Terror Gótico - Varios Autores
Terror Gótico - Varios Autores
Terror Gótico - Varios Autores
TERROR GÓTICO
Aos amantes do pavor, do horror,
do lúgubre, do fantástico e do pesar,
habitantes das charnecas escuras,
casas isoladas e montanhas enevoadas,
dos céus cinzentos e dos negros mares
Saudações!!!
CONTOS
A TRISTE HISTÓRIA DE
THANGOBRIND, O JOALHEIRO
Lord Dunsany
[C.L. Moore]
Em meio à névoa do sono, George Campbel abriu os olhos e
ficou espiando durante alguns minutos, através da abertura na tenda,
para a noite pálida de agosto, erguendo-se apenas o bastante para se
perguntar pelo que o teria despertado. Havia nesses ares claros e
cortantes das florestas canadenses um soporífico tão potente quanto
qualquer droga. Campbel jazeu imóvel por um momento,
atravessando de volta, lentamente, as fronteiras deliciosas do sono,
consciente de uma agradável fadiga, uma sensação incomum de
músculos bem usados – repouso, após a labuta, na noite doce e clara
da floresta.
Voluptuosamente, enquanto sua mente afundava de novo no
esquecimento, ele pensou mais uma vez que três longos meses de
liberdade o aguardavam – libertação das cidades e da monotonia,
libertação do magistério e da universidade e dos estudantes sem
quaisquer resquícios de interesse pela geologia com a qual ele
ganhava seu sustento buzinando-a todos os dias em seus ouvidos
obstinados. Libertação do...
Súbito, a deliciosa sonolência se despedaçou à sua volta. Lá
fora, em algum lugar, um som de lata batendo contra lata invadiu sua
paz. George Campbel se ergueu de um salto e apanhou a lanterna.
Então sorriu e baixou-a outra vez, forçando os olhos através da fraca
luminosidade noturna para constatar que, lá fora, um animalzinho
negro e anônimo da noite vagueava em meio aos vasilhames caídos.
Ele esticou um braço comprido e buscou uma pedra em frente à
porta da tenda para jogar. Seus dedos se fecharam em torno de uma
pedra grande, e ele recuou a mão no movimento de lançar.
Mas nunca a lançou. A coisa que encontrara na noite era
bastante estranha. Quadrada, lisa como cristal, obviamente artificial,
com as arestas arredondadas. A estranheza das superfícies da rocha
em seus dedos era tão notória que ele apanhou de novo a lanterna e
acendeu a luz sobre o objeto que tinha nas mãos.
Toda a sonolência se esvaiu quando ele observou o que tinha
encontrado ao tatear distraidamente na escuridão. Era transparente
como cristal de rocha aquele cubo esquisito e polido. Quartzo, sem
dúvida alguma, mas não na sua forma hexagonal cristalizada, como é
comum. De alguma maneira – ele não podia imaginar o método –,
tinha sido esculpida em forma de um cubo perfeito, com as faces
desgastadas de cerca de quatro polegadas. Pois estava incrivelmente
desgastado. O cristal, bastante duro, tornara-se arredondado até que
seus cantos quase desaparecessem e o objeto começasse a assumir
os contornos de uma esfera. Eras e eras de desgaste, anos quase
incontáveis deviam ter transcorrido sobre aquela coisa estranha e
clara.
Mas o mais curioso era aquela forma que ele podia entrever
obscuramente no coração do cristal; pois incrustado no centro havia
um pequeno disco feito de uma substância clara e desconhecida, com
alguns caracteres entalhados sobre a superfície que o cristal
recobria. Caracteres em forma de cunha, a evocar vagamente a
escrita cuneiforme.
George Campbel franziu o cenho e, perplexo, observou de perto
o pequeno enigma que tinha nas mãos.
Como uma coisa daquelas podia ter sido incrustada dentro do
puro cristal? Uma lembrança remota de antigas lendas que diziam
ser o cristal de quartzo gelo que se solidificara demais a ponto de
não poder derreter novamente flutuou em sua mente. Gelo – e
caracteres cuneiformes – sim, não tinha esse tipo de escrita se
originado entre os sumérios, os quais vieram do norte nos
remotíssimos começos da história para se estabelecer no vale da
Mesopotâmia primitiva? Então, retomou o controle sobre seus
sentidos e sorriu. O quartzo, por certo, tinha se formado nos
períodos geológicos mais primários, quando não havia nada em parte
alguma além de impactos e rochas empilhadas. O gelo não viria
senão dezenas de milhões de anos depois de aquela coisa ter se
formado.
E, no entanto, aquela escrita... Feita à mão, certamente,
embora os caracteres não fossem familiares a não ser pela vaga
sugestão das notações cuneiformes. Ou poderia ter havido, no mundo
paleozóico, seres capazes de linguagem e em condições de gravar
aquelas cunhas intrigantes sobre o disco no centro do quartzo? Ou...
Poderia uma coisa daquelas ter caído lá do espaço, como um
meteoro, sobre o rochedo informe de um mundo ainda não
solidificado? Poderia...
Então ele se conteve e sentiu seus ouvidos arderem sob as
imprecisões de sua própria imaginação. O silêncio e a solidão e a
estranha coisa em suas mãos estavam conspirando para pregar
peças em seu senso de realidade. Ele deu de ombros e depositou o
cristal na beirada do colchão, apagando em seguida a luz. Talvez a
manhã e uma cabeça fresca pudessem trazer-lhe uma resposta para
as questões que agora lhe pareciam insolúveis.
Mas o sono não veio facilmente. Por uma coisa, ele percebeu,
quando apagou a luz: era que o pequeno cubo tinha brilhado por um
momento, como se contivesse luz própria, antes de se desvanecer na
escuridão circundante. Ou talvez ele estivesse errado. Talvez
tivessem sido apenas os seus olhos ofuscados que deram a impressão
de ver a luz desaparecer devagar, bruxuleando nas entranhas
enigmáticas do objeto com uma persistência esquisita.
Ele permaneceu ali, inquieto, por um longo tempo, a revolver e
a revolver em sua mente essas perguntas sem resposta. Havia
alguma coisa no cubo de cristal que, para além de um passado
imensurável – talvez da aurora mesma de toda história –, propunha
um desafio que não o deixaria dormir.
[A. Merritt]
Permaneceu ali, pareceu-lhe, durante horas. Sua mente fora
capturada pela luz hesitante, pela luminescência que se mostrara tão
relutante em desaparecer. Era como se alguma coisa no coração do
cubo tivesse despertado, se mexesse preguiçosamente, se tornasse
subitamente alerta... e começasse a observá-lo.
Pura fantasia, tudo isso. Ele se agitou, impaciente, e acendeu a
luz sobre o relógio. Perto de uma hora; três horas mais, e já seria
manhã. O facho baixou e caiu sobre o morno cubo de cristal. Ele o
manteve em foco por alguns minutos. Então o tomou e o observou.
Não havia dúvidas agora. Quando seus olhos se acostumaram à
escuridão, ele viu que o estranho cristal brilhava com diminutas luzes
furtivas em seu interior, como se fossem fios de relâmpagos
safirinos. Estavam bem no centro e pareceram-lhe provir do disco
pálido com suas gravações perturbadoras. E o disco ele mesmo
começava a crescer... as marcações mudando de forma... O cubo
estava crescendo... Seria uma ilusão gerada pelos pequeninos
relâmpagos?...
Ouviu um som. Era quase o fantasma de um som, tais como os
fantasmas de cordas de harpas tangidas por dedos fantasmais. Ele se
curvou mais. Provinha do cubo...
Havia um vagido na vegetação rasteira, uma agitação de corpos
e um lamento agonizante, tal como o de uma criança que nasce e que
logo se cala. Alguma pequena tragédia de selvageria – matador e
presa. Ele deu alguns passos em direção ao bulício, mas não pôde ver
nada. Tomou de novo a lanterna e iluminou a tenda. Sobre o solo
havia uma pálida cintilação azulada. Era o cubo. Ele se abaixou para
apanhá-lo; então, obedecendo a um aviso obscuro, retirou de volta a
mão.
E de novo ele viu: o brilho decaía. Os pequenos raios cor de
safira brilhavam intermitentemente, recuando de volta para o disco
de onde tinham vindo. Não havia nenhum som.
Ele se sentou, observando a luminescência aumentar e diminuir,
aumentar e diminuir, mas cada vez se tornando mais turva. Ocorreu-
lhe que seriam necessários dois elementos para produzir o
fenômeno. O próprio raio elétrico e a sua atenção absorta. Sua
mente devia viajar ao longo do brilho, prender-se no coração do
cubo, cuja pulsação oscilava, até que... O quê?
Ele sentiu um arrepio de vida, como se proveniente do contato
com alguma coisa alienígena. Era alienígena, ele sabia, não vinha
desta Terra. Não da vida desta Terra. Ele conteve um tremor,
apanhou o cubo e o levou para dentro da tenda. Não era quente nem
frio; a não ser pelo peso, ele não teria consciência de o estar
segurando. Colocou-o sobre a mesa, mantendo o facho da lanterna
desviado dele; então foi até a porta da tenda e fechou o cortinado.
Retornou à mesa, puxou a cadeira de acampamento, e assestou
o facho diretamente sobre o cubo, dirigindo-o o máximo que pôde
para o seu centro. Dirigiu toda a sua vontade, toda a sua
concentração, por meio dele, enfocando a vontade e a vista sobre o
disco tal como fizera com a luz.
Como se obedecendo a um comando, os relâmpagos safirinos
explodiram. Saltaram do disco para o corpo do cubo de cristal; em
seguida ricochetearam de volta, banhando todo o disco e as
gravações. De novo estas ultimas começaram a se transformar,
mudando, movendo-se, avançando e recuando sob a claridade azul.
Não eram mais cuneiformes. Eram coisas – objetos.
Ouviu a música murmurante, o dedilhar de cordas de harpa. O
som se tornou mais e mais alto, e agora todo o corpo do cubo vibrava
ao ritmo delas. As faces do cristal começaram a amolecer, tornando-
se nebulosas, como se formadas de uma névoa de diamantes. E o
próprio disco estava crescendo – as formas mudando, dividindo-se e
multiplicando-se, como se alguma porta tivesse sido aberta e
multidões de fantasmas entrassem por elas. Mais e mais brilhante se
tornava a pulsação da luz.
Ele sentiu um pânico repentino, tentou desviar sua vista e sua
vontade, deixou cair a lanterna. O cubo não precisava mais do
facho... e ele não podia se esquivar... não podia se esquivar? Ora, ele
mesmo estava a ser sugado por aquele disco que era agora um globo
dentro do qual dançavam formas inomináveis ao som de uma música
que banhava o globo com um brilho constante.
Não havia tenda. Havia apenas uma vasta cortina de névoa
cintilante atrás da qual refulgia o globo... Ele se sentiu mergulhar na
névoa, tragado por ela como por um vento forte – mergulhar
diretamente no globo.
[H. P. Lovecraft]
Quando a luz nevoenta dos sóis azulados se tornou mais intensa,
os contornos do globo oscilaram à frente e se dissolveram num caos
pululante. Seu palor e seu movimento e sua música – tudo se
misturou numa névoa envolvente, dando-lhe uma cor pálida de aço e
imprimindo-lhe um movimento ondulante. E os sóis de safira,
também, se derreteram imperceptivelmente numa infinidade
acinzentada de pulsações disformes.
Ao mesmo tempo, a sensação de se mover para a frente e para
fora se tornou intolerável, incrível e cosmicamente veloz. Qualquer
padrão de velocidade conhecido na Terra pareceria pouco, e
Campbel compreendeu que um voo desses na realidade física
significaria morte instantânea para qualquer ser humano. Tal como
era – nessa hipnose estranha e infernal de pesadelo –, a impressão
quase visual de ser arremessado como um meteoro chegava a
paralisar sua mente. Conquanto não houvesse pontos reais de
referência no vazio cinzento, pulsante, ele sentiu que estava se
aproximando da velocidade da luz e mesmo ultrapassando-a.
Finalmente sua consciência sucumbiu, e uma treva benfazeja engoliu
tudo.
Foi muito subitamente, e em meio à escuridão mais
impenetrável, que os pensamentos e as ideias de George Campbel se
recompuseram. Quantos momentos ou anos ou eternidades tinham se
passado desde sua queda através do vazio cinzento ele não podia
estimar. Sabia apenas que parecia estar imóvel e sem dores. Com
efeito, a ausência de toda sensação física era a qualidade mais
evidente em sua situação.
Fazia até a escuridão parecer menos escura e compacta,
sugerindo que ele era mais uma inteligência desencarnada num
estado para além das sensações físicas do que uma criatura corpórea
cujos sentidos tivessem sido privados de seus objetos costumeiros de
percepção. Ele podia pensar aguda e rapidamente – quase
sobrenaturalmente –, sem no entanto formar qualquer ideia acerca
de sua situação.
Meio por instinto, reparou que não estava mais em sua tenda.
Decerto, devia ter despertado lá de um pesadelo para um mundo
igualmente escuro, porém sabia que não era isso. Não havia
nenhuma cama de acampamento debaixo dele; ele não tinha mãos
para sentir os cobertores ou a superfície da lona – nenhuma abertura
através da qual pudesse vislumbrar a noite pálida lá fora... Alguma
coisa estava errada, medonhamente errada.
Recuando em seus pensamentos, reviu o cubo fluorescente que
o tinha hipnotizado e tudo o que se seguira. Compreendera que sua
mente estava indo, mas não fora capaz de retornar. No último
momento houvera um medo pânico e perturbador, um medo
subconsciente para além mesmo daquele causado pela sensação do
voo demoníaco. Tinha vindo de alguma vaga recordação momentânea
ou remota – o quê, ele não pôde dizer de imediato. Um grupo de
células na parte de trás de sua cabeça parecera descobrir uma
qualidade nebulosamente familiar no cubo, e essa familiaridade vinha
carregada de um sombrio terror.
Agora ele tentava lembrar por que a familiaridade e o terror.
Aos poucos lhe ocorreu. Certa vez, há muito tempo, em conexão
com seu trabalho de geólogo, lera a respeito de qualquer coisa
parecida com esse cubo. Tinha a ver com aqueles discutíveis e
inquietantes fragmentos de argila chamados de os Cacos de Eltdown,
escavados de estratos pré-carboníferos no sul da Inglaterra havia
trinta anos. Sua forma e inscrições eram tão inusitadas que alguns
especialistas sugeriram artificialidade, fazendo as mais desvairadas
conjeturas acerca de sua origem. Provinham, por certo, de um tempo
em que os seres humanos ainda não existiam no globo – mas seus
contornos e aspectos eram terrivelmente intrigantes. Foi assim que
receberam tal nome.
Não foi, contudo, nos escritos de algum cientista sisudo que
Campbel vira essa referência a um globo de cristal contendo um
disco. A fonte era bem menos respeitável e infinitamente mais vívida.
Por volta de 1912 um clérigo de Sussex, profundo conhecedor de
assuntos ligados ao ocultismo – o reverendo Arthur Brooke Winters-
Hal –, alegara ter identificado as gravações nos Cacos de Eltdown
com os assim chamados “hieróglifos pré-humanos” tão
insistentemente encarecidos e esotericamente manueseados em
certos círculos místicos, e publicara a expensas próprias o que dizia
ser uma “tradução” das desconcertantes “inscrições” primais – uma
“tradução” ainda frequente e seriamente citada por escritores
ocultistas. Nessa “tradução” – uma brochura surpreendentemente
longa se comparada ao número limitado dos “cacos” existentes – é
que aparecia a narrativa, de autoria supostamente pré-humana, na
qual figurava a presente referência assustadora.
Segundo a história, habitava um mundo – e, provavelmente,
incontáveis outros mundos – do espaço exterior uma ordem de
poderosas criaturas em forma de vermes, cujos conhecimentos e cujo
controle da natureza ultrapassavam tudo o que a imaginação
terrestre poderia conceber. Bem cedo tinham dominado a arte das
viagens interestelares e assim povoaram cada planeta habitável em
sua própria galáxia – exterminando as raças que encontravam.
Para além dos limites de sua própria galáxia – que não era a
nossa – não podiam navegar em pessoa, mas em sua busca de
conhecimento através do espaço e do tempo descobriram uma
maneira de abrir certos atalhos intergaláticos com suas próprias
mentes. Confeccionavam objetos peculiares – cubos estranhamente
energizados de um cristal peculiar contendo talismãs hipnóticos e
protegidos por envelopes esféricos, resistentes ao espaço, feitos de
uma substância desconhecida – que podiam ser expelidos para além
dos limites de seu universo e que só reagiriam à atração de matéria
sólida e fria.
Esses objetos, alguns dos quais pousariam necessariamente em
vários mundos habitados nos universos exteriores, formavam as
pontes etéreas necessárias para a comunicação mental. A fricção
atmosférica incendiaria a cápsula protetora, expondo o cubo e
deixando-o sujeito a ser descoberto por mentes inteligentes do
mundo onde caísse. Por sua natureza intrínseca, o cubo atrairia e
fixaria a atenção. Isso, conjugado com a ação da luz, era suficiente
para colocar em ação as suas propriedades especiais.
A mente que notasse o cubo seria tragada para dentro dele pela
força do disco e seria enviada através de um fio de energia obscura
para o lugar de onde o cubo viera, o mundo remoto dos exploradores
espaciais em forma de vermes, atravessando estupendos abismos
entre as galáxias. Recebida numa das máquinas com a qual o cubo
estivesse sintonizado, a mente capturada permaneceria suspensa
sem corpo ou sentidos até que fosse examinada por alguém da raça
dominadora. Então seria, por um processo obscuro de intercâmbio,
esvaziada de todo o seu conteúdo. A mente do explorador poderia
agora ocupar a estranha máquina, enquanto a mente cativa ocuparia
o corpo vermicular do explorador. Em seguida, num outro
intercâmbio, a mente do explorador saltaria através dos espaços
ilimitados para o corpo vazio e inconsciente do cativo no mundo
transgalático, animando o hospedeiro alienígena na medida do
possível e explorando o novo mundo na forma de um de seus
naturais.
Finda a exploração, o aventureiro usaria o cubo e seu disco
para realizar o retorno, e às vezes a mente capturada seria
devolvida intacta ao seu mundo distante. Nem sempre, porém, a raça
dominadora era tão generosa. Às vezes, quando uma raça
potencialmente importante e capaz de realizar viagens espaciais era
encontrada, o povo vermicular usaria o cubo para capturar e
aniquilar mentes aos milhares e extirparia assim a raça por razões
diplomáticas, usando as mentes exploradoras como agentes de
destruição.
Noutros casos, seções do povo vermicular ocupariam
permanentemente o planeta transgalático, destruindo as mentes
capturadas e dizimando os habitantes remanescentes em condições
de ocupar corpos alienígenas. Nunca, entretanto, poderia a raça mãe
ser duplicada em tais casos, desde que o novo planeta não conteria
todos os materiais necessários para as realizações do povo
vermicular. Os cubos, por exemplos, só podiam ser feitos no planeta
lar.
Apenas alguns dos inumeráveis cubos lançados chegavam
eventualmente a pousar e a encontrar resposta num mundo habitado,
desde que não havia tal coisa como direcioná-los para metas além da
visão e do conhecimento. Apenas três, dizia a história, teriam alguma
vez pousado em mundos habitados deste nosso universo particular.
Um deles teria alcançado um planeta na periferia da galáxia há dois
milhares de bilhões de anos, enquanto outro aterrissara há três
bilhões de anos num mundo próximo ao centro da galáxia. O terceiro
– e o único que se sabe ter alguma vez entrado no sistema solar –
alcançou nossa própria Terra há certa de cento e cinquenta milhões
de anos.
Era principalmente desse último que a “tradução” do doutor
Winters-Hal tratava. Quando o cubo atingiu a terra, escreveu ele, a
espécie terrestre dominante era uma raça de seres enormes, em
forma de cones, que ultrapassavam todas as anteriores ou
posteriores em realizações e inteligência. Essa raça era tão
avançada que teria de fato enviado mentes ao exterior, através do
tempo e do espaço, para explorar o cosmo, tendo tomado consciência
do que acontecera quando o cubo caiu do céu e certos indivíduos
sofreram transformações mentais ao olharem para ele.
Certos de que os indivíduos modificados representavam mentes
invasoras, os líderes da raça os destruíram, mesmo ao preço de
terem deixado as mentes desalojadas em exílio no espaço alienígena.
Haviam tido experiência mesmo com transições mais estranhas.
Quando, mediante uma exploração mental do espaço e do tempo,
formaram uma ideia aproximada do que era o cubo, eles
cuidadosamente isolaram a coisa da luz e da vista, considerando-a
uma ameaça. Não quiseram destruir uma coisa tão rica em
possibilidades de experimentação posterior. De vez em quando,
furtivamente, algum aventureiro afoito e inescrupuloso obteria
acesso a ele e testaria seus poderes perigosos, a despeito das
consequências, mas todos esses casos foram descobertos e tratados
com segurança e drasticamente.
Dessas intrusões malignas o único resultado mau foi que a
distante raça vermicular descobriu, a partir dos novos exilados, o
que aconteceu com seus exploradores na Terra e tomaram um ódio
violento pelo planeta e por todas as suas formas de vida. E o teriam
despovoado, se pudessem, tendo mesmo enviado cubos adicionais
através do espaço na esperança malsã de atingi-lo acidentalmente
em locais desguarnecidos, mas tal evento jamais aconteceu.
As criaturas terrestres em forma de cone mantiveram o único
cubo existente guardado num santuário especial, como uma relíquia
e uma base para experimentos, até que, depois de eras, ele se
perdeu em meio ao caos da guerra e da destruição da grande cidade
polar onde era mantido. Quando, há cinquenta milhões de anos, os
seres enviaram suas mentes através do futuro infinito com o intuito
de evitar o perigo inominável do interior da terra, o paradeiro do
cubo sinistro proveniente do espaço se tornou desconhecido.
Tudo isso, de acordo com o erudito ocultista, constava dos
Cacos de Eltdown. O que agora tornava o relato tão furtivamente
amedrontador para Campbel era a minúcia e a exatidão com que o
cubo alienígena fora descrito. Todos os detalhes eram dados:
dimensões, consistência, o disco central com os hieróglifos, os efeitos
hipnóticos. Enquanto matutava no assunto em meio às trevas de sua
estranha situação, começou a se perguntar se toda a sua experiência
com o cubo de cristal – de fato, a própria existência do mesmo – não
seria apenas um pesadelo despertado por alguma caprichosa
lembrança subconsciente dessa velha peça de literatura
extravagante e charlatã. Se fosse assim, o pesadelo devia estar em
andamento, já que seu presente estado de desincorporação nada
tinha de normal.
Quanto tempo durou essa rememoração e essa reflexão confusa
Campbel não saberia dizer. Tudo em seu estado era tão irreal que as
dimensões e mensurações ordinárias se tornaram sem sentido.
Pareceu uma eternidade, mas talvez não tivesse demorado tanto, até
que aconteceu a primeira e brusca interrupção. O que ocorreu foi
tão estranho e inexplicável quanto a escuridão que veio antes. Houve
uma sensação – mais da mente do que do corpo –, e subitamente
Campbel sentiu que seus pensamentos eram varridos ou sugados, de
uma maneira tumultuada e caótica, para fora de seu controle.
Lembranças fluíram desordenadas e confusas. Tudo o que ele
sabia – todo o seu passado pessoal, tradições, experiências,
conhecimento, sonhos, ideias e inspirações – se escoou abruta e
simultaneamente, com uma velocidade estonteante e uma
abundância que em breve o tornou incapaz de seguir o fio de cada
conceito separado. O desfile de todos os seus conteúdos mentais
tornou-se uma avalanche, uma cachoeira, um vórtice. Era tão
horrível e vertiginoso quanto seu voo hipnótico através do espaço
quando o cubo de cristal o atraiu. Finalmente, esvaziou sua
consciência e trouxe o puro esquecimento.
Outro vazio imensurável – e então um lento ressurgir das
sensações. Desta vez era físico, não mental. Luz azulada, e um som
lento e distante. Havia impressões táteis; ele podia sentir que estava
deitado sobre alguma coisa, embora houvesse uma atordoadora
estranheza no sentimento dessa postura. Ele não podia conciliar a
pressão da superfície de apoio com os seus próprios contornos – ou
com os contornos de uma forma humana. Tentou mover os braços,
mas não obteve resposta definida a essa tentativa. Em vez disso,
havia pequenas e ineficazes contrações nervosas por toda a área que
parecia ser o seu corpo.
Tentou abrir mais os olhos, mas descobriu-se incapaz de
controlar o seu mecanismo. A luz azulada chegava de um modo
difuso, nebuloso e não podia ser em parte alguma enfocada
voluntariamente e com definição.
Gradualmente, porém, imagens visuais indecisas e peculiares
começaram a se formar. Os limites e características da visão não
eram aqueles com os quais estava acostumado, mas ele podia
relacionar vagamente a sensação com o que conhecera como sendo a
visão. Quando tal sensação atingiu certo grau de estabilidade,
Campbel notou que ainda devia estar a viver as agonias de um
pesadelo.
Parecia estar num cômodo de extensão considerável – de altura
mediana, mas com uma área bastante ampla. Em cada face – e era
como se ele pudesse ver todas as faces ao mesmo tempo – havia
fendas altas e estreitas que sugeriam portas e janelas combinadas.
Havia mesas baixas e pedestais singulares, mas nenhuma mobília de
natureza ou proporções normais. Através das fendas jorravam
cascatas de luz safirina, e para além delas se podiam ver,
nebulosamente, as faces e os telhados de edifícios fantásticos
parecidos com cubos empilhados. Nas paredes – nos painéis verticais
que havia entre as fendas – viam-se estranhas inscrições de
caracteres desconhecidos e inquietantes. Demorou um pouco para
Campbel descobrir por que o perturbavam tanto – e então ele viu
que eram, repetidos em certos aspectos, precisamente iguais a
alguns dos hieróglifos do disco no cubo de cristal.
O verdadeiro elemento de pesadelo foi, porém, algo mais do que
isso. Começou com a coisa viva que de repente entrou por uma das
fendas, avançando decididamente em sua direção e segurando uma
caixa de metal de proporções bizarras e superfícies vítreas e
espelhadas. Pois tal coisa não tinha nada de humana – nada de
terrena –, nem mesmo nada de algum mito ou sonho humano. Era um
verme ou centopéia gigantesca, de cor cinzenta clara, com a largura
de um homem e o comprimento de dois, exibindo uma cabeça em
forma de disco, aparentemente destituída de olhos, guarnecida de
cílios e com um orifício central avermelhado. Deslizava sobre seus
pares de patas traseiras. Ao longo de sua espinha dorsal havia um
curioso pente arroxeado e uma cauda em leque formada por um tipo
de membrana cinzenta que arrematava o todo grotesco. Havia um
anel de pontas vermelhas e flexíveis em torno ao seu pescoço, e das
contorções dessas pontas provinham estalidos e zunidos num ritmo
medido e deliberado.
Aqui, de fato, estava o pesadelo em sua quintessência – a
fantasia caprichosa em seu ápice. Mas não foi ainda essa visão de
delírio que fez com que George Campbel tombasse outra vez na
inconsciência. Houve uma outra coisa – um toque final, insuportável –
que o levou a isso. Quando o inominável verme avançou com sua
caixa iridescente, o homem deitado captou, na superfície espelhada,
um vislumbre do que deveria ser o seu próprio corpo. No entanto –
horrivelmente consciente de suas sensações desordenadas e
desconhecidas – não era de todo o seu próprio corpo que ele viu
refletido no metal polido. Era, em vez disso, o aspecto asqueroso,
cinza pálido, de uma das grandes centopéias.
[Robert E. Howard]
Desse ultimo mergulho na inconsciência ele emergiu com um
entendimento pleno de sua situação. Sua mente estava aprisionada
no corpo de um dos amedrontadores nativos do planeta alienígena,
enquanto, em alguma parte do outro lado do universo, seu próprio
corpo hospedava a personalidade do monstro.
Ele teve de superar um terror irracional. Olhada de um ponto
de vista cósmico, por que sua metamorfose deveria causar-lhe
horror? A vida e a consciência eram as únicas realidades do
universo. A forma não importava. Seu corpo atual era hediondo
apenas para os padrões terrestres. O medo e a repulsa afogaram-se
na excitação de uma aventura titânica. O que era o seu corpo
anterior senão um invólucro, que a morte um dia lançaria fora de
qualquer maneira?
Ele não tinha ilusões sentimentais sobre a vida da qual tinha
sido exilado. O que lhe dera ela senão trabalho, pobreza, frustração
contínua e repressão? Se esta vida que o aguardava não lhe
oferecesse mais, pelo menos não lhe oferecia menos. A intuição lhe
dizia que oferecia mais – muito mais.
Com a honestidade que se torna possível apenas quando a vida é
desnudada até os seus fundamentos, teve consciência de que se
lembrava com prazer apenas das delícias físicas de sua vida anterior.
Mas há muito ele já havia exaurido todas as possibilidades físicas
contidas naquela vida terrena. Esgotaram-se os estímulos da Terra.
Mas na impressão deste corpo novo e alienígena ele pressentia as
promessas de deleites estranhos e exóticos.
Uma exultação selvagem o invadiu. Ele era um homem sem
mundo, livre de todas as convenções ou inibições da Terra ou deste
planeta estranho, livre no universo de todo recalque artificial. Ele
era um deus!
Com grande satisfação, pensou em seu velho corpo a se mover
entre os negócios e a sociedade na Terra, com um monstro
alienígena a olhar através das janelas que eram os olhos de George
Campbel para pessoas que fugiriam dele se soubessem.
Que ele caminhasse pela Terra e matasse e destruísse à
vontade. A Terra e suas raças não tinham mais qualquer significado
para George Campbel . Lá ele tinha sido apenas uma entre bilhões
de não-entidades, fixada em seu lugar por uma acumulação
montanhosa de convenções, leis e costumes, fadada a viver e a
morrer em seu sórdido nicho. Mas num salto cego ele se elevara
acima da realidade comum. Isto não era a morte, mas um
renascimento – o nascimento de uma mentalidade amadurecida, dona
de uma liberdade recém-descoberta que pouco se importava com o
cativeiro físico em Yekub.
Sobressaltou-se. Yekub! Era o nome deste planeta, mas como
ele soubera? Então ele sabia, tal como sabia o nome daquele cujo
corpo agora ocupava: Tothe. A memória, inscrita profundamente no
cérebro de Tothe, brotava nele como sombras do conhecimento que
Tothe possuía. Gravadas bem fundo nos tecidos físicos do cérebro,
falavam obscuramente, como instintos implantados, a George
Cambel , e sua consciência física se apoderava deles e os traduzia
para mostrar-lhe o caminho não apenas para a segurança e a
liberdade, mas para o poder a que sua alma – lavada de seus
impulsos primitivos – aspirava. Não viveria como um escravo em
Yekub, mas como um rei! Tal como os bárbaros antigos tinham se
sentado no trono de impérios senhoriais.
Pela primeira vez voltou sua atenção para os arredores. Ainda
estava deitado sobre aquela espécie de colchão no meio daquele
cômodo fantástico, e o homem-centopéia estava à sua frente,
segurando o objeto de metal polido e estalando as pontas em seu
pescoço. Desse modo ele falava, Campbel sabia, compreendendo de
algum modo o que era dito, por meio dos processos de pensamento
herdados de Tothe, enquanto descobria que a criatura era Yukth,
senhor supremo da ciência.
Mas Campbel não deu ouvidos, pois tinha feito seu plano
desesperado, um plano tão inusitado para os costumes de Yekub que
estaria além da compreensão de Yukth, pegando-o totalmente
despreparado.
Yukth, tal como Campbel , via o fragmento de metal pontiagudo
numa mesa próxima, mas para Yukth era apenas um instrumento
científico. Sequer sabia que poderia ser usado como uma arma. A
mente terrestre de Campbel forneceu o saber e a ação que se
seguiu, levando o corpo de Tothe a fazer movimentos que nenhum
homem de Yekub jamais fizera antes.
Cambel arrebatou a lasca pontuda e atacou, cortando
brutalmente para cima. Yukth recuou e tombou; suas entranhas
jorraram para o piso. Num instante, Campbel já deslizava para a
porta. Sua velocidade era espantosa, exultante, primeiro
cumprimento da promessa de novas sensações físicas.
Enquanto corria, guiado inteiramente pelo conhecimento
instintivo implantado nos reflexos físicos de Tothe, era como se ele
fosse sustentado em suas patas por uma consciência particular. O
corpo de Tothe o transportava através de uma via que fora
percorrida milhares de vezes antes, quando animado pela mente de
Tothe.
Correu por um corredor sinuoso, subiu por uma escada,
atravessou uma porta, e os mesmos instintos que o tinham levado ali
lhe diziam que encontrara o que procurava. Descobriu-se num
recinto circular, com um teto abobadado do qual jorrava uma luz
lívida e azulada. Uma estranha estrutura se erguia no meio do piso
de cores irisadas, camada sobre camada, cada qual de uma cor
diferente e vívida. A última camada era um cone púrpura, de cujo
ápice subia uma névoa azul em direção a uma esfera que pairava no
ar – uma esfera que brilhava como se fosse marfim translúcido.
Isso, diziam as memórias gravadas de Tothe a Campbel , era o
deus de Yekub, conquanto a razão pela qual o povo de Yekub o temia
e o reverenciava tivesse sido esquecida há milhões de anos. Um
verme-sacerdote se achava entre ele e o altar que nenhuma mão ou
carne jamais haviam tocado. Tocá-lo seria uma blasfêmia que nunca,
em tempo algum, ocorrera a qualquer habitante de Yekub. O verme-
sacerdote jazeu paralisado de horror até que o fragmento de metal
de Campbel lhe arrancasse a vida.
Com suas pernas de centopéia, Campbel galgou as camadas do
altar, indiferente aos seus estremecimentos súbitos, indiferente à
transformação que começou a ocorrer na esfera flutuante,
indiferente à fumaça que agora se acumulava em nuvens azuis. A
sensação de poder o embriagava. Não temia as superstições de
Yekub mais do que temia as da terra. Com aquele globo nas mãos,
ele se tornaria rei de Yekub. Os homens-vermes não se atreveriam a
lhe negar coisa alguma quando se tivesse apoderado de seu deus.
Ergueu uma mão até a esfera – não mais da cor de marfim, mas
vermelha como sangue...
I
Quando mister Hiram B. Otis, o Embaixador americano,
adquiriu o Parque Canterville, não faltou gente a adverti-lo de que
cometia uma loucura, porque na habitação apareciam,
indubitavelmente, almas do outro mundo. Na verdade, o próprio
lorde Canterville, cujo caracter era dos mais exigentes em
escrúpulos, supusera do seu dever sublinhar o facto, chegado o
momento de discutirem as condições do negócio.
- Até nós mesmos tínhamos já muito pouca vontade de residir
aqui - disse lorde Canterville - desde que a minha tia-avó, a duquesa
donatária de Bolton, desmaiou de terror (ela nunca pôde
restabelecer-se desse abalo moral) quando as mãos de um esqueleto
lhe assentaram nas espáduas, numa ocasião em que se vestia para o
jantar. Devo igualmente dizer-lhe, mr. Otis, que o fantasma tem sido
visto por muitos membros ainda vivos da minha família, assim como
pelo cura da paróquia, o Reverendo Augustus Dampier, agregado do
King's College, em Cambridge. Depois do desgraçado acidente
sucedido à duquesa nenhum dos nossos criados novos quis manter-se
ao serviço, e lady Canterville raramente conseguia conciliar o sono
durante a noite por causa dos misteriosos ruídos vindos do corredor
e da biblioteca.
- Lorde Canterville, - respondeu o Embaixador - eu sou
comprador da propriedade e do fantasma pelo valor que lhes seja
atribuído. Venho de um país moderno em que se tem tudo quanto o
dinheiro pode obter. Não é certo que a nossa atrevida mocidade
revoluciona o Velho Mundo? Não vos arrebatam as melhores
actrizes e prime donne? Se existisse um fantasma na Europa, dentro
em pouco o teríamos lá, estou convicto disso; ele seria exposto num
dos nossos museus ou exibido nas ruas.
- Pois muito receio que o fantasma ainda, de facto, exista
- disse, sorrindo, lorde Canterville. - Pode ser que haja resistido
às propostas dos vossos arrojados empresários. É bem conhecido
desde há três séculos, precisamente a partir do ano de 1584, e nunca
deixou de fazer a sua aparição em vésperas do falecimento de cada
pessoa da nossa família.
- Oh! em todas as famílias o médico faz exactamente o mesmo,
lorde Canterville. Vamos, fantasmas, é coisa que não há. Não creio
que as leis da natureza abram excepção a favor da aristocracia
inglesa.
- Os senhores, na América, são, não há dúvida, muito naturais -
comentou lorde Canterville, sem bem compreender a última
observação de mr. Otis - e, se lhe é indiferente ter um fantasma de
portas a dentro, estamos entendidos.
Passadas umas semanas a transacção estava concluída, e, já
quase no termo da época, o Embaixador e a família foram instalar-se
no Parque Canterville.
Mistress Otis, em solteira, miss Lucrécia R. Tappan, de West 53
rd. Street, havia sido célebre em Nova-Iorque pela sua beleza. Era
agora mulher de meia idade, muito agradável, com belos olhos e
soberbo perfil.
Muitas americanas, ao abandonarem o país natal, dão-se ares
de mulheres atingidas por um mal incurável, imaginando ser essa
uma das formas da subtileza europeia; mas mrs. Otis não caíra nunca
em semelhante erro.
Desfrutava uma compleição invejável e possuía maravilhoso
equilíbrio animal. Em boa verdade e sob numerosos aspectos, era
muito inglesa e oferecia excelente exemplo de que a Inglaterra e a
América não têm hoje nada que as distinga uma da outra, salvo, bem
entendido, a linguagem.
O filho primogénito, a quem, num impulso de patriotismo que ele
jamais deixara de lamentar, os pais haviam posto o nome de
Washington, era um rapaz de cabelos louros e muito bem encarado;
parecia integralmente dotado para entrar na diplomacia americana,
pois levava de vencida os Alemães, três estações a fio no casino de
Newport. A reputação de exímio dançarino que havia conquistado
precedera mesmo a sua chegada a Londres.
As gardénias e o pariato eram as únicas fraquezas do seu
espírito; abstraindo de isso, mostrava ter muito bom-senso.
Miss Virgínia E. Otis era uma rapariguinha de quinze anos,
graciosa e ágil como corça recém-nascida e cujos olhos rasgados e
azuis reflectiam uma bela franqueza.
Era uma admirável amazona. Certo dia batera, em corrida, o
velho lorde Bilton, dando duas voltas ao parque em cima do seu
poltro e ganhando por comprimento e meio, precisamente em frente
da estátua de Aquiles, isto com grande enlevo do jovem duque de
Cheshire. O duque logo nesse instante tinha pedido a mão dela, e,
remetido nessa mesma tarde para o colégio pelos encarregados da
sua educação, regressara a Eton derramando lágrimas torrenciais.
A seguir a Virgínia contavam-se os gémeos, correntemente
designados por «os condenados ao açoite». Eram ambos adoráveis
rapazinhos e, com o digno Embaixador, os únicos verdadeiros
republicanos da família.
Como o Parque Canterville se encontra a sete milhas de Ascot, a
estação ferroviária mais próxima, mr. Otis telegrafara no sentido de
os irem buscar de carruagem; e, cheios de alegria, puseram-se todos
a caminho.
Era por uma linda meia tarde de Julho, em que o aroma dos
pinheiros embalsamava o ar. De quando em quando ouviam um
pombo bravo arrulhar docemente, ou enxergavam, escondido entre
os rumorosos fetos, o brilhante peitilho de plumagem de um faisão. À
sua passagem, pequenos esquilos, no seio da rama das faias, ficavam-
se a olhá-los, e, alcançado a cauda branca, os coelhos fugiam a bom
fugir através dos silvados ou galgavam os cômoros recobertos de
musgo.
Todavia, na ocasião em que se entranhavam na alameda do
Parque Canterville o céu cobriu-se subitamente de nuvens, uma
calma estranha pareceu envolver a atmosfera, um bando de gralhas
passou silenciosamente por cima deles e, antes que houvessem
atingido a casa, começaram a cair grossas gotas de chuva.
Uma mulher já idosa acolheu-os no alto dos degraus. A maneira
como se apresentava era irrepreensível. Envergava um vestido de
seda preta, avental branco e touca desta mesma cor. Era mrs.
Umney, a governanta. Mrs.
Otis, a instâncias de lady Canterville, consentira em conservá-la
ao seu serviço. Quando puseram pé em terra, ela fez a cada um dos
seus novos amos uma rasgada mesura e disse, com solenidade já
desusada: - Desejo que sejam bem-vindos ao Parque Canterville.
Seguiram-na e, depois de terem atravessado um belo átrio no
estilo Tudor, entraram na biblioteca, sala de grande extensão, de
tecto baixo e ao fundo da qual se via uma ampla janela com vitrais.
Fora aí que se preparara o chá, e, após terem-se despojado das
vestes de viagem, sentaram-se e puseram-se a olhar em volta,
enquanto mrs. Umney os servia.
De súbito, mrs. Otis descobriu no soalho, nas peças de madeira
embutidas, perto do fogão, uma mancha de tom vermelho escuro, e,
longe de suspeitar o que aquilo significava, disse a mrs. Umney:
- Estou em crer que caiu e alastrou ali qualquer coisa.
- Sim, minha senhora, - respondeu em voz baixa a antiga
governanta - é sangue.
- Mas é horrível! - exclamou mrs. Otis. - Não gosto nada de ver
manchas de sangue nos salões. É necessário fazer desaparecer isso
imediatamente!
A velhota sorriu e informou, na mesma voz baixa e misteriosa:
- É o sangue de lady Eleanor de Canterville, assassinada
precisamente neste sítio pelo marido, sir Simon de Canterville, em
1575. Sir Simon sobreviveu-lhe nove anos e desapareceu de súbito,
em circunstâncias muito estranhas. O corpo dele nunca se encontrou,
mas o seu espírito culposo vagueia ainda por esta casa. A mancha de
sangue provocou sempre o pasmo dos visitantes e dos turistas. De
resto, não se pode fazer desaparecer.
- É absurdo! - exclamou Washington Otis -. O Pinkerton, o rei
dos sabões para tirar nódoas, fá-lo-á desaparecer num abrir e fechar
de olhos.
E antes que a governanta, apavorada, pudesse intervir,
Washington, pondo-se de joelhos, esfregava vigorosamente o
parquete com um rolo de um pauzinho que tinha parecenças com
cosmético negro.
Instantes depois a mancha desaparecera por completo.
- Eu sabia que o Pinkerton dava resultado! - proclamou o rapaz
relanceando um olhar pela família, toda ela em atitude admirativa.
Mas, mal acabara de pronunciar aquelas palavras, iluminou por
inteiro o sombrio compartimento um terrível relâmpago e um
estrondoso ribombo de trovão fê-los erguer bruscamente, ao passo
que mrs. Umney perdia os sentidos.
- Que monstruoso clima! - proferiu com serenidade o Ministro
americano, acendendo um charuto. - Este vetusto país é, suponho,
tão excessivamente povoado que não há bom tempo que chegue para
todos os seus habitantes. Foi sempre opinião minha que a emigração
era a solução única para a Inglaterra.
- Meu querido Hiram - gritou mrs. Otis - que havemos de fazer
de uma mulher que perde assim os sentidos?
- Suspender-lhe-emos o ordenado quando tal suceda, de sorte
que acabará por renunciar aos desmaios.
Mrs. Umney não deixou de voltar a si dentro em breve.
Estava porém, indubitavelmente, muito comovida. Com ar
grave, preveniu mrs. Otis de que não tardariam a registar-se
acontecimentos perturbadores.
- Tenho visto com os meus próprios olhos - asseverou ela -
coisas de pôr os cabelos em pé, e durante noites sobre noites não
tenho podido pegar no sono, por causa do que de terrível se passa
aqui.
Mr. Otis e a esposa afirmaram à boa mulher que não tinham
medo de fantasmas, e depois de ter impetrado as bênçãos da
Providência para os seus novos amos e procedido de jeito a obter
aumento de salário, a velha governanta recolheu ao seu quarto
coxeando levemente.
II
Naquela noite a tempestade desencadeou-se com violência, mas
nada aconteceu de particular. Todavia, na manhã seguinte, ao descer
para o pequeno almoço, os Otis verificaram que a horrível mancha de
sangue reaparecera.
- Seguramente, a culpa não é do sabão para tirar nódoas - disse
Washington - pois sempre o empreguei com êxito. Isto deve ser o
fantasma.
E o rapaz conseguiu fazer desaparecer a mancha pela segunda
vez; no dia imediato, porém, ela estava de novo patente. No outro dia
a seguir, a mancha lá se via, se bem que a biblioteca tivesse sido, na
véspera à noite, fechada por mr. Otis em pessoa, que levara a chave
para o seu quarto.
O interesse de toda a família encontrava-se agora desperto.
Mr. Otis começou a suspeitar de que havia sido excessivamente
dogmático ao negar a existência de fantasmas. Exprimiu o propósito
de pedir a sua inscrição na Sociedade de Estudos Psíquicos, e
Washington enviou uma extensa carta aos senhores Myers e
Podmore, acerca da «Persistência de manchas de sangue após o
crime».
Nessa noite todas as dúvidas a respeito da existência objectiva
de espectro se dissiparam para sempre. O dia tinha estado quente
soalheiro, e quando a proximidade da noite trouxe alguma frescura a
família completa partiu para um passeio de carruagem. Não
regressaram todos senão às nove horas e tomaram em seguida uma
ligeira ceia. De modo nenhum a conversa incluiu a menor alusão
sequer a fantasmas, de maneira que se não poderiam pôr em causa
essas preliminares condições de expectativa e auto-sugestão que
tantas vezes precedem a aparição dos fenómenos psíquicos, Como
mr. Otis mo contou mais tarde, a discussão apegou-se aos triviais
assuntos que constituem a conversação dos americanos cultos da
melhor sociedade: a superioridade imensa de miss Fanny Davenport,
como actriz, sobre Sarah Bernhardt; a dificuldade de obter milho
verde, bolos de trigo mouro e polenda, mesmo nos melhores
estabelecimentos ingleses; a importância de Boston no
desenvolvimento do espírito universal; as vantagens do sistema de
registo das bagagens; a suavidade da pronúncia das palavras em uso
em Nova-Iorque comparada com o pronúncia arrastada de Londres.
Nenhuma menção de coisas sobrenaturais. Nenhuma alusão a sir
Simon de Canterville. Dadas as onze horas, a família recolheu-se e,
às onze e meia, todas as luzes estavam apagadas.
Decorrida uma porção de tempo, mr. Otis foi despertado por um
ruído singular que vinha do corredor, perto do seu quarto. Dir-se-ia
um tinido de metais que se entrechocam, e o ruído parecia de cada
vez mais próximo.
Levantou-se imediatamente, acendeu um fósforo e viu o relógio.
Era uma hora em ponto. Muito calmo, mr. Otis tateou o pulso. Não
se tratava de febre. O ruído estranho continuava e, dentro em pouco,
mr. Otis percebeu distintamente passos. Enfiou as pantufas, tirou do
seu estojo de toilette uma garrafinha oblonga e abriu a porta.
Diante de si, à pálida claridade do luar, via um horrendo ancião.
Os olhos dele, que se assemelhavam a carvões em brasa, lançavam
clarões vermelhos. Caíam-lhe sobre os ombros os cabelos compridos
cor de cinza, em madeixas emaranhadas. A roupa que vestia, de
corte antigo, estava cheia de nódoas e em farrapos.
Pesadas cadeias, todas cheias de ferrugem, pendiam-lhe dos
pulsos e dos tornozelos.
- Meu caro senhor, - disse mr. Otis - perdoe-me importuná-lo,
mas é absolutamente necessário que unte essas correntes. Pensando
na sua pessoa, peguei neste frascozinho de lubrificante. Dizem ser
muito eficaz logo à primeira vez que se aplique. No prospecto junto
achará muitos atestados dos mais eminentes sábios do país. Vou
deixá-lo aqui, o frasco, junto dos candelabros, e sentir-me-ei deveras
feliz em arranjar-lhe outro se tiver precisão dele.
Ao dizer isto, o Ministro dos Estados-Unidos colocou o frasco
sobre o tampo de mármore de uma mesa e, fechando a porta, voltou
a meter-se na cama.
O fantasma de Canterville ficou uns instantes imóvel, cheio de
uma indignação bem natural; depois, arremessando violentamente o
frasco ao chão encerado, sumiu-se ao longo do corredor a soltar
grunhidos cavernosos e projectando em redor terrificantes clarões
verdes.
Ao atingir, porém, o alto da grande escadaria de carvalho,
abriu-se bruscamente uma porta, apareceram dois pequenos vultos
vestidos de branco, e um rotundo travesseiro passou-lhe, zumbindo,
rente à cabeça!
Decididamente, não havia tempo a perder e, adoptando como
rápido meio de salvação a quarta dimensão do espaço, esvaiu-se
através do revestimento de madeira das paredes, após o que a
habitação recuperou a sua calma.
Tendo alcançado uma alcouvazinha secreta situada na ala
esquerda do edifício, apoiou-se, para retomar fôlego, num raio de
luar e pôs-se a reflectir no que lhe acabava de suceder. Em toda a
sua carreira de trezentos anos, brilhante e ininterrupta, nunca fora
insultado tão grosseiramente. Recordou o estado de terror em que
lançara a duquesa donatária quando ela se contemplava ao espelho,
taful de diamantes e rendas; as quatro criadas que haviam tido uma
crise de nervos muito simplesmente porque ele, rindo
escarninhamente, as espreitara através dos cortinados de um dos
quartos de hóspedes; o cura da paróquia, cuja vela apagara com um
sopro quando ele saía uma noite da biblioteca, onde se retardara um
pouco mais, e que depois, vítima de acidentes nervosos, estivera a
ser tratado por sir William Gul; a velha senhora de Tremouillac, a
qual, tendo acordado de manhã muito cedo e visto um esqueleto
sentado numa poltrona, junto do fogão, imerso na leitura do seu
diário íntimo, foi obrigada a conservar-se de cama durante seis
semanas, presa de uma febre cerebral. A duquesa, logo que se vira
curada, reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações
com o senhor de Voltaire esse céptico notório.
O fantasma lembrou-se também da terrível noite em que esse
patife do lorde Canterville foi encontrado no seu gabinete de vestir
meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta;
precisamente antes de morrer confessara ter trapaceado ao jogo por
meio dessa carta e roubado a Charles James Fox, em casa do
Crockford, cinquenta mil libras esterlinas. O fantasma, jurava ele,
obrigara-o a engolir a carta.
O fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas mais
belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na copa, se
suicidara com um tiro de revólver por ter visto uma mão verde bater
nos vidros; depois, e da bela lady Stufield, que se intimou a trazer
sempre em volta do pescoço uma fita de veludo negro, para ocultar a
marca que cinco dedos de fogo haviam imprimindo na sua pele
branca de leite, e que acabara por se afogar no lago das carpas, ao
fim da alameda do Rei.
Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o fantasma
passou em revista as suas realizações mais famosas. E com um
sorriso cheio de azedume recordou-se da sua última aparição como
«Ruben, o Vermelho, ou o Bebé Estrangulado», da sua estreia no
papel de «Gibéon, o Vampiro de Bexley Moor», e da agitação que
provocara, numa encantadora tarde de Junho, jogando muito
simplesmente o chinquilho com a sua própria ossada, em cima da
relva do campo de ténis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miseráveis
americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante e arremessar-
lhe travesseiros à cabeça!
Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma nenhum fora
tratado daquela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e até romper a
aurora permaneceu em atitude de profunda meditação.
III
Na manhã seguinte, durante o pequeno almoço, o fantasma
constituiu o objecto de prolongada discussão. O Embaixador dos
Estados-Unidos estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver
que a sua dádiva não tinha sido aceite.
- De modo nenhum tive a intenção de dirigir ao fantasma uma
injúria pessoal, e, sendo certo que ele reside na casa há tantíssimo
tempo, vocês devem confessar que é muito pouco delicado atirar-lhe
travesseiros à cabeça... Lamento ter de declarar que, perante esta
justa advertência, os gémeos desataram às gargalhadas.
- Por outro lado - prosseguiu o ministro - se ele se recusa,
teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos de confiscar-lhe
as cadeias. É impossível dormir, com um barulho assim no corredor!
Mas durante todo o resto da semana o fantasma não os
incomodou absolutamente nada. A coisa única a excitar a atenção
era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no parquete da
biblioteca. E essa era uma estranha coisa, porque mr. Otis fechava a
porta à chave todas as tardes e mandava correr bem as janelas.
O facto de a mancha mudar tantas vezes de tom como um
camaleão provocava igualmente numerosos comentários. Em
determinadas manhãs, aparecia de um vermelho escuro, quase um
vermelho indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto; no outro dia,
era um violeta sumptuoso; e até uma vez, quando os Otis todos
desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de
simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal,
verificaram que a mancha era de um verde-esmeralda esplendente. É
bem de ver, estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a
família; e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito. A
única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena
Virgínia, que, por qualquer ignota razão, parecia sempre
consternada ao ver a mancha de sangue e esteve pertíssimo de
desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-
esmeralda.
A segunda aparição do fantasma efectuou-se no Domingo à
noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama, foram de
súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo.
Descendo precipitadamente a escada, verificaram que uma grande e
antiga armadura, despegada da sua peanha, fora projectada para o
lajedo, enquanto o fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de
alto espaldar e com uma expressão de angústia, esfregava os joelhos.
Os gémeos, que se tinham munido das suas zarabatanas,
descarregaram imediatamente dois pequenos projécteis sobre o
fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios
exercícios, tendo por alvo um professor de escrita, pode dar,
enquanto o Ministro dos Estados-Unidos, mantendo-o sob a ameaça
do seu revólver, lhe intimava, segundo a etiqueta, que pusesse as
mãos ao alto.
O fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de
raiva, e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando
na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os em
escuridão completa.
Ao alcançar o cimo da escadaria o fantasma recobrou ânimo e
decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade
mais de uma vez havia experimentado.
Contava-se que aquilo fizera embranquecer, no decurso de uma
noite apenas, a cabeleira postiça de lorde Raker, e que provocara a
demissão de três das governantas francesas de lady Canterville antes
de findo o seu primeiro mês de serviço. Por conseguinte, riu com o
seu riso mais horroroso, até o velho tecto abobadado repercutir com
o estrépito desse riso infernal. Mas, mal extinto o último eco, abriu-
se uma porta e mrs. Otis apareceu embrulhada num roupão azul
pálido.
- Receio que o senhor não esteja bem de saúde. Trago-lhe aqui
um frasco de tintura do Doutor Dobell. Se é uma indigestão, verá que
o remédio é excelente.
O fantasma fixou-a, cheio de fúria, e esteve prestes a
transformar-se num canzarrão negro, realização que lhe tinha valido
um justo renome e ao qual o médico da família atribuía sempre a
idiotia incurável do tio de lorde Canterville, o nobre Thomas Horton.
Mas um rumor de passos que se aproximavam fizeram-no hesitar no
cruel projecto. Contentou-se em tornar-se levemente fosforescente,
e esvaiu-se com um grunhido sepulcral no momento preciso em que
os gémeos chegavam à altura em que se encontrava.
Tendo regressado ao seu quarto, num enorme abatimento,
dentro em pouco apossou-se dele a mais violenta agitação. O
desplante dos gémeos e o materialismo grosseiro de mrs. Otis eram,
sem sombra de dúvida, extremamente aborrecidos; mas o que o
consternava mais era não ter podido envergar a armadura.
Acrisolara suas esperanças em que até mesmo uns americanos
modernos não deixariam de perturbar-se à vista de um espectro com
armadura guerreira, senão por inteligentes razões ao menos por
respeito por Longfellow, seu poeta nacional (3), cujos versos
graciosos e cheios de encanto o tinham ajudado mais de uma vez a
passar o tempo durante a ausência dos Canterville. Para mais, era a
sua própria armadura. Ostentara-a com grande êxito no torneio de
Kenilworth e recebera os mais calorosos cumprimentos da Rainha-
Virgem em pessoa. Mas quando quisera, agora, enfiar a armadura,
fora de todo em todo esmagado pelo peso da enorme couraça e do
elmo de aço, e caíra desamparadamente sobre o lajedo, esfolando a
valer os dois joelhos e contundindo as articulações da mão direita.
Esteve doente durante muitos dias e não saiu do quarto senão
para manter a nódoa de sangue. Todavia, com grandes cuidados,
restabeleceu-se e resolveu fazer terceira tentativa para aterrorizar
o Ministro dos Estados-Unidos e sua família. Escolheu a sexta-feira,
14 de Agosto, para a nova aparição, e ocupou a maior parte desse
dia a passar em revista o seu guarda-roupa. Optou, por fim, por um
chapéu de abas largas ornado de uma pluma vermelha, um sudário
recortado nos punhos e no pescoço e uma adaga ferrugenta.
No decurso do serão surdiu uma violenta tempestade. O vento
soprava tão forte que sacudia janelas e portas da velha moradia. Era
exactamente este o tempo de que o fantasma gostava. Eis o plano em
que assentara.
Iria de manso e manso até o quarto de Washington Otis; junto
do leito, soltaria gritos e enterraria três vezes a adaga na sua
própria garganta, ao som de uma lânguida música. Alimentava uma
razão de queixa especial contra Washington, por saber muito bem,
como sabia, que era ele quem, com o seu sabão para tirar nódoas,
fazia incessantemente desaparecer a famosa mancha de sangue dos
Cantervilles. Após ter submetido o descuidado e audacioso rapaz a
um estado de abjecto terror, dirigir-se-ia então ao quarto ocupado
pelo Embaixador dos Estados-Unidos e sua mulher; pousaria na testa
de mrs. Otis a mão cheia de visco, ao mesmo tempo que insinuaria ao
ouvido do esposo, todo ele numa tremura, os horríveis segredos de
além-túmulo.
Quanto à pequena Virgínia, ainda nada decidira. Era meiga e
bonita e nunca o insultara. Alguns grunhidos roucos e profundos
vindos de dentro do guarda-fato seriam, pensou, mais do que
suficientes, e se por acaso eles a não despertassem poderia puxar
com os dedos descarnados e trémulos o couvre-pied da rapariguinha.
Na parte concernente aos gémeos estava deveras decidido a
dar-lhes uma lição. Naturalmente, a primeira coisa a fazer era
sentar-se sobre o peito deles, de maneira a produzir a sufocante
sensação do pesadelo; depois, ficando as suas camas tão juntinhas,
surgiria de permeio sob a forma de um cadáver verde e gelado, até
que os manos se pusessem paralíticos de medo; por último,
despojando-se do sudário, rojar-se-ia em volta de todo o aposento
com a sua ossada embranquecida, fazendo ao mesmo tempo girar as
meninas dos olhos, numa imitação de «Daniel o Mudo, ou o Esqueleto
do Suicida», papel no qual produzira grande efeito em muitíssimas
ocasiões e a que atribuía a mesma importância que à sua famosa
personagem de «Martinho, o Louco ou o Mistério Mascarado».
Às dez horas e meia percebeu que a família se ia deitar.
Esteve um bocado de tempo perturbado pelas sonoras risadas
dos gémeos, os quais, com a descuidada alegria de estudantes,
certamente se divertiam antes de se enfiarem na cama. Mas às onze
e um quarto tudo estava em sossego e, ao soar a meia-noite, ele
partiu para a sua expedição.
O mocho vinha roçar as asas nos vidros das janelas, o corvo
crocitava no cimo do velho teixo e o vento vagueava em volta da
casa, gemendo como alma penada.
Mas a família Otis dormia, inconsciente do seu destino, e o
cadenciado ressonar do Ministro dos Estados Unidos cobria o ruído
do temporal. O fantasma esgueirou-se para fora da madeira das
paredes sem dar sinal de si. Sobre a sua boca murcha e cruel
desenhava-se um aflitivo sorriso, e a lua escondeu-se por detrás de
uma nuvem quando ele passou junto da grande janela ogival ornada
de um brasão azul e ouro, que representava as suas próprias armas
e as da sua esposa assassinada. Deslizava como uma sombra funesta
e até as trevas pareciam odiá-lo. De súbito, supôs ouvir alguém a
chamá-lo. Deteve-se; mas apenas o latido de um cão subia da Granja
Vermelha. Prosseguiu caminho, resmungando pragas do século
dezasseis e brandindo de quando em quando a adaga corroída de
ferrugem.
O fantasma atingiu, por fim, o recanto do corredor que conduzia
ao quarto do infortunado Washington. Parou um instante. O vento
sacudia-lhe as madeixas compridas de cor de cinza e fazia ondular de
maneira grotesca e fantástica o sudário de morto. O quadro
inspirava indizível horror. O relógio soou então o quarto de hora.
Compreendeu que tinha chegado o momento.
Soltou, baixinho, uma risadinha de escárnio e transpôs a esquina
do corredor. Mas, mal tinha dado aí um passo, logo recuou com um
lamentoso gemido de terror e logo também ocultou nas suas mãos
ossudas a face macilenta.
Diante de si erguia-se um horrível espectro, tão imóvel como
uma figura de pedra, tão monstruoso como o sonho de um louco. A
cabeça dele era calva e luzidia, a face redonda, gorda e branca. Um
riso ignóbil parecia ter-lhe contorcido as feições numa expressão
eterna de zombaria. Dos olhos escorriam-lhe clarões escarlates. A
boca era um largo poço de fogo e uma horrenda vestimenta,
semelhante à sua, envolvia de longas pregas brancas o vulto titânico.
Um letreiro contendo uma inscrição em caracteres estranhos e
antigos ornava-lhe o peito: sem dúvida, um certificado de infâmia, a
narrativa de medonhas faltas, uma lista de crimes espantosos. Com a
mão direita, brandia um gládio de aço brilhante.
Nunca tendo visto, até à data, nenhum fantasma, sentiu
naturalmente um grande pavor. Lançou, rápido outro olhar ao
terrível espectro e desatou a fugir para o seu quarto, tropeçando, ao
seguir pelo corredor, no longo sudário que trazia. Por último, deixou
cair a adaga ferrugenta dentro das grossas botas do Embaixador,
onde o mordomo a foi encontrar no dia seguinte de manhã.
Uma vez no refúgio da sua alcova, atirou-se para cima da
estreita cama de lona e enterrou o rosto nos lençóis. Mas
transcorrido um pedaço de tempo a antiga coragem dos Cantervilles
recuperou os seus direitos.
Decidiu ir falar com o outro fantasma, logo que nascesse o dia.
E apenas a aurora prateou as colinas, voltou ao sítio onde havia, pela
primeira vez, lançado os olhos sobre o formidável espectro,
raciocinando que, no fim de contas, dois fantasmas valiam mais do
que um, e que com a ajuda do seu novo colega talvez vencesse
melhor os gémeos.
Mas quando ali se encontrou, no mesmo lugar, um horrível
espectáculo feriu seus olhos. Era de todo evidente que acontecera
qualquer coisa ao fantasma, porque a luz lhe desaparecera
completamente das órbitas, o gládio brilhante escorregara-lhe da
mão e o corpo encostava-se à parede numa atitude de
constrangimento e incómodo.
Precipitou-se para ele e tomou-o nos braços. Mas, com
assombro seu, a cabeça do outro rolou para o chão; o corpo foi-se
também abaixo, e percebeu que estreitava apenas um cortinado de
cama, de fustão branco, ao mesmo tempo que uma escova de cabo,
uma machada de cozinha e um nabo oco lhe jaziam aos pés. Incapaz
de compreender esta curiosa transformação, pegou no letreiro com
pressa febril e, à luz fosca da aurora, leu estas palavras
abomináveis: o fantasma Otis é o único, autêntico e original.
Desconfiai das falsificações!...
Como num relâmpago, compreendeu tudo. Tinham-lhe pregado
uma partida! A característica expressão, dos Cantervilles perpassou-
lhe nos olhos; cerrou as maxilas sem dentes e, levantando muito alto,
acima da cabeça, as mãos descarnadas, jurou, segundo a fraseologia
pitoresca da escola antiga, que, quando o galo fizesse ouvir mais
duas vezes o seu alegre apelo, haviam de dar-se ali acontecimentos
sangrentos e a morte deslizaria por aqueles lugares em silenciosos
passos.
Mal formulara este temível juramento, subiu, a distância, de
uma granja coberta de telhas vermelhas, a voz de um galo. O
fantasma soltou um prolongado e amargo riso e esperou. Hora após
hora, esteve à espera; mas, por qualquer razão estranha, o galo não
repetiu o canto. Por fim, às sete e meia, a chegada dos serviçais
obrigou-o a abandonar o seu horrível posto de sentinela. Regressou
ao quarto a passos lentos, a meditar na sua vã esperança e no seu
abortado plano. Consultou então muitas obras a que dedicava
particular apreço e que tratavam da antiga cavalaria. Aí verificou
que, de todas as vezes que tal juramento havia sido formulado,
sempre o galo cantara segunda vez.
- Diabos levem aquele maldito volátil! - resmungou ele. -
Ah! não me encontrar ainda no tempo em que, com minha
intrépida lança, lhes trespassaria a gorja e em que o teria obrigado a
cantar só para mim até perder o sopro!
Depois estendeu-se num confortável ataúde de chumbo, em que
permaneceu até o cerrar da noitinha.
IV
No dia imediato o fantasma estava muito fraco e muito cansado.
Começava a ressentir-se dos efeitos da medonha agitação das quatro
últimas semanas. Com os nervos quebrados, até o menor ruído o
sobressaltava. Não saiu do quarto durante cinco dias e decidiu por
fim renunciar à nódoa de sangue no chão da biblioteca.
Se a família Otis não queria aquilo, claro estava que nem por
sombras era digna do caso. Com plena evidência, essas pessoas
viviam num plano de existência de baixo materialismo e eram em
absoluto incapazes de apreciar o valor simbólico dos fenómenos
sobrenaturais. O assunto das aparições espectrais e o
desenvolvimento dos corpos astrais eram, sem dúvida, coisas
diferentes e alheias à atenção daquela gente. Ele, fantasma, tinha
como missão, como missão solene, aparecer no corredor uma vez por
semana e ulular através de um janelão em ogiva na primeira e na
terceira quartas-feiras do mês, e não via maneira de poder subtrair-
se honrosamente às suas ocupações. A sua vida, é certo, fora
culposa; mas, por outro lado, ele era rigidamente escrupuloso em
tudo quanto se relacionava com o sobrenatural.
Três sábados a fio o fantasma atravessou, portanto, o corredor
como de costume, entre a meia-noite e as três da manhã, tomando
mil precauções para não ser visto nem ouvido. Tirou os sapatos,
pisou tão levemente quanto possível as faixas do parquete roídas pelo
caruncho, enrolou-se num amplo manto de veludo negro e decidiu-se
a empregar o lubrificante para untar as suas cadeias. É-me forçoso
reconhecer que não foi sem dificuldade que veio a adoptar este
derradeiro meio de protecção; mas, uma noite e à hora em que a
família da casa se preparava para ir jantar, introduziu-se nos
aposentos de mr. Otis e lançou mão do respectivo frasco. Ao fazê-lo
experimentou, a princípio, um pouco de humilhação, mas logo
adquiriu a inteligência bastante para se inteirar de que a invenção
estava longe de ser má e de que, até certo ponto, lhe favorecia os
planos.
Apesar de tudo, não o deixavam, entretanto, em paz.
Estendiam constantemente cordas no corredor, nas quais,
quando estava escuro, tropeçava; e uma vez em que se encontrava
vestido para desempenhar o papel do «Negro Isaque ou o Caçador
de Hogley Woods», deu uma queda muito grave sobre um
resvaladouro que os gémeos haviam armado e que ia desde a Sala
das
Tapeçarias até o cimo da escada de carvalho. Esta última
afronta pô-lo em tamanha fúria que resolveu fazer um derradeiro
esforço a fim de restabelecer a sua dignidade e a sua posição social.
Decidiu pois uma visita, para a noite imediata, aos juvenis e
insolentes colegiais de Eton, no seu famoso disfarce de «Ruperto, o
Arrisca-Tudo ou o Conde-sem-Cabeça».
O fantasma já não fazia qualquer aparição mascarado desta
maneira desde mais de setenta anos atrás, precisamente desde que,
assim vestido, aterrorizara a gentil lady Bárbara Modish, ao ponto
de ela ter rompido bruscamente as promessas de noivado com o avô
do lorde Canterville actual e fugido para Gretna Green com o belo
Jack Castleton, declarando que nada deste mundo a decidira a entrar
numa família que deixava um tão horroroso fantasma percorrer o
terraço, ao cerrar-se o crepúsculo. Mais tarde, o pobre Jack foi
morto em duelo por lorde Canterville em Wandsworth Common, e
lady Bárbara, com o coração despedaçado, morreu em Tunbridge
Wells antes de findo esse mesmo ano; de sorte que, sob todos os
aspectos, fora um esplêndido êxito.
Todavia, tratava-se de uma «composição» extremamente difícil
(se me é permitido usar esta expressão de teatro a propósito de um
dos maiores mistérios do sobrenatural, ou, para empregar um termo
científico, do mundo supra-normal), e foram-lhe precisas três boas
horas para executar os preparativos. Tudo se aprontou, finalmente.
Estava muitíssimo satisfeito com o seu aspecto. As altas botas de
montar que condiziam com o trajo eram um tanto largas de mais
para ele, e não tinha podido achar senão uma das pistolas dos coldres
da sela; mas, em suma, estava muito contente, e, à uma hora e um
quarto, deslizou através do forro de madeira e desceu suavemente
para o corredor.
Chegado ao quarto que os gémeos ocupavam (designavam-no
por «o quarto azul», por causa do tom das pinturas), encontrou a
porta entreaberta. Querendo fazer uma entrada de pleno efeito,
empurrou bruscamente a porta, mas o conteúdo de um grande jarro
de água entornou-se em cima dele e o próprio jarro, ao cair, roçou-
lhe pela espádua esquerda. No mesmo instante, risadas que alguém
procurava reprimir subiram dos leitos de colunas. O abalo nervoso
que experimentou foi tamanho que desatou a fugir para o seu
esconderijo com a maior celeridade. No dia seguinte, muitíssimo
constipado, teve de conservar-se na cama. A consolação única que
lhe restava era de não ter levado a sua própria cabeça nesta
expedição; de contrário, a imprudência poder-lhe-ia ter acarretado
as mais graves consequências.
O fantasma abandonou então toda a esperança de assustar
aquela grosseira família americana e contentou-se, afinal, com
percorrer de pantufas de solas de feltro os corredores, o pescoço
envolvo num espesso cachené vermelho por causa das correntes de
ar e empunhando um bacamartezinho com receio de ser atacado
pelos gémeos. Foi em 19 de Setembro que ele recebeu o golpe final.
O fantasma descera ao vasto hall de entrada, certo de que aí
ninguém o molestaria, e divertia-se a alvejar com observações
satíricas as grandes fotografias do Ministro dos Estados Unidos e de
sua mulher, assinadas por Saroni, que haviam substituído os retratos
da família dos Cantervilles. Vestia-o um longo sudário, muito simples
mas decente, salpicado de manchas de lama vinda do cemitério.
Atara os queixos com uma ligadura de tela amarelada e segurava
uma pequena lanterna e uma enxada de coveiro. Numa palavra,
estava disfarçado para o papel de «Jonas, o Morto sem Sepultura, ou
o Ladrão de Cadáveres de Chertsey Barn», uma das suas mais
notáveis criações, da qual ora os Cantervilles tinham excelentes
razões para se lembrar, porque fora essa a verdadeira origem do
pleito com o seu vizinho, lorde Rufford.
Eram aproximadamente duas horas e um quarto da manhã. O
fantasma poderia afirmar que todos os moradores da casa
repousavam. Mas ao dirigir-se, em ar de passeio, para a biblioteca,
no fito de ver se ainda restava qualquer vestígio da mancha de
sangue, saltaram de súbito sobre ele, de um recanto escuro, dois
vultos que agitavam ferozmente os braços por cima da cabeça e lhe
berravam «U-u! U-u!» aos ouvidos.
Tomado de pânico, o que em tais circunstâncias era muitíssimo
natural, precipitou-se para a escadaria: aí, porém, esperava-o
Washington com a grande mangueira de rega do jardim. Cercado de
todos os lados pelos inimigos, literalmente encurralado, desapareceu
no interior do enorme fogão, que, felizmente para si, não estava
aceso. Teve de abrir caminho através dos canos e das chaminés e
alcançou o seu quarto num lamentável estado de sujidade, desarranjo
e desespero.
Após esta aventura renunciou às expedições nocturnas. Os
gémeos muitas vezes se esconderam à sua espera e, todas as noites,
juncavam de cascas de nozes os corredores, coisa que aborrecia
bastante os país e os criados; mas foi tudo inútil. Era manifesto que o
fantasma, ferido em seus sentimentos, se recusava a aparecer. Em
consequência, mr. Otis retomou a sua grande obra sobre a «História
do Partido Democrático», em que trabalhava havia uma porção de
anos.
Mrs. Otis organizou um maravilhoso clam-bak, que causou
espanto em toda a região. Os rapazes dedicaram-se ao cross, ao
écarté, ao poker e a outros jogos nacionais americanos. E Virgínia
percorreu no seu poldro todos os caminhos circunvizinhos, em
companhia do duque de Cheshire, que tinha vindo passar no Parque
Canterville a sua última semana de férias. Supôs-se, naturalmente,
que o fantasma abalara dali, e mr. Otis escreveu a lorde Canterville
a informá-lo do caso. Este respondeu que a notícia lhe dava grande
prazer, e enviou os seus cumprimentos à digna esposa do Ministro.
Mas os Otis enganavam-se, porque o fantasma permanecia
ainda na casa e, se bem que estivesse agora quase inválido, não tinha
de forma nenhuma a intenção de ficar quieto, sobretudo desde que
soube que, entre os convidados, se encontrava o duquezinho de
Cheshire, cujo tio-avô, lorde Francis Stilton, apostara um dia cem
guinéus em como jogaria aos dados com o fantasma de Canterville,
vindo a ser encontrado, na manhã seguinte, estendido no chão da
sala de jogo completamente paralítico. Não obstante ter vivido até
avançada idade, nunca mais pôde dizer senão isto: «duplo-seis!».
A história era bem conhecida na época em que sucedera o caso;
mas, para poupar o sentimento de duas famílias nobres, tudo foi
tentado para abafar a coisa.
Todavia, encontrar-se-á uma sua narrativa pormenorizada no
terceiro volume da obra de lorde Tattle: «Memórias Relativas ao
Príncipe Regente e seus Amigos».
Era, por conseguinte, natural que o fantasma quisesse provar
que não tinha perdido a influência sobre os Stilton, aos quais o unia
um parentesco afastado, devido a uma sua prima-irmã ter casado em
segundas núpcias com o Senhor de Bulkeley, de quem os duques de
Cheshire, como se sabe, descendem em linha directa.
Consequentemente, tomou as suas disposições para aparecer ao
juvenil enamorado de Virgínia na sua célebre criação do «Monge
Vampiro, ou o Beneditino Exangue», espectáculo tão horrível que a
velha lady Startup, ao dar com os olhos nele, o que lhe sucedeu nessa
fatal véspera do ano de 1764, desatou nos mais dilacerantes gritos,
que terminaram por um ataque de apoplexia; morreu três dias
depois, não sem ter deserdado os Canterville, seus mais próximos
parentes, e deixado todo o dinheiro que possuía ao seu boticário de
Londres.
V
Passados dias, andavam Virgínia e o seu apaixonado de cabelos
em anéis a percorrer a cavalo as pradarias de Brockley, eis senão
quando a rapariguinha, sentindo-se presa num silvado, rasgou o
vestido de amazona tão desastradamente, que, ao reentrar em casa,
decidiu tomar a escada secreta para que ninguém lhe pusesse a vista
em cima. Ao passar, porém, a correr, diante da Sala das Tapeçarias,
cuja porta precisamente estava aberta, julgou perceber a existência
de alguém no interior. Vindo-lhe à ideia que seria a criada de quarto
da mãe, a qual às vezes ia para ali costurar, entrou para pedir à
mulher que lhe consertasse a saia.
E, com imensa surpresa sua, Virgínia viu o fantasma de
Canterville em pessoa! Estava sentado junto da janela, a contemplar
o ouro das árvores amarelentas, a ver as folhas rubras rodopiarem
como loucas na grande alameda. A cabeça apoiada na mão, toda a
sua atitude traía uma depressão extrema. Na verdade, ele
apresentava um ar tão desolado e tão lamentável, que a pequena
Virgínia, cujo primeiro movimento foi fugir e encerrar-se no quarto,
tomada logo de piedade resolveu tentar reconfortá-lo. Os passos de
Virgínia eram tão leves e a melancolia do fantasma tão profunda, que
este não teve consciência.
- Sinto-me contristada por sua causa - disse Virgínia - os meus
irmãos voltam amanhã para Eton e, se o senhor se portar bem,
ninguém o atormentará.
- Pedirem-me que me porte bem! Mas é absurdo! - respondeu
ele com os olhos escancarados de espanto à vista daquela gentil
donzelinha que ousava dirigir-se-lhe.
- É completamente absurdo! É imprescindível que eu faça
ranger as minhas cadeias e ulule pelos buracos das fechaduras e
passeie por aí de noite, se é a isto que a menina faz alusão. Essa é a
minha única razão de existência.
Mas, à última hora, o terror que lhe causavam os gémeos
impediu o fantasma de abandonar o seu quarto. E, na câmara real, o
duquezinho dormia em paz no vasto leito de baldaquino ornado de
plumas e sonhava com Virgínia.
- Isso não e uma razão de existência, e o senhor bem sabe que
tem sido muito mau. Mrs. Umney dissenos, no dia da nossa chegada
aqui, que o senhor matou a sua mulher.
- Bem, concordo - disse com vivacidade o fantasma -; mas trata-
se de um assunto de família com o qual os outros nada têm.
- É multo mal feito matar alguém - insistiu Virgínia, que, vezes,
mostrava uma encantadora expressão de gravidade puritana,
herdada de qualquer antepassado da Nova Inglaterra.
- Oh, detesto esse corriqueiro rigor da ética abstracta!
Minha mulher era feia, não engomava nunca convenientemente
a minha gola de folhos e não percebia nada de cozinha. Olhe, eu tinha
matado um veado nos bosques de Hogley, um veadozinho magnífico.
Quer saber como ela o fez aparecer à mesa? Mas que importa o
caso, presentemente?! Tudo isso acabou. Não creio, porém, que
fosse muito bonito da parte de seus irmãos fazerem-me morrer de
fome, embora eu a tenha matado.
- Fazê-lo morrer de fome? Oh, senhor fantasma... quero dizer,
sir Simon... o senhor tem fome? Trago ali uma sanduíche no meu
saco de costura. Quere-a?
- Não, obrigado, já não como nada, agora. Mas é, apesar de
tudo, muita amabilidade da sua parte. A menina é muito mais gentil
do que o resto da sua horrenda família, grosseira, vulgar, indigna!
- Cale-se! - bradou Virgínia batendo com o pé no chão. -
Quem é grosseiro, horrendo e vulgar, é o senhor; e, quanto a
indignidade, sabe perfeitamente que foi o senhor quem roubou as
bisnagas da minha caixa de pintura para tentar avivar essa ridícula
mancha de sangue na biblioteca. Primeiramente, deitou mão a todos
os meus encarnados, sem esquecer o vermelhão, e tive de deixar de
pintar o pôr do Sol; depois arrebatou o verde-esmeralda e o amarelo
cromado; e, finalmente, só me restavam o anil e o branco da China,
de modo que só podia pintar paisagens à luz do luar, que deprimem
tanto quando as olhamos e que são tão pouco fáceis de executar. Eu
nunca disse nada contra o senhor; contudo, andava muito aborrecida
e tudo aquilo era bastante ridículo. Já se viu sangue de tom verde-
esmeralda?
- Mas - disse o fantasma acalmando-se um pouco -, que hei-de eu
fazer? Nestes nossas dias, é muito difícil encontrar sangue
verdadeiro e, visto que foi o seu irmão a romper com o tira-nódoas,
não vejo motivo para não lançar mão das bisnagas que lhe
pertencem. Quanto à cor, é simples questão de gosto: os
Cantervilles, por exemplo, têm sangue azul, o mais azulado de
Inglaterra, mas sei que vós outros, os americanos, troçais a valer de
tudo isto.
- O senhor nada sabe a esse respeito, e o melhor que tem a
fazer é emigrar, para cultivar o espírito. Meu pai não deixará de
sentir-se muitíssimo feliz em lhe conseguir uma passagem gratuita. O
senhor não encontrará dificuldade alguma na alfândega, onde todos
os funcionários são democratas. Uma vez em Nova-Iorque, alcançará
o maior dos êxitos. Conheço uma porção de gente que daria cem mil
dólares para ter um antepassado, e ainda mais para ter um fantasma
na família.
- Tenho a convicção de que não gostaria da América.
- Porque, suponho, não temos lá ruínas, nem curiosidades - disse
Virgínia ironicamente.
- Nem ruínas! Nem curiosidades! - replicou o fantasma - Mas
tendes a vossa marinha e essas vossas maneiras!
- Adeus! Vou pedir ao meu papá que conceda aos gémeos uma
semana suplementar de férias.
- Não, não vá, miss Virgínia! - implorou o fantasma. - Estou tão
só e tão desgraçado e não sei verdadeiramente o que fazer. Quero
dormir e não posso.
- Mas isso é absurdo! Basta deitar-se e soprar a vela. Às vezes
é difícil a gente manter-se acordada, na igreja sobretudo, mas é coisa
bem fácil dormir. Até os bebés sabem isso; todavia, não são muito
inteligentes.
- Há trezentos anos que não durmo, - disse ele com tristeza (os
belos olhos azuis de Virgínia dilataram-se de espanto).
- Há trezentos anos que não durmo, e estou tão cansado!
O rosto de Virgínia tornou-se grave e os labiozinhos puseram-
se-lhe a tremer como pétalas de rosa. Aproximou-se do espectro e,
ajoelhando-se junto dele, ergueu os olhos para a velha face
pergaminhanda.
- Pobre, pobre fantasma! - murmurou - Não há então sítio onde
possa dormir?
- Além em baixo, para lá do pinhal - respondeu ele numa voz
lenta e meditativa -, há um jardinzinho. A erva cresce ali, espessa e
alta, salpicada das grandes estrelas brancas da cicuta, e o rouxinol
canta lá toda a noite. Toda a noite ali canta o rouxinol, e a fria lua de
cristal reclina-se para ver melhor, e o cipreste estende seus braços
gigantescos sobre os dormentes.
Os olhos de Virgínia velaram-se de lágrimas e ela escondeu o
rosto nas mãos.
- Quer aludir ao jardim da Morte - murmurou.
- Sim, da Morte! A morte deve ser tão bela! Repousar na terra
doce e escura, tendo as ervas a ondular por cima de nós, e escutar o
silêncio! Não ter ontem nem amanhã! Esquecer o tempo! Esquecer a
vida, estar em paz! A menina pode ajudar-me. Pode abrir para mim
as portas da casa da Morte, porque traz o Amor consigo e o Amor é
mais forte do que a Morte.
Virgínia pôs-se a tremer, percorreu-a toda um frémito gelado e,
durante momentos, fez-se silêncio. Tinha a impressão de estar
sonhando um terrível sonho.
O fantasma voltou então a falar, e a sua voz ressoava como um
suspiro do vento.
- Já leu alguma vez a velha profecia inscrita nos vitrais da
biblioteca?
VI
Daí a dez minutos, a sineta tocou para o chá e, como Virgínia
não descesse, mrs. Otis mandou-a chamar por um dos criados.
Passado um momento, este voltou para dizer que não tinha
encontrado miss Virgínia em parte nenhuma. Como a jovem adquiria
o costume de ir todas as tardes colher flores para o jantar, mrs. Otis
não se inquietou; mas ao soarem as seis horas sem que a filha tivesse
reaparecido, começou verdadeiramente a alarmar-se e mandou os
rapazes à sua procura, ao mesmo tempo que ela própria e mr. Otis
percorriam a casa, compartimento por compartimento.
Às seis e meia estavam de volta os rapazinhos sem terem podido
achar o mais leve vestígio da irmã. Todos se encontravam agora na
maior agitação e não sabiam que fazer, quando mr. Otis se lembrou
de repente que, uns dias antes, concedera licença a um bando de
ciganos para acamparem no parque. Imediatamente partiu para
Blackfell Hollow, onde, sabia-o, os ciganos deviam agora estar.
Acompanhavam-no seu filho mais velho e dois criados da granja. O
duquezinho de Cheshire, louco de ansiedade, insistiu veementemente
em se lhes juntar, mas mr. Otis opôs-se temendo que se travasse ali
uma desordem. Ao chegar, porém, ao sítio em vista, descobriu que os
ciganos haviam desaparecido. O lume, que ardia ainda, e alguns
pratos dispersos pelo solo denunciavam claramente uma retirada
repentina.
Depois de ter ordenado a Washington e aos dois homens que
explorassem as circunvizinhanças, mr. Otis regressou a toda a
pressa e expediu telegramas para todos os inspectores de polícia do
Condado, pedindo-lhes que procurassem uma menina que fora
raptada por vagabundos ou ciganos. Em seguida, mandou que lhe
selassem o cavalo, intimou a esposa e os três rapazes a tomarem o
seu jantar e, acompanhado de um lacaio, dirigiu-se para Ascot. Mas
mal percorrera duas milhas ouviu atrás de si um galope. Voltando-se,
descortinou o duquezinho, que vinha montado no seu poldro, o rosto
muito afogueado e cabelos ao vento.
- Lamento muito - disse o rapazinho numa voz ofegante -, mas
não poderei jantar enquanto Virgínia não for encontrada. Peço-lhe
que não se zangue. Se o senhor tivesse consentido, o ano passado, no
nosso ajuste de casamento, nada disto teria sucedido. Não vai
mandar-me para trás, não é verdade? Eu não quero ir para casa!
Não quero ir para casa!
O Ministro não pôde impedir-se de sorrir ao juvenil e
encantador doidivanas e sentiu-se muito comovido com a devoção
dele por Virgínia. Inclinando-se do alto do seu cavalo, deu uma
palmada no ombro do rapaz e disse:
- Pois bem, Cecil, se você não quer ir para casa, tenho de levá-lo
comigo, suponho. Comprar-lhe-ei um chapéu em Ascot.
- O chapéu que vá para o diabo! Da Virgínia é que eu preciso! -
exclamou, a rir, o duquezinho.
Galoparam até à estação do caminho de ferro, onde mr. Otis
perguntou se não tinha sido ali vista, na gare, qualquer pessoa
correspondendo aos sinais de Virgínia; mas não pôde obter qualquer
indicação. Contudo, o chefe da estação telegrafou para todas as
outras estações da linha e prometeu fazer exercer por toda a parte
uma severa vigilância. Depois de ter comprado um chapéu para o
duquezinho a um comerciante de novidades, que ia precisamente
naquele momento encerrar a sua loja, mrs. Otis dirigiu-se para
Bexley, aldeia a quatro milhas dali, a qual, segundo lhe haviam dito,
era local de encontro dos ciganos, por lá haver um prado comunal.
Chegados a esse sítio, mr.
Otis e o seu companheiro acordaram o guarda campestre mas
não puderam extrair dele a menor informação e, após terem
percorrido o prado inteiro, retomaram o caminho de casa e
alcançaram o Parque Canterville pelas onze horas da noite,
completamente esgotados e desesperados. Washington e os gémeos
esperavam-nos ao pé do gradeamento com lanternas, porque a
alameda estava muito escura.
Não se conseguira descobrir o mais leve rasto de Virgínia.
Os ciganos tinham sido concentrados nas pradarias de Brockley,
mas a jovem não se encontrava entre eles. Uma confusão de datas
explicava a sua brusca partida: a feira de Chorton, que se realizava
mais cedo do que pensavam, obrigara-os a abalar a toda a pressa. A
verdade é que até eles haviam ficado consternados ao saberem do
desaparecimento de Virgínia, porque guardavam grande
reconhecimento a mr. Otis por este lhes ter permitido acamparem no
seu parque, e quatro companheiros do bando ficaram para trás a fim
de colaborarem nas pesquisas. O tanque das carpas fora esvaziado e
todo o domínio batido de lés a lés, mas sem resultado. Era forçoso
renderem-se à evidência: pelo menos naquela noite, Virgínia estava
perdida para eles; e, profundamente abatidos, mr. Otis e os rapazes
dirigiram-se para casa seguidos do lacaio, o qual conduzia à mão os
dois cavalos e o poldro.
Encontraram no átrio um grupo de criados cheios de medo. A
pobre mrs. Otis estava estendida num divã da biblioteca, semi-louca
de inquietação e de pavor; a velha governanta banhava-lhe a fronte
com água de Colónia. Mr. Otis insistiu imediatamente com ela para
que tomasse qualquer alimento e mandou servir o jantar para todos.
Foi uma bem triste refeição, em que quase se não proferiu
palavra. Os próprios gémeos estavam aterrados, amachucados,
porque adoravam a irmã. No fim do jantar mr. Otis, não obstante os
rogos do duquezinho, ordenou que todos se deitassem, dizendo que
nenhuma outra coisa poderia ser feita nessa noite e que, no dia
seguinte de manhã, telegrafaria à Scotland Yard (5), para lhe serem
enviados imediatamente alguns agentes.
Precisamente no instante em que saíam da sala de jantar soava
a meia-noite no relógio da torre e, quando retiniu a décima segunda
pancada, ouviram todos um enorme estrondo, seguido de um grito
penetrante. Um formidável trovão abalou a casa, os acordes de uma
harmonia irreal flutuaram no espaço, no alto da escadaria abriu-se
um dos panos das paredes e, no patamar, apareceu Virgínia, muito
pálida, com um cofrezinho na mão.
Foi um instante enquanto todos se precipitaram para ela.
Mrs. Otis abraçou-a apaixonadamente, o duque afogou-a com a
violência dos seus beijos, e os gémeos executaram em volta do grupo
uma dança guerreira.
- Santo Deus, donde vens tu?! - perguntou mr. Otis numa voz
bastante irritada, ao pensar que a filha lhes tinha pregado uma
partida insensata -. Cecil e eu cavalgámos toda a região, à tua
procura, e tua mãe esteve prestes a morrer de angústia. Aconselho-
te a não voltares a entregar-te a farsas tão estúpidas como esta.
- Excepto contra o fantasma! Excepto contra o fantasma! -
bradaram os gémeos entre mil piruetas.
- Minha querida, graças a Deus tenho-te aqui! É preciso que
nunca mais me deixes - murmurou mrs. Otis, enlaçando a criança, a
qual tremia e alisava os seus caracóis de ouro todos emaranhados.
- Papá - disse Virgínia num tom calmo - eu estava com o
fantasma. Ele morreu. Devem ir vê-lo. Era muito mau, mas
arrependeu-se verdadeiramente do que fez e, antes de morrer, deu-
me este cofrezinho com maravilhosas jóias.
Toda a família a fitava, os olhos escancarados de surpresa, mas
ela permanecia grave e séria; desviando-se, guiou-os através de uma
abertura no forro de madeira das paredes até um estreito corredor
secreto.
Washington seguia-os empunhando uma vela que havia tirado de
cima da mesa. Chegaram por fim a uma grande porta de carvalho
ornada de pregos cheios de ferrugem. Quando Virgínia lhe tocou a
porta girou nos gonzos, e encontraram-se todos numa salinha baixa,
de tecto de abóbada e cujo único meio de renovação do ar era uma
minúscula janela gradeada. Uma enorme argola de ferro estava
chumbada à parede e, encadeado à argola, via-se um grande
esqueleto estendido ao comprido no chão de pedra, parecendo tentar
agarrar uma escudela velha e uma bilha colocada fora do seu
alcance. A bilha devia ter contido outrora água, porque se mostrava
por dentro coberta de bolor. Na escudela não existia senão urna
camada de pó.
Virgínia ajoelhou-se junto do esqueleto e, juntando as delicadas
mãos, pôs-se a rezar em silêncio, enquanto a horrível tragédia cujo
segredo lhe era assim revelado.
- Olhem! - gritou de repente um dos gémeos, o qual se
dependurara da janela para observar em que ala da edificação se
situava aquele quarto. - Olhem! A velha amendoeira toda sequinha
está em flor! Vêem-se muito bem as flores, à claridade do luar.
- Deus perdoou-lhe - proferiu gravemente Virgínia, erguendo-se;
e uma luz maravilhosa parecia banhar-lhe o rosto.
- És um anjo! - exclamou o duquezinho, que lhe lançou um braço
à volta do pescoço, estreitando-a contra si.
VII
Quatro dias após estes curiosos acontecimentos, um préstito
fúnebre deixava o Parque Canterville pelas onze horas da noite. Oito
cavalos negros puxavam o carro mortuário e sobre as cabeças deles
agitavam-se grandes penachos de plumas de avestruz. Um
sumptuoso pano cor de púrpura, que as armas dos Cantervilles,
bordadas a ouro, ornavam, cobria o caixão de chumbo. Junto do
carro marchavam os criados empunhando tochas e todo o cortejo
assumia singular imponência.
Lorde Canterville dirigia o enterro. Tinha vindo expressamente
do País de Gales para assistir à cerimónia e ocupava a primeira
carruagem, acompanhado da jovem Virgínia. A seguir iam o Ministro
dos Estados Unidos e a esposa, depois Washington e os três rapazes,
e por fim, na carruagem da cauda, mrs. Umney.
Partiu-se da convicção de que a governanta, que durante mais
de cinquenta anos havia sido apoquentada pelo fantasma, tinha o
direito de o ver desaparecer para sempre. Fora cavada num canto do
cemitério uma profunda sepultura, precisamente sob a ramagem do
velho teixo, e as preces foram proferidas pelo Rev.
Augustus Dampier da maneira mais impressionante.
No termo da cerimónia, os criados, conforme um costume
tradicional na família Canterville, apagaram as suas tochas e no
momento da descida do caixão ao coval Virgínia avançou e depôs
sobre ele uma grande cruz tecida de rosas e flores de amendoeira.
Simultaneamente, a Lua surgiu de trás de uma nuvem e, com as suas
ondas silenciosas e argênteas, iluminou o pequeno cemitério; e do
recesso de uma moita, a distância, subiu o canto de um rouxinol. A
jovem recordou a descrição que o fantasma fizera do Jardim da
Morte. Velaram-se-lhe de lágrimas os olhos e mal articulou palavra
durante o caminho de regresso.
No dia seguinte de manhã, antes do lorde Canterville partir
para Londres, mr. Otis conferenciou com ele a respeito das jóias
dadas a Virgínia pelo fantasma.
Eram de notável magnificência, em especial certo colar de rubis
com um engaste veneziano, admirável trabalho do século dezasseis,
e o valor delas todas era tal que mr. Otis sentia grandes escrúpulos
em consentir que a filha as aceitasse.
- Lorde Canterville - disse o Ministro -, eu sei que o regime dos
bens chamados de mão-morta é aplicável neste país tanto às jóias
como às terras, e parece-me evidente que estas jóias de família lhe
pertencem, por conseguinte. Devo, pois, pedir-lhe que as leve para
Londres e que as considere simplesmente como uma parte da vossa
herança, agora restituída em inesperadas circunstâncias. Quanto à
minha filha, ela é ainda uma criança e (sinto-me feliz em dizê-lo) não
presta mais do que medíocre interesse a esses vãos acessórios de
luxo. Para mais, minha mulher, que, ouso afirmá-lo, é em matéria de
arte uma autoridade com a qual é necessário contar - ela gozou do
privilégio de passar muitos Invernos em Boston quando ainda solteira
- comunicou-me terem essas jóias elevado valor monetário. Postas à
venda, atingiriam altíssimo preço. Nestas condições, lorde
Canterville, estou certo de que compreenderá não poder eu permitir
a nenhum membro da minha família conservá-las na sua posse.
E, em boa verdade, todos esses frívolos, adornos, por mais
adequados ou indispensáveis que sejam à dignidade da aristocracia
inglesa, estariam em absoluto deslocados entre pessoas educadas
nos princípios severos e, suponho, imortais, da simplicidade
republicana. Talvez me seja lícito acrescentar que Virgínia deseja
vivamente que a autorize a guardar para ela o cofrezinho, a título de
recordação dos desvairos e dos infortúnios desse vosso antepassado.
Visto que o cofre se acha muito velho e muito estragado, talvez o
senhor julgue razoável deferir o pedido. Pela minha parte, confesso
estar bastante surpreendido vendo um dos meus filhos exprimir
simpatia pelas coisas medievais, seja sob que aspecto for, e não
posso explicar isto a mim próprio senão pelo facto de Virgínia ter
nascido num dos vossos arrabaldes londrinos pouco tempo depois da
chegada de minha mulher, que regressava de uma viagem a Atenas.
Lorde Canterville escutou com muita gravidade o discurso do
digno Ministro, repuxando de quando em quando as pontas do seu
bigode grisalho para dissimular um sorriso involuntário; e quando
mr. Otis acabou de falar, apertou-lhe a mão cordialmente e disse: -
Meu caro senhor, a sua encantadora filhinha prestou a sir Simon,
meu infeliz avoengo, um serviço de importância, e eu e a minha
família devemos muito à maravilhosa coragem dela. Claro está que
as jóias lhe pertencem; e, por minha fé, creio que se eu tivesse tão
pouco coração que lhas tirasse, o maroto do velho sairia, antes de
quinze dias decorridos, do seu túmulo e arranjar-me-ia uma vida de
inferno. Quanto a constituírem jóias de família, tal só seria possível
se figurassem num testamento ou em documento legal, e a existência
dessas jóias era-me completamente desconhecida. Asseguro-lhe que
não tenho mais direitos sobre elas do que, por exemplo, o seu
mordomo, e, ouso dizê-lo, quando miss Virgínia for crescida
desvanecer-se-á ao usar esses lindos objectos.
O senhor esquece também, mr. Otis, que comprou em conjunto
a propriedade e o fantasma passou, implícita e imediatamente, para a
sua posse, pois por maior actividade de que sir Simon tenha dado
sinal durante a noite, nos corredores da casa, ele estava
verdadeiramente morto do ponto de vista jurídico, e a aquisição feita
pelo senhor tornou-o possuidor dos bens dele.
Mr. Otis, muito comovido com a recusa de lorde Canterville,
suplicou-lhe que reconsiderasse na sua decisão, mas o excelentíssimo
membro da Câmara Alta inglesa permaneceu firme e, acabou por
persuadir o Ministro a que consentisse à filha guardar o presente do
fantasma.
E quando, na Primavera de 1890, a jovem duquesa de Cheshire
foi, por ocasião do seu casamento, apresentada a primeira vez na
recepção da Rainha, as jóias que ostentava tornaram-se tema da
admiração geral. Porque Virgínia recebeu a coroa, que é a
recompensa de todas as boas meninas americanas, e desposou
aquele que a amava desde a infância logo que ele atingiu a idade
conveniente.
Eram ambos, tão sedutores e amavam-se tanto, que esta união
encantava toda a gente, salvo a velha marquesa de Dumbleton, que
havia tentado apoderar-se do duque para uma das suas sete filhas
ainda solteiras e que, com esse desígnio, dera nada menos que três
dispendiosos jantares; e se bom que possa parecer estranho, também
não encantava o próprio mr. Otis. O ministro sentia pelo duquezinho
uma grande afeição, mas, em teoria, não era partidário de títulos
nobiliárquicos e, para empregar mesmo palavras suas, «temia um
tanto que, por causa da influência amolecedora da aristocracia
apaixonada pelo prazer, os verdadeiros princípios da simplicidade
republicana fossem esquecidos». Mas houve quem deitasse por terra
as suas objecções; e creio bem que, ao avançar com a filha pelo
braço, na nave da igreja de S. Jorge, da Praça Hanover, não houve,
no instante, homem mais orgulhoso do que ele na Inglaterra inteira.
Após a sua «lua de mel», o duque e a duquesa voltaram ao
Parque Canterville; e no dia seguinte ao da chegada foram, pela
tarde, de passeio até ao cemitério solitário circunvizinho do pinhal.
A escolha da inscrição para a lousa tumular de sir Simon tinha
levantado muitas dificuldades, mas fora finalmente decidido mandar
gravar nela as simples iniciais do velho aristocrata e os versos
inscritos na biblioteca.
A duquesa havia levado consigo umas rosas adoráveis, que
espalhou sobre a sepultura; e depois de se conservarem em
recolhimento bastantes minutos, os jovens foram, sempre passeando,
até ao santuário em ruínas da velha Abadia. Sentou-se então a
duquesa numa pilastra mutilada do templo, enquanto o marido,
estendido a seus pés, fumava um cigarro, o olhar fito nos belos olhos
da rapariga. De súbito, arremessando para longe o cigarro, pegou-
lhe na mão e disselhe: - Virgínia, uma mulher não deve ter segredos
para seu marido.
- Querido Cecil, não tenho segredos para ti.
- Tem-los, sim - replicou ele a sorrir; - tu nunca me disseste o
que te aconteceu quando estiveste encerrada com o fantasma.
- Nunca o disse a ninguém - respondeu Virgínia com ar grave.
- Sei isso, mas podias dizermo a mim.
- Não me peças tal, Cecil; eu não posso dizer-to. Pobre sir
Simon! Devo-lhe muito. É verdade; não rias, Cecil. Mostrou-me o que
é a Vida, o que significa Morte e porque razão o Amor é mais forte
do que a Vida e a Morte.
O duque, pondo-se de pé, abraçou com ternura sua mulher.
- Podes reservar o teu segredo por tanto tempo quanto eu
guardarei o teu coração - murmurou.
- Ele sempre te pertenceu, Cecil
- E di-lo-ás um dia aos nossos filhos, não é verdade?
Carminaram-se, de pejo, as faces de Virgínia.
A VALSA
Dorothy R. Parker
II
Tenho que te dizer que os meus pais morreram quando eu era
ainda muito pequeno. Deixaram-me completamente só neste vasto
mundo. Triste situação! O nosso município não sabia o que fazer de
mim, e o fidalgo também não. Pois bem, precisamente naquele
momento veio do bosque à aldeia o guarda-florestal Román, e disse
aos do Conselho:
- Dêem-me o rapaz. Eu sustento-o. Aborreço-me de estar só no
bosque.
Os nossos vizinhos puseram-se muito contentes.
- Leva-o! - disseram logo.
E trouxe-me para sua casa. Desde então tenho vivido sempre
neste bosque.
Román foi quem me educou. Era um homem terrível, Deus me
perdoe. Enorme, com olhos negros e a alma também negra; tinha
passado toda a vida, só, no bosque.
A gente dizia que os ursos eram como irmãos dele, e os lobos
seus sobrinhos. Conhecia todas as feras e não as temia; mas fugia
dos homens e nem sequer os olhava... Era assim aquele Román!
Quando me olhava eu tinha a sensação de que um gato me passava a
cauda pelo pescoço. No entanto não era mau, e dava-me bastante
bem de comer; às vezes até me assava patos. Quanto a isso, não
tinha de que me queixar, não!
Pois bem, assim vivíamos os dois. Quando Román ia para o
bosque deixava-me em casa fechado à chave, com medo que as feras
me devorassem... Além disso, tinha uma mulher...
Foi o fidalgo quem lha deu. Um dia chamou-o a sua casa e
disselhe: - Casa-te, Román!
- Para quê? - perguntou Román. - Que se case o diabo que eu
não quero. Não sinto a mínima falta duma mulher lá no bosque, tanto
mais que já tenho em casa um filho. Não estava acostumado a
mulheres e não as queria.
Mas o patrão era mau: Quando me lembro dele, quero crer que
não há hoje senhores semelhantes. Não, não os há! Por exemplo tu:
dizem que és de origem nobre; talvez seja verdade mas nada há de
senhorial em ti... Um bom rapaz e nada mais. Mas o outro, este de
que te estou falando, era um verdadeiro senhor à moda antiga. O
mundo é assim: centenas de homens têm medo dum único, e que
medo! Compara um gavião a um frango: ambos saíram dum ovo; mas
o gavião voa até ao céu, e quando grita, não só os frangos mas até os
galos começam a tremer. Pois bem o gavião é um pássaro senhorial,
e o frango é um simples camponês.
Lembro-me ainda de quando era pequeno; uns camponeses,
trinta homens pelo menos, transportavam em carros grandes vigas;
pelo mesmo caminho passava o senhor, montado no seu cavalo,
acariciando o bigode. Ao vê-lo, os aldeãos assustavam-se, fustigavam
os seus cavalos para que deixassem o caminho livre e encostavam os
carros a um lado, na fundura da neve. Depois passavam grandes
trabalhos para tirarem os carros de lá.
E o senhor passeava tranquilamente pelo largo caminho,
perfeitamente à vontade. Deus meu, como era severo! Os mujiks
tremiam ante o seu olhar. Quando ria, toda a gente ficava contente;
quando carregava o sobrolho, tudo em seu redor se tornava sombrio.
Não havia ninguém que se atrevesse a contrariá-lo.
Mas Román, que tinha passado toda a vida no bosque, não
compreendia estas coisas e o senhor perdoava-lhe muito.
- Quero que te cases - disselhe o senhor. - Não me perguntes
porquê. Casa-te com Oxana.
- Não quero! - respondeu Román. - Não preciso dela. Que se
case o diabo com ela, que eu não quero!
O senhor ordenou que trouxessem as vergastas. Deitaram
Román ao chão.
- Queres casar-te? - perguntou o senhor.
- Não!
- Está bem! Dá-lhe mais vergastadas, mas das boas!
E deram-lhe tantas que ele já não podia mais, e era um mocetão
bastante duro.
- Deixem-me! - gritou ele. - Que o diabo leve essa mulher!
Nenhuma mulher vale que se sofra tanto por causa dela.
- Está bem, caso-me.
No território senhorial vivia um caçador, Opanas Schvidky.
Voltava do campo precisamente nessa altura. Quando se
inteirou de que obrigavam Román a casar-se com Oxana, caiu de
joelhos diante do fidalgo e beijou-lhe a mão.
- Em vez de martirizar esse homem - disse, - permite-me que
case eu com Oxana. Que homem aquele!
Román estava muito contente. Levantou-se, vestiu as calças e
disse: - Isto vai bem! Podias ter chegado um pouco mais cedo!
Vamos, senhor, estáveis equivocado, devíeis primeiro ter
perguntado se havia alguém que quisesse casar-se de livre vontade.
Mas em vez disso, mandais desancar um pobre homem. Os bons
cristãos não procedem assim...
Román às vezes sabia dizer as verdades, até ao próprio fidalgo.
Quando se aborrecia, toda a gente tinha medo dele, inclusive o
fidalgo. Dessa vez, o fidalgo tinha lá a sua ideia: deu ordem para que
deitassem de novo Román ao chão.
- Quero fazer a tua felicidade, grande animal! - disse ele.
- Agora estás só no bosque e eu não tenho nenhum desejo de ir a
tua casa... Dai-lhe outras tantas vergastadas até que se canse. E tu,
Opanas, vai para o inferno! Ninguém te convidou e não tens portanto
o direito de te sentares à mesa; mas se estás muito interessado,
mando-te servir o mesmo prato que a Román.
Román estava aturdido. Os açoites faziam-lhe doer muito.
Antigamente davam-se a valer! Suportou o martírio um longo
bocado; mas por fim, acabou por cuspir indignado, e gritou:
- Seria demasiada honra para essa maldita Oxana que por sua
causa dessem açoites a um cristão! Basta! Eu não sou nenhuma
besta de carga para que me tratem assim! Já que tem de ser, bem:
caso-me!
O fidalgo ria às gargalhadas.
- Até que enfim, te tornaste razoável! - disse. - A verdade é que
não te poderás sentar junto da noiva no dia da boda; mas em
contrapartida hás-de poder dançar.
Gostava de pregar partidas o nosso fidalgo. Mas teve um fim
triste. Que Deus livre todos os homens cristãos dum fim semelhante!
Não, eu não o desejaria a ninguém, nem mesmo a um judeu!...
Assim um dia Román se viu casado. Levou a rapariga para a sua
choça do bosque. Nos primeiros dias não fazia senão ralhar-lhe,
deitando-lhe em cara as vergastadas que tinha recebido por sua
causa: Não está certo de que por ti, se martirize assim um bom
cristão!
Sempre que voltava do bosque, começava por querer expulsá-la
de casa.
- Vai-te, não quero nenhuma mulher em minha casa! Não gosto
que nenhuma mulher durma comigo, porque cheiram mal... Até isso
dizia!
Mas depois, a pouco e pouco, foi-se habituando. Oxana punha a
casa em ordem, varria, lavava, tudo andava limpo e arrumado.
Román sentia-se contente e já não ralhava. Não só se reconciliou
com ela, mas começou a amá-la. Palavra de honra! Até ele próprio se
admirou.
- Devo dar graças ao senhor que me ensinou a ser razoável -
dizia depois. - Deus meu, como fui tonto! Receber tantos açoites, e
porquê. Agora compreendo que fazia mal negando-me a casar. Estou
muito contente por possuir Oxana. Mesmo muito contente!
Passaram semanas e meses. Um dia vi que Oxana se sentou num
banco e começou a gemer. Pela noite sentiu-se muito mal. No dia
seguinte de manhã com grande surpresa minha, ouvi o choro duma
criança. «Toma! Já temos uma criança em casa!», disse a mim
próprio. E não me enganava.
A criança não viveu muito tempo: até à noite, mais nada.
Quando anoiteceu, já não se ouvia. Oxana começou a chorar.
Román disselhe:
- Pronto, acabou-se! Já não temos o menino! Mas não vale a
pena chamar um padre, nós mesmos o enterraremos debaixo dum
pinheiro.
Román atreveu-se a dizer isto! E não apenas a dizê-lo, mas a
fazê-lo: fez uma cova e enterrou o menino. Vês aquele velho tronco,
acolá? São os restos dum pinheiro que foi abrasado por um raio. Foi
ali precisamente que Román enterrou a criança. E ouve o que te vou
dizer, rapaz: quando se põe o sol e aparece no céu a primeira
estrela, um passarito voa por cima daquele sítio lançando gritos
lancinantes. Parte-se-me o coração ao ouvir esses gritos. Pois bem,
esse passarito é a alma penada do menino que foi enterrado sem
sacramentos, e suplica que se lhe ponha uma cruz.
Disseram-me que só um sábio que conheça os livros santos
poderá salvar essa alminha em pena; e só então deixará de lançar
gritos lancinantes. Nós os que aqui estamos, não sabemos nada e
nada podemos fazer por ela. Quando voa por cima de nós pedindo
uma cruz, dizemos-lhe unicamente: «Vai-te, pobre alminha, que nada
podemos fazer por ti!» Recomeça a voar, chorando, e volta sempre
outra vez. Ah, bom moço, que digna de compaixão é aquela alminha
penada!
Oxana esteve muito tempo doente. Quando se restabeleceu um
pouco, passava horas inteiras sobre a tumba de seu filho. Meu Deus,
o que ela chorou! Ouviam-se no bosque inteiro os seus lamentos! E
não havia maneira de consolar a pobre... Román mostrava-se
indiferente à perda do menino; só lamentava Oxana. Quando a via
chorar, dizia-lhe:
- Cala-te mulher estúpida! Não tens razão para chorar.
Aquele menino morreu, mas talvez tenhamos outros, e talvez
sejam melhores do que aquele. Porque o menino morto, pode ser que
não fosse meu... Eu não sei nada, mas a gente diz muitas coisas... E
outro, com certeza que será meu...
Oxana não gostava de o ouvir falar assim. Punha-se muito, muito
zangada, e começava a dizer-lhe coisas terríveis.
Román não a tomava a sério.
- Fazes mal em gritar - dizia tranquilamente a Oxana. - Eu não
afirmo coisa nenhuma; digo apenas que não sei se era meu. Porque,
repara bem, dantes não eras minha nem vivias no bosque, mas entre
os outros. Posso lá saber o que se passou? Agora que estás aqui
comigo, sinto-me mais seguro; mas antes... Há alguns dias, quando
fui à aldeia, uma mulher disseme: «Que depressa que fizeste um
filho!» Compreendes?... Basta de chorar e de gritar! Cala-te, senão
bato-te!
Oxana limpava as lágrimas à pressa e calava-se. Verdade é que
às vezes permitia-se responder a Román e até dar-lhe um golpe; mas
quando ele se zangava a valer, tinha-lhe medo. Nesses momentos,
enchia-o de beijos e carícias; olhava-o com ternura, nos olhos, e
Román não tardava a acalmar-se. Tu, bom moço, talvez não
compreendas isto, mas eu que já vivi muito, compreendo. E posso
garantir-te que as mulheres sabem acariciar de tal jeito, com tal
arte, que um homem furioso se torna como um cordeiro. Sim, sim! Já
vi mulheres dessas! E Oxana era tão bela que não havia outra igual.
As mulheres não são todas iguais.
Pois bem; uma vez ouviu-se no bosque uma buzina de corno:
tra-ta, tará-tará, ta, ta, ta,! Todo o bosque se encheu de sons
festivos. Eu era então pequeno e não compreendia o que aquilo
significava. Os pássaros assustados, começaram a voar, cheios de
pânico; as lebres deitaram a correr como loucas em todas as
direcções. Julguei que fosse alguma fera a rugir. Mas não era
nenhuma fera; era o fidalgo que montado no seu cavalo, tocava o
corno. Numerosos caçadores, também a cavalo, seguiam-no,
conduzindo muitos cães de caça. E o mais formoso era Opanas
Schvidky, o primeiro depois do fidalgo. Vestia um traje azul, um
schapka com franjas douradas, uma magnífica espingarda ao ombro e
um alaúde amarrado às costas. O fidalgo gostava muito de Opanas
porque tocava alaúde admiravelmente e cantava canções muito
bonitas. Além disso era belo. Que belo era! O fidalgo, comparado
com Opanas era muito feio: calvo, com o nariz vermelho, os olhos
cinzentos nada bonitos. Opanas era um grande conquistador de
corações. Até eu mesmo quando o olhava sentia vontade de sorrir; já
podes pois imaginar o efeito que produzia nas mulheres. Disseram-
me que os pais e avós de Opanas eram cossacos, do sul da Rússia,
livres como o vento, e todos galhardos, fortes e belos. É lógico: não
se viam obrigados a trabalhar rudemente no bosque como nós, não
faziam mais nada senão montar a cavalo e correr, rápidos, pelos
campos e estradas, de lança às costas...
Pois bem; saí e vi o fidalgo e toda a comitiva, que parou diante
da casa. Román ajudou o senhor a descer do cavalo e cumprimentou-
o.
- E tu como vais, Román? - perguntou o senhor.
- Nada mal, obrigado! - respondeu o outro. - E vós como estais?
Decididamente não sabia como falar ao fidalgo. Todos os
presentes se riram.
- Muito folgo de que tudo corra bem na tua casa - disse sorrindo
o senhor. - E a tua mulher, onde está?
- Onde há-de estar? Lá dentro, como é natural.
- Então, entremos - disse o senhor.
E dirigindo-se aos seus homens acrescentou:
- Entretanto, ponde almofadas sobre a erva e preparai tudo
quanto for necessário para felicitar os jovens esposos.
E seguido por Opanas e por Román que levava nas mãos a sua
schapka, entrou em casa. Pouco depois, entrou também Bogdan, o
fiel servidor do senhor. Já não há também servidores semelhantes;
para com os outros criados era extremamente severo, mas para com
o fidalgo era dócil como um cão. Só o fidalgo existia para ele.
Contaram-me que depois da morte de seus pais Bogdan quis casar-
se, mas o pai do fidalgo não o consentiu e fez dele uma espécie de
ama do filho. «Este é o teu pai, a tua mãe, e a tua mulher - disselhe
ele. - Cuida bem dele». Bogdan resignou-se; foi criado, ama e
mordomo do jovem fidalgo; ensinou-o a montar a cavalo e a atirar
com espingarda; depois que o pequeno amo se tornou homem,
continuou a servi-lo dócil e fielmente como um cão. E não to quero
ocultar: todos os que rodeavam Bogdan, o detestavam e o maldiziam
porque fazia muito mal aos pobres. Para contentar o seu senhor,
teria sido capaz de matar o próprio pai.
Depois, entrei em casa, também: era tão curioso! O fidalgo
acariciava o bigode e sorria com ar de satisfação. Román estava a
seu lado com o schapka na mão.
Opanas, encostado à parede, sombrio e pensativo, parecia um
jovem castanheiro sob a tempestade.
Qualquer dos três olhava para Oxana. Só o velho Bogdan,
sentado num canto, esperava ordens do seu senhor. Oxana estava de
pé, junto da lareira, com os olhos baixos, muito corada. Dir-se-ia que
a pobre tinha o pressentimento de que ia acontecer alguma desgraça
por causa dela. É sempre o mesmo: quando três homens se
interessam por uma mulher, nada pode resultar de bom.
Têm que acabar fatalmente em luta. Isto sei eu, que já vi muitas
coisas...
- Bem, Román, estás contente com a mulher que te dei? -
perguntou o senhor.
- Sim. Não tenho de que me queixar.
Opanas olhou para Oxana e disse muito baixo:
- És demasiado bruto para apreciar uma mulher como esta!
Román ouviu-o, e, voltando-se para Opanas, perguntou-lhe:
- Ora diga-me: Porque lhe pareço eu tão bruto?
- Porque nem sabes guardar a tua mulher! - respondeu Opanas.
Que palavras tão graves tinha pronunciado! O fidalgo cheio de
cólera, bateu com o pé no chão; o velho Bogdan voltou a cabeça, e
Román, tendo reflectido um instante, ergueu a cabeça e olhou para o
fidalgo.
- E de quem tenho que guardar a minha mulher? - perguntou
sem deixar de o olhar. - Das feras, guardo-a eu; diabos, não os há
pelo bosque. Do senhor, que vem por aqui algumas vezes?! Portanto,
que tenho eu a temer? Tem cuidado - continuou, ameaçando Opanas;
- não digas coisas dessas senão queres arrepender-te.
Um pouco mais e teriam começado a lutar; mas o fidalgo
interveio, prevendo as consequências da disputa.
- Calai-vos - ordenou. - Não viemos aqui para discutir.
Temos que felicitar os jovens esposos e depois, à noite,
começará a caçada. Vamos!
Saiu. Os criados já tinham preparado tudo debaixo das árvores.
Bogdan seguiu o amo. Opanas deteve Román no limiar da porta.
- Não te zangues, valente! - disse o cossaco. - Escuta o que te
quero dizer: Viste como supliquei de joelhos ao fidalgo que me
deixasse casar com Oxana? Não consentiu, paciência. Nada se pode
contra o destino. Mas... não posso permitir que o nosso comum
inimigo, o fidalgo, troce dela e de ti. Não o posso consentir. Estou
disposto a tudo. Tu ainda não conheces bem Opanas. Antes que
Oxana caia nos braços desse miserável, matá-los-ei aos dois. Que a
sepultura lhes sirva de leito!...
Román olhou fixamente o cossaco e perguntou-lhe:
- Diz, não estás louco?
Não ouvi o que o outro respondeu. Estiveram um longo bocado
falando em voz baixa. Finalmente Román bateu amigavelmente no
ombro de Opanas.
- Ah, meu amigo! Como a gente é má! Eu que vivi sempre aqui
no bosque, nem sequer o suspeitava. Se é verdade o que acabas de
me dizer, o nosso fidalgo vai pagá-lo bem caro...
- Bom, - disse Opanas, - agora desaparece e procede como se
nada soubesses. Sobretudo, que esse velho ascoroso do Bogdan de
nada desconfie. Tu és esperto, mas esse cão tem um faro! Não bebas
do vodka do fidalgo. E se te quiser mandar caçar, para ficar só na
choça, leva os caçadores até ao sobreiro velho, diz-lhes que avancem
sozinhos e que te irás juntar a eles por outro caminho mais curto. Em
seguida, voltas aqui.
- Bem - fez Román; - hoje vou abater uma bela peça. Vou
carregar a espingarda com as balas que emprego para os ursos.
Saíram ambos. O fidalgo estava sentado sobre um tapete, com
uma garrafa e um copo nas mãos. Encheu um copo e estendeu-o a
Román. O vodka do fidalgo era delicioso; depois do primeiro copo,
sentia-se alma nova; depois do segundo, o paraíso abria-se diante de
qualquer mortal, e, se o mortal não estava habituado a beber, ao
terceiro caía por terra.
Era muito engraçado, o fidalgo! Queria emborrachar Román
com o seu vodka; mas Román tinha uma cabeça firme e nenhum
vodka do mundo teria sido capaz de lhe roubar a razão. Bebeu o
primeiro copo, o segundo, e o terceiro; não produziram nele o
mínimo efeito. Apenas os seus olhos brilhavam mais que o costume,
como os dum lobo. O fidalgo ficou aborrecido.
- És o diabo! Dir-se-ia que bebes todos os dias vodka em vez de
água. Outro, no teu lugar, já teria lágrimas nos olhos, e ele sorri...
O fidalgo sabia muito bem que se alguém começasse a chorar
depois de ter bebido, não tardaria a cair como morto. Mas desta vez
tinha-se enganado.
- Não tenho motivos para chorar - disse Román. - O nosso
fidalgo veio felicitar-me e eu seria o último dos canalhas se
começasse a chorar como uma velha. Graças a Deus, não tenho
razões para chorar. Prefiro que sejam os meus inimigos a verter
lágrimas.
- Então, vives satisfeito? - perguntou o fidalgo.
- E porque não havia de estar satisfeito?
- Lembra-te dos açoites que tive de te dar para que te casasses?
- Se me lembro! Nessa altura era um parvo e não sabia o que
era amargo nem o que era doce. O açoite era amargo e, no entanto,
preferia-o a esta mulher! Hoje, dou-vos graças, bondoso fidalgo por
me teres ensinado a apreciar o mel.
- Bem, bem - respondeu o senhor. - Para melhor mo
agradeceres, irás com os meus caçadores e trar-me-ás muita caça.
- Quando quereis que partamos?
- Vamos beber mais um bocadinho - respondeu o fidalgo. -
Opanas vai cantar-nos alguma coisa e depois partiremos.
Román olhou-o e contestou:
- Isso vai ser difícil; faz-se tarde e o pântano está muito longe
daqui... Além disso o ruído do bosque anuncia tempestade, o com
este tempo é difícil caçar.
O senhor estava já um pouco borracho, e quando estava assim,
aborrecia-se facilmente. Ao ver que todos os que ali estavam, davam
razão a Román, dizendo que o tempo mostrava má cara, encheu-se
de cólera, deu um soco para o ar... e toda a gente se calou.
Opanas era o único que não tinha medo do fidalgo. Agarrou no
alaúde, deu uns acordes, e, olhando fixamente o senhor, disse: -
Reflecte bem, meu senhor; não se manda ninguém caçar quando
sopra a tempestade; e sobretudo à noite.
Era muito corajoso aquele Opanas! Os outros tremiam diante do
senhor; para ele, não valia um caracol. Era um cossaco livre. Quando
ainda era muito pequeno um velho músico trouxe-o da Ucrânia para
ali. Havia guerra na Ucrânia nessa altura; ao velho cossaco que caiu
prisioneiro, arrancaram-lhe os olhos, cortaram-lhe as orelhas e
disseram-lhe: «Podes ir para onde quiseres». Como não via, andava
acompanhado por uma criança, o próprio Opanas. O pai do fidalgo
tomou-o ao seu serviço. E desde então, vivia Opanas ali. O fidalgo
actual queria-lhe muito e perdoava-lhe coisas que nunca teria
perdoado a qualquer outro.
Mas desta feita zangou-se muito com Opanas. Todos tinham a
certeza de que lhe ia bater; mas em vez disso, disselhe apenas: -
Escuta, Opanas! És demasiado inteligente para compreender que
ninguém pode meter o nariz numa porta já aberta.
O cossaco compreendeu imediatamente o que ele queria dizer e
respondeu ao senhor com uma canção. E se o fidalgo tivesse
compreendido igualmente a canção do cossaco, a mulher dele não
teria certamente de verter lágrimas sobre a sua sepultura.
- Para te agradecer a lição que acabas de me dar, senhor, vou
cantar-te alguma coisa. Escuta!
E fez vibrar as cordas do seu alaúde.
Levantou imediatamente a cabeça, olhou para a águia que
sobrevoava o bosque e contemplou as nuvens empurradas pelo
vento; escutou o gemido dos altos pinheiros e de novo fez soar as
cordas do seu alaúde.
Ah, bom moço, tu não tiveste a dita de ouvir tocar Opanas, e já
não a podes ter. O alaúde não é um instrumento muito complicado;
mas quando se sabe manejar, fala com uma voz eloquente. Bastava
que Opanas lhe tocasse com as mãos, e ele dizia tudo: como se agita
o bosque debaixo da tempestade, como o vento sacode a erva seca, e
como choram os salgueiros sobre a tumba dum cossaco.
Não, bom moço, vocês não ouvirão jamais uma música como
aquela! Chegam para estes lados, com frequência, pessoas que viram
alguma coisa, que passaram por Kiev, Poltava, e por toda a Ucrânia,
e todos garantem que já não há bons tocadores de alaúde, nem nas
feiras e romarias. Eu tenho um alaúde. O próprio Opanas me ensinou
a tocá-lo. Mas quando eu morrer, o que já não tarda muito, em
nenhuma parte do mundo se saberá tocar bem alaúde.
Opanas pôs-se a cantar uma canção, acompanhando-se ao
alaúde. A sua voz era doce e melancólica e penetrava directamente
nos corações. Aquela canção, tinha-a improvisado expressamente
para o fidalgo. Eu supliquei-lhe depois que a cantasse outra vez, mas
ele não quis.
- Aquele para quem a cantei já não existe - dizia. - Não vale a
pena voltar a cantá-la.
Nesta canção dizia ele ao fidalgo, toda a verdade, tudo o que
iria acontecer. O fidalgo ao ouvi-la chorava, mas, provavelmente, não
entendeu o seu significado.
Lembro-me várias vezes dessa canção. Ouve estes bocadinhos:
Tu sabes muitas coisas oh, Ivan, meu senhor!
III
O velho estava visivelmente cansado; a sua língua entorpecia-se
cada vez mais; os olhos estavam vermelhos, a cabeça inclinada.
A noite tinha descido sobre a terra. Quase não se via o bosque
que se agitava em redor da casita, como um mar ondulante. As copas
das árvores pareciam as ondas do mar durante uma tempestade.
O ladrar do cão anunciou a chegada dos dois donos da casa.
Os dois guardas do bosque aproximavam-se apressadamente,
seguidos por Motria, que trazia a vaca que julgaram perdida.
Poucos minutos depois estávamos todos no interior da casa.
O fogo ardia alegremente na chaminé e Motria servia a ceia.
Não era a primeira vez que eu via Zajar e Máximo; mas nessa
altura examinei-os com maior interesse. Zajar tinha um rosto
sombrio, sobrancelhas negras que se uniam na testa estreita; havia
nele esse ar de honradez que caracteriza os homens fortes. Máximo
tinha uma expressão franca, grandes olhos cinzentos e cabelos
encaracolados. O seu riso era alegre e contagioso.
- Com que então o velho contou-lhe a história do nosso avô?
- perguntou Máximo
- Contou - respondi.
- Faz sempre o mesmo. Quando o bosque começa a agitar-se ele
recorda o passado. Agora, não poderá dormir.
- É como uma criança! - disse Motria, servindo a sopa ao velho.
Este não compreendia que era dele que se falava. Nalguns
momentos, quando o vento chicoteava a janela, mostrava-se
angustiado e apurava o ouvido como se espionasse alguma coisa,
cheio de espanto.
Depressa se restabeleceu a calma. O archote iluminou
debilmente a habitação. Um grilo cantava junto da parede a sua
monótona canção. Parecia que milhares de vozes, surdas mas
poderosas, discutiam no bosque; forças tenebrosas e ameaçadoras
preparavam-se para se lançar, de todos os lados, sobre a casita, e
elaboravam um plano de ataque. Às vezes, quando aumentava, a
porta tremia como se fosse empurrada do lado de fora. O vento
lançava através da chaminé sonoros lamentos. Depois, a tempestade
calou-se um pouco: por momentos reinou um silêncio pesado e
ameaçador, que cedeu em seguida, ante novos ruídos: dir-se-ia que
os velhos pinheiros tramavam entre si desprender-se da terra e voar
com a tempestade, pelo espaço desconhecido.
Dormi uns instantes. A tempestade seguia o seu curso. O
archote tão depressa se extinguia como se reanimava, iluminando o
compartimento. O velho, sentado no seu banco, olhava em volta como
se esperasse que alguém viesse sentar-se a seu lado. O seu rosto
tinha uma expressão infantil de pasmo e impotência.
- Oxana, minha querida! - balbuciou. - Quem é que geme no
bosque?
Procurou qualquer coisa com a mão e prestou ouvidos:
- Não, não é nada - respondeu a si mesmo. - É a tempestade... É
o ruído do bosque... Nada mais que o ruído do bosque... Passaram
alguns minutos... Os relâmpagos iluminavam de quando em quando as
janelas, por trás das quais se viam árvores, por entre os relâmpagos,
com formas fantásticas. Um daqueles relâmpagos, seguido dum
trovão formidável, fez-nos estremecer a todos.
O velho parecia muito assustado.
- Oxana querida, quem é que está a dar tiros no bosque?
- Dorme, velho! - disse tranquilamente Motria, que também
tinha despertado. - sempre a mesma coisa - acrescentou, dirigindo-se
a mim. Quando a tempestade ruge, chama por Oxana, que há muito
tempo está no outro mundo.
E Motria, bocejou, murmurou uma oração e adormeceu de
novo.
Restabeleceu-se a calma, cortada espaço a espaço pelos ruídos
da tempestade e pelo balbuceio ansioso do ancião.
- É o ruído do bosque!... É o ruído do bosque!... Oxana, minha
querida!...
Pouco depois uma bátega caiu sobre o bosque. O ruído da água
que caía abundantemente, afogava os rugidos do vento e os gemidos
dos pinheiros, sacudidos pela tormenta.
RIO QUENTE
Erskine Caldwell
O cocheiro parou próximo da ponte suspensa e apontou-me a
casa que ficava do outro lado do rio. Três quilómetros de distância da
estação até ali... Paguei-lhe a importância do frete e saí do carro. O
homem partiu deixando-me só com a noite escura. As luzes do vale
brilhavam como as estrelas, e o rio, largo e verde, e quente, corria a
meus pés. Na escuridão da noite, à minha volta, as montanhas,
erguiam-se como nuvens negras; só pregando os olhos no céu me era
possível ver uns restos do brilho quase apagado do pôr do sol.
A cada passo que dava a ponte rangia e o ímpeto do seu baloiçar
depressa excedeu o do meu andamento. Com aquele oscilar de
pêndulo a descrever arcos de grande amplitude sobre o rio, para me
manter em equilíbrio, era preciso andar depressa, cada vez mais
depressa. Quando, finalmente, avistei na outra margem o ponto onde
a montanha descia abruptamente e mergulhava na água tépida do
rio, segurei com mais firmeza o saco e deitei a correr com quanta
força tinha.
Então, e mesmo depois de pisado o carreiro de cascalho,
confesso que tive medo. Sei que se fosse dia poderia atravessar a
ponte sem qualquer espécie de receio; mas à noite, numa região
desconhecida, com montanhas sombrias fechando-se à minha volta e
um rio largo e verde correndo a meus pés, não conseguia evitar que
as mãos me tremessem e o coração me batesse com mais força no
peito.
Encontrei a casa com facilidade e ri de mim próprio por ter
fugido do rio. Era a primeira casa com que se dava depois de deixar
a ponte e mesmo que não a tivesse reconhecido Gretchen ter-me-ia
chamado. Lá estava nos degraus da porta à minha espera. Ao ouvir a
sua voz tão familiar chamar pelo meu nome envergonhei-me pelo
medo que tive das montanhas altas e do rio que deslizava lá ao fundo.
Gretchen desceu o carreiro e veio ao meu encontro.
- A ponte meteu-te medo, Ricardo? - perguntou, emocionada,
segurando-me o braço com as duas mãos e guiando-me pela vereda
na direcção da casa.
- Acho que sim, Gretchen; mas suponho que dominei o seu
balanço, correndo.
- Toda a gente procede assim a princípio mas, depois de a ter
atravessado uma vez, é como se andássemos sobre uma corda
esticada. Quando era pequena costumava andar sobre cordas
tensas... E tu, Ricardo, não andaste também? Tínhamos uma corda
esticada dum lado ao outro do celeiro, para praticar.
- Também eu o fiz; mas foi há tanto tempo... Agora não sou
capaz...
Chegámos e subimos os degraus que davam para a entrada da
casa. Gretchen guiou-me até à porta. Do interior da casa alguém se
aproximava do átrio; o candeeiro que trazia na mão iluminou a
entrada da casa. Então vi as duas irmãs de Gretchen, de pé, junto da
porta.
- Esta é a minha irmãzinha Ana - disse Gretchen. - E esta é a
Marta.
Mesmo ali, quase às escuras, lhes dirigi algumas palavras;
depois entrámos no átrio. O pai de Gretchen que, junto de uma mesa,
segurava o candeeiro desviou-o um pouco para o lado para melhor
me ver a cara. Não o conhecia.
- O meu pai - apresentou Gretchen. - Ele receava que, com este
escuro, não fosses capaz de dar com a casa.
- Quis ir lá abaixo, à ponte, esperá-lo com uma luz mas Gretchen
disseme que chegaria cá sem dificuldade. Perdeu-se?
Não me custaria nada levar-lhe uma lanterna.
Apertei-lhe a mão e contei-lhe da facilidade com que tinha
encontrado a casa.
- O cocheiro do carro que me trouxe apontou-ma do outro lado
do rio, e nunca mais desviei os olhos da luz. Se a tivesse perdido de
vista andaria a estas horas por aí às escuras, aos tropeções, sujeito a
cair à água.
O homem riu-se de mim por causa de ter medo do rio.
- Não seria grande o mal. O rio é quente. Até no Inverno,
quando gela, quando cai neve, o rio está tão morno como um quarto
confortável. Aqui todos gostamos daquela água.
- Não, Ricardo, não terias caído - disse Gretchen juntando a sua
mão à minha. - Vi-te na altura em que desceste do carro, e se
tivesses dado um passo fora do caminho teria corrido imediatamente
para junto de ti.
Quis agradecer-lhe estas palavras mas ela já subia as escadas
que davam para o andar de cima, e chamava-me. Segui-a, levando o
saco à minha frente. Ao fundo do átrio do andar de cima, em cima de
uma mesa, havia um candeeiro com quebra-luz.
Estava aceso, mas a luz era fraca. Gretchen levou-o e entrou
num dos quartos que ficavam em frente. Estivemos, por momentos a
olhar um para o outro, em silêncio.
- A bilha tem água fresca, Ricardo. Se precisares mais alguma
coisa faze o favor de me chamar. Não sei se o consegui, mas
procurei não esquecer nada.
- Não te incomodes, Gretchen. Que mais podia desejar?
Basta-me estar contigo, nada mais me interessa.
Olhou-me mas depressa pôs os olhos no chão. Durante alguns
minutos nem um nem o outro encontrámos que dizer e ficámos
calados. Quis mostrar-lhe a minha alegria por me encontrar junto
dela, embora fosse apenas por uma noite; depois pensei que podia
falar nisso mais tarde. Gretchen sabia a razão porque eu tinha vindo.
- Fica aqui o candeeiro, Ricardo, e espero lá em baixo, à
entrada, por ti. Vem logo que estejas pronto.
Deixou-me antes que fosse possível oferecer-me para lhe levar a
luz à escada e iluminar-lhe o caminho. Quando peguei no candeeiro,
já ela tinha desaparecido.
Voltei para o quarto, fechei a porta, lavei o rosto e as mãos e
livrei-me da poeira do comboio, esfregando-me com uma escova e
sabão. No toalheiro havia algumas toalhas bordadas à mão. Peguei
numa e enxuguei as mãos e a cara. A seguir penteei-me e tirei do
saco de viagem um lenço lavado. Por fim abri a porta e desci a
escada para ir ao encontro de Gretchen.
O pai estava com ela à porta. Quando me aproximei levantou-se
e ofereceu-me uma cadeira que estava entre ambos. Gretchen puxou
a sua mais para o pé da minha, tocando-me no braço com a mão.
- É a primeira vez que vem aqui, aos montes, Ricardo? -
perguntou o pai voltando-se para mim.
- Sim, senhor, nunca estive a menos de cem quilómetros deste
sítio. Acho a região diferente daquelas que conheço mas estou
convencido de que o senhor pensaria o mesmo a respeito da costa.
Não é verdade?
- Oh, mas o pai viveu em Norfolk - disse Gretchen. - Não viveu,
pai?
- Sim, vivi lá perto de três anos.
Pareceu-nos que queria dizer mais alguma coisa e ambos
esperámos que continuasse.
- O pai é chefe de mecânicos - disseme Gretchen em voz baixa. -
Trabalha nas oficinas do caminho de ferro.
- Sim - afirmou ele, seguidamente. - Tenho vivido em muitos
lugares, mas é aqui que desejo ficar.
O meu primeiro desejo foi o de perguntar-lhe porque motivo
preferia as montanhas às outras regiões, mas de súbito reparei que
tanto ele como Gretchen se tinham fechado num silêncio opressivo.
Sentado entre ambos, pus-me a cismar no caso.
Pouco depois voltou a falar mas não o fazia nem para mim, nem
para Gretchen; falava para qualquer outra pessoa que estivesse
junto da entrada da porta, uma quarta pessoa que, no escuro da
noite, eu não podia ver. Esperei atento e cheio de emoção, que
continuasse.
Gretchen aproximou a sua cadeira da minha algumas polegadas,
e fê-lo com leveza, sem fazer barulho. O bafo quente do rio subia no
espaço e vinha até nós cobrindo-nos, na noite frígida, como se se
tratasse dum cobertor.
- Quando Gretchen e as outras duas irmãs perderam a mãe -
disse ele, falando muito baixo, curvando-se sobre os joelhos e
olhando as águas verdes do rio - quando perdemos a mãe dela, voltei
para as montanhas. Não me foi possível continuar em Norfolk e
Baltimore tornara-se insuportável. Este era o único lugar da terra
onde podia encontrar a paz. Gretchen lembra-se, certamente, da
mãe mas nenhum de vocês é capaz de compreender o que se passa
comigo. A mãe, tal como eu, tinha nascido aqui nas montanhas e aqui
estivemos durante quase vinte anos.
Depois dela ter partido mudei de casa; acreditava
estupidamente que podia esquecer. Mas enganei-me. Enganei-me
certamente. Um homem não pode esquecer a mãe de seus filhos
ainda que saiba que nunca mais voltará a vê-la.
Gretchen chegou-se mais para mim; fiquei preso, não podia
desviar os olhos do seu perfil que, a meu lado, se emoldurava no
escuro. Do rio, nem sequer um murmúrio chegava até nós; só o seu
bafo quente me bastava para pensar que ele corria quase a nossos
pés.
O pai inclinou-se na cadeira até os braços lhe pousarem sobre
os joelhos e olhava para o outro lado do rio, para o cimo da
montanha, como se esperasse que aí aparecesse alguém.
Os olhos estavam fixos num ponto e o feixe de luz que se coava
através da porta enchia-os dum brilho estranho. E brilhavam
também, como fragmentos de estrelas, as lágrimas que lhe rolavam
pela cara abaixo e que, antes de se desfazerem, lhe escaldavam as
mãos trémulas e expressivas.
A seguir, sempre em silêncio, ergueu-se e entrou em casa.
Parou à porta por momentos e a sua sombra enorme caiu sobre
Gretchen e sobre mim. Continuou a andar. Voltei-me e olhei na
direcção em que ele seguia e embora a sua imagem se fosse
esbatendo o que é certo é que não conseguia fitá-la.
Gretchen inclinava-se mais para mim. Apertava nervosamente a
minha mão e esfregou o rosto no meu ombro, como se procurasse
limpar qualquer coisa. Os passos do pai foram-se apagando, até que,
por fim, deixámos de ouvi-los.
Lá em baixo, ao longo da margem do rio, um comboio correu
pelo vale fora, esfarpando com silvos o silêncio da noite. As suas
luzes, através das janelas, faiscaram por momentos no escuro,
dançando no rio verde como luzes polares; e um eco nostálgico rolou
contra as altas encostas da montanha.
Gretchen apertou, com força, a minha mão nas suas, tremendo
até às pontas dos dedos.
- Ricardo, porque vieste ver-me?
A sua voz misturava-se com o ruído do apito metálico do
comboio, que parecia perder-se na distância.
Esperava ver os seus olhos cravados no meu rosto, mas, quando
me voltei para ela, vi que olhava para o fundo do vale, como se
quisesse revolver as águas quentes do rio. Sabia a razão da minha
visita e queria ouvi-la da minha boca.
Agora, nem eu próprio sabia, porque viera vê-la. Tinha gostado
de Gretchen e tinha-a desejado mais do que a nenhuma outra
rapariga das que conheci mas, depois de ouvir o pai falar de amor,
não podia afirmar que a amava. Sim, lamentava ter vindo, depois de o
ouvir falar da mãe de Gretchen como falou. Sabia que Gretchen se
empolgaria, por que me tinha amor; eu é que nada tinha para lhe dar
em troca. Era bela, sim, era muito bela e eu tinha-a desejado. Mas
isso estava esquecido. Agora restava-me a certeza de que nunca
mais voltaria a pensar nela da mesma forma e com as mesmas
razões.
- Diz-me porque vieste, Ricardo.
- Porquê?
- Sim, Ricardo, porquê?
Fecharam-se-me os olhos e o que senti foi a lembrança das
luzes cintilando e correndo, lá em baixo, no vale, a tepidez das águas
do rio deslizando e as carícias dos dedos de Gretchen ao tocarem-me
no braço.
- Ricardo, diz-me porque vieste.
- Nem eu sei porque vim, Gretchen
- Se me quisesses como eu te quero, Ricardo, saberias.
A sua mão tremia na minha. Amava-me, sabia que me amava.
Nem uma dúvida no meu espírito, desde o princípio... Gretchen
gostava de mim.
- Parece-me que não devia ter vindo. Enganei-me Gretchen.
Sim, não devia ter vindo.
- Mas ficas só esta noite, Ricardo. Vais-te embora amanhã de
manhã. Não tens pena de ter vindo por tão pouco tempo? Não tens
pena, Ricardo?
- Não lamento estar aqui, mas não devia ter vindo. Não sabia o
que fazia. Agora sei que não devia ter vindo. Só as pessoas que se
amam mutuamente...
- Mas tu amas-me, embora pouco, não é assim Ricardo? Não era
possível quereres-me tanto como eu te quero. Mas não podes dizer
que me queres, mesmo que pouco seja? Assim sentir-me-ei mais feliz
quando te fores embora.
- Não sei - respondi a tremer.
- Ricardo, por favor...
Prendia firmemente, enleadas as suas mãos nas minhas; de
súbito sentime invadido por qualquer coisa que não sei explicar,
qualquer coisa que me sacudiu. Era como se as palavras que ouvira
ao pai se fossem tornando claras, cada vez mais claras, e fizessem
luz no meu espírito. Até então não podia acreditar que existisse um
amor como o de que ele falara.
Sempre julguei que os homens nunca amavam as mulheres da
mesma forma que uma mulher ama um homem; agora, porém,
verificava que não podia haver diferença.
Permanecemos silenciosos, de mãos dadas, durante algum
tempo. Passava muito da meia-noite, pois as luzes do vale
começavam a apagar-se.
Gretchen junto de mim procurava ler-me no rosto os
pensamentos e poisava a cabeça no meu ombro. Era tanto minha
como é possível uma mulher pertencer a um homem mas, nesta
altura, tinha a certeza que nada me levaria a tirar partido do seu
amor e a abandoná-la, sabendo que não gostava dela como Gretchen
gostava de mim. Não, não acreditava em tal quando cheguei.
Percorrera a enorme distância que nos separava, unicamente para a
ter nos braços durante algumas horas, e depois esquecê-la para
sempre.
Quando achámos que eram horas de recolher, levantei-me e
ergui-a nos braços. Gretchen tremia quando lhe toquei. Prendeu-se a
mim com a mesma violência com que a prendi e senti no bater do seu
coração, pancada por pancada, a paixão que lhe transbordava do
peito.
- Ricardo, beija-me antes de te ires embora.
Correu para a porta, mantendo-a aberta para que eu entrasse.
Pegou no candeeiro que estava sobre a mesa, subiu as escadas que
davam para o andar de cima, adiante de mim.
Á porta do meu quarto esperou que eu acendesse o seu
candeeiro e a seguir entregou-me o meu.
- Boa noite, Gretchen.
- Boa noite, Ricardo.
Baixei-lhe a torcida do candeeiro para evitar que deitasse fumo,
e ela, depois, atravessou o átrio dirigindo-se ao seu quarto.
- Amanhã chamar-te-ei a tempo de tomares o comboio.
- Está bem, Gretchen. Não me deixes dormir de mais. O
comboio sai da estação às sete e trinta.
- Chamar-te-ei muito a tempo, Ricardo.
A porta fechou-se atrás de Gretchen. Entrei para o meu quarto,
fechei também a porta e comecei a despir-me vagarosamente.
Deitei-me, apaguei o candeeiro mas, na agitação em que estava, não
adormeci. Sabendo que era impossível dormir sentei-me na cama,
fumando cigarro atrás de cigarro e deitando o fumo, através da
cortina, para a janela. Mais de uma vez julguei ouvir sons abafados,
que vinham do outro lado do átrio, que vinham do quarto de
Gretchen. Sim, julguei; contudo não tinha a certeza.
Não posso precisar quanto tempo estive sentado na beira da
cama, rígido, sem um movimento, direito, a pensar em Gretchen.
De súbito levantei-me de um salto. Abri a porta e atravessei o
átrio rapidamente. A porta do quarto de Gretchen estava fechada.
Contudo sabia que ela não a tinha fechado à chave e dei volta ao
puxador sem fazer ruído. Rompeu, através da abertura, um feixe
ténue de luz. Não era preciso empurrar mais a porta porque via
Gretchen, apenas a alguns passos de distância, quase ao alcance da
mão. Fechei os olhos com esforço e, naquele momento, pensei nela
com uma intenção igual à que me ditara a viagem que nesse dia
fizera, da costa até ali.
Gretchen não tinha ouvido abrir a porta, nem sabia que eu me
encontrava ali. Sobre a mesa, o seu candeeiro ardia com uma luz
viva.
Não esperava vê-la acordada, tinha quase a certeza de que a
encontraria deitada. Estava ajoelhada no tapete, ao lado da cama,
com a cabeça apoiada nos braços. Os soluços sacudiam-lhe o corpo.
O cabelo, preso por uma fita pálida no alto da cabeça,
espalhava-se-lhe depois pelos ombros. Vestia uma camisa de seda
branca, franjada de rendas vaporosas, e a gola, aberta, descobria-lhe
o seio.
Só então vi quanto ela era bela, embora sempre a tivesse
considerado bonita. Nunca, até ali, vira uma rapariga tão bela como
Gretchen.
Como não ouviu abrir a porta continuava a ignorar a minha
presença. De joelhos, ao lado da cama, chorava e tinha as mãos
crispadas.
Quando entrei não sabia o que iria fazer mas agora, que a via
ajoelhada em oração junto do leito, ignorando que a olhava e ouvia as
suas queixas e soluços, tive a certeza de que nunca mais amaria
alguém como lhe queria a ela. Sim, ignorava-o até àquele momento,
mas bastaram uns poucos segundos para sentir quanto a amava.
Fechei a porta devagar e voltei para o meu quarto. Peguei numa
cadeira e sentei-me próximo da janela à espera do dia. E ali fiquei
olhando o fundo do vale. Á medida que os olhos se habituavam à
escuridão parecia-me que me aproximava cada vez mais do rio e tão
próximo dele me sentia que, estendendo o braço, poderia mergulhar
as mãos nas suas águas quentes.
De madrugada julguei ouvir alguém no quarto de Gretchen a
andar cuidadosamente, a caminhar de janela para janela e, em certa
altura, tive a certeza de ouvir passos lá fora, junto da porta do meu
quarto.
Quando o sol despontou no alto da montanha levantei-me e
vestime. Depois ouvi os passos de Gretchen, ouvi Gretchen descer a
escada. Certamente preparava o meu almoço, à pressa, para que eu
não perdesse o comboio. Esperei e, um quarto de hora depois, ela
subia novamente a escada. Bateu devagar e chamou várias vezes por
mim.
Abri a porta de par em par e apareci-lhe. Ficou surpreendida
por me ver já pronto; esperava encontrar-me a dormir e, por
momentos, não pôde articular uma palavra.
- Gretchen - disse eu, tomando-lhe as mãos - não tenhas pressa
por causa do comboio... não parto... não sei o que tinha ontem...
Agora sinto que te amo.
- Mas, Ricardo, disseste a noite passada...
- Disse a noite passada que partia de manhã cedo, Gretchen;
mas, acredita, não sabia o que estava dizendo. Agora só parto
quando fores comigo. Dir-te-ei o que penso, depois do almoço. Mas,
antes de mais nada, quero que me digas por onde se desce até ao rio.
Preciso de lá ir imediatamente, quero mergulhar as mãos nas suas
águas.
A OBRA DE ARTE
Anton Tchekhov
II
Teve, como qualquer outra, a sua história de amor. O pai, um
pedreiro, morrera tendo caído de um andaime. Depois morreu a mãe,
as irmãs dispersaram-se, um quinteiro recolheu-a e empregou-a,
ainda de pequenina, a guardar as vacas no campo.
Tiritava sob os farrapos, bebia a água dos charcos, estendida de
bruços, no chão. Foi sovada a propósito de tudo e de nada e,
finalmente, expulsa por causa de um roubo de trinta soldos que não
cometera. Entrou para outra quinta e serviu como encarregada da
criação. Porque agradava aos patrões, as suas camaradas invejavam-
na.
Numa noite do mês de Agosto (tinha então dezoito anos) os
patrões levaram-na a uma festa em Colleville. Ficou aturdida,
estupefacta com o alarido dos tocadores, as luzes nas árvores, a
variedade de trajes, as rendas, as cruzes de ouro, a multidão que se
movia.
Conservava-se recatadamente afastada quando um rapaz, de
aspecto rico e que fumava o seu cachimbo, apoiando os cotovelos
sobre a lança de um pequeno carro, veio convidá-la para dançar.
Pagou-lhe cidra, café, bolo folhado, deu-lhe um lenço de seda e,
julgando que ela compreendia as suas intenções, ofereceu-se para a
acompanhar a casa. Num campo de aveia atirou-a, brutalmente, ao
chão. Ela teve medo e começou a gritar. Ele afastou-se.
Numa outra tarde, na estrada de Beaumont, ao ultrapassar um
grande carro cheio de feno que avançava, lentamente, reconheceu
Teodoro. Este veio ter com ela pedindo que lhe perdoasse, pois «a
culpa tinha sido da bebida». Não soube que responder e teve
vontade de fugir.
Depois ele falou sobre as colheitas e pessoas importantes da
comuna e, visto que seu pai tinha trocado Colleville pela quinta de
Ecots, eis a razão porque eram vizinhos. «Ah! » - disse ela. Ele
acrescentou que desejavam casa-lo. Mas não tinha pressa, pois
esperava encontrar mulher a seu gosto.
Felicidade baixou a cabeça. Ele perguntou-lhe se pensava em
casar. Ela retorquiu, rindo-se, que não era bonito gracejar com
coisas tão sérias. «Mas não! Juro-te que falo a sério», e, com o braço
esquerdo, apertou-lhe a cintura. Caminhava, assim, apoiada nele.
Retardaram o passo. O vento soprava brando, as estrelas
brilhavam e a enorme carripana de feno oscilava na sua frente. Os
quatro cavalos, arrastando os passos, levantavam nuvens de poeira.
Depois, sem governo, voltaram à direita. Ele abraçou-a uma vez
mais.
Ela desapareceu na sombra.
Na semana seguinte Teodoro conseguiu encontrar-se várias
vezes com Felicidade, sob uma árvore isolada, ao fundo das
capoeiras, por detrás de um muro. Não era inocente como as
meninas recatadas - os animais haviam-na instruído; mas a razão e o
instinto da honra impediram-na de cair. Esta resistência exasperou o
amor de Teodoro ainda que, para satisfaze-lo, (ou talvez
sinceramente) lhe haja proposto casamento. Ela hesitou em
acreditar. Todavia ele fez grandes promessas.
Depressa confessou algo aborrecido: os pais, no ano transacto,
haviam-no feito substituir no serviço militar por um outro homem a
quem pagaram para esse efeito. Mas, de um dia para o outro,
poderiam vir buscá-lo.
A ideia de servir o exército amedrontava-o.
Esta cobardia foi para Felicidade uma prova de ternura. A sua
por ele duplicou. Escapava-se, de noite e, quando se encontravam,
Teodoro torturava-a com os seus receios e as suas instâncias.
Por fim disselhe que iria à Prefeitura colher informações e trá-
las-ia, no domingo seguinte, entre as onze horas e a meia-noite.
No momento aprazado correu para o noivo. Em seu lugar
encontrou um dos amigos. Este fez-lhe saber que não deviam
encontrar-se mais.
Para conseguir fugir ao alistamento militar, Teodoro casara-se
com uma velha muito rica, a senhora Lehoussais, de Toucques.
Sentiu uma amargura imensa. Atirou-se ao chão, gritou, invocou
Deus e, sozinha, chorou até ao nascer do sol. Em seguida voltou à
quinta e participou que saía. No fim do mês, feitas as contas, enrolou
toda a sua bagagem num lenço e dirigiu-se a Pont-l'Evêque.
Em frente da estalagem encontrou uma viúva que,
precisamente, procurava uma cozinheira. A rapariga pouco sabia
mas parecia ter tão boa vontade e tão poucas exigências que a
senhora Aubain acabou por dizer: - «Está bem, aceito-a»!
Felicidade um quarto de hora depois estava na nova casa. A
princípio viveu numa espécie de receio que lhe causavam «o género
da casa» e a «recordação do senhor», dominando tudo.
Paulo e Virgínia, aquele de sete anos de idade, e esta de quatro
anos, pareciam-lhe feitos de uma matéria preciosa. Andava com eles
às cavalitas e a senhora Aubain proibiu-a de os beijar, de minuto a
minuto, o que a martirizou. Todavia sentia-se feliz. A doçura do
ambiente eclipsara a sua tristeza.
Às quintas-feiras apareciam as costumadas visitas para a
partida do boston. Felicidade preparava, de antemão, as cartas e os
aquecedores. Chegavam, justamente, às oito horas da noite e saiam
antes das onze badaladas.
Às segundas-feiras, pela manhã, o ferro velho, que morava na
rua, estendia no chão a sucata. Pouco a pouco a cidade enchia-se de
um ruído de vozes a que se misturavam os relinchos dos cavalos, o
balar dos cordeiros, o grunhir dos porcos e a trepidação seca dos
carros na calçada.
Perto do meio-dia, quando o mercado atingia o auge, aparecia, à
entrada da porta da senhora Aubain, um velho camponês,
desempenado, boné lançado para a nuca, nariz recurvo e que era,
nem mais nem menos, Robelin, o quinteiro de Geffosses. Pouco
tempo depois vinha Liébard, o quinteiro de Toucques, pequeno,
avermelhado, obeso, vestindo de cinzento o calçando polainas altas
de couro, armadas de esporas. Ambos ofereciam à sua proprietária
frangos e queijos. Felicidade, invariavelmente, frustrava as suas
intenções manhosas e eles saíam cheios de consideração por ela.
De tempos a tempos a senhora Aubain recebia a visita do
marquês de Grémanville, seu tio, arruinado por causa do jogo e que
vivia em Falaise, no último pedaço das suas imensas terras de
outrora.
Chegava sempre à hora do almoço, com um cão de água muito
feio que, com as patas, sujava os móveis. Apesar dos esforços para
parecer elegante, chegando a tirar o chapéu sempre que dizia «meu
falecido pai» todavia, cedendo ao hábito, bebia cálix após cálix,
larachando sempre. Felicidade despedia-o: - «O senhor ainda tem
muito que fazer, senhor de Grémanville! Até outro dia». E fechava a
porta.
Abria-a com prazer ao senhor Bourais, antigo procurador. A
gravata branca, a calvície, o peitilho da camisa, a ampla sobrecasaca
castanha, a sua maneira de gesticular, descrevendo círculos no ar
quando fazia cálculos, todo este conjunto produzia nela perturbação
semelhante àquela que em nós provoca a presença de qualquer
homem extraordinário.
Administrava as propriedades da senhora e, por isso, fechava-se
com ela durante horas no escritório do «senhor», receava sempre
comprometer-se, respeitava intimamente a magistratura e tinha
pretensão a latinista.
Para instruir de forma agradável as crianças ofereceu-lhes urna
geografia com gravuras. Representavam diferentes curiosidades do
mundo, tais como antropófagos coroados de penas, um macaco
roubando uma menina, os beduínos no deserto, uma baleia ao ser
arpoada, etc.
Paulo explicou estes desenhos a Felicidade. Foi esta,
precisamente, toda a sua educação literária. A das crianças era
ministrada por Guyot, um pobre diabo empregado na Câmara,
famoso pela sua boa caligrafia e que amolava o canivete nas botas.
Quando o tempo estava bom partiam cedo para a quinta de
Geffosses. O pátio ficava numa encosta e a casa no meio dele; ao
longe, o mar aparecia como uma mancha cinzenta. Felicidade
retirava do cabaz fatias de carne fria e almoçavam numa casa
contígua à vacaria. Eram os últimos vestígios de uma casa de
recreio, agora desaparecida.
O papel das paredes, às tiras, tremia com as correntes de ar. A
senhora Aubain inclinava a fronte repleta de recordações; as
crianças não se atreviam a falar.
- «Brinquem»! ordenava. Elas desapareciam. Paulo subia ao
celeiro, apanhava pássaros, fazia ricochetes na água ou batia com
um pau nas enormes pipas que ressoavam como tambores. Virgínia
dava comida aos coelhos, apanhava miosótis e, na rapidez da corrida,
deixava ver as calcinhas bordadas.
Uma tarde de outono voltaram através das pastagens. A lua, no
seu primeiro quarto, iluminava uma parte do céu e a neblina flutuava
como um manto sobre as sinuosidades de Toucques.
Bois, deitados no meio da relva, olhavam tranquilamente as
quatro pessoas que passavam. Na terceira pastagem alguns
ergueram-se na frente deles, olhando em volta.
- «Não tenham medo» - disse Felicidade e, murmurando uma
espécie de lamento, acariciou o lombo do que lhe ficava mais perto:
ele voltou-se, os outros imitaram-no.
Mas quando atravessavam a pastagem seguinte ouviram um
formidável mugido. Era um touro que o nevoeiro ocultava.
Avançou para as duas mulheres. A senhora Aubain ia correr.
- «Não, não, mais devagar». - Apesar disso apressaram o passo
e ouviam atrás um sopro ruidoso que se aproximava. Os cascos,
como martelos, batiam a erva do prado. Ei-lo que galopa agora.
Felicidade voltou-se e com ambas as maus arrancava pedaços de
relva que ia atirando para os olhos.
O touro baixava o focinho, sacudia os cornos, tremia de furor,
mugindo horrivelmente.
A senhora Aubain, ao fundo da passagem, procurava,
desvairada, transpor o alto muro. Felicidade recuava sempre diante
do touro, lançando-lhe continuadamente os pedaços de relva com
terra agarrada, que o cegavam, gritando:
- «Despachai-vos! Despachai-vos !»
A senhora Aubain desceu o fosso e pousou Virgínia, Paulo fez
várias tentativas para subir o talude, mas caía. Por fim conseguiu-o à
força de coragem.
O touro encurralou Felicidade numa vedação. A sua baba
salpicava-lhe já a cara. Um segundo mais e estripava-a. Teve tempo
de se escapar por entre dois varões e o corpulento animal,
surpreendido, parou.
Durante muitos anos, este acontecimento foi motivo de conversa
em Pont-l'Evêque. Felicidade não se mostrou orgulhosa com o facto
nem pensou que tivesse feito algo de heróico.
Virgínia ocupava-a, exclusivamente, porque teve, em
consequência do susto, uma doença nervosa e o Dr. Poupart
aconselhou banhos de mar em Trouville. Nesse tempo não eram
frequentados. A senhora Aubain colheu informações e fez
preparativos para uma longa viagem.
A bagagem seguiu, de véspera, no carro de Liébard. No dia
seguinte trouxe este dois cavalos, um com sela para mulher, munida
de um espaldar de veludo. Na garupa do segundo, uma manta
enrolada formava uma espécie de cadeira. A senhora Aubain tomou
lugar atrás de Liébard. Felicidade encarregou-se de Virgínia e Paulo
escarrapachou-se no burro do senhor Lechaptois, emprestado sob
condição de terem com ele o maior cuidado.
A estrada era tão má que, para percorrem oito quilómetros,
gastaram duas horas. Os cavalos afundavam-se na lama, fazendo,
para sair dela, bruscos movimentos de ancas. Umas vezes
tropeçavam no rodado vincado na estrada. Outras, era preciso
saltar.
O jumento de Liébard, em certas alturas, parava bruscamente.
Cheio de paciência o dono esperava que recomeçasse a andar.
Falava a respeito dos proprietários das terras que ladeavam o
caminho, juntando às histórias reflexões de ordem moral. Assim, no
meio de Toucques, ao passar sob uma janela cercada por uma
trepadeira disse, encolhendo os ombros: - «aqui está uma, a senhora
Lehoussais que, em vez de ter casado com um rapaz novo...»
Felicidade não ouviu o resto.
Os cavalos trotavam, o burro galopava. Enfiaram por um atalho,
contornando uma barreira; apareceram dois rapazes e desceram
mesmo à porta da estrebaria.
A tia Liébard, ao ver a patroa prodigalizou-lhe demonstrações
de alegria. Serviu-lhes um almoço composto de costela de vaca,
tripas, morcela, frango de fricassé, cidra espumante, uma torta de
compotas e brunhos em aguardente, acompanhando tudo isto de
mesuras e gentilezas para com a senhora Aubain que parecia de
«óptima saúde», a menina, agora «magnífica» e o menino Paulo,
singularmente «crescido», sem esquecer seus falecidos avós que os
Liébard tinham conhecido, pois estavam ao serviço da família desde
há muitas gerações.
A quinta tinha, como eles, um aspecto vetusto. As vigas do tecto
estavam carunchosas, as paredes negras do fumo, os vidros das
janelas cinzentos de poeira. Sobre um aparador de castanho via-se
toda a espécie de utensílios: canjirões, pratos, escudelas de estanho,
armadilhas, tesouras de tosquiar carneiros. Uma enorme seringa fez
rir as crianças. Todas as árvores dos três quintais tinham cogumelos
na base ou camadas de visco nos ramos. O vento derrubara várias
delas; renasceram e vergavam, agora, sob o peso dos frutos. Os
tectos de palha, semelhantes a veludo castanho e de espessuras
diferentes, resistiam às mais fortes borrascas. Entretanto a cocheira
caía, em ruínas.
A senhora Aubain dizia que tomaria providências e mandou que
aparelhassem os animais.
Demoraram meia hora a chegar a Trouville.
A pequena caravana apeou-se para atravessar os Ecores;
tratava-se de uma falésia a prumo sobre os barcos. E, três minutos
mais tarde, ao fundo do cais entraram no pátio do «Cordeiro de
ouro», casa da tia David.
Virgínia, poucos dias depois, sentiu-se menos fraca, resultado da
mudança de ares e da acção dos banhos. Tomava-os em camisa, à
falta de fato de banho e a criada vestia-a na cabana do guarda da
alfândega. Todos os banhistas, aliás, faziam o mesmo. À tarde iam
com o burro para lá das rochas negras, para as bandas de
hennequeville. O atalho, a princípio, subia por entre terrenos
cobertos de relva, como um prado, depois atingia o planalto, onde
alternavam as pastagens e os campos de lavoura.
Ladeavam-no moutas de espinheiros de entre os quais se
elevavam, altaneiros, os azevinhos. Aqui e além uma grande árvore
desenhava no ar azul ziguezagues, com os seus ramos. Quase sempre
repousavam num prado, tendo Deauville à esquerda, o Havre à
direita e, em frente, o mar. Este, liso como um espelho, brilhava com
o sol e de tal maneira brando que se ouvia apenas o seu murmúrio.
Pardais ocultos pipiavam e a abóbada imensa do céu cobria tudo isto.
A senhora Aubain, sentada, costurava. Virgínia, perto dela,
entrançava juncos. Felicidade sachava as flores de alfazema. Paulo,
aborrecido, queria partir.
Outras vezes, tendo atravessado de barco para Toucques,
procuravam conchas. A maré baixa deixava a descoberto ouriços do
mar e medusas; e as crianças corriam para os flocos de espuma que
o vento arrastava. As ondas adormecidas, caindo sobre a areia,
desdobravam-se, ao longo da praia; esta estendia-se a perder de
vista mas do lado da terra, tinha por limite as dunas do «Marais»,
larga pradaria, em forma de hipódromo. Quando voltavam, Trouville,
ao fundo na encosta da colina, aumentava de tamanho, a cada passo
e, com as casas desiguais, parecia espalhar-se numa desordem
alegre.
Nos dias mais quentes não saiam do quarto. A deslumbrante
clareza de fora chapeava barras de luz entre as travessas das
gelosias. Nenhum ruído na povoação. Em baixo ninguém nos
passeios. Este silêncio generalizado aumentava a tranquilidade das
coisas.
Ao longe os martelos dos calafates batiam as quilhas das
embarcações e uma brisa pesada trazia o cheiro do alcatrão.
O principal divertimento era constituído pelo regresso dos
barcos. Desde que ultrapassavam as balizas começavam a bordejar.
As velas desciam para dois terços dos mastros e, com a mezena
inchada como um balão, avançavam, deslizavam por entre o
marulhar das vagas, até ao meio do porto, onde a âncora
imediatamente caía. Depois os barcos colocavam-se em frente do
cais. Os marujos lançavam por cima do costado dos barcos, peixes
ainda vivos, a saltar. Uma fila de carros esperava e as mulheres, com
lenços de algodão esforçavam-se por segurar os cabazes e abraçar
os seus maridos.
Uma delas, um dia, foi ter com Felicidade que, pouco depois,
entrou no quarto, toda satisfeita: tinha encontrado uma irmã.
Anastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu com um bebé ao
colo, outro pela mão direita e, à esquerda, um outro vestido de
marujo, de punhos na anca e gorro enterrado até às orelhas. Ao fim
de um quarto de hora a senhora Aubain despediu-a. Encontravam-
nos sempre nas proximidades da cozinha ou quando passeavam. O
marido não aparecia. Felicidade tomou-lhes afeição. Comprou-lhes
uma manta, camisas, um fogão; evidentemente eles exploravam-na.
Esta fraqueza de Felicidade irritava os nervos da senhora
Aubain, que, além disso, não gostava das familiaridades do sobrinho
porque ele tuteava seu filho. E, como Virgínia tossia e a estação já
não era boa, voltaram para Pont-l'Evêque.
O senhor Bourais ajudou-a a escolher um colégio. O de Caen
passava por ser o melhor Paulo foi pois para lá e portou-se bem à
despedida, foi mesmo valente, satisfeito por ir viver para uma casa
onde passava a ter camaradas.
A senhora Aubain, conformou-se com o afastamento do filho,
porque era indispensável. Virgínia pensou nele pouco.
Felicidade lamentava-se com alarido. Mas uma ocupação veio
distraí-la: a partir do Natal levava todos os dias a menina à
catequese.
III
Depois de fazer à entrada uma genuflexão, Felicidade avançava
na comprida nave, por entre a dupla linha de cadeiras, abria o banco
da senhora Aubain, sentava-se e passeava os olhos em redor.
Os rapazes à direita e as raparigas à esquerda enchiam as
cadeiras do coro; o padre estava de pé, perto da estante. Num vitral
da abside o Espírito Santo encimava a figura da Virgem. Um outro
mostrava-a, de joelhos, diante do Menino Jesus e, atrás do
Tabernáculo, um grupo de madeira representava S. Miguel
trespassando o dragão.
O sacerdote fez primeiro um resumo da História Sagrada.
Felicidade supunha ver o Paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as
cidades em chamas, pessoas que morriam, ídolos destruídos e
guardou deste deslumbramento o respeito ao Altíssimo e o temor da
Sua cólera.
Depois chorou, ouvindo a Paixão. Porque crucificaram Aquele
que amava as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e
tinha querido, por bondade, nascer no meio dos pobres, reclinado
num estábulo?
As sementerias, as colheitas, os lagares, todas as coisas
familiares de que fala o Evangelho encontram-se na sua vida. Deus à
sua passagem tinha-as santificado: e ela amava mais ternamente os
cordeiros por amor do Cordeiro, as pombas, por causa do Espírito
Santo.
Tinha dificuldade em imaginar o Espírito Santo porque não era
somente ave, mas também fogo e sopro. É talvez a Sua luz que
volteja, à noite, em volta dos pântanos, o Seu hálito que empurra as
nuvens, a Sua voz que dá harmonia aos sinos. E ela mantinha-se em
adoração, gozando a frescura das paredes e a tranquilidade da
igreja.
Nada compreendia dos dogmas nem tentava compreender. O
cura discorria, as crianças recitavam e ela acabava por adormecer.
Acordava, bruscamente, quando ouvia o bater dos tamancos nas
lajes. Foi assim, à custa de o ouvir, que aprendeu o catecismo, pois
na sua juventude a educação religiosa fora descurada e, desde então,
imitou todas as práticas de Virgínia, jejuando e confessando-se
quando esta o fazia.
Na Festa do Corpo de Deus fizeram juntas um altar. A primeira
comunhão atormentou-a muito tempo antes. Preocupou-se com os
sapatos, o chapéu, o livro, as luvas e com que emoção ajudou a mãe a
vestir a menina!
Durante toda a missa sofreu agonias. O senhor Bourais
guardou-lhe um lugar no coro. À sua frente, o grupo das virgens, com
as suas coroas brancas sobre os véus caídos, formava como que um
campo de neve. E ela reconhecia, de longe, a sua querida menina, de
pescocinho fino e atitude recolhida. A campainha soou.
As cabeças curvaram-se. Fez-se silêncio. Ao som do órgão o
grupo coral e a multidão entoaram o «Agnus Dei». Começou então o
desfile dos rapazes e depois deles as raparigas levantaram-se. Passo
a passo, de mãos juntas, caminharam para o altar, completamente
iluminado, ajoelharam-se no primeiro degrau, sucessivamente iam
recebendo a hóstia e, pela mesma ordem, voltaram aos
genuflexórios. Quando chegou a vez de Virgínia. Felicidade inclinou-
se para vê-la. E com a imaginação que dão as verdadeiras ternuras
pensava que era, ela própria, aquela criança: a figura da menina
tornava-se sua, o seu vestido vestia-o ela também, e igualmente o seu
coração era o que lhe batia agora no peito. No momento em que
Virgínia abriu a boca, cerrando as pálpebras, Felicidade sentiu-se
desfalecer.
No dia seguinte, de manhã cedo, apresentou-se na sacristia
para que o senhor cura lhe desse a comunhão. Recebeu-a, com toda
a piedade e recolhimento, mas não gozou as mesmas delícias.
A senhora Aubain queria dar à sua filha uma educação
completa. E como Guyot não podia ensinar-lhe inglês e música,
resolveu interná-la nas Ursulinas de Honfleur.
A criança nada objectou. Felicidade suspirava, vendo a senhora
insensível. Depois pensou que a sua senhora talvez tivesse razão.
Estas coisas excediam a sua competência.
Finalmente, um dia, parou diante da porta um grande carro,
descendo dele uma religiosa que vinha buscar a menina. Felicidade
carregou as bagagens para o tejadilho, fez recomendações ao
cocheiro, colocou na caixa seis frascos de compotas e uma dúzia de
pêras, com um ramo de violetas.
Virgínia, no último momento, emocionou-se muito. Abraçava a
mãe que a beijava na fronte repetindo: - «Então, coragem!
Coragem!»; o estribo da carruagem foi levantado e esta partiu.
Então a senhora Aubain teve um desfalecimento; e, à noite, todos os
seus amigos, o casal Lormeau, a senhora Lechaptois, as meninas
Rochefeuille, o senhor de Houppeville e Bourais apresentaram-se
para a consolar.
A ausência da filha foi-lhe, de princípio, muito dolorosa. Mas,
três vezes por semana, recebia carta dela; nos outros dias escrevia-
lhe, passeava no jardim, lia um pouco e, desta maneira, combatia o
vazio das horas.
De manhã, por hábito, Felicidade entrava no quarto de Virgínia
e olhava as paredes. Aborrecia-se não mais ter que a pentear,
apertar-lhe as botas, prender-lhe a roupa da cama - e de não ver,
continuamente, a sua figura gentil, não a segurar pela mão quando
saíam juntas.
Na sua ociosidade, tentou fazer renda, mas os seus dedos muito
grossos partiam a linha, não ouvia nada, tinha perdido o sono e
segundo as suas próprias palavras, estava «consumida».
Para se distrair pediu autorização para receber o seu sobrinho
Vítor. Chegava depois da missa, ao domingo, as faces rosadas, o
peito nu e rescendendo intensamente ao campo que atravessava.
Seguidamente punha o seu talher; almoçavam um em frente do outro
e comendo ela o menos possível, para poupar, enchia-o de tal
maneira de comida que ele acabava por adormecer.
À primeira badalada das vésperas acordava-o, escovava-lhe o
casaco, fazia-lhe o nó da gravata e ia à igreja, apoiada no seu braço
com um orgulho maternal.
Os pais encarregavam-no de lhe extorquir qualquer coisa: um
pacote de açúcar, sabão, aguardente, por vezes mesmo, dinheiro.
Trazia o vestuário para consertar e ela aceitava esta tarefa, feliz por
ele ter motivo que o forçava a voltar.
Em Agosto o pai levou-o para a faina da cabotagem. Era a
altura das férias. A chegada dos meninos consolou-a. Mas Paulo
tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha já idade para se tratar por
tu, o que punha um embaraço, uma barreira entre eles.
Vítor foi, sucessivamente, a Morlaix, a Dunquerque e a
Brighton; na volta de cada viagem oferecia-lhe um presente. Da
primeira vez uma caixa de conchas; da segunda uma chávena, e da
terceira um grande boneco de especiarias. Ele embelezara,
enformara, tinha um bigodinho, belos olhos francos e um chapelinho
de coiro, colocado para trás, como um piloto. Divertia-a, contando-
lhe histórias, misturadas de termos marítimos.
Uma segunda-feira, 24 de Julho de 1819, (não esqueceu a data),
Vítor anunciou que se alistara nas viagens de longo curso e daí a dois
dias, à noite, pelo paquete de Honfleur, iria reunir-se a sua galeota,
que devia largar do Havre, proximamente. Estaria ausente, talvez,
dois anos.
A perspectiva de tal ausência desolou Felicidade e, ainda para
lhe dizer adeus, na quarta-feira à tarde, depois do jantar da senhora,
calçou as galochas e galgou as quatro léguas que separam Pont-
l'Evêque de Honfleur.
Quando chegou ao Calvário, em vez de virar à esquerda, virou à
direita, perdeu-se nos quarteirões e voltou. As pessoas com quem
falava aconselhavam-na a apressar-se. Percorreu a doca cheia de
navios, chocou com as amarras depois o terreno baixou, as luzes
entrecruzaram-se e ela julgou-se doida, vendo cavalos no ar. À ponta
do cais outros relinchavam aterrorizados pelo mar.
Um guindaste erguia-os e descia-os no barco onde os viajantes
se misturavam com as barricas de cidra, os cabazes de queijo, os
sacos de grão; ouvia-se cacarejar as galinhas; o capitão praguejava;
um grumete, indiferente a tudo isto, estava encostado ao pau em que
descansa a âncora. Felicidade, que não o reconhecera, gritou:
- «Vítor!» Ele levantou a cabeça; a escada foi tirada no
momento em que se precipitava para alcançá-la.
O paquete, que as mulheres puxavam cantando, saiu do porto. A
carcassa rangia, pesadas vagas fustigavam a proa. A vela virara, não
se via ninguém - e no mar, prateado pela lua, o barco era uma
mancha negra que empalidecia até desaparecer por completo.
Felicidade, ao passar junto do Calvário quis recomendar a Jesus
aquele que mais amava; e rezou durante muito tempo, de pé, a cara
cheia de lágrimas, os olhos erguidos para o céu. A cidade dormia, os
guardas-fiscais passeavam e a água caía, continuamente, pelos
buracos da comporta, com um ruído de torrente. Soaram duas horas.
O locutório só abriria de manhã. Um atraso, certamente,
contrariaria a senhora; e, apesar do seu desejo de abraçar a menina,
voltou.
As raparigas da estalagem acordavam quando ela entrou em
Pont-l'Evêque. Pobre criança que ia durante dois meses rolar sobre
as ondas! As suas viagens precedentes não a tinham preocupado. Da
Inglaterra e da Bretanha voltava-se; mas a América, as Colónias, as
Ilhas, ficavam perdidas numa região incerta, no fim do mundo.
A partir de então, Felicidade pensou exclusivamente no
sobrinho. Nos dias de sol atormentava-a a ideia da sede; se fazia
tempestade temia que o atingisse o raio. Escutando o vento, que
bramia na chaminé e levava as telhas, via-o batido por essa mesma
tempestade, na parte mais alta de um mastro partido, todo o corpo
para a frente, sob uma toalha de escuma; ou então - recordação da
geografia em estampas - era comido pelos selvagens, preso num
bosque pelos macacos, morrendo numa praia deserta. E nunca falava
das suas inquietações.
A senhora Aubain tinha-as, também, quanto à filha.
As religiosas achavam-na afectuosa mas de saúde delicada. A
mais pequena emoção a perturbava. Era necessário abandonar o
piano. A mãe exigia correspondência regular do convento.
Uma manhã em que o carteiro não trouxe correspondência, ela
impacientou-se; e caminhava na sala, da cadeira para a janela. Era
verdadeiramente extraordinário Quatro dias sem notícias!
Para a consolar, com o seu exemplo, Felicidade disselhe:
- «E eu, minha senhora, que há seis meses não as tenho». -
«Mas de quem?»
A criada replicou docemente:
- «Mas... do meu sobrinho!»
- Ah! o teu sobrinho! E erguendo os ombros a senhora Aubain
retomou o seu passeio, o que queria dizer: «Nunca pensei nisso!
Estou surpreendida! Um grumete, um pobretão, que tolice! Enquanto
que a minha filha... Suponham!»
Felicidade, se bem que rude, ficou indignada contra a senhora;
depois esqueceu. Achava muito natural que se perdesse a cabeça
tratando-se da menina. As duas crianças tinham uma importância
igual; um laço no seu coração as unia e os seus destinos deviam ser
os mesmos.
O farmacêutico informou-a de que o barco de Vítor chegara a
Havana. Lera esta notícia numa gazeta.
Por causa dos charutos, ela imaginava Havana uma terra onde
só se fumava e Vítor circulava entre os negros, numa nuvem de fumo.
Poder-se-ia, «em caso de necessidade», voltar por terra? A que
distância ficava de Pont-l'Evêque? ela interrogou sobre isto o senhor
Bourais.
Ele abriu o Atlas e deu explicações sobre as distâncias. Tinha
um sorriso pretensioso perante o pasmo de Felicidade.
Enfim, com o lápis indicou nos recortes duma mancha oval um
ponto negro, imperceptível, concluindo
- «É aqui». Ela debruçou-se sobre o mapa. Aquela rede de
linhas coloridas fatigou-lhe os olhos sem nada lhe ensinar e como
Bourais lhe perguntasse o que a embaraçava, pediu-lhe que lhe
mostrasse a casa onde Vítor morava. Bourais levantou os braços,
espirrou, riu estrepitosamente; semelhante candura excitara a sua
alegria; e Felicidade não compreendeu a razão do riso - ela que
esperava ver até, talvez, o retrato do sobrinho, tão limitada era a
sua inteligência.
Foi quinze dias depois que Liébard, à hora do mercado, como
habitualmente, entrou na cozinha e lhe entregou uma carta do
cunhado. Como nenhum sabia ler pediu à patroa.
A senhora Aubain, que fazia malha, poisou-a perto, abriu a
carta, leu-a e, em voz baixa, com profundo olhar: - «É uma desgraça -
o que te anunciam. O teu sobrinho...» Morreu. Não era preciso dizer
mais. Felicidade tombou sobre uma cadeira, apoiando a cabeça no
espaldar e fechou as pálpebras que se avermelharam imediatamente.
Depois, cabeça baixa, mãos pendentes, olhar fixo, repetia a
intervalos: - «Pobre rapazinho! Pobre rapazinho!»
Liébard contemplava-a, soltando suspiros. A senhora Aubain
tremia um pouco. Propôs-lhe que fosse ver a irmã a Trouville.
Felicidade respondeu, por gestos, que não havia necessidade disso.
Fez-se silêncio. O bom Liébard julgou conveniente retirar-se. Então
ela disse: - «Isso não adiantava nada».
A cabeça recaiu-lhe e, maquinalmente, levantava, de vez em
quando, grandes agulhas sobre a mesa de trabalho. Passaram
mulheres na rua com uma padiola cheia de roupa branca. Vendo-as,
pelos vidros, lembrou-se da sua barrela; tendo-a coado, na véspera,
era necessário hoje lavar; e saiu da sala.
O lavadouro ficava ao fundo de Toucques. Ela lançou-lhe para
dentro uma porção de camisas, arregaçou as mangas, pegou no
batedor e as pancadas fortes que dava ouviam-se nos outros jardins,
ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava a ribeira; ao
fundo, ervas muito altas inclinavam-se como cabeleiras de cadáveres,
flutuando na água.
Reprimiu a sua dor até à noite; foi muito corajosa mas no quarto
abandonou-se ao desgosto, deitada de barriga para baixo, a cara no
travesseiro e os dois punhos apertando as têmporas.
Muito mais tarde, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as
circunstâncias do seu fim. Tinham-no sangrado, demasiadamente, no
hospital, por causa da febre amarela. Quatro médicos o tratavam,
revezando-se. Depois morreu e o chefe havia dito: - «Ora esta, ainda
mais um!». Seus pais tinham-na sempre tratado com grosseria. Ela
preferiu não os ver; e eles também não se apressaram a fazê-lo, por
esquecimento ou insensibilidade de miseráveis.
Virgínia enfraquecia. Opressões, tosse, febre contínua e a
lividez do rosto ocultavam alguma afecção profunda. O Dr. Poupart
tinha aconselhado uma estadia na Provença. A senhora Aubain
experimentou e voltou de seguida a trazer a filha para o colégio, sem
passar por Pont-l'Evêque.
Fez um contrato com um alugador de carruagens para a levar
todas as terças-feiras ao convento. No jardim há um terraço donde
se vê o Sena. Virgínia passeava nele, pelo braço de sua mãe, sobre
as folhas de pâmpanos caídas no chão. Às vezes o sol, atravessando
as nuvens, obrigava-a a fechar as pálpebras, quando olhava as velas
ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de Tancarville até aos
faróis do Havre. Em seguida repousava sob o caramanchão. A mãe
procurava um pequeno barril de excelente vinho de Málaga. E, rindo-
se com a ideia de ficar embriagada, bebia dois golos, não mais.
As suas forças reapareceram. O Outono desapareceu
docemente. Felicidade animava a senhora Aubain. Mas, numa tarde
em que fora aos arredores dar um passeio, quando voltou encontrou
diante da porta a carruagem do Dr. Poupart; ele estava no vestíbulo,
a senhora Aubain compunha o chapéu.
- «Dê-me o meu abafo, a bolsa e as luvas, o mais depressa
possível».
Virgínia sentia o peito oprimido. Estava, talvez, em estado
desesperado.
- «Ainda não» diz o médico; e os dois subiram para a carruagem,
sob os flocos de neve que caíam. Aproximava-se a noite. Fazia muito
frio. Felicidade precipitou-se para a igreja, a fim de acender uma
vela. Depois correu atrás da carruagem que alcançou uma hora mais
tarde, saltou com ligeireza para a parte traseira onde ela se
aguentava nos torçais, quando lhe sobreveio uma reflexão: - «O pátio
não estava fechado! E se os ladrões assaltassem a casa?» E desceu.
No dia seguinte, ao romper da aurora foi a casa do doutor que
tinha regressado mas saíra para o campo. Depois ficou na estalagem,
julgando que desconhecidos trariam uma carta. Enfim, ao findar do
dia, tomou a diligência para Lisieux.
O convento encontrava-se ao fundo de uma ruela escarpada. A
meio ela ouviu sons estranhos, dobre de finados. «Trata-se de
outros» - pensava ela; e Felicidade bateu violentamente. Ao fim de
alguns minutos a porta entreabriu-se e apareceu uma religiosa.
A boa irmã, com um ar compungido, disse que «ela acabava de
morrer». Ao mesmo tempo os sinos de Saint-Léonard tocavam a
finados.
Felicidade chegou ao 2.º andar. Da porta do quarto viu Virgínia
deitada de costas, de mãos juntas, boca aberta, cabeça lançada para
trás sob uma cruz negra que se inclinava para ela, entre cortinas
imóveis, menos pálidas que a sua cara. A senhora Aubain, agarrada à
cama, soltava suspiros angustiosos. A superiora estava de pé, à
direita. Três castiçais sobre a cómoda, eram três manchas
vermelhas e o nevoeiro branquejava as janelas. As freiras levaram a
senhora Aubain.
Durante duas noites Felicidade não deixou a morta. Repetia as
mesmas orações, lançava água benta no vestuário, voltava a sentar-
se e contemplava-a.
Ao fim da primeira noite de vigília, notou que a cara tinha
amarelecido, os lábios azulado; o nariz afilara entre os olhos
cavados. Ela beijou-os muitas vezes. E não sentiria espanto se
Virgínia, nessa altura, os abrisse. Para almas destas o sobrenatural é
muito simples.
Ela lavou-a, vestiu-a, envolveu-a na mortalha, deitou-a no
caixão, colocou-lhe uma coroa e segurou-lhe os cabelos. Estes eram
louros e extraordinariamente compridos para a idade. Felicidade
cortou uma grossa madeixa, tendo escondido metade no seu peito,
disposta a jamais se separar deles.
O corpo foi trazido para Pont-l'Evêque, conforme determinação
da senhora Aubain, que seguia o féretro numa carruagem fechada.
Depois da missa foram precisos ainda três quartos de hora para
alcançar o cemitério. Paulo caminhava à frente, soluçando. O senhor
Bourais ia atrás, seguido dos principais habitantes, cobrindo-se as
mulheres com mantilhas pretas e Felicidade. Ela pensava no seu
sobrinho e, não tendo podido prestar-lhe estas homenagens, sentia
um aumento de tristeza, como se estivesse enterrando um e outro.
O desespero da senhora Aubain foi ilimitado. A princípio
revoltou-se contra Deus, achando injusto ter-lhe levado sua filha que
nunca tinha feito mal e cuja consciência era tão pura! Mas não! Ela
devia tê-la levado para o sul. Outros médicos a teriam salvo.
Acusava-se, queria tê-la outra vez para si, gritava
angustiosamente no meio dos sonhos. Um, sobretudo, tornava-se
uma obsessão. Seu marido, vestido de marinheiro, voltava de uma
longa viagem e dizia-lhe, chorando, que tinha ordem de levar
Virgínia. Então eles combinavam um esconderijo em qualquer parte.
Uma vez ela voltou do jardim perturbada. Ali (ela mostrava o
lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido, perto um do outro,
quietos, fixando-a.
Durante vários meses permaneceu no quarto, inerte.
Felicidade animava-a, ralhando com doçura; era preciso poupar-
se por causa do seu filho e por causa também da outra, em memória
«dela».
- «Ela»? - replicava a senhora Aubain, como que despertando de
um sonho.
- «Ah! sim! sim! Não a esqueces!» Alusão ao cemitério que
escrupulosamente lhe havia sido impedido de frequentar.
Felicidade ia lá todos os dias.
Às quatro horas em ponto passava junto das casas, subia a
encosta, abria o portão e chegava junto do túmulo de Virgínia. Era
constituído por uma pequena coluna de mármore cor de rosa, com
uma laje na base e correntes de ferro em redor, encerrando um
pequenino jardim. As platibandas desapareciam sob o monte de
flores. Ela regava as suas folhas, renovava a terra, punha-se de
joelhos para melhor cavar. A senhora Aubain, quando podia aqui vir,
sentia um certo alívio, uma espécie de consolação.
Depois os anos correram sempre iguais e sem outros episódios
que o retorno das grandes festividades: Páscoa, Assunção, Todos os
Santos.
Acontecimentos interiores marcavam uma data que mais tarde
era lembrada. Assim em 1825, dois operários pintaram o vestíbulo.
Em 1827 uma porção de telhado, caindo no pátio, esteve prestes a
matar um homem. No verão de 1823 foi a vez da senhora oferecer o
pão bento. Bourais nesta época ausentou-se misteriosamente e os
antigos conhecimentos, pouco a pouco, desapareceram: Guyot,
Liébard, senhora Lechaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico
desde há muito tempo.
Uma noite o condutor da diligência anunciou em Pont-l'Evêque a
Revolução de Julho. Um sub-prefeito novo, poucos dias depois, foi
nomeado: o barão de Larsonniere, ex-cônsul na América e que tinha
em casa, além da mulher, a cunhada com três meninas, já bastante
crescidas.
Viam-se, muitas vezes, na relva, vestidas com blusas amplas;
tinham um negro e um papagaio.
A senhora Aubain teve as suas visitas e não faltou em retribui-
las. Por mais longe que elas aparecessem Felicidade corria a
prevenir a senhora. Mas só uma coisa era capaz de a emocionar: as
cartas de seu filho Paulo.
Ele não podia seguir nenhuma carreira, estando absorvido nos
cafés. Ela pagava-lhes as dívidas; ele fazia outras e os suspiros que a
senhora Aubain soltava, tricotando perto da janela, chegavam a
Felicidade que fazia girar a sua roda de fiar na cozinha.
Elas passeavam juntamente ao longo da latada; e conversavam
sempre de Virgínia, interrompendo-se mutuamente se tal coisa teria
agradado à menina em tal ocasião e o que, provavelmente, teria dito.
Todas as pequenas recordações ocupavam um armário no
quarto das duas camas. A senhora Aubain examinava-as o menos
possível. Um dia de verão ela o fez e duas pequenas borboletas
voaram do armário.
Os seus vestidos estavam alinhados; havia ainda três bonecas,
arcos, uma mobília, lavatório privativo. Elas retiraram igualmente as
saias, as meias, os lenços e estenderam-nos sobre as duas camas,
antes de os dobrar. O sol iluminava estes pobres objectos fazendo
ver as nódoas e as pregas formadas pelos movimentos do corpo. O ar
estava quente e azulado, um melro chilreava, tudo parecia viver uma
doçura profunda.
Encontraram um pequeno chapéu acastanhado, de pelúcia com
pelos longos; mas estava todo corroído pela traça.
Felicidade pediu-o para si. Os Seus olhos encontraram os da
senhora e ambas os encheram de lágrimas; enfim, a senhora abriu os
seus braços e a criada lançou-se neles; estreitaram-se num abraço e
satisfizeram a sua dor num beijo que as igualava Isto deu-se pela
primeira vez, pois a senhora Aubain não era de natureza expansiva.
Felicidade aceitou como um benefício e, a partir de agora, passa
a querer-lhe com uma devoção de animal e uma veneração religiosa.
A vontade do seu coração desenvolveu-se. Quando ouvia na rua
os tambores dum regimento em marcha, ia para a porta com uma
bilha cheia de cidra e oferecia de beber aos soldados. Cuidou dos
atacados pela cólera - em 1832. Protegeu os polacos fugidos da sua
pátria e houve um até que declarou querer desposá-la. Mas
zangaram-se, porque uma manhã, quando regressava do «Angelus»,
encontrou-o na cozinha, onde ele se introduzira e, tendo temperado
de azeite e vinagre um petisco, comia-o tranquilamente.
Depois dos polacos, foi a vez do tio Colmiche, um velho que
passava por ter cometido horrores em 93. Vivia na margem do rio,
nas ruínas de uma pocilga.
Os garotos espiavam-no pelas frinchas da parede e atiravam-lhe
pedras que caíam sobre o catre onde ele jazia deitado,
continuamente sacudido por um catarro, com os cabelos muito
compridos, as pálpebras inflamadas e no braço um tumor maior do
que a própria cabeça.
Ela procurou-lhe roupa, limpou-lhe a alcova e sonhava em
transportá-lo para o forno, mas no caso de não causar incómodo à
senhora Aubain.
Quando o cancro rebentou todos os dias o pensava, algumas
vezes levava-lhe bolo folhado o colocava-o ao sol sobre um molho de
palha. E o pobre velho, babando-se e tremendo, agradecia-lhe com
voz apagada, e, receando perdê-la, estendia as maus quando a via
afastar-se. Ele morreu. Ela fez dizer-lhe uma missa pelo repouso da
sua alma.
Nesse dia sobreveio-lhe uma grande ventura: ao jantar, o negro
da senhora Larsonniere apareceu, trazendo o papagaio na sua
gaiola, com o poleiro, a corrente e o cadeado. Um bilhete da
baronesa anunciava à senhora Aubain que tendo o marido sido
nomeado prefeito tinham de partir, à noite; e pedia-lhe para aceitar a
ave como uma lembrança e em testemunho da sua admiração.
Desde há muito que ele ocupava o pensamento de Felicidade,
porque viera da América e esta palavra lembrava-lhe Vítor, pois ela
informara-se junto do preto.
Uma vez, ela mesmo, dissera: «A senhora sentir-se-ia feliz se o
possuísse». O negro contou isto à patroa de modo que esta, não
podendo levá-lo, se desembaraçou dele desta maneira.
IV
Chamava-se Lulu. Seu corpo era verde, a ponta das asas cor de
rosa, a cabeça azul e o pescoço dourado. Mas ele tinha a mania
fatigante de morder o poleiro, arrancava as penas, espalhava os
excrementos e salpicava tudo em redor com a água da banheira.
A senhora Aubain, que ele detestava, deu-o para sempre a
Felicidade. Ela começou a instrui-lo e cedo ele repetia: «Encantador
rapaz!», «Um seu criado, senhor!», «Eu te saúdo Maria.»
Estava colocado junto da porta e várias pessoas se admiravam
de que não respondesse pelo nome de Jacob, pois que todos os
papagaios se chamavam Jacob. Comparavam-no a um perua, a um
estúpido: que ofensas para Felicidade!
Estranha obstinação de Lulu que não falava quando olhavam
para ele. Todavia gostava de companhia, pois que, ao domingo,
quando as meninas Rochefeuille, o senhor de Houppeville e os novos
frequentadores da casa o farmacêutico Onfroy, o senhor Varin e o
capitão Mathieu jogavam a sua partida de cartas, ele arranhava os
vidros com as asas e agitava-se, tão furiosamente, que era impossível
ouvirem-se.
A figura de Bourais, sem dúvida lhe parecia muito patusca.
Logo que o via começava a rir, a rir com todas as suas forças os
estalos da sua voz reboavam pelo pátio, o eco os repetia, os vizinhos
apareciam às janelas e riam também; para não ser visto pelo
papagaio o sr. Bourais cosia-se com a parede, ocultando o seu perfil
com o chapéu, alcançava o rio, depois entrava pela porta do jardim; e
os olhares que ele lançava à ave não tinham ternura.
Lulu recebera do moço do talho um piparote quando ousara
meter a cabeça na sua alcofa e, por via disso, esforçava-se por
beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava-o de lhe torcer o
pescoço, posto que não fosse cruel apesar da tatuagem dos braços e
das espessas suíças. Ao contrário sentia amizade pelo papagaio, até
ao ponto de querer, por graça, ensinar-lhe a rogar pragas.
Felicidade a quem amedrontavam estas maneiras, colocou-o na
cozinha. A corrente foi retirada e ele circulava pela casa. Quando
descia a escada apoiava a curva do bico nos degraus, levantava a
pata direita, depois a esquerda. E ela receava que uma tal ginástica
lhe causasse tonturas.
Apareceu doente, não falava nem comia. Tinha debaixo da
língua uma camada de pele espessa, como às vezes têm as galinhas.
Ela curou-o, arrancando com as unhas esta pele.
O senhor Paulo um dia cometeu a imprudência de lhe soprar o
fumo do cigarro para as narinas. Uma outra vez que a senhora
Lormeau o afagava com a ponta da sombrinha ele engoliu-lhe a
ponteira; por fim perdeu-se.
Felicidade colocou-o sobre a erva para o refrescar; ausentou-se
um minuto; quando voltou o papagaio tinha fugido! A princípio
procurou-o nos bebedoiros, à borda da água e nos telhados, sem
ouvir a patroa que lhe gritava: - «Tome cuidado!», «você está doida!»
Depois revistou todos os jardins de Pont-l'Evêque; e interpelava os
transeuntes: - «Por acaso não viram o meu papagaio?»
Aos que nem sequer sabiam o que era um papagaio descrevia-o.
Uma vez julgou distinguir, por detrás dos moinhos, no fundo da
encosta, uma coisa verde que se movia. Mas chegando ao alto da
encosta, nada. Um moço de fretes afirmou-lhe que o havia
encontrado, há pouco, na taberna de Tia Simon, em Saint-Melaine.
Ela para lá correu. Não sabia o que havia de dizer. Enfim
entrou, esgotada, os sapatos velhos em farrapos e a morte na alma.
E, sentada no meio do banco, perto da tia Simon, contava todas as
tentativas para encontrá-lo quando um peso ligeiro lhe caiu no
ombro: Lulu!
Que diabo havia feito? Talvez que tivesse passeado nos
arredores!
Custou a acalmar-se ou melhor não se acalmou. Em seguida a
um resfriamento sobreveio-lhe uma angina. Pouco tempo depois, uma
doença de ouvidos. Três anos mais tarde estava surda e falava muito
alto, mesmo na igreja. Posto que os seus pecados nada tivessem para
desonrá-la, nem inconveniente algum para o mundo, espalhando-se
por todos os cantos da diocese, o senhor cura julgou conveniente não
a confessar senão na sacristia.
Zumbidos ilusórios acabaram por perturbá-la. Muitas vezes a
patroa dizia-lhe: - «Meu Deus! Como você é estúpida! Ela replicava: -
«Sim, senhora!» procurando qualquer coisa à volta.
O pequeno círculo das suas ideias se estreita ainda mais e o
carrilhão dos sinos e o mugir dos bois deixam de existir para ela.
Todos os seres funcionam com o silêncio dos fantasmas. Um único
ruído chegava ainda aos seus ouvidos: a voz do papagaio.
Por distracção ele reproduzia o tic-tac da manivela do espeto do
assar, o grito agudo do vendedor de peixe, a serra do marceneiro da
frente, e, quando soava a campainha, imitava a Sr.ª Aubain: -
«Felicidade! a porta, a porta!»
Tinham diálogos: ele, declamando até fartar as três frases do
seu repertório; e ela respondendo-lhe palavras soltas que o seu
coração expandia.
Lulu no seu isolamento era quase um filho, um apaixonado.
Empoleirava-se nos seus dedos, mordia-lhe os lábios e
agarrava-se ao peitilho e, como ela inclinava a fronte meneando a
cabeça, à maneira das amas, as grandes pontas da touca e as asas do
animal abanavam em conjunto.
Quando as nuvens se acastelavam e o trovão ribombava ele
soltava gritos, lembrando-se talvez das tempestades da sua floresta
natal.
O correr da água excitava o seu delírio. Ele esvoaçava,
desvairado, subia ao tecto, descia de novo e, através da janela, ia
molhar o bico no jardim; mas voltava depressa a empoleirar-se num
dos varões de ferro do fogão da sala e, saltitando para secar as
penas, mostrava ora a cauda ora o bico.
Uma manhã do terrível inverno de 1837 em que ela o colocara
frente à chaminé, por causa do frio, foi encontrá-lo morto, no meio da
sua gaiola, de cabeça caída e as garras nos arames. Uma congestão
matara-o, sem dúvida! Ela sempre acreditou num envenenamento
com salsa e, apesar da ausência de provas, a sua suspeita recaiu
sobre Fabu.
Chorou de tal modo que a patroa lhe disse: - «Pois bem, mande
empalhá-lo».
Pediu conselho ao farmacêutico que tinha sido sempre amigo do
papagaio.
Este escreveu para Havre. Um certo Fellacher encarregou-se
da tarefa. Mas, como a diligência perdia às vezes os volumes,
resolveu ser ela própria a portadora até Hanfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se, ao lado da estrada. O gelo
cobria as covas. Os cães ladravam em volta das quintas. E, com as
mãos sob a mantilha, pequenos tamancos pretos e o cabaz, avançava
com ligeireza no meio do caminho calcetado.
Atravessou a floresta, ultrapassou Haut-Chêne e alcançou Saint-
Gatien. Atrás dela, numa nuvem de poeira e arrastada pela descida
uma diligência, num largo galope, precipitava-se como uma tromba
de água. Vendo esta mulher que não se afastava o condutor
levantando-se do lugar e gritando, juntamente com o postilhão,
tentava adverti-la do perigo, enquanto que os quatro cavalos que ele
não podia deter, aceleravam a marcha. Os dois primeiros roçaram-
na: uma sacudidela dos seus guias lançou-os na desordem, mas, o
condutor, furioso, levantou o braço e, à toa, com o chicote assentou-
lhe uma varada desde o ventre ao pescoço, tão forte que ela caiu de
costas.
O primeiro gesto, quando tomou consciência, foi abrir o cesto.
Felizmente Lulu nada sofrera. Sentia a face direita abrasada.
Quando lhe jogou as mãos vieram vermelhas. O sangue corria.
Sentou-se numa pedra, estancou o sangue do rosto com o lenço,
comeu uma côdea de pão, posta no cabaz por precaução e consolava-
se da ferida, olhando a ave.
Chegada ao cume de Ecquemauville viu as luzes de Hanfleur
que cintilavam, na noite, como uma quantidade de estrelas. O mar,
mais longe, estendia-se confusamente.
Então uma fraqueza a reteve: a miséria da sua infância, a
decepção do primeiro amor, o desaparecimento do sobrinho, a morte
de Virgínia como as águas da maré voltavam, ao mesmo tempo e,
subindo-lhe à garganta, abafavam-na.
Depois quis falar ao capitão do barco; e sem dizer o que enviava
fez-lhe recomendações. Fellacher guardou durante muito tempo o
papagaio. Prometia sempre para a «próxima Semana». Ao fim de seis
meses anunciou a remessa duma caixa. E não pensou mais no caso.
Ela julgava até que o Lulu jamais voltasse. «Roubaram-mo» dizia.
Enfim, chegou e esplêndido, direito, sobre um ramo de árvore
que se aparafusava num pedestal de acaju, com uma pata no ar, a
cabeça oblíqua, mordendo uma noz que o empalhador, por amor do
grandioso, havia dourado.
Ela fechou-se no seu quarto. Este lugar, onde admitia pouca
gente, tinha o ar ao mesmo tempo duma capela e dum bazar, tantos
objectos religiosos e coisas heteróclitas continha. Um grande
armário, ao abrir, embaraçava a porta.
Em frente da janela, aberta para o jardim, uma clarabóia olhava
o pátio; uma mesa, perto da cama de lona, suportava um vaso com
água, dois pentes e um cubo de sabão azul num prato cheio de
mossas. Encostados às paredes viam-se rosários, medalhas, várias
estampas da Virgem, uma pia de água benta em noz de coco; em
cima da cómoda, coberta com um pano como um altar, a caixa de
conchinhas que lhe dera Vítor, um regador e uma bola, cadernos, a
geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho
enganchado pelas fitas o pequeno chapéu de pelúcia.
Felicidade levava tão longe este género de respeito que
conservava ainda uma das sobrecasacas do senhor. Todas as
velharias que a senhora Aubain não queria ela levava-as para o seu
quarto. É por isso que nele havia flores artificiais na cómoda e o
retrato do conde d'Artois na parte mais funda da mansarda.
No meio de uma prancheta Lulu foi colocado sobre um pedaço
da chaminé que avançava no quarto. Todas as manhãs, ao despertar,
ela via-o à claridade da aurora e lembrava-se então dos dias
decorridos e de acções insignificantes até nos seus mais ínfimos
pormenores, sem amargura, cheia de tranquilidade.
Não comunicando com ninguém vivia num torpor de sonâmbula.
As procissões do Corpo de Deus a reanimavam. Ia pedir às
vizinhas as tochas e as esteiras a fim de ornamentar o altar que
erigiam na rua.
Na igreja contemplava sempre o Espírito Santo e observou que
nele havia qualquer coisa do papagaio. A semelhança pareceu-lhe
ainda mais manifesta numa gravura de Epinal, representando o
baptismo de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de
esmeralda era verdadeiramente o retrato de Lulu.
Tendo-o comprado, colocou-o no lugar do conde d'Artois, de
modo que, com um único olhar, via-os ao mesmo tempo.
Eles associaram-se no seu pensamento, santificando-se o
papagaio com esta ligação com o Espírito Santo o qual, por sua vez,
se tornava mais real, mais vivo e inteligível. O Deus Pai para se
anunciar não podia ter escolhido uma pomba, pois estes animais não
têm voz mas antes um dos antepassados de Lulu. E Felicidade
rezava, olhando a imagem mas, de quando em vez, virava-se um
pouco para a ave.
Teve vontade de se inscrever como filha de Maria, mas a
senhora Aubain dissuadiu-a de tal.
Um acontecimento considerável surgiu: o casamento de Paulo.
Depois de ter sido a princípio ajudante de notário, em seguida
ter enveredado pelo comércio, alfândega, contribuições e mesmo ter
feito tentativas para as Águas e Florestas, aos 36 anos, de repente,
por uma inspiração do céu, descobriu o seu caminho: o registo.
E aí mostrou tão altas faculdades que um inspector ofereceu-lhe
a filha, prometendo-lhe a sua protecção.
Paulo tornado homem sério levou-a a casa de sua mãe. Ela
desprezou os costumes de Pont-l'Evêque, deu-se ares de princesa,
feriu Felicidade. A senhora Aubain, à sua partida, sentiu alívio.
Na semana seguinte soube-se da morte do senhor Bourais, na
Baixa Bretanha, numa pensão. O rumor de um suicídio confirmou-se;
levantaram-se dúvidas sobre a sua honestidade.
A senhora Aubain estudou as suas contas e não tardou a
conhecer o rol das suas infâmias: desvios de importâncias vencidas,
vendas dissimuladas de madeira, falsas quitações, etc. Além disso
tinha um filho natural e «relações com uma pessoa de Dozulé».
Estas baixezas afligiram-na bastante. No mês de Março de
1853, foi acometida por uma dor no peito; a língua parecia coberta
de fumo, as sanguessugas não acalmaram a opressão. E às nove
horas da noite morreu, tendo justamente 72 anos. Julgavam-na
menos idosa por causa dos cabelos castanhos, cujos bandós
cercavam a sua cara marcada com uma pequena barba.
Poucos amigos a choraram pois os seus modos eram tão altivos
que os afastavam.
Felicidade chorou-a como hoje não se choram os patrões. Que a
senhora tivesse morrido antes dela era uma ideia que a perturbava;
parecia-lhe contrário à ordem das coisas, inadmissível e monstruoso.
Dez dias depois (o tempo suficiente para chegar de Besançon)
vieram os herdeiros. A nora vasculhou as gavetas, escolheu os
móveis, vendeu outros, depois fizeram a declaração. Levaram a
cadeira da senhora, o seu velador, o aquecedor e oito cadeiras. O
lugar das gravuras desenhavam quadrados amarelos no meio das
paredes. Tinham levado as duas caminhas com os seus colchões e no
armário não se viam mais os objectos de Virgínia. Felicidade subiu os
andares cheia de tristeza. No dia seguinte, sobre a porta, um aviso: o
farmacêutico gritou-lhe que a casa estava em venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a sentar-se. O que a desolava,
principalmente, era ter de abandonar o seu quarto tão cómodo para
o pobre do Lulu. Envolvendo-o num olhar de angústia pedia ao
Espírito Santo que assim não acontecesse; e contraiu o hábito
idólatra de rezar, ajoelhada em frente do papagaio. Às vezes o sol
entrando pela trapeira incidia no olho de vidro e reflectia um raio
luminoso que a punha em êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta francos, legada pela sua
senhora. O jardim fornecia-lhe legumes. Quanto a fatos possuía com
que se vestir até ao fim dos seus dias e poupava a luz, deitando-se ao
anoitecer.
Não saía a fim de evitar a loja do ferro velho onde estavam
alguns dos antigos móveis. Por causa da doença partiu uma perna e,
diminuídas as forças, a tia Simon, tendo acabado com a locanda,
vinha partir-lhe a lenha e tirar água com a bomba.
Os olhos enfraqueceram. As persianas não mais se abriram.
Muitos anos se passaram e a casa não se alugou nem se vendeu.
No receio de que a mandassem embora Felicidade não pediu
nenhuma reparação. As ripas do tecto apodreceram. Durante todo o
inverno o travesseiro da cama foi molhado. Depois de Páscoa
escarrou sangue.
Então a tia Simon chamou o médico. Felicidade quis saber o que
tinha mas, como estava muito surda, só entendeu uma palavra:
«pneumonia». Era sua conhecida e respondeu docemente: «Ah! como
a senhora», achando muito natural seguir a sua patroa. A época dos
altares nas ruas aproximava-se.
O primeiro era sempre junto do rio; o segundo, em frente da
estação dos correios; o terceiro, no meio da rua. Houve rivalidades a
propósito deste último: e os paroquianos escolheram finalmente o
pátio da senhora Aubain.
As opressões e a febre aumentavam. Felicidade lamentava-se
de não fazer nada para o altar. Ao menos se pudesse pôr nele
qualquer coisa! Então pensou no papagaio.
Não era conveniente, objectaram as vizinhas, mas o cura
consentiu. Ela ficou de tal maneira feliz, que pediu para ele aceitar
Lulu, a sua única riqueza, quando morresse. De terça-feira até
sábado, véspera do Corpo de Deus tossiu mais frequentemente. À
noite, com o rosto congestionado, os lábios colavam-se às gengivas,
vieram os vómitos e no dia seguinte, de madrugada, sentindo-se
muito enfraquecida, pediu um padre.
Três mulheres a rodeavam durante a extrema-unção. Depois
declarou que tinha necessidade de falar a Fabu.
Este chegou, com seu fato domingueiro, nada à vontade nesta
atmosfera lúgubre.
- «Desculpa-me, disse ela, estendendo o braço com esforço, eu
julgava que tu o tinhas matado!» Que significava semelhante
disparate? Supor capaz de uma morte um homem como ele! E
indignava-se, barafustando.
- «Está doida, como vêem!»
Felicidade, de vez em quando, delirava. As mulheres, afastaram-
se. A tia Simon almoçou. Um pouco mais tarde agarrou em Lulu e,
aproximando-o de Felicidade, diz: - «Vamos! diz-lhe adeus!» Posto
que não fosse um cadáver os vermes devoravam-no. Uma das asas
estava partida, a estopa saía-lhe do ventre.
Mas agora, cega, ela beijou-o na cabeça e apertou-o de
encontro à face. A tia Simon agarrou-o para o levar para o altar.
V
A vegetação enviava o odor do verão, as moscas zumbiam, o sol
fazia luzir o rio e aquecia as pedras e a tia Simon, voltando para o
quarto, adormeceu docemente. Badaladas do sino despertaram-na.
Era a saída das vésperas.
O delírio de Felicidade acabou. Sonhando com a procissão ela
via-a, como se a tivesse seguido.
As crianças das escolas, os cantores e os bombeiros
caminhavam sobre os passeios, enquanto que, no meio da rua,
seguiam: primeiramente o suíço armado com a alabarda, o bedel com
uma grande cruz, o mestre vigiando os rapazes, a religiosa inquieta
com as meninas, três das mais pequenas vestidas de anjos lançavam
no ar pétalas de rosas...
O diácono, de braços abertos, regia a música e dois turiferários,
voltavam-se, a cada passo, para o Santíssimo Sacramento que o
senhor Cura, com a sua bela casula, levava sob um pálio de veludo
vermelho, conduzido por quatro membros da Confraria da Fábrica da
igreja. Uma onda humana seguia atrás entre as colchas brancas que
cobriam as paredes. E chegou-se à margem do rio.
Um suor frio molhava as têmporas de Felicidade. A tia Simon
limpava-a com uma toalha dizendo de si para si que um dia passaria
pelo mesmo. O murmúrio da multidão aumentou, tomou-se muito
forte e afastou-se.
Um tiroteio estremeceu os vidros. Eram os soldados saudando a
custódia. Felicidade, olhando em volta, diz o mais baixo possível,
atormentada pela ideia do papagaio.
- «Ele está bem?»
A agonia começou. Um estertor, cada vez mais precipitado,
agitava-a. Bolhas de espuma vinham aos cantos da boca e todo o
corpo lhe tremia.
Breve se distinguiu as vozes claras das crianças e a voz
profunda dos homens. Calaram-se todos, por momentos e o ruído dos
passos, que as flores amorteciam, lembrava um rebanho sobre a
relva.
O clero parou no pátio. A tia Simon subiu a uma cadeira para
chegar à clarabóia e, desta maneira, dominava o altar. Grinaldas
verdes pendiam sobre o altar ornamentado com um folho em ponto
de Inglaterra. Ao centro estava um pequeno quadro encerrando
relíquias, duas laranjeiras nos ângulos e, a todo o comprimento,
candelabros de prata, vasos de porcelana donde saíam girassóis,
lírios, peónias, dedaleiras e tufos de hortênsias.
Esta amálgama de cores brilhantes deseia obliquamente do
cimo do altar até ao tapete, prolongando-se pela calçada; e coisas
raras atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha uma
coroa de violetas, pingentes de pedra d'Alençon brilhavam no musgo,
dois panos chineses mostravam paisagens. Lulu, oculto sob rosas,
mostrava apenas a sua cabeça azul semelhante a uma placa de lapis-
lazúli.
As irmandades, os cantores, as crianças enfileiravam-se nos três
lados do pátio. O sacerdote subiu, lentamente, os degraus e colocou
sobre a renda o grande sol de oiro que irradiava. Todos se
ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os turíbulos no seu vaivém,
deslizavam nas correntes.
Um vapor azul, subia no quarto de Felicidade, chegou-lhe às
narinas e ela aspirou-o, com uma sensualidade mística.
Depois, fechou as pálpebras. Os lábios sorriam. Os movimentos
do coração enfraqueceram, cada vez mais vagos, como uma fonte se
esgota, como um eco desaparece; e quando ela exalou o seu último
suspiro, julgou ver nos céus entreabertos, um gigantesco papagaio,
planando sobre a sua cabeça.
A MULHER NO ESPELHO
Virgínia Wolf
II
Numa bela manhã, mestre Erasmo Spickherr viu-se, pela
primeira vez, em condições de satisfazer a mais ardente paixão de
sua vida. Acabara de juntar uma pequena herança, da qual retirou
uma soma suficiente para cobrir os gastos de uma viagem à Itália.
Na hora da partida, sua jovem esposa acompanhou-o, com o filho nos
braços, até a carruagem: Adeus! – gritou ela, os olhos úmidos de
lágrimas – querido Erasmo! Pensa sempre em mim, que ficarei em
casa, e tem cuidado para não perder a boina de viagem, dormindo
com a cabeça para fora da janela da carruagem.
Em Florença, Erasmo travou conhecimento com um alegre
grupo de compatriotas seus, que jogavam dinheiro fora e levavam a
vida mais desvairada que qualquer artista ou filho-família jamais
viveu sob o tépido sol da Itália. Eram festas e banquetes, noite e dia,
em mansões esplendorosas, com mulheres trajando costumes
fantásticos, cuja elegância e riqueza de cores emprestava-lhes o
aspecto de flores animadas. Somente Erasmo, fiel à lembrança de
sua esposa legítima, não se arriscava, malgrado seus 27 anos, a
nenhuma excursão além do círculo da fé conjugal.
Certa noite, quando esses pândegos estavam reunidos numa
orgia regada a vinho, um deles, Frederico, o mais fogoso do grupo,
rodeando com o braço o talhe esguio da amante, e erguendo seu
copo onde brilhava um líquido dourado, ergueu um brinde
incandescente à beleza das rainhas da noite, acrescentando: -
Quanto a ti, meu pobre Erasmo – disse a Spickherr – entristece-nos
profundamente com essa fisionomia fúnebre. Bebe e cantas como um
coveiro e portas-te de modo lamentável para com nossas damas.
- Juro-te, meu caro – respondeu Erasmo – que é meu dever
permanecer indiferente ao encanto dessas damas. Deixei na pátria
minha digna esposa e, quando se é, como eu, pai de família...
A estas palavras, ditas pelo pobre Erasmo com solene
gravidade, os presentes caíram num frouxo de riso. A amante de
Frederico, depois de lhe terem dito em italiano o que dissera
Erasmo, voltou-se para o frio alemão e disselhe: Toma cuidado. Se
visses Giulietta a neve do teu coração se fundiria como gelo ao sol.
No mesmo instante um ligeiro roçagar de sedes por entre a
folhagem anunciou a aparição de uma jovem de esplendorosa beleza.
Um vestido branco, que lhe punha a descoberto as espáduas níveas e
a garganta magnífica, caía em dobras sedutoras sobre seu talhe de
fada. Sua cabeleira, perfumada, desnastrada em ondas de ébano,
enquadrava, com um encanto inefável, o oval admirável de um rosto
de madona. Pedrarias cintilantes adornavam-lhe os braços e o colo.
- É Giulietta – exclamaram as raparigas.
- Sim, sou eu – disse, com um sorriso angélico, a bela
desconhecida. – Permitis que vos faça companhia por um instante?
Bem, vou sentar-me ao lado deste alemão carrancudo que não diz
uma palavra.
Em meio aos sussurros de suas rivais em beleza, a recém-
chegada tomou lugar ao lado de Erasmo, que pensava sonhar. A vista
de tantos encantos, sentia o coração pular-lhe; seu olhar se fixava em
Giulietta como que aterrorizado. A bela florentina apanhou da mesa
uma taça cheia e entregou-a a ele dizendo: Aprazer-te-ia, severo
estrangeiro, que eu fosse a senhora dos teus pensamentos?
Erasmo enrubesceu; todo o seu ser vibrava; erguendo-se, como
que impelido por uma mola, caiu diante dela, numa postura de
adoração:
- Sim! – exclamou – é a ti que eu amo, anjo dos céus! Tua
imagem morava em meus sonhos; tu me trazes a felicidade dos
eleitos.
Esta explosão fez crer aos presentes que Erasmo enlouquecera.
Giulietta ergueu-o, pedindo que se acalmasse, e a alegre conversa
recomeçou, mais animada. Solicitada a cantar, ela concordou, com
graça esquisita. Sua voz magnética provocava sensações inéditas. As
horas passaram como se fossem minutos.
Ao amanhecer, Giulietta decidiu retirar-se. Erasmo queria
acompanhá-la mas ela recusou e, indicando os lugares onde ele
poderia reencontrá-la, desapareceu como uma sílfide. O pobre
apaixonado não ousou segui-la e dirigia-se tristemente para casa
quando, a uma esquina, encontrou um personagem alto e magro,
trajando um costume escarlate pontilhado de botões de aço.
- Oh! Oh! – fez o desconhecido – que cara desconsolada tem o
senhor Spickherr esta manhã! Os moleques da cidade vão correr
atrás do senhor! Trate de esconder-se.
- Ei! Quem és tu, imbecil, para me falares dessa maneira? Segue
teu caminho! Respondeu-lhe Erasmo.
- Devagar, meu valente – continuou o homem de escarlate. –
Mesmo que tivesses asas de águia, não alcançarias Giulietta esta
manhã!
- Giulietta! Que quer dizer? – retorquiu Erasmo, fazendo meia
volta para agarrar seu interlocutor.
Este, porém, desembaraçando-se com uma pirueta, eclipsou-se
como um fogo fátuo.
Erasmo viu novamente Giulietta. A bela rapariga o recebeu de
bom grado, mas sem lhe permitir quaisquer liberdades. Entretanto,
quando ele lhe falava, fogoso e apaixonado, ela lhe lançava, às
furtadelas, olhares cheios de fascínio. Ele abandonou a companhia
ruidosa dos amigos para segui-la por toda a parte, como se não
pudesse viver senão do mesmo ar que ela respirava.
Certo dia, reencontrou Frederico; não pôde escapar-lhe, e este
lhe disse:
- Meu caro Spickherr, eis-te enfeitiçado pelos filtros de uma
nova Circe!.Ainda não compreendeste que Giulietta é a mais
dissoluta das criaturas?
- Ignoras então a fieira de histórias que se contam sobre ela? É
preciso que sejas muito tresloucado para esqueceres tão depressa
aquela boa esposa de que falavas com tanta ternura.
Erasmo escondeu o rosto entre as mãos e não pôde conter as
lágrimas.
- Vamos – continuou Frederico – deixa essa paixão que te perde
e vem comigo. Deixemos Florença sem perda de tempo!
- Sim, sim, imediatamente – exclamou Erasmo. Partamos hoje
mesmo.
Os dois amigos caminhavam apressadamente quando o homem
de escarlate cruzou-lhes, de súbito, o caminho:
- Vamos, senhor – disse a Spickherr – apresse-se pois a bela
Giulietta espera-o com ansiedade.
- Vá para o diabo, animal! – exclamou Frederico – Este é o
signor Dapertuto, muito conhecido como doutor em milagres; um
charlatão maldito que vende a Giulietta drogas infernais...
- Quê! – interrompeu Spickherr – então este imbecil frequenta a
casa de Giulietta?
Antes que seu amigo pudesse replicar, ouviu, ao passarem sob
um balcão, a voz argentina de Giulietta que o convidava a subir. A
magia desse apelo perturbou a resolução de Erasmo. Mais
embriagado do que nunca apela paixão, deixou-se de novo prender
pela amorosa algema e acompanhou a bela cortesã a uma vila de
recreio para onde ela se dirigia em busca de prazeres. Um jovem
italiano, notavelmente feio de rosto e grosseiro de maneiras, se
achava lá e perseguia Giulietta com seus galanteios. Erasmo sentiu
todas as serpentes do ciúmes morderem-lhe o coração e afastou-se
com ar sombrio. Giulietta correu atrás dele: Vamos, querido –
disselhe languidamente – não és todo meu?...
Ao mesmo tempo em que falava, aproximou-se dele e roçou-lhe
a face com um beijo.
- Para sempre! – exclamou Erasmo, abraçando-a inflamado de
amor.
A florentina escapou-lhe habilmente e lançou-lhe um olhar cuja
expressão quase o fez perder o pouco da razão que lhe restava.
Voltaram ambos para a festa. O jovem italiano havia os acompanhado
com os olhos e, fazendo-se de rival ofendido, vingou-se com amargos
sarcasmos contra os alemães. Erasmo, que se irritava facilmente,
ameaçou o italiano de rude correção. Este fez brilhar um punhal.
Não podendo mais se conter, Erasmo saltou-lhe à garganta,
derrubando-o por terra e assentou-lhe na cabeça um pontapé tão
violento que o desgraçado perdeu os sentidos. Mas o estupor que
esse acontecimento lhe causou deu-lhe também vertigens.
Quando voltou a si estava no boudoir de Giulietta.
- Meu pobre e querido alemão – dizia ela – quero salvar-te. Mas
é preciso que abandones Florença o mais depressa possível. É
preciso que me deixes para sempre, a mim que te amo tanto! Não
nos veremos mais.
- Ah! – exclamou Spickherr – antes morrer de mil mortes.
Mesmo que eu devesse perder a alma, sou teu para sempre!
- Oh! – continuou Giulietta – voltarás para tua esposa, a quem
também amas e, ao lado dela, me esquecerás logo.
Ambos se achavam sentados diante de um magnífico espelho
veneziano. A florentina prendeu Erasmo dentro de seus braços
ebúrneos.
- Ah! se ao menos – disse ela com olhos úmidos – se ao menos
me deixasses teu reflexo, enquanto esperássemos que o amor nos
reunisse novamente...
- Meu reflexo!... que queres dizer?... Meu reflexo!... –
balbuciou Erasmo, desconcertado. – Mas como poderias guardá-lo,
se ele é inseparável de mim?
- Recusas, então? – disse ela, com um suspiro fundo. – Nada me
restará da lembrança, nem mesmo esta fugitiva imagem que me sorri
do fundo do espelho!
E as lágrimas tombavam como gotas de fogo, sobre o rosto do
jovem alemão.
II
No silêncio das pedras, o conde M. e o padre Benito medem um
ao outro do alto de si mesmos.
O rosto enxuto do prior expressa uma vontade de ferro,
confiança em si mesmo e desconfiança dos demais.
Seus olhos são belos, apesar de sua pretensa dureza; possuem
esse véu misterioso e opaco das imagens sagradas. Como essas jóias
que mudam de cor conforme a luz, eles podem expressar
vulnerabilidade ou o contrário. Só uma coisa é clara: são olhos
insatisfeitos, olhos que fitam angustiados o abismo que separa o
sonho do real.
A fama do padre chegara aos ouvidos do conde; o padre, ao
contrário, desconhece a identidade de seu magnífico visitante. A
primeira impressão é boa. Surpreende-o seu misto de luxo e palidez.
A figura do conde irradia algo inegavelmente místico.
- Sou o conde M. e venho de muito longe para retirar-me em seu
convento.
- Conheceis as normas que regem a vida entre estes muros?
- Silêncio, solidão, fome e recolhimento. Quero retirar-me do
mundo e viver só na piedade e contemplação de Deus.
- Permiti-me que insista. Sabeis o que significa renunciar aos
prazeres e às comodidades a vós tão fáceis?
Não estaríeis momentaneamente enfastiado ou desiludido?
Conheço alguns casos.
- Não é o meu. O mundo e seus prazeres não me excitam, há
vários anos vivo em sóbria solidão, rodeado de animais. Viajo
constantemente, o que significa que não tenho apego a nada nem a
ninguém.
O prior sente-se atraído pelo desconhecido. Não diz nada, mas
adivinhou-o antes que ele chegasse, sentiu como se um raio o
avisasse de sua chegada. M. lê seu pensamento. Não foi um raio, e
sim o relincho de seus cavalos, mas não diz nada porque também
sabe que o padre gosta de acreditar que possui poderes
extraordinários e sente prazer em exibi-los.
Os dois homens dialogam em silêncio. O padre não consegue
intuir o que pensa o conde. Sem poder impressioná-lo, anuncia-lhe
uma evidência:
- É tarde. Direi a frei Anselmo que o acompanhe até sua cela.
Os primeiros meses serão de experiência. Se vossa intenção for
sincera, estais em vossa casa. Pouparei-vos das ocupações físicas
para que vos dediqueis tão-somente a vosso espírito. Amanhã sairei
de viagem. Quando voltar, dir-me-eis se vossos desejos são os
mesmos.
III
O padre Benito ausenta-se periodicamente do convento. Ele
jamais o admitiria, mas gosta de viajar, interromper a monotonia de
sua própria invenção. Nessas viagens desfruta de um status de santo
em vida, guia das mais importantes almas do país e prestigioso
conselheiro de pessoas eminentes. Sedutor cruel de homens e
mulheres em desvario.
Estranhamente, a viagem que se segue à visita do conde é uma
viagem infrutífera, tanto para ele como para seus fiéis. O frade está
distraído, não consegue tirar o conde da cabeça. E esse pensamento
o inquieta.
Como autopunição, prolonga a viagem além do previsto e assim
mantém sob controle o desejo ardente de voltar ao convento. E na
ansiedade encontra certo conforto.
Tal como o prior lhe prometera, o conde foi eximido de todas as
tarefas domésticas. Quando o sino chama, reúne-se com seus
companheiros no refeitório e na igreja, mas depois não torna a vê-los
durante todo o dia.
E ninguém ousa perturbá-lo. O padre Benito recomendou-lhes
que o esquecessem. Queria que o conde degustasse o pastoso sabor
da incomunicação.
IV
M. começa a faltar ao refeitório. Chega um momento em que
deixa de comparecer. Quase não ingere alimentos. O voto de
discrição e a recomendação do prior impedem os colegas de mostrar
preocupação por sua saúde. Frei Anselmo teme que essa discrição
seja fatal para o conde.
V
Passadas algumas semanas, o prior volta ao convento. Nunca
sentiu tanto desejo de voltar. Não vê a hora de perguntar sobre seu
hóspede.
Admiração, estupor e inveja resumem a impressão geral. A vida
do conde, contam-lhe, transcorre entre a igreja e a cela. Raras vezes
passeia pelo jardim e nunca se deteve a admirar o sol, nas poucas
ocasiões em que o astro rei se dignou a aparecer. Há semanas que
não põe os pés no refeitório e ninguém o surpreendeu na horta,
provendo-se de batatas, cebolas ou alface. Os dois monges das celas
vizinhas à do conde afirmam tê-lo ouvido levantar-se à noite para ir à
igreja. Muitas madrugadas o encontraram em êxtase diante do altar.
Não parecia humano, sua figura hierática era sólida como um
monumento.
A comunidade reconhece que a conduta do novo hóspede não
admite o menor reparo. Entretanto o ambiente é de agitação e
nervosismo.
- Como eu supunha - diz o prior.- Por isso tardei tanto em voltar.
O padre Benito gosta de surpreender os frades com frases
absurdas, que nem ele mesmo entende.
VI
Depois de tentar dominar seus pensamentos, o prior vai até a
cela do conde, perturbado com a falta de curiosidade de seu
hóspede. Encontra a porta trancada, mas ele tem a chave que abre
todas as portas. E a utiliza, depois de tentar abri-la sem sucesso.
A cela está vazia, e a janela, hermeticamente fechada. Quase
não há luz, apenas a que penetra por duas pequenas frestas na
madeira da janela.
A cama está intacta. Não há marcas de nenhum corpo. O prior
dá meia-volta, mas antes de sair é retido pela voz do conde.
- Como foi a viagem?
O padre vira-se, fulminado. Debaixo da cama aparece o
convidado, arrastando-se com agilidade.
- O que está fazendo embaixo da cama?
- Descansando. Prefiro o chão.
O frescor do chão também esfriou seu rosto; impossível
adivinhar a menor emoção. O prior é famoso por seu poder mental,
mas diante do conde sente-se transparente e nu. Não suporta a
sensação. E sai.
VII
O conde sabe que, desde que chegou, o prior segue todos os
seus passos. Para não levantar suspeitas, abre mão
momentaneamente das doses noturnas de capela. E acrescenta um
pequeno requinte de simulação; toda as manhãs, antes de clarear, vai
até a horta e se abastece de alimentos - dos quais mais tarde se
desfaz.
Na sexta noite sente uma necessidade compulsiva de se ajoelhar
diante de Deus, na solidão noturna. Antes de ir à capela, certifica-se
de que todos estejam dormindo ou recolhidos em suas celas. Sem
fazer ruído algum, como se não tocasse o chão e sim o sobrevoasse,
o conde percorre os corredores, ouvindo apenas roncos atrás das
portas.
Quando chega à cela do padre Benito não escuta roncos, mas
chicotadas e gemidos. Permanece imóvel diante da porta e descobre
que não há chave na fechadura. O buraco o convida a olhar, talvez
deliberadamente. O conde aceita o convite, ajoelha-se e olha. Vê o
prior flagelando duramente as costas nuas até manchar o chão de
sangue. O espetáculo parece-lhe edificante e sugere novas vias de
comunicação entre os dois homens. O conde pensa por um instante e
decide, tal como planejara, dar rédea larga à sua piedade em seu
recinto natural, a capela.
VIII
Irrompe na capela e prostra-se diante de um imenso crucifixo
que preside um dos altares. Permanece um bom tempo nessa
postura, imóvel como um muro, abismado em profunda oração.
Depois ergue a cabeça, seus olhos cintilam como o rescaldo de uma
fogueira apagada.
Ele não está só na capela. O padre Benito o seguiu e observa a
cena, absorto, na escuridão.
O conde aproxima-se do crucifixo de tamanho sobrenatural. O
Cristo começa a verter sangue por todas as chagas. Primeiro os pés,
depois o peito e as mãos, a comissura dos lábios, as têmporas. O
conde busca todas as fontes com boca frenética. Nem uma só gota de
sangue se desperdiça no chão. O padre Benito contempla o milagre
embevecido. Diante de seus olhos revela-se o mistério da Sagrada
Comunhão em toda sua magnitude.
Depois de lamber cada centímetro da imagem de madeira, a
figura do conde se reduz à de um pássaro negro (uma andorinha,
pensa o prior). Se estivesse mais perto, teria percebido que se trata
de um morcego.
O pássaro pousa sobre a cabeça de Cristo e com grande
aplicação lambisca o sangue que ainda impregna a coroa de
espinhos. Em seguida volta à silhueta humana e prostra-se ante a
imagem da cruz, petrificado de devoção.
A mesma intensa devoção apodera-se do padre Benito, mas não
é Cristo quem a provoca, e sim a pessoa do conde, cujos lábios ainda
conservam restos do sangue divino. O conde leva a mão à boca como
se algo a queimasse. Acaba de perceber a presença do monge e seu
febril desejo de lamber-lhe os lábios ensanguentados. É a descoberta
do desejo do padre que lhe queima a boca.
O padre Benito sabe-se descoberto. O desprezo que encontra
nos olhos do conde dói-lhe muito mais que as chicotadas.
IX
Abandona a capela e passa o resto da noite tremendo de
confusão. Imerso em um estado de grande agitação, o padre Benito
passa o dia inteiro trancado em sua cela. Não abre para ninguém.
Em um arranco obsessivo e infantil, promete a si mesmo que só
abrirá a porta se for o conde quem chamar.
No dia seguinte, frei Anselmo insiste tanto que o prior não tem
outro remédio senão abrir. O discípulo traz comida e remédios
caseiros contra resfriado. O convento inteiro ouviu-o tossir durante a
noite. O padre recusa tudo e pergunta-lhe há quanto tempo ninguém
vê o conde comer.
- Mais de um mês, se não me engano.
- Se ele pode, eu também hei de poder.
O padre Anselmo protesta suavemente. O prior o recrimina: -
Deverias ser mais discreto e indiferente.
- Estou preocupado com sua saúde, senhor.
- Se o que queres é preocupar-te, deverias ter criado uma
família, não recolher-te em um convento.
X
Duas semanas depois, frei Anselmo chama à porta do conde. O
prior está doente e deseja vê-lo. O conde não deu por falta dele, pois
pensou que estivesse em uma de suas viagens e, a bem da verdade,
porque nem chegou a pensar nele.
A cela do prior é uma tosca réplica daquela do conde. O padre
não apenas dorme no chão, embaixo da cama; o criado-mudo, o
exíguo armário e um crucifixo ocupam o mesmo lugar que na cela do
outro.
Uma vez a sós, o diálogo é fulminante.
- O que está havendo, padre Benito?
- As forças me abandonam.
- Experimente comer.
- Comerei o que o senhor comer.
- E desde quando sou eu o modelo?
- "A alma em solidão, sem um mestre virtuoso, é como um
carvão aceso que se encontra só. Antes se irá apagando que
acendendo." Ensinai-me a comungar!
-O jejum vos faz delirar.
- E a vós, mentir. Desde que me mostrastes a autêntica
comunhão, a outra não me serve.
- Insisto em que vossa cabeça não funciona.
- E eu insisto em que, se não revelardes vosso segredo, não
podereis ficar nem mais um minuto neste convento.
- De acordo.
- Não me deixeis, senhor conde!
- Mas, afinal, como ficamos?
- Imploro-vos!
- Está bem. Sossegai e ouvi bem a história que vos contarei.
XI
Minha história. Sou um vampiro. A literatura e o tédio têm
criado muitas lendas sobre os indivíduos de minha espécie. Isso não é
uma justificativa, muito menos uma reivindicação. Não tenho
interesse em vampirizar ninguém. Sou como vós, os místicos, gosto
de andar só e do meu jeito.
Mas nem sempre foi assim. Eu também atravessei longos
períodos de confusão.
Nós vampiros somos seres peculiares, sem dúvida. Gozamos de
menos vantagens do que se costuma acreditar e menos
inconvenientes do que nós mesmos acreditamos. Malditos
preconceitos e temores! Mas é verdade que temos uma grande
limitação: a ausência de reflexo nos Espelhos.
Não há solidão maior que a de não se sentir acompanhado pela
própria imagem. O testemunho dos outros não basta, nem mesmo o
dos seres queridos. Não podendo contemplar meu próprio rosto,
cheguei a pensar que carecia de um. Tinha certeza de que, se Deus
existia, pertencia à família dos Espelhos e, por alguma razão que me
escapava, gostava de negar nossa existência.
O intenso proselitismo de meus congêneres é mais por sede de
vingança que por sede de sangue, deve-se mais à raiva do que à
necessidade de saciar nosso apetite. Cada nova vítima que se curva
sob nossos dentes pressupõe uma vitória contra o Deus-Espelho,
mais uma imagem que lhe furtamos para sempre.
Como em um prolongamento do nosso ódio ao Espelho, também
odiávamos o sinal da cruz. Um preconceito irracional que os
vampiros ainda não superaram. Identificamos a cruz com Deus,
quando não tem nada que ver. Eu nunca vi Deus; ao passo que a cruz
pode ser vista em qualquer altar.
Como já disse, em minha existência de vampiro passei por
grandes crises. Como todo mundo, reneguei a minha natureza e,
como todo mundo, atentei contra ela. Não suportava o constante
torpor em que vivia e já não encontrava divertimento nas orgias.
Mas o sangue continuava sendo vital para mim. Pode soar ridículo,
mas durante algum tempo fui um vampiro ni lista. Saía de casa
quando não tinha outro remédio. Substituí as gargantas humanas por
outras fontes de sangue animal, ainda que mais impuras: galinhas,
coelhos, cães.
Até meus próprios cavalos.
Foi um de meus cavalos que de repente me mostrou o caminho.
Na época eu passava as noites lendo em meu ataúde, à luz de meus
olhos. Estava interessado no budismo e no misticismo cristão, lia
tudo o que me chegava às mãos sobre esses dois temas e estava
convencido de que, se quisesse pôr um fim àquela depressão, teria de
me arriscar.
Comecei visitando pequenas igrejas de interesse artístico. Meu
olhar é profundo. Sem atrever-me a entrar, podia vasculhar o
interior das igrejas à distância. Tentava vencer a indecisão, como
uma criança prestes a saltar de um trampolim pela primeira vez.
Ocorreu em uma dessas excursões. Eu descansava na relva sob
o luar, perto da igreja do Salvador do Mundo, nos arredores de um
povoado de La Mancha. Surpreendeu-me que estivesse aberta e não
dei crédito a meus olhos quando vi que meu cavalo circulava
mansamente por seu interior, considerando que o animal também é
vampiro. Eu mesmo o mordi.
Chegara a hora de tomar impulso e saltar.
E assim fiz. Entrei.
A igreja estava vazia. O altar-mor era dominado pela imagem do
Salvador do Mundo. Uma cruz tão imensa quanto minha curiosidade
dominava o espaço a ela consagrado. Aproximei-me do altar, sem
tirar os olhos de Cristo. Ajoelhei-me diante dele. Não fui tragado
pela terra, nem os céus se estilhaçaram mostrando-me seu conteúdo,
nem um raio fulminante converteu-me em breve fogueira. A noite
seguia seu curso, tranquila.
Era a primeira vez que eu via essa imagem, e sua mera visão
proporcionava-me uma paz nova e total.
De repente ocorreu algo extraordinário. Por cada uma de suas
chagas, dos pés, dos joelhos, do peito, da boca, da palma das mãos,
das têmporas etc., o Cristo começou a verter sangue. Por menor que
fosse a ferida pintada na imagem de madeira, convertia-se em súbita
e incontida fonte de vida. Eu contemplava o milagre atônito e
paralisado. Foi então que ouvi sua voz me dizer: "Eu sou a única
fonte de vida. Quem bebe de meu sangue não mais necessitará de
outro alimento".
Ele não necessitou de mais palavras. Nem eu. Aproximei-me do
crucifixo e bebi o líquido que durante um bom tempo escorreu de
cada uma de suas feridas. Enxuguei com meus lábios a poça de
sangue que se formara no chão. E voei como um avião no dia em que
foi inventado.
Voltei ao castelo, ansioso por transmitir a meus companheiros a
maravilha que acabara de descobrir. Mas nenhum deles acreditou
em mim. Ao contrário, assim que terminei meu relato, olharam-me
aterrorizados. De nada adiantou minha disposição de fazer uma
demonstração in situ. Negavam-se a mudar. A rotina proporcionava-
lhes segurança, e pensavam que minha abstinência me levara à
loucura.
Abandonei o castelo, com tudo o que havia dentro. Viajei por
diferentes partes da Espanha. Conheci uma de vossas discípulas, que
me mostrou cartas vossas, com cujo conteúdo identifiquei-me "ipso
facto". Vim aqui com o propósito que já conheceis. Se até agora não
revelei nada, não foi por mesquinhez. A rejeição dos vampiros
mostrou-me que as soluções individuais não salvam os outros. E o
vampirismo é um caminho sem volta, que não aconselho a ninguém.
O padre Benito pronuncia duas palavras apenas:
- Fazei-me vampiro.
Ante a firmeza sem fissuras do prior, o conde M. exagera os
inconvenientes de sua espécie. Insiste na dor da visão incompleta de
si mesmo e na opacidade dos espelhos. O prior considera-o um preço
ínfimo, se comparado àquilo que receberá em troca.
Conhecendo a temeridade do padre, o conde não tem outra
alternativa senão providenciar o necessário para a nova ordenação.
O padre Benito sente-se fascinado e ansioso como uma noiva. E
o conde já não acha a ideia de vampirizálo assim tão má. Começa a
agradar-lhe deixar de ser o único.
Abordam a questão da eternidade e da morte. M. confia-lhe
que, caso deseje abandonar o mundo, bastará fincar uma estaca no
próprio coração.
O prior não quer nem ouvir falar no assunto.
- Não invejo a felicidade dos santos na outra vida.
- Tem razão. O vampirismo já é outra vida.
Concorde com a sua magnitude, a cerimônia será simples e
íntima. Na noite anterior, alguém pensou ver um grande espelho
voador nas imediações do povoado vizinho ao convento. Uma
senhora denuncia seu desaparecimento. Contudo, por mais que a
interroguem, ela não sabe dizer como isso aconteceu. Só o prior e o
conde conhecem a verdade. Transformado em morcego, o conde
subtraiu o espelho do dormitório da casa e o levou voando até
convento.
Instalam o enorme espelho junto ao altar do Cristo sobrenatural
e eternamente agonizante. Não falta mais nada. Tudo está pronto.
M. oficia a ordenação com delicadeza.
- Olhe bem para seu rosto, com muito vagar. O nariz, os olhos,
os lábios, as faces, as sobrancelhas, o queixo, o cabelo, as orelhas.
Abra a boca e olhe dentro. Não se esqueça da língua... mostre-a e
olhe bem para ela, pois nunca mais a verá... Tire a roupa, sem
pressa, peça por peça. E contemple bem cada um de seus membros
no espelho. Deleite-se.
O prior obedece ao compasso das palavras do conde, até ficar
totalmente nu.
Por pudor, não recorda ter visto seu corpo nu desde criança.
Sente uma inesperada nostalgia. Acaricia as próprias pernas, o peito,
os ombros, os braços, o sexo...
- Gosto de meu corpo.
- Ainda está em tempo de voltar atrás.
- Há muito tempo não estou em tempo.
O prior ainda se deleita por alguns instantes. Adota diferentes
posturas para contemplar seu corpo de diferentes ângulos.
- Estou pronto - anuncia ao conde.
M. aproxima-se dele e o abraça. No espelho, o padre continua
vendo a própria imagem solitária. Seus músculos estão tensos e seus
braços rodeiam o tronco do vampiro, embora o espelho não o reflita.
O padre entrega-se ao conde sem perder de vista o próprio rosto.
Inclina-o para trás, em um gesto de arroubo.
Nesse instante os dentes do conde perfuram-lhe o pescoço. O
corpo do padre desaparece do espelho e desaba no chão.
O vampiro precipita-se sobre ele e drena suas artérias com
feroz frenesi.
Exaustos, permanecem um sobre o outro, como se acabassem
de fornicar selvagemente.
Quando o padre volta a si, fita o crucifixo do altar.
O conde ajuda-o a se levantar. Das feridas do Cristo começa a
brotar sangue em abundância. O par atira-se contra a imagem de
madeira e suga com avidez o alimento que se derrama de graça.
Findo o banquete, transformam-se em morcegos, que, voando,
abandonam a capela e se perdem na escuridão sem mistério da noite.
O voo noturno e nupcial, bem como o ritual diante do espelho,
acabam transformando-se na nova forma de ingresso na congregação
místico-vampírica que nasce da união do padre Benito com o conde
M.
Procuram esquecer o mundo, e que o mundo os esqueça. As
sucessivas gerações de camponeses que habitam o povoado vizinho
estranham a insólita sobrevivência daqueles monges. Mas a
superstição e o medo são muralhas inexpugnáveis, muito mais sólidas
do que a curiosidade daquela gente.
PORQUE EU COMI MINHA MULHER
Michael Gira
I. Boa Noite
Um corvo me acompanha
Desde saí da cidade,
E mesmo agora
Voa sobre mim
Corvo, estranho ser
Não me abandonará?
Você pretende, em breve,
Ter meu cadáver como alimento?
Bem, não andei tanto assim
Com o cajado em mãos
Corvo, deixe-me ver ao menos uma vez
Uma fidelidade que perdure até a sepultura
X. A manhã tempestuosa
I
É um velho Marinheiro,
E detém um, de três que vê:
- "Por tua barba branca e cintilante olhar,
Tu me deténs por quê?
Seus lábios eram rubros; seu olhar, lascivo; Sua trança, auri-
amarela;
Sua pele, como a lepra, era de um branco forte;
Ela era o próprio Pesadelo VIDA-EM-MORTE,
Que o sangue humano gela.
Felizes criaturas!
A beleza vossa não há quem represente...
Uma fonte de amor jorrou deste meu peito.
E as bendisse inconsciente.
(Primeira Voz:)
"Mas diz-me, diz-me! Narra mais, e continua
Teu doce replicar...
Por que veleja tão veloz esse navio?
Que está fazendo o mar?"
(Segunda Voz:)
"A mar, imóvel como o escravo ante o senhor,
Sopro algum tumultua;
Seu grande olho brilhante imerso no silêncio
Volta ele para a Lua
(Primeira Voz:)
"Porém o que, sem vento ou vaga, a esse navio
Ir tão depressa faz?"
(Segunda Voz:)
"Fendem-se à frente os ares para a sua passagem,
E fecham-se por trás.
Mas não nos retardemos!
Cada vez mais alto,
Foge, irmão - como eu fujo!
Sempre mais devagar irá navio andar, Despertado o Marujo."
Rompera-se a magia;
Perscrutei o horizonte, mas eu vi bem pouco Do que ver se
podia...
Era eu como quem vai, com medo e com temor,
Por deserto lugar,
"Ha! Ha!" disse ao cabo, "agora sei que o Diabo Também sabe
remar.
E por fim eis-me ali, pisando em terra firme na própria terra
minha!
Quando o Ermitão depois abandonou o bote,
De pé mal se sustinha.
Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.
E arrefece os excitados;
Os combates, a morte os termina
E põe em cruz os falsos cruzados;
A morte resolve todos os processos
E faz encalhar os acordos,
E distingue rosas de espinhos,
Palha de grão, farelo de farinha
E vinhos puros de vinhos aguados,
Seu olhar atravessa as cortinas,
Só a morte sabe e advinha
Exatamente nossas qualidades.
XXXIV
Se não há recompensa
Para aquele que faz penitência
E que, por Deus, se aniquila
E que suporta o sofrimento
Para viver na temperança,
É muito louco o nobre que
Se aviltou para servir a Deus,
Que, para ganhar o paraíso,
Se enterrou no silêncio.
São Lourenço foi então estúpido, ele
Que na grelha foi colocado
E assado nesta esperança.
XXXIX
Se os ricos e os poderosos,
Que causam tantos tormentos,
Passassem tão depressa a ponte,
Como aqueles que, humilhando-se,
Ganham o céu penosamente,
À força de privações,
Eu afirmaria, em pleno sermão:
"Deus não é justo, é traidor!"
Mas é falso, porque seguramente
Os grandes peixes um dia serão
Julgados, eles que dos pequenos fazem
Seu alimento, impunemente.
XLIX
(À J.G.F.)
***
Glossário:
Heautontimoroumenos: carrasco de si mesmo;
Rês: Qualquer quadrúpede usado na alimentação humana;
Alento: Bafo, Hálito, Respiração.
SPLEEN (LXXV)
Charles Baudelaire
***
Glossário:
Pluviôse: mês das chuvas no calendário adotado durante a
Revolução Francesa.
SPLEEN(LXXVI)
Charles Baudelaire
***
Glossário:
François Boucher: pintor e gravador francês.
SPLEEN (LXXVII)
Charles Baudelaire
***
Glossário:
Letes: um dos rios do inferno. Sua água fazia esquecer o
passado àqueles que dela bebessem.
SPLEEN (LXXVIII)
Charles Baudelaire
Ou a Chave de Prata
te escancarou, exata,
sonhos e espantos de algum mundo posterior?