram inúteis.
- Será um parricídio esmagá-lo? - perguntou-se diante do olho.
- Sim - fez-lhe este compreender com uma piscadela irónica.
D. Juan debruçou-se para o esmagar. Uma grossa lágrima rolou
pelas faces encovadas do cadáver e caiu sobre a mão do filho.
A lágrima queimou-o. Sentou-se, fatigado por uma luta que lhe
lembrava a de Jacob com o anjo.
Por fim levantou-se, murmurando:
- Contanto que não haja sangue...
Depois, procurando a todo o transe não se acobardar, esmagou
o olho, servindo-se de um pano e voltando o rosto.
Um gemido inesperado, angustioso, surpreendeu-o.
Era o cão que morria uivando.
- Conheceria o segredo do velho? - indagou-se, deitando uma
olhadela ao fiel animal.
D. Juan Belvidero passou depois aos olhos do mundo por um
filho piedoso. Mandou construir um monumento de mármore do mais
branco sobre o túmulo de seu pai, confiando as figuras que o
ornariam aos mais célebres artistas da época. Só se sentiu
perfeitamente tranquilo no dia em que a estátua paterna, ajoelhada
aos pés da Religião, impôs o seu peso enorme sobre a sepultura em
que enterrou o único remorso que ainda poderia sobressaltar-lhe o
coração nos momentos de maior lassidão.
Depois de feito o inventário das riquezas acumuladas pelo velho
orientalista, tornou-se avarento. Acaso não tinha ele de garantir duas
vidas com o seu dinheiro?
O olhar tornou-se-lhe perscrutador, alongando-o pela sociedade
humana e melhor compreendendo o mundo por avistá-lo através de
um túmulo. Analisou os homens e os seus actos para não se importar,
de uma vez para sempre, com o passado representado pela História,
o presente, encarnado pelas leis e o futuro, desvendado pelas
religiões. Tomou o espírito e a matéria, misturou-os num cadinho e,
nada aí encontrando que valesse a pena, tornou-se, autenticamente,
D. Juan.
No segredo das ilusões humanas, jovem e belo, lançou-se para a
vida, desprezando o mundo para melhor dele se apoderar. Assim, a
sua felicidade não poderia ser a ventura burguesa que se contenta
com o cozido trivial, uma confortante botija de água quente na cama,
no inverno, um candeeiro para a noite e umas pantufas novas em
cada trimestre. Apoderou-se da existência como um símio que
apanha uma noz e, sem perda de tempo, trata espertamente de
desembaraçar o fruto da casca inútil, para lhe saborear a polpa. A
poesia e os sublimes arroubos das paixões deixaram de o interessar.
Procurou evitar, o erro de certos homens poderosos que, supondo
que as almas ingénuas crêem nas almas fortes, das ideias efémeras.
Poderia bem caminhar, como eles, com os pés sobre a terra e a
cabeça a tocar os céus: contudo, preferia refestelar-se e devorar de
beijos os lábios, duma mulher meiga, fresca e perfumada, já que,
semelhante à Morte, extinguindo impudentemente tudo por onde
passava, exigindo só o amor que possuía, um amor à oriental, que lhe
proporcionasse apenas amores longos e fáceis. Amando na Mulher só
a fêmea, adoptou a ironia como a atitude própria da sua alma.
Quando nos seus braços as amantes subiam ao paraíso, perdidas num
êxtase de embriaguez, acompanhava-as, meio grave, meio expansivo,
tão sincero como um estudante alemão. Dizia sempre - Eu, enquanto
a louca apaixonada dizia - Nós. - Sabia admiravelmente deixar-se
cativar por uma mulher. Tinha sempre o domínio suficiente para a
fazer acreditar que tremia como o estudantinho do liceu que segreda
à primeira rapariga com quem volteia num baile: «Gosta de
dançar?». Mas não sabia menos utilizar uma espada dura e abater
comendadores.
Ocultava-se zombaria na sua simplicidade e riso nas suas
lágrimas, chorando tão bem como a esposa que diz ao marido: «Dá-
me uma carruagem ou morrerei de tísica!». Para o negociante o
mundo é um acumulado de mercadorias e um bom montante de notas
de Banco; para a maior parte dos jovens é uma mulher; para algumas
mulheres, um homem; para certos espíritos, um salão, um meio de
intrigas, um bairro ou uma cidade inteira. Para D. Juan o mundo era
ele! Modelo de graça e de brandura, espírito sedutor, soube sempre
levar a água ao seu moinho. Simulando deixar-se conduzir, nunca ia
além do limite onde queria ser levado. Quanto mais observava mais
ia duvidando. Ao analisar os homens, descobriu que, muitas vezes, a
coragem não passava de temeridade, e a prudência, de cobardia; a
delicadeza era patetice e a generosidade, astúcia; a justiça, um
crime, e a probidade, uma convenção.
Descobriu, ainda, que, por um singular destino, as pessoas
verdadeiramente honestas, delicadas, justas, prudentes e corajosas
não mereciam a menor consideração social.
- Que cruel ironia! - dizia de si para consigo. Não, é certamente,
obra de Deus.
Então, renunciando a um mundo melhor, nunca mais se
descobriu ao ouvir pronunciar nomes sagrados e considerou as
imagens das igrejas como simples obras de arte. Assim, conhecendo
o mecanismo das sociedades humanas, procurava não ferir
demasiado os preconceitos, por não se sentir tão forte como os
carrascos, mas iludia as leis sociais com subtileza e espírito. Foi a
encarnação de D. Juan, de Molière; do Fausto, de Goethe; do
Manfred, de Byron e do Melmoth, de Maturin. Grandes figuras
criadas pelos maiores Génios europeus, cantadas em acordes de
Mozart e, talvez, um dia, em árias de Rossini. Entes terríveis, que o
príncipe do Mal eterniza e de que se encontram alguns exemplares
através dos séculos, quer quando tais personagens entram em
negociações com os homens, encarnadas em Mirabeau, quer se
contentem em agir sobrepetíciamente, como Bonaparte ou em
abraçar o mundo numa ironia, como Rabelais. Mas o Génio, ainda
mais profundo, de D. Juan Belvidero, resumiu, com antecipação,
todas essas figuras criadas pela genialidade.
A sua foi uma perpétua zombaria, em que envolveu os homens,
as coisas, as instituições e as ideias.
Tendo conversado em boa familiaridade, durante meia hora,
com o papa Júlio II sobre a Eternidade, ao concluir disselhe,
sorrindo: - Se é em absoluto necessário escolher, prefiro crer em
Deus a acreditar no diabo; o poder, aliado à bondade, pode
proporcionar-nos melhor refúgio do que aliado à potência do Mal.
- Sim concordou o Pontífice, mas o Senhor quer que façamos
penitência neste mundo...
- Pensais então sempre nas vossas indulgências? - tornou
Belvidero. Pois bem, eu tenho reservada, para me arrepender da
primeira vida, uma outra completa existência...
- Ah! se compreendes assim a velhice - insistiu Júlio II - arrisca-
te a ser canonizado...
D. João sorriu; a terminar:
- Depois da vossa elevação ao Papado tudo é possível.
E foram ver os operários ocupados na construção da imensa
basílica consagrada a São Pedro.
- O Apóstolo genial que constituiu o nosso duplo poder -
acrescentou o Papa Belvidero, merece este monumento. Mas, por
vezes, durante a noite, penso que um novo dilúvio apagará tudo isto e
será forçoso recomeçar.
D. Juan e o Pontífice riram, compreendendo-se. Um tolo teria
ido, no dia seguinte, divertir-se com Júlio II em casa de Rafael ou na
deliciosa Vila Madama, mas Belvidero foi vê-lo oficiar
pontificalmente, para se convencer das suas dúvidas. Num banquete,
o Rovére teria podido desmentir-se e comentar o Apocalipse.
Mas esta lenda não foi criada para fornecer elementos aqueles
que desejem escrever memórias sobre a biografia de D. Juan.
Destina-se a provar às pessoas honestas que Belvidero não morreu
no seu duelo com uma figura de pedra, como querem fazer-nos
acreditar alguns biógrafos.
Quando atingiu os sessenta anos, Belvidero fixou-se em
Espanha. Aí, mais avançado em idade, desposou uma jovem e
encantadora andaluza. Por cálculo, não foi bom esposo nem bom pai.
Tinha concluído que nunca seremos tão ternamente amados como
pelas mulheres a quem damos menos atenções. Dona Elvira,
santamente criada por uma velha tia, nos confins da Andaluzia, a
algumas léguas de San-Lucar, era toda dedicação e graça. D.
Juan pressentiu que seria mulher para lutar durante muito
tempo contra uma paixão antes de lhe ceder. Assim esperou poder
conservá-la virtuosa até à sua morte. Foi um divertimento arriscado,
uma como que partida de xadrez que reservou para jogar quando já
fosse velho. Decidiu, pois, subordinar todos os seus actos ao êxito da
comédia que deveria ter o desfecho no seu leito de morte. Assim a
sua fortuna permaneceu enterrada no palácio de Ferrare, onde ia
raramente. O resto dos seus bens empregou-os em viajar, no
prolongamento da sua vida - artimanha esta que deveria ter ocorrido
também a seu pai. Porém, tal astúcia não foi para ele de grande
proveito.
O moço Filipe Belvidero, seu filho, saiu-lhe um espanhol tão
conscenciosamente religioso quanto o pai era ímpio.
Isto, talvez, em obediência ao provérbio: “Pai avarento, filho
pródigo.”
O abade de San-Lucar foi escolhido para director espiritual da
Duquesa de Belvidero e de Filipe. Era este eclesiástico um santo
homem, de admirável estatura, bem proporcionado, belos olhos e
rosto à Tibério, fatigado pelos jejuns, empalidecido pelas macerações
e dia a dia tentado, como são os solitários. O já então idoso D. Juan
esperava talvez poder ainda matar um anacoreta antes de terminar o
primeiro prazo da sua vida.
Mas, ou porque o abade fosse de temperamento tão forte como
ele, ou por que Dona Elvira possuísse menos ardência ou mais
prudência do que a Espanha habitualmente concede às mulheres,
Belvidero viu-se constrangido a passar os seus dias calmo como um
velho reitor de aldeia, sem escândalos caseiros. Por vezes sentia
prazer em apanhar a mulher ou o filho em falta para com os seus
deveres religiosos e ordenava-lhes imperiosamente que cumprissem
as suas obrigações de fiéis da Santa Sé Apostólica. Finalmente, raro
era tão feliz como quando ouvia o afável cura de San-Lucar, Dona
Elvira e Filipe entretidos em discutir um caso de consciência.
Entretanto, apesar dos cuidados extremos que dedicava à sua
pessoa, os dias da sua decrepitude chegaram; e, com os achaques da
idade, vieram as imprecações da impotência, tanto mais
desesperadora quanto mais vivas eram as recordações da sua
ardente juventude e de sua voluptuosa maturidade. Aquele homem
para quem o maior divertimento era obrigar os outros a acreditarem
nas leis e nos princípios de que desdenhava, adormecia à noite
atormentado por um talvez... Modelo de bom-tom, aquele duque,
ousado numa orgia, soberbo mas cortês, espirituoso junto das
mulheres, a quem vergava pelo coração como um campónio verga
uma haste de vime, enfim aquele homem de Génio, tinha um defluxo
renitente, uma ciática arreliadora, uma gota feroz. Via os dentes
irem-se-lhe como, ao fim duma festa nocturna, as mulheres mais
brancas e melhor vestidas se retiraram, uma a uma, abandonando a
sala deserta e desguarnecida. Depois, as suas mãos afoitas
tremeram, as pernas esbeltas vacilaram e, uma noite, a apoplexia
apertou-lhe a garganta com as suas mãos aduncas e gélidas. Tornou-
se, desde então, quezilento, áspero. Censurava a dedicação do filho e
da mulher, atribuindo os seus cuidados enternecidos, desvelados, ao
facto de ele ter empregado toda a sua fortuna em rendimento
vitalício. Elvira e Filipe choravam lágrimas amargas e redobravam
de carícias para com o maldoso velho, que, em voz enfraquecida, que
procurava tornar afectuosa, dizia:
- Meus amigos, minha querida esposa, perdoam-me, não é
verdade? Atormento-vos um pouco. Ah!, meu Deus! porque te serves
de mim para pôr à prova estas santas criaturas? Eu, que devia ser a
sua alegria, não passo do seu martírio...
Assim os acorrentava à cabeceira do seu leito, fazendo-lhes
esquecer meses de rezinga e de crueldade, naquela hora em que lhes
desvendava os inesperados tesouros da sua espirituosidade e da sua
falsa ternura.
Este seu modo paternal resultou infinitamente melhor do que o
outro usado por seu pai. Por fim o seu estado agravou-se de tal
maneira que, para o meterem na cama, era necessária uma manobra
tal como a de meter uma embarcação num canal perigoso. E chegou
o dia da morte. Tão brilhante e céptica personagem, em quem só a
inteligência parecia escapar à mais terrível de todas as destruições,
viu-se entre um médico e um confessor, as suas maiores antipatias.
Mas mostrou-se jovial. Para ele não existia qualquer luz cintilando
para além da cortina que ocultava o futuro. Sobre essa tela, opaca
para os outros e diáfana para ele, as belas, arrebatadoras delícias da
mocidade moviam-se como sombras.
Foi numa bela noite de verão que D. Juan sentiu que a Morte se
aproximava. O céu de Espanha tinha uma admirável pureza, as
laranjeiras perfumavam o espaço; as estrelas irradiavam uma viva
claridade. A natureza parecia oferecer-lhe provas irrefutáveis da sua
próxima ressurreição. Um filho carinhoso, dedicado, contemplava-o
com amor e respeito.
Cerca das onze horas desejou ficar só com tão cândida criatura:
- Filipe - disselhe com voz de um afecto e uma ternura tais que o
moço estremeceu, chorou de felicidade ao ouvir o pai pronunciar
assim o seu nome. - Escuta, meu filho - continuou o moribundo. Sou
um grande pecador.
Por isto toda a vida pensei na Morte. Outrora fui amigo do
grande papa Júlio II. Esse ilustre pontífice receou que os meus
excessos me levassem a cometer qualquer pecado mortal entre o
meu último suspiro e o momento em que me ministrassem os santos
óleos. Para que assim não sucedesse fez-me presente de um frasco
contendo água santa que, noutros tempos, jorrava dos rochedos do
deserto. Guardei segredo sobre esta concessão da Igreja mas fui
autorizado pelo dito Papa a, in extremis, revelar tudo a meu filho.
Encontrarás esse frasco na gaveta da mesa gótica, que nunca deixei
afastar da minha cabeceira... O frasquinho também te poderá ser
útil, querido Filipe. Jura-me, pois, pela tua salvação, que executarás
pontualmente as minhas determinações!...
Filipe fitou o pai. D. Juan conhecia bem a expressão dos
sentimentos humanos para não morrer em paz sem reconhecer
fidelidade nos olhos do filho, para mais lembrando-se de que seu pai
morrera de desespero soletrando-lhe nos olhos as intenções:
- Merecias melhor paternidade, Filipe - prosseguiu D. Juan.
Assim ouso confessar-te, meu filho, que, no momento em que o
abade de San-Lucar me administrava o Sagrado Viático, eu pensava
na eterna incompatibilidade de dois poderes tão fortes como o de
Deus e o Diabo...
- Oh!, meu pai!
- E dizia comigo: quando Satã fizer a paz com a divina
omnipotência, deverá, sob pena de ser um grande réprobo, estipular
o perdão dos seus sequazes. Este pensamento não me largou mais.
Porque eu irei para o Inferno, meu filho, se não cumprires à risca os
meus últimos desejos...
- Oh!, diga-mos sem demora, meu pai!
- Pois bem. Logo que eu tenha expirado, talvez daqui a poucos
minutos, pegarás no meu corpo ainda quente e estendê-lo-ás sobre
uma mesa, no meio deste quarto.
Depois apagarás o candeeiro. A claridade das estrelas devera
bastar-te. Então despes-me e, enquanto fores rezando padre-nossos
e ave-marias, elevando a tua alma a Deus, terás o cuidado de
humedecer, com essa água miraculosa, os meus olhos, os lábios, toda
a cabeça, em primeiro lugar e, em seguida, sucessivamente, os
membros e o tronco. Entretanto, filho, toma bem nota de que o poder
de Deus é tão grande que não deverás estranhar coisa alguma!
Nesta altura, D. Juan, que sentia a morte chegar, acrescentou
com voz temível:
- Segura bem o frasco!
Depois expirou suavemente nos braços do filho, que vertia
copiosas lágrimas naquelas faces irónicas e lívidas.
Era cerca de meia-noite quando D. Filipe Belvidero colocou o
cadáver sobre a mesa. Beijou-lhe a fronte e os cabelos encanecidos e
apagou o candeeiro. A claridade suave do luar que iluminava o campo
com revérberos caprichosos mal permitiu ao piedoso mancebo
distinguir o corpo do pai, como uma alongada mancha branca no seio
da sombra. Embebeu um pano no líquido e, recolhido em oração,
ungiu a cabeça do querido defunto, em profundo silêncio. Ouvia
indistintos rumores, mas atribuí-os ao cicio da brisa na copa das
árvores. Mal acabava de molhar o braço direito do morto quando lhe
pareceu que outro braço veio apertar-lhe tenazmente o pescoço.
Sentindo-se estrangulado, soltou um grito dilacerante e deixou cair o
frasco, que se quebrou.
Os criados acorreram trazendo luzes.
O grito tinha-os aterrado como se a trombeta do Juízo Final
tivesse abalado os ecos do mundo. Num momento o quarto encheu-se
de gente. A criadagem, trémula, encontrou D. Filipe desmaiado mas
seguro pelo braço forte de seu pai, que o estrangulava. Depois - caso
sobrenatural!- os circunstantes depararam com a cabeça de D. Juan
tão jovem e bela como a de Antinos; uma cabeça de cabelos negros,
olhos brilhantes, boca vermelha, e que se agitava horrivelmente sem
poder mover o corpo esquelético a que pertencia.
Um velho serviçal gritou:
- Milagre!
E todos aqueles espanhóis repetiram, em uníssono:
- Milagre!
Suficientemente religiosa para não se fiar nos mistérios da
Magia, Dona Elvira mandou chamar o abade de San-Lucar. O pároco
assim que pôde constatar o milagre, pensou logo aproveitar-se do
extraordinário facto, como homem esperto e abade que só desejava
aumentar os rendimentos da freguesia. Declarando imediatamente
que D. Juan seria canonizado, infalivelmente, marcou a cerimónia
para a epifania para o seu convento, que daí em diante - declarou -
San-Juan de Lucar.
A estas palavras, a cara do defunto teve um esgar irónico.
A inclinação dos espanhóis por este género de solenidades é tão
conhecida que não será difícil conceber a pompa das cerimónias
religiosas em que o cura de San-Lucar celebrou a trasladação do
bem-aventurado D. Juan Belvidero para a sua igreja.
Alguns dias depois da morte daquele ilustre senhor, o milagre da
sua ressurreição incompleta foi tão largamente comentado, de
povoação em povoação, num raio de cinquenta léguas à volta de San-
Lucar, que, num grande espectáculo de peregrinação, os curiosos
acorreram de todos os lados, atraídos pela perspectiva de um Te
Deum solenemente cantado à luz dos círios. A antiga mesquita, agora
igreja do convento de San-Lucar, maravilhoso edifício construído
pelos mouros e cujas abóbadas escutavam, havia séculos, o nome de
Jesus em substituição do de Allah, não pôde conter a multidão que
vinha assistir ao acto. Apertados como formigas num formigueiro, os
fidalgos, com suas capas de veludo e belas espadas à cinta,
conservavam-se junto dos pilares, quase sem espaço para dobrar o
joelho que só ali se dignavam dobrar. Encantadoras camponesas com
as vasquinhas a moldarem-lhe as formas airosas, davam o braço a
velhos encanecidos.
Moços, de olhos ardentes, eram vistos ao lado de velhas
arrebicadas. Avistavam-se ainda, entre a multidão, parzinhos jovens
radiantes de alegria, namoradas curiosas trazidas pelos bem-
amados, algumas casadinhas de fresco, e, finalmente, crianças
receosas pela mão das mães.
Toda aquela gente estabelecia flagrantes contrastes, carregada
de flores, colorida, despertando um surdo rumor na quietação da
noite.
As grandes portas da igreja descerraram-se. Os que haviam
chegado tarde de mais ficaram no adro, assistindo de longe, pelos
portais escancarados, a um espectáculo de que as reduzidas cenas
das óperas modernas nunca poderão dar uma pálida ideia. Devotos e
pecadores empenhados em ganhar as boas graças dum novo santo,
acenderam em seu louvor milhares de círios na vasta igreja, flâmulas
interesseiras que emprestavam aspectos de magia ao majestoso
templo. As escuras arcarias, as colunas e os seus capitéis, as capelas
profundas, resplandecendo de ouro e prata, as galerias, os
rendilhados mouriscos, os mais subtis pormenores daquela
arquitectura delicada, desenhavam-se num exuberante clarão, como
as figuras caprichosas dos grandes brasidos ardentes.
Era um mar de luzes, dominado ao fundo pelo coro dourado
sobranceiro ao altar-mor, rivalizando, em esplendor, com o Sol
nascente. Com efeito, o brilho dos áureos lampadários, dos
candelabros argênteos, dos panejamentos, das imagens e dos «ex-
voto» parecia esmorecer ante o relicário que continha o corpo de D
Juan. Os restos mortais do ímpio resplandeciam de pedrarias, flores,
ouro, plumas brancas como asas de anjo e substituíam, sobre o altar,
um painel de Cristo. À sua volta numerosas flamas erguiam no ar
clarões rutilantes.
O bom abade de San-Lucar, com paramentos pontificais, a mitra
ornada de pedras preciosas, de sobrepeliz e báculo de ouro, sentava-
se, como monarca, num cadeirão de luxo imperial, no meio do seu
cabido, composto de impassíveis anciãos encanecidos, vestidos de
alvas e que o rodeavam, como as santas figuras que os pintores
agrupam, nos seus painéis, à volta do Eterno.
O grande chantre e os dignitários do capítulo, ostentando as
vistosas insígnias das suas prerrogativas eclesiásticas, iam e vinham
por entre nuvens de incenso.
Quando chegou a hora da solene consagração, os sinos
tangeram e todos dirigiram ao Altíssimo a primeira hossana de
louvor, que iniciou o Te-Deum. Clamor sublime! Eram vozes puras,
cristalinas, de mulheres em êxtase, confundidas com vozes
masculinas, fortes e graves, num coro tão poderoso que o órgão não
conseguia dominá-lo com o vibrar dos seus largos acordes.
Só as notas agudas dos meninos do Coro e as dos barítonos
suscitavam a ideia da infância e da força naquele fantástico concerto
de vozes humanas unidas num sentimento de amor: - Te Deum
laudamus!
Do âmago do vasto templo enxameado pela multidão ajoelhada,
aquele coro cresceu como uma claridade que cintilasse
repentinamente na noite e o silêncio como que foi cortado por um
ribombar. As vozes ascendiam com as nuvens do incenso que
toldavam as majestáticas maravilhas arquitectónicas em diáfanos
véus azulados.
Tudo era magnificência, perfume luz e polifonia.
No momento em que o grave hino de gratidão e de amor atingiu
o altar-mor, D. Juan, suficientemente cortês para nada levar a mal,
esboçou um lívido sorriso e envaideceu-se no interior do relicário.
Porém o Diabo, lembrando-lhe o risco de passar assim por um
homem vulgar, por um santo, um bonifrates ou um Pantaleão,
perturbou a grande polifonia de amor com um bramido, a que se
juntaram as mil vozes do Inferno.
A Terra abençoava, e o Céu maldizia. O templo estremeceu
sobre os seus remotos alicerces.
- Te Deus laudamus ! - clamava a multidão.
- Vão para todos os diabos, estúpidos animais que sois! Deus!
Deus! Que sois vós com o vosso Deus encanecido?
E uma torrente de imprecações correu como caudal de lavas
ardentes, arremessadas por uma erupção do Vesúvio.
- Deus Sabaoth!... Sabaoth! - bramiam os crentes
- Insultais a majestade do Inferno! - tornou D. Juan, rangendo os
maxilares.
Momentos depois o seu braço ressuscitado, saindo do relicário,
ameaçou a turba com um gesto de desespero e de ironia.
- O santo abençoa-nos! - gritaram as velhas, as crianças e as
noivas, crêdulamente.
Desta maneira somos muitas vezes iludidos nas nossas crenças.
Mas o homem superior ri-se dos que o louvam e louva, muitas vezes,
aqueles de quem se ri no seu íntimo.
No momento em que o pároco, prosternado ante o altar,
entoava: Sancte Johannes, ora pro nobis...» ouviu distintamente a
palavra - imbecil!
- Que se passa ali? - exclamou o coadjutor ao ver o relicário
mover-se.
O Santo antes parece o Diabo - retorquiu o prior.
Nesse instante a cabeça vivente de D. Juan separou-se
violentamente do seu corpo inerte e foi cair sobre a cabeça do
esbelto e jovem oficiante: - Lembra-te de D. Elvira! - gritou aquela
cabeça mordendo o abade.
Este deixou escapar um grito de dor, que interrompeu a solene
cerimónia. Todos os padres acudiram e rodearam o seu superior
hierárquico.
- Pateta! Dize agora que existe um Deus! - rugiu ainda a voz
infernal, quando o abade, atingido no crânio pela mordedura,
expirava.
O VIOLINISTA
Selma Lagerlöf

Era inegável que Lars Larsson, o tocador de Olerud, na sua


velhice, era humilde e modesto. Porém, não fora sempre assim. Na
mocidade, tinha sido de tal maneira vaidoso e soberbo que fazia
pena.
Dizem que foi numa só noite que se transformou
completamente. Foi assim:
Passeava Lars Larsson, com o seu violino debaixo do braço,
numa linda noite de sábado, já bastante tarde. Regressava de uma
festa onde ao som do seu violino tinha feito dançar novos e velhos. Ia
por isso muito alegre.
Ninguém tinha podido parar enquanto o seu arco estava em
movimento. Havia por toda a casa um entusiasmo tal, que lhe parecia
ver mesas e cadeiras fazerem parte da dança.
- Com certeza que nunca houve por aqui um músico assim -
pensava ele. - Mas quantos obstáculos tive de vencer para chegar ao
que hoje sou! Na minha infância, não era nada agradável os meus
pais mandarem-me guardar carneiros e vacas.
Eu, num sonho, tudo esquecia para fazer vibrar as cordas do
meu violino. Que pobreza! Na minha casa não queriam comprar-me
um violino autêntico. O meu instrumento era urna caixinha de
madeira com umas cordas esticadas. Durante o dia ficava só na
floresta e assim não era muito digno de pena; porém, à noite, ao
voltar, era diferente com o rebanho extraviado. Quantas vezes o meu
pai me disse que eu era um maroto, que nunca faria nada com jeito!
No sítio da floresta que Lars Larsson atravessava, um regato
buscava caminho. Era a custo que avançava em terreno tão ruim:
dividia-se em pequenas cascatas e no entanto dava a ideia de não
chegar a qual quer parte. Ao contrário, o caminho pelo qual o músico
seguia era o mais direito possível. Assim, tinha ele, de vez em
quando, de atravessar uma pequena ponte sobre o regato sinuoso. O
músico era portanto forçado a cruzar constantemente o regato, o
que de certo modo lhe agradava.
Tinha a sensação de não estar sozinho na floresta, de ir
acompanhado.
A noite estava clara; o sol ainda não tinha nascido, mas mesmo
assim a luz era muita. Sentia-se, porém, que ainda não era bem de
dia. As coisas tinham outra cor. As árvores estavam acinzentadas e o
céu todo branco, mas via-se tão bem como se fosse meio dia. Lars
Larsson, parado numa das pontes, olhando o riacho, podia ver
perfeitamente qualquer bolha de ar que subisse do fundo da água.
- Revejo a minha própria vida, olhando um regato selvagem
como este - pensou o músico. Ao abrir caminho por entre os
obstáculos que se levantaram diante de mim, mostrei a mesma
firmeza. Meu pai, duro como uma rocha, embargava-me o caminho.
Minha mãe envolvia-me carinhosamente, como entre verdura,
tentando reterme. Porém, consegui desprender-me de ambos e parti
para a vida. «Decerto! Julgo que minha mãe ainda chora por mim.
Não me importo! Não se pusesse no meu caminho; devia perceber
que eu queria ser alguém.
Deitou ao riacho umas folhas que tirou de uma moita, com um
gesto nervoso.
- Foi assim que me soltei de tudo o que me prendia - disse,
olhando as folhas que a corrente levava. - A minha mãe saberá que
sou agora o melhor violinista de toda a Vermlândia?
Deu uns passos apressados até encontrar outra vez o regato.
Parou de novo para ver a água.
O regato aqui, fazia um barulho ensurdecedor. O músico ficou
muito admirado de, por ser de noite, se ouvirem sair da água sons
diferentes dos que se ouviam de dia.
Nem o mais leve ruído de folhas, nem um gorjeio de aves. Nem
o tilintar de campainhas na floresta, nem ranger de rodas na estrada.
Apenas se ouvia a queda da água e mais distintamente do que de dia.
Parecia que se mexiam no fundo da água as coisas mais
extraordinárias. Primeiro, o som de mós enormes moendo trigo;
depois, vinha um som cristalino como o embater de copos numa festa,
outras vezes um sussurro dava a ideia que se estava no largo duma
igreja, à saída, quando as pessoas travam entre si conversas
animadas.
- Isto é realmente uma espécie de música - disse para consigo
Lars Larsson - ainda que não valha muito. Acho eu que a ária que
compus noutro dia tinha mais interesse.
Mas quanto mais ouvia a cascata, mais lhe apreciava a música.
- Fazes progressos - gritou ele. - Com certeza percebeste que
quem te ouve é o melhor violinista de toda a Vermlândia.
Precisamente no momento em que dizia estas palavras, julgou
ouvir sons metálicos, saídos do fundo da água, como se lá em baixo
alguém afinasse um instrumento.
- Oh! É o Neck em pessoa que aí vem! Ouço-o afinar o violino.
Pois agora veremos se tocas melhor do que eu! gritou Lars Larsson a
rir. - Mas não posso ficar aqui o resto da noite à espera que te
resolvas a começar - continuou, virado para a cascata. - Por agora
tenho de ir, mas paro na primeira ponte para ver se tens coragem de
te medir comigo.
Seguiu o seu caminho e enquanto o regato prosseguia também o
seu na floresta, o músico voltou a pensar nas coisas antigas:
- Pergunto a mim mesmo o que será feito do córrego que rodeia
o pátio da nossa granja. Bem gostava de tornar a vê-lo.
De vez em quando devia ir a nossa casa para saber como vive
minha mãe agora sem o meu pai, que já não existe. Mas tenho tantos
afazeres que me parece que não é possível. Devido às minhas
ocupações de agora, acho eu, não consigo interessar-me por mais
nada além do meu violino; durante toda a semana não há uma noite
em que esteja disponível.
Pouco depois encontrou de novo o regato, o que lhe fez mudar o
rumo às ideias. Aparecia agora em ondas profundas e calmas em vez
de cascata tumultuosa. Parecia, sob a folhagem cinzenta da noite, de
um negro luzente, levando ainda tufos de espuma branca, recordação
das cascatas passadas.
O músico deteve-se no meio da ponte e começou a rir; só ouvia
sair da água um ruído muito fraco, intervalado.
- Eu bem dizia que o Neck não vinha para o desafio; não há
duvida que é um músico de valor, mas o que há a esperar de um ser
que fica impassível no seu regato sem nunca ouvir nada de novo? Ele
sabe que está aqui alguém que percebe disso melhor do que ele e
assim mantém-se reservado.
Depois de dizer isto, seguiu o seu caminho perdendo de vista o
regato.
Entrou numa parte da floresta que sempre lhe tinha parecido
sinistra. O chão estava coberto por montões de pedras onde se
moviam raízes de pinheiros torcidas e nuas. Era com certeza ali que
estavam escondidos os espíritos maus e perigosos, se é que os havia
na floresta.
Metendo-se por aquelas pedras de aspecto bravio, arrepiou-se
de medo e pensou que não tinha sido muito acertado ufanar-se ante o
Neck.
Teve a impressão de que as raízes, muito grossas, lhe faziam
gestos como se o ameaçassem.
- Tem cuidado! Tu que supões ter mais força do que Neck! -
diziam elas.
Lars Larsson sentiu que o coração se lhe apertava de aflição.
Quase não podia respirar e tinha as mãos frias. Parou no meio do
caminho e tentou falar consigo mesmo:
- Não houve músico algum na cascata. Isso não passa de
conversa. Assim, não tem importância o que eu disse.
E olhava à volta da floresta como se esperasse a confirmação
das suas palavras.
Se já fosse dia, talvez que uma pequenina folha lhe dissesse,
numa piscadela de olho, que não há perigo na floresta; mas, como
ainda era noite, as árvores silenciosas e mal encaradas pareciam
esconder toda a espécie de perigos.
Lars Larsson pensava, horrorizado, que tinha uma vez mais de
atravessar o regato que não se separava do caminho a não ser mais
adiante. Perguntava a si mesmo o que lhe faria o Neck, quando
passasse a última ponte. Era possível que saísse da água uma
enorme mão negra para o levar para o fundo.
Estava de tal maneira exaltado que achava preferível voltar;
mas encontraria de novo o regato e se deixasse o caminho para se
embrenhar na floresta, tão complicado era o seu curso, mesmo assim
o encontrava.
Não sabia o que fazer, estava desorientado. Enleado por aquele
regato terrível, não via possibilidade de lhe escapar.
Avistou, por fim, lá ao longe a última ponte. Na margem oposta,
em frente, via-se um moinho que dava a ideia de estar abandonado.
Via-se a grande mó suspensa sobre a água; as janelas cobertas de
musgo, a comporta estragada no chão e nas águas-furtadas, vazias,
tinham crescido mimosos fetos.
- Antigamente encontraria gente aqui e assim não correria
perigo - pensou o músico.
Contudo, acalmou ao ver que andara ali a mão do homem e, ao
atravessar o regato, quase não tinha medo. Nada lhe aconteceu; o
Neck não lhe queria mal e irritou-se consigo mesmo por se ter
exaltado por coisa nenhuma.
Sentindo-se absolutamente seguro, mais alegre ficou ao ver que
se abria a porta do moinho e de lá saía uma jovem que vinha agora
ao seu encontro.
Tinha o aspecto de uma camponesa: blusa larga, saia curta,
lenço de algodão na cabeça e pés descalços. Abeirou-se do músico e
disselhe com simplicidade:
- Dançarei para ti, se quiseres tocar para mim.
- Da melhor vontade – respondeu ele, voltando-lhe a boa
disposição, visto não haver perigo. - Não há inconveniente algum;
nunca deixei de tocar para uma bela rapariga que quer dançar.
À beira da represa, ajeitou-se sobre uma pedra e, ajustando o
violino ao queixo, começou a tocar.
A rapariga deu uns passos, mas parou de repente.
- O que estás a tocar não anima a gente.
O músico substituiu a ária; mudou para outra mais viva, mas a
rapariga continuava descontente.
- Com uma ária tão fraca, como poderei dançar?
Lars Larsson começou então a tocar a ária mais viva que sabia.
- Se esta não te satisfizer, será necessário chamar um músico
mais competente do que eu.
Ao dizer isto, teve a sensação de que uma mão começava a
manejar o arco, acelerando o ritmo.
Saiu então do instrumento uma ária como nunca se tinha ouvido.
O movimento era tal, que se se lançasse uma roda a toda a
velocidade, não o poderia acompanhar.
- Isso é que é uma ária para dançar! - gritou a rapariga,
começando a girar.
Mas o músico nem a olhava. A ária que ele próprio tocava
surpreendeu-o de tal maneira que cerrou os olhos para escutar
melhor.
Quando pouco depois os abriu, a rapariga tinha desaparecido,
mas não ficou muito admirado por isso: continuou a tocar por tempo
indefinido porque nunca ouvira música como aquela.
- Agora julgo que devo parar - disse ele, querendo largar o arco.
Porém, este continuava em andamento. Ia para cá e para lá
sobre as cordas, obrigando a mão e o braço a seguirem o seu
movimento. E a mão que segurava o violino e manejava as cordas
também não se podia desprender.
- Como será o fim disto? Serei forçado a ficar aqui até ao dia de
juízo final? - perguntava a si mesmo, exasperado.
E o arco continuava a dançar desenfreadamente lembrando,
como por encanto, árias sem fim. Surgia um trecho novo,
constantemente, de tanta beleza, que o pobre do músico era forçado
a concordar que a sua sabedoria de nada valia. E isso atormentava-o
muito mais do que o cansaço.
- O que usa o meu violino é muito competente e eu não tenho
passado de um trapalhão. Agora é que eu sei o que é tocar!
Por breves instantes, com o entusiasmo da música, esqueceu a
sua pouca sorte, mas de súbito sentiu os braços doridos de fadiga e o
desespero tomou, de novo, conta dele.
- Hei-de tocar este violino até morrer, não o poderei largar!
Bem compreendo que é esse o desejo de Neck.
E, sempre a tocar, começou a chorar com pena de si mesmo.
- Era melhor ter ficado na casota de minha mãe. Para que serve
todo o meu valor, se tenho de acabar assim?
Ficou na mesma horas sem fim. Chegou a manhã, rompeu o sol,
os passarinhos começaram a cantar e ele tocava sem descanso.
O dia que se seguiu era domingo; por isso Lars Larsson teve de
ficar só ao pé do velho moinho. Ninguém seguiu a estrada da
floresta: iam todos para as aldeias que ornavam a estrada real ou
para a igreja do vale.
O sol ia cada vez mais alto no céu; passou-se a manhã. Os
pássaros não cantavam, mas ouvia-se o ruído das agulhas dos
pinheiros.
Lars Larsson tocava, tocava; nem o calor daquele dia de verão o
detinha.
O sol desapareceu, a noite chegou, mas o seu arco não
precisava de descanso e o braço continuava em movimentos febris.
- Não há dúvida que isto só acabará com a morte e será o justo
castigo do meu orgulho.
Já noite alta viu que uma pessoa se aproximava por entre a
floresta; era uma velhinha curvada, de cabelos brancos e rosto
enrugado.
- Que coisa extraordinária! - pensou o músico. Julgo conhecer
esta velha. - É possível que seja a minha mãe? É possível que ela
esteja tão branca, tão velha?
Para faze-la parar, chamou-a em voz alta:
- Mãe, mãe, chega aqui!
- Certifico-me agora, com os meus próprios ouvidos, que és o
melhor violinista de toda a Vermlândia - disse ela - e compreendo que
não te importes com uma velha como eu.
- Mãe, mãe, não passes! - gritou Lars Larsson. Não sou exímio
tocador, não passo de um patife. Chega aqui para eu te falar!
Então a mãe ao aproximar-se viu como se encontrava,
mortalmente pálido, os cabelos ensopados em suor e das unhas
corria-lhe sangue.
- Mãe, caí em desgraça, devido à minha vaidade e agora tenho
de morrer a tocar.
Todo o ressentimento que tinha contra o filho desapareceu e a
mãe sentiu então uma grande pena dele.
- Perdoo-te, sim!
Mas querendo provar-lhe que lhe perdoava sinceramente,
invocou o nome do Senhor para confirmar o perdão.
Lars Larsson sentiu então a testa cobrir-se-lhe de suor frio e
tomou conta dele um medo horrível.
- Perdoo-te em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Então o arco parou, o violino caiu por terra e o violinista, salvo
e liberto, levantou-se.
Quebrara-se o encanto na altura em que a sua velha mãe cheia
de pena por vê-lo tão desgraçado, pronunciou o nome do Senhor.
OS RUÍDOS DO BOSQUE
Vladimir Korolenko
I

O bosque estava agitado.


Havia sempre ruído naquele bosque, um ruído regular, surdo,
como o eco de campainhas longínquas; tranquilo e vago, como uma
doce romanza sem palavras, como uma recordação do passado.
Havia sempre ruído naquele bosque, porque era velho, muito velho, e
nunca fora tocado pela acha dos lenhadores. Os altos pinheiros
seculares, com os seus troncos vermelhos, poderosos, erguem-se
como um exército sombrio, estreitando as suas copas verdes em
abóbadas espessas.
Por baixo, havia calma e cheirava a alcatrão. Através do tapete
de verdes agulhas que cobriam a terra, cresciam cogumelos gordos e
fantásticos e altas ervas verdes. As flores humildes inclinavam,
cansadas, as pesadas corolas. E no alto, incessantemente, sem
interrupção, ouvia-se o ruído do bosque, lançando dolorosos suspiros.
Agora, estes suspiros soam cada vez mais fortes e profundos.
Eu, montado no meu cavalo, caminhava por um estreito carreiro
florestal. Embora não pudesse ver o céu, adivinhava pela
obscuridade do bosque que lá no cimo se iam amontoando grossas
nuvens. A hora era bastante avançada. Alguns raios de sol
perfuravam a espessa folhagem, mas, sobre as árvores descia já o
escuro. Avizinhava-se a tempestade.
Era inútil pensar em caçar; resumia as minhas aspirações à
possibilidade de chegar, antes do furacão, a um abrigo qualquer onde
pudesse passar a noite.
O meu cavalo batia com os cascos nas raízes desnudadas de
algumas árvores, e alargando as orelhas escutava com ansiedade o
ruído do bosque. Também ele se mostrava impaciente, apressava o
passo.
Ouviu-se o ladrar dum cão. Através das árvores, já mais
distanciadas, viam-se as paredes brancas duma choça de cujo telhado
saía um fumo azul. A choça, inclinada, com um tecto de palha
enegrecida, acoitava-se como por detrás dum muro, entre os troncos
vermelhos.
Parecia querer esconder-se debaixo da terra, e os esbeltos e
soberbos pinheiros debruçavam sobre ela as copas majestosas. No
meio da clareira, muito apertados, havia um grupo de sobreiros
novos.
A casa era habitada por dois guardas do bosque, Zajar e
Maximo, companheiros habituais das minhas excursões de caça. Mas
não deviam estar ali, visto que ninguém saíra ao meu encontro,
apesar dos latidos do enorme cão. O avô, ancião de cabeça calva e
bigodes brancos, permanecia sentado no limiar da choça.
As barbas chegavam-lhe quase à cintura; os olhos eram
escuros. Dir-se-ia que tentava recordar alguma coisa em vão.
- Bons dias avô. Está alguém em casa?
- Eh! - e o velho abanou negativamente a cabeça. - Não está
nem Zajar, nem Maximo. Motria foi também ao bosque buscar a
vaca... A vaca perdeu-se com certeza. Talvez a tenham devorado os
ursos... Não, não está ninguém...
- Não importa. Espero, e faço-te companhia.
- Bem, se queres...
E enquanto amarro o meu cavalo a um carvalho, o velho olha-
me com o seu olhar escuro e apagado. É muito débil, muito débil; não
vê quase nada e as suas mãos tremem sempre.
- Quem és tu, moço? - perguntou-me quando me sentei a seu
lado.
Cada vez que venho, faz-me a mesma pergunta.
- Ah! agora sim; sim, já me lembro - disse contente, enquanto
compunha uma velha bota estragada. - A minha pobre cabeça não
conserva muito a memória das coisas... É como um passador... Dos
que morreram há muito tempo, lembro-me eu bem, mas a gente nova
esqueço-a sempre.
Porque, bem vês já vivo há tanto tempo neste mundo...
- Há muito que vives nele, dizes?
- Sim, muitíssimo! Já cá andava no tempo em que os franceses
vieram aqui para combater o nosso imperador.
- Então, podes contar alguma coisa! Viste muito, podes contar
muito!...
Olha-me com estranheza.
- Eu? Mas o que pude eu ver? Nada, a não ser o bosque. Há
sempre ruído nele; noite e dia, inverno ou verão. Como essas
árvores, passei aqui toda a minha vida e nunca pensei em mais nada.
Chegou a hora de morrer; mas, às vezes, quando começo a pensar,
pergunto a mim mesmo se vivi verdadeiramente, ou não. Talvez
nunca tenha vivido...
Por cima da clareira, detrás das espessas copas, apercebia-se o
extremo duma nuvem negra. As pernadas dos pinheiros que
rodeavam a casa agitavam-se ao impulso do vento. O ruído do bosque
tornava-se mais forte ainda. O velho levantou a cabeça e apurou o
ouvido.
- A tempestade aproxima-se - disse. - Bem a conheço! Sim, sim,
bem sei! Quando o furacão se põe a grunhir, a puxar pelos pinheiros,
a desenraizá-los da terra... até me dá calafrios. É o «demónio da
selva» que se enfurece - acrescentou mais baixo.
- Como sabes tu isso avô?
- Oh, isso... sei-o e muito bem! Entendo a linguagem das
árvores. Porque - repara! - as árvores também têm medo. Por
exemplo, o álamo dos Alpes, essa árvore maldita... não pára de
gemer. Treme quando há vento. O pinheiro também: quando está
bom tempo canta docemente, mas quando faz vento começa a soprar
e põe-se a gemer lugubremente. Escuta! Eu vejo mal mas tenho bom
ouvido. Agora é o carvalho que começa a queixar-se, «o demónio da
selva», ataca os carvalhos...
É sempre assim antes da tempestade!
Com efeito, o grupo de carvalhos que se via no meio da clareira,
defendidos pela muralha do bosque, sacudiam os seus ramos
potentes e faziam um ruído surdo que se podia distinguir facilmente
do dos pinheiros.
- Estás a ouvir rapaz? - disse o velho com um sorriso malicioso. -
Eu sei muito bem; Quando os carvalhos começam a agitar-se, é
garantido que há noite virá o «demónio do bosque», puxando por eles
para os desfazer. Mas nem o próprio «demónio» pode nada contra o
carvalho; é demasiado sólido.
- De que demónio falas tu, avô? Não disseste tu mesmo já, que é
o furacão que os destroça?
Abanou a cabeça.
- Ah, sim, já ouvi dizer isso! Também me disseram que há
pessoas que não acreditam em coisa alguma. É fantástico! E, no
entanto, eu vi-o, como te vejo agora a ti, ou melhor ainda: porque
agora os meus olhos não valem grande coisa, ao passo que então,
eram ainda jovens. Que bem viam quando eu era jovem!
- Mas como o viste tu, avô?
- Foi num dia como o de hoje; primeiro, os pinheiros começaram
a gemer: O-ho-ho! O-oh-oh! E cada vez mais lastimosa e
doridamente. Os pinheiros sabiam que naquela noite o «demónio» ia
atirar muitos por terra...
Depois, ao anoitecer, os carvalhos começaram a agitar-se.
E, quando a noite desceu, «ele» ali estava, percorrendo o
bosque em todas as direcções, ora rindo, ora chorando de raiva,
atacando furiosamente os carvalhos e dançando em volta das
árvores... Uma vez - foi no Outono - olhei pela janela quando «ele»
estava no bosque. Oh!, que furioso se pôs quando viu que eu olhava!
Aproximou-se da janela e atirou-me para cima um tronco de pinheiro.
Por pouco me não feriu na cara; diabos o levem! Mas eu não era tão
tonto como isso; quando o vi aproximar-se, escapei-me. Que furioso
estava, rapaz!
- Como é ele?
- Como um velho salgueiro que cresce no pântano. Parece-se
muito com ele. Os seus cabelos são como as folhas; as barbas
também; o seu nariz, como um ramo curvo... Uf, que feio é! Não
desejaria a nenhum cristão que se parecesse com ele, palavra de
honra!... Noutra ocasião vi-o no pântano, muito de perto. Se queres,
vem um dia de inverno, talvez o vejas também. Sobe a esta montanha
que fica aqui por trás e trepa a uma árvore alta. Às vezes, pode ver-
se dali. Aproxima-se como uma coluna de fumo branco por cima do
bosque, e girando em volta de si mesmo, desce da montanha ao vale.
Dá algumas voltas a correr, e depois desaparece no bosque. Durante
a sua caminhada cobre com neve as suas pegadas que vai deixando
atrás. Se me acreditas, vêm vê-lo tu mesmo.
O velho estava visivelmente satisfeito da sua narrativa, como se
a agitação do bosque e o furacão suspenso no ar, lhe reanimassem o
velho sangue. Abanava a cabeça, sorria, e piscava os olhos.
De súbito, a sua testa enrugada ensombrou-se. Deu-me uma
cotovelada e disse em tom misterioso: - Sabes o que te digo? O
«demónio do bosque» é muito feio; um bom cristão não deve nem
sequer olhar para semelhante criatura; mas devemos ser justos: não
faz mal a ninguém. Às vezes prega a sua partida; mas o homem não
tem razão para se queixar dele.
- Seja, avô, mas pelo que tu mesmo disseste ele, uma vez, quis
magoar-te na cara.
- Sim, é verdade, mas isso foi porque o enraiveceu muito que
estivesse a vê-lo da janela. Mas se alguém se não mete nos seus
assuntos, nunca fará o menor dano. «Ele» é assim! E, no entanto,
aqui no bosque, os homens fizeram coisas muito mais horrorosas;
podes acreditar-me.
Baixou a cabeça, e durante alguns minutos permaneceu
embrenhado nas suas reflexões. Quando levantou os olhos e me
olhou, notei neles como que um relâmpago da memória passada.
- Vou contar-te rapaz uma história que aconteceu aqui mesmo
neste bosque. Há muito, muito tempo... Lembro-me dela como dum
sonho vago; mas quando o bosque começa a agitar-se, a minha
memória torna-se mais clara...
Queres que te conte?
- Sim, sim, avô! Com muito gosto!
- Pois seja, Escuta...

II
Tenho que te dizer que os meus pais morreram quando eu era
ainda muito pequeno. Deixaram-me completamente só neste vasto
mundo. Triste situação! O nosso município não sabia o que fazer de
mim, e o fidalgo também não. Pois bem, precisamente naquele
momento veio do bosque à aldeia o guarda-florestal Román, e disse
aos do Conselho:
- Dêem-me o rapaz. Eu sustento-o. Aborreço-me de estar só no
bosque.
Os nossos vizinhos puseram-se muito contentes.
- Leva-o! - disseram logo.
E trouxe-me para sua casa. Desde então tenho vivido sempre
neste bosque.
Román foi quem me educou. Era um homem terrível, Deus me
perdoe. Enorme, com olhos negros e a alma também negra; tinha
passado toda a vida, só, no bosque.
A gente dizia que os ursos eram como irmãos dele, e os lobos
seus sobrinhos. Conhecia todas as feras e não as temia; mas fugia
dos homens e nem sequer os olhava... Era assim aquele Román!
Quando me olhava eu tinha a sensação de que um gato me passava a
cauda pelo pescoço. No entanto não era mau, e dava-me bastante
bem de comer; às vezes até me assava patos. Quanto a isso, não
tinha de que me queixar, não!
Pois bem, assim vivíamos os dois. Quando Román ia para o
bosque deixava-me em casa fechado à chave, com medo que as feras
me devorassem... Além disso, tinha uma mulher...
Foi o fidalgo quem lha deu. Um dia chamou-o a sua casa e
disselhe: - Casa-te, Román!
- Para quê? - perguntou Román. - Que se case o diabo que eu
não quero. Não sinto a mínima falta duma mulher lá no bosque, tanto
mais que já tenho em casa um filho. Não estava acostumado a
mulheres e não as queria.
Mas o patrão era mau: Quando me lembro dele, quero crer que
não há hoje senhores semelhantes. Não, não os há! Por exemplo tu:
dizem que és de origem nobre; talvez seja verdade mas nada há de
senhorial em ti... Um bom rapaz e nada mais. Mas o outro, este de
que te estou falando, era um verdadeiro senhor à moda antiga. O
mundo é assim: centenas de homens têm medo dum único, e que
medo! Compara um gavião a um frango: ambos saíram dum ovo; mas
o gavião voa até ao céu, e quando grita, não só os frangos mas até os
galos começam a tremer. Pois bem o gavião é um pássaro senhorial,
e o frango é um simples camponês.
Lembro-me ainda de quando era pequeno; uns camponeses,
trinta homens pelo menos, transportavam em carros grandes vigas;
pelo mesmo caminho passava o senhor, montado no seu cavalo,
acariciando o bigode. Ao vê-lo, os aldeãos assustavam-se, fustigavam
os seus cavalos para que deixassem o caminho livre e encostavam os
carros a um lado, na fundura da neve. Depois passavam grandes
trabalhos para tirarem os carros de lá.
E o senhor passeava tranquilamente pelo largo caminho,
perfeitamente à vontade. Deus meu, como era severo! Os mujiks
tremiam ante o seu olhar. Quando ria, toda a gente ficava contente;
quando carregava o sobrolho, tudo em seu redor se tornava sombrio.
Não havia ninguém que se atrevesse a contrariá-lo.
Mas Román, que tinha passado toda a vida no bosque, não
compreendia estas coisas e o senhor perdoava-lhe muito.
- Quero que te cases - disselhe o senhor. - Não me perguntes
porquê. Casa-te com Oxana.
- Não quero! - respondeu Román. - Não preciso dela. Que se
case o diabo com ela, que eu não quero!
O senhor ordenou que trouxessem as vergastas. Deitaram
Román ao chão.
- Queres casar-te? - perguntou o senhor.
- Não!
- Está bem! Dá-lhe mais vergastadas, mas das boas!
E deram-lhe tantas que ele já não podia mais, e era um mocetão
bastante duro.
- Deixem-me! - gritou ele. - Que o diabo leve essa mulher!
Nenhuma mulher vale que se sofra tanto por causa dela.
- Está bem, caso-me.
No território senhorial vivia um caçador, Opanas Schvidky.
Voltava do campo precisamente nessa altura. Quando se
inteirou de que obrigavam Román a casar-se com Oxana, caiu de
joelhos diante do fidalgo e beijou-lhe a mão.
- Em vez de martirizar esse homem - disse, - permite-me que
case eu com Oxana. Que homem aquele!
Román estava muito contente. Levantou-se, vestiu as calças e
disse: - Isto vai bem! Podias ter chegado um pouco mais cedo!
Vamos, senhor, estáveis equivocado, devíeis primeiro ter
perguntado se havia alguém que quisesse casar-se de livre vontade.
Mas em vez disso, mandais desancar um pobre homem. Os bons
cristãos não procedem assim...
Román às vezes sabia dizer as verdades, até ao próprio fidalgo.
Quando se aborrecia, toda a gente tinha medo dele, inclusive o
fidalgo. Dessa vez, o fidalgo tinha lá a sua ideia: deu ordem para que
deitassem de novo Román ao chão.
- Quero fazer a tua felicidade, grande animal! - disse ele.
- Agora estás só no bosque e eu não tenho nenhum desejo de ir a
tua casa... Dai-lhe outras tantas vergastadas até que se canse. E tu,
Opanas, vai para o inferno! Ninguém te convidou e não tens portanto
o direito de te sentares à mesa; mas se estás muito interessado,
mando-te servir o mesmo prato que a Román.
Román estava aturdido. Os açoites faziam-lhe doer muito.
Antigamente davam-se a valer! Suportou o martírio um longo
bocado; mas por fim, acabou por cuspir indignado, e gritou:
- Seria demasiada honra para essa maldita Oxana que por sua
causa dessem açoites a um cristão! Basta! Eu não sou nenhuma
besta de carga para que me tratem assim! Já que tem de ser, bem:
caso-me!
O fidalgo ria às gargalhadas.
- Até que enfim, te tornaste razoável! - disse. - A verdade é que
não te poderás sentar junto da noiva no dia da boda; mas em
contrapartida hás-de poder dançar.
Gostava de pregar partidas o nosso fidalgo. Mas teve um fim
triste. Que Deus livre todos os homens cristãos dum fim semelhante!
Não, eu não o desejaria a ninguém, nem mesmo a um judeu!...
Assim um dia Román se viu casado. Levou a rapariga para a sua
choça do bosque. Nos primeiros dias não fazia senão ralhar-lhe,
deitando-lhe em cara as vergastadas que tinha recebido por sua
causa: Não está certo de que por ti, se martirize assim um bom
cristão!
Sempre que voltava do bosque, começava por querer expulsá-la
de casa.
- Vai-te, não quero nenhuma mulher em minha casa! Não gosto
que nenhuma mulher durma comigo, porque cheiram mal... Até isso
dizia!
Mas depois, a pouco e pouco, foi-se habituando. Oxana punha a
casa em ordem, varria, lavava, tudo andava limpo e arrumado.
Román sentia-se contente e já não ralhava. Não só se reconciliou
com ela, mas começou a amá-la. Palavra de honra! Até ele próprio se
admirou.
- Devo dar graças ao senhor que me ensinou a ser razoável -
dizia depois. - Deus meu, como fui tonto! Receber tantos açoites, e
porquê. Agora compreendo que fazia mal negando-me a casar. Estou
muito contente por possuir Oxana. Mesmo muito contente!
Passaram semanas e meses. Um dia vi que Oxana se sentou num
banco e começou a gemer. Pela noite sentiu-se muito mal. No dia
seguinte de manhã com grande surpresa minha, ouvi o choro duma
criança. «Toma! Já temos uma criança em casa!», disse a mim
próprio. E não me enganava.
A criança não viveu muito tempo: até à noite, mais nada.
Quando anoiteceu, já não se ouvia. Oxana começou a chorar.
Román disselhe:
- Pronto, acabou-se! Já não temos o menino! Mas não vale a
pena chamar um padre, nós mesmos o enterraremos debaixo dum
pinheiro.
Román atreveu-se a dizer isto! E não apenas a dizê-lo, mas a
fazê-lo: fez uma cova e enterrou o menino. Vês aquele velho tronco,
acolá? São os restos dum pinheiro que foi abrasado por um raio. Foi
ali precisamente que Román enterrou a criança. E ouve o que te vou
dizer, rapaz: quando se põe o sol e aparece no céu a primeira
estrela, um passarito voa por cima daquele sítio lançando gritos
lancinantes. Parte-se-me o coração ao ouvir esses gritos. Pois bem,
esse passarito é a alma penada do menino que foi enterrado sem
sacramentos, e suplica que se lhe ponha uma cruz.
Disseram-me que só um sábio que conheça os livros santos
poderá salvar essa alminha em pena; e só então deixará de lançar
gritos lancinantes. Nós os que aqui estamos, não sabemos nada e
nada podemos fazer por ela. Quando voa por cima de nós pedindo
uma cruz, dizemos-lhe unicamente: «Vai-te, pobre alminha, que nada
podemos fazer por ti!» Recomeça a voar, chorando, e volta sempre
outra vez. Ah, bom moço, que digna de compaixão é aquela alminha
penada!
Oxana esteve muito tempo doente. Quando se restabeleceu um
pouco, passava horas inteiras sobre a tumba de seu filho. Meu Deus,
o que ela chorou! Ouviam-se no bosque inteiro os seus lamentos! E
não havia maneira de consolar a pobre... Román mostrava-se
indiferente à perda do menino; só lamentava Oxana. Quando a via
chorar, dizia-lhe:
- Cala-te mulher estúpida! Não tens razão para chorar.
Aquele menino morreu, mas talvez tenhamos outros, e talvez
sejam melhores do que aquele. Porque o menino morto, pode ser que
não fosse meu... Eu não sei nada, mas a gente diz muitas coisas... E
outro, com certeza que será meu...
Oxana não gostava de o ouvir falar assim. Punha-se muito, muito
zangada, e começava a dizer-lhe coisas terríveis.
Román não a tomava a sério.
- Fazes mal em gritar - dizia tranquilamente a Oxana. - Eu não
afirmo coisa nenhuma; digo apenas que não sei se era meu. Porque,
repara bem, dantes não eras minha nem vivias no bosque, mas entre
os outros. Posso lá saber o que se passou? Agora que estás aqui
comigo, sinto-me mais seguro; mas antes... Há alguns dias, quando
fui à aldeia, uma mulher disseme: «Que depressa que fizeste um
filho!» Compreendes?... Basta de chorar e de gritar! Cala-te, senão
bato-te!
Oxana limpava as lágrimas à pressa e calava-se. Verdade é que
às vezes permitia-se responder a Román e até dar-lhe um golpe; mas
quando ele se zangava a valer, tinha-lhe medo. Nesses momentos,
enchia-o de beijos e carícias; olhava-o com ternura, nos olhos, e
Román não tardava a acalmar-se. Tu, bom moço, talvez não
compreendas isto, mas eu que já vivi muito, compreendo. E posso
garantir-te que as mulheres sabem acariciar de tal jeito, com tal
arte, que um homem furioso se torna como um cordeiro. Sim, sim! Já
vi mulheres dessas! E Oxana era tão bela que não havia outra igual.
As mulheres não são todas iguais.
Pois bem; uma vez ouviu-se no bosque uma buzina de corno:
tra-ta, tará-tará, ta, ta, ta,! Todo o bosque se encheu de sons
festivos. Eu era então pequeno e não compreendia o que aquilo
significava. Os pássaros assustados, começaram a voar, cheios de
pânico; as lebres deitaram a correr como loucas em todas as
direcções. Julguei que fosse alguma fera a rugir. Mas não era
nenhuma fera; era o fidalgo que montado no seu cavalo, tocava o
corno. Numerosos caçadores, também a cavalo, seguiam-no,
conduzindo muitos cães de caça. E o mais formoso era Opanas
Schvidky, o primeiro depois do fidalgo. Vestia um traje azul, um
schapka com franjas douradas, uma magnífica espingarda ao ombro e
um alaúde amarrado às costas. O fidalgo gostava muito de Opanas
porque tocava alaúde admiravelmente e cantava canções muito
bonitas. Além disso era belo. Que belo era! O fidalgo, comparado
com Opanas era muito feio: calvo, com o nariz vermelho, os olhos
cinzentos nada bonitos. Opanas era um grande conquistador de
corações. Até eu mesmo quando o olhava sentia vontade de sorrir; já
podes pois imaginar o efeito que produzia nas mulheres. Disseram-
me que os pais e avós de Opanas eram cossacos, do sul da Rússia,
livres como o vento, e todos galhardos, fortes e belos. É lógico: não
se viam obrigados a trabalhar rudemente no bosque como nós, não
faziam mais nada senão montar a cavalo e correr, rápidos, pelos
campos e estradas, de lança às costas...
Pois bem; saí e vi o fidalgo e toda a comitiva, que parou diante
da casa. Román ajudou o senhor a descer do cavalo e cumprimentou-
o.
- E tu como vais, Román? - perguntou o senhor.
- Nada mal, obrigado! - respondeu o outro. - E vós como estais?
Decididamente não sabia como falar ao fidalgo. Todos os
presentes se riram.
- Muito folgo de que tudo corra bem na tua casa - disse sorrindo
o senhor. - E a tua mulher, onde está?
- Onde há-de estar? Lá dentro, como é natural.
- Então, entremos - disse o senhor.
E dirigindo-se aos seus homens acrescentou:
- Entretanto, ponde almofadas sobre a erva e preparai tudo
quanto for necessário para felicitar os jovens esposos.
E seguido por Opanas e por Román que levava nas mãos a sua
schapka, entrou em casa. Pouco depois, entrou também Bogdan, o
fiel servidor do senhor. Já não há também servidores semelhantes;
para com os outros criados era extremamente severo, mas para com
o fidalgo era dócil como um cão. Só o fidalgo existia para ele.
Contaram-me que depois da morte de seus pais Bogdan quis casar-
se, mas o pai do fidalgo não o consentiu e fez dele uma espécie de
ama do filho. «Este é o teu pai, a tua mãe, e a tua mulher - disselhe
ele. - Cuida bem dele». Bogdan resignou-se; foi criado, ama e
mordomo do jovem fidalgo; ensinou-o a montar a cavalo e a atirar
com espingarda; depois que o pequeno amo se tornou homem,
continuou a servi-lo dócil e fielmente como um cão. E não to quero
ocultar: todos os que rodeavam Bogdan, o detestavam e o maldiziam
porque fazia muito mal aos pobres. Para contentar o seu senhor,
teria sido capaz de matar o próprio pai.
Depois, entrei em casa, também: era tão curioso! O fidalgo
acariciava o bigode e sorria com ar de satisfação. Román estava a
seu lado com o schapka na mão.
Opanas, encostado à parede, sombrio e pensativo, parecia um
jovem castanheiro sob a tempestade.
Qualquer dos três olhava para Oxana. Só o velho Bogdan,
sentado num canto, esperava ordens do seu senhor. Oxana estava de
pé, junto da lareira, com os olhos baixos, muito corada. Dir-se-ia que
a pobre tinha o pressentimento de que ia acontecer alguma desgraça
por causa dela. É sempre o mesmo: quando três homens se
interessam por uma mulher, nada pode resultar de bom.
Têm que acabar fatalmente em luta. Isto sei eu, que já vi muitas
coisas...
- Bem, Román, estás contente com a mulher que te dei? -
perguntou o senhor.
- Sim. Não tenho de que me queixar.
Opanas olhou para Oxana e disse muito baixo:
- És demasiado bruto para apreciar uma mulher como esta!
Román ouviu-o, e, voltando-se para Opanas, perguntou-lhe:
- Ora diga-me: Porque lhe pareço eu tão bruto?
- Porque nem sabes guardar a tua mulher! - respondeu Opanas.
Que palavras tão graves tinha pronunciado! O fidalgo cheio de
cólera, bateu com o pé no chão; o velho Bogdan voltou a cabeça, e
Román, tendo reflectido um instante, ergueu a cabeça e olhou para o
fidalgo.
- E de quem tenho que guardar a minha mulher? - perguntou
sem deixar de o olhar. - Das feras, guardo-a eu; diabos, não os há
pelo bosque. Do senhor, que vem por aqui algumas vezes?! Portanto,
que tenho eu a temer? Tem cuidado - continuou, ameaçando Opanas;
- não digas coisas dessas senão queres arrepender-te.
Um pouco mais e teriam começado a lutar; mas o fidalgo
interveio, prevendo as consequências da disputa.
- Calai-vos - ordenou. - Não viemos aqui para discutir.
Temos que felicitar os jovens esposos e depois, à noite,
começará a caçada. Vamos!
Saiu. Os criados já tinham preparado tudo debaixo das árvores.
Bogdan seguiu o amo. Opanas deteve Román no limiar da porta.
- Não te zangues, valente! - disse o cossaco. - Escuta o que te
quero dizer: Viste como supliquei de joelhos ao fidalgo que me
deixasse casar com Oxana? Não consentiu, paciência. Nada se pode
contra o destino. Mas... não posso permitir que o nosso comum
inimigo, o fidalgo, troce dela e de ti. Não o posso consentir. Estou
disposto a tudo. Tu ainda não conheces bem Opanas. Antes que
Oxana caia nos braços desse miserável, matá-los-ei aos dois. Que a
sepultura lhes sirva de leito!...
Román olhou fixamente o cossaco e perguntou-lhe:
- Diz, não estás louco?
Não ouvi o que o outro respondeu. Estiveram um longo bocado
falando em voz baixa. Finalmente Román bateu amigavelmente no
ombro de Opanas.
- Ah, meu amigo! Como a gente é má! Eu que vivi sempre aqui
no bosque, nem sequer o suspeitava. Se é verdade o que acabas de
me dizer, o nosso fidalgo vai pagá-lo bem caro...
- Bom, - disse Opanas, - agora desaparece e procede como se
nada soubesses. Sobretudo, que esse velho ascoroso do Bogdan de
nada desconfie. Tu és esperto, mas esse cão tem um faro! Não bebas
do vodka do fidalgo. E se te quiser mandar caçar, para ficar só na
choça, leva os caçadores até ao sobreiro velho, diz-lhes que avancem
sozinhos e que te irás juntar a eles por outro caminho mais curto. Em
seguida, voltas aqui.
- Bem - fez Román; - hoje vou abater uma bela peça. Vou
carregar a espingarda com as balas que emprego para os ursos.
Saíram ambos. O fidalgo estava sentado sobre um tapete, com
uma garrafa e um copo nas mãos. Encheu um copo e estendeu-o a
Román. O vodka do fidalgo era delicioso; depois do primeiro copo,
sentia-se alma nova; depois do segundo, o paraíso abria-se diante de
qualquer mortal, e, se o mortal não estava habituado a beber, ao
terceiro caía por terra.
Era muito engraçado, o fidalgo! Queria emborrachar Román
com o seu vodka; mas Román tinha uma cabeça firme e nenhum
vodka do mundo teria sido capaz de lhe roubar a razão. Bebeu o
primeiro copo, o segundo, e o terceiro; não produziram nele o
mínimo efeito. Apenas os seus olhos brilhavam mais que o costume,
como os dum lobo. O fidalgo ficou aborrecido.
- És o diabo! Dir-se-ia que bebes todos os dias vodka em vez de
água. Outro, no teu lugar, já teria lágrimas nos olhos, e ele sorri...
O fidalgo sabia muito bem que se alguém começasse a chorar
depois de ter bebido, não tardaria a cair como morto. Mas desta vez
tinha-se enganado.
- Não tenho motivos para chorar - disse Román. - O nosso
fidalgo veio felicitar-me e eu seria o último dos canalhas se
começasse a chorar como uma velha. Graças a Deus, não tenho
razões para chorar. Prefiro que sejam os meus inimigos a verter
lágrimas.
- Então, vives satisfeito? - perguntou o fidalgo.
- E porque não havia de estar satisfeito?
- Lembra-te dos açoites que tive de te dar para que te casasses?
- Se me lembro! Nessa altura era um parvo e não sabia o que
era amargo nem o que era doce. O açoite era amargo e, no entanto,
preferia-o a esta mulher! Hoje, dou-vos graças, bondoso fidalgo por
me teres ensinado a apreciar o mel.
- Bem, bem - respondeu o senhor. - Para melhor mo
agradeceres, irás com os meus caçadores e trar-me-ás muita caça.
- Quando quereis que partamos?
- Vamos beber mais um bocadinho - respondeu o fidalgo. -
Opanas vai cantar-nos alguma coisa e depois partiremos.
Román olhou-o e contestou:
- Isso vai ser difícil; faz-se tarde e o pântano está muito longe
daqui... Além disso o ruído do bosque anuncia tempestade, o com
este tempo é difícil caçar.
O senhor estava já um pouco borracho, e quando estava assim,
aborrecia-se facilmente. Ao ver que todos os que ali estavam, davam
razão a Román, dizendo que o tempo mostrava má cara, encheu-se
de cólera, deu um soco para o ar... e toda a gente se calou.
Opanas era o único que não tinha medo do fidalgo. Agarrou no
alaúde, deu uns acordes, e, olhando fixamente o senhor, disse: -
Reflecte bem, meu senhor; não se manda ninguém caçar quando
sopra a tempestade; e sobretudo à noite.
Era muito corajoso aquele Opanas! Os outros tremiam diante do
senhor; para ele, não valia um caracol. Era um cossaco livre. Quando
ainda era muito pequeno um velho músico trouxe-o da Ucrânia para
ali. Havia guerra na Ucrânia nessa altura; ao velho cossaco que caiu
prisioneiro, arrancaram-lhe os olhos, cortaram-lhe as orelhas e
disseram-lhe: «Podes ir para onde quiseres». Como não via, andava
acompanhado por uma criança, o próprio Opanas. O pai do fidalgo
tomou-o ao seu serviço. E desde então, vivia Opanas ali. O fidalgo
actual queria-lhe muito e perdoava-lhe coisas que nunca teria
perdoado a qualquer outro.
Mas desta feita zangou-se muito com Opanas. Todos tinham a
certeza de que lhe ia bater; mas em vez disso, disselhe apenas: -
Escuta, Opanas! És demasiado inteligente para compreender que
ninguém pode meter o nariz numa porta já aberta.
O cossaco compreendeu imediatamente o que ele queria dizer e
respondeu ao senhor com uma canção. E se o fidalgo tivesse
compreendido igualmente a canção do cossaco, a mulher dele não
teria certamente de verter lágrimas sobre a sua sepultura.
- Para te agradecer a lição que acabas de me dar, senhor, vou
cantar-te alguma coisa. Escuta!
E fez vibrar as cordas do seu alaúde.
Levantou imediatamente a cabeça, olhou para a águia que
sobrevoava o bosque e contemplou as nuvens empurradas pelo
vento; escutou o gemido dos altos pinheiros e de novo fez soar as
cordas do seu alaúde.
Ah, bom moço, tu não tiveste a dita de ouvir tocar Opanas, e já
não a podes ter. O alaúde não é um instrumento muito complicado;
mas quando se sabe manejar, fala com uma voz eloquente. Bastava
que Opanas lhe tocasse com as mãos, e ele dizia tudo: como se agita
o bosque debaixo da tempestade, como o vento sacode a erva seca, e
como choram os salgueiros sobre a tumba dum cossaco.
Não, bom moço, vocês não ouvirão jamais uma música como
aquela! Chegam para estes lados, com frequência, pessoas que viram
alguma coisa, que passaram por Kiev, Poltava, e por toda a Ucrânia,
e todos garantem que já não há bons tocadores de alaúde, nem nas
feiras e romarias. Eu tenho um alaúde. O próprio Opanas me ensinou
a tocá-lo. Mas quando eu morrer, o que já não tarda muito, em
nenhuma parte do mundo se saberá tocar bem alaúde.
Opanas pôs-se a cantar uma canção, acompanhando-se ao
alaúde. A sua voz era doce e melancólica e penetrava directamente
nos corações. Aquela canção, tinha-a improvisado expressamente
para o fidalgo. Eu supliquei-lhe depois que a cantasse outra vez, mas
ele não quis.
- Aquele para quem a cantei já não existe - dizia. - Não vale a
pena voltar a cantá-la.
Nesta canção dizia ele ao fidalgo, toda a verdade, tudo o que
iria acontecer. O fidalgo ao ouvi-la chorava, mas, provavelmente, não
entendeu o seu significado.
Lembro-me várias vezes dessa canção. Ouve estes bocadinhos:
Tu sabes muitas coisas oh, Ivan, meu senhor!

Tu sabes muitas coisas.


Tu sabes que o gavião
é mais forte do que o corvo
mas talvez não saibas
que às vezes acontece
exactamente ao contrário.

Quando o gavião ataca o ninho


do corvo e este se defende,
é o corvo o mais forte!
oh, Ivan meu senhor!
Lembro-me de tudo isto como se tivesse sido ontem: o cossaco
com o seu alaúde, de pé, junto duma árvore; o fidalgo sentado sobre
o tapete com a cabeça baixa e lágrimas nos olhos; os criados
emocionados, dando-se cotoveladas uns aos outros; o velho Bogdan
abanando a cabeça. O bosque agitava-se como agora; o alaúde
lançava sons plangentes, e Opanas cantava, na sua canção, como a
mulher do fidalgo havia de chorar na sua tumba:

A pobre mulher chora


chora lágrimas de fogo
sobre a tumba fria
onde jaz o esposo.
E o corvo voa por cima,
grasnando sem cessar.

Mas o senhor não compreendeu a canção. Enxugou as


lágrimas e exclamou: - Eh, Román, em marcha! Montai todos a
cavalo! Tu Opanas irás com eles; já estou farto das tuas canções! É
muito linda essa tua canção, mas o que contas nela, nunca pode
acontecer.
O próprio Opanas estava comovido com a canção. O coração
abrandava-se-lhe, os olhos estavam velados pelas lágrimas.
- Não, meu senhor - disse. - Os nossos antepassados
acreditavam que as canções dizem sempre a verdade, como nos
contos; mas a verdade contida nos contos é como o ferro, que à força
de passar de mão em mão, se cobre de ferrugem; enquanto que a
verdade da canção é como o ouro, que não cria ferrugem. Foi isto
que me ensinaram os mais velhos que eu!
O fidalgo fez um gesto de desprezo.
- Talvez seja verdade, lá na vossa terra, mas aqui... Basta de
conversas! Desaparece, Opanas!
O cossaco permaneceu um momento sumido em reflexões;
depois, subitamente, caiu de joelhos - Escuta-me, senhor! Monta a
cavalo e volta para casa, para junto da tua mulher. O coração diz-me
que vai acontecer uma grande desgraça.
Então o fidalgo teve uma fúria terrível; afastou o cossaco com
um pé, como se ele fosse um cão.
- Deixa-me em paz! Vai-te! Pareces uma velha carpideira e não
um cossaco! Vai-te, ou não respondo por mim!
E depois, dirigindo-se aos outros:
- E vós, porque continuais aqui? Ou será que já não sou o vosso
amo? Tende cuidado, se me zango deveras!...
Opanas levantou-se sombrio e ameaçador, como uma das
nuvens que se amontoavam sobre o bosque. Trocou um olhar com
Román, que continuava de pé, um pouco afastado, com as mãos
apoiadas na espingarda, perfeitamente tranquilo.
O cossaco deu com o seu alaúde uma pancada formidável contra
uma árvore, e o alaúde partiu-se em mil pedaços com um gemido
sonoro.
- Que o próprio diabo diga a verdade àquele que não quer
escutar bons conselhos! - gritou. - Tu, fidalgo, não quiseste acreditar
num servidor fiel... Pior para ti!
E naquele mesmo instante Opanas saltou sobre o seu cavalo e
partiu. Os outros caçadores fizeram o mesmo. Román pôs a arma ao
ombro e partiu também. Ao passar junto da casa, gritou a Oxana:
- Deita o rapaz, já é tarde! E prepara a cama ao fidalgo!
Em poucos minutos toda a gente tinha desaparecido a caminho
do bosque. Não ficou ali ninguém além do fidalgo que entrou logo em
casa; o cavalo ficou atado a uma árvore. Pouco a pouco desciam as
trevas da noite. A chuva começou a cair, como agora.
Oxana deitou-me na palha, e obrigou-me a fazer o sinal da cruz.
Vi que chorava.
Eu era demasiado criança, e não compreendia nada do que se
passava à minha volta. Depressa adormeci, debaixo do ruído
monótono da tempestade.
Subitamente acordei e vi que alguém rondava a casa.
Aproximou-se da árvore e desatou o cavalo, que começou a
cavar a terra com o pé, e, a relinchar, fugiu para o bosque. Depois
voltei a ouvir alguém, a cavalo, que se acercava também da casa.
Chegou até à porta, saltou para terra e espreitou pela janela.
- Senhor! - gritou Bogdan, pois era ele: reconheci-lhe a voz. -
Senhor, abre imediatamente. Esse maldito Opanas trama qualquer
coisa contra ti! Desatou o teu cavalo que fugiu para o bosque!...
Mal tinha dito isto, quando alguém o agarrou por trás. Ouvi o
ruído dum corpo que caía.
O fidalgo abriu a porta com a sua espingarda na mão; mas, à
entrada da porta, Román agarrou-o e atirou-o ao chão.
O fidalgo compreendeu que aquilo tomava mau caminho e disse:
- Largame, Román! É assim que me agradeces o bem que te tenho
feito?
Román respondeu-lhe:
- Sim, canalha; lembro-me perfeitamente do que fizeste por mim
e por minha mulher, e agora vou-to pagar.
Então o fidalgo disse:
- Defende-me Opanas, meu fiel servidor. Sempre me amaste
como um filho!
Mas Opanas respondeu:
- Escorraçaste-me como a um cão! É verdade que gostaste de
mim... Como o pau gosta das costas em que bate. Agora gostas de
mim como o pau, das costas... Roguei-te, supliquei-te e não fizeste
caso de mim.
Então o senhor virou-se, implorando para Oxana:
- Tu, que tens tão bom coração, defende-me!
Oxana saiu, desesperada, e pôs-se a chorar mais forte.
- Também eu te roguei, e me arrastei a teus pés, suplicando-te
que não me desonrasses, que não me cobrisses de vergonha. E tu
foste implacável. Que posso eu fazer por ti, desgraçada de mim?
- Deixai-me! - gritou novamente o fidalgo. - Senão, hão-de
morrer todos desterrados na Sibéria.
- Nada receies por nós - respondeu Opanas. - Román estará no
pântano antes dos teus caçadores, e eu, estou só no mundo e não
tenho medo de ninguém. Com a minha espingarda ao ombro irei por
esses bosques.
Organizarei uma quadrilha de rapazes valentes como eu, e, os
ricos que tenham cautela! Percorreremos os caminhos em busca dos
seus despojos e se o acaso nos levar a qualquer aldeia, não
deixaremos de visitar o castelo senhorial... Eh, Román, vamos pôr
sua Senhoria debaixo da chuva... para se refrescar um pouco!...
O senhor começou a lançar verdadeiros alaridos; mas nem
Román nem Opanas se preocuparam com isso, atiraram-no para fora
de casa. Cheio de pasmo, eu tinha-me atirado pra cima de Oxana que
permanecia sentada num banco no interior da casa, branca como a
neve, chorando.
A tempestade tornou-se muito mais violenta. O bosque gritava
com mil vozes; o vento soprava enraivecido. De vez em quando
ouvia-se o trovão. Eu e Oxana, apertados um contra o outro,
continuávamos sentados, imobilizados pelo terror. De súbito ouvimos
um gemido no bosque. Era tão doloroso que ainda hoje, passados
tantos anos, se me oprime o coração quando penso nele.
- Oxana querida, quem geme tão dolorosamente no bosque? -
perguntei.
Apertou-me nos seus braços e embalando-me como a um menino
de colo, disseme: - Dorme, meu filho, não é nada... É o ruído do
bosque...
Era verdade, o bosque estava muito agitado.
Passados poucos instantes ouvi um tiro.
- Oxana querida, quem é que está a disparar?
Respondeu-me sem parar de me embalar:
- Cala-te meu filho; é o trovão de Deus!...
E a pobre mulher apertava-me contra o seu coração, chorava
lágrimas ardentes e não se cansava de repetir: - É o ruído do bosque,
meu filho... É o ruído do bosque...
E assim me fiquei, adormecendo nos seus braços.
No dia seguinte de manhã, abri os olhos e vi que o sol inundava
tudo. Oxana dormia, vestida, sobre o banco. Não havia ninguém em
casa. Lembrei-me do que se tinha passado na véspera e comecei a
julgar que se tratava dum pesadelo.
Mas aquilo não tinha sido um sonho, mas a pura realidade!
Saí para o bosque. A erva brilhava, os pássaros cantavam.
De repente, vi numa moita dois corpos: o do fidalgo e do velho
Bogdan, um junto do outro. O rosto do primeiro estava sereno e
pálido; o do segundo severo, como quando vivia. Ambos tinham
manchas de sangue.
O velho baixou a cabeça e calou-se.
- E que foi feito dos outros? - perguntei.
- Sucedeu o que tinha previsto Opanas. Este, durante muito
tempo habitou o bosque; percorria os caminhos com outros rapazes
e atacava os castelos senhoriais.
Era o seu destino: os seus avós também tinham sido bandidos.
Às vezes vinha a nossa casa, a esta mesma casita, especialmente
quando Román não estava. Sentava-se num banco, pegava no alaúde
e cantava-nos canções. Outras vezes vinha com os camaradas.
Román e Oxana recebiam-no sempre muito bem. Para dizer toda a
verdade, havia ali alguma coisa que não estava certa; daqui a pouco
chegam Zajar e Máximo. Olha bem para eles. Eu não lhes digo nada.
Mas qualquer pessoa que tenha conhecido Román e Opanas, verá
imediatamente com quem se parecem. Com Román não. E foi isto o
que se passou neste sítio há tanto tempo... Ouves como se agita o
bosque? A tempestade vem aí; anda por cima dele, não há dúvidas.

III
O velho estava visivelmente cansado; a sua língua entorpecia-se
cada vez mais; os olhos estavam vermelhos, a cabeça inclinada.
A noite tinha descido sobre a terra. Quase não se via o bosque
que se agitava em redor da casita, como um mar ondulante. As copas
das árvores pareciam as ondas do mar durante uma tempestade.
O ladrar do cão anunciou a chegada dos dois donos da casa.
Os dois guardas do bosque aproximavam-se apressadamente,
seguidos por Motria, que trazia a vaca que julgaram perdida.
Poucos minutos depois estávamos todos no interior da casa.
O fogo ardia alegremente na chaminé e Motria servia a ceia.
Não era a primeira vez que eu via Zajar e Máximo; mas nessa
altura examinei-os com maior interesse. Zajar tinha um rosto
sombrio, sobrancelhas negras que se uniam na testa estreita; havia
nele esse ar de honradez que caracteriza os homens fortes. Máximo
tinha uma expressão franca, grandes olhos cinzentos e cabelos
encaracolados. O seu riso era alegre e contagioso.
- Com que então o velho contou-lhe a história do nosso avô?
- perguntou Máximo
- Contou - respondi.
- Faz sempre o mesmo. Quando o bosque começa a agitar-se ele
recorda o passado. Agora, não poderá dormir.
- É como uma criança! - disse Motria, servindo a sopa ao velho.
Este não compreendia que era dele que se falava. Nalguns
momentos, quando o vento chicoteava a janela, mostrava-se
angustiado e apurava o ouvido como se espionasse alguma coisa,
cheio de espanto.
Depressa se restabeleceu a calma. O archote iluminou
debilmente a habitação. Um grilo cantava junto da parede a sua
monótona canção. Parecia que milhares de vozes, surdas mas
poderosas, discutiam no bosque; forças tenebrosas e ameaçadoras
preparavam-se para se lançar, de todos os lados, sobre a casita, e
elaboravam um plano de ataque. Às vezes, quando aumentava, a
porta tremia como se fosse empurrada do lado de fora. O vento
lançava através da chaminé sonoros lamentos. Depois, a tempestade
calou-se um pouco: por momentos reinou um silêncio pesado e
ameaçador, que cedeu em seguida, ante novos ruídos: dir-se-ia que
os velhos pinheiros tramavam entre si desprender-se da terra e voar
com a tempestade, pelo espaço desconhecido.
Dormi uns instantes. A tempestade seguia o seu curso. O
archote tão depressa se extinguia como se reanimava, iluminando o
compartimento. O velho, sentado no seu banco, olhava em volta como
se esperasse que alguém viesse sentar-se a seu lado. O seu rosto
tinha uma expressão infantil de pasmo e impotência.
- Oxana, minha querida! - balbuciou. - Quem é que geme no
bosque?
Procurou qualquer coisa com a mão e prestou ouvidos:
- Não, não é nada - respondeu a si mesmo. - É a tempestade... É
o ruído do bosque... Nada mais que o ruído do bosque... Passaram
alguns minutos... Os relâmpagos iluminavam de quando em quando as
janelas, por trás das quais se viam árvores, por entre os relâmpagos,
com formas fantásticas. Um daqueles relâmpagos, seguido dum
trovão formidável, fez-nos estremecer a todos.
O velho parecia muito assustado.
- Oxana querida, quem é que está a dar tiros no bosque?
- Dorme, velho! - disse tranquilamente Motria, que também
tinha despertado. - sempre a mesma coisa - acrescentou, dirigindo-se
a mim. Quando a tempestade ruge, chama por Oxana, que há muito
tempo está no outro mundo.
E Motria, bocejou, murmurou uma oração e adormeceu de
novo.
Restabeleceu-se a calma, cortada espaço a espaço pelos ruídos
da tempestade e pelo balbuceio ansioso do ancião.
- É o ruído do bosque!... É o ruído do bosque!... Oxana, minha
querida!...
Pouco depois uma bátega caiu sobre o bosque. O ruído da água
que caía abundantemente, afogava os rugidos do vento e os gemidos
dos pinheiros, sacudidos pela tormenta.
RIO QUENTE
Erskine Caldwell
O cocheiro parou próximo da ponte suspensa e apontou-me a
casa que ficava do outro lado do rio. Três quilómetros de distância da
estação até ali... Paguei-lhe a importância do frete e saí do carro. O
homem partiu deixando-me só com a noite escura. As luzes do vale
brilhavam como as estrelas, e o rio, largo e verde, e quente, corria a
meus pés. Na escuridão da noite, à minha volta, as montanhas,
erguiam-se como nuvens negras; só pregando os olhos no céu me era
possível ver uns restos do brilho quase apagado do pôr do sol.
A cada passo que dava a ponte rangia e o ímpeto do seu baloiçar
depressa excedeu o do meu andamento. Com aquele oscilar de
pêndulo a descrever arcos de grande amplitude sobre o rio, para me
manter em equilíbrio, era preciso andar depressa, cada vez mais
depressa. Quando, finalmente, avistei na outra margem o ponto onde
a montanha descia abruptamente e mergulhava na água tépida do
rio, segurei com mais firmeza o saco e deitei a correr com quanta
força tinha.
Então, e mesmo depois de pisado o carreiro de cascalho,
confesso que tive medo. Sei que se fosse dia poderia atravessar a
ponte sem qualquer espécie de receio; mas à noite, numa região
desconhecida, com montanhas sombrias fechando-se à minha volta e
um rio largo e verde correndo a meus pés, não conseguia evitar que
as mãos me tremessem e o coração me batesse com mais força no
peito.
Encontrei a casa com facilidade e ri de mim próprio por ter
fugido do rio. Era a primeira casa com que se dava depois de deixar
a ponte e mesmo que não a tivesse reconhecido Gretchen ter-me-ia
chamado. Lá estava nos degraus da porta à minha espera. Ao ouvir a
sua voz tão familiar chamar pelo meu nome envergonhei-me pelo
medo que tive das montanhas altas e do rio que deslizava lá ao fundo.
Gretchen desceu o carreiro e veio ao meu encontro.
- A ponte meteu-te medo, Ricardo? - perguntou, emocionada,
segurando-me o braço com as duas mãos e guiando-me pela vereda
na direcção da casa.
- Acho que sim, Gretchen; mas suponho que dominei o seu
balanço, correndo.
- Toda a gente procede assim a princípio mas, depois de a ter
atravessado uma vez, é como se andássemos sobre uma corda
esticada. Quando era pequena costumava andar sobre cordas
tensas... E tu, Ricardo, não andaste também? Tínhamos uma corda
esticada dum lado ao outro do celeiro, para praticar.
- Também eu o fiz; mas foi há tanto tempo... Agora não sou
capaz...
Chegámos e subimos os degraus que davam para a entrada da
casa. Gretchen guiou-me até à porta. Do interior da casa alguém se
aproximava do átrio; o candeeiro que trazia na mão iluminou a
entrada da casa. Então vi as duas irmãs de Gretchen, de pé, junto da
porta.
- Esta é a minha irmãzinha Ana - disse Gretchen. - E esta é a
Marta.
Mesmo ali, quase às escuras, lhes dirigi algumas palavras;
depois entrámos no átrio. O pai de Gretchen que, junto de uma mesa,
segurava o candeeiro desviou-o um pouco para o lado para melhor
me ver a cara. Não o conhecia.
- O meu pai - apresentou Gretchen. - Ele receava que, com este
escuro, não fosses capaz de dar com a casa.
- Quis ir lá abaixo, à ponte, esperá-lo com uma luz mas Gretchen
disseme que chegaria cá sem dificuldade. Perdeu-se?
Não me custaria nada levar-lhe uma lanterna.
Apertei-lhe a mão e contei-lhe da facilidade com que tinha
encontrado a casa.
- O cocheiro do carro que me trouxe apontou-ma do outro lado
do rio, e nunca mais desviei os olhos da luz. Se a tivesse perdido de
vista andaria a estas horas por aí às escuras, aos tropeções, sujeito a
cair à água.
O homem riu-se de mim por causa de ter medo do rio.
- Não seria grande o mal. O rio é quente. Até no Inverno,
quando gela, quando cai neve, o rio está tão morno como um quarto
confortável. Aqui todos gostamos daquela água.
- Não, Ricardo, não terias caído - disse Gretchen juntando a sua
mão à minha. - Vi-te na altura em que desceste do carro, e se
tivesses dado um passo fora do caminho teria corrido imediatamente
para junto de ti.
Quis agradecer-lhe estas palavras mas ela já subia as escadas
que davam para o andar de cima, e chamava-me. Segui-a, levando o
saco à minha frente. Ao fundo do átrio do andar de cima, em cima de
uma mesa, havia um candeeiro com quebra-luz.
Estava aceso, mas a luz era fraca. Gretchen levou-o e entrou
num dos quartos que ficavam em frente. Estivemos, por momentos a
olhar um para o outro, em silêncio.
- A bilha tem água fresca, Ricardo. Se precisares mais alguma
coisa faze o favor de me chamar. Não sei se o consegui, mas
procurei não esquecer nada.
- Não te incomodes, Gretchen. Que mais podia desejar?
Basta-me estar contigo, nada mais me interessa.
Olhou-me mas depressa pôs os olhos no chão. Durante alguns
minutos nem um nem o outro encontrámos que dizer e ficámos
calados. Quis mostrar-lhe a minha alegria por me encontrar junto
dela, embora fosse apenas por uma noite; depois pensei que podia
falar nisso mais tarde. Gretchen sabia a razão porque eu tinha vindo.
- Fica aqui o candeeiro, Ricardo, e espero lá em baixo, à
entrada, por ti. Vem logo que estejas pronto.
Deixou-me antes que fosse possível oferecer-me para lhe levar a
luz à escada e iluminar-lhe o caminho. Quando peguei no candeeiro,
já ela tinha desaparecido.
Voltei para o quarto, fechei a porta, lavei o rosto e as mãos e
livrei-me da poeira do comboio, esfregando-me com uma escova e
sabão. No toalheiro havia algumas toalhas bordadas à mão. Peguei
numa e enxuguei as mãos e a cara. A seguir penteei-me e tirei do
saco de viagem um lenço lavado. Por fim abri a porta e desci a
escada para ir ao encontro de Gretchen.
O pai estava com ela à porta. Quando me aproximei levantou-se
e ofereceu-me uma cadeira que estava entre ambos. Gretchen puxou
a sua mais para o pé da minha, tocando-me no braço com a mão.
- É a primeira vez que vem aqui, aos montes, Ricardo? -
perguntou o pai voltando-se para mim.
- Sim, senhor, nunca estive a menos de cem quilómetros deste
sítio. Acho a região diferente daquelas que conheço mas estou
convencido de que o senhor pensaria o mesmo a respeito da costa.
Não é verdade?
- Oh, mas o pai viveu em Norfolk - disse Gretchen. - Não viveu,
pai?
- Sim, vivi lá perto de três anos.
Pareceu-nos que queria dizer mais alguma coisa e ambos
esperámos que continuasse.
- O pai é chefe de mecânicos - disseme Gretchen em voz baixa. -
Trabalha nas oficinas do caminho de ferro.
- Sim - afirmou ele, seguidamente. - Tenho vivido em muitos
lugares, mas é aqui que desejo ficar.
O meu primeiro desejo foi o de perguntar-lhe porque motivo
preferia as montanhas às outras regiões, mas de súbito reparei que
tanto ele como Gretchen se tinham fechado num silêncio opressivo.
Sentado entre ambos, pus-me a cismar no caso.
Pouco depois voltou a falar mas não o fazia nem para mim, nem
para Gretchen; falava para qualquer outra pessoa que estivesse
junto da entrada da porta, uma quarta pessoa que, no escuro da
noite, eu não podia ver. Esperei atento e cheio de emoção, que
continuasse.
Gretchen aproximou a sua cadeira da minha algumas polegadas,
e fê-lo com leveza, sem fazer barulho. O bafo quente do rio subia no
espaço e vinha até nós cobrindo-nos, na noite frígida, como se se
tratasse dum cobertor.
- Quando Gretchen e as outras duas irmãs perderam a mãe -
disse ele, falando muito baixo, curvando-se sobre os joelhos e
olhando as águas verdes do rio - quando perdemos a mãe dela, voltei
para as montanhas. Não me foi possível continuar em Norfolk e
Baltimore tornara-se insuportável. Este era o único lugar da terra
onde podia encontrar a paz. Gretchen lembra-se, certamente, da
mãe mas nenhum de vocês é capaz de compreender o que se passa
comigo. A mãe, tal como eu, tinha nascido aqui nas montanhas e aqui
estivemos durante quase vinte anos.
Depois dela ter partido mudei de casa; acreditava
estupidamente que podia esquecer. Mas enganei-me. Enganei-me
certamente. Um homem não pode esquecer a mãe de seus filhos
ainda que saiba que nunca mais voltará a vê-la.
Gretchen chegou-se mais para mim; fiquei preso, não podia
desviar os olhos do seu perfil que, a meu lado, se emoldurava no
escuro. Do rio, nem sequer um murmúrio chegava até nós; só o seu
bafo quente me bastava para pensar que ele corria quase a nossos
pés.
O pai inclinou-se na cadeira até os braços lhe pousarem sobre
os joelhos e olhava para o outro lado do rio, para o cimo da
montanha, como se esperasse que aí aparecesse alguém.
Os olhos estavam fixos num ponto e o feixe de luz que se coava
através da porta enchia-os dum brilho estranho. E brilhavam
também, como fragmentos de estrelas, as lágrimas que lhe rolavam
pela cara abaixo e que, antes de se desfazerem, lhe escaldavam as
mãos trémulas e expressivas.
A seguir, sempre em silêncio, ergueu-se e entrou em casa.
Parou à porta por momentos e a sua sombra enorme caiu sobre
Gretchen e sobre mim. Continuou a andar. Voltei-me e olhei na
direcção em que ele seguia e embora a sua imagem se fosse
esbatendo o que é certo é que não conseguia fitá-la.
Gretchen inclinava-se mais para mim. Apertava nervosamente a
minha mão e esfregou o rosto no meu ombro, como se procurasse
limpar qualquer coisa. Os passos do pai foram-se apagando, até que,
por fim, deixámos de ouvi-los.
Lá em baixo, ao longo da margem do rio, um comboio correu
pelo vale fora, esfarpando com silvos o silêncio da noite. As suas
luzes, através das janelas, faiscaram por momentos no escuro,
dançando no rio verde como luzes polares; e um eco nostálgico rolou
contra as altas encostas da montanha.
Gretchen apertou, com força, a minha mão nas suas, tremendo
até às pontas dos dedos.
- Ricardo, porque vieste ver-me?
A sua voz misturava-se com o ruído do apito metálico do
comboio, que parecia perder-se na distância.
Esperava ver os seus olhos cravados no meu rosto, mas, quando
me voltei para ela, vi que olhava para o fundo do vale, como se
quisesse revolver as águas quentes do rio. Sabia a razão da minha
visita e queria ouvi-la da minha boca.
Agora, nem eu próprio sabia, porque viera vê-la. Tinha gostado
de Gretchen e tinha-a desejado mais do que a nenhuma outra
rapariga das que conheci mas, depois de ouvir o pai falar de amor,
não podia afirmar que a amava. Sim, lamentava ter vindo, depois de o
ouvir falar da mãe de Gretchen como falou. Sabia que Gretchen se
empolgaria, por que me tinha amor; eu é que nada tinha para lhe dar
em troca. Era bela, sim, era muito bela e eu tinha-a desejado. Mas
isso estava esquecido. Agora restava-me a certeza de que nunca
mais voltaria a pensar nela da mesma forma e com as mesmas
razões.
- Diz-me porque vieste, Ricardo.
- Porquê?
- Sim, Ricardo, porquê?
Fecharam-se-me os olhos e o que senti foi a lembrança das
luzes cintilando e correndo, lá em baixo, no vale, a tepidez das águas
do rio deslizando e as carícias dos dedos de Gretchen ao tocarem-me
no braço.
- Ricardo, diz-me porque vieste.
- Nem eu sei porque vim, Gretchen
- Se me quisesses como eu te quero, Ricardo, saberias.
A sua mão tremia na minha. Amava-me, sabia que me amava.
Nem uma dúvida no meu espírito, desde o princípio... Gretchen
gostava de mim.
- Parece-me que não devia ter vindo. Enganei-me Gretchen.
Sim, não devia ter vindo.
- Mas ficas só esta noite, Ricardo. Vais-te embora amanhã de
manhã. Não tens pena de ter vindo por tão pouco tempo? Não tens
pena, Ricardo?
- Não lamento estar aqui, mas não devia ter vindo. Não sabia o
que fazia. Agora sei que não devia ter vindo. Só as pessoas que se
amam mutuamente...
- Mas tu amas-me, embora pouco, não é assim Ricardo? Não era
possível quereres-me tanto como eu te quero. Mas não podes dizer
que me queres, mesmo que pouco seja? Assim sentir-me-ei mais feliz
quando te fores embora.
- Não sei - respondi a tremer.
- Ricardo, por favor...
Prendia firmemente, enleadas as suas mãos nas minhas; de
súbito sentime invadido por qualquer coisa que não sei explicar,
qualquer coisa que me sacudiu. Era como se as palavras que ouvira
ao pai se fossem tornando claras, cada vez mais claras, e fizessem
luz no meu espírito. Até então não podia acreditar que existisse um
amor como o de que ele falara.
Sempre julguei que os homens nunca amavam as mulheres da
mesma forma que uma mulher ama um homem; agora, porém,
verificava que não podia haver diferença.
Permanecemos silenciosos, de mãos dadas, durante algum
tempo. Passava muito da meia-noite, pois as luzes do vale
começavam a apagar-se.
Gretchen junto de mim procurava ler-me no rosto os
pensamentos e poisava a cabeça no meu ombro. Era tanto minha
como é possível uma mulher pertencer a um homem mas, nesta
altura, tinha a certeza que nada me levaria a tirar partido do seu
amor e a abandoná-la, sabendo que não gostava dela como Gretchen
gostava de mim. Não, não acreditava em tal quando cheguei.
Percorrera a enorme distância que nos separava, unicamente para a
ter nos braços durante algumas horas, e depois esquecê-la para
sempre.
Quando achámos que eram horas de recolher, levantei-me e
ergui-a nos braços. Gretchen tremia quando lhe toquei. Prendeu-se a
mim com a mesma violência com que a prendi e senti no bater do seu
coração, pancada por pancada, a paixão que lhe transbordava do
peito.
- Ricardo, beija-me antes de te ires embora.
Correu para a porta, mantendo-a aberta para que eu entrasse.
Pegou no candeeiro que estava sobre a mesa, subiu as escadas que
davam para o andar de cima, adiante de mim.
Á porta do meu quarto esperou que eu acendesse o seu
candeeiro e a seguir entregou-me o meu.
- Boa noite, Gretchen.
- Boa noite, Ricardo.
Baixei-lhe a torcida do candeeiro para evitar que deitasse fumo,
e ela, depois, atravessou o átrio dirigindo-se ao seu quarto.
- Amanhã chamar-te-ei a tempo de tomares o comboio.
- Está bem, Gretchen. Não me deixes dormir de mais. O
comboio sai da estação às sete e trinta.
- Chamar-te-ei muito a tempo, Ricardo.
A porta fechou-se atrás de Gretchen. Entrei para o meu quarto,
fechei também a porta e comecei a despir-me vagarosamente.
Deitei-me, apaguei o candeeiro mas, na agitação em que estava, não
adormeci. Sabendo que era impossível dormir sentei-me na cama,
fumando cigarro atrás de cigarro e deitando o fumo, através da
cortina, para a janela. Mais de uma vez julguei ouvir sons abafados,
que vinham do outro lado do átrio, que vinham do quarto de
Gretchen. Sim, julguei; contudo não tinha a certeza.
Não posso precisar quanto tempo estive sentado na beira da
cama, rígido, sem um movimento, direito, a pensar em Gretchen.
De súbito levantei-me de um salto. Abri a porta e atravessei o
átrio rapidamente. A porta do quarto de Gretchen estava fechada.
Contudo sabia que ela não a tinha fechado à chave e dei volta ao
puxador sem fazer ruído. Rompeu, através da abertura, um feixe
ténue de luz. Não era preciso empurrar mais a porta porque via
Gretchen, apenas a alguns passos de distância, quase ao alcance da
mão. Fechei os olhos com esforço e, naquele momento, pensei nela
com uma intenção igual à que me ditara a viagem que nesse dia
fizera, da costa até ali.
Gretchen não tinha ouvido abrir a porta, nem sabia que eu me
encontrava ali. Sobre a mesa, o seu candeeiro ardia com uma luz
viva.
Não esperava vê-la acordada, tinha quase a certeza de que a
encontraria deitada. Estava ajoelhada no tapete, ao lado da cama,
com a cabeça apoiada nos braços. Os soluços sacudiam-lhe o corpo.
O cabelo, preso por uma fita pálida no alto da cabeça,
espalhava-se-lhe depois pelos ombros. Vestia uma camisa de seda
branca, franjada de rendas vaporosas, e a gola, aberta, descobria-lhe
o seio.
Só então vi quanto ela era bela, embora sempre a tivesse
considerado bonita. Nunca, até ali, vira uma rapariga tão bela como
Gretchen.
Como não ouviu abrir a porta continuava a ignorar a minha
presença. De joelhos, ao lado da cama, chorava e tinha as mãos
crispadas.
Quando entrei não sabia o que iria fazer mas agora, que a via
ajoelhada em oração junto do leito, ignorando que a olhava e ouvia as
suas queixas e soluços, tive a certeza de que nunca mais amaria
alguém como lhe queria a ela. Sim, ignorava-o até àquele momento,
mas bastaram uns poucos segundos para sentir quanto a amava.
Fechei a porta devagar e voltei para o meu quarto. Peguei numa
cadeira e sentei-me próximo da janela à espera do dia. E ali fiquei
olhando o fundo do vale. Á medida que os olhos se habituavam à
escuridão parecia-me que me aproximava cada vez mais do rio e tão
próximo dele me sentia que, estendendo o braço, poderia mergulhar
as mãos nas suas águas quentes.
De madrugada julguei ouvir alguém no quarto de Gretchen a
andar cuidadosamente, a caminhar de janela para janela e, em certa
altura, tive a certeza de ouvir passos lá fora, junto da porta do meu
quarto.
Quando o sol despontou no alto da montanha levantei-me e
vestime. Depois ouvi os passos de Gretchen, ouvi Gretchen descer a
escada. Certamente preparava o meu almoço, à pressa, para que eu
não perdesse o comboio. Esperei e, um quarto de hora depois, ela
subia novamente a escada. Bateu devagar e chamou várias vezes por
mim.
Abri a porta de par em par e apareci-lhe. Ficou surpreendida
por me ver já pronto; esperava encontrar-me a dormir e, por
momentos, não pôde articular uma palavra.
- Gretchen - disse eu, tomando-lhe as mãos - não tenhas pressa
por causa do comboio... não parto... não sei o que tinha ontem...
Agora sinto que te amo.
- Mas, Ricardo, disseste a noite passada...
- Disse a noite passada que partia de manhã cedo, Gretchen;
mas, acredita, não sabia o que estava dizendo. Agora só parto
quando fores comigo. Dir-te-ei o que penso, depois do almoço. Mas,
antes de mais nada, quero que me digas por onde se desce até ao rio.
Preciso de lá ir imediatamente, quero mergulhar as mãos nas suas
águas.
A OBRA DE ARTE
Anton Tchekhov

Sacha Sminorf, filho único de sua mãe, entrou no consultorio do


Dr. Cochelkof levando debaixo do braço um embrulho de jornal. "Olá,
amiguinho! — saudoso doutor. Como vai passando? Está bem?"
Sacha, virando os olhos, a mão colocada sobre o peito,
respondeu-lhe com voz agitada: "Minha mãe manda-lhe suas
saudações... Sou filho único de minha mãe e o senhor salvou-me a
vida, curando-me de uma molestia perigosa... Não sabemos
comodemonstrar nosso agradecimento."
- Está bem, está bem, amiguinho! — interrompeu o doutor
satisfeito. Fiz o que qualquer outro teria feito em meu lugar.
- Sou filho único de minha mãe... Somos gente pobre e não
dispomos de meios suficientes para remunerá-lo pelo trabalho...
Estamos muito envergonhados... Todavia... mamãe e eu... filho único
e minha mãe... rogamos que aceite este objeto como testemunho de
nosso agradecimento... É um objeto caro... de bronzeantigo... uma
obra de arte..."
- Para que? Não é preciso. — interrompeu o doutor.
- O senhor não pode negar-nos este favor — replicou Sacha,
desfazendo o embrulho. Seria desgostar mamãe e a mim... É uma
coisa linda... uma antiguidade... Herdamo-la de papai e ficou
guardada como recordação... Meu pai comprava antiguidades,
revendendo-as a colecionadores... Minha mãe e eu trabalhamos
comisso agora.
Sacha desembrulhou o objeto, colocando-o triunfalmente sobre
a mesa. Era uma candelabro de bronze antigo e trabalhado
artisticamente, apresentando duasmulherzinhas, completamente
despidas, em umas posturas que não posso descrever por falta de
engenho e arte. As mulherzinhas sorriam e pareciam, não fossea
obrigação de sustentar as palmas, querer saltar do pedestal e armar
um escandalo superior a qualquer imaginação.
O doutor lançou um olhar ao presente e coçou a cabeça:
- É, na realidade, uma obra de arte, mas... é demais. A
expressão destas mulheres é licenciosa ao extremo...
- Por que o entende assim, senhor?
- O diabo em pessoa não teria executado tal coisa. Colocar isto
em cima de uma mesa é macular toda a casa.
- Que maneira de julgar a arte, doutor? — replicou Sacha. É
elevadamente artistico, repare bem. Tem tanta beleza, que a alma se
eleva às regiões da imortalidade... Contemplando semelhante obra
de arte esquece-sede de tudo o que é terrestre... Olhe, olhe quanta
vida, quanta expressão!...
- Tudo isto compreendo e vejo perfeitamente — interrompeu o
doutor. Porém, meu amigo, além de ser pai de familia, aqui vêm
crianças, entram senhoras...
- Naturalmente. Para o povo talvez esta obra de arte tenha
outra significação. Mas o senhor, doutor, deve considerá-la acima do
vulgar; além disso, recusandoeste presente, ofenderá minha mãe e
eu. Sou filho único de minha mãe... O senhor salvou-me a vida...
Entregamos-lhe o objeto mais precioso que temos, lamentandoainda
faltar-nos o outro par...
- Agradecido, meu amigo; Muito obrigado mesmo... Meus
respeitos à sua mãe. Contudo, na realidade, ponha-se na minha
situação: os meninos brincam aqui, assenhoras vêm... Bem, deixe-
o!... Você não compreende...
- Muito bem — exclamou Sacha satisfeito. Ponha o candelabro
aqui, ao lado deste jarro. Que pena faltar o par! Que lástima! Adeus,
doutor!
Ao ficar só, o doutor permaneceu longo tempo, passando a mão
pela fronte, a refletir.
- Não há duvida de que é uma obra de arte. Seria uma pena
levá-la... Hum!... É um problema... A quem a darei?
Depois de muito pensar, lembrou-se de seu amigo, o advogado
Uhof, a quem devia por lhe haver ganho um processo.
- Ótimo! — exclamou. Não quererá, como amigo, cobrar em
dinheiro e seria acertado presenteá-lo com isto. Levar-lhe-ei agora
mesmo essa diabrura. Com eleficará a propósito, pois é solteiro e
malandro...
O doutor vestiu-se imediatamente, embrulhou o candelabro e
dirigiu-se para a casa do amigo.
- Olá! — disse ao entrar. Alegro-me de o haver encontrado em
casa... Vinha agradecer-lhe pelo trabalho... e, já que não quer
receber honorários, aceite esteobjeto. Tome!... É admirável!...
Uhof ficou encantado com o presente.
- Uma jóia! — disse rindo. Que demônios! Quem inventou isto?
Magnífico! Soberbo! Onde o encontrou?
Depois de se haver extasiado, Uhof olhou medrosamente a
porta, acrescentando:
- É admirável, mas não posso ficar com o seu presente. Não
posso aceitá-lo.
- Por quê?— inquiriu assustado o doutor.
- Porque... minha mãe vem aqui... vêm clientes... e, além do
mais, envergonhar-me-ia até perto dos criados.
- Oh!... Você não pode me fazer uma coisa destas! — exclamou o
doutor agitando os braços. Uma obra de arte!... Veja que
movimento... que expressão!... Recusando,ficarei ofendido... Se elas
tivessem, ao menos, umas folhinhas..."
Mas o doutor não o escutava. Moveu a mão em sinal de
despedida e, satisfeito, deixou o advogado. Voltou para casa
encantado por livrar-se do presente. Aoencontrar-se só, o advogado
contemplou o candelabro pelos quatro lados; tocou-o e, como o
doutor, ficou longo tempo pensando no que faria com aquilo.
- É uma magnífica obra de arte! Como sinto não ficar com ela!
Mas, como vou guardá-la? O melhor seria dá-la a alguém... Já
encontrei. Já encontrei! À noitedá-la-ei de presente ao cômico
Chachkin, que estreará hoje.
Naquela mesma noite o candelabro foi entregue ao cOmico
Chachkin, cujo camarim foi tomado de assalto pelos espectadores,
que vinham felicitá-lo pela interpretaçãoda peça, em murmúrios e
risos semelhantes a relinchos de cavalos. Quando alguma das artistas
se aproximava e batia na porta, perguntando se podia entrar,o
cômico invariavelmente respondia: "Não, menina, não! Estou me
vestindo..."
Depois do espetáculo o cômico esfregava as mãos e encolhia os
ombros, perguntando-se:
- Que farei com esta droga? Vivo em uma casa particular e
recebo artistas. Se fosse uma fotografia, seria possivel ocultá-la
numa das gavetas da escrivaninha...
- Venda-a, senhor!" — Aconselhou o barbeiro ajudando-o a
vestir-se. Aqui perto mora uma velha que compra antiguidades...
pergunte por Smirnova: é muito conhecida.
Assim fez o cômico. Dois dias depois, o doutor Cochelkof estava
em seu consultório a reflexionar sobre os ácidos biliosos, quando a
porta se abriu com estrondo,dando passagem a Sacha Smirnof. Toda
a sua figura resplandecia de felicidade... Em uma das mãos trazia
alguma coisa embrulhada em jornais:
- Doutor! — disse radiante. — Imagine a minha alegria!
Encontramos o par do seu candelabro. Minha mãe está
absolutamente feliz... Sou filho único de minhamãe... O senhor
salvou-se a vida.
Sacha, cheio de agradecimento, colocou o candelabro diante do
doutor que, boquiaberto, quis dizer alguma coisa, mas não pôde
pronunciar nem sequer uma palavra:aturdira-se por completo,
paralisado.
UM CASAL À MODA ANTIGA
Nicolai Gogol
Aprecio sobremaneira a vida modesta que nos seus domínios
recolhidos fazem os fidalgos "à moda antiga", como vulgarmente se
lhes chama na Pequena Rússia.
Essa gente recorda-me velhas e pitorescas casas, cuja
simplicidade nos atrai pelo contraste que faz com os edifícios novos,
espaventosos, a que a chuva ainda não manchou as paredes, nem o
bolor atacou os tectos, nem o reboco fresco traiu a cor dos tijolos.
Por vezes, gosto de me abandonar a esta vida plácida, refugiar-
me nesta solidão inefável: ali, nenhum desejo ultrapassa os limites do
pequeno pátio, o valado que contorna o pomar de macieiras, ou os
casebres da aldeia pendurados nos flancos das colinas e perdidos
entre salgueiros, sabugueiros e pereiras. A vida desta gente modesta
escoa-se tão lentamente, tão pacificamente, que em certos instantes
do esquecimento duvidamos da existência de paixões, de desejos, de
agitações vãs, engendradas pelo espírito do Mal para perturbar a
humanidade - nesses momentos tudo isto nos parece apenas o reflexo
dum sonho, duma fantasmagoria resplandecente.
Tenho diante dos olhos aquela casa pequena e baixa cingida em
toda a volta por uma "galeria" de colunas delicadas de madeira
escura, que a protege das tempestades; nas traseiras, as cerejeiras
perfumadas, as longas fileiras de árvores frutíferas anãs, submersas
no mar de púrpura das cerejas e de ametista das ameixas de tom
escuro, o bordo frondoso à sombra do qual jaz um tapete de repouso;
do lado da frente, o pátio espaçoso, a erva rasa e verdejante, o
corredor que conduz da despensa à cozinha e da cozinha aos
aposentos dos donos da casa, a pata de pescoço comprido banhando-
se num charco em companhia da sua ninhada de patitos frágeis e
sedosos; a vedação donde pendem fieiras de fruta seca e arejam
roupas; perto do celeiro, um boi espojando-se junto de um carro
repleto de melões. Este quadro tem para mim um encanto
inexprimível porque certamente o não volto a ver e porque todas as
coisas de que estamos separados tem um lugar especial no nosso
coração.
Não sei porquê, mas logo que a minha britchka se aproximava
desta casa invadia-me imediatamente uma sensação deliciosa de
quietude, os cavalos detinham-se todos contentes diante da entrada,
o cocheiro descia lentamente do seu lugar e punha-se a encher o
cachimbo como se tivesse chegado diante da sua própria casa. E até
mesmo o ladrar dos rafeiros, dos cães de caça e de guarda me soava
agradavelmente ao ouvido.
Mas o que mais me seduzia nestes modestos recantos eram os
donos das casas, gente velha e bondosa que se apressava a vir ao
meu encontro, e que ainda hoje, de quando em quando, o meu
espírito faz reviver entre os trajes modernos no meio do tumulto e do
luxo do mundo.
Entrego-me nesses momentos à sedução dos sonhos, à miragem
do passado. Lê-se nos seus rostos tanta bondade e tanta franqueza
que de bom grado se renuncia, pelo menos durante um certo tempo,
a toda a ambição, e imperceptivelmente damo-nos completamente a
esta vida bucólica, humilde.
Há dois velhos do século passado que nunca consigo esquecer.
Nenhum já vive; e contudo invade-me e oprime-me um bizarro
sentimento de piedade e de tristeza quando penso que um dia, por
qualquer capricho do acaso, me poderei encontrar perante a sua
casa abandonada onde talvez vá descobrir um pântano no lugar do
tanque e um montão de escombros cobertos de silvas no lugar da
casa... e nada mais. É verdade, basta-me pensar nesta possibilidade
para me sentir triste, horrivelmente triste. Comecemos, porém, a
nossa narrativa.
Os dois velhos chamavam-se Atanásio Ivanovitch e Pulquéria
Ivanovna Tovstogoub. Se eu fosse pintor e quisesse representar
Filemon e Baucis não escolheria outros modelos. Atanásio Ivanovitch
poderia ter os seus sessenta anos e Pulquéria Ivanovna os seus
cinquenta e cinco. De estatura elevada e sempre coberto com uma
pele de carneiro, como qualquer vendedor ambulante, Atanásio
Ivanovitch gostava de estar sentado curvado e tinha um sorriso
quase permanente nos lábios, quer quando contava uma história,
quer quando se limitava a escutá-la.
Pulquéria Ivanovna era pouco risonha, mas os seus olhos e toda
a sua figura irradiavam tanta bondade e adivinhava-se-lhe um desejo
tão intenso de vos oferecer tudo o que tinha de melhor, que estou
certo que um sorriso poria uma nota de insipidez naquela bela
fisionomia. As rugas superficiais do seu rosto estavam dispostas com
tal graciosidade que um pintor facilmente saberia tirar proveito
delas. Eram nela o reflexo daquela vida calma e serena que faziam as
pessoas de velha cepa, simples no meio da sua riqueza, e que
estiveram sempre em perfeito contraste com aqueles pequenos
russos de baixa origem, que se lançam como um bando de abutres
sobre os empregos públicos, que se dedicam zelosamente a extorquir
até o último centavo dos seus compatriotas, que inundam
Sampetersburgo de mercadoria, que acabam por aferrolhar enorme
fortuna e, em sinal de triunfo, acrescentam o v russo ao o final do
nome. Não, os meus dois bons amigos não se assemelhavam em nada
a esses odiosos e desprezíveis pretensiosos, aliás como a eles
também se não assemelha nenhum membro das nossas famílias
verdadeiramente antigas.
Não se podia assistir impassível às provas recíprocas de afecto
que dedicavam um ao outro. Nunca se tratavam por tu; diziam
sempre "o senhor" ou "a senhora": "Senhor Atanásio Ivanovitch.
Senhora Pulquéria Ivanovna. -
Foi o senhor que partiu o tampo a esta cadeira, Atanásio
Ivanovitch? - Não tem importância, Pulquéria Ivanovna, não se
apoquente; sim, fui eu". Como nunca tiveram filhos, concentraram
toda a sua ternura um sobre o outro.
Noutros tempos, quando jovem, Atanásio Ivanovitch tinha
prestado serviço na cavalaria ligeira, tendo mesmo chegado a ser
major. Mas tudo isso ia já muito longe, tão longe que ele já raras
vezes fazia alusão a esse tempo. Casara-se com a idade de trinta
anos, um belo rapaz sempre ricamente vestido; teve de usar de
bastante prudência e tacto para desposar Pulquéria Ivanovna porque
os pais dela o não queriam para genro. Mas também de tudo isto já
não havia vestígios na sua memória, ou pelo menos não o recordava
por palavras.
Estas aventuras de outrora tinham dado lugar a uma vida calma
e retirada, a esses devaneios confusos, mas nunca desprovidos de
harmonia, que nos assaltam quando na varanda do jardim escutamos
o sussurro sumptuoso da chuva caindo em bátegas espessas sobre as
árvores ou escoando-se em pequenos regatos cantantes, que nos
comunica uma profunda sensação de sonolência, enquanto o arco-íris
se insinua por entre a folhagem para ir os tentar sobre o fundo do
céu a frágil abóbada das suas sete cores; ou então, quando, em plena
estepe, nos deixamos embalar pelo movimento da caleche,
mergulhando num mar de verdura, pelo cantar da codorniz, pelas
carícias suaves da vegetação desvairada, das espigas e das flores
campestres nas faces e nas mãos.
Atanásio Ivanovitch recebia sempre com um sorriso gracioso e
uma atenção pronta as pessoas que o vinham visitar; quando falava,
era quase sempre para fazer uma pergunta. Não era um desses
velhos obcecados pela ideia de vangloriar o passado e de criticar o
presente. Muito pelo contrário, as perguntas que fazia denunciavam
um grande interesse pelas circunstâncias de vida dos outros, os seus
sucessos e reveses. Era uma curiosidade em tudo igual à de uma
criança que enquanto fala connosco se absorve na contemplação dos
berloques que pendem da corrente do nosso relógio. Nesses
momentos, o seu rosto "respira" verdadeira bondade.
Segundo o hábito antigo, os nossos dois velhos habitavam numa
casa com divisões pequenas e baixas, com um enorme fogão que
ocupava um terço da área. Abafava-se nesses quartos exíguos
porque Atanásio Ivanovitch e Pulquéria Ivanovna adoravam o calor.
Todas as aberturas do fogão davam para uma antecâmara atafulhada
de palha até ao tecto. Na Pequena Rússia a lenha de aquecimento é
substituída por palha que com o seu fogo cintilante e claro empresta
às antecâmaras um ambiente agradável durante os longos serões de
inverno, especialmente para os rapazes que se apressam a aquecer-
se ao seu calor quando regressam a casa transidos de frio por terem
andado em perseguição de qualquer moçoila.
Alguns quadros e estampas metidos em velhos caixilhos
estreitos decoravam as paredes da sala de visitas. Tenho a certeza
de que os donos da casa já há muito se tinham esquecido do que
representavam esses quadros; e se lhes tirassem alguns nem dariam
pela sua desaparição.
Entre outros, havia dois grandes retratos a óleo, um que
representava um prelado e outro o Imperador Pedro II; num caixilho
diminuto uma duquesa de La Valiére, toda salpicada pelas moscas,
olhava-nos com os olhos fixos. Uma multidão de pequenas gravuras
que nos habituamos insensivelmente a considerar como manchas das
paredes e a que por isso já não prestamos atenção decorava o
contorno das janelas e das portas. O sobrado de quase todos os
quadros era simples terra batida mas estava sempre brilhante e a
sua limpeza teria feito inveja a qualquer sobrado de luxo varrido pela
mão indolente dum indivíduo de libré ainda ensonado.
Um número incontestável de cofres e cofrezinhos, de caixas e
caixotes atravancavam o quarto de Pulquéria Ivanovna. Das paredes
pendiam numerosos sacos e saquinhos contendo variadíssimas
sementes - sementes de flores, sementes de legumes, sementes de
melancia, etc. Nos recantos das caixas e nos intervalos entre os
cofres amontoavam-se em desalinho novelos de lã de todas as cores,
retalhos de fazendas diversas, roupa usada com mais de meio século.
A boa senhora era uma perfeita dona de casa e guardava tudo sem
muitas vezes saber a razão.
O mais notável, porém, de toda a casa era o cantar das portas.
Desde manhã cedo a sua canção enchia toda a casa.
Não sei dizer porque elas cantavam: seriam os gonzos que
estariam ferrugentos? Teria quem as fez escondido nelas algum
mecanismo secreto? A verdade é que cada porta tinha o seu cantar
próprio: a porta do quarto de dormir tinha uma voz aguda de tenor, a
da sala de jantar a voz roufenha dum baixo, a da antecâmara
produzia um som estranho, frágil, queixoso, que escutado com
atenção se acabava por distinguir claramente: "pobre de mim, estou
gelada". Sim, bem sei que muita gente detesta os ruídos das portas.
Quanto a mim confesso que os adoro. O gemido duma porta dá-me
logo a sensação de estar no campo: revejo a salinha baixa iluminada
por uma candeia fixa a um candelabro antigo, a ceia na mesa, a noite
sombria de Maio que nos espia pela janela aberta para o jardim; oiço
o trinado do rouxinol pairando sobre o parque, sobre a casa e
alargando-se até à ribeira distante; distingo o murmúrio angustioso
das ramagens...
- Oh! Meu Deus, meu Deus, que corrente interminável de
recordações me assalta o espírito!
Na sala maior havia várias cadeiras de madeira maciça, como
se faziam antigamente, de costas altas trabalhadas em toda a volta,
sem cor nem verniz; nem sequer eram acolchoadas e sugeriam
vagamente as cadeiras de que ainda hoje se servem os prelados.
Ainda na mesma sala, viam-se algumas mesinhas redondas, uma mesa
quadrada diante do canapé, outra diante do espelho enquadrado por
uma fina folhagem dourada que as moscas haviam salpicado de
pontos negros, e ainda diante do canapé um tapete em cujo desenho
se distinguiam pássaros que pareciam flores e flores que pareciam
pássaros. Era este, mais ou menos, o aspecto modesto da habitação
dos meus bons velhotes.
No quarto das criadas ouvia-se o zumbido dum verdadeiro
enxame de raparigas e velhas, todas com saias às riscas.
Pulquéria Ivanovna dava-lhes coisas sem importância para coser
ou frutos para escolher. O mais vulgar, porém, era elas escapulirem-
se para a cozinha onde podiam dormir à vontade. Pulquéria Ivanovna
considerava seu dever mantê-las em sua casa e velar pela sua
conduta moral. Porém, para grande surpresa sua, era raro passar-se
um mês sem que o volume de alguma destas raparigas não
aumentasse mais do que é normal. Este fenómeno parecia tanto mais
estranho quanto é certo que na casa não havia nenhum celibatário
além dum rapazola, que andava sempre descalço e metido num
ridículo casaco cinzento e que passava o tempo ou a dormir ou a
comer. Em semelhantes ocasiões, Pulquéria repreendia a culposa e
exigia-lhe que o facto se não voltasse a repetir.
Uma avalanche de moscas debatia-se incessantemente contra
os vidros das janelas, num zumbido constante acompanhado muitas
vezes pelo assobiar estridente das vespas; quando se aproximava
delas uma luz, estas hordas de insectos refugiavam-se na escuridão
do tecto, que ficava encoberto com uma nuvem espessa e escura.
Pouco interessavam a Atanásio Ivanovitch os trabalhos do
campo; apesar disso, de quando em vez ainda se dignava ir até junto
dos ceifeiros e observava os trabalhos com um ar grave e atento.
Todo o fardo das actividades domésticas e agrícolas recaía sobre os
ombros de Pulquéria Ivanovna: abrir e fechar constantemente o
celeiro, cozer, salgar e secar frutos, folhas e legumes em
quantidades avantajadas. Aquela casa assemelhava-se sob todos os
pontos de vista a um laboratório de química: sob uma macieira do
jardim, ardia ininterruptamente uma fogueira sobre a qual uma
tripeça de ferro suportava quase sempre um caldeirão ou uma panela
de cobre com doces, geleias, compotas de mel, açúcar e não sei que
mais.
Debaixo doutra árvore, o cocheiro destilava aguardente de
cereja, de pêssego e de ginja; ao cabo desta operação,
entaramelava-se-lhe a língua e apenas gaguejava meia dúzia de
palavras de que Pulquéria Ivanovna não conseguia perceber patavina
e ia então dormir uma soneca na cozinha. Este homem preparava
uma tal profusão destas drogas que chegariam para inundar o pátio -
a boa senhora, de facto sempre previdente, gostava de não se limitar
ao estritamente necessário para os seus gastos e punha sempre de
lado preciosa reserva. Uma boa metade destas bebidas, porém, era
devorada pelas criadas: metiam-se na despensa e encharcavam-se
em bebidas de tal forma que durante um dia inteiro andavam a
gemer e a queixar-se de dores de estômago.
Pulquéria Ivanovna, sobrecarregada de tantos afazeres, não
podia vigiar atentamente os trabalhos dos campos, e por isso o
caseiro e o feitor surripiavam o que podiam sem sombra de
escrúpulo. Estes dois dignos cavalheiros tinham-se habituado a
considerar como propriedade sua as matas dos seus senhores:
mandavam fabricar trenós que vendiam nas feiras dos arredores;
derrubavam e vendiam os carvalhos com que os cossacos das
vizinhanças construíam os moinhos. Apenas uma única vez Pulquéria
Ivanovna exprimiu o desejo de inspeccionar as matas que lhe
pertenciam. Prepararam-lhe o drojki que tinha um enorme avental de
couro para a proteger contra a chuva e a lama. Mal o cocheiro
pegava nas rédeas e punha em marcha os cavalos - duas pilecas que
tinham tomado parte na última campanha ao serviço da milícia - esta
carroça enchia o ar de ruídos esquisitos, entre os quais em breve se
distinguia o som da flauta e do tambor.
Molas e eixos gemiam tão ruidosamente que no moinho, a umas
duas boas verstas de distância, se sabia perfeitamente quando a boa
senhora partia de viagem.
Pulquéria Ivanovna tinha forçosamente de reparar no desbaste
que a mata tinha sofrido e no desaparecimento dos carvalhos que já
na sua infância ela tinha conhecido como seculares.
- Como se explica isto, Nitchipor? - perguntou ela ao caseiro que
a acompanhava. - Porque é que os carvalhos estão tão escassos?
Toma cuidado não vá acontecer o mesmo aos teus cabelos...
- Escassos? - ia repetindo o homenzinho. - É que
desapareceram; não há dúvida, minha senhora, desapareceram:
caíram-lhes faíscas mesmo em cima, e os vermes roeram-nos...
Enfim, que quer a senhora, desapareceram, não há dúvida,
desapareceram.
Esta resposta satisfez plenamente a Pulquéria Ivanovna:
chegada a casa, deu ordem para redobrar a vigilância do pomar,
especialmente das cerejeiras e das pêras de inverno.
Estes dois dignos e honestos administradores acabaram por
chegar à conclusão de que não havia vantagem em armazenar no
celeiro toda a farinha produzida, visto que os patrões se
contentariam perfeitamente com metade da produção; e com o
tempo, decidiram até que essa metade deveria sair da farinha com
bolor e bafio que lhes era recusada na feira. Assim, pois, os nossos
dois espertalhões rapinavam desaforadamente. Aliás, com o que
pilhava, toda a criadagem praticava a gula com liberdade, desde a
governanta à última das servas, incluindo mesmo os suínos, que
devoravam à tripa forra montes de ameixas e de maçãs e que por
vezes se entretinham a dar focinhadas contra as árvores para fazer
cair uma chuva de frutos; a pardalada e os corvos banqueteavam-se
ao desafio, as criadas ofereciam numerosos presentes aos seus
amigos das aldeias vizinhas e chegavam mesmo a furtar peças de
pano e de filaça cujo último destino era o de todas as coisas: a
taberna; cocheiros e lacaios subtraíam tanto ou mais do que os
outros. E apesar de tudo isto, esta terra de eleição mostrava-se tão
fértil e os seus felizes donos tão moderados nas suas necessidades,
que todas estas depredações passavam despercebidas.
Exactamente como todas as pessoas doutros tempos, os nossos
dois velhinhos eram um tanto exagerados com a alimentação.
Mal começava a despontar a aurora - sim, porque eles eram
bastante matinais -, mal as portas começavam a fazer-se ouvir no seu
concerto discordante, abancavam os dois e tomavam o café.
Atanásio Ivanovitch dirigia-se em seguida para a antecâmara,
parava à porta e gritava, brandindo o lenço:
- Scht! Scht! fora daí, seus patos, fora!
No pátio, encontrava quase sempre o caseiro, com quem se
entretinha a conversar: interrogava-o tão detalhadamente sobre os
trabalhos dos campos, fazia-lhe certas observações e dava-lhe
ordens tão acertadas, que quem o escutasse ficaria surpreendido
com o seu invulgar talento administrativo e se recusaria a acreditar
que fosse possível ludibriar um patrão tão arguto e clarividente. Mas
o caseiro, raposa velha e matreira, sabia como iludir as respostas e,
melhor ainda, sabia como proceder.
Depois deste diálogo, Atanásio Ivanovitch regressava à casa e,
aproximando-se de sua mulher, dizia: - Que lhe parece, Pulquéria
Ivanovna, não seriam horas de comer qualquer coisa?
- Mas o quê, a estas horas, Atanásio Ivanovitch? Só se for um
bolo de toucinho, ou um pastelinho com semente dormideira; ou
então, ou então cogumelos de conserva?
- Traga lá os cogumelos e os pastelinhos - respondia Atanásio
Ivanovitch. E, num instante, a mesa aparecia coberta com uma
toalha e os acepipes pedidos.
Uma hora antes de almoçar, Atanásio Ivanovitch ainda comia
uma bucha e matava o bicho: engolia uma boa porção de aguardente
numa velha taça de prata, acompanhada de peixe seco e outros
petiscos. Almoçava ao meio dia: além dos pratos, pires e talheres, a
mesa tinha de suportar o peso de grande número de pequenos tachos
e terrinas, hermeticamente fechados para que o sabor e o cheiro
apetitoso dos cozinhados se não desvanecesse.
Durante o repasto, a conversação girava quase sempre em volta
de temas intimamente relacionados com este importante problema.
- Desconfio - começava normalmente por dizer Atanásio
Ivanovitch - que esta papa de trigo está um bocado queimada. Não
lhe parece, Pulquéria Ivanovna?
- Não, a mim não me parece, Atanásio Ivanovitch. Mas ponha-
lhe um bocado de manteiga que perde esse sabor; ou então, se
preferir, deite-lhe por cima um pouco deste molho de cogumelos.
- Seja - respondia Atanásio Ivanovitch, dando-lhe o seu prato. -
Vejamos o que sai daí.
Depois do almoço, Atanásio Ivanovitch ia dormir a sesta.
Uma hora depois, Pulquéria Ivanovna vinha-lhe trazer uma
melancia cortada em talhadas e dizia: - Ora prove esta melancia,
Atanásio Ivanovitch, e vai ver como está fresquinha.
- O miolo é vermelho como sangue, mas em todo o caso é bom
não confiar - retorquia Atanásio Ivanovitch escolhendo uma talhada
razoavelmente grossa. - Há muitas que são vermelhas mas que não
prestam para nada.
Em todo o caso, a melancia evaporava-se rapidamente,
sucediam-se-lhe algumas pêras e depois o casal dava uma volta pelo
jardim para ajudar a digestão. De regresso a casa, Pulquéria
Ivanovna voltava a ocupar-se dos afazeres domésticos, enquanto o
marido se instalava sob o alpendre, em frente do pátio, observando o
celeiro, que se abria e fechava incessantemente para dar entrada e
saída às criadas que em constante vaivém transportavam toda a
casta de bugigangas em cestos, caixas e outros recipientes. Passado
pouco tempo, Atanásio mandava chamar Pulquéria, ou ia ele próprio
procurá-la e perguntava-lhe: - Que é que há que se coma, Pulquéria
Ivanovna?
- Não sei muito bem - replicava esta. - Quer que mande servir
umas tortas de creme com morangos que pus de parte para si?
- Traga lá as tortas - respondia Atanásio Ivanovitch.
- Talvez prefira uma geleia de fruta?
- Traga a geleia de frutas - concordava Atanásio Ivanovitch.
E imediatamente se serviam estas deliciosas iguarias, que, bem
entendido, eram engolidas num ápice.
Antes da ceia, Atanásio Ivanovitch não dispensava uma ligeira
colação. Às nove e meia servia-se a ceia; e logo que a mesa estava
levantada todos se deitavam e um profundo silêncio reinava neste
pequeno canto da terra, ao mesmo tempo tão activo e tão tranquilo.
No quarto de dormir o calor era tão sufocante que poucas
pessoas conseguiriam manter-se nele algumas horas; contudo,
Atanásio Ivanovitch para melhor se aquecer deitava-se junto do
fogão, embora o excesso de calor o obrigasse a levantar-se várias
vezes durante a noite e a passear pelo quarto. Durante estes
passeios, soltava de vez em quando um profundo gemido.
- Porque geme, Atanásio Ivanovitch? - informava-se, nesses
momentos, Pulquéria Ivanovna.
- Só Deus sabe, Pulquéria Ivanovna. Parece-me que não estou
muito bem do estômago - respondia Atanásio Ivanovitch.
- Talvez fosse melhor comer qualquer coisa - sugeria Pulquéria
Ivanovna.
- Parece-lhe, Pulquéria Ivanovna? Mas o que é que eu poderei
comer?
- Leite ou compota de pêras.
- Seja; não há perigo em experimentar - aquiescia Atanásio
Ivanovitch.
E lá ia arrancar à cama uma das criadas para que fosse
rebuscar os armários. Atanásio Ivanovitch comia sofregamente e
depois costumava dizer com ar de alívio:
- Parece que me sinto melhor.
Algumas vezes, quando o tempo estava sereno e o quarto bem
aquecido, Atanásio Ivanovitch sentia-se invadido por uma calma
sensação eufórica de boa disposição e gostava de gracejar à custa de
Pulquéria Ivanovna.
Abordava, então, qualquer assunto de ordem geral.
- Ora vejamos, Pulquéria Ivanovna - perguntava-lhe ele -, se a
nossa casa um dia ardesse que faríamos nós?
- Deus nos proteja! Porque pensa nessas coisas? - exclamava
Pulquéria Ivanovna, benzendo-se.
- E só uma suposição: se a casa ardesse onde nos iríamos
refugiar?
- Deus até o pode castigar pelo que está a dizer, Atanásio
Ivanovitch. Como é que a nossa casa podia arder?! Deus não o
permitirá!
- Mas se apesar de tudo ela ardesse?
- Bem, nesse caso, íamos para a parte da cozinha e ficávamos no
quarto da governanta.
- E se a cozinha também ardesse?
- Ora essa! Arder a casa e a cozinha?! Deus nunca permitiria
uma coisa dessas!... Bem, nesse caso, íamos para as casas de
arrecadação e esperávamos que se reconstruísse a casa.
- Mas se as casas de arrecadação também ardessem?
- Apre! é demais! Já o não posso ouvir. Não sabe que é pecado
dizer essas coisas e que Deus nunca deixa impunes semelhantes
palavras?
Mas Atanásio Ivanovitch, satisfeito com a sua brincadeira
inocente, sorria com uma expressão doce e suave e quedava-se
imóvel na sua cadeira.
Quando eu mais gostava destes bons velhos era quando eles
recebiam visitas. Tudo tomava um aspecto diferente na casa.
Estas duas simpáticas pessoas entregavam-se de alma e
coração aos convidados: traziam para a mesa tudo o que tinham de
melhor; estavam numa ansiedade constante para ofertar os produtos
das suas terras.
O que sobretudo me enternecia e encantava, era ver que não
havia o menor indício de afectação nessa cortesia. Pintava-se-lhes no
rosto uma cordialidade tão espontânea e comovedora que nenhum
convidado tinha coragem para resistir às suas insistências: sentia-se
bem que apenas cediam aos impulsos do coração.
Profundo abismo separa esta bonomia franca da etiqueta
fastidiosa dum pretensioso funcionário de finanças que nos recebe
com exclamações de "meu benfeitor!" e se curva servilmente a
nossos pés.
Não há memória de jamais terem deixado partir uma visita no
próprio dia da chegada; todos tinham que passar pelo menos uma
noite naquela casa.
- Então, já quer ir embora? A uma hora destas, já tão tarde e
ainda com tanto para andar?! - dizia infalível e invariavelmente
Pulquéria Ivanovna, embora muitas vezes o visitante não morasse a
mais de uma légua de distância.
- Pois com certeza, tem toda a razão - reforçava por seu lado
Atanásio Ivanovitch. - Nunca se sabe o que pode acontecer na
estrada a uma hora destas. Pode encontrar qualquer salteador ou
qualquer pessoa de maus instintos e intenções.
- Deus nos livre de ladrões! - voltava à carga Pulquéria
Ivanovna. - Porque é que fala dessas coisas a estas horas, Atanásio
Ivanovitch? Não se trata de ladrões, mas a verdade é que a noite
está muito escura. Não são horas para uma pessoa se meter ao
caminho. E o seu cocheiro - conheço bem o seu cocheiro - é tão
franzino que seria incapaz de fazer frente a uma cabra. Além disso
pode ter a certeza de que a esta hora está ele para aí a curtir
alguma bebedeira.
E a visita via-se forçada a ficar. No entanto, uma noite passada
num quarto aconchegado e acolhedor, o sussurro embalador de
palavras irradiando o calor duma simpatia e bondade naturais, o
perfume e o sabor duma ceia substancial preparada delicadamente
por mão de mestre, eram pródiga recompensa desse gesto de
complacência.
Parece-me estar a ver Atanásio Ivanovitch curvado sobre a
cadeira, com um eterno sorriso nos lábios, a escutar muito atento, a
beber gulosamente as palavras do seu hóspede. Muitas vezes, a
conversa recaía sobre política. O visitante que, por seu lado, também
raramente saía da sua aldeia, tomava ares graves e misteriosos:
envolvia-se em conjecturas, sugeria que Ingleses e Franceses se
tinham concertado secretamente para instigar Napoleão a lançar-se
outra vez sobre a Rússia, ou afirmava peremptoriamente que a
guerra ia estalar em breve. Nessas ocasiões, Atanásio Ivanovitch,
olhando Pulquéria Ivanovna de soslaio, tinha por costume declarar:
- Eu próprio tenho a intenção de me oferecer para a guerra.
Sim, afinal porque é que eu não hei-de ir para a guerra?
- Pronto, lá está ele com as suas! - interrompia-o Pulquéria
Ivanovna. - Não preste atenção ao que ele diz - acrescentava,
dirigindo-se ao hóspede. - Pode imaginá-lo, com a idade que tem, a
combater?! O primeiro soldado inimigo que o apanhasse matava-o
logo. Não tenha dúvida, era só fazer pontaria e matava-o logo!
- A não ser que eu o matasse primeiro - replicava Atanásio
Ivanovitch.
- Garganta, garganta! - recomeçava Pulquéria Ivanovna. - Mas
digam-me o que é que ele ia fazer para a guerra?! Pois se ele até
deitou as pistolas para o ferro velho! Só queria que as visse: todas
ferrugentas! Ao primeiro tiro rebentavam-lhe nas mãos. Ficava todo
desfigurado!
- Ora, isso não importa! - protestava Atanásio Ivanovitch.
- Comprava umas armas novas, um sabre e uma lança de
cossaco.
- Mas que disparate! Quando lhe sobe uma ideia à cabeça não
há quem lha arranque - protestava Pulquéria Ivanovna já um tanto
melindrada. - Eu bem sei que ele está a gracejar, mas nem por isso é
menos desagradável ouvir semelhantes tolices. É sempre assim: por
vezes, à força de tanto ouvir, acabo por me assustar.
Então, Atanásio Ivanovitch, satisfeito o capricho de amofinar um
pouco Pulquéria Ivanovna, sorria benevolentemente, curvado sobre a
cadeira.
O momento em que mais me divertia com Pulquéria Ivanovna
era quando ela, à hora da ceia, conduzia o seu hóspede até ao
aparador onde se amontoavam os acepipes para a refeição.
- Olhe - começava ela destapando uma garrafa -, isto é
aguardente de milefólio e de salva, remédio excelente contra as
dores das costas e dos rins; isto é aguardente de centaurcia, o
melhor que há contra as impigens e os zumbidos dos ouvidos. Isto é
essência de sementes de frutos, beba só um gole; que cheirinho, não
tem? Quando se dá uma cabeçada na esquina duma mesa ou dum
armário e se fica com um galo, basta beber um cálice desta
aguardente antes da ceia para o mal desaparecer como por encanto.
E assim ia passando revista a todas as aguardentes e essências
que possuíam, quase todas, uma ou outra virtude curativa. Depois de
ter encharcado bem o seu hóspede com um pouco de todas estas
misturas, passava às matérias sólidas e, indicando um autêntico
batalhão de pratos, explicava: - Olhe, isto são cogumelos com serpão;
aquilo são cogumelos com cravo-da-índia e nozes da Valáquia. Quem
me deu a receita foi uma turca, no tempo em que tivemos aqui na
aldeia alguns prisioneiros dessa nacionalidade. Era uma boa mulher
e era difícil descobrir que pertencia à religião turca: fazia quase tudo
como nós; só no que não tocava era em carne de porco: parece que é
proibido pela religião deles... Olhe, isto também são cogumelos, mas
com noz moscada.
E isto são abóboras de conserva; é a primeira vez que faço, não
sei se vai gostar. Quem me ensinou a fazê-las foi o Tio Ivan: levam
folhas de carvalho, pimenta, etc. E, por fim, aqui tem as empadas:
estas são de queijo; aquelas de leite coalhado; e estas são de
legumes, que são as preferidas de Atanásio Ivanovitch.
- É verdade - confirmava Atanásio Ivanovitch -, gosto muito
delas, porque são tenrinhas e um pouco ácidas.
Em resumo: Pulquéria Ivanovna estava sempre de bom humor,
quando tinha visitas: a simpática mulher concentrava nelas toda a
sua atenção! Adorava visitar este casal. E claro, o organismo
acabava sempre por se ressentir daquele excesso de alimentos, o
que, aliás, acontecia a todos os outros hóspedes. E, contudo, era
sempre com prazer que voltava a visitá-los. De resto, tenho a
impressão de que o próprio ar da Pequena Rússia é propício às boas
digestões. Pelo contrário, quem nesta cidade(1) se entregasse a
semelhantes comezainas corria grande risco de em breve se
encontrar estendido não na sua cama mas sobre a mesa!(2) Ah! que
bons e excelentes velhinhos!
Chegou, porém, o momento de vos contar um acontecimento
muito triste que quebrou para sempre esta calma aprazível e que,
pela futilidade das causas que o determinaram, mais chocante se
torna. Por uma combinação bizarra e ocasional de circunstâncias,
causas imperceptíveis e insignificantes engendraram sempre grandes
e decisivos acontecimentos, ao passo que empreendimentos
grandiosos e cuidadosamente planeados deram frutos irrisórios. Um
conquistador organiza todas as suas forças, invade um país segundo
planos meticulosamente estudados, luta em combates encarniçados
durante vários anos, o exército cobre-se de glória - e tudo isto para
usurpar umas nesgas de terras inúteis, onde mal se poderão semear
batatas. Mas se por uma razão de lana caprina, um patego se trava
de razões com um compadre da aldeia vizinha, logo a questão serve
de rastilho para lançar o fogo às duas aldeias, às vilas, às cidades, ao
país inteiro.
Mas ponhamos de lado estes problemas superiores: não é este o
local para os analisar, além de que me não agradam as especulações,
que não passam de especulações.
Pulquéria Ivanovna tinha uma gata cinzenta que estava sempre
enrolada a seus pés como um novelo de lã, e que ela acariciava de
vez em quando. Não que ela simpatizasse muito com o bichano; mas
o hábito de a ter sempre junto de si tinha-lhe criado uma certa
afeição pelo animal.
Contudo, este afecto pela gata era objecto das zombarias de
Atanásio Ivanovitch.
- Francamente, Pulquéria Ivanovna, não sei por que razão
simpatiza com esse animal. Não serve para nada! Se ao menos
tivesse um cão... Um cão ainda se pode levar à caça, mas uma gata...
- Era melhor que não dissesse tolices, Atanásio Ivanovitch
- respondia-lhe Pulquéria Ivanovna. - Nunca pode estar calado.
Um cão é um animal porco que só causa preocupações. Um gato,
pelo contrário, é um animal simpático que não faz mal a ninguém.
Ao fim e ao cabo, Atanásio Ivanovitch tanto gostava de cães
como de gatos. O que ele dizia era só para irritar e ouvir Pulquéria
Ivanovna.
Por detrás do jardim da casa havia um enorme pinhal que o
dono tinha poupado até então, decerto com receio de que o ruído
fosse ferir os ouvidos delicados de Pulquéria Ivanovna. Era um pinhal
basto, sombrio, abandonado; uma vegetação espessa e desordenada
envolvia os velhos troncos das árvores fazendo recordar vagamente
a penugem aveludada das pernas dos pombos.
Habitavam-no apenas os gatos selvagens. É preciso não
confundir os gatos selvagens com esses gatos vadios e
experimentados que vagabundeiam pelos telhados das casas: a
despeito das suas maneiras bruscas, estes habitantes das cidades são
muito mais civilizados que os gatos selvagens, raça de animais
desconfiados e bravios, sempre escanzelados e com um miar rude e
primitivo. Por vezes, estes mariolas abrem galerias subterrâneas até
aos celeiros, onde se introduzem e roubam o que podem. A sua
audácia vai até ao ponto de saltarem agilmente pelas janelas das
cozinhas logo que sentem a cozinheira afastar-se. São estranhos a
qualquer sentimento generoso, vivem da rapina, e matam os pássaros
dentro dos próprios ninhos.
Uma vez, num dos corredores subterrâneos, um destes
libertinos encontrou a gatinha de Pulquéria Ivanovna, que em breve
se deixou seduzir como uma ingénua de aldeia por um soldado da
cidade. Desde esse dia desapareceu. A dona procurou-a em vão por
toda a parte.
Passaram-se três dias, mas depois de algumas lamentações
Pulquéria Ivanovna acabou por esquecê-la. Até que um dia, quando
regressava duma visita de inspecção à horta, trazendo uma braçada
de pepinos para Atanásio Ivanovitch, lhe chegou aos ouvidos um miar
desolado. Instintivamente começou a chamar: bicha, bicha, bichinha;
e de repente saltou dum silvado a sua gatinha cinzenta, muito magra,
muito desfigurada. Era evidente que já não comia havia muitos dias.
Pulquéria Ivanovna continuava a chamá-la, mas a gata miava, miava
e não ousava aproximar-se, tão selvagem se tinha tornado. Pulquéria
Ivanovna retomou o caminho de casa, continuando os seus apelos:
bicha, bichinha. A gata seguiu-a a medo até à vedação e depois de ter
reconhecido a casa decidiu-se a entrar.
Pulquéria Ivanovna mandou-lhe dar imediatamente leite e
carne, deliciando-se ao ver o animal atacar com sofreguidão os
alimentos.
Aquela favorita pródiga parecia engordar instantaneamente, e
quando se lhe acalmou a voracidade, Pulquéria Ivanovna estendeu a
mão para lhe fazer uma festa no lombo; mas a ingrata saltou ligeira
pela janela e fugiu para sempre, sem dúvida porque tomara já
demasiado gosto pela companhia dos gatos selvagens ou porque sob
a influência deles perfilhara a máxima romântica de que o amor e a
miséria são preferíveis à riqueza e à solidão.
Este incidente deu que pensar à boa da velha. «Foi a morte que
me veio visitar!» acabou por concluir depois de muito matutar. E
toda a santa tarde este pensamento a absorveu, sem que houvesse
forma de afastá-lo.
Atanásio Ivanovitch tentou em vão brincar, gracejar e conhecer
as razões desta melancolia repentina.
Pulquéria Ivanovna permanecia muda ou, então, limitava-se a
dar respostas evasivas que o não satisfaziam. No dia seguinte tinha
emagrecido muito.
- Então, que tem, Pulquéria Ivanovna? Sente-se doente?
- Não, não estou doente, Atanásio Ivanovitch. Mas tenho que o
prevenir dum acontecimento muito importante: vou morrer este
verão. Tenho a certeza: a morte já me veio visitar.
Atanásio Ivanovitch mordeu os lábios de dor, mas dominou-se e
tentou sorrir: - Não sabe o que está a dizer, Pulquéria Ivanovna.
Com certeza que em vez do seu cházinho habitual tomou por engano
uma chávena de aguardente.
- Não, Atanásio Ivanovitch, não bebi nenhuma aguardente.
Atanásio Ivanovitch sentiu-se roído de remorso por aquele
gracejo e fixou o olhar em Pulquéria Ivanovna, enquanto uma lágrima
se lhe encamarinhava nas pálpebras.
- Peço-lhe, Atanásio Ivanovitch, que faça cumprir as minhas
últimas vontades - recomeçou Pulquéria Ivanovna. - Desejo que me
enterrem perto da igreja, que me vistam o meu vestido cinzento,
sabe, aquele que tem umas florzinhas num fundo castanho. De
maneira nenhuma quero que me ponham o meu fato de cetim; os
mortos não têm necessidade de luxos, e ainda se pode fazer dele um
belo robe para que o senhor receba convenientemente as visitas.
- Só Deus pode compreender o que está a dizer, Pulquéria
Ivanovna - repetia Atanásio Ivanovitch. - Se não vai morrer já para
que me está a fazer sofrer com antecedência?
- Engana-se, Atanásio Ivanovitch. Sei muito bem que a minha
morte se aproxima. Não se preocupe nem se amofine por minha
causa: já estou velha, já vivi muito.
O senhor também já não é nenhum rapaz e em breve nos
voltaremos a encontrar no outro mundo.
Atanásio Ivanovitch chorava como uma criança.
- Até é pecado estar a chorar, Atanásio Ivanovitch. Não chore,
não chame sobre si a cólera divina. Eu não tenho pena de morrer. Só
me preocupa uma coisa (e aqui escapou-se-lhe do peito um suspiro
profundo): é não saber a quem confiar, é não saber quem tomará
conta de si quando eu já não estiver a seu lado.
O senhor é como uma criancinha e quem o servir tem de o
amar.
À medida que ia falando ia-se-lhe pintando no rosto uma
expressão de tão profunda piedade e de tão desolador sofrimento,
que ninguém a poderia contemplar com indiferença.
- Escuta, Eudóxia - disse ela à governanta que tinha mandado
chamar à sua presença propositadamente. - Quando eu morrer olha
pelo teu patrão como se fosse um filho teu, dá ordens para que lhe
preparem os pratos de que ele gosta; dá-lhe sempre a roupa muito
limpinha; quando houver visitas, veste-o como deve ser, porque de
contrário ele é muito capaz de receber os hóspedes com um fato
velho, pois já não distingue muito bem os dias de festa dos dias
vulgares.
Nunca o percas de vista, Eudóxia, que eu rezo por ti no outro
mundo e Deus há-de recompensar-te. Não te esqueças de nada do
que te digo; tu estás velha, já não tens muito tempo para viver, não
queiras manchar a tua alma com um pecado. Se não cuidas dele
como deve ser, nunca mais serás feliz neste mundo e eu própria
pedirei a Nosso Senhor para não te conceder uma morte boa, serás
infeliz para todo o resto da tua vida e nem os teus filhos nem a
família receberão as bênçãos de Deus.
Pobre velha! Não pensava nem no momento solene que a
aguardava, nem na salvação da sua alma, nem na vida futura; apenas
a preocupava a sorte daquele homem que fora o companheiro de
toda a sua vida e que agora tinha forçosamente de abandonar. Com
uma lucidez perfeita, determinou todas as coisas de forma que
Atanásio Ivanovitch não pudesse ressentir-se da sua ausência. Estava
tão conscientemente convencida da proximidade da morte e o seu
espírito tão calmamente preparado para aceitar este acontecimento,
que ao fim de alguns dias se recusou a levantar-se e a tomar
qualquer alimento. Atanásio Ivanovitch prodigalizou-lhe todos os
cuidados e atenções, não abandonando nunca a cabeceira da doente.
- Não seria melhor tomar qualquer coisa, Pulquéria Ivanovna? -
perguntava-lhe, olhando-a nos olhos com inquietação.
Mas Pulquéria Ivanovna quedava-se muda. Por fim tentou
balbuciar como que para quebrar este longo silêncio... e exalou o
último suspiro.
Atanásio Ivanovitch ficou esmagado. Esta tragédia deixou-o tão
perplexo que nem sequer verteu uma lágrima: ficou-se a contemplar
o cadáver com um olhar turvo. O sentido da morte parecia escapar à
sua compreensão.
Estenderam o cadáver sobre uma mesa, vestiram-lhe o fato que
tinha indicado, cruzaram-lhe os braços sobre o peito, puseram-lhe
uma vela entre os dedos.
Atanásio Ivanovitch a tudo assistiu numa completa
insensibilidade. Passado pouco tempo, a casa foi invadida por
pessoas de todas as condições, muitas delas vindas de longe para
prestarem a última homenagem. No pátio havia algumas mesas
compridas apinhadas de bolos, aguardentes e o tradicional bolo
funerário, de arroz. Os visitantes falavam, choravam, contemplavam
a defunta, evocavam as suas virtudes e voltavam os olhares para
Atanásio Ivanovitch, que olhava para tudo isto com uma expressão
imbecil. Por fim, levaram o cadáver, toda a gente acompanhou o
enterro - e ele seguiu atrás do cortejo. O padre tinha vestido os
paramentos mais ricos, o sol resplendia, as crianças choravam nos
braços das mães, as cotovias cantavam nos campos, a garotada
brincava à beira dos caminhos.
Finalmente, depositaram o caixão à beira do túmulo e
convidaram-no a aproximar-se para dizer o último adeus à defunta.
Ele aproximou-se e beijou-a maquinalmente; chorava, mas eram
lágrimas quase insensíveis. O caixão desceu à terra; o diácono e os
dois chantres entoaram um requiem num tom baixo e arrastado que
se foi perder no céu puro e sem nuvens; os coveiros tomaram as pás
e em breve a terra cobria completamente a última morada de
Pulquéria Ivanovna. Neste momento, Atanásio Ivanovitch deu uns
passos em frente e toda a gente se afastou, desejosa de conhecer as
suas intenções.
Aproximou-se do túmulo, levantou os olhos do chão, passeou à
sua volta um olhar baço e exclamou: - Já a enterraram! Porquê...?
E foi incapaz de acabar a frase.
Quando se encontrou de novo em casa, naquele quarto vazio
donde tinham retirado tudo, até mesmo a cadeira de Pulquéria
Ivanovna, precipitou-se num pranto impressionante, soluçou, soluçou
sem fim, soluçou dolorosamente, inconsolavelmente com as lágrimas
a escaparem-se-lhe em bica dos olhos embaciados.
Cinco anos se passaram. Há alguma dor que resista ao tempo?
Há algum desgosto, alguma paixão que resista à luta desigual com o
tempo? Conheci outrora um homem na flor da mocidade, dotado dum
carácter verdadeiramente superior e das virtudes mais preciosas,
arrebatado por uma paixão comovedora, louca, exaltada mas nobre.
Pois diante de mim, quase sob os meus olhos, a insaciável ceifeira
levou-lhe o objecto querido do seu amor, uma encantadora criatura,
bela como um anjo. Nunca na minha vida assisti a semelhantes
excessos de arrebatamento, a uma angústia tão pungente, a um
desespero tão frenético.
Nunca tinha imaginado que um homem fosse capaz de criar
dentro de si um inferno tão tenebroso, um inferno onde nunca
penetra o mais pálido reflexo duma esperança. O infeliz apaixonado
era vigiado de perto e retiraram do seu alcance todo o objecto de
que ele pudesse lançar mão para se suicidar. Ao fim de quinze dias,
dominando inesperadamente o seu sofrimento, desatou a rir e a
gracejar: deixaram-no à vontade e ele aproveitou imediatamente a
liberdade para comprar uma arma. E, um dia, soou na casa um tiro
que aterrorizou os parentes: precipitaram-se no quarto e
encontraram-no no chão, com um tiro na cabeça. Correram em
busca dum médico que gozava nessa época de grande nomeada, que
perante o espanto geral conseguiu salvá-lo. Desde então redobraram
a vigilância sobre este infeliz desesperado: esconderam dele todo o
menor objecto com que pudesse ferir-se. Mas acabou por aproveitar
uma oportunidade para se escapar e lançou-se sobre as rodas dum
carro: partiu as pernas e os braços, mas ainda desta vez o
conseguiram salvar. Um ano mais tarde, voltei a encontrá-lo num
salão muito frequentado: estava sentado a uma mesa de jogo e dizia,
com uma voz alegre, desfazendo-se duma carta: "Pouca sorte!"
enquanto por trás dele, de pé, apoiada ao espaldar da cadeira, uma
mulher muito jovem - a mulher dele - brincava despreocupadamente
com os dados.
Cinco anos, pois, após a morte de Pulquéria Ivanovna,
encontrando-me por acaso nessas paragens, ocorreu-me a ideia de ir
surpreender Atanásio Ivanovitch, recordar ao vivo os lugares onde
outrora tinha passado tantas horas felizes amimado pela
generosidade de Pulquéria Ivanovna. Ao chegar diante da casa
pareceu-me que o dobro do tempo tinha passado sobre ela: as
capoeiras estavam em ruínas, e os seus habitantes decerto tinham
desaparecido; a vedação estava completamente destruída, e vi, com
os meus próprios olhos, a cozinheira arrancar-lhe uma das traves
para a pôr no fogão, quando lhe bastava dar mais dois passos para
deitar mão a um monte de lenha. Aproximei-me tristemente da
entrada; os mesmos cães - mas agora cegos ou estropiados -
começaram a ladrar, endireitando as caudas de pêlo frisado mas
sujo. O velho veio ao meu encontro. Ainda hesitei se seria ele, tão
curvado estava.
Reconheceu-me e recebeu-me com o mesmo sorriso que lhe
conhecera. Entrei na casa: superficialmente, tudo parecia na mesma,
mas em breve se notava uma desordem que era indício certo duma
ausência.
Tive a sensação estranha que nos assalta quando penetramos
pela primeira vez na casa dum viúvo que sempre nos habituámos a
ver na companhia inseparável da esposa. E exactamente a mesma
sensação de angústia que nos estrangula quando visitamos um doente
que sempre conhecemos com saúde. Nas mais pequeninas coisas se
notava a falta de solicitude de Pulquéria Ivanovna: uma das facas que
puseram na mesa não tinha cabo; os pratos já não eram servidos com
a mesma perfeição. Para não alargar esta visão de decadência, nem
sequer me informei do estado das culturas e recusei-me a ver as
cavalariças.
Quando nos sentámos à mesa, uma das criadas amarrou um
guardanapo ao pescoço de Atanásio Ivanovitch. Foi uma boa medida,
porque ele teria sujado o fato todo. Esforcei-me por o distrair,
contei-lhe novidades: escutou-me com o seu sorriso de sempre, mas
em certos momentos o seu olhar tornava-se vazio e distante, e na sua
expressão não transparecia o menor traço dum pensamento. Nesses
momentos levava a colher ao nariz, e como não atinava com a boca
era preciso a criada pegar-lhe na mão para comer a sopa. As
refeições eram servidas lentamente, com grandes intervalos entre
cada prato. O próprio Atanásio Ivanovitch se apercebia da demora e
perguntava:
- Porque demoram tanto tempo a servir-nos?
Pela porta entreaberta, vi perfeitamente que o rapaz incumbido
deste serviço se deixara adormecer sobre uma cadeira, com a
cabeça pendida sobre o peito.
- Era este prato - disseme Atanásio Ivanovitch quando nos
apresentaram um pastelão de queijo -, era este prato... - repetiu,
com voz entrecortada e com as lágrimas a saltarem dos olhos - era
este prato que a minha po... pobre...
E, de repente, desfez-se em lágrimas; deixou cair o braço sobre
o prato, que se empinou, caiu no chão e partiu-se; o molho sujou-o
todo. E, contudo, ficou sentado, insensível, de colher na mão,
estático, e dos olhos, como a água duma fonte inesgotável, as
lágrimas corriam, corriam em fios contínuos sobre o guardanapo que
lhe protegia o peito. "Meu Deus", pensava para comigo, "cinco anos
se passaram, cinco anos de acção desse demolidor universal e
impiedoso que é o tempo, e este velho já enregelado a quem a vida
parecia ter protegido de toda a emoção violenta, reservando-lhe o
prazer de longas horas de descanso, a alegria de histórias inocentes
e as delícias e acepipes delicados - cinco anos, e este velho continua
ainda a ser presa duma angústia inflexível. Quem, pois, terá mais
poder sobre a alma humana: a paixão ou o hábito? Talvez os nossos
desejos, os nossos ímpetos, as nossas loucuras sejam apenas
apanágio dos nossos verdes anos, talvez seja apenas a nossa
imaginação juvenil que empreste um halo de realidade a todo esse
turbilhão irresistível de paixões!"
Seja como for, comparadas a este hábito longo, lento e quase
inconsciente, todas essas paixões me pareceram, nesse momento,
futilidades pueris. Por várias vezes Atanásio Ivanovitch tentou
pronunciar o nome da falecida mulher, mas no meio da palavra o
rosto plácido alterava-se-lhe convulsivamente e as suas lágrimas de
criança feriam-me o coração. Não, não eram lágrimas protocolares
em que se mostram sempre pródigos os velhos quando nos contam os
seus infortúnios e tristezas; nem tão-pouco eram as lágrimas fáceis
que o álcool provoca; não, estas lágrimas caíam por si mesmas,
espontâneas, transbordavam dum coração há muito retalhado pela
dor.
Atanásio Ivanovitch morreu pouco depois da minha visita.
Soube há pouco tempo que tinha falecido, e, coisa curiosa,
certas circunstâncias fizeram que a sua morte se assemelhasse à de
Pulquéria Ivanovna. Certo dia, de tempo magnífico, quis dar um
passeio pelo jardim da casa. Ao caminhar lentamente por uma vereda
com a indiferença que nele se tornara habitual, pareceu-lhe ouvir
uma voz que o chamava distintamente: "Atanásio Ivanovitch." Voltou-
se. Não viu ninguém. Olhou para todos os lados, não viu ninguém.
Estava um dia sereno de sol brilhante. Reflectiu um momento, o
rosto iluminou-se-lhe e acabou por exclamar: "É Pulquéria Ivanovna
que me chama!".
Com certeza que já vos aconteceu ouvir uma voz que chama
pelo vosso próprio nome. Dizem as pessoas simples que é uma alma
que tem saudades vossas e que vos comunica a proximidade da
morte. Devo confessar que sempre tive medo deste misterioso apelo,
que aliás ouvi muitas vezes na minha infância. Acontecia geralmente
em dias de sol glorioso: nem uma folha bulia, pairava sobre tudo um
silêncio de morte, os próprios grilos interrompiam o seu cantar, nem
vivalma à minha volta. Este silêncio horrível aliado à serenidade dum
dia límpido assustava-me muito mais do que a noite mais sinistra e
tenebrosa, do que toda a fúria dos elementos surpreendendo-me no
meio duma floresta densa. Fugia a toda a pressa, desnorteado e
ofegante, e só conseguia acalmar-me quando o contacto com um
outro ser humano dissipava em mim a sensação aflitiva de vácuo que
se apoderava do meu coração.
Convencido de que sua mulher o tinha chamado, Atanásio
Ivanovitch curvou-se à ideia da morte com uma docilidade infantil.
Começou a tossir, a emagrecer, a desaparecer lentamente como uma
vela acesa, e como uma vela se extinguiu, quando já nada resta para
alimentar a sua chama débil. "Enterrem-me ao pé de Pulquéria
Ivanovna" foram as suas últimas palavras.
Fizeram-lhe essa vontade e enterraram-no perto da igreja, junto
de Pulquéria Ivanovna. À cerimónia assistiram principalmente
pessoas simples e mendigos.
E, desta vez, a casa ficou deserta. O caseiro e o feitor levaram
para casa tudo o que a governanta não tinha ainda subtraído.
Inesperadamente, surgiu não se sabe bem donde o herdeiro dos
bens, um parente afastado, que tinha sido tenente não sei em que
exército e que tinha a ideia fixa das reformas. Imediatamente
compreendeu o estado de abandono e de desordem em que tudo
estava, e decidiu, portanto, pôr fim a todos os abusos e estabelecer
uma ordem perfeita. Para tal, comprou instrumentos de lavoura
novos, numerou todas as capoeiras - enfim, seguiu uma orientação
tão prudente e tomou medidas tão sábias que ao fim de seis meses
tiveram que o dar por incapaz e pô-lo sob tutela. Depois de
prudentemente estudado o assunto, o espinhoso encargo foi entregue
a um funcionário público reformado e a um capitão da reserva, cujo
uniforme tinha evidentemente sofrido as inclemências do tempo.
Estes ponderados tutores apressaram-se a mandar destruir as
capoeiras, incluindo os ovos e tudo.
As casas de arrecadação, que se inclinavam já quase até ao
chão, acabaram por cair definitivamente.
Os trabalhadores passaram a embriagar-se descaradamente e
acabaram todos por fugir. Quanto ao proprietário, que aliás vivia nas
melhores relações com os seus tutores, com quem se entregava a
generosas libações alcoólicas, raras vezes punha os pés nas suas
terras. Pode-se ainda encontrá-lo em qualquer feira da Pequena
Rússia: informa-se detalhadamente dos preços dos géneros que só se
vendem por grosso, como a farinha, o cânhamo, o mel, para apenas
comprar pedras de isqueiro, cachimbos e outros objectos
insignificantes cujo valor nunca vai além de um rublo.
UMA ALMA SIMPLES
Gustave Flaubert

Durante meio século as donas de casa de Pont-l'Evêque


invejaram à senhora Aubain a sua criada Felicidade.
Por cem francos por ano cozinhava, fazia o governo da casa,
cosia, passava a ferro, arreava um cavalo, dava de comer à criação,
preparava a manteiga e permaneceu fiel à patroa que, diga-se, não
era pessoa agradável.
A senhora Aubain casara com um belo rapaz, embora pobre,
falecido nos princípios de 1809, que lhe deixara dois lindos filhos e
uma quantidade de dívidas. Foi nessa altura que vendeu os bens
imóveis, excepto as quintas de Toucques e de Geffosses, cujas rendas
atingiam, mais ou menos, 5.000 francos. Deixou a residência de
Saint-Melaine a fim de habitar uma casa menos dispendiosa, situada
por detrás do mercado e que pertencera aos seus antepassados.
Esta casa, revestida de ardósias, ficava numa travessa que
desembocava no rio. Tinha, interiormente, diferenças de nível que
faziam escorregar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala
de estar, onde a senhora Aubain passava quase todo o dia, sentada
num cadeirão de palha, colocado perto da janela de sacada. Ao longo
do rodapé pintado de branco alinhavam-se oito cadeiras de acaju.
Um velho piano suportava urna rima piramidal de caixas e papelões,
encimada por um barómetro. Duas tapeçarias com pastorinhas
ladeavam a chaminé, de mármore amarelo, estilo Luís XV, ao centro,
o relógio da parede representava um templo de Vesta e toda a sala
cheirava a bafio porque o soalho ficava mais baixo do que o jardim.
No primeiro andar ficava, à entrada, o quarto da Senhora,
enorme, forrado a papel com flores pálidas onde estava o retrato do
Senhor, em traje de cerimónia. Comunicava com um quarto mais
pequeno com duas caminhas de criança sem colchões. Seguia-se o
salão sempre fechado e cheio de móveis tapados com panos.
Um corredor conduzia a um escritório. Livros e papéis
atulhavam as estantes que cercavam por três lados uma longa mesa
de madeira negra. As paredes, em volta, desapareciam sob a
avalanche de desenhos a tinta, paisagens a «gouaches» e gravuras de
Audran, recordações de um tempo melhor e de um luxo
desaparecido.
No segundo andar uma seteira, deitando para o campo,
iluminava o quarto de Felicidade. Esta levantava-se ao romper da
aurora para não faltar à missa e trabalhava, continuadamente, até à
noite. Depois, terminado o jantar, lavada a louça e bem fechada a
porta, atiçava o fogo, lançando achas nas cinzas e, com o rosário na
mão, dormia regaladamente.
Nas compras ninguém mostrava maior porfia e teimosia. Quanto
ao asseio, o brilho das caçarolas causava desespero às outras
criadas. Era muito poupada, comia devagar e apanhava as migalhas
do pão caídas sobre a mesa, pão esse de doze libras, cozido
expressamente para ela e que durava vinte dias.
Durante todo o ano, trazia às costas, preso por um alfinete, um
lenço de chita e ocultava os cabelos numa touca, usava meias
cinzentas, mantilha vermelha e sobre o colete um avental com
peitilho, como as enfermeiras de hospital.
Tinha o rosto magro e a voz aguda. Aos vinte e cinco anos dava-
se-lhe quarenta. A partir dos cinquenta não aparentou outra idade e,
sempre silenciosa, o busto direito e gestos medidos, parecia uma
mulher de madeira, funcionando automaticamente.

II
Teve, como qualquer outra, a sua história de amor. O pai, um
pedreiro, morrera tendo caído de um andaime. Depois morreu a mãe,
as irmãs dispersaram-se, um quinteiro recolheu-a e empregou-a,
ainda de pequenina, a guardar as vacas no campo.
Tiritava sob os farrapos, bebia a água dos charcos, estendida de
bruços, no chão. Foi sovada a propósito de tudo e de nada e,
finalmente, expulsa por causa de um roubo de trinta soldos que não
cometera. Entrou para outra quinta e serviu como encarregada da
criação. Porque agradava aos patrões, as suas camaradas invejavam-
na.
Numa noite do mês de Agosto (tinha então dezoito anos) os
patrões levaram-na a uma festa em Colleville. Ficou aturdida,
estupefacta com o alarido dos tocadores, as luzes nas árvores, a
variedade de trajes, as rendas, as cruzes de ouro, a multidão que se
movia.
Conservava-se recatadamente afastada quando um rapaz, de
aspecto rico e que fumava o seu cachimbo, apoiando os cotovelos
sobre a lança de um pequeno carro, veio convidá-la para dançar.
Pagou-lhe cidra, café, bolo folhado, deu-lhe um lenço de seda e,
julgando que ela compreendia as suas intenções, ofereceu-se para a
acompanhar a casa. Num campo de aveia atirou-a, brutalmente, ao
chão. Ela teve medo e começou a gritar. Ele afastou-se.
Numa outra tarde, na estrada de Beaumont, ao ultrapassar um
grande carro cheio de feno que avançava, lentamente, reconheceu
Teodoro. Este veio ter com ela pedindo que lhe perdoasse, pois «a
culpa tinha sido da bebida». Não soube que responder e teve
vontade de fugir.
Depois ele falou sobre as colheitas e pessoas importantes da
comuna e, visto que seu pai tinha trocado Colleville pela quinta de
Ecots, eis a razão porque eram vizinhos. «Ah! » - disse ela. Ele
acrescentou que desejavam casa-lo. Mas não tinha pressa, pois
esperava encontrar mulher a seu gosto.
Felicidade baixou a cabeça. Ele perguntou-lhe se pensava em
casar. Ela retorquiu, rindo-se, que não era bonito gracejar com
coisas tão sérias. «Mas não! Juro-te que falo a sério», e, com o braço
esquerdo, apertou-lhe a cintura. Caminhava, assim, apoiada nele.
Retardaram o passo. O vento soprava brando, as estrelas
brilhavam e a enorme carripana de feno oscilava na sua frente. Os
quatro cavalos, arrastando os passos, levantavam nuvens de poeira.
Depois, sem governo, voltaram à direita. Ele abraçou-a uma vez
mais.
Ela desapareceu na sombra.
Na semana seguinte Teodoro conseguiu encontrar-se várias
vezes com Felicidade, sob uma árvore isolada, ao fundo das
capoeiras, por detrás de um muro. Não era inocente como as
meninas recatadas - os animais haviam-na instruído; mas a razão e o
instinto da honra impediram-na de cair. Esta resistência exasperou o
amor de Teodoro ainda que, para satisfaze-lo, (ou talvez
sinceramente) lhe haja proposto casamento. Ela hesitou em
acreditar. Todavia ele fez grandes promessas.
Depressa confessou algo aborrecido: os pais, no ano transacto,
haviam-no feito substituir no serviço militar por um outro homem a
quem pagaram para esse efeito. Mas, de um dia para o outro,
poderiam vir buscá-lo.
A ideia de servir o exército amedrontava-o.
Esta cobardia foi para Felicidade uma prova de ternura. A sua
por ele duplicou. Escapava-se, de noite e, quando se encontravam,
Teodoro torturava-a com os seus receios e as suas instâncias.
Por fim disselhe que iria à Prefeitura colher informações e trá-
las-ia, no domingo seguinte, entre as onze horas e a meia-noite.
No momento aprazado correu para o noivo. Em seu lugar
encontrou um dos amigos. Este fez-lhe saber que não deviam
encontrar-se mais.
Para conseguir fugir ao alistamento militar, Teodoro casara-se
com uma velha muito rica, a senhora Lehoussais, de Toucques.
Sentiu uma amargura imensa. Atirou-se ao chão, gritou, invocou
Deus e, sozinha, chorou até ao nascer do sol. Em seguida voltou à
quinta e participou que saía. No fim do mês, feitas as contas, enrolou
toda a sua bagagem num lenço e dirigiu-se a Pont-l'Evêque.
Em frente da estalagem encontrou uma viúva que,
precisamente, procurava uma cozinheira. A rapariga pouco sabia
mas parecia ter tão boa vontade e tão poucas exigências que a
senhora Aubain acabou por dizer: - «Está bem, aceito-a»!
Felicidade um quarto de hora depois estava na nova casa. A
princípio viveu numa espécie de receio que lhe causavam «o género
da casa» e a «recordação do senhor», dominando tudo.
Paulo e Virgínia, aquele de sete anos de idade, e esta de quatro
anos, pareciam-lhe feitos de uma matéria preciosa. Andava com eles
às cavalitas e a senhora Aubain proibiu-a de os beijar, de minuto a
minuto, o que a martirizou. Todavia sentia-se feliz. A doçura do
ambiente eclipsara a sua tristeza.
Às quintas-feiras apareciam as costumadas visitas para a
partida do boston. Felicidade preparava, de antemão, as cartas e os
aquecedores. Chegavam, justamente, às oito horas da noite e saiam
antes das onze badaladas.
Às segundas-feiras, pela manhã, o ferro velho, que morava na
rua, estendia no chão a sucata. Pouco a pouco a cidade enchia-se de
um ruído de vozes a que se misturavam os relinchos dos cavalos, o
balar dos cordeiros, o grunhir dos porcos e a trepidação seca dos
carros na calçada.
Perto do meio-dia, quando o mercado atingia o auge, aparecia, à
entrada da porta da senhora Aubain, um velho camponês,
desempenado, boné lançado para a nuca, nariz recurvo e que era,
nem mais nem menos, Robelin, o quinteiro de Geffosses. Pouco
tempo depois vinha Liébard, o quinteiro de Toucques, pequeno,
avermelhado, obeso, vestindo de cinzento o calçando polainas altas
de couro, armadas de esporas. Ambos ofereciam à sua proprietária
frangos e queijos. Felicidade, invariavelmente, frustrava as suas
intenções manhosas e eles saíam cheios de consideração por ela.
De tempos a tempos a senhora Aubain recebia a visita do
marquês de Grémanville, seu tio, arruinado por causa do jogo e que
vivia em Falaise, no último pedaço das suas imensas terras de
outrora.
Chegava sempre à hora do almoço, com um cão de água muito
feio que, com as patas, sujava os móveis. Apesar dos esforços para
parecer elegante, chegando a tirar o chapéu sempre que dizia «meu
falecido pai» todavia, cedendo ao hábito, bebia cálix após cálix,
larachando sempre. Felicidade despedia-o: - «O senhor ainda tem
muito que fazer, senhor de Grémanville! Até outro dia». E fechava a
porta.
Abria-a com prazer ao senhor Bourais, antigo procurador. A
gravata branca, a calvície, o peitilho da camisa, a ampla sobrecasaca
castanha, a sua maneira de gesticular, descrevendo círculos no ar
quando fazia cálculos, todo este conjunto produzia nela perturbação
semelhante àquela que em nós provoca a presença de qualquer
homem extraordinário.
Administrava as propriedades da senhora e, por isso, fechava-se
com ela durante horas no escritório do «senhor», receava sempre
comprometer-se, respeitava intimamente a magistratura e tinha
pretensão a latinista.
Para instruir de forma agradável as crianças ofereceu-lhes urna
geografia com gravuras. Representavam diferentes curiosidades do
mundo, tais como antropófagos coroados de penas, um macaco
roubando uma menina, os beduínos no deserto, uma baleia ao ser
arpoada, etc.
Paulo explicou estes desenhos a Felicidade. Foi esta,
precisamente, toda a sua educação literária. A das crianças era
ministrada por Guyot, um pobre diabo empregado na Câmara,
famoso pela sua boa caligrafia e que amolava o canivete nas botas.
Quando o tempo estava bom partiam cedo para a quinta de
Geffosses. O pátio ficava numa encosta e a casa no meio dele; ao
longe, o mar aparecia como uma mancha cinzenta. Felicidade
retirava do cabaz fatias de carne fria e almoçavam numa casa
contígua à vacaria. Eram os últimos vestígios de uma casa de
recreio, agora desaparecida.
O papel das paredes, às tiras, tremia com as correntes de ar. A
senhora Aubain inclinava a fronte repleta de recordações; as
crianças não se atreviam a falar.
- «Brinquem»! ordenava. Elas desapareciam. Paulo subia ao
celeiro, apanhava pássaros, fazia ricochetes na água ou batia com
um pau nas enormes pipas que ressoavam como tambores. Virgínia
dava comida aos coelhos, apanhava miosótis e, na rapidez da corrida,
deixava ver as calcinhas bordadas.
Uma tarde de outono voltaram através das pastagens. A lua, no
seu primeiro quarto, iluminava uma parte do céu e a neblina flutuava
como um manto sobre as sinuosidades de Toucques.
Bois, deitados no meio da relva, olhavam tranquilamente as
quatro pessoas que passavam. Na terceira pastagem alguns
ergueram-se na frente deles, olhando em volta.
- «Não tenham medo» - disse Felicidade e, murmurando uma
espécie de lamento, acariciou o lombo do que lhe ficava mais perto:
ele voltou-se, os outros imitaram-no.
Mas quando atravessavam a pastagem seguinte ouviram um
formidável mugido. Era um touro que o nevoeiro ocultava.
Avançou para as duas mulheres. A senhora Aubain ia correr.
- «Não, não, mais devagar». - Apesar disso apressaram o passo
e ouviam atrás um sopro ruidoso que se aproximava. Os cascos,
como martelos, batiam a erva do prado. Ei-lo que galopa agora.
Felicidade voltou-se e com ambas as maus arrancava pedaços de
relva que ia atirando para os olhos.
O touro baixava o focinho, sacudia os cornos, tremia de furor,
mugindo horrivelmente.
A senhora Aubain, ao fundo da passagem, procurava,
desvairada, transpor o alto muro. Felicidade recuava sempre diante
do touro, lançando-lhe continuadamente os pedaços de relva com
terra agarrada, que o cegavam, gritando:
- «Despachai-vos! Despachai-vos !»
A senhora Aubain desceu o fosso e pousou Virgínia, Paulo fez
várias tentativas para subir o talude, mas caía. Por fim conseguiu-o à
força de coragem.
O touro encurralou Felicidade numa vedação. A sua baba
salpicava-lhe já a cara. Um segundo mais e estripava-a. Teve tempo
de se escapar por entre dois varões e o corpulento animal,
surpreendido, parou.
Durante muitos anos, este acontecimento foi motivo de conversa
em Pont-l'Evêque. Felicidade não se mostrou orgulhosa com o facto
nem pensou que tivesse feito algo de heróico.
Virgínia ocupava-a, exclusivamente, porque teve, em
consequência do susto, uma doença nervosa e o Dr. Poupart
aconselhou banhos de mar em Trouville. Nesse tempo não eram
frequentados. A senhora Aubain colheu informações e fez
preparativos para uma longa viagem.
A bagagem seguiu, de véspera, no carro de Liébard. No dia
seguinte trouxe este dois cavalos, um com sela para mulher, munida
de um espaldar de veludo. Na garupa do segundo, uma manta
enrolada formava uma espécie de cadeira. A senhora Aubain tomou
lugar atrás de Liébard. Felicidade encarregou-se de Virgínia e Paulo
escarrapachou-se no burro do senhor Lechaptois, emprestado sob
condição de terem com ele o maior cuidado.
A estrada era tão má que, para percorrem oito quilómetros,
gastaram duas horas. Os cavalos afundavam-se na lama, fazendo,
para sair dela, bruscos movimentos de ancas. Umas vezes
tropeçavam no rodado vincado na estrada. Outras, era preciso
saltar.
O jumento de Liébard, em certas alturas, parava bruscamente.
Cheio de paciência o dono esperava que recomeçasse a andar.
Falava a respeito dos proprietários das terras que ladeavam o
caminho, juntando às histórias reflexões de ordem moral. Assim, no
meio de Toucques, ao passar sob uma janela cercada por uma
trepadeira disse, encolhendo os ombros: - «aqui está uma, a senhora
Lehoussais que, em vez de ter casado com um rapaz novo...»
Felicidade não ouviu o resto.
Os cavalos trotavam, o burro galopava. Enfiaram por um atalho,
contornando uma barreira; apareceram dois rapazes e desceram
mesmo à porta da estrebaria.
A tia Liébard, ao ver a patroa prodigalizou-lhe demonstrações
de alegria. Serviu-lhes um almoço composto de costela de vaca,
tripas, morcela, frango de fricassé, cidra espumante, uma torta de
compotas e brunhos em aguardente, acompanhando tudo isto de
mesuras e gentilezas para com a senhora Aubain que parecia de
«óptima saúde», a menina, agora «magnífica» e o menino Paulo,
singularmente «crescido», sem esquecer seus falecidos avós que os
Liébard tinham conhecido, pois estavam ao serviço da família desde
há muitas gerações.
A quinta tinha, como eles, um aspecto vetusto. As vigas do tecto
estavam carunchosas, as paredes negras do fumo, os vidros das
janelas cinzentos de poeira. Sobre um aparador de castanho via-se
toda a espécie de utensílios: canjirões, pratos, escudelas de estanho,
armadilhas, tesouras de tosquiar carneiros. Uma enorme seringa fez
rir as crianças. Todas as árvores dos três quintais tinham cogumelos
na base ou camadas de visco nos ramos. O vento derrubara várias
delas; renasceram e vergavam, agora, sob o peso dos frutos. Os
tectos de palha, semelhantes a veludo castanho e de espessuras
diferentes, resistiam às mais fortes borrascas. Entretanto a cocheira
caía, em ruínas.
A senhora Aubain dizia que tomaria providências e mandou que
aparelhassem os animais.
Demoraram meia hora a chegar a Trouville.
A pequena caravana apeou-se para atravessar os Ecores;
tratava-se de uma falésia a prumo sobre os barcos. E, três minutos
mais tarde, ao fundo do cais entraram no pátio do «Cordeiro de
ouro», casa da tia David.
Virgínia, poucos dias depois, sentiu-se menos fraca, resultado da
mudança de ares e da acção dos banhos. Tomava-os em camisa, à
falta de fato de banho e a criada vestia-a na cabana do guarda da
alfândega. Todos os banhistas, aliás, faziam o mesmo. À tarde iam
com o burro para lá das rochas negras, para as bandas de
hennequeville. O atalho, a princípio, subia por entre terrenos
cobertos de relva, como um prado, depois atingia o planalto, onde
alternavam as pastagens e os campos de lavoura.
Ladeavam-no moutas de espinheiros de entre os quais se
elevavam, altaneiros, os azevinhos. Aqui e além uma grande árvore
desenhava no ar azul ziguezagues, com os seus ramos. Quase sempre
repousavam num prado, tendo Deauville à esquerda, o Havre à
direita e, em frente, o mar. Este, liso como um espelho, brilhava com
o sol e de tal maneira brando que se ouvia apenas o seu murmúrio.
Pardais ocultos pipiavam e a abóbada imensa do céu cobria tudo isto.
A senhora Aubain, sentada, costurava. Virgínia, perto dela,
entrançava juncos. Felicidade sachava as flores de alfazema. Paulo,
aborrecido, queria partir.
Outras vezes, tendo atravessado de barco para Toucques,
procuravam conchas. A maré baixa deixava a descoberto ouriços do
mar e medusas; e as crianças corriam para os flocos de espuma que
o vento arrastava. As ondas adormecidas, caindo sobre a areia,
desdobravam-se, ao longo da praia; esta estendia-se a perder de
vista mas do lado da terra, tinha por limite as dunas do «Marais»,
larga pradaria, em forma de hipódromo. Quando voltavam, Trouville,
ao fundo na encosta da colina, aumentava de tamanho, a cada passo
e, com as casas desiguais, parecia espalhar-se numa desordem
alegre.
Nos dias mais quentes não saiam do quarto. A deslumbrante
clareza de fora chapeava barras de luz entre as travessas das
gelosias. Nenhum ruído na povoação. Em baixo ninguém nos
passeios. Este silêncio generalizado aumentava a tranquilidade das
coisas.
Ao longe os martelos dos calafates batiam as quilhas das
embarcações e uma brisa pesada trazia o cheiro do alcatrão.
O principal divertimento era constituído pelo regresso dos
barcos. Desde que ultrapassavam as balizas começavam a bordejar.
As velas desciam para dois terços dos mastros e, com a mezena
inchada como um balão, avançavam, deslizavam por entre o
marulhar das vagas, até ao meio do porto, onde a âncora
imediatamente caía. Depois os barcos colocavam-se em frente do
cais. Os marujos lançavam por cima do costado dos barcos, peixes
ainda vivos, a saltar. Uma fila de carros esperava e as mulheres, com
lenços de algodão esforçavam-se por segurar os cabazes e abraçar
os seus maridos.
Uma delas, um dia, foi ter com Felicidade que, pouco depois,
entrou no quarto, toda satisfeita: tinha encontrado uma irmã.
Anastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu com um bebé ao
colo, outro pela mão direita e, à esquerda, um outro vestido de
marujo, de punhos na anca e gorro enterrado até às orelhas. Ao fim
de um quarto de hora a senhora Aubain despediu-a. Encontravam-
nos sempre nas proximidades da cozinha ou quando passeavam. O
marido não aparecia. Felicidade tomou-lhes afeição. Comprou-lhes
uma manta, camisas, um fogão; evidentemente eles exploravam-na.
Esta fraqueza de Felicidade irritava os nervos da senhora
Aubain, que, além disso, não gostava das familiaridades do sobrinho
porque ele tuteava seu filho. E, como Virgínia tossia e a estação já
não era boa, voltaram para Pont-l'Evêque.
O senhor Bourais ajudou-a a escolher um colégio. O de Caen
passava por ser o melhor Paulo foi pois para lá e portou-se bem à
despedida, foi mesmo valente, satisfeito por ir viver para uma casa
onde passava a ter camaradas.
A senhora Aubain, conformou-se com o afastamento do filho,
porque era indispensável. Virgínia pensou nele pouco.
Felicidade lamentava-se com alarido. Mas uma ocupação veio
distraí-la: a partir do Natal levava todos os dias a menina à
catequese.

III
Depois de fazer à entrada uma genuflexão, Felicidade avançava
na comprida nave, por entre a dupla linha de cadeiras, abria o banco
da senhora Aubain, sentava-se e passeava os olhos em redor.
Os rapazes à direita e as raparigas à esquerda enchiam as
cadeiras do coro; o padre estava de pé, perto da estante. Num vitral
da abside o Espírito Santo encimava a figura da Virgem. Um outro
mostrava-a, de joelhos, diante do Menino Jesus e, atrás do
Tabernáculo, um grupo de madeira representava S. Miguel
trespassando o dragão.
O sacerdote fez primeiro um resumo da História Sagrada.
Felicidade supunha ver o Paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as
cidades em chamas, pessoas que morriam, ídolos destruídos e
guardou deste deslumbramento o respeito ao Altíssimo e o temor da
Sua cólera.
Depois chorou, ouvindo a Paixão. Porque crucificaram Aquele
que amava as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e
tinha querido, por bondade, nascer no meio dos pobres, reclinado
num estábulo?
As sementerias, as colheitas, os lagares, todas as coisas
familiares de que fala o Evangelho encontram-se na sua vida. Deus à
sua passagem tinha-as santificado: e ela amava mais ternamente os
cordeiros por amor do Cordeiro, as pombas, por causa do Espírito
Santo.
Tinha dificuldade em imaginar o Espírito Santo porque não era
somente ave, mas também fogo e sopro. É talvez a Sua luz que
volteja, à noite, em volta dos pântanos, o Seu hálito que empurra as
nuvens, a Sua voz que dá harmonia aos sinos. E ela mantinha-se em
adoração, gozando a frescura das paredes e a tranquilidade da
igreja.
Nada compreendia dos dogmas nem tentava compreender. O
cura discorria, as crianças recitavam e ela acabava por adormecer.
Acordava, bruscamente, quando ouvia o bater dos tamancos nas
lajes. Foi assim, à custa de o ouvir, que aprendeu o catecismo, pois
na sua juventude a educação religiosa fora descurada e, desde então,
imitou todas as práticas de Virgínia, jejuando e confessando-se
quando esta o fazia.
Na Festa do Corpo de Deus fizeram juntas um altar. A primeira
comunhão atormentou-a muito tempo antes. Preocupou-se com os
sapatos, o chapéu, o livro, as luvas e com que emoção ajudou a mãe a
vestir a menina!
Durante toda a missa sofreu agonias. O senhor Bourais
guardou-lhe um lugar no coro. À sua frente, o grupo das virgens, com
as suas coroas brancas sobre os véus caídos, formava como que um
campo de neve. E ela reconhecia, de longe, a sua querida menina, de
pescocinho fino e atitude recolhida. A campainha soou.
As cabeças curvaram-se. Fez-se silêncio. Ao som do órgão o
grupo coral e a multidão entoaram o «Agnus Dei». Começou então o
desfile dos rapazes e depois deles as raparigas levantaram-se. Passo
a passo, de mãos juntas, caminharam para o altar, completamente
iluminado, ajoelharam-se no primeiro degrau, sucessivamente iam
recebendo a hóstia e, pela mesma ordem, voltaram aos
genuflexórios. Quando chegou a vez de Virgínia. Felicidade inclinou-
se para vê-la. E com a imaginação que dão as verdadeiras ternuras
pensava que era, ela própria, aquela criança: a figura da menina
tornava-se sua, o seu vestido vestia-o ela também, e igualmente o seu
coração era o que lhe batia agora no peito. No momento em que
Virgínia abriu a boca, cerrando as pálpebras, Felicidade sentiu-se
desfalecer.
No dia seguinte, de manhã cedo, apresentou-se na sacristia
para que o senhor cura lhe desse a comunhão. Recebeu-a, com toda
a piedade e recolhimento, mas não gozou as mesmas delícias.
A senhora Aubain queria dar à sua filha uma educação
completa. E como Guyot não podia ensinar-lhe inglês e música,
resolveu interná-la nas Ursulinas de Honfleur.
A criança nada objectou. Felicidade suspirava, vendo a senhora
insensível. Depois pensou que a sua senhora talvez tivesse razão.
Estas coisas excediam a sua competência.
Finalmente, um dia, parou diante da porta um grande carro,
descendo dele uma religiosa que vinha buscar a menina. Felicidade
carregou as bagagens para o tejadilho, fez recomendações ao
cocheiro, colocou na caixa seis frascos de compotas e uma dúzia de
pêras, com um ramo de violetas.
Virgínia, no último momento, emocionou-se muito. Abraçava a
mãe que a beijava na fronte repetindo: - «Então, coragem!
Coragem!»; o estribo da carruagem foi levantado e esta partiu.
Então a senhora Aubain teve um desfalecimento; e, à noite, todos os
seus amigos, o casal Lormeau, a senhora Lechaptois, as meninas
Rochefeuille, o senhor de Houppeville e Bourais apresentaram-se
para a consolar.
A ausência da filha foi-lhe, de princípio, muito dolorosa. Mas,
três vezes por semana, recebia carta dela; nos outros dias escrevia-
lhe, passeava no jardim, lia um pouco e, desta maneira, combatia o
vazio das horas.
De manhã, por hábito, Felicidade entrava no quarto de Virgínia
e olhava as paredes. Aborrecia-se não mais ter que a pentear,
apertar-lhe as botas, prender-lhe a roupa da cama - e de não ver,
continuamente, a sua figura gentil, não a segurar pela mão quando
saíam juntas.
Na sua ociosidade, tentou fazer renda, mas os seus dedos muito
grossos partiam a linha, não ouvia nada, tinha perdido o sono e
segundo as suas próprias palavras, estava «consumida».
Para se distrair pediu autorização para receber o seu sobrinho
Vítor. Chegava depois da missa, ao domingo, as faces rosadas, o
peito nu e rescendendo intensamente ao campo que atravessava.
Seguidamente punha o seu talher; almoçavam um em frente do outro
e comendo ela o menos possível, para poupar, enchia-o de tal
maneira de comida que ele acabava por adormecer.
À primeira badalada das vésperas acordava-o, escovava-lhe o
casaco, fazia-lhe o nó da gravata e ia à igreja, apoiada no seu braço
com um orgulho maternal.
Os pais encarregavam-no de lhe extorquir qualquer coisa: um
pacote de açúcar, sabão, aguardente, por vezes mesmo, dinheiro.
Trazia o vestuário para consertar e ela aceitava esta tarefa, feliz por
ele ter motivo que o forçava a voltar.
Em Agosto o pai levou-o para a faina da cabotagem. Era a
altura das férias. A chegada dos meninos consolou-a. Mas Paulo
tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha já idade para se tratar por
tu, o que punha um embaraço, uma barreira entre eles.
Vítor foi, sucessivamente, a Morlaix, a Dunquerque e a
Brighton; na volta de cada viagem oferecia-lhe um presente. Da
primeira vez uma caixa de conchas; da segunda uma chávena, e da
terceira um grande boneco de especiarias. Ele embelezara,
enformara, tinha um bigodinho, belos olhos francos e um chapelinho
de coiro, colocado para trás, como um piloto. Divertia-a, contando-
lhe histórias, misturadas de termos marítimos.
Uma segunda-feira, 24 de Julho de 1819, (não esqueceu a data),
Vítor anunciou que se alistara nas viagens de longo curso e daí a dois
dias, à noite, pelo paquete de Honfleur, iria reunir-se a sua galeota,
que devia largar do Havre, proximamente. Estaria ausente, talvez,
dois anos.
A perspectiva de tal ausência desolou Felicidade e, ainda para
lhe dizer adeus, na quarta-feira à tarde, depois do jantar da senhora,
calçou as galochas e galgou as quatro léguas que separam Pont-
l'Evêque de Honfleur.
Quando chegou ao Calvário, em vez de virar à esquerda, virou à
direita, perdeu-se nos quarteirões e voltou. As pessoas com quem
falava aconselhavam-na a apressar-se. Percorreu a doca cheia de
navios, chocou com as amarras depois o terreno baixou, as luzes
entrecruzaram-se e ela julgou-se doida, vendo cavalos no ar. À ponta
do cais outros relinchavam aterrorizados pelo mar.
Um guindaste erguia-os e descia-os no barco onde os viajantes
se misturavam com as barricas de cidra, os cabazes de queijo, os
sacos de grão; ouvia-se cacarejar as galinhas; o capitão praguejava;
um grumete, indiferente a tudo isto, estava encostado ao pau em que
descansa a âncora. Felicidade, que não o reconhecera, gritou:
- «Vítor!» Ele levantou a cabeça; a escada foi tirada no
momento em que se precipitava para alcançá-la.
O paquete, que as mulheres puxavam cantando, saiu do porto. A
carcassa rangia, pesadas vagas fustigavam a proa. A vela virara, não
se via ninguém - e no mar, prateado pela lua, o barco era uma
mancha negra que empalidecia até desaparecer por completo.
Felicidade, ao passar junto do Calvário quis recomendar a Jesus
aquele que mais amava; e rezou durante muito tempo, de pé, a cara
cheia de lágrimas, os olhos erguidos para o céu. A cidade dormia, os
guardas-fiscais passeavam e a água caía, continuamente, pelos
buracos da comporta, com um ruído de torrente. Soaram duas horas.
O locutório só abriria de manhã. Um atraso, certamente,
contrariaria a senhora; e, apesar do seu desejo de abraçar a menina,
voltou.
As raparigas da estalagem acordavam quando ela entrou em
Pont-l'Evêque. Pobre criança que ia durante dois meses rolar sobre
as ondas! As suas viagens precedentes não a tinham preocupado. Da
Inglaterra e da Bretanha voltava-se; mas a América, as Colónias, as
Ilhas, ficavam perdidas numa região incerta, no fim do mundo.
A partir de então, Felicidade pensou exclusivamente no
sobrinho. Nos dias de sol atormentava-a a ideia da sede; se fazia
tempestade temia que o atingisse o raio. Escutando o vento, que
bramia na chaminé e levava as telhas, via-o batido por essa mesma
tempestade, na parte mais alta de um mastro partido, todo o corpo
para a frente, sob uma toalha de escuma; ou então - recordação da
geografia em estampas - era comido pelos selvagens, preso num
bosque pelos macacos, morrendo numa praia deserta. E nunca falava
das suas inquietações.
A senhora Aubain tinha-as, também, quanto à filha.
As religiosas achavam-na afectuosa mas de saúde delicada. A
mais pequena emoção a perturbava. Era necessário abandonar o
piano. A mãe exigia correspondência regular do convento.
Uma manhã em que o carteiro não trouxe correspondência, ela
impacientou-se; e caminhava na sala, da cadeira para a janela. Era
verdadeiramente extraordinário Quatro dias sem notícias!
Para a consolar, com o seu exemplo, Felicidade disselhe:
- «E eu, minha senhora, que há seis meses não as tenho». -
«Mas de quem?»
A criada replicou docemente:
- «Mas... do meu sobrinho!»
- Ah! o teu sobrinho! E erguendo os ombros a senhora Aubain
retomou o seu passeio, o que queria dizer: «Nunca pensei nisso!
Estou surpreendida! Um grumete, um pobretão, que tolice! Enquanto
que a minha filha... Suponham!»
Felicidade, se bem que rude, ficou indignada contra a senhora;
depois esqueceu. Achava muito natural que se perdesse a cabeça
tratando-se da menina. As duas crianças tinham uma importância
igual; um laço no seu coração as unia e os seus destinos deviam ser
os mesmos.
O farmacêutico informou-a de que o barco de Vítor chegara a
Havana. Lera esta notícia numa gazeta.
Por causa dos charutos, ela imaginava Havana uma terra onde
só se fumava e Vítor circulava entre os negros, numa nuvem de fumo.
Poder-se-ia, «em caso de necessidade», voltar por terra? A que
distância ficava de Pont-l'Evêque? ela interrogou sobre isto o senhor
Bourais.
Ele abriu o Atlas e deu explicações sobre as distâncias. Tinha
um sorriso pretensioso perante o pasmo de Felicidade.
Enfim, com o lápis indicou nos recortes duma mancha oval um
ponto negro, imperceptível, concluindo
- «É aqui». Ela debruçou-se sobre o mapa. Aquela rede de
linhas coloridas fatigou-lhe os olhos sem nada lhe ensinar e como
Bourais lhe perguntasse o que a embaraçava, pediu-lhe que lhe
mostrasse a casa onde Vítor morava. Bourais levantou os braços,
espirrou, riu estrepitosamente; semelhante candura excitara a sua
alegria; e Felicidade não compreendeu a razão do riso - ela que
esperava ver até, talvez, o retrato do sobrinho, tão limitada era a
sua inteligência.
Foi quinze dias depois que Liébard, à hora do mercado, como
habitualmente, entrou na cozinha e lhe entregou uma carta do
cunhado. Como nenhum sabia ler pediu à patroa.
A senhora Aubain, que fazia malha, poisou-a perto, abriu a
carta, leu-a e, em voz baixa, com profundo olhar: - «É uma desgraça -
o que te anunciam. O teu sobrinho...» Morreu. Não era preciso dizer
mais. Felicidade tombou sobre uma cadeira, apoiando a cabeça no
espaldar e fechou as pálpebras que se avermelharam imediatamente.
Depois, cabeça baixa, mãos pendentes, olhar fixo, repetia a
intervalos: - «Pobre rapazinho! Pobre rapazinho!»
Liébard contemplava-a, soltando suspiros. A senhora Aubain
tremia um pouco. Propôs-lhe que fosse ver a irmã a Trouville.
Felicidade respondeu, por gestos, que não havia necessidade disso.
Fez-se silêncio. O bom Liébard julgou conveniente retirar-se. Então
ela disse: - «Isso não adiantava nada».
A cabeça recaiu-lhe e, maquinalmente, levantava, de vez em
quando, grandes agulhas sobre a mesa de trabalho. Passaram
mulheres na rua com uma padiola cheia de roupa branca. Vendo-as,
pelos vidros, lembrou-se da sua barrela; tendo-a coado, na véspera,
era necessário hoje lavar; e saiu da sala.
O lavadouro ficava ao fundo de Toucques. Ela lançou-lhe para
dentro uma porção de camisas, arregaçou as mangas, pegou no
batedor e as pancadas fortes que dava ouviam-se nos outros jardins,
ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava a ribeira; ao
fundo, ervas muito altas inclinavam-se como cabeleiras de cadáveres,
flutuando na água.
Reprimiu a sua dor até à noite; foi muito corajosa mas no quarto
abandonou-se ao desgosto, deitada de barriga para baixo, a cara no
travesseiro e os dois punhos apertando as têmporas.
Muito mais tarde, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as
circunstâncias do seu fim. Tinham-no sangrado, demasiadamente, no
hospital, por causa da febre amarela. Quatro médicos o tratavam,
revezando-se. Depois morreu e o chefe havia dito: - «Ora esta, ainda
mais um!». Seus pais tinham-na sempre tratado com grosseria. Ela
preferiu não os ver; e eles também não se apressaram a fazê-lo, por
esquecimento ou insensibilidade de miseráveis.
Virgínia enfraquecia. Opressões, tosse, febre contínua e a
lividez do rosto ocultavam alguma afecção profunda. O Dr. Poupart
tinha aconselhado uma estadia na Provença. A senhora Aubain
experimentou e voltou de seguida a trazer a filha para o colégio, sem
passar por Pont-l'Evêque.
Fez um contrato com um alugador de carruagens para a levar
todas as terças-feiras ao convento. No jardim há um terraço donde
se vê o Sena. Virgínia passeava nele, pelo braço de sua mãe, sobre
as folhas de pâmpanos caídas no chão. Às vezes o sol, atravessando
as nuvens, obrigava-a a fechar as pálpebras, quando olhava as velas
ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de Tancarville até aos
faróis do Havre. Em seguida repousava sob o caramanchão. A mãe
procurava um pequeno barril de excelente vinho de Málaga. E, rindo-
se com a ideia de ficar embriagada, bebia dois golos, não mais.
As suas forças reapareceram. O Outono desapareceu
docemente. Felicidade animava a senhora Aubain. Mas, numa tarde
em que fora aos arredores dar um passeio, quando voltou encontrou
diante da porta a carruagem do Dr. Poupart; ele estava no vestíbulo,
a senhora Aubain compunha o chapéu.
- «Dê-me o meu abafo, a bolsa e as luvas, o mais depressa
possível».
Virgínia sentia o peito oprimido. Estava, talvez, em estado
desesperado.
- «Ainda não» diz o médico; e os dois subiram para a carruagem,
sob os flocos de neve que caíam. Aproximava-se a noite. Fazia muito
frio. Felicidade precipitou-se para a igreja, a fim de acender uma
vela. Depois correu atrás da carruagem que alcançou uma hora mais
tarde, saltou com ligeireza para a parte traseira onde ela se
aguentava nos torçais, quando lhe sobreveio uma reflexão: - «O pátio
não estava fechado! E se os ladrões assaltassem a casa?» E desceu.
No dia seguinte, ao romper da aurora foi a casa do doutor que
tinha regressado mas saíra para o campo. Depois ficou na estalagem,
julgando que desconhecidos trariam uma carta. Enfim, ao findar do
dia, tomou a diligência para Lisieux.
O convento encontrava-se ao fundo de uma ruela escarpada. A
meio ela ouviu sons estranhos, dobre de finados. «Trata-se de
outros» - pensava ela; e Felicidade bateu violentamente. Ao fim de
alguns minutos a porta entreabriu-se e apareceu uma religiosa.
A boa irmã, com um ar compungido, disse que «ela acabava de
morrer». Ao mesmo tempo os sinos de Saint-Léonard tocavam a
finados.
Felicidade chegou ao 2.º andar. Da porta do quarto viu Virgínia
deitada de costas, de mãos juntas, boca aberta, cabeça lançada para
trás sob uma cruz negra que se inclinava para ela, entre cortinas
imóveis, menos pálidas que a sua cara. A senhora Aubain, agarrada à
cama, soltava suspiros angustiosos. A superiora estava de pé, à
direita. Três castiçais sobre a cómoda, eram três manchas
vermelhas e o nevoeiro branquejava as janelas. As freiras levaram a
senhora Aubain.
Durante duas noites Felicidade não deixou a morta. Repetia as
mesmas orações, lançava água benta no vestuário, voltava a sentar-
se e contemplava-a.
Ao fim da primeira noite de vigília, notou que a cara tinha
amarelecido, os lábios azulado; o nariz afilara entre os olhos
cavados. Ela beijou-os muitas vezes. E não sentiria espanto se
Virgínia, nessa altura, os abrisse. Para almas destas o sobrenatural é
muito simples.
Ela lavou-a, vestiu-a, envolveu-a na mortalha, deitou-a no
caixão, colocou-lhe uma coroa e segurou-lhe os cabelos. Estes eram
louros e extraordinariamente compridos para a idade. Felicidade
cortou uma grossa madeixa, tendo escondido metade no seu peito,
disposta a jamais se separar deles.
O corpo foi trazido para Pont-l'Evêque, conforme determinação
da senhora Aubain, que seguia o féretro numa carruagem fechada.
Depois da missa foram precisos ainda três quartos de hora para
alcançar o cemitério. Paulo caminhava à frente, soluçando. O senhor
Bourais ia atrás, seguido dos principais habitantes, cobrindo-se as
mulheres com mantilhas pretas e Felicidade. Ela pensava no seu
sobrinho e, não tendo podido prestar-lhe estas homenagens, sentia
um aumento de tristeza, como se estivesse enterrando um e outro.
O desespero da senhora Aubain foi ilimitado. A princípio
revoltou-se contra Deus, achando injusto ter-lhe levado sua filha que
nunca tinha feito mal e cuja consciência era tão pura! Mas não! Ela
devia tê-la levado para o sul. Outros médicos a teriam salvo.
Acusava-se, queria tê-la outra vez para si, gritava
angustiosamente no meio dos sonhos. Um, sobretudo, tornava-se
uma obsessão. Seu marido, vestido de marinheiro, voltava de uma
longa viagem e dizia-lhe, chorando, que tinha ordem de levar
Virgínia. Então eles combinavam um esconderijo em qualquer parte.
Uma vez ela voltou do jardim perturbada. Ali (ela mostrava o
lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido, perto um do outro,
quietos, fixando-a.
Durante vários meses permaneceu no quarto, inerte.
Felicidade animava-a, ralhando com doçura; era preciso poupar-
se por causa do seu filho e por causa também da outra, em memória
«dela».
- «Ela»? - replicava a senhora Aubain, como que despertando de
um sonho.
- «Ah! sim! sim! Não a esqueces!» Alusão ao cemitério que
escrupulosamente lhe havia sido impedido de frequentar.
Felicidade ia lá todos os dias.
Às quatro horas em ponto passava junto das casas, subia a
encosta, abria o portão e chegava junto do túmulo de Virgínia. Era
constituído por uma pequena coluna de mármore cor de rosa, com
uma laje na base e correntes de ferro em redor, encerrando um
pequenino jardim. As platibandas desapareciam sob o monte de
flores. Ela regava as suas folhas, renovava a terra, punha-se de
joelhos para melhor cavar. A senhora Aubain, quando podia aqui vir,
sentia um certo alívio, uma espécie de consolação.
Depois os anos correram sempre iguais e sem outros episódios
que o retorno das grandes festividades: Páscoa, Assunção, Todos os
Santos.
Acontecimentos interiores marcavam uma data que mais tarde
era lembrada. Assim em 1825, dois operários pintaram o vestíbulo.
Em 1827 uma porção de telhado, caindo no pátio, esteve prestes a
matar um homem. No verão de 1823 foi a vez da senhora oferecer o
pão bento. Bourais nesta época ausentou-se misteriosamente e os
antigos conhecimentos, pouco a pouco, desapareceram: Guyot,
Liébard, senhora Lechaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico
desde há muito tempo.
Uma noite o condutor da diligência anunciou em Pont-l'Evêque a
Revolução de Julho. Um sub-prefeito novo, poucos dias depois, foi
nomeado: o barão de Larsonniere, ex-cônsul na América e que tinha
em casa, além da mulher, a cunhada com três meninas, já bastante
crescidas.
Viam-se, muitas vezes, na relva, vestidas com blusas amplas;
tinham um negro e um papagaio.
A senhora Aubain teve as suas visitas e não faltou em retribui-
las. Por mais longe que elas aparecessem Felicidade corria a
prevenir a senhora. Mas só uma coisa era capaz de a emocionar: as
cartas de seu filho Paulo.
Ele não podia seguir nenhuma carreira, estando absorvido nos
cafés. Ela pagava-lhes as dívidas; ele fazia outras e os suspiros que a
senhora Aubain soltava, tricotando perto da janela, chegavam a
Felicidade que fazia girar a sua roda de fiar na cozinha.
Elas passeavam juntamente ao longo da latada; e conversavam
sempre de Virgínia, interrompendo-se mutuamente se tal coisa teria
agradado à menina em tal ocasião e o que, provavelmente, teria dito.
Todas as pequenas recordações ocupavam um armário no
quarto das duas camas. A senhora Aubain examinava-as o menos
possível. Um dia de verão ela o fez e duas pequenas borboletas
voaram do armário.
Os seus vestidos estavam alinhados; havia ainda três bonecas,
arcos, uma mobília, lavatório privativo. Elas retiraram igualmente as
saias, as meias, os lenços e estenderam-nos sobre as duas camas,
antes de os dobrar. O sol iluminava estes pobres objectos fazendo
ver as nódoas e as pregas formadas pelos movimentos do corpo. O ar
estava quente e azulado, um melro chilreava, tudo parecia viver uma
doçura profunda.
Encontraram um pequeno chapéu acastanhado, de pelúcia com
pelos longos; mas estava todo corroído pela traça.
Felicidade pediu-o para si. Os Seus olhos encontraram os da
senhora e ambas os encheram de lágrimas; enfim, a senhora abriu os
seus braços e a criada lançou-se neles; estreitaram-se num abraço e
satisfizeram a sua dor num beijo que as igualava Isto deu-se pela
primeira vez, pois a senhora Aubain não era de natureza expansiva.
Felicidade aceitou como um benefício e, a partir de agora, passa
a querer-lhe com uma devoção de animal e uma veneração religiosa.
A vontade do seu coração desenvolveu-se. Quando ouvia na rua
os tambores dum regimento em marcha, ia para a porta com uma
bilha cheia de cidra e oferecia de beber aos soldados. Cuidou dos
atacados pela cólera - em 1832. Protegeu os polacos fugidos da sua
pátria e houve um até que declarou querer desposá-la. Mas
zangaram-se, porque uma manhã, quando regressava do «Angelus»,
encontrou-o na cozinha, onde ele se introduzira e, tendo temperado
de azeite e vinagre um petisco, comia-o tranquilamente.
Depois dos polacos, foi a vez do tio Colmiche, um velho que
passava por ter cometido horrores em 93. Vivia na margem do rio,
nas ruínas de uma pocilga.
Os garotos espiavam-no pelas frinchas da parede e atiravam-lhe
pedras que caíam sobre o catre onde ele jazia deitado,
continuamente sacudido por um catarro, com os cabelos muito
compridos, as pálpebras inflamadas e no braço um tumor maior do
que a própria cabeça.
Ela procurou-lhe roupa, limpou-lhe a alcova e sonhava em
transportá-lo para o forno, mas no caso de não causar incómodo à
senhora Aubain.
Quando o cancro rebentou todos os dias o pensava, algumas
vezes levava-lhe bolo folhado o colocava-o ao sol sobre um molho de
palha. E o pobre velho, babando-se e tremendo, agradecia-lhe com
voz apagada, e, receando perdê-la, estendia as maus quando a via
afastar-se. Ele morreu. Ela fez dizer-lhe uma missa pelo repouso da
sua alma.
Nesse dia sobreveio-lhe uma grande ventura: ao jantar, o negro
da senhora Larsonniere apareceu, trazendo o papagaio na sua
gaiola, com o poleiro, a corrente e o cadeado. Um bilhete da
baronesa anunciava à senhora Aubain que tendo o marido sido
nomeado prefeito tinham de partir, à noite; e pedia-lhe para aceitar a
ave como uma lembrança e em testemunho da sua admiração.
Desde há muito que ele ocupava o pensamento de Felicidade,
porque viera da América e esta palavra lembrava-lhe Vítor, pois ela
informara-se junto do preto.
Uma vez, ela mesmo, dissera: «A senhora sentir-se-ia feliz se o
possuísse». O negro contou isto à patroa de modo que esta, não
podendo levá-lo, se desembaraçou dele desta maneira.

IV
Chamava-se Lulu. Seu corpo era verde, a ponta das asas cor de
rosa, a cabeça azul e o pescoço dourado. Mas ele tinha a mania
fatigante de morder o poleiro, arrancava as penas, espalhava os
excrementos e salpicava tudo em redor com a água da banheira.
A senhora Aubain, que ele detestava, deu-o para sempre a
Felicidade. Ela começou a instrui-lo e cedo ele repetia: «Encantador
rapaz!», «Um seu criado, senhor!», «Eu te saúdo Maria.»
Estava colocado junto da porta e várias pessoas se admiravam
de que não respondesse pelo nome de Jacob, pois que todos os
papagaios se chamavam Jacob. Comparavam-no a um perua, a um
estúpido: que ofensas para Felicidade!
Estranha obstinação de Lulu que não falava quando olhavam
para ele. Todavia gostava de companhia, pois que, ao domingo,
quando as meninas Rochefeuille, o senhor de Houppeville e os novos
frequentadores da casa o farmacêutico Onfroy, o senhor Varin e o
capitão Mathieu jogavam a sua partida de cartas, ele arranhava os
vidros com as asas e agitava-se, tão furiosamente, que era impossível
ouvirem-se.
A figura de Bourais, sem dúvida lhe parecia muito patusca.
Logo que o via começava a rir, a rir com todas as suas forças os
estalos da sua voz reboavam pelo pátio, o eco os repetia, os vizinhos
apareciam às janelas e riam também; para não ser visto pelo
papagaio o sr. Bourais cosia-se com a parede, ocultando o seu perfil
com o chapéu, alcançava o rio, depois entrava pela porta do jardim; e
os olhares que ele lançava à ave não tinham ternura.
Lulu recebera do moço do talho um piparote quando ousara
meter a cabeça na sua alcofa e, por via disso, esforçava-se por
beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava-o de lhe torcer o
pescoço, posto que não fosse cruel apesar da tatuagem dos braços e
das espessas suíças. Ao contrário sentia amizade pelo papagaio, até
ao ponto de querer, por graça, ensinar-lhe a rogar pragas.
Felicidade a quem amedrontavam estas maneiras, colocou-o na
cozinha. A corrente foi retirada e ele circulava pela casa. Quando
descia a escada apoiava a curva do bico nos degraus, levantava a
pata direita, depois a esquerda. E ela receava que uma tal ginástica
lhe causasse tonturas.
Apareceu doente, não falava nem comia. Tinha debaixo da
língua uma camada de pele espessa, como às vezes têm as galinhas.
Ela curou-o, arrancando com as unhas esta pele.
O senhor Paulo um dia cometeu a imprudência de lhe soprar o
fumo do cigarro para as narinas. Uma outra vez que a senhora
Lormeau o afagava com a ponta da sombrinha ele engoliu-lhe a
ponteira; por fim perdeu-se.
Felicidade colocou-o sobre a erva para o refrescar; ausentou-se
um minuto; quando voltou o papagaio tinha fugido! A princípio
procurou-o nos bebedoiros, à borda da água e nos telhados, sem
ouvir a patroa que lhe gritava: - «Tome cuidado!», «você está doida!»
Depois revistou todos os jardins de Pont-l'Evêque; e interpelava os
transeuntes: - «Por acaso não viram o meu papagaio?»
Aos que nem sequer sabiam o que era um papagaio descrevia-o.
Uma vez julgou distinguir, por detrás dos moinhos, no fundo da
encosta, uma coisa verde que se movia. Mas chegando ao alto da
encosta, nada. Um moço de fretes afirmou-lhe que o havia
encontrado, há pouco, na taberna de Tia Simon, em Saint-Melaine.
Ela para lá correu. Não sabia o que havia de dizer. Enfim
entrou, esgotada, os sapatos velhos em farrapos e a morte na alma.
E, sentada no meio do banco, perto da tia Simon, contava todas as
tentativas para encontrá-lo quando um peso ligeiro lhe caiu no
ombro: Lulu!
Que diabo havia feito? Talvez que tivesse passeado nos
arredores!
Custou a acalmar-se ou melhor não se acalmou. Em seguida a
um resfriamento sobreveio-lhe uma angina. Pouco tempo depois, uma
doença de ouvidos. Três anos mais tarde estava surda e falava muito
alto, mesmo na igreja. Posto que os seus pecados nada tivessem para
desonrá-la, nem inconveniente algum para o mundo, espalhando-se
por todos os cantos da diocese, o senhor cura julgou conveniente não
a confessar senão na sacristia.
Zumbidos ilusórios acabaram por perturbá-la. Muitas vezes a
patroa dizia-lhe: - «Meu Deus! Como você é estúpida! Ela replicava: -
«Sim, senhora!» procurando qualquer coisa à volta.
O pequeno círculo das suas ideias se estreita ainda mais e o
carrilhão dos sinos e o mugir dos bois deixam de existir para ela.
Todos os seres funcionam com o silêncio dos fantasmas. Um único
ruído chegava ainda aos seus ouvidos: a voz do papagaio.
Por distracção ele reproduzia o tic-tac da manivela do espeto do
assar, o grito agudo do vendedor de peixe, a serra do marceneiro da
frente, e, quando soava a campainha, imitava a Sr.ª Aubain: -
«Felicidade! a porta, a porta!»
Tinham diálogos: ele, declamando até fartar as três frases do
seu repertório; e ela respondendo-lhe palavras soltas que o seu
coração expandia.
Lulu no seu isolamento era quase um filho, um apaixonado.
Empoleirava-se nos seus dedos, mordia-lhe os lábios e
agarrava-se ao peitilho e, como ela inclinava a fronte meneando a
cabeça, à maneira das amas, as grandes pontas da touca e as asas do
animal abanavam em conjunto.
Quando as nuvens se acastelavam e o trovão ribombava ele
soltava gritos, lembrando-se talvez das tempestades da sua floresta
natal.
O correr da água excitava o seu delírio. Ele esvoaçava,
desvairado, subia ao tecto, descia de novo e, através da janela, ia
molhar o bico no jardim; mas voltava depressa a empoleirar-se num
dos varões de ferro do fogão da sala e, saltitando para secar as
penas, mostrava ora a cauda ora o bico.
Uma manhã do terrível inverno de 1837 em que ela o colocara
frente à chaminé, por causa do frio, foi encontrá-lo morto, no meio da
sua gaiola, de cabeça caída e as garras nos arames. Uma congestão
matara-o, sem dúvida! Ela sempre acreditou num envenenamento
com salsa e, apesar da ausência de provas, a sua suspeita recaiu
sobre Fabu.
Chorou de tal modo que a patroa lhe disse: - «Pois bem, mande
empalhá-lo».
Pediu conselho ao farmacêutico que tinha sido sempre amigo do
papagaio.
Este escreveu para Havre. Um certo Fellacher encarregou-se
da tarefa. Mas, como a diligência perdia às vezes os volumes,
resolveu ser ela própria a portadora até Hanfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se, ao lado da estrada. O gelo
cobria as covas. Os cães ladravam em volta das quintas. E, com as
mãos sob a mantilha, pequenos tamancos pretos e o cabaz, avançava
com ligeireza no meio do caminho calcetado.
Atravessou a floresta, ultrapassou Haut-Chêne e alcançou Saint-
Gatien. Atrás dela, numa nuvem de poeira e arrastada pela descida
uma diligência, num largo galope, precipitava-se como uma tromba
de água. Vendo esta mulher que não se afastava o condutor
levantando-se do lugar e gritando, juntamente com o postilhão,
tentava adverti-la do perigo, enquanto que os quatro cavalos que ele
não podia deter, aceleravam a marcha. Os dois primeiros roçaram-
na: uma sacudidela dos seus guias lançou-os na desordem, mas, o
condutor, furioso, levantou o braço e, à toa, com o chicote assentou-
lhe uma varada desde o ventre ao pescoço, tão forte que ela caiu de
costas.
O primeiro gesto, quando tomou consciência, foi abrir o cesto.
Felizmente Lulu nada sofrera. Sentia a face direita abrasada.
Quando lhe jogou as mãos vieram vermelhas. O sangue corria.
Sentou-se numa pedra, estancou o sangue do rosto com o lenço,
comeu uma côdea de pão, posta no cabaz por precaução e consolava-
se da ferida, olhando a ave.
Chegada ao cume de Ecquemauville viu as luzes de Hanfleur
que cintilavam, na noite, como uma quantidade de estrelas. O mar,
mais longe, estendia-se confusamente.
Então uma fraqueza a reteve: a miséria da sua infância, a
decepção do primeiro amor, o desaparecimento do sobrinho, a morte
de Virgínia como as águas da maré voltavam, ao mesmo tempo e,
subindo-lhe à garganta, abafavam-na.
Depois quis falar ao capitão do barco; e sem dizer o que enviava
fez-lhe recomendações. Fellacher guardou durante muito tempo o
papagaio. Prometia sempre para a «próxima Semana». Ao fim de seis
meses anunciou a remessa duma caixa. E não pensou mais no caso.
Ela julgava até que o Lulu jamais voltasse. «Roubaram-mo» dizia.
Enfim, chegou e esplêndido, direito, sobre um ramo de árvore
que se aparafusava num pedestal de acaju, com uma pata no ar, a
cabeça oblíqua, mordendo uma noz que o empalhador, por amor do
grandioso, havia dourado.
Ela fechou-se no seu quarto. Este lugar, onde admitia pouca
gente, tinha o ar ao mesmo tempo duma capela e dum bazar, tantos
objectos religiosos e coisas heteróclitas continha. Um grande
armário, ao abrir, embaraçava a porta.
Em frente da janela, aberta para o jardim, uma clarabóia olhava
o pátio; uma mesa, perto da cama de lona, suportava um vaso com
água, dois pentes e um cubo de sabão azul num prato cheio de
mossas. Encostados às paredes viam-se rosários, medalhas, várias
estampas da Virgem, uma pia de água benta em noz de coco; em
cima da cómoda, coberta com um pano como um altar, a caixa de
conchinhas que lhe dera Vítor, um regador e uma bola, cadernos, a
geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho
enganchado pelas fitas o pequeno chapéu de pelúcia.
Felicidade levava tão longe este género de respeito que
conservava ainda uma das sobrecasacas do senhor. Todas as
velharias que a senhora Aubain não queria ela levava-as para o seu
quarto. É por isso que nele havia flores artificiais na cómoda e o
retrato do conde d'Artois na parte mais funda da mansarda.
No meio de uma prancheta Lulu foi colocado sobre um pedaço
da chaminé que avançava no quarto. Todas as manhãs, ao despertar,
ela via-o à claridade da aurora e lembrava-se então dos dias
decorridos e de acções insignificantes até nos seus mais ínfimos
pormenores, sem amargura, cheia de tranquilidade.
Não comunicando com ninguém vivia num torpor de sonâmbula.
As procissões do Corpo de Deus a reanimavam. Ia pedir às
vizinhas as tochas e as esteiras a fim de ornamentar o altar que
erigiam na rua.
Na igreja contemplava sempre o Espírito Santo e observou que
nele havia qualquer coisa do papagaio. A semelhança pareceu-lhe
ainda mais manifesta numa gravura de Epinal, representando o
baptismo de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de
esmeralda era verdadeiramente o retrato de Lulu.
Tendo-o comprado, colocou-o no lugar do conde d'Artois, de
modo que, com um único olhar, via-os ao mesmo tempo.
Eles associaram-se no seu pensamento, santificando-se o
papagaio com esta ligação com o Espírito Santo o qual, por sua vez,
se tornava mais real, mais vivo e inteligível. O Deus Pai para se
anunciar não podia ter escolhido uma pomba, pois estes animais não
têm voz mas antes um dos antepassados de Lulu. E Felicidade
rezava, olhando a imagem mas, de quando em vez, virava-se um
pouco para a ave.
Teve vontade de se inscrever como filha de Maria, mas a
senhora Aubain dissuadiu-a de tal.
Um acontecimento considerável surgiu: o casamento de Paulo.
Depois de ter sido a princípio ajudante de notário, em seguida
ter enveredado pelo comércio, alfândega, contribuições e mesmo ter
feito tentativas para as Águas e Florestas, aos 36 anos, de repente,
por uma inspiração do céu, descobriu o seu caminho: o registo.
E aí mostrou tão altas faculdades que um inspector ofereceu-lhe
a filha, prometendo-lhe a sua protecção.
Paulo tornado homem sério levou-a a casa de sua mãe. Ela
desprezou os costumes de Pont-l'Evêque, deu-se ares de princesa,
feriu Felicidade. A senhora Aubain, à sua partida, sentiu alívio.
Na semana seguinte soube-se da morte do senhor Bourais, na
Baixa Bretanha, numa pensão. O rumor de um suicídio confirmou-se;
levantaram-se dúvidas sobre a sua honestidade.
A senhora Aubain estudou as suas contas e não tardou a
conhecer o rol das suas infâmias: desvios de importâncias vencidas,
vendas dissimuladas de madeira, falsas quitações, etc. Além disso
tinha um filho natural e «relações com uma pessoa de Dozulé».
Estas baixezas afligiram-na bastante. No mês de Março de
1853, foi acometida por uma dor no peito; a língua parecia coberta
de fumo, as sanguessugas não acalmaram a opressão. E às nove
horas da noite morreu, tendo justamente 72 anos. Julgavam-na
menos idosa por causa dos cabelos castanhos, cujos bandós
cercavam a sua cara marcada com uma pequena barba.
Poucos amigos a choraram pois os seus modos eram tão altivos
que os afastavam.
Felicidade chorou-a como hoje não se choram os patrões. Que a
senhora tivesse morrido antes dela era uma ideia que a perturbava;
parecia-lhe contrário à ordem das coisas, inadmissível e monstruoso.
Dez dias depois (o tempo suficiente para chegar de Besançon)
vieram os herdeiros. A nora vasculhou as gavetas, escolheu os
móveis, vendeu outros, depois fizeram a declaração. Levaram a
cadeira da senhora, o seu velador, o aquecedor e oito cadeiras. O
lugar das gravuras desenhavam quadrados amarelos no meio das
paredes. Tinham levado as duas caminhas com os seus colchões e no
armário não se viam mais os objectos de Virgínia. Felicidade subiu os
andares cheia de tristeza. No dia seguinte, sobre a porta, um aviso: o
farmacêutico gritou-lhe que a casa estava em venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a sentar-se. O que a desolava,
principalmente, era ter de abandonar o seu quarto tão cómodo para
o pobre do Lulu. Envolvendo-o num olhar de angústia pedia ao
Espírito Santo que assim não acontecesse; e contraiu o hábito
idólatra de rezar, ajoelhada em frente do papagaio. Às vezes o sol
entrando pela trapeira incidia no olho de vidro e reflectia um raio
luminoso que a punha em êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta francos, legada pela sua
senhora. O jardim fornecia-lhe legumes. Quanto a fatos possuía com
que se vestir até ao fim dos seus dias e poupava a luz, deitando-se ao
anoitecer.
Não saía a fim de evitar a loja do ferro velho onde estavam
alguns dos antigos móveis. Por causa da doença partiu uma perna e,
diminuídas as forças, a tia Simon, tendo acabado com a locanda,
vinha partir-lhe a lenha e tirar água com a bomba.
Os olhos enfraqueceram. As persianas não mais se abriram.
Muitos anos se passaram e a casa não se alugou nem se vendeu.
No receio de que a mandassem embora Felicidade não pediu
nenhuma reparação. As ripas do tecto apodreceram. Durante todo o
inverno o travesseiro da cama foi molhado. Depois de Páscoa
escarrou sangue.
Então a tia Simon chamou o médico. Felicidade quis saber o que
tinha mas, como estava muito surda, só entendeu uma palavra:
«pneumonia». Era sua conhecida e respondeu docemente: «Ah! como
a senhora», achando muito natural seguir a sua patroa. A época dos
altares nas ruas aproximava-se.
O primeiro era sempre junto do rio; o segundo, em frente da
estação dos correios; o terceiro, no meio da rua. Houve rivalidades a
propósito deste último: e os paroquianos escolheram finalmente o
pátio da senhora Aubain.
As opressões e a febre aumentavam. Felicidade lamentava-se
de não fazer nada para o altar. Ao menos se pudesse pôr nele
qualquer coisa! Então pensou no papagaio.
Não era conveniente, objectaram as vizinhas, mas o cura
consentiu. Ela ficou de tal maneira feliz, que pediu para ele aceitar
Lulu, a sua única riqueza, quando morresse. De terça-feira até
sábado, véspera do Corpo de Deus tossiu mais frequentemente. À
noite, com o rosto congestionado, os lábios colavam-se às gengivas,
vieram os vómitos e no dia seguinte, de madrugada, sentindo-se
muito enfraquecida, pediu um padre.
Três mulheres a rodeavam durante a extrema-unção. Depois
declarou que tinha necessidade de falar a Fabu.
Este chegou, com seu fato domingueiro, nada à vontade nesta
atmosfera lúgubre.
- «Desculpa-me, disse ela, estendendo o braço com esforço, eu
julgava que tu o tinhas matado!» Que significava semelhante
disparate? Supor capaz de uma morte um homem como ele! E
indignava-se, barafustando.
- «Está doida, como vêem!»
Felicidade, de vez em quando, delirava. As mulheres, afastaram-
se. A tia Simon almoçou. Um pouco mais tarde agarrou em Lulu e,
aproximando-o de Felicidade, diz: - «Vamos! diz-lhe adeus!» Posto
que não fosse um cadáver os vermes devoravam-no. Uma das asas
estava partida, a estopa saía-lhe do ventre.
Mas agora, cega, ela beijou-o na cabeça e apertou-o de
encontro à face. A tia Simon agarrou-o para o levar para o altar.

V
A vegetação enviava o odor do verão, as moscas zumbiam, o sol
fazia luzir o rio e aquecia as pedras e a tia Simon, voltando para o
quarto, adormeceu docemente. Badaladas do sino despertaram-na.
Era a saída das vésperas.
O delírio de Felicidade acabou. Sonhando com a procissão ela
via-a, como se a tivesse seguido.
As crianças das escolas, os cantores e os bombeiros
caminhavam sobre os passeios, enquanto que, no meio da rua,
seguiam: primeiramente o suíço armado com a alabarda, o bedel com
uma grande cruz, o mestre vigiando os rapazes, a religiosa inquieta
com as meninas, três das mais pequenas vestidas de anjos lançavam
no ar pétalas de rosas...
O diácono, de braços abertos, regia a música e dois turiferários,
voltavam-se, a cada passo, para o Santíssimo Sacramento que o
senhor Cura, com a sua bela casula, levava sob um pálio de veludo
vermelho, conduzido por quatro membros da Confraria da Fábrica da
igreja. Uma onda humana seguia atrás entre as colchas brancas que
cobriam as paredes. E chegou-se à margem do rio.
Um suor frio molhava as têmporas de Felicidade. A tia Simon
limpava-a com uma toalha dizendo de si para si que um dia passaria
pelo mesmo. O murmúrio da multidão aumentou, tomou-se muito
forte e afastou-se.
Um tiroteio estremeceu os vidros. Eram os soldados saudando a
custódia. Felicidade, olhando em volta, diz o mais baixo possível,
atormentada pela ideia do papagaio.
- «Ele está bem?»
A agonia começou. Um estertor, cada vez mais precipitado,
agitava-a. Bolhas de espuma vinham aos cantos da boca e todo o
corpo lhe tremia.
Breve se distinguiu as vozes claras das crianças e a voz
profunda dos homens. Calaram-se todos, por momentos e o ruído dos
passos, que as flores amorteciam, lembrava um rebanho sobre a
relva.
O clero parou no pátio. A tia Simon subiu a uma cadeira para
chegar à clarabóia e, desta maneira, dominava o altar. Grinaldas
verdes pendiam sobre o altar ornamentado com um folho em ponto
de Inglaterra. Ao centro estava um pequeno quadro encerrando
relíquias, duas laranjeiras nos ângulos e, a todo o comprimento,
candelabros de prata, vasos de porcelana donde saíam girassóis,
lírios, peónias, dedaleiras e tufos de hortênsias.
Esta amálgama de cores brilhantes deseia obliquamente do
cimo do altar até ao tapete, prolongando-se pela calçada; e coisas
raras atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha uma
coroa de violetas, pingentes de pedra d'Alençon brilhavam no musgo,
dois panos chineses mostravam paisagens. Lulu, oculto sob rosas,
mostrava apenas a sua cabeça azul semelhante a uma placa de lapis-
lazúli.
As irmandades, os cantores, as crianças enfileiravam-se nos três
lados do pátio. O sacerdote subiu, lentamente, os degraus e colocou
sobre a renda o grande sol de oiro que irradiava. Todos se
ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os turíbulos no seu vaivém,
deslizavam nas correntes.
Um vapor azul, subia no quarto de Felicidade, chegou-lhe às
narinas e ela aspirou-o, com uma sensualidade mística.
Depois, fechou as pálpebras. Os lábios sorriam. Os movimentos
do coração enfraqueceram, cada vez mais vagos, como uma fonte se
esgota, como um eco desaparece; e quando ela exalou o seu último
suspiro, julgou ver nos céus entreabertos, um gigantesco papagaio,
planando sobre a sua cabeça.
A MULHER NO ESPELHO
Virgínia Wolf

As pessoas não deviam deixar espelhos pendurados nas salas,


nem talonários de cheques abertos ou cartas confessando algum
crime odioso. Impossível as pessoas deixarem de se olhar, naquela
tarde de verão, no longo espelho que pendia no salão. O acaso o
pusera ali.
Das profundezas do sofá na sala de visitas a pessoa via refletida
no espelho italiano não somente a mesa de tampo de mármore em
frente, como também um pedaço do jardim. Via-se um longo caminho
relvado avançando entre barreiras de flores altas, até que, formando
um ângulo, a borda dourada do espelho o suprimia.
A casa estava vazia, e a pessoa se sentiria, se fosse a única na
sala de visitas, como um daqueles naturalistas que, recoberto de
ervas e de folhas, fica observando as mais tímidas das criaturas —
texugos, lontras, martins-pescadores — andarem à vontade, também
eles invisíveis. Naquela tarde a sala estava cheia desses animais
assustadiços, de luzes e de sombras, cortinas enfunadas, pétalas
caindo — coisas que nunca aconteciam, ao que parece, se alguém
estivesse olhando. A tranquila sala do velho lar com seus tapetes e
chaminé de pedra, suas estantes baixas e armários laqueados de
vermelho e de dourado, enchia-sede tais criaturas noturnas. Elas
chegavam piruetando no chão, pisando macio com os pés altos, e
esses pormenores, mais as caudas desdobradas e os famintos bicos
alusivos, os assemelhavam a um grupo de elefantes ou bando de
flamingos cuja cor vermelho-pálida houvesse desbotado, ou de perus
cujas caudas estivessem cobertas de prata. Havia também obscuros
rubores e sombreamentos, como se uma tivesse de repente banhado
o ar de púrpura; e as paixões, ódios, inveja se tristezas avançavam
sobre a sala e a envolviam como um ser humano. Nada permaneceu
igual durante dois segundos.
No entanto, de fora, o espelho refletia a mesa do salão, os
girassóis, as flores batidas de sol, o caminho do jardim, de forma tão
exata e tão estável que eles pareciam presos à sua realidade
inescapável. O contraste era estranho — aqui, tudo em mutação, lá
tudo em calmaria. Impossível deixar de olhar deum para o outro.
Nesse ínterim, estando as portas e janelas todas abertas por
causa do calor, ouvia-se um perpétuo som de suspiro e suspensão, a
voz do transitório e do perecível, parece, indo e vindo semelhante à
respiração humana, enquanto no espelho as coisas haviam cessado
de respirar e quietas jaziam no transe dai mortalidade.
Meia hora atrás a dona da casa, Isabela Tyson, descera o
caminho relvado, num leve vestido de verão, levando um cesto, e
desaparecera, suprimida pela moldura dourada do espelho.
Provavelmente fora para a parte baixa do jardim colher flores; ou,
como parecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e
fantástica e folhada e trepadora, a clematite, ou um desses elegantes
ramos de convólvulos que serpeiam em feias paredes e irrompem
aqui e ali em florações branca se violetas. Ela recomendava as
convolvulvoláceas fantásticas e trêmulas em lugar da áster vertical,
da zínia rija ou de suas próprias rosas ardentes acesas como
lâmpadas nas estacas verticais das roseiras. A comparação mostrava
o pouco que se sabia a seu respeito, depois de tantos anos; pois é
impossível que uma mulher de carne e osso, de 55 ou 60 anos, fosse
realmente uma grinalda ou uma gavinha. Tais comparações são
muito sem sentido e superficiais — até cruéis, pois que chegam, como
os convólvulos, tremendo entre os olhos de alguém e a verdade.
Deve haver verdade; deve haver um muro. Contudo, era
estranho que, após conhecê-la durante aqueles anos todos, não se
pudesse dizer qual a verdade acerca de Isabela; ainda eram
formuladas frases como aquela sobre os convólvulos e a clematite.
Quanto aos fatos, ela era solteira; rica; comprara a casa e acumulara
pelas próprias mãos — muitas vezes nos cantos mais ignotos do
mundo e correndo grande risco de picadas venenosas e doenças
orientais — os tapetes, as cadeiras, os armários que agora viviam
sua vida noturna perante o olhar de qualquer um. Às vezes parecia
que eles sabiam mais a respeito de Isabella do que nós, que neles nos
sentávamos, neles escrevíamos, nele sandávamos com muito cuidado,
viríamos a saber. Em cada um daqueles armários havia muitas
gavetas pequenas, e todas, quase com certeza tinham cartas atadas
com laços de fitas, perfumadas com ramos de lavanda ou pétalas de
rosa. Pois também era outro fato — se fatos era o que se pedia —
que Isabela conhecera muita gente, tivera muitos amigos; e portanto,
se alguém por audácia abrisse uma gaveta e lesse suas cartas,
encontraria sinais de conflitos, de encontros marcados, de censuras
pelos desencontros, longas cartas de intimidade e afeto, cartas
violentas de ciúme e reprovação, terríveis palavras finais e de
separação— pois todas aquelas entrevistas e encontros amorosos a
nada levaram — ou seja, ela jamais casou, e no entanto, a julgar por
uma indiferença em seu rosto, semelhante a uma máscara, ela
passara 20 vezes mais pela paixão e pela experiência amorosa do
que aqueles amores apregoados para que o mundo primeiro ouvisse.
Sob a pressão dos pensamentos acerca de Isabela, a sala
tornou-se mais escura e mais simbólica; os cantos pareciam ainda
mais sombrios, as pernas das cadeira se mesas mais delgadas e
hieroglíficas.
De súbito, esses reflexos findaram violentamente e sem um som
sequer. Uma grande forma preta assomou no espelho; borrou tudo,
derramou na mesa um pacote de placas de mármore de veios róseos
e cinzentos, e desapareceu. Mas o quadro ficou completamente
alterado.
Por um instante ele esteve irreconhecível, irracional e
totalmente fora de foco. Não se podia relacionar aquelas placas a
algum propósito humano. E, aos poucos, algum processo lógico se
pôs a atuar sobre eles, começou a ordená-los e arranjá-los e os
trouxe ao redil da experiência comum. Verificou-se afinal que não
passavam de cartas. O agente trouxera a correspondência.
Lá ficaram, na mesa de tampo de mármore, todas cheias de luz
e de cor, a princípio ostensivas e impermeáveis. Depois, causou
estranheza ver que as cartas eram estendidas e dispostas, e juntas
faziam parte do quadro, adquirindo aquela serenidade e imortalidade
concedidas pelo espelho. Lá estavam, investidas de uma nova
realidade e significação, e também de maior peso, como se fosse
necessária uma formação para destacá-las da superfície da mesa. E,
fantasia ou não, pareciam ter se transformado não apenas num
punhado de cartas ocasionais, mas em chapas gravadas com a
verdade eterna — se fosse possível lê-lassaber-se-ia tudo que
houvesse saber acerca de Isabela, sim, e da vida também.
Os papéis dentro dos envelopes semelhantes a mármore deviam
estar pejados de significados. Isabela entraria, pegaria as cartas
uma a uma, bem devagar, abriria e leria cada uma com cuidado e
palavra após palavra, e em seguida, soltando um profundo suspiro de
compreensão, como se houvera estado no fundo de tudo, Isabela
rasgaria os envelopes em pedacinhos e ataria as cartas e fecharia a
gaveta do armário, disposta que estava a esconder o que não queria
que fosse descoberto.
O pensamento serviu como um desafio. Isabela não desejava ser
conhecida — mas agora não podia escapar. Um absurdo, uma
monstruosidade. Se ela ocultava tanto e sabia de tanta coisa, devia-
se nesse caso forçá-la a arrombar a gaveta com o primeiro
instrumento à mão.
Devia-se fixar a mente em Isabela naquele exato instante.
Devia-se pressioná-la. Devia-se recusar que continuassem a nos
dissuadir com ditos e feitos, tais como o momento produzia — com
jantares e visita se conversas polidas. Devia-se tentar calçar os
sapatos dela.
Tomada a frase em seu sentido literal, era fácil ver os sapatos
que ela calçava, no jardim de baixo, naquele momento. Eram muito
estreitos, compridos e estavam na moda — feitos com o mais macio e
o mais flexível dos couros. A exemplo de tudo o que ela usava, os
sapatos eram finos. E ela estaria em pé, embaixo da sebe alta, na
parte inferior do jardim, levantando a tesoura atada ao punho para
cortar uma flor morta, um ramo excedente. O sol lhe banharia o
rosto, os olhos; mas não, no momento crítico a mantilha de uma
nuvem cobriu o sol, tornando duvidosa a expressão dos olhos dela —
zombeteira ou meiga, vivaz ou embotada? Apenas se distinguia o
esboço indeterminado de rosto belo um tanto pálido e que fitava o
céu. Ela pensava, talvez, em encomendar uma rede nova para os
morangos; que devia mandar flores à viúva de Johnson; que era
tempo de sair de carro para ver os Hippesley em sua nova casa.
Seguramente eram estas as coisas de que ela falava ao jantar.
Mas já estavam cansados das coisas de que ela falava ao jantar.
Queriam descobrir o seu mais profundo estado de ser e transformá-
lo em palavras, o estado que é para a mente o que a respiração é
para o corpo, o que se chama felicidade ou infelicidade. À menção
dessa palavra, tornou-se óbvio, certamente, que Isabela devia ser
feliz. Era rica; era bem relacionada; tinha muitos amigos, viajava —
comprava tapetes na Turquia e cântaros azuis no Irã. Caminhos de
prazer abriam-se nesta e naquela direção, a partir de onde ela
estivesse com a tesoura erguida para cortar os ramos trêmulos
enquanto nuvens rendadas lhe velavam a face.
Com um rápido movimento da tesoura ela decepou o ramo da
clematite, que caiu no chão.
Ao cair, seguramente uma luz entrou também, seguramente se
pôde penetra rum pouco mais no seu ser. O espírito de Isabela
estava cheio de ternura e remorso... Cortar um ramo enorme
entristeceu-a porque ele havia vivido, e a vida lhe era cara. Sim, e ao
mesmo tempo a queda do ramo lhe sugeria como morrer, e toda a
futilidade e evanescência das coisas. E, outra vez recolhendo este
pensamento, com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a
tratara bem; se tivesse de cair, era para ficar na terra e docemente
fertilizar as raízes das violetas. Continuou a pensar desse modo. Sem
formar um pensamento preciso —por ser uma dessas pessoas
reticentes mantinha os pensamentos enredados em nuvens de
silêncio — ela estava cheia de pensamentos. O espírito de Isabela
assemelhava-se a sua sala onde luzes avançavam e recuavam,
chegavam com piruetas e pisavam macio, desdobravam as canelas e
ficavam; e todo o ser de Isabela foi coberto, como a sala novamente,
por uma nuvem de algum conhecimento profundo, algum remorso não
mencionado, e ela encheu-se de gavetas fechadas, entupidas de
cartas, tal e qual seus armários. Falar em "arrombá-la" como se ela
fosse uma ostra, utilizar apenas o mais belo e mais sutil e mais dócil
dos instrumentos contra ela era uma impiedade, um absurdo. Devia-
se imaginar— ei-la no espelho. Causou sobressalto.
A princípio ela estava tão longe que não se podia vê-la com
clareza. Veio andando vacilante, endireitando uma rosa aqui, ali,
levantando um cravo para cheirá-lo, mas sem parar; e enquanto isso
ela se tornava maior, cada vez maior no espelho, cada vez mais a
pessoa em cuja mente se tentava entrar. Isabela era examinada aos
poucos — ajustando-se às qualidades descobertas neste corpo visível.
Havia o vestido verde-acinzentado, os sapatos de bico fino, o cesto e
alguma coisa cintilante na sua garganta. Ela se aproximou tão
gradualmente que não pareceu desarranjar o contorno no vidro, mas
somente trazer um novo elemento que se movia de leve e alterava os
outros objetos, como quem pede cortesmente espaço para Isabela. E
as cartas e a mesa e o caminho relvado e os girassóis à espera no
espelho separaram-se e abriram-se de modo a que ela pudesse ser
recebida entre eles. Afinal, ei-la, no salão. Deteve-se. Ela parou em
pé junto à mesa. Ela parou completamente imóvel. De imediato o
espelho começou a verter sobre ela uma luz que parecia pregá-la;
que parecia um ácido que corróio não-essencial e o superficial e
deixa apenas a verdade. Era um espetáculo encantador. Tudo
imanava de Isabela — nuvens, vestidos, cesto, diamante — tudo o que
fora chamado de planta rasteira e convólvulo. Eis a dura parede
embaixo. Eis a própria mulher. Ela se erguia nua naquela luz
impiedosa. E nada havia.
Isabela estava completamente vazia. Não tinha pensamentos.
Não tinha amigos. Não cuidava de ninguém. Quanto às cartas, eram
todas contas. E enquanto ali estava, velha e angulosa, jaspeada e
coberta de rugas, com o seu nariz arrebitado e o pescoço vincado,
ela nem sequer se deu ao trabalho de abri-las.
As pessoas não deviam dependurar espelhos em suas salas.
A MORTA AMOROSA
Théophile Gautier

Você me pergunta, irmão, se amei; respondo que sim. É uma


história singular e terrível, e, embora tenha sessenta e seis anos, mal
ouso tocar nas cinzas dessa lembrança. Não quero lhe negar nada,
mas não contaria tal história a alguém menos experiente. São
acontecimentos tão estranhos que custo a acreditar que tenham
ocorrido. Durante mais de três anos fui vítima de uma ilusão singular
e diabólica. Eu, pobre pároco de aldeia, vivi em sonhos (Deus queira
que tenha sido um sonho!), durante todas as noites, uma vida de
danado, uma vida de mundano, de Saradanapalo. Um único olhar
demasiado complacente lançado sobre uma mulher quase me custou
a perda da minha alma; mas, finalmente, com a ajuda de Deus e do
meu santo padroeiro, consegui expulsar o espírito maligno que havia
se apossado de mim. Minha vida confundira-se com uma existência
noturna completamente diferente.
De dia, eu era um sacerdote do Senhor, casto, ocupado com a
oração e com as coisas santas; à noite, mal fechava os olhos,
transformava-me num jovem senhor, grande conhecedor de
mulheres, vinhos, cães e cavalos, que jogava dados e blasfemava; e
quando me acordava, ao nascer do sol, parecia ao contrário que
adormecia, e que sonhava ser padre. Dessa vida sonambúlica restou-
me a lembrança de objetos e palavras contra as quais não posso me
defender, e, apesar de jamais ter transposto as paredes do meu
presbitério, quem me ouvisse, diria que sou um homem que
experimentou de tudo e que, voltando do mundo, tomou o hábito para
terminar uma existência demasiado agitada no seio de Deus, e não
um humilde seminarista que envelheceu numa paróquia ignorada,
escondida no fundo de um bosque, sem nenhum contato com as coisas
do mundo.
Sim, amei como ninguém amou neste mundo, com um amor
insensato e furioso, tão violento que me espantei que o meu coração
não tenha explodido. Ah! Que noites! Que noites!
Desde a mais tenra infância, sentira a minha vocação para
padre; assim, todos os meus estudos foram dirigidos nesse sentido, e
a minha vida até os vinte e quatro anos nada mais foi do que um
longo noviciado.
Terminados os estudos de teologia, passei sucessivamente por
todos os estágios, antes dos meus superiores me julgarem digno,
apesar da minha juventude, de passar a última e terrível prova. O dia
da minha ordenação foi marcado para a semana da Páscoa.
Nunca havia estado no mundo profano; o mundo, para mim,
eram as quatro paredes do colégio e do seminário. Sabia vagamente
que existia uma coisa chamada "mulher", mas meus pensamentos
nunca se detiveram nisso; era de uma perfeita inocência. Via minha
mãe, velha e doente, apenas duas vezes por ano.
Eram as minhas únicas relações com o exterior.
Não lamentava nada, não sentia a menor hesitação diante desse
compromisso irrevogável; estava cheio de alegria e de impaciência.
Nunca noiva alguma contou com mais impaciência as horas; não
dormia, sonhava que estava rezando a missa. Ser padre, não havia
nada mais belo no mundo: teria recusado ser rei ou poeta. Minha
ambição não concebia outra coisa.
Digo isso para lhe mostrar como o que me aconteceu não
deveria ter ocorrido; para que compreenda a inexplicável fascinação
de que fui vítima.
Chegado o grande dia, dirigi-me para a igreja com um passo tão
rápido que parecia estar suspenso no ar ou ter asas nas costas.
Julgava-me um anjo, e espantava-me com a fisionomia sombria e
preocupada dos meus companheiros. Tinha passado a noite em
oração e estava num estado que quase beirava o êxtase. O bispo,
ancião venerável, parecia-me Deus Pai contemplando a eternidade e
eu via o céu através das abóbadas do templo.
Você conhece os detalhes desta cerimônia: a bênção, a
comunhão do pão e do vinho, a unção da palma das mãos com o óleo
dos catecúmenos e, finalmente, o santo sacrifício oferecido pelo
bispo. Não insistirei sobre isso. Ah! Como Jó tinha razão, e como é
imprudente aquele que não concluiu um pacto com os seus olhos!
Levantei por acaso a minha cabeça, que até então mantivera
inclinada, e vi diante de mim, tão próxima que poderia tocá-la,
embora na realidade estivesse a uma distância bastante grande, do
outro lado da balaustrada, uma jovem mulher de rara beleza, vestida
com uma magnificência real. Foi como se, de repente, tivessem me
caído as escamas dos olhos. Tive a sensação de um cego que,
subitamente, recobra a visão. O bispo, há pouco tão brilhante,
desapareceu de repente, as velas empalideceram nos seus castiçais
de ouro com as estrelas de madrugada, e na igreja reinou a mais
completa escuridão. A encantadora criatura destacava-se nesse
fundo de sombra como uma revelação angélica; parecia que a luz
emanava dela própria, que era ela que prodigava luz em vez de
recebê-la.
Baixei as pálpebras, resolvido a nunca mais levantá-las, para
desviar-me da influência dos objetos exteriores; porque a distração
me invadia cada vez mais e eu mal sabia o que fazia.
Um minuto depois, abri de novo os olhos, porque através dos
cílios eu a via brilhando com todas as cores do prisma, numa
penumbra púrpura como quando se olha o sol.
Oh! Como era bela! Os maiores pintores que, perseguindo no
céu a beleza ideal, produziram na terra o divino retrato da Madona,
nem sequer se aproximam dessa fabulosa realidade. Nem os versos
do poeta, nem a paleta do pintor conseguiram dar a mínima ideia.
Era bem alta, com uma figura e um porte de deusa; os cabelos, de
um louro suave, separavam-se no alto da cabeça caindo sobre as
têmporas como duas ondas douradas; parecia uma rainha com o seu
diadema. A testa, de uma brancura azulada e transparente, estendia-
se larga e serena sobre o arco das sobrancelhas quase castanhas,
singularidade que aumentava ainda mais o efeito das pupilas verdes
cor de mar, de uma vivacidade e de um brilho insustentáveis. Que
olhos! Com uma cintilação decidem o destino de um homem. Eram de
uma limpidez, de um ardor, de uma umidade brilhante que jamais vi
em um olho humano; deles saíam raios semelhantes a flechas, que
sentia distintamente tocarem o meu coração. Não sei se a chama que
os iluminava vinha do céu ou do inferno, mas certamente vinha de um
ou do outro. Essa mulher era um anjo ou demônio, possivelmente as
duas coisas; certamente não saíra do flanco de Eva, a mãe comum.
Dentes perfeitamente brancos cintilavam no seu sorriso vermelho e
pequenas covinhas desenhavam-se a cada inflexão de sua boca no
adorável cetim rosado das faces. Quanto ao nariz, era de uma
delicadeza e de uma altivez real, revelando uma nobre origem.
Ágatas brincavam sobre a pele lisa e lustrosa dos ombros
semidescobertos, e duas fileiras de grandes pérolas rosadas, de um
tom quase idêntico ao de seu pescoço, desciam-lhe sobre o peito. De
vez em quando, erguia a cabeça num movimento ondulante de cobra
ou de pavão que se empertiga, imprimindo um ligeiro frisson ao
peitilho bordado que lhe rodeava o colo como um tecido de prata.
Usava um vestido de veludo nacarado e das largas mangas
bordadas de arminho saíam duas mãos nobres, infinitamente
delicadas, de dedos longos e roliços, e de uma transparência tão
ideal que a luz penetrava por eles, como através dos dedos da
Aurora.
Todos estes detalhes estão, para mim, tão vivos como se
datassem de ontem e, embora me sentisse muito perturbado, nada
me escapava: a menor nuance, o pequeno sinal negro no canto do
queixo, a penugem imperceptível na comissura dos lábios, o
aveludado da fronte, a sombra trêmula dos cílios sobre as faces, eu
percebia tudo com uma lucidez espantosa.
À medida que a olhava, sentia que se abriam diante de mim
portas até então fechadas; saídas obstruídas apontavam para todos
os sentidos e deixavam entrever perspectivas desconhecidas; a vida
me aparecia sob um aspecto completamente diferente: acabava de
nascer de novo. Uma angústia terrível instalou-se no meu coração;
cada minuto que passava me parecia um segundo e, ao mesmo
tempo, um século. No entanto, a cerimônia continuava a acontecer,
afastando-me para bem longe do mundo cuja entrada meus recentes
desejos fustigavam furiosamente. Disse sim, quando queria dizer não,
enquanto tudo em mim se revoltava e protestava contra a violência
que minha língua fazia a minha alma: sem que eu quisesse, uma força
oculta arrancava-me as palavras da garganta. É isso, talvez, que faz
com que, de tantas jovens que caminham para o altar com a firme
resolução de recusar o esposo que lhes é imposto, nenhuma execute
o seu projeto. É também essa a razão por que tantas e infelizes
noviças tornam o véu, apesar de firmemente decididas a rasgá-lo no
momento de pronunciarem os votos. Ninguém ousa causar tal
escândalo diante de todos, nem frustrar a expectativa de tantas
pessoas; todas essas vontades, todos esses olhares parecem pesar
sobre nós como uma chapa de chumbo; e, depois, tudo está tão bem
organizado, tão bem previsto, de um modo tão claramente
irrevogável, que o pensamento cede curvando-se completamente
diante do peso do ato.
O olhar da bela desconhecida mudava de expressão à medida
que a cerimônia avançava. Terno e carinhoso de início, tomou um ar
de desdém e de descontentamento, como por não ter sido
compreendido.
Fiz um esforço enorme, suficiente para deslocar uma montanha,
e quis gritar que não queria ser padre; mas não consegui. A língua
ficou presa no céu da boca, foi impossível traduzir a minha vontade
através do menor movimento negativo. Apesar de acordado, estava
num estado semelhante ao de um pesadelo, quando se quer gritar
uma palavra da qual depende nossa vida e não se consegue.
Ela pareceu sensível ao martírio pelo qual eu passava e, como
que para me encorajar, lançou-me um olhar cheio de divinas
promessas. Seus olhos eram um poema, do qual cada olhar formava
um canto.
Ela me dizia:
- Se me quiser, eu o farei mais feliz do que o próprio Deus no
seu Paraíso; os anjos o invejarão. Rasgue esse sudário fúnebre onde
vai se sepultar; eu sou a beleza, a juventude, a vida; vem, nós
seremos o amor. O que poderia oferecer Jeová como recompensa?
Nossa existência decorrerá como um sonho e será apenas um eterno
beijo. Jogue fora o vinho desse cálice e ficará livre. Levarei você
para ilhas desconhecidas, você dormirá no meu seio, num leito de
ouro maciço, sob um baldaquim de prata, porque amo você e quero
lhe roubar do seu Deus, diante de quem tantos nobres corações
derramam inúteis ondas de amor".
Parecia-me ouvir estas palavras num ritmo de doçura infinita,
porque seu olhar quase possuía uma sonoridade, e as frases que seus
olhos me enviavam ecoavam no fundo do meu coração como se uma
boca invisível as tivesse colocado no interior da minha alma. Sentia-
me pronto para renunciar a Deus e, no entanto, meu coração
cumpria maquinalmente todas as formalidades da cerimônia. A bela
lançou-me um segundo olhar tão suplicante, tão desesperado, que
lâminas afiadas me atravessaram o coração e senti no peito tantos
golpes de espada como os que feriram a Mãe de Deus.
Tudo estava terminado. Eu era padre.
Nunca fisionomia humana demonstrou uma angústia tão
terrível; a jovem que vê o seu noivo cair de repente fulminado a seu
lado, a mãe junto do berço vazio de seu filho, Eva sentada à entrada
do Paraíso, o avarento que encontra uma pedra no lugar do seu
tesouro, o poeta que deixou cair no fogo o único manuscrito da sua
mais bela obra, ninguém poderá ter um ar mais apavorado e mais
inconsolável. O sangue abandonou completamente o seu rosto
encantador, tornando-o de uma brancura de mármore; seus belos
braços caíram ao longo do corpo, como se os músculos tivessem se
soltado; e ela apoiou-se numa coluna, porque suas pernas se
dobravam, curvando-se sob o seu peso. E eu, lívido, a fronte
inundada por um suor mais sangrento do que o do Calvário, dirigi-me
cambaleando para a porta da igreja. Sentia-me sufocado; as
abóbadas pareciam fechar-se sobre as minhas costas, como se a
minha cabeça suportasse sozinha todo o peso da cúpula.
Quando ia atravessar o limiar da igreja, uma mão segurou
bruscamente a minha; uma mão de mulher!
Nunca havia tocado em nenhuma. Era fria como a pele de uma
serpente e deixou-me uma marca vermelha como se tivesse sido feita
por um ferro em brasa. Era ela. "Infeliz! Infeliz! O que voce fez?",
disseme em voz baixa; e depois desapareceu na multidão.
O velho bispo passou e olhou-me com um ar severo. Realmente,
a minha atitude era das mais estranhas deste mundo; empalidecia e
enrubescia, tinha vertigens. Um de meus camaradas teve pena de
mim, agarrou-me e conduziu-me; teria sido incapaz de encontrar
sozinho o caminho do seminário. Quando dobramos uma rua,
enquanto o jovem padre virava a cabeça para o outro lado, um pajem
negro, estranhamente vestido, aproximou-se de mim e, sem parar,
estendeu-me uma pequena bolsa com os cantos em ouro cinzelado,
fazendo-me sinal para que a escondesse. Coloquei-a dentro da manga
e aí ficou até que estivesse só na minha cela. Abri o fecho; só havia
duas folhas com as seguintes palavras: "Clarimonde, Palácio
Concini". Estava tão pouco a par das coisas do mundo que não
conhecia Clarimonde, apesar da sua celebridade, e ignorava
completamente onde ficava o Palácio Concini. Fiz mil conjeturas,
cada uma mais extravagante do que a outra; mas, na verdade,
contanto que pudesse revê-la, pouco me interessava que fosse uma
grande dama ou uma cortesã.
Esse amor, nascido havia instantes, já tinha criado raízes
indestrutíveis; e não pensava sequer em tentar arrancá-las, de tanto
que sentia ser uma coisa impossível. Essa mulher havia se apoderado
completamente de mim, um único olhar fora suficiente para
transformar-me; tinha-me insuflado a sua vontade. Deixara de viver
em mim, para viver por ela e nela. Fazia mil extravagâncias, beijava
na minha mão o lugar que ela havia tocado, e repetia o seu nome
durante horas inteiras. Só precisava fechar os olhos para vê-la
nitidamente, como se estivesse realmente presente; e repetia as
palavras que me dissera sob o portal da igreja: "Infeliz! Infeliz! o que
você fez?" Compreendia todo o horror da minha situação, e os
aspectos fúnebres e terríveis do estado que acabara de escolher
revelavam-se claramente para mim. Ser padre! Quer dizer, ser
casto, não amar, não distinguir o sexo nem a idade, desviar-me de
toda a beleza, cegar-me, arrastar-me sob a sombra glacial de um
claustro ou de uma igreja, ver apenas moribundos, velar cadáveres
desconhecidos e vestir-me de luto, eu mesmo, envolto numa batina
negra que servirá de mortalha para o meu caixão.
E sentia a vida crescer em mim como a água de um lago interior
que sobe e transborda; meu sangue corria com força nas artérias e a
minha juventude, comprimida durante tanto tempo, explodia de
repente como o aloés que leva cem anos para florir e que desabrocha
com um ruído de trovão.
O que fazer para rever Clarimonde? Nao tinha nenhum pretexto
para sair do seminário, nem conhecia ninguém na cidade; sequer
deveria permanecer lá muito tempo, pois esperava apenas que me
designassem a paróquia que deveria ocupar. Tentei, então, quebrar
as grades da janela; mas a altura era vertiginosa e, como não havia
nenhuma escada, a ideia teve de ser abandonada. Além disso, só
poderia sair de noite; e como me orientaria no inextricável dédalo
das ruas? Todas estas dificuldades, que não representariam nada
para outros, eram imensas para mim, pobre seminarista, recém-
apaixonado, sem experiência, sem dinheiro e sem roupas.
Ah! Se não fosse padre, poderia vê-la todos os dias, teria sido
seu amante, seu esposo, dizia para mim mesmo, na minha cegueira.
Em vez de estar envolvido no meu triste sudário, teria roupas de
seda e de veludo, correntes de ouro, uma espada e plumas, como os
jovens e belos cavaleiros. Meus cabelos, em vez de serem
desonrados pela tonsura, cairiam encaracolados em volta do meu
pescoço. Usaria um belo bigode, seria um bravo. Mas uma hora
passada diante de um altar e algumas palavras articuladas
separavam-me para sempre do resto dos mortais. Eu mesmo havia
selado a pedra do meu túmulo! Eu mesmo havia fechado a porta da
minha prisão!
Fui até a janela. O céu estava admiravelmente azul, as árvores
tinham vestido os seus trajes de primavera; a natureza ostentava
uma alegria irônica. A praça estava cheia de gente; uns iam, outros
vinham; rapazes e moças, aos pares, dirigiam-se para os jardins e
para os caramanchões. Grupos passavam, entoando canções; um
movimento, uma vida, uma animação, uma alegria que faziam
ressaltar mais penosamente ainda o meu luto e a minha solidão. Uma
jovem mãe, sob as arcadas, brincava com o seu filho; beijava a sua
pequena boca cor-de-rosa, ainda molhada por gotas de leite,
inventando mil divinas puerilidades, dessas que só as mães sabem
encontrar. O pai, de pé a uma certa distância, sorria docemente para
esse par encantador e os seus braços cruzados apertavam a sua
alegria contra o peito. Não pude suportar esse espetáculo; fechei a
janela e deixei-me cair sobre a cama, com o coração repleto de um
ódio e de uma inveja terríveis, mordendo os dedos e as cobertas
como um tigre que não comesse há três dias.
Não sei quantos dias permaneci assim; mas, ao virar-me, num
movimento espasmódico e furioso, vi o abade Sérapion, de pé no
meio do quarto, observando-me atentamente. Tive vergonha de mim
mesmo e, deixando cair a cabeça sobre o peito, escondi os olhos com
ambas as mãos.
- Romuald, meu amigo, está acontecendo algo de extraordinário
com você', disseme Sérapion, depois de alguns minutos de silêncio; "a
sua conduta é verdadeiramente inexplicável! Você, tão piedoso, tão
calmo e tão doce, agita-se na cela como se fosse um animal
selvagem. Tome cuidado, meu irmão, não dê ouvidos ao demônio; o
espírito maligno, irritado porque você se consagrou para sempre ao
Senhor, anda à sua volta como um lobo, num último esforço para
atraí-lo. Em vez de se deixar abater, meu caro Romuald, construa
uma couraça de orações, um escudo de mortificações, e combata
corajosamente o inimigo; você o vencerá.
A provação é necessária à virtude e o ouro sai mais fino do
cadinho. Não tenha medo, nem esmoreça; mesmo as almas mais
protegidas e fortes tiveram momentos de fraqueza. Reze, jejue,
medite, e o espírito do mal se retirará."
As palavras do abade Sérapion fizeram-me ver o estado em que
me encontrava e consegui acalmar-me. Vinha anunciar-lhe a sua
nomeação para a paróquia de C...; o padre que lá se encontrava
acaba de morrer e o senhor bispo encarregou-me de instalá-lo;
esteja pronto para partirmos amanhã". Respondi-lhe com um sinal de
cabeça e o abade retirou-se. Abri o meu missal e comecei a ler as
orações, mas as linhas logo se confundiram diante dos meus olhos; o
fio das ideias emaranhou-se no meu cérebro e o livro escorregou das
minhas mãos, sem que eu percebesse.
Partir no dia seguinte sem tornar a vê-la! Acrescentar mais
uma impossibilidade a todas as outras! Perder para sempre a
esperança de reencontrá-la, a menos que acontecesse um milagre!
Escrever para ela? E quem iria entregar-lhe a carta? Na sagrada
posição em que me encontrava, com quem poderia me abrir?
Em quem confiar? Senti uma terrível ansiedade. Depois, o que o
abade Sérapion me dissera sobre as artimanhas do diabo voltava-me
ao espírito. A estranheza da aventura, a beleza sobrenatural de
Clarimonde, o brilho fosfórico dos seus olhos, a marca da sua mão em
brasa, a perturbação em que me lançara, a mudança súbita que tinha
se operado em mim, a piedade desaparecida num instante, tudo isso
provava claramente a presença do demônio, e a mão de cetim talvez
não passasse da luva com que cobrira suas garras. Essas ideia
lançaram-me num grande pavor; peguei novamente o missal que
havia caído no chão e recomecei as orações.
No dia seguinte, Sérapion veio buscar-me; duas mulas nos
esperavam à porta, carregadas com nossas magras bagagens; ele
montou numa e eu noutra, o melhor que pudemos. Enquanto
percorríamos as ruas da cidade, eu olhava todas as janelas e todas as
varandas, na esperança de vislumbrar Clarimonde; mas era cedo
demais, a cidade ainda não tinha aberto os olhos. Meu olhar tentava
mergulhar por trás das persianas e através das cortinas de todos os
palácios pelos quais passávamos. Sem dúvida, Sérapion atribuía essa
curiosidade à admiração que me causava a beleza da arquitetura,
porque atrasava o passo da sua montaria para dar-me tempo de
observar tudo. Finalmente, chegamos às portas da cidade e
começamos a subir a colina. Quando cheguei no alto, virei-me para
olhar mais uma vez o lugar onde vivia Clarimonde. A sombra de uma
nuvem cobria inteiramente a cidade; os tetos azuis e vermelhos
confundiam-se numa penumbra uniforme onde flutuavam esparsas,
como flocos de espuma, as fumaças das chaminés.
Por um singular efeito de ótica, desenhava-se, louro e dourado
sob um único raio de luz, um edifício cuja altura ultrapassava a dos
edifícios vizinhos, completamente afogados no vapor matinal: embora
estivesse a mais de uma légua, parecia muito próximo. Podiam
distinguir-se os seus mínimos detalhes, as torres, as plataformas, as
janelas e os cataventos em forma de cauda de andorinha.
- Qual é aquele palácio que estou vendo ali, iluminado por um
raio de sol?", perguntei a Sérapion. Ele pôs as mãos em pala diante
dos olhos e, depois de olhar, respondeu-me: "É o antigo palácio que o
príncipe Concini ofereceu à cortesã Clarimonde; lá se passam coisas
terríveis.
Nesse instante, ainda hoje não sei se foi uma ilusão ou não,
julguei ver passar no terraço uma forma esbelta e branca que faiscou
no ar durante um segundo e depois se apagou. Era Clarimonde!
Ah! Será que ela sabia que, nessa hora, do alto desse caminho
agreste que me afastava dela e que não tornaria a descer, ardente e
inquieto, eu olhava o palácio onde morava, e que um insignificante
jogo de luzes parecia transportar para mim, como que me
convidando a entrar nele como legítimo senhor? Sem dúvida, ela o
sabia, porque sua alma estava ligada à minha com demasiada
simpatia para não sentir as menores oscilações. E tinha sido esse
sentimento que a levara, ainda envolta nos seus véus noturnos, a
subir ao alto do terraço no glacial orvalho da manhã.
A sombra alcançou, então, o palácio, e tudo se transformou num
oceano imóvel de telhados e cumeeiras, nos quais só se distinguia
uma ondulação como a do cume dos montes. Sérapion tocou a sua
mula, imediatamente seguida pela minha, e uma curva do caminho
afastou-me para sempre da cidade de S..., porque nao devia voltar
nunca mais para lá. Depois de três dias de viagem por campos
tristes, vimos despontar, através das árvores, o galo do campanário
da igreja onde deveria servir; e, após termos percorrido algumas
ruas tortuosas cercadas de cabanas e quintais, deparamo-nos com a
fachada da igreja que não impressionava pela magnificência. Um
pórtico ornamentado por algumas nervuras, duas ou três colunas
grosseiramente talhadas, um teto de telhas e contrafortes do mesmo
grés que as colunas, e era só: à esquerda, o cemitério invadido pelas
ervas daninhas, com uma grande cruz de ferro no meio e, à direita, à
sombra da igreja, o presbitério. Era uma casa de uma extrema
simplicidade e de uma limpeza árida.
Entramos; algumas galinhas ciscavam no chão raros grãos de
aveia; aparentemente acostumadas aos trajes negros dos
eclesiásticos, não se assustaram com a nossa presença e quase não
se moveram quando passamos. Ouviu-se um latido rouco e
desafinado, e vimos acorrer um velho cão.
Era o cão do meu predecessor. Tinha o olho sem brilho, o pêlo
cinzento e todos os sintomas da maior velhice a que pode chegar um
cão. Acariciei-o docemente com a mão e ele logo se pôs a andar ao
meu lado com um ar de satisfação inexprimível. Uma mulher bem
idosa, que tinha sido a governanta do antigo pároco, também veio ao
nosso encontro e, depois de haver me introduzido numa sala baixa,
perguntou-me se pretendia ficar com ela. Respondi-lhe que podiam
ficar, ela, o cão, as galinhas e todos os móveis que o seu amo lhe
deixara ao morrer, o que deixou-a muito satisfeita: o abade Sérapion
concordou imediatamente com o preço pedido.
Terminada a minha instalação, o abade Sérapion retornou ao
seminário. Fiquei, então, sozinho, sem outro apoio senão eu mesmo.
Clarimonde começou novamente a obcecar-me e, apesar dos
esforços que fiz para expulsá-la do meu pensamento, não tive
sucesso. Uma noite, quando passeava nas aléias orladas de arbustos
do meu pequeno jardim, pareceu-me ver através do caramanchão
uma figura de mulher que seguia todos os meus movimentos e duas
pupilas verde-mar faiscando entre as folhagens; mas era apenas uma
ilusão. Ao atravessar o caminho, encontrei somente uma pegada na
areia, tão pequena que parecia de uma criança. O jardim era cercado
por muros muito altos; procurei em todos os cantos e recantos, não
havia ninguém. Nunca consegui explicar o ocorrido, o que - aliás -
não era nada comparado com tudo o que iria me acontecer. Vivia
assim já há um ano, cumprindo com pontualidade todos os meus
deveres, orando, jejuando, exortando e socorrendo os doentes,
distribuindo esmolas até o ponto de, para isso, ter que prescindir das
necessidades mais indispensáveis. Mas sentia dentro de mim uma
extrema aridez, e as fontes da graça continuavam fechadas. Não
gozava dessa felicidade que proporciona a realização de uma santa
missão; meus pensamentos estavam longe e as palavras de
Clarimonde voltavam-me frequentemente aos lábios como uma
espécie de refrão involuntário. Irmão, medite bem no que lhe digo!
Por ter erguido só uma vez os olhos para uma mulher, por causa
de uma falta tão pequena, vivi inquieto durante muitos anos e a
minha vida ficou perturbada para sempre.
Não me demorarei mais na narrativa destas derrotas e vitórias
interiores sempre seguidas por recaídas cada vez mais graves, e
passarei logo para um acontecimento decisivo. Uma noite, bateram
violentamente à minha porta. A velha governanta foi abrir e um
homem de pele bronzeada, ricamente vestido segundo uma moda
estrangeira, usando um longo punhal, desenhou-se à luz da candeia
de Bárbara. Seu primeiro movimento foi de medo, mas o homem
tranquilizou-a dizendo-lhe que precisava me ver imediatamente por
causa de algo que se relacionava com o meu ministério. Bárbara
mandou-o subir. Ia deitar-me mas o homem me disse que a sua
senhora, uma grande dama, estava agonizando e precisava de um
padre.
Respondi-lhe que estava pronto para seguí-lo; levei comigo tudo
o que era necessário para a extrema-unção e desci rapidamente. Na
porta, dois cavalos negros como a noite relinchavam de impaciência,
soltando pelo nariz grandes jatos de fumaça. O homem segurou o
estribo ajudando-me a montar um dos cavalos, depois saltou para o
outro apoiando apenas uma mão sobre a sela. Apertou os joelhos,
largou as rédeas e o cavalo partiu como uma flecha. O meu - o
homem segurava nas suas rédeas - seguiu-o imediatamente a galope
numa perfeita harmonia. Devorávamos o caminho, a terra corria sob
nós cinzenta e estriada, e as silhuetas negras das árvores fugiam
como um exército derrotado.
Atravessamos uma floresta tão sombria, tão opaca e glacial, que
senti um arrepio de terror supersticioso percorrer-me a espinha. As
faíscas que os cascos dos nossos cavalos arrancavam das pedras
deixavam à nossa passagem uma espécie de rastro de fogo, e se
alguém nos tivesse visto, ao meu condutor e a mim, a essa hora da
noite, teria nos tomado por dois espectros cavalgando um pesadelo.
Fogos-fátuos atravessavam de tempos em tempos o caminho, as
gralhas piavam aflitas no fundo da floresta onde brilhavam, de vez
em quando, os olhos fosforescentes dos gatos selvagens. A crina dos
cavalos se desgrenhava, o suor escorria-lhes dos flancos, a
respiração saía pesada e comprimida das suas narinas. Mas quando o
cavaleiro os via fraquejar, soltava - para reanimá-los - um grito
gutural que nada tinha de humano e o galope recomeçava
furiosamente. Finalmente, o turbilhão terminou; um bloco negro,
cravejado por alguns pontos brilhantes, ergueu-se subitamente
diante de nós; Os passos dos nossos animais soaram mais
ruidosamente sobre as lajes, e entramos sob uma abóbada que abria,
à nossa frente, a sua garganta sombria, ladeada por duas enormes
torres. Reinava uma grande agitação no castelo; criados com tochas
na mão atravessavam os pátios, luzes subiam e desciam as várias
escadas. Entrevi confusamente um grande edifício, colunas, arcadas,
escadarias e rampas; um luxo real e feérico. Um pajem negro, o
mesmo que me entregara a mensagem de Clarimonde, e que
reconheci imediatamente, veio ajudar-me a descer. E um mordomo,
vestido de veludo negro com uma corrente de ouro no pescoço e uma
bengala de marfim na mão, veio ao meu encontro. Grossas lágrimas
escorriam dos seus olhos, caindo-lhe ao longo do rosto e da barba
branca.
- Tarde demais!, disse ele, enquanto abanava a cabeça, tarde
demais! senhor padre; mas já que não pode salvar a alma, venha
velar o seu pobre corpo." Agarrou-me pelo braço e conduziu-me à
câmara mortuária; eu chorava tanto quanto ele, porque já havia
entendido que a morta não era outra senão aquela Clarimonde tão
loucamente amada. Ao lado do leito encontrava-se um genuflexório.
Uma chama azulada esvoaçava numa lâmpada de bronze, lançando
no quarto uma luz fraca e ambígua, fazendo cintilar na sombra, aqui
e ali, os contornos de um móvel, a aresta de um canto. Sobre a mesa,
numa urna cinzelada, estava mergulhada uma rosa branca murcha
cujas folhas, à exceção de uma única, estavam caídas ao pé do vaso
como lágrimas perfumadas. Um dominó negro amassado, um leque,
máscaras de todo tipo estavam espalhadas pelas poltronas, indicando
que a morte tinha entrado de repente nessa casa suntuosa, sem se
fazer anunciar. Ajoelhei-me sem ousar erguer os olhos para o leito e
comecei a recitar as orações com um grande fervor, agradecendo a
Deus por ter colocado o túmulo entre mim e a ideia dessa mulher;
para que pudesse acrescentar aos salmos o seu nome doravante
santificado. Mas, pouco a pouco, o ardor foi diminuindo e caí num
profundo devaneio. O quarto nada tinha de câmara-ardente. Em vez
do ar fétido e cadavérico que estava acostumado a respirar nessas
vigílias fúnebres, pairava suavemente no ar morno um lânguido
perfume de essências orientais, um não sei qual apaixonado odor de
mulher. A luz pálida parecia mais uma meia-luz preparada para a
volúpia do que a lamparina que bruxuleia ao lado dos cadáveres.
Pensei no singular acaso que me fizera reencontrar Clarimonde
no exato momento em que a perdia para sempre e um suspiro de
lamento escapou do meu peito. Pareceu-me que tinham suspirado
atrás de mim também e virei-me involuntariamente. Era o eco. Mas,
ao fazer esse movimento, meus olhos encontraram o precioso leito
que até então havia evitado. As cortinas de damasco vermelho com
grandes flores, suspensas por cordões dourados, deixavam entrever
a morta deitada, as mãos cruzadas sobre o peito. Estava coberta por
um véu de linho de uma brancura luminosa, que a Púrpura sombria
do damasco fazia ressaltar ainda mais, tão fino que nada escondia do
seu corpo encantador, permitindo seguir as linhas ondulantes do seu
colo de cisne que nem a própria morte conseguira quebrar. Parecia
uma estátua de alabastro, feita por algum escultor muito hábil, para
ser colocada no túmulo de uma rainha, ou uma jovem adormecida
sobre a qual tivesse nevado.
Não consegui resistir; o ar de alcova me embriagava, o odor
febril das rosas meio murchas subia-me ao cérebro e eu percorria o
quarto em largas passadas, parando a cada volta diante do estrado
para olhar a graciosa falecida sob a transparência do seu sudário.
Pensamentos estranhos atravessavam-me o espírito, imaginava que
ela não tinha morrido realmente, que era apenas um ardil que
utilizara para me atrair ao seu castelo e para poder contar-me o seu
amor. Por um momento, julguei mesmo ter visto o seu pé se mexer,
na brancura dos véus, desarrumando as pregas retas do sudário.
Logo depois, dizia a mim mesmo: "Será, realmente, Clarimonde?
Que prova tenho eu? O pajem negro pode ter passado para o serviço
de uma outra mulher: estou louco de agitar-me e desesperar-me
assim." Mas o meu coração me respondia com um sobressalto: "é
ela, é ela". Aproximei-me do leito e observei com uma atenção
redobrada o objeto da minha incerteza. Terei coragem de confessar-
lhe? A perfeição das formas, apesar de purificada e santificada pela
sombra da morte, perturbava-me mais voluptuosamente do que seria
conveniente, e o repouso aproximava-se tanto do sono que qualquer
um teria se enganado. Esquecia que viera ali para um ofício fúnebre
e julgava ser um jovem esposo entrando no quarto da noiva, que
esconde o seu corpo por pudor recusando-se a ser observada.
Cheio de dor, louco de alegria, tremendo de medo e de prazer,
inclinei-me na sua direção, segurei uma ponta do sudário e ergui-o
lentamente, contendo a respiração com medo de acordá-la. Minhas
artérias palpitavam com uma tal força que sentia o sangue assobiar
nas têmporas e a minha fronte inundava-se de suor como se tivesse
removido uma laje de mármore. Era mesmo Clarimonde, tal como a
vira na igreja no dia da minha ordenação; continuava encantadora e
a morte parecia apenas mais uma das suas graças. A palidez de suas
faces, o rosa menos vivo dos lábios, os longos cílios baixados e a
sombra escura que se recortava nessa brancura davam-lhe uma
expressão de castidade melancólica e de sofrimento pensativo
indizivelmente sedutores; os longos cabelos soltos, onde se
misturavam ainda algumas pequenas flores azuis, formavam uma
almofada para a sua cabeça, protegendo com seus caracóis a nudez
dos ombros; suas belas mãos, mais puras e diáfanas do que hóstias,
estavam cruzadas numa atitude de repouso piedoso e tácita oração,
corrigindo o que poderia parecer sedutor demais mesmo na morte:
seus braços nus, roliços e polidos como marfim, de onde não haviam
retirado as pulseiras de pérolas. Fiquei durante muito tempo
absorvido numa contemplação muda e, quanto mais a olhava, menos
podia acreditar que a vida tivesse abandonado para sempre esse
belo corpo. Não sei se foi uma ilusão ou um reflexo da lâmpada, mas
parecia que o sangue recomeçava a circular sob esta palidez fosca;
no entanto, ela continuava totalmente imóvel. Toquei ligeiramente o
seu braço; estava frio, mas não mais frio do que sua mão no dia em
que roçara a minha sob o pórtico da igreja.
Voltei à minha posição, inclinando o meu rosto sobre o seu,
inundando as suas faces com o terno orvalho das minhas lágrimas.
Ah! Que sentimento amargo de desespero e de impotência! Que
agonia, a dessa vigília! Quisera poder reunir a minha vida num
pequeno monte para oferecer-lhe e soprar sobre o seu cadáver
gelado a chama que me devorava. A noite avançava e, sentindo
chegar o momento da separação eterna, não pude recusar-me a
triste e suprema doçura de depositar um beijo nos lábios mortos
daquela que tivera todo o meu amor. Ó prodígio! Um leve sopro
confundiu-se com o meu e a boca de Clarimonde respondeu à pressão
da minha: seus olhos se abriram e retomaram um pouco do seu
brilho, ela suspirou e, descruzando os braços, lançou-os ao meu
pescoço, com uma expressão de alegria inefável. "Ah! É você,
Romuald, disse com uma voz doce e lânguida como os últimos
acordes de uma harpa; o que está fazendo?
Esperei você tanto tempo que morri; mas agora somos noivos,
poderei ver você, ir na sua casa. Adeus, Romuald, adeus! Amo você;
era tudo o que queria lhe dizer. Devolvo-lhe a vida que, por um
minuto, você me insuflou com seu beijo. Até breve."
Sua cabeça caiu para trás, mas ela ainda me apertava nos
braços como que para me reter; um turbilhão de vento enfurecido
abriu a janela e entrou no quarto. A última pétala da rosa branca
palpitou durante instantes como uma asa na extremidade da sua
haste, depois soltou-se e voou pela janela aberta, levando consigo a
alma de Clarimonde. A lâmpada apagou-se e caí desmaiado sobre o
seio da bela morta.
Quando voltei a mim, estava deitado na minha cama, no pequeno
quarto do presbitério, e o velho cão do meu antecessor lambia a
minha mão estendida para fora das cobertas. Bárbara agitava-se no
quarto com um tremor senil, abrindo e fechando gavetas, mexendo
poções em copos. Ao ver-me abrir os olhos, a velha soltou um grito
de alegria e o cão latiu abanando a cauda. Mas eu estava tão fraco
que não consegui pronunciar nenhuma palavra, nem fazer nenhum
movimento. Soube depois que tinha permanecido três dias assim,
sem dar outro sinal de vida senão uma respiração quase
imperceptível. Esses três dias não contam na minha vida; não sei por
onde meu espírito andou durante esse tempo: não guardei nenhuma
lembrança.
Bárbara contou-me que o mesmo homem de pele bronzeada,
que viera buscar-me durante a noite, trouxera-me de manhã numa
liteira fechada, desaparecendo em seguida. Assim que pude reunir as
minhas ideias, rememorei os acontecimentos dessa noite fatal.
Primeiro, julguei ter sido vítima de uma ilusão mágica; mas
circunstâncias reais e palpáveis logo destruíram essa suposição. Não
podia ter sonhado: Bárbara vira - como eu - o homem dos dois
cavalos negros e descrevia a sua figura e vestuário com exatidão. No
entanto, ninguém conhecia, nos arredores, um castelo ao qual se
aplicasse a descrição daquele em que encontrara Clarimonde.
Uma manhã, vi entrar o abade Sérapion. Bárbara mandara lhe
dizer que eu estava doente, e ele viera imediatamente. Embora essa
rapidez demonstrasse afeição e interesse pela minha pessoa, sua
visita não me causou o prazer que deveria. O abade Sérapion tinha
no olhar algo de penetrante e de inquisidor que me incomodava.
Diante dele, sentia-me perturbado e culpado. Fora o primeiro a
descobrir a minha agitação interior e eu não podia perdoar-lhe a
clarividência.
Enquanto me pedia notícias da minha saúde com uma voz
hipocritamente doce, punha sobre mim suas duas pupilas amarelas
de leão, mergulhando o seu olhar na minha alma como uma sonda.
Depois, fez-me algumas perguntas sobre a maneira como eu dirigia a
minha paróquia, se estava gostando, como é que passava o tempo
que o ministério me deixava livre, se tinha travado conhecimento
com alguns dos habitantes do lugar, quais eram minhas leituras
favoritas, e mil outros detalhes parecidos. Respondia a tudo o mais
brevemente possível, e ele mesmo, sem esperar que eu acabasse,
passava a um outro assunto. A conversa, evidentemente, não tinha
nada a ver com o que queria me dizer. De repente, sem nenhum
preâmbulo, como se fosse uma notícia da qual se lembrasse e tivesse
medo de esquecer em seguida, disseme com uma voz clara e vibrante
que ressoou nos meus ouvidos como as trombetas do Juízo Final: "A
célebre cortesã Clarimonde morreu recentemente, depois de uma
orgia que durou oito dias e oito noites.
Foi qualquer coisa de infernalmente esplêndido. Repetiram-se
todas as abominações dos festins de Balthazar e de Cleópatra. Em
que século nós vivemos, meu Deus! Os convivas eram servidos por
escravos escuros, falando uma língua desconhecida: pareciam todos
verdadeiros demônios, e a farda de cada um deles podia ter servido
de traje de gala para um imperador. Sempre correram, a respeito
dessa Clarimonde, histórias muito estranhas, e todos os seus
amantes morreram de morte violenta ou miseravelmente. Dizem que
era uma goule, um vampiro-fêmea; mas eu acho que era o próprio
Demônio.
Calou-se e observou-me mais atentamente do que nunca, para
ver o efeito que suas palavras produziam sobre mim. Não pude
conter um sobressalto ao ouvir o nome de Clarimonde, e a notícia de
sua morte, além da dor que me causava pela estranha coincidência
com a cena noturna de que tinha sido testemunha, lançou-me numa
inquietação e num terror que transpareceram no meu rosto, apesar
dos esforços que fiz para me controlar. Sérapion lançou-me um olhar
inquieto e severo; depois me disse: "Meu filho, devo avisálo que você
se encontra à beira de um abismo, tome cuidado para não cair nele.
As garras de Satã são compridas e os túmulos nem sempre são tão
fortes quanto se supõe. O de Clarimonde deveria ser selado com um
selo triplo porque, segundo se diz, não é a primeira vez que ela
morreu. Que Deus o proteja, Romuald!"
Após ter dito estas palavras, Sérapion dirigiu-se para a porta a
passos lentos, e não o vi mais; partiu para S... quase imediatamente.
Eu estava totalmente restabelecido e retomara as minhas
funções habituais. A lembrança de Clarimonde e as palavras do velho
abade continuavam na minha memória; entretanto, nenhum
acontecimento extraordinário viera confirmar as fúnebres previsões
de Sérapion e começava a acreditar que tanto os seus medos quanto
os meus terrores eram infundados. Mas, uma noite, tive um sonho.
Mal havia bebido os primeiros goles de sono, ouvi as cortinas da
minha cama deslizarem nos seus anéis, com um ruído estridente;
ergui-me de repente sobre um dos braços e vi uma sombra de mulher
em pé diante de mim.
Reconheci imediatamente Clarimonde. Segurava na mão uma
lamparina, parecida com aquelas que se costuma colocar nos
túmulos, cuja luz dava a seus dedos afilados uma transparência
rósea, que se prolongava em imperceptíveis gradações até a
brancura opaca e leitosa de seu braço nu. Usava, como única roupa,
o sudário de linho que a recobria no seu leito de morte; apertava as
pregas sobre o peito como se sentisse vergonha de ser vista assim,
mas sua pequena mão não o conseguia; era tão branca que a cor do
tecido se confundia com a da sua carne, sob a pálida claridade da
lâmpada. Envolta nesse tecido fino que traía os contornos do seu
corpo, ela parecia mais uma estátua de mármore de ninfa antiga do
que uma mulher dotada de vida. Morta ou viva, estátua ou mulher,
sombra ou corpo, sua beleza permanecia a mesma; apenas o brilho
verde de suas pupilas enfraquecera um pouco, e a sua boca, outrora
tão vermelha, tingia-se de um rosa desmaiado e terno quase
semelhante ao das faces. As pequenas flores azuis que notara no seu
cabelo estavam completamente secas e tinham perdido quase todas
as pétalas; o que, no entanto, não a impedia de continuar
encantadora, tão encantadora que, apesar da singularidade da
aventura e do modo inexplicável como entrara no meu quarto, não
senti medo nem por um instante.
Colocou a lâmpada em cima da mesa, sentou-se aos pés da cama
e disse, inclinando-se para mim, com sua voz argentina e aveludada
como jamais ouvira igual:
- Demorei muito, meu querido Romuald, e decerto você pensou
que tinha lhe esquecido. Mas venho de muito longe, e de um lugar de
onde ninguém ainda voltou. Não há lua nem sol no país de onde
venho: só espaço e sombra; não existem caminhos, nem atalhos, nem
terra para os pés, nem ar para as asas e, no entanto, estou aqui,
porque o amor é mais forte do que a morte e acabara por vencê-la.
Ah! Que rostos tristes e que coisas terríveis vi na minha viagem!
Como foi difícil para a minha alma, que retornou a este mundo
apenas pela força da vontade, reencontrar o meu corpo e reinstalar-
se nele! Que esforço tive de fazer para levantar a laje com que me
cobriram! Olhe a palma das minhas mãos ainda tão machucadas.
Beije-as para curá-las depressa, meu amor querido!" Colocou-
me as palmas frias das mãos, uma depois da outra, sobre a boca;
beijei-as várias vezes enquanto ela me olhava com um sorriso de
infinito prazer.
Confesso, para minha vergonha, que esquecera completamente
os conselhos do abade Sérapion e a dignidade de que estava
investido. Sucumbira ao primeiro ataque, sem sequer lutar. Nem
tentara repelir o tentador; a frescura da pele de Clarimonde
penetrava na minha e sentia arrepios voluptuosos percorrerem o
meu corpo. Pobre criança! Apesar de tudo o que vi, ainda não posso
acreditar que fosse um demônio; pelo menos não o parecia, e nunca
Satã escondeu tão bem os chifres e as garras. Tinha dobrado as
pernas sob si mesma e continuava sentada na beirada da cama numa
posição cheia de abandono e de graça. De vez em quando, passava
sua pequena mão entre os meus cabelos, enrolando-os em caracóis
como se experimentasse novos penteados. Deixava-a brincar com a
mais culpada das complacências, enquanto ela acompanhava os
gestos com uma conversa infantil e encantadora. O notável é que eu
não me surpreendia nem um pouco com essa aventura tão
extraordinária, e que aceitava - como nas visões onde se admitem
com facilidade os acontecimentos mais bizarros - tudo como
perfeitamente natural.
- Eu já amava você muito antes de lhe conhecer, meu querido
Romuald, e o procurava por toda parte. Você era o meu sonho, e
quando o vi na igreja, nesse momento fatal, disse imediatamente: 'É
ele!' Lancei-lhe então um olhar onde coloquei todo o amor que tinha
e que teria por você; um olhar que faria um cardeal perder a alma,
que faria um rei ajoelhar-se aos meus pés perante toda a sua corte.
Você ficou impassível e preferiu o seu Deus.
Ah! Como sinto ciúme de Deus, que você amou e ainda ama mais
do que a mim! Como sou infeliz! Como sou infeliz! Nunca terei o seu
coração só para mim, eu que você ressuscitou com um beijo,
Clarimonde, a morta que violou por sua causa as portas do túmulo e
que vem consagrar a você uma vida que só tomou de volta para lhe
tornar feliz!"
Todas estas palavras eram entrecortadas por carícias
delirantes que atordoaram os meus sentidos e a minha razão a tal
ponto que, para consolá-la, não hesitei em pronunciar uma terrível
blasfêmia: dizer-lhe que a amava tanto quanto a Deus.
Suas pupilas se reavivaram e brilharam como crisóprasos. "É
verdade? É verdade? Tanto quanto Deus?", disse ela, enlaçando-me
com os seus belos braços. "Já que é assim, você virá comigo, me
seguirá para onde eu quiser. Vai abandonar suas horrorosas roupas
pretas. Será o mais orgulhoso e invejado dos cavaleiros, será meu
amante. Ser o amante de Clarimonde, que recusou um papa! Ah! que
vida feliz, que bela existência dourada vai ser a nossa! Quando
partimos, meu senhor?
- Amanhã! Amanhã! - gritei no meu delírio.
- Que seja amanhã! - repetiu ela. - Terei tempo de mudar de
roupa, porque esta é leve demais e não serve para a viagem. Preciso
também avisar os meus criados que acreditam que estou realmente
morta e que sofrem com isso. O dinheiro, as roupas, as carruagens,
tudo estará preparado. Virei buscar-lhe a esta hora.
- Adeus, meu coração." E roçou a minha fronte com os seus
lábios. A lâmpada se apagou, as cortinas se fecharam e não vi mais
nada; um sono de chumbo, um sono sem sonhos, caiu sobre mim
deixando-me entorpecido até a manhã seguinte. Acordei mais tarde
do que de costume e a lembrança dessa singular visão agitou-me
durante todo o dia; acabei por me convencer de que se tratava de
uma mera emanação da minha imaginação excitada. No entanto, as
sensações tinham sido tão vivas que era difícil admitir que não
fossem reais, e não foi sem alguma apreensão acerca do que iria
acontecer que fui me deitar, depois de ter pedido a Deus que
afastasse de mim os maus pensamentos e que protegesse a castidade
do meu sono.
Logo adormeci profundamente e o meu sonho continuou. As
cortinas se afastaram e eu vi Clarimonde, não como da primeira vez,
pálida no seu pálido sudário e com as violetas da morte nas faces,
mas alegre, lépida e elegante, com um soberbo vestido de viagem em
veludo verde debruado a ouro, levantado do lado para deixar ver
uma saia de cetim. Seus cabelos louros escapavam em caracóis do
grande chapéu de feltro negro carregado de plumas brancas
caprichosamente arredondadas; empunhava um pequeno chicote que
terminava em um apito de ouro. Tocou-me levemente com ele,
dizendo-me: "Então, belo dorminhoco! É assim que se prepara para
uma viagem? Pensei que ia encontrá-lo acordado. Depressa, não
temos tempo a perder." Saltei imediatamente da cama.
- Vamos, vista-se e partamos, disse ela mostrando-me com o
dedo um pequeno embrulho que trouxera; os cavalos estão
impacientes e roem as rédeas na porta. Já deveríamos estar a dez
léguas daqui."
Vesti-me às pressas e era ela mesma que me estendia as peças
do vestuário, rindo às gargalhadas da minha falta de jeito e
indicando-me o seu uso correto quando me enganava. Deu umas
penteadelas no meu cabelo e, quando achou que tinha terminado,
estendeu-me um pequeno espelho de mão em cristal de Veneza,
orlado por uma filigrana de prata, dizendo-me: "Como se acha?
Aceita-me para o seu serviço como camareiro?"
Eu não era mais o mesmo e não me reconheci. A semelhança
era a que existe entre uma estátua acabada e um bloco de pedra.
Meu rosto antigo parecia ser apenas o esboço grosseiro do que se
refletia no espelho.
Eu era belo, e a minha vaidade sentiu-se bastante lisonjeada
com essa metamorfose. As roupas elegantes, o rico casaco bordado
faziam de mim uma outra pessoa e admirei a força que alguns metros
de tecido, cortados de uma certa maneira, podiam ter. O espírito do
traje penetrava-me na pele e, passados dez minutos, sentia-me
completamente vaidoso.
Dei algumas voltas no quarto para habituar-me a minha nova
figura. Clarimonde observava-me com um ar de satisfação maternal,
parecendo muito contente com a sua obra. "Chega de criancice, meu
querido Romuald. Partamos! Vamos para longe e desse jeito não
chegaremos nunca." Pegou na minha mão e me arrastou. Todas as
portas se abriram diante dela assim que as tocava e passamos na
frente do cão sem acordá-lo.
À porta, encontramos Margheritone, o escudeiro que já havia
me conduzido, segurando nas mãos as rédeas de três cavalos negros
como os primeiros, um para mim, outro para ele, o último para
Clarimonde. Eram certamente ginetes da Espanha, nascidos de
éguas fecundadas por Zéfiro, porque corriam rápido como o vento, e
a lua, que aparecera no horizonte, quando partimos, para nos
iluminar, rolava no céu como uma roda que tivesse perdido o seu
carro; nós a víamos à nossa direita, saltando de árvore em árvore,
esforçando-se para nos acompanhar. Logo chegamos a uma planície
onde, perto de um pequeno grupo de árvores, esperava-nos uma
carruagem puxada por quatro vigorosos animais; subimos nela e
iniciamos um galope insensato, levados pelos condutores. Um dos
meus braços abraçava a cintura de Clarimonde, uma das suas mãos
apertada na minha; ela apoiava a sua cabeça no meu ombro e eu
sentia o seu colo seminu roçar o meu braço.
Nunca havia sentido uma felicidade tão profunda. Havia
esquecido tudo, e lembrava-me tanto de que tinha sido ordenado
como do que vivera no seio da minha mãe, tão grande era o fascínio
que o espírito maligno exercia sobre mim. A partir dessa noite, a
minha natureza como que se desdobrou e passaram a existir em mim
dois homens que se desconheciam. Ora me julgava um padre que
todas as noites sonhava que era um cavalheiro, ora um cavalheiro
que sonhava ser padre. Não conseguia mais distinguir o sonho da
vigília e não sabia onde começava a realidade e onde terminava a
ilusão. O jovem senhor vaidoso e libertino zombava do padre, o
padre detestava as dissoluções do jovem senhor. Duas espirais
enredadas uma na outra, confundidas mas sem nunca se tocarem,
representam perfeitamente esta vida bicéfala que foi a minha.
Apesar da estranheza da situação, acho que não me aproximei da
loucura nem por um instante. A percepção que tinha das minhas duas
existências foi sempre muito clara. Só existia um fato absurdo que
não conseguia explicar: que o sentido do mesmo eu existisse em dois
homens tão diferentes. Era uma anomalia que eu não entendia, quer
pensasse ser o pároco da pequena aldeia de..., ou "il Signor
Romualdo", amante de Clarimonde.
Acontece que me encontrava, ou julgava encontrar-me, em
Veneza; ainda não consegui distinguir bem o que havia de ilusão e de
realidade nessa estranha aventura. Vivíamos num grande palácio de
mármore que dava para o "canaleio", cheio de afrescos e estátuas,
com dois ticianos da melhor época no quarto de dormir de
Clarimonde; um palácio digno de um rei. Possuíamos cada um a sua
gôndola e os nossos barcos com homens vestidos com as nossas
cores, nosso quarto de música e o nosso poeta. Clarimonde achava
que só valia a pena viver com grandeza e na sua natureza havia um
pouco de Cleópatra.
Quanto a mim, levava uma vida de filho de príncipe e me exibia
como se fosse da família de um dos doze apóstolos, ou dos quatro
evangelhistas da república sereníssima; não teria desviado do meu
caminho para dar passagem ao doge, e não creio que alguém, desde
que Satã caiu do céu, tenha sido mais orgulhoso e insolente do que
eu. Frequentava o Ridotto e jogava paradas altíssimas. Entrara na
melhor sociedade do mundo, convivia com filhos de famílias
arruinadas, mulheres de teatro, escroques, parasitas e espadachins.
E, no entanto, apesar da dissipação dessa vida, continuava fiel a
Clarimonde. Amava-a perdidamente. Ela despertara a exuberância e
fixara a inconstância. Ter Clarimonde era ter vinte amantes, possuir
todas as mulheres, tanto ela era móvel, versátil e diferente de si
mesma: um verdadeiro camaleão. Cometia com elas as infidelidades
que outras poderiam provocar, tomava completamente a
personalidade, a aparência e o tipo de beleza da mulher que parecia
agradar-me. Devolvia o meu amor multiplicado por cem e foi em vão
que os jovens aristocratas e os velhos do conselho dos Dez lhe
fizeram as mais magníficas propostas. Um Foscari propôs-lhe até
casamento; sempre recusou tudo. Tinha ouro suficiente; só queria o
amor, um amor jovem, puro, despertado por ela, um amor que devia
ser o primeiro e o último. Eu teria sido completamente feliz se não
fosse um pesadelo que retornava todas as noites, no qual pensava ser
um pároco de aldeia, mortificando-me e penitenciando-me dos
excessos diurnos. Tranquilizado pelo hábito de viver com ela, quase
não pensava mais na maneira estranha como a conhecera. Apesar
disso, as palavras que dissera o abade Sérapion voltavam-se de vez
em quando à memória, deixando-me inquieto.
Já havia algum tempo que a saúde de Clarimonde não estava tão
boa; suas cores empalideciam de dia para dia. Os médicos que foram
chamados não puderam dizer nada sobre a sua doença e não sabiam
o que fazer. Prescreveram alguns remédios insignificantes e não
voltaram mais. Apesar disso, ela empalidecia a olhos vistos e ficava
cada vez mais fria. Estava quase tão branca e gelada como na
famosa noite no castelo desconhecido. Eu me angustiava por vê-la
morrer assim lentamente. E ela, tocada pela minha dor, sorria-me
triste e docemente, com o sorriso fatal das pessoas que sabem que
vão morrer.
Uma manhã, estava sentado perto da sua cama e tomava minha
refeição matinal numa pequena mesa para não deixá-la um minuto
sequer. Ao cortar uma fruta, dei - sem querer - um corte bastante
profundo no dedo.
O sangue jorrou imediatamente em pequenos fios purpúreos e
algumas gotas atingiram Clarimonde. Seus olhos se iluminaram e sua
fisionomia adquiriu uma expressão de alegria feroz e selvagem que
jamais havia visto nela. Saltou da cama com uma agilidade animal,
uma agilidade de gato ou de macaco, e precipitou-se sobre a minha
ferida, sugando-a com uma indizível volúpia. Engolia o sangue em
pequenos tragos, lenta e cuidadosamente, como um gourmet que
saboreia um vinho de Xérès ou de Siracusa; semicerrava os olhos e
suas pupilas verdes tornavam-se oblongas em vez de redondas. De
vez em quando, interrompia para me beijar a mão, depois tornava a
colar os seus lábios nos lábios da ferida, extraindo-lhes mais algumas
gotas vermelhas. Quando sentiu que o sangue já não corria, levantou-
se, com os olhos úmidos e brilhantes, mais rosada do que uma aurora
de maio, o rosto cheio, as mãos quentes e úmidas, mais bela do que
nunca e num estado de perfeita saúde.
- Não vou morrer! Não vou morrer!", disse ela, dependurando-
se no meu pescoço; "vou poder amar você ainda por muito tempo.
Minha vida está na sua, e tudo o que eu sou vem de você". Algumas
gotas do seu rico e nobre sangue, mais precioso e eficaz do que todos
os elixires do mundo, devolveram-me a vida."
Esta cena preocupou-me durante muito tempo inspirando-me
estranhas dúvidas a respeito de Clarimonde; nessa mesma noite,
quando o sono me trouxe de volta para o meu presbitério vi o abade
Sérapion mais sério e preocupado do que nunca. Olhou-me
atentamente e disse: "Não contente em perder a sua alma, você quer
perder também o seu corpo. Jovem infeliz! Em que armadilha você
caiu!”
0 tom com que me disse estas poucas palavras tocou-me
profundamente; mas, apesar da impressão muito viva que me
causaram, logo se dissiparam; mil outras preocupações apagaram-
nas do meu espírito. Uma noite, no entanto, vi no meu espelho, cuja
pérfida posição ela não calculara, Clarimonde derramando um pó no
copo de vinho com especiarias que costumava preparar-me depois
das refeições. Peguei a taça, fingi levá-la aos lábios e coloquei-a
sobre um móvel, como que para bebê-la mais tarde quando quisesse;
aproveitando um momento em que Clarimonde estava de costas,
joguei o conteúdo da taça para baixo da mesa, depois do que retirei-
me para o meu quarto. Deitei-me resolvido a não dormir e a
observar o que ia acontecer. Não esperei muito; Clarimonde entrou
em trajes de noite e, desembaraçando-se dos seus véus, estendeu-se
na cama ao meu lado. Após certificar-se de que eu dormia, descobriu
o meu braço e tirou um alfinete de ouro da sua cabeleira,
murmurando então em voz baixa: "Uma gota, apenas uma pequena
gota vermelha, um rubi na ponta da minha agulha!... Se você ainda
me ama, não posso morrer... Ah! Pobre amor! O seu sangue, o seu
belo sangue, tão vermelho, vou bebê-lo.
Dorme, meu único bem; dorme, meu deus, meu menino; não lhe
farei mal, só tirarei da sua vida o que preciso para que a minha não
se apague. Se não amasse tanto você, podia ter outros amantes e
esgotaria as veias deles; mas desde que conheço você, todos os
outros me causam horror... Ah! que braço belo!
Como é redondo e branco! Nunca ousarei picar essa linda veia
azul." E, enquanto dizia isso, chorava, e eu sentia chover as suas
lágrimas no meu braço que ela agarrava com as duas mãos.
Finalmente, ela se decidiu e picou-me com a agulha, começando a
sugar o sangue que escorria. Apesar de ter bebido só algumas gotas,
possuída pelo medo de esgotar-me, enrolou cuidadosamente o meu
braço com uma pequena atadura, depois de ter esfregado a ferida
com um unguento que a cicatrizou instantaneamente.
Todas as dúvidas que tinha desapareceram, o abade Sérapion
tinha razão. No entanto, apesar dessa certeza, não podia deixar de
amar Clarimonde e teria lhe dado de bom grado todo o sangue de
que necessitava para manter a sua existência fictícia. Aliás, não
sentia muito medo, a mulher me compensava do vampiro, e o que
tinha visto e ouvido tranquilizava-me completamente; possuía, então,
umas veias ricas, que não corriam o risco de esgotar-se tão cedo, e
não iria comerciar a minha vida gota a gota. Teria aberto eu mesmo
o braço e lhe dito: "Bebe! E que o meu amor se infiltre no seu corpo
com o meu sangue!" Evitava fazer qualquer alusão ao narcótico que
ela me fizera engolir e à cena da agulha, e vivíamos na mais perfeita
harmonia. Entretanto, meus escrúpulos de padre atormentavam-me
cada vez mais e não sabia que nova maceração inventar para domar
e mortificar a carne.
Embora todas essas visões fossem involuntárias, e eu não
participasse - de modo algum - delas, não ousava tocar no Cristo com
as minhas mãos impuras e um espírito contaminado por tais
devassidões reais ou imaginárias. Para evitar cair nessas fatigantes
alucinações, tentava até deixar de dormir; mantinha, com os meus
dedos, as pálpebras abertas e ficava de pé encostado nas paredes
lutando contra o sono com todas as minhas forças; mas a areia do
entorpecimento logo caía nos meus olhos e, vendo que a luta era
inútil, eu deixava cair os braços de desânimo e cansaço, e a corrente
me arrastava de novo para as pérfidas margens. Sérapion exortava-
me com veemência, censurando a minha fraqueza e falta de fervor.
Um dia em que me encontrava mais agitado do que de costume,
disse-me: "Só existe um meio de libertá-lo dessa obsessão e, embora
seja extremo, é preciso empregá-lo: para os grandes males, grandes
remédios. Eu sei onde Clarimonde foi enterrada: precisamos
desenterrá-la para que você veja em que estado lastimável encontra-
se o objeto do seu amor; nunca mais se sentirá tentado a perder sua
alma por causa de um cadáver imundo devorado pelos vermes e
quase desfazendo-se em pó. O que vai ver irá obrigá-lo a cair em si. "
Eu estava tão cansado dessa vida dupla que aceitei; querendo saber,
de uma vez por todas, quem era vítima de uma ilusão, se o padre ou o
cavalheiro. Tinha decidido matar um para que o outro pudesse viver
em paz; poderia mesmo matar os dois, mas a vida que vivia não podia
continuar. O abade Sérapion muniu-se de uma picareta, uma
alavanca e uma lanterna, e, à meia-noite. dirigimo-nos para o
cemitério de..., onde se encontrava o túmulo cuja localização ele
conhecia. Após ter colocado a luz frouxa da lanterna sobre as
inscrições de vários túmulos, chegamos finalmente a uma pedra meio
escondida pelas ervas altas e devorada pelos musgos e plantas
daninhas, onde deciframos este começo de inscrição: "Aqui jaz
Clarimonde que, durante a sua vida, foi a mulher mais bela do
mundo".
- É aqui mesmo!, disse Sérapion e, pondo a sua lanterna no
chão, introduziu a alavanca no interstício da pedra, começando a
erguê-la. A pedra cedeu e ele continuou o trabalho com a picareta.
Eu o via trabalhar, mais sombrio e silencioso do que a própria noite;
ele, curvado, continuava a sua obra fúnebre encharcado de suor,
ofegante como se agonizasse. Era um espetáculo estranho, e quem
nos tivesse visto, certamente teria nos tomado por profanadores ou
ladrões de túmulos, nunca por padres. O zelo de Sérapion tinha algo
de duro e selvagem, aproximando-o mais de um demônio do que de
um apóstolo ou anjo; seu rosto de traços austeros e profundamente
marcados pela luz da lanterna não era nada tranquilizador. Eu sentia
escorrer sobre os membros um suor glacial e meus cabelos
levantavam-se dolorosamente na cabeça.
Intimamente, considerava a ação do severo Sérapion um
abominável sacrilégio, e gostaria que, do lado das nuvens sombrias
que passavam sobre nossas cabeças, saísse um triângulo de fogo que
o reduzisse a pó.
Os mochos, empoleirados nos ciprestes, assustados pela luz da
lanterna, vinham chicotear o vidro com toda a força com suas asas
empoeiradas, soltando gemidos queixosos; as raposas uivavam ao
longe e mil ruídos sinistros emanavam do silêncio. Finalmente, a
picareta de Sérapion encontrou o caixão e a madeira estalou com um
ruído surdo e sonoro, com esse ruído terrível que emite o nada
quando tocamos nele; ele levantou a tampa e vi Clarimonde pálida
como um mármore, com as mãos juntas; o seu sudário branco não
tinha uma única ruga da cabeça aos pés. Uma pequena gota
vermelha brilhava como uma rosa no canto da sua boca descolorida.
Sérapion, ao vê-la, enfureceu-se: "Ah! ei-la, demônio, cortesã
impudica, devoradora de sangue e de Ouro!" E aspergiu então, com
água-benta, o corpo e o caixão sobre o qual traçou a forma de uma
cruz com o seu hissope.
A pobre Clarimonde mal tinha sido tocada pelo santo orvalho e o
seu belo corpo já se desfazia em pó; dele só restou uma mistura
horrivelmente informe de cinzas e ossos semicalcinados. "Eis a sua
amante, senhor Romuald", disse o inexorável padre, mostrando-me
os tristes restos mortais; "sente-se ainda tentado a ir passear no Lido
ou na Fusine com a sua beldade?" Baixei a cabeça; acabava de se
fazer uma grande destruição dentro de mim. Regressei ao meu
presbitério, e o senhor Romuald, amante de Clarimonde, separou-se
do pobre padre ao qual fizera, durante tanto tempo, uma companhia
tão estranha. Na noite seguinte, no entanto, vi Clarimonde; ela me
disse, como na primeira vez sob o portal da igreja: "Infeliz! Infeliz! O
que você fez? Por que escutou esse padre imbecil? Não era feliz? O
que eu lhe fiz para que violasse a minha sepultura e expusesse a
miséria do meu nada? A comunicação entre nossas almas e nossos
corpos rompeu-se para sempre. Adeus, você sentirá saudades
minhas." Dissipou-se no ar como fumaça e não a vi mais.
Ai de mim! Ela falara a verdade! Senti saudades e ainda sinto. A
paz da minha alma foi comprada por um preço muito alto; o amor de
Deus não foi suficiente para substituir o de Clarimonde. Eis, irmão, a
história da minha juventude. Nunca levante os olhos para uma
mulher, caminhe sempre com eles fixos na terra porque, por mais
casto e calmo que você seja, basta um minuto para perder a
eternidade.
O REFLEXO PERDIDO
E.T.A. Hoffman

Uma tarde de inverno, à espera do último dia do ano, senti de


repente o sangue queimar-me nas veias e o coração gelar-se-me no
peito. Lá fora, rajadas de tempestade agitavam a noite. Esta crise do
céu transmitia-me descargas elétricas ao corpo; meu cérebro fervia
como metal em fusão. Quando todos os meus nervos ficaram
saturados desse fluido desconhecido, a que se dá o nome de febre ou
delírio, não pude mais ficar em casa e corri para fora, sem manto, os
cabelos ao vento. Os cataventos das casas guinchavam como gatos
enfurecidos e parecia-me distinguir, entre as vozes confusas da
tempestade, o tiquetaquear do relógio que assinala a queda das
horas no abismo da eternidade.
Coisa bizarra! A véspera de Ano Novo que é, para toda gente,
uma data alegre, encontrava-me presa de fundas dores morais. Seria
porque, a cada festa de Natal, contando os dias que haviam
decorrido e sentindo-me envelhecer, eu entrevisse mais de perto a
aproximação do fim? Pressentia-o apenas e não podia evitar que um
terror misterioso de mim se apoderasse; tanto mais quanto o diabo
sempre teve o cuidado de reservar-me, para o São Silvestre,
qualquer nova desventura.
Ontem, por exemplo, ao entrar num salão, deparei, sentada em
companhia de um grupo de damas, com uma figura de feições
angelicais... Sim, era Ela! Ela, a quem eu não via há cinco anos!...
"Deus seja bendito", exclamei no fundo da alma; "Ela voltou para
mim". Fiquei interdito, como se a varinha de um mágico me houvesse
tocado. Nesse instante, o dono da casa tocou-me levemente o ombro:
Então, caríssimo Hoffmann – disse me ele – em que pensas?
Voltei a mim, muito envergonhado de minha inépcia, e
aproximei-me da mesa de chá para sair do embaraço.
Nesse momento, Ela me viu, levantou-se e veio dizer-me, num
tom de voz cheio de indiferença:
- Tu aqui? Encantada de ver-te. Como tens passado?
Depois, sem esperar resposta, sentou-se novamente, dirigindo à
sua vizinha estas palavras, que me trespassaram o coração.
- Teremos, então, na semana que vem, um belo concerto no
palácio?
Um raio, caindo a meus pés, não me teria perturbado tanto.
Figurai-vos que experimentaria um homem que, ao aproximar-se de
uma rosa cultivada com amor, para respirar-lhe o perfume, sentisse
uma vespa sair do cálice da flor e picar-lhe o nariz. Recuei de modo
tão brusco, os olhos turvados pelo sangue que me subira à cabeça,
que derrubei ao chão uma travessa de sorvetes. Rolou tudo sobre o
tapete; nesse instante, desejaria estar enterrado a cem toesas de
profundidade. Por sorte, um artista célebre acaba de entrar. Fui
esquecido e pude contemplar Ela, Júlia, em todo o esplendor de sua
beleza.
Pareceu-me mais alta, mais cheia de formas, mais sedutora do
que nunca. Suas vestes, de imaculada brancura, ondeavam, em
pregas, sobre seu corpo. Suas espáduas e seu pescoço se
destacavam, como um bloco de neve, contra o decote enfeitado de
rendas; seus cabelos de um negro de ébano, desatavam-se em cachos
cambiantes, que lhe davam à face um caráter seráfico. Ao passar
perto de mim, voltou-se e acreditei ter lido, no seu olhar de um azul
tão doce, não sei que expressão zombeteira.
Minha razão sumiria se o maestro, que acabara de iniciar uma
cantata, não me houvesse refrescado a alma com uma cascata de
harmonias. Apenas terminou a execução, o auditório cumulou-o de
felicitações. Mas, nesse turbilhão de diletantes, vi-me separado de
Júlia por alguns instantes. Reencontramo-nos pouco depois, diante de
uma poncheira. Então, ó ventura inaudita! ela ofereceu-me um copo,
sorrindo celestialmente e dizendo-me, com uma voz cuja lembrança
nada poderá jamais apagar de minha memória: Quer aceitá-lo de
minhas mãos, como antigamente?
Ao recebê-lo, rocei-lhe os dedos; mil faíscas abrasaram-me o
sangue. Bebi o licor dourado até a última gota e pareceu-me que
chamas azuladas voavam sobre meus lábios. Meus sentidos nadavam
numa embriaguez deliciosa e quando voltei a mim, estávamos, eu e
Ela, lado a lado, sobre os coxins de um divã rosa, ao fundo de um
gabinete iluminado pela luz sonhadora de uma lâmpada de alabastro,
suspensa por cadeias de prata.
Júlia a meu lado, Julia sorridente, afetuosa como outrora; não
seria tudo um sonho? Ai! Sonho ou realidade, a ele me entregava
inteiramente. Parecia-me ouvi-la dizer as palavras mágicas: Meu
Teodoro, amo-te, não vivo senão por ti. És a minha poesia e a minha
felicidade!
E eu lhe respondia:
- Deus nos reuniu e nem todas as potências do inferno poderão
nos separar!
Subitamente um pequeno manequim, com olhos de rã,
sustentado por patas de aranha, apareceu tropeçando no meio do
gabinete.
- Onde, com todos os diabos, te meteste, Júlia? – disse, esticando
um nariz pintalgado de tabaco de Espanha.
Júlia levantou-se e despertou-me atrozmente com estas
palavras: Então, não achas que devemos voltar à festa? Como vês,
meu marido está à minha procura. És bem divertido, tanto quanto
outrora, meu caro Teodoro; entretanto, não deves beber tanto
ponche.
Soltei um grito de desespero.
- Perdida para toda a eternidade!!!
- É como diz, meu bravo senhor – respondeu o odioso animal, a
quem ela chamava seu marido.
Era demais para as minhas forças. Sentia-me enlouquecer. Num
átimo, vi-me fora do salão, correndo pela escada abaixo. Na rua, a
chuva que tombava em cascatas molhava-me o rosto. Eu corria
desabaladamente, sem direção nem consciência. E teria continuado a
correr se a taverna de mestre Thiermann não me detivesse a fuga
com suas portas abertas. Por elas adentro me precipitei, a
respiração ofegante, a goela seca e os olhos dilatados.
Julgaram-me bêbado; não há freguês melhor que um bêbado.
Dessarte, malgrado a falta de chapéu e casaco, o hospedeiro, ao me
ver elegantemente trajado, perguntou-me polidamente que desejava
eu.
- Um canecão de cerveja e um cachimbo!
Fui servido imediatamente. Os frequentadores da taverna me
olhavam pelo canto dos olhos e o hospedeiro ia talvez me interrogar
sobre a aventura, que a minha visita, em semelhante desalinho, fazia
suspeitar, quando três batidas nas vidraças da taverna seguidas de
um grito: "Abra depressa, sou eu!", desviou-lhe a atenção. Ele
acorreu à porta, com um castiçal, e logo depois um homem alto,
descarnado como um esqueleto, entrou na sala e encaminhou-se,
andando de lado, com as costas voltadas para a parede, para uma
pequena mesa, onde se sentou.
Esta personagem tinha aparência distinta, mas pensativa. Pediu,
como eu, cerveja e tabaco; encheu o cachimbo com impaciência e
envolveu-se em seguida em espessa nuvem de fumaça. Em meio a
fumaceira, tirou o chapéu de feltro e o casaco; pude então notar, com
surpresa, que sobre as botas trazia chinelas. Continuando a fumar,
passou em revista uma pilha de ervas, que retirou de uma caixa de
metal semelhante às usadas pelos botânicos.
Atrevi-me, para iniciar conversa, a fazer-lhe algumas perguntas
sobre as ervas que pareciam interessá-lo tanto.
- O senhor não é muito forte em botânica – respondeu-me ele à
meia voz. – Senão, teria visto logo que são plantas exóticas; estas
foram colhidas na América, nas cercanias do famoso vulcão
Chimborazo.
A entonação de sua voz produziu em mim uma espécie de
comoção magnética. Senti que as palavras morriam-me à flor dos
lábios e pareceu-me que, por desconhecidos que fossem, os traços
deste homem haviam aparecido nos sonhos de minhas noites
agitadas.
Minha preocupação foi interrompida pelo ruído de novo golpear
ansioso nas vidraças da taverna. O hospedeiro abriu a porta, mas o
recém-chegado gritou de fora, antes de entrar: Não se esqueça de
cobrir bem o espelho!
- Bem, bem – disse o hospedeiro, prendendo uma toalha ao
caixilho do espelho – eis que chega o general Suwarow.
O general nada tinha de belicoso. Entrou saltitante, com passos
pesados, descrevendo uma série de ziguezagues. Era baixinho, todo
envolto num capote pardo de mangas largas, dentro do qual parecia,
contudo, tremer de frio. Veio sentar-se à nossa mesa, colocando-se
entre o botânico de Chimborazo e eu. Mas as nossas cachimbadas o
incomodavam e, voltando-se alternadamente para cada um de nós,
queixou-se da fumaça e lamentou ter esquecido seu rapé.
Eu trazia comigo uma tabaqueira de aço polido, muito nova e
brilhante. Apressei-me a oferecê-la a ele, delicadamente. Apenas a
viu, cobriu o rosto com ambas as mãos e gritou: Com todos os
diabos! Esconda este maldito espelho!
Sua voz era convulsa e todo o seu corpo tremia. Julguei-o louco.
Serviram-lhe vinho do norte. Eu o espiava furtivamente quando, de
súbito, vi seu rosto mudar de expressão e cor, como as imagens de
uma lanterna mágica.
Desta vez, um suor gelado inundou-me a fronte; senti um medo
terrível, não me pejo de confessá-lo.
- Este general Suwarow – disse comigo mesmo – não será Satã
disfarçado, que vem me tentar?
Enquanto eu dava curso às suposições mais fantástica, o ilustre
personagem das ervas passava o seu tempo a espevitar a candeia
com extremo cuidado e o pequeno se levantara para arrumar melhor
o pano que velava o espalho. Essa bizarria não era de molde a
tranquilizar-me, quanto às suas faculdades mentais.
Ambos se puseram em seguida a conversar sobre um jovem
pintor que expusera recentemente um magnífico retrato de mulher.
- Sem dúvida alguma – dizia o magricela – é uma obra
maravilhosa; pode-se dizer que o retrato é o reflexo do modelo.
- Reflexo? Reflexo? Que animal estúpido poderia se apoderar de
um reflexo, a não ser o diabo em pessoa? – gritou o general, dando
um pulo na cadeira. – Mostre-me um reflexo roubado a um espelho –
desafio-o a fazê-lo – e darei um pulo de quinhentas toesas de altura!
Nesse instante o magricela, pouco lisonjeado com a tirada de
seu interlocutor, levantou-se e, passando a mão sob o queixo, disse
com um sorriso amargo:
- Calma, meu pequeno, não te faças violento. Os movimentos
muito bruscos me impacientam facilmente e eu poderia atirar-te pela
janela...
O general, pestanejante, apanhou o chapéu, ergueu-se e recuou
até a porta.
- Peste de homem! – disse, fazendo reverências e saltitando de
maneira cômica – diabo raivoso, passa bem.
- Se não posso ver-me ao espelho, conservarei, ao menos, minha
sombra, enquanto tu, meu caro... Bem, aqui ficam meus
cumprimentos!...
Dito isso, desapareceu, deixando o botânico num estado de
consternação difícil de descrever.
A ideia de um homem sem sombra me causava espécie. Vi-o
partir também em seguida. Ao atravessar a sala, seu corpo não
projetava sombra alguma. Lembrando-me então do famoso Peter
Schlemihl, esse Judeu Errante da Alemanha, corri atras dele. Mas
apenas atravessara a porta quando o hospedeiro me deu um
empurrão, gritando: Que o diabo leve todos os fregueses de vossa
espécie e Deus permita que nunca mais vos veja!
Quanto ao magricela, não consegui alcança-lo. Com três
passadas, desaparecera rua abaixo. Eu havia esquecido minha chave
no bolso do casado. Era-me, pois, impossível entrar em casa. Decidi
a pedir asilo a um de meus amigos, o proprietário do Águia de Ouro.
O porteiro não me fez esperar e fui conduzido a um belíssimo
aposento, enfeitado com um grande espelho recoberto por uma
cortina de sarja verde. Não sei porque me veio o capricho de
levantar a cortina. Vi-me refletido no espelho, tão pálido e tão
desfeito que mal consegui me reconhecer; depois, parecendo-me que,
do fundo do espaço refletido pelo espelho, vinha avançando para mim
uma forma indecisa e vaporosa.
Ao fixar os olhos nessa aparição, acreditei ver... sim, era Ela
mesma, a figura adorada de Júlia.!
- Ó, minha querida, voltas para aquele que não pode viver sem
ti?
Um profundo suspiro me respondeu. Tal suspiro saiu das dobras
do cortinado que escondia a alcova. Corri para o leito e deixo à vossa
imaginação a tarefa de figurar o que devo ter sentido ao encontrar
nele deitado, o homenzinho a quem o hospedeiro da taverna chamara
general Suwarow.
Esse bizarro personagem sonhava em voz alta e seus lábios,
contraídos por uma emoção penosa, pronunciavam um nome que me
fez bater o coração mais depressa: Giulietta!... Giulietta!
Sacudi vivamente o homenzinho até acordá-lo.
- Com quantos diabos resolveu ocupar – disselhe – o quarto que
me havia sido destinado?
- Ah! senhor – retorquiu, abrindo os olhos e estirando os braços
– como lhe sou grato por haver interrompido o pesadelo que me
oprimia!
Uma rápida explicação foi quanto bastou para eu descobrir que
o porteiro havia-se enganado ao levar-me para aquele aposento. Pedi
desculpas ao general e começamos a conversar.
- Devo ter-lhe parecido – disse o desconhecido – bem
inconveniente ou louco esta noite, na taverna. Mas o senhor será
indulgente para comigo se alguma vez lhe aconteceu experimentar
sensações inexplicáveis.
- Ah! meu caro senho – repliquei – poder-se-ia dizer de mim
outro tanto; pois olhe, não faz muito tempo que revendo Júlia...
- Júlia! Que nome acaba o senhor de pronunciar! – gritou o
homenzinho, jogando-se sobre o travesseiro. –
- Oh! cale-se, pelo amor de Deus, deixe-me dormir e não
esqueça de cobrir o espelho.
- Mas como – continuei – o nome de uma mulher que o senhor
certamente não conhece pode impressioná-lo tanto? Quer-me
parecer que a expressão do seu rosto altera-se a cada instante.
Vamos, acalme-se e consinta que eu repouse, até o amanhecer, ao
seu lado. Tratarei de não incomodá-lo.
- Não, pode ficar com o quarto todo. Vejo que para mim não
existe calma nem repouso possíveis. O senhor pronunciou o nome de
Júlia... Júlia!
- Giulietta!... É muito estranho. Estaremos unidos pela
fatalidade, sem sabê-lo, no mesmo infortúnio?...
- Embora eu tenha talvez de afligi-lo mortalmente, não posso
evitá-lo. Devo confessar a causa do meu infortúnio.
- Acho que isso me aliviará.
O homenzinho deslizou para fora do leito e dirigiu-se para o
espelho, do qual retirou a cobertura. Todos os objetos e luzes do
quarto, assim como minha figura, nele se refletiram nitidamente.
Mas o reflexo do general Suwarow nele não aparecia.
- Veja – continuou ele com voz plangente – se sou ou não muito
infeliz? Pedro Schlemihl vendeu sua sombra ao Diabo; pois bem, eu,
eu dei meu reflexo a Giulietta, que nunca mais mo devolverá! Meu
Deus! Meu Deus! que fatalidade!
Fiquei estupefato com a narrativa. Em meu coração, o horror se
misturava à piedade. O homenzinho, entregue completamente à sua
dor, jogara-se no leito convulsivamente; mas, dali a pouco, estava
roncando. O ruído que fazia acabou por me fazer mergulhar numa
sonolência irresistível. Apaguei as luzes e estendi-me ao seu lado,
sem despir-me, decidido a esperar o amanhecer.
A excitação do meu sistema nervoso atingira o máximo; meu
espírito turbilhonava num labirinto povoado de fantasma
indescritíveis. Pareceu-me, de repente, que o mundo diminuía, como
aquelas casas de bonecas.
Vi todos meus amigos mudados em homúnculos de açúcar.
Depois todas essas figuras cresceram desmesuradamente e, no meio
delas, apareceu Julia, que me estendia um copo cheio de ponche,
dizendo: Bebe, meu anjo, bebe este licor divino! Vi pequenas chamas
azuladas tremularem à borda do copo. Estava prestes a agarrá-lo
quando uma voz gritou atras de mim:
- Não beba! Não beba! É o veneno de Satã!
Voltei-me e reconheci o general Suwarow, que se ria debaixo do
meu nariz. Julia continuava com suas provocações; seu olhar me
queimava, o timbre de sua voz me dava vertigens.
- Por que tens medo? – dizia ela – Não nascemos um para o
outro por toda a eternidade? Não me deste teu reflexo em troca de
um beijo?
Eu me sentia morrer e estendi o braço para receber a taça
mágica no fundo da qual desejava afogar minha alma.Mas o pequeno
Suwarow gritava, em voz mais forte ainda: Não beba! Não beba!
Essa bela moça que lhe sorri é o diabo em pessoa; se tocar os lábios
a taça, o sortilégio desaparecerá, restando somente a realidade da
perda.
Julia continuava a insistir e a embriagar-me com sua sedução;
não sei o que iria me acontecer quando, de súbito, todas as figuras de
açúcar cândi se puderam a dançar em torno de mim, com uma tal
rapidez que não discerni mais nada. Esse pesadelo não terminou
senão às onze horas da manhã, quando um criado do Águia de Ouro
veio despertar-me para avisar que o desjejum estava servido. O
general Suwarow se levantara muito cedo, pagara sua despesa e
deixara, endereçado a mim, um pacote lacrado dentro do qual havia
um manuscrito, de letra miúda e de difícil decifração, no qual se
narrava a singular história que se segue. Era, talvez, a sua história.

II
Numa bela manhã, mestre Erasmo Spickherr viu-se, pela
primeira vez, em condições de satisfazer a mais ardente paixão de
sua vida. Acabara de juntar uma pequena herança, da qual retirou
uma soma suficiente para cobrir os gastos de uma viagem à Itália.
Na hora da partida, sua jovem esposa acompanhou-o, com o filho nos
braços, até a carruagem: Adeus! – gritou ela, os olhos úmidos de
lágrimas – querido Erasmo! Pensa sempre em mim, que ficarei em
casa, e tem cuidado para não perder a boina de viagem, dormindo
com a cabeça para fora da janela da carruagem.
Em Florença, Erasmo travou conhecimento com um alegre
grupo de compatriotas seus, que jogavam dinheiro fora e levavam a
vida mais desvairada que qualquer artista ou filho-família jamais
viveu sob o tépido sol da Itália. Eram festas e banquetes, noite e dia,
em mansões esplendorosas, com mulheres trajando costumes
fantásticos, cuja elegância e riqueza de cores emprestava-lhes o
aspecto de flores animadas. Somente Erasmo, fiel à lembrança de
sua esposa legítima, não se arriscava, malgrado seus 27 anos, a
nenhuma excursão além do círculo da fé conjugal.
Certa noite, quando esses pândegos estavam reunidos numa
orgia regada a vinho, um deles, Frederico, o mais fogoso do grupo,
rodeando com o braço o talhe esguio da amante, e erguendo seu
copo onde brilhava um líquido dourado, ergueu um brinde
incandescente à beleza das rainhas da noite, acrescentando: -
Quanto a ti, meu pobre Erasmo – disse a Spickherr – entristece-nos
profundamente com essa fisionomia fúnebre. Bebe e cantas como um
coveiro e portas-te de modo lamentável para com nossas damas.
- Juro-te, meu caro – respondeu Erasmo – que é meu dever
permanecer indiferente ao encanto dessas damas. Deixei na pátria
minha digna esposa e, quando se é, como eu, pai de família...
A estas palavras, ditas pelo pobre Erasmo com solene
gravidade, os presentes caíram num frouxo de riso. A amante de
Frederico, depois de lhe terem dito em italiano o que dissera
Erasmo, voltou-se para o frio alemão e disselhe: Toma cuidado. Se
visses Giulietta a neve do teu coração se fundiria como gelo ao sol.
No mesmo instante um ligeiro roçagar de sedes por entre a
folhagem anunciou a aparição de uma jovem de esplendorosa beleza.
Um vestido branco, que lhe punha a descoberto as espáduas níveas e
a garganta magnífica, caía em dobras sedutoras sobre seu talhe de
fada. Sua cabeleira, perfumada, desnastrada em ondas de ébano,
enquadrava, com um encanto inefável, o oval admirável de um rosto
de madona. Pedrarias cintilantes adornavam-lhe os braços e o colo.
- É Giulietta – exclamaram as raparigas.
- Sim, sou eu – disse, com um sorriso angélico, a bela
desconhecida. – Permitis que vos faça companhia por um instante?
Bem, vou sentar-me ao lado deste alemão carrancudo que não diz
uma palavra.
Em meio aos sussurros de suas rivais em beleza, a recém-
chegada tomou lugar ao lado de Erasmo, que pensava sonhar. A vista
de tantos encantos, sentia o coração pular-lhe; seu olhar se fixava em
Giulietta como que aterrorizado. A bela florentina apanhou da mesa
uma taça cheia e entregou-a a ele dizendo: Aprazer-te-ia, severo
estrangeiro, que eu fosse a senhora dos teus pensamentos?
Erasmo enrubesceu; todo o seu ser vibrava; erguendo-se, como
que impelido por uma mola, caiu diante dela, numa postura de
adoração:
- Sim! – exclamou – é a ti que eu amo, anjo dos céus! Tua
imagem morava em meus sonhos; tu me trazes a felicidade dos
eleitos.
Esta explosão fez crer aos presentes que Erasmo enlouquecera.
Giulietta ergueu-o, pedindo que se acalmasse, e a alegre conversa
recomeçou, mais animada. Solicitada a cantar, ela concordou, com
graça esquisita. Sua voz magnética provocava sensações inéditas. As
horas passaram como se fossem minutos.
Ao amanhecer, Giulietta decidiu retirar-se. Erasmo queria
acompanhá-la mas ela recusou e, indicando os lugares onde ele
poderia reencontrá-la, desapareceu como uma sílfide. O pobre
apaixonado não ousou segui-la e dirigia-se tristemente para casa
quando, a uma esquina, encontrou um personagem alto e magro,
trajando um costume escarlate pontilhado de botões de aço.
- Oh! Oh! – fez o desconhecido – que cara desconsolada tem o
senhor Spickherr esta manhã! Os moleques da cidade vão correr
atrás do senhor! Trate de esconder-se.
- Ei! Quem és tu, imbecil, para me falares dessa maneira? Segue
teu caminho! Respondeu-lhe Erasmo.
- Devagar, meu valente – continuou o homem de escarlate. –
Mesmo que tivesses asas de águia, não alcançarias Giulietta esta
manhã!
- Giulietta! Que quer dizer? – retorquiu Erasmo, fazendo meia
volta para agarrar seu interlocutor.
Este, porém, desembaraçando-se com uma pirueta, eclipsou-se
como um fogo fátuo.
Erasmo viu novamente Giulietta. A bela rapariga o recebeu de
bom grado, mas sem lhe permitir quaisquer liberdades. Entretanto,
quando ele lhe falava, fogoso e apaixonado, ela lhe lançava, às
furtadelas, olhares cheios de fascínio. Ele abandonou a companhia
ruidosa dos amigos para segui-la por toda a parte, como se não
pudesse viver senão do mesmo ar que ela respirava.
Certo dia, reencontrou Frederico; não pôde escapar-lhe, e este
lhe disse:
- Meu caro Spickherr, eis-te enfeitiçado pelos filtros de uma
nova Circe!.Ainda não compreendeste que Giulietta é a mais
dissoluta das criaturas?
- Ignoras então a fieira de histórias que se contam sobre ela? É
preciso que sejas muito tresloucado para esqueceres tão depressa
aquela boa esposa de que falavas com tanta ternura.
Erasmo escondeu o rosto entre as mãos e não pôde conter as
lágrimas.
- Vamos – continuou Frederico – deixa essa paixão que te perde
e vem comigo. Deixemos Florença sem perda de tempo!
- Sim, sim, imediatamente – exclamou Erasmo. Partamos hoje
mesmo.
Os dois amigos caminhavam apressadamente quando o homem
de escarlate cruzou-lhes, de súbito, o caminho:
- Vamos, senhor – disse a Spickherr – apresse-se pois a bela
Giulietta espera-o com ansiedade.
- Vá para o diabo, animal! – exclamou Frederico – Este é o
signor Dapertuto, muito conhecido como doutor em milagres; um
charlatão maldito que vende a Giulietta drogas infernais...
- Quê! – interrompeu Spickherr – então este imbecil frequenta a
casa de Giulietta?
Antes que seu amigo pudesse replicar, ouviu, ao passarem sob
um balcão, a voz argentina de Giulietta que o convidava a subir. A
magia desse apelo perturbou a resolução de Erasmo. Mais
embriagado do que nunca apela paixão, deixou-se de novo prender
pela amorosa algema e acompanhou a bela cortesã a uma vila de
recreio para onde ela se dirigia em busca de prazeres. Um jovem
italiano, notavelmente feio de rosto e grosseiro de maneiras, se
achava lá e perseguia Giulietta com seus galanteios. Erasmo sentiu
todas as serpentes do ciúmes morderem-lhe o coração e afastou-se
com ar sombrio. Giulietta correu atrás dele: Vamos, querido –
disselhe languidamente – não és todo meu?...
Ao mesmo tempo em que falava, aproximou-se dele e roçou-lhe
a face com um beijo.
- Para sempre! – exclamou Erasmo, abraçando-a inflamado de
amor.
A florentina escapou-lhe habilmente e lançou-lhe um olhar cuja
expressão quase o fez perder o pouco da razão que lhe restava.
Voltaram ambos para a festa. O jovem italiano havia os acompanhado
com os olhos e, fazendo-se de rival ofendido, vingou-se com amargos
sarcasmos contra os alemães. Erasmo, que se irritava facilmente,
ameaçou o italiano de rude correção. Este fez brilhar um punhal.
Não podendo mais se conter, Erasmo saltou-lhe à garganta,
derrubando-o por terra e assentou-lhe na cabeça um pontapé tão
violento que o desgraçado perdeu os sentidos. Mas o estupor que
esse acontecimento lhe causou deu-lhe também vertigens.
Quando voltou a si estava no boudoir de Giulietta.
- Meu pobre e querido alemão – dizia ela – quero salvar-te. Mas
é preciso que abandones Florença o mais depressa possível. É
preciso que me deixes para sempre, a mim que te amo tanto! Não
nos veremos mais.
- Ah! – exclamou Spickherr – antes morrer de mil mortes.
Mesmo que eu devesse perder a alma, sou teu para sempre!
- Oh! – continuou Giulietta – voltarás para tua esposa, a quem
também amas e, ao lado dela, me esquecerás logo.
Ambos se achavam sentados diante de um magnífico espelho
veneziano. A florentina prendeu Erasmo dentro de seus braços
ebúrneos.
- Ah! se ao menos – disse ela com olhos úmidos – se ao menos
me deixasses teu reflexo, enquanto esperássemos que o amor nos
reunisse novamente...
- Meu reflexo!... que queres dizer?... Meu reflexo!... –
balbuciou Erasmo, desconcertado. – Mas como poderias guardá-lo,
se ele é inseparável de mim?
- Recusas, então? – disse ela, com um suspiro fundo. – Nada me
restará da lembrança, nem mesmo esta fugitiva imagem que me sorri
do fundo do espelho!
E as lágrimas tombavam como gotas de fogo, sobre o rosto do
jovem alemão.

Choras, Giulietta, minha adorada! – exclamou – Ah! já é preciso


fugir para subtrair-me à desgraça que nos separaria para toda a
vida, que, ao menos, eu te possa deixar, para a eternidade, esse
reflexo cuja presença adoçará tuas recordações!...
Apenas acabara de falar, quando, lançando um olhar ao espelho,
não mais viu a sua imagem. A mesma Giulietta, que ele apertava
ao coração, esvaneceu-se como nuvem. Vozes fantásticas
ressoavam no silêncio do apartamento deserto.

Erasmo, transido de espanto, sentiu um véu gelado descer-lhe


sobre os olhos; procurou a porta aos tateios, como um embriagado,
abriu-a com dificuldade e desceu a escada num silêncio cheio de
horror. Apenas alcançara a rua quando braços o agarraram no meio
das trevas e o meteram numa carruagem, que partiu velozmente.
- Não tenha medo – disselhe uma voz. – Giulietta confiou-o aos
nossos cuidados. Sabe que aquele estúpido italiano recebeu uma de
que jamais se esquecerá? Esse acidente me entristece, pois Giulietta
amava o senhor. No momento, não lhe resta alternativa senão
escapar às garras da justiça e, se realmente insistir em não deixar
Florença, sei de um meio de escondê-lo de todos os olhares...
- Oh! caro senhor – respondeu Erasmo, soluçante – como
poderia fazê-lo?
- Nada mais fácil – continuou o desconhecido. – Tenho um
segredo para tornar as pessoas irreconhecíveis, alterando-lhes os
traços fisionômicos. Quando amanhecer, faremos uma tentativa e,
olhando-se no espelho, o senhor mesmo será o juiz.
- Deus! – exclamou Erasmo – que horror!
- Não vejo nada de horrível – replicou o homem oculto. –
Arranjar-lhe-ei um reflexo muito delicado.
- Ah! Devo confessar que ... que...
- Que houve?... Terá por acaso esquecido seu reflexo em casa
de Giulietta? Se assim for, não há o que fazer senão voltar à sua
pátria. Creio que sua querida esposa se importará pouco com o que
perdeu, desde que o tenha de volta em carne e osso.
A certa altura, a carruagem cruzou com um bando de alegres
convivas, que voltavam para casa a luz de tochas. Erasmo olhou para
seu companheiro de viagem e reconheceu nele o homem de
escarlate, a quem seu amigo Frederico chamava Dapertuto. Num
átimo, saltou do veículo e correu à toda velocidade atrás dos
condutores de tochas, entre os quais estava Frederico.
- Salva-me! – disselhe ao ouvido, com voz opressa – fiz uma
loucura!
Mas não acrescentou que perdeu seu reflexo. Frederico levou-o
para casa e, sem perda de tempo, arranjou-lhe meios de deixar
Florença a cavalo, ao amanhecer.
O infeliz Spickherr escreveu a história dessa triste viagem. Suas
aventuras são comoventes. Certo dia em que, morto de fadiga,
desejava repousar numa hospedaria, cometeu a imprudência de se
colocar diante de um espelho. O garçom, que servia a mesa, olhando
por acaso para o vidro e não vendo refletido nele a imagem do
freguês, comunicou esse fato surpreendente a um vizinho; este
contou-o a outro e logo vários dos presentes começaram a gritar:
Quem é este homem sem reflexo? É um maldito, um enfeitiçado, ou o
Diabo em pessoa!
Erasmo salvou-se fechando-se no quarto onde contava poder
passar a noite. Todavia, logo depois vieram agentes da polícia dizer-
lhe que, em nome dos magistrados, deveria ou mostrar seu reflexo ou
deixar a cidade sem perda de tempo. Forçado a fugir através dos
campos, para evitar as caravanas que cruzavam o caminho, ele não
entrava nos albergues senão ao cair da noite; pedia ao proprietário
para cobrir os espelhos; foi por isso que recebeu a alcunha de
general Suwarow, porque, ao que se dizia, este general tinha a
mesma mania.
Chegou, por fim, à sua cidade natal. A esposa o recebeu de
braços abertos e ele acreditou, por um momento, que sua desgraça
chegara ao fim. Tomando toda sorte de precauções, conseguiu
dissimular a perda do seu reflexo. Conseguiu mesmo esquecer
Giulietta. Mas, certa noite em que brincava com o filho, este tendo
sujado as mãos na chaminé do fogão, comprimiu-as contra o rosto do
pai, gritando alegremente: Veja, papai, como senhor ficou
lambuzado!
Depois, escapando-se dos braços do pai, apanhou um espelho,
colocando-o diante dele e espiando por cima do seu ombro. Antes que
Spickherrr pudesse se erguer, o pequeno, não vendo no vidro o
reflexo do pai, deixou cair o espelho e fugiu, chorando. Ao ruído,
apareceu a mãe.
- Que é que me diz a criança? – perguntou ela.
- Ei! Por Deus – respondeu Spickherr, com um riso forçado – ele
te diz que não tenho reflexo. Pois bem! Que importa? Um reflexo não
é mais que uma ilusão, minha querida; quem se olha ao espelho, peca
por vaidade; Deus me livre desse pecado!
A pobre mulher agarrou o marido pela mão, arrastou-o, como se
arrasta um culpado, até diante do espelho e, dando-se conta da
horrível verdade, transformou-se numa megera furiosa.
- Vai embora – gritou – vai para bem longe daqui, maldito; deves
ter feito algum pacto com o Demônio! Ou talvez nem sejas meu
Erasmo: és um espírito do inferno!
Persignou-se inúmeras vezes. Erasmo, desesperado, abandonou
a casa a correr e foi se refugiar numa campina deserta. Enquanto
errava ao azar, roído de mil angústias, a imagem de Giulietta lhe
apareceu de repente, mais bela do que nunca.
- Ai – disse ele – que te fiz para que me persigas? Minha mulher
me abandonou, não tenho mais nenhum afeto sobre a terra; tem
piedade, Giulietta, tem piedade de mim. Onde te reencontrarei
agora?
- Bem perto daqui, meu caro, pois ela está ansiosa por revê-lo –
respondeu uma voz atrás dele. Voltou-se, muito surpreso, e deu de
cara com o odioso Dapertuto, que o mirava com olhar sardônico.
- Sou seu humilde servidor – continuou o homem – e afirmo-lhe
que tão logo Giulietta esteja certa de poder possuí-lo em pessoa, terá
imenso prazer em devolver-lhe o reflexo que, evidentemente, não
pode saciar seu amor.
Erasmo estava fora de si.
- Leve-me a ela – exclamou – e lhe pertencerei sem qualquer
reserva...
- Perdão – disse Dapertuto – isso exige o cumprimento de uma
formalidade. O senhor está comprometido por ligações que devem
ser rompidas, visto que Giulietta quer possuí-lo sem partilha. Ora,
sua mulher e seu filho...
- Ah! minha mulher... meu filho...
- É preciso desembaraçar-se deles; oh! mas de uma maneira
muito simples, que não o comprometerá. Tenho aqui, dentro de um
pequeno frasco, um elixir, do qual duas gotas apenas livram a pessoa
de toda sorte de importunos. Estes não farão, garanto-lhe, sequer
uma careta. Tome, meu caro, isto exala um ligeiro perfume de
amêndoas que provoca um sono... um sono definitivo.
- Miserável! – urrou Erasmo – Ousas então propor-me tal
crime?
- Éh! Quem fala de crime? – replicou Dapertuto. – O senhor
deseja rever Giulietta e lhe ofereço o meio, eis tudo. Tome logo o
frasco e não banque a mulherzinha.
Erasmo, preso de vertigens, achou-se de súbito com o frasco na
mão e diante do leio no qual sua mulher se agitava nas aflições de um
pesadelo. O pobre marido sentiu o coração partir-se-lhe no peio ante
este espetáculo. Abriu a janela, jogou o frasco bem longe e foi-se
fechar no quarto vizinho, para chorar seu destino. A lembrança de
Giulietta veio atormentá-lo.
- Anjo ou demônio – gritou ele – causa da minha desgraça. Pois
bem! Aceito meu destino: aparece mais uma vez diante de meus
olhos; quero morrer revendo-a!
Nesse instante, soou meia-noite. À última pancada do relógio,
Giulietta apareceu.
- Meu bem amado – disselhe – guardei fielmente teu reflexo: ei-
lo!
O véu que cobria o espelho tombou e Erasmo viu sua imagem
enlaçada a da bela florentina.
- Oh! se me amas, devolve-me o reflexo; devolve-me, por
piedade! – disse ele, caindo de joelhos. – Mas não posso comprá-lo ao
preço do crime que me exige Dapertuto!

Escuta – continuou Giulietta – não podemos nos unir senão


quando teus laços estejam rompidos. Um padre os atou; somente
tu podes renunciar a eles. Mas não é preciso que o faças
pessoalmente; toma apenas este papel e escreve em cima que
renuncias à tua família terrestre para me pertencer
eternamente...
Erasmo tremia. Giulietta o beijava ardentemente. Subitamente,
viu erguer-se de trás dela a figura de Dapertuto, que lhe
apresentava uma pena de ferro. Nesse mesmo instante, uma veia
de sua mão esquerda rebentou e o sangue começou a jorrar.

- Escreve! Escreve! – dizia Dapertuto, com voz metálica.


- Escreve meu bem-amado! – dizia Giulietta, cujos véus haviam
caído para oferecer aos olhares fascinados de Erasmo todos os
tesouros da mais voluptuosa das belezas.
Ele tomou da pena, molhou-a no sangue e ia assinar, quando um
fantasma pálido entrou no quarto e pronunciou estas palavras, com
voz sepulcral:
- Erasmo! Erasmo! Queres dar tua alma ao Diabo? Em nome de
Jesus, pára...
Erasmo reconheceu a voz de sua esposa.
Ao ser pronunciado o nome sagrado, Giulietta mudou de aspecto
e transformou-se num espectro de fogo.
- Para trás, Satã! – gritou Spickherr – volta ao inferno de onde
saíste!
Logo em seguida um tremor de fazer medo estremeceu a casa;
o chão se abriu e Giulietta e Dapertuto desapareceram numa nuvem
de vapor sulfuroso. Depois, tudo voltou ao silêncio.
Quando Erasmo, aturdido, conseguiu coordenar as ideias, a luz
do dia penetrava no quarto. Voltou para junto da esposa. Esta já
estava desperta e brincava com o filho na cama.
- Meu amigo – disselhe ela com doçura – agora sei da aventura
que tiveste na Itália. Estou contristada; vê como são astutas as
partidas pregadas pelo Demônio, que te roubou o reflexo que eu
tanto gostava de ver sorrindo para mim, no espelho! De hoje em
diante não podes mais continuar a ser um respeitável chefe de
família; todos de apontarão com o dedo. Sugiro que te ponhas a
caminho e comeces a viajar em busca do teu reflexo. Tão logo o
encontres, conforme espero, apressa-te em voltar. Esperar-te-ei com
impaciência e reverte-ei com alegria. Beija-me e parte com Deus.
Lembra-te de enviar, de vez em quando, algum confeito ou brinquedo
ao teu filho, para que ele não te esqueça.
Spickherr, o coração opresso, beijou a esposa e o filho, apanhou
o bordão e pôs-se a caminho. Encontrou certo dia o famoso Pedro
Schlemihl, que havia perdido a sombra. Os dois desafortunados
propuseram-se viajar juntos; Spickherr entrava com a sua sombra e
Schlemihl com seu reflexo. Mas não conseguiram chegar a nenhum
acordo e, até hoje, ninguém sabe o que lhes aconteceu.
O MORTAL IMORTAL
Mary Shelley
16 de julho de 1833 - Esta é uma data memorável para mim;
completo trezentos e vinte e três anos!
O Judeu Errante? - Claro que não. Mais de dezoito séculos
passaram por sua cabeça. Comparado a ele, sou um Imortal muito
jovem.
Sou, então, imortal? Essa é uma pergunta que me tenho feito,
dia e noite, no decorrer destes trezentos e vinte e três anos e,
contudo, não consigo responder a ela. Percebi um fio de cabelo
grisalho em meio a minhas madeixas castanhas ainda hoje, e isso
certamente significa decadência. Contudo, pode ter ficado escondido
ali por trezentos anos, pois algumas pessoas ficam com os cabelos
completamente brancos antes dos vinte.
Contarei minha história, e o leitor julgará por si, Contarei minha
história e, assim, conseguirei passar algumas horas de uma longa
eternidade, que se tornou tão enfadonha... Para sempre! O leitor
pode imaginar viver para sempre?
Ouvi falar de encantamentos em que as vítimas mergulhavam
em sono profundo, para acordar depois de cem anos, bem dispostas
como nunca. Ouvi falar nos Sete Adormecidos (dessa forma, ser
imortal não seria tão cansativo), mas, oh!, o peso do tempo
interminável, a passagem tediosa das horas que se sucedem...
Como era feliz o fabuloso Nourjahad... Mas vamos a minha
história.
Todo mundo já ouviu falar de Cornelius Agrippa. Sua memória é
tão imortal quanto suas artes que me fizeram imortal. Todo mundo
também ouviu falar de um seu aluno que, sem querer, na ausência do
mestre, despertou o odioso espírito do mal e foi destruído por ele. O
rumor, verdadeiro ou falso, desse acidente, foi acompanhado de
muitos inconvenientes para o renomado filósofo. Todos os estudantes
o abandonaram imediatamente... Seus criados desapareceram. Não
tinha ninguém perto de si, nem para manter acesas as chamas sob os
frascos, enquanto dormia, ou para cuidar das cores mutáveis de suas
poções, enquanto estudava. As experiências fracassavam uma após
outra, porque um par de mãos era insuficiente para completá-las: os
espíritos das trevas riam dele por não conseguir reter um único
mortal a seu serviço.
Nesse tempo eu era muito jovem, muito pobre, e estava muito
apaixonado. Fora aluno de Cornelius durante um ano, embora
estivesse ausente quando esse acidente aconteceu. Quando voltei, os
amigos imploraram para que não voltasse à residência do alquimista.
Tremi ao ouvir a história pavorosa que contaram. Não precisei de
segundo aviso. Quando Cornelius veio oferecer-me um prêmio em
ouro para que eu ficasse sob seu teto, senti como se o próprio
Satanás estivesse me tentando. Meus dentes estalejaram - meu
cabelo ficou em pé, e fugi o mais depressa que permitiram meus
joelhos trêmulos.
Meus passos vacilantes dirigiram-se para onde havia dois anos
eram atraídos todas as noites - uma fonte de água pura a burburejar
docemente, ao lado da qual se demorava uma garota de cabelos
escuros, cujos olhos radiantes estavam fixos no caminho que eu
costumava percorrer toda noite. Não consigo me lembrar da hora
em que eu não amava Bertha; fôramos vizinhos e companheiros de
folguedos desde a infância seus pais, como os meus, eram humildes
mas respeitáveis -, e nossa ligação fora motivo de prazer para eles.
Em má hora, uma febre maligna levou tanto seu pai como sua mãe, e
Bertha ficou órfã. Ela teria encontrado um lar debaixo de meu teto
paterno, mas, infelizmente, a velha dama do castelo vizinho, rica,
sem filhos e solitária, declarou a intenção de adotá-la. Desde então,
Bertha vestia sedas - habitava um palácio de mármore - e era
considerada altamente favorecida pela sorte. Mas em sua nova
posição, entre novos companheiros, Bertha continuou fiel ao amigo
de seus dias mais modestos; frequentemente visitava a casinha de
meu pai e, quando foi proibida de ir lá, caminhava até a floresta
vizinha e se encontrava comigo ao lado da fonte sombrosa.
Com frequência, declarava que não devia a sua nova protetora
nenhuma obrigação tão sagrada quanto a que nos unia. Todavia, eu
ainda era pobre demais para casar-me, e ela se cansou de ser
atormentada por minha causa. Tinha um espírito altivo mas
impaciente e irritava-se com os obstáculos que impediam nossa
união. Encontrávamo-nos agora depois de longa ausência, e ela fora
extremamente assediada enquanto eu estava fora; queixou-se
amargamente e quase me censurou por ser pobre. Retruquei
apressadamente: - Sou honesto, embora pobre! Se não fosse, poderia
em breve ficar rico!
Essa exclamação provocou mil perguntas. Temi chocá-la
confessando a verdade, mas ela a arrancou de mim e, então,
lançando-me um olhar de desprezo, disse:
- Você finge amar e teme enfrentar o Demônio por amor a mim!
Protestei que apenas temera ofendê-la, enquanto ela insistia na
magnitude da recompensa que eu receberia. Assim encorajado -
humilhado por ela -, levado por amor e esperança, rindo dos temores
que sentira, com passos rápidos e coração leve, voltei para aceitar a
oferta do alquimista e imediatamente instalei-me em meu escritório.
Passou-se um ano. Tornei-me possuidor de uma quantia de
dinheiro nada insignificante. O hábito afugentara meus temores.
Apesar da mais penosa vigilância, nunca percebera o rastro de uma
pata fendida; nem o silêncio consciencioso de nossa residência foi
jamais perturbado por uivos demoníacos. Ainda continuava tendo
meus encontros furtivos com Bertha e começava a ter Esperança -
Esperança -, mas não perfeita alegria, pois Bertha imaginava que o
amor e a segurança eram inimigos, e seu prazer era dividi-los em
meu peito. Embora sincera de coração, tinha modos um tanto
levianos, e eu era ciumento como um turco. Ela me desfeiteava de
mil maneiras, mas nunca reconhecia estar errada. Deixava-me louco
de raiva e, então, forçava-me a pedir perdão. Às vezes ela imaginava
que eu não era submisso o bastante e então vinha com a história de
um rival, preferido por sua protetora. Era cercada por jovens bem
vestidos, ricos e alegres. Que probabilidade tinha o melancólico
aluno de Cornelius de se comparar a eles?
Uma ocasião, o filósofo tomou tanto de meu tempo, que não
pude ir vê-la como estava acostumado. Ele estava ocupado em algum
trabalho importante, e fui obrigado a permanecer, dia e noite,
alimentando as fornalhas e vigiando as preparações químicas. Em
vão Bertha esperou por mim perto da fonte. Seu espírito altivo
inflamou-se com essa desconsideração; quando, afinal, saí às
escondidas durante os poucos minutos destinados a meu descanso,
esperando que ela me consolasse, recebeu-me com desdém,
despediu-me com desprezo e jurou que qualquer homem poderia
obter sua mão de preferência a quem não podia estar em dois
lugares ao mesmo tempo por amor a ela. Ela seria vingada! E
realmente o foi. Em meu lúgubre retiro soube que ela fora caçar,
acompanhada por Albert Hoffer, que era o preferido por sua
protetora, e os três passaram em cavalgada diante de minha janela
enfumaçada. Pareceu-me que mencionaram meu nome, que foi
acompanhado por uma risada de zombaria, enquanto ela relanceava
desdenhosamente os olhos escuros em direção a minha residência.
O ciúme, com todo o seu veneno e toda a sua miséria, entrou em
meu peito. Ora eu derramava uma torrente de lágrimas pensando
que nunca poderia considerá-la minha; dali a pouco lançava mil
imprecações por sua inconstância. Contudo, ainda precisava atiçar
os fogos do alquimista, ainda precisava cuidar das mudanças em suas
porções ininteligíveis.
Cornelius vigiara três dias e noites, e não fechara os olhos. O
progresso em seus alambiques era mais lento do que esperara;
apesar da ansiedade, o sono pesava em suas pálpebras. Repetidas
vezes afastou a sonolência com força sobre-humana; repetidas vezes
ela afastou sua consciência. Ele olhava os cadinhos com melancolia.
Ainda não está pronto - murmurava -, será que outra noite se passará
antes que o trabalho esteja terminado? Winzy, você está alerta, você
é fiel, você dormiu, meu rapaz, dormiu a noite passada.
Olhe para aquele frasco. O líquido que contém é de um suave
cor-de-rosa; quando começar a mudar de cor, acorde-me, até então
posso fechar os olhos. Primeiro se tornará branco; depois emitirá
lampejos dourados; mas não espere tanto; quando a cor rosa
empalidecer, desperte-me. - Mal ouvi as últimas palavras, pois foram
murmuradas já durante o sono. Mesmo então não se entregou
completamente à natureza. - Winzy, meu rapaz - repetiu -, não toque
o recipiente, não o leve aos lábios; é um filtro, um filtro para curar o
amor; você não gostaria de deixar de amar sua Bertha, cuidado, não
vá beber!
E dormiu. Sua cabeça venerável inclinou-se sobre o peito, e eu
mal ouvia sua respiração regular. Por alguns minutos observei os
recipientes: o matiz rosado do líquido continuava inalterado. Depois
meus pensamentos devanearam - visitaram a fonte e alongaram-se
em mil cenas encantadoras que nunca se repetiriam, nunca!
Serpentes e víboras estavam em meu coração, enquanto a
palavra "Nunca!" se formava em meus lábios.
Jovem falsa! Falsa e cruel! Nunca mais sorriria para mim como
sorrira aquela noite para Albert. Mulher indigna e detestável! Eu
não ficaria sem vingança - ela veria Albert expirar a seus pés -, ela
morreria sob minha vingança. Sorrira desdenhosa e triunfante;
conhecia meu infortúnio e seu próprio poder. Todavia, que poder ela
possuía?, o poder de excitar meu ódio -meu desprezo absoluto -,
meu... oh, tudo menos a indiferença! Se eu pudesse conseguir isso, se
pudesse fitá-la com olhos despreocupados, transferindo meu amor
rejeitado para uma jovem mais justa e mais leal, isso constituiria
verdadeiramente uma vitória!
Um clarão dardejou diante de meus olhos. Esquecera-me da
poção do iniciado; maravilhado, fitei-a: lampejos de admirável beleza,
mais brilhantes do que os emitidos pelo diamante quando recebe os
raios do sol, cintilavam na superfície do líquido; senti o mais flagrante
e agradável perfume; o frasco parecia um globo resplandecente,
adorável aos olhos e convidativo ao paladar. O primeiro pensamento,
instintivamente inspirado pelo sentido mais grosseiro, foi: "Quero,
preciso beber". Levei o frasco aos lábios. - Curar-me-á do amor, da
tortura! - Emborcara metade do mais delicioso líquido jamais
provado pelo paladar do homem, quando o filósofo começou a
despertar. Sobressaltei-me - derrubei o vidro -, o fluido incendiou-se
e espalhou-se pelo chão, enquanto sentia Cornelius apertando meu
pescoço e gritando com estridência: Canalha! Destruiu o trabalho de
minha vida!
O filósofo não se apercebeu de que eu bebera parte de sua
poção. Sua ideia, com a qual concordei tacitamente, era que eu
erguera o frasco por curiosidade e que, assustado com seu brilho e
os clarões de intensa luz que emitia, deixara-o cair. Nunca o
desenganei. O incêndio provocado pela poção foi apagado, a
fragrância evaporou-se, e ele acalmou-se, como um filósofo deveria
fazer nas mais duras provações, e mandou que eu fosse descansar.
Não tentarei descrever o sono de glória e júbilo que inundou
minha alma de felicidade durante as horas que restavam daquela
noite memorável. As palavras seriam débeis modelos superficiais de
meu prazer, ou da alegria que me invadiu quando acordei. Andava no
ar - meus pensamentos estavam no céu. A terra parecia o céu, e a
herança que eu deixaria nela seria um rastro de prazer. "Isto é que é
estar curado do amor", pensei; "verei Bertha hoje, e ela achará o
amado frio e indiferente; feliz demais para ser desdenhoso, porém
sentindo completa indiferença por ela!"
As horas passaram voando. O filósofo, seguro de que fora bem-
sucedido uma vez e acreditando que poderia sê-lo novamente,
começou, mais uma vez, a preparar a mesma poção. Estava ocupado
com seus livros e suas drogas, e eu tinha um dia livre. Vesti-me com
cuidado; olhei em um escudo antigo, mas muito bem polido, que me
servia de espelho; pareceu-me que minha boa aparência melhorara
maravilhosamente.
Apressei-me para sair fora dos limites da cidade, com alegria na
alma e a beleza do céu e da terra ao meu redor. Dirigi os passos
para o castelo - podia olhar para suas torres majestosas com o
coração leve, pois estava curado do amor. Minha Bertha avistou-me
à distância, enquanto eu subia a estrada. Não sei que súbito impulso
animou-lhe o peito, mas, quando me viu, desceu os degraus de
mármore com a leveza de uma corça e correu em minha direção.
Porém, outra pessoa me avistara. A velha bruxa de alta estirpe que
se considerava sua protetora, e era sua tirana, também me vira;
manquejou ofegante até o terraço; uma pajem, tão feia quanto ela,
abanava-a e segurava-lhe a cauda do vestido, enquanto ela se
apressava e continha minha bela moça, dizendo: - O que é isso, minha
ousada senhora? Aonde vai com tanta pressa Volte para a gaiola, os
gaviões estão à solta!
Bertha agarrou-lhe as mãos com os olhos ainda voltados para
mim. Percebi a disputa. Como eu execrava a velha encarquilhada que
impedia os bondosos impulsos do coração de minha Bertha! Até
então, o respeito por sua posição fizera com que eu evitasse a dama
do castelo. Agora desdenhava essa fútil consideração.
Estava curado do amor e alçava-me acima de todos os temores
humanos; adiantei-me rapidamente e logo alcancei o terraço. Como
Bertha estava adorável! Com olhos faiscantes, as faces afogueadas
de raiva e impaciência, estava mil vezes mais graciosa e encantadora
do que nunca. Eu não a amava mais, oh, não!
Eu a adorava, venerava, idolatrava!
Aquela manhã ela fora atormentada com mais do que a
costumeira veemência, para que consentisse em casar-se
imediatamente com meu rival. Foi repreendida pelo encorajamento
que lhe demonstrara, foi ameaçada de ser posta na rua em desgraça
e vergonha. Seu espírito orgulhoso rebelou-se com a ameaça; mas
quando se lembrou do desprezo com que me cumulara e como,
talvez, com isso perdera quem agora considerava seu único amigo,
chorou de remorso e raiva. Cheguei nesse momento. - Oh, Winzy! -
exclamou -, leve-me para a casa de sua mãe; quero abandonar
rapidamente o luxo e a baixeza detestáveis desta nobre moradia,
leve-me à pobreza e à felicidade.
Apertei-a nos braços com arrebatamento. A velha senhora
perdeu a fala de ódio e prorrompeu em insultos somente quando
estávamos longe, a caminho de minha casa. Minha mãe recebeu a
bela fugitiva, que escapara de uma gaiola dourada para a natureza e
a liberdade, com ternura e alegria; meu pai, que gostava muito dela,
deu-lhe cordialmente as boas-vindas; foi um dia de regozijo, que não
precisou do acréscimo da poção celestial do alquimista para saturar-
me de prazer.
Logo depois desse dia agitado, tornei-me o marido de Bertha.
Deixei de ser aluno de Cornelius, mas continuei seu amigo. Sempre
lhe fui grato por ter, involuntariamente, me proporcionado aquele
delicioso gole de um elixir divino que, em vez de me curar do amor
(triste cura, solitário e melancólico remédio para males que são
lembrados como bênçãos), inspirara-me coragem e resolução,
conseguindo-me assim um tesouro inestimável em minha Bertha.
Muitas vezes lembrei-me com assombro daquele período de
embriaguez extasiante. A poção de Cornelius não realizara a tarefa
para a qual ele afirmara tê-la preparado, mas seus efeitos foram
mais potentes e ditosos do que as palavras conseguem expressar. Os
efeitos haviam fenecido aos poucos - contudo duraram bastante -, e
pintaram a vida com cores esplendorosas. Frequentemente Bertha
se admirava de minha leveza de coração e alegria desacostumada,
pois antes eu fora um tanto sério, triste mesmo, em minha
disposição. Ela me amava mais por meu temperamento animado, e
nossos dias eram cheios de alegria.
Cinco anos mais tarde, fui subitamente chamado à cabeceira de
Cornelius, que estava à morte. Chamara-me às pressas, implorando
minha presença imediata. Encontrei-o estirado na cama, morrendo
de fraqueza; toda a vida que lhe restava animava seus olhos
penetrantes, fixos em um recipiente de vidro, cheio de um líquido
rosado.
- Olhe - disse ele com voz cava e entrecortada -, a vaidade dos
desejos humanos! Pela segunda vez minhas esperanças estão para
ser realizadas, pela segunda vez são destruídas. Olhe aquele líquido;
lembra-se de que, cinco anos atrás, preparei o mesmo líquido, com
idêntico sucesso? Então, como agora, meus lábios sequiosos
esperavam provar o elixir imortal, mas você frustrou minhas
esperanças! E agora é tarde demais.
Falou com dificuldade e caiu sobre o travesseiro. Não pude
deixar de dizer:
- Como, venerando mestre, pode uma cura para o amor
devolver-lhe a vida?
Um débil sorriso brilhou em seu rosto e ouvi atentamente sua
resposta que mal dava para entender.
- Cura para o amor e para tudo, o Elixir da Imortalidade. Ah!, se
agora eu pudesse beber, viveria para sempre! Enquanto falava, um
clarão dourado cintilou no fluido; uma fragrância bem lembrada
inundou o ar; levantou-se, fraco como estava - a força pareceu voltar
milagrosamente a seu corpo -, estendeu a mão uma forte explosão
sobressaltou-me -, e um raio de fogo saltou do elixir e o frasco de
vidro que o continha despedaçou-se! Voltei os olhos para o filósofo;
ele caíra para trás - seus olhos estavam vidrados, suas feições,
rígidas -, estava morto!
Mas eu vivia, e iria viver para sempre! Assim dissera o
infortunado alquimista e, durante alguns dias, acreditei em suas
palavras. Lembrei-me da gloriosa embriaguez que se seguira a meu
gole roubado. Pensei na mudança que sentira no corpo, na alma. A
palpitante elasticidade de um, a animada leveza da outra.
Olhei-me no espelho e não pude perceber nenhuma mudança em
minha fisionomia durante os cinco anos que se ha viam passado.
Lembrei-me das cores radiantes e do agradável perfume daquela
deliciosa bebida, digna da dádiva que era capaz de conceder - então,
eu era imortal!
Alguns dias depois ri de minha credulidade. O antigo provérbio:
"Ninguém é profeta em sua própria terra", era verdade no que dizia
respeito a mim e a meu falecido mestre. Amava-o como homem -
respeitava-o como sábio -, mas ridicularizava a ideia de que ele
pudesse dominar os poderes das trevas e ria do medo supersticioso
que o povo lhe tinha. Era um sábio filósofo, mas não conhecia
nenhum espírito, exceto os de carne e osso. Sua ciência era humana
apenas; e logo me persuadi de que a ciência humana nunca
conseguiria conquistar as leis da natureza a ponto de aprisionar a
alma para sempre dentro de sua habitação carnal. Cornelius
preparara uma bebida que refrescava a alma - mais inebriante que o
vinho -, mais doce e mais perfumada do que qualquer fruta:
provavelmente possuía fortes poderes medicinais, transmitindo
alegria ao coração e vigor aos membros; mas seus efeitos passariam;
já haviam diminuído em meu corpo. Eu era um sujeito de sorte por
ter bebido espíritos de saúde e alegria, e talvez de longa vida, nas
mãos de meu mestre; mas minha boa sorte terminava aí: longevidade
era muito diferente de imortalidade.
Continuei a manter essa crença por muitos anos. Às vezes um
pensamento me ocorria: estaria o alquimista verdadeiramente
enganado? Mas minha crença costumeira era a de que eu teria a
mesma sina de todos os filhos de Adão, quando chegasse minha hora -
um pouco tarde, mas ainda em uma idade natural. Contudo, era
indiscutível que eu conservava uma aparência maravilhosamente
jovem. Riam de mim, por causa de minha vaidade em consultar o
espelho com tanta frequência, mas eu o consultava em vão - minha
fronte não tinha rugas, minhas faces, meus olhos, toda a minha
pessoa continuava com a aparência imaculada de meus vinte anos.
Eu me preocupava. Olhava a beleza decadente de Bertha - eu
mais parecia seu filho. Aos poucos nossos vizinhos começaram a
fazer observações semelhantes e, por fim, descobri que meu apelido
era o Estudante Encantado. A própria Bertha começou a ficar
apreensiva. Tornou-se ciumenta e rabugenta e, finalmente, começou
a interrogar-me. Não tínhamos filhos; éramos tudo um para o outro;
e, embora, à medida que envelhecia, seu espírito vivaz se misturasse
um pouco ao mau humor e sua beleza decaísse tristemente, eu a
considerava do fundo do coração como a amada que eu idolatrara, a
esposa que eu procurara e que conquistara com um amor tão
perfeito.
Por fim nossa situação tornou-se intolerável: Bertha tinha
cinquenta anos, eu, vinte. Com certa moderação, eu adotara, de pura
vergonha, os hábitos de uma idade mais avançada: não acompanhava
mais a dança entre os jovens alegres, mas meu coração saltitava com
eles enquanto eu refreava os pés; e fazia triste figura entre os
patriarcas de nossa aldeia. Porém, antes da época que mencionei, as
coisas se alteraram éramos completamente evitados; pelo menos eu
fui acusado de ter mantido um relacionamento iníquo com alguns dos
supostos amigos de meu antigo mestre. Lamentavam a pobre Bertha,
mas fugiam dela. Tinham horror e aversão a mim.
O que podíamos fazer? Sentávamo-nos ao pé da lareira, a
pobreza se fizera sentir, pois ninguém queria comprar os produtos
de minha fazenda e frequentemente eu era forçado a viajar
quilômetros até um lugar onde não fosse conhecido para vender
nossos bens. É verdade, economizáramos alguma coisa para um mau
dia - esse dia chegara.
Sentávamo-nos ao pé de nossa lareira solitária - o jovem de
coração envelhecido e a esposa velha. Mais uma vez Bertha insistiu
em saber a verdade: recapitulou tudo o que ouvira sobre mim e
acrescentou suas próprias observações. Esconjurou-me a que
rejeitasse o encantamento; descreveu como cabelos grisalhos eram
muito mais bonitos do que minhas madeixas castanhas; discorreu
sobre a reverência e o respeito devido à idade - como eram
preferíveis à consideração insignificante prestada a simples crianças:
imaginava eu que os desprezíveis dons da juventude e da bela
aparência prevaleceriam sobre a desgraça, o ódio e o desprezo?
Não, no final eu seria queimado como adepto da magia negra,
enquanto ela, a quem eu não me dignara comunicar uma parte de
minha boa sorte, talvez fosse apedrejada como cúmplice. Por fim,
insinuou que eu devia partilhar meu segredo com ela e conceder-lhe
benefícios semelhantes aos de que eu gozava ou ela me denunciaria -
e então desfez-se em lágrimas.
Assediado dessa maneira, pareceu-me melhor contar a verdade.
Revelei-a o mais ternamente que pude e falei somente de uma vida
muito longa, não de imortalidade - imagem que, realmente, melhor
coincidia com minhas próprias ideias. Quando terminei, levantei-me e
disse: - E agora, minha Bertha, vai denunciar o amor de sua
juventude? Não vai, eu sei. Mas é duro demais, minha pobre esposa,
que você deva sofrer com minha má sorte e as artes malditas de
Cornelius. Vou deixá-la.
Você tem riqueza suficiente, e com minha ausência os amigos
voltarão. Partirei; jovem como pareço e forte como sou, posso
trabalhar e ganhar o pão entre estranhos, insuspeito e desconhecido.
Amei-a na juventude; Deus é testemunha de que não a abandonaria
na velhice, a não ser que sua segurança e felicidade o exigissem.
Peguei meu gorro e fui andando até a porta; no mesmo instante,
os braços de Bertha rodearam-me o pescoço e seus lábios
comprimiram os meus. - Não, meu marido, meu Winzy - disse -, você
não irá sozinho, leve-me com você, sairemos deste lugar e, como
você mesmo diz, entre estranhos estaremos seguros e livres de
suspeita. Não sou tão velha a ponto de envergonhá-lo, meu Winzy, e
suponho que o encanto logo desaparecerá, e, com a bênção de Deus,
você parecerá mais velho, como convém; você não vai me deixar.
Retribuí calorosamente o abraço da boa alma. - Não vou, minha
Bertha; se não fosse por você eu não teria pensado em uma coisa
dessas. Serei seu fiel e verdadeiro marido enquanto você não me for
tirada e cumprirei minhas obrigações para com você até o fim.
No dia seguinte preparamo-nos secretamente para emigrar.
Fomos obrigados a fazer grandes sacrifícios pecuniários, isso não
pôde ser evitado. Conseguimos uma soma suficiente para nos
mantermos pelo menos enquanto Bertha vivesse; e, sem nos
despedirmos de ninguém, deixamos nossa terra natal e nos
refugiamos em uma parte remota da França ocidental.
Foi desumano afastar Bertha da aldeia natal e dos amigos da
juventude para um novo país, nova língua, novos costumes. O
estranho segredo de meu destino tornou essa mudança insignificante
para mim; mas tinha muita pena dela e fiquei contente ao perceber
que ela achava compensação para suas desgraças em várias
pequenas circunstâncias ridículas. Longe de todos os cronistas
linguarudos, procurava diminuir a evidente disparidade entre nossas
idades com mil artifícios femininos, ruge, roupas juvenis e adoção dos
modos da juventude. Não podia zangar-me. Eu próprio não usava
máscara? Por que brigar com a dela só porque era menos bem-
sucedida? Sofria profundamente quando me lembrava de que essa
era minha Bertha, que eu amara tanto e conquistara com tanta
emoção - a garota de olhos e cabelos escuros, com sorrisos de
encantadora brejeirice e o andar de uma corça -, essa velha
ciumenta, afetada e pernóstica.
Deveria reverenciar suas madeixas grisalhas e suas faces
murchas; mas assim! Era minha culpa, eu sabia; mas nem por isso
deplorava menos esse tipo de fraqueza humana.
Seu ciúme nunca descansava. Sua principal ocupação era
descobrir que, apesar das aparências, eu estava ficando velho. Na
verdade, acredito que a pobre alma amava-me do fundo de seu
coração, mas mulher alguma jamais teve uma forma tão cruel de
demonstrar afeição. Ela percebia rugas em meu rosto e decrepitude
em meu andar, enquanto eu saltitava com vigor juvenil, parecendo o
mais novo entre vinte jovens. Nunca ousei dirigir-me a outra mulher.
Uma ocasião, imaginando que a beldade da aldeia me olhava com
agrado, trouxe-me uma peruca grisalha. O tema das constantes
conversas com as conhecidas era sobre a decadência que já estava
atacando meu corpo, embora eu parecesse tão jovem, e ela afirmava
que o pior sintoma era minha saúde aparente. Minha juventude era
uma doença, dizia, e eu devia sempre estar preparado, quando não
para a morte súbita e medonha, pelo menos para acordar uma manhã
com cabelos brancos e curvado, com todas as marcas de uma idade
avançada. Eu a deixava falar - frequentemente tomava parte em suas
conjeturas. Suas advertências harmonizavam-se com minhas
incessantes especulações a respeito de meu estado, e eu tinha um
interesse fervoroso, embora dolorido, em ouvir tudo o que sua
sagacidade e sua imaginação excitada pudessem dizer sobre o
assunto.
Por que insistir nesses detalhes? Vivemos ainda por muitos
longos anos. Bertha ficou acamada e paralítica.
Cuidei dela como a mãe cuida do filho. Tornou-se rabugenta e
ainda batia na mesma tecla - quanto tempo eu sobreviveria a ela. E
sempre uma fonte de consolo para mim o fato de ter cumprido
escrupulosamente minhas obrigações para com ela. Fora minha na
juventude, foi minha na velhice; e, por fim, quando cobri de terra seu
cadáver, chorei, ao sentir que perdera tudo o que realmente me
ligava à humanidade.
Desde então, quantos têm sido meus cuidados e pesares, quão
poucos e vazios meus prazeres! Aqui interrompo minha história - não
a continuarei mais. Um marinheiro sem leme ou compasso,
debatendo-se em um mar tempestuoso - um viajante perdido em um
vasto deserto, sem um ponto de referência ou uma rocha para guiá-lo
-, assim tenho sido: mais perdido, mais desesperado do que ambos.
Um navio que se aproxima, a luz de uma casinha distante podem
salvá-los; mas eu não tenho nenhum farol, exceto a esperança da
morte.
Morte! Misteriosa e mal-encarada amiga da fraca humanidade!
Por que, sozinho, entre todos os mortais, só eu fui expulso de seu
redil protetor? Oh, pela paz da sepultura! O profundo silêncio do
túmulo de ferro! Que o pensamento cessasse de agir em meu
cérebro, e meu coração não mais batesse com emoções diferençadas
apenas por novas formas de tristeza!
Sou imortal? Volto à minha primeira pergunta. Em primeiro
lugar, não seria mais provável que a poção do alquimista estivesse
antes carregada de longevidade do que de vida eterna? Essa é minha
esperança. E, então, seja lembrado que só bebi a metade da poção
preparada por ele. Não seria toda ela necessária para completar o
encanto? Ter consumido metade do Elixir da Imortalidade é ser
apenas meio imortal - meu "para sempre" fica assim truncado e nulo.
Mas, novamente, quem contará os anos da metade da
eternidade? Frequentemente tento imaginar por qual regra o infinito
pode ser dividido. Às vezes imagino a idade avançando sobre mim. Já
achei um fio de cabelo grisalho. Tolo! Lamento? Sim, o medo da
idade e da morte com frequência insinua-se friamente em meu
coração; e quanto mais vivo, mais temo a morte, mesmo enquanto
tenho horror à vida. Tamanho enigma é o homem - nascido para
morrer -, quando luta, como eu, contra todas as leis estabelecidas de
sua natureza.
Se não fosse por essa anomalia de sentimentos, certamente eu
poderia morrer; o remédio do alquimista não seria à prova de fogo -
da espada e das águas sufocantes. Fito as profundezas azuis de
muitos lagos calmos e a correnteza turbulenta de muitos rios
possantes e digo: - A paz habita essas águas; - contudo, desvio meus
passos para viver ainda outro dia. Pergunto-me se o suicídio seria um
crime para alguém que só assim poderia ter abertas as portas do
outro mundo. Tenho feito tudo, exceto apresentar-me como soldado
ou duelista, uma objeção à destruição de meus... não, eles não são
meus companheiros mortais, e, por esse motivo, tenho me esquivado.
Não são meus companheiros. A força inextinguível da vida em meu
corpo, e a efêmera existência deles, separa-nos tanto quanto os pólos
distantes. Eu não poderia levantar um dedo contra o mais
insignificante ou o mais poderoso deles.
Assim tenho continuado a viver por muitos anos, sozinho e
cansado de mim mesmo - desejando a morte, contudo não morrendo
nunca -, mortal imortal. Nem ambição nem avareza podem entrar em
meus pensamentos, e o amor ardente que atormenta meu coração,
sem nunca ser retribuído - nunca achar um igual em quem se
consumir -, ali vive somente para me atormentar.
Hoje mesmo concebi um plano pelo qual posso terminar bem -
sem suicídio, sem fazer de outro homem um Caim -, uma expedição a
que o corpo mortal não pode jamais sobreviver, mesmo dotado da
juventude e da força que habitam o meu. Assim, testarei minha
imortalidade e descansarei para sempre - ou voltarei, prodígio e
benfeitor da espécie humana.
Antes de partir, uma vaidade desprezível fez-me redigir estas
páginas. Não gostaria de morrer sem deixar um nome para trás.
Três séculos se passaram desde que emborquei a bebida fatal; outro
ano não se passará antes que, enfrentando perigos gigantescos,
lutando com as forças do frio intenso em sua própria casa, acossado
pela fome, pela fadiga e pela tempestade, eu entregue aos elementos
destruidores do ar e da água este corpo, jaula persistente demais
para uma alma que tem sede de liberdade; ou, se sobreviver, meu
nome será lembrado como um dos mais famosos entre os filhos dos
homens; e, cumprida minha tarefa, adotarei meios mais decididos; e,
espalhando e aniquilando os átomos que compõem meu corpo,
libertarei a vida presa dentro dele e tão cruelmente impedida de
elevar-se desta terra obscura para uma esfera mais apropriada à sua
essência imortal.
MEDUSA
Mary Shelley

Jaz, fixando o céu noturno, supina sobre o enevoado cume de um


monte; embaixo, há um tremular de terras distantes. O seu horror e
a sua beleza são divinos. Sobre seus lábios e suas pálpebras ousa a
formosura como uma sombra: irradiam dela, ardentes e embaciadas
as agonias da angústia e da morte que, embaixo, se debatem.
Não é tanto o horror, mas a graça a empedrar o espírito do
observador, sobre quem se cinzelam os lineamentos daquela face
morta, até que os seus caracteres penetram-lhe, e o pensamento se
turva; é a melodiosa tinta da beleza, sobreposta às trevas e ao
esplendor da punição que torna humana e harmoniosa a impressão.
E de sua cabeça, como se fosse de um só corpo, surgem, tal qual
ervas de uma rocha úmida, cabelos que são víboras e se contorcem e
se estendem, e entrecruzam os seus nós, e em infinitos rodeios
mostram o seu esplendor metálico, quase escarnecendo da tortura e
da morte interiores, e cortam o ar com suas mandíbulas rachadas.
E de uma pedra ao lado, um venenoso sardão se demora a
espiar aqueles olhos gorgôneos, enquanto no ar, atônito, um
horrendo morcego é adejado fora da furna onde aquela
amedrontadora luz surpreendeu-o e se precipita como uma traça à
luz; e o céu noturno relampeja de uma luz mais amedrontadora que a
escuridão.
É o tempestuoso encanto do terror: das serpentes lampejam
uma cúprica fulgência acesa nesses inextricáveis rodeios e cria em
torno um vibrante halo, espelho móvel de toda a beldade e de todo o
terror daquela cabeça: um vulto de mulher com crina vipérea, que na
morte contempla o céu das tochas úmidas.
É o tempestuoso encanto do terror...
O VAMPIRO
John William Polidori
Há tempos, durante um Inverno em Londres, apareceu no meio
onde tudo se dissipa, nas muitas assembléias que a moda reúne aqui
nesta época, um lorde que se fazia notar muito mais pelas suas
singularidades do que pela linhagem. Os seus olhos passeavam-se
pela alegria geral que o rodeava com a indiferença de quem se sabe
impossibilitado de a partilhar. Dir-se-ia que somente o sorriso
gracioso da beleza seria capaz de lhe atrair as atenções, mas,
mesmo assim, apenas para o destruir com um olhar nos belos lábios
que lhe davam origem, gelando de pavor secreto um coração onde
até ai só a ideia do prazer reinava. As pessoas que experimentavam
esta penosa sensação não podiam saber a sua proveniência.
Apesar disso, algumas atribuíam-na àquele olhar cinzento e
baço, pois quando se fixava no rosto de alguém não penetrava no
coração, parecia antes cair sobre as faces como um raio de chumbo
que se colasse à pele sem conseguir penetrá-la. A sua originalidade
fazia com que fosse convidado para todos os salões.
Não havia ninguém que não desejasse vê-lo, e todos aqueles que
estavam habituados a sentir emoções violentas, mas a quem a
saciedade dessas emoções fizera com que sentissem o peso do tédio,
se felicitavam por encontrar qualquer coisa capaz de lhes despertar
as atenções adormecidas. O seu rosto era regularmente talhado,
apesar do tom sepulcral dos traços jamais animados por aquele
amável rubor que é fruto da modéstia ou de fortes emoções
provocadas pelas paixões. As mulheres mundanas, ávidas de uma
celebridade aviltante, disputavam-no acerbamente, sem que
nenhuma obtivesse dele o mínimo sinal de preferência. Lady Mercer,
que desde o casamento tivera a vergonhosa glória de ofuscar, nestes
meios, a conduta tumultuosa de todas as suas rivais, lançou-se ao
ataque e fez tudo o que pôde para atrair as suas atenções. Mas a
impudência de Lady Mercer fracassou, e ela viu-se obrigada a
renunciar.
Contudo, se ele não concedia sequer um olhar às mulheres
mundanas que encontrava diariamente, a beleza não lhe era porém
indiferente. Apesar disso, interessado como parecia estar tão-
somente pelas mulheres virtuosas ou pelas raparigas inocentes,
fazia-o com tanto recato que poucas pessoas estavam ao par das
suas relações com o belo sexo. A sua conversação tinha um encanto
irresistível e, ou porque conseguisse desfazer a má impressão que
inspirava à primeira vista, ou devido ao seu desprezo aparente pelo
vício, era tão solicitado pelas mulheres cujas virtudes domésticas são
o ornamento do seu sexo, como pelas outras que o desonram.
Nessa mesma época veio para Londres um jovem chamado
Aubrey. A morte prematura dos pais deixou-o órfão ainda criança na
companhia de uma irmã e com uma grande fortuna. Os seus tutores,
ocupados exclusivamente em cuidar dos seus bens, abandonaram-no
a si próprio e entregaram a formação do seu espírito a mercenários
subalternos. Consequentemente, o jovem Aubrey cultivou mais a
imaginação do que a sensatez, adquirindo aquelas noções românticas
de honra e candura que tantos jovens têm perdido.
Aubrey cria que o coração humano era naturalmente virtuoso, e
que o vício fora posto no mundo pela Providência apenas para variar
o pitoresco da cena; cria que a miséria de uma barraca era a ideal;
que o vestuário do camponês, tão confortável como o do homem
voluptuoso, pelo seu corte grosseiro e pelos remendos de diversas
cores que continha era, aos olhos do pintor, o que melhor
representava os sofrimentos do pobre. Cria também que se deviam
buscar as realidades da vida nos sonhos espirituais e brilhantes dos
poetas. Era, em suma, bom, sincero e rico. Por tudo isto, desde que
começou a frequentar a sociedade, um grande número de mães
acercou-se dele, porfiando em descobrir-lhe, cada uma por si, as
mais prodigiosas qualidades para o lisonjear; pelo seu lado, as filhas,
senhoras do seu papel, quando estavam na sua roda, os olhos
brilhavam-lhe de intenções. Se ele dizia qualquer coisa, fosse o que
fosse, todas à uma elogiavam enganosamente os seus talentos e
méritos. E Aubrey, se bem que nunca viesse a realizar o romance
que tinha na cabeça, sentia com este cerco a vaidade satisfeita, o que
de certo modo compensava o seu desapontamento por não conseguir
escrever. Ora, no momento em que perdeu todas as suas ilusões, o
ser extraordinário que descrevemos atrás entrou na sua vida.
Aubrey, impressionado pela estranha personagem, depressa
concluiu que lhe era impossível conhecer o caráter de um homem
inteiramente absorvido consigo mesmo, que não mostrava qualquer
interesse pelo que se passava à sua volta e demonstrava até o maior
cuidado em evitar o mínimo contato com os outros, revelando assim o
seu modo de ser. Todavia, esta mesma impossibilidade permitiu a
Aubrey dar livre curso à sua imaginação criando um retrato que ia de
encontro ao seu pendor, isto é, não tardou a revestir a singular
criatura de todas as qualidades de um herói de romance,
sobrelevando-se nele a pessoa criada pela sua imaginação e não o
ser que tinha perante os seus olhos. Desfez-se portanto em
amabilidades com o lorde e os progressos desta amizade foram tais
que depressa todos o notaram.
Não foi preciso muito tempo para Aubrey notar que os negócios
do lorde Ruthwen estavam periclitantes, e, certo dia, vendo no hotel
em que o seu amigo residia preparativos de viagem, percebeu que
este ia partir.
Ávido de mais precisas informações acerca desta inquietante
figura, que até este momento só lhe tinha despertado a curiosidade
sem nunca a satisfazer totalmente, Aubrey informou os seus tutores
que era tempo de iniciar a sua viagem pela Europa, costume adotado
há muito tempo pelos nossos filhos-família; o que lhes permite,
frequentemente, mergulharem na carreira do vício, já que pretendem
estar em pé de igualdade com as pessoas mais velhas e esperam
parecer, como elas, ao par de todas as intrigas escandalosas, eterno
tema para gracejos e louvaminhas consoante o grau de habilidade
manifestado por cada qual. Os tutores de Aubrey deram-lhe o seu
consentimento e imediatamente o jovem comunicou as suas intenções
a lorde Ruthwen, sendo agradavelmente surpreendido por receber
um convite deste para viajarem juntos. Aubrey, lisonjeado por esta
prova de estima da parte de um homem que parecia não ter nada de
comum com a espécie humana, aceitou de braços abertos a proposta
e alguns dias depois os nossos viajantes passaram o mar.
Até aqui, Aubrey não tinha tido ocasião de estudar a fundo o
caráter de lorde Ruthwen, mas com a convivência logo se apercebeu,
por testemunhar um grande número de atos praticados por ele, que
os resultados lhe ofereciam diferentes conclusões a tirar dos motivos
aparentes da sua conduta. O seu companheiro de viagem era
liberalíssimo; o mandrião, o vagabundo, o mendigo recebiam dele
espórtulas mais do que suficientes para as suas necessidades
imediatas. Todavia, Aubrey notava com pena que não eram as
pessoas virtuosas, reduzidas à indigência pela fatalidade, e não pelo
vício, que recebiam as suas esmolas; e mais, ao repelir este
infortunados era a custo que reprimia um sorriso duro. Mas quando o
homem de má conduta recorria a ele, não na mira de obter um alívio
para as suas necessidades, mas em busca de meios para mergulhar
ainda mais no deboche e na depravação, retirava-se sempre com
uma dádiva suntuosa. Aubrey, no entanto, julgava dever atribuir esta
generosidade sem regras de lorde Ruthwen à maior insistência das
pessoas viciosas, que conseguem, de um modo geral, mais
aquiescência do que a modesta timidez do virtuoso indigente.
Acrescia que a caridade de lorde Ruthwen estava ligada a uma
circunstância que abalava ainda mais o espírito de Aubrey: os
favorecidos da sua generosidade faziam-se acompanhar
invariavelmente de uma maldição inevitável, pois todos eles, mais
tarde ou mais cedo, acabavam por subir ao cadafalso ou por cair na
miséria mais abjeta. Em Bruxelas e noutras cidades onde estiveram,
Aubrey viu com surpresa a espécie de avidez com que o seu
companheiro procurava os centros de depravação. Nas casas de jogo
sentava-se logo à mesa do faraó; apontava e jogava sempre com
sorte, exceto quando o fazia com algum escroque conhecido. Quando
isto acontecia perdia então mais do que ganhava. Todavia, a sua
expressão nunca se alterava, mantendo aquele ar indiferente que
tinha sempre.
Mas quando jogava com algum jovem sem experiência ou o pai
infortunado de numerosa família, a fortuna sorria-lhe
invariavelmente. Nestes casos, punha de lado a impassibilidade que
lhe era habitual e os seus olhos fulguravam como os do gato que
rebola entre as suas patas o rato já meio morto. Quando saía da
cidade deixava o jovem, que era rico antes da sua chegada, expulso
do círculo de que era ornamento e amaldiçoado na solidão de um
calabouço a cumprir o destino a que o levara a influência perniciosa
deste mau gênio; quanto ao pai de família, esse, desolado, de olhos
desvairados, chorava junto dos filhos com fome, porque não
conservara, da sua imensa fortuna, sequer o mínimo para apaziguar
as suas necessidades de alimentação. Lorde Ruthwen, no entanto,
jamais saía rico da mesa de jogo, pois perdia logo a seguir com o
destruidor da fortuna de muitos infelizes a última moeda de prata
que arrancara à inexperiência, o que significava que ele era incapaz
de lutar contra a astúcia dos batoteiros experimentados.
Aubrey esteve muitas vezes decidido a ir ter com o seu
companheiro de viagem para lhe pedir que desistisse do exercício de
uma caridade e de um passatempo que levava à ruína de todos sem
que ele, ao menos, beneficiasse com isso. Mas o amigo furtava-se-lhe
todos os dias, não lhe dando ocasião para abrir o seu coração
francamente e sem reservas. Na sua carruagem, lorde Ruthwen,
embora tendo à sua disposição belas paisagens para deleitar o olhar,
mantinha-se impassível. De resto, os seus olhos falavam ainda menos
que os seus lábios, e Aubrey, conquanto andasse com a pessoa que
excitava tão vivamente a sua curiosidade, sentia-se cada vez mais
impaciente por perceber o mistério que envolvia um ser que a sua
imaginação exaltada considerava cada vez mais sobrenatural.
Chegaram a Roma e Aubrey, durante algum tempo, perdeu de
vista o seu companheiro, deixando-o numa altura em que ele era
muito assíduo na roda de uma condessa italiana. Pelo seu lado,
Aubrey, dedicara-se a visitar antiguidades. Nesse ínterim, o jovem
recebeu algumas cartas de Inglaterra. Abriu-as com impaciência.
Uma era da irmã, e acabava com expressões de terna saudade; as
restantes tinham sido enviadas pelos tutores, e o seu conteúdo
despertou-lhe desde logo a atenção. Se antes, na sua imaginação,
havia suposto que o companheiro de viagem estava sujeito a uma
influência infernal, estas cartas aumentaram ainda mais este
pressentimento. O caso é que os tutores insistiam para que ele se
separasse imediatamente do seu amigo, cujo caráter, diziam, era de
extrema depravação. Além disso, possuía um tal poder de sedução
que tornava qualquer contato com ele muito perigoso. Após a sua
partida, descobrira-se que afinal não era por vergonha que
desdenhara das mulheres mundanas, pois que, para satisfazer
plenamente os seus baixos instintos, preferia exacerbar os sentidos
às inocentes. Quando o conseguia, não tinha o menor escrúpulo em
precipitá-las do pináculo de uma virtude intata para o fundo do
abismo da infâmia e da degradação. Verificara-se inclusivamente que
todas as mulheres pelas quais se interessara, devido à sua casta
conduta, logo após a sua retirada, haviam tirado a máscara e exposto
sem vergonha, em público, toda a deformidade dos seus costumes.
Aubrey resolveu separar-se dessa personagem cujo caráter
ainda não lhe revelara um só ponto de vista aceitável. Decidiu
portanto inventar um pretexto plausível para o abandonar
definitivamente, propondo-se, entretanto, em vigiá-lo o mais possível
e a prestar atenção a todos os seus passos. Para isso entrou no
círculo social que lorde Ruthwen frequentava e não levou muito
tempo a descobrir que o seu companheiro tentava abusar da
inexperiência da filha da dona da casa. Na Itália, é raro encontrar-se
na sociedade raparigas ainda muito novas, assim, lorde Ruthwen era
obrigado a conduzir a sua sedução de certa maneira; mas como
Aubrey seguia todas as suas manobras depressa descobriu que tinha
sido combinada uma entrevista, o que queria dizer que a ruína total
da jovem imprudente era mais do que certa. Deste modo, sem perder
tempo, entrou no quarto do seu companheiro e perguntou-lhe de
chofre quais as suas intenções acerca da jovem, prevenindo-o ao
mesmo tempo que sabia de fonte limpa que ele se ia encontrar com
ela nessa noite. Lorde Ruthwen replicou que as suas intenções eram
as naturais nestes casos, e sendo convidado a declarar se tinha boas
ideias a sua única resposta foi um sorriso maligno. Aubrey retirou-se
e depois de escrever algumas linhas a informá-lo que a partir desse
momento não contasse mais com a sua companhia para o resto da
viagem que haviam combinado, ordenou ao seu criado que lhe
procurasse um novo alojamento. Posto isto, sem perder um minuto,
foi à casa da mãe da jovem para lhe comunicar não só a entrevista
que a filha ia conceder, mas também para lhe relatar tudo o que
sabia acerca dos costumes de lorde Ruthwen. Este aviso foi
suficiente para que a jovem fosse impedida de comparecer à
entrevista. Lorde Ruthwen, na manhã seguinte, escreveu a Aubrey
para notificá-lo do seu acordo quanto à separação, não lhe dando
porém a entender que suspeitava ser ele o causador do fracasso dos
seus planos.
Aubrey saiu de Roma e tomou o rumo da Grécia. Depois de
atravessar o golfo, desembarcou finalmente em Atenas. Aqui,
escolheu para morada a casa de um grego e logo que se alojou
entregou-se de corpo e alma à investigação dos monumentos,
buscando neles os vestígios de uma glória passada. Mas estes, como
que envergonhados de expor os grandes atos dos homens livres aos
olhos de um povo escravo, pareciam ter-se refugiado nas entranhas
da terra ou estarem ocultos aos olhos sob uma espuma densa.
Debaixo do mesmo teto, vivia uma rapariga de formas tão belas
e delicadas que seria ao olhar do artista o mais digno modelo para
representar uma das huris que Maomé prometia, no seu paraíso, ao
crédulo muçulmano. Mas não! Os seus olhos possuíam uma tal
vivacidade que de modo nenhum se podiam coadunar com as belezas
que o Profeta considerava sem alma. Quando Ianthe dançava na
campina ou galgava em rápido andamento as colinas, fazia esquecer
a ligeireza graciosa da gazela. Portanto, que outro, sendo discípulo
de Epicuro, não preferiria o olhar animado e celeste de uma ao olhar
voluptuoso mas terrestre da outra? Era pois esta encantadora ninfa
que acompanhava Aubrey nas suas investigações aos monumentos da
Antiguidade. E quantas vezes, ignorante dos seus próprios encantos,
entregue à perseguição da esplendorosa borboleta, ela não revelava
toda a beleza da sua figura encantadora, parecendo flutuar, de uma
forma ou de outra, no horizonte, perante o olhar fascinado do jovem
estrangeiro, que esquecia as letras gravadas no mármore, quase
sumidas pelo tempo, e com tanto custo decifradas, para contemplar
as suas perturbantes formas. Quantas vezes, à medida que Ianthe
volteava em seu redor, com os longos cabelos loiros entrançados
esvoaçando-lhe sobre as costas, não abandonava as suas
investigações científicas e não esquecia o texto de uma inscrição que
acabara de descobrir, embora há instantes, para interpretar uma
passagem de Pausanias, lhe tivesse parecido da mais alta
importância. Mas para quê continuar a descrever os encantos de
Ianthe? Inocência, juventude, beleza, tudo isto nela tinha a frescura
da natureza e estava longe do que se vê nos nossos salões mundanos.
Enquanto esboçava aquelas augustas ruínas, de que desejava
conservar a imagem para devaneio das suas horas futuras, Ianthe, de
pé, com a cabeça reclinada sobre um dos ombros, seguia com avidez
os progressos mágicos do seu lápis, que fazia renascer os sítios
pitorescos dos lugares onde ela viera ao mundo. Relatava-lhe então,
com todo o fogo de uma memória ainda recente, as suas danças com
as companheiras no verde prado das cercanias, ou as festas nupciais
a que assistira na sua infância. Outras vezes, referindo-se às coisas
que mais a tinham impressionado, narrava-lhe as histórias
sobrenaturais que sua ama lhe havia contado. E o seu ar sério e
sincero, quando falava, despertava em Aubrey uma terna compaixão
por ela. Como quando, por exemplo, lhe descrevia o vampiro vivo que
vivera durante anos entre amigos, desfrutando das mais ternas
amizades, e prolongando a sua existência, ano após ano, mercê de
um poder infernal, pelo sacrifício de qualquer jovem e inocente
beleza. Aubrey ao ouvir-lhe estes relatos sentia o sangue gelar-se-
lhe nas veias e tentava ridicularizar tão horríveis fábulas, mas Ianthe
invocava o nome dos velhos que haviam descoberto o vampiro, depois
de várias filhas suas terem sucumbido vítimas do horrível apetite do
monstro. E, sentida pela incredulidade dele, a rapariga suplicava-lhe
ardentemente que acreditasse no que lhe dizia, porque, todos o
sabiam, aqueles que ousavam duvidar da existência de vampiros,
mais tarde ou mais cedo, convencer-se-iam pela sua própria e
funesta experiência. Ianthe descrevia-lhe então o aspecto que era
costume dar a estes monstros, e a sensação de horror, que já
fustigara o espírito de Aubrey, redobrava-lhe de maneira inquietante,
pois o aspecto descrito vinha ao encontro do lorde Ruthwen. Apesar
disso, tentava persuadí-la a deixar-se desses terrores vãos embora
sentisse um calafrio percorrer-lhe o corpo ao reconhecer que fora
esse mesmo aspecto que o levara a achar em lorde Ruthwen o que
quer que fosse de sobrenatural.
Aubrey sentia-se cada vez mais preso a Ianthe; a sua inocência,
tão diferente das afetadas virtudes das raparigas em que pusera as
noções romanescas próprias da sua jovem idade, seduzia-o à medida
que os dias iam passando. E, apesar de preocupado pelo ridículo de
uma união conjugal entre um rapaz de boa situação social, segundo
os pontos de vista de Inglaterra, e uma jovem grega sem educação,
sentia crescer dentro de si um afeto cada vez maior pela mocidade
esfuziante que emanava dela a todos os momentos.
Muitas vezes, pensando que o melhor seria afastar-se,
estabelecia um plano de investigações a efetuar longe dali, só
reaparecendo em Atenas quando tivesse cumprido o seu objetivo. Ia
porém adiando este plano, já que lhe era impossível fixar-se nas
ruínas que andava a estudar, pois a imagem fresca de Ianthe não saía
do seu coração. Enquanto isto, ignorando o amor que lhe tinha
despertado, a jovem grega continuava a manifestar-lhe aquela
mesma franqueza infantil que lhe mostrara desde o primeiro dia.
Parecia, no entanto, que só estava junto dele porque nessa
altura não tinha companhia para percorrer os lugares favoritos por
onde costumava errar. Entretanto Aubrey ocupava-se a desenhar ou
a descobrir um fragmento que por acaso tivesse escapado à
destruição do tempo.
Quanto à história dos vampiros, Ianthe dera a Aubrey, como
testemunhas do que lhe havia contado, os seus próprios pais, e estes,
como depois outras pessoas, confirmaram a sua existência,
empalidecendo de horror só por ouvirem falar no assunto. Pouco
tempo depois, Aubrey decidiu-se a empreender uma pequena
excursão que devia ocupá-lo durante umas horas. Mas quando os
seus anfitriões lhe ouviram designar o caminho que escolhera,
suplicaram-lhe para regressar a Atenas antes do anoitecer, porque
teria, frisaram-lhe, de atravessar obrigatoriamente uma floresta
onde nenhum grego ousaria entrar depois do pôr-do-sol. A seguir
falaram-lhe da caverna dos vampiros, das suas orgias noturnas, e
preveniram-no das desgraças mais horríveis se ele ousasse
incomodar, com a sua passagem, esses monstros durante o seu cruel
festim.
Contudo, Aubrey, não ligou grande importância a estas
recomendações e tentou até fazer-lhes sentir todo o absurdo de tais
ideias; no entanto, quando os viu estremecer de horror pelo seu
audacioso desprezo por um poder infernal e irresistível de que só o
nome era suficiente para os perturbar, calou-se.
Na manhã seguinte, Aubrey preparou-se para partir. Enquanto
tratava das suas coisas reparou com pena e surpresa no ar
melancólico dos seus anfitriões e na expressão de terror que os seus
gracejos sobre a existência de vampiros lhes estampara no rosto.
Por sua vez, Ianthe, quando Aubrey montou, aproximou-se dele e
num tom grave pediu-lhe por tudo o que tinha de mais sagrado que
voltasse a Atenas antes que a noite desse o seu poder a esses
monstros. O jovem prometeu-lhe que o faria. Mas, apesar da sua
promessa, as investigações científicas absorveram-no de tal maneira
que não se deu conta que o dia estava prestes a acabar e que no
horizonte surgia uma daquelas manchas, que nestes climas quentes,
engrossam com tanta rapidez que não tardam a transformar-se numa
massa descomunal e a lançar sobre os campos desolados toda a sua
fúria.
Por fim, decidiu-se a montar a cavalo e a compensar, com a
velocidade, o tempo perdido. Mas era demasiado tarde. O crepúsculo
é, por assim dizer, desconhecido nestas terras meridionais, e a noite
começa com o pôr-do-sol. Antes de Aubrey ter penetrado a fundo na
floresta, a tempestade rebentou com fúria. A trovoada rugiu. A
chuva, caindo às catadupas, ininterruptamente, penetrou pela
espessa ramagem das árvores e encharcou Aubrey até aos ossos,
enquanto os relâmpagos, iluminando tudo, vinham rebentar em redor
dele. O seu cavalo, louco de medo, levava-o através da densa
floresta. Súbito, o animal já sem fôlego, parou, e Aubrey, à luz dos
clarões do raio, viu não muito longe uma caverna dissimulada sob
montões de folhas secas e de silvas. Aubrey desmontou e aproximou-
se, esperava encontrar alguém que o guiasse até à cidade ou, pelo
menos, abrigar-se da tempestade. A trovoada abrandou por alguns
instantes e Aubrey, nesse momento, distinguiu os gritos suplicantes
de uma mulher que eram seguidos por um riso escarninho e quase
contínuo. O jovem estremeceu e hesitou em entrar, mas um
relâmpago, que rebentou bruscamente perto dele, resolveu-o.
Enchendo-se de coragem franqueou a entrada e encontrou-se na
mais profunda escuridão. No entanto o ruído que ouvira há pouco
continuava a servir-lhe de guia, embora ninguém respondesse ao seu
chamamento. Súbito, chocou com um corpo e uma voz horrível
disselhe estas palavras: - Estás com medo..., depois deu uma
gargalhada pavorosa. No momento seguinte Aubrey sentiu-se
agarrado com um vigor que lhe pareceu sobrenatural. Decidido a
vender cara a vida lutou, mas em vão. Por um instante, perdeu o
contato com o solo e, levado por uma força irresistível, foi atirado ao
chão. Imediatamente, o seu inimigo pôs-se por cima dele e
imobilizou-o com os joelhos, e, quando se preparava para lhe deitar
as mãos ao pescoço, a luz de muitas tochas penetraram na caverna
por uma abertura destinada a iluminar-lhe o interior, impedindo que
o monstro perpetrasse a sua medonha orgia.
Então, alertado, levantou-se precipitadamente e saiu porta fora.
O ruído que fez ao abrir uma passagem pelo denso mato cessou ao
cabo de alguns instantes.
Entretanto, a tempestade amainou e, por esse motivo, os recém-
chegados puderam ouvir Aubrey, o qual, completamente esgotado,
gemia. Entraram na caverna. A luz das tochas refletia-se nos seus
rostos enegrecidos por flocos de fuligem. A pedido do jovem
deixaram-no para procurar a mulher cujos gritos o tinham atraído,
mas como avançavam ao longo das sinuosidades da caverna, Aubrey
viu-se mais uma vez em profundas trevas. Ainda não estava refeito
daquele horror quando, à luz das tochas que voltavam, reconheceu o
corpo inanimado da bela Ianthe, trazida nos braços dos seus
companheiros! Fechou os olhos, tentando convencer-se que tudo isto
era uma visão, fruto da sua imaginação excitada. Mas quando voltou
a abrí-los, viu o corpo da sua amada estendido no chão a seu lado.
Aquelas faces redondas e aqueles lábios delicados, que antes eram
semelhantes, pela sua frescura, à rosa, estavam agora de uma
palidez sepulcral.
E no entanto reinava ainda naquelas feições encantadoras uma
calma admirável e quase tão tocante como a vida que antes as
animavam. No pescoço e no peito tinha manchas de sangue, e na
garganta as marcas dos dentes cruéis que haviam aberto as suas
veias. Os homens que tinham trazido o corpo apontavam estas
marcas funestas e abalados pela terrível visão, gritavam: - Um
vampiro! Um vampiro! Depois, apressadamente, fizeram uma maca e
puseram Aubrey ao lado daquela que fora para ele o sonho mais
acarinhado, agora como uma flor sem vida.
Aubrey não conseguia encontrar o fio das suas ideias, buscava
até um refúgio contra o desespero esforçando-se por não pensar em
coisa nenhuma. Quase sem dar por isso, viu-se com um punhal na
mão que havia encontrado perdido na caverna. A arma tinha uma
forma extraordinária. A certa altura o triste cortejo encontrou
outros homens, que uma mãe aflita enviara à procura da filha
adorada. Mas os gritos lamentosos que soltava o grupo desolado, já
perto da cidade, foram para esta mãe e para o infortunado marido o
sinal de que tinha acontecido uma grande desgraça. Descrever a
angústia desta espera ansiosa seria impossível, e quando viram o
corpo da filha olharam Aubrey, apontaram-lhe as marcas horríveis do
atentado que causara a sua morte e choraram lágrimas amargas.
Aubrey, deitado na sua cama, febril, entre os acessos de delírio,
clamava por lorde Ruthwen e por Ianthe, ora suplicando ao seu
antigo companheiro de viagem que poupasse aquela que amava, ora
cumulando-o de imprecações e amaldiçoando-o como destruidor da
sua felicidade.
Nessa altura o lorde Ruthwen encontrava-se precisamente em
Atenas e tendo conhecimento da triste situação de Aubrey, por
qualquer motivo secreto, foi alojar-se na mesma casa para lhe
prestar assistência.
Quando Aubrey deixou de delirar, ao ver aquele cuja imagem
estava agora confundida no seu espírito com a ideia de um vampiro,
tremeu de horror; mas lorde Ruthwen, com seu tom persuasivo, as
suas meias palavras a cerca do desgosto que tivera com a separação
de ambos e, sobretudo, voltou a habituar o jovem à sua presença. Na
verdade, lorde Ruthwen parecia ter-se modificado. Já não era aquele
ser cuja apatia espantava Aubrey. No entanto, logo que começou a
melhorar, Aubrey notou com desgosto que o seu companheiro voltava
a pouco e pouco à sua fleuma habitual, não tardando a reconhecer
nele o homem de antigamente, isto é, dos tempos em que Aubrey
verificava com surpresa que lorde Ruthwen parecia fixá-lo com um
olhar penetrante enquanto nos seus lábios pairava um sorriso cruel.
E o jovem perdia-se em conjecturas acerca da intenção deste
horrível sorriso, tão bastamente repetido. Quando Aubrey entrou em
franca convalescença, lorde Ruthwen, afastando-se cada vez mais
dele, parecia apenas interessado em contemplar as ondas levantadas
pela brisa fresca, ou em seguir a marcha dos planetas, os quais, tal
como o nosso globo, se movem em torno de um astro imóvel. Mas a
sua ideia parecia ser, principalmente, a de subtrair-se aos olhos de
todos.
Aubrey ficara bastante afetado pelo choque a que fora sujeito, e
a elasticidade do seu espírito, nele tão brilhante outrora, parecia ter-
se desvanecido para sempre. De fato, estava agora tão entregue à
solidão e ao silêncio como o próprio lorde Ruthwen. Mas era em vão
que ansiava por esta solidão. Poderia ela existir para ele nas
cercanias de Atenas? Apesar disso procurava-a entre as ruínas que
antes visitara, mas a Imagem de Ianthe acompanhava-o como dantes.
Procurava-a nos bosques, em vão. Também aqui o vulto leve de
Ianthe, volteando no meio dos soutos, buscava a modesta violeta. E
quando, por uma súbita transição, a sua imaginação se tornava
sombria, via o roso pálido da amada com a garganta ensanguentada,
os lábios sem cor, que no entanto um sorriso sempre amável, apesar
do estigma da morte, vinha ainda ornamentar.
Decidiu então fugir dos lugares onde cada coisa, para a sua
razão enfraquecida, era uma fonte de dor. Para isso, propôs a lorde
Ruthwen, que supunha não dever abandonar depois dos cuidados que
ele lhe prodigalizara quando da sua doença, visitarem juntos os
lugares da Grécia que ambos ainda desconheciam.
Partiram e percorreram todos os locais que lhes despertavam
qualquer recordação histórica. Contudo, embora corressem sem
descanso, nem um nem outro parecia prestar uma verdadeira
atenção áquilo que via.
Tinham ouvido dizer muitas vezes que o país estava infestado de
ladrões. Contavam-se de resto muitas histórias acerca das suas
proezas. Mas eles, pouco a pouco, deixaram de lhes dar importância,
por considerá-las como pura invenção de pessoas interessadas em
provocar a generosidade daqueles que pretendiam defender de
pretensos perigos. Ora um dia, viajando com uma escolta tão
reduzida que mais lhes servia de guia do que de defesa, por não
terem feito caso do aviso dos aldeões, penetraram num apertado
desfiladeiro por onde corria, ao fundo, um rio que se ia precipitar,
confundido com massas de rochas, num abismo próximo, houve razão
para deplorarem a sua imprudente confiança. De fato, mal tinham
entrado nesta perigosa passagem uma saraivada de balas assobiou
aos seus ouvidos, enquanto à volta se repercutia o eco dos disparos
de várias armas de fogo. Lorde Ruthwen foi atingido num ombro e
caiu. Aubrey correu logo em seu socorro, e, sem pensar sequer em
se defender, nem no perigo que corria, viu-se cercado pelos
assaltantes. A escolta, essa, assim que lorde Ruthwen tombou, largou
as armas e pediu misericórdia. Com a promessa de uma choruda
recompensa, Aubrey convenceu os ladrões a transportar o seu amigo
ferido para uma cabana próxima. A seguir, depois de negociar com
eles um resgate os bandidos deixaram-no em paz, limitando-se a
vigiarem a cabana até ao regresso do companheiro que fora receber,
a uma cidade vizinha, o montante de uma letra que Aubrey lhes
passou sobre o seu banqueiro.
As forças de lorde Ruthwen enfraqueceram rapidamente; ao fim
de dois dias sobreveio-lhe a gangrena e o instante da sua dissolução
parecia avançar a largos passos. Apesar disso, a sua maneira de ser
e as feições mantinham-se inalteráveis. Dir-se-ia que era tão
indiferente à dor, como antes fora ao que se passava em seu redor.
Todavia, ao cabo da segunda noite, pareceu preocupado com
qualquer ideia penosa.
Começou a olhar fixamente Aubrey e este, apercebendo-se
disso, ofereceu-lhe sem reservas a sua assistência.
- Quer ajudar-me? - perguntou-lhe o lorde. - Pode realmente
fazê-lo! Digo-lhe até que pode fazer bastante por mim! Não, não falo
da minha vida. Encaro o termo da minha existência com tão pouco
receio como o dia que está a acabar! Pode no entanto salvar a minha
honra, a honra do seu amigo!
- Como? Oh! Diga-me, como? - perguntou-lhe Aubrey. - Farei
seja o que for para o ajudar.
- O que lhe peço é quase nada - retorquiu lorde Ruthwen. - A
vida esvai-se-me rapidamente e falta-me o tempo para lhe explicar
tudo o que desejava. Mas se estiver disposto a calar o que sabe de
mim, a minha honra ficará sem mancha. Ouça, desejo que a minha
morte fique ignorada durante algum tempo na Inglaterra...
- Não a divulgarei! - prometeu Aubrey.
- E tudo o que sabe de mim? - insistiu lorde Ruthwen.
- Nada direi - reafirmou Aubrey.
- Então jure-o! - exclamou o moribundo, soerguendo-se num
último esforço com uma ávida alegria. - Jure por tudo o que a sua
alma teme e ama. Jure que durante um ano e um dia, guardará um
segredo inviolável daquilo que sabe sobre os meus crimes e sobre a
minha morte, aconteça o que acontecer, mesmo que qualquer coisa
de extraordinário o impressione vivamente! E ao pronunciar estas
palavras, os seus olhos esbraseados pareciam saltar-lhe das órbitas.
- Juro-o - disse Aubrey.
Então lorde Ruthwen, caindo sobre o catre, depois de dar uma
grande gargalhada, exalou o último suspiro.
Aubrey foi descansar, mas não conseguiu adormecer. As
circunstâncias extraordinárias que tinham acompanhado toda a sua
convivência com lorde Ruthwen passavam involuntariamente na sua
memória excitada: e quando lhe vinha à ideia o juramento que fizera,
um calafrio percorria-lhe o corpo e o pressentimento de que
qualquer coisa de horrível o esperava e o invadia. Tendo-se
levantado de manhã cedo, no momento em que ia a entrar no quarto
onde deixara o corpo do seu amigo, encontrou um dos bandidos que
lhe comunicou que ele, com a ajuda de alguns companheiros, tinha
transportado o cadáver, logo que Aubrey se retirara e consoante a
promessa feita a lorde Ruthwen, para o cimo de uma colina próxima,
de modo a ficar exposto ao luar durante um certo tempo. Aubrey,
surpreendido, resolveu subir à colina e ir ao lugar onde estava o
corpo do amigo. Mas quando lá chegou não encontrou nem o corpo
nem as roupas que o cobriam, embora os bandidos lhe assegurassem
que estava precisamente no sítio onde tinham deposto os restos de
lorde Ruthwen. Primeiro, o seu espírito perdeu-se em conjecturas
acerca deste estranho acontecimento, mas depois, regressando à
cabana, persuadiu-se que os ladrões tinham muito simplesmente
enterrado o corpo para se apoderarem do seu vestuário.
Cansado de um país onde assistira a tão terríveis
acontecimentos, e onde tudo parecia conspirar para aumentar a
melancolia supersticiosa que abalara o seu espírito, resolveu deixar
a Grécia, indo para Smirna.
Aqui, enquanto esperava um navio que o transportasse a
Otranto ou a Nápoles, ocupou-se a verificar os diversos objetos que
tinham pertencido a lorde Ruthwen. Entre outras coisas, viu uma
caixa que continha armas ofensivas, todas estranhamente adaptadas
a causar uma pronta morte às suas vitimas. Depois viu vários
punhais. Ao examiná-los, enquanto admirava as suas curiosas formas,
qual foi o seu espanto ao ver o aspecto de uma bainha, cujos
ornamentos eram exatamente iguais aos do punhal encontrado na
fatal caverna! Estremeceu. Na intenção de adquirir uma nova prova
de apoio à suspeita que tanto o fazia sofrer, procurou imediatamente
o punhal e imagine-se o seu horror quando descobriu que a arma
cruel, por muito extraordinária que fosse a sua forma, entrava
perfeitamente na bainha que tinha na mão! A partir daí os seus olhos,
sem poderem afastar-se do instrumento de morte, não precisaram de
outros testemunhos para confirmar a sua horrorosa suspeita.
Desejava porém não ter a certeza. Mas a semelhança de uma forma
tão estranha, a variedade de cores que ornamentavam o cabo do
punhal, a bainha e, sobretudo, as manchas de sangue que tinham
ambos, destruíam qualquer possibilidade de dúvida. Deixou Smirna.
Quando passou por Roma, o seu primeiro cuidado foi pedir
informações do que acontecera à rapariga que lorde Ruthwen
tentara seduzir. Os pais, de grande fortuna, tinham caído na miséria
e ignoravam o que era feito da filha desde a partida do seu sedutor.
Tudo levava pois a crer que a jovem romana fora vítima do assassino
de Ianthe.
Tal sucessão de horrores acabou por desolar Aubrey. De fato,
tornou-se hipocondríaco e silencioso. O seu único cuidado era o de
acelerar a marcha dos postilhões, como se tivesse pressa de ir salvar
a vida a alguém que lhe fosse querido. Assim, chegou rapidamente a
Calais; depois, uma brisa fresca, que parecia vir de encontro aos
seus desejos, levou-o à Inglaterra. Logo que desembarcou foi para a
antiga mansão de seu pai, onde, passado algum tempo, devido aos
carinhos da irmã, pareceu esquecer as más recordações.
Se antes as carícias infantis da irmã o tocavam beneficamente,
agora que atingira os dezoito anos, as suas maneiras haviam
adquirido com a idade um significado ainda mais terno e cativante.
A irmã de Aubrey não possuía aquela graça brilhante que cativa
a admiração e os aplausos de um numeroso círculo. Na verdade,
nada no seu comportamento suscitava a animação que só existe na
atmosfera excitante de um salão tumultuoso. Nos seus grandes olhos
azuis nunca havia aquela alegria indolente que é indicativo de
leviandade de espírito; mas, em contrapartida, tinham de sobra a
languidez melancólica que não provém do infortúnio mas de uma
alma religiosamente dirigida para a vida futura, muito mais sólida
que a nossa existência efêmera. Ela não tinha aquela ligeireza no
andar que uma borboleta, uma flor, um nada basta para pôr em
movimento. O seu porte era calmo e pensativo. Na solidão os seus
traços não perdiam nunca o ar sério e reflexivo que lhe era natural;
mas quando estava junto do irmão, exprimindo-lhe a sua terna
afeição e esforçando-se por fazê-lo esquecer, com a sua presença, o
desgosto que ela sabia ter destruído a sua felicidade, quem quereria
trocar o seu sorriso afetuoso por qualquer outro que fosse marcado
pela volúpia? Os seus olhos, as suas feições, respiravam nestes
momentos uma celeste harmonia com as doces virtudes da sua alma.
Ainda não fora apresentada na sociedade, pois os seus tutores
tinham julgado mais conveniente adiar o acontecimento até ao
regresso do irmão, para que este lhe servisse de protetor. Foi então
decidido que o círculo mais em voga na corte seria o escolhido para a
sua introdução nos meios mundanos. Aubrey, no entanto, não
desejava de modo nenhum deixar a morada dos seus antepassados
para assim desfrutar a melancolia que o consumia. Com efeito, que
interesse poderiam ter para ele as frivolidade das reuniões da moda,
depois das mágoas profundas que os acontecimentos passados
tinham imprimido na sua alma? Mas, apesar disso, não hesitou em
sacrificar os seus próprios interesses à proteção que devia prestar à
irmã.
Foram portanto para Londres e prepararam-se para a reunião
que se devia efetuar no dia seguinte à sua chegada. A multidão era
numerosa. Já há muito tempo que não havia reuniões importantes e
todos aqueles que estavam ansiosos de conquistar o favor de um
sorriso real estavam lá. Aubrey, porém, mantinha-se afastado e
insensível ao que se passava à sua volta. Estava precisamente no
lugar em que tinha visto lorde Ruthwen pela primeira vez. A certa
altura, subitamente, sentiu-se agarrado pelo braço e ouviu uma voz
que já conhecia há muito: - Lembre-se do seu juramento! Temendo
ver um espectro reduzido a pó teve, no entanto, a coragem de se
voltar, apercebendo-se, logo que o fez que, junto dele, estava
precisamente o mesmo rosto que o atraíra quando da sua entrada na
sociedade. Olhou-o com um ar assustado e como as suas pernas mal
o sustinham de pé viu-se obrigado a tomar o braço de um amigo.
Depois, abrindo caminho através da multidão, correu para a sua
viatura. Já em casa, foi para o seu quarto precipitadamente e levou
as mãos à cabeça, como se temesse que as suas faculdades mentais o
abandonassem. Lorde Ruthwen não lhe saía defronte dos olhos.
Todas as circunstâncias se combinavam na sua cabeça com uma
ordem impressionante: o punhal, o juramento... Duvidando de si
próprio e da sua credulidade, tentava a todo o custo recuperar do
seu abatimento e persuadir-se que o que vira não podia existir: um
morto que saíra da sua tumba! Não, fora sem dúvida a sua
imaginação que tirara do sepulcro a imagem do homem que ocupava
incessantemente o seu espírito. Por fim concluiu que fora apenas
uma visão. Resolveu portanto voltar a frequentar a sociedade. Foi o
que fez, mas, embora tentasse vinte vezes perguntar por lorde
Ruthwen àqueles que o rodeavam, este nome fatal ficava sempre
suspenso nos seus lábios, não podendo assim obter qualquer
informação acerca do objeto que o interessava tão vivamente. Alguns
dias depois, foi com a irmã a um brilhante serão a casa de um dos
seus parentes. Deixando-a sob a proteção de uma dama de
respeitável idade, colocou-se a um canto isolado de um dos salões e
absorveu-se nos seus tristes pensamentos. Passado bastante tempo
notou que um grande número de pessoas já abandonara a reunião.
Saiu então do seu isolamento e ao entrar num compartimento
vizinho viu a irmã rodeada por gente com quem parecia travar uma
animada conversa. Esforçando-se por abrir caminho até ela pediu
licença a alguém que estava à sua frente para o deixar passar, e
quando esta pessoa se voltou ele viu o rosto que mais o atormentava
no mundo. Ao vê-lo, completamente fora de si, precipitou-se para a
irmã, arrastou-a pela mão e, correndo, levou-a para a rua. A porta foi
detido por instantes pela multidão de criados que esperava os
patrões; e enquanto passava entre eles a voz que tão bem conhecia
ressoou-lhe aos ouvidos, repetindo terríveis palavras: «Lembre-se do
seu juramento!» Aturdido, terrificado, não ousou sequer levantar os
olhos em redor de si. Tudo o que fez foi apressar a irmã, atirar-se
para dentro da carruagem e mandar seguir rapidamente para casa.
O desespero de Aubrey transformou-se quase em loucura. Se
antes o seu espírito já andava absorvido por uma única coisa, agora,
com a certeza que o monstro estava vivo, a sua tensão aumentou
ainda mais.
Como consequência tornou-se insensível às ternas atenções da
irmã, sendo em vão que ela lhe suplicava para explicar a causa da
modificação súbita que sofrera. Ele respondia-lhe sempre por meias
palavras, o que bastava para a encher de terror. Em suma, quanto
mais Aubrey refletia nesta horrível história mais mergulhava num
cruel labirinto. Só de lembrar-se do seu juramento o fazia tremer.
Que fazer? Permitir que o monstro levasse o seu sopro destruidor às
pessoas que lhe eram queridas, sem o deter com uma só palavra? A
sua própria irmã não poderia ser vítima dele? Mas mesmo que
ousasse quebrar o juramento e revelar a razão dos seus terrores,
que ganharia com isso? Pensou então em usar o seu braço para livrar
o mundo daquele celerado, porém a ideia de que ele já triunfara da
própria morte deteve-o. Durante muitos dias, ficou mergulhado neste
marasmo. Sempre fechado no seu quarto recusava-se a ver quem
quer que fosse, só condescendo a tomar algum alimento quando a
irmã, de lágrimas nos olhos, lhe suplicava que vivesse por amor à ela.
Por fim, incapaz de suportar por mais tempo a solidão, saiu de casa e
andou ao acaso pelas ruas para fugir à imagem que o perseguia
obstinadamente. Sem ter o mínimo cuidado com as roupas que vestia,
errando por aqui ou por ali, expunha-se ao calor do meio-dia ou à fria
umidade das noites. Tornou-se extravagante. A principio ainda ia
para casa dormir, depois, quando se sentia esgotado descansava
onde calhava. A irmã, inquieta com os perigos que ele podia correr,
mandou-o seguir, mas Aubrey trocava as voltas àqueles que estavam
encarregados de o proteger e escapava-se-lhes mais depressa do que
um pensamento nos foge. Então um dia modificou inteiramente a sua
conduta.
Preocupado pela ideia de que a sua ausência deixava os seus
melhores amigos nas mãos de um ser tão perigoso, decidiu aparecer
de novo no mundo para vigiar de perto lorde Ruthwen, na intenção
de prevenir, apesar do juramento que prestara, todas as pessoas de
que ele tentasse entrar na intimidade. Mas quando Aubrey entrava
num salão, o seu olhar assustado e vigilante era tão evidente, os seus
estremecimentos involuntários tão visíveis, que a irmã viu-se
obrigada a pedir-lhe que se abstivesse de frequentar, por
condescendência para com ela, um mundo que só por si parecia
afetá-lo com tanta intensidade. E quando os tutores se aperceberam
que os conselhos e as súplicas da irmã eram inúteis, resolveram
impor a sua autoridade; além disso, temendo que Aubrey estivesse à
beira da loucura, pensaram que era tempo de cumprirem o que fora
estatuído pelos pais.
Assim, pretendendo obviar uma repetição de sofrimentos e
trabalhos a que as suas excursões pela cidade o tinham exposto, e
dissimular aos olhos do mundo os sinais que denominavam a sua
loucura, encarregaram um médico hábil para o tratar e vigiar de dia
e de noite. Só passado algum tempo Aubrey se apercebeu destas
medidas de precaução, de tal maneira os seus pensamentos andavam
absorvidos por um único e terrível objeto. Deste modo, fechado no
seu quarto, passava dias inteiros no estado de apatia que nada fazia
despertar. Tornara-se lívido e emagrecera. Os seus olhos adquiriram
um brilho fixo. O único sinal que ainda o removia era a aproximação
da irmã. Então estremecia e, tomando-lhe as mãos, com um olhar
que fazia doer o coração, gritava-lhe: - Oh, não te deixes tocar por
ele! Por piedade, se tens alguma amizade por mim, não te aproximes
de semelhante homem! Mas quando ela lhe pedia para explicar o que
tais palavras queriam dizer, a resposta era sempre a mesma: - É
verdade! É verdade! Voltava então a cair naquela apatia de que não
podia libertar-se. Este penoso estado durou vários meses e só
quando o prazo do ano fatal estava prestes a chegar ao fim é que a
incoerência da sua conduta se tornou menos alarmante. De fato,
pareceu ter adquirido uma disposição menos sombria e os tutores
verificaram que ele contava pelos dedos um certo número várias
vezes ao dia, enquanto um sorriso lhe pairava nos lábios.
No último dia do prazo, um dos tutores entrou no quarto de
Aubrey e sabendo pelo médico do seu triste estado de saúde
lamentou que ele estivesse numa situação tão deplorável
precisamente na véspera do casamento da irmã. Estas palavras
despertaram o enfermo, que perguntou ansiosamente: - Com quem?
O tutor, encantado por este sinal de retorno à razão, de que temia
que o seu pupilo estivesse definitivamente arredado, respondeu-lhe: -
Com o conde Masden. Aubrey, pensando ser algum jovem nobre que
ele conhecera na sociedade mas que a perturbação do seu espírito
não lhe tivesse permitido localizar, pareceu muito satisfeito,
surpreendendo ainda mais o seu tutor quando lhe comunicou que
tinha a intenção de assistir às núpcias da irmã e que desejava vê-la
antes disso. Correspondendo ao seu desejo, alguns minutos depois, a
irmã entrou no quarto e notou imediatamente que ele se tornara
sensível ao seu sorriso.
De fato, Aubrey apertou-a contra o peito e poisou ternamente
os lábios nas suas faces úmidas de lágrimas de prazer que lhe
causava a ideia do irmão ter reencontrado toda a sua afeição por ela.
A seguir falou-lhe com calor e felicitou-a vivamente por se ir unir a
uma personalidade de nascimento tão distinto e perfeito, quando,
bruscamente, olhou para um medalhão que ela tinha ao peito.
Abrindo-o, qual foi a sua horrível surpresa ao ver o rosto do monstro
que há muito conseguira um tal ascendente sobre a sua vida. Num
acesso de raiva, arrancou-lhe o medalhão e atirou-o ao chão. A irmã,
admirada, perguntou-lhe a razão por que queria destruir a imagem
do homem que se ia tornar seu marido, mas ele olhou-a com um ar
distante, como se não tivesse percebido a pergunta. Súbito,
agarrando-lhe nas mãos e deitando-lhe um olhar desesperado e
frenético, suplicou-lhe que prometesse, sob juramento, que jamais
desposaria aquele monstro, porque ele era... Mas interrompeu-se,
como se a voz fatal lhe recomendasse mais uma vez para se lembrar
do juramento que lhe fizera. Sugestionado, voltou-se de repente.
Pensara que lorde Ruthwen estava presente, mas não viu ninguém.
Enquanto isto, o tutor e o médico, que tinham ouvido tudo,
imaginando que era um regresso à sua desordem de espírito, foram
para junto dele, afastaram-no da irmã e pediram a esta para deixar o
quarto. Logo que ela saiu, Aubrey caiu de joelhos diante deles e
conjurou-os a adiar o casamento nem que fosse por um dia, mas eles,
supondo que tudo isto era mais um sinal da sua loucura, tentaram
acalmá-lo e retiraram-se.
Lorde Ruthwen, logo no dia seguinte à reunião a que assistimos,
pretendeu visitar Aubrey, mas foi-lhe negada esta pretensão, como
de resto a toda a gente. E assim que soube, poucos dias depois, o
estado alarmante da saúde do seu ex-amigo percebeu imediatamente
que era por causa dele. Além disso, quando lhe disseram que Aubrey
parecia ter enlouquecido, foi a custo que dissimulou a triunfante
alegria que sentiu nesse momento perante aqueles que lhe deram a
informação. Tratou então de se aproximar da irmã e, recorrendo a
uma corte insistente e ao interesse que parecia demonstrar pela
deplorável situação do irmão, conseguiu cativar o seu coração.
Quem, com efeito, poderia resistir aos seus poderes de sedução? A
sua conversação insinuava tantos trabalhos, tantos perigos
desconhecidos. Não poderia ele, e com razão, falar de si mesmo
como sendo um ser completamente diferente do resto do gênero
humano, apenas com simpatia por si próprio? Não teria tantos
motivos plausíveis para pretender que lhe saboreassem as delícias da
sua voz fascinante, para perder a insensibilidade pela existência que
havia denotado até aí? Em suma, lorde Ruthwen sabia tirar proveito
da perigosa arte da sedução e levar ao ponto que queria a pessoa
que desejava conquistar. Neste ínterim a extinção por morte de um
ramo da sua família transmitiu-lhe o titulo de conde de Masden e logo
que a sua união com a irmã de Aubrey foi combinada, pretextando
negócios importantes que o chamavam ao continente para apressar a
cerimônia, não obstante o estado deplorável do futuro cunhado,
decidiu que a partida se efetuasse no próprio dia do casamento.
Aubrey, entretanto, abandonado pelos tutores e pelo médico, tentou
corromper, por meio de presentes, os criados, mas em vão.
Não conseguindo que o deixassem sair pediu uma pena e papel e
escreveu à irmã, conjurando-a, em nome da sua própria felicidade, da
sua honra e em memória dos pais já falecidos, a adiar por algumas
horas urna união de que resultariam grandes desgraças. Os criados
prometeram-lhe levar a carta, mas, em vez disso, entregaram-na ao
médico, o qual, considerando a missiva como um puro ato de
demência não a remeteu à destinatária.
A noite passou-se em preparativos para a cerimônia do dia
seguinte. Aubrey ouvia tudo com um horror mais fácil de imaginar do
que descrever. A fatal manhã aproximava-se rapidamente. O ruído da
chegada das carruagens começou a chegar aos ouvidos de Aubrey,
que quase delirava. A certa altura, a curiosidade dos criados
encarregados de o vigiar fê-los esquecer o seu dever e, um após
outro, deixaram-no imprudentemente à guarda de uma mulher de
idade e já sem forças. Aubrey aproveitou logo a ocasião e correu
para fora do quarto, chegando num instante ao salão onde estava
quase toda a gente já reunida.
Lorde Ruthwen foi o primeiro a vê-lo. Chegou-se imediatamente
a Aubrey e agarrando-o pelo braço arrastou-o para fora dali. Quando
subiam as escadas, lorde Ruthwen segredou-lhe as seguintes
palavras: Lembre-se do seu juramento, e fique sabendo que a sua
irmã, se hoje não se tornar minha esposa ficará desonrada para
sempre; a virtude das mulheres é frágil... Após estas palavras atirou-
o violentamente para os braços dos criados encarregados de o vigiar,
os quais, desde que se tinham apercebido da sua fuga, haviam
corrido em sua perseguição.
Aubrey já não estava em estado de sustentar o peso do próprio
corpo. Assim, devido ao esforço extraordinário que fez para gritar o
seu desespero rompeu-se-lhe uma veia da garganta e banhado no seu
próprio sangue foi transportado para a cama.
A irmã, que infelizmente não estava no salão quando Aubrey ali
entrara, ignorou tudo o que se passou. A cerimônia foi portanto
celebrada e os esposos deixaram Londres logo de seguida.
O estado de fraqueza de Aubrey aumentou a passos largos e a
grande quantidade de sangue que perdeu apressou ainda mais a sua
já precária saúde. Sentindo-se no fim, mandou chamar os seus
tutores e com o desespero que quase o sufocara mais apaziguado, a
partir da meia-noite, contou com calma o que o leitor acabou de ler,
expirando assim que concluiu o seu relato.
Os tutores voaram em socorro da irmã de Aubrey, mas era
demasiado tarde. Lorde Ruthwen tinha desaparecido, e o sangue da
sua infeliz companheira suavizara a sede de um vampiro.
A CERIMÔNIA DO ESPELHO
Pedro Almodóvar

A negra carruagem em que viaja o conde atravessa a noite,


escurecendo-a ao passar. De moto próprio, sem prévia indicação de
seu amo, os cavalos se detêm diante da fachada do convento.
Negro sobre negro. O brilho de seus olhos e o dos olhos dos
cavalos ajuda-o a encontrar a porta do convento. A escuridão nunca
foi um problema para o conde M.
Antes de chamar, despede-se da carruagem e dos cavalos. Na
carruagem, ele dá um abraço, e nos cavalos, um beijo em seus lábios
grossos. Os animais soltam um relincho que atravessa os muros do
convento como um raio.
O conde M. vira as costas para a emoção, não quer ver como
desaparecem aqueles que até agora foram seus companheiros
inseparáveis.
Bate com a mão na porta do convento. E espera por alguns
minutos. Abre frei Anselmo, o padre porteiro. É natural que o frade o
olhe estranhado e sonolento.
- O que deseja, senhor?
- Desculpe o incômodo, padre, mas venho de muito longe. Não
podia prever a hora em que chegaria.
Ao frade não passam despercebidas a nobreza de maneiras nem
a aparência do visitante. Repete a pergunta.
- Que posso fazer por vós, senhor?
- Gostaria de falar com o prior.
"Não se deve fazer esperar uma alma desejosa de conselho,
pois normalmente sua fortaleza é escassa e necessita de ajuda", frei
Anselmo recorda as palavras do prior sobre aqueles que chamam à
porta a qualquer hora.
- Tentarei avisar o padre Benito, mas nada posso assegurar.
O conde entra no austero átrio e espera.
Frei Anselmo não demora a voltar. O prior concorda em vê-lo.
O frade o conduz até uma peça tão austera quanto o átrio.
O conde ouviu coisas extraordinárias a respeito do padre
Benito. Todos exaltam a crueldade que tem para consigo mesmo e o
desprezo pelas próprias necessidades biológicas. Santidade: era a
única explicação que encontravam para um caráter tão
autodestrutivo.
Se a religião costuma roubar à vida seus aspectos mais gratos,
o padre Benito reduzira a dele a um perene exercício cujo limite era
a estrita sobrevivência do corpo. Sua vida diária era um desafio às
contingências de sua natureza humana.

II
No silêncio das pedras, o conde M. e o padre Benito medem um
ao outro do alto de si mesmos.
O rosto enxuto do prior expressa uma vontade de ferro,
confiança em si mesmo e desconfiança dos demais.
Seus olhos são belos, apesar de sua pretensa dureza; possuem
esse véu misterioso e opaco das imagens sagradas. Como essas jóias
que mudam de cor conforme a luz, eles podem expressar
vulnerabilidade ou o contrário. Só uma coisa é clara: são olhos
insatisfeitos, olhos que fitam angustiados o abismo que separa o
sonho do real.
A fama do padre chegara aos ouvidos do conde; o padre, ao
contrário, desconhece a identidade de seu magnífico visitante. A
primeira impressão é boa. Surpreende-o seu misto de luxo e palidez.
A figura do conde irradia algo inegavelmente místico.
- Sou o conde M. e venho de muito longe para retirar-me em seu
convento.
- Conheceis as normas que regem a vida entre estes muros?
- Silêncio, solidão, fome e recolhimento. Quero retirar-me do
mundo e viver só na piedade e contemplação de Deus.
- Permiti-me que insista. Sabeis o que significa renunciar aos
prazeres e às comodidades a vós tão fáceis?
Não estaríeis momentaneamente enfastiado ou desiludido?
Conheço alguns casos.
- Não é o meu. O mundo e seus prazeres não me excitam, há
vários anos vivo em sóbria solidão, rodeado de animais. Viajo
constantemente, o que significa que não tenho apego a nada nem a
ninguém.
O prior sente-se atraído pelo desconhecido. Não diz nada, mas
adivinhou-o antes que ele chegasse, sentiu como se um raio o
avisasse de sua chegada. M. lê seu pensamento. Não foi um raio, e
sim o relincho de seus cavalos, mas não diz nada porque também
sabe que o padre gosta de acreditar que possui poderes
extraordinários e sente prazer em exibi-los.
Os dois homens dialogam em silêncio. O padre não consegue
intuir o que pensa o conde. Sem poder impressioná-lo, anuncia-lhe
uma evidência:
- É tarde. Direi a frei Anselmo que o acompanhe até sua cela.
Os primeiros meses serão de experiência. Se vossa intenção for
sincera, estais em vossa casa. Pouparei-vos das ocupações físicas
para que vos dediqueis tão-somente a vosso espírito. Amanhã sairei
de viagem. Quando voltar, dir-me-eis se vossos desejos são os
mesmos.

III
O padre Benito ausenta-se periodicamente do convento. Ele
jamais o admitiria, mas gosta de viajar, interromper a monotonia de
sua própria invenção. Nessas viagens desfruta de um status de santo
em vida, guia das mais importantes almas do país e prestigioso
conselheiro de pessoas eminentes. Sedutor cruel de homens e
mulheres em desvario.
Estranhamente, a viagem que se segue à visita do conde é uma
viagem infrutífera, tanto para ele como para seus fiéis. O frade está
distraído, não consegue tirar o conde da cabeça. E esse pensamento
o inquieta.
Como autopunição, prolonga a viagem além do previsto e assim
mantém sob controle o desejo ardente de voltar ao convento. E na
ansiedade encontra certo conforto.
Tal como o prior lhe prometera, o conde foi eximido de todas as
tarefas domésticas. Quando o sino chama, reúne-se com seus
companheiros no refeitório e na igreja, mas depois não torna a vê-los
durante todo o dia.
E ninguém ousa perturbá-lo. O padre Benito recomendou-lhes
que o esquecessem. Queria que o conde degustasse o pastoso sabor
da incomunicação.

IV
M. começa a faltar ao refeitório. Chega um momento em que
deixa de comparecer. Quase não ingere alimentos. O voto de
discrição e a recomendação do prior impedem os colegas de mostrar
preocupação por sua saúde. Frei Anselmo teme que essa discrição
seja fatal para o conde.

V
Passadas algumas semanas, o prior volta ao convento. Nunca
sentiu tanto desejo de voltar. Não vê a hora de perguntar sobre seu
hóspede.
Admiração, estupor e inveja resumem a impressão geral. A vida
do conde, contam-lhe, transcorre entre a igreja e a cela. Raras vezes
passeia pelo jardim e nunca se deteve a admirar o sol, nas poucas
ocasiões em que o astro rei se dignou a aparecer. Há semanas que
não põe os pés no refeitório e ninguém o surpreendeu na horta,
provendo-se de batatas, cebolas ou alface. Os dois monges das celas
vizinhas à do conde afirmam tê-lo ouvido levantar-se à noite para ir à
igreja. Muitas madrugadas o encontraram em êxtase diante do altar.
Não parecia humano, sua figura hierática era sólida como um
monumento.
A comunidade reconhece que a conduta do novo hóspede não
admite o menor reparo. Entretanto o ambiente é de agitação e
nervosismo.
- Como eu supunha - diz o prior.- Por isso tardei tanto em voltar.
O padre Benito gosta de surpreender os frades com frases
absurdas, que nem ele mesmo entende.

VI
Depois de tentar dominar seus pensamentos, o prior vai até a
cela do conde, perturbado com a falta de curiosidade de seu
hóspede. Encontra a porta trancada, mas ele tem a chave que abre
todas as portas. E a utiliza, depois de tentar abri-la sem sucesso.
A cela está vazia, e a janela, hermeticamente fechada. Quase
não há luz, apenas a que penetra por duas pequenas frestas na
madeira da janela.
A cama está intacta. Não há marcas de nenhum corpo. O prior
dá meia-volta, mas antes de sair é retido pela voz do conde.
- Como foi a viagem?
O padre vira-se, fulminado. Debaixo da cama aparece o
convidado, arrastando-se com agilidade.
- O que está fazendo embaixo da cama?
- Descansando. Prefiro o chão.
O frescor do chão também esfriou seu rosto; impossível
adivinhar a menor emoção. O prior é famoso por seu poder mental,
mas diante do conde sente-se transparente e nu. Não suporta a
sensação. E sai.

VII
O conde sabe que, desde que chegou, o prior segue todos os
seus passos. Para não levantar suspeitas, abre mão
momentaneamente das doses noturnas de capela. E acrescenta um
pequeno requinte de simulação; toda as manhãs, antes de clarear, vai
até a horta e se abastece de alimentos - dos quais mais tarde se
desfaz.
Na sexta noite sente uma necessidade compulsiva de se ajoelhar
diante de Deus, na solidão noturna. Antes de ir à capela, certifica-se
de que todos estejam dormindo ou recolhidos em suas celas. Sem
fazer ruído algum, como se não tocasse o chão e sim o sobrevoasse,
o conde percorre os corredores, ouvindo apenas roncos atrás das
portas.
Quando chega à cela do padre Benito não escuta roncos, mas
chicotadas e gemidos. Permanece imóvel diante da porta e descobre
que não há chave na fechadura. O buraco o convida a olhar, talvez
deliberadamente. O conde aceita o convite, ajoelha-se e olha. Vê o
prior flagelando duramente as costas nuas até manchar o chão de
sangue. O espetáculo parece-lhe edificante e sugere novas vias de
comunicação entre os dois homens. O conde pensa por um instante e
decide, tal como planejara, dar rédea larga à sua piedade em seu
recinto natural, a capela.

VIII
Irrompe na capela e prostra-se diante de um imenso crucifixo
que preside um dos altares. Permanece um bom tempo nessa
postura, imóvel como um muro, abismado em profunda oração.
Depois ergue a cabeça, seus olhos cintilam como o rescaldo de uma
fogueira apagada.
Ele não está só na capela. O padre Benito o seguiu e observa a
cena, absorto, na escuridão.
O conde aproxima-se do crucifixo de tamanho sobrenatural. O
Cristo começa a verter sangue por todas as chagas. Primeiro os pés,
depois o peito e as mãos, a comissura dos lábios, as têmporas. O
conde busca todas as fontes com boca frenética. Nem uma só gota de
sangue se desperdiça no chão. O padre Benito contempla o milagre
embevecido. Diante de seus olhos revela-se o mistério da Sagrada
Comunhão em toda sua magnitude.
Depois de lamber cada centímetro da imagem de madeira, a
figura do conde se reduz à de um pássaro negro (uma andorinha,
pensa o prior). Se estivesse mais perto, teria percebido que se trata
de um morcego.
O pássaro pousa sobre a cabeça de Cristo e com grande
aplicação lambisca o sangue que ainda impregna a coroa de
espinhos. Em seguida volta à silhueta humana e prostra-se ante a
imagem da cruz, petrificado de devoção.
A mesma intensa devoção apodera-se do padre Benito, mas não
é Cristo quem a provoca, e sim a pessoa do conde, cujos lábios ainda
conservam restos do sangue divino. O conde leva a mão à boca como
se algo a queimasse. Acaba de perceber a presença do monge e seu
febril desejo de lamber-lhe os lábios ensanguentados. É a descoberta
do desejo do padre que lhe queima a boca.
O padre Benito sabe-se descoberto. O desprezo que encontra
nos olhos do conde dói-lhe muito mais que as chicotadas.

IX
Abandona a capela e passa o resto da noite tremendo de
confusão. Imerso em um estado de grande agitação, o padre Benito
passa o dia inteiro trancado em sua cela. Não abre para ninguém.
Em um arranco obsessivo e infantil, promete a si mesmo que só
abrirá a porta se for o conde quem chamar.
No dia seguinte, frei Anselmo insiste tanto que o prior não tem
outro remédio senão abrir. O discípulo traz comida e remédios
caseiros contra resfriado. O convento inteiro ouviu-o tossir durante a
noite. O padre recusa tudo e pergunta-lhe há quanto tempo ninguém
vê o conde comer.
- Mais de um mês, se não me engano.
- Se ele pode, eu também hei de poder.
O padre Anselmo protesta suavemente. O prior o recrimina: -
Deverias ser mais discreto e indiferente.
- Estou preocupado com sua saúde, senhor.
- Se o que queres é preocupar-te, deverias ter criado uma
família, não recolher-te em um convento.

X
Duas semanas depois, frei Anselmo chama à porta do conde. O
prior está doente e deseja vê-lo. O conde não deu por falta dele, pois
pensou que estivesse em uma de suas viagens e, a bem da verdade,
porque nem chegou a pensar nele.
A cela do prior é uma tosca réplica daquela do conde. O padre
não apenas dorme no chão, embaixo da cama; o criado-mudo, o
exíguo armário e um crucifixo ocupam o mesmo lugar que na cela do
outro.
Uma vez a sós, o diálogo é fulminante.
- O que está havendo, padre Benito?
- As forças me abandonam.
- Experimente comer.
- Comerei o que o senhor comer.
- E desde quando sou eu o modelo?
- "A alma em solidão, sem um mestre virtuoso, é como um
carvão aceso que se encontra só. Antes se irá apagando que
acendendo." Ensinai-me a comungar!
-O jejum vos faz delirar.
- E a vós, mentir. Desde que me mostrastes a autêntica
comunhão, a outra não me serve.
- Insisto em que vossa cabeça não funciona.
- E eu insisto em que, se não revelardes vosso segredo, não
podereis ficar nem mais um minuto neste convento.
- De acordo.
- Não me deixeis, senhor conde!
- Mas, afinal, como ficamos?
- Imploro-vos!
- Está bem. Sossegai e ouvi bem a história que vos contarei.

XI
Minha história. Sou um vampiro. A literatura e o tédio têm
criado muitas lendas sobre os indivíduos de minha espécie. Isso não é
uma justificativa, muito menos uma reivindicação. Não tenho
interesse em vampirizar ninguém. Sou como vós, os místicos, gosto
de andar só e do meu jeito.
Mas nem sempre foi assim. Eu também atravessei longos
períodos de confusão.
Nós vampiros somos seres peculiares, sem dúvida. Gozamos de
menos vantagens do que se costuma acreditar e menos
inconvenientes do que nós mesmos acreditamos. Malditos
preconceitos e temores! Mas é verdade que temos uma grande
limitação: a ausência de reflexo nos Espelhos.
Não há solidão maior que a de não se sentir acompanhado pela
própria imagem. O testemunho dos outros não basta, nem mesmo o
dos seres queridos. Não podendo contemplar meu próprio rosto,
cheguei a pensar que carecia de um. Tinha certeza de que, se Deus
existia, pertencia à família dos Espelhos e, por alguma razão que me
escapava, gostava de negar nossa existência.
O intenso proselitismo de meus congêneres é mais por sede de
vingança que por sede de sangue, deve-se mais à raiva do que à
necessidade de saciar nosso apetite. Cada nova vítima que se curva
sob nossos dentes pressupõe uma vitória contra o Deus-Espelho,
mais uma imagem que lhe furtamos para sempre.
Como em um prolongamento do nosso ódio ao Espelho, também
odiávamos o sinal da cruz. Um preconceito irracional que os
vampiros ainda não superaram. Identificamos a cruz com Deus,
quando não tem nada que ver. Eu nunca vi Deus; ao passo que a cruz
pode ser vista em qualquer altar.
Como já disse, em minha existência de vampiro passei por
grandes crises. Como todo mundo, reneguei a minha natureza e,
como todo mundo, atentei contra ela. Não suportava o constante
torpor em que vivia e já não encontrava divertimento nas orgias.
Mas o sangue continuava sendo vital para mim. Pode soar ridículo,
mas durante algum tempo fui um vampiro ni lista. Saía de casa
quando não tinha outro remédio. Substituí as gargantas humanas por
outras fontes de sangue animal, ainda que mais impuras: galinhas,
coelhos, cães.
Até meus próprios cavalos.
Foi um de meus cavalos que de repente me mostrou o caminho.
Na época eu passava as noites lendo em meu ataúde, à luz de meus
olhos. Estava interessado no budismo e no misticismo cristão, lia
tudo o que me chegava às mãos sobre esses dois temas e estava
convencido de que, se quisesse pôr um fim àquela depressão, teria de
me arriscar.
Comecei visitando pequenas igrejas de interesse artístico. Meu
olhar é profundo. Sem atrever-me a entrar, podia vasculhar o
interior das igrejas à distância. Tentava vencer a indecisão, como
uma criança prestes a saltar de um trampolim pela primeira vez.
Ocorreu em uma dessas excursões. Eu descansava na relva sob
o luar, perto da igreja do Salvador do Mundo, nos arredores de um
povoado de La Mancha. Surpreendeu-me que estivesse aberta e não
dei crédito a meus olhos quando vi que meu cavalo circulava
mansamente por seu interior, considerando que o animal também é
vampiro. Eu mesmo o mordi.
Chegara a hora de tomar impulso e saltar.
E assim fiz. Entrei.
A igreja estava vazia. O altar-mor era dominado pela imagem do
Salvador do Mundo. Uma cruz tão imensa quanto minha curiosidade
dominava o espaço a ela consagrado. Aproximei-me do altar, sem
tirar os olhos de Cristo. Ajoelhei-me diante dele. Não fui tragado
pela terra, nem os céus se estilhaçaram mostrando-me seu conteúdo,
nem um raio fulminante converteu-me em breve fogueira. A noite
seguia seu curso, tranquila.
Era a primeira vez que eu via essa imagem, e sua mera visão
proporcionava-me uma paz nova e total.
De repente ocorreu algo extraordinário. Por cada uma de suas
chagas, dos pés, dos joelhos, do peito, da boca, da palma das mãos,
das têmporas etc., o Cristo começou a verter sangue. Por menor que
fosse a ferida pintada na imagem de madeira, convertia-se em súbita
e incontida fonte de vida. Eu contemplava o milagre atônito e
paralisado. Foi então que ouvi sua voz me dizer: "Eu sou a única
fonte de vida. Quem bebe de meu sangue não mais necessitará de
outro alimento".
Ele não necessitou de mais palavras. Nem eu. Aproximei-me do
crucifixo e bebi o líquido que durante um bom tempo escorreu de
cada uma de suas feridas. Enxuguei com meus lábios a poça de
sangue que se formara no chão. E voei como um avião no dia em que
foi inventado.
Voltei ao castelo, ansioso por transmitir a meus companheiros a
maravilha que acabara de descobrir. Mas nenhum deles acreditou
em mim. Ao contrário, assim que terminei meu relato, olharam-me
aterrorizados. De nada adiantou minha disposição de fazer uma
demonstração in situ. Negavam-se a mudar. A rotina proporcionava-
lhes segurança, e pensavam que minha abstinência me levara à
loucura.
Abandonei o castelo, com tudo o que havia dentro. Viajei por
diferentes partes da Espanha. Conheci uma de vossas discípulas, que
me mostrou cartas vossas, com cujo conteúdo identifiquei-me "ipso
facto". Vim aqui com o propósito que já conheceis. Se até agora não
revelei nada, não foi por mesquinhez. A rejeição dos vampiros
mostrou-me que as soluções individuais não salvam os outros. E o
vampirismo é um caminho sem volta, que não aconselho a ninguém.
O padre Benito pronuncia duas palavras apenas:
- Fazei-me vampiro.
Ante a firmeza sem fissuras do prior, o conde M. exagera os
inconvenientes de sua espécie. Insiste na dor da visão incompleta de
si mesmo e na opacidade dos espelhos. O prior considera-o um preço
ínfimo, se comparado àquilo que receberá em troca.
Conhecendo a temeridade do padre, o conde não tem outra
alternativa senão providenciar o necessário para a nova ordenação.
O padre Benito sente-se fascinado e ansioso como uma noiva. E
o conde já não acha a ideia de vampirizálo assim tão má. Começa a
agradar-lhe deixar de ser o único.
Abordam a questão da eternidade e da morte. M. confia-lhe
que, caso deseje abandonar o mundo, bastará fincar uma estaca no
próprio coração.
O prior não quer nem ouvir falar no assunto.
- Não invejo a felicidade dos santos na outra vida.
- Tem razão. O vampirismo já é outra vida.
Concorde com a sua magnitude, a cerimônia será simples e
íntima. Na noite anterior, alguém pensou ver um grande espelho
voador nas imediações do povoado vizinho ao convento. Uma
senhora denuncia seu desaparecimento. Contudo, por mais que a
interroguem, ela não sabe dizer como isso aconteceu. Só o prior e o
conde conhecem a verdade. Transformado em morcego, o conde
subtraiu o espelho do dormitório da casa e o levou voando até
convento.
Instalam o enorme espelho junto ao altar do Cristo sobrenatural
e eternamente agonizante. Não falta mais nada. Tudo está pronto.
M. oficia a ordenação com delicadeza.
- Olhe bem para seu rosto, com muito vagar. O nariz, os olhos,
os lábios, as faces, as sobrancelhas, o queixo, o cabelo, as orelhas.
Abra a boca e olhe dentro. Não se esqueça da língua... mostre-a e
olhe bem para ela, pois nunca mais a verá... Tire a roupa, sem
pressa, peça por peça. E contemple bem cada um de seus membros
no espelho. Deleite-se.
O prior obedece ao compasso das palavras do conde, até ficar
totalmente nu.
Por pudor, não recorda ter visto seu corpo nu desde criança.
Sente uma inesperada nostalgia. Acaricia as próprias pernas, o peito,
os ombros, os braços, o sexo...
- Gosto de meu corpo.
- Ainda está em tempo de voltar atrás.
- Há muito tempo não estou em tempo.
O prior ainda se deleita por alguns instantes. Adota diferentes
posturas para contemplar seu corpo de diferentes ângulos.
- Estou pronto - anuncia ao conde.
M. aproxima-se dele e o abraça. No espelho, o padre continua
vendo a própria imagem solitária. Seus músculos estão tensos e seus
braços rodeiam o tronco do vampiro, embora o espelho não o reflita.
O padre entrega-se ao conde sem perder de vista o próprio rosto.
Inclina-o para trás, em um gesto de arroubo.
Nesse instante os dentes do conde perfuram-lhe o pescoço. O
corpo do padre desaparece do espelho e desaba no chão.
O vampiro precipita-se sobre ele e drena suas artérias com
feroz frenesi.
Exaustos, permanecem um sobre o outro, como se acabassem
de fornicar selvagemente.
Quando o padre volta a si, fita o crucifixo do altar.
O conde ajuda-o a se levantar. Das feridas do Cristo começa a
brotar sangue em abundância. O par atira-se contra a imagem de
madeira e suga com avidez o alimento que se derrama de graça.
Findo o banquete, transformam-se em morcegos, que, voando,
abandonam a capela e se perdem na escuridão sem mistério da noite.
O voo noturno e nupcial, bem como o ritual diante do espelho,
acabam transformando-se na nova forma de ingresso na congregação
místico-vampírica que nasce da união do padre Benito com o conde
M.
Procuram esquecer o mundo, e que o mundo os esqueça. As
sucessivas gerações de camponeses que habitam o povoado vizinho
estranham a insólita sobrevivência daqueles monges. Mas a
superstição e o medo são muralhas inexpugnáveis, muito mais sólidas
do que a curiosidade daquela gente.
PORQUE EU COMI MINHA MULHER
Michael Gira

Eventualmente tudo se funde — tudo é orgânico. É impossível


distinguir uma coisa da outra. Quando sua mente está esvaziada do
egoísmo, ela se esmigalha e se dissolve na água. Se eu cortar meu
corpo e concentrar corretamente, eu não sentirei nada. Cada vez
que meu coração bate, ele estremece violentamente e açoita sem
eixo, empurrando na base de meu cérebro. Memórias movem-se pela
coagulada e putrefata floresta dentro de minha cabeça e esmagam o
presente com seus pés. Minhas memórias não me pertencem. Elas
são tão desconhecíveis como a lacraia remexendo suas pernas no
canto escuro debaixo da pia. Quando uma imagem se move pelo meu
sistema nervoso, é com a ganância predatória de um intruso. Meu
corpo está deitado aberto, transparente, indefeso. Cada segundo de
tempo corresponde a um inseto alimentando-se de meu sangue.
Quando minha mulher e eu juntávamos nossos corpos, eu caí em
seu corpo e vesti sua pele como uma coberta de borracha. Ela me
protegeu do que está lá fora. Agora que ela está morta, eu estou
certo de que logo serei comido. Eu sou um corpo sem pele, meus
músculos estão secando ao sol. Eu me sinto encolhendo.
Eu a usei como um processo, um sistema no qual nós podíamos
nos misturar com a matéria além de nossos pensamentos egoístas.
Quando sua mão acariciava minha perna, quando sua boca molhava
minha pele, o estímulo que eu experimentava era a primeira onda de
um fluxo que iria derradeiramente apagar a nós dois. Eu a amo mais
do que necessito de minha própria identidade. Apesar de seu corpo
repousar aqui sobre a mesa em minha frente, eu não preciso abrir
meus olhos para vê-la em detalhes, para sentí-la fisicamente saturar
meus sentidos. O amor permite a micróbios e vírus passarem pelo
meu corpo sem resistência. Ao amá-la, eu perco a vontade de viver.
Se eu comer seu corpo agora, eu a tomarei de volta para mim. Mas a
cada pedaço que engolir, eu estarei removendo uma equivalente
quantidade de mim mesmo.
Sua fragrância depreende tremeluzindo numa nuvem acima
dela, e dá ao ar o sabor do mel. Seus seios começam a escorregar o
monte de suas costelas, apodrecendo, não mais firmes em arrogância
ou inflados com a promessa de fertilidade. Os bicos, que eu havia
tomado eu minha boca, chupado e mordido, estão de pé como em
desafio contra o volume em retirada de seu peito abaixo e ao lado. A
gravidade está empurrando-a para dentro de si mesma como areia
movediça. Sua barriga está movendo-se, emitindo obscuras
encantações demoníacas de dentro de suas profundezas ao formar
gazes ao decompor-se.
Olhando logo abaixo para sua boca aberta, eu posso ainda
lembrar-me do gosto, do sabor levemente acaramelado de sua saliva,
e sentir a resistência borrachosa de sua língua deslizando na minha
boca, circunscrevendo meus dentes, embrulhando-se em minha
língua. Mas agora, uma caverna aberta em seu rosto mostra o couro
grosso e morto de sua língua, como o cadáver de um mamífero na
praia, que arrastou-se para o interior de sua boca para esconder-se
do sol e dos enxames de moscas. Seus lábios, que já foram um fruto
raro cujo suco eu chupava, estão agora enrugados e rachados como
um damasco seco.
Seus olhos me fitam, cauterizando meu rosto com ácido
corrosivo. Minhas lágrimas escorrem devagar para o canto de meus
olhos, espessas como querosene.
Sete dias atrás, ela se parou secretamente na entrada de nosso
quarto a me observar, enrolado na cama lendo, desatento a sua
presença, até que ela silenciosamente aproximou-se exalando um ar
quente em minha nuca.
Agora sua carne está aqui, desprovida de gesto ou empatia,
reduzida a um mero processo, como fermento reagindo à água. As
moléculas que compreendem seu corpo estão movendo-se,
separando-se uma das outras, reorganizando-se e dissipando-se na
circundante corrente de biologia, não estando mais mantendo-se
unidas pelo material adesivo de sua vontade individual. Eu sinto meu
próprio corpo espumando-se junto a partículas, material genético,
átomos, parasitas...
O cheiro de seu sexo arrasta-se para dentro do útero de dentro
do meu cérebro onde gesta, formando uma memória perfeita, um
centro vermelho e duro de luxúria impossível que faz brilhar e
esquenta meus pensamentos.
Eu me curvo à ela para um último beijo fútil. O interior de sua
boca excreta uma grudenta cola branca que cheira como se viesse de
um lugar no fundo da terra — uma reserva de composto animal
escondido numa tumba escura. Eu pego uma faca de cozinha
serrilhada e removo seus dedos cuidadosamente, guardando os
fluídos que escorrem numa toalha de banho branca. Eu como estes
possuídos fragmentos de sua alma com um cuidado empírico,
transfixado por seus olhos fixos. Estou intoxicado com o fim de sua
memória e a transmissão de seu gosto, odor, e textura para dentro
de minha mente e do meu corpo.
Com o passar das semanas, cada dia traz a ingestão de um
outro pedaço de sua essência. Quando a substância de seu corpo me
invade, eu sou transformado numa entidade além de mim mesmo, e
também além dela. Essa evolução é apenas o primeiro passo na
minha própria e lenta decomposição, enquanto me fundo com
infinitos organismos que, em troca, se alimentarão de mim, e que, por
fim, irão misturar-me na atmosfera...
O DISCURSO DE SATÃ
Maximilian Klinger

Príncipes poderosos, espíritos imortais, sêde bem-vindos! A


volúpia me abrasa quando lanço meu olhar sobre vós, incontáveis
heróis! Ainda somos aquilo que éramos outrora, ao despertarmos
pela primeira vez neste inferno, ao reunirmo-nos aqui pela primeira
vez. Só aqui há unidade de sentimento, só aqui todos trabalham por
um único ideal. Quem impera sobre vós pode esquecer facilmente o
monótono brilho do céu.
Eu confesso que muito sofremos e sofremos ainda, pois o
exercício de nossas forças está limitado por Aquele que temer-nos
mais do que nós a Ele; mas, no sentimento de vingança que
provocamos nos filhos do pó, seus fracos preferidos, ao verificarem
que seus ideais são arruinados pela sua demência e seus vícios,
reside o lenitivo para esse sofrimento. Vivas a todos aqueles que
estão inflamados por esse pensamento!
Eis os motivos da festa que hoje pretendo realizar convosco:
Fausto, um atrevido mortal, que como vós contesta o Eterno e, pela
força de seu espírito, quer tornar-se digno de morar conosco no
Inferno, descobriu a arte de multiplicar com facilidade milhares e
milhares de vezes os livros, esse perigoso entretenimento dos
homens, propagadores da demência, dos enganos, da mentira e do
terror, fonte do orgulho e mãe da trágica dúvida. Até aqui, devido ao
seu elevado preço, eles haviam sido privilégio dos ricos, enchendo-os
de vaidade e afastando-os da simplicidade e humildade exigidas pelo
Eterno, que colocara esses sentimentos em seu coração para sua
felicidade. Triunfo! Em breve o perigoso veneno da sabedoria e da
ciência contaminará a todos! Loucura, dúvida, intranquilidade e
novas necessidades alastrar-se-ão, e eu duvido que meu terrível
reino possa abarcar todos aqueles que sarão contaminados por esse
veneno sedutor. Essa seria, por enquanto, apenas uma pequena
vitória em comparação com o que prevejo para um futuro remoto,
que para nós representa apenas uma volta dos ponteiros. Aproxima-
se o tempo em que os pensamentos e opiniões de ousados
renovadores e críticos do antigo sejam contagiados pela descoberta
de Fausto como pela peste. Surgirão pretensos reformadores do céu
e da terra, cujos ensinamentos, pela facilidade de comunicação,
atingirão até a choça do mendigo.
Eles pensarão estar serviço à humanidade e evitando que sua
mensagem de salvação e esperança seja mal interpretada; mas
quando e por quanto tempo é o homem capaz de praticar o bem? O
homem é tentado mais facilmente a praticar abusos e más ações em
nome de suas mais lídimas aspirações do que pelo pecado
propriamente dito. O povo escolhido, que o Todo-Poderoso quis
salvar para sempre do inferno, através de um terrível milagre, se
baterá em guerras sangrentas por ideias que ninguém entende e
dilacerar-se-á como os animais selvagens. Horrores que superam
qualquer loucura que os homens tenham cometido devastarão a
Europa. Minhas previsões vos parecem demasiado ousadas, como
vejo em vossos olhares céticos. Pois escutai: essa nova loucura será
uma guerra religiosa como nunca houve igual na história dos crimes
e das outras monstruosidades do homem. O fanatismo, selvagem filho
do ódio e da superstição, dissolverá então por completo todos os
vínculos naturais e humanos. Em nome do terror os pais matarão os
filhos e os filhos matarão os pais. Reis mancharão sadicamente suas
mãos com o sangue de seus súditos, fornecerão espadas a seus
prosélitos mais fanáticos para que esses assassinem seus irmãos aos
milhares só porque divergem de opinião. Então, a água dos rios se
transformará em sangue e os gemidos de suas vítimas abalarão o
próprio inferno.
Acolheremos criminos carregados de culpas que nem sequer se
enquadram nos castigos que aplicamos até agora. Já os vejo
investindo contra o trono papal, que procura salvar a estrutura
abalada através da astúcia e da mentira, enquanto ele próprio se
afunda no vício e na opulência. Os pilares da religião, tão temida por
nós,se desmoronam,e, se o Eterno não socorrer a estrutura
decadente através de novos milagres, ela desaparecerá da face da
terra, e nós seremos novamente idolatrados nos templos como
deuses. Até que ponto chegará o espírito do homem, quando ele
começar a pensar sobre o que até agora tivera por sagrado? Ele
dançará sobre o túmulo do tirano, diante do qual tremera ainda
ontem; arrasará o altar no qual fizera sacrifícios no momento em que
procurar, à sua maneira, o caminho da felicidade. Quem poderá
algemar seu espírito irrequieto por milhares de anos? Poderá o
Criador impedir que um único homem se aproxime muito mais do
nosso reino do que do seu, só prque o criou?
O homem abusa de tudo, da força de seu espíritoe de seu corpo;
de tudo o que ele vê, ouve, prova, sente e pensa, daquilo com que se
diverte ou daquilo com que se ocupa seriamente. Não satisfeito em
destruir e desfigurar aquilo que está ao seu alcance, deixa-se levar
pelas asas da fantasia a mundos desconhecidos, desfigurando-os em
sua imaginação. O homem é capaz de trocar até mesmo a liberdade,
seu mais precioso bem, que lhe custou rios de sangue, por ouro,
prazer e ilusões, quando mal chegou a conhcê-la. Incapaz de praticar
o bem, treme diante do mal, acumula terror sobre terror para
afugentá-lo e destrói assim sua própria obra.
Fatigado de crimes e de guerras sangrentas, descansará por um
momento, e o ódio se manifestará apenas secretamente. Alguns
valer-se-ão desse ódio para, em nome da verdade, se vingarem
daqueles que discordem de sua fé, queimando-os em fogueiras.
Outros procurarão desvendar os mistérios e enigmas indecifráveis, e
os filhos das trevas lutarão ousadamente pela busca da luz. Sua
fantasia inflamar-se-á para criar milhares de novas necessidades.
Para escrever um livro que lhes traga fama e ouro, não hesitarão em
pisotear a verdade, a simplicidade, e a religião. Escrever livros
tornar-se-á ofício vulgar, através do qual gênios e charlatões
procurarão glória e riqueza, sem preocupar-se com a confusão que
irão causar na mente de seus irmãos e o germe do ódio que irão
incutir nos inocentes.
O céu, a terra e Aquele que tememos, as forças ocultas da
natureza, os motivos obscuros de todos os fenômenos, o poder que
determina o rumo dos astros e dos cometas, o tempo
incomensurável, tudo o que é visível e invisível os homens
pretenderão provar, medir, compreender, inventar palavras e
números para as coisas inexplicáveis, acumular sistema sobre
sistema, até que tenham conseguido atrair as trevas para a terra,
onde sóa dúvida brilhará, como o fogo-fátuo que atrai o peregrino
para o pântano. Só neste momento pensarão estar vendo a luz, e
neste momento estarei à sua espera! Quando se tiverem descartado
da religião, como se fôsse lixo, e forem obrigados a criar dos restos
mefíticos uma nova e monstruosa mistura de sabedoria e
superstição, então estarei à sua espera! Podereis abrir então as
portas do inferno para receber o gênero humano!
O primeiro passo já foi dado, e o segundo está próximo. Está por
acontecer mais uma terrível revolução sobre a face da Terra. Eu me
reporto a ela só de passagem. Logo, os habitantes do mundo antigo
descobrirão novas terras, até aqui desconhecidas. Com fanatismo
religioso, lá estrangularão milhares de inocentes para se
apoderarem do ouro, a que estes não dão importância. Encherão
esse novo mundo com todos os seus vícios e trarão para o velho
vícios mais abomináveis ainda. Assim, povos que por sua inocência e
ignorância, até então haviam sido poupados por nós, serão nossas
vítimas. Durante séculos, derramarão sangue sobre a face da Terra
em nome Daquele que tememos, e assim o inferno derrotará Aquele
que nos jogou aqui, valendo-se de seus próprios favoritos.
Era isso, poderosos, o que eu tinha a dizer-vos. Festejai comigo
este maravilhoso dia e desfrutai antecipadamente a vitória que posso
prometer-vos, porque conheço os homens. Viva Fausto!
O SONHO DO UNIVERSO
Jean Paul

Meu corpo - assim eu sonhei - se desprendeu de mim e caiu; ao


mesmo tempo minha figura interior emergiu, luminosa. Do meu lado
estava uma outra figura, parecida com a minha, só que ela, em vez de
luzir, relampejava sem cessar. - Duas ideias - disse a figura - são as
minhas asas: a ideia Aqui e a ideia Lá; e estou lá. Pensa e voa
comigo, para que eu te mostre e, ao mesmo tempo, encobre o
universo! E eu voei com ela. Atrás de mim o globo terrestre caiu no
abismo, tão impestuosa era a arrancada do voo, apenas algumas
constelações estelares da América Austral nos acompanharam com
brilho pálido, e finalmente do nosso firmamento apenas sobrou o sol,
como uma estrelinha, e algumas caudas de cometas que brilhavam
como chamazinhas em seu redor. Passamos, num instante, perto de
um cometa proveniente do sol da terra e voando rumo a Sirius.
Agora voamos, em meio de inúmeros sóis, com tanta velocidade,
que eles nem tinham tempo para assumir, por instantes, o tamanho
de luas; suas terras, pela velocidade do voo, nem apareceram.
Finalmente, o nosso sol, Sirius, e todas as constelações do nosso
firmamento se encontravam como uma nebulosa clara em meio de
nuvenzinhas menores, mais distantes ainda. Assim voamos através de
desertos astrais; um céu após outro se expandira ante nós para
depois se estreitar atrás de nós - e galáxias se encontravam
enfileiradas na lonjura como portais de triunfo, erguidos em
homenagem ao espírito eterno.
Às vezes a figura relampejante sobrevoava meu pensamento
fatigado e brilhava, distante de mim, como centelha ao lado de um
astro; mas bastava eu pensar: "Lá!" para junto me encontrar junto
dela. Porém, quando já nos perdemos não sei em quantos abismos
estrelados e o céu sobre nossos olhos não se tornou mais vazio, nem
o céu embaixo de nós mais cheio, enquanto os sóis continuavam
caindo em chusma, no oceano solar, igual às enxurradas de chuva:
então o coração humano, repleto, se cansou e sentiu o desejo de
retornar ao imenso templo solar, para a pequena alcova de devoção,
e eu disse à figura: - Ó, espírito! Será que o universo não tem fim?
Respondeu:
- Não tem início!
Mas eis que, de súbito, o firmamento sobre nós parecia
esvaziado, estrelinha nenhuma brilhava na escuridão pura; a figura
relampejante continuava voando na escuridão, até que também o céu
estrelado atrás de nós se contraiu numa névoa rarefeita e,
finalmente, se esvaiu.
Pensei: - O universo, pois, terminou? - e me assustei diante do
infinito calabouço noturno da criação, cujo muro aqui principia; me
assustei, diante do morto Mar do Nada, em cujas trevas insondáveis
a jóia do universo luminoso se afundava, sem cessar; encontrei
apenas a figura relampejante, mas não a mim mesmo, o solitário, pois
ele não me iluminava.
Então ele respondeu à mudez do meu pavor:
- Ó incrédulo! Ergue o olhar! A luz dos Primórdios vem se
acercando.
Olhei e vi: um crepúsculo, uma galáxia, e logo um firmamento
inteiro de astros resplandecentes; qualquer pensamento era
demorado demais para estes três instantes. Há milênios encanecidos
a luz estava a caminho para chegar até nós - e veio agora,
insondável, a partir das alturas. Voamos através de um novo século,
pela nova esfera de estrelas. Seguiu outro percurso noturno e
demorou até chegarem os raios de outro páramo celeste, mais
distante ainda.
Na medida em que avançamos em nossa ascensão, céus e noites
se alternavam, os voos pela escuridão demoravam cada vez mais, até
cintilar embaixo de nós uma nova esfera de estrelas para se apagar
outra vez. De repente, ao emergirmos de mais de uma noite, para
ver uma aurora boreal de sóis que se fundiram numa labareda
grandiosa, lutando pelas suas terras, e desencadeando ao nosso
redor o dia do juízo final em todas elas; ao atravessarmos as
paragens apavorantes da gênese dos mundos, onde estrondeiam as
águas supraterrestres e raios cósmicos relampejam pela cerração do
Ser; onde um astro sombrio, infinito, absorvia as flamas e os sóis em
sua massa plúmbea, jamais clareando; quando divisei na lonjura
imperscrutável uma serra recoberta pela neve fulgurante de sóis
aglomerados, sob galáxias que pairavam qual finos crescentes
lunares: então meu espírito se elevou e se inclinou, novamente, pelo
peso do universo, e eu disse à figura relampejante: não insistas em
levar-me mais adiante; não suporto ser tão solitário dentro da
criação, e mais solitário ainda em meus desertos; o mundo da
plenitude é grande, deveras; mas o mundo do vazio é maior ainda e
com o universo cresce também o deserto.
A figura me tocou, de leve, como um sopro clamoroso, falando,
mais suave do que antes:
- Ante Deus o vazio não persiste; é ao redor dos astros, é entre
eles que reside o verdadeiro cosmo. Teu espírito abrange apenas
imagens terrestres do supraterrestre; contempla, então, as imagens!
Eis! Meus olhos foram abertos, e eu vi um mar de luz, infinito,
em que os sóis e as terras eram apenas escuras ilhas rochosas. Eu
estava dentro do mar, e em parte alguma havia solo, nem costa.
Todos os espaços que se estendiam entre as galáxias eram
preenchidos de luz, e oceanos de som flutuavam embaixo e acima dos
mares, ora trovejando como a maré, ora como o flautear de cisnes
cantores, sem que houvesse mistura dos dois. O fulgor e a música
dominavam, suavemente, o coração; eu estava cheio de alegrias, sem
saber de onde me vinham; me alegrava pelo ser e pela sua
eternidade, e um amor impronunciável me envolvessem que eu
soubesse porque, quando vi o novo cosmo de luz ao meu redor.
Disse então a figura:
- É o mundo dos espíritos que te compreende; não existe para os
olhos e o ouvido, que percebem apenas o mundo corpóreo que os
espíritos criam e regem. Que teus olhos vejam, e que teu coração
compreenda!
E meus olhos viram a cercania e a distância; vi os espaços
desmedidos que acabamos de atravessar, com seus pequenos
firmamentos; nos leves espaços etéreos boiavam os sóis, não
passando de flores cinzentas, e as terras qual negras sementes. E o
coração entendeu, a sonhar: a imortalidade reside nos espaços, a
morte nos mundos. Nos sóis perambulavam sombras eretas, em
figura de homem, se transfigurando, logo que as deixavam, para
mergulhar no oceano da luz. Nos espaços refulgia, ressoava,
soprava, se exalava nada senão a vida e a força criadora da
liberdade do cosmo, os sóis eram apenas rodas de fiar, as terras,
lançadeiras a tramar no infinito tecido do véu de Isis, que pairavam
sobre a criação, se prolongando cada vez que um mortal o levantava.
Aí, diante da imensidão de vida, não havia mais dores amargas,
apenas deleite sem fim e preces de louvor.
Diante do fulgor do cosmo a figura relampejante se tornara
invisível - retornara à sua pátria: o mundo invisível dos espíritos; eu
me quedei, a sós, em meio da vida e da vastidão, almejando pela
companhia de alguém. foi então que se aproximou, pela multidão
pelágica das estrelas, um corpo celeste escuro, navegando no
sublime oceano da luz; e nele estava uma figura humana, uma
criança, imóvel e imutável na aproximação. Finalmente reconheci a
minha Terra, e nela, o menino Jesus; e a criancinha me fitava, tão
clara, tão suave, tão cheia de amor, que acordei pelo carinho e
deleite que senti.
VIRGEM LOUCA, O ESPOSO
INFERNAL
Arthur Rimbaud
Ouçamos a confissão de um companheiro de inferno:
“Ó divino Esposo, meu Senhor, não desdenheis a confissão da
mais triste de vossas servas. Sou uma perdida. Uma bêbada. Uma
impura. Ah! que vida!
“Perdão, perdão, Senhor divino! Ah! perdão! Quantas lágrimas!
E quantas ainda por chorar, mais tarde!
“Mais tarde, conhecerei o Divino Esposo! Nasci submissa a Ele.
- O outro pode me espancar agora!
“Agora, estou no fim do mundo! Ó minhas amigas!... não, minhas
amigas não, que estupidez!
“Ah! sofro, e choro. Sofro deveras. No entanto, tudo me é
permitido, desprezada pelos mais desprezíveis corações.
“Mas, façamos afinal a confidência, pronta a repeti-la vinte
outras vezes, - por inócua, insignificante que seja!
“Sou escrava do Esposo infernal, o que levou à perdição as
virgens loucas. Dele mesmo, esse demônio.
Não de um espectro, ou de um fantasma. Mas eu que perdi o
entendimento, que estou condenada e morta para o mundo, - a mim,
não matarão! - Como descrevê-lo a vós! Já nem sei falar. Estou de
luto, choro e tenho medo. Dai-me Senhor, um refrigério, eu vos
suplico!
“Sou viúva... - Eu era viúva... fui muito honesta antigamente, é
certo, mas não nasci para tornar-me um esqueleto!... - Ele, quase
uma criança... Fui seduzida por suas misteriosas delicadezas.
Larguei todo dever humano para seguí-lo. Que vida! Ausentes da vida
verdadeira. Não estamos no mundo. Vou para onde ele vai, tenho que
ir. E não raro ele se volta contra mim, a pobre alma. O Demônio! -
Ele é bem um demônio, já sabeis, e não um homem.
“Ouço-o dizer: “Não amo as mulheres. Há que reinventar o
amor, isto é sabido. Elas só querem segurança.
Uma vez obtida, põem de lado a beleza e o coração: resta um
frio desdém, que alimenta hoje em dia o matrimônio. Ou vejo então
mulheres, marcadas com o signo da ventura, com as quais, até eu,
poderia fazer camaradagem, cedo devoradas por uns brutamontes
tão sensíveis quanto fogueiras...” “Vejo-o fazer da infâmia a glória,
da crueldade um atrativo. ‘Sou de uma raça antiga: meus pais eram
escandinavos; eles trespassavam as próprias costas, bebiam o
próprio sangue. - Farei incisões por todo o corpo, vou tatuar-me,
quero ficar horroroso como um mongol, verás, uivarei pelas ruas.
Quero enlouquecer de raiva. Nunca me mostreis jóias, eu me
contorceria e me arrastaria pelo chão! - Em outras, bêbado, postava-
se nas ruas ou casas, para assustar-me mortalmente. - ‘Um dia me
cortarão mesmo o pescoço; será horrível.’ Oh, as vezes em que
assumia um ar de crime!
“Vez por outra fala, numa espécie de algaravia comovida, sobre
a morte que leva ao arrependimento, sobre a morte que leva ao
arrependimento, sobre os infelizes que certamente existem, os
trabalhos penosos, as despedidas que estraçalham corações. Nos
antros em que nos embriagávamos, chorava ao pensar na gente em
torno, rebanho da miséria. Soerguia os bêbados caídos nas vielas
escuras. Tinha essa piedade que a mãe perversa demonstra por
crianças. - Caminhava com trejeitos de menina que vai ao catecismo.
Afetava saber de tudo, arte, comércio, medicina. - eu o seguia, era
preciso!
“Eu via toda a encenação de que ele, mentalmente, se cercava;
vestes, roupas, móveis: atribuía-lhe armas, uma nova imagem. Via
tudo quanto lhe interessava, da maneira que ele o teria querido para
si. Quando me parecia estar de ânimo abatido, lá o seguia eu, nos
seus atos estranhos e complicados, aonde fosse, bons ou maus: tinha
certeza de não poder jamais penetrar em seu mundo. Junto ao amado
corpo adormecido, quantas horas velei noites sem fim, a indagar
porque fugia tanto à realidade. Jamais alguém teve tamanha ânsia.
Reconhecia - sem temer por sua vida - que ele podia representar
séria ameaça à sociedade. - Possui talvez segredos de mudar a vida?
Não creio, só vive a procurá-los, eu dizia comigo. Mas certo é que
sua caridade tem feitiço, e dela estou prisioneira. Alma alguma teria
tanta força - a força do desespero! - para suportá-la, - para ser
protegida e amada por ele. Aliás, não o conseguia imaginar com
outra alma: podemos ver o nosso Anjo, jamais o Anjo dos outros, - eu
suponho. Em sua alma eu vivia como num palácio que se manda
esvaziar para que não reste ninguém tão pouco nobre quanto nós: eis
tudo. Ai de mim! dependia muito dele. Mas ele, que pretendia com
minha existência apagada e pusilânime? Só se ele me matasse, faria-
me melhor! Tristemente despeitada, eu lhe dizia às vezes: “Eu te
entendo”. Ele erguia os ombros..
“Desse modo, quanto mais se renova a minha mágoa, e por que
me achasse cada vez mais perdida ante meus olhos - e aos de todos
que em mim se fixassem, não fosse eu condenada para sempre a total
esquecimento! - tanto mais sentia fome de sua bondade. Seus beijos
e abraços amigos abriam-me um céu, sombrio céu onde eu entrava e
gostaria de ficar, pobre, surda, muda, cega. Já me estava
acostumando. Eu nos via, como a duas crianças inocentes, livres a
passear no Paraíso da tristeza. Nós nos entendíamos.
Cheios de emoção, trabalhávamos juntos. Mas, ao fim de
penetrante carícia, dizia-me: ‘Como te parecerá estranho tudo isso
por que passaste, quando eu não estiver mais aqui. Quando não mais
tiveres meus braços em redor de teu pescoço, nem meu peito para
nele repousares, nem esta boca em tuas pálpebras.
Pois força é que um dia eu me vá para bem longe. Tenho que
ajudar os outros: é meu dever. Ainda que não me seja nada
aprazível... alma querida...’ Eu me antevia então, se ele partisse,
tombando na vertigem, precipitada na sombra mais atroz: a morte.
Forçava-o prometer que não me deixaria nunca. Vinte vezes me fez
essa promessa de amante. Tão frívola quanto ao lhe dizer: “Eu te
entendo.” “Ah! nunca tive ciúmes dele. Não creio que me abandone.
E o futuro? Não tem profissão, nunca trabalhará.
Só quer viver sonâmbulo. Bastariam sua caridade e sua
bondade, para dar-lhe direito ao mundo real?
Esqueço, por instante, a miséria em que me encontro: ele me
dará forças, viajaremos juntos, caçaremos nos desertos, dormiremos
nas calçadas de cidades desconhecidas, sem cuidados, sem
preocupações. Ou despertarei de repente, e as leis e costumes
estarão mudados, - graças a seu poder mágico, - ... o mundo
permanecendo o mesmo, me deixará entregue a meus desejos,
alegrias, despreocupações. Oh! me darás essa vida aventurosa que
existe nos livros infantis, para recompensar-me do tanto que sofri?
Isso ele não pode. Ignoro seu ideal. Disseme ter remorsos,
esperanças: mas não deve referir-se a mim. Será que fala com Deus?
Talvez eu me devesse dirigir a Deus. Estou no mais profundo abismo,
e não sei mais rezar.
“Se me explicasse suas tristezas, poderia compreendê-las
melhor que a seus escárnios? Ele me provoca, passa horas fazendo-
me envergonhar de tudo que me impressionava no mundo, e se irrita
quando choro.
“Estas vendo aquele jovem elegante, que entra numa bela e
calma residência: seu nome é Duval, Dufour, Armand, Maurice, sei
lá. Uma mulher devotou amor a esse idiota: já morreu, e hoje é
decerto uma santa no céu. Tu me farás morrer, como ele fez a essa
mulher. É nosso destino, o nosso, o dos corações caritativos...”
Pobre de mim! havia dias em que todas as pessoas em atividade lhe
pareciam joguetes de delírios grotescos: ria-se horrivelmente, um
tempo imenso. - Depois, readquiria seu jeito de jovem mãe, de irmã
amada. Se ele fosse menos selvagem, estaríamos salvos! Mas até sua
doçura é mortal. Eu o sigo submissa. - Ah! que louca!
“Um dia talvez desapareça por milagre; mas, se ele deve subir a
um céu, força é que eu saiba, para que possa ver um pouco a
assunção de meu querido amigo!”
Que casal mais louco!
NOTURNO VULGAR
Arthur Rimbaud

Um sopro abre fendas operádicas nas paredes, - embaralha o


eixo dos tetos podres, - dispersa os limites das lareiras, - eclipsa
vidraças. - Pelas videiras, apoiando o pé numa gárgula, - desci nesse
côche de uma época bem indicada pelos espelhos convexos,
almofadas bojudas e sofás distorcidos.
Carro funerário do meu sono, solitário, casa de pastor de minha
tolice, o veículo vira sobre o mato da grande estrada desaparecida: e
num defeito no alto do espelho, à direita, giram pálidas figuras
lunares, folhas, seios; - Um verde e um azul escuros invadem a
imagem. Desatrelagem perto de uma mancha de cascalho.
- Aqui vão assobiar às tempestades, e às Sodomas, - e às
Solimas, - e aos animais ferozes e aos exércitos,
- (Postilhões e animais de sonho vão voltar sob as matas mais
sufocantes para me afogar até os olhos na nascente de seda)
- E a nos enviar, açoitados por ondas crispadas e bebidas
derramadas, rolando entre latidos de dogues...
- Um sopro dispersa os limites da lareira.
POESIAS
O CORVO
Edgar Allan Poe

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,


Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro


E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
-Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo


Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo:
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, de certo me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo
Tão levemente, batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,


Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais.

Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,


Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais."

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,


Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento,
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o Corvo, "Nunca mais".

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,


Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".

Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,


Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento,
Perdido murmurei lento. "Amigos, sonhos – mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais."
Disse o Corvo, "Nunca mais".

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,


"Por certo", disse eu, "são estas suas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entorno da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo


À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso


Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".

Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! -


Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, e esta noite e este segredo
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta! -
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida, se no Éden de outra vida,
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo", eu disse. "Parte!


Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o Corvo, "Nunca mais".

E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,


No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh'alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
PROVÉRBIOS DO INFERNO
Willian Blake

No tempo de semeadura, aprende; na colheita, ensina; no


inverno, desfruta.
Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos.
O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria.
A prudência é uma rica, feia e velha donzela cortejada pela
Impotência.
Aquele que deseja e não age engendra a peste.
O verme perdoa o arado que o corta.
Imerge no rio aquele que ama a água.
O tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê.
Aquele cuja face não fulgura jamais será uma estrela.
A Eternidade anda enamorada dos frutos do tempo.
À laboriosa abelha não sobra tempo para tristezas.
As horas de insensatez são medidas pelo relógio, as de
sabedoria, porém, não há relógio que as meça.
Todo alimento sadio se colhe sem rede e sem laço.
Toma número, peso & medida em ano de míngua.
Ave alguma se eleva a grande altura, se se eleva com suas
próprias asas.
Um cadáver não revida agravos.
O ato mais alto é priorizar o outro.
Se o tolo persistice em sua tolice, sábio se tornaria.
A tolice é o manto da malandrice.
Prisões se constroem com pedras da Lei; Bordéis, com tijolos da
Religião.
A vanglória do pavão é a glória de Deus.
O cabritismo do bode é a bondade de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
Excesso de pranto ri. Excesso de riso chora.
O Rugir de leões, o uivar dos lobos, o furor do mar em procela e
a espada destruidora são fragmentos de eternidade, demasiado
grandes para o olho humano.
A raposa culpa o ardil, não a si mesma.
Júbilo fecunda. Tristeza engendra.
Vista o homem a pele do leão, a mulher, o velo da ovelha.
O pássaro um ninho, a aranha uma teia, homem amizade.
O tolo, egoísta e risonho, & tolo, sisudo e tristonho, serão
ambos julgados sábios, para que sejam exemplo.
O que agora se prova outrora foi imaginário.
O rato, o camundongo, a raposa e o coelho espreitam as raízes:
o leão, o tigre, o cavalo e o elefante espreitam os frutos.
A cisterna contém: a fonte transborda.
Uma só ideia impregna a imensidão.
Dize sempre o que pensas e o vil te evitará.
Tudo em que se pode crer é imagem da verdade.
Jamais uma águia perdeu tanto tempo como quando se dispôs a
aprender com a gralha.
A raposa provê a si mesma, mas Deus provê ao leão.
De manhã, pensa. Ao meio dia, age. Ao entardecer, come. De
noite, dorme.
Quem consentiu que dele te aproveitasses, este te conhece.
Assim como o arado segue as palavras, Deus recompensa as
preces.
Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução.
Da água estagnada espera veneno.
Jamais saberás o que é suficiente, se não souberes o que é mais
suficiente.
Ouve a crítica do tolo! é um direito régio!
Os olhos de fogo, as narinas de ar, a boca de água, a barba de
terra.
O fraco em coragem é forte em astúcia.
A macieira jamais pergunta à faia como crescer; nem o leão ao
cavalo como apanhar sua presa.
Quem reconhecido recebe, abundante colheita obtém.
Se outros não fossem tolos, seríamos nós.
A alma imersa em deleite jamais será maculada.
Quando vês uma guia, vês uma parcela do Gênio; ergue a
cabeça!
Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para pôr seus
ovos, o sacerdote lança suas maldições sobre as alegrias mais belas.
Criar uma pequena flor é labor de séculos.
Maldição tensiona: Bênção relaxa.
O melhor vinho é o mais velho, a melhor água, a mais nova.
Orações não aram! Louvores não colhem!
Alegrias não riem! Tristezas não choram!
A cabeça, sublime; o coração, Paixão; os genitais, Beleza; mãos
e pés, Proporção.
Como o ar para o pássaro, ou o mar para o peixe, assim o
desprezo para o desprezível.
O corvo queria tudo negro; a coruja, tudo branco.
Exuberância é Beleza.
Se seguisse os conselhos da rapoza, o leão seria astuto.
O Progresso constrói caminhos retos; mas caminhos tortuosos
sem Progresso são caminhos de Gênio.
Melhor matar um bebê em seu berço que acalentar desejos
irrealizáveis.
Onde ausente o homem, estéril a natureza.
A verdade jamais será dita de modo compreensível, sem que
nela se creia.
SUFICIENTE! OU DEMASIADO
William Blake

Os Poetas antigos animaram todos os objetos sensíveis com


Deuses e Gênios, nomeando-os e adornando-os com os atributos de
bosques, rios, montanhas, lagos, cidades, nações e tudo quanto seus
amplos e numerosos sentidos permitiam perceber.
E estudaram, em particular, o caráter de cada cidade e país,
identificando-os segundo seu deidade mental; Até que se estabeleceu
um sistema, do qual alguns se favoreceram, & escravizaram o vulgo
com o intento de concretizar ou abstrair as deidades mentais a partir
de seus objetos: assim comecou o sacerdócio; Pela escolha de formas
de culto das narrativas poéticas.
E proclamaram, por fim, que os Deuses haviam ordenado tais
coisas.
Desse modo, os homens esqueceram que todas as deidades
residem no coração humano.
WINTERRISE (JORNADA DE
INVERNO)
Wilhelm Muller

I. Boa Noite

Cheguei como um estranho,


Como um estranho vou embora
Maio foi bom para mim
Com suas mil flores.
A moça falou de amor,
E sua mãe até de casamento,
Agora o mundo está cinza,
O solo coberto de neve.
Não posso escolher o momento
Da minha partida;
Preciso encontrar meu caminho
Nesta escuridão.
Com as sombras do luar
Como companheiras,
Buscarei as trilhas selvagens
Nos campos enevoados.
Por que esperar, me lamentando,
Até que me perca?
Que uivem os cães perdidos
Fora de sua casa;
O amor adora vagar
Deus o fez assim
Para todos Boa noite, meu amor!
Não perturbarei os seus sonhos,
Seria uma pena perturbar seu repouso;
Você não ouvirá meus passos
Silenciosamente, fecho a porta!
Ao passar escreverei
"Boa noite", na porta,
Para que veja,
Que estive pensando em você.
II. O Catavento

O vento brinca com o catavento


No alto da casa de minha amada.
Em minha ilusão pensei
Que ele apontava para o pobre fugitivo.
Se ele tivesse visto isso antes,
O galo sobre a casa,
Então jamais teria procurado
Pela fidelidade feminina naquela casa.
O vento brinca nos corações
Como no telhado, mas sem barulho.
O que é meu sofrimento para eles?
Sua criança é uma noiva rica.
III. Lágrimas Geladas

Lágrimas geladas escorrem


Em minha face
Será que sem perceber,
Estive chorando?
Oh lágrimas, minhas lágrimas,
Serão tão bem aventuradas,
Que se transformam em gelo
Como o orvalho da manhã?
Porém surgem de uma fonte,
Meu peito, tão ardentes,
Como se quisessem derreter
Todo o gelo invernal!
IV. Letargia

Procuro na neve em vão


Pelas marcas de seus passos,
Quando juntos, de mãos dadas,
Caminhamos pelo campo verdejante.
Quero beijar o solo,
Então derreto o gelo e a neve
Com minhas lágrimas ardentes,
Até que vejo a terra.
Onde encontrar as flores?
Onde encontrar os campos verdes?
As flores estão mortas,
E o solo, estéril.
Não haverá alguma lembrança
Que possa levar comigo daqui?
Para quando o sofrer se acalmar,
Eu tenha comigo uma lembrança dela?
Meu coração está morto,
E sua imagem já está fria em meu peito,
Se meu coração algum dia definhar,
Do mesmo modo sua imagem se dissolverá!
V. A Tília

Junto à fonte e ao portão,


Há uma tília;
Sonhei em suas sombras
Muitos sonhos felizes.
Gravei em seu tronco
Muitas palavras de amor;
Eu sempre estava ali,
Na tristeza e na felicidade.
Hoje, também, passei por ali
Na calada da noite.
E mesmo estando escuro
Tive que fechar meus olhos.
E seus ramos se agitaram
Como a dizer:
"Venha aqui, junto a mim, amigo,
Aqui encontrará a paz!"
O vento frio soprou
Em minha face,
Meu chapéu voou,
E eu nem me virei.
Agora estou horas distante
Daquele lugar,
E ainda ouço seus ramos a sussurrar:
"Aqui você encontraria a paz!"
VI. Torrente

Muitas lágrimas escorreram


De meus olhos para a neve;
Os flocos gelados sorveram
Minha tristeza ardente.
Quando a grama começar a nascer,
Um vento suave vai soprar ali,
E o gelo vai se romper
E a neve se derreterá.
Neve, você que conhece meus lamentos,
Fale, para onde correrá?
Siga minhas lágrimas,
Então logo a torrente vai te acolher.
Te conduzirá pela cidade,
Pelas ruas cheias de vida.
E quando sentir o brilho de minhas lágrimas,
Eis a casa de minha amada
VII. No Riacho

Você que corria tão radiante,


Riacho límpido e selvagem,
Tornou-se tão calmo,
Não me oferece despedidas.
Vestiu-se com sólida
E rígida couraça,
Permanece frio e imóvel
Estendido na areia.
Na tua superfície eu gravo
Com uma pedra afiada
O nome de minha amada,
E a hora e o dia:
O dia de nosso encontro,
O dia em que fui embora:
Nome e números cercados
Por um anel partido.
Meu coração, você não reconhece
Neste ribeiro sua própria imagem?
Não existe também, sob tua superfície,
Uma correnteza oculta?
VIII. Repouso

Agora que deito para descansar


Percebo como estou cansado;
O vagar me sustentou
Enquanto caminhava pela estrada deserta.
Meus pés não ansiavam pelo repouso,
Estava frio demais para parar;
Minhas costas não sentiam o fardo,
A tempestade me ajudava a prosseguir.
Encontrei abrigo
Na cabaninha de um carvoeiro.
Quieto, meus membros não podem repousar.
Tão profundamente ardem minhas feridas.
Você também, coração, em lutas e tempestades
Tão bravo e selvagem,
Só agora, na calmaria, pode sentir o ferrão afiado
Do verme que vive em ti!
IX. O Corvo

Um corvo me acompanha
Desde saí da cidade,
E mesmo agora
Voa sobre mim
Corvo, estranho ser
Não me abandonará?
Você pretende, em breve,
Ter meu cadáver como alimento?
Bem, não andei tanto assim
Com o cajado em mãos
Corvo, deixe-me ver ao menos uma vez
Uma fidelidade que perdure até a sepultura
X. A manhã tempestuosa

Veja como a tempestade despojou


O manto cinza do céu!
Montes de nuvens pairam acima
Em conflito pesado.
E chamas iradas
Queimam entre elas;
Eis um amanhecer
Que me satisfaz!
Meu coração vê sua própria imagem
Pintada no céu
É nada mais que o inverno,
O inverno, frio e selvagem!
XI. Ilusão

Uma luz amiga dança ao longe


Eu a segui por aqui e ali
Sigo ansioso e perscruto sua rota
Enquanto ela seduz o andarilho para si
Ah! Os que são desgraçados como eu
Se felicitam de bom grado com esta mentira,
Que oculta, além do gelo, da noite e do terror,
Uma casa luminosa e quente.
E dentro, uma alma amorosa
Ah, minha única vitória é sobre a ilusão!
XII. A Placa

Por que evito as rotas


Seguidas por outros viajantes,
Para buscar caminhos ocultos
Nos cumes nevados das montanhas?
Na verdade jamais fiz mal algum
Para que precisasse fugir da humanidade
Que desejo tolo é este
Que me conduz aos desertos?
Placas existem na margem dos caminhos,
Placas que conduzem às cidades;
E eu vago adiante, mais além,
Sem descanso em busca de repouso.
Vejo uma placa diante de mim,
Que permanece, estática, sob meu olhar.
Eis a estrada que devo tomar,
Aquela da qual ninguém jamais retornou.
XIII. O Albergue

Meu caminho me conduziu a um cemitério;


Poderia me hospedar aqui, pensei comigo mesmo.
Vocês, coroas de flores, poderiam bem ser as placas,
Que convidam o viajante cansado para o albergue
aconchegante.
Mas nesta casa todos os quartos estão ocupados?
Estou fraco o suficiente para cair, mortalmente ferido.
Ó albergueiro desapiedado, você me recusa abrigo?
Então adiante, adiante, meu fiel bastão de andarilho.
XIV. Coragem

A neve açoita meu rosto


E eu a afasto
E quando o coração grita em meu peito
Eu canto alto e feliz
Eu não escuto o que ele diz,
Não lhe dou ouvidos,
Nada sinto nem lamento,
Lamentos são para os idiotas.
Eu prossigo feliz pelo mundo
De encontro ao vento e ao mau tempo!
Se não há Deus sobre a terra, Sejamos nós deuses!
XV. Os Sóis Fantasmas

Eu vi três sóis no céu


Olhei para eles longa e árduamente
E eles, também, ficaram a me olhar,
Como se estivessem hesitantes em me abandonar.
Ah, mas vocês não são meus sóis!
Olhem para outros na face então:
Até recentemente eu, também, tive três;
Agora os dois melhores se foram.
Mas deixe o terceiro ir também!
Na escuridão estarei bem melhor.
XVI. O Organista

Lá, junto à vila, fica um organista,


Com dedos entorpecidos ele toca o melhor que pode.
Descalço no gelo, seu corpo vacila,
E seu pequeno prato está sempre vazio.
Ninguém o escuta, ninguém o vê,
E os cães latem para o velho homem.
E ele deixa estar, nada importa,
Ele toca, e seu órgão nunca se cala.
Homem velho e estranho, devo ir contigo?
Você tocaria minhas músicas?
OS HOMENS OCOS
Thomas Stearns Elliot

Nós somos os homens ocos,


Nós somos homens empalhados
Apoiados uns aos outros
A cabeça cheia de palha.
Ai de nós!
Nossas vozes rouquenhas, quando sussurramos juntos,
São suaves e não têm sentido
Como o vento na relva seca
Ou os pés dos ratos que passam sobre vidro quebrado
Na nossa adega vazia.
Feitio sem forma, sombra sem cor,
Força paralisada, gesto sem movimento:
Os que já cruzaram
Com o olhar para a frente, o outro
Reino da morte
Recordam-se de nós - se é que assim seja
Não como almas perdidas, exaltadas, mas simplesmente
Como homens ocos
Homens empalhados.
II

Olhos, não ouso fitá-los nos sonhos


No reino do sonho da morte
Estes não aparecem;
Os olhos são a luz solar
Numa coluna partida
Ali na arvore que balança
E há vozes na canção do vento
Mais distantes e mais solenes
Que uma estrela que se apaga.
Que eu não mais me aproxime
Do reino do sonho da morte
Que eu use disfarces
Pelo de rato, pele de corvo, sarrafos cruzados
Num campo
Fazendo o que o vento faz
E não mais
Não aquele encontro final
Na região crepuscular.
III

Esta é a terra morta


Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
São erguidas, aqui elas recebem
A súplica da mão de um morto
Sob a cintilação de uma estrela que se apaga.
É assim
No outro reino da morte
Despertar a sós
No instante em que estamos
Tremendo de ternura
Lábios que beijariam até a lage partida.
IV

Os olhos não estão aqui


Não há olhos aqui
Neste vale de estrelas moribundas
Neste vale oco
Esta garganta partida dos nossos reinos perdidos.
Neste último reduto de encontros
Nós nos agrupamos
E evitamos falar
Reunidos nessa praia de rio cheio
Sem vista, a não ser
Que os olhos desapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
A única esperança
Do reino do crepúsculo da morte
Dos homens ocos.
V

Aqui vamos andando à roda da pêra silvestre


Pêra silvestre, pêra silvestre,
Aqui vamos andando à roda da pêra silvestre
Às cinco horas da manhã
Entre a ideia
E a realidade,
Entre o gesto
E o ato
Desce a sombra
Pois o reino é teu.
Entre a concepção e a criação,
Entre a emoção
Entre a emoção
E a resposta desce a sombra.
A vida é muito longa
Entre o desejo
E o espasmo,
Entre a força
E a existência,
Entre a essência
E a descendência Desce a sombra.
Pois o reino é teu,
Pois tua é
A vida é
Pois tua é
É assim que acaba o mundo
É assim que acaba o mundo
É assim que acaba o mundo
Não com um estrondo, mas com um gemido.
ANGÚSTIA
Stéphane Mallamé

Não vim domar teu corpo esta noite, ó cadela


Que encerras os pecados de um povo, ou cavar
Em teus cabelos torpes a triste procela
No incurável fastio em meu beijo a vazar:

Busco em teu leito o sono atroz sem devaneios


Pairando sob ignotas telas do remorso,
E que possas gozar após negros enleios,
Tu que acima do nada sabes mais que os mortos:

Pois o Vício, a roer minha nata nobreza,


Tal como a ti marcou-me de esterilidade,
Mas enquanto teu seio de pedra é cidade.

De um coração que crime algum fere com presas,


Pálido, fujo, nulo, envolto em meu sudário,
Com medo de morrer pois durmo solitário.
A BALADA DO VELHO MARINHEIRO
Samuel Taylor Coleridge

Creio sem hesitações que há mais naturezas invisíveis que


visíveis no universo. Mas quem nos descreverá a família de todas
elas, assim como os graus e as relações e as características e as
funções de cada uma? O que fazem? Que lugares habitam? A mente
humana sempre desejou o conhecimento dessas coisas, mas nunca
o alcançou. Enquanto isso, é saudável, não nego, contemplar seja
em espírito, seja num quadro, - a imagem de um mundo maior e
melhor, para que o intelecto, acostumado às minúcias da vida atual,
não se encolha demasiado e não mergulhe por inteiro nas
cogitações triviais. Mas, ao mesmo tempo, devemos estar atentos à
realidade e preservar o senso de proporção, para que possamos
distinguir as coisas certas das incertas, o dia da noite.
(T. Burnett, Archaeol. Phil, pág. 68)

Argumento: Como um Navio, tendo atravessado o Equador, foi


impelido por tempestades à fria Terra a caminho do Pólo Sul; e como
de lá fez seu trajeto para a Latitude tropical do Grande Oceano
Pacífico; e das coisas estranhas que aconteceram; e de que modo o
Velho Marinheiro retornou a seu próprio País.

I
É um velho Marinheiro,
E detém um, de três que vê:
- "Por tua barba branca e cintilante olhar,
Tu me deténs por quê?

Agora o noivo escancarou as suas portas,


E eu sou seu familiar.
O comensal se apresta, principia a festa;
Ouve o alegre exultar."

Com a escarnada mão ele o detém ainda;


"Houve um navio..."lhe disse.
"Solta-me! Solta-me barbado vagabundo!"
Deixou que a mão caísse.

Com o olho cintilante ele o detém agora...


E, quieto, o Convidado
Fica a escutar, como criança de três anos,
Pelo outro dominado.

O convidado vai sentar-se numa pedra:


Vê-se forçado a ouvir;
E sua fala prossegue o Marinheiro antigo
De olhar a refulgir.

"O navio foi saudado, o porto evacuado;


Equipagem radiante,
Passamos sob a igreja, sob o promontório,
Sob o farol adiante.

À nossa esquerda então o sol se levantava,


Do mar a se elevar;
Era um claro esplendor...
Depois ia se pôr à direita no mar.

Sempre, sempre mais alto, até que sobre o mastro


Pairava ao meio-dia..."
O ouvinte contrafeito aqui bateu no peito:
O alto fagote ouvia.

Agora a noiva já ingressara no salão,


Rubor rosa tem;
A inclinar as cabeças, menestréis alegres
À sua frente vêm.

O ouvinte contrafeito aqui bateu no peito,


Mas é forçado a ouvir;
E sua fala prossegue o Marinheiro antigo
De olhar a refulgir.

"E eis que colheu os navegantes a borrasca,


Tirânica e violenta;
Veio nas asas da surpresa, e nosso barco
Para o sul afugenta.

Pendiam os seus mastros, mergulhava a proa... Como quem, a


dar gritos e golpes em perigo,
Persegue e pisa a sombra do inimigo,
Curva à frente a cabeça,
O barco assim se evade; e ruge a tempestade que ao sul nos
arremessa.

E de repente nos envolvem névoa e neve,


Com um frio assassino;
E, alto de um mastro ao vê-lo, flutuava gelo
De um verde esmeraldino.

E, entre os blocos errantes, penhas alvejantes


Dão espectral fulgor;
Homens não vemos e animais que conhecemos...
Só há gelo ao redor.

O gelo estava aqui, o gelo estava ali,


Só gelo no lugar;
E rangia e rosnava, e rugia e ululava,
- Os sons de um desmaiar.

Enfim passou por nós, bem no alto, um Albatroz,


Vindo da cerração;
Em nome do Senhor nós o saudamos,
Como se fosse outro cristão.

Comeu o que jamais comera, e lá na altura


Volteava sobranceiro;
Rompeu-se o gelo então co'o estrondo de um trovão...
Passou o timoneiro!

E do sul um bom vento nos soprava alento;


O Albatroz nos seguia,
E à nossa saudação, por fome ou diversão,
Buscava todo dia!

Em névoa ou nuvem vem, no mastro ou no ovém,


Por vésperas nove pousar;
Enquanto a noite inteira, em bruma alva e ligeira,
Luzia o alvo luar."

"Velho Marujo! Deus te salve dos demônios


Que de ti vão empós... Que olhar! Que te molesta?"
Com a minha besta
Eu matei o Albatroz.
II

Pela direita agora o Sol se levantava:


Do mar a se elevar
Ainda em meio à bruma; e adiante, à nossa esquerda,
Deitava-se no mar.

E do sul o bom vento nos soprava alento...


Mas ave não se via
Que à nossa saudação, por fome ou diversão,
Acorresse algum dia!

E meu ato infernal traria para todos


A desgraça improvisa,
Pois, para toda a nave, eu fora a morte da ave
Que faz soprar a brisa.

Glorioso o Sol surgiu, nem rubro nem sombrio,


Tal qual fonte divina;
E, para toda a nave, eu fora a morte da ave
Que traz névoa e neblina.

Justo era, em seu pensar, tal pássaro matar


Que traz névoa e neblina.
A branda brisa arfava, a espuma alva voava,
E o sulco solto a esfiar...
Jamais humana voz soara antes de nós Naquele mudo mar.
E o vento cede, as velas cedem...
Quem iria Tristeza mais triste encontrar?
E nós falávamos tão-só para romper O silêncio do mar!

E num ardente céu de cobre, ao meio dia,


Em sangue o sol flutua,
Pairando bem em cima do alto mastro,
Não maior do que a Lua.

Dia após dia, o barco ali, dia após dia,


Sem sopro, ali, cravado;
Ocioso qual uma pintada embarcação
Num oceano pintado.

Água, água, quanta água em toda a parte,


E a madeira a encolher;
Água, água, quanta água em toda a parte,
Sem gota que beber.

O próprio abismo apodrecia...


Como, ó Cristo, aquilo foi se dar?
Coisas viscosas e com pernas rastejavam
Sobre o viscoso mar.

Sant'Elmo urdia à noite um coriscar de açoite,


Turbilhão e tropel;
A água - um óleo de bruxa - verde, azul e branca
Ardia sob o céu.

E alguns em sonhos garantiam ver o


Espírito Que atormentar nos deve;
Nove braças ao fundo, havia nos seguido
Do lar de névoa e neve.

O calor e a aridez tinham secado a língua,


Que até a raiz afligem;
E não podíamos falar, como se a nós
Sufocasse a fuligem.

Ah! Então - ai de mim! - que olhares mais terríveis


Tive de velho e moço!
Como cruz para o algoz, ataram o Albatroz
Em torno a meu pescoço.
III

Um tempo de cansaço! A seca na garganta,


No olhar vidrado um véu. Cansaço! E que luzir em cada olhar
vidrado,
Cansado atrás de um véu.
Quando eis que de repente, os olhos no poente, eu vi algo no
céu.

De início parecia uma pequena mancha,


E depois uma bruma!
Avançava e avançava, até que certa forma
Ele tomou, em suma.

Uma mancha, uma bruma, certa forma, em suma!


E sempre, sempre avança...
Como a esquivar-se de um espírito marinho,
Mergulha e vira e dança.

Com garganta insaciada, a boca negra assada


Riso e pranto cancela;
Nessa aridez, ante a equipagem muda e langue,
O meu braço mordi, suguei o próprio sangue, E gritei: Uma
vela!

Com a garganta insaciada e boca negra assada,


Atônitos parecem;
Graças a Deus! exclamam;
riem, riem bastante...

E todos tomam fôlego naquele instante,


Como se eles bebessem.
Vede! Vede! (Gritei) - Não mais vacila! Vem salvar-nos
certamente;
Navega firme com a quilha levantada, Sem vento, sem corrente!

Agora o oceano no ocidente era um incêndio:


A tarde no arrebol!
Quase pousara sobre o oceano no ocidente
Largo e luzente o Sol;

Foi quando aquela forma estranha se interpôs


Justo entre nós e o Sol. E com barras o Sol logo ficou listrado
(Ó Mãe do Céu, socorre o crente!);
Parecia espiar por grades de masmorra, Com rosto enorme e
ardente.

Ai de mim! (eu pensei, e o peito martelava)


O espaço, como ganha!
Seriam suas velas o que ao sol cintila
Como teias de aranha?

O arcabouço talvez - que encerra a luz do Sol Em grades de


madeira?
Seria essa Mulher sua tripulação?
Ela seria a MORTE? Ou ambas que lá estão?
A MORTE é a companheira?

Seus lábios eram rubros; seu olhar, lascivo; Sua trança, auri-
amarela;
Sua pele, como a lepra, era de um branco forte;
Ela era o próprio Pesadelo VIDA-EM-MORTE,
Que o sangue humano gela.

Chegou a nua carcassa; e o par, a jogar dados, fazia desafios;


"É o fim do jogo!" a Mulher diz,
"Ganhei! Ganhei!"
E dá três assobios.

A orla do sol mergulha; fogem as estrelas:


É escuridão total.
Num sussurrar distante, sobre o mar dispara
O navio espectral.

Tudo ao redor o ouvido escuta o e olhar perpassa!


Meu sangue vital sorve, como numa taça,
Em meu peito o temor!
Apagam-se as estrelas, densa é a escuridão;

Lívida a face do piloto à luz junto ao timão!


Nas velas o orvalho é um suor...
Até que a Lua sobe ao longe no oriente,
Nos cornos envolvendo estrela refulgente
Junto à porta inferior. Um por um,
pela Lua que os astros acuam, sem tempo de gemer ou suspirar,
Todos viram-me o rosto, com horrenda angústia
E maldição no olhar.

Quatro vezes cinquenta a soma de homens vivos


Que, sem suspiro e sem gemido algum,
Com um baque pesado, quais massas inertes,
Caíram um por um.

Suas almas voaram... para a danação,


Ou para a eterna paz.
E essas almas silvavam, ao passar por mim,
Qual minha seta o faz.
IV

"Tenho medo de ti, ó velho Marinheiro!


De tua mão escarnada!
E tu és alto, e esguio, e escuro como a areia
Dos mares estriada.

Tenho medo de ti, do olhar teu cintilante,


E da escarnada, escura mão..."
Convidado Nupcial, não temas; este corpo
Não tombou. Ainda não!

Ah, sozinho, sozinho, inteiramente só,


Num largo, largo mar!
E nunca nenhum santo se apiedou
De minh'alma a agoniar.

Uma tripulação tão grande - e tão bonita!


E toda ali morreu;
E milhares, milhares de viscosos seres
Vivendo... e também eu.

Lancei os olhos sobre o oceano putrescente


E os vazios desolados;
Ao convés putrescente
desviei os olhos e os mortos lá deitados.
Olhei para o alto e quis orar, mas não jorrou
Nem uma reza só;
Um sussurro malvado fez que o coração
Secasse como pó.

Cerrando as pálpebras, mantive-as comprimidas;


Como veias os glóbulos pulsavam,
Enquanto o mar e o céu, enquanto o céu e o mar
Jaziam como um peso em meu cansado olhar... e os mortos me
rodeavam.

Os seus membros, nem fétidos nem pútridos,


Destilavam suor gelado;
Os seus olhares - os olhares que me olharam
Jamais haviam passado.

Mesmo à alma superior a maldição de um órfão


Pode danar com seu poder;
Mais horrível, porém, é quando o olhar de um morto
A nós vem maldizer!

Sete dias e noites vi tal maldição,


E não podia morrer.
A Lua viajante alçava-se no céu, nenhum lugar seu lar;
Doce subia, acompanhada de uma estrela, ou duas, a brilhar...

Qual geada de abril, zombavam os seus raios


Do mormacento oceano;
Mas, onde a sombra imensa do navio jazia, ainda a água do mar
enfeitiçada ardia,
Um rubro imoto e insano.

Além da sombra do navio, serpentes d'água


Vejo em minha agonia:
Movem-se em trilhas de candura que fulgura,
E, quando se erguem, chispam lâminas de alvura das luzes de
magia.

Dentro da sombra do navio, as ricas vestes,


Suas vestes ricas vejo: de azul, negro-veludo, ou verde que
rebrilha,
Nadam e se enovelam, quando cada trilha
De áurea chama é um lampejo.

Felizes criaturas!
A beleza vossa não há quem represente...
Uma fonte de amor jorrou deste meu peito.
E as bendisse inconsciente.

Um bom santo de mim por certo se apiedara,


E as bendisse inconsciente.
Naquele mesmo instante orar eu já podia; e o albatroz, meu
colar,
Se desprendeu de meu pescoço, e mergulhou como chumbo no
mar.
V

Ó Sono! Ó Sono, que é de pólo a pólo amado,


Suave essência, e calma!
Nós devemos louvar
Maria no seu trono!

Foi ela quem mandou este suave sono


Que desceu em minh'alma.
Sonhei que os baldes, tanto tempo no seu ócio ditoso no convés,
Encheram-se de orvalho; mas, quando acordei, Era chuva ao
invés.

Molhadas minhas vestes, úmidos meus lábios,


Minha garganta, fria;
Por certo havia bebido nos meus sonhos,
E o corpo ainda bebia.

Eu então me movi, mas não sentia os membros:


Tão leve estava...
Quase Imaginei que no meu sono havia morrido,
E era espírito em êxtase.

Mas logo ouvi um vento que rugia ao longe


Um rumor afastado;
Mas só este som já sacudiu todo o velame,
Ressequido e esgarçado.

A vida irrompe no ar! Cem flâmulas-de-flama Coriscam sobre os


mastros,
Indo e voltando, à frente e atrás, rapidamente;
E dentro e fora, para trás e para frente,
Dançam em meio aos astros.

E o vento ao vir ruge mais alto; qual carriça,


Suspiram velas, cordas;
E a chuva se despeja de uma nuvem negra,
Com a Lua em suas bordas.

Inda lá estava a Lua, quando negra e espessa


A nuvem se partiu:
Como de alto penhasco tomba a catarata,
O relâmpago veio numa linha exata, Um fundo e largo rio.

Nunca atingiu o barco o rumoroso vento


E o barco era impelido!
Por sob a Lua e o coriscar, os mortos deram...
Sim, deram um gemido.

Gemeram, se moveram, e depois se ergueram,


Sem falar, sem olhar;
Mesmo em sonho, era estranho ver tanto homem morto
Do chão se levantar.
Manobra o Timoneiro, a nave se desloca,
E sem nenhuma aragem; Os marujos se põem a trabalhar nas
cordas,
E tal como antes agem;
Instrumentos sem vida tornam-se seus membros... Que tétrica
equipagem!

Postado frente a mim, puxando a mesma corda,


Era-me companhia,
Joelho com joelho, o corpo de um sobrinho;
Mas nada me dizia.

"Tenho medo de ti, ó velho Marinheiro!" Por que, convidado, te


espantas?
Em vez de seus espíritos atormentados,
Ora os cadáveres estavam animados
Por legião de almas santas:

Pois quando amanheceu, os braços de seus caídos,


Ao mastro envolve o bando;
Das bocas se elevaram lentos sons suaves,
De seus corpos passando.

Voava à volta, à volta, cada som suave


E rumo ao Sol subia;
E lento eles tornavam - um por uma agora,
Agora em harmonia.
Ouvia às vezes, como que a chover da altura,
A voz da cotovia;
Às vezes toda a passarada em seu gorjear,
Gorjear que parecia encher o céu e o mar Com doce melodia!

E ora lembrava alguma flauta solitária,


Ora instrumentos agrupados;
Mais tarde se tornava um canto angelical,
Que os céus ouvem calados.

Cessou... Mas no velame, até o meio-dia, segue um murmúrio


ameno,
Igual ao do regato no frondoso junho, Que, oculto no terreno,
Embala a noite inteira os bosques a dormir,
Com seu canto sereno.

Até o meio-dia o navegar foi calmo...


Mas sem nenhuma brisa:
impelido por baixo, lenta e livremente
Nosso navio desliza.

Nove braças ao fundo, sob a sua quilha,


Do lar de névoa e neve
O Espírito se esgueira; é quem empurra o barco Num
movimento leve.
O canto do velame pára ao meio-dia, E o navio parar deve.

A pico sobre o mastro, o Sol o havia cravado


Naquele oceano manso;
Mas num minuto ele voltou a se mover,
Num breve e duro avanço...

À frente e atrás, não mais que o meio de seu casco,


Num breve e duro avanço.
Então, como um cavalo escarvador que é solto, Saltou
inesperado;
Fez que o sangue à cabeça me subisse, E caí desmaiado.

Quanto tempo durou o desfalecimento


Eu não sei afirmar;
Mas, antes de vivente vida novamente,
Eu pude ouvir e discernir em minha mente Um par de vozes no
ar.

"Este?" disse a primeira, "O homem então é este?


Por Cristo, que morreu por nós!
Sua mão funesta é que prostrou com uma besta
O inocente Albatroz.

O Espírito, que habita inteiramente só


O lar de névoa e neve,
Amava aquele pássaro que amava este homem
Que o mataria em breve."

A segunda, entretanto, era uma voz mais doce,


Doce quanto o maná;
Disse ela: "Este homem fez bastante penitência,
E muito mais fará".
VI

(Primeira Voz:)
"Mas diz-me, diz-me! Narra mais, e continua
Teu doce replicar...
Por que veleja tão veloz esse navio?
Que está fazendo o mar?"

(Segunda Voz:)
"A mar, imóvel como o escravo ante o senhor,
Sopro algum tumultua;
Seu grande olho brilhante imerso no silêncio
Volta ele para a Lua

Para o caminho descobrir, pois ela o guia


Em bonança e procela.
Eis ali, meu irmão! Quanta benevolência
Lhe transmite o olhar dela."

(Primeira Voz:)
"Porém o que, sem vento ou vaga, a esse navio
Ir tão depressa faz?"

(Segunda Voz:)
"Fendem-se à frente os ares para a sua passagem,
E fecham-se por trás.
Mas não nos retardemos!
Cada vez mais alto,
Foge, irmão - como eu fujo!
Sempre mais devagar irá navio andar, Despertado o Marujo."

Voltei a mim, e, como quando o tempo é calmo,


Seguia o barco avante;
Plácida a noite, era alta a lua; e vi reunidos
Os mortos nesse instante.

Todos de pé lá no convés, que deveria


Ossário se chamar;
Todos em mim fixavam seu olhar de pedra,
Que brilhava ao luar.

Jamais havia passado a angústia de sua morte


A dor, a maldição; Meus olhos de seus olhos não podia tirar
E erguer em oração.
E eis que me é dado ver de novo o oceano verde...

Rompera-se a magia;
Perscrutei o horizonte, mas eu vi bem pouco Do que ver se
podia...
Era eu como quem vai, com medo e com temor,
Por deserto lugar,

E, tendo olhado à pressa para trás, prossegue


Sem nunca mais olhar
Porque bem sabe que um demônio assustador
Pisa em seu calcanhar.

Entanto, logo sopra um vento sobre mim,


Sem moção, sem barulho;
O seu caminho não passava pelo oceano,
Na sombra ou no marulho.

Agitou-me os cabelos, abanou-me a face,


Como a aura faz na primavera...
Mesmo a mesclar-se estranhamente aos meus temores,
De boas vindas era.

Veloz, veloz voava a nave - suavemente


Velejando porém;
E branda, branda a brisa para mim soprava
Para mim, mais ninguém.

Ó sonho jubiloso! É o topo do farol O que avisto afinal?


Aquilo é promontório?
Aquilo é mesmo a igreja?
É o meu país natal?

Cruzando a barra, entrávamos no porto; e, em pranto,


A Deus orei assim:
Senhor, desperta a mim agora, ou então dá-me...
Dá-me o sono sem fim!
A baía brilhava como um claro espelho,
Tão lisa a face sua!
E por sobre a baía o luar se distendia,
E o reflexo da Lua.

Cintilava o penhasco - e assim a igreja no alto,


Que é seu coroamento;
E o plenilúnio mergulhava na quietude
O imóvel catavento.

E toda aquela alvura à muda luz fulgura;


E da luz vêm por fim
Vultos variados, que eram sombras, ostentando
As cores do carmim.

As sombras de carmim se apressam rumo à proa,


E se postam ali;
Nesse instante voltei os olhos ao convés...
Cristo meu! O que vi!

Cada corpo, estirado... exânime e estirado;


E - pela santa cruz!
Por sobre cada corpo havia um serafim,
Um homem todo luz.

Com as mãos acenando, o seráfico bando


Era visão superna!
Sinaliza para a terra em seu fulgor,
Cada um, uma lanterna.

E o seráfico bando as mãos ia acenando


Em silêncio perfeito...
Em silêncio; mas ó! caía este silêncio
Qual música em meu peito.

Nisto, o bater de remos e o brado do Piloto


Fazem que me alvorote...
Fui forçado a lançar os olhos para o mar,
E vi surgir um bote.

O Piloto, a seguir - com o ajudante seu


Ouvi se aproximar;
Era alegria - ó Deus do Céu! - que nem os mortos Podiam
arruinar.
E lá vi um terceiro: era o Ermitão piedoso!

Escutei sua voz,


A alta voz com que entoa os seus hinos de loa
Que nos bosques compôs.
Ela há de me absolver, ele há de me lavar Do sangue do
Albatroz.
VII

Vive o Ermitão piedoso nesse bosque anoso que desce para o


mar.
Quão doce eleva a sua voz altissonante!
Com marinheiros vindos de qualquer quadrante
Ele ama conversar.

De manhã se ajoelha, e ao meio-dia, e à tarde...


Tem fofo travesseiro:
O velho e apodrecido toco de carvalho
Que o musgo envolve inteiro.

O bote aproximou-se; e ouvi as suas vozes:


"Ora, é estranho, é irreal!
As belas luzes onde estão, que ainda há pouco
Nos faziam sinal?"

"Estranho, à fé!" disse o Eremita...


"Nem resposta Deram a nosso brado!
A tabica empenada! e vede o seu velame
Ressequido e esgarçado!

Nunca vi nada igual em minha vida, a menos que seja


comparado
Aos espectros das folhas mortas, essa turba que ao leito do
regato entope e rouba,
Quando na moita de hera a neve se demora
E o mocho pia para o lobo que devora Os filhotes da loba."

"Meu Deus! Meu Deus! Como é sinistro seu aspecto..."


(É do outro a voz aflita.)
"Estou morto de medo..."
- "Avante, avante!" clama Animado o Eremita.

O bote veio e se encostou junto ao navio:


Eu não falei nem me movi.
O bote veio e se encostou sob o navio;
E um som súbito ouvi.

N'água um surdo rumor, sempre mais alto e horrível,


O abismo todo inunda;
Ele corta a baía, ele alcança o navio,
Que como chumbo afunda.

Aturdido deixou-me o som alto e medonho, que sacudiu o oceano


e o céu;
Como afogado há sete dias (eu suponho)
Boiou o corpo meu;
Porém, com o Piloto, rápido qual sonho, No bote vejo-me eu.

No redemoinho do naufrágio o bote gira


Ao redor, ao redor;
Depois, silêncio... Exceto o monte, que defronte
Repetia o fragor.

Movi meus lábios... O Piloto deu um grito


E tombou desmaiado;
O Ermitão santo ergueu os olhos e rezou,
Ali mesmo, a seu lado.

Tomei os remos: o ajudante do Piloto


Se pôs a delirar;
Longo tempo arrastou ruidosa uma risada,
Os olhos a rolar;

"Ha! Ha!" disse ao cabo, "agora sei que o Diabo Também sabe
remar.
E por fim eis-me ali, pisando em terra firme na própria terra
minha!
Quando o Ermitão depois abandonou o bote,
De pé mal se sustinha.

"Absolve-me, santo homem!"


E o sinal da cruz o Eremita me fez.
"Diz me depressa," inquiriu ele, "diz, te peço:
Que espécie de homem és?"

Esta carcassa desde então foi torturada


Por atroz agonia;
E apenas quando eu relatava a minha história
Livre dela me via.

Sempre aquela agonia - e sempre em hora incerta


Retorna desde então;
E enquanto a minha história tétrica não conto,
Queima-me o coração.

Tenho um estranho dom do verbo; e, como a noite,


Errar de terra em terra é meu destino;
No momento em que vejo um rosto num lugar, Eu sei que é o
homem que precisa me escutar,
E meu caso lhe ensino.

Quem suporta o clamor que jorra aquela porta!?


Os comensais lá estão;
Mas no jardim a noiva e as damas de honra cantam
Sob o camaranchão;

Ó, escuta o humilde sino do ângelus que agora Me convida à


oração!
Convidado Nupcial!
Esta alma esteve só, Num largo, largo mar...
Era tão vasto e tão vazio, que o próprio Deus Lá não devia
estar.

Ó, bem mais doce do que as bodas para mim


Porque a maior doçura
É encaminhar-me em companhia para a igreja,
Na devoção mais pura!

É encaminhar-me em companhia para a igreja, na devoção mais


pura!
É encaminhar-me em companhia para a igreja
E orar à luz das velas, enquanto cada qual ao Pai dobra os
joelhos
Bons amigos, crianças, jovens, velhos e as alegres donzelas!

Adeus, adeus! Porém... acrescentar convém,


Convidado Nupcial:
somente reza bem aquele que ama bem
Homem, ave e animal.

Somente ora melhor quem sabe amar melhor


A tudo, grande e miúdo;
Pois o bondoso Deus, que tem amor por nós,
Ele fez e ama tudo.

E foi-se o Marinheiro - cintilante o olhar


E a barba branca e vasta;
E das portas do noivo o Convidado agora
Lentamente se afasta.

Caminhou como alguém a cujo senso aturdem


Desvario e ressábio...
E, na manhã seguinte, levantou-se um homem
Mais sombrio e mais sábio.
UMA TAÇA FEITA DE UM CRÂNIO
HUMANO
Lord Byron

"Não recues! De mim não foi-se o espírito...


Em mim verás — pobre caveira fria
— Único crânio que, ao invés dos vivos, Só derrama alegria.
Vivi! amei! bebi qual tu:

Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais val guardar o sumo da parreira


Do que ao verme do chão ser pasto vil;
— Taça — levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do reptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,


Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro …
Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo!


Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra, e ébria folgando profanar
teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida


Tanto mal, tanta dor aí repousa?
É bom fugindo à podridão do lodo
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!...
TREVAS
Lord Byron

Eu tive um sonho que não era em todo um sonho


O sol esplêndido extinguira-se, e as estrelas
Vagueavam escuras pelo espaço eterno,
Sem raios nem roteiro, e a enregelada terra
Girava cega e negrejante no ar sem lua;
Veio e foi-se a manhã
- Veio e não trouxe o dia;
E os homens esqueceram as paixões, no horror
Dessa desolação; e os corações esfriaram
Numa prece egoísta que implorava luz:
E eles viviam ao redor do fogo; e os tronos,
Os palácios dos reis coroados, as cabanas,
As moradas, enfim, do gênero que fosse,
Em chamas davam luz; As cidades consumiam-se
E os homens juntavam-se junto às casas ígneas
Para ainda uma vez olhar o rosto um do outro;
Felizes enquanto residiam bem à vista
Dos vulcões e de sua tocha montanhosa;
Expectativa apavorada era a do mundo;
Queimavam-se as florestas - mas de hora em hora
Tombavam, desfaziam-se - e, estralando, os troncos
Findavam num estrondo - e tudo era negror.
À luz desesperante a fronte dos humanos
Tinha um aspecto não terreno, se espasmódicos
Neles batiam os clarões; alguns, por terra,
Escondiam chorando os olhos; apoiavam
Outros o queixo às mãos fechadas, e sorriam;
Muitos corriam para cá e para lá,
Alimentando a pira, e a vista levantavam
Com doida inquietação para o trevoso céu,
A mortalha de um mundo extinto; e então de novo
Com maldições olhavam para a poeira, e uivavam,
Rangendo os dentes; e aves bravas davam gritos
E cheias de terror voejavam junto ao solo,
Batendo asas inúteis; as mais rudes feras
Chagavam mansas e a tremer; rojavam víboras,
E entrelaçavam-se por entre a multidão,
Silvando, mas sem presas - e eram devoradas.
E fartava-se a Guerra que cessara um tempo,
E qualquer refeição comprava-se com sangue;
E cada um sentava-se isolado e torvo,
Empanturrando-se no escuro; o amor findara;
A terra era uma ideia só - e era a de morte
Imediata e inglória; e se cevava o mal
Da fome em todas as entranhas; e morriam
Os homens, insepultos sua carne e ossos;
Os magros pelos magros eram devorados,
Os cães salteavam seus donos, exceto um,
Que se mantinha fiel a um corpo, e conservava
Em guarda as bestas e aves e famintos homens,
Até a fome os levar, ou os que caíam mortos
Atraírem seus dentes; ele não comia,
Mas com um gemido comovente e longo, e um grito
Rápido e desolado, e relambendo a mão
Que já não o agradava em paga - ele morreu.
Finou-se a multidão de fome, aos poucos; dois,
Dois inimigos que vieram a encontrar-se
Junto às brasas agonizantes de um altar
Onde se haviam empilhado coisas santas
Para um uso profano; eles a resolveram
E trêmulos rasparam, com as mãos esqueléticas,
As débeis cinzas, e com um débil assoprar
E para viver um nada, ergueram uma chama
Que não passava de arremedo; então alçaram
Os olhos quando ela se fez mais viva, e espiaram
O rosto um do outro - ao ver gritaram e morreram
- Morreram de sua própria e mútua hediondez,
- Sem um reconhecer o outro em cuja fronte
Grafara o nome "Diabo".
O mundo se esvaziara,
O populoso e forte era uma informe massa,
Sem estações nem árvore, erva, homem, vida,
Massa informe de morte - um caos de argila dura.
Pararam lagos, rios, oceanos:
Nada Mexia em suas profundezas silenciosas;
Sem marujos, no mar as naus apodreciam,
Caindo os mastros aos pedaços; e, ao caírem,
Dormiam nos abismos sem fazer mareta, mortas as ondas, e as
marés na sepultura,
Que já findara sua lua senhoril.
Os ventos feneceram no ar inerte, e as nuvens
Tiveram fim; a escuridão não precisava
De seu auxílio - as trevas eram o Universo.
OS VERSOS DA MORTE
Hélinand de Froidmont

A alegoria da Morte em pessoa tornou-se comum a nosso


universo mental, sob a forma dominante do esqueleto empunhando
a foice. Essa representação, em suas múltiplas variações, de que as
literaturas antigas não dão notícia, invadiu o imaginário coletivo
entre 1150 e 1250. Os Versos da Morte, do monge-poeta Hélinand
de Froidmont, escritos entre 1194 e 1197, constituem talvez o
primeiro testemunho literário de que se tem conhecimento: a morte
toma aparência de estranha personagem armada ora com uma
clava, ora com uma foice, atirando ora uma pedra com a funda, ora
uma rede, armando um laço ou atiçando com aguilhão envenenado.
Ela maneja singularmente seus instrumentos a pé ou a cavalo. O
poema de cinquenta estrofes de doze versos octossilábicos - aab
aab bba bba - difundiu-se muito rapidamente, passou a ser usado
em sermões, em invectivas que exortavam às cruzadas e logo foi
muito imitado e glosado.A tradução livre aqui transcrita foi feita a
partir da edição francesa modernizada por Michel Boyer e Monique
Santucci.
(Heitor Megale)

Morte, tu me obrigas a mudar


Nesta estufa em que meu corpo sua
Todos os excessos do século.
Tu levantas sobre todos sua clava,
Mas ninguém, no entanto, muda,
E ainda que mude, não se torna sisudo.
Morte, o prudente teme sua passagem.
Agora é ao próprio naufrágio
Que cada um se dirige.
Também eu já virei a página.
Já deixei prazeres e paixões.
Aquele que se não se enxuga para sua desgraça sua.
II

Morte, vai encontrar os trovadores


Que cantam amores vãos
Ensina-lhes, ó morte, a cantar
Como quem passa seus dias
Completamente fora do mundo
Para que não os faças cair.
Morte, tu sabes enfeitiçar
Aqueles que teu canto saber cantar
E que temem a Deus noite e dia.
E um coração que tal fruto
Podem gerar, em verdade,
Zomba bem, morte, de tuas peças.
III

Morte, tu, que em toda parte tens renda,


Que em todos os mercados tens as vendas,
Que despojas ricos e grandes,
Tu que sabes abater os fortes,
Tu que para os potentados fazes a lei,
Que reduzes honras a nada,
Que fazes tremer os mais poderosos,
Que fazes resvalar os mais prudentes,
Que buscas todos os caminhos,
Onde se atola frequentemente,
Saúda por mim meus amigos
Inspirando-lhes um santo temor.
IV

Morte, eu te envio a meus amigos,


Não como a inimigos
Para quem meu coração seria gelo,
Mas rogo a Deus, que me permitiu
Cumprir o que prometi,
Que tenham longa vida e a graça
De viver o tempo que Ele lhes destina.
Mas tu que, por diversão, fazes a caça
Àqueles que não têm medo nem cuidado,
Quão salutar é tua ameaça,
Porque teu medo purifica e depura
A alma como numa peneira.
V

Morte, que nos pegas a todos nos teus lagos,


E que em toda a parte pões regelo
A fim de nos fazer deslizar;
Se te odeio, não odeio aqueles
Para quem conduzes teus passos!
Quero consolá-los, expulsar
A vaidade de seu pensamento,
Vaidade que sabe persegui-los
Até dar-lhes xeque-mate.
Desde que prendes a alma no laço,
É ser louco não deixar
Logo lá todos seus jogos fantásticos.
VI

Morte, morte, toma tua trombeta e toca


A Pronleroi e a Péronne,
Que Bernardo a ouça primeiro,
Ele que quase tem sua coroa,
A menos que Deus o abandone
Como se rejeita uma falsa moeda.
Dize que sabes em que trilhas
Vão os jovens se perder,
Assim que Deus lhes dê saúde;
Que Ele lhes tire.
Eles vão rezar!
É louca maneira de apostar
Não temer a Deus a não ser que Ele ameace.
VII

Morte, vai saudar por mim


Meu muito caro companheiro Bernardo.
Por ele choro amargamente.
Dize-lhe que ele tarda, covarde,
A escolher a melhor parte
Mudando radicalmente,
Mas por que então tarda ele,
Se quer que Deus rapidamente
O ajude, por que servi-lo tarde?
É um louco aquele que espera,
Se não aproveita a ocasião,
Deus não terá por ele consideração.
VII

Morte, morte, saúda por mim


Renaud Da parte daquele que reina no alto
E que se faz temer e amar
Dize-lhe que esteja pronto - é preciso
Para afrontar o arco que não falta,
Sem matar-se, nem ferir-se.
Dia da morte, ó dia amargo,
Em que é preciso atravessar o mar,
Cujas ondas são de fogo ardente!
Em verdade, é ser louco varrido
Esperar que a morte
Faça seu ataque para se fortificar.
IX

Morte, dize ao tio e ao sobrinho


Que por um buraco estreito os dois
Deverão passar sem nada levar.
Os prudentes têm muito pouco,
Mas o avarento não está feliz,
Porque ele não sabe nada possuir.
A prudência, tu mostraste,
No ouro não saberia estar:
Sempre do lobo se vê o rabo.
Morte, que boa peça seria te pregar
Aceitar a pobreza e
Ir nu para ti quando tu queres.
X

Morte, tu que retomas as terras devolutas,


Tu que, na pedra de amolar, fazes
Afiar tua navalha para as toutinegras,
A sede dos ricos estancas,
A árvore carregada de frutos podas,
Para ver o rico despojado;
Tu te esforças para enganá-lo,
Tu o esmagas com teu macete, à sua ponte tiras as pranchas.
Morte, dize àqueles de Angivil ers
Que estás enfiando a agulha
Para coser suas mangas.
XI

A alma no teu espelho se mire,


Ó morte, quando lhe for preciso partir.
No teu livro se lê claramente
Que para Deus lhe é necessário escolher
A vida que faz mais sofrer
E renunciar aos prazeres.
Morte, dize a meus amigos como
Os eleitos do céu têm abrigo
Por terem sofrido o martírio.
Que cumpram então seu juramento;
A alma que a Deus mente se perde.
Que fosso entre fazer e dizer!
XII

Morte, tu que proíbes economizar


O dinheiro que se deve empregar
Antes de ouvir teus assaltos,
Quero aos príncipes te enviar
Que não sabem senão atormentar
Aqueles que padecem frio e calor.
Tu vingas os pequenos dos grandes
Aqueles que, suspensos nos ramos,
São Martinho não escutou.
Morte, fendes de alto a baixo com tua cutilada
Falcões, açores e gerifaltes Que vês no céu voar.
XIII

Morte, que atacas a mulher e o homem


Porque morderam a maçã.
Com toda a força tu nos flagelas;
Vai saudar a grande Roma
Que, a justo título, assim se chama
Porque ela rói, escorcha e péla.
Talha ao simoníaco um manto
De papa ou de cardeal; Roma
É o macete que a tudo espanca
Ela faz do sebo vela,
De um legado negro como fuligem
Faz uma estrela, onde tudo é igual.
XIV

Morte, faze selar teus cavalos


Para neles pôr os cardeais
Que brilham como carvão!
Apagado: que puras e brilhantes jóias!
Dize-lhes isto que fazes aos grandes
Que se agarram mais que cardos
Aos belos presentes e aos grandes dons
(É por isso que levam este nome)
Roma se serve de moedas falsas,
Miúdos e trocos,
Pelo dinheiro dá chumbo:
Como saber o que isto vale?
XV

Morte, grita a Roma, grita a Reims:


"Todos estais em minhas mãos,
Pequenos senhores ou potentados,
Abri vossos olhos, cingi vossos rins,
Antes que vos meta um freio
E vos faça gritar: ‘Ai de mim!’
Quando corro não é passo a passo!
Meus dados são todos de dois ou de ás,
A fim de que todos vossos golpes sejam vãos.
Muito gozado! Não brinqueis
Porque aquele me choca entre seus panos
Que se crê forte e sadio".
XVI

Morte, vai a Beauvais prontamente,


Na casa do bispo que tanto amo
E que me acolheu com amizade,
Dize-lhe que, inelutavelmente,
Seu dia virá, ele não sabe quando.
Que ele cuide então em expurgar
Sua vida, assim como verter a água de
Seu barco, e que fuja do pecado,
E que tome agora cuidado,
Porque, à sua porta, vens gritar:
"Poderias bem revirá-lo
E esvaziar sua bolsa na hora".
XVII

Ó morte, manténs presos os grandes,


Assim como nós, pobres campônios,
Para quem o mundo tem desprezo.
Saúda os prelados de Orleans
E de Noyon, que tanto amo;
Dize-lhes que têm menos prazo
Do que suas faces revelam.
Os longos prazos tu os reduziste,
Tu és astuta; que estejam desconfiados. surpreendes o
dorminhoco em seu leito,
Ao rico tomas o deduzido
E reduzes beleza a nada.
XVIII

Morte, tu que aos duques e reis


Abrevias os anos e os meses
Que não se estendam pouco ou muito,
Vai saudar Châlons e Blois
E Chartres pelos Thibaudois:
Louis e Renaud e Rotrou!
Morte, tu que tudo tomas e comes
Do que se colhe e se mói,
Dize a meus amigos - a estes três -,
Que nem Deus, nem padre perdoa
Aquele que não paga tudo
O que deve, quando ele cobra.
XIX

Morte, tu que surpreendes brutalmente


Aqueles que crêem viver muito tempo
E que pecam por esperar,
Convoca-me rapidamente
Nossos prelados indistintamente:
Lombardos, ingleses e os de França.
Por que guardam eles silêncio
Sobre estes leigos, cujo poder
Opõe-se a Deus abertamente?
O bastão deles serve para a vingança;
Se têm chifres, penso que é para
Que golpeiem duramente.
XX

Morte, que nunca estarás cansada


De revirar situações e posições,
Como gostaria de aos dois reis
Dizer, se tivesse para isso ousadia,
Como com tua faca de caça
Raspas aqueles que têm o que raspar.
Os alto-colocados, por ti decaem,
Reduzes a cinza os reis,
Estendes redes e armadilhas
Sob os passos daqueles que tu vês
Atravessar, para impor sua lei,
Sua sombra e deixá-la no lugar.
XXI

Morte, tu abates num só dia


O rei ao abrigo de sua torre
E o pobre em sua aldeia.
Tu vagas sem fim noite e dia
E exortas cada um para
Que dirija a Deus seus atrasados.
Morte, manténs a alma em servidão
Até que ela se livre
E pague sua dívida sem retorno.
Tomar emprestado à alma é pouco prudente.
Ela não tem nada para penhorar,
Pois está nua no último dia.
XXII

Ó morte, tu vens de todas as partes


Nos assediar: teu estandarte
Tremula sobre o universo inteiro,
Ninguém jamais te faz frente
Pela força ou pela astúcia, porque
Tu sabes muito bem nos aterrorizar.
Estejas perto ou longe
Com a funda ou com a roqueira,
Tu destróis todos os nossos anteparos;
Os cargos, tu os calcas aos pés:
Tu preparas o caixão antes, lá
Onde é esperado muito mais tarde.
XXIII

A morte, para os maus amarga,


Para os bons doce e indulgente,
Evita um, o outro ela persegue.
A idade não tem nada com o assunto:
Levando um filho antes do pai,
Colhendo uma flor antes do fruto,
Ela impede que se tenha um apoio
E que a alma obtenha quitação,
Porque ela ataca primeiro.
A morte, como um ladrão, de noite,
Tira o que dorme do leito
Para o abater à sua maneira.
XXIV

A morte, cujo nome está inscrito


Sobre as faces decrépitas,
Esconde-se entre os jovens,
Mas mais ainda ela goza
De todos aqueles que lhe dizem: "Foge!"
Todos estes elegantes mancebos
Que caçam com cães, com aves
E fazem homenagem aos bons pedaços
Que, com o menor descuido, põem a perder.
A morte sobre eles joga com a faca
E talha para eles tais mantos,
Que é noite ao meio-dia.
XXV

Morte, viemos todos à espera


Que tu reclames tua renda,
Porque nos amarraste as mãos.
Tu ceifas como flores nascentes
Aqueles que, aos vinte ou trinta
De sua juventude, são tão vãos.
Quando teu dardo pica um janota
Mais temível é teu veneno
Que as aranhas de Tarento.
É com razão que se tem medo de ti,
Porque aquele que o prazer vence
Exila sua alma gemebunda.
XXVI

A morte, diante da alma de elite,


Deve aceitar um limite
A seu poder e a seus direitos,
Porque a alma santa está logo quite;
Também é preciso que se pague,
Enquanto se pode, aquilo que se deve.
É na alma que está sem fé
E cujo corpo age sem lei
Que a morte, para sempre, habita.
Cada um tenha, pois, piedade de si
E siga logo esta via
Para evitar a morte súbita.
XXVII

A morte assim é chamada


Quando a vida não está depurada
Ao deixar o corpo;
Para uma alma assim na ida,
Melhor seria não ter nascido,
Porque encontra mau tempo fora.
O temor e um amor muito forte
De Deus é o maior tesouro
Que um jovem coração pode possuir,
Porque a alma, seja qual for o corpo,
Não esquece este dom; à aurora,
Está nutrida e dessedentada.
XXVIII

O que vale o que o século faz?


A morte logo tudo desfaz
E não cuida refazê-lo.
O que vale o que o avarento põe
De lado? A morte o subtrai.
Em nenhum lugar ela perde:
Os tagarelas, a morte os faz calar;
Os gozadores, a morte os aterra;
A morte muda em inverno o verão.
Para a morte, o saco e o silício
Valem tanto quanto casacos de pele.
A morte a todos acusa.
XXIX

Que valem beleza e riqueza? Que vale a honra?


A grandeza o que é?
Pois a morte, bem à sua maneira,
Faz sobre nós chuva e seca,
Pois que de tudo ela é senhora.
O que se preza e o que se despreza?
Aquele que ela não aterroriza
É a quem, primeiro, a morte visa
E é a ele que ela se dirige:
Corpo bem alimentado e carne requintada
Fazem dos vermes e do fogo camisa:
Mais se desfruta, mais se machuca.
XXX

A morte prova que, seguramente,


Pouco e muito valem o mesmo
Que aquilo que morre e resseca,
E mostra que tudo é nada:
O que a voracidade toma,
O que a gula lambe.
É a morte também que impede
O santo de pecar: à sua flecha
Ele não entrega jamais o flanco.
Para a morte, tudo é igual: a manjedoura
E o celeiro, salmão e molusco; aos prazeres ela diz:
"Vento".
XXXI

A morte nos faz cair em seu alçapão,


É uma mão que nos agarra
E nunca mais nos solta.
A morte para todos faz capa escura,
E faz da terra uma toalha;
Sem distinção, ela nos serve,
Põe os segredos a descoberto,
A morte libera o escravo,
A morte submete rei e papa
E paga a cada um seu salário,
E devolve ao pobre o que ele perde
E toma do rico o que ele abocanha.
XXXII

A morte a cada um mede


Seu devido, com mão justa e segura
E pesa tudo a justo peso,
A morte repara as injúrias
E põe o orgulho em podridão
E faz perder a guerra aos reis;
A morte faz respeitar as leis,
A morte muda o calor em frio,
A morte faz guerra à usura.
A morte, à sopa e às ervilhas,
Dá o sabor de baleia
Para os monges que fogem da luxúria.
XXXIII

A morte acalma os furiosos

E arrefece os excitados;
Os combates, a morte os termina
E põe em cruz os falsos cruzados;
A morte resolve todos os processos
E faz encalhar os acordos,
E distingue rosas de espinhos,
Palha de grão, farelo de farinha
E vinhos puros de vinhos aguados,
Seu olhar atravessa as cortinas,
Só a morte sabe e advinha
Exatamente nossas qualidades.
XXXIV

Morte, infamado seja quem não te teme,


Mas ainda mais quem nada receia
Tanto quanto a hora do passamento.
A vida sempre tem um fim,
Querer prolongá-la é inútil,
Porque a morte a encurtará.
Os loucos dizem: "Não pensemos
No momento em que a morte virá,
Colhamos, colhamos a hora que chega,
Que importa o que depois virá?
A morte é o fim do combate:
A alma e o corpo não são mais nada".
XXXV

Velho argumento que se adianta!


Era ele toda a ciência
Da antiga filosofia
De onde nasceu a infame crença
Que tira a Deus sua providência
E diz que não há outra vida.
Se se escuta esta opinião
É melhor fazer loucuras
Do que viver na continência,
Mas se não há outra vida,
Entre o ser humano e o porco
Não há diferença.
XXXVI

Se não há outra vida, mais vale


Então deixar o campo livre
Aos prazeres, e gozar sem remorsos.
Viva então a situação do porco,
Porque todo pecado é bom e belo!
Se a virtude é um tesouro,
Que farão estes monges então
Que, por Deus, atormentam seus corpos,
Que beberam o amargo a baldes cheios?
Se se está quite após a morte,
Eles escolheram o mau posto
Todos os da ordem de Cister!
XXXVII

Se Deus nada retribui, ele se vende


Muito caro aos pobres monges brancos.
Os monges gordos estão melhor aquinhoados,
Eles rompem seus compromissos
E fazem procissão, muitas vezes,
Aos bons pedaços e aos bons leitos.
Certamente, como São Paulo diz
- Ele, de quem cada palavra é sentida:
"Suportar por Deus os tormentos
No lugar de gozar a vida
É a saída de um pobre de espírito,
Se é tudo o que se espera".
XXXVIII

Se não há recompensa
Para aquele que faz penitência
E que, por Deus, se aniquila
E que suporta o sofrimento
Para viver na temperança,
É muito louco o nobre que
Se aviltou para servir a Deus,
Que, para ganhar o paraíso,
Se enterrou no silêncio.
São Lourenço foi então estúpido, ele
Que na grelha foi colocado
E assado nesta esperança.
XXXIX

Eles mostraram, todos esses santos,


Que sofreram males sem fim,
Que o que Deus fala não é fábula,
E o que a Bíblia pintou
Sobre a vida eterna é certo
E mais verdadeiro impossível.
Ó testemunho irrecusável,
Quantos tormentos inesgotáveis
Cairão sobre aqueles que a carne vence.
Eles sentam-se à grande mesa,
Príncipes do céu e condestáveis:
Quem busca a honra a alcança.
XL

Ó morte, se fosse possível


Os ricos pensarem em ti,
Ocupar-se-iam menos com dinheiro,
Amariam menos sua carcaça
E não esfolariam, estes rapaces,
Com suas unhas, os pobres.
Por que tu, morte, tu fincas teus dentes
Mais forte e mais profundamente
Sobre aqueles que, sem trégua, atormentam
Os abandonados a todos os ventos,
Sugam o sangue dos indigentes
E se mostram os mais vorazes.
XLI

Morte, tu desafias e combates


Aqueles que nenhum cuidado têm pelas leis,
E entregam-se à pilhagem.
Incriminas os homens de rapina
Que, em fazer sofrer, sentem prazer;
No entanto, doravante, é o costume,
E os senhores são disso a imagem:
Esta tormenta, esta tempestade
Faz com que sua alma se desencaminhe.
Que prova de grande coragem
Tirar do pobre vantagem
E de seu corpo largar correias!
XLII

Morte, tu corres para onde o orgulho esfumaça.


Para apagar o que ele acende,
Tu mergulhas tuas unhas agudas
No rico que esquenta e suga
O sangue do pobre e que espuma.
Riqueza, por que tu me enganas?
Mais se tem, menos se está farto,
Mais se tem, mais se é guloso,
Porque agora é o costume:
Mais se é poderoso e opulento,
Mais se é ávido e ambicioso.
Fica-se gelado de se ter plumas demais.
XLIII

Os melhor vestidos e melhor aquinhoados


Despojam os mais desprovidos,
Mas isto prova, à evidência,
Que Deus , se ele existe, pune
E julga grandes e pequenos;
Assim que se deixa esta existência
E se morre, velho ou criança,
A alma reencontra na balança
Todo bem e todo mal cometido.
Lá, ela aprende, por experiência,
Que Deus tem muitas exigências:
Não é para rir que se vive.
XLIV

Deus, que nos fez separadamente,


É, ora injusto e pouco clemente
Para o pobre, ora seu vingador.
Todos vêem bem que os maus
Condenam os bons frequentemente:
São Pedro suportou os furores
De Nero, que foi grande pecador;
Nero, debochado e mentiroso,
Teve, em abundância,
Ouro e riqueza; o santo,
Embora tenha sido pescador,
Continuou sempre um indigente.
XLV

Suas vidas foram totalmente contrárias:


Um teve verão, outro, inverno,
Um viveu no paraíso,
O outro viveu no inferno,
Um não conheceu nunca os ferros,
O outro foi posto nas grades,
Um de todos os bens gozou,
O outro não teve senão desprezo.
Deus! aquele abutre tomou em suas garras
Este cordeiro e o engoliu!
Tu não serias justo, se
Não fizesses justiça a Pedro.
XLVI

Mas quem pede um julgamento


Mais claro do que aquele que se faz
Em pleno mercado, em plena feira?
A igreja sabe, há muito tempo,
Qual é o bom, qual o mau,
Numerosos milagres mostram a glória
Que um conquistou por sua vitória,
E isto mesmo nos faz crer que o outro
Está reduzido, agora
Que está na miséria, a beber
O fel na masmorra escura,
Onde ninguém sabe sua posição.
XLVII

Este último que, qual tubarão


Retirou antecipadamente tantas moedas de ouro
Dos tesouros espalhados pelo mundo,
E que fazia, em seus festins,
Servir peixes os mais finos:
Mugens, salmões, esturjões, barbuses,
Que a nenhum lugar se dirigia
Jamais, sem pelo menos mil carruagens,
Não amando senão a seu corpo vil e vão,
Queima no inferno agora, porque
Não teve jamais para com Deus atenção:
Mau caminho para se chegar a um bom termo.
XLVIII

Se os ricos e os poderosos,
Que causam tantos tormentos,
Passassem tão depressa a ponte,
Como aqueles que, humilhando-se,
Ganham o céu penosamente,
À força de privações,
Eu afirmaria, em pleno sermão:
"Deus não é justo, é traidor!"
Mas é falso, porque seguramente
Os grandes peixes um dia serão
Julgados, eles que dos pequenos fazem
Seu alimento, impunemente.
XLIX

É a sorte comum: espera-se


A morte e depois o juízo.
O único remédio é ainda
Lavar-se completamente,
Sem tardar, arrependendo-se
Do que causa remorsos.
Quem não o faz antes da morte,
Lamentar-se-á muito tarde e sem razão,
Quando vier o castigo.
Se, antes de sair do porto,
Calafeta-se a nave, então
Navega-se serenamente.
L

Ah! Deus! por que,


Por qual mistério
Desejamos tanto a carne
Que corrompe tanto nossa natureza?
Depois isto se paga tão caro!
É uma aposta funesta
Quando a alma toma emprestado à usura
O fel que sempre dura
Por um prazer tão efêmero!
Foge, gula! Foge, luxúria!
De pedaços assim tão caros não cuido,
E minha sopa me é mais cara!
O HEAUNTONTIMOROUMENOS
Charles Baudelaire

(À J.G.F.)

Sem cólera te espancarei,


Como o açougueiro abate a rês,
Como Moisés à rocha fez!
De tuas pálpebras farei,
Para meu Saara inundar,
Correr as águas do tormento.
O meu desejo ébrio de alento
Sobre o teu pranto irá flutuar

Como um navio no mar alto,


E em meu saciado coração
Os teus soluços ressoarão
Como um tambor que toca o assalto!

Não sou acaso um falso acorde


Nessa divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?

Em minha voz ela é quem grita!


E anda em meu sangue envenenado!
Eu sou o espelho amaldiçoado
Onde a megera se olha aflita.

Eu sou a faca e o talho atroz!


Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz!

Sou um vampiro a me esvair


- Um desses tais abandonados
Ao riso eterno condenados,
E que não podem mais sorrir!

***

Glossário:
Heautontimoroumenos: carrasco de si mesmo;
Rês: Qualquer quadrúpede usado na alimentação humana;
Alento: Bafo, Hálito, Respiração.
SPLEEN (LXXV)
Charles Baudelaire

Pluviôse, contra toda a cidade irritado,


De sua urna verte um frio tenebroso
Sobre os que moram sós no cemitério ao lado,
E entorna a morte no subúrbio nebuloso.

Meu gato em busca de onde estar aconchegado


Agita inquieto o corpo flácido e asqueroso;
A alma de um velho poeta erra pelo telhado,
Com lúgubre voz de um fantasma brumoso.

O bordão se lamenta, e a tíbia acha de lenha


Acompanha em falsete a pêndula roufenha,
Enquanto num baralho, entre ácidos odores,
Herança de uma velha hidrópica e entrevada,
Um valete e uma dama, em sinistra jogada,
Vão lembrando entre si seus defuntos amores.

***
Glossário:
Pluviôse: mês das chuvas no calendário adotado durante a
Revolução Francesa.
SPLEEN(LXXVI)
Charles Baudelaire

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.


Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,

Guarda menos segredos que o meu coração.


É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
- Eu sou um cemitério odiado pela lua,

Onde, como remorsos, vermes atrevidos


Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,

Onde os tristres pastéis de um Boucher desbotado


Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,

O tédio, taciturno exílio da vontade,


Assume as proporções da própria eternidade.
- Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,

A dormir nos confins de um Saara brumoso;


Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas aos raios do sol a se pôr.

***
Glossário:
François Boucher: pintor e gravador francês.
SPLEEN (LXXVII)
Charles Baudelaire

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,


Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.

Nada o pode alegrar, nem caça, nem falção,


Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.

Em tumba se transforma o seu florido leito,


E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.

O sábio que ouro lhe fabrica desconhece


Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,

Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,


Em vez de sangue flui a verde água do Letes.

***
Glossário:
Letes: um dos rios do inferno. Sua água fazia esquecer o
passado àqueles que dela bebessem.
SPLEEN (LXXVIII)
Charles Baudelaire

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa


Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna em calabouço horrendo,


Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
As asas tímidas nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Os sinos dobram, de repente, furibundos


E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com vez recalcitrante.

- Sem música ou tambor, desfila lentamente


Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.
A HOWARD PHILLIPS LOVECRAFT
Clark Ashton Smith
Tu, que de montes, campos e cidades
ancestrais foste amante,
como vieste parar assim tão longe
de Providence, às portas do levante?

Vens acaso buscar


mais antigos destinos –
alguma Arkham das mágicas primevas;
ou, com os teus felinos,
algum bosque secreto e novo exploras,
para além da muralha dos sentidos,
onde o sol-pôr e a primavera encantam
os caminhos que ligam, eternais,
este Planeta ao éter
por dimensões obscuras, nemorais?

Ou a Chave de Prata
te escancarou, exata,
sonhos e espantos de algum mundo posterior?

Ou retornaste ao teu lar em Ulthar ou Pnath?


Ou o altíssimo rei da distante Kadath
de volta convocou seu sábio embaixador?

Ou o negro Cthulhu deu o sinal


que te converte agora em conselheiro
daquela fortaleza inaudita, abissal,
onde os Antigos dormem longamente,
até que algum tremor venha, brutal,
do sono despertar seu continente?

Ó Deus! Tão poucos dias,


e já andaste tão longe,
seguindo aquelas fabulosas vias
onde os míticos mortos perambulam!

E resta-nos a dor, e este mistério...

E entretanto de todo não partiste,


nem no sonho e na poeira te sumiste:
porquanto, ainda neste monte ocíduo
de Averoigne que jamais
visitou o teu corpo material,
encontro algum resíduo
de ti, sensível, justo –
algum gracioso indício, imorredouro e augusto.

Para ti mais brilhante o gramado vernal,


mais mágico e sombrio o rochedo do Druida;
e em minha mente, como em mágico cristal,
te vejo para sempre despontar –
e no livro do espírito
tuas runas jamais haverão de passar.
ADEUS!
August Friedirch Schmidt

São entenderás nunca os motivos que me fizeram atravessar


A grande noite, a fria noite e a tua indiferença.
Vim porque a minha hora estava se tornando longa demais;
E o frio já me gelava
Vim porque o escuro estava pesando sobre os meus olhos
E o meu ser estava encolhido, longe da morte e da vida Longe
de tudo!
Vim porque não podia, porque era um condenado Porque
precisava de ti.
Vim porque me prometeste um dia o sossego e eu acreditei nas
tuas palavras.
Vim porque não podia mais!
Sei porém que és pior do que o escuro e o frio
Sei que és mais terrível do que a solidão
Sei que és o meu próprio vazio
E que o teu mundo não é o meu.
Sei o que pensaste quando me viste entrar.
Eras a minha ilusão final
Hoje nem mais meu desespero tu és.
Minhas palavras te são indiferentes
Eu te sou indiferente.
Mas antes de partir quero te dizer adeus!
Quero demorar-me sobre o teu túmulo porque é o meu túmulo
Quero chorar sobre o teu corpo porque é meu corpo
Quero demorar-me um minuto ao teu lado
Porque és eu mesmo, oh!
Minha sombra, meu engano e minha dor!
OS CORVOS
Arthur Rimbaud

Senhor, quando os campos são frios


E nos povoados desnudos
Os longos ângelus são mudos...
Sobre os arvoredos vazios
Fazei descer dos céus preciosos
Os caros corvos deliciosos.
Hoste estranha de gritos secos
Ventos frios varrem nossos ninhos!

Vós, ao longo dos rios maninhos,


Sobre os calvários e seus becos,
Sobre as fossas, sobre os canais,
Dispersai-vos e ali restais.
Aos milhares, nos campos ermos,
Onde há mortos recém-sepultos,
Girai, no inverno, vossos vultos
Para cada um de nós vos vermos,
Sede a consciência que nos leva,
Ó funerais aves das trevas!

Mas, anjos do ar, no alto da fronde,


Mastros sem fim que os céus encantam,
Deixai os pássaros que cantam
Aos que no breu do bosque esconde,
Lá, onde o escuro é mais escuro,
Uma derrota sem futuro.
O BARCO ÉBRIO
Arthur Rimbaud

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,


Sentime libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,


Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,


No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava enquanto as Penínsulas em pânico
Viam turbilhonar marés de verde e anil.

O vento abençoou minhas manhãs marítimas.


Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!
Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu.
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.

Então eu mergulhei nas águas do Poema


Do Mar, sarcófago de estrelas latescente,
Devorando os azuis onde às vezes - dilema
Lívido - um afogado afunda lentamente;

Onde, tingindo azulidades com quebrantos


Em ritmos lentos sob o rutilante albor,
Mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos,
Fermentam de amargura as rubéolas do amor!

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,


Ressacas e marés: conheço o entardecer,
A aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,


Iluminando os longos túmulos glaciais;
Como atrizes senis em palcos cabalísticos,
Ondas rolando ao longo os frêmitos de umbrais!

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas


Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

Por meses eu segui, tropel de vacarias


Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Ocenos sem peias!

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas


Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas


Onde apodrecem Leviatãs distantes!
O desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!


Naufrágios abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

Ah! Se as crianças vissem o dourar das ondas,


Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
- As espumas em flor minaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

Mártir de pólos de zonas misteriosas,


O mar a soluçar cobria meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
E eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

Quase ilha a balouçar entre borras e brados


De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, decendo a contrapelo.

Mas eu, barco perdido em baías e danças,


Lançado no ar sem pássaros pela torrente,
De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de aguardente;

Livre, fumando em meio às virações inquietas,


Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Líquens de sol e vômitos de azul escuro;

Prancha louca a correr com lúnulas e faíscas


E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçam em riscas
O céu ultra-marino e seus funis de bruma;

Eu que tremia ouvindo, ao longe, a estertorar,


O cio dos Behemóts e dos Maelstroms febris
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!
Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas
Que o delírio dos céus desvela ao viajor:
- É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

Sim, chorar eu chorei! São mornas as auroras!


Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.

Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

Da Europa a água que eu quero é só o charco


Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
Trêmulo como a asa de uma borboleta.

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras


Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

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