Revista RFPSP
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www.forumseguranca.org.br
ISSN 1981-1659 Volume 16 Edição Especial
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EXPEDIENTE
Rev. Bras. segur. pública vol. 16 ed. especial
ISSN 1981-1659
COMITÊ EDITORIAL
Paula Ferreira Poncioni (Universidade Federal do Rio de Janeiro) - Editora
Ludmila Ribeiro (Universidade Federal de Minas Gerais) - Editora Assistente
Samira Bueno (Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
CONSELHO EDITORIAL
Alexandre Pereira da Rocha, Secretaria de Segurança Pública do DF - Brasília / DF, Brasil
Alan Fernandes, Polícia Militar de São Paulo - São Paulo / SP, Brasil
Cristiane do Socorro Loureiro Lima, Polícia Militar do Pará e Universidade Federal do Pará - Belém / PA, Brasil
Christopher Stone, University of Oxford - Oxford/ Inglaterra
Desmond Arias, Baruch College - Nova Iorque/ NY, Estados Unidos
Elizabeth R. Leeds, Centro para Estudos Internacionais (MIT) e Washington Office on Latin America
(WOLA), Estados Unidos
Fiona Macaulay, University of Bradford - Bradford / West Yorkshire, Reino Unido
Lucia Dammert, University of Santiago / Santiago, Chile
Luiz Henrique Proença Soares, Fundação Seade - São Paulo / São Paulo, Brasil
Manuel Monteiro Guedes Valente, Universidade Nova de Lisboa / Lisboa, Portugal
Marcelo Fabián Sain, Universidade de Quilmes e Núcleo de Estudios sobre Gobierno y Seguridad en la
Universidad Metropolitana para la Educación y el Trabajo (UMET) - Buenos Aires / Argentina
Marlene Inês Spaniol, Brigada Militar do Rio Grande do Sul - Porto Alegre / RS, Brasil
Maria Stela Grossi Porto, Universidade de Brasília - Brasília / Distrito Federal, Brasil
Michel Misse, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro / RJ, Brasil
Sérgio Adorno, Universidade de São Paulo - São Paulo / SP, Brasil
ASSISTENTES EDITORIAIS
Amanda Lagreca, Beatriz Teixeira, Caio Sena, David Marques e Lorraine Moia
REVISÃO DE TEXTOS
Denise Malta de Andrade
TELEFONE E-MAIL
+55 11 94120-2226 [email protected]
APOIO
Open Society Foundations e Ford Foundation
4
EXPEDIENTE
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
Marlene Inês Spaniol – Presidente
CONSELHEIROS
Elizabeth Leeds – Presidente de Honra
Cássio Thyone A. de Rosa
Cristiane do Socorro Loureiro Lima
Daniel Ricardo de Castro Cerqueira
Denice Santiago
Edson Marcos Leal Soares Ramos
Elisandro Lotin de Souza
Isabel Figueiredo
Jésus Trindade Barreto Jr.
Marlene Inês Spaniol
Paula Ferreira Poncioni
Thandara Santos
CONSELHO FISCAL
Lívio José Lima e Rocha
Marcio Júlio da Silva Mattos
Patrícia Nogueira Proglhof
5
SUMÁRIO
Edição Especial: A formação dos profissionais de segurança pública...................................................................... 8
Ludmila Ribeiro e Paula Poncioni
ARTIGOS
Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos seus cursos,
suas escolas e academias de polícia............................................................................................................................. 68
Professional training in public security of RS: analysis from its courses,
police schools and academies
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
6
SUMÁRIO
“Na teoria, a prática é outra coisa!” – socialização “escolar”, estrutura bipartida e conflitos
na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)........................................................................................232
“Theory is not practice!” – schooled spaces, binaries aproachs and conflict in the Military Police
Lenin dos Santos Pires e Elizabete Ribeiro Albernaz
7
EDIÇÃO ESPECIAL
É com grande entusiasmo que apresentamos à comunidade acadêmica e policial o suplemento especial
da Revista Brasileira de Segurança Pública, composto pelo dossiê coordenado por Marlene Inês Spaniol,
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos, todos integrantes do Grupo de
Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) e do Instituto
Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (Inct-INEAC).
O dossiê reúne artigos sobre a formação profissional de diferentes agentes que compõem a segurança
pública, o que nos parece uma temática deveras importante, num contexto em que assistimos a um enorme
retrocesso na maneira com que várias autoridades públicas, especialmente no momento da campanha
eleitoral que se aproxima, abordam a questão da socialização profissional dos diferentes agentes que
compõem esse campo.1 Para que os leitores possam entender um pouco das nossas angústias, como também
a maneira como enxergamos este suplemento enquanto um material que pode ajudar na construção de
políticas mais efetivas de segurança cidadã, gostaríamos de retroceder um pouco no tempo.
A atividade de policiamento se expandiu enormemente no Brasil nas últimas décadas, em parte, como
decorrência do novo arranjo trazido pela Constituição Federal de 1988 e, também, como influência
das legislações esparsas que procuraram regulamentar algumas instituições (como é o caso da
Guarda Municipal) ou criar outras forças policiais (como é o caso da Polícia Penal). Fato é que a Carta
Constitucional detalha o que as agências federais, estaduais e municipais devem fazer na perspectiva
de garantir a segurança pública de todos os cidadãos brasileiros, mas deixa em aberto o “como”, sem
qualquer sinalização da maneira pela qual as instituições policiais devem agir. É exatamente nesta lacuna
que os artigos reunidos neste dossiê pretendem incidir.
Como demonstram os debates promovidos pelos distintos autores aqui reunidos, em que pese a existência
de algumas políticas públicas induzidas pelo governo federal acerca de quais deveriam ser os conteúdos
mínimos para a socialização profissional dos diferentes agentes que integram esse campo , poucas são
as normativas que atualmente balizam as diversas atividades profissionais em questão. Com isso, abre-
se espaço não apenas para currículos muito diferenciados a depender do que o ente federado entende
como a missão de policiamento, como também para o questionamento do próprio processo acadêmico,
muitas vezes interpretado como desnecessário, oneroso ou distanciado da prática. Especificamente essa
última interpretação tem se mostrado bastante perniciosa na prática dos agentes de segurança pública
pois coloca em risco a sobrevivência dos profissionais.
1 Empregamos a categoria “socialização profissional” por abarcar também, recrutamento, seleção, formação e sistema de carreiras.
8 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 8-9
EDIÇÃO ESPECIAL
No caso das polícias estaduais verifica-se que, como o policial – civil e/ou militar – não está munido de
conteúdos relativos à tomada de decisão, proteção da vida e, até mesmo, capacidade de solução de
problemas, a opção se torna “atirar primeiro e pensar depois”, o que pode explicaria, de certa maneira, o
crescimento das taxas de vitimização policial, como indicam os Anuários Brasileiros de Segurança Pública,
também publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Por isso, esperamos que os textos aqui reunidos ajudem no trabalho de socialização profissional dos novos
agentes de segurança pública numa perspectiva menos heroica e menos pautada pela “vocação para a
guerra”. Desejamos que esses artigos sejam debatidos por recém-ingressados e também experimentados
profissionais do campo sobre a importância de conteúdos acadêmicos que possam guiar a prática nas
ruas, nas organizações e nas prisões. Ansiamos, por fim, que esses textos possam conduzir o exercício
profissional nas distintas academias e escolas colaborando para a construção de políticas capazes de
salvar a vida desses profissionais, evitando a sua exposição à situações de risco e também a diminuição da
brutalidade e letalidade, que fazem do Brasil uma das primeiras posições no ranking de violência policial.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 8-9 9
EDIÇÃO ESPECIAL
O presente Suplemento Especial é composto por 14 artigos do Dossiê intitulado “A Formação dos
Profissionais de Segurança Pública”, e é resultado de projeto sobre formação policial no pós-doutoramento
de Marlene Inês Spaniol no PPG em Ciências Criminais da PUCRS,com a supervisão do Professor Rodrigo
Ghiringhelli de Azevedo, com aporte financeiro do Instituto Nacional de Estudos Comparados em
Administração Institucional de Conflitos (Inct-INEAC) para sua concretização.
O campo de estudos sobre formação policial no Brasil se consolidou nas últimas décadas, após a entrada
em vigor da Constituição Federal de 1988, na tentativa de identificar as mudanças implementadas e seu
impacto nas práticas policiais, lenvando em conta as tentativas de efetivar o rol de direitos e garantias
individuais incluídos no art. 5º da CF. Do ponto de vista das políticas públicas voltadas para a formação
policial, merecem destaque as diretrizes dos Planos Nacionais de Segurança Pública, da Matriz Curricular
Nacional (MCN) e a criação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), sendo que
estas ações estão refletidas nos estudos e pesquisas que integram os artigos do presente dossiê.
O tema do profissionalismo dos integrantes do campo da segurança pública no Brasil é reiteradamente apontado
como um conceito importante, capaz de orientar mudanças nas práticas e nos procedimentos dominantes das
polícias brasileiras, no sentido de torná-la mais eficiente, responsável e efetiva nas suas atribuições.
Considerando que os primeiros contatos do profissional de segurança pública com a prática da atividade de
polícia serão determinantes para a constituição do seu perfil profissional, e que a totalidade destes agentes
públicos passa por um curso de formação antes de começar a exercer suas funções, é a partir destes dois
vetores que o policial irá adquirir os conhecimentos teóricos e práticos que irão orientar a sua atuação.
10 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 10-13
EDIÇÃO ESPECIAL
Buscou-se reunir estudos e pesquisas sobre a formação profissional de todos os órgãos que integram o
sistema nacional de segurança pública, assim como de diversos estados, pois cada órgão tem suas próprias
escolas e academias, e esta se dá de maneira independente em cada instituição policial.
Os artigos selecionados contribuem para uma reflexão sobre os processos formativos de todos os órgãos
policiais das forças federais (Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal) e estaduais (Polícias Civis, Polícias
Militares, Bombeiros Militares) incluindo artigos sobre as recém-criadas Polícias Penais e sobre a formação
das Guardas Civis Municipais.
O terceiro artigo, intitulado “Ensino Policial e Segurança Cidadã: As experiências brasileiras e o caso da
PM do Rio Grande do Sul”, faz um relato histórico das inovações brasileiras no ensino policial, voltando o
foco à segurança cidadã e tomando como referência empírica a análise dos cursos de formação da Brigada
Militar (BM/RS), apontando os avanços com a inserção da Matriz Curricular Nacional (MCN) e a ampliação
no rol de disciplinas humanísticas.
O quarto artigo, intitulado “Formação Profissional na Segurança Pública do RS: Análise a partir dos seus
Cursos, suas Escolas e Academias de Polícia”, trata da formação dos profissionais dos cinco órgãos que
integram o Sistema Estadual de Segurança Pública do estado do Rio Grande do Sul (RS): Brigada Militar (BM),
Polícia Civil (PC), Instituto-Geral de Perícias (IGP), Corpo de Bombeiros Militar (CBM) e da Superintendência
dos Serviços Penitenciários (Susepe). A análise foi feita a partir de seus cursos, suas escolas e academias de
polícia, apontando os avanços e desafios neste campo no período posterior à Constituição Federal de 1988
e à adoção da MCN com maior aderência às suas áreas temáticas e eixos articuladores.
O sexto artigo, intitulado “A formação em direitos humanos a partir de um olhar sobre o corpo docente
da Academia da Polícia Civil de São Paulo”, analisa o programa da disciplina “Direitos Humanos: Polícia
Civil e a Diversidade”, ministrada nos cursos de formação da Academia da Polícia Civil de São Paulo, que
passou por uma série de alterações ao longo dos anos, especialmente centradas na introdução de temas
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 10-13 11
EDIÇÃO ESPECIAL
como gênero, raça, diversidade sexual e deficiência. O artigo analisa se o corpo docente responsável pela
disciplina recebeu formação inicial ou continuada para lidar com as novas demandas de ensino.
O oitavo artigo, intitulado “O Processo de Ensino Formativo em uma Instituição Policial estruturada
em cargo único: O caso da Polícia Rodoviária Federal”, investiga o processo de ensino do Curso de
Formação da PRF nos anos de 2014 a 2016. A pesquisa indicou que o processo de ensino da instituição foi
marcado por um planejamento simétrico e participativo, estruturação equilibrada entre aspectos teóricos
e práticos das aulas, uso dos recursos didáticos contextualizados à atividade, avaliação quantitativa e
qualitativa dos alunos e relações horizontais entre docentes e discentes, indicando que o processo de
ensino formativo da PRF diferencia-se das formações verticalizadas, bacharelistas e de combate ao crime,
mostrando-se uma alternativa viável para outras instituições de segurança pública.
O nono artigo, intitulado “Qualificação e Política Penitenciária: O Currículo a serviço da Ordem e da Disciplina
no Cárcere”, lança luz sobre uma temática ainda pouco estudada, pois embora as produções científicas sobre o
sistema penitenciário apresentam-se em quantidade suficiente para problematizar suas contradições, pouco se
discute sobre os servidores que lá atuam e sobre a qualificação profissional que acessam. Observando os cursos
realizados pela Escola Nacional de Serviços Penais, entre 2013 e 2019, ficou evidenciada a predominância do
eixo de formação “Segurança e Disciplina”, onde as ações educacionais desenvolvidas privilegiam a manutenção
de protocolos que primam pela neutralização dos apenados, em convergência com a política de controle penal
predominante, voltada mais para a contenção do que para a reinserção social dos apenados.
O décimo primeiro artigo, intitulado “Avaliação de Cursos de Formação Inicial de Policiais Militares: Um
velho desafio para as novas Academias Integradas de Segurança Pública”, se propõe a responder as
seguintes indagações: Como avaliar um curso de formação de policiais militares, ou seja, saber se ele tem
atendido aos anseios da sociedade que, em última instância, é sua principal beneficiária? Quais os desafios
dessa avaliação no atual modelo de academias integradas de segurança pública, criadas no Brasil a partir
do final da década de 1990 e existentes em alguns estados da Federação? O autor apresenta a auto
avaliação como um método prático e válido para as instituições de ensino, especialmente as academias
integradas, aferirem a qualidade da educação ministrada.
12 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 10-13
EDIÇÃO ESPECIAL
O décimo segundo artigo, intitulado “A Teoria, na Prática, é outra coisa!” – Socialização “Escolar”,
Estrutura Bipartida e Conflitos na Policia Militar/RJ“, aponta algumas implicações estruturais de
representações e práticas organizadas em torno da implementação da política de formação profissional
esboçada pela extinta Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG) entre os
anos de 2008 e 2017, período conhecido pela chamada política de pacificação. O texto explora a forma
como o discurso da pacificação era consumido nos espaços ditos “escolarizados” de socialização da
PMERJ, revelando como a desautorização de discursos identificados com um funcionamento “ideal”
das instituições produziu uma tensão estrutural de fundo, fazendo com que noções como mudança e
continuidade atravessassem o cotidiano do referido projeto de formação profissional, que era também um
projeto de consolidação de uma “nova polícia”.
O décimo quarto e último artigo, intitulado “Competências e impactos do Mestrado Profissional: O caso
do Programa de Pós-Graduação Profissional em Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia”
(UFBA) discute as competências e impactos dos mestrados profissionais em segurança pública a partir
dos resultados da avaliação de egressos da Pós-Graduação Profissional em Segurança Pública da UFBA.
Foi analisada a interação entre a universidade e o campo profissional a partir de relatos de ex-alunos,
entendidos como pesquisadores práticos. A pesquisa sugere que estes estão mais conscientes do papel
social de sua profissão, com maior capacidade para pensar de forma crítica sua realidade profissional,
analisar o ambiente interno e externo de suas organizações e tomar decisões com potencial de impacto.
Boa leitura!
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 10-13 13
ARTIGO
A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE
POLICIAL NA DEMOCRACIA – A EDUCAÇÃO
POLICIAL EM FOCO
PAULA FERREIRA PONCIONI
Doutora em Sociologia pela USP (2004), Pós-doutorado no Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da UnB (2008-
2009) e pós-doutorado no Kings Brazil Institute, Kings College, Londres (2014-2015). Professora aposentada da UFRJ.
Conselheira do FBSP. Atualmente é Editora Chefe da Revista Brasileira de Segurança Pública (2019 - ).
País: Brasil Estado: Rio de Janeiro Cidade: Rio de Janeiro
E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7722-8984
RESUMO
O presente trabalho visa discutir o tema da legitimidade policial, a partir da assertiva que a legitimidade
das autoridades e das instituições é uma questão central na democracia. Busca-se explorar os padrões
requeridos nesta perspectiva para a chamada “educação policial”, com vistas a moldar o comportamento
dos policiais no tipo de policiamento almejado para o provimento da segurança pública democrática. Para
atingir os objetivos propostos, este estudo compreendeu pesquisa bibliográfica e documental. A pesquisa
bibliográfica consistiu no exame da literatura especializada sobre os temas concernentes a: democracia,
justiça procedimental, legitimidade e educação policial. A pesquisa documental abrangeu o exame de
documentos oficiais que versam sobre reforma policial, com especial atenção para o incremento da
formação profissional de policiais.
Palavras-chave: Democracia. Legitimidade. Justiça procedimental. Educação policial.
ABSTRACT
THE ISSUE OF POLICE LEGITIMACY IN DEMOCRACY: POLICE EDUCATION IN FOCUS
The present work aims to discuss the theme of police legitimacy, based on the assertion that the legitimacy
of authorities and institutions is a central issue in democracy. It seeks to explore the standards required in
this democratic perspective for the so-called “police education” to mold the police officer’s behavior into the
type of policing desirable to provide a democratic public security. To achieve the proposed objectives, the
study comprised bibliographical and documentary research. The bibliographical research consisted of an
examination of specialized literature on themes concerning to democracy, procedural justice, legitimacy, and
police education. The documental research included the examination of official documents, which deal with
police reform, with special attention to increasing the professional training of police officers.
Key words: Democracy. Legitimacy. Procedimental justice. Police education.
14 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 14-29
ARTIGO
A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
Paula Ferreira Poncioni
INTRODUÇÃO
Ao final da segunda década do século XXI, a questão do provimento da segurança pública nas democracias
permanece ainda sendo um constante desafio diante das exigências de eficiência, efetividade e
accountability do serviço policial.
Casos de violência policial – particularmente com características de cunho racista – têm gerado protestos
de diferentes segmentos da sociedade civil e política em diversos contextos nacionais. Como consequência,
propostas de reformas têm gravitado em torno da necessidade de mudanças nos procedimentos e nas
práticas, bem como na implementação de indicadores de desempenho para responsabilizar a polícia dos
desvios e crimes cometidos, buscando restaurar a confiança no policiamento, principalmente entre as
comunidades étnicas minoritárias.
Desde o século passado nos EUA e na Inglaterra, são inúmeros os casos que têm chamado a atenção
pública para as práticas discriminatórias e a violência policial contra minorias étnicas, particularmente em
relação aos afrodescendentes, seguidos de tentativas para alterar o quadro de violência policial.
Um caso emblemático na Inglaterra foi o de Stephen Lawrence, um adolescente negro que foi morto a
facadas em um ataque racista no sudeste de Londres, em 1993. O caso ganhou destaque nacional em meio a
denúncias de incompetência policial, racismo e corrupção, e o inquérito sobre a morte do adolescente exigiu
uma revisão dos procedimentos policiais e das atitudes em relação à raça no Metropolitan Police Service, em
outras forças em toda a Inglaterra e no País de Gales e no sistema de justiça criminal mais amplo.
O relatório final do inquérito do caso realizado por Sir William Macpherson, um juiz aposentado da
Corte Suprema, foi publicado em 24 de fevereiro de 1999, e caracterizou a resposta da polícia ao
assassinato do adolescente como “institucionalmente racista”. No relatório, Macpherson definiu o
“racismo institucional” como:
a falha coletiva de uma organização em fornecer um serviço adequado e profissional às pessoas por causa de
sua cor, cultura ou origem étnica. Pode ser visto ou detetado em processos, atitudes e comportamentos que
equivalem à discriminação por preconceito involuntário, ignorância, imprudência e estereótipos racistas que
prejudicam as pessoas étnicas minoritárias. (CLUNY, 1999, p. 49 [capítulo 6], tradução livre).
O Relatório Macpherson apresentou 70 recomendações, estabelecidas no capítulo 47, que variaram entre
os seguintes temas: maior controle público sobre a polícia, reconhecimento oficial dos direitos para as
vítimas de crimes e ampliação da quantidade de crimes categorizados como racistas. Das recomendações
estabelecidas no capítulo destacam-se as seguintes: inspetores do governo terão poderes plenos e
irrestritos para fiscalizar os serviços policiais; o governo estabelecerá indicadores de desempenho para
monitorar o tratamento de incidentes racistas, como também os níveis de satisfação com relação ao
serviço policial prestado entre as minorias étnicas; deverá ser instituído o recrutamento de minorias
étnicas; um novo Código de Prática deverá ser instaurado para registrar todos esses crimes; deverá ser
realizada a revisão dos procedimentos policiais (MET) – de detenção e busca, na cena do crime, no registro
dos crimes, suas inspeções internas e a ligação entre os policiais uniformizados e o CID; estabelecimento
de processos disciplinares referidos a todas as palavras ou atos racistas comprovados, cuja punição poderá
implicar com demissão do funcionário; obrigatoriedade de relatórios e registros de todas as operações,
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 14-29 15
ARTIGO
A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
Paula Ferreira Poncioni
particularmente de incidentes e crimes racistas a serem publicados, com uma cópia do registro fornecida
à pessoa envolvida, bem como relatórios de progresso (CLUNY, 1999, tradução livre).
No conjunto de políticas proposto para abordar algumas das causas do racismo institucional, o papel
da educação policial nas recomendações foi incontestável: treinamento de conscientização racial e
valorização da diversidade; treinamento de oficiais de ligação com familiares e testemunhas; treinamento
de primeiros socorros; envolvimento das minorias étnicas locais no treinamento regular para todos os
policiais, entre os mais importantes para a prevenção do racismo.
Embora haja críticas quanto aos efeitos duradouros das reformas implementadas, para alguns autores
(SOUHAMI, 2014) o conceito de “racismo institucional” se tornou um potente conceito de mobilização
para uma ampla reforma policial dirigida ao antirracismo e à igualdade no Reino Unido1 – e para além de
suas fronteiras – após a publicação do Inquérito Stephen Lawrence em 1999.
Fazendo um retrospecto, pode-se inferir que o Inquérito Macpherson levou a mudanças significativas nos
procedimentos policiais. Entretanto, uma década depois, parlamentares do Comitê de Assuntos Internos,
por intermédio do relatório de aniversário de 10 anos do relatório de Macpherson, expuseram que o
progresso das reformas foi mais lento na própria força de trabalho da polícia, o que parece permanecer
como evidência até os dias atuais (HOUSE OF COMMONS, 2009).
Nos Estados Unidos, um caso representativo da acepção oficial de racismo institucional foi o de Rodney
King, que nos anos 1991 foi perseguido por uma viatura policial quando voltava para casa, sendo
abordado, algemado e espancado brutalmente por policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles.
Como consequência, quatro policiais foram julgados sob acusação de brutalidade policial, mas três foram
absolvidos, ocasionando uma onda de protestos que se espalhou por vários estados dos EUA, especialmente
em Los Angeles. O caso alcançou a atenção nacional para o problema da má conduta policial, em particular
de cunho racista, gerando propostas de reformas importantes relativas ao monitoramento e à regulação
das práticas policiais. Se, até então, casos como esse eram atribuídos a “má conduta individual” de um ou
de outro policial, a partir do caso Rodney King a responsabilidade por essas ocorrências foi conferida à
instituição policial como um todo, e não apenas como fruto de um “desvio individual”2.
Na última década no país algumas iniciativas foram tomadas pelo governo federal e por alguns governos
estaduais com vistas a alterar o padrão arbitrário e violento das polícias, sem produzir, contudo,
efeitos na cultura, nos procedimentos e nas práticas policiais, no sentido da redução das altas taxas
de letalidade produzidas pela polícia ou da promoção de uma maior responsabilização dos policiais
envolvidos nesses casos.
1 Para uma análise cuidadosa dos impactos do conceito de “racismo institucional” nas polícias da Inglaterra e de Wales concebido no Relatório
Macpherson, consultar Souhami (2014).
2 Com relação à iniciativa de “reforma estrutural” da polícia nos EUA promovida pelo Departamento de Justiça a partir do caso Rodney King,
consultar Rushin (2014).
16 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 14-29
ARTIGO
A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
Paula Ferreira Poncioni
Segundo o Atlas da Violência 2020 (CERQUEIRA; BUENO et al., 2020), os dados mais recentes de 2018
indicam que houve 57.956 mortes, das quais os negros (soma de pretos e pardos) representam 75,7%
das vítimas de homicídios, sendo 30.873 jovens mortos, o que significa uma taxa de 60,4 homicídios a
cada 100 mil jovens e 53,3% do total de homicídios do país. Os dados compilados no 13º Anuário do FBSP
(BUENO; LIMA et al., 2019) registram que houve naquele mesmo ano 5.159 mortes violentas intencionais
provocadas pelas Polícias, sendo 99,3% homens, 77,9 % entre 15 e 29 anos e 75,4% negros.
De acordo ainda com o Atlas da Violência 2020 (CERQUEIRA; BUENO et al., p. 47), na última década (2008-
2018) evidenciou-se um aprofundamento das desigualdades raciais, com uma grande disparidade de
violência experimentada entre negros e não negros; no período, as taxas de homicídios diminuíram 12,9%
entre não negros e aumentaram 11,5% entre negros. O estudo salienta a maior probabilidade de um
negro ser morto do que um não negro e, ainda, a preponderância dessas vítimas serem jovens negros (15
a 29 anos), do gênero masculino.
A altíssima frequência da ação letal da polícia contra essa parcela da população no cotidiano das grandes
cidades brasileiras sugere que essas mortes não são casos individuais isolados, mas configuram-se como
racismo profundamente enraizado na estrutura da sociedade e nas organizações policiais do país.
Embora os cenários nacionais sejam bastante distintos, a literatura especializada revela que boa parte das
reformas implementadas baseou-se quase exclusivamente na crença de que os problemas que envolvem
a polícia devem-se à inadequação de pessoal qualificado, o que poderia ser solucionado com o incremento
do status educacional da polícia, tornando-a mais profissionalizada; a educação policial aparece como um
recurso argumentativo importante nas reformas propostas para fornecer as competências requeridas às
práticas e às necessidades do trabalho policial considerado profissional.
Contudo, a persistência da má conduta policial contra as chamadas minorias étnico-raciais nos diferentes
contextos sugere que as reformas nesse setor não foram suficientes para o arrefecimento do número
de ocorrências que envolvem o uso excessivo da força e mortes pela polícia. As propostas de mudanças
parecem acompanhar episódios pontuais, em detrimento de alterações fundamentais que fizessem uma
diferença efetiva e duradoura.
Além disso, com relação às propostas no plano das reformas educacionais, o exame de algumas
dessas iniciativas evidencia que, de modo geral, persistem os tradicionais arranjos para a transmissão
do conhecimento, o que privilegia enormemente os aspectos normativos e técnicos requeridos para o
desempenho da profissão. Neste sentido, salienta-se a negligência de outra dimensão, que diz respeito ao
universo cultural – valores, normas e perspectivas – que orienta atitudes, comportamentos e linguagens,
que podem incluir uma ampla gama de discriminação relacionada ao racismo, ao sexismo e à homofobia
no trabalho policial.
Não obstante se possa questionar o papel efetivo da educação policial para a mudança de comportamentos
e atitudes de policiais, ela tem um lugar importante na formação das competências, habilidades e posturas
do policial para o desempenho das práticas profissionais.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 14-29 17
ARTIGO
A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
Paula Ferreira Poncioni
Como afirma Poncioni (2021, p. 247), embora não haja um alto grau de simetria entre a realidade objetivada
– transmitida pela formação profissional – e a subjetiva – apreendida pelo novato – e mesmo entre essas e
o contexto em que se vai atuar, considera-se que uma das funções importantes dos programas de ensino
profissional é prover uma base para a constituição de uma comunidade profissional e uma orientação pela qual
motivação, compromisso e aderência a uma visão de “mundo profissional” sejam, supostamente, desenvolvidas.
Em decorrência, uma questão fundamental para análise diz respeito às ferramentas possíveis no âmbito
da educação policial que podem servir para promover e sedimentar modos de policiamento legítimos
para a produção da manutenção da ordem e da prevenção do crime democraticamente viáveis.
Com base em trabalhos que discutem a questão da legitimidade da autoridade policial no escopo da teoria
da justiça procedimental, buscou-se fazer um exercício teórico sobre alguns elementos que a educação
policial deve conter para a preparação do policial, especialmente em relação à promoção de um modelo
de policiamento que produza legitimidade para o trabalho policial na tarefa de redução da violência e
prevenção do crime na sociedade democrática.
A exposição deste artigo está organizada do seguinte modo: além desta introdução, há duas outras seções
que buscam refletir, respectivamente, a questão da legitimidade da autoridade policial na democracia a
partir da teoria de justiça procedimental e os elementos que a educação policial deve abranger para a
preparação do policial, notadamente em relação à legitimidade policial no contexto democrático. Por fim,
ao término do trabalho, encontram-se as considerações finais e as referências bibliográficas consultadas.
A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE DA
AUTORIDADE POLICIAL NA DEMOCRACIA –
BREVES CONSIDERAÇÕES
Diferentes estudos têm explorado a maneira como as organizações policiais lidam com a problemática
da violência e do crime, apontando o fracasso das investigações policiais, os abusos, as múltiplas e
frequentes discriminações e violações dos direitos humanos, especialmente com cunho racista. Sem falar
da ineficácia à prevenção e ao controle da criminalidade violenta e da corrupção policial. Acrescente-se a
isso a debilidade de mecanismos de controle e de responsabilização das ações da polícia que possam na
prática acolher as queixas contra os desvios cometidos pela polícia.
Todos esses problemas têm levantado o questionamento acerca da competência e, sobretudo, sobre a
legitimidade das organizações policiais para atuar em um contexto de maior complexidade dos problemas
sociais e de sofisticação do comportamento criminal. A constatação de alguns desses problemas tem
evidenciado a necessidade de reformas de amplo espectro que produzam a mudança dos procedimentos
policiais, do comportamento e das atitudes dos agentes policiais no provimento da segurança pública
com vistas ao estabelecimento da legitimidade à polícia.
Tyler (2004), a partir do paradigma weberiano da obediência pela legitimidade, qualifica autoridade
legítima como aquela que os cidadãos consideram adequada e necessária em termos normativos, que
representa os valores comuns e por isso deve ser obedecida. Para ele, quando as autoridades legais são
consideradas legítimas, os indivíduos são mais propensos a se envolver em atitudes e comportamentos
normativamente desejáveis relacionados à lei, às normas, às regras, etc.
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A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
Paula Ferreira Poncioni
Deslocando essa discussão para o campo do sistema de segurança e de justiça criminal, a obediência
voluntária é crucial para assegurar o respeito às leis, normas e regras, evitando-se, assim, que dispendiosas
e intrusivas práticas de controle sejam aplicadas para assegurar o comportamento adequado. Aplicada
à polícia, a parte mais tangível da lei e da regulação no cotidiano dos indivíduos, a legitimidade, está
relacionada à ideia de que os policiais devem exercer sua autoridade de maneira justa e adequada para
estabelecer e manter a sua legitimidade aos olhos dos cidadãos, (JACKSON et al., 2012; SUNSHINE; TYLER,
2003; TYLER; JACKSON; MENTOVICH, 2015), propiciando, assim, a obediência – voluntária – às ordens e às
regras emanadas dessa autoridade, em contraste à obediência pelo medo de punição ou pela antecipação
de recompensa.
A partir dessa literatura, a legitimidade policial compreende tanto aspectos instrumentais quanto
normativos: os primeiros têm a ver com avaliações instrumentais de três elementos – o risco, o desempenho
e os julgamentos sobre a distribuição da justiça. A visão instrumental sugere que a polícia pode aumentar o
apoio do público quando: (1) produz um risco presumível de que as pessoas que infringem a lei podem ser
apreendidas e sancionadas (dissuasão); (2) controla efetivamente o crime e o comportamento criminoso
(desempenho) e; (3) distribui de forma justa os serviços policiais entre as pessoas e as comunidades
(justiça distributiva) (SUNSHINE; TYLER, 2003; HINDS; MURPHY, 2007).
Em outras palavras, a perspectiva instrumental de legitimidade sugere que a polícia desenvolve e mantém
a legitimidade por meio de sua eficácia no controle do crime e da desordem na comunidade (dissuasão).
Já a perspectiva normativa tem a ver primordialmente com justiça processual. Ou seja, a legitimidade
policial está relacionada principalmente aos processos por intermédio dos quais a polícia toma decisões e
exerce autoridade nas suas relações com os cidadãos (regulação).
Desse modo, quanto mais a polícia usar a justiça, mais as pessoas verão a polícia como sendo legítima
e mais darão mais apoio, com consentimento/aceitação e justificação do poder da polícia, para a
imposição de comportamentos e atitudes normativamente desejáveis relacionados à lei, às normas, as
regras, etc. –- incluindo o uso da força quando se fizer necessário –, como também para sua capacidade
de produzir obediência, respeito e cooperação às suas determinações (regulação)3. Sunshine e Tyler
(2003) argumentam que o uso policial de procedimentos injustos ao exercer sua autoridade pode levar à
alienação, insatisfação, ao desafio e não cooperação do público.
3 Sobre os modelos dissuasório e regulatório, consultar na literatura nacional: Oliveira, Zanetic e Natal (2020); e Natal, et al. (2016).
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A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
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Como resultado, a polícia usando a justiça terá mais legitimidade e apoio e, assim, o argumento da
legitimidade com relação ao exercício da autoridade policial estará vinculado à maneira como a polícia
procede na resolução dos conflitos e como as pessoas são tratadas cotidianamente pelos policiais. Esses
são dois aspectos centrais que balizam, na teoria da justiça procedimental, a qualidade do processo de
tomada de decisões e do tratamento interpessoal no policiamento em um contexto democrático. E, como
é propugnado nas pesquisas sobre justiça procedimental, o policiamento deve ser fornecido da maneira
mais aberta, honesta e respeitosa possível. Não só esse policiamento é desejável em termos éticos,
como também é provável que ganhe maior cooperação pública, deferência e conformidade. Portanto, (r)
estabelecer a confiança entre as comunidades atendidas pela polícia é primordial.
Nesta direção, é preciso salientar que as estruturas internas das organizações policiais têm um papel
importante, porque condicionam a capacidade e, de fato, a vontade dos policiais de fornecer um estilo
de policiamento comprometido com os procedimentos que compõe a justiça procedimental, e uma vez
que estejam estruturados em linhas democráticas estarão em melhor posição para fazê-lo. Processos
democráticos dentro de organizações policiais também podem ter o efeito de “ensinar” policiais –
encorajando-os a internalizar valores democráticos (BRADFORD; QUINTON, 2014, grifo dos autores).
Organizações policiais que são internamente democráticas operarão de maneira que possam promover ou
reforçar democraticamente modos de policiamento desejáveis. [...] o policiamento democrático respeita os
direitos de todos aqueles que entram em contato com os policiais e, em tal contexto, estes se comportam da
maneira mais processualmente justa possível. As organizações policiais democráticas têm o cuidado de não usar
de força excessiva e exercer força física de forma proporcional e somente quando for absolutamente necessário.
Elas também são responsáveis por suas ações dentro de sistemas de governança baseados em princípios de
participação cidadã, equidade, capacidade de resposta e priorização do serviço, ampla distribuição de poder,
fornecimento de informações e vias claras de reparação. (BRADFORD; QUINTON, 2014, p. 1025, tradução livre).
O trabalho de Bradford e Quinton (2014) sugere que as percepções dos policiais sobre “justiça
organizacional” em seus relacionamentos com gerentes e líderes, particularmente no que concerne aos
procedimentos organizacionais – e como são aplicados pela alta administração –, bem como a qualidade
de interação e comunicação estão relacionadas com o compromisso com regulamentos, objetivos
organizacionais e “comportamentos de cidadania organizacional”, que podem aumentar suas vontades
de se envolverem com os membros do público de forma positiva e construtiva.
Os autores argumentam que a justiça organizacional4 proporciona um senso de valor e integração entre
policiais, gera orgulho e identificação com a organização, aumenta a legitimidade de estruturas e processos
internos e encoraja orientações positivas para o policiamento orientado para serviços. Organizações
4 Justiça organizacional refere-se à percepção do funcionário sobre os comportamentos, as decisões e ações de sua organização, e como isso
influencia as atitudes e os comportamentos no trabalho. O termo está intimamente ligado ao conceito de justiça; os funcionários são sensíveis
às decisões tomadas diariamente por seus empregadores, tanto em pequena como em grande escala, e julgarão essas decisões como injustas
ou justas. Esses julgamentos influenciam o comportamento de um indivíduo e podem, nos casos em que as ações têm um efeito pessoal sobre o
funcionário e são julgadas como injustas, levar ao desvio (BRADFORD; QUINTON, 2014).
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A questão da legitimidade policial na
democracia – a educação policial em foco
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injustas, ao contrário, dificilmente encorajam tais atitudes entre seus funcionários, e as percepções
de injustiça internamente podem levar ao desenvolvimento de um conjunto diferente de adaptações
culturais tipicamente associadas na literatura sobre policiamento como subculturas ocupacionais.
Bradford e Quinton (2014) chamam a atenção ainda para a importância da noção de identidade social
para entender a autolegitimidade. A identidade social positiva em relação a um grupo (ocupacional) pode
servir a várias funções psicológicas importantes para o indivíduo, como promover a autoestima, ajudar a
compreender as pessoas e as situações, e satisfazer a necessidade de pertencer. Uma identidade social
forte, estimulada por percepções positivas da justiça, também pode ajudar os indivíduos a lidar com
a incerteza do local de trabalho em relação aos resultados, status, à confiabilidade e moralidade, pois
proporciona estabilidade emocional e senso de interesse e apoio mútuos.
Nesta perspectiva, assume-se aqui como pressuposto que a maneira como são processadas as etapas
de socialização profissional no contexto institucional, incluindo a formação profissional, pode fornecer
algumas indicações importantes para a apreensão das representações, bem como dos meios utilizados
para moldar a identidade profissional dos futuros policiais, como também suas atitudes e seus
comportamentos no campo de trabalho (PONCIONI, 2021).
Para Carter, Sapp e Stephens (1989), não restam dúvidas sobre os efeitos positivos do aumento do nível
de escolaridade para o universitário no policiamento com vistas ao enfrentamento dos desafios colocados
contemporaneamente, associados aos problemas sociais complexos e ao incremento de sofisticação
do comportamento criminal, bem como às exigências de accountability, eficiência e efetividade.
Resultados de estudo empírico realizado em diferentes departamentos de polícia de três cidades dos
EUA – Tulsa (Oklahoma), Largo (Flórida) e Nova York (Nova York) –, recomendam que, embora tenham
sido encontrados distintos modelos de políticas para aumentar gradualmente as exigências educacionais
com vistas ao ingresso nesses departamentos de polícia, uma vez estabelecido o requisito de educação
universitária para o ingresso em qualquer departamento, alguns critérios precisam ser estabelecidos:
deve ser elaborado um documento de política validando a educação universitária como qualificação
profissional com vistas a determinar padrões educacionais realistas em relação aos recursos disponíveis
e às características da comunidade; a política desenvolvida deve incluir também contribuições de todos
os níveis da agência, considerando particularmente a inclusão da(s) organização(ões) de policiais locais
nas discussões preliminares, objetivando aumentar a aceitação e a aceleração de sua implementação;
devem ser especificados que os créditos e os diplomas universitários devem ser concedidos por
faculdades ou universidades que tenham recebido o credenciamento de uma das principais organizações
credenciadoras; deve-se definir cursos de graduação em áreas relacionadas ao trabalho policial, como
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direito, administração pública, sociologia, psicologia ou outras áreas que possam ser demonstradas como
diretamente relacionadas às práticas e à necessidade de policiamento; entre os mais importantes. De
acordo com os autores (CARTER; SAPP; STEPHENS, 1989, p. 124): “a questão para o século XXI não é se a
educação universitária é necessária para os policiais, mas sim quanto e quando”.
No entanto, não obstante, seja uma tendência crescente a seleção de policiais com um nível elevado de
escolaridade, esse critério não é homogêneo, e tampouco consensual entre as polícias. Observa-se que
o incremento da educação policial – ensino e treinamento – proporcionado pelas academias de polícia
sobrevém, ainda, como um importante recurso que pode contribuir substantivamente para melhoria da
performance policial em um contexto cada vez mais complexo das sociedades modernas.
A academia não apenas fornece a maior parte do treinamento formal de conhecimento de que o oficial
precisará para a carreira, mas também “desempenha um papel significativo na formação das atitudes do
policial e é o ponto inicial para a socialização ocupacional do oficial”. (PEAK, 1993, p. 82 apud MARION, 1998,
p. 72, tradução livre).
Análoga à argumentação de Carter, Sapp e Stephens (1989), depreende-se, portanto, que não é uma
questão se a educação policial é necessária para estabelecer as importantes habilidades para a melhoria
do policiamento, mas sim quais conhecimentos, quanto e quando.
O importante papel que a polícia desempenha na sociedade contemporânea, que vai muito além do provimento
de segurança física contra o crime por meio de patrulhas de rua e fiscalização do trânsito, com o desempenho
de várias funções, desde a manutenção da ordem em grandes eventos públicos até a prevenção de ataques
terroristas, e da administração do medo do público em relação ao crime comum (HUQ; JACKSON; TRINKNER,
2017), conjugado às demandas de accountability, eficiência e eficácia, exige que a formação profissional do
policial abranja a complexidade de questões que emergem no variado e complexo campo de trabalho.
5 No caso brasileiro, em particular, consultar especialmente Kant de Lima (2002); Muniz (1999); Miranda (2008) e Poncioni (2021).
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justificativas de que o stress ali produzido é uma “ferramenta” que desenvolve a disciplina e a coesão
do grupo e que pode ajudar na preparação do policial para as ruas (MARION, 1998). No entanto, a
hostilidade e o desrespeito encontrado na academia tende a afetar negativamente a capacidade do
recruta de lidar com os problemas do público; a falta de “comportamentos de cidadania organizacional”
gera percepções e sentimentos negativos de justiça, ética e confiança.
Desse modo, é importante destacar que qualquer curso que pretenda “moldar” um estilo de policiamento
comprometido com os procedimentos legítimos aos olhos do cidadão deve também comprometer-se
com “comportamentos de cidadania organizacional”.
Nessa perspectiva, as academias de polícia devem assegurar que os conhecimentos transmitidos nos
programas dos cursos de formação profissional, particularmente com relação à supressão do preconceito
e da desvantagem racista e à demonstração de justiça em todos os aspectos do policiamento, tenham
um currículo apropriado, com conteúdo programático interdisciplinar que envolva, para além do
conhecimento das leis e dos normativos pertinentes ao trabalho, temáticas como diversidade cultural,
gerenciamento de crise e resolução de conflitos, participação, respeito, entre as mais importantes. A
experiência e a expertise também devem ser incorporadas para facilitar a conexão entre os princípios da
justiça procedimental e a realidade cotidiana do policial.
Igualmente, novos métodos devem ser desenvolvidos para preparar o policial para lidar com diferentes
situações, buscando reproduzir os cenários mais próximos das condições de trabalho “nas ruas”: estudos
de caso, vídeos seguidos de debate, simulações, etc. são estratégias desejáveis para isso. É imprescindível
que se dê especial atenção ao treinamento do uso da força que deve ser realizado com armamento menos
letal (spray, armas defensivas, etc.) lado a lado ao do armamento letal. Os futuros policiais devem aprender
que não podem abordar todas as situações com uma arma. Em vez disso, eles devem usar todos os outros
métodos para subjugar um alvo antes de usar a força letal (uso progressivo da força). A ideia de que atirar
em um suspeito deveria ser a última opção possível, até mesmo para a segurança do policial. É também
imprescindível a composição de um corpo docente constituído por policiais e não policiais, buscando-se
operar, sobretudo, uma mudança de cultura organizacional – crenças e valores acerca de questões como
gênero, raça, religião, etc. – que compreenda a linguagem verbal e não-verbal – o comportamento e as
atitudes frente ao “outro-diferente”, incluindo as necessidades especiais.
Nessa direção, o processo educativo se traduz no estímulo à reflexão, criatividade, empatia, flexibilidade
e iniciativa com vistas a possibilitar a análise inteligente no uso da discricionariedade, com decisões justas
para a resolução de problemas locais e/ou para encaminhá-los ao próprio público e aos setores competentes
– agências públicas e/ou privadas. O treinamento é uma complementação do ensino essencial, tendo
como finalidade fundamentalmente a exposição e a explicação de técnicas que, praticadas várias vezes, se
tornam um reflexo, com vistas à execução de uma tarefa ou para responder a uma determinada situação6.
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Esse processo precisa envolver todos os integrantes de um departamento de polícia para o desenvolvimento
do trabalho policial, de diferentes níveis hierárquicos e diferentes gerações.
Estudo realizado por Gould (1997) sobre a receptividade de policiais do Arizona, nos EUA, com relação aos
conteúdos de um curso ministrado sobre diversidade cultural intitulado Cultural diversity, cultural sensivity,
or race relations training, evidenciou diferenças nas percepções entre gerações de policiais – cadetes e
policiais antigos – no que diz respeito à utilidade do ensino para o policial na relação com a comunidade no
policiamento diário. Para os cadetes, de modo geral, o curso foi útil haja vista sua pretensão em servir a toda
a comunidade, e não apenas a um grupo de pessoas. Parte dos policiais mais antigos expôs sentimentos
de raiva relacionados a cinco aspectos: a comunidade não compreender ou apreciar o que os policiais
tentam realizar; administradores e supervisores perderem o contato com a realidade do policiamento
que eles enfrentam diariamente; muitos gestores e políticos estarem procurando um bode expiatório
rápido e, portanto, muitas vezes culpando os policiais por coisas sobre as quais eles não têm controle;
“regras da rua” muitas vezes pesadas contra a polícia; e, finalmente, a existência de uma divergência
entre o que é ensinado nas academias de polícia e o que a sociedade de fato demanda ao policial fazer
(GOULD, 1997, p. 351). A análise realizada no estudo mencionado indica que: “Os comentários de oficiais
mais experientes sugerem fortemente que eles se sentiram culpados por problemas raciais, quando na
verdade os problemas raciais são uma parte da história institucional do departamento” (Ibid., p. 354).
Uma alternativa proposta pelo autor para o arrefecimento do sentimento desses policiais de que estão
sendo punidos por um problema sistêmico seria mesclar administradores e policiais de linha em salas de
aula sobre diversidade cultural, com vistas ao compartilhamento de pontos de vistas e experiências sobre
a maneira como tratar minorias. Além disso, esse tipo de conteúdo deveria ser dado no começo da carreira
policial e reforçado ao longo da trajetória profissional, visando estabelecer mais a compreensão do problema
e as efetivas práticas policiais de tolerância e respeito às diferenças culturais presentes na sociedade.
Outra opção para o desenvolvimento do processo educativo para a formação profissional de policiais
encontrada na literatura especializada aponta variações nos modelos de currículos associados à educação
policial: um poderia ser considerado de base mais restrita e outro, de base mais ampla. A primeira
alternativa se circunscreveria aos “muros” da organização policial, contendo os programas elaborados
pelas academias de polícia.
Para Gilbert, Wakeling e Crandall, o currículo de um curso baseado em legitimidade e justiça procedimental deve:
definir legitimidade policial e justiça procedimental, explicando como eles se relacionam; ajudar os
policiais a compreender como os conceitos os beneficiam e apoiam o bom trabalho policial; mostrar que o
relacionamento que a polícia tem com a comunidade que ela serve é importante e que atender às expectativas
compartilhadas requer um trabalho conjunto; explorar o impacto de cinismo do policial em suas interações
com o público; explicar como a avaliação dos membros da comunidade sobre a polícia é influenciada por como
eles são tratados, independentemente do resultado final; discutir o tratamento das minorias nos EUA e no
exterior, destacando o impacto duradouro do policiamento sob as leis de Jim Crow e durante o movimento
de direitos civis; empregar o conceito de “conta bancária comunitária” em que a cada transação é feito um
depósito ou um saque. (GILBERT; WAKELING; CRANDALL, 2012, p. 4, grifo do autor, tradução livre).
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universidades. Essa última opção é desejável no sentido de propiciar um ambiente que tende a ser mais
aberto e flexível, expondo policiais a diferentes e mais adaptáveis pontos de vista.
Certamente, a educação universitária não pode ser generalizada como boa por si só; a qualidade da
instituição educacional bem como os conhecimentos oferecidos devem estar consonantes com as
necessidades do trabalho policial, como também devem ser monitorados e avaliados. Tanto uma quanto
outra opção deve levar em conta, além da formação acadêmica de qualidade, a formação contínua
especializada em serviço e a experiência prática.
Estudos sobre a problemática da educação policial indicam que, uma vez restrita à formação profissional
básica, a instrução tem efeito temporário, haja vista que o serviço policial continuado acaba por solapar
os conhecimentos transmitidos nas academias de polícia (PONCIONI, 2021). Nesta direção, ressalta-
se que a educação policial continuada é imprescindível e necessária para produzir a sedimentação
de conhecimentos, habilidades e competências requeridas com vistas ao policiamento baseado em
protocolos de justiça procedimental.
Gilbert, Wakeling e Crandall (2012, p. 12, trad. livre) argumentam, ainda, que: “além disso, o treinamento
contínuo ofereceria uma oportunidade de incorporar mais perspectiva comunitária e feedback recebido
desde o primeiro treinamento”.
Seguramente nada disso garante êxito no desempenho geral do policiamento. O ambiente de trabalho
policial é usualmente difícil e estressante, o que certamente afeta o julgamento com os cidadãos;
possivelmente o maior benefício exercido pela educação policial continuada é servir como alicerce para
fornecer não apenas conhecimentos relacionados ao trabalho, mas também habilidade introspectiva,
possibilitando a análise detalhada das próprias experiências para determinar quando o equilíbrio de
julgamento está começando a mudar (CARTER; SAPP; STEPHENS, 1989).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise de algumas propostas de reforma policial que envolveram diretamente casos de
violência policial – especialmente com características racistas –, e cujo enfoque foi no aprimoramento
do quadro de pessoal, buscou-se discutir alguns elementos que a educação policial deve conter para
a preparação do policial com vistas à promoção de um policiamento que produza legitimidade para o
trabalho policial na sociedade democrática.
Constata-se que a cultura policial corrente tem reproduzido um sistema de valores e crenças associado a um
modelo profissional policial “tradicional” que privilegia o papel meramente reativo das agências policiais,
pautado essencialmente na repressão – que valoriza o uso da força, dos procedimentos operacionais padrão
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a subcultura ocupacional policial tem sido repetidamente descrita como tendo uma série de características
centrais, elementos-chave dos quais incluem suspeita e cinismo (particularmente em relação às políticas,
procedimentos, autoritarismo, bem como uma distinção rígida entre) entre “eles” e “nós” acoplados com
solidariedade em grupo. (BRADFORD; QUINTON, 2014, p. 1028, grifos do autor, tradução livre).
Nesta direção, ressalta-se que um instrumento importante para dar suporte ao estabelecimento de
comportamentos e atitudes legítimas sob o ponto de vista dos quatro princípios da justiça procedimental
é a utilização de uma abordagem teórico-metodológica que favoreça o diálogo, a interdisciplinaridade, o
enfoque de temáticas como relações interpessoais e a diversidade cultural, em conjunto com assuntos
associados aos conhecimentos tradicionalmente transmitidos para a realização do trabalho policial; um
corpo docente qualificado e a cooperação com universidades são essenciais para o êxito de qualquer
intervenção neste campo. É imperativo, ainda, que a educação policial não se restrinja apenas à formação
profissional básica dos policiais, mas também permeie toda a trajetória profissional do policial, envolvendo
todos os integrantes de um departamento de polícia de diferentes níveis hierárquico e de gerações.
No entanto, não obstante, se reconheça a importância da educação policial para a construção de valores
e normas, das competências e habilidades para o desempenho do trabalho policial, a ela não deve ser
atribuída a capacidade de resposta para impedir ocorrências de má conduta policial; esse é um limite
indicado por diversos trabalhos que versam sobre o tema da reforma policial baseada na noção de que o
aprimoramento profissional solucionaria os problemas relacionados à prática policial. Mais do que isso,
revela que a despeito de que a educação policial seja uma ferramenta institucional importante, ela não
deve ser assumida como panaceia de justificação e solução para os casos de desvio policial.
Neste sentido, a educação policial pode ser vista como um fator positivo, mas há uma série de outros fatores
que afetam diretamente as atitudes de um cargo policial e os desempenhos no trabalho. Os fatores incluiriam
o contexto sociopolítico, as políticas departamentais, o ambiente de trabalho, as práticas disciplinares e a
preocupação percebida com relação ao apoio da abordagem profissional ao policiamento pelos detentores
de cargos políticos locais e gestores de políticas públicas na área (CARTER; SAPP; STEPHENS, 1989).
Entende-se que o enfrentamento de alguns dos problemas colocados, como o racismo institucional,
exige mais do que formação e aprimoramento profissional, demanda igualmente a responsabilização por
má conduta – discriminação, violência e letalidade policial –, superando a perspectiva centrada apenas
no indivíduo, tornando-se objeto de preocupação e mobilização de esforços da instituição policial para
orientar e encorajar mudanças na estrutura e na organização do trabalho policial. Mas é necessário
também que a eliminação do preconceito e da desvantagem racista e a demonstração de justiça em todos
os aspectos do policiamento se constituam problemas para a agenda política a serem enfrentados por
toda a sociedade por intermédio de políticas públicas.
Ressalta-se que em contextos em que há altas taxas de crime, como no Brasil, a atribuição de legitimidade
da polícia baseia-se sobretudo na perspectiva instrumental de legitimidade, segundo a qual prevalece
a eficácia do trabalho policial no controle do crime e da desordem na sociedade, em detrimento dos
aspectos normativos que estão associados primordialmente com justiça processual7.
7 Ver os casos de Ghana (TANKEBE, 2009) e do Brasil, em particular em São Paulo (NATAL et al., 2016).
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Pode-se afirmar que a aplicação dos princípios da justiça procedimental nas polícias é uma agenda aberta
e depende de múltiplos fatores.
A teoria da legitimidade e da justeza procedimental se constitui como uma concepção muito promissora no
que diz respeito a aprimorar as relações entre a população e os agentes públicos de segurança, em especial
os policiais. Essa concepção tem como seus principais potenciais a capacidade de possibilitar a construção
de uma obediência normativa dos cidadãos com relação às leis e às autoridades, estreitando seus vínculos e
reduzindo os custos da ação estatal e seus efeitos nocivos [...] A contribuição dessa teoria à reforma das polícias
se relaciona sobretudo aos aspectos que caracterizam os contornos da cultura do país, e às possibilidades de
transformação dos comportamentos desses agentes em relação aos cidadãos. (NATAL et al., 2016, p. 18).
Embora o emprego dos princípios da justiça procedimental nas polícias brasileiras possa parecer uma miragem,
haja vista que a promessa de uma segurança “cidadã” no país chegou no século XXI colidindo com uma frágil e
debilitada democracia, essa é uma aposta otimista para uma agenda que não se pode abandonar.
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ARTIGO
Agências de Fomento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Fundação de Apoio à
Pesquisa do estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
RESUMO
Este artigo identifica e discute as moralidades e os conflitos decorrentes da formação de profissionais das
carreiras de segurança pública no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social na modalidade de
ensino a distância da Universidade Federal Fluminense. O argumento é construído a partir da experiência
etnográfica dos autores na criação e coordenação do curso e na administração dos conflitos de ordem
acadêmica surgidos no decorrer de seu desenvolvimento entre 2013 a 2018. A análise aponta para
diferentes concepções de hierarquia e disciplina envolvidas nos conflitos administrados no curso, uma
proveniente da ordem hierárquica e fundada na obediência estrita a comandos; outra, da normalização
dos comportamentos e da adesão às regras. A análise contrasta o papel dos processos de socialização em
instituições civis e militares e a inadequação da socialização militar para a instituição policial em face dos
princípios da democracia republicana contemporânea.
Palavras-chave: Formação universitária em segurança pública. Coexistência de hierarquias cívico-militares
na Universidade. Processos de Administração de Conflitos.
1 A versão preliminar deste artigo foi apresentada no GT01 “Administração de conflitos em perspectiva
comparada”, do 39º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu/MG, out. 2015.
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Conflitos em formação: a experiência da convivência civil-militar
no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a distância da
Universidade Federal Fluminense
Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo
ABSTRACT
CONFLICTS IN UNDERGRADUATE TRAINING: THE EXPERIENCE OF CIVIL-MILITARY COEXISTENCE IN THE
ON LINE TECHNOLOGIST COURSE IN PUBLIC AND SOCIAL SECURITY AT THE FLUMINENSE FEDERAL
UNIVERSITY
This article identifies and discusses the moralities and conflicts arising from the training of professionals in
public security careers in the Technologist Course in Public Safety in on line learning modality at the Fluminense
Federal University. The argument is built from the ethnographic experience of the authors in the creation and
coordination of the course and in the management of conflicts of academic order that arose in the course of its
development between 2013 and 2018. The analysis points to different conceptions of hierarchy and discipline
involved in the conflicts managed in the course, one stemming from the hierarchical order and founded on
strict obedience to commands; another, from the normalization of behaviors and adherence to rules. The
analysis contrasts the role of socialization processes in civilian and military institutions and the inadequacy of
military socialization for the police institution in view of the principles of contemporary republican democracy.
Key words: University undergraduate training in criminal justice. Civil-military hierarchies coexistence at the
University. Conflict Management Processes.
INTRODUÇÃO
Este artigo identifica e discute as moralidades e os conflitos decorrentes da formação de profissionais das
carreiras de segurança pública no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social na modalidade de
ensino a distância da Universidade Federal Fluminense. O argumento é construído a partir da experiência
etnográfica dos autores na criação e coordenação do curso e na administração dos conflitos de ordem
acadêmica surgidos no decorrer de seu desenvolvimento. As observações foram realizadas nos primeiros
anos do curso, de 2013 a 2018.
Criado em 2013, o curso surge a partir de uma demanda específica da Secretaria de Segurança Pública
do Estado do Rio de Janeiro, em razão da experiência anterior dos professores e pesquisadores da
Universidade Federal Fluminense (UFF) com os cursos de Bacharelado (desde 2012) e de Especialização
(desde 2000) na área de segurança pública e justiça criminal. Assim, em 2014, os pesquisadores receberam
uma demanda vinda do Comando do Estado Maior da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para que
fosse criado um Curso de Tecnólogo que integrasse a formação unificada dos seus quadros profissionais
visando mitigar os efeitos da dupla entrada de Oficiais e Praças nessa instituição.
De acordo com as regras do Ministério da Educação e Cultura (MEC), diferentemente desses cursos da UFF
anteriormente mencionados, que ou são abertos ao público em geral (bacharelado) ou comportaram sempre
cotas de vagas abertas ao público interessado (especialização), o Curso de Tecnólogo em Segurança Pública
e Social é exclusivamente oferecido aos “profissionais da carreira de segurança pública”, segundo o Catálogo
Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia do Ministério da Educação2. Além disso, a demanda definida pela
Secretaria de Segurança/RJ determinou que 80% das vagas fossem destinadas para a Polícia Militar.
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no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a distância da
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Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo
Em 2015, o curso contava com 2.394 alunos matriculados cursando disciplinas, além de um quadro
de professores doutores coordenadores de disciplinas, tutores presenciais e tutores a distância3 que
atuavam nas salas virtuais e presenciais em 12 polos no Estado. Para cada uma das 31 disciplinas do curso,
havia um professor coordenador ao qual estavam vinculados tutores presenciais — numa escala de 1
tutor para 50 alunos por disciplina — e tutores a distância — numa proporção de 1 para 100 alunos. Isso
perfazia um total de 34 professores e 117 tutores presenciais e a distância, já que muitos atuavam com
carga horária dobrada ou em mais de uma disciplina. O fato de a maioria dos alunos ser militar e todos os
tutores e professores serem civis faz com que este curso a distância apresente questões próprias dessa
tecnologia de transferência do conhecimento para esse público específico. Especialmente, a observação
dos conflitos ocorridos no decurso dessa experiência, e a forma de administrá-los, demonstrou que
diferentes moralidades informavam as representações civis e militares sobre o significado da formação
universitária e das concepções de disciplina e hierarquia.
O objetivo aqui é descrever e analisar essas diferentes concepções de hierarquia e disciplina envolvidas
nessas situações, uma proveniente da ordem hierárquica e fundada na obediência estrita a comandos;
outra, da normalização dos comportamentos e da adesão às regras. A análise contrasta o papel dos
processos de socialização em instituições civis e militares e a inadequação da socialização militar para a
instituição policial e muito menos para as instituições escolares de ensino público, em face dos princípios
da democracia republicana contemporânea.
No decorrer do curso foi possível observar como as instituições de segurança pública inculcam uma
maneira própria de hierarquizar as relações entre seus membros. Esta reflexão nos permitiu compreender
a ética policial-militar e suas expectativas em relação às instituições, a partir do estranhamento dos alunos
com as formas civis de organização e administração de conflitos.
O CURSO DE TECNÓLOGO
NO CAMPO DA SEGURANÇA PÚBLICA
Como já mencionado, o Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social foi criado, inicialmente, a
partir de uma demanda da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro em 2012, para
ser ministrado pela UFF através do Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro
(Consórcio CEDERJ), financiado pela Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia e constituído por
instituições universitárias públicas do Rio de Janeiro para o ensino a distância. Foram disponibilizadas
inicialmente 500 vagas por semestre para os candidatos interessados que fossem admitidos no vestibular
CEDERJ. Entretanto, no início de 2015, a Coordenação foi procurada pelo Estado Maior da Polícia Militar
do Estado do Rio de Janeiro para que o curso integrasse o projeto de reforma da carreira da Polícia Militar,
3 Uma legislação recente propôs mudança de denominação e de funções para os tutores, onde os presenciais seriam denominados mediadores
e os a distância, articuladores. Foi julgada inconstitucional. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-19/stf-decide-lei-tutor-rio-
janeiro-inconstitucional#:~:text=Derrubada%20por%20sete%20votos%20a,ser%20ministradas%20apenas%20por%20professores. Acesso em:
20 abr. 2021.
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no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a distância da
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que visava propiciar uma formação comum para Oficiais e Praças. Assim, foi solicitado um aumento na
oferta do número de vagas de 500 para 950, ainda em 2015. Nos anos seguintes, a oferta de vagas baixou
para 360 em razão da crise financeira do estado, e aumentou em 2018 para 450 vagas.
Diferentemente de estados como Minas Gerais e São Paulo, que passaram a exigir recentemente o
Bacharelado em Direito dos novos ingressantes nas suas respectivas Polícias Militares, o Estado do Rio de
Janeiro buscava inovar ao exigir uma formação de cunho reflexivo, calcado nas ciências sociais e enfocando
conteúdos de pesquisa acerca da administração institucional de conflitos. Esse processo é identificado como
uma forma de “militarismo mitigado” (RODRIGUES, 2014), uma vez que busca atenuar uma característica
marcante do militarismo brasileiro: a separação inicial, hierárquica e excludente, desde a entrada na
corporação, entre Oficiais e Praças. A reforma propunha uma formação unificada entre Oficiais e Praças
oferecendo, de um lado, um curso técnico-profissional (ministrado pela Polícia Militar) que abrangeria
todos os ingressantes na instituição, sejam os ingressantes através do concurso para praças, seja através do
concurso para oficiais; e, de outro: a) um curso superior a distância voltado para a administração institucional
de conflitos, o já mencionado Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social da UFF, que habilitaria os
Praças que o concluíssem a candidatarem-se ao oficialato; e b) um curso de especialização para os aprovados
no concurso para Oficiais. Aqueles que, já tendo qualquer formação superior, ingressassem diretamente
para a carreira do oficialato fariam o curso técnico-profissional ministrado pela PMERJ. A referida proposta
foi interrompida em janeiro de 2018, quando o então governador Pezão sancionou a Lei Estadual Nº 7.858,
tornando exclusivo para os bacharéis em Direito o acesso ao concurso para oficiais da PMERJ.
Esta súbita mudança de orientação ocorreu, como é de hábito na Polícia Militar, pela troca de seu
Comandante e, portanto, de sua assessoria. Deveu-se especialmente ao espírito corporativo e particularista
que move nossas corporações judiciárias e policiais, pois os oficiais da Polícia Militar pleiteiam transformar
suas carreiras policiais-militares em carreiras jurídicas, como são aquelas dos Delegados da Polícia Civil, em
função dos privilégios, especialmente financeiros, que elas proporcionam. Chama a atenção o fato que,
mesmo depois dessa lei que frustrou os policiais militares que tinham aderido ao curso visando sua mudança
de status profissional, as vagas do curso continuaram a ser preenchidas em sua totalidade, revelando que o
curso atendia a interesses mais amplos que os de servir de degrau para a ascensão profissional. Atualmente,
não há nenhum incentivo profissional na PMERJ para os policiais militares que se formam.
A construção do Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Tecnólogo em Segurança Pública e Social foi
uma versão sintética desenvolvida após e a partir da elaboração do PPC de Bacharelado em Segurança
Pública e Social, curso presencial pioneiro em Institutos Federais de Ensino Superior (IFES) no Brasil,
oferecido à sociedade civil desde março de 2012 pela UFF. Esses projetos foram criados após anos de
experiências em projetos de pesquisa, cursos de extensão e de pós-graduação lato e stricto sensu desde
1997 desenvolvidos pela UFF em parceria com diferentes instituições municipais, estaduais e federais
das áreas de Justiça Criminal, Segurança Pública e Direitos Humanos (Escola Superior de Polícia Militar do
Estado do Rio de Janeiro – ESPMERJ, Prefeituras Municipais do Estado do Rio de Janeiro – para Guardas
Municipais –, Instituto de Segurança Pública da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro,
Secretaria de Reforma do Judiciário e Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça,
Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, União Europeia etc.), e oferecidos
para os diferentes agentes do sistema de justiça criminal e segurança pública no país.
Essas experiências, juntamente com outras na área do ensino pós-graduado stricto sensu em Direito,
Antropologia, Sociologia e Direito, Ciências Criminais etc., propiciaram qualificação internacional para uma
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rede de pesquisa na área de administração de conflitos no período de 2000 a 2009. Em 2009, através de
projeto apresentado por essa rede e aprovado na Chamada MCT 15/2008 – quando foi um dos 11 na área
de ciências humanas e sociais dentre 126 aprovados – esta experiência acadêmica culminou na criação em
2009 do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração
de Conflitos (INCT-InEAC). O projeto foi novamente aprovado na Chamada MCT 16/2014, quando se
classificou dentre os 8 da área de Humanas entre os 104 financiados. Os INCTs têm por finalidade realizar e
internacionalizar pesquisas, formar quadros qualificados e, principalmente, transferir os resultados de seu
trabalho para a sociedade. O InEAC tem sua sede administrativo-acadêmica no Núcleo de Ensino, Pesquisa e
Extensão em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC), vinculado à Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-
Graduação e Inovação da UFF. O INCT-InEAC tem como objetivo colaborar com a inovação das tecnologias
sociais voltadas para a administração institucional e não institucional dos conflitos na sociedade brasileira,
a partir da produção de pesquisas empíricas de natureza etnográfica que permitam subsidiar a formulação,
o acompanhamento e a avaliação de políticas públicas na área da Segurança Pública e do Acesso à Justiça.
Em sucessivas avaliações por que passou o InEAC, o referido Curso de Bacharelado da UFF foi considerado
pelos avaliadores internacionais dessas agências de fomento à pesquisa e inovação como um produto
inovador e eficiente de transferência de conhecimento científico de ponta para a sociedade, ao reproduzir
e difundir institucionalmente uma tecnologia social inovadora. Esse curso foi também reconhecido pelo
MEC através da avaliação de cursos realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP) com a nota 5 (muito bom). Já o Curso de Tecnólogo a distância recebeu em sua
primeira avaliação a nota 4, também muito boa, num total de 0 a 5. Em 2016, o Curso de Tecnólogo
também recebeu o Prêmio de Excelência em Inovação em Desenvolvimento Social da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Esses cursos concebem em seu PPC a segurança pública como uma área de atuação
multidisciplinar, onde os estudos e as pesquisas em ciências sociais, do ponto de vista da sociedade, são
aplicados ao campo da Segurança Pública e Social; e não como um campo disciplinar específico vinculado
aos saberes jurídico repressivo e militar.
Essas experiências demonstraram que o campo da segurança pública, no Brasil, carece de uma formação
universitária institucional prolongada que, a partir do enfoque das Ciências Humanas, Sociais e Sociais
Aplicadas, desconstrua valores historicamente correntes nessa área e reproduza em seu lugar valores e
experiências introduzidas nas sociedades ocidentais a partir dos movimentos de instauração dos Estados
Democráticos de Direito e de seus principais efeitos no campo das relações entre o Estado e os cidadãos.
Por uma série de circunstâncias históricas, jurídicas e políticas, como a ordem imperial que preside a
instalação do Estado-Nação brasileiro, a intensidade, o volume e a permanência da escravidão e o próprio
caráter oligárquico do movimento que instaurou a República, criaram-se obstáculos para a introdução
plena, em nosso país, da representação contemporânea da igualdade jurídica, em que os diferentes
cidadãos e segmentos da sociedade têm um mínimo de diretos iguais para todos4. Nesse contexto,
em função dessa igualdade de direitos, quando divergem em seus interesses surgem inevitavelmente
conflitos que precisam ser administrados pelas instituições especializadas nessa área.
Decorre daí a necessidade de conceber a segurança pública como uma construção da cidadania e não
como uma imposição da ordem jurídica estatal instituída, a qual, no Brasil, com frequência reafirma a
desigualdade dos cidadãos e o tratamento desigual que é dado a seus conflitos pelas instituições
4 Cf. MARSHALL, 1967. Não é sem significado que até hoje a fórmula enunciada pelo intelectual liberal da República Rui Barbosa afirma a
igualdade dos semelhantes e a desigualdade dos diferentes: “a regra da igualdade é quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se
desigualam” (BARBOSA, 1999, p. 26).
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encarregadas de administrá-los perante a lei5. Assim, a ideia de igualdade universal de direitos mínimos de
todos os cidadãos não cria raízes e impede que a sociedade se nutra dos saberes normalizadores da vida
social, repousando, quase que exclusivamente, nas formas repressivas de controle social, próprias dos
processos institucionais de administração de conflitos entre desiguais (AMORIM; KANT DE LIMA; BURGOS,
2003; KANT DE LIMA, 2009). A consequência disto é que as instituições encarregadas da segurança pública
e seus funcionários não se veem como encarregados da prestação dos serviços e do exercício das funções
propriamente policiais e judiciais da ordem jurídica contemporânea, como administradores institucionais
de conflitos, mas como encarregados de sua repressão e supressão.
O PPC de Tecnólogo, portanto, enfatiza o aspecto “Social” em seu título, uma vez que o campo da segurança
pública no Brasil se confunde com a segurança do ponto de vista do Estado (em português, diferentemente
do inglês (public) ou do francês (publique), a categoria público na maioria das vezes é sinônimo de estatal).
Talvez por isso os saberes da segurança pública se constituem sobre duas matrizes ideológicas próprias da
preponderância do Estado sobre a sociedade, a da cultura repressivo-punitiva tradicional do campo jurídico –
que se encarrega de punir a posteriori conflitos criminalizados a priori – e a do campo militar, este incumbido
de exterminar os conflitos e os sujeitos que nele estão envolvidos – seus inimigos.
Contrariamente a essas perspectivas tradicionais, o curso busca compreender a Segurança Pública e Social
a partir do ponto de vista da sociedade, incorporando conhecimentos contemporâneos das áreas de
Sociologia, Direito, História, Antropologia, Ciência Política, entre outras disciplinas das Ciências Humanas,
Sociais e Sociais Aplicadas, que analisam criticamente as matrizes ideológicas do Estado brasileiro ao lidar
com os conflitos cuja explicitação e administração adequadas são inevitáveis serviços prestados pelo
Estado em sociedades democráticas e republicanas.
OS CONFLITOS EM FORMAÇÃO
Os conflitos presentes no curso demonstram como a convivência civil-militar é cercada por rupturas e
obstáculos epistemológicos na maneira de compreender a organização da sociedade e o lugar do conflito
nessa sociedade. A seguir vamos enumerar alguns deles:
A) ARMAS E FARDAS
Antes mesmo da instituição do curso, o primeiro conflito que surgiu foi relativo ao uso da farda e do porte da arma
dentro dos polos. Logo no primeiro vestibular criou-se um ambiente de insegurança entre as Diretoras de Polo,
uma atividade exercida majoritariamente por mulheres, nomeadas pelos Prefeitos no âmbito dos municípios em
que se localizam os polos do Consórcio CEDERJ, que pretendiam acautelar as armas dos policiais para que os
mesmos pudessem realizar as provas do vestibular. Cogitaram até mesmo chamar reforço policial para tanto. O
acautelamento foi realizado de forma incipiente em alguns polos, porém os próprios Diretores notaram que não
dariam conta de fazê-lo e as armas foram devolvidas onde isso ocorreu antes mesmo da prova começar.
Tal fato nos foi comunicado tardiamente. Posteriormente, explicamos nas reuniões com os Diretores de
Polo que existe um procedimento específico para acautelar a arma. Seria preciso que cada polo tivesse
5 Haja vista institutos jurídico-processuais penais, como a “prisão especial” e o “foro privilegiado por prerrogativa de função”, de acordo com
os artigos 29, 96, 102, 105 e 108 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e os artigos 84, 86 e 87 da Lei Nº 3.689 (Código de Processo
Penal), de 3 de outubro de 1941 (BRASIL, 1941).
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condições de realizá-lo – sendo necessário um cofre – porque os policiais são responsáveis pelas armas e
têm o direito de portá-las. Felizmente, não houve maiores conflitos durante o vestibular.
Este episódio, aliás, reproduziu o conflito que foi administrado no decorrer das várias versões do Curso
de Especialização em Políticas Públicas de Justiça Criminal e Segurança Pública, ministrado na UFF
desde 2000 e que, durante seis anos, foi obrigatório para a promoção de Oficiais superiores da PMERJ
e Delegados de Polícia. Ali também tivemos que instituir a frequência às aulas dos oficiais sem farda,
pois ela, além de não se mostrar adequada para que eles assumissem sua identidade e condição de
alunos da UFF, quando na Universidade, servia para reproduzir explicitamente a hierarquia entre eles,
fonte de intermináveis conflitos em uma instituição que se caracteriza pela igualdade e uniformidade de
tratamento entre alunos, entre professores e entre alunos e professores, admitindo apenas distinções
entre eles decorrentes do mérito acadêmico individual.
No caso do Curso de Tecnólogo EaD isso é mais relevante ainda porque no modelo de ensino a distância
do CEDERJ, o polo não reproduz a ambiance da Universidade, sendo que muitos polos estão sediados em
Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), onde ainda funcionam escolas estaduais nos respectivos
municípios. Assim, a mudança para um outro ambiente de socialização, propriamente universitária, não
ocorre, pois o contexto institucional permanece colegial, sendo apenas o clima de escola atenuado pela
presença dos tutores.
Outro conflito explícito em relação ao desenvolvimento das atividades do curso foi o descrédito dos alunos
em relação aos resultados das pesquisas. Todo o conteúdo das aulas foi escrito por professores conteudistas,
todos pesquisadores e pós-graduados, a partir de pesquisas suas ou de outrem, de caráter empírico, sobre
o sistema de segurança pública e justiça criminal. O contato com estes conteúdos e as discussões com os
tutores a distância nos fóruns apresentaram logo as formas de desqualificação pelos alunos de uma suposta
“opinião” dos pesquisadores a respeito da segurança pública, inscrita nos textos do curso. Assim, para além
de desconstruir a visão militarista e dogmática desses profissionais, os professores responsáveis pelas
disciplinas e, principalmente, os tutores experimentaram a versão policial do contraditório.
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dotada de autoridade. Assim, a disputa é resolvida não pela argumentação entre as partes, como ocorre em
sistemas adversários contemporâneos de administração judicial e extrajudicial de conflitos, mas pela decisão,
sempre arbitrária, de uma terceira parte dotada de autoridade. Essa lógica é uma derivação da escolástica
medieval (disputatio), que tem no argumento de autoridade, e não na autoridade do argumento, o cerne
do seu processo de decisão. Essa lógica é também utilizada para construir o saber doutrinário brasileiro,
reproduzindo as fórmulas medievais de ensino descritas por Berman relativas à Universidade de Bolonha, no
século XI (BERMAN, 1983; KANT DE LIMA, 2010; FIGUEIRA, 2021). Assim, é ela que preside o ensino do Direito
nas Faculdades de Direito do Brasil e se reproduz tanto nas condutas profissionais no judiciário, onde prevalece
a hierarquia dos tribunais, mas também na construção do conhecimento jurídico através do mecanismo de
oposição sistemática de doutrinas da dogmática jurídica. Quer dizer, quem define o que é verdadeiro naquele
momento não é o método científico de criação entre pares de um consenso provisório sobre os fatos, mas a
afirmação de uma autoridade dotada de poder decisório. Em suma, à autoridade do argumento opõe-se o
argumento de autoridade: quanto mais poder, mais saber (KANT DE LIMA, 2010).
Seguindo essa lógica, da parte dos alunos há uma expectativa de que seu ponto de vista sobre segurança
pública, forjado em sua prática profissional (SILVA, 2011), esteja correto e seja reproduzido pelo curso. O curso
se destinaria, desta forma, a carimbar universitariamente seu conhecimento profissional prático. Assim, os
alunos qualificam as pesquisas enquanto “opiniões”, que se opõem às suas, sendo que as deles seriam mais
abalizadas em virtude de seu saber prático, que os pesquisadores, em princípio, não deveriam possuir.
Por outro lado, o ensino das Academias das Polícias Militares ou Civis foi objeto de pesquisas durante o
projeto de criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), posteriormente aprovado no governo
Temer. Na ocasião da pesquisa, da qual um dos autores participou, foram visitadas a maior parte das
Academias de Polícia Militar e Civil dos estados brasileiros e constatou-se que seus currículos não abrangiam
ensinamentos de ordem sociológica sobre a segurança pública. Quanto às Academias militares, a principal
atividade era a Ordem Unida, e nas Academias de polícias civis, o direito penal e processual penal (SILVA,
2011; SANTOS, 2014, p. 11-30). Ou seja, nas Academias de polícia os alunos também não tinham contato
nem eram socializados no conhecimento acadêmico produzido através do método científico.
Em visita aos polos, um aluno certa vez perguntou: “Sociólogo pode conversar com a polícia?”. Os alunos
tomam as pesquisas por uma desqualificação ao seu trabalho. As discussões que versam sobre “opiniões”
contrárias aparecem como forma “democrática” de argumentar, que se oporia àquela da hierarquia
militar, na qual não é possível discordar. Assim, qualquer contenção dessa oposição infinita de opiniões,
pautada pela discussão de resultados de pesquisas empíricas, é classificada como “abuso de autoridade
do professor” e forma antidemocrática e idêntica em repressão àquela da estrutura militar de decisões
e comandos na caserna. Isso apareceu nos fóruns a distância do curso, como numa interação em que
uma tutora discutiu a postagem de vídeos pelos alunos. Um deles inseriu um vídeo da Raquel Sherazade,
uma jornalista do SBT, fazendo comentários para “aumentar a repressão”, e depois um outro estudante
retrucou apresentando um vídeo do Jair Bolsonaro, então deputado federal, com a intenção de contrapor-
se ao colega. As discussões sobre o conteúdo dos textos da aula ficaram à margem, como se fossem
válidas apenas as “opiniões” apresentadas nos fóruns. Os tutores fizeram um grande esforço para trazer
o conteúdo dos textos para as discussões, uma vez que o dissenso não se produzia sobre os mesmos
fundamentos argumentativos: a autoridade do argumento era submetida ao argumento de autoridade.
Um exemplo dessa versão policial da lógica do contraditório pode ser observado durante a chamada visita
acadêmica, cujo objetivo é socializar os professores com as demandas dos alunos em encontros semestrais
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presenciais nos polos. Numa dessas visitas, um aluno agente penitenciário uniformizado e portando sua
arma perguntou ao professor no início da apresentação: “Quem é você? Qual é a sua experiência prática
com segurança pública?”. Como mencionado acima, os diferentes saberes do campo da segurança pública se
apresentaram vividamente nas discussões com os alunos sob os argumentos de autoridade avalizados pela
“experiência prática” dos alunos. Estas opiniões trazem consigo esse conhecimento. Assim, eles assumem
que os argumentos das pesquisas empíricas, multidisciplinares e comparativas que compõem os conteúdos
das disciplinas são apenas “opiniões” dos tais “experts” em segurança pública (ou “policiólogos”, como foram
pejorativamente rotulados por um ex-secretário de segurança do RJ), que não têm a vivência de suas práticas.
Os alunos não opõem essas opiniões entre eles, mas contra os tutores e professores que atuam no curso.
A articulação da lógica do contraditório com o recurso à experiência serve para desqualificar os conteúdos
das disciplinas, impedindo-os de incorporar as formas acadêmicas de construção de consensos. O efeito
sobre os alunos se refletiu no fato de que eles não conseguiam aprender com aquilo que não concordavam
previamente. Além disso, os alunos redarguiam que não eram acolhidos pelo Curso. Um deles perguntou numa
visita acadêmica: “Por que a universidade não aceita a minha opinião? A universidade quer me catequizar?”.
Através de um seminário semestral de formação dos tutores, a coordenação orientou os tutores a não
discutir “opiniões” com os alunos, mas ater-se em discutir os textos das aulas. Essa orientação revelou-se
efetiva para normalizar pedagogicamente a relação entre alunos e tutores, na medida em que ambos se
viram ao mesmo tempo livres e impedidos de discutir suas posições políticas sobre os temas tratados nas
aulas. Isso permitiu um reforço da importância do material escrito que compõe as aulas. A orientação
tornou-se mais enfática ao longo dos períodos para que os tutores evitassem a categoria “opinião” com
os alunos. O objetivo da discussão não é opor “opiniões”, mas criar um consenso sobre o que e como se
pretende tratar os assuntos constantes nos textos.
Observe-se que, tanto na Polícia Civil, como na Militar, o Direito é a sua referência intelectual, em função
da autoridade exercida por essa área sobre as polícias brasileiras. E o Direito, no Brasil, constrói seu saber
sem a utilização de métodos científicos, mas com opiniões doutrinárias. E as doutrinas, como se sabe, são
expressões de um “vir a ser” jurídico que não se fundamenta na observação das práticas judiciais/policiais,
mas no argumento de autoridade dos seus intérpretes autorizados. Assim, esse mundo é um mundo das
opiniões, não da ciência. Quando confrontados com o saber científico os alunos só conseguem perceber
nele uma opinião “teórica”, da mesma forma que rotulam a doutrina jurídica de “teórica”, por estar
distante da prática. Mas diferentemente, no caso das teorias das ciências sociais, elas se fundamentam na
pesquisa empírica, enquanto que a doutrina não pretende ser construída a partir da prática, mas constitui-
se em mera especulação normativa ao sabor dos contextos e das autoridades do momento. Este é um
dos obstáculos mais difíceis de serem superados para estabelecer um diálogo profícuo (FIGUEIRA, 2021).
C) AS AVALIAÇÕES
Os profissionais da área de segurança pública não têm uma prática de tratamento igualitário, uniforme e
republicano dentro das suas corporações. O exercício de direitos é, na realidade, o acesso a privilégios (SILVA,
2011). O tratamento especial aparece nas solicitações insistentes de explicações particulares, evitando o
tratamento público e indiscriminado. Várias reclamações sobre as avaliações aconteceram porque as notas
eram iguais: os estudantes não entendiam como era possível vários alunos obterem a mesma nota; afinal, eles
são diferentes. Assim, eles se valem da seguinte lógica: “Se eu sou diferente, minha nota necessariamente
deve ser diferente da nota do outro”. Eles não compreendem que as notas semelhantes são o resultado de
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uma metodologia explícita de correção por comparação. Para enfrentar esse conflito que se repetia, porque
não havia um gabarito prévio para a correção de trabalhos discursivos, a nota máxima era atribuída à melhor
prova no universo de provas a serem corrigidas, isto é, àquelas de uma disciplina no mesmo polo. As demais
notas eram atribuídas em relação a essa. Isso se tornou uma orientação explícita aos professores e tutores
do curso para contornar os conflitos decorrentes dos pedidos de revisão.
Além disso, houve grande resistência ao fato de serem avaliados. Muitas reclamações decorriam do fato
de que os alunos não deveriam ser reprovados, como se o curso, sendo dado para profissionais, fosse
de aprovação automática: de novo, um direito transformado em privilégio. Nesse pedido de revisão
de nota, o aluno fez referência a uma desqualificação em razão da sua qualidade de policial, sugerindo
uma simpatia da universidade pelos transgressores: “Gostaria de pedir a revisão da minha ap3 [terceira
avaliação presencial], não concordo com essa nota que me foi atribuída, qual foi o intuito dessa faculdade
prejudicar policiais por conta do mal estar que causamos aos viciados?”.
Por outro lado, os alunos interpretam frequentemente a regra de revisão de nota dentro da Universidade
de maneira negativa, pois a nota pode ser mantida, aumentada ou diminuída quando há revisão. Quando
os tutores explicavam essa regra, os alunos a interpretavam como uma ameaça. Isso se tornou explícito
não só em vários e-mails, mas também em abaixo-assinados formulados pelos alunos reclamando desse
“tom ameaçador”. Eles compreenderam a regra como se a diminuição das notas pelo pedido de revisão
fosse uma punição. Os alunos não compreenderam o conhecimento da regra como uma estratégia para
se avaliar a pertinência da realização do pedido. Aliás, os pedidos de revisão não vêm fundamentados.
Muitos alunos assumem que a correção é uma forma de perseguição pessoal daqueles que corrigem.
Assim, eles consideram que o poder daquele que revisa é superior ao daquele que corrigiu a prova. A
errônea representação da existência de uma hierarquia de comando na Universidade análoga à do quartel
permitiria que o pedido fosse atendido e o trabalho da primeira correção fosse anulado pelo superior
hierárquico do professor.
Nessa mensagem, o aluno se referiu com ironia aos coordenadores de disciplina do curso:
Boa noite, recebi o email e mais uma vez a resposta prova a total falta de lisura deste curso, principalmente
nesta referida matéria. Discordo totalmente da nota atribuída e das observações feitas pelos tais expert em
antropologia do curso. Ainda assim, este aluno gostaria de ter vistas a sua prova corrigida. Aguardo alguma
resposta [Sic]. (ALUNO, grifo nosso).
Assim também ocorreu com um aluno que enviou uma reclamação dizendo que o tutor tinha avisado a
ele que a revisão da prova poderia implicar tanto aumento quanto diminuição da nota e, segundo estava
escrito nesse e-mail, em “tom ameaçador”. O coordenador explicou ao aluno que a informação dada visava
informá-lo sobre quais as melhores decisões que ele poderia tomar, porque é uma informação de como ele
vai se comportar sabendo que a nota dele pode aumentar ou diminuir. Então, isso seria uma informação
e não uma ameaça, mas os estudantes percebiam isso como ameaça, exatamente porque tinham uma
dificuldade muito grande de sustentar argumentativamente a formulação dessas insatisfações baseados
na certeza da correção de suas respostas em relação às questões da prova, apresentando apenas
reclamações contra a correção do professor por não terem obtido a nota que achavam merecida.
Essas reclamações vieram de forma esparsa e muitos pediam para não serem identificados. Assim, as
diretoras de polo encaminhavam várias reclamações à coordenação, porque os alunos tinham medo de
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serem retalhados, o que é uma suposição sem sustentação fática: primeiro, porque a coordenação não
corrige prova de ninguém; segundo, porque nós apoiamos e acompanhamos o trabalho dos professores
e dos tutores e nunca houve nenhum fundamento que indicasse algum tipo de perseguição a aluno
nenhum, fora desse contexto de queixas em relação às notas. Mas os estudantes insistiam nessa versão
persecutória que, certamente, como muitos deles nos disseram, estava vinculada à sua experiência com
o destino das reclamações na corporação deles e não na universidade. Este é um exemplo explícito da
confusão que fazem entre a disciplina e a hierarquia fundamentadas na atribuição de notas de acordo
com o mérito dos alunos e a disciplina e hierarquia que implica subordinação ao arbítrio da autoridade
sobre o “merecimento” de cada um e não às regras de aferição de desempenho.
Esse desconforto em relação ao tratamento igualitário e uniforme se apresentava todo o tempo. Uma das
reclamações que a coordenação recebeu é a de que os alunos achavam que a universidade era outro lugar,
que aqui não haveria o “autoritarismo” com o qual eles estão acostumados a serem tratados na instituição
militar. Então, na aula inaugural de Resende, o coordenador do curso perguntou para eles quantos deles
já tinham feito uma reclamação nas suas corporações; na turma de cem alunos, ninguém fez reclamação
nenhuma e, além disso, eles começaram a rir, dizendo que não adianta e que isso ainda causaria perseguição
dentro da corporação. Então, todos eles ironizaram esse tipo de pergunta na qual aparentemente se ignora
que a corporação militar é hierárquica e autoritária. Há aqui, nitidamente, uma confusão entre o exercício
da autoridade e a prática do autoritarismo, que são coisas muito diferentes; o exercício da autoridade nesse
curso é fundado na experiência acadêmica de pesquisa, que empresta ao conhecimento veiculado autoridade
pedagógica. Esta pode ser discutida em termos de erros ou omissões de caráter metodológico, mas nunca
descartada como mera opinião do professor ou do autor: são todos textos que se fundamentam em trabalho
de pesquisas empíricas e comparativas, cujos resultados foram julgados pelos pares e publicados, o que
lhes empresta autoridade para discorrer sobre seus temas. Por outro lado, o exercício da autoridade está
vinculado à obediência de regras, às quais todos devem obedecer. Então a autoridade é legítima quando se
exerce para fazer cumprir regras que foram criadas coletivamente nos órgãos universitários colegiados que
possuem representantes dos três segmentos da universidade, enquanto que o chamado autoritarismo é
exatamente a exigência da obediência ao comando, à ordem específica do superior hierárquico, certamente
parte essencial de uma instituição militar que se baseia na obediência estrita e automática ao pronto
comando, como em uma Ordem Unida, mas não em uma instituição de ensino civil.
A universidade, portanto, tem autoridade, mas isso não implica necessariamente em autoritarismo.
Estamos acostumados a receber reclamações dos alunos ou de quem quer que seja e a lidar com elas. Então,
isso tem que ficar explícito para os alunos, que eles não devem ter problemas em formular e encaminhar
essas reclamações, mas que elas devem ser refletidas e justificadas, o que muitas vezes não ocorre; elas
têm mais a ver com expectativas que eles tinham do curso e que não se realizaram. Os que reclamam, no
mais das vezes, são os que não conseguem aceitar o que o curso está oferecendo, pois não legitima seu
conhecimento e suas práticas cotidianas, absolutamente naturalizadas como certas e verdadeiras. Eles
não querem conhecer, eles querem re-conhecer e legitimar o que já sabem; certamente queriam outra
coisa. Então, eles percebem esse descompasso de expectativas como a prática de autoritarismo.
Uma outra questão está diretamente associada com a socialização dos alunos com a universidade. Para a
maioria deles, essa é a primeira experiência com a universidade pública ou particular. Os alunos não percebem
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na organização civil da universidade uma autoridade que os constranja a se esmerar na comunicação escrita,
como é comum nos procedimentos formais de comunicação nas polícias, em que a linguagem é orientada
pelos jargões e expressões policiais e jurídicas. Além disso, as interações escritas via internet favorecem o
descompromisso com as consequências da forma e com o uso de formalidades em relação àqueles a quem
o aluno se dirige. Assim, as expressões coloquiais e o tratamento informal são frequentes no âmbito dessas
interações. Associado a isso há um desrespeito sistemático ao tutor e aos professores.
Muitas reclamações debocham dos conteúdos, da organização das disciplinas e até mesmo das formas
de correção. Como as sanções acadêmicas não atingem o corpo dos alunos, como é o caso das sanções
militares, eles se valem de um tom irônico, como numa reclamação em que o aluno se pergunta “Deus no
céu e professor na terra?”. A reclamação abaixo foi encaminhada até a Ouvidoria da Universidade:
Bom dia!
Sou aluno do curso SPU, e desde o 1º semestre de 2014 enfrento problemas em relação a correção ou revisão
de provas. No 1º semestre fiquei reprovado na disciplina de introdução aos estudos de segurança pública, e
até hoje não obtive resposta, ou seja, já expirou todos os prazos, e agora no 2º semestre pedi a revisão da
AP3 em Antropologia do Direito, e até agora nada, acho estranho também uma grande quantidade de alunos
tirar nota zero na prova.
Estou desesperado, pois vejo que ninguém soluciona nada, já liguei para o pólo diversas vezes, já mandei
diversos email e ninguém sequer responde “olha recebi seu email cachorro”, já fui até o pólo, e o que me
passaram é que o responsável por essas respostas é o SR. PEDRO HEITOR, que eu não sei quem é, e quando
questionei como encontrá-lo responderam-me que é no campus da UFF, mas que é raríssimo encontrá-lo.
Não sei se já assistiram o desenho Caverna do Dragão, é um desenho onde os personagens não conseguem
encontrar a saída, pois é como eu me sinto, na caverna do dragão!
Estou muito decepcionado, sinceramente quando ingressei no curso tive uma boa impressão, que passou a
ser uma falsa impressão, quero aqui pedir encarecidamente PELO AMOR DE DEUS, liberem pelo menos para
eu fazer a inscrição nas disciplinas que são travadas por essas que estou pendente ainda!
Cabe ainda ressaltar que essa insatisfação não é só minha, mas de um número considerável de alunos.
(ALUNO, grifo nosso).
Os alunos desqualificam e mesmo procuram denunciar o comportamento irregular das pessoas que
podem ajudá-los, com o objetivo de encontrar uma acolhida nos “superiores” que confirmem suas
desconfianças quanto à competência dos tutores ou dos coordenadores de disciplina. Em razão de uma
falta de aceitação de sua demanda, os alunos debocham explicitamente do curso e dos professores, ao
contrário da experiência nos cursos presenciais, onde os alunos procuram se esmerar para encaminhar e
solicitar providências aos professores.
Assim, os pedidos de revisão de nota demonstraram uma desconfiança na atuação dos professores e
tutores. O direito de pedir a revisão da nota se tornou, nesse contexto, uma forma de pedir atenções
privilegiadas. Os alunos se justificavam com pedidos afirmando que “O professor não entendeu a minha
resposta”, ou “Estudei muito e não merecia a nota”. Não houve qualquer forma de reflexão a respeito
das justificativas que ensejavam a revisão. Nenhum pedido comparou a resposta do aluno com o material
didático pertinente, havendo apenas um caso de comparação com o trabalho de outro aluno para
legitimar as “opiniões” compartilhadas sobre o assunto. Houve uma desconfiança de que os tutores – que
são todos mestres ou doutores – não fossem capazes de corrigir as provas, e que os professores também
não. Numa outra vez, um aluno solicitou que a mensagem fosse encaminhada ao Reitor para que o mesmo
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A mensagem abaixo demonstra como estas demandas trazem consigo como os alunos compreendem as
práticas acadêmicas em relação à “nota baixa” que seria uma “represália” da coordenadora da disciplina:
Prezada Diretora, venho por meio desta me reportar sobre alguns acontecimentos no Pólo de [nome da cidade]
na Disciplina de Antropologia do Direito. Por ocasião da AD a Tutora Presencial corrigiu algumas provas, mas
a Tutora a Distância, ou seja, a Coordenadora da Disciplina recorrigiu dando novas notas para os alunos. Os
alunos reivindicaram suas notas que já haviam sido lançadas na plataforma (sic) e em represália a este
acontecimento, na AP2 deu nota baixa a grande maioria do curso, inclusive a esta aluna, e solicitei revisão
da AP2, que não obtendo resposta, fui obrigada a realizar a AP3, qual foi minha surpresa de ter sido repetida
a mesma nota de AP2, sendo solicitado também a revisão da AP3. Contudo até o presente momento não
foi revista, conforme solicitado, nenhuma das provas solicitado e na data de hoje termina a inscrição para as
disciplinas, o que eu mais posso? Solicitei ao Dr. Pedro Heitor por e-mail a intermediação da Coordenação da
Disciplina para que seja revisada minhas AP’s! Aguardo com ansiedade e esperança as solicitações feita por mim
e que seja feita justiça a esta aluna como os demais também! Desde já agradeço, fico no aguardo!
Aluna: [nome] matr. [número] do Polo [nome da cidade do polo].
Att, Paz e Luz, Sempre!! (ALUNA, grifo nosso).
Assim, podemos identificar pelo menos dois sérios obstáculos ao processo de socialização universitária: o
primeiro é que os policiais não identificam na autoridade acadêmica (que está fundada na experiência e no
mérito) uma legitimidade para exercer algum poder. Os tutores experimentam isso no momento de realização
das provas quando devem controlar sua aplicação. A prática da cola aparece não somente como uma forma
de desautorizar os tutores presentes, mas também como uma subversão das regras do mérito acadêmico
fundada na igualdade e na uniformidade de tratamento e oportunidades. As colas foram frequentes e
ensejaram muitos conflitos com os tutores e diretores de polo. Num caso de cola, o aluno resistiu fisicamente
ao tutor que pretendia tomar-lhe a prova. Os colegas se calaram e consentiram com a resistência. O tutor se
sentiu ameaçado. Posteriormente, o aluno disse que era “policial” e veio se justificar com a diretora do polo
por receio das consequências militares possivelmente geradas se o fato chegasse ao conhecimento da Polícia
Militar. Esse conflito foi administrado com uma aula pública com os alunos para discutir a questão. Durante
essa aula, um outro aluno, que se disse graduado em pedagogia, tentou justificar enfaticamente a cola do
colega alegando que ele colava porque não tendo tempo para estudar, porque estava trabalhando, não queria
tirar uma nota baixa pois tinha “muito respeito pelo curso”. Esse argumento simplesmente desconhecia a
função da prova como geradora de diferenças legítimas entre os alunos definindo o mérito próprio de cada
um, fundamento da hierarquia universitária. O aluno que colou pretendia abandonar o curso por “falta de
clima”. Outros casos também demonstraram como a arma e a farda são genericamente interpretadas como
ameaçadoras para os tutores e, em certos casos, podendo mesmo se tornar ameaças, mesmo que implícitas.
O segundo obstáculo, como já se viu, está baseado na supremacia que os alunos conferem à sua socialização
na Polícia Militar, onde a socialização prática supera em muito qualquer discussão teórica, inclusive aquelas
fundadas no campo jurídico, referentes aos direitos e às garantias da população. Como o aprendizado de nosso
direito se funda na reprodução de abstrações dogmáticas, e não em sua efetividade prática, a experiência da
socialização militar e o convívio nas ruas é que vai prevalecer na socialização dos policiais, mesmo quando se
opõem frontalmente às regras aprendidas na etapa de formação (SILVA, 2011; KANT DE LIMA, 2013).
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Por fim, esta ética policial (KANT DE LIMA, 2013) também orienta os usos dos instrumentos reivindicatórios
dos direitos. Há dois instrumentos familiares à vida civil-universitária que são utilizados pelos alunos
de forma muito particular. O primeiro se refere aos abaixo-assinados. Os alunos de alguns polos para
reivindicar à coordenação se organizaram e redigiram abaixo-assinados. Embora esta seja uma forma
percebida como própria de uma sociedade democrática e pluralista, os alunos (policiais) usaram esse
instrumento de forma diferente dos civis. O documento esteve aparecido não como uma forma de
explicitar reivindicações legítimas, mas para: a) reclamar de atribuição de notas; b) subverter regras; c)
solicitar privilégios; e d) repreender pessoalmente tutores e coordenadores de disciplina.
Os abaixo-assinados dos nossos alunos reuniram demandas de diferentes ordens que não condiziam com
seus usos na vida civil, pois não eram orientados por princípios de natureza ética e política explícitos. Ao
contrário, pareceram reforçar uma solidariedade desidentificada com algum representante específico.
Nesses abaixo-assinados, os estudantes ainda reproduziram todas as suas representações de hierarquia,
autoridade e poder da vida na caserna, partindo do princípio de que o coordenador ou qualquer outra
autoridade universitária poderia mandar em algum professor na universidade, como se a hierarquia
universitária fosse análoga a de uma cadeia de comando. O documento abaixo foi encaminhado à
Coordenação para que se tomasse providências quanto à nomeação do Tutor-coordenador, que funciona
como um apoio administrativo entre a Coordenação de curso e os Diretores dos Polos sendo, pelas regras
do CEDERJ, indicado pela Direção do Polo:
IMAGEM 1
Abaixo-assinado sobre a nomeação do Tutor-coordenador do Curso de Tecnólogo
em Segurança Pública – Polo São Gonçalo/RJ
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Como já mencionado, e é notório, reivindicações não são bem vistas na vida militar. Numa aula inaugural,
os alunos foram questionados se os mesmos poderiam formular pedidos em suas corporações. Em meio às
gargalhadas, um deles respondeu: “Pode, mas não deve, professor”. Isto é, reivindicar publicamente depõe
contra quem pede, a não ser que seja “coxado”, quer dizer, protegido e apoiado por alguma autoridade.
Assim, como na universidade não se estimulam nem se institucionalizam relações entre protetores
e protegidos, o abaixo-assinado despersonifica a reivindicação, evitando punições individualizadas e
permitindo uma maior licença da linguagem, uma espécie de vale-tudo sem culpabilizáveis.
Os alunos trazem para a universidade as representações sobre hierarquia e disciplina militares. Como
já mencionado, numa demanda um aluno solicitou que seu pedido fosse encaminhado para o Reitor, na
suposição de que o Coordenador, os Professores e os Tutores fossem, sucessivamente, subordinados ao
Reitor, como ocorre na caserna. Ora, na universidade, essa hierarquia é administrativa e está subordinada
ao princípio da liberdade acadêmica, que só pode ser limitada pelos órgãos coletivos de que fazem parte
os próprios pares, e não a uma hierarquia de comando único. O aluno não conseguindo encontrar uma
correspondência entre as representações da hierarquia militar e a hierarquia universitária concluiu que na
universidade não há hierarquia alguma, só “anarquia”.
A outra questão é a disciplina que é compreendida como obediência pelas corporações de segurança
pública. A disciplina para a universidade é o enquadramento nas regras da instituição, que incluem
formas de tratamento entre os pares e entre os três segmentos da universidade, professores, técnico-
administrativos e alunos, assim como as formas de aprender e compreender cada conteúdo – seja na
química, física, biologia, ciência política, sociologia, antropologia, direito etc. – que não são disciplinas
idênticas nem significam a mesma coisa. O processo de socialização é que permite construir o conhecimento
pelos consensos em cada comunidade científica.
Já a hierarquia das instituições de segurança pública impõe a obediência aos comandos, seja de acordo
com as hierarquias prévias estabelecidas, seja pelo fato de que em qualquer circunstância há um “mais
antigo” apto a comandar na ausência de um comando designado. Essa obediência é mantida pela forma
de sanções que não dizem apenas respeito às prisões administrativas, comuns na PMERJ, mas também às
perseguições aos policiais. No e-mail abaixo, o aluno expôs para a coordenação do curso as sanções que
ele recebeu por frequentar a universidade:
boa tarde
sou aluno do curso de tec em seg publica
[nome e matrícula do aluno]
sou policial militar e de cara no primeiro dia de aula presencial ja estou sendo perseguido!
durante a semana procurei minha chefia informando sobre minha matricula no curso e avisei a quem de
direito sobre a aula presencial dia e horario.
pois bem quando cheguei no trabalho ja fui avisado que estava no atraso.
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isto é, vou responder uma portaria e com grande chance de ser punido.
respeitosa e sinceramente a continuar assim fatalmente deixarei o curso.
desculpe o desabafo mas como respeitar e tratar com civilidade se não sou tratado com dignidade por meus
superiores [sic]. (ALUNO).
Vejam que a coordenação havia solicitado ao comando da PMERJ que liberasse os alunos para fazerem prova
presencial obrigatória, tendo sido atendida através de publicação de recomendação para tal em Boletim de
Serviço da PMERJ. No entanto, os comandantes de batalhão não estão obrigados a cumprir essa recomendação,
ficando a seu critério julgar a conveniência, ou não, de liberar o aluno. Esta reação negativa de alguns comandantes
com referência ao curso, em outras ocasiões também manifestada mais ou menos explicitamente, pode ser
mais explicitada em um comentário que viralizou na internet, do ex-governador do Paraná, Beto Richa. Ele foi
instado a justificar porque havia vetado a exigência de curso superior para concorrer ao vestibular da PM do
Paraná e esclareceu dizendo que os policiais não devem estudar muito, senão tendem a insubordinar-se e a não
aceitarem ordens de um superior hierárquico.6 Ou seja, Beto Richa faz uma alusão direta de que quanto maior a
ignorância, maior a propensão à obediência às ordens, o que implica dizer que a obediência não tem a ver com a
compreensão e a aceitação das regras, mas à subordinação cega – e ignorante – aos superiores7.
Por outro lado, a disciplina na Polícia Militar tem a ver com o corpo e todas as suas sanções também
recaem sobre ele. As sanções administrativas universitárias, que são repreensão, suspensão e expulsão
da Universidade, recaem sobre a vida administrativa do aluno, nunca sobre o corpo, pois nem a expulsão
impede a pessoa a ir à universidade. Ele apenas não será mais tratado como aluno.
Acresce a isso, a representação de que a universidade não tem hierarquia e disciplina, ou seja, que é uma
bagunça, porque a única forma de ordem reconhecida é a hierárquica, entre desiguais em poder, nunca
a forma normalizada, de aderência de todos às regras que vigem entre os iguais8. Por isso, a autoridade
é vista sempre como desigual, o que, de certa forma, deslegitima automaticamente os procedimentos
ordenadores da vida civil, que podem, então, ser desafiados, já que não há hierarquia que os suportem.
O paradoxo está dado, pois a polícia não está socializada para aderir às regras enquanto instituição, sendo
que ela teria, teoricamente, o papel de difundir a obediência às regras na sociedade. Ao invés disso,
difunde a obediência à própria polícia e aos seus comandos, e à sua particularíssima interpretação de
regras, casuisticamente elaborada, como sugere a mensagem do aluno.
Essa atitude, portanto, é sempre mascarada por uma exposição das regras de nosso direito (direitos
constitucionais que, como sabemos, não valem na vida militar brasileira por causa de exceções também
constitucionais) que não se aplicam nunca literalmente, mas estão sempre necessitadas de interpretação
para se fazerem cumprir no caso concreto (KANT DE LIMA, 2010).
Os procedimentos e as avaliações da universidade, quando transparentes, rompem com essa lógica policial.
Igualmente, os conflitos quando administrados com a lógica da vida civil rompem com a experiência dos
alunos que percebem a ordem na universidade como uma “anarquia”, porque não tem “hierarquia”. O
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estranhamento dos alunos os faz experimentar que a vida civil é um caos ordenado pelos instrumentos de
administração institucional de conflitos a serem acionados individualmente por eles.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para além de explicitar as diferentes moralidades vigentes nos modos de vida militar e universitário, essa
experiência demonstra que a convivência civil-militar apresenta conflitos nada triviais. O Curso de Tecnólogo
em Segurança Pública e Social a Distância da UFF não busca apenas ensinar conteúdos, mas também, e
principalmente, desconstruir saberes e práticas profissionais tradicionais, socializando os profissionais da área
de segurança pública imbuídos de uma ética militar e/ou repressiva nas formas de se relacionar na vida civil-
universitária. Essa socialização nos parece fundamental para que o profissional possa prestar os serviços de
segurança pública adequados ao modo de vida da sociedade contemporânea, exercendo inclusive um papel
pedagógico em nossa sociedade. Por outro lado, também socializa muitos civis – os tutores, principalmente
– com as questões próprias desses profissionais, como a construção da identidade com a arma, as formas de
sanções pela prisão administrativa e a maneira como esses profissionais lidam com o conflito.
Esses conflitos foram administrados pela coordenação de forma a tornar explícita a diferença entre as
referidas éticas. Esse exercício contínuo supõe criatividade para desconstruir nos alunos seus preconceitos
contra a vida universitária-civil, que se refletem em seu trato diário com a sociedade a que devem servir e
para envolver e socializar os alunos com formas cooperativas para lidarem com os desafios.
Além disso, este curso inverte a relação tradicional das Instituições de Segurança Pública com
a Universidade, pois foi criado – assim como o Bacharelado – não a partir do saber prático da polícia
legitimado por ela mesma, mas a partir de experiências de pesquisa na e da Universidade, que foram
incorporadas ao curso através de demandas de transferência de conhecimento pelas instituições.
O Curso reúne ainda os diferentes “profissionais das carreiras de segurança pública”, inclusive policiais
militares e civis, guardas municipais, bombeiros militares e agentes penitenciários, permitindo o diálogo
e a interação entre eles. Assim como as experiências dos cursos de especialização na UFF, os profissionais
têm a oportunidade de se conhecerem em igualdade de condições e, de alguma maneira, serem “colegas”.
Isso rompe com a tradicional desarticulação entre as diferentes instituições do campo da segurança
pública no Brasil (KANT DE LIMA, 2019; MIRANDA; MOTA, 2010; PAES, 2013).
Enfim, esta reflexão enseja questionamentos quanto aos paradoxos de uma sociedade que institucionaliza
suas hierarquias nas estruturas burocráticas do Estado. O estranhamento dos alunos com a Universidade
demonstra as descontinuidades da convivência civil-militar, mas também nos dá pistas de como
compreender os encaixes desse dilema (DAMATTA, 1979), ou “quebra-cabeça brasileiro”, onde uma
sociedade fortemente hierarquizada e, ao mesmo tempo, ciosa de sua Constituição pretensamente
republicana, demanda um tratamento igualitário por parte dos agentes de segurança pública que estão
inculcados de uma hierarquia excludente. Também deixa claro que não basta socializar os alunos nas
regras republicanas e democráticas para que eles assumam a postura pedagógica de reproduzi-las no
tratamento aos cidadãos que demandam seus serviços. É necessário e indispensável também que as
instituições policiais reformulem sua estrutura interna para que esta seja coerente com o tratamento
uniforme e universal de respeito aos direitos mínimos de seus membros, indispensável para a socialização
profissional para a realização dos ideais democráticos e republicanos que a sociedade reivindica.
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Conflitos em formação: a experiência da convivência civil-militar
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Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo
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Contribuição de cada autor: Carlos Roberto Guimarães Rodrigues realizou a pesquisa e escreveu o artigo, José Vicente
Tavares dos Santos escreveu o artigo conjuntamente e supervisionou o trabalho.
RESUMO
Existe uma história das inovações brasileiras no ensino policial. Na cena mundial, cada vez mais há estudos
sobre novos paradigmas na educação policial. Este artigo trata do ensino policial voltado à segurança cidadã,
tomando como referência empírica a análise dos cursos de formação da Brigada Militar do estado do Rio
Grande do Sul (BM/RS). Por meio de uma pesquisa quantitativa de cunho documental foram estudados
os avanços e os desafios neste campo pós-redemocratização, bem como a análise dos programas e das
disciplinas dos cursos de formação para ingresso na corporação e os percentuais de carga horária por curso
nas subáreas de ciências sociais, valorização profissional, gestão pública, tecnologias policiais, estudos
jurídicos, estágios e atividades complementares, buscando identificar avanços que proporcionem uma
formação cidadã e participativa aos profissionais de segurança pública. Os resultados apontam avanços com
a ampliação no rol de disciplinas humanísticas e um foco maior voltado à segurança cidadã.
Palavras-Chave: Ensino policial. Segurança cidadã. Segurança pública.
ABSTRACT
POLICE EDUCATION AND CITIZEN SECURITY: THE BRAZILIAN EXPERIENCES AND THE CASE OF THE RIO
GRANDE DO SUL MILITARY POLICE
The article deals with police education focused on citizen security, taking as an empirical reference the analysis
of the training courses of the Military Brigade of the state of Rio Grande do Sul (BM/RS). There is a history
of Brazilian innovations in police education. On the world stage, there are more and more studies on new
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paradigms in police education. Through a quantitative research of documentary nature, the advances and
challenges in this post-redemocratization field were studied, as well as the analysis of the programs and
disciplines of the training courses for entering the corporation and the percentages of hours per course in the
sub-areas of social sciences, professional development, public management, technologies police, legal studies,
internships and complementary activities, seeking to identify advances that provide citizen and participatory
training to public security professionals. The results point to advances with the expansion of the list of
humanistic disciplines and a greater focus on citizen security.
Keywords: Police education. Public security. Citizenship security.
INTRODUÇÃO
O tema do ensino policial e da segurança cidadã passou a se fazer presente em pesquisas e estudos
acadêmicos após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, com a inserção de diversos
dispositivos ligados à rotina da atividade do profissional de segurança pública, não sendo concebível a
intervenção do Estado nas lides sociais com inobservância das garantias conquistadas pelos cidadãos
brasileiros.
O interesse por tal temática também é motivado por recorrentes acontecimentos violentos e trágicos
envolvendo a atividade de polícia além da inconformidade da sociedade com tais fatos que suscitam a
discussão sobre aspectos da formação e capacitação destes servidores públicos, os quais devem pautar
sua conduta profissional com a relevância de sua contribuição social, servindo ao cidadão e zelando por
seu bem-estar e sua integridade, tendo sempre por meta a paz social e o respeito às leis.
No cenário internacional, desde a Conferência Mundial dos Direitos Humanos da Organização das Nações
Unidas (ONU), em Viena, em 1993, pode-se localizar centenas de reuniões mundiais nas quais a questão da
crise da polícia, da educação policial e da atuação policial tem sido discutida. Em 2016, houve a conferência
Global Trends in Law Enforcement Training and Education, organizada pelo Colégio Europeu de Polícia
(Cepol), em Budapeste, em outubro de 2016: “o tema abrangeu as últimas descobertas da pesquisa e
novas perspectivas para o treinamento e educação da aplicação da lei, para facilitar o progresso com base
científica neste campo de interesse público”. Em 2021, será realizada a conferência cujo tema é “Efeitos
da pandemia no treinamento e prática de aplicação da lei” (CEPOL, s/d).
Foi, ainda, publicado em 2018 um importante volume organizado por Bernhard Frevel e Colin Rogers,
intitulado Higher Police Education, em Londres. Este livro trouxe um exame crítico da educação e do
treinamento da polícia, defendendo uma maior educação científica entre a polícia em todo o mundo.
Expressa a preocupação com as ideias, os desafios, as demandas e a estrutura das condições da educação
policial de uma perspectiva internacional. Examinando uma ampla gama de países tais como Alemanha,
China e Brasil, para mostrar a natureza falha de um sistema educacional baseado puramente em uma
abordagem preocupada com o número de policiais, defende a necessidade de maior educação científica
entre os policiais de todo o mundo para atender os desenvolvimentos contemporâneos.
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Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 1994, quando foi expedido o primeiro Relatório de
Desenvolvimento Humano, conceito que se ampliou nos relatórios subsequentes, como no Relatório de
2007 que assim a descreveu: “[...] A segurança cidadã é consequência de uma condição necessária, embora
não suficiente, da segurança humana, que, em última análise, é a derradeira garantia do desenvolvimento”
(ONU; PNUD, 2007, p. 4).
Existe uma história das inovações brasileiras no ensino policial. Ela inicia-se nos anos de 1980, com o
professor Antônio Luiz Paixão, em seus estudos criminais e a relação com a Polícia Militar de Minas Gerais,
por meio da Fundação João Pinheiro (FJP). Depois, Teotônio dos Santos organizou os primeiros cursos de
direitos humanos para policiais no segundo governo Brizola.
Nas universidades federais, no caso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), esse diálogo
começou em 1993 com um seminário nacional. Entre 1995 e 1996, foi realizado o primeiro Curso de
Especialização em Violência, Segurança Pública e Cidadania, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da UFRGS, seguido por oito edições. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro,
na mesma época, Roberto Kant de Lima iniciou cursos para policiais que foram se ampliando com o
passar dos anos e hoje há um Departamento de Segurança Pública na UFF. Em 2003, a Secretaria Nacional
de Segurança Pública (Senasp) começou a elaborar uma Matriz Curricular Nacional (MCN), com ampla
participação de policiais, gestores e acadêmicos, que contou com duas atualizações, uma iniciada em 2005
e uma versão ampliada lançada em 2014.
Desde 2003, os Planos Nacionais de Segurança Pública (PNSP) passaram a formular uma concepção de
educação policial orientada para a proteção dos direitos constitucionais e fundamentais do cidadão
brasileiro. A formação unificada das polícias é fator imprescindível para a integração coordenada,
profissional e ética do trabalho preventivo e investigativo, tendo sempre como destinatário o cidadão, a
sua defesa e a proteção de seus direitos.
Nesse processo histórico, podemos registrar alguns acontecimentos que deixaram marcas, desilusões
e esperanças. Primeiro, observamos as experiências interessantes de “escolas integradas”, tanto no
Instituto de Ensino de Segurança Pública (Iesp), no Pará, quanto no Rio Grande do Sul, no governo Olívio
Dutra. As experiências de formação integrada que ocorreram no Brasil foram muito importantes, como
também foram fundamentais as experiências de convênios com universidades.
A terceira experiência foi a implementação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública
(Renaesp), pela Senasp do Ministério da Justiça (MJ), desde 2005. Embora tenha iniciado suas atividades
com o 1º edital de credenciamento/2005-Senasp/MJ, tendo como ponto de inspiração o projeto-piloto
realizado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que coordenou a primeira turma de pós-graduação
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em segurança pública pautada na MCN e com recursos exclusivos do governo federal, a Renaesp
foi instituída oficialmente só em 2012, por meio da Portaria Nº 1.148, de 12 de junho de 2012, sendo
justificada pelas necessidades de: fomentar estudos e pesquisas voltados à modernização das instituições
de segurança pública; valorizar os profissionais de segurança pública, incentivando-os a participarem de
cursos para aprimoramento profissional; promover estudos, pesquisas e indicadores sobre violência,
criminalidade e outros assuntos relacionados à segurança pública; e, por fim, fortalecer a articulação com
instituições de ensino superior na promoção da capacitação em segurança pública (PINTO, 2014, p. 227).
Em quarto lugar, desde a elaboração da Matriz Curricular Nacional, de 2003 até 2015, pela Senasp,
houve experiências de inovação curricular, processos de ensino-aprendizagem, metodologias didáticas
e integração institucional nas Escolas e Academias de Polícia, como tal analisaremos a seguir tomando
o caso da Brigada Militar1 do Rio Grande do Sul. Foi muito interessante também a experiência do Ceará,
quando o sociólogo César Barreira dirigiu a Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará (AESP/CE)2,
no período de 2011 a 2012.
Em quinto lugar, houve a proposta de uma Escola Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Enaesp)
apresentada em 2016 pela Senasp, do MJ, em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação (MEC). Seria um estabelecimento localizado
em Brasília, em articulação com as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) que apresentassem
projetos de mestrado profissional à Capes. Também foi proposta uma parceria com a Universidade Aberta
do Brasil (UAB) para apoiar cursos superiores de tecnologia em segurança pública, a fim de qualificar
os profissionais que ainda não tivessem curso superior. Foram identificadas algumas experiências de
mestrado profissional nesta área em várias IFES (UFPA, IFNMT, UEA, UFBA, UFRGS e UFS). Entretanto,
esta proposta não foi implementada.
Em sexto lugar, a educação policial foi definida como um dos temas na publicação denominada Agenda
de Segurança Cidadã: por um novo paradigma, produzida pela Câmara dos Deputados (2018). Foi inserida a
valorização educacional no eixo que trata da reestruturação dos sistemas policiais, dentro de um contexto
de uma agenda de segurança cidadã, apresentando as seguintes propostas: a) criar a Escola Nacional
de Altos Estudos em Segurança Pública (Enaesp); b) estabelecer parceria com a Universidade Aberta do
Brasil (UAB) para apoiar cursos superiores de tecnologia em segurança pública, a fim de qualificar os
profissionais que não tenham curso superior; c) construir um centro de excelência em ensino e valorização
dos profissionais de segurança pública para aumentar a qualificação técnica e cultural; d) resgatar a
Renaesp; e e) continuar a atualização da MCN da Senasp (BRASIL, 2018a, p. 29-30).
Também importante nesta análise, e que trouxe novas perspectivas para a formação policial recentemente,
foi a edição da Lei Nº 13.675/2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que dedicou
um capítulo específico à capacitação e valorização dos profissionais de segurança pública. Esta lei dedicou
um artigo à Renaesp, apontando dentre seus objetivos, no art. 40, VI, a difusão e o reforço na construção
1 Brigada Militar é o nome pelo qual a Polícia Militar (PM) é conhecida no estado do Rio Grande do Sul.
2 O relato desta experiência do Ceará está disponível em: MOTA BRASIL (2016, p. 411-413).
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de uma cultura de segurança pública e defesa social fundada nos paradigmas da contemporaneidade, da
inteligência, da informação e do exercício de atribuições estratégicas, técnicas e científicas (BRASIL, 2018b).
Com igual importância nesta análise da evolução do ensino no Brasil destaca-se o início da vigência do
Plano Nacional de Segurança Pública 2018-2028 que previu entre seus objetivos a criação de escola (ou
sistema) nacional de formação em gestão de segurança pública, serviços penais e defesa civil, visando
estabelecer um centro de excelência de produção de dados e de estatísticas na área de segurança pública.
Este artigo também tem por objetivo analisar a educação policial pós-redemocratização com o foco
voltado à segurança cidadã, procedendo à análise a partir dos dois cursos de formação para ingresso na
carreira dos policiais militares da Brigada Militar do estado do Rio Grande do Sul (BM/RS), que são: O Curso
Básico de Formação Policial Militar (CBFPM) para Soldados e o Curso Superior de Polícia Militar (CSPM)
para Capitães.
Por meio de uma pesquisa quantitativa de cunho documental foram pesquisados os avanços e os desafios
da formação dos profissionais de segurança pública pós-redemocratização com análise dos programas e
das disciplinas dos cursos de formação de soldados e oficiais, bem como os percentuais de carga horária
por curso nas seguintes subáreas: ciências sociais, valorização profissional, gestão pública, tecnologias
policiais, estudos jurídicos, estágios e atividades complementares, buscando identificar avanços que
proporcionem uma formação cidadã e participativa aos profissionais de segurança pública.
Buscou-se com a pesquisa analisar se a experiência da BM/RS, com a aderência aos ditames da MCN,
evoluiu no processo formativo no sentido de incutir em seus futuros profissionais um ensino policial
voltado à segurança cidadã.
Com a segurança cidadã ampliou-se o foco de atenção ao bem-estar das pessoas e aos direitos humanos,
reposicionando a cidadania como o principal objeto da proteção estatal. Neste sentido, uma formação
policial moldada aos novos tempos mostra-se fundamental, sendo que a própria sociedade brasileira,
com a inserção de um rol de direitos e garantias na Constituição Federal, ditou essa mudança de perfil e
atividades das forças de segurança.
Estudos de Detoni apontam que havia deficiências no modelo de formação policial pré-Constituição, pois era
centrado no “adestramento e força”, minorando a ênfase em conhecimentos científicos que objetivassem
melhorar o trato com a sociedade. Sobre a formação policial pós-Constituição o autor escreve que:
Há alguns avanços, mas as marcas de uma formação centrada na força, no adestramento e na repressão. [...]
havendo pouco espaço para uma formação mais ampla e aprofundada sobre a especificidade da profissão
policial, o contexto de ação, a complexidade social, as exigências psicológicas e éticas para o exercício
adequado diante das demandas da sociedade. (DETONI, 2014, p. 57).
Este mesmo argumento já havia sido defendido por Tavares dos Santos, que destacou a natureza
humanística da profissão do operador de segurança, visto que trabalha com pessoas normalmente nos
momentos em que estão sendo vítimas de crime ou violência, destacando que “o trabalho policial se
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realiza sempre na margem da vida, ou no limite da norma social, exercendo um poder de modo próximo
ao excesso” (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 78).
A segurança pública tornou-se um tema central na sociedade brasileira, especialmente com o crescente
aumento da violência e da criminalidade, onde os crimes contra a vida e contra o patrimônio tornam-se
cada vez mais rotineiros, sem se vislumbrar soluções a curto prazo deixando de enfrentar as verdadeiras
causas do problema. Neste cenário, é cada vez mais relevante uma formação profissional moldada a
enfrentar a criminalidade com mais eficiência e respeito aos direitos individuais.
A formação dos policiais brasileiros necessita constantemente de ajustes e adaptações com o intuito
de formar profissionais especializados capazes de empreender essa atividade necessária de maneira
mais eficaz, respondendo, à altura, ao anseio social por maior segurança pública. Sobre essa necessária
adaptação Nascimento (2013, p. 21) escreveu que: “[...] é de fundamental importância nas possíveis
intervenções que visam à efetividade do trabalho policial, considerar o exame de formação profissional
dos policiais militares”.
Uma criteriosa análise, tanto dos pontos positivos quanto dos negativos, das diversas escolas de polícia e
suas configurações de educação e formação, poderá resultar no formato desejado de futuros integrantes
destas instituições, responsáveis pela segurança pública balizando suas ações conforme previsão e limites
impostos pela Constituição.
Adaptações ao novo panorama apresentado pela Constituição Cidadã revela uma paulatina mudança
cultural nas escolas e nos cursos de formação policial. Segundo Mota Brasil, apesar da atividade de polícia
judiciária militar, das apurações administrativas de desvios de condutas e da responsabilização de policiais
que cometem desvios no exercício da função,
Ações governamentais previstas no primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), em 1996,
foram inseridas nos cursos de formação e treinamento, constituindo-se os direitos humanos, a ética,
a cidadania e a segurança pública, importantes eixos articuladores da formação policial constantes na
Matriz Curricular Nacional (MCN) da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), instituída pelo
Ministério da Justiça, no ano de 2003, adotada por quase todas as instituições policiais do país, cumprindo
o que havia sido determinado no PNDH.
Sobre o tema ‘“direitos humanos e formação policial” há diversas pesquisas acerca da inserção nos cursos
e treinamentos policiais, todavia ainda foi notada uma lacuna entre o conteúdo programático e a postura
dos profissionais de segurança pública na prática de suas atividades, conforme se destaca no texto abaixo:
[...] embora exista uma trajetória consolidada de defesa dos direitos humanos no Brasil, com sua incorporação
na legislação pátria e nas diretrizes basilares da política federal de segurança pública, em especial nos programas
de formação policial, ainda existe um hiato entre o que os policiais aprendem nas academias e os preceitos e
atitudes que incorporam e expressam no desempenho diário de sua atividade (SCHABBACH, 2014, p. 73).
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As diversas políticas públicas constantes dos planos, programas e projetos do governo federal na área da
segurança pública foram fundamentais para impulsionar as necessárias mudanças. Conforme demonstraram
estudos de Mota Brasil (2016) e Spaniol (2019), os cuidados e a preocupação quanto à formação, qualificação
e valorização dos profissionais da área de segurança pública, propondo ações que pudessem garantir uma
reforma substancial nas políticas de segurança pública, ou seja, que refletissem na atuação das polícias.
Uma destacada política pública que repercutiu no ensino das academias de polícia na busca por uma
segurança cidadã foi a elaboração da MCN pela Senasp. Apresentada em 2003, num amplo seminário
nacional sobre segurança pública, sofreu sua primeira revisão em 2005. Com a função da MCN em balizar
as ações para a formação dos policiais brasileiros, em todos os níveis de ingresso, está diretamente ligada
ao objetivo geral a que tal documento se propõe, qual seja: “favorecer a compreensão do exercício da
atividade de segurança pública como prática da cidadania, da participação profissional, social e política
num Estado Democrático de Direito, estimulando a adoção de atitudes de justiça, cooperação, respeito à
lei e repúdio a qualquer forma de intolerância” (BRASIL, 2014, p. 40).
Poncioni (2007; 2013) destacou, em seus estudos acerca do tema “formação em segurança pública”,
que a MCN alçou o ensino policial e sua formação profissional à agenda governamental, com o status de
uma política pública, considerando-se o lugar privilegiado na escolha de alternativas e propostas para a
problemática que envolve o desempenho de policiais para a efetivação de uma segurança cidadã no país.
Confirma-se, neste sentido, posição de Tavares dos Santos (2009) ao referir as marchas, os regressos
e os contrapassos da educação policial e das diversas transformações pelas quais estão passando
essas instituições de formação após a redemocratização do país, mudanças estas que necessitam ser
acompanhadas e (re)avaliadas; posição adotada e ratificada, também, por Ronilson de Souza Luiz (2003;
2008) ao defender dissertação e tese junto à PUC/SP sobre o tema “Formação de soldados da PM/SP
frente às demandas democráticas” e “Ensinar a ser policial”.
Percebe-se que “as instituições estão vivenciando um processo de mudança”, existindo um amplo leque
de políticas voltadas à educação policial, tanto por iniciativa do Poder Executivo, por meio da pasta
de Segurança Pública, quanto pelo Poder Legislativo Federal, todavia há muitos obstáculos a serem
transpostos para que essas proposições se tornem efetivas e até ampliadas a cada novo governo (TAVARES
DOS SANTOS; BARREIRA; MOTA BRASIL, 2018, p. 73).
Ao estudar mudanças do ensino policial nas escolas da Brigada Militar, Polícia Militar do estado do Rio Grande
do Sul, criada em 1837 como Corpo Policial, importante destacar que se trata de uma instituição de segurança
pública com 182 anos de existência e cuja trajetória histórica se desenvolve com a própria história do estado,
atuando em muitas frentes de batalha, principalmente durante a Revolução Farroupilha (SIMÕES, 2014)3.
De sua criação até o modelo atual a Brigada Militar mantém apenas algumas características similares
às das Forças Armadas, como a base institucional fundada na hierarquia e na disciplina, a ostensividade
3 Seguimos aqui a análise de Carlos Roberto Guimarães-Rodrigues, 2020 (em primeira versão, foi Dissertação de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Segurança Cidadã da UFRGS, 2019). Para o caso da Polícia Civil, cf. LARINI, Belchior Paim, 2020.
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Carlos Roberto Guimarães Rodrigues e José Vicente Tavares dos Santos
revelada no uniforme, nas viaturas, nos armamentos e equipamentos, além do escalonamento hierárquico
através de postos e graduações; mas a atribuição constitucional não se confunde com as Forças Armadas e
se caracteriza por proteger os interesses da sociedade no que diz respeito à segurança e à ordem pública.
Houve um momento histórico em que o Exército buscou alcançar a atividade de polícia a uma instituição
concebida para essa peculiar atividade pública, todavia esse relato explica a proximidade das Polícias
Militares às Forças Armadas, que permaneceram com a função paralela de Força Auxiliar do Exército
mesmo após a Constituição Federal de 1988. Neste mesmo raciocínio:
[...] Daí se depreende que, na realidade, naqueles tempos, quando a população era pequena e menor ainda
o número daqueles que se colocavam “fora da lei”, não existiam polícias. Ocasionalmente, a necessidade
de cumprir determinadas tarefas, hoje de competência dos órgãos policiais, resultava em que um grupo de
homens se reunisse para realizá-las. (RUDNICKI, 2007, p. 156).
As origens bélicas e de participação em revoluções, até mesmo em outros estados, marcaram o perfil da
Brigada Militar desde sua criação, mas também é importante considerar o poder de adaptação às novas
exigências sociais que se mostrou fundamental para a longevidade da polícia fardada do Rio Grande do
Sul, cuja trajetória histórica mostra-se muito semelhante às polícias de outros estados, algumas ainda
mais longevas, mas igualmente reconhecidas por suas participações históricas e até em conflitos bélicos.
Esta apresentação histórica inicial se faz necessária para uma melhor compreensão das diversas fases e
transformações do ensino na Brigada Militar, pois é bem distinta a fase bélica, mais ligada à força militar
nacional, até se chegar aos dias atuais, onde a prioridade é essencialmente a segurança pública cidadã em
consonância aos ditames constitucionais e de respeito às garantias individuais.
A atual atribuição constitucional das Polícias Militares não se confunde com a função precípua de
segurança nacional das Forças Armadas e, desde a Constituição Federal de 1988, os órgãos de segurança
pública têm bem definidas suas funções e passaram a utilizar currículos de cursos e materiais específicos
das instituições estaduais.
Pela complexidade e importância da atividade desenvolvida pela PM gaúcha desde sua criação até as
atribuições atuais, a preparação técnica e profissional dos brigadianos4 refletirá diretamente na eficiência
de seu desempenho funcional e nas estatísticas relativas à criminalidade, problema social que sempre
figura dentre aqueles prioritários e de maior preocupação a qualquer governo.
Por força do art. 131, §1º da Constituição Estadual de 1989, a formação, o aperfeiçoamento, o treinamento
e a especialização dos integrantes da Brigada Militar são de competência da própria corporação, ensino
que foi regulamentado através da Lei Nº 12.349, de 26 de outubro de 2005.
Destaca-se posição de Detoni (2014. p. 57) ao refletir que a “profissão policial militar é uma atividade
extraordinariamente complexa, difícil e séria, a qual exige grande habilidade e capacidade de
julgamento. Entretanto estas peculiaridades não são levadas em consideração, tanto no recrutamento
quanto na formação oferecida”.
4 Assim são chamados os policiais militares que integram a Brigada Militar do estado do Rio Grande do Sul (BM/RS), nome pelo qual esta
Polícia Militar (PM) é conhecida neste estado da Federação.
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e o caso da PM do Rio Grande do Sul
Carlos Roberto Guimarães Rodrigues e José Vicente Tavares dos Santos
O grande diferencial da carreira policial militar, comparativamente a outras profissões, é que o policial
necessita de muito treinamento antes de ser empregado na atividade de segurança pública, pois precisa
receber em sala de aula conhecimentos teóricos, práticos e técnicos sem os quais torna-se temerário seu
emprego, pois necessita estar preparado para resolver conflitos sociais e, em casos extremos, decidir
pela utilização de armamento letal. Portanto, os conhecimentos teóricos em técnica e legislação têm que
ser complementados com a compreensão de disciplinas de ciências sociais. Nesta linha de pensamento,
Simões revela que:
[...] tomando-se como referência inicial a dinâmica do ensino adotada nos dias de hoje, é do conhecimento
corrente que todo o policial militar, antes do seu emprego na atividade de policiamento, passa pela formação
inicial que se desenvolve por intermédio de curso de formação, com grau de exigência compatível com o
respectivo quadro ou carreira de ingresso na Brigada Militar. (SIMÕES, 2014, p. 354).
O processo de formação profissional bem planejado e que considere a importância social da atividade
policial em uma sociedade que testemunha o crescimento estatístico dos conflitos sociais e da violência
pode ser a chave para vislumbrarmos maior sucesso nas rotinas de policiamento e atendimento às vítimas
e no tratamento adequado que respeite os parâmetros legais e os direitos constitucionais daqueles que
cometem desvio de conduta.
Na Brigada Militar, os oficiais são militares de nível superior (dos postos de capitão a coronel) e no Rio
Grande do Sul, diferentemente dos demais estados, possuem apenas um posto que é de nível médio (1º
tenente), mas que mantém todas as prerrogativas dos demais oficiais.
Os oficiais de nível superior iniciam a carreira como capitães, posto ao qual são promovidos ao final do
curso de graduação em ciências policiais, podendo progredir na carreira, respectivamente, aos postos
de major, que exige aproveitamento em curso de habilitação, e de coronel, último posto da carreira, que
exige especialização em gestão pública.
Os oficiais são os gestores na instituição, o que exige formação em curso de graduação para o desempenho
das atividades que vão exercer, seja em atividades administrativas, operacionais ou de gestão de ensino,
além de cursos de especialização para ascensão na carreira.
Sobre o Curso de Formação de Oficiais da Brigada Militar (CFO), a partir da turma de 1974, foi exigido
prova intelectual em processo seletivo, idêntico ao ingresso a outros cursos superiores, inicialmente
com a UFRGS e, após o ano de 1978, junto à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/
RS), assim, os candidatos ao CFO passavam pelo mesmo processo seletivo (vestibular) que os demais
candidatos, porém com objetivo específico de ingressar, após formados, nos quadros de oficiais da
Brigada Militar, pois durante o curso, como aluno oficial, era considerado praça especial.
O perfil de um candidato a oficial de uma instituição policial militar oriundo do ensino médio, recém-
concluído, era formado, em sua maioria, por jovens com pouco mais de 18 anos de idade e alguns com o
serviço militar nas forças armadas recém-concluso. Rosa aponta que o CFO perdurou de 1978 ao ano 2000,
variando o tempo de duração entre três e quatro anos, com adequações em seu currículo, porém sendo
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equiparado a um curso de nível superior. Entretanto, “no final da década de 1990, a Brigada Militar, mais
uma vez esforçou-se em direção da qualificação dos seus quadros, e passou a exigir que os candidatos
tivessem o título de Bacharel em Direito5” (ROSA, 2010, p. 24).
Com esta alteração estatutária o perfil dos candidatos a oficiais da Brigada Militar mais uma vez sofreria
alteração significativa, porque agora não seria mais composto essencialmente por jovens que recém
haviam atingido a maioridade, pois o concurso, antes vestibular, agora selecionaria bacharéis em Ciências
Jurídicas e Sociais para cursar o Curso Superior de Polícia Militar (CSPM), que substituiria o antigo CFO.
Conforme previsão no atual Plano de Carreira da Brigada Militar, Lei Complementar Nº 10.992, de 18 de
agosto de 1997, o ingresso na carreira de nível superior exige a graduação em Ciências Jurídicas e Sociais
e se dá por meio de concurso público de provas e de títulos e, após a formatura no Curso Superior de
Polícia Militar, o aluno oficial é promovido ao posto de capitão (Cap) e recebe o título de bacharel em
ciências policiais.
Ao longo dos anos, esses cursos de especialização foram desenvolvidos por universidades em convênio
com a Brigada Militar, com destaque para a parceria firmada com a UFRGS no final da década de 90,
quando houve relevante atualização curricular, incluindo disciplinas de ciências sociais até então com
importância secundária diante da prevalência de disciplinas jurídicas e técnicas.
A relevância que receberam as disciplinas de ciências sociais nos currículos de formação e especialização
de policiais militares no Rio Grande do Sul perdura até os dias atuais, sendo inclusive aprimoradas sempre
que ocorre atualização curricular.
As praças da Brigada Militar são representadas pelas graduações de soldado, 3º, 2º e 1º sargento,
diferentemente de outras polícias que têm outras graduações, como cabo, subtenente e aspirante a
oficial, este último, considerado praça especial, pois a legislação estadual que estabelece os postos e as
graduações sofreu alterações por meio da Lei Complementar Nº 10.992, no ano de 1997.
Esta mesma Lei Complementar estabeleceu a separação dos servidores militares em duas carreiras, a
de nível médio e a de nível superior, todavia não necessariamente dividindo oficiais e praças, pois da
graduação de soldado ao posto de 1º tenente, que é oficial subalterno, ficou na carreira de nível médio e,
do posto de capitão ao último posto, coronel, na carreira de nível superior.
5 Esta mudança se deu com a troca do antigo Estatuto (LC Nº 7.138, de 30 de janeiro de 1978) pelo Estatuto atualmente em vigor (LC Nº
10.990, de 18 de agosto de 1997), além da Lei Nº 10.991/97 (que dispôs sobre a organização básica da BM) e a Lei Nº 10.992/97 (que fixou o
novo efetivo e mudou o plano de carreira).
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Ensino policial e segurança cidadã: as experiências brasileiras
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Historicamente, nos cursos de formação policial, percebe-se uma maior atenção às disciplinas da área
jurídica. Sobre esse privilégio em detrimento às disciplinas de ciências sociais, Jacondino afirma que:
este campo é constituído por disciplinas advindas das Ciências Sociais (direitos humanos, sociologia da
violência, antropologia criminal e outras) e procura inserir, nos ambientes formativos dos policiais, conteúdos
que conformem as práticas profissionais destes dentro de parâmetros ético/morais embasados nos direitos
humanos. (JACONDINO, 2015, p. 29).
No final da década de 90, os cursos realizados pelo Departamento de Ensino da Brigada Militar tiveram
uma reformulação em suas disciplinas, atualizando os currículos de acordo com os ditames da Constituição
Federal, que já completava a primeira década. As modificações nos conteúdos programáticos, até então,
se limitavam às disciplinas da área jurídica, mas com as primeiras parcerias com as universidades houve
uma quebra de paradigmas mais contundente.
Este momento histórico no ensino policial militar gaúcho ficou registrado por Guimarães ao descrever que:
Esse processo, na época, foi realizado entre o ensino interno da organização e as entidades externas,
especialmente no nível superior, o qual por mais de dois anos foi fruto de um trabalho conjunto com a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para reestruturação
dos cursos, no tocante ao conteúdo programático. Os novos currículos elaborados por esse grupo de trabalho
aumentaram substancialmente as disciplinas nas áreas da sociologia, filosofia, psicologia e administração.
(GUIMARÃES, 2015, p. 156).
A parceria com a UFRGS pode ser considerada uma iniciativa que mudou o perfil de formação e
aperfeiçoamento dos policiais militares gaúchos, pois a colaboração transcendeu a elaboração e a
atualização de currículos, sendo que professores também foram convidados a participar de bancas de
avaliação de trabalhos e ministrar aulas em cursos de formação e especialização, tanto de praças quanto
de oficiais, especialmente na área das ciências sociais, remanescendo a titularidade docente de policiais
militares como instrutores de disciplinas técnicas e jurídicas.
Independente do posto ou da graduação do policial militar, sua atividade não pode estar baseada apenas
em conhecimentos teóricos adquiridos nos cursos de formação ou especialização, devendo ser revisitada
e continuamente aperfeiçoada na rotina profissional e balizada em valores pessoais que o cidadão já
detenha quando selecionado para exercer essa profissão.
Ainda sobre o perfil desejado do cidadão que aspira ser policial, Rudnicki reflete que
no que tange à operacionalização do ensino, a primeira questão que se impõe é a razão de um jovem decidir ser
policial. Afinal isso irá definir o perfil dos sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem e deve pautar
as ações da corporação desde o processo e recrutamento até a seleção de professores e estabelecimento de
métodos. (RUDNICKI, 2007, p. 135).
O autor considera a vocação para o desempenho da profissão de policial fundamental para o sucesso
na carreira pois, além do risco à integridade física, as condições de estrutura via de regra desfavoráveis
podem ser decisivas à frustração profissional.
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e o caso da PM do Rio Grande do Sul
Carlos Roberto Guimarães Rodrigues e José Vicente Tavares dos Santos
Percebe-se que a intenção mais evidente com as mudanças curriculares sofridas pelos cursos de formação
de policiais militares foi adequar o perfil destes profissionais para um servidor capacitado a proporcionar
um atendimento justo, digno e respeitoso aos cidadãos, fazendo valer na prática as garantias firmadas
pela Constituição Cidadã.
Na Brigada Militar há duas formas de ingresso via aprovação em concurso público: para soldados, no nível
médio6, por meio do Curso Básico de Formação Policial Militar (CBFPM) e para oficiais, no nível superior7,
através do Curso Superior de Polícia Militar (CSPM) que formará os capitães.
Estes dois cursos de formação, por serem de ingresso na carreira, possuem a maior carga horária, sendo
que o CBFM, para soldados, possui 1.675 horas/aula (h/a) e o CSPM, para alunos-oficiais promovidos a
capitães ao final do curso, um total de 2.585 h/a. Além destes, há mais quatro cursos institucionais8 e
somente para o público interno progredir na carreira, que são: o Curso Técnico em Segurança Pública
(CTSP), com 800 h/a; o Curso Básico de Administração Policial Militar (CBAPM), com 620 h/a; o Curso
1
Avançado de Administração Policial Militar (CAAPM) e o Curso de Especialização em Políticas e Gestão de
Segurança Pública (CEPGSP), ambos com 555 h/a cada, conforme Tabela 1.
TABELA 1
Tabela 1
Cursos de Formação e Aperfeiçoamento na Polícia Militar do RS
Fonte: Departamento de Ensino da Brigada Militar – Divisão de Ensino e Treinamento (DE/DET), 2019.
Dos seis cursos regulares na Brigada Militar quatro são de formação: CBFM e CSPM (para ingresso), e CTSP
e CBAPM (para progressão na carreira); os outros dois são apenas de habilitação à promoção do posto
superior: CAAPM e CEPGSP, cujos requisitos, objetivos e funções encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2
TABELA 2
Tabela 2
Cursos da Polícia Militar do RS e seus requisitos, objetivos e funções futuras
Fonte: Departamento de Ensino da Brigada Militar – Divisão de Ensino e Treinamento (DE/DET), 2019.
Tendo por objetivo identificar avanços que proporcionem uma formação cidadã e participativa aos profissionais
de segurança pública que atuarão diretamente em contextos de violência e criminalidade, a seguir será feita
uma análise das categorias de classificação dos currículos das disciplinas dos dois cursos de formação para
ingresso na carreira da BM/RS por Subáreas (SAs), ou seja, o curso de soldados e o de capitães.
As SAs analisadas foram inicialmente apresentadas em estudo de Tavares dos Santos com base em uma
pesquisa de campo realizada entre 2010 e 2015 em 22 instituições de ensino policial no Brasil e com
pesquisa internacional acerca do tema em 15 países, sendo que o ponto de partida para classificar os
currículos dos cursos de formação, segundo estas categorias, extraídos dos temas do Sistema Europeu
de Educação e Treinamento Policial de 1996, foram: “ciências sociais, valorização profissional, estudos
jurídicos, gestão pública, tecnologias policiais, estágios e atividades complementares” (TAVARES DOS
SANTOS, 2019, p. 230-231).
Dentre as disciplinas por subárea estão, por exemplo: a) ciências sociais (sociologia da violência e
da criminalidade, relações humanas, ética e cidadania abordagem sociopsicológica da violência); b)
valorização profissional (saúde física, história da BM/RS, identidade corporativa); c) estudos jurídicos
(direito institucional, penal e processual penal, administrativo, penal e processo penal militar, etc.); d)
gestão pública (administração pública aplicada à função, inteligência policial, comando de frações,
processo decisório, tomada de decisão, etc.); e) tecnologias policiais (análise criminal, criminologia,
criminalística, uso da força e da arma de fogo, defesa pessoal, abordagem policial, policiamento a pé,
montado, ambiental, rodoviário, aéreo, etc.), além de estágios práticos ao final dos módulos.
Foram identificadas modificações significativas no CBFPM nos últimos tempos (antigo Curso de Formação
de Soldados – CFSd), sendo que algumas destas alterações se devem à obrigatoriedade de inserção da
disciplina de direitos humanos em todos os cursos e treinamentos da instituição, conforme disposto nos
Planos Nacionais de Direitos Humanos, assim como uma adaptação às orientações e recomendações da
Matriz Curricular Nacional.
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Conforme apontado no resumo dos cursos da Tabela 1, o CBFPM possui um total de 1.675 h/a divididas
em três módulos e um total de 53 disciplinas, sendo que o primeiro módulo é o chamado “propedêutico”,
com disciplinas introdutórias ao desenvolvimento da atividade policial, num total de 370 h/a. O segundo
módulo é denominado “polícia ostensiva” no qual, além de dar continuidade às disciplinas previstas
no módulo inicial, têm oito disciplinas específicas sobre polícia ostensiva (Doutrina, Técnica, Trânsito,
Motorizado, Ambiental, Operações Especiais, BOCOP/BOTC [sobre lavratura de Boletins e Comunicações
de Ocorrência Policial e lavratura de Termos Circunstanciados], Operações de choque e uso de instrumentos
de menor potencial ofensivo).
No terceiro e último módulo há uma inovação recente que é a formação em Ensino a Distância (EAD)
via Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), com 280 h/a subdivididas em três disciplinas: Condutor de
veículo de emergência (50 h/a); atividades complementares9 para formação de tecnólogo (180 h/a); e
metodologia científica (50 h/a).
Conforme Gráfico 1 percebe-se que as SA de técnicas e tecnologias policiais ocupa quase metade da carga
horária total, com 45,67% do curso, enquanto a SA de estudos jurídicos totaliza 21,19%, o que se justifica
pelo fato de formar os futuros executores do policiamento ostensivo e atividades preventivas de polícia,
sendo necessário um profundo conhecimento em disciplinas como: inteligência policial, uso da força e
da arma de fogo, decisão de tiro, defesa pessoal e das diversas modalidades e tipos de policiamento.
Igualmente se justifica o percentual de disciplinas jurídicas, considerando tratar-se de uma atividade
eminentemente legalista e o fato da quase totalidade dos alunos soldados não possuírem formação nesta
área do conhecimento.
Também é observada uma diminuta carga horária destinada a SA de ciências sociais (7,16% do total do
curso) comparativamente as SAs acima referidas, pois esta reúne somente três disciplinas no primeiro
módulo totalizando 60 h/a: 1) Sociologia da Violência e da Criminalidade e Abordagem Sociopsicológica
da Violência, com 20 h/a; 2) Ética e Cidadania (20 h/a); e 3) Relações humanas (20 h/a) e duas disciplinas
no segundo módulo, totalizando 60 horas-aulas: Direitos Humanos (30 h/a); e Polícia Comunitária (30 h/a).
Com o mesmo argumento que estamos tratando de futuros policiais que serão a linha de frente, avalia-
se que esta carga horária destinada à SA de ciências sociais deveria ser ampliada, pois desta forma
aumentaria a possibilidade de sucesso na esperada mudança cultural do perfil dos policiais com mais
respeito às garantias constitucionais dos cidadãos.
Ao final dos módulos um e dois há um estágio supervisionado, com 30 h/a cada um, preferentemente já
na unidade operacional onde os soldados atuarão, perfazendo 3,58% do total da carga-horária do curso.
9 Estas atividades complementares para formação compreendem a conclusão de três cursos em EAD da Senasp que são: 1) Análise criminal;
2) Português instrumental; e 3) Tópicos em psicologia relacionados à segurança pública.
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Gráfico 1
GRÁFICO 1
Percentual de carga horária por subárea no CBFPM
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados do DE/BMRS e em Tavares dos Santos (2019, p. 231).
O curso de formação de soldados tem especial importância, pois formará os profissionais que
representarão toda a instituição Brigada Militar, sendo, geralmente, os primeiros representantes do
poder público a chegar no local de ocorrência para atender ao chamado policial, sendo natural que
a instituição seja vista pela sociedade pelo nível de preparo técnico-profissional e pela postura dos
soldados, por isso a necessidade de atenção especial na sua formação, o que nem sempre se percebe.
Neste sentido Detoni destaca que:
Em regra, como os cursos de formação de soldados são realizados em várias cidades, conforme a deficiência
de efetivo e indicações políticas, os profissionais que lecionam no citado curso são integrantes da própria
instituição, muitas vezes sem qualquer formação em sociologia, psicologia, filosofia, ou qualquer outra área
das ciências humanas. (DETONI, 2014, p. 71).
Importante destacar a notada falta de policiais militares para integrar o corpo docente das escolas, pois
não há um quadro de professores com dedicação exclusiva, necessitando conciliar a docência com as
atribuições do posto ou da graduação. Uma solução para este problema poderia ser a celebração de
convênios com universidades ou a criação de quadro de instrutores, conforme ocorre em outras polícias.
O Curso Superior de Polícia Militar (CSPM) substituiu o antigo Curso de Formação de Oficiais (CFO) onde se
passou a exigir o diploma de Ciências Jurídicas e Sociais para ingresso, fato que gerou muitas modificações
na grade curricular, pois a exigência de escolaridade para o CFO era o ensino médio.
As 2.585 h/a do curso são divididas em quatro módulos e/ou semestres, totalizando 67 disciplinas, sendo a
maior carga horária de todos os cursos de formação da instituição, explicada por formar seus futuros gestores.
Analisando o Gráfico 2, justificado pelo fato de os candidatos serem bacharéis em Ciências Jurídicas e
Sociais, há considerável redução na carga horária da SA de estudos jurídicos (com 12,18%) em relação aos
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demais cursos de formação. Da mesma forma, 15,08% do curso é destinado à SA de gestão e administração
pública, também justificada pelas atribuições destes futuros profissionais que serão responsáveis pelo
comando de grandes efetivos da BM/RS e pela gestão de maior complexidade ao longo de toda a carreira.
A maior carga horária é destinada à SA de técnica e tecnologias policiais (com 48,16%) e, considerando
que os capitães atuarão diretamente na fiscalização e supervisão das atividades operacionais, deverão
deter conhecimento de toda a dinâmica da atividade policial. A SA de valorização profissional também
tem destaque na sua formação com 19,14%, justificado pelo fato de serem os futuros comandantes de
pelotões, companhias e batalhões.
Dentre as disciplinas do curso há muitas que foram inseridas após a implantação dos PNDH e da MCN,
como Direitos Humanos e Cidadania (30 h/a), Relações Humanas (45 h/a) e Estratégias de Policiamento
Contemporâneo (30 h/a). A inserção destas disciplinas foi fruto do atendimento de recomendações da
MCN apontadas pela Senasp. Também é importante destacar que algumas disciplinas que possuíam
conteúdo e origem dos manuais das Forças Armadas deixaram de constar do currículo dos cursos de
formação e atualização policial.
A crítica construtiva está na reduzida carga horária na SA de ciências sociais (2,32%), pois estamos tratando
dos futuros gestores e instrutores/professores das praças executores da atividade de policiamento da
instituição, por esta razão seria justificável uma oferta maior de carga horária às ciências humanas.
3
Outro ponto de crítica é que, dos quatro semestres/módulos do curso, apenas dois têm previsão de
estágio totalizando apenas 3,09% do total do curso, ou seja, durante a sua formação o futuro capitão
passa praticamente afastado da prática onde irá atuar diuturnamente após sua formação.
Gráfico 2
GRÁFICO 2
Percentual de carga horária por subárea no CSPM
Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados do DE/BMRS e em Tavares dos Santos (2019, p. 231).
Considerando o requisito da formação jurídica para ingresso no curso que objetiva formar os oficiais de
nível superior, essas disciplinas restringem-se ao Direito Institucional, Penal Militar, Processo Penal Militar
e Direitos Humanos, todas fundamentais para o exercício diário das atividades de um capitão de polícia
militar, pois estas não são ministradas no currículo dos cursos de graduação das faculdades de direito.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um sistema de segurança pública democrático passa, antes de tudo, por qualificação humana e capacitação
técnica dos seus operadores diretos, neste aspecto ratifica-se integralmente a posição de Tavares dos
Santos (2014, p. 31) de que não há qualificação sem educação e não há educação que possa depender
exclusivamente de aprendizado adquirido antes e fora das instituições.
Este estudo contemplou uma análise dos modelos de formação policial anterior e posterior à Constituição
Federal de 1988, especialmente no tocante aos cursos de formação de oficiais e praças, onde as disciplinas
de Ciências Humanas passaram a ter lugar de destaque na malha curricular adotada, em relação às
disciplinas jurídicas e técnicas.
A análise histórica mostrou-se relevante para nos permitir compreender as diversas fases das
transformações do ensino na BM/RS, pois constatou-se uma distância não só histórica como de atribuições
que distingue a Brigada Militar em sua fase bélica inicial da atual polícia militar gaúcha com atribuição
constitucional de polícia ostensiva e preventiva.
Da análise dos programas e das disciplinas dos cursos de formação e habilitação dos profissionais de
segurança pública da Brigada Militar extrai-se que, nos cursos analisados, houve inserção de disciplinas
de cunho humanístico, o que significou avanços na busca por uma formação policial cidadã, e somente
com planejamento e investimento adequado na área de formação policial teremos um profissional de
segurança pública dotado do perfil desejado ao atual texto constitucional.
Em conclusão, as instituições de ensino policial estão vivenciando um processo de mudanças, ainda que
não lineares e nem deterministas, cujos resultados parecem ambivalentes. Ora assistimos à reprodução
da cultura militarista e jurídico-dogmática, ora há mudanças importantes, a emergência de outras noções,
de outros conceitos, de outras pedagogias. Observa-se um leque de experiências de inovação que, em
vários lugares do Brasil, revela o quanto a sociedade brasileira tem sido capaz de propor um ofício de
polícia como um construtor da cidadania e um promotor de direitos humanos.
Tais experiências parecem ter sido orientadas por uma concepção epistemológica da complexidade
aplicada aos processos de educação das polícias, com objetivos bem específicos, tais como: superar
um saber fragmentado e apenas instrumental e construir coletivamente conhecimentos a partir de
situações concretas e do estabelecimento de conexões da teoria com a prática; promover a reflexão ativa
e reflexiva de todos os educandos; enfim, propiciar as condições para o desenvolvimento de hábitos,
comportamentos e responsabilidades éticas referenciadas aos direitos humanos.
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Ensino policial e segurança cidadã: as experiências brasileiras
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Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 50-69 69
ARTIGO
FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA
SEGURANÇA PÚBLICA DO RS: ANÁLISE
A PARTIR DOS SEUS CURSOS, SUAS ESCOLAS
E ACADEMIAS DE POLÍCIA
MARLENE INÊS SPANIOL
Doutora em Ciências Sociais e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS, Oficial da Reserva da Brigada Militar/RS, Conselheira
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e
Administração da Justiça Penal (GPESC) e do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de
Conflitos (Inct-INEAC).
País: Brasil Estado: Rio Grande do Sul Cidade: Porto Alegre
E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6536-898X
Contribuição de cada autor: Marlene Spaniol realizou a pesquisa e escreveu o artigo, Rodrigo de Azevedo escreveu o artigo
conjuntamente e supervisionou o trabalho.
RESUMO
O artigo trata da formação dos profissionais de segurança pública no estado do RS a partir da análise de
seus cursos, suas escolas e academias de polícia. Foram estudados os avanços e desafios neste campo no
período posterior à Constituição Federal de 1988 e à adoção da Matriz Curricular Nacional que buscou
uniformizar as ações formativas dos policiais brasileiros. Foram entrevistados gestores de ensino das
instituições policiais estaduais e analisadas as malhas curriculares dos seus cursos de formação, buscando
identificar avanços, desafios e mudanças na busca por uma formação mais voltada para uma perspectiva
democrática e aberta à participação social na gestão dos serviços de segurança pública. A metodologia de
pesquisa consistiu na análise bibliográfica e documental sobre o tema, em levantamento quantitativo das
disciplinas e cargas horárias, e pesquisa qualitativa por meio de entrevistas com os gestores de ensino. Os
resultados apontam avanços, com a maior aderência às áreas temáticas e aos eixos articuladores da Matriz
Curricular Nacional, ampliação no rol de disciplinas humanísticas e um foco maior na segurança cidadã.
PALAVRAS-CHAVE: Formação profissional. Segurança pública. Cursos de formação. Educação policial.
Escolas e Academias de Polícia.
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ARTIGO
Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
ABSTRACT
PROFESSIONAL TRAINING IN PUBLIC SECURITY OF RS: ANALYSIS FROM ITS COURSES, POLICE SCHOOLS
AND ACADEMIES
The article deals with the training of public security professionals in the State of RS based on the analysis of
their courses, their police schools and academies. The advances and challenges in this field after the Federal
Constitution of 1988 and adoption of the National Curriculum Matrix that sought to standardize the training
actions of Brazilian police officers were studied. Teaching managers from state police institutions were
interviewed and the curricular meshes of their training courses were analyzed, seeking to identify advances,
challenges, and changes in the search for more citizen and participatory training for these professionals. The
study methodology consisted of a bibliographic and documentary analysis on the subject, a quantitative survey
of the subjects, workloads and qualitative research with the teaching managers. The results point to advances
with adherence to the thematic areas and articulating axes of the National Curriculum Matrix, expansion in
the list of humanistic disciplines and a greater focus on citizen security.
KEYWORDS: Professional training. Public security. Training courses. Police education. Police Schools and
Academies.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo pesquisar a formação policial no estado do Rio Grande do Sul a partir
da análise de seus cursos, das suas escolas e academias de polícia, com o foco em uma formação com
perspectiva democrática e aberta à participação social na gestão dos serviços de segurança pública.
Conforme demonstram os diversos estudos de Tavares dos Santos (1997; 2006; 2009; 2014; 2019); de
Poncioni (2003; 2005; 2007; 2013; 2014; 2016) e de Luiz (2003; 2008), trata-se de um tema que passou
a ser mais debatido e pesquisado após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, que inseriu
diversos dispositivos ligados à rotina da atividade do profissional de segurança pública, não se aceitando
mais a atuação de agentes públicos sem a fiel observância das garantias conquistadas pelos cidadãos
brasileiros.
Na pesquisa de campo para este estudo foram analisadas as malhas curriculares dos cursos de formação
de todas as instituições que integram o sistema estadual de segurança pública do Rio Grande do Sul (RS),
que são: Brigada Militar1 (BM), Polícia Civil (PC), Instituto-Geral de Perícias (IGP), Corpo de Bombeiros
Militar (CBM) e Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Foram entrevistados gestores de
ensino destas cinco instituições, buscando identificar avanços, desafios e mudanças na busca por uma
formação capaz de orientar a atuação dos profissionais de segurança pública com base nos dispositivos da
Constituição Federal e nos princípios e conteúdos da Matriz Curricular Nacional (MCN).
1 Brigada Militar (BM) é o nome pelo qual a Polícia Militar (PM) é conhecida neste estado da Federação.
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Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Segundo o art. 144 da Carta Magna, os órgãos policiais estaduais que integram o sistema de segurança
pública são: as polícias civis, as polícias militares e os corpos de bombeiros militares e as polícias penais,
recentemente incluídas através da Emenda Constitucional Nº 104/2019. Já pela previsão do art. 124 da
Constituição Estadual/RS, de 1989, além da polícia civil, da polícia militar e dos bombeiros militares, há
também a inclusão do Instituto Geral de Perícias (IGP). A Susepe, embora não componha o rol de órgãos
de segurança pública que estão citados no art. 124 da Constituição do RS, encontra-se em capítulo à parte
dentro do Título IV que trata da Ordem Pública.
Embora o processo formativo dos integrantes da segurança pública seja independente em cada uma
destas instituições policiais, a formação dos integrantes da PC, da Susepe e do IGP no RS ocorre no
mesmo espaço físico desde 2017, quando foi inaugurada a Academia Integrada de Segurança Pública
(Acisp), passando a ser sede oficial da Academia da Polícia Civil (Acadepol), do Núcleo de Ensino do
Instituto Geral de Perícias (NE/IGP) e da Escola do Serviço Penitenciário (ESP). A Secretaria de Segurança
Pública (SSP/RS) justificou esta unificação de espaços com o objetivo de promover a integração na
formação e capacitação dos servidores da segurança pública gaúcha e para reduzir as despesas com a
locação de imóveis. Sobre a criação deste complexo de ensino, o então Secretário de Segurança Pública,
Cezar Schirmer, destacou que:
O projeto de criação do complexo da Acisp teve início em 2007, está localizado no bairro Jardim Carvalho,
na zona leste de Porto Alegre e ocupa uma área de 19.269 metros quadrados. Sua estrutura foi dividida em
partes iguais entre a Polícia Civil, Instituto-Geral de Perícias e Superintendência dos Serviços Penitenciários.
A academia conta com 25 salas de aula climatizadas, vestiários, restaurantes, laboratórios, alojamentos,
estacionamento, acesso em rampa para deficientes físicos e piscina olímpica. Foram investidos na construção
do complexo R$ 17 milhões, com aporte de recursos da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). [...]
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) estima uma economia superior a R$ 1 milhão ao ano – R$ 564 mil
apenas com o aluguel do prédio da Acadepol. Recursos que poderão ser investidos na melhoria das instalações
da Acisp, tornando-a ainda mais moderna e preparada para as diversas atividades desenvolvidas no local. [...] A
ação dá continuidade ao processo iniciado com a assinatura de um termo de cooperação entre a SSP, PC, IGP
e Susepe. O acordo faz parte das contrapartidas de um convênio existente com o governo federal, que prevê
a liberação de prédios alugados para a operação das escolas de formação. (RS, SSP, ACISP, 2017).
As duas únicas instituições de ensino voltadas aos profissionais da segurança pública do RS que não
utilizam o complexo da Acisp são:
1) A Brigada Militar, que possui instalações próprias em diversas cidades do estado, centralizando a
formação dos seus oficiais na Academia de Polícia Militar (APM), em Porto Alegre, e das praças em escolas
de formação policial nos municípios de Santa Maria, Montenegro, Osório e Porto Alegre, conforme
descrição adiante; e
2) O Corpo de Bombeiros Militar, que tem sua formação centralizada na Academia de Bombeiro Militar
(ABM), cuja sede foi herdada da antiga Escola de Bombeiros (Esbo), quando da separação das duas
instituições, no ano de 2014, conforme descrição posterior.
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Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Importante destacar que no início dos anos 2000 houve uma experiência pioneira de formação policial integrada
no Rio Grande do Sul, na gestão do governador Olívio Dutra, coordenada por um Departamento de Ensino
específico dentro da SSP/RS e com convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Esta
experiência foi descrita por Silva (2011) em artigo intitulado Na formação integrada de policiais, o intempestivo, o
conflito, a ambivalência, onde apontou que os alunos tiveram oportunidade de estudar conteúdos da Sociologia
da Violência, dos Direitos Humanos, dos Movimentos Sociais, da Ética e da Cidadania, do Ofício Policial, etc.
Destacou que: “estas disciplinas de acordo com seus planos curriculares, em termos gerais, visavam oferecer
reflexões críticas aos servidores da segurança pública” (SILVA, 2011, p. 271).
Guimarães Rodrigues (2020) também analisou esta experiência pioneira de educação policial na SSP/RS,
descrevendo-a com o seguinte enfoque:
Na busca por uma segurança cidadã no início dos anos 2000, vivenciou-se no Rio Grande do Sul, na gestão do
governo Olívio Dutra, primeiro governador do Partido dos Trabalhadores no estado, o que se pode denominar
de revolução na área do ensino das escolas das instituições de segurança pública, onde simultaneamente
houve uma revisão nos currículos dos cursos de formação, agregado a uma inédita aproximação destas
escolas com o mundo acadêmico através da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sendo que
este pesquisador atuou na condição de professor na chamada fase integrada, onde alunos da Brigada Militar,
Polícia Civil (PC) e Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) estudavam disciplinas comuns
dividindo as mesmas salas de aula, em especial relacionadas às ciências humanas, experiência que por si só já
trazia consigo relevante quebra de paradigmas e, por consequência, resistências e contrariedades por parte
de alguns comandantes, diretores e chefes destas instituições (GUIMARÃES RODRIGUES, 2020, p. 39).
Embora esta experiência tenha sido um marco e comemorada por gestores e pesquisadores na época
da sua implantação, ela sofreu resistência por parte dos integrantes das forças policiais envolvidas, e
acabou se resumindo tão somente a uma edição, sem continuidade. Como havia apenas um módulo inicial
integrado e os demais eram feitos em suas instituições de origem (BM, PC, Susepe e Bombeiros), muitos
dos aprendizados do “módulo integrado” acabavam recebendo críticas e sendo desmerecidos2.
Atualmente a gestão de ensino na Secretaria de Segurança Pública (SSP/RS) resume-se a uma pequena
divisão dentro do Departamento de Integração, Planejamento e Política de Segurança, porém sem
influência e nem participação no processo formativo dos integrantes das forças policiais, sendo que todos
os órgãos de segurança pública tratam da sua formação profissional de forma independente, como se
verá nos pontos a seguir.
A Brigada Militar do estado do Rio Grande do Sul foi criada no ano de 1837 com o nome de Corpo Policial
e sua trajetória é muito ligada à história do próprio estado, inclusive atuando ativamente nas revoluções
Farroupilha, Federalista e Constitucionalista, período em que não havia uma preocupação com a formação
profissional dos seus integrantes (SIMÕES, 2014; RUDNICKI, 2007).
2 Como policial e docente na época dessa experiência participei tanto do módulo integrado como da sua sequência na Brigada Militar, nos
Bombeiros Militares e na Polícia Civil e, não raras vezes, ouvia-se relatos de alguns alunos destas escolas de que haviam sido orientados a “esquecer”
o que haviam aprendido naquele módulo inicial e que somente a partir de então aprenderiam o seu ofício policial. Já por parte de alguns professores
e instrutores, ouvia-se o relato de que os alunos oriundos daquela experiência eram mais “indisciplinados” que os demais (AUTORA).
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 70-91 73
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Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Os primeiros passos sobre o ensino na BM/RS se deram no início do século XX, no período pós-proclamação
da República, sob o comando do coronel Carlos Pinto Júnior (1897-1909) quando foi criado um setor
cultural que visava “incutir em seus comandados uma nova mentalidade através do preparo intelectual e
técnico” (SIMÕES, 2002, p. 69).
Borges (1990), ao escrever sobre a história e a evolução da formação policial na BM/RS, diz que os primeiros
ensinamentos foram recebidos do Exército Brasileiro e sempre que era criada uma nova unidade, este
modelo de estrutura e formação das forças armadas era replicado. Destaca ainda que:
[...] Os primeiros instrutores da Brigada Militar eram oficiais comissionados do Exército e ficavam à disposição
do Estado dirigindo e fiscalizando a instrução na Corporação e, mais tarde, deram estrutura e direção às suas
unidades de ensino. [...] Inicialmente as unidades incluíam diretamente o número de homens necessários
ao preenchimento de seus claros, organizavam uma turma e a seguir formavam um curso de formação de
soldados, tudo de acordo com suas necessidades de efetivo. (BORGES, 1990, p. 16).
As primeiras escolas da BM/RS chamavam-se Escolas Regimentais, as precursoras das atuais escolas de
formação. Em 1911, em uma dessas escolas foi inaugurado, na Chácara das Bananeiras, o “Depósito de
Recrutas”, destinado à instrução dos voluntários que ingressariam na Corporação. Depois de submetidos
aos exames sobre os conteúdos ministrados, os recrutas eram declarados prontos para o serviço e
apresentados nos batalhões ou regimentos onde passariam a atuar. Foi nessa escola que mais tarde foi
instalada a Academia de Polícia Militar (BORGES, 1990; SAVARIZ, 1990; SIMÕES, 2002).
A formação dos policiais militares se tornou efetivamente uma realidade em 1916, passando a ter cursos
regulares na escola da Chácara das Bananeiras. Nesse período foi criado o Curso de Ensino que a partir de 1918
passou a se chamar Curso de Preparação Militar (CPM), voltado à formação dos oficiais da corporação. Em 1934
o local tornou-se o Centro de Instrução Militar (CIM), denominação alterada em 1967 para Escola Superior de
Formação e Aperfeiçoamento de Quadros (EsFAQ). Foi somente em 24 de outubro de 1969 que o complexo de
ensino da EsFAQ passou a se chamar Academia de Polícia Militar (APM), nome que possui até hoje (RS, BM, APM).
Diferentemente da formação dos oficiais que sempre ocorreu na APM, na capital do estado, a formação
das praças também sempre se deu em algumas cidades do interior. Atualmente as Escolas de Formação
e Especialização de Soldados (Esfes) estão sediadas em Porto Alegre, Montenegro e Osório, enquanto
que os sargentos são formados em Santa Maria desde 1970, inicialmente na Escola de Formação e
Aperfeiçoamento de Graduados (Esfag) que, em 1974, teve a mesma denominação que possui até hoje,
Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Sargentos (Esfas) (RS, BM, DE).
Por força do art. 131, § 1º da Constituição Estadual de 1989, a formação, o aperfeiçoamento, o treinamento e a
especialização dos integrantes da BM/RS são de competência da própria corporação, sendo que a regulamentação
do ensino se deu através da Lei Nº 12.349, de 26 de outubro de 2005 (RIO GRANDE DO SUL, 1989; 2005).
Atualmente a Brigada Militar possui quatro cursos regulares de formação, conforme Tabela 1, sendo dois
para ingresso na carreira após aprovação em concurso público, que são: o Curso Básico de Formação Policial
Militar (CBFM), antigo Curso de Formação de Soldados (CFSd), com 1.675 h/a; e o Curso Superior de Polícia
Militar (CSPM), antigo Curso de Formação de Oficiais (CFO), curso mais longo da instituição com 2.585 h/a,
sendo que ao final deste curso os alunos oficiais são promovidos ao posto de capitão. Os outros dois cursos
de formação são para o público interno, para evolução na carreira, ou seja: o Curso Técnico de Segurança
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Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Pública (CTSP), antigo Curso de Formação de Sargentos (CFS), que possui três módulos e um total de 800
h/a; e o Curso Básico de Formação Policial Militar (CBAPM), com dois módulos em um total de 620 h/a para
formação dos tenentes, sendo que este curso foi criado na mudança estatutária de 1997, através da Lei Nº
10.990 para promoção dos sargentos e representando o final da carreira de nível médio3.
O CAAPM e o CEPGSP, cursos de somente um módulo, ambos com 555 h/a, são pré-requisitos e apenas
habilitam os oficiais alunos (capitães e tenente coronéis, respectivamente) à promoção ao posto
imediatamente acima de major e coronel.
TABELA 1
Cursos de Formação e Aperfeiçoamento na Brigada Militar do RS
Tabela 1
De formação para Curso Técnico de Segurança Pública (CTSP) – para sargentos 03 / 25 800 h/a
evolução na
carreira
Curso Básico de Administração PM (CBAPM) – para tenentes 02 / 21 620 h/a
Todos os cursos estão em constante atualização, tanto em relação às cargas horárias, quanto aos
programas das disciplinas e à inclusão de novas referências bibliográficas, procurando alinhá-los cada vez
Tabela 2
mais com as diretrizes da MCN. A inserção de algumas disciplinas na modalidade de Ensino a Distância
(EAD) era um pleito antigo e foi efetivada para diminuir o tempo de duração da formação dos policiais e
Tipo de cursos Cursos do Corpo de Bombeiro Militar/RS Módulos /
para aproveitar os cursos oferecidos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp)
Carga
Disciplinasna plataforma
Horária
EAD. Atualmente esta modalidade não presencial passou a ser gerenciada pelo Departamento de Ensino
daDe formação
BM/RS, para Curso Básico
preferentemente de Formação que
com profissionais de Bombeiro Militar (CBFBM)
se qualificaram –
nas pós-graduações oferecidas pela
ingresso na para soldados 03 / 65 1.614 h/a
Renaesp 4
(CORONEL
carreira DIRETOR DE ENSINO DA BM/RS).
Curso Superior de Bombeiro Militar (CSBM) – para capitães 06 / 94 2.622 h/a
De formação para Curso Técnico de Segurança Pública (CTSP) – para sargentos 06 / 30 900 h/a
3 Conforme art. 14 da Lei Nº 10.990/97, o Estatuto dos servidores da BM/RS, a “carreira de nível médio” compreende as graduações de
evolução na
Soldado (Sd.), 2º Sargento (Sgt.), 1º Sgt. e o posto de 1º Tenente (Ten.). Já a “carreira de nível superior” possui os postos de Capitão (Cap.), Major
carreira
(Maj.), Tenente Coronel (Ten. Cel.) e Coronel (Cel.). Neste mesmo pacote de mudanças institucionais, a Lei Nº 10.992/97, que trata do plano
Curso Básico de Administração PM (CBABM) – para tenentes 03 / 38 1.165 h/a
de carreira dos militares estaduais, nos art. 16 e 23 extinguiu as graduações de cabo, subtenente e aspirante a oficial. A graduação de 3º Sgt.,
conforme art. 16, § 6º, ficou restrita à promoção por antiguidade dos soldados com mais de 20 anos de serviço, entrando em extinção gradativa,
revertendo os cargos, à medida em que vagarem, para a graduação de soldado (RIO GRANDE DO SUL,1997a; 1997b).
De Curso Avançado de Administração Bombeiro Militar – Só
4 A criação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp) é muito importante para a evolução da educação policial
aperfeiçoamento habilita os capitães do CAABM à promoção ao posto de major 01 / 12 360 h/a
no Brasil e foi instituída oficialmente em 2012, através da Portaria Nº 1.148, de 12 de junho de 2012, sendo justificada pela necessidade de
e habilitação
fomentar à
estudos e pesquisas voltadas à: modernização das instituições de segurança pública; necessidade de valorizar os profissionais de
promoção
segurança ao incentivando-os
pública, posto a participarem de cursos para aprimoramento profissional; necessidade de promover estudos, pesquisas e
superior
indicadores
Curso de Especialização em Políticas e Gestão da Segurança
sobre violência, criminalidade e outros assuntos relacionados à segurança pública; e, por fim, necessidade de fortalecer a articulação
Pública
com instituições de ensino superior e Defesa
na promoção Civil (CEPGSPDC)
da capacitação em segurança–pública
Só habilita
(PINTOàetpromoção
al., 2014, p. 227).01 / 12 360 h/a
ao posto de coronel
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A posição do atual gestor de ensino da BM/RS ratifica a posição defendida pelos gestores que o
antecederam, sobre a necessidade de constante atualização dos cursos de formação e aperfeiçoamento,
com a retirada de disciplinas ultrapassadas como, por exemplo, Operações de Defesa Interna e Territorial
(ODIT), que reporta a formação dos quadros do Exército Brasileiro, e a inserção de novas, como Direitos
Humanos, Mediação de Conflitos, Sociologia da Violência e da Criminalidade, dentre outras, conforme
apontou pesquisa realizada por Guimarães Rodrigues (2020).
A separação dos Bombeiros Militares da Brigada Militar no RS ocorreu no ano de 2014, sendo oficializada
com a aprovação da Emenda Constitucional Nº 67, de 17/06/14, assegurando, nos moldes como já
ocorre na BM/RS, no § 1º do art. 131, que a seleção, o preparo, o aperfeiçoamento, o treinamento e a
especialização dos integrantes do Corpo de Bombeiros Militar (CBM) são de competência da Corporação
(RIO GRANDE DO SUL, 1989).
Na separação das duas instituições a antiga sede da Escola de Bombeiros (Esbo) da BM/RS foi transformada
na Academia de Bombeiro Militar (ABM), que centraliza todos os cursos de formação, aperfeiçoamento e
treinamentos, conforme inciso III do art. 16 da Lei Complementar (LC) Nº 14.920, de 1º de agosto de 2016,
que dispõe sobre a Organização Básica do Corpo de Bombeiros/RS: “A ABM é responsável pelo planejamento,
controle e fiscalização das atividades relacionadas ao ensino e à pesquisa científica da Instituição e pela
capacitação continuada dos servidores e dos profissionais civis que exerçam atividade auxiliar de bombeiro
em âmbito estadual” (RIO GRANDE DO SUL, SSP, CORPO DE BOMBEIROS; RIO GRANDE DO SUL, 2016a).
Considerando que os cursos da BM/RS haviam sido alterados e atualizados recentemente com a mudança
estatutária de 1997, quando ocorreu o desmembramento do CBM, em 2014, a instituição optou por
manter os mesmos moldes e nomes de cursos, conforme explicitado na Tabela 2, apenas voltando o foco
na sua malha curricular para as funções constitucionais dos bombeiros militares.
A Tabela 2 aponta que os tipos de cursos adotados, ou seja: 1) de formação para ingresso na carreira;
2) de formação para evolução na carreira; e 3) de aperfeiçoamento e habilitação à promoção ao posto
superior, foram 100% adaptados do modelo de formação da BM/RS, assim como a nomenclatura dos
cursos, substituindo apenas a parte final de “Polícia Militar” para “Bombeiro Militar”, sendo que o número
de módulos e a carga horária variam de acordo com o objetivo de cada curso.
Outro ponto que permaneceu em comum nas duas instituições foram os requisitos de ingresso, tanto
para as carreiras de nível médio (de soldado a tenente), quanto na exigência de diplomação no curso de
Ciências Jurídicas e Sociais para ingresso tanto no Curso Superior de Polícia Militar (CSPM), quanto no
Curso Superior de Bombeiro Militar (CSBM) que formam os Capitães.
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TABELA 2
Tabela 2
Cursos de Formação e Aperfeiçoamento da ABM do CBM do RS
5 Os dois cursos de ingresso na carreira de Bombeiro Militar/RS possuem treinamento de “adaptação ao serviço de bombeiro militar”, sendo
que no curso para soldados esta fase totaliza 95 h/a divididas nas seguintes disciplinas: Atendimento Pré-Hospitalar (APH); Técnicas de combate à
incêndio; Fundamentos jurídicos do serviço de bombeiro militar; Preparação e adaptação para o trabalho em situações adversas; Adaptação ao meio
líquido; Adaptação ao ambiente vertical; Orientação; Saúde física; Noções de atendimento e remoção de vítimas em ambientes de risco; Noções de
salvamento terrestre. Para os alunos oficiais que ingressam no CSBM, a adaptação totaliza 50 h/a divididas em cinco disciplinas: APH; Técnicas de
combate à incêndio; Normas gerais do CBM/RS; Ordem unida; e Saúde física (RIO GRANDE DO SUL, SSP, CORPO DE BOMBEIRO MILITAR).
6 Acerca destes treinamentos de adaptação ao serviço de bombeiro militar, assim como também ocorre nos cursos de formação das polícias
militares, há uma série de procedimentos chamados de “currículos ocultos” que se estendem (ou podem se estender) ao longo dos cursos e que
não aparecem nos registros oficiais das escolas de formação. Embora não seja objeto específico desta pesquisa, estes fatos foram expressos como
motivo de preocupação na elaboração da MCN (BRASIL, 2014, p. 17) ao refletir sobre novos tempos e novas exigências, referindo expressamente
a “necessidade de reflexões e discussões sobre o [currículo oculto] presente nos rituais, práticas, relações hierárquicas, regras e procedimentos,
nos modos de organizar o espaço e o tempo da escola, e que conformam saberes não desejados no cotidiano escolar”, apontando, neste sentido,
o currículo oculto como aquele que envolve atitudes e valores transmitidos subliminarmente, através de rotinas do cotidiano escolar não
explicitadas nos planos e nas propostas e que, embora pouco percebidas, externamente têm grande impacto individual e na formação dos alunos
(MOREIRA, 2006). Luiz (2003, p. 43; 80) também refletiu sobre o tema ao escrever dissertação abordando o currículo de formação de soldados da
PM frente às demandas democráticas.
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A versão de 2014 da MCN dedicou uma área temática específica com recomendações à formação para o
exercício da atividade de bombeiros militares e, segundo a fala do gestor de ensino da ABM pesquisado para
este estudo, na transição da BM/RS para o CBM/RS houve uma preocupação em não mudar as estruturas
dos cursos aos quais os integrantes do CBM já estavam acostumados, fato que facilitou a transição do
processo formativo. Ressaltou que houve um cuidado para adequar todos os cursos e treinamentos à
inserção das recomendações da MCN (MAJOR GESTOR DE ENSINO DA ABM).
Os diversos cursos para formação de bombeiros têm disciplinas bem específicas para o exercício das
suas atribuições que se diferenciam bastante das abordagens e funções dos demais órgãos policiais, mas
como os bombeiros se separaram da BM/RS recentemente e continuam integrando o sistema estadual
de segurança pública, inclusive com o mesmo pré-requisito da formação jurídica para ingresso de seus
oficiais, eles compõem este estudo. Este fato, aliás, se repete em todos os estados da federação, tanto
que a MCN, versão 2014, inseriu capítulo específico para a formação dos bombeiros militares do Brasil.
A autonomia da Polícia Civil no Brasil se deu através da Lei Nº 261, de 03 de dezembro de 1841, assinada
pelo Imperador Dom Pedro II, sendo esta, também, a data de criação da Polícia Civil gaúcha, da então
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, porém incluída na Constituição Estadual apenas em 1947.
Atualmente a previsão na Constituição do estado encontra-se nos art. 133 a 135 e, assim como na BM e no
CBM, a Polícia Civil também tem recrutamento, seleção, formação, aperfeiçoamento e especialização do
seu efetivo assegurados constitucionalmente, sendo que a regulamentação se deu através das seguintes
legislações: Dec. Nº 37.489, de 10 de junho de 1997; Dec. Nº 52.588, de 08 de outubro de 2015; e Dec.
Nº 53.091, de 23 de junho de 2016, atualmente em vigor (RIO GRANDE DO SUL, 1989, Art. 134, § único).
No processo formativo, diferentemente da BM/RS que possui escolas de formação em vários municípios
do estado, a formação dos policiais civis é centralizada na Academia de Polícia Civil do RS (Acadepol),
localizada dentro do complexo da Acisp, e seus cursos são divididos conforme exposto na Tabela 3.
Também de forma diferente do que ocorre na BM/RS, onde os cursos são divididos por módulos e seus
alunos já são considerados servidores estaduais para fins de direitos, os dois cursos de formação da PC/
RS dividem-se em áreas temáticas e estes constituem a última etapa do concurso público a que estes
candidatos a futuros policiais civis se submeteram, sendo nomeados para seus respectivos cargos somente
após conclusão e aprovação no curso.
Pela análise da Tabela 3 percebe-se que os dois cursos, de delegado e agente, são muito similares tanto
nas áreas temáticas, quanto nas disciplinas e suas respectivas cargas horárias, sendo que o curso de
delegado possui a mais apenas a área temática de Metodologia da Pesquisa.
Ainda em relação às áreas temáticas que norteiam a malha curricular dos cursos de formação da PC/RS,
percebe-se um alinhamento direto com as oito áreas temáticas propostas pela Matriz Curricular Nacional
para ações formativas dos profissionais da área de segurança pública, que são: 1) Sistemas, Instituições
e Gestão Integrada em Segurança Pública; 2) Violência, Crime e Controle Social; 3) Conhecimentos
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Houve recente modificação dos cursos de escrivães e inspetores, que eram realizados separadamente e
passaram a ser curso unificado de agentes de polícia, porém no concurso público o(a) candidato(a) ainda
precisa fazer a opção para se inscrever para escrivão (ã) ou para inspetor (a). Outra modificação ocorrida
nas últimas edições foi na carga horária dos cursos, pois segundo estudo de Larini (2020) em 2003 o curso
tinha uma carga horária total de 1.220 h/a, já em 2014 passou para 930 h/a e, atualmente, pela Tabela 3
percebe-se que o curso conta com apenas 855 h/a, com duração entre seis e onze meses, o que representa
uma diminuição de 30% em relação à duração do curso de 2003. Segundo o art. 47 do Dec. Nº 53.091, de
23 de junho de 2016, os cursos de formação profissional da PC/RS terão a carga horária mínima de 800 h/a.
TABELA 3
Tabela 3
Cursos de Formação da Acadepol/Polícia Civil do RS e suas áreas temáticas
A PC/RS foi a primeira instituição de ensino policial do estado a implementar a disciplina de Direitos
Humanos em seu currículo no ano de 1987, que Tabela
passou a4integrar o conteúdo curricular a partir da edição
da Lei Estadual Nº 8.835/89, que regulou o ingresso de servidores na Polícia Civil do Estado e inseriu
no seuCursos Nºdisciplinas
anexo o rol de de Cargados
obrigatórias horária (h/a)
cursos Nº de policiais,
de formação aos cargos Carga Horária
reafirmando
Eixos de cada módulo ou eixo disciplinas
o princípio básico da formação de seus profissionais com o respeito e a garantia dos direitos humanosTotal
do curso
(SPANIOL, 2015, p. 12).
Técnico 4 eixos: Eixo 1 – Administração Penitenciária, 205 (teoria) + 50
Superior 4 Eixo 2 - Saúde e Qualidade de Vida, Eixo 3 - (prática) = 255
A preocupação com a temática de direitos humanos e o ensino policial aparece em vários estudos, sendo
Penitenciário Segurança e Disciplina, Eixo 4 – Relações 13 h/a
importante
(TSP)destacar a pesquisa de Schabbach
Humanas (2014) junto Social
e Reinserção à Acadepol, ao apontar que há um hiato entre
o que é ensinado na formação e o agir do policial na prática, que é preciso examinar como os direitos
humanos estão sendo operacionalizados e que:
[...] embora exista uma trajetória consolidada de defesa dos direitos humanos no Brasil, com sua incorporação
na legislação pátria e nas diretrizes basilares da política federal de segugurança pública, em especial nos
programas de formação policial, ainda existe um hiato entre o que os policiais aprendem nas academias e
os preceitos e atitudes que incorporam e expressam no desempenho diário de sua atividade. É necessário,
portanto, que sejam avaliadas as disciplinas e os conteúdos aprendidos nos Cursos de Formação Policial das
Academias de Polícia e os seus efeitos sobre o agir policial. (SCHABBACH, 2014, p. 73).
A partir de 2014 houve mudança na proposta pedagógica que passou a orientar o Curso de Formação
Profissional de Escrivães e de Inspetores de Polícia (atualmente curso de agentes), quando entrou
em vigor a nova versão da MCN da Senasp, visando proporcionar conhecimentos teórico-práticos que
permitissem um desempenho profissional satisfatório, através de disciplinas pertencentes às oito áreas
temáticas propostas na Matriz (LARINI, 2020, p. 93).
Com a adequação da malha curricular à MCN, em 2014, ocorreram mudanças também no foco da formação
policial, como apontou o projeto do curso de formação de escrivães e inspetores, que passou a ter os
seguintes objetivos:
1) Preparar profissionais com sólida e ampla formação técnico-científica, jurídica, administrativa e operacional
na área de Segurança Pública; 2) Ampliar conhecimentos que possibilitem aos alunos compreenderem a
construção histórica da polícia; 3) Contribuir na preparação do futuro agente para o exercício da atividade
como prática de cidadania; 4) Desenvolver a capacidade de autoaprendizagem do aluno e instaurar a
necessidade da busca de novos conhecimentos de forma crítica e constante; 5) Formar agentes policiais
capazes de harmonizar o convívio entre a instituição policial e a comunidade à qual servirão e que
compreendam a diversidade da realidade sobre a qual atuarão; 6) Capacitar os agentes, como promotores
dos Direitos Humanos, para agirem dentro das normas legais; 7) Possibilitar aos alunos o conhecimento de
técnicas que auxiliem na tomada de decisão e resolução de conflitos; 8) Conscientizar os futuros policiais
quanto ao seu papel no tocante à segurança, à orientação e à proteção dos cidadãos; 9) Reforçar habilidades
e atitudes desejáveis nos policiais; 10) Proporcionar aos alunos uma reflexão crítica sobre o papel do escrivão
e do inspetor de polícia junto à comunidade; 11) Sensibilizar os novos agentes para um fiel comprometimento
com a Instituição da qual farão parte; 12) Preparar os futuros agentes para exercerem a função de operadores
de Segurança Pública que tenham como princípio os valores da coisa pública (legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência). (RIO GRANDE DO SUL, SSP, POLÍCIA CIVIL, 2014, p. 4).
Esta preocupação com uma formação mais humanística e voltada para as diretrizes e recomendações da
MCN e dos Planos Nacionais de Direitos Humanos também se refletiu na fala da Diretora da Acadepol
quanto à obrigatoriedade da inserção da Matriz e à atualização das malhas curriculares a cada curso.
Destacou a necessidade de padronizar a formação no país, respeitando-se a possibilidade de adaptações
às realidades das diversas corporações e às peculiaridades locais, como é feito atualmente. Ressaltou que
além dos cursos de ingresso na carreira há também os de formação continuada, bem como os de pós-
graduação (especialização lato sensu para policiais civis na área da atividade fim), com um corpo docente
quase todo formado por policiais civis e alguns convidados externos, possuindo também uma revista
científica e concurso para seleção de docentes, tudo com uma equipe muito enxuta de servidores, aporte
financeiro limitado e otimizando os recursos disponíveis (DELEGADA DIRETORA DA ACADEPOL/RS).
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A posição da diretora da Acadepol é ratificada por Larini (2020) que analisou os currículos dos cursos de
formação profissional da Acadepol/RS e concluiu haver avanços na formação nos últimos anos, porém
sempre com atualizações e ajustes a fazer, citando como exemplo que o requisito para inscrição no
concurso de agentes é qualquer curso superior, onde aqueles que ingressam sem a formação jurídica
acabam tendo mais dificuldade que os demais na assimilação dos conteúdos em função da pequena carga
horária de disciplinas afins ao direito no curso de agentes.
A estruturação da política penitenciária foi incluída na Constituição Estadual dos art. 137 ao 139 e, diferentemente
da PC, da BM e do CBM, a responsabilidade pelo processo formativo dos seus agentes não integrou o texto
constitucional, porém o parágrafo único do art. 138 determinou que as questões atinentes ao seu quadro de
pessoal e às demais atribuições fossem regulamentadas por lei complementar, o que efetivamente ocorreu com
a entrada em vigor da Lei Nº 13.259, de 20 de outubro de 2009, que em seu art. 12 estipulou que “o recrutamento,
a seleção e a formação de candidatos para provimento de cargos e funções, em diferentes níveis de atuação da
Susepe, são de competência da Escola do Serviço Penitenciário” (RIO GRANDE DO SUL, 1989; 2009).
A Escola do Serviço Penitenciário (ESP) foi criada no estado do Rio Grande do Sul através da Lei N°
5.740, de 24 de dezembro de 1968, com a missão de formar e qualificar o servidor penitenciário para
as ações de execução penal. Atualmente a ESP se encontra junto ao complexo da Acisp onde realiza os
cursos para Agentes Penitenciários, Agente Administrativo e Técnico Superior Penitenciário, oferecendo
também cursos de extensão com o objetivo de manter um processo contínuo e permanente de ensino-
aprendizagem (RIO GRANDE DO SUL, SSP, SUSEPE).
Depreende-se da Tabela 4 que o processo formativo na ESP, diferentemente das outras escolas de polícia
no RS, se dá por eixos que variam de acordo com o cargo que será ocupado e com as funções que estes
servidores vão exercer no sistema penitenciário.
O curso de formação para Técnico Superior Penitenciário (TSP) destina-se àqueles profissionais que
exercerão sua formação acadêmica dentro do sistema carcerário, sendo que o último curso no RS se
deu em 2013 para os cargos de Assistente Social, Psicólogo e Advogado, podendo ocorrer também para
outras formações de acordo com a necessidade de vagas. O TSP é dividido em quatro eixos: Administração
Penitenciária; Saúde e Qualidade de Vida; Segurança e Disciplina; e Relações Humanas e Reinserção Social,
totalizando 255 h/a, sendo 205 h/a teóricas e 50 h/a práticas.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 70-91 81
da PC/RS com as 4. Fundamento da perícia oficial criminal – 50/50 h/a
respectivas cargas 5. Valorização profissional e saúde do policial – 40/40 h/a
horárias para Agentes e 6. Comunicação, informática e tecnologias aplicadas à polícia judiciária –75/50
ARTIGO
Delegados de Polícia, h/a
Formação profissional na segurança
respectivamente pública
7. Cultura, do RS: análise
cotidiano a partir
e prática dos – 10/10 h/a
reflexiva
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
8. Técnicas e procedimentos de polícia judiciária – 475/550 h/a
9. Metodologia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli da pesquisa – 30 h/a (só para delegados)
de Azevedo
TABELA 4
Tabela 4
Cursos de Formação da Escola do Serviço Penitenciário da SUSEPE/RS
Considerando as atribuições específicas da Susepe, sempre houve uma preocupação com a formação de
seus agentes, razão pela qual foi desenvolvida uma Matriz Curricular específica no ano de 2006, cujos
consultores (Bravo e Azevedo) destacaram que “o servidor penitenciário que entra no sistema se depara
com uma realidade complexa, marcada por uma série de discursos e práticas não articulados entre si e até
contraditórios” (BRASIL, 2006, p. 4). Destacaram também que por questões relacionadas à sua falta de
formação e/ou à carência de estímulos materiais, sociais e intelectuais, o imaginário de sua função acaba,
com frequência, limitando-se a um propósito disciplinar ou corretivo.
No ano de 2016 ocorreu uma atualização da Matriz Curricular para o Curso de Formação Profissional da
Escola Nacional de Serviços Penais (Espen) do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Foi lançada
oficialmente em 2017 e estruturou os cursos da Espen em seis eixos: 1) Fundamental; 2) Intermediário; 3)
e 4) Avançados 1 e 2; 5) Eixo final; e 6) Formação Complementar. Embora tenha sido adotada inicialmente
apenas para a formação dos servidores penitenciários federais, há estudos para padronizar e estender
esta formação também nas escolas penitenciárias estaduais (BRASIL, 2016).
Esta preocupação com a padronização das ações formativas dos profissionais que atuam na execução
penal foi destacada por uma ex-Diretora da ESP, ao referir que sempre houve uma preocupação em igualar
o processo formativo dos profissionais que atuam no sistema penitenciário e isto se refletiu na adoção da
MCN de 2006 e na sua atualização de 2016, cujos eixos já foram implantados na ESP da Susepe/RS, assim
como o foco voltado para uma formação mais humanística. Destacou que pode haver novas modificações
nas grades curriculares dos cursos a cada edição se houver nova recomendação ou alteração sugerida pelo
Depen (EX-DIRETORA DA ESP/SUSEPE/RS).
Um ponto positivo em relação às escolas penitenciárias é a comunicação das ESP estaduais com o Depen, como
demonstrou estudo realizado em 2020 que mapeou o ensino destas escolas em todo o Brasil, deixando clara a
existência de um canal interativo entre a “Escola Nacional e as Escolas Estaduais de Serviços Penais, consolidando
uma rede interinstitucional que visa o aprimoramento dos servidores das carreiras penais” (BRASIL, 2020, p. 39).
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A Susepe é a instituição pesquisada que possui a maior transparência de dados no que se refere à
formação de seus agentes, indo desde o manual do curso de formação, onde são delineados todos os
procedimentos a serem adotados pelos alunos acerca das normas e dos procedimentos internos durante
seu processo formativo, tais como: horários, frequência, avaliação, recuperação, recursos, classificação,
regimento disciplinar, formatura, dentre outras questões, possuindo também um manual completo com o
desenvolvimento das disciplinas dos cursos para servir tanto de fonte de consulta aos alunos, assim como
referência aos docentes.
A inclusão do IGP se deu como um dos órgãos integrantes do sistema estadual de segurança pública no
art. 124 da Constituição Estadual, tendo suas funções reorganizadas através da Emenda Constitucional Nº
72/2016 e incluídas no art. 139-A da Carta Estadual, prevendo o desenvolvimento de estudos e pesquisas
em sua área de atuação (RIO GRANDE DO SUL, 1989).
A Escola de Perícias do IGP é a mais nova dentre aos centros de formação dos órgãos que integram a
segurança pública no RS e foi criada através do Decreto Nº 53.983, de 22 de março de 2018. Assim como
a Acadepol e a ESP, também integra o complexo de ensino da Acisp. É responsável pela formação técnico-
profissional e pelo desenvolvimento de pesquisas e estudos, visando o avanço técnico da atividade
pericial, concretizando o que havia sido previsto no § 2º do art. 4º da Lei Nº 14.519, de 8 de abril de 2014,
ao dispor que “o servidor nomeado será lotado na Escola de Perícias do IGP, onde entrará em exercício
para realizar o Curso de Formação Profissional” (RIO GRANDE DO SUL, 2014b; 2018).
Embora ocupe um espaço junto à Acisp, a Escola de Perícias integra a Divisão de Ensino, Treinamento e
Formação Profissional, ligada à Direção Superior do IGP, cujos servidores, em função do pequeno quadro
de pessoal, atuam rotineiramente nesta Divisão e trabalham na Escola de Perícias apenas no período de
duração dos Cursos. A Divisão de Ensino e Treinamento desenvolve as seguintes atividades: 1) Coordenar
e executar as atividades referentes ao ensino ministrado em cursos do IGP e eventos correlatos; 2)
Realizar matrículas e cursos; 3) Prestar apoio ao corpo docente, fiscalizando e coordenando a execução de
currículos, conteúdos programáticos, horários de aula, distribuição das turmas, frequência de professores
e alunos, aplicação das provas e atividades correlatas; 4) Exercer as atividades referentes à disciplina do
corpo discente, formalizando os procedimentos próprios; e 5) Fornecer todos os recursos materiais e
audiovisuais necessários ao desenvolvimento dos cursos e eventos realizados pela Escola de Perícias (RIO
GRANDE DO SUL, SSP, IGP).
Todos os cursos realizados na Escola de Perícias do IGP, conforme Tabela 5, possuem um módulo básico
comum a todos, que totaliza 80 h/a divididas em oito disciplinas, que são: 1) Tópicos Jurídicos para
Servidores da Perícia; 2) Direito Penal Aplicado; 3) Cadeia de Custódia; 4) Documentos Administrativos;
5) Estrutura Legal e Administrativa do IGP; 6) Sistemas Informatizados e PGP; 7) Condução e Manejo de
Viaturas; e 8) Segurança de Armas de Fogo.
Já os módulos específicos dos cursos de Perito Criminal, Médico Legista e Técnico em Perícias (único de
nível médio), só iniciam após a conclusão do módulo básico; todos possuem carga horária de 240 h/a
cada um e são divididos em 26, 22 e 17 disciplinas, respectivamente, todas voltadas para a atividade que
exercerão após a conclusão do curso.
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TABELA 5
Cursos de Formação da Escola de Perícias do IGP/RS
Tabela 5
O perito diretor da Escola de Perícias informou que a ementa do curso de papiloscopista ainda está em
construção, visto não ter havido nenhum concurso para o cargo após a criação da escola do IGP, mas que
deverá ter similaridade com os demais cursos. Também destacou que o cargo de fotógrafo criminalístico
entrou em extinção, não haverá novos concursos e deixará de existir na medida em que os profissionais
que ainda atuam neste cargo vão se aposentando. Explicou que haverá uma revogação legislativa pois,
atualmente, ao se apresentarem para frequentar o curso, os servidores já são considerados efetivados do
IGP (assim como ocorre na BM e no CBM) e que o curso deverá voltar a ser a última etapa do concurso,
como acontece na Polícia Civil e no Susepe, pois perceberam redução de produtividade e de interesse dos
alunos durante o curso com esta medida (PERITO DIRETOR DA ESCOLA DO IGP).
Percebe-se que, mesmo sendo uma escola recentemente criada, há uma preocupação do IGP/RS em atualizar
todos os seus cursos e que, mesmo os profissionais ingressando nos seus quadros para exercerem as funções
na sua formação acadêmica, como no caso dos médicos legistas e peritos, por exemplo, há um módulo básico
igual para todos os cursos visando uma uniformidade no processo formativo de seus integrantes. A realização
deste módulo básico lembra a experiência positiva realizada pela SSP/RS, no início dos anos 2000, de formação
com módulo unificado em todas as escolas dos órgãos de segurança pública, descrita anteriormente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo tratou da formação dos profissionais de segurança pública no estado do Rio Grande do
Sul, fazendo uma análise das suas escolas e academias de polícia e das malhas curriculares dos seus cursos
de formação profissional.
A preocupação com uma formação adequada dos profissionais de Segurança Pública no Brasil tem se
refletido em iniciativas e proposições que foram sendo realizadas ao longo dos anos, tais como: 1) a
pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o MJ/Senasp (2013),
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intitulada Mapeamento dos modelos de ensino policial e de segurança pública no Brasil; 2) as diversas versões
da Matriz Curricular Nacional da Senasp para padronizar ações formativas dos profissionais brasileiros da
área de segurança pública, sendo que a versão em vigor é de 2014; 3) a Agenda de Segurança Cidadã: por um
novo paradigma, em estudo encomendado pela Câmara dos Deputados (2018), que dedicou um capítulo
exclusivo ao ensino policial; e, mais recentemente, 4) o Diagnóstico das Escolas Estaduais de Serviços Penais,
realizado pelo Depen, no ano de 2020, buscando uniformizar procedimentos formativos também aos
policiais penais (BRASIL, 2013; 2014, 2018a; 2020).
Neste mesmo sentido, de efetivar avanços no ensino policial, o Plano Anual de Ensino e Pesquisa (PAEP),
da Secretaria de Gestão e Ensino em Segurança Pública (Segen) da Senasp, previu a regulamentação do
Programa Matriz Curricular Nacional (PMCN) e sua atualização constante como uma das diretrizes para as
políticas de melhoria da qualidade na educação em segurança pública (BRASIL, 2021, p. 53).
Além dos documentos produzidos pelos órgãos oficiais acima citados acerca do tema da formação dos profissionais
de segurança pública, há também pesquisadores que têm acompanhado o tema e que destacam esses avanços
e desafios, como Poncioni (2013, p. 13), ao referir que “a MCN alçou o ensino policial e sua formação profissional
à agenda governamental, com o status de uma política pública”. Posições também referendadas por Mota Brasil
(2016), Luiz (2003; 2008) e Tavares dos Santos (2006; 2009; 2014; 2019) ao referirem e pesquisarem as diversas
transformações pelas quais estão passando estas instituições de formação policial após a redemocratização do
país, e como estas mudanças necessitam ser acompanhadas e constantemente reavaliadas.
Dentre os pontos de diferenciação nas escolas pesquisadas pode-se apontar que a BM/RS é a única
que possui diversos centros de formação espalhados pela capital e também pelo interior do estado,
enquanto que a formação dos integrantes do Corpo de Bombeiros está toda centralizada na ABM, na
capital, enquanto que o processo formativo das demais instituições: PC, Susepe, IGP têm suas escolas de
formação centralizadas na Academia Integrada de Segurança Pública.
As falas dos gestores de ensino também apontaram a preocupação em levar para o campo da formação
os avanços inseridos na Constituição, as medidas de curto, médio e longo prazo previstas nos Planos
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seus cursos, suas escolas e academias de polícia
Marlene Inês Spaniol e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Nacionais de Direitos Humanos, as recomendações da Matriz Curricular Nacional e a busca por uma
formação mais cidadã e participativa aos profissionais de segurança pública.
Desta forma conclui-se que, embora enfrentem desafios como as dificuldades de aporte financeiro,
a diminuição de seus efetivos e a distância entre o conteúdo curricular apresentado nas academias e
escolas de formação e a prática profissional, houve avanços no processo formativo dos profissionais da
segurança pública do estado do Rio Grande do Sul após a redemocratização, com a crescente adaptação
das malhas curriculares às exigências constitucionais e democráticas para a prestação de serviços de
segurança pública.
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Formação profissional na segurança pública do RS: análise a partir dos
seus cursos, suas escolas e academias de polícia
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ARTIGO
A PEDAGOGIA DO SOFRIMENTO EM UM
ACAMPAMENTO BOMBEIRO MILITAR
FÁBIO GOMES DE FRANÇA
Pós-Doutor em Direitos Humanos, Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Professor de
criminologia e Sociologia do Centro de Educação da PMPB. Capitão da PMPB.
País: Brasil Estado: Paraíba Cidade: João Pessoa
E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1917-840X
RESUMO
Neste artigo, por meio de uma pesquisa qualitativa de cunho documental, analisamos os depoimentos
testemunhais de alunos do Curso de Formação de Oficiais (CFO) do Corpo de Bombeiros Militar (CBM)
da Paraíba acerca de um evento pedagógico conhecido na cultura militarista por acampamento. Os
depoimentos colhidos fazem parte de um procedimento administrativo (Sindicância) realizado pelo
CBM da Paraíba para apurar trotes que ocorreram durante o acampamento através de uma pedagogia
do sofrimento imposta aos alunos. Em conclusão, destacamos o fato de como uma pedagogia militar
aplicada a futuros profissionais em formação que desempenharão atividades de caráter civil demonstra
ambiguidades quanto às suas finalidades, despertando-nos reflexões sobre a relação entre o respeito
forçado à autoridade e a aprendizagem para o exercício de vidas a salvar.
Palavras-chave: Pedagogia do Sofrimento. Bombeiro Militar. Acampamento.
ABSTRACT
THE PEDAGOGY OF SUFFERING IN THE FIREFIGHTER MILITARY CAMP
The article aims to analyze a firefighter military camp as a pedagogical event of the military culture. We used a
qualitative and documentary research through analysis of students’ written testimonials of the Officer Training
Course (OTC) in the Paraíba State, Brazil. The testimonials show abusive hazing took place at the military camp
for firefighters students through pedagogy of suffering. In closing, we highlight that there are contradictions in
this military pedagogy for firefighters students that will work developing civilian activities making us reflect on
the relationship between the forced respect to the authority and the learning for profession.
Keywords: Pedagogy of suffering; military firefighter; camp.
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ARTIGO
A pedagogia do sofrimento em
um acampamento bombeiro militar
Fábio Gomes de França
INTRODUÇÃO
A cultura diz respeito a um conjunto heterogêneo de elementos como símbolos, crenças, comportamentos,
que demarcam características de um grupo, um povo, uma nação, e até mesmo uma instituição, de
modo que as marcas culturais expostas pelos indivíduos, de certa forma, é o que revela sua presença em
sociedade. No caso específico dos aspectos culturais de uma instituição passamos a falar de uma cultura
organizacional. Assim, o que se torna alvo de nosso olhar e interpretação neste artigo é a cultura militar.
No caso do Brasil, a cultura militar, própria das Forças Armadas, torna-se extensiva às Polícias Militares (PMs)
e aos CBMs estaduais devido à herança imposta a essas organizações por meio da Carta Constitucional
de 1988 (aprovada após o regime político comandado pelos militares entre 1964-1985), que manteve
em seu texto o fato das PMs e dos CBMs serem Forças auxiliares, reserva do Exército. Essa herança, que
de maneira mais precisa remonta à criação das PMs e dos CBMs no Brasil, pode ser percebida, quanto
às questões formais, em três vertentes centrais: instrução ou ensino profissional, Justiça Militar e
regulamentos militares. Sobre o papel da cultura castrense própria dos quartéis, podemos perceber ainda
sua presença com mais força e vigor nas relações informais, como os trotes durante a formação de alunos
militares, além do sentimento de respeito apreendido em relação aos inúmeros símbolos como bandeiras,
estandartes, fardamentos, hinos, patronos e comportamentos condicionados como a continência1. E
mesmo que a Emenda Constitucional Nº 18 no Brasil tenha deixado clara certa divisão, sendo militares
aqueles que pertencem às Forças Armadas e militares estaduais, os policiais e os bombeiros militares
(BRASIL, 1998), ainda assim adotamos a perspectiva de que todas as instituições em conjunto envolvem
seus profissionais em uma teia complexa de situações culturais comuns experienciadas pelos indivíduos
que as constituem.
Essas experiências de contato com a cultura militar atingem certo ápice durante a formação profissional,
pela qual os alunos militares (não importa se das Forças Armadas, das PMs ou dos CBMs) passam a
conviver com um currículo formal (relacionado às disciplinas estudadas em salas de aula com viés teórico
e as matérias de cunho prático) e outro informal ou oculto (que ocorre diariamente tanto dentro quanto
fora das salas de aula, especialmente por meio das punições pelos desvios disciplinares cometidos
contra as regras militares). Nesse processo, o currículo formal e o informal acabam confundindo-se em
muitas situações e a naturalização dessa proximidade curricular cotidianamente vivenciada pelos alunos
faz com que a autovigilância para evitar as punições disciplinares (FOUCAULT, 1987) desenvolva nos
discentes militares a “disciplina consciente”, jargão utilizado nas casernas para explicar a adequação do
comportamento aos ditames das regras pedagógicas castrenses.
Só que a força da herança cultural do Exército nas PMs e nos CBMs demonstra um espírito de totalidade
quando a busca pela disciplina consciente torna-se o vetor principal da formação dos alunos, de modo
que, nos cursos militares, as tradições sobrepujam o papel profissional almejado. Melhor seria dizermos,
quando falamos da formação militar para bombeiros militares (BMs) e policiais militares (PMs)2, que
1 Segundo França (2020a, p. 24), a continência diz respeito ao “gesto utilizado pelos militares como forma de cumprimento e saudação entre
eles e deles para com os símbolos reverenciados na cultura militar como a bandeira nacional, por exemplo. Caracteriza-se por um gesto feito com
energia em um único tempo deixando o braço paralelo ao solo na mesma altura do ombro e o antebraço em um ângulo de 45 graus em relação
ao braço com a palma da mão estendida para baixo, dedos das mãos unidos numa postura rija e estes últimos tocando ligeiramente a fronte na
altura da testa”.
2 Percebam que no caso das Polícias Militares podemos utilizar a mesma sigla tanto para se referir à instituição quanto aos seus profissionais,
de modo que o entendimento depende do contexto no qual a sigla está sendo empregada.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 92-107 93
ARTIGO
A pedagogia do sofrimento em
um acampamento bombeiro militar
Fábio Gomes de França
eles se tratam de militares bombeiros ou militares policiais, invertendo a lógica da denominação que
os caracteriza. A formação militar nas casernas das Forças estaduais enaltece o ideal bélico criando, a
posteriori, dilemas em relação aos novos papéis que devem ser desempenhados no exercício da profissão,
no contato com a sociedade, o que reconhecemos ser um conflito entre “a caserna e a rua” (SILVA, 2011).
Entre as tradições militares copiadas do Exército pelas PMs e pelos CBMs temos os acampamentos
militares. Esses acampamentos consistem em momentos nos quais as aulas formais são suspensas para
que os alunos permaneçam em curtos períodos de tensão física e psicológica extrema (geralmente
de 1 semana), sob a tutela de uma coordenação pedagógica, para testar a capacidade de resistência à
obediência à autoridade e aos limites impostos ao corpo e à mente. São testes de sobrevivência que têm
origem nas Forças Armadas, as quais simulam situações de guerra para que os alunos tenham uma noção
do que pode ocorrer em uma guerra real na qual os recursos ficarão escassos e o trabalho em equipe será
fundamental para que todos sobrevivam. Geralmente esses testes de sobrevivência ocorrem em regiões
de mata fechada, próximas a rios ou represas, para que os alunos, trabalhando em equipe, aprendam
como obter recursos naturais para sobreviver.
É uma dessas experiências de um acampamento militar com alunos bombeiros que passamos a descrever
adiante a partir dos relatos dos próprios estudantes que nos forneceram cópias de seus depoimentos
em uma sindicância na qual foram testemunhas dos excessos praticados pelos Oficiais3 que estavam
à frente do treinamento. Os fatos ocorreram em 2018 durante um acampamento com alunos do CFO
para BMs na Paraíba.
O “CURRÍCULO DA SELVA”
Não existem escritos sobre experiências de acampamento militar entre alunos BMs no Brasil, isso porque
até aqui parece-nos que o campo acadêmico não despertou para os estudos sobre a relação entre os BMs
e a vida castrense e suas regras, o que nos faz levantar a hipótese de que essa lacuna talvez permaneça
devido à imagem social positiva atrelada à profissão bombeiro militar em nosso país. Recentemente,
em um estudo inédito realizado por França (2018), por meio de dados colhidos em portais eletrônicos,
encontramos a análise de uma série de mortes de alunos BMs durante a formação profissional em vários
lugares do Brasil. A pesquisa se debruçou sobre as consequências negativas advindas dos trotes militares
durante aulas de salvamento aquático com alunos BMs. Com o mesmo escopo, França e Ribeiro (2019)
analisaram a morte de um aluno soldado BM, ocorrida em 2016, a qual pode ter sido consequência do
‘caldo’4 sofrido por ele em uma instrução de salvamento aquático. Até a escritura deste texto, a batalha
judicial pela incriminação de uma tenente do CBM do Mato Grosso, que é a principal acusada da prática de
tortura pela aplicação do caldo ao aluno, está em trâmite na justiça (FERNANDES, 2020).
A busca pelo limite físico e psicológico é a tônica reinante em cursos e acampamentos militares que isolam
indivíduos em ambientes inóspitos para o homem com o intuito de testar sua capacidade de reação ao que
3 O modelo hierárquico das PMs e dos BMs é uma cópia do modelo organizacional do Exército que consiste em dois quadros distintos: o
das Praças (soldado, cabo, terceiro-sargento, segundo-sargento, primeiro-sargento e subtenente) e o dos Oficiais (segundo-tenente, primeiro-
tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel). Ao primeiro, em tese, cabem as funções de execução e, ao segundo, as funções de comando,
gestão e fiscalização.
4 O caldo é uma espécie de trote utilizado pelos BMs em aulas de natação e salvamento aquático, no qual o(a) aluno(a) é literalmente
afogado(a), tendo sua cabeça forçadamente submergida por meio de outra pessoa. O caldo funciona na cultura bombeirística como adaptação do
sofrimento impingido a alunos militares em cursos nas Forças Armadas.
94 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 92-107
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A pedagogia do sofrimento em
um acampamento bombeiro militar
Fábio Gomes de França
poderá ser encontrado como dificuldade nas diversas situações da profissão. Não existem comprovações
técnicas ou científicas que ratifiquem essas crenças, pelo contrário, o que os estudos sobre o tema têm
demonstrado é que esses treinamentos desencadeiam um tipo de socialização que faz os alunos militares
internalizarem aspectos como rusticidade, virilidade e um ethos bélico ou guerreiro que ao mesmo tempo
potencializa o machismo e a masculinidade (HUGGINS; HARITOS-FATOUROS; ZIMBARDO, 2006).
A herança da violência institucional contra alunos militares em trotes e treinamentos faz parte de um
conjunto de tradições que eram pautadas em formas de punição física contra as Praças por parte dos
Oficiais tanto no Exército como na Marinha (FRANÇA, 2018). As PMs acompanharam esse caminho
e não poderia deixar de ser diferente com os CBMs, que por muito tempo estiveram subordinados
institucionalmente às PMs. Por mais que formalmente os castigos físicos tenham sido proibidos, ainda
assim, processos culturais, para serem desconstruídos, demandam várias gerações (ELIAS, 1994), o que
não foi o caso da violência institucional entre os militares que se adaptou a outras situações, entre as quais
os acampamentos. A longevidade desses processos de violência, o que indica a persistência de fenômenos
culturais tão marcantes, pode ser percebida historicamente entre os militares franceses desde o Antigo
Regime até a formatação de um Exército moderno, com mais notoriedade a partir do século XIX, onde o
ensino da violência consiste em que
Os antigos praticam sobre os recrutas a pedagogia da violência. Ela é feita de troças que, começando pela
feira de animais, rebaixam os recrutas à condição de animais. Depois, o conscrito é submetido à coberta,
quando seu corpo é lançado no ar em uma coberta cheia de objetos cortantes. A instrução militar se dá, com
efeito, muitas vezes, sob o temor permanente da punição e em meio a gritos, insultos e golpes. A despeito
das denúncias feitas pelos médicos do efeito dos maus-tratos infligidos sobre os soldados por suboficiais
violentos, vis, caprichosos e, algumas vezes, perversos, o tempo do exercício continua sendo, geralmente,
o da brutalidade. A força e resistência ao cansaço, a aptidão para superar o sofrimento físico e a dor moral,
enfim, a aceitação de derramar seu sangue para a defesa do país são um conjunto de qualidades viris que
encontram sua completa satisfação no estado militar. Ao aceitar sofrer a violência dos antigos, sem ficar
muito zangado, o conscrito se integra em um grupo dentro do qual ele talvez seja chamado para o combate
(BERTAUD, 2013, p. 74-82, grifos do autor).
Essa “pedagogia da violência” ou “pedagogia do sofrimento” (FRANÇA; GOMES, 2015) torna-se o portão
de entrada dos iniciados alunos militares de modo geral ao mundo real das práticas bélicas de morte
quando forem chamados para o combate. A morte deve ser naturalizada para evitar-se a covardia e a
desonra diante do sofrimento de corpos que caem tombados pelo fogo cuspido do cano dos fuzis, das
metralhadoras e pistolas. Para esse enfrentamento, o sofrimento deve ser o ensinamento ao próprio
corpo para que a mente entenda que, para que o corpo a sustente, este deve doar-se em sacrifício, não
como um exercício definitivo de resignação, mas como um ato de heroísmo, pois a honra surge como um
componente simbólico necessário de adequação de corpos que aceitam a morte como o triunfo final, já
que foram antes exercitados para tal fim.
Não temos condições de precisar historicamente como essa herança cultural dos Exércitos europeus
chegou até nós, mas acreditamos que no caso do Brasil não podemos falar de uma transposição unilateral
apenas do legado português ao modo como nossas Forças Armadas, PMs e CBMs desenvolveram seus
modelos culturais intra corporis. Não podemos esquecer que no início do século XX uma missão composta
por oficiais militares do Exército brasileiro foi à Alemanha, os quais ficaram conhecidos como jovens
turcos, onde estagiaram para aprender as formas de organização do Exército alemão. Esses Oficiais
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depois se engajaram na reformulação do ensino militar no Exército com o intuito de profissionalizar seus
homens pela perspectiva das doutrinas castrenses para afastá-los do ativismo político recorrente na
República Velha (MARQUES, 2014). Outro fato foi a vinda da Missão Militar Francesa para reorganizar a
então Força Pública de São Paulo (depois Polícia Militar) em 1906 até 1914, com retorno após a Primeira
Grande Guerra e a partir de 1919 no Exército brasileiro, ficando até 1940 (FERNANDES, 1973).
A Missão Militar Francesa deixou um legado de organização institucional que, provavelmente, se estende
dos tipos de treinamento ao campo das práticas culturais. Tanto que foi o modelo de Educação Física
trazido pelos militares franceses que passou a ser adotado no Exército brasileiro a partir de 1921, chegando
até mesmo a ser aplicado em todo o território nacional pelas escolas públicas federais e municipais e pelas
escolas privadas, devido à influência do Exército no país durante o Estado novo varguista (CASTRO, 1997).
Sem contar que as técnicas de tortura utilizadas durante o regime ditatorial em nosso país pelos militares
teve forte influência dos militares franceses de alta patente que aqui estiveram para ministrar cursos de
contra-guerrilha, já que eles tinham utilizado essas técnicas durante a Guerra de Libertação da Argélia,
que era colônia francesa (DUARTE-PLON, 2016).
No Brasil, um estudo inédito realizado por Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006) sobre a formação
PM durante o período ditatorial destaca como a lógica da repressão governamental precisava treinar os
PMs com base no sofrimento para que eles reproduzissem a mesma disposição quando fossem atuar
nas ruas. A crença generalizada entre os militares, incluindo os policiais, da existência de um inimigo
interno (os subversivos comunistas) que impulsionava a defesa da “ideologia da segurança nacional” fazia
do treinamento dos PMs primeiramente uma busca pela obediência cega à autoridade. A perspectiva
ideológica da luta contra o comunismo atrelava-se naturalmente ao modo de atuação violento próprio
dos PMs, que deveriam treinar e sofrer arduamente para enfrentar um inimigo do Estado e da sociedade
democrática em perigo, desde que fossem homens obedientes. Os trotes eram utilizados (na verdade,
ainda hoje o são)5 como expediente recorrente na formação dos PMs e o currículo oculto passava a operar
desde a chegada dos alunos para o início do curso de formação, modelo pedagógico que era estritamente
copiado do Exército (CASTRO, 2004).
O que estava em jogo era um modelo de conduta que passava a ser esperado dos PMs depois de
formados, como fruto de forças situacionais modeladoras do caráter de indivíduos que foram colocados
à prova em situações de estresse extremo, o que não deixa de ser um treinamento de torturadores, já
que são processos de socialização que nos ensinam a reproduzir violentamente o que aprendemos do
mesmo modo (ALMEIDA JÚNIOR, 2016; FRANÇA, 2020b). Nesse contexto, os PMs se transformavam em
“operários da violência” (HUGGINS; HARITOS-FATOUROS; ZIMBARDO, 2006).
Ao entrevistar PMs que participaram da formação pedagógica militar durante o período ditatorial e sem
encontrar fatores diretos que pudessem apontá-los como indivíduos violentos antes de ingressarem na
PM, Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006) demonstram que os alunos PM novatos chegavam ao
quartel em cima de um caminhão, sendo transportados sem nenhum conforto, como animais, já que se
tratava de uma tropa. As boas-vindas eram feitas por um Oficial que, aos gritos, destratava a todos pela
aparência suja e pela ausência de disciplina militar6. A partir daí, a nova rotina passava a ser experienciada,
5 Ver Albuquerque e Machado (2001a; 2001b; 2003); Alvito (2013); França (2013) e Leal (2011).
6 A mesma forma de tratamento aos insultos e gritos foi descrita em livro por um jornalista que fez o concurso para soldado da PM do Rio de
Janeiro em 2007 apenas para acompanhar as semanas iniciais do curso e entender melhor como ocorre esse processo de socialização profissional.
Ver Gomide (2018).
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inicialmente com o corte de cabelo no estilo militar, com a adoção de um nome de guerra, bem como, de
um número (GOFFMAN, 2007) que passava a identificar a todos:
Não sendo mais identificado como o homem que fora e, a partir de então, como um “guerreiro” que tinha
um “nome de guerra” e um número que ocultavam sua identidade, a verdadeira identidade do treinando fora
separada de seu status civil e estava então madura para ser remodelada como uma identidade inteiramente
militarizada (HUGGINS; HARITOS-FATOUROS; ZIMBARDO, 2006, p. 275, grifos dos autores).
Ainda relatam Huggins, Haritos-Fatouros e Zimbardo (2006) que essa ruptura com a antiga vida civil, que
funciona como uma “mortificação do eu” ou uma “morte civil” (GOFFMAN, 2007, p. 24-25), descortinava-
se entre a aprendizagem das marchas militares e a extenuante jornada de treinamento que se iniciava às
4h30 da madrugada e se estendia até às 18h. Os alunos em formação passavam por situações desde ter que
se aprontar em dois minutos para se vestir impecavelmente e entrar em forma7 a serem acordados com
gás lacrimogêneo no alojamento. Não obstante, entre atividades práticas e teóricas, mas especialmente
pela convivência com o currículo oculto, que obrigava os alunos a vivenciarem constantemente o exercício
da obediência para com os superiores (que se mostravam com a face rígida e jeito de “macho” para impor
autoridade), as palavras de um entrevistado sintetizam que no treinamento: “eram obrigados a rolar no
mato, por cima de espinhos, paus, pedras, como se fossem porcos (...) [Se] se ferisse o instrutor achava
muito divertido. Ele treinava o policial para ir à guerra, não para proteger o povo. Jogavam bombas de gás
dentro da sala de aula” (HUGGINS; HARITOS-FATOUROS; ZIMBARDO, 2006, p. 278).
As inumeráveis formas de fazer o currículo oculto funcionar ainda sustentava-se por situações violentas
como o corredor polonês, no qual o aluno PM passava no meio de duas fileiras de colegas e era atingido
por socos e pontapés, como recorda um dos entrevistados: “Eu me lembro de ter levado um murro no
estômago – não sei se foi um soco ou um pontapé. Só sei que caí no chão desmaiado” (Ibid., p. 285).
Essa mesma lógica de uma pedagogia violenta aplicada a alunos militares de modo geral presente nos
treinamentos e na execução dos trotes também é a mesma utilizada nos acampamentos militares, que é um
misto de trotes com atividades e treinamentos de sobrevivência na selva. No Brasil, as únicas informações
que temos sobre acampamentos militares dizem respeito a um trabalho de campo (ALBUQUERQUE, 1999;
ALBUQUERQUE; MACHADO, 2001a, 2001b) realizado sobre a Jornada de Instrução Militar (JIM) aplicada a
alunos oficiais da PM da Bahia em 1997, mas em contato pessoal com um tenente recém formado no CFO
da Bahia em 2017, constatamos que a JIM ainda ocorre nos mesmos moldes de décadas atrás8.
Como não poderia deixar de ser, a análise sobre a realização da JIM no CFO da Bahia revela aspectos
contraditórios do ensino PM após a abertura política com o fim do regime ditatorial. Paralelo à chegada
de disciplinas humanísticas nas Academias de Polícia Militar, com os Direitos Humanos como carro-chefe,
os trotes e os acampamentos militares permanecem sendo utilizados por meio de um currículo cultural
(LEAL, 2011) e oculto que atua impondo resistências a um ensino com viés democrático, por meio do qual
os próprios alunos militares deveriam ser respeitados em suas integridades física e psicológica.
O que a JIM demonstrou foi a realização de atividades próprias de sobrevivência em uma guerra em um
verdadeiro “currículo da selva” (ALBUQUERQUE; MACHADO, 2001a), já que foi realizada em um trecho de
7 Entrar em forma é o ato em que todos os alunos ficam colocados um atrás do outro em colunas e linhas, geralmente estáticos na posição de
sentido ou de descansar, formando uma figura retangular, por meio de certa padronização espacial. Ver França (2019).
8 Informação oral.
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mata atlântica pertencente ao Exército, durante um período de seis dias. Em síntese, na JIM conjugaram-
se “a um só tempo, técnicas de sobrevivência na selva com velhos ensinamentos anti-guerrilha num
ritmo estressante, baseado em táticas que estimulam a ansiedade e o medo, produzindo um estado
psicológico de absoluta (sic) alerta emocional” (ALBUQUERQUE; MACHADO, 2001a, p. 11). O sigilo sobre
as atividades e as narrativas das edições passadas circundam e aumentam ainda mais a ansiedade dos
cadetes9, pois o local de realização desses eventos não é revelado aos alunos pela equipe organizadora,
fazendo da surpresa sobre o que se pode encontrar um componente da pressão psicológica. Assim, a JIM
tem início “com a partida de ônibus da Academia rumo ao local da jornada, numa viagem estressante, de
quase uma hora, com simulações de ataques e bombas de gás. Após a chegada e concentração de todos
para apresentação aos superiores são repassadas as regras que vigorarão naqueles dias” (Ibid., p. 11). A
estrutura militar do acampamento se revela desde o início, de modo que
Mas são as palavras dos próprios alunos que participaram da JIM que se tornam interessantes para
compreendermos a dinâmica das subjetividades envolvidas no acampamento, bem como o ideal coletivo
almejado de fortalecimento do espírito de corpo e solidariedade grupal. No entanto, essas condições
ocultam, na realidade, o objetivo principal da JIM: a obediência estrita à autoridade por meio da resignação
e do sofrimento. Não por acaso, alguns alunos destacarem os princípios militaristas da JIM: “Essa mania de
misturar as coisas das forças armadas com as da polícia enche o saco... a gente fica perdendo tempo no
mato, tomando porrada e morrendo de fome” (ALBUQUERQUE; MACHADO, 2001a, p. 13).
Sabendo que, no Brasil, especialmente durante o período ditatorial, era comum PMs exercerem o serviço
de BMs e vice-versa, como parte de uma transição fluida entre as instituições, além também de ser comum
que os BMs fossem treinados nos quartéis de polícia militar (FRANÇA, 2018), fica-nos a reflexão de que
em grande medida os treinamentos militares empregados aos alunos BM foram os mesmos ou talvez
apresentassem algumas adaptações em relação aos que eram aplicados aos alunos PM. A demonstração
dessa hipótese se fortalece exatamente no caso que descrevemos abaixo, de um acampamento militar do
qual participaram alunos oficiais bombeiros do CFO na Paraíba.
EXPERIÊNCIAS DE UM ACAMPAMENTO
MILITAR PARA BOMBEIROS
O CFO para BMs, na Paraíba, tem como forma de ingresso o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), e tem
um período de duração de três anos, tratando-se de um bacharelado em Engenharia de Segurança contra
Incêndio e Pânico. O curso ocorre na Academia de Bombeiro Militar Aristarcho Pessoa, a qual funciona no
mesmo espaço arquitetônico onde acontece o CFO para os alunos oficiais da PM, ou seja, no Centro de
Educação da Polícia Militar do Estado da Paraíba, localizado na cidade de João Pessoa. Nesse sentido, os
9 Expressão dos quartéis das Forças Armadas, das PMs e dos CBMs para nomear os alunos oficiais.
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cadetes, como são conhecidos os alunos oficiais PM e BM, mesmo não dividindo as salas de aula, por se
tratarem de cursos distintos, em contrapartida dividem alojamentos por ano de curso, de forma separada
para homens e mulheres, participam conjuntamente das formaturas gerais (que são solenidades típicas
dos quartéis com a leitura das ordens do dia, o cântico do hino nacional e o desfile da tropa), e assumem
algumas funções comuns a uma caserna militar, como plantões de alojamento e adjunto e cadete de dia.
Estas funções informam certo grau de responsabilidade por parte dos cadetes escalados para exercê-las,
visto que eles passam gradativamente ao longo dos três anos a desempenhar papéis que lhes ensinam a
externar certa autoridade dentro do quartel de formação, especialmente em relação aos demais alunos.
Por isso falamos nos cursos militares de alunos veteranos e alunos novatos, cabendo aos primeiros (no caso
os do último ano da formação) geralmente a aplicação dos trotes aos ingressantes no CFO nas semanas
iniciais de adaptação e acampamentos militares. No transcorrer das atividades cotidianas, gradativamente
de acordo com a sequência dos anos de curso (1º, 2º e 3º), os alunos do 1º ano se reportam aos do 2º e
3º pela deferência de senhor ou senhora, assim como os do 2º ano aos do 3º do mesmo modo (FRANÇA,
2012). Ainda mais, com a alternância das turmas a cada ano, já que enquanto uma se forma outra ingressa;
os cadetes também passam a se tratar como “antigos” e “modernos”, de modo que o aluno se torna mais
antigo com o avanço aos anos posteriores do curso desde a entrada no CFO (o aluno do 3º ano é mais
antigo que o do 2º e do 1º, enquanto que o do 2º ano é mais antigo que o do 1º), assim como as turmas
também se tornam mais antigas e modernas entre elas mesmas, o que se estende posteriormente após os
alunos formados. Como exemplo, um tenente formado na turma de 2010 que terminou na 5ª colocação
geral é mais antigo que os demais componentes de sua turma a partir da 6ª colocação, assim como todos
da turma de 2010 são mais antigos do que todos que se formaram na turma de 2011.
Quando os alunos passam do 1º ano ao 2º, do 2º ao 3º, ou ainda quando saem formados como aspirantes
a oficial para o estágio probatório que os habilitarão ao posto de 2º tenente carregam consigo a
classificação geral obtida com a média final do somatório das disciplinas estudadas a cada ano, a qual
define antiguidade e modernidade separadamente por ano. Quanto maiores as médias, mais antigos na
classificação, com o adendo da denominação pejorativa de alunos da “rabada”, aqueles que assumem
as últimas posições na hierarquia das médias, e alunos da “zerada”, aqueles que são considerados mais
estudiosos, o que se torna o indicativo de como funciona antiguidade e modernidade dentro das próprias
turmas de formação (FRANÇA, 2012). O destaque fica por conta da emblemática figura do 01 (zero-
um), que indica uma posição de prestígio (LEIRNER, 1997), que pode ser o primeiro colocado quando do
ingresso no 1º ano com a média do ENEM, durante o 2º e o 3º ano a partir da classificação final obtida no
ano anterior, ou por meio da ordem classificatória ao término do curso.
Outro critério para demarcar “antigos” e “modernos” é a classificação verticalizada no 1º ano pela nota
obtida no ENEM (CASTRO, 2004) quando do ingresso no CFO, a partir da qual o 01 (zero-um), primeiro
colocado, é mais antigo que o 02 (zero-dois), segundo colocado, seguindo-se os demais. Ainda se demarca
antiguidade e modernidade pela data de fundação da Academia Militar estadual a que se pertence
(mais antiga é a que primeiro foi fundada), ou ainda considera-se mais antigos os alunos da Academia
sede do curso, seguindo-se os alunos das Academias de outros estados que enviam seus alunos por
não possuírem local de formação próprio, os quais são conhecidos por “estrangeiros”. Nesse sentido,
antiguidade e modernidade “são posições que servem para elencar responsabilidades e privilégios
entre os cadetes, tanto no que se refere às regras prescritas como às situações informais do cotidiano.
Por isto, quanto mais antigo na formação supõe-se ser melhor, obtendo-se mais reconhecimento e
status” (FRANÇA, 2019, p. 367).
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Na verdade, os critérios de antiguidade e modernidade são sintomáticos para nos mostrar a importância
do papel da autoridade no meio militar e sua tradução através da hierarquia, havendo impossibilidade
de dois indivíduos ocuparem a mesma posição hierárquica, pois sempre algum atributo será mobilizado
para legitimar a antiguidade. A partir da complexidade que envolve essas gradações hierárquicas e
da necessidade que se cria para se exigir respeito por parte do subordinado em relação à autoridade
que representa a figura do superior ou da superiora hierárquica na cultura militar é que podemos
compreender como os momentos de sofrimento impingidos aos alunos acabam se naturalizando. Isso
porque o sofrimento em conjunto os ensina que esse direito adquirido de exercer autoridade surgiu pelo
compartilhamento de experiências traumáticas que os possibilitaram aprender a comandar homens em
uma rede hierárquica complexa, já que existia uma razão para as humilhações verbais e as dores físicas:
“Cadetes! Ides comandar, aprendei a obedecer” (CASTRO, 2004, p. 22). Por meio de um rito de passagem
(VAN GENNEP, 2011) que denota um processo ritual de rebaixamento e elevação de status (TURNER,
2013), os cadetes encontram nos acampamentos militares momentos oportunos de experienciarem as
ambivalências de um modelo de hierarquia e autoridade que ao mesmo tempo em que rebaixa o indivíduo
pela humilhação o enaltece por ter aceitado compreender a lógica do respeito pela resignação.
No caso específico do acampamento militar com bombeiros paraibanos, a turma de cadetes protagonistas
do evento ingressou no CFO em 2018, de modo que o acampamento ocorreu durante o segundo ano
de formação, em 2019. A turma é composta por 29 alunos no total, sendo 25 homens e 4 mulheres. Na
composição da turma, temos 8 cadetes da Paraíba (sendo 5 homens e 3 mulheres), 12 cadetes do Rio
Grande do Norte (sendo 1 mulher) e 9 cadetes de Alagoas (todos homens).
Os relatos colhidos e analisados neste tópico foram obtidos dos depoimentos de quatro desses alunos,
todos do gênero masculino. O acampamento militar ocorreu na cidade de Pedras de Fogo, na Paraíba.
Houve certo receio dos alunos com o que seria feito com seus depoimentos nesta pesquisa, mas ficou
claro para todos que os relatos seriam transformados em material analítico para a escritura de um artigo
sobre a pedagogia do sofrimento na formação bombeiro militar. Além disso, o texto foi repassado a todos
os alunos antes de ser definitivamente enviado para publicação, e seus nomes foram preservados, sendo
utilizados pseudônimos. O acampamento foi dirigido pelos Oficiais da Academia Aristarcho Pessoa e pelos
alunos do 3º ano (os alunos veteranos) do CFO BM.
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Depois que os cadetes foram embarcados no ônibus, seguiram com destino ao acampamento por cerca
de 30 a 40 minutos, mas precisaram desembarcar antes do local final, onde encontraram um major, uma
capitã e outro tenente, além dos que já os acompanhavam, os quais compunham os oficiais da coordenação.
A partir daí, os cadetes realizaram uma marcha por uma estrada de barro até chegar ao local onde seria
montado o acampamento. Nessa marcha, “foram recolhidos os relógios dos cadetes; após chegarem ao
acampamento foi realizada uma revista na bolsa de todos os integrantes da turma, sendo recolhido todos
os alimentos” (Aluno 1). Foi depois da chegada da marcha que os alunos souberam que a atividade externa
se tratava de um acampamento, de modo que “os Cadetes foram instruídos a montarem a barraca em que
ficariam alojados” (Aluno 2). Uma das primeiras situações a incomodar os cadetes ocorreu quando um dos
alunos, que tinha recebido uma determinação do major um dia antes para trocar o cadarço de elástico de
seu coturno, não o fez. Na cultura militar, a ideia é que todos usem os mesmos equipamentos, de maneira
uniforme (FOUCAULT, 1987). Com o descumprimento, ao desembarcarem, “o major cortou o cadarço do
coturno do Cadete utilizando um facão. O cadete relatou ter se sentido constrangido devido ao episódio
do corte do cadarço” (Aluno 3).
Ao amanhecer, os cadetes foram divididos em quatro equipes de maneira que “um grupo ficou na
responsabilidade de realizar o local do “tchof”, outro grupo deveria construir a latrina, o terceiro grupo
realizou o local de acampamento, e o último grupo deveria fazer o local que seria a sala de aula durante
a realização do acampamento” (Aluno 1). Entre as atividades iniciais, o “tchof” “seria uma alteração
no curso de um córrego que havia ali próximo, para originar um (sic) espécie de represa, onde seriam
realizadas algumas atividades de vivacidade; após a realização desse “tchof”, mesmo a água do córrego
sendo limpa, a água represada ficou turva” (Aluno 2). Com o decorrer das atividades, uma das que mais
incomodaram os cadetes foi a refeição do primeiro dia, na hora do almoço, de modo que os relatos
abaixo descrevem o acontecimento:
No almoço do primeiro dia foi distribuída uma quentinha para cada aluno e dado dois minutos para que
pudessem comer; devido ao fato de não ter sido dado o fora de forma, a turma foi “forçada” a comerem
(sic) com as mãos, pois não havia a possibilidade de conseguirem algum meio de fortuna para comer, em
substituição aos talheres que não foram disponibilizados; após os dois minutos foi determinado que os
cadetes colocassem o restante do alimento da quentinha em um único panelão; após colocarem o restante
do alimento na panela, foi disponibilizado mais dois minutos para cada grupo continuar a comer; após cada
grupo ter comido, foi disponibilizado mais cinco minutos para que toda a turma continuasse a comer, devendo
levar a panela para o local que estavam alojados; após os cinco minutos era dado um silvo de apito para que os
alunos informassem se haviam terminado de comer, caso não tivessem terminado deveriam realizar flexões
no solo e voltar a comer; não se recorda quantos ciclos de cinco minutos houve. (Aluno 1).
A primeira refeição que tiveram, desde o momento que foram acordados, ocorreu aproximadamente por
volta da hora do almoço, sendo disponibilizada uma quentinha para cada cadete e fornecido um tempo de 2
minutos para a realização da refeição, devendo ser feito com a mão, pois não foram distribuídos talheres; não
foi disponibilizado tempo para realização de asseio e limpeza das mãos; a refeição foi realizada em pé; após
esses 2 minutos o que restou da alimentação de todos os cadetes foi reunido em uma panela e após isso os
cadetes foram divididos em grupos e cada grupo teve 2 minutos para ir à panela para continuarem a comer o
restante da comida, utilizando as mãos, e todos os cadetes tiveram que comer; após todos os grupos irem até
a panela ainda sobrou comida, então foi determinado aos cadetes que levasse (sic) a panela com o restante
da comida para onde estava a barraca para conclusão da refeição, entretanto a cada 5 minutos eram dados
silvos de apito e os cadetes tinham que realizar uma quantidade de flexões no solo e após as flexões eram
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disponibilizados mais 5 minutos para continuar a refeição, sendo realizado alguns ciclos dessa atividade até
que toda a comida acabasse; eram alternados as flexões com o tempo que tinham para comer, sendo notório
que em determinado momento já havia uma quantidade de areia dentro da comida. (Aluno 2).
Se recorda de uma das refeições, em que todas as quentinhas dos alunos foram reunidas em um recipiente,
que não se recorda qual, e todos tiveram que comer juntos. (Aluno 3).
No primeiro dia, no período do almoço, foi disponibilizado algum tempo para o almoço, o qual estava em
quentinhas, e após encerrar o tempo, o que restou da comida foi reunida (sic) em uma panela; tiveram que comer
toda a comida e enquanto comiam realizavam flexões, intercalando com período que tinham (sic) para terminar
de comer, até toda comida acabar; não tinham condições adequadas de higiene na hora do almoço. (Aluno 4).
Os longos trechos destacados dos depoimentos sobre a hora do almoço no acampamento revelam o
descuido proposital por parte dos coordenadores com a falta de higiene para o manuseio da comida
aliada ao desconforto e às atividades físicas empregadas como as flexões de braço que, em alternância
com os momentos da alimentação, passou a deixá-la com “uma quantidade de areia”; vê-se com isso o
caráter militar da atividade. Percebe-se nesse acontecimento a tentativa dos coordenadores de fazer com
que os alunos tenham certa destreza para saberem lidar com o tempo e a forma de se alimentar própria
de um evento bélico, no qual não há espaço para noções de higiene porque é a sobrevivência que importa.
O major havia percebido que o cadete... havia deixado o material cair ao solo e ao observar que o referido
cadete não havia se acusado, então se deslocou até onde estava o cadete e desferiu uma tapa em seu peito;
enquanto se deslocava em direção ao cadete, o major proferia expressões como “isso não é atitude de homem”,
e após desferir a (sic) tapa contra o peito do cadete, o mesmo veio a cambalear, ficando sem reação. (Aluno 3).
O Major solicitou que o militar que havia errado a execução se acusasse (exercícios de polichinelo); que o
cadete... se acusou, entretanto o Major informou que não havia sido ele; o Major então veio na direção do
declarante desferindo três tapas fortes em seu peito, chegando a fazer o declarante se desequilibrar, mas
não caiu ao solo; o Major então o segurou forte pela gola da gandola10, o sacolejando e fazendo força para
cima, enquanto desferia algumas expressões agressivas, a exemplo de “seja homem”, “assuma seus erros”;
após isso, o declarante não manifestou nenhuma reação, ficando apático; o Major estava armado; na noite
deste dia, diante do episódio vivenciado, não conseguiu dormir, mesmo sendo disponibilizado um tempo
de descanso para a turma. (Aluno 1).
O clímax do acampamento ocorreu diante de uma situação inusitada. Devido ao acampamento ter sido
organizado pelos coordenadores para ser uma surpresa e por conta do pouco tempo dado para os cadetes
pegarem algum material necessário, nem todos os homens levaram lâminas de barbear ou barbeador
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para o acampamento, visto ser regulamentado o não uso de barba pelos homens de acordo com as regras
militares. Esse fato foi o que obteve maior destaque nos depoimentos, pois diante da evidência de que
não tinham lâminas nem barbeadores suficientes para todos e da recusa dos alunos em compartilhar os
que tinham disponíveis: “a determinação foi que a turma entrasse no ‘tchof’ (água represada) e que só
sairia de lá com a barba feita” (Aluno 1); “a determinação estava mantida, por parte da coordenação, e que
o asseio pessoal deveria ser feito” (Aluno 4); “os termos adotados (em tom ríspido) por parte de ambos os
oficiais (major e tenente) era que a imposição de se fazer a barba era uma ordem” (Aluno 3); “em face da
postura da turma em não cumprir a determinação de fazer a barba, que imputaria necessariamente em
compartilhar os barbeadores, vieram uma série de atividades punitivas à turma que tinham como objetivo
principal mudar a postura dos alunos” (Aluno 2).
Como vimos até aqui, a obediência à autoridade é o requisito implícito, não diretamente divulgado pelos
coordenadores, em situações como o acampamento militar (HUGGINS; HARITOS-FATOUROS; ZIMBARDO,
2006). Diante da ordem imposta, os cadetes, resignados, cumpriram a missão e compartilharam os
barbeadores. O argumento dos coordenadores, como sempre centrado nas regras militares, previa que
“diante da decisão de não cumprimento da determinação, a coordenação teve a percepção daquela
atitude como sendo um motim [tipo de crime militar]” (Aluno 1). Mesmo pedindo desculpas à turma após
o término do acampamento, pelo ocorrido na situação do uso coletivo dos barbeadores, ainda assim
o tenente teria afirmado, com base em sua experiência pretérita no Exército, que “a situação não era
absurdo, pois em momentos vivenciados anteriormente no Exército brasileiro [o tenente] já chegou a
compartilhar um barbeador com 10 militares” (Aluno 3).
Como se vê ao final, são as práticas da cultura organizacional castrense o mote legitimador que fez
do acampamento bombeiro militar analisado mais uma experiência a ser melhor compreendida da
aplicabilidade da pedagogia militar em uma profissão que demanda um exercício de cunho eminentemente
civil. Em meio aos paradoxos da profissão BM e seu hibridismo identitário, fica-nos mais um exemplo das
dificuldades de alcançarmos uma democracia que proteja também profissionais que ainda em formação
precisam ser reconhecidos não como máquinas treinadas para a guerra, mas como homens e mulheres
que apenas buscam uma profissão como qualquer um de nós que convivemos em sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A denúncia feita ao Ministério Público contra os coordenadores do acampamento militar para os cadetes
BM revela certo avanço contra o abuso cometido nessas atividades dirigidas sem considerações técnicas
por meio da tradição puramente militar. O que percebemos é que a organização do acampamento pautou-
se em experiências prévias de um dos coordenadores que passou pelo mesmo processo no Exército e
que acabou por adaptar situações para alunos bombeiros que exercerão uma função eminentemente de
ordem civil. As situações vivenciadas pelos alunos deixam clara a presença de conteúdos autoritários e
intimidatórios por parte dos coordenadores na forma de tratar os alunos durante os dias de acampamento,
com a imposição de ordens absurdas e violentas como obrigá-los a compartilhar lâminas de barbear ou até
mesmo se colocar no direito de violentar o corpo físico dos alunos com tapas e empurrões.
A falta de preparo profissional e comedimento das ações como um todo faz parte de um processo
cultural absorvido da vida castrense e que chega à vida institucional dos BMs pela junção do modelo
organizativo militar, da herança histórica desse modelo cultural naturalizado e pelo reforço de novos
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oficiais que ingressam na Corporação BM após passarem por experiências similares quando pertenciam
ao quadro das Forças Armadas, em especial do Exército brasileiro. Enxergamos de forma positiva a
denúncia contra as práticas que foram empregadas no acampamento BM, o que mostra, diferentemente
de situações pretéritas nas quais dificilmente essas denúncias ocorriam, que tem se desenvolvido certa
‘desnaturalização’ desses procedimentos de ordem cultural. Tais condições de violência institucional
no mundo militar são geralmente alimentadas pelo desejo à autoridade e pela insipiente concepção
da aprendizagem pelo sofrimento, a qual é vazia de conteúdo. Ao contrário, talvez os CBMs consigam
reverter tal quadro pedagógico se descobrirem o caminho da resolução de conflitos humanos a partir da
criatividade e do senso de justiça e empatia desde a formação de seus futuros profissionais, legitimando
uma proposição mais coerente ao lema dos bombeiros de ‘vida alheia e riquezas salvar’.
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RESUMO
O programa da disciplina “Direitos Humanos: Polícia Civil e a Diversidade”, ministrada nos cursos de
formação da Academia da Polícia Civil de São Paulo, passou por uma série de alterações ao longo dos anos,
especialmente centradas na introdução de temas como gênero, raça, diversidade sexual e deficiência. A
partir dessas reformulações, o presente artigo busca analisar o corpo docente responsável pela disciplina,
bem como se recebeu formação inicial ou continuada para lidar com as novas demandas de ensino. Para
tanto, buscou-se identificar os processos de seleção dos professores, bem como se houve programas
de qualificação docente desenvolvidos pela unidade. O percurso metodológico baseou-se na pesquisa
bibliográfica, com atenção para a literatura sobre formação policial e capacitação do corpo docente;
documental, realizada no Diário Oficial do Estado e na legislação sobre a Academia de Polícia e, ainda,
na observação participante. Constatou-se o pouco espaço que esse campo ocupa nas discussões sobre
formação policial na literatura especializada e na própria Academia de Polícia, sendo poucas as iniciativas
de qualificação de seus docentes, o que pode dificultar a efetiva concretização da proposta pedagógica
apresentada nos novos conteúdos programáticos sobre direitos humanos.
Palavras-chave: Polícia Civil de São Paulo. Academia de Polícia. Formação em Direitos Humanos. Corpo
docente. Capacitação de Professores.
ABSTRACT
WHO TRAINS CIVIL POLICE OFFICERS IN HUMAN RIGHTS? A LOOK AT THE ACADEMY OF THE CIVIL POLICE
OF SÃO PAULO
The programme of the subject “Human Rights: Civil Police and Diversity”, taught in the training courses of the
Civil Police Academy of São Paulo, has undergone a series of changes over the years, especially focused on the
introduction of themes such as gender, race, sexual diversity and disability. Based on these reformulations,
this article seeks to analyze the faculty responsible for this subject as well as whether they received initial
or continuing training to deal with the new issues. To this end, we sought to identify the selection processes
of teachers, as well as whether there were teacher qualification programs developed by the unit. The
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methodological path was based on bibliographical research, with attention to the literature on police training
and the faculty; documentary, especially publications in the Official State Gazette and legislation about the
Police Academy, and also participant observation. The investigation revealed that the field occupies little
space in discussions about police training in specialized literature and in the Police Academy itself, with few
qualification initiatives for its teachers, which can hinder the effective implementation of the pedagogical
proposal presented in the programme of the subject.
Keywords: Civil Police of São Paulo. Police Academy. Human Rights Training. Faculty. Teacher Training.
INTRODUÇÃO
Este artigo surge como resultado de questionamentos decorrentes de uma dissertação de mestrado sobre
a formação dos policiais civis em direitos humanos, com especial enfoque sobre certos grupos em situação
de vulnerabilidade, na Academia da Polícia Civil de São Paulo (Acadepol) (MOTA, 2017). Nesse trabalho,
foram analisados os conteúdos programáticos de 2008 e 2016 da disciplina atualmente denominada
“Direitos Humanos: Polícia Civil e a Diversidade”, ministrada a todas as carreiras policiais durante o curso
de formação técnico-profissional. A análise cotejou os conteúdos com a Matriz Curricular da Secretaria
Nacional de Segurança Pública (BRASIL, 2014), examinou as alterações dos programas, problematizou
ausências temáticas e apresentou perspectivas de ensino a partir da compreensão da vulnerabilidade como
elemento que determina a forma de interação entre indivíduos e policiais civis. Constatou-se que, apesar de
ainda priorizarem questões teóricas e pouco práticas e críticas, os conteúdos vêm sendo alterados de forma
positiva, com a inclusão de pontos relacionados a gênero, raça, diversidade sexual e deficiência.
Diante desse universo analítico surgiu o interesse em investigar, particularmente, a figura do responsável
por lecionar essas aulas, pois se os conteúdos avançavam em termos de maior inclusão dos coletivos em
situação de vulnerabilidade e das discussões a respeito de sua relação com a atividade policial, será que
o corpo docente estava acompanhando essas reformulações? E tais reformulações, importante destacar,
tanto do ponto de vista do acréscimo de conteúdo, como novos conceitos, atos normativos, legislação e
discussões doutrinárias e jurisprudenciais, quanto em relação ao aperfeiçoamento das metodologias de
ensino para abordar tais temas, considerando as especificidades e finalidades dessa formação profissional.
Para que fosse possível identificar o lugar que o professor ocupa nesse processo de mediação do
conhecimento ante as modificações dos programas, foi necessário estabelecer duas questões prévias:
1) Como a Acadepol seleciona os professores da disciplina Direitos Humanos? e 2) Esse corpo docente
recebe algum tipo de formação inicial ou capacitação técnica e pedagógica para que esteja alinhado às
alterações dos conteúdos programáticos?
O caminho percorrido para buscar as respostas a tais perguntas apontou em muitas direções e possibilidades
de pesquisas, que indicaram a necessidade de maior atenção sobre o corpo docente responsável pela
formação dos policiais. Este trabalho, assim, pretende contribuir para as pesquisas sobre ensino policial
a partir de um sujeito específico e ainda pouco abordado na produção científica sobre o tema: o policial-
professor, figura sem a qual, ainda que existam ações formativas sobre direitos humanos capazes de
aperfeiçoar o trabalho policial, esse processo estará incompleto, na medida em que os docentes não terão
ferramentas adequadas para alcançar as expectativas dos programas e da instituição.
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METODOLOGIA
O ponto de partida do percurso metodológico, que se assentou na pesquisa qualitativa, foi o levantamento
bibliográfico sobre a formação policial com ênfase no corpo docente das academias de polícia civis, no
entanto foram localizados poucos trabalhos. Como forma de complementar esta lacuna, também foi
feito levantamento bibliográfico sobre a formação do professor do ensino superior e a profissionalização
da docência. Por se tratar da educação de adultos, muitas similaridades foram encontradas e o debate
produzido nessa área pode contribuir para o campo do ensino policial.
Outra estratégia empreendida foi a pesquisa documental. Tendo como elemento do trabalho a formação
em direitos humanos dos policiais civis e com o objetivo de estabelecer o conteúdo com o qual o corpo
docente dialoga, foram examinados quatro programas da disciplina Direitos Humanos. Considerando as
finalidades deste artigo, mais do que um estudo detalhado sobre cada item, a análise centrou-se na inserção
de conteúdos relativos aos grupos em situação de vulnerabilidade que pudessem exigir competências
específicas dos docentes para que dessem conta das demandas do programa e das eventuais dificuldades
que poderiam surgir em sala de aula para a abordagem dos novos pontos.
Como na Academia de Polícia há processo seletivo para o cargo de professor, também foi feita pesquisa
documental para verificar se havia editais para professor de Direitos Humanos e publicações de cursos
relacionados com a capacitação do corpo docente de um modo geral. Tais documentos são atos oficias
e públicos, de modo que o levantamento foi realizado no site do Diário Oficial do Estado de São Paulo,
na Secretaria de Cursos de Formação1 e na Secretaria de Cursos Complementares, de Pesquisa e Apoio à
Produção Científica2 da Acadepol.
Por fim, também foi empregada a observação participante, realizada entre março de 2019 e março de 2020
na Academia da Polícia Civil de São Paulo. Adotada de forma combinada e integrada com o levantamento
bibliográfico e a pesquisa documental, a observação participante possibilitou não só o contato com a
diretoria, os professores e os funcionários, mas também a pesquisa e o acesso aos documentos que não
foram localizados no Diário Oficial, como dados sobre o corpo docente, programas de cursos, propostas
para atividades acadêmicas e informações sobre eventos realizados. Além disso, possibilitou a observação
das práticas dos professores de direitos humanos, suas expectativas e dificuldades com a implementação
dos novos conteúdos e a elaboração de material didático para a disciplina. A imersão no campo, bem como
a observação e a interação com os sujeitos, permitiu que a pesquisadora se aproximasse da rotina de uma
academia de polícia e pudesse compreender sua lógica de funcionamento e as engrenagens que movem
a relação do corpo docente com a instituição de ensino ao qual está vinculado (LUPETTI BAPTISTA, 2017).
1 Secretaria responsável por planejar, controlar e executar as atividades dos cursos de formação, direcionados aos novos policiais (art. 8º do
Decreto Nº 60.930/2014).
2 Secretaria que tem por atribuições, entre outras, planejar e executar as atividades dos cursos complementares, de aperfeiçoamento,
aprimoramento, atualização, especialização, ou seja, para os policiais que já estão na ativa (Op. cit., art. 9º).
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Embora a formação policial civil e militar seja um tema recorrente na literatura (LARINI, 2020; UEDA, 2020;
VEIGA; SOUZA, 2018; BRASIL; FBSP, 2013; BASTOS, 2008; PIRES, 2008; PONCIONI, 2014; 2007; 2005) e
nas discussões para além do âmbito acadêmico sobre segurança pública, o olhar sobre a figura docente e
sua qualificação nas academias de polícia ainda é insuficientemente explorado e isso se reflete nos poucos
e esparsos trabalhos encontrados, dentre os quais a maior parte é dedicada ao corpo docente da Polícia
Militar (DANTAS, 2019; MELO; CARVALHO, 2019; PEREIRA; CRUZ, 2017; NASCIMENTO; CERQUEIRA, 2015;
VERAS, 2008).
Seja na academia, seja nos documentos oficiais, a desatenção ao exercício da docência policial, bem como
a ausência de discussões sobre as estratégias para a capacitação de docentes, pode ter como uma das
hipóteses a noção de “quem sabe fazer sabe ensinar” (CUNHA, 2008, p. 10). Essa compreensão vincula-se
à ideia do profissional como detentor absoluto das competências e habilidades necessárias para preparar
os alunos para o exercício da função, ou seja, por se tratar de um ensino profissionalizante, os saberes
adquiridos no mundo do trabalho seriam suficientes para habilitar os professores para a formação de
seus pares, sem que houvesse necessidade de capacitação específica para a docência ou apreensão de
conhecimentos pedagógicos.
Outro ponto relevante sobre a formação policial é o que diz respeito àquilo que se espera de seus resultados
e o papel que lhe corresponde para que os agentes de segurança púbica executem seu trabalho de maneira
uniforme e profissional, segundo as exigências constitucionais. Ainda que a educação e o treinamento – e
aqui incluída a atividade docente – sejam importantes instrumentos para que as polícias atinjam padrões
de excelência pautados nos parâmetros de uma sociedade democrática (PONCIONI, 2014), tal ensino,
com destaque para os direitos humanos, e o investimento no corpo docente não garantem, por si só,
o cumprimento dessa expectativa. Há, assim, uma relativização dos efeitos pretendidos e produzidos
durante a formação, pois outros fatores entrarão em jogo para a construção da identidade profissional
(BRESSOUX, 2003).
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reforçar esses aspectos, comprometendo a formação dada nas academias de polícia. Por tal motivo, ainda
que a formação inicial e continuada dos policiais seja imprescindível para a qualidade do trabalho, ela deve
ser considerada em conjunto com outros fatores que também terão importância quando se analisa o atual
quadro da segurança pública no Brasil.
O último ponto que deve ser abordado nesta seção é a relação entre a construção de uma nova disciplina
e o corpo docente encarregado de ministrá-la. Inserir uma nova disciplina na grade curricular de um curso,
especialmente a respeito de um assunto imprescindível para as instituições policiais e que até hoje pode
encontrar resistência para ser abordado, socialmente ou entre os próprios integrantes do sistema de
segurança pública, demanda uma série de ações pedagógicas que se iniciam antes mesmo de o professor
ministrar as aulas. Essas medidas consistem, por exemplo, na aprovação pelas instâncias escolares superiores;
na criação de um plano de ensino, com conteúdo programático, sistema de avaliação e bibliografia básica;
na preparação do material didático; na articulação com outras disciplinas e na qualificação do corpo docente
para que esteja alinhado com os objetivos desejados pela instituição. As medidas, portanto, não se centram
apenas na criação do conteúdo da disciplina; mais do que isso envolvem, ativamente, vários sujeitos do
contexto escolar, como os professores e a Secretaria de Cursos de Formação.
O primeiro contato com o tema sob a ótica profissional, além disso, requer que se estabeleça, desde um
ponto de vista institucional, o que se pretende com a introdução da nova disciplina e, no caso do ensino
de direitos humanos, isso envolve não só conhecimento jurídico e compreensão sobre o trabalho policial
segundo parâmetros nacionais e internacionais, mas, especialmente, a reflexão sobre o papel desses
agentes como produto e produtores do sistema de relações no qual estão inseridos; papel, vale salientar,
que não é exercido de forma neutra (CAÇAPAVA, 2012). Mais uma vez, a participação ativa do corpo docente
é fundamental nesse processo, não só com aqueles que serão os responsáveis pela disciplina, articulando
o saber teórico com o saber profissional, mas também com o processo de construção do programa como
resultado de uma atividade colaborativa e comprometida com as finalidades formativas. Como sujeitos do
processo de ensino-aprendizagem, os professores também têm a oportunidade de medir a receptividade
dos alunos a respeito de temas como gênero, raça e sexualidade, avaliar o que funciona e as formas mais
eficazes para abordar as questões, podendo propor ajustes e alterações no programa.
Para contextualizar o espaço em que interagem os professores da área, é necessário traçar um breve
panorama sobre a organização escolar da Academia de Polícia, pois suas características impactam na
execução do programa de Direitos Humanos. Além disso, é importante estabelecer como esse tema foi
reconhecido como disciplina e as mudanças feitas nos programas ao longo do tempo.
De acordo com o art. 2º do Regulamento da Academia de Polícia (RAP), integram sua estrutura seis unidades
docentes: Administração Policial, Criminalística, Criminologia, Medicina Legal, Polícia Administrativa e
Polícia Judiciária. Cada unidade concentra uma série de disciplinas organizadas por afinidade temática ou
grande área de conhecimento. A disciplina Direitos Humanos faz parte da unidade de Polícia Judiciária,
que abrange todas as temáticas diretamente relacionadas à atribuição constitucional da Polícia Civil.
Cabe às unidades docentes selecionar as disciplinas, a carga horária e o conteúdo programático dos
cursos de formação (art. 24 do RAP); autorizar conferências e atividades externas (art. 78, III, do RAP);
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indicar professores de uma disciplina para lecionarem em outras (art. 86 do RAP); propor o número de
docentes para cada disciplina e a instauração de processo seletivo para professor (art. 4º e art. 5º, § 2º, das
Disposições Finais e Transitórias do RAP, respectivamente). Pelas atribuições apresentadas, as unidades
docentes e seus dirigentes (assim chamados no Regulamento) teriam grande proximidade com a atividade
docente e com o quadro de professores, em um cenário em que todos os sujeitos estariam entrosados
para a efetivação das ações formativas.
Convém ter em vista, entretanto, que se a forma como estão organizadas as unidades docentes assemelha-
se às instituições de ensino superior, com unidades específicas para coordenar o ensino das diversas áreas
de conhecimentos essenciais para a formação e congregar os professores das disciplinas afins, a escolha
de seus responsáveis se afasta da lógica escolar e privilegia a hierarquia policial. Assim, o coordenador
será, preferencialmente, o policial-professor ocupante de cargo da classe mais elevada dentro da
respectiva unidade, designado pelo Delegado Geral de Polícia (art. 5º do RAP). Na impossibilidade, poderá
ser designado ocupante de cargo de nível universitário (art. 19 das Disposições Finais e Transitórias do
RAP). Chama a atenção o fato de não haver qualquer menção à titulação acadêmica, à experiência na
docência e na pesquisa ou em gestão escolar para a seleção do dirigente; os requisitos estão estritamente
vinculados à carreira policial.
Ainda sobre a estrutura da escola, é preciso mencionar os delegados divisionários de polícia, responsáveis
pela administração das secretarias da Acadepol. A escolha para tais cargos é feita pelo diretor da instituição
e fica a seu critério considerar eventual formação pedagógica, titulação acadêmica ou experiência em
gestão escolar como requisitos para a seleção. A este respeito, não há qualquer normativa e, com algumas
exceções, esse não foi um aspecto levado em conta para a escolha dos gestores. Essa sistemática também
se aplica à escolha do diretor da Acadepol, que para ocupar o cargo não lhe é exigida qualquer experiência
na docência, nem conhecimentos em gestão escolar ou titulação acadêmica.
Como resultado desse cenário, a lógica policial se sobrepõe à lógica educativa e impacta no plano
concreto do cotidiano escolar, especialmente por não priorizar aspectos acadêmicos e pedagógicos,
mas policiais, e o exemplo acima mencionado sobre a escolha dos dirigentes das unidades docentes
exemplifica essa afirmação. Nesse sentido, é fundamental ter em conta que as necessidades de um
departamento de polícia não são as mesmas de uma escola de ensino profissionalizante. No caso
das academias de polícia, essas necessidades se confundem, no entanto a prioridade recai sobre as
primeiras. Por se tratar de formas de interação distintas, não há espaço para investimentos humanos e
materiais nos campos que envolvem a educação: formação e capacitação de professores, recursos para
o aprendizado, bibliotecas, laboratórios, sistemas de avaliação da qualidade do ensino, organização de
eventos e fomento aos programas de pesquisa para a construção de doutrina policial, por exemplo.
Embora exista um sistema de organização formal amparado por textos normativos, a observação
metodológica empreendida nesta pesquisa permitiu constatar que, em termos práticos, há pouca
constância na dimensão educacional, dependendo seu maior ou menor grau, principalmente, das pessoas
que ocupam os cargos de liderança do departamento. Se são policiais que têm experiência acadêmica
fora da instituição ou que compreendam as funções da Acadepol como relacionadas, primordialmente,
ao ensino e à pesquisa, as ações formativas se intensificarão. Do contrário, os projetos pedagógicos e
as redes que sustentam a dimensão educacional se fragilizarão.
Essas observações servem como pano de fundo para compreender como o programa de Direitos Humanos
da Acadepol se desenvolve. Nesse caso, além da unidade docente de Polícia Judiciária, a disciplina também
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sobre o corpo docente da Academia da Polícia Civil de São Paulo
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tem ligação com o Centro de Direitos Humanos e Segurança Pública “Celso Vilhena Vieira” (CDHPC)3, cujos
integrantes elaboram os conteúdos programáticos e ministram aulas sobre direitos humanos. Apesar
dessa afinidade formal, não há, de fato, uma interação entre o dirigente da unidade, os integrantes do
centro e os demais professores para a discussão das estratégias para o ensino de direitos humanos na
Acadepol, o que pode gerar certa dissonância entre os objetivos pretendidos e o que, efetivamente,
ocorre em sala de aula.
A criação do CDHPC coincide com a implementação do ensino de direitos humanos como disciplina própria
e componente transversal no currículo dos cursos de formação, sendo a Acadepol, em 1997, a primeira
escola de polícia a inserir essa temática em sua grade curricular, não sem encontrar resistência dos policiais
(BARALDI, 2012). Desde então, a discussão sobre direitos humanos e segurança pública passou a fazer
parte do cotidiano escolar não só dos policiais que iniciavam sua formação, nas carreiras correspondentes
aos níveis superior4 e médio5, mas também daqueles que já estavam na ativa e realizavam cursos de
aperfeiçoamento, um dos critérios para a promoção na carreira.
No caso do ensino de direitos humanos, é importante ter em mente que, embora o eixo temático seja
comum a todos os cursos, há a necessidade de adaptar o seu conteúdo às atribuições de cada carreira,
para que seja dotado de sentido e significado prático para os novos policiais. Dessa forma, se no curso
de formação para escrivão de polícia devem ser enfatizados aspectos como a linguagem e o modo de se
construir uma narrativa nos documentos oficiais de acordo com o paradigma dos direitos humanos, sem
o uso de expressões discriminatórias, depreciativas ou ofensivas; no curso para investigador de polícia,
profissionais que em um plantão policial normalmente são os encarregados do primeiro atendimento
ao público, é importante destacar noções sobre acolhimento, rede de apoio, violência institucional e
revitimização. Diferentes tipos de métodos, recursos e abordagens, portanto, podem ser utilizados, o que
exige uma constante atualização e reflexão sobre a prática pedagógica, bem como comunicação entre os
professores e a direção, para que essa prática esteja conectada com a realidade e dialogue com outros
componentes curriculares6.
A necessidade de ajustes nos conteúdos programáticos conforme a carreira foi percebida na fala de
alguns professores, no entanto até o presente momento existe apenas um conteúdo programático, que é
aplicado a todas as carreiras. Cada professor, então, pode fazer, a partir do material fornecido, os ajustes
necessários de acordo com as atribuições específicas de cada turma, destacando certos pontos, passando
superficialmente por outros ou exemplificando os tópicos do programa com casos práticos que envolvem
as funções daquela carreira.
Passando para os programas de direitos humanos, desde 1997 foram localizados quatro documentos nos
quais é possível acompanhar a evolução em relação à carga horária e aos conteúdos. Como não há uma
sistematização para o acompanhamento desse processo, não foi possível, no decorrer desta pesquisa,
saber ao certo quantos programas existiram ou quantas alterações foram feitas.
3 O CDHPC, criado em 1997, foi regulamentado pela Portaria DGP-01, de 4-2-2013 e pelo Decreto Nº 60.930/2014. Entre suas atribuições
está o auxílio na educação e conscientização dos policiais civis alunos.
4 São elas: delegado de polícia, escrivão de polícia, investigador de polícia, médico legista e perito criminal.
5 São elas: agente policial, papiloscopista policial, auxiliar de papiloscopista policial, agente de telecomunicações policial, auxiliar de necropsia,
atendente de necrotério policial, desenhista técnico-pericial e fotógrafo técnico-pericial.
6 Um exemplo desse diálogo é o que ocorre na disciplina Conduta Policial e Técnicas de Abordagem, na qual, a partir dos conceitos
trabalhados nas aulas de Direitos Humanos: Polícia Civil e a Diversidade, os alunos aprendem os procedimentos de abordagem e busca pessoal
em pessoas com deficiência e pessoas transexuais. Nesse caso, houve uma interação entre os professores, o que produziu uma padronização e
um diálogo entre as disciplinas.
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O primeiro deles (MOTA, 2017), de 2008, com carga horária de 12 horas-aula, das quais as duas últimas
eram para avaliação, estava centrado em documentos internacionais e nacionais de proteção aos direitos
humanos, questões constitucionais sobre atividade policial, violência e uso legítimo da força. O que
chama atenção nesse programa, além do conteúdo baseado em aspectos normativos-legais e pouco
direcionado ao que os alunos encontrariam no exercício de suas atividades, é a menção aos tipos e às
formas de violência, ao uso da força e ao combate à criminalidade, de modo a reafirmar a ideia do papel
de manutenção da ordem como trabalho primordial das instituições policiais (PONCIONI, 2007). No caso
do uso da força, a abordagem refere-se ao seu uso legítimo, mas não ao excesso e às suas consequências
jurídicas, funcionais e sociais (MOTA, 2017). Seguindo esse conteúdo, os professores tinham poucas
possibilidades de abordar questões críticas sobre o trabalho policial ou a respeito de grupos que merecem
uma atenção maior do Estado por se encontrarem em situação de vulnerabilidade. E se o fizessem, tratava-
se mais de uma decisão pessoal do que de uma postura institucional.
Outro ponto que merece ser registrado é que o programa de 2008 não apresentava bibliografia básica, o
que deixava os professores livres para trabalharem com o material que considerassem mais apropriado. A
ausência de bibliografia aponta para uma falta de orientação sobre o que pretende a instituição de ensino
quando forma os seus alunos em direitos humanos, já que a seleção bibliográfica revela os fundamentos
teóricos e conceituais do programa e auxilia os professores no caminho a ser percorrido na ação formativa.
O segundo programa, inserido na grade curricular das carreiras de escrivão e investigador de polícia em
2010, permaneceu com os mesmos tópicos do anterior, que correspondiam ao denominado “Módulo I –
Parte Geral”. A modificação, nesse caso, foi a inserção do “Módulo II: Diversidade Étnico-Racial”, com 4
horas-aula e orientado aos seguintes pontos: raça, etnia, racismo, preconceito e discriminação, diferenças
entre igualdade formal e igualdade material, diferenças entre crimes de racismo e de injúria racial,
racismo na sociedade e racismo policial (CAÇAPAVA, 2012). A carga horária, desse modo, passou de 12
para 16 horas-aula. A abordagem do racismo policial indica um posicionamento crítico sobre a atividade
de segurança pública e os temas permitem discussões sob diferentes perspectivas, porém não foram
encontradas pistas sobre como tal conteúdo era ministrado ou se os professores o abordavam desde as
causas estruturais e institucionais do racismo. Como no primeiro programa, esse também não apresentava
bibliografia, o que dificultou a investigação da base teórica para a elaboração do novo módulo ou do
suporte para o desenvolvimento das aulas.
A partir de 2016 é possível observar mudanças significativas no conteúdo denominado Direitos Humanos:
Polícia Civil e a Diversidade (MOTA, 2017). Além do aumento da carga horária – 24 horas-aula –, mantendo-
se as duas últimas para a avaliação, foram inseridos novos temas, com destaque para orientação sexual,
identidade de gênero, estereótipos de masculinidade e feminilidade, crimes de ódio, pessoas com
deficiência e a permanência das questões raciais, com realce para uma atividade denominada “Prática
Jurídica de Combate ao Racismo”7. A diversidade, assim, para além do complemento ao título da disciplina,
também aparecia no conteúdo programático, trazendo desafios ao corpo docente, que deveria estar
familiarizado com os novos eixos temáticos e com a proposta didática inclusiva.
Embora seja um programa inovador, especialmente sob a ótica da discussão sobre marcadores sociais
da diferença específicos, como nos anteriores, não há menção a qualquer referência bibliográfica ou
orientações sobre os objetivos e as diretrizes para a realização da prática de combate ao racismo.
7 Talvez os docentes fossem informados sobre os aspectos que envolviam essa prática diretamente pela Secretaria de Cursos de Formação ou
pelos professores que revisaram o programa, porém nada nesse sentido foi apurado durante esta pesquisa.
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Permanece, também, o caráter teórico e pouco prático do conteúdo, ainda com enfoque em
fundamentos históricos e filosóficos dos direitos humanos, documentos internacionais e aspectos
constitucionais (MOTA, 2017).
O quarto e atual programa, fornecido pela Secretaria de Cursos de Formação, foi reformulado em 2020
e nele também há interessantes alterações, especialmente no que diz respeito ao aprofundamento
das questões relativas a gênero, diversidade sexual e raça. A carga horária passou de 24 para 26 horas-
aula e os blocos temáticos iniciais, teóricos e normativos foram reduzidos para que houvesse espaço
para outros tópicos, sobretudo questões práticas que os alunos pudessem se deparar no exercício da
função. O programa, mais consistente do que os anteriores, mantém a parte introdutória sobre pontos
normativos, conceituais e direito internacional, e para cada grupo em situação de vulnerabilidade8 faz
um aprofundamento teórico, vinculando-o com a prática. São exemplos das inovações do conteúdo a
abordagem sobre: a teoria da interseccionalidade para discutir a violência de gênero e sua aplicação às
dinâmicas de opressão e discriminação dos grupos selecionados, a discriminação racial no sistema de
justiça criminal, o reflexo da discriminação racial na atividade policial, o tratamento jurídico e nominal às
pessoas transexuais e a criminalização da LGBTIfobia.
Acompanha tal conteúdo uma vasta relação de referências que indica qual foi o marco teórico sobre o
qual está assentado, além de sugestões de material audiovisual dividido por temas e disponível online.
Os docentes que irão ministrar tal disciplina, assim, podem se valer dessas informações não só para o
aperfeiçoamento profissional, mas também para a adoção de diferentes estratégias didáticas que podem
abrir espaço para discussões mais reflexivas e proporcionar maior engajamento dos alunos a respeito dos
direitos humanos.
Ainda que as indicações bibliográficas e de material audiovisual possam ser utilizadas para potencializar
a prática docente, mudanças substanciais nos conteúdos também reclamam um conjunto de ações
institucionais coordenadas com o corpo docente, para que este esteja alinhado aos fundamentos e
objetivos do novo programa. Essas ações envolvem não só o aprimoramento dos saberes teóricos e
didáticos dos professores, realizados por meio de atividades de capacitação, mas também a possibilidade
de se corresponsabilizarem pela construção dos conteúdos e do material utilizado em sala de aula. Sobre
o segundo ponto, as reuniões pedagógicas antes, durante e depois da implementação do novo programa
de conteúdo são imprescindíveis para que o corpo docente se veja implicado nesse processo.
Como nas demais disciplinas da grade curricular dos cursos de 2019/2020 da Acadepol, as ações relativas
ao atual programa de direitos humanos foram esparsas e descontínuas. Desde a sua implementação,
para fins de padronização, os professores devem utilizar em sala de aula material elaborado pelo
CDHPC9. Com exceção daqueles que integram o centro e quatro professores colaboradores, os demais
docentes que ministraram a disciplina durante o período da observação não participaram da construção
desse material. Também não houve nenhuma divulgação prévia ou espaço para que houvesse um
debate entre todo o corpo docente da disciplina. Como se verá adiante, a ausência de interação entre
8 A pesquisa em campo possibilitou apurar que a seleção dos grupos ocorreu a partir de uma decisão institucional, considerando aqueles
que já constavam em programas anteriores (como os relacionados ao gênero e à raça), ou em que a Polícia Civil já tivesse um histórico na
institucionalização da proteção de direitos (como no caso das pessoas com deficiência, pois São Paulo foi o primeiro estado a ter uma delegacia
especializada) ou em razão da visibilidade e da necessidade de reconhecimento e proteção dos direitos de seus integrantes (como em relação ao
coletivo vinculado à diversidade sexual).
9 O material consiste em um conjunto de slides que seguem a ordem do conteúdo programático e destacam os pontos que devem ser
abordados em sala de aula.
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os distintos sujeitos envolvidos no processo trouxe dificuldades para aqueles professores que não
estavam familiarizados com certos pontos teóricos do programa ou que não se sentiam atualizados em
relação às suas habilidades didáticas.
O quadro de professores da disciplina Direitos Humanos integra a estrutura da Acadepol e, para que
se possa investigar quem é essa figura, é preciso analisar como seu corpo docente, de modo geral, é
constituído, quais são suas características e a posição que ocupa na organização institucional.
De acordo com Baraldi (2012), a natureza profissionalizante do ensino policial faz com que seu corpo
docente seja captado no próprio meio profissional, característica que o define e se reflete na dinâmica que
pautará as relações com as instâncias superiores acadêmicas. No caso da Acadepol, o processo de captação
e seleção dos docentes ocorre por meio de processo seletivo10 (art. 4º, VIII, do Decreto Nº 60.930/2014)
e, com exceção das disciplinas eminentemente policiais, todos os servidores da Administração Pública
direta do Estado de São Paulo podem concorrer às vagas. De fato, no quadro de professores da Acadepol
há juízes de direito, promotores de justiça, professores da rede pública estadual e policiais militares, o que
contribui para outras perspectivas sobre a segurança pública e a atividade policial e possibilita a troca de
experiências entre os profissionais de diversas áreas.
Outras exigências para a inscrição no processo seletivo centram-se em aspectos objetivos, como ausência
de penalidades funcionais e apresentação de diploma de curso superior de bacharelado ou licenciatura,
com poucas menções à formação ou ao conhecimento em pedagogia ou didática do ensino superior.
Vale observar, ainda, que não há uma regularidade na publicação dos editais, tratando-se de uma decisão
política da direção diante da necessidade de professores de uma certa disciplina ou da inclusão de uma
nova na grande curricular.
Como ocorre com os concursos públicos da Polícia Civil de São Paulo, não há um planejamento sobre
quando serão instaurados esses processos, qual disciplina ou qual número necessário de vagas para suprir
determinada demanda. Tampouco há uma correspondência entre a realização de concursos públicos e a
atualização do corpo docente. De fato, esta pesquisa permitiu verificar que enquanto algumas disciplinas
têm um número considerável de professores, outras apresentam um grande déficit, o que traz uma série
de dificuldades para a execução do cronograma escolar e a organização das aulas quando a Academia
de Polícia recebe uma grande quantidade de alunos. Da mesma forma, constatou-se que a maior parte
dos docentes não está vinculada apenas à disciplina de aprovação no processo seletivo. É comum que
os professores ministrem aulas de acordo com a carreira policial, expertise ou formação na área, sendo
considerados, para tanto, cursos de especialização, mestrado e doutorado. Um professor, portanto, pode
ser responsável por mais de uma disciplina no mesmo curso de formação, ficando essa distribuição e
atribuição de aulas a critério da Secretaria de Curso de Formação.
Ainda que haja integrantes de outras instituições em seus quadros, o corpo docente é composto,
majoritariamente, por policiais civis que exercem suas funções em outros departamentos. Além dos
cursos de formação, os professores também podem lecionar nos cursos da Secretaria de Coordenação
10 No RAP, o art. 1º, IV, já destacava como uma das funções da Acadepol a realização de concurso para seleção de professor.
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Como são policiais que exercem suas funções em outras unidades, a atividade docente não é exclusiva
e contínua, sendo exercida conforme a demanda dos cursos e outras atividades. É importante observar
que mesmo os professores que, eventualmente, estão lotados na Academia de Polícia exercem outras
funções, sendo a docência uma atividade secundária, eventual e remunerada.
O fato de não haver dedicação exclusiva pode gerar dificuldades para os policiais-professores, pois, para
que possam lecionar, devem deixar seu ambiente de trabalho e negociar a ausência com seus superiores
hierárquicos, compensando as horas posteriormente14. Outro ponto que merece destaque é que, em
razão da natureza da atividade policial, os policiais-professores podem ter imprevistos durante sua
jornada de trabalho e as aulas, previamente agendadas, podem ser prejudicadas pela impossibilidade de
comparecimento à Acadepol.
Larini aponta outro problema que surge em razão da falta de dedicação exclusiva:
[...] a ausência de um corpo docente com total dedicação ao desenvolvimento das atividades de ensino tem
consequência imediata, em razão dos vários encargos e determinações que são derivadas do nível superior,
causando, assim, danos ao desenvolvimento completo dos cursos que são oferecidos pela corporação. Desse
modo, profissionais não qualificados para a função de coordenação pedagógica e elaboração dos cursos são
colocados nessas funções. (LARINI, 2020, p. 102).
Esse e outros problemas, como as deficiências de recursos humanos para o ensino, a ausência de
exclusividade para o exercício das funções nas academias de polícia e a falta de preparo específico para
o exercício da docência já foram apontados (BARALDI, 2012; PONCIONI, 2007; SILVA, 2007) e também
puderam ser constatados, de forma persistente, na academia de polícia paulista. Esse quadro indica a falta
de uma cultura escolar e de uma compreensão de que, ainda que seja um dos departamentos da Polícia Civil
de São Paulo, a Acadepol também é uma escola de governo e, como tal, deve seguir, para o sucesso de suas
atividades, os parâmetros de estruturação e organização escolar, com pessoal capacitado para essa função.
A falta de cultura escolar, comentada por Baraldi (2012), refere-se a diversos fatores, como
desconhecimento das normas educacionais; falta de treinamento para as atividades desempenhadas;
ausência de diretrizes ou orientações sobre a rotina escolar para a execução do trabalho; ausência de
representação docente, discente ou dos funcionários na Congregação15; problemas na elaboração e no
11 Essa secretaria coordena as atividades das Unidades de Ensino e Pesquisa dos Departamentos de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (art.
10º do Decreto Nº 60.930/2014).
12 Os três cursos de pós-graduação lato sensu oferecidos pela Acadepol (Direitos Humanos e Segurança Pública no Brasil, Polícia Judiciária e
Sistema de Justiça Criminal e Medicina Legal e Perícias Médicas) estão vinculados a esta secretaria.
13 A distinção terminológica segue o Decreto Nº 60.930/2014: concursos públicos para ingresso nas carreiras policiais civis (art. 5º, III, b, 1) e
processo seletivo para professor (art. 22, I, a, 2).
14 De acordo com a Portaria Acadepol – 82, de 16-7-2015.
15 A Congregação é composta pelo diretor, por delegados divisionários de polícia das secretarias e pelos dirigentes das unidades docentes. Tem
como atribuições, entre outras, homologar a constituição das comissões dos concursos públicos e do processo seletivo para professor e deliberar
sobre outras decisões das secretarias (art. 22 do Decreto Nº 60.930/2014).
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A falta de cultura escolar também se reflete em como a escola lida com o seu corpo docente, com poucas
e frágeis ações para o desenvolvimento ou aperfeiçoamento didáticos. A mais consistente foi o Curso de
Atualização para Docentes do Ensino Policial (SÃO PAULO, 2007; 2008a), cujos objetivos eram discutir
estratégias do ensino policial civil, com atenção para a elaboração de planejamento didático, reflexão
sobre ética docente e desenvolvimento de habilidades para as várias técnicas de ensino. O curso ocorreu
em 2007 e 2008, porém foi interrompido e, em 2018, retirado do Plano Anual de Ensino, um plano
publicado anualmente no Diário Oficial do Estado e que estabelece a relação de cursos que podem ser
ministrados durante o ano. Um dado que merece destaque consta na última publicação feita sobre o
curso (SÃO PAULO, 2008b), comunicando sua não realização, pois o número de inscritos fora insuficiente.
Como o curso não era obrigatório, tal fato poderia explicar, ainda que parcialmente, sua descontinuidade
e também sugerir o pouco interesse dos docentes na formação pedagógica, no entanto seriam
necessários outros estudos para averiguar a razão pela qual a atividade não teve êxito, considerando não
só a percepção dos policiais-professores, mas ainda o contexto e a forma como a instituição de ensino
elaborou, apresentou e divulgou o curso.
Ainda que cada professor tenha um projeto didático para as aulas, construído a partir de seus
conhecimentos, sua formação acadêmica e eventual experiência no ensino superior, é imprescindível que
a unidade escolar se responsabilize pela capacitação de seus docentes e estabeleça programas contínuos
e regulares para os professores que acabam de ser aprovados e para aqueles que já têm experiência no
magistério policial. A construção de uma política institucional a respeito do tema pode contribuir para
que esses projetos perdurem no tempo e não estejam suscetíveis às mudanças políticas ou representem
medidas isoladas, como no caso do curso comentado.
Outro ponto importante sobre o corpo de professores é a forma como, depois de aprovados, entram
em contato com a dinâmica da Acadepol. Esse é um momento primordial na nova relação que se
estabelece entre o policial e a instituição de ensino, marcada por vínculos pautados na docência e não
nas atividades de polícia judiciária. Surge, assim, a necessidade de ressignificar o seu fazer profissional,
e às funções do policial se somam as de professor. Nesse processo, sua vivência profissional converte-se
em ferramenta para sua prática didática. Essa vivência, entretanto, deve estar amparada por formação
pedagógica, para que o processo de ensino-aprendizagem e as competências profissionais sejam, de
fato, desenvolvidas, e sua experiência não se transforme em narrativa sobre sua vida. Quanto maior
for a atenção institucional aos aspectos que envolvem seu corpo docente e quanto mais professores
compreenderem, desde o início, as implicações de se comprometerem com a docência como outra
profissão e não apenas como ocupação secundária e esporádica, maiores serão as possibilidades de que
a formação policial seja consistente e de qualidade.
Desde o ponto de vista institucional, a observação realizada durante esta pesquisa indicou que, apesar da
relevância na transição do policial para policial-professor, não há qualquer formalidade para a integração
dos novos docentes à escola, com exceção do cadastro no Setor de Atribuição de Aulas, responsável
pela remuneração dos profissionais. Como os sistemas das secretarias não estão integrados, os novos
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professores também comunicam seus dados a cada uma delas, para que seus nomes estejam na relação
dos docentes disponíveis. Aprovados, os professores são absorvidos pela dinâmica da escola e passam
a ser convidados para ministrarem aulas conforme a necessidade, muitas vezes sem conhecerem a
estrutura, a organização e as possibilidades de docência na Acadepol ou, ainda, os outros colegas ou os
responsáveis pelas instâncias superiores. Como não há uma coordenação pedagógica para centralizar as
questões relativas ao processo de ensino-aprendizagem, as interações se estabelecem entre os novos
professores e a Secretaria, e os impasses que surgem – dúvidas burocráticas, relacionamento com alunos,
questionamentos sobre os conteúdos programáticos e material didático, cronograma e controle das
atividades docentes – são resolvidos de formas distintas, segundo as rotinas de cada seção.
Como a realização dos cursos é irregular, o contato dos professores com o centro de ensino não é constante
e surge somente quando há necessidade de verificar a disponibilidade para as aulas. O contato é feito
pela Secretaria de Cursos de Formação, que, após o aceite do docente, lhe envia o material didático.
Eventualmente, também pode ser enviado o conteúdo programático, caso seja um novo programa ou a
primeira vez que o professor ministra a disciplina.
Um aspecto que chama a atenção na disciplina é que desde a sua criação até o momento em que foi
realizada esta pesquisa, somente dois processos seletivos para a captação de docentes foram instaurados.
Antes da seleção específica, professores da disciplina Direitos da Cidadania, na qual os direitos humanos
eram abordados, ministravam as aulas (CAÇAPAVA, 2012).
O primeiro certame foi instaurado em 1997 para o preenchimento de dez vagas, com os seguintes
requisitos: 1) ser servidor da Administração Pública direta do Estado de São Paulo; 2) ter grau superior
em Direito, Psicologia, Ciências Sociais, História, Filosofia ou Serviço Social; e 3) ter bons antecedentes
funcionais (SÃO PAULO, 1997). Seguindo a estrutura estabelecida para os processos seletivos, na
primeira etapa, os candidatos deveriam apresentar uma monografia, cujo tema foi “Violação de
Direitos Humanos: a) extermínio; b) tortura; c) discriminação racial e d) discriminação contra a mulher e
respectivos instrumentos de proteção da pessoa humana”. Já para a segunda etapa, uma aula-prova, os
temas versaram sobre a evolução histórica e filosófica dos direitos humanos, a incorporação dos tratados
internacionais de direitos humanos do direito brasileiro, a polícia como instrumento de realização da
cidadania e garantia dos direitos humanos e os direitos humanos dos reclusos, com enfoque nas regras
mínimas da ONU e seus reflexos na Lei de Execução Penal.
A última etapa, de títulos, previa, expressamente, a concessão de pontos para candidatos com título de
pós-graduação, pedagogia ou professor ou, ainda, pelo exercício no magistério policial, o que indica uma
preocupação com a formação dos futuros professores, mas uma formação que é anterior ao ingresso
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e, com exceção do último critério, desconectada da docência policial. O edital, ainda, apresentava uma
lista de sugestões bibliográficas, o que poderia guiar os candidatos quanto à linha teórica adotada pela
comissão do processo seletivo. Nesse processo foram aprovados dez candidatos.
Em 2012, no segundo processo seletivo, com abertura de cinco vagas, o tema da monografia foi “A
importância da educação em direitos humanos para as atividades de polícia judiciária”. Já para a aula-
prova, os temas foram os seguintes: 1) “Direitos humanos – conceito e evolução histórica”; 2) “Direitos
humanos e a Comissão da Verdade – Reflexos”; 3) “A atuação da Polícia Civil nos crimes de intolerância
sob a ótica dos direitos humanos”; 4) “Direitos humanos na investigação policial”; e 5) “Direitos humanos
na prevenção da violência policial” (SÃO PAULO, 2012). O sistema de atribuição de pontos permaneceu o
mesmo do edital anterior. Nesse processo foram aprovados três candidatos.
Ambas as seleções mantiveram a mesma estrutura e diversidade temática, exigindo dos candidatos
conhecimentos teóricos e práticos sobre os direitos humanos e vinculando-os à atividade policial. Ainda
que a dimensão da docência apareça somente no sistema de pontuação dos títulos e não como um
requisito fundamental para o candidato, ela também privilegia aqueles que já possuíam conhecimento na
área. Desde um ponto de vista formal, portanto, os editais parecem dar conta das exigências para o cargo,
no entanto, também é importante verificar qual era, na prática, a dinâmica docente.
Considerando a realização de apenas dois certames, o quadro de docentes não é suficiente para suprir a
demanda dos cursos, razão pela qual, ao longo dos anos, foi sendo preenchido por outros professores com
conhecimento prático ou formação na área ou, ainda, experiência ministrando tal conteúdo. A disciplina
original de parte desses profissionais é Inquérito Policial, porém professores de Criminologia, Investigação
Policial, Legislação Penal Especial, Mediação de Conflitos, Polícia Comunitária e Redação Oficial também
lecionam a matéria. A princípio, essa diversidade pode ser interessante e permitir uma abordagem
interdisciplinar em sala de aula, mas para se chegar a tal constatação seria necessário averiguar se ou
como esses professores se relacionam com as estruturas responsáveis pelo ensino de direitos humanos,
ou seja, o dirigente da unidade docente de Polícia Judiciária e os integrantes do CDHPC, para que que as
pretensões formativas estejam alinhadas e haja um diálogo entre os sujeitos envolvidos nesse processo.
Durante a investigação na Academia de Polícia para este trabalho, estavam em andamento cursos de
formação de sete carreiras policiais, de forma que foi possível observar a rotina da escola e conversar
com alguns professores sobre as inovações nos programas de Direitos Humanos. Com atenção à
implementação do novo programa no curso de delegado de polícia, a percepção foi que, diante da
nova proposta, alguns professores chegaram a expressar preocupação e mencionar as dificuldades em
ministrar tal conteúdo, pois não estavam familiarizados com certos conceitos ou pontos do programa
e, tampouco, tiveram tempo suficiente para se prepararem para as aulas. Como alguns também não
participaram da elaboração do material didático, surgiu a preocupação em como planejar a aula a partir
de um material em que não pôde contribuir e que, necessariamente, deveria ser utilizado em sala de aula.
Um terceiro aspecto observado foi o receio de alguns docentes em enfrentar, com a profundidade que
exigia o programa e estava expressa no material didático, as discussões sobre gênero, raça e sexualidade
em sala de aula e como lidar com as tensões que daí poderiam surgir com o corpo discente. Um caminho
para minimizar essas adversidades seria a integração não somente entre os docentes da disciplina e a
Secretaria de Cursos de Formação, que poderiam compartilhar seus anseios, suas dúvidas e expectativas,
mas também com o Centro de Direitos Humanos, que serviria como uma referência para apoiar os
professores nessa tarefa. Os aspectos apresentados também indicam a necessidade de implementação
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de medidas didáticas planejadas e coordenadas com a reformulação curricular para que os professores se
sintam amparados pela instituição de ensino e tenham o repertório necessário para enfrentar os desafios
que permeiam o trabalho docente.
Percebe-se, assim, que a evolução em termos de conteúdo e o aumento da carga horária do programa
de direitos humanos não foram acompanhados por um incremento no quadro de professores ou na
formação continuada para que pudessem refletir sobre os saberes necessários para que os programas
fossem, efetivamente, colocados em prática desde uma perspectiva pedagógica.
Nesse contexto, ainda que não tenham sido desenvolvidas no âmbito da disciplina Direitos Humanos, duas
iniciativas recentes sobre violência de gênero e direcionadas, exclusivamente, aos docentes da Acadepol
merecem destaque, pois estão vinculadas ao eixo temático que interessa a esta pesquisa. Outra medida
significativa foi a instauração de processo seletivo para professor de Didática do Ensino Superior, o que
indica um movimento da instituição para a qualificação pedagógica dos docentes.
A primeira ação foi o seminário Princípios Pedagógicos para a Formação Policial em Violência de Gênero,
desenvolvido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e realizado em parceria com a Acadepol em
julho de 2019 (SÃO PAULO, 2019a). O objetivo foi discutir com os professores que ministravam aulas
relacionadas à temática de gênero como trabalhar os mitos e preconceitos em relação à violência doméstica
e à violência sexual na formação dos policiais, e apresentar recursos pedagógicos para auxiliá-los nessa
tarefa. O evento, mais do que um espaço para abordar questões teóricas, permitiu que os professores
refletissem sobre suas práticas e compartilhassem suas experiências e inquietações, avaliando o que havia
funcionado, o que deveria ser repensado e o que poderia ser aperfeiçoado em sala de aula (MACAULAY;
MARTINS, 2018).
Criar oportunidades como essas, em que uma escola de polícia se abre para outros autores que não
pertencem à segurança pública, e organizar ações conjuntas voltadas para os professores impacta de forma
positiva na qualidade do processo de ensino-aprendizagem, especialmente das disciplinas vinculadas aos
direitos humanos, pois incentiva a adoção de novas abordagens e métodos interativos de ensino, fomenta
a aproximação entre os docentes da área e as organizações civis e indica uma preocupação institucional.
A prática docente baseada na troca ativa de ideias e experiências, assim, enriquece o repertório dos
professores, colabora com sua atualização, cria redes de apoio e favorece a formulação de respostas a
problemas concretos, de modo a proporcionar um maior envolvimento e efetivo aprendizado dos alunos,
motivando-os a transformar sua prática profissional e refletir criticamente sobre a posição que ocupam
perante a realidade como agentes da segurança pública (FBSP, 2020b).
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A formação em direitos humanos a partir de um olhar
sobre o corpo docente da Academia da Polícia Civil de São Paulo
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A segunda iniciativa foi uma ação desenvolvida no âmbito do Programa de Pesquisa e Capacitação Continuada
em Feminicídio e a Investigação sob a Perspectiva de Gênero (SILVESTRE, 2019). Entre os objetivos, estava a
capacitação dos policiais civis sobre a investigação de mortes violentas de mulheres sob a perspectiva de gênero e
a promoção e o fomento de atividades voltadas para a produção e a difusão de conhecimento sobre feminicídios
(ACADEPOL, 2018). Como consequência das diretrizes do programa, foi criada a disciplina Feminicídio e a
Investigação sob a Perspectiva de Gênero16, inserida na grade curricular de todos os cursos de formação.
Como o programa previa uma nova abordagem para o tratamento da questão e isso exigia uma
padronização das medidas formativas que seriam adotadas, a nova disciplina mobilizou a direção a investir
na qualificação de seus professores que, como no caso anterior, já ministravam aulas que envolviam
gênero17. O objetivo, nesse caso, era que todos os professores falassem a mesma “linguagem” e estivessem
alinhados com o projeto pedagógico.
Em setembro de 2019, então, foi realizado o seminário Feminicídio e a Investigação sob a Perspectiva de Gênero
(SÃO PAULO, 2019b; SILVESTRE, 2019), ocasião em que os professores do Grupo de Estudos sobre Mortes
Violentas de Mulheres – Feminicídios18, responsáveis pela elaboração da disciplina, apresentaram seu conteúdo
programático e o material que havia sido produzido sobre o tema (GUEBERT; MOTA, 2019a; 2019b). O objetivo
do evento, além da apresentação dos tópicos do programa, centrou-se em estabelecer diretrizes didáticas,
conceituais e procedimentais sobre o ensino do feminicídio na Acadepol, de modo que os docentes pudessem
desenvolver as habilidades necessárias para ministrar tal conteúdo conforme cada carreira e momento formativo.
A partir dessa capacitação, foi possível criar uma rede de professores, bem como disseminar o
conhecimento e ampliar a oferta da disciplina nos cursos de formação, especialmente no interior de São
Paulo, pois, até aquele momento, ela era ministrada somente na capital e pelos integrantes do grupo de
estudos. O contato entre os policiais-professores também permitiu que pudessem refletir sobre o ensino
de gênero para policiais, não só desde uma perspectiva da docência, mas também do ponto de vista da
experiência profissional. O encontro, deste modo, permitiu a discussão sobre as melhores estratégias
didáticas para abordar gênero, sendo também uma oportunidade para que os docentes compartilhassem
ocorrências policiais que poderiam embasar estudos de casos e debatessem posicionamentos jurídicos
que afetam a atividade policial e que ainda não estão pacificados19.
Finalmente, a instauração de processo seletivo para dez vagas de professor de Didática do Ensino Superior
representa um marco na valorização das características formativas da Acadepol e aponta para novas
perspectivas no ensino policial desde o lugar que um corpo docente capacitado ocupa nesse processo. Ao
contrário de outros processos seletivos, nos requisitos para a inscrição, constava a exigência de título de
mestrado ou doutorado. Além disso, o edital privilegiava, por meio de atribuição de maior pontuação na
etapa dos títulos, os candidatos que tivessem mestrado ou doutorado na área de educação, especialização
em didática do ensino superior ou exercício de magistério em cursos de graduação e/ou pós-graduação
em instituição de ensino superior (SÃO PAULO, 2019c).
16 Até então, a abordagem do feminicídio ocorria de maneira esparsa, muitas vezes apenas de forma jurídica, restringindo-se à análise da
qualificadora, ou com conteúdo repetitivo, pois, raramente, havia comunicação entre os professores das diferentes disciplinas que abordavam
o tema.
17 Nesse caso, além desses professores, foram convidados docentes de Inquérito Policial, Investigação Policial, Perícia Criminal e Medicina
Legal, considerando o caráter interdisciplinar da nova disciplina.
18 O grupo de estudos, composto por professores da Acadepol, foi criado para instrumentalizar as ações do programa de pesquisa.
19 Por exemplo, as tensões na sala de aula que surgem do debate sobre a possibilidade de mulheres trans e travestis serem vítimas de feminicídio
(UEDA, 2020).
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A formação em direitos humanos a partir de um olhar
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A monografia exigida como parte da seleção foi intitulada “A docência no ensino superior com ênfase nos
cursos de pós-graduação e no ensino policial” e indicava a preocupação tanto com o corpo docente dos
cursos de pós-graduação oferecidos pela Academia de Polícia quanto com o conjunto de professores do
ensino policial de forma geral. Do mesmo modo, a seleção dos temas da aula-prova, que conciliavam os
conhecimentos em didática com as singularidades do ensino policial, como didática do ensino superior
e o ensino policial; métodos de ensino para adultos e ensino profissionalizante; metodologias ativas de
aprendizagem no ensino superior; e ensino a distância (SÃO PAULO, 2019c).
Um passo importante para o fortalecimento da disciplina, que ainda está em fase inicial, foi a inclusão na
Unidade Docente de Administração Policial, o que contribui para a sua manutenção na grade curricular
da Acadepol (SÃO PAULO, 2021). Vale pontuar, contudo, que esse fato só será efetivo se as instâncias
escolares superiores se apropriarem da disciplina como o principal instrumento para uma reformulação
na forma como a dimensão pedagógica é tratada no centro de ensino e alocarem esses professores em
pontos estratégicos da formação, aproveitando todos os seus conhecimentos. Desse modo, os docentes
aprovados poderão auxiliar não só na organização da rotina escolar, mas também subsidiando um projeto
de ações pedagógicas consistentes e contínuas, centrado no desenvolvimento de habilidades específicas,
sobretudo a capacidade didática, para o desempenho da atividade docente na Acadepol.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das inovações curriculares no programa de Direitos Humanos dos cursos de formação da Acadepol,
este artigo buscou averiguar se o corpo docente acompanhou essas mudanças, considerando não só
aspectos técnicos e jurídicos, mas, especialmente, didáticos. Para tanto, foi necessário estabelecer o
lugar da docência na formação policial, um lugar que, embora imprescindível no processo de ensino-
aprendizagem, ainda é pouco explorado pela literatura da área e pelas próprias academias de polícia.
Desse modo, a forma como se estabelece a dinâmica entre escola, professores, programa e outros
aspectos pedagógicos será marcada por descontinuidade, dificuldades práticas e falta de comunicação
com as instâncias formalmente responsáveis pelo ensino de direitos humanos.
A fragilidade da dimensão pedagógica na Acadepol, que na relação com seus docentes se acentua, tem
como um dos efeitos, a despeito da existência de instrumentos formais que organizem a estrutura escolar,
o pouco investimento em ações de capacitação técnica e didática dos professores. Como resultado,
percebeu-se que não foram efetivadas medidas para que os docentes acompanhassem os importantes
avanços nos conteúdos da disciplina. A completude e o sucesso do projeto pedagógico, assim, dependem
de ações que priorizem a formação docente e que sejam prioridade na política educativa da escola.
As iniciativas com ênfase nos professores levantadas durante esta pesquisa apontam para uma possibilidade de
reconfiguração da relação entre o quadro docente e a Acadepol e os investimentos na dimensão pedagógica da
escola. A criação da disciplina Didática do Ensino Superior reforça esse quadro e abre espaço para o fortalecimento
da cultura escolar, na qual esses profissionais, além de ministrarem aulas centradas no desenvolvimento da
capacidade docente, poderão auxiliar na reorganização dos processos e das rotinas escolares.
A contribuição que procurou oferecer este artigo pretende reforçar a compreensão do trabalho docente
como peça-chave imprescindível para a formação policial e apontar para a exploração desse campo a
partir de novas perspectivas, com atenção para o policial-professor.
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CONSTRUÇÃO E VALIDAÇÃO DE
INSTRUMENTO PARA AVALIAÇÃO DE
IMPACTO DE TREINAMENTO EM
PROFUNDIDADE DO CURSO DE FORMAÇÃO
PROFISSIONAL DA POLÍCIA FEDERAL
ANDERSSON PEREIRA DOS SANTOS
Delegado de Polícia Federal. Doutor em Administração pela Universidade de Brasília - UnB (2021). Coordenador de
Recrutamento e Seleção da Polícia Federal. Professor e Tutor da Academia Nacional de Polícia - ANP/PF.
País: Brasil Estado: Distrito Federal Cidade: Brasília
E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1266-1418
Contribuição de cada autor: Andersson Pereira dos Santos planejou e executou a pesquisa, efetuando a revisão de
literatura, construção dos instrumentos e análise dos resultados. Fernando José Barbato Couto participou da coleta e
análise de dados. Efetuou a revisão do trabalho. Francisco Antonio Coelho Junior Orientou a pesquisa, indicou literatura e
fez a revisão final do trabalho.
RESUMO
A formação dos profissionais de segurança pública é fundamental na preparação para as funções,
responsabilidades e atividades que estes agentes públicos exercerão quando do exercício dos seus cargos.
O presente artigo tem como objetivo apresentar as etapas de construção e de validação de uma medida
de avaliação de impacto em profundidade de treinamento, referente ao Curso de Formação Profissional
dos novos policiais federais promovido pela Polícia Federal. A coleta de dados contou com uma amostra
de 355 policiais, egressos do curso de formação. A medida foi objeto de validação semântica, por juízes
e empírica, com a utilização de análises exploratórias dos componentes principais e análise fatorial.
Todos os procedimentos de análise psicométrica, para validação de medidas, foram adotados. Como
resultado, o instrumento foi validado com 11 fatores e 46 itens, contendo bons índices psicométricos
(KMO = 0,92 e Alphas de Cronbach dos fatores oscilando entre 0,73 e 0,95). A estrutura da escala se
mostrou válida e confiável, apresentando índices psicométricos bastante satisfatórios. A construção e o
emprego de instrumentos de avaliação dos cursos de formação, como o apresentado neste trabalho, são
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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fundamentais para aferir programas de treinamento realizados pelas polícias, avaliando se são adequados
e eficazes para formar novos profissionais da área de segurança pública, possibilitando a aquisição de
conhecimentos teóricos e práticos que irão orientar suas atuações.
Palavras-chave: Avaliação de treinamento. Impacto de treinamento no trabalho. Impacto em
profundidade. Curso de Formação Profissional. Polícia Federal.
ABSTRACT
THE CONSTRUCTION OF AN IN-DEPTH TRAINING IMPACT ASSESSMENT SCALE FOR THE FEDERAL POLICE
PROFESSIONAL TRAINING COURSE
The training of public security professionals is essential in preparing for the roles, responsibilities and activities that these
public agents will exercise when exercising their positions. In this sense, this article aims to present the construction
and validation stages of an in-depth training impact assessment scale, referring to the Professional Training Course
for the new federal police officers, promoted by the Federal Police. The data collection included a sample of 355
police officers, who had graduated from the training course. The scale was object of semantic validation, by judges
and empirical, using exploratory analysis of the main components and factor analysis. All procedures for psychometric
analysis of the data were adopted. As a result, the instrument was validated with 11 factors and 46 items, containing
good psychometric indices (KMO = 0.92 and Cronbach’s Alphas of the factors ranging from 0.73 to 0.95). The scale
structure proved to be valid and reliable, with very satisfactory psychometric indices. The construction and use of
training course evaluation instruments, as presented in this work, is essential to assess training programs carried out by
the police, assessing whether they are adequate and effective to train new professionals in the area of public security,
enabling theoretical and practical knowledge that will guide its performance.
Keywords: Training evaluation. Impact of training at work. Depth impact. Professional Training Course.
Federal Police.
INTRODUÇÃO
Ações de treinamento, desenvolvimento e educação (TD&E) são amplamente recomendadas à melhoria do
desempenho no exercício das atividades laborais. Para se tornarem mais competitivas, as organizações têm
ampliado seus investimentos nestas ações (SEIDL; LEANDRO-FRANÇA; MURTA, 2018), e os pesquisadores
têm se preocupado cada vez mais em realizar estudos voltados para a avaliação de treinamento (ODELIUS;
SIQUEIRA JÚNIOR, 2011), com o propósito de verificar a efetividade dos resultados dos eventos realizados
e o retorno dos recursos investidos (ABBAD, 1999). Para avaliar a efetividade das ações de TD&E, é
necessário medir os efeitos que os eventos realizados causam no desempenho individual das pessoas que
participaram destas ações (ZERBINI; ABBAD; MOURÃO, 2012), investigando se as competências adquiridas
durante os eventos instrucionais estão sendo aplicadas no ambiente de trabalho e se tais competências
modificaram a maneira de desempenhar as tarefas exigidas para o cargo (FREITAS et al., 2006).
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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serviços públicos com produtividade e eficiência, que garantam qualidade à implementação de políticas
públicas (BITTENCOURT; ZOUAIN, 2010).
Esta realidade também se aplica às instituições que atuam na segurança pública. As ações de TD&E
realizadas por essas organizações são imprescindíveis à implementação das políticas de segurança
pública, possibilitando o desenvolvimento das competências necessárias para o exercício da função
policial. É fundamental que estas ações sejam sistematicamente avaliadas, revelando possíveis erros ou
acertos ocorridos na realização da capacitação (LIMA et al., 2020), não somente para garantir a aplicação
racional de recursos mas, principalmente, para assegurar que estas organizações disponham de um corpo
de servidores preparados para prestar serviços de segurança pública de qualidade para os cidadãos.
As organizações policiais têm, como preocupação primeira, o combate à criminalidade e a redução dos
índices criminais, sendo este um pilar essencial no âmbito do sistema de segurança pública nacional
(COSTA; LIMA, 2014). A segurança pública brasileira passou por várias transformações históricas e busca,
hoje, consolidar uma nova identidade dentro do vigente contexto constitucional (SOUSA; MORAIS,
2011), com ênfase na inteligência, na atuação comunitária e na prevenção (não apenas no combate à
criminalidade posta). Ações táticas e estratégicas têm sido realizadas a partir da interação entre múltiplos
atores sociais, visando à promoção do bem-estar social comum e ao respeito aos Direitos Humanos.
Logicamente que, considerando toda a diversidade sociocultural no Brasil, e tantas diferenças regionais,
em que pese possíveis estigmas ou estereótipos históricos, discutidos por Costa (2004), ainda direcionados
a servidores ou instituições de segurança pública, sua atuação é imprescindível na manutenção da vida e
da ordem social, daí a relevância na profissionalização da sua gestão. Profissionalizar e melhor qualificar os
serviços, em quaisquer organizações públicas, especialmente as de segurança, implica em ter condições
de ofertar, à sociedade, maior eficiência das suas ações, melhorando os resultados. A gestão da segurança
pública é um dos mais complexos desafios dos gestores públicos, dado o grande número de variáveis
capazes de influenciar na eficácia das políticas públicas implementadas (SILVEIRA, 2014; CAMPOS;
ALVAREZ, 2017), daí a importância de capacitar mais eficazmente seu quadro funcional.
Nesse sentido, a formação dos profissionais de segurança pública é fundamental na preparação para
as funções, responsabilidades e atividades que estes agentes públicos exercerão quando do exercício
dos seus cargos (CARO, 2011). Entender as atividades que o policial desempenha cotidianamente é
essencial para a análise da eficiência de um programa de formação policial, devendo o treinamento estar
estreitamente vinculado ao serviço que será realizado por ele junto à sociedade (BASILIO, 2009).
Ocorre que a maioria dos programas de formação de policiais deixa um vazio entre o treinamento curricular
da academia e a experiência prática do trabalho nas atividades de segurança pública (MCCAMPBELL, 1987).
Reconhece-se que os currículos e programas de treinamento atuais não são adequados para atender às
necessidades de recrutamento de policiais nas sociedades modernas (MCGINLEY et al., 2019). E, no Brasil,
verifica-se que não houve um debate profundo, entre autoridades governamentais, policiais, técnicos da
área de segurança pública e sociedade, a respeito de uma agenda de reformas que contemple a formação
profissional de policiais, o que poderia proporcionar a aquisição das competências necessárias para o
desempenho das ações de modo eficaz e eficiente (PONCIONI, 2007).
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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treinamento, especialmente em profundidade (COELHO JUNIOR; ABBAD, 2010). Estudos que analisam
a influência entre ações de aprendizagem e posterior impacto do treinamento no trabalho dos egressos,
das ações de capacitação, ainda são raros (ARAUJO; ABBAD; FREITAS, 2019). Além disso, há lacunas
importantes nas pesquisas científicas sobre treinamento policial (TELEP, 2016), uma delas é exatamente a
falta de medidas validadas psicometricamente e construídas de acordo com a realidade de cada instituição
de segurança pública.
Visando suprir tal lacuna, esta pesquisa tem como objetivo geral construir e validar uma escala de avaliação
de impacto em profundidade do Curso de Formação Profissional da Polícia Federal. O curso teve como
finalidade desenvolver competências técnico-profissionais inerentes à função policial e refere-se à
capacitação de atividades finalísticas dos profissionais para desempenhar esta função. O trabalho tem
como objetivos específicos: descrever os procedimentos de elaboração e a construção dos itens; descrever
as etapas de validação semântica e por juízes; e apresentar indicadores psicométricos oriundos de análise
fatorial exploratória da medida de impacto de treinamento em profundidade presentemente validada.
REFERENCIAL TEÓRICO
Treinamento tem sido tradicionalmente definido como o processo pelo qual os indivíduos mudam suas
habilidades, seus conhecimentos, suas atitudes e/ou seus comportamentos (QUARTEY, 2012; ZWICK, 2015).
As ações de TD&E realizadas no âmbito das organizações, formalizadas em programas, buscam desenvolver
as competências profissionais com o objetivo de apoiar e permitir o alcance dos objetivos organizacionais
(GARAVAN, 1997; ONGALO; TARI, 2015), consistindo de estratégias de aprendizagem formal que variam
no tocante à sua duração, complexidade e proximidade com os objetivos estratégicos da organização
(ARAÚJO; ABBAD; FREITAS, 2019). O TD&E influencia todas as áreas de recursos humanos e é influenciado
por estas, fornecendo subsídios para o aprimoramento do desempenho individual e organizacional, assim
como recebendo feedbacks para que as ações instrucionais possam suprir as demandas educacionais dos
colaboradores e da organização (JEHANZEB; BASHIR, 2013; RAHMAN et al., 2013).
Um programa de TD&E é estruturado com ações sistematizadas de aprendizagem que podem ser
classificadas, hierarquicamente, como Informação, Instrução, Treinamento, Desenvolvimento ou
Educação. O treinamento (T), foco deste artigo, refere-se à ação formal de aprendizagem voltada
diretamente para o aperfeiçoamento do desempenho por meio do mapeamento e da suplantação das
dificuldades existentes na execução das tarefas laborais ou direcionada para a disseminação de novos
conhecimentos e habilidades necessárias para se utilizar novas tecnologias no contexto de trabalho
(PILATI; VASCONCELOS; BORGES-ANDRADE, 2011; ROTAR, 2012; FARIAS; RESENDE, 2020). Moreira e
Munck (2010) resumem treinamento como a ação organizacional que deverá ser capaz de possibilitar que
um indivíduo seja habilitado para fazer algo que nunca havia feito antes ou de aperfeiçoar uma habilidade
que este já possui.
Borges-Andrade (2002) define que o sistema de TD&E é composto por três subsistemas (fases ou etapas): (a)
análise de necessidades de treinamento; (b) planejamento de treinamento e a sua execução; e (c) avaliação
de treinamento. A integração destes subsistemas é fundamental para o desenvolvimento de conhecimentos,
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
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habilidades e atitudes que as organizações necessitam para melhorar seu desempenho e para a promoção
do desenvolvimento humano e profissional dos seus integrantes (BORGES-ANDRADE, 2002).
Para a realização deste trabalho foi utilizado o conceito tradicionalmente empregado para treinamento
discutido por Zerbini e Abbad (2005), que define treinamento como o conjunto de ações educacionais
planejadas de modo sistemático que possibilita o aperfeiçoamento e a aquisição das competências por
um indivíduo que deverão ser aplicadas nas suas atividades de trabalho. No contexto da pesquisa, o papel
do treinamento é central à capacitação de policiais que devem ser treinados para que saibam utilizar suas
habilidades de modo apropriado, aplicando-as em situações nas quais decisões que impliquem entre a
vida e a morte são tomadas em segundos, exigindo domínio das competências necessárias à profissão.
Avaliar o impacto de TD&E é importante para se obter informações que possam ser usadas para aprimorar
as ações de capacitação, observando se houve melhoria no desempenho dos indivíduos, das equipes e da
organização (FREITAS; BORGES-ANDRADE, 2004; ZERBINI; ABBAD, 2010). Desenvolver medidas confiáveis
e válidas para avaliar a aprendizagem e o desempenho no trabalho conduz às implicações no contexto
corporativo (MARTINS; ZERBINI; MEDINA, 2018), permitindo, consequentemente, a racionalização dos
custos e a máxima eficácia e eficiência dos eventos promovidos.
Além disso, o desenvolvimento de medidas válidas e confiáveis contribui para que sejam realizados
avanços no campo teórico-científico, produzindo conhecimentos sobre os fatores que operam para afetar
a aprendizagem e a performance no trabalho (AGUINIS; KRAIGER, 2009). Embora seja difícil mensurar
objetivamente o valor das práticas em gestão de pessoas e o seu retorno, a pressão pela busca de
eficiência, produtividade e diminuição dos custos torna obrigatório que todas as áreas demonstrem a sua
capacidade de agregar valor para as organizações, o que impõe a necessidade em se adotar medidas para
a avaliação dos treinamentos realizados (SCORSOLINI-COMIN; INOCENTE; MIURA, 2011).
As abordagens mais tradicionais acerca da avaliação de treinamento foram traduzidas em modelos propostos
por Kirkpatrick (1976) e Hamblin (1978). Kirkpatrick propôs um padrão de abordagem da avaliação de
treinamento em quatro níveis: “reação”, “aprendizagem”, “comportamentos” e “resultados”. Hamblin ampliou
o modelo elaborado por Kirkpatrick, ao dividir o nível “resultados” em dois outros níveis: “organização” e “valor
final”. Na literatura nacional, destacam-se o modelo MAIS, de Borges-Andrade (2002), e o modelo IMPACT,
de Abbad (1999), como referências para o estudo da avaliação de treinamento no contexto organizacional
(COELHO JUNIOR; ABBAD, 2010), tratando-se de importantes padrões para avaliar programas de TD&E.
Borges-Andrade (2002) elaborou o Modelo de Avaliação Integrado e Somativo (MAIS), que foi o primeiro
modelo brasileiro que propôs a inclusão da análise de variáveis do ambiente como fator que influenciavam
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
Francisco Antonio Coelho Junior
todo o processo de treinamento (SCORSOLINI-COMIN; INOCENTE; MIURA, 2011). O MAIS abrange cinco
elementos (ou componentes) que devem ser mensurados: (1) os insumos; (2) os procedimentos; (3) os
processos; (4) os resultados; e (5) o ambiente. Houve o acréscimo de um elemento importante no modelo
MAIS em relação aos modelos de Kirkpatrick (1976) e de Hamblin (1978), ao também considerar o contexto
dos treinandos (ambiente), antes (preditores) e depois (suporte de transferência) do treinamento, e não
somente os objetivos propostos na ação de capacitação.
Abbad (1999) desenvolveu outro modelo de avaliação de TD&E com base no que foi encontrado na
literatura sobre o tema, sugerindo um novo padrão de predição de impacto de treinamento. O Modelo
Integrado de Avaliação do Impacto do Treinamento no Trabalho – IMPACT é estruturado com sete
componentes: (1) o suporte organizacional; (2) as características do treinamento; (3) as características
da clientela; (4) as reações; (5) a aprendizagem; (6) o suporte à transferência; e (7) o impacto do
treinamento no trabalho.
No presente artigo, a construção de escala de avaliação de impacto em profundidade tem por objetivo
avaliar os resultados do treinamento referentes ao nível “comportamento”, nos modelos propostos por
Kirkpatrick (1976) e Hamblin (1978), ao componente “resultado” do Modelo MAIS e ao elemento “impacto
de treinamento no trabalho” no Modelo IMPACT, uma vez que o impacto em profundidade investiga os
resultados diretos de um treinamento, por meio da construção de indicadores específicos do seu impacto
no desempenho dos treinados, medido por meio de itens elaborados a partir dos objetivos instrucionais
do curso (COELHO JUNIOR; ABBAD, 2010; SEIDL; LEANDRO-FRANÇA; MURTA, 2018).
Abbad (1999) destaca que a transferência de aprendizagem tem sua origem na Psicologia experimental, tendo
uma utilização mais genérica, sendo aplicada em vários contextos. O termo transferência de treinamento
é mais específico, se referindo à aplicação de conhecimentos adquiridos em um treinamento no ambiente
de trabalho. Pilati e Abbad (2005), por sua vez, definem o conceito de transferência de aprendizagem
como a aplicação efetiva no trabalho dos conhecimentos, das habilidades e atitudes adquiridas em um
evento instrucional. A capacitação, além de proporcionar a transferência de competências, contribui para
o aprimoramento dos processos, possibilita o uso de novas tecnologias e a conversão de conhecimentos
tácitos em explícitos, tendo impacto no desempenho dos egressos (CASTRO et al., 2018).
A transferência de aprendizagem foi compreendida por Hamblin (1978) como impacto de treinamento em
profundidade, que são os efeitos diretos do evento realizado no desempenho do trabalho dos participantes.
O impacto pressupõe que o treinamento deverá ser avaliado de acordo com os objetivos instrucionais
previamente estabelecidos. Os efeitos mais gerais deste treinamento, não relacionados diretamente aos
objetivos instrucionais, foram denominados pelo autor como impacto de treinamento em amplitude. O
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 128-151 133
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
Francisco Antonio Coelho Junior
desempenho no trabalho pode ser definido como o conjunto de comportamentos manifestados pelo
indivíduo no exercício de suas atribuições que mobiliza as competências com a finalidade de executar as
suas tarefas, considerando-se o ambiente organizacional (COELHO JUNIOR, 2011).
Para definir se o que será medido é comportamento ou resultado, devem ser analisados os objetivos
traçados para o treinamento, que têm que constar no plano instrucional do curso, ou as justificativas para
a implementação deste. Quando não são formulados os objetivos esperados para a capacitação, deve ser
feito um levantamento exploratório, utilizando entrevistas com pessoas envolvidas com o treinamento
e consulta a documentos (FREITAS et al., 2006). Segundo Ongalo e Tari (2015) e Borges-Andrade (2002),
na maioria das situações, a análise dos objetivos do treinamento sugere que o foco da avaliação seja
no comportamento, sendo o mais comum na literatura de avaliação de treinamento a aferição do
comportamento resultante do evento instrucional. No entanto, em algumas situações é possível medir
os resultados deduzidos dos comportamentos esperados. Os indicadores construídos para avaliar os
comportamentos ou os resultados devem descrever as tarefas desenvolvidas pelos colaboradores que
foram treinados para obter uma melhoria em um determinado processo ou operação, verificando se foi
atingido o que era esperado daquela capacitação específica (BORGES-ANDRADE, 2002; ABBAD; PILATI;
PANTOJA, 2003; ROTAR, 2012).
Muitos estudos foram realizados utilizando medidas de impacto em amplitude, existindo um número bem
menor de pesquisadores que estudaram impacto em profundidade como variável-critério (ZERBINI; ABBAD,
2010). Segundo as autoras, é necessária a realização de mais pesquisas que avaliem os efeitos diretos de
ações instrucionais sobre os desempenhos específicos relacionados às competências desenvolvidas por meio
dos treinamentos. A agenda de pesquisa a respeito do subsistema “treinamento” recomenda fortemente os
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de impacto de treinamento em profundidade do
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estudos dessa natureza, em face dos grandes investimentos feitos em eventos de TD&E e na necessidade
em se analisar o seu valor final para as organizações que os promovem (COELHO JUNIOR; ABBAD, 2010).
Conforme exposto por Borges-Andrade (2006), a construção e validação de instrumentos de impacto de
treinamento em profundidade é uma árdua tarefa, em face da dificuldade em obter uma amostra suficiente
que possibilite a aplicação de análises fatoriais com a subsequente validação de escala desta natureza.
Na literatura brasileira não foram encontrados estudos que avaliassem impacto de treinamento em
profundidade de cursos de formação promovidos por organizações de segurança pública.
MÉTODO
DESCRIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO
A Polícia Federal, organização lócus desta pesquisa, é um órgão de segurança pública, organizado e
mantido pela União, que tem unidades em todas os estados do Brasil. A Constituição Federal, no seu art.
144, estabelece as atribuições das organizações policiais brasileiras, distribuindo-as de acordo com as
tipologias policiais (BARBOSA, 2010). A segurança pública é exercida através da Polícia Federal, da Polícia
Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária Federal, das polícias civis, das polícias militares, dos corpos de
bombeiros militares, bem como das polícias penais federal, estaduais e distrital (BRASIL, 1988).
Nos termos da Carta Magna brasileira, compete à Polícia Federal exercer, com exclusividade, as funções de
polícia de soberania e de polícia judiciária da União, responsável por apurar as infrações penais praticadas
contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União (SOUSA, 2015).
A Constituição Federal também estabeleceu que a organização é responsável por investigar outras
infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exijam repressão uniforme, bem
como o policiamento de fronteiras, imigração e estrangeiros.
A Polícia Federal dispõe de uma unidade responsável pelas ações de TD&E, a Academia Nacional de Polícia
(ANP), integrante do Sistema de Escolas de Governo da União (SEGU) (FONSECA et al., 2015), que possui
a atribuição de formar e especializar profissionais de segurança pública para exercerem suas atribuições,
bem como formular e difundir a doutrina policial, buscando a eficiência e a qualidade na prestação do
serviço de segurança pública, com ética e respeito aos Direitos Humanos. A ANP foi criada em 1960,
por meio da publicação do Boletim Interno Nº 216, em 31 de dezembro de 1960, com a denominação
Academia de Polícia, tendo recebido a sua denominação atual com a publicação da Lei Nº 4.483, de 16 de
novembro de 1964 (ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA, 2005).
A ANP possui três linhas de ação principais: a formação, a capacitação continuada e a pós-graduação. A
formação de novos policiais federais é realizada na ANP por meio do Curso de Formação Profissional,
segunda etapa do concurso público, constituído de disciplinas teóricas e operacionais, como será
detalhado na próxima seção, com o objetivo de desenvolver e aprimorar as competências necessárias
para o desempenho dos cargos da Carreira Policial Federal. Ao longo da sua existência, a ANP também
participou da formação de policiais civis de alguns estados brasileiros e de policiais de países africanos e
latino-americanos.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 128-151 135
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Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
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Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
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como para servidores de outras instituições públicas que realizam parceria com a ANP. A escola de
governo também ministra cursos para a comunidade em geral, por meio da plataforma ANP Cidadã, com
capacitações vinculadas ao tema segurança pública. A ANP foi credenciada pelo Ministério da Educação
para oferecer cursos de especialização (pós-graduação lato sensu) em ciências policiais e segurança
pública, realizados com o objetivo de produzir e disseminar conhecimentos na área de Ciências Policiais e
Segurança Pública.
A escola de governo possui uma área de 60.000 m2, contando com salas de aula, auditórios, laboratórios
de informática e perícia, complexo poliesportivo, estandes para treinamento de armamento e tiro, área
específica para treinamento operacional, biblioteca e alojamentos, dentre outros equipamentos voltados
para o desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes, direcionados para a realização das
atividades de segurança pública.
O treinamento avaliado neste estudo é uma parte integrante do Curso de Formação Profissional, que
consiste da última etapa do concurso público para ingresso nos cargos da Carreira Policial da Polícia Federal,
e tem como objetivo desenvolver as competências técnico-profissionais necessárias para o desempenho
destes cargos. Para melhor compreensão sobre o evento, foi realizada pesquisa documental por meio
da leitura do Plano de Ação Educacional (PAE) dos cursos de formação e dos Planos de Disciplina (PD),
identificando os seus objetivos instrucionais, bem como outras informações relevantes para a pesquisa.
O curso de formação é realizado na escola de governo, em Brasília/DF, com carga horária média de 872
horas-aula e aproximadamente cinco meses de duração. Por se tratar de etapa do concurso público, o
curso é eliminatório. Os alunos reprovados no evento são eliminados do processo seletivo.
Para a realização do presente trabalho optou-se em construir uma escala de impacto em profundidade
para avaliar os resultados do treinamento das atividades operacionais ministradas nas disciplinas do
Eixo Operacional, por se tratar do agrupamento das disciplinas do curso de formação comuns a todos
os cargos e por se tratar das atividades que mais caracterizam organizações de segurança pública que
possuem funções essencialmente operacionais. O cargo de Perito Criminal Federal, existente no quadro
da Polícia Federal, não foi incluído nesta pesquisa, por se tratar de um cargo cujas atribuições são mais
direcionadas para atividades periciais do que para atividades operacionais. A carga horária e o número de
disciplinas do Eixo Operacional aplicados na formação deste cargo são inferiores aos demais, embora os
seus integrantes também realizem atividades operacionais com menor frequência.
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As disciplinas do curso de formação que foram objeto da construção da escala de avaliação do impacto
em profundidade do treinamento foram: 1) Abordagem (ABO); 2) Armamento e Tiro (AT); 3) Defesa
Pessoal Policial (DPP); 4) Direção Operacional (DO); 5) Orientação e Navegação Terrestre (ONT); 6)
Radiocomunicação (RAD); 7) Segurança de Dignitários (SD); 8) Técnicas Operacionais Aplicadas (TOA); 9)
Atividade Física Policial (AFP); 10) Uso Seletivo da Força (USF) e; 11) Vigilância (VIG).
Para fins de instrumentação do trabalho foi construída e validada uma escala de avaliação de impacto em
profundidade de treinamento de atividades operacionais ministradas por meio das disciplinas do Eixo
Operacional do curso de formação, tendo como arrimo a literatura apresentada no referencial teórico,
especialmente, os preceitos apresentados por Coelho Junior e Abbad (2010), Pasquali (2010) e Zerbini
et al. (2012). Foram extraídas informações educacionais do conteúdo ministrado do curso, segmentado
em suas 11 disciplinas. Inicialmente, o instrumento elaborado constituiu-se de um questionário contendo
70 itens no formato da escala Likert de 11 pontos, com variação entre “0” (não aplico/não tem qualquer
impacto) e “10” (aplico totalmente/grande impacto). Como será descrito em seguida, após a validação
semântica e por juízes, o questionário foi reduzido para 50 itens.
Para a elaboração dos itens da escala presentemente validada, por meio de análise documental, foram
extraídos os objetivos gerais das disciplinas do Curso de Formação, bem como os objetivos específicos
das aulas, o mapa de competências que se pretendia desenvolver, as estratégias e os procedimentos
instrucionais utilizados. Todo este conteúdo estava previsto nos ‘Planos de Disciplina’. A partir desta análise
prévia do material instrucional, realizou-se a elaboração de objetivos de aprendizagem à luz do material
analisado. Estes objetivos de aprendizagem foram, então, convertidos em objetivos de desempenho.
Este desempenho (ou o impacto) era o desejado, após a realização das disciplinas. Foram estabelecidos
indicadores de desempenho e de comportamento no cargo para compor o instrumento de impacto
em profundidade, conforme procedimento proposto por Coelho Junior e Abbad (2010). Junto com o
questionário, foram inseridos campos que solicitavam informações sociodemográficas dos respondentes.
A escala foi validada semanticamente com a finalidade de eliminar eventuais vieses e ambiguidades
que pudessem estar presentes nos itens elaborados para compor o questionário. Por meio da validação
semântica, realizou-se a análise do instrumento quanto à sua clareza, parcimônia e objetividade
(PASQUALI, 2010), tanto dos itens como das instruções para o seu preenchimento, buscando minimizar
a possibilidade de surgirem dúvidas no momento em que os itens estivessem sendo respondidos pelos
participantes. A etapa da validação semântica foi realizada com servidores policiais da própria Polícia
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de impacto de treinamento em profundidade do
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Federal, lotados na escola de governo e com bastante experiência. As sugestões de alteração foram
adotadas pelos pesquisadores.
A validação por juízes foi realizada com servidores da própria Polícia Federal, lotados na escola de
governo, que atuam no processo de planejamento e execução das aulas e demais atividades das disciplinas
operacionais dos cursos de formação. Os juízes contribuíram com a elaboração do instrumento de
pesquisa, garantindo que o questionário fosse adaptado à cultura da organização, bem como assegurando
que a escala construída fosse apta a medir aquilo que se propunha, no caso, o impacto de treinamento em
profundidade das disciplinas operacionais do Curso de Formação Profissional no desempenho individual
dos policiais da Polícia Federal. Ainda, efetuou-se validação por juízes com 5 professores vinculados ao
Departamento de Administração de uma Universidade federal brasileira. Nesta validação, também, foi
verificada a adequação dos itens em termos de sua redação e representatividade ao estudo do impacto
de treinamento em profundidade do Curso de Formação.
Durante a fase de validação por juízes, foram examinados todos os itens do questionário, avaliando
clareza, relevância e adequação à linguagem utilizada na Polícia Federal. Também foi objeto desta
validação a precisão dos itens, verificando se os mesmos mensuravam aquilo que propunham, ou
seja, se representavam os conhecimentos, as habilidades e as atitudes transmitidas por meio do curso
de formação. Além dos itens do questionário, foi validada, pelos juízes, a mensagem que convidou os
participantes para a realização da pesquisa e as instruções de preenchimento da escala. Por sugestão dos
juízes, houve redução do número de itens do questionário (que passou de 70 para 50), em decorrência do
agrupamento de itens que refletiam partes de uma mesma técnica operacional, e da retirada de itens que
refletiam conhecimentos e/ou habilidades contempladas transversalmente em mais de uma disciplina.
Após os procedimentos de construção e validação por juízes e semântica, foi elaborada uma versão
eletrônica do questionário na ferramenta SurveyMonkey. Os servidores da Polícia Federal, distribuídos
em todo o território nacional, que haviam participado do curso de formação há, no mínimo, oito meses
e, no máximo, dois anos e meio, foram convidados para participar da pesquisa por meio de uma carta de
apresentação, enviada para a caixa de mensagem eletrônica (e-mail) funcional e pessoal, cuja listagem foi
fornecida aos pesquisadores pela Polícia Federal. O texto da carta de apresentação continha informações
sobre os pesquisadores, os objetivos da pesquisa, a importância da participação, a garantia do sigilo, os
contatos para dirimir eventuais dúvidas e um link para o questionário.
Ainda, foi informado a cada participante que, uma vez clicando no link de acesso ao questionário, o mesmo
consentia plenamente com os objetivos da pesquisa e declarava, voluntariamente, que estava participando
espontaneamente da mesma. Nenhuma informação referente à possível quebra do anonimato foi
coletada, garantindo, assim, o sigilo total das respostas dadas. Os dados foram todos analisados de forma
agrupada, de modo que o pesquisador não teve como saber de quem eram as respostas.
Em uma população composta por 1.091 egressos de cursos de formação, foram obtidos 370 questionários
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Para que fosse verificada a adequação da amostra aos procedimentos necessários para a realização da
análise fatorial, foram utilizados dois critérios. Tabachnick e Fidell (2007) e Pasquali (2010) apontam que é
necessário o mínimo de sete a dez respondentes para cada item presente na escala, para que seja possível
a realização de uma análise fatorial exploratória. Deste modo, considerando que a escala de ‘Impacto de
Treinamento em Profundidade’ tinha 50 itens, e o número total de participantes era 355, atingiu-se uma
proporção de 7,1 respondentes por item.
O segundo critério utilizado foi o de significância estatística. Para a população objeto deste estudo, a
amostra mínima recomendada seria de 285 participantes, com um intervalo de confiança de 95% e uma
margem de erro de 5%. Deste modo, a amostra atendeu os requisitos acima expostos e encontra-se
adequada para o presente estudo. A Tabela 1, a seguir, apresenta o perfil da amostra obtida.
TABELA 1
Tabela
Perfil da amostra utilizada para a validação da escala 1:
de avaliação de impacto em profundidade de um
treinamento de atividades operacionais
Variável F % Variável F %
Gênero Escolaridade
Masculino 305 85,9 Graduado 234 65,9
Feminino 50 14,1 Pós-Graduado 121 34,1
Cargo Lotação
Delegado 70 19,7 Del. na fronteira 164 46,2
Agente 125 35,2 Delegacia 73 20,6
Escrivão 125 35,2 Superintendência 112 31,5
Papiloscopista 35 9,9 Unidade Central 6 1,7
Foram aplicadas técnicas de análise de dados referendadas pela literatura nas pesquisas de avaliação de
impacto nas ações de TD&E. Realizou-se, primeiramente, análises estatísticas exploratórias e descritivas,
conforme a orientação de Tabachnick e Fidell (2007), utilizando, para tanto, o software SPSS (Statistical
Package for Social Sciences), versão 20. Os dados omissos foram encontrados em 15 questionários da escala
de impacto de treinamento em profundidade. Estes questionários não foram utilizados para qualquer
análise de dados, tendo sido efetuado seu descarte, conforme exposto na subseção anterior. Nos demais
355 questionários utilizados, não foi observada a presença de nenhum dado omisso.
O procedimento teve início com uma análise exploratória dos dados, em que foi verificada a presença de
outliers e feita a checagem dos pressupostos de normalidade, linearidade e homogeneidade da variância.
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Apesar de poucos instrumentos terem apresentado normalidade por meio do teste Kolmogorov-Smirnov
e pela visualização gráfica de box-plot e histogramas, foi decidido realizar as análises com a transformação
das variáveis em escores Z padronizados. Segundo Field (2013), para amostras grandes, a quebra desse
pressuposto não interfere consideravelmente na interpretação dos dados.
Com a transformação dos dados em escore Z padronizados, foram identificados casos extremos
univariados. Os valores situados fora do intervalo [-3,29; 3,29] foram utilizados para detectar os outliers
univariados (HAIR et al., 2009). Em seguida, foi feita a identificação dos outliers multivariados utilizando
a distância de Mahalanobis (D2), em um nível de significância de 0,001 (TABACHNICK; FIDELL, 2007).
Ressalta-se que todos os procedimentos de análise fatorial exploratória foram realizados ‘com’ e ‘sem’
outliers. A tendência observada nos dados manteve-se constante (não houve diferenças significativas nos
resultados que pudessem ser atribuídas à presença ou ausência de outliers), motivo pelo qual se optou, no
presente trabalho, manter os outliers com seus valores originais, já que estes não afetaram os resultados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
De forma geral, como se verá aqui, verifica-se que os resultados da análise fatorial exploratória foram
bastante satisfatórios, indicando que a medida em validação é fidedigna, tem calibragem e é precisa
àquilo que se propõe mensurar. Os resultados estão descritos a seguir, e todos os procedimentos de
análise encontram-se, também, apresentados e justificados.
Figueiredo Filho e Silva Júnior (2010) indicam que não existe um critério consensual para definir sobre a
quantidade exata de fatores que deverão ser extraídos. Os autores apontam que o objetivo da extração de
fatores é determinar a quantidade de fatores que melhor irá representar o padrão de correlação entre as
variáveis observadas, devendo o pesquisador sopesar, decidindo entre a parcimônia e a explicação. Quanto
menor o número de fatores, maior é a parcimônia e menor é a quantidade total de variância. Por outro lado,
quanto mais fatores forem extraídos, maior é a quantidade de variância explicada e menor é a parcimônia.
Existem alguns critérios que podem ser seguidos. Um exemplo é o critério de kaiser (eigenvalue), que
sugere que sejam extraídos os fatores com valor de eigenvalue acima de 1. Segundo Tabachnick e Fidell
(2007), esse método funciona melhor quando o pesquisador utiliza entre 20 e 50 variáveis, o que foi
observado no presente trabalho (50 itens). Adicionalmente, foi aplicado o critério da variância acumulada
acima de 60%, conforme sugerido por Hair et al. (2009).
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Construção e validação de instrumento para avaliação
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Curso de Formação Profissional da Polícia Federal
Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
Francisco Antonio Coelho Junior
A solução unifatorial não foi adotada em razão do critério de variância acumulada, de apenas 15%, uma
vez que a sua variância foi menor que 60% (HAIR et al., 2009), tratando-se do mesmo motivo pelos quais
não foram adotadas soluções com 2, 3, 4, 5 e 6 fatores. Na solução com 7 fatores, cinco itens apresentaram
cargas fatoriais compartilhadas entre dois ou mais fatores. Já na solução com 8 e 9 fatores houve o
compartilhamento de carga em dois itens.
Segundo Figueiredo Filho e Silva Júnior (2010), além dos critérios estatísticos, também é imprescindível
que a decisão do pesquisador seja baseada na teoria vigente. De acordo com os autores, o pesquisador
deve justificar, em termos conceituais, qual é o padrão de relação esperado entre as variáveis observadas
e os fatores. Neste sentido, analisando a matriz padrão obtida com a solução de 11 fatores, foi possível
observar que a distribuição da carga fatorial dos itens mais bem se amoldou em relação ao que era
esperado nos objetivos instrucionais das disciplinas operacionais dos cursos de formação.
TABELA 2 Tabela 2:
Estrutura fatorial da medida de impacto em profundidade do treinamento de atividades operacionais
Fator % V.E. Itens C.F. M. D.P. α
Aplico os procedimentos de prisão em .822 6,39 2,89
Abordagem Pessoal.
Aplico os procedimentos de averiguação em .798 6,48 2,80
Abordagem Pessoal.
1
Aplico os procedimentos de Abordagem em .661 4,53 3,17
Veículos parados.
Abordagem
Aplico os procedimentos de Abordagem em .561 3,69 3,19
31.735 Veículos em movimento. 0,879
Aplico os procedimentos de Abordagem em .363 5,34 3,36
Edificações.
Aplico procedimentos de algema. .404 7,01 3,09
Identifico o poder de parada dos diversos tipos de .673 7,21 2,62 Continua
munições.
Identifico as armas de fogo utilizadas na .568 8,62 1,70
organização, os seus usos e as suas
2
peculiaridades.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 128-151
Identifico a nomenclatura das principais peças de .454 7,21 2,44 141
Armamento e
uma arma de fogo.
Aplico os procedimentos de averiguação em .798 6,48 2,80
ARTIGO Abordagem Pessoal.
1
Construção e validação de instrumento paraos
avaliação
Aplico procedimentos de Abordagem em .661 4,53 3,17
de impacto de treinamento em profundidade do
Curso de Formação Profissional da Polícia FederalVeículos parados.
Abordagem
Andersson Pereira dos Santos, Fernando José os
Aplico Barbato Couto e de Abordagem em
procedimentos .561 3,69 3,19
Francisco Antonio Coelho Junior
31.735 Veículos em movimento. 0,879
Aplico os procedimentos de Abordagem em .363 5,34 3,36
TABELA 2 Edificações.
Estrutura fatorial da medida de impacto
Aplico procedimentosdo
em profundidade detreinamento
algema. de atividades operacionais
.404 7,01 3,09
Identifico o poder de parada dos diversos tipos de .673 7,21 2,62
munições.
Identifico as armas de fogo utilizadas na .568 8,62 1,70
organização, os seus usos e as suas
2
peculiaridades.
Identifico a nomenclatura das principais peças de .454 7,21 2,44
Armamento e
uma arma de fogo.
Tiro – Teoria
Identifico as prerrogativas do Servidor Público ao
conduzir veículos em situações de emergência.
7.123 .363 7,51 2,68 0,748
Aplico as técnicas para municiar, carregar,
alimentar, descarregar e inspecionar a arma.
.308 9,51 1,10
Reconheço as formações e as equipes que -.936 6,13 3,22
compõe a segurança de dignitários.
Identifico os procedimentos básicos
operacionais na segurança de dignitários.
3 -.943 6,28 3,20
Identifico os tipos de comboio utilizados na -.918 6,08 3,25
Segurança de
segurança de dignitários.
Dignitários
Identifico os graus de riscos na segurança de -.897 6,11 3,28
5.906 0,946
dignitários.
Aplico as técnicas básicas de segurança de -.716 5,61 3,61
dignitários.
Dirijo viatura em comboio. -.351 6,18 3,68
Efetuo tiro rápido com pistola, atingindo o alvo .600 9,03 1,57
com aproveitamento.
2
Aplico as técnicas para identificar e solucionar .595 8,05 2,42
4 os incidentes de tiro (panes).
Efetuo tiro rápido com submetralhadora .474 7,92 3,03
Armamento e
HKMP-5, atingindo o alvo com aproveitamento.
Tiro – Prática
Identifico as posições de tiro. .395 9,08 1,41
Aplico as técnicas para desmontar e montar as .381 1,99 1,99
4.851 armas de fogo. 0,727
Continua
utilizado na organização.
9 Utilizo os equipamentos de radiocomunicação -.722 6,60 3,15
de acordo com os procedimentos operacionais.
Radiocomunicação
Aplico o alfabeto fonético internacional e o -.328 6,57 2,90
2.405
código
Rev. bras. segur. “Q”. | São Paulo v. 16, ed. especial, 128-151
pública 143
0,802
ARTIGO Identifico as técnicas de vigilância usadas no .919 7,11 2,80
cotidiano policial.
Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
Identifico os tipos de vigilância existentes.
Curso de Formação Profissional da Polícia Federal
.890 6,92 2,91
Identifico
Andersson Pereira dos Santos, Fernando as fases
José Barbato do planejamento
Couto e de uma .876 6,81 3,02
8
Francisco Antonio Coelho Junior
operação de vigilância.
Aplico condutas operacionais e atitudes
Vigilância 2.782 0,939
TABELA 2 adequadas à técnica de vigilância a pé em área
.630 6,55
urbana. do treinamento de atividades
Estrutura fatorial da medida de impacto em profundidade 3,21
operacionais
V.E. = Variância Explicada / C.F. = Carga Fatorial / M. = Média / D.P. = Desvio Padrão / α = Alpha de Cronbach.
Fonte: Elaborada pelos autores.
Um Alpha de Cronbach é considerado ‘aceitável’ com valores entre 0,7 e 0,8, ‘bom’ entre 0,8 e 0,9 e
‘excelente’ acima de 0,9 (PESTANA; GAGEIRO, 2008). O Alpha de Cronbach dos 11 fatores variaram entre
0,727 (Fator 4 “Armamento e Tiro – Prática) e 0,946 (Fator 3 “Segurança de Dignitários”), conferindo, aos
fatores, alta fidedignidade e grande consistência interna.
A separação dos itens da disciplina Armamento e Tiro (AT) em dois fatores se justifica teoricamente em
razão da existência de objetivos instrucionais voltados para a teoria acerca dos fundamentos do tiro (Fator
2) e para a prática de tiro (Fator 4). A migração do item 22 (Aplico procedimentos de algema) do Fator 6
“Defesa Pessoal Policial” para o Fator 1 “Abordagem” também se justifica, uma vez que o procedimento
de algemas também é utilizado nas aulas da disciplina “Abordagem” em maior carga horária do que na
disciplina “Defesa Pessoal Policial”. No mesmo sentido, a agregação do item 23 (Identifico as prerrogativas
do Servidor Público ao conduzir veículos em situações de emergência) ao Fator 2 “Armamento e Tiro – Teoria”
4
encontra respaldo teórico, sendo justificada uma vez que os servidores policiais associam o termo
“prerrogativas” com o porte de arma de fogo, sendo, inclusive, utilizado este termo no material didático
desta disciplina.
O único item com carga fatorial compartilhada foi o item 29 (Executo navegação por meio do receptor GPS),
estando presente no Fator 7 “Orientação e Navegação Terrestre” e no Fator 11 “Direção Operacional”.
144 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 128-151
ARTIGO
Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
Curso de Formação Profissional da Polícia Federal
Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
Francisco Antonio Coelho Junior
O compartilhamento da carga fatorial se justifica em face do uso cada vez mais comum do aparelho de
GPS como auxílio na direção de veículos automotores. No presente estudo, o item permaneceu vinculado
ao fator em que demonstrou possuir maior carga fatorial, no caso, o Fator 7 “Orientação e Navegação
Terrestre”. Por meio da análise fatorial foram excluídos os itens 5 (Aplico os procedimentos de Abordagem
a Embarcações), 7 (Reconheço as regras de segurança no porte de arma), 15 (Efetuo tiro rápido com revólver
calibre 38, atingindo o alvo com aproveitamento) e 40 (Aplico as técnicas operacionais de forma dinâmica e
sincronizada quando trabalho em equipe).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como objetivo construir e validar uma escala de impacto de treinamento em
profundidade relativa às atividades operacionais no âmbito do Curso de Formação Profissional da Polícia
Federal. Foram testados e apresentados todos os indicadores psicométricos da medida, alcançando os
objetivos propostos. Conforme visto, a construção e validação de instrumentos de avaliação de impacto
de treinamento em profundidade é uma árdua tarefa, em face da dificuldade em obter uma amostra
suficiente que possibilite a aplicação de análises fatoriais com a subsequente validação de escalas desta
natureza. Tal constatação ajuda a explicar o fato de não terem sido encontrados outros estudos que
avaliaram cursos de formação de outras organizações de segurança pública que servissem de parâmetro
de comparação com os resultados obtidos nesta pesquisa.
Respeitando as limitações, relatadas a seguir, espera-se que o presente trabalho tenha contribuído para
a evolução do campo de ‘avaliação de treinamento em organizações de segurança pública’, colaborando
para cumprir a agenda de pesquisa na área com a ampliação e diversificação de amostras de treinamento e
organizações. Mais especificamente, acredita-se que é contribuição deste estudo a investigação realizada
junto aos policiais, tendo em vista que pesquisas sobre esta clientela ainda é incipiente na América Latina,
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 128-151 145
ARTIGO
Construção e validação de instrumento para avaliação
de impacto de treinamento em profundidade do
Curso de Formação Profissional da Polícia Federal
Andersson Pereira dos Santos, Fernando José Barbato Couto e
Francisco Antonio Coelho Junior
devendo ser realizadas com a finalidade de identificar lacunas, consertar falhas e otimizar o desempenho
policial, função tão essencial à manutenção da vida em sociedade.
Como limitações deste trabalho, pode se apontar a restrição da amostra de participantes ser parte de
uma organização apenas, o que reduz a generalidade e a validade externa dos resultados. Outra limitação
refere-se à impossibilidade de se aplicar questionários de heteroavaliação de impacto do treinamento
no trabalho, em razão da falta de tempo e de recursos, que poderiam gerar resultados comparativos
com os obtidos por meio da autoavaliação do participante e da sua chefia, por exemplo. O pareamento
destas informações poderia agregar à análise dos resultados. A utilização de apenas uma técnica de coleta
de dados (questionários) e a taxa de devolução dos questionários obtida também podem ser apontadas
como outras limitações.
Por fim, somadas às sugestões direcionadas à Polícia Federal quanto à replicação da escala e da sua ampliação,
se propõe, como agenda de pesquisa, o desenvolvimento de outros estudos que avaliem impacto de
treinamento em profundidade dos cursos de formação promovidos por outras organizações de segurança
pública, ampliando os estudos acerca da eficácia dos treinamentos ofertados por estas instituições.
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Contribuição de cada autor: O artigo é oriundo de dissertação desenvolvida por Márcio José Freire Ribeiro, sob
orientação de Emmanuelle Arnaud Almeida, que atuou também na supervisão e correção técnica do texto, no programa
de Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (PROFEPT).
RESUMO
O objetivo do artigo é investigar o processo de ensino do Curso de Formação inicial da Polícia Rodoviária
Federal (PRF) nos anos de 2014 a 2016. A metodologia foi exploratória, qualitativa, com entrevista aos
docentes e tratamento de dados por análise de conteúdo. Os resultados indicam que o processo de ensino
da instituição foi marcado por planejamento simétrico e participativo, estruturação equilibrada entre
aspectos teóricos e práticos das aulas, uso dos recursos didáticos contextualizados à atividade, avaliação
quantitativa e qualitativa dos alunos e relações horizontais entre docentes e discentes. Concluiu-se que
o processo de ensino formativo da PRF refletiu um modelo profissional influenciado pela estruturação
da carreira em cargo único, diferenciando-se das formações verticalizadas, bacharelistas e de combate
ao crime. O modelo formativo da PRF mostrou-se uma alternativa viável para outras instituições de
segurança pública, carecendo, entretanto, de mais pesquisas.
Palavras-chave: Formação policial. Processo de ensino. Cargo único. Polícia Rodoviária Federal.
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ARTIGO
O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
Márcio José Freire Ribeiro e Emmanuelle Arnaud Almeida
ABSTRACT
THE FORMATIVE EDUCATION PROCESS IN A POLICE INSTITUTION STRUCTURED IN A SINGLE POSITION
CAREER: THE CASE OF THE FEDERAL ROAD POLICE
The purpose of this article is to investigate the teaching process of the Training Course for new members
of the Federal Road Police (PRF, in Portuguese) carried out from 2014 to 2016. The methodology is based
on a qualitative and exploratory approach, with data collection through interviews with teachers, and data
processing through content analysis. The results indicate that, from a qualified teaching staff, the teaching
process is mark by a symmetrical and participatory planning, balance structure between theoretical and
practical aspects of the classes, use of didactic resources contextualized to the activity, quantitative and
qualitative assessment of students and horizontal relationships between teachers and students. We conclude
that the teaching process of the PRF Training Course reflects a professional model influenced by the structuring
of the career in a single position, and differs from vertical training models, which are bachelor’s degrees and
give emphasis on fighting crime. The training model of the PRF represents an alternative for other public
security institutions, although the need for further researches is recognized.
Keywords: Police training. Teaching process. Single position. Federal Road Police.
INTRODUÇÃO
A formação policial corresponde ao primeiro estágio de transformação social do homem “comum”
em policial. Nesse sentido, a formação policial possui um caráter educativo em que se identifica uma
dupla finalidade: transmitir um conjunto de técnicas que habilitarão o aluno ao exercício da profissão
(MUNIZ, 2001), além de atuar como elemento de formação da identidade policial por meio das técnicas,
dos saberes e da agregação de crenças e valores, constituindo-se em um processo de socialização do
novo membro na instituição (PONCIONI, 2005). Esses aspectos constituem faces de uma mesma moeda
e foram identificados por Monjardet (2002) como os aspectos formal e informal do processo formativo.
Historicamente, a formação policial no Brasil tem sido marcada por um ensino dissociado da realidade, não
preparando o futuro policial adequadamente para a complexidade da atividade (MUNIZ, 2001). Segundo
alguns autores, um traço específico da cultura policial é a pouca valorização do ensino das academias
de polícias, prevalecendo uma visão de que o bom policial é formado nas ruas, o que retroalimenta o
distanciamento entre o ensino das academias e a realidade das atividades cotidianas do policial (MIRANDA,
2008; MUNIZ, 2001).
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O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
Márcio José Freire Ribeiro e Emmanuelle Arnaud Almeida
Nessa mesma direção, a vitimização dos policiais brasileiros é elevada se comparada às taxas de homicídios
de civis. Fernandes (2016), em estudo sobre a letalidade de policiais militares do estado de São Paulo,
comparou as taxas de homicídios de civis com a de mortes dos integrantes da Polícia Militar de São
Paulo (PMSP), verificando que o índice de óbitos de integrantes da PMSP foi quase cinco vezes o de civis
registrado naquele estado.
A despeito da complexidade do cenário de letalidade e de vitimização nas ações policiais, ambos marcados
pela multicausalidade, o quadro descrito aponta para a necessidade de se aprofundar pesquisas sobre
o processo de ensino formativo das polícias brasileiras, sobretudo porque a marca característica dessa
profissão é a possibilidade de uso da força legal como inerente à própria atividade (BITTNER, 2003).
Sabe-se que ninguém nasce policial. Como ocorre nas demais profissões, o indivíduo é forjado para assumir
as atribuições dessa atividade. Por conseguinte, as dificuldades no exercício da profissão põem em relevo
a importância da formação policial – processo de ensino-aprendizagem responsável por equipar o aluno
das competências para o exercício das heterogêneas atribuições da profissão policial (BRASIL, 2014). O
processo formativo constitui-se, normalmente, na participação de um curso ministrado pelas próprias
instituições em que, ao final, é conferida ao aluno a credencial para assumir o cargo de policial. Além de
um processo de ensino, a formação apresenta-se como o início do processo de construção da identidade
policial, fortemente marcado pela diferenciação entre o “nós” da farda do “eles” civis (PONCIONI, 2005).
O crescimento dos estudos de segurança pública nas duas últimas décadas no Brasil contemplou a temática
da formação policial como relevante para se conhecer o modus operandi da atividade policial. Em alguns
desses estudos, constatou-se uma práxis contraditória materializada no desligamento entre a formação
prevista no discurso oficial e a que efetivamente ocorre nos corredores das academias e centros de formação
policial (FRANÇA; GOMES, 2015; BRUNETTA, 2015). Esse currículo “oculto” seria permissivo ao cometimento
de abusos, visando formar o arquétipo do ethos guerreiro. O sofrimento e a humilhação seriam, portanto,
instrumentos à disposição da transformação do novato em policial (FRANÇA; GOMES, 2015).
Outros estudos buscaram identificar qual a relação existente entre os processos de ensino formativo
e as práticas dos agentes no exercício profissional da atividade policial. Entretanto, esses estudos se
concentraram na formação das forças policiais civil e militar dos estados e do Distrito Federal.
Nessa linha de estudos sobre a formação, destacam-se as pesquisas acadêmicas de Poncioni (2005),
Miranda (2008) e Basilio (2010), dentre outros. Essas pesquisas, que tiveram por objeto os processos
formativos das polícias militar e/ou civil, apontaram a existência de uma relação entre o processo de
ensino das Academias de Polícias e o resultado da formação dos egressos desses cursos. Essa relação nem
sempre é de causa e efeito, especialmente quando o ensino formativo apresenta um largo desnível entre
o que se estuda nas academias de policiais e as condições concretas de trabalho, como ponderam alguns
estudiosos do tema (MONJARDET, 2002; MUNIZ, 2001). Entretanto, tais pesquisas concluíram que existe
uma relação entre ensino formativo e resultado do trabalho policial, funcionando ora como replicador
de um “modelo de policiamento” enraizado na instituição, ora como um conjunto de temas enfadonhos
e alienados da realidade e que, portanto, estão fadados a serem abandonados ao longo da carreira de
polícia (MUNIZ, 2001; FRANÇA; GOMES, 2015).
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O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
Márcio José Freire Ribeiro e Emmanuelle Arnaud Almeida
Avançando sobre a temática debatida, constata-se que existem poucos dados públicos disponíveis sobre
os cursos de formação das polícias no Brasil. Nesse cenário, merece destaque uma pesquisa inédita no
país, realizada no ano de 2013 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), constituindo-se na
maior radiografia do ensino policial no Brasil. Nessa pesquisa, foi aplicado um questionário em 55 escolas
de formação policial. Quanto à natureza desses centros de ensino, ficou evidenciado que as academias
de formação são mantidas pelas próprias instituições policiais, diferenciando cargos de comando dos
cargos executivos: 31% dos centros de formação destinavam-se a oficiais da Polícia Militar e do Corpo de
Bombeiro, 31% eram academias de Polícia Civil, e 38% se constituíam em centros de formação de praças
da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiro (FBSP, 2013).
Iniciando pelos gestores, a pesquisa identificou que os diretores das escolas de formação policial citadas
possuíam majoritária formação jurídica (43%) ou em cursos de formação de oficiais da Polícia Militar
(39%). Por sua vez, os currículos dos centros de ensino das polícias seguiam a Matriz Curricular da SENASP
em 81% dos casos. Sobre o quadro docente, a pesquisa revelou que a composição era majoritariamente
de policiais (87% do total).
A radiografia dos centros de formação de policiais indicou uma forte tendência à hermeticidade e baixa
interação da formação policial com organizações da sociedade, sobretudo as universidades. Não é à
toa que uma das proposições do estudo sugere estabelecimento de acordos com instituições de nível
superior e estabelecimento de trilhas formativas, contemplando níveis equivalentes à graduação e ao
mestrado (FBSP, 2013).
A despeito do número crescente de pesquisas brasileiras sobre a formação policial, existe uma lacuna
de investigações dessa natureza no âmbito das polícias de responsabilidade da União: Polícia Federal,
Polícia Penal Federal e Polícia Rodoviária Federal. Alguns questionamentos defluem dessa escassez de
estudos: será que o modelo de ensino verificado nas polícias estaduais se repete nas polícias federais?
A natureza civil e a atuação em todo o território nacional dessas instituições implica em um processo
formativo diferenciado das coirmãs militares e civis dos entes estaduais e do Distrito Federal? Se sim,
quais seriam essas diferenças?
O propósito do presente artigo é contribuir com esse debate, trazendo alguns dos resultados de uma
pesquisa de mestrado na qual um dos objetivos específicos foi investigar o processo de ensino dos cursos
de formação para candidatos ao cargo de policial rodoviário federal dos anos de 2014 a 2016.
O modelo de cargo único nas instituições de segurança pública é excepcional, prevalecendo a regra
da existência de diversos cargos dentro da mesma instituição. Nas Polícias Civis e na Polícia Federal,
os delegados ocupam os cargos diretivos, e a base institucional é composta por escrivães, agentes,
papiloscopistas e peritos. Na Polícia Militar, os oficiais são responsáveis pelas funções diretivas, e as
praças, pelas funções executivas da atividade de policiamento. No modelo de cargo único, a porta de
entrada é única, e a ascensão na carreira e a diferenciação entre funções operacionais e de gestão se dão
ao longo da carreira por critérios meritórios e de tempo de carreira conjugados (DARÓS, 2019).
É importante destacar que, em revisão bibliográfica sobre o tema, identificou-se que os estudos brasileiros
sobre a formação policial privilegiaram justamente a formação das polícias militares e civis. Assim, tem-
se um significativo número de estudos sobre os processos formativos das instituições policiais estaduais
militares (SILVA; VILARINHO, 2018; FRANÇA; GOMES, 2015; BRUNETTA, 2015; BEM; SANTOS, 2016; SILVA,
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ARTIGO
O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
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2012; BASILIO, 2010; PONCIONI, 2005) e das instituições policiais civis (SCHABBACH, 2015; HAGEN, 2006;
PONCIONI, 2005), que possuem a mesma estrutura organizacional das carreiras entre cargos de mando
e operacional e que, ao final, resulta em processos formativos distintos para cada um desses públicos.
Por outro lado, o presente artigo prospectou aspectos do ensino formativo ainda pouco explorados em
pesquisas sobre o tema ao privilegiar a investigação do processo de ensino na PRF, que se diferencia
por ser uma instituição organizada sob o modelo de cargo único. Conhecer um processo de ensino sob
este recorte pode trazer contribuições para a discussão acerca do ensino formativo das agências policiais
brasileiras, seja confirmando a adoção do modelo bacharelista e do combate ao crime, já identificado
nas policiais estaduais (MUNIZ, 2001; PONCIONI, 2005), ou por revelar uma proposta formativa ainda
desconhecida em estudos do tema.
O processo de ensino corresponde à sequência de atividades escolhidas pelo professor que visam à
assimilação ativa dos conhecimentos, das habilidades, atitudes e convicções pelos alunos (LIBÂNEO,
1990). O processo de ensino é, portanto, uma atividade própria do docente e se constitui na definição
dos conteúdos e objetivos de aprendizagem operacionalizados por métodos e condições que formam um
sistema articulado, no qual
Dessa forma, deflui-se a existência de três subprocessos coexistentes para que se efetive o ensino: a
definição de objetivos, a seleção de conteúdos apropriados e dos métodos adequados para esse fim.
Libâneo acrescenta a condição de ensino como último elemento relevante do processo de ensino. Para o
autor, este construto reflete “as condições concretas de cada situação didática: o meio sócio-cultural em
que se localiza a escola, as atitudes do professor, os materiais didáticos disponíveis, as condições de vida,
conhecimentos, habilidades e atitudes dos alunos” (LIBÂNEO, 1990, p. 92).
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FIGURA 1
Elementos do Processo de Ensino
A aula, por sua vez, sintetiza e aglutina a dinâmica desses elementos (LIBÂNEO, 1990). Portanto, a aula
cumpre o papel de elemento de exteriorização e materialização do processo de ensino.
É importante não realizar uma associação reducionista de que o processo de ensino se circunscreve
à escola. O processo de ensino não é apenas o conduzido em ambiente escolar, mas abrange os
processos educativos não escolares e os que se apresentam na forma de educação não-formal e
informal (SEVERO, 2015).
Dessa forma, a formação de policiais também corresponde a um processo educativo realizado na esfera
não escolar e de natureza não formal, que se realiza pelo desenvolvimento de competências dos futuros
agentes para o exercício das atividades inerentes ao ofício policial (MUNIZ, 2001). Nesse sentido, o processo
de ensino formativo do policial, tal qual o ensino desenvolvido no ambiente escolar, maneja objetivos-
conteúdos-métodos, sob determinadas condições, em prol da formação desejada de seus alunos.
O CURSO DE FORMAÇÃO DA
POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) é uma instituição policial prevista na estrutura constitucional com a
responsabilidade pelo patrulhamento ostensivo das rodovias federais conforme art. 144, § 2º (BRASIL,
1988). A PRF, no ano de 2018, possuía um quadro de 10.154 policiais (DPRF, 2018).
No que se refere à organização administrativa, a Polícia Rodoviária possui uma sede central localizada
em Brasília/DF, uma academia de polícia localizada na cidade de Florianópolis/SC, 27 unidades
administrativas nos estados (Superintendências), e aproximadamente 150 delegacias responsáveis pelo
trabalho operacional.
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A carreira de policial rodoviário federal estrutura-se em cargo único com exigência de curso superior
em qualquer área para ingresso em concurso de provas e títulos (BRASIL, 2008). As etapas do concurso
incluem provas de conhecimentos, psicotécnico, exames médicos, capacidade física e investigação social.
A participação no Curso de Formação Profissional (CFP) constitui a última fase do concurso e possui caráter
Figura
eliminatório e classificatório. O curso de formação 1
da Polícia Rodoviária Federal tem duração média de 3
meses e a aprovação acontece pelo êxito em atingir a nota média mínima dos componentes curriculares
que compõem o referido curso (BRASIL, 2008).
Co
C
Em breve incursão histórica sobre a formação do policial rodoviário federal, esta acontecia em centros
regionais distribuídos em locais estratégicos do país, em virtude da inexistência de um espaço único
nd
i on
suficiente para abrigar todos os candidatos de cada concurso.
Objetivos Conteúdos
No ano de 2014, a PRF inaugurou sua primeira Academia de Polícia Rodoviária Federal (ANPRF),
posteriormente, alterada para Universidade Corporativa da PRF (UNIPRF), passando a centralizar, em uma
única unidade de ensino, todos os processos, as pessoas e os recursos envolvidos nas ações de ensino da
instituição. Métodos
É possível constatar, a partir das informações constantes na Tabela 1, que os cursos de formação de 2014
e 2016 possuem bastante similaridade em termos de total de alunos, professores e tempo de duração. O
Co
curso de 2015 foi marcado por um baixo número de alunos (124) e, consequentemente, de docentes (85
no total), tendo sido um curso determinado por decisão judicial (DPRF, 2015). De toda sorte, não existem
diferenças significativas entre os processos de ensino dos três cursos, uma vez que todos são turmas
originadas da relação de aprovados no concurso público regido pelo Edital Nº 1/2013 (DPRF, 2013).
ndi
TABELA 1
Dados gerais dos CFPs de 2014 a 2016 Tabela 1
çõe
2016 16/02 a 25/05/16 99 803 357 2,24
Nos cursos de formação da PRF são mobilizados servidores de todas as unidades da Federação para
s
atuarem como docentes de formação em suas respectivas áreas. A assunção à atividade docente se dá
pela participação em curso especial, de caráter eliminatório, recebendo o candidato capacitação específica
para atuação docente, de acordo com a especialidade escolhida. Uma vez aprovado, o servidor passa a
compor o quadro docente da instituição.
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METODOLOGIA DA PESQUISA
Esta pesquisa possui natureza exploratória lastreada em pesquisa de campo. O lócus de investigação foi o
CFP da Polícia Rodoviária Federal, do qual fazem parte gestores, coordenadores pedagógicos, professores
e alunos. O objeto desta pesquisa foram os três primeiros cursos de formação unificados da instituição
realizados nos anos de 2014, 2015 e 2016. Os participantes da pesquisa foram os docentes que atuaram
em algum desses cursos. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto
Federal da Paraíba (IFPB, 2019).
O docente é o protagonista do processo de ensino, uma vez que dele se espera o manejo adequado de
um conjunto de operações didáticas que proporcionem autonomia e desenvolvimento das capacidades
cognoscitivas dos alunos (LIBÂNEO, 1990). Dessa forma, foi necessário aprofundar sobre a prática de
aula dos docentes que atuaram nesses cursos, visto que essas se constituem em elementos tangíveis do
processo de ensino formativo.
O quadro de docentes da PRF em 2019 era de 902 docentes, os quais compuseram o universo da
pesquisa (DPRF, 2019). Em virtude de dificuldades de acesso aos docentes, residentes em todos os
estados do país, a amostragem foi realizada na modalidade por acessibilidade do pesquisador (GIL,
2008). Os critérios de participação dos sujeitos da pesquisa foram voluntariedade, atuação na atividade
docente de formação em pelo menos um dos cursos de formação do período, e ser policial da ativa no
período em que exerceu a docência.
Para se chegar à amostra da pesquisa, utilizou-se a técnica de saturação, a qual se caracteriza por limitar a
participação de novos entrevistados após detecção de repetição de respostas durante a coleta de dados
(GLASER; STRAUSS, 1967 apud FLICK, 2009). Essa técnica estabelece um limite de entrevistas necessárias
para a pesquisa, uma vez que realizar novas entrevistas aumentará a quantidade de informações a serem
analisadas sem o benefício de trazer dados relevantes àqueles já obtidos. Uma vez aplicada a saturação
durante a coleta, chegou-se à realização de entrevistas com 14 docentes.
Fazendo uma breve radiografia dos sujeitos da pesquisa, constatou-se que houve representação de
docentes de todas as regiões do país: 4 do Nordeste, 3 do Sudeste, 3 do Centro-Oeste, 3 do Sul e 1 do
Norte. Quanto ao gênero, do total de participantes, foram: 10 do gênero masculino e 4, do feminino. Os
entrevistados possuíam tempo de trabalho na PRF entre 14 a 25 anos. Quanto ao tempo de docência na
formação policial, de 5 a 19 anos de experiência.
Optou-se pela entrevista por esta se caracterizar como uma recorrente técnica de coleta de dados
amplamente utilizada na pesquisa social, tendo a vantagem de permitir uma relação de interação entre
fonte e pesquisador por meio de um diálogo assimétrico (GIL, 2008). O instrumento de coleta utilizado
foi o roteiro de entrevista semiestruturada. A escolha pela entrevista semiestruturada permitiu o
aprofundamento dos temas não contemplados nas perguntas previamente elaboradas.
As entrevistas foram efetivadas no período de 7 de novembro de 2019 a 21 de janeiro de 2020, sendo uma
presencial e 13 remotas, com utilização de aplicativo de vídeo e gravação consentida pelo participante.
Na transcrição do material, os docentes foram denominados pela abreviatura “Docente-XX”, onde
“XX” representa um número de 1 a 14, que individualizou o professor participante, sem, no entanto,
comprometer o sigilo de sua identidade.
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O escopo das entrevistas foi investigar o processo de ensino dos cursos de formação da PRF do período
a partir da atuação docente em torno da aula ministrada no curso de formação. Assim, temas como o
planejamento das aulas, a atuação docente em sala de aula, as interações com os alunos e a forma de
avaliação foram abordados no roteiro da entrevista.
O material escrito das entrevistas com os docentes passou pelo tratamento de dados seguindo o método
da análise de conteúdo. Assim, o material produzido foi submetido às três fases clássicas da análise de
conteúdo propostas por Bardin (1977): pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e
interpretação.
O tratamento do material consistiu em definir a sentença temática como Unidade de Registro (UR) básica
para análise. A partir da leitura do material, as URs foram alocadas em categorias segundo as temáticas
identificadas em seus conteúdos. Segundo Câmara (2013), as categorias temáticas podem nascer do
referencial teórico, do próprio texto coletado ou de ambos. O presente artigo apresenta os resultados da
categoria temática “O processo de ensino do CFP”, que se ramificou em cinco subcategorias, conforme
demonstrado no Quadro 1.
QUADRO 1
Quadro 1
Descrição da Categoria O processo de ensino do CFP
4. A avaliação no CFP
5. Relação discente-docente
O critério de inclusão temática da categoria e das subcategorias foi lastreado no conceito de processo
de ensino proposto por Libâneo (1990). Foram incluídos na categoria os discursos das entrevistas, que se
tratava dos subtemas da categoria.
O resultado das entrevistas permitiu condensar o objeto de estudo – o processo de ensino formativo
– nos seguintes temas: o planejamento, a aula, os materiais e equipamentos didáticos, a avaliação e as
relações dos docentes com os alunos; os quais serão apresentados individualmente.
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A discussão e a análise dos resultados do processo de ensino decorrente dos cursos de formação serão
realizadas a partir de cada uma das subcategorias descritas no Quadro 1.
Inicialmente, destaca-se que sete docentes explicaram como aconteceu o planejamento dos componentes
curriculares que estavam à frente (Docentes 4, 6, 8, 11, 12, 13 e 14). De uma forma sintética, os entrevistados
disseram que a convocação para dar aula no CFP foi o ponto de partida que desencadeou todo o processo
de planejamento docente. Esse processo impulsionou as demais etapas, como a definição dos conteúdos
das aulas e os meios de operacionalizá-las.
Então, geralmente, ou a gente constrói esse plano de disciplina do início, antes do CFP acontecer [...] e inicia
daí, um plano de disciplina, reunião com todos os instrutores, baliza como vão ser explorados os temas em
cada aula, constrói a questão das avaliações, gera recurso pra adequar com esse plano, porque a gente sabe
que a cada ano você tem que fazer toda uma movimentação, fazer uma nova disciplina de armamento,
munição, equipamento. (Docente 13).
Foi feita uma mesa redonda dos instrutores onde foi selecionado um instrutor chefe, que seria o
representante dos instrutores junto às coordenações pedagógica e administrativa. Um [de nós] foi
selecionado e nesse debate nós ajustamos o que seria ministrado no conteúdo disciplinar e a focar dentro
do projeto pedagógico. (Docente 14).
O planejamento começa com reunião, a gente começa a ver o que você tem de material pra trabalhar, a
gente faz um plano de disciplina de tudo aquilo que você vai poder trabalhar com aluno, o que você vai ter
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que mostrar, o que ele vai ter que saber, e a partir daí a gente faz um plano de aula, que aquilo que é mais
específico pra gente ministrar cada aula que você vai dar durante o CFP. (Docente 6).
Corroborando à opinião do Docente 6, Libâneo (1990) explica que o plano de aula corresponde ao
documento sequencial e orientativo do trabalho docente, o que pressupõe flexibilidade em sua execução.
Essa flexibilidade do plano de aula foi reivindicada por um dos entrevistados como essencial para a
dinamicidade das aulas.
[...] geralmente a gente fazia o nosso plano de aulas, pra seguir, assim, minuciosamente. Só que geralmente,
aqueles slides... Nem todos aqueles slides iam prali [sic] [...] A gente com o plano de aula, na realidade, você
dá aula sem precisar de slide. (Docente 2).
A definição do objetivo de aula é o ponto de partida do plano. Assim, sete docentes fizeram menção
ao objetivo de suas aulas, tais como: trazer aspectos da prática cotidiana policial (Docente 1); garantir
a aprendizagem do aluno (Docentes 2 e 9); transformar os valores trazidos pelos alunos para valores
“adequados” à profissão policial (Docentes 5, 10 e 11); e despertar criticidade, como expresso tanto pelo
Docente 10 quanto pelo Docente 8, em destaque.
A nossa preocupação é não colocar o policial numa bolha, a sociedade é dinâmica, o país é dinâmico,
dependendo de cada local tem uma forma, mas você tem as diretrizes municipais, com as diretrizes que nós
passamos você consegue fazer com certeza um trabalho com nota 7 ali, básico que nós passamos você tira
nota 7, é esse cuidado que a gente passa. (Docente 8).
Para Freire (1996), a criticidade é a superação da curiosidade ingênua pela curiosidade epistemológica
com rigor metodológico. A preocupação desses docentes em formar policiais críticos é indicativo de um
ensino maduro e que vai além da transmissão de técnicas necessárias à profissão.
Quanto ao conteúdo e ao método escolhido para o alcance desses objetivos, quatro entrevistados
trataram desse tema. O Docente 13 informou que a prioridade foi a definição dos conteúdos relevantes
de seu componente curricular, enquanto os entrevistados 4, 7 e 14 descreveram a definição das atividades
da prática cotidiana da profissão como norteadora daquilo que deveria ser priorizado em seus planos de
aula elaborados.
A gente priorizava a prática do dia a dia. A prática, aquilo que ele ia usar na prática. [...] Então no APH
[Atendimento Pré-Hospitalar], principalmente nas minhas aulas, né? E eu acho que o grupo, acho que a
maioria do grupo pensa assim, ou pelo menos grande parte dos que eu... A gente precisava enfatizar a ação.
(Docente 7).
Em uma análise sistemática das falas, apesar da diversidade de discursos, houve docentes que
estabeleceram como objetivos a transformação de valores e a formação de policiais críticos, alinhados
com as bases conceituais do projeto político-curricular do CFP. Assim, o planejamento do CFP alinhou-se
às diretrizes para o ensino formativo propostas pela Matriz Curricular Nacional – MCN (BRASIL, 2014).
O planejamento do CFP da PRF caracterizou-se como uma etapa do processo de ensino que respondeu
pela definição dos objetivos de aprendizagem por meio de uma atividade desenvolvida coletivamente
pelos docentes envolvidos a partir de diagnósticos situacionais.
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A AULA DO CFP
A aula é caracterizada como a unidade básica do ensino, porque nela se vislumbra todo o esforço didático
do planejamento docente (LIBÂNEO, 1990). Assim, a estruturação da aula tem implicações para o sucesso
ou o fracasso docente em alcançar os objetivos do planejamento (LIBÂNEO, 1990).
Dentro dessa temática, do total de entrevistados, sete descreveram ou exemplificaram como suas aulas
eram executadas (Docentes 2, 4, 6, 7, 8, 10 e 14). Os Docentes 4 e 7 enfatizaram a necessidade de
um bom planejamento de aula em um curso de formação, por envolver movimentação de materiais e
escolha de espaços adequados. As demais falas permitiram definir a estruturação básica de uma aula
do curso de formação.
Em linhas gerais, a aula do CFP seguiu um formato de alternância entre momentos de sala de aula –
onde foram trabalhados conhecimentos teóricos – e momentos de execução de técnicas ou simulação de
situações reais da atividade policial, como didaticamente explicado pelo Docente 14.
O uso diferenciado da força, na aula introdutória, você trabalha aspectos legais do uso da força pelo Estado
através da força policial. Então você aprende a normatização internacional e nacional que tratam da temática.
E a segunda aula em diante são situações práticas, você começa a mexer no espargidor de pimenta, na arma
de choque, na tonfa – dependendo do curso de formação trabalha também com a tonfa – e faz algumas
demonstrações, em relação ao uso diferencial da força é assim que se trabalha. (Docente 14).
A estruturação das aulas de formação, como mencionado pelo entrevistado 14, explorando diversos
espaços para se adequar à heterogeneidade da atividade policial, é referenciada como uma boa prática
de ensino formativo pela MCN (BRASIL, 2014).
Avançando na análise, constatou-se nas falas dos Docentes 6, 7, 8, 10 e 14 um cuidado com a progressão
didática dos conhecimentos a serem trabalhados, partindo-se dos conhecimentos elementares aos mais
complexos, como se constata na fala de um desses docentes:
Ela tem uma fase inicial teórica e posteriormente entra-se com a apresentação de material, é sempre com a
interação, sempre existe a demonstração e fazer junto, posteriormente, e depois a execução por parte dos
alunos com supervisão dos instrutores. (Docente 10).
O cuidado dos docentes em estruturar didaticamente suas aulas vem ao encontro do que propõe Libâneo
(1990): uma boa estruturação didática da aula busca propiciar a aprendizagem dos alunos por meio de
etapas, contando com a necessária criatividade e a flexibilidade docente, visando atingir os objetivos
traçados no planejamento.
A elaboração e a execução de uma aula do curso de formação da PRF se mostrou uma atividade complexa
que demandou trabalho em equipe dos docentes envolvidos:
Como eu aprimorei [as aulas]? Eu acho que foi na interação dos instrutores. A interação entre os instrutores é
muito importante. Na verdade, a gente tem um grupo de Whatsapp que funciona o ano inteiro, e cada um vai
postando ali o que durante o ano inteiro ele viu de coisas reais no dia a dia dele. [...] Então são trazidas fotos
novas, acidentes novos, esse é um dos aprimoramentos. (Docente 7).
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A fala do Docente 7 reafirma que o processo de estruturação das aulas foi exercido de forma simétrica
entre os docentes, rendendo bons resultados por reunir ideias e experiências de todos os envolvidos em
prol do aperfeiçoamento das aulas. O trabalho foi realizado no formato de cocriação, sem necessidade de
instituição de liderança formal.
Um outro ponto relevante nas aulas ministradas pelos docentes foi a abordagem de competências
policiais desvinculadas da clássica repressão penal, como explicado a seguir:
[sobre o que o docente almeja para o aluno após o CFP] É ter um trânsito melhor, é fiscalizar melhor, é, por
exemplo, é chegar e chegar num contexto de falar assim: “eu não estou aqui pra multar”, você não tá pra
multar, você tá pra fiscalizar, porque cada um que você fiscaliza você deixa o trânsito melhor, você traz atos
de cidadania. [...] Então isso faz com que nós temos oportunidade de mudar comportamentos, mudar vidas,
isso talvez seja mais grato pra mim. É mudar comportamentos, mudar visões, mudar uma visão. (Docente 11).
É bastante salutar notar que alguns docentes, a exemplo do Docente 11, romperam a tradição bacharelista
dos cursos de formação policial (MUNIZ, 2011), evoluindo para uma formação transformadora e com
vistas a alcançar a autonomia do aprendiz (FREIRE, 1996).
Em suma, a estruturação básica das aulas do CFP seguiu um roteiro básico de alternância entre momentos
teóricos e práticos, com especial cuidado quanto à progressão dos momentos de aula, sendo esses dados
indicativos de formação pautada pela didática e para os aspectos práticos da realidade da profissão. As
aulas não se limitaram a transmitir técnicas, mas incluíram competências comportamentais esperadas da
profissão policial em contextos democráticos (BRASIL, 2014).
O professor exerce o papel, por excelência, de mediação do processo de ensino-aprendizagem. Uma das
ferramentas que o docente tem à sua disposição são os materiais e equipamentos didáticos, também
denominados recursos educacionais, conceituados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) como
“todo e qualquer recurso utilizado em um procedimento de ensino, visando à estimulação do aluno e à
sua aproximação do conteúdo” (BRASIL, 2007, p. 21).
Na análise das entrevistas no tocante ao uso dos materiais didáticos, todos os entrevistados citaram
a utilização de, pelo menos, um recurso educacional quando do exercício docente em sala de aula. A
menção à apostila foi feita por todos os entrevistados e foi também o recurso educacional que provocou
maior controvérsia. Quatro entrevistados fizeram uso regular da apostila (Docentes 4, 7, 9 e 10), e dois a
utilizaram como roteiro no planejamento das aulas (Docentes 2 e 5). Entretanto, devido à desatualização
dos conteúdos, cinco docentes a usaram eventualmente (Docentes 1, 3, 11, 12 e 14). A polêmica sobre o
uso da apostila fica evidente na fala do Docente 13:
A apostila limita porque, assim, naquela época, quando nós trabalhávamos a apostila pensava-se de uma
forma muito limitada e os alunos muito presos a ela, porque a prova final, da qual ele ainda fazia parte do
concurso, ela se baseava muito na apostila. (Docente 13).
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O paradoxo sobre o uso da apostila não é algo incomum e se insere no papel docente de mediador do
processo de aprendizagem, cabendo-lhe a análise e a escolha dos recursos didáticos que se adequam aos
objetivos de aprendizagem (LIBÂNEO, 1990). O cuidado em não seguir um material desatualizado e a
flexibilidade em alterar o planejamento podem ser apontados como positivos do fazer docente do CFP.
Um recurso educacional bastante citado foram os equipamentos policiais trazidos para o ambiente de aula.
No ensino formativo de policial, esses materiais são de extrema importância, uma vez que o aluno está
sendo preparado para uma atividade em que será necessário manusear diversos equipamentos inerentes
à atividade, como radiocomunicador, algemas, espargidor de pimenta, arma de choque, arma de fogo e
bafômetro (etilômetro). Do total de entrevistados, oito informaram que utilizaram tais equipamentos em
suas aulas (Docentes 1, 3, 4, 6, 8, 10, 12 e 14). Ficou evidenciado que a utilização de tais equipamentos
promoveu uma aproximação das aulas à realidade profissional.
Armamentos, por óbvio, a gente tem também agora a questão de tentar aproximar o uso desse equipamento
e como ele vai ocorrer na prática, ou seja, o agente sempre vestido com colete balístico, que é pra dá aquela
dificultada na operação, mas facilitar a vida dele na rua, porque ele vai trabalhar com colete balístico, capa
tática com alguns equipamentos, carregador sobressalente, cinturão, kit de guarnição, fazendo ele operar
como ele fosse... Na atividade profissional dele do dia a dia. (Docente 12).
Entretanto, houve também reclamações quanto à escassez de recursos educacionais necessários para as
aulas (Docentes 3, 7, 12 e 13). A fim de evitar prejuízos à aprendizagem, alguns entrevistados disseram que
precisaram improvisar meios substitutos ou até pagaram do próprio bolso a compra de materiais didáticos.
Nós que fomos atrás de manequins – tanto é que até hoje os manequins que existe [sic] na academia foram
nós que conseguimos. Alguns ganhamos, outros compramos, o próprio grupo de instrutores é... Cotizou lá
um valor “x” pra gente tá comprando esses manequins, pra gente simular a cena de acidentes, com vítima,
com morto, nós não tínhamos esses manequins. (Docente 3).
Além dos equipamentos policiais, foi bastante citado o uso de recursos audiovisuais, como vídeos ou
projeção de slides (Docentes 2, 3, 5, 6, 7, 9 e 13), muito comum em aulas expositivas. Outros recursos
mencionados foram cenários (Docentes 3 e 12), som (Docente 5) e internet (Docente 7).
Um dado importante foram os locais onde as aulas aconteceram, os quais podem se constituir em um
recurso educacional quando são elementos que contribuem para a aprendizagem. Além da sala de aula
habitual, os docentes informaram que realizaram aulas nas áreas externas da UNIPRF (Docentes 1, 3, 11,
13 e 14), no estande de tiro (Docentes 6, 10 e 12), no laboratório de informática (Docentes 3 e 8), no dojô/
tatame (Docentes 9 e 14) e na pista de condução veicular (Docente 4). Ressalta-se que uma das funções
do recurso educacional é possibilitar a aproximação do aluno com a realidade, permitindo a concretização
dos conteúdos de aprendizagem (PILLETI, 2004).
Pode-se afirmar que os materiais e os equipamentos utilizados no CFP apontaram para um ensino focado
na prática profissional, comprovado pelo uso intenso de equipamentos utilizados da própria atividade nas
ações de ensino. Da mesma forma, os espaços utilizados (estande de tiro, pista de corrida, áreas externas,
etc.) foram indicativos do esforço docente em promover aulas menos expositivas e mais voltadas para o
ensino das práticas necessárias à atividade, a despeito de menções à escassez de recursos didáticos de
alguns docentes.
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A AVALIAÇÃO NO CFP
A avaliação é um componente do processo de ensino que coleta, qualifica e aprecia os resultados ao longo
desse processo, com vistas a orientar as decisões didáticas posteriores (LIBÂNEO, 1990).
Ainda quanto ao tema avaliação, Pilleti (2004) traz algumas considerações importantes. A primeira delas
é que a avaliação tem um papel ferramental no processo de aprendizagem, ou seja, é um meio, e não um
fim em si mesmo. Outra contribuição importante trazida pelo autor é que a avaliação é um processo e,
portanto, deve acontecer ao longo de toda a ação educativa.
Tendo em vista a necessidade de uma intervenção de ensino correta, muitos professores lançam mão
de estratégias para conhecerem melhor seus alunos do ponto de vista dos conhecimentos que já trazem
consigo. Essa abordagem avaliativa é denominada diagnóstica (PILLETI, 2004) e foi identificada na fala
de cinco entrevistados (Docentes 1, 5, 6, 12 e 14). A avaliação diagnóstica no CFP cumpriu a importante
função de desvelar o conhecimento prévio que os alunos traziam, auxiliando nas ações docentes.
Os próprios alunos eles trazem as suas expertises, todo ser humano ele tem a sua expertise e muitos alunos,
na sala de aula, já possuem uma expertise na área, eram policiais ou tinha [sic] algum outro ramo pertinente
às aulas e traziam conhecimento sempre pra ir evoluindo. (Docente 14).
A MCN (BRASIL, 2014) recomenda como diretriz de um bom ensino formativo policial aquele que parte
dos conhecimentos prévios dos alunos em sua abordagem, como visto na fala do Docente 14.
Houve também entre os entrevistados relatos sobre a realização de avaliação formativa. Segundo Pilleti
(2004), a avaliação formativa permite ao docente correções durante o processo de ensino, focando-se em
ações mais efetivas de aprendizagem, como descrito na fala do entrevistado 1:
A primeira parte dessas oficinas, que era uma prévia da avaliação, que eram situações semelhantes às que
eram usadas em avaliação, a gente já começava a identificar alunos que não desenvolviam a parte policial e a
gente durante... Após essa avaliação, a gente começava a trabalhar melhor, dá um foco melhor nesses alunos
que tinham um desempenho inferiores [sic]. (Docente 1).
Ao final do processo de ensino, existe uma terceira modalidade avaliativa denominada avaliação somativa,
cuja característica é classificar os alunos segundo níveis de aproveitamento (PILLETI, 2004). De acordo com
a entrevistada 2, essa modalidade foi utilizada em uma avaliação sobre práticas aprendidas, possibilitando
uma verificação de aprendizagem contextualizada à realidade da atividade:
Eles teriam que colocar ali tudo o que nós ensinamos. Eles foram pra um determinado lugar que tinha uma
pista, né? E eles faziam a abordagem a um veículo com infratores dentro, com alguma coisa ilícita colocada
no veículo. Eles abordavam. Aí nós olhávamos como eles abordavam, a educação da abordagem, como eles
buscavam... Tiravam o usuário daquilo, como eles chegavam até o usuário, como eles faziam o veículo... Como
eles olhavam no veículo, o que eles olhavam. (Docente 2).
Entretanto, a avaliação somativa necessária para aprovação no CFP foi vista de forma negativa pelo
Docente 13 em virtude de desvirtuar o interesse dos alunos das aulas e conduzi-los ao foco nos conteúdos
cobrados na prova final eliminatória:
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O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
Márcio José Freire Ribeiro e Emmanuelle Arnaud Almeida
Então a preocupação do aluno, às vezes, não era só aprender para ser um policial rodoviário federal e sim
a passar na prova [...] o exame de provas em fases, ela passou ter uma importância muito maior que o
aprendizado. (Docente 13).
A MCN (BRASIL, 2014) concebeu a avaliação na formação policial como um processo contínuo e que vai
além dos critérios de seleção ou aprovação, tendo como força-motriz a reconstrução permanente do que
se aprendeu para possibilitar a aplicação em novos contextos e novas situações. Constatou-se, a partir das
entrevistas, que o curso de formação da PRF realizou avaliações típicas de um concurso (somativas) que
conviveram com outros esquemas avaliativos, de caráter processual ou diagnóstico, focados em verificar a
aprendizagem dos alunos em situações reais da atividade, em boa sintonia com o preconizado pela MCN.
RELAÇÃO DISCENTE-DOCENTE
Conforme leciona Libâneo (1990), o ensino é um processo bilateral no qual atuam, pelo menos, dois
sujeitos: professor e aluno. De 14 entrevistados, 11 teceram comentários sobre sua relação com os alunos.
A formação policial na PRF é uma etapa de um longo concurso público de provas e títulos, e as relações
entre professores e alunos estavam inseridas nesse contexto. A despeito dessa relação envolver um
processo seletivo, o que poderia implicar um natural afastamento, oito entrevistados relataram uma relação
horizontal com seus alunos (Docentes 2, 3, 5, 6, 8, 9, 10 e 14). Um dos entrevistados explicou que essa
proximidade era natural, uma vez que os alunos se tornariam colegas de trabalho dele em pouco tempo:
Eu faço questão de vir pra o curso de formação porque eu depois eu vou trabalhar com produto que eu
mesmo formo. Então, quando eu chego na sala de aula, eu vejo nos meus alunos aqueles colegas que comigo
compartilharão lá na pista. (Docente 8).
Considerando que a formação funciona como instrumento que atua para ratificar o modelo de
policiamento da própria instituição (PONCIONI, 2007), pode-se afirmar que as relações humanas do
modelo de cargo único da PRF reproduziram o modelo horizontal existente nas relações entre docentes-
discentes, evidenciado no fato de muitos já tratarem os alunos como futuros colegas. Essa horizontalidade
é sugestiva de que isso também aconteça entre os atores envolvidos no exercício da atividade PRF.
A despeito da boa relação entre discente-docente, houve, pelo menos, um entrevistado reticente quanto
a essa aproximação com os alunos, devido às relações de ensino estarem inseridas no contexto de um
concurso público:
[...] essa intimidade, ela se torna, assim, ao mesmo tempo é salutar em algum ponto, mas eu acho... Para o
ensino que a PRF quer hoje, ela tem que ser um pouco assim, ela tem que ser um pouco mensurada, porque
em algum momento pode atrapalhar, principalmente com essas relações aí de proximidade, porque você tá
num processo de avaliação. (Docente 11).
Essa fala divergente não desnatura a constatação geral de relações mais estreitas entre docentes-discentes
no CFP da PRF. Essa horizontalidade também se manifestou no respeito aos saberes dos alunos e foi
mencionada por, pelo menos, seis docentes (2, 3, 6, 9, 10 e 14). Para o Docente 14, a relação horizontal
com os alunos promoveu uma aprendizagem mútua: “costumo falar que o instrutor é quem mais aprende
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O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
Márcio José Freire Ribeiro e Emmanuelle Arnaud Almeida
em sala de aula, que ele recebe conhecimento de todos os instrumentos, há uma troca de conhecimento
em sala de aula” (Docente 14).
Essa fala vai ao encontro das lições de Freire (1996), para quem os saberes dos alunos devem ser
respeitados pelos docentes em sua prática educativa, exigindo humildade e reconhecimento de que
somos seres inacabados. Por vez, as relações proximais entre docentes e alunos manifestaram gestos de
empatia inesperados em um curso de formação policial:
Tanto que nós tivemos alunos de sala de aula que choraram em nossas aulas. Nós tiramos de sala de aula,
fomos conversar depois com eles, principalmente [omitido] e [omitido], que são psicólogos, e eles relataram
problemas familiares, sabe? Que eles... Como eles mesmo disseram, nunca tinham relatado isso pra ninguém.
Então, são alunos que nós temos certeza que nós conseguimos chegar até aquele aluno com as nossas aulas.
(Docente 2).
Mas nem só de flores se caracterizou o relacionamento entre alunos e docentes. Um dos docentes sugeriu
que o aluno em formação “encena” um papel e que se revelará, de forma autêntica, somente quando
efetivado no cargo:
O que eu percebi que em 2016 em relação a 2014 que em sala de aula havia muita representação, o aluno
pegar a cartilha e colocar debaixo do braço, eu vou “rezar” a cartilha aí depois é outra coisa. É aquele detalhe
assim, pra passar... Eu vou estudar pra passar. Então ele jogou com as regras ali. (Docente 3).
Apesar dessa crítica trazida pelo Docente 3, o relacionamento docente no CFP surpreendeu pelo nível de
proximidade e horizontalidade com os seus alunos, contrastando com modelos de outras forças policiais,
fundamentados na rígida hierarquia, os quais findam por conduzir a processos de exclusão e negação da
autonomia (LIMA, 2007).
Analisando todos os resultados apresentados nas cinco subcategorias temáticas, é defensável afirmar
que o processo de ensino formativo da PRF é resultado de um trabalho profissional e fortemente
influenciado pela estruturação da carreira em cargo único. Assim, a simetria do processo de planejamento,
a estruturação pedagógica das aulas, as avaliações focadas na transformação dos alunos, o uso intenso de
materiais didáticos da atividade e a horizontalidade nas relações docente-discente verificadas no CFP da
instituição não são elementos ocasionais desse processo.
A identificação do cargo único como um dos responsáveis pelos bons resultados da Polícia Rodoviária
Federal foi reconhecida por Darós (2019), pois segundo esse autor, o referido modelo prima pelo
tecnicismo e meritocracia:
A mencionada PRF possui o escalonamento dos cargos, que se inicia na base e, por intermédio de promoções
por tempo de serviço e mérito, vai ascendendo em escala vertical de níveis. Somente chega ao último degrau
técnico quem possui somatório de experiência funcional e mérito acadêmico, transformando esse órgão
policial no mais eficiente de todos relativos à apreensão de drogas e ao controle do tráfego rodoviário
nacional. (DARÓS, 2019, on-line).
Reconhecendo-se que o ensino formativo reproduz e ratifica o modelo da instituição que o abriga
(PONCIONI, 2005), a partir da amostragem dos dados coletados, evidencia-se que o processo de ensino
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O processo de ensino formativo em uma instituição policial
estruturada em cargo único: o caso da Polícia Rodoviária Federal
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formativo da PRF é fruto de uma organização administrativa alicerçada no cargo único, evidenciado
na opção por proporcionar espaços de participação docente baseados em suas competências e
especialidades, possibilitando um processo de ensino alinhado às diretrizes didático-pedagógicas
esperadas da formação policial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando o objetivo inicial, pode-se caracterizar o processo de ensino formativo da Polícia Rodoviária
Federal como profissional e fortemente influenciado pelo cargo único adotado pela instituição.
O profissionalismo foi confirmado pela adoção de práticas docentes alinhadas tanto à literatura
especializada ao ensino (LIBÂNEO, 1990; PILLETI, 2004) como às concernentes à formação policial técnica
e cidadã preconizada na MCN (BRASIL, 2014). O planejamento firmou-se como uma fase importante
no processo de ensino formativo da instituição, sendo realizado de forma coletiva e coparticipativa.
A estruturação das aulas foi executada alternando momentos teóricos e práticos da profissão. Houve
preocupação na utilização de materiais e equipamentos didáticos contextualizados à atividade policial. A
avaliação não se resumiu meramente aos aspectos quantitativos (somativa), mas contemplou modalidades
avaliativas qualitativas realizadas ao longo do curso. As relações docente-discente surpreenderam pela
proximidade e horizontalidade.
A influência do modelo de cargo único da PRF foi perceptível na dinâmica do ensino de formação da
instituição, permitindo a adoção de um planejamento de ensino não-verticalizado, simétrico e participativo,
possibilitando relações horizontais entre docentes e discentes. A estruturação da PRF em cargo único, em
suma, atuou a favor de um modelo formativo mais próximo da realidade da atividade e, de certa forma,
mais consentâneo ao modelo de formação policial cidadã proposta pela MCN (BRASIL, 2014).
Por outro lado, o modelo de ensino formativo da PRF, marcadamente horizontalizado, contrastou com
modelos tradicionais identificados em cursos de formações de outras forças policiais, cuja marcas são
as relações verticalizadas entre docentes e discentes, a adoção do ensino bacharelista e a ratificação,
no conteúdo formativo, do modelo de policiamento repressivo e de combate ao crime (MUNIZ, 2001;
PONCIONI, 2005; BASILIO, 2010).
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Contribuição de cada autor: Stephane Silva de Araujo contribuiu com concepção, pesquisa, debate e escrita. Maria Cecilia
Lorea Leite contribuiu com orientação, debate, escrita e revisão.
RESUMO
As produções científicas sobre o sistema penitenciário apresentam-se em quantidade suficiente para
problematizar suas contradições. Não obstante, pouco se discute sobre os servidores que lá atuam e
sobre a qualificação profissional que acessam. Assim sendo, este artigo lança luz a um prisma ainda
sombrio. Pretende-se, por meio de um estudo de caso, demonstrar que os processos formativos dos
servidores que atuam em um sistema penitenciário mais repressivo tendem a privilegiar uma concepção
curricular voltada à manutenção da ordem e da disciplina. Dessa maneira, ao observar os cursos realizados
pela Escola Nacional de Serviços Penais, entre 2013 e 2019, evidencia-se que há predominância do eixo
de formação “Segurança e Disciplina”. Considera-se, desse modo, que, a despeito da política curricular
vigente, as ações educacionais desenvolvidas privilegiam a manutenção de protocolos que primam pela
neutralização dos apenados, em convergência com a política de controle criminal instituída na sociedade.
Palavras-chave: Escola Nacional de Serviços Penais. Servidores das Carreiras Penais. Sistema Penitenciário
Federal. Currículo.
ABSTRACT
QUALIFICATION AND PENITENTIARY POLICY: THE CURRICULUM AT THE SERVICE OF ORDER AND
DISCIPLINE IN PRISON
Scientific productions about the prison system are presented in sufficient quantity to problematize their
imbroglios. Nevertheless, little is discussed about the employees who work there and about the professional
qualification they access. Thus, this article sheds light on a still gloomy prism. Through a case study, it is intended
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
da ordem e da disciplina no cárcere
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
to demonstrate that the training processes of civil servants who work in a more repressive prison system tend
to privilege a curricular conception aimed at maintaining order and discipline. Therefore, when observing the
courses taken by the National School of Criminal Services, between 2013 and 2019, it is evident that there is a
predominance of the “Safety and Discipline” training axis. In this way, it is considered that, in spite of the current
curricular policy, the educational actions developed privilege the maintenance of protocols that stand out for the
neutralization of the inmates, in convergence with the criminal control policy instituted in the society.
Keywords: National School of Criminal Services. Criminal Career Servers. Federal Penitentiary System.
Curriculum.
INTRODUÇÃO
A formação dos servidores que atuam no sistema prisional, de acordo com Miotto (1992), é preocupação
constante do Ministério da Justiça e Segurança Pública, desde meados da década de 1970, quando eventos
para discutir práticas de gestão penitenciária eram realizados em Brasília, Distrito Federal. Ademais, no
pacote de medidas que se apresentavam, como a Política Penitenciária Nacional, é possível visualizar,
segundo Miotto (1992), a edição de referenciais de identidade para os servidores, de qualificação para os
guardas de presídio, bem como a instituição de importantes órgãos que tratariam do tema posteriormente,
como o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e o Departamento Penitenciário
Nacional (Depen).
A despeito do retardamento do Poder Executivo Federal nessa seara, os entes da federação já contavam,
a certa altura, com escolas especializadas na formação de seus servidores e propunham referenciais
curriculares próprios (MELO, 2018). Além disso, quando possível, acessavam recursos oriundos do
Governo Federal, sem maior direcionamento político, para a execução de cursos de qualificação inicial
e continuada, fato que carece de produção científica para clarificar a natureza e os detalhes de tais
repasses financeiros.
Contudo, com a edição da Lei de Execução Penal N° 7.210, de 11 de julho de 1984 (BRASIL, 1984),
tornou-se real a necessidade de aprimoramento profissional do pessoal penitenciário, sobretudo no que
concerne à capacitação para ingresso nessa carreira. Mesmo assim, no âmbito do Poder Executivo Federal,
são visualizadas ações efetivas que versam sobre a formação dos servidores da execução penal apenas
a partir do ano 2000. Em especial, após 2005, a Coordenação de Educação do Depen passou a discutir,
conceber e fortalecer ações que ensejaram a emergência da Política Nacional de Educação em Serviços
Penais – PNESP (DEPEN, 2005).
Em 2005, por meio da Portaria Depen Nº 39, de 15 de julho de 2005 (BRASIL, 2005), foram instituídos
os fundamentos de política e as diretrizes de financiamento para o campo da formação de servidores da
execução penal. Com base nessa inovação, 100% dos estados brasileiros passaram a contar com escolas
ou núcleos de formação estruturados a partir do aparelhamento de suas sedes pelo Governo Federal
(ARAUJO, 2020a). Nesse contexto, emergem também diretrizes curriculares e um guia de gestão para
as escolas. Os argumentos que justificassem a necessidade de estruturação de uma escola nacional que
articulasse os processos formativos dos servidores do recém-inaugurado Sistema Penitenciário Federal
(SPF) ainda eram tímidos.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 174-191 175
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
da ordem e da disciplina no cárcere
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
Considerando desavenças, entraves e desencontros políticos internos que já se arrastavam por quase 30
anos, a concepção da Escola Nacional de Serviços Penais (Espen), segundo Araujo (2020b), toma fôlego
nesse novo contexto, sendo instituída em 2012, por meio da Portaria Nº 3.123, de 3 de dezembro de
2012 (BRASIL, 2012). Cumpre salientarmos que, entre a inauguração do SPF e da Espen, os processos
formativos dos servidores que atuavam nos presídios federais foram desenvolvidos por instituições
externas ao Depen, tal como a Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal.
Em outros termos, é essa mudança de rota, no que se refere à natureza da qualificação dos servidores do
SPF, que nos interessa neste artigo. Inicialmente, tais servidores, capacitados por instituições externas,
tendiam a participar de capacitações voltadas ao campo policial, desconsiderando a atuação no sistema
prisional. Posteriormente, ao contarem com uma instituição educacional própria, objetivava-se o
atendimento integral das competências necessárias à atuação no cárcere federal.
Não obstante, ao considerarmos que o sistema penitenciário brasileiro é regido por uma legislação
garantidora dos direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade, a criação de um sistema penal de
exceção ou, como afirma Nunes (2020, p. 101), de um “[...] microssistema de execução penal” inauguraria
um desafio para a qualificação de servidores. A Espen, unidade administrativa do Depen, teria que, ao
mesmo tempo, atentar aos referenciais curriculares vigentes e atender às necessidades no novel sistema,
claramente mais coercitivo.
Estudos já desenvolvidos sobre o tema indicam a existência de um hiato entre os normativos da área e
a atuação da referida escola (ARAUJO, 2020a). Este artigo, porém, tem como objetivo demonstrar que
os processos formativos dos servidores que atuam em um sistema penitenciário mais repressivo tendem
a privilegiar uma concepção curricular voltada à manutenção da ordem e da disciplina no cárcere. Nesse
sentido, o artigo aponta, em um primeiro momento, as principais características do SPF, sua finalidade
e sua concepção de execução penal. Na sequência, propomos uma compreensão quanto à forma como
são desenvolvidas, no seio da administração pública federal, a qualificação e o aperfeiçoamento de seus
servidores. Para isso, de forma breve, focalizaremos os elementos de caracterização da Política Nacional
de Desenvolvimento de Pessoal (PNDP), regulamentada pelo Decreto Nº 9.991, de 28 de agosto de 2019
(BRASIL, 2019a) e atualizada pelo Decreto Nº 10.506, de 2 de outubro de 2020 (BRASIL, 2020).
Delimitado esse pano de fundo, centraremos nossa problematização na concepção curricular que
emerge de uma Escola de Governo destinada a atender às demandas que um microssistema de execução
penal apresenta. A análise do portfólio de cursos desenvolvidos pela Espen possibilita-nos inferir que,
em detrimento da Matriz Curricular Nacional instituída pelo Depen, seu currículo se volta à fabricação
de identidades profissionais fundamentadas na atuação laboral, a qual está orientada por questões de
ordem e de disciplina, elevando o primado da segurança prisional ao primeiro, e talvez único, patamar.
Assim, este artigo ocupa-se do currículo que emerge do contexto de trabalho e que, em certa medida,
influencia os processos formativos e rechaça os ditames da PNESP vigente. Consideramos esse cenário
ao observarmos que a PNESP e seus textos complementares primam por humanização do ambiente
carcerário, por reforço aos direitos da pessoa presa, por práticas que propiciem o desencarceramento
e não se apresentem a partir de ações formativas pautadas pelo militarismo, caracterizando-se como
policialescas, embora se destinem, em pouco tempo, à recentemente criada Polícia Penal.
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
da ordem e da disciplina no cárcere
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
Sobre o SPF, inaugurado em 2006, pouco se fala no âmbito acadêmico (ARAUJO; LEITE, 2013; NUNES,
2020; SANTOS, 2016), o que pode ser justificado pela sua recente criação e pela hermeticidade1 (BRAGA,
2014) que se atribui ao cárcere. As práticas que sistematicamente envolvem o sigilo no ambiente prisional
parecem ser ainda mais recorrentes em um sistema considerado de exceção ou, como nos indica Nunes
(2020, p. 101), um “[...] microssistema de execução penal”. As diferenças essenciais que levam o autor a
caracterizar o SPF de tal modo estão relacionadas às qualificadoras dos apenados, as quais custodiam a
necessidade de isolá-los completamente. Isso acarreta o monitoramento ininterrupto por áudio e vídeo,
bem como a definição quanto ao prazo de permanência específico, o que o torna um sistema no qual não
se deve cumprir a totalidade da pena estipulada.
Em síntese, trata-se de um novo sistema penitenciário, gerido pela União, de segurança supermáxima,
baseado no rigor, na restrição de direitos e no isolamento de presos. Inspirado nas supermaxes americanas,
esse modelo foi concebido para desarticular organizações criminosas que atuavam dentro dos presídios
estaduais brasileiros. (SANTOS, 2016, p. 309).
O microssistema a que nos referimos é composto por cinco unidades “[...] equipadas com aparato de
segurança moderno, profissionais capacitados pelos melhores especialistas da área e contando com
instalações à prova de motins” (ARAUJO; LEITE, 2013, p. 398), as quais, em linhas gerais, objetivam o
isolamento das principais lideranças de grupos criminosos organizados. Nunes (2020, p. 110), porém,
vai além ao afirmar que os presídios federais não só foram criados para isolar, mas também para “[...]
não permitir que os presos do SPF criem facções, fortaleçam as existentes ou utilizem o presídio federal
como home office, tal qual fazem com os estabelecimentos estaduais”. Isso assemelha-se, segundo nosso
entendimento e de acordo com Santos (2016), com a concepção de neutralização imposta pelo sistema.
A rotina nas unidades federais é diferenciada, pois até mesmo a arquitetura das penitenciárias contribui
para maior austeridade e complexidade dos procedimentos adotados, tendo em vista, sobretudo, a
individualização dos espaços.
[...] os presos são mantidos em celas individuais, sob maior controle, com eficiente monitoramento de
vídeo de áreas comuns do cárcere, excetuando-se, portanto, as celas, com redução de seu contato com o
mundo exterior e, por conseguinte, diminuição da possibilidade da continuidade de atividade criminosa,
especialmente o exercício do poder de liderança. (NUNES, 2020, p. 118).
Santos (2016), por sua vez, ao narrar a rotina nesses estabelecimentos, afirma o quanto ela é pautada
pela rigidez, pelo rigor dos protocolos de trabalho e pela forma diferenciada de lidar com a pessoa presa.
A rotina no interior dos presídios federais é baseada em normas de extremo rigor. Quando não estão
envolvidos em nenhuma atividade externa (aulas, trabalho ou visita), situação extremamente comum para
vários internos, os presos permanecem por vinte duas horas dentro da cela, somente saindo para as duas
horas de banho de sol. Até mesmo as refeições são feitas dentro da cela.
[...]
1 Conforme Braga (2014, p. 53), “[...] uma característica intrínseca à instituição prisional é seu hermetismo. O fechamento em relação ao
entorno social subsiste em todas as prisões e se manifesta como um mecanismo de defesa contra a incursão de práticas e pessoas que tensionem
a instituição”.
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
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Os internos precisam ser algemados para sair da cela, e qualquer movimentação exige a escolta de pelo
menos dois agentes penitenciários, devendo o recluso manter a cabeça abaixada durante a movimentação,
sendo proibido que olhe para os agentes que o conduzem. (SANTOS, 2016, p. 315).
Outrossim, Nunes (2020) afirma a constância dos direitos fundamentais nesse sistema e admite a
possível flexibilização destes em prol de maior segurança e efetividade total do SPF. Essa situação é
visualizada, por exemplo, com a flexibilização da inviolabilidade da intimidade dos presos, dos visitantes
e dos advogados desde 2007, quando visitas íntimas e sociais em pátio de visita foram proibidas, e as
entrevistas com os procuradores passaram a ser monitoradas por áudio e vídeo. Nesse caso, de acordo
com Nunes (2020, p. 121), determinados direitos fundamentais não absolutos são flexibilizados, “[...] a fim
de que seja cumprida a finalidade do encarceramento, prevalecendo, no caso, a segurança pública, que
é, na perspectiva objetiva igualmente um direito fundamental, oriundo do dever de proteção eficiente
do Estado”. Todavia, segundo a ótica de Santos (2016), estaríamos frente a uma verdadeira violação dos
direitos individuais dos presos, o que caracterizaria a materialização de uma face bastante moderna para
a teoria do direito penal do inimigo.
Nesse contexto de verdadeira guerra contra o crime organizado e suas lideranças, um diferencial consistente
são os servidores que compõem o quadro funcional desse sistema. Todos os qualificados para ingressar e
permanecer nas carreiras atuam de modo profissional, respeitando rígidos protocolos de trabalho (SANTOS,
2016). Não obstante, a natureza de sua atuação e a classificação (jurídica e social) dos apenados que auxiliam
a custodiar impõem a necessidade de uma formação especializada para tais profissionais.
Equipes multidisciplinares lotadas em cada unidade prisional observam e executam as prescrições das
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos – Regras de Mandela (BRASIL, 2016) e
da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), no que tange à gestão dos estabelecimentos e de todas as suas
nuances. Logo, a rigidez do SPF requer um trabalho diferenciado com relação à adaptação das práticas
profissionais costumeiras de pedagogos, assistentes sociais, enfermeiros, odontólogos, terapeutas
ocupacionais, entre outros. Na retaguarda desses servidores, e na linha de frente da custódia prisional,
os Agentes Federais de Execução Penal, futuros Policiais Penais Federais, também se situam diante do
desafio de executar a pena segundo seus ditames legais, incluindo os assistenciais.
Por isso, compreendemos que os conhecimentos da área de Segurança e Disciplina são necessários. Todavia,
reforçamos o entendimento das matrizes curriculares, já instituídas pelo Depen, sobre a necessidade de ponderá-
los, equilibrá-los, equalizá-los com os demais conhecimentos oriundos do cárcere – necessários à execução
digna da pena. Uma unidade prisional não “roda”, como se diz popularmente, apenas com a retórica oriunda da
manutenção da ordem e da disciplina. A “cadeia cai” sem a prestação de assistências e a efetivação de direitos.
Observar o cárcere sob esse prisma, incluindo o SPF, reforça o nosso entendimento de que ambos os
sistemas, federal e estadual, são regidos pela Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), pela Constituição
Federal (BRASIL, 1988) e por convenções internacionais com as quais o país se comprometeu. É primordial
termos em vista esse cenário para que, posteriormente, os dados evidenciados por este artigo sejam
problematizados.
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
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Embora o objeto deste artigo não cuide de uma perspectiva administrativa voltada ao aperfeiçoamento
profissional de servidores, precisamos pontuar que os processos formativos dos servidores das carreiras
penais da União são regidos, atualmente, pela PNDP, instituída pelo Decreto Nº 9.991/2019 (BRASIL,
2019a) e atualizada pelo Decreto Nº 10.506/2020 (BRASIL, 2020).
A administração pública federal pauta-se por princípios vinculados à gestão de pessoas por competências,
o que acarreta o desenvolvimento profissional dos servidores com base em conhecimentos, habilidades
e atitudes necessárias à realização de cada atividade laboral. Logo, torna-se indispensável a vinculação
entre as ações de capacitação e as demandas dos órgãos da administração, a fim de reduzir os gaps de
competências que o funcionário público federal demonstra no exercício da função.
Nessa perspectiva, ganham destaque as Escolas de Governo, que passaram a assumir a centralidade na
oferta de processos formativos dos servidores federais. O documento normativo federal anterior (Decreto
Nº 5.707, de 23 de fevereiro de 2006), em seu art. 4º, disciplinou que essas escolas são “[...] as instituições
destinadas, precipuamente, à formação e ao desenvolvimento de servidores públicos, incluídas na
estrutura da administração pública federal direta, autárquica e fundacional” (BRASIL, 2006). Em sua
estrutura, geralmente, não contam com um corpo docente fixo, mas com servidores que eventualmente
lecionam para os colegas de trabalho. Apesar desta análise voltar-se a uma situação contemporânea, não
se trata de algo criado recentemente. O Guia de Referência para a Gestão da Educação em Serviços Penais
já apontava situação semelhante no contexto penal em 2006, ao indicar que:
No tópico recursos humanos, o ponto mais sensível e delicado a ser enfrentado se refere ao corpo docente
das Escolas Penitenciárias. Este, via de regra, é recrutado entre servidores do próprio quadro dos sistemas
penitenciários – técnicos e agentes –, os quais atuam, portanto, apenas eventualmente na condição de
docentes. A prática se justifica tanto pelo fato da perspectiva de que são recursos humanos qualificados nas
especificidades da questão penitenciária – num contexto nacional no qual não existe um saber científico e
de formação profissional solidamente orientado para tal dimensão –, como pelo sistema de regularidade e
frequência do oferecimento dos cursos, o qual não favorece a constituição de corpos docentes permanentes.
Em determinadas ações pontuais ainda se verifica recrutamento de especialistas oriundos de outras
instituições. (DEPEN, 2006a, p. 11).
Compreendida a peculiaridade do corpo docente das escolas de serviços penais, podemos observar
que as escolas de governo, no âmbito da União, se traduzem em espaços de formação que especializam
os servidores em suas respectivas áreas de atuação. Isso porque, tais instituições, performam a partir
de temáticas bastante particulares, reduzem custos ao financiarem a hora-aula com valor diminuto e
mantêm maior controle sobre o currículo executado, pois este é produzido a partir da influência direta da
administração. Desse modo, as Escolas de Governo materializam a PNDP.
Verificamos, por esse prisma, que, particularmente, após a edição do Decreto Nº 9.991/2019 (BRASIL,
2019a), a lógica da PNDP tornou a assumir uma faceta econômica ao ser centralizada e gerenciada no/
pelo Ministério da Economia. Atualmente, as Escolas de Governo devem mapear as necessidades de
desenvolvimento institucional anualmente, encaminhando-as ao referido Ministério que as aprova ou
não, definindo, de tal modo, as ações de capacitação que poderão ser realizadas.
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Produz-se, assim, um contexto no qual o servidor tem avaliado desde o seu desempenho no exercício da sua
função até a sua participação em ações de capacitação que devem, essencialmente, desenvolver competências
que se projetem como comportamentos positivos observáveis no contexto de trabalho. Nesse sentido,
instrumentos de gestão são produzidos para inaugurar uma lógica diferenciada na administração pública,
renovando-a de acordo com os ditames que emergem da concepção político-econômica neoliberal. Segundo
Ball (2010, p. 485), estaríamos diante do “[...] currículo neoliberal de reforma do setor público”, que consiste
no exercício de aprender a ser diferente, a se apresentar como o setor privado. Há uma aprendizagem quanto
à reorientação do que é público; há a sua reforma, em última medida. Ainda de acordo com o autor, “[...] trata-
se da incorporação de novas sensibilidades e valores e novas formas de relações sociais. O setor privado é o
modelo a ser emulado e o setor público deve ser ‘empreendedorizado’ à sua imagem!” (BALL, 2010, p. 486).
Consideramos que, a partir da necessidade de requalificar os servidores diante das mudanças sociais,
o ambiente carcerário também é impactado com tais alterações. Todavia, uma vez que se trata de um
campo ainda fechado e resistente à participação externa, ele acaba não se reestruturando positivamente.
Pelo contrário, enfrenta, assim, as mudanças do último quartil do século XX, conforme pontua Garland
(2017). Dessa forma, o sistema prisional passa a recrudescer sua lógica considerando o incremento das
práticas violentas e criminosas na sociedade atual.
Por esse viés, as identidades produzidas, a partir das intersecções que o cárcere propicia, podem culminar
na manutenção de vícios e de uma cultura violenta e segregacionista, historicamente atribuída ao
contexto prisional. Posto isso, não se vislumbra ruptura quanto à cultura posta! Tendo em vista a lógica de
que nas Escolas de Governo prioritariamente atuam/lecionam os servidores que se destacam no cotidiano
de trabalho, percebemos a possibilidade de manutenção das condições laborais.
No que se refere ao sistema prisional, há considerável carência de produções teóricas sobre as disciplinas
operacionais vinculadas à rotina de trabalho no cárcere. Logo, identificamos que a transmissão de
conhecimentos se dá a partir de uma retórica sedimentada em larga medida pela prática, o que nos leva
à afirmativa de Lemgruber:
[...] na transmissão oral entre as gerações de agentes de segurança, reproduzem-se os diferentes “vícios” da
cultura prisional. A repetição das ações ao longo do tempo, sem nenhum resultado teórico-metodológico
face à ausência de sistematização teórica, propicia a cristalização das “verdades” inquestionáveis diante de
qualquer pergunta de um estranho à área. (LEMGRUBER, 2004, p. 329).
Desse modo, reforça-se a autoridade do servidor que é bem avaliado pela administração. Ao ser indicado
à função de formador dos novos colegas, o servidor-docente-eventual passa a influenciar o conteúdo,
a dinâmica e a qualidade das ações de capacitação ofertadas. Não obstante, vale resgatarmos o
entendimento de Lopes (2002), pois, para a autora, a concessão de tal autoridade refletiria nos cursos de
formação inicial que, em vez de se pautarem em problematizações e questionamentos quanto às rotinas do
cárcere, acabam por se traduzirem em cursos de “informação”, nos quais apenas são repassadas narrativas
de situações pretéritas. Essa prática educativa, de acordo com Araujo (2020a, p. 122), “[...] alimenta um
sistema viciado e composto por condutas orientadas pela ordem social vigente no estabelecimento penal,
não necessariamente condizente com a adequada formação para o futuro trabalho”.
180 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 174-191
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penais, torna-se primordial focalizarmos na Escola de Governo, que serve como lócus de análise ao
estudo de caso ora empreendido. Assim sendo, abordamos, na seção seguinte, a Espen que atende
aos servidores do SPF, observando, em especial, o currículo que emerge das fissuras discursivas e da
conotação repressiva de tal sistema.
A Espen atende aos preceitos deferidos pela legislação vigente, como apresentamos anteriormente.
Entretanto, tendo em vista a realidade na qual se insere, ela assume uma face bastante peculiar assim
como o currículo que materializa e as identidades diferenciadas que projeta a partir dele. Dessa maneira,
é relevante observarmos essa realidade do ponto de vista curricular, pois, conforme Silva,
O currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados
sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política
educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo,
seu projeto social, sua “verdade”. [...] as políticas curriculares, como texto, como discurso são, no mínimo, um
importante elemento simbólico do projeto social dos grupos no poder. (SILVA, 2001, p. 11).
Assim, compreendermos a natureza dos processos formativos desenvolvidos pela escola em questão diz
bastante sobre o projeto social assumido pelo Governo Federal em torno das identidades profissionais
necessárias ao microssistema de execução penal que a Espen se vincula. Ademais, a legislação que rege as
carreiras da execução penal, no âmbito do Poder Executivo Federal, impõe que um programa permanente
de capacitação, de treinamento e de desenvolvimento seja instituído pelo Depen. Não há, todavia,
definição quanto ao tema central desse programa, nem sequer notícias quanto à sua institucionalização2.
Diante de sua inexistência até o momento, consideramos que as ações realizadas pela Espen materializam
o que se espera dos servidores do SPF, em termos de competências funcionais. Por isso, a natureza dos
cursos que essa escola ofertou, entre 2013 e 2019, configura o objeto de análise deste artigo.
Nosso objetivo é demonstrar que os processos formativos dos servidores que atuam em um sistema
penitenciário mais repressivo tendem a privilegiar uma concepção curricular voltada à manutenção da
ordem e da disciplina no cárcere. Devido a isso, evidenciamos a predominância de ações educacionais
com cunho alusivo à segurança penitenciária, em claro atendimento à natureza diferenciada do
SPF. Esse indicativo encontra ressonância na fala de Araujo (2020a, p. 241), que afirma haver relação
entre essa dominância e os “[...] regimes de verdade culturalmente estabelecidos” no campo prisional.
Adicionalmente, a autora aponta que
[...] torna-se clara a incidência de conhecimentos oriundos do sistema prisional nas ações educacionais pela
terminologia adotada nesses. Há evidência quanto a forte presença de um caráter técnico às ações. No
entanto, não é possível perceber a presença de referenciais consistentes que o fundamentem, pelo menos
até 2017. Esse indicativo reforça o entendimento no sentido de carência de produção científica sobre os
temas desse campo. A formação profissional para ao sistema penitenciário é pouco estudada e, sobre as
2 A Lei N° 11.907, de 2 de fevereiro de 2009 (BRASIL, 2009), no art. 141, indica que ele deveria ser implantado em 18 meses a partir 29 de
agosto de 2008.
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competências do servidor, menos ainda se produz no Brasil. Talvez emerja daí a dificuldade e, por vezes,
o silenciamento no que concerne às referências bibliográficas mobilizadas para a produção dos materiais
didáticos e pedagógicos dessa Escola. (ARAUJO, 2020a, p. 241).
Essa assertiva, somada às concepções de Garland (2017), Lemgruber (2004) e Lopes (2002) e aos dados
produzidos neste estudo, evidencia que a cultura constituída no cárcere tende a recrudescer a execução
da pena. A política de neutralização dos indivíduos, orientada pelos índices elevados de criminalidade,
ultrapassa os muros da prisão e incide diretamente nas ações educacionais voltadas à qualificação inicial
e permanente dos servidores. Particularmente, na escola focalizada, observamos que a cultura do SPF é
reforçada por meio das ações que visam ao aperfeiçoamento de Agentes, Especialistas e Técnicos que
atuam nas penitenciárias federais.
Não obstante, alguns cursos ofertados aos entes da Federação também podem evidenciar o controle sobre
o conteúdo do que é difundido, a manutenção de determinadas práticas de trabalho, o recrudescimento
da execução penal no país, os sentidos atribuídos às identidades profissionais e à política penitenciária
privilegiada pelo Depen, órgão ao qual a Espen está submetida. Nesse sentido, segundo Araujo,
[...] a política de formação definida pelo Departamento Penitenciário Nacional procura localizar/direcionar/
produzir esse sujeito servidor penitenciário dentro do campo em que deverá atuar, a partir da normatização
de processos de formação que se relacionem com o exercício prático da função. (ARAUJO, 2020a, p. 251).
Assim, compreendemos que a cultura existente no cárcere, e reforçada pelo Depen, reverbera e incide
na qualificação de servidores, uma vez que assenta significações em torno das suas identidades, da
caracterização dos presos, da concepção da rotina e da relevância das atividades laborais desenvolvidas
no cárcere. Os sujeitos que acessam à prisão são atravessados por essa cultura peculiar e, ao lecionarem
eventualmente disciplinas que apresentam relação com sua “melhor” atuação profissional, reiteram o
nosso entendimento de que o que eles fazem é adequado; logo, deve ser replicado.
Essa questão torna-se mais evidente ao desenvolvermos um estudo que tangencia o SPF, pois, de acordo
com Barcelos, Duque e Penteado Junior (2021, p. 1), “[...] o sistema federal é entendido como um artefato
cultural, portanto, uma instituição arquitetônica-legislativa, com um certo currículo e pedagogia cultural”.
Isso nos faz lembrar que os servidores das carreiras penais que eventualmente lecionam, e que nem
sempre se despem dos caracteres que os conformam naquele espaço, podem recontextualizar o discurso
carcerário em sala de aula para além do que ditam as políticas ou os referenciais curriculares oficiais.
Dessa forma, é fundamental analisarmos os processos formativos, pois, conforme Meyer (2012, p. 50),
a partir deles, “[...] os indivíduos são transformados ou se transformam em sujeitos de uma cultura”. No
caso particular do sistema penitenciário, a Política de Educação em Serviços Penais, projetada em prol
da alteração do status quo carcerário, apresenta-se em clara contraposição, pelo menos no que se refere
ao currículo da Espen, uma vez que reitera o primado da segurança prisional em detrimento dos demais
saberes que emergem da prisão.
Focalizando cerca de 250 cursos de curta e média duração realizados3 pela Espen, entre 2013 e 2019,
observamos clara predominância do eixo voltado à “Segurança e Disciplina”, conforme já havíamos apontado
182 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 174-191
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
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anteriormente. Registramos que a categorização dos cursos foi desenvolvida, nesta análise, a partir dos
eixos definidos pela Matriz Curricular Nacional para Educação em Serviços Penais (DEPEN, 2006b). Naquele
documento seminal, sobre a qualificação dos servidores das carreiras penais, propunha-se que houvesse
a articulação entre quatro eixos formativos, de modo a atender à complexidade da atuação profissional
no cárcere. Assim, indicava-se que a capacitação dos servidores deveria ser organizada em torno de temas
correlatos a: Administração Penitenciária; Saúde e Qualidade de Vida; Segurança e Disciplina; e Relações
Humanas e Reinserção Social.
Embora a referida Matriz Curricular Nacional tenha sido revisada em 2017, os eixos de formação
prioritários, instituídos pelo referencial de 2006, parecem-nos mais adequados a uma qualificação
uniforme e complementar do servidor, ao considerar as finalidades da pena de retribuir o crime cometido,
evitar o cometimento de outro e recuperar o apenado (BOSCHI, 2006). Ao rol de eixos definidos na Matriz
de 2006, adicionamos o eixo “Espen”, que abrigou cursos com ênfase pedagógica ou voltada à gestão da
referida escola, como mostra o Gráfico 1 a seguir.
Gráfico 1
GRÁFICO 1
Cursos de curta e média duração realizados pela Espen por eixo de formação
120%
100%
80%
60%
40%
20%
0%
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
Gráfico 2
A partir do Gráfico 1, é possível observarmos o quanto o eixo “Segurança e Disciplina” é ratificado no
decorrer dos anos. Todavia, devemos advertir que, em alguns períodos, tal como em 2017, a temática
fortemente abordada em seu interior relacionava-se à “Inteligência Penitenciária”, área em evidente
80%
ascensão. É relevante indicarmos que, a partir de 2015, a Espen passa a profissionalizar suas ações,
ao ofertar alinhamentos pedagógicos e qualificação aos servidores que acompanham seus cursos na
70%
qualidade de gestores; por conta disso, inserimos um eixo voltado a tais práticas educacionais.
60%
Além disso, pontuamos o evidente descaso com temáticas referentes aos eixos “Saúde e Qualidade
50%
de Vida” e “Relações Humanas e Reinserção Social”, o que denota a existência do clássico embate
40%
30%
20%
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10%
ARTIGO
Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
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Assim, notamos que a demanda interna do SPF direciona os processos formativos da Espen e que há uma
forte tendência ao atendimento às demandas externas. Isso posto, os dados corroboram a concepção de
Garland (2017) quanto à emergência de uma cultura mais evidente de controle e repressão à criminalidade
nos últimos anos. Um exemplo disso pode ser visualizado no pico de cursos da área de “Segurança e
Disciplina”, ofertados entre 2017 e 2018, visto que coincidem com a divulgação do Plano de Segurança
Pública do Governo de Michel Temer e, por conseguinte, com um Grupo de Trabalho instituído no âmbito
das forças de segurança da União, com foco na oferta de qualificação aos entes da Federação.
Em se tratando da discussão histórica que paira sobre a categorização dos serviços penais como um campo
integrante ou não da segurança pública (MELO, 2018), os órgãos da execução penal foram reconhecidos
como tal em 2018, por meio da Lei Nº 13.675, de 11 de junho de 2018 (BRASIL, 2018), que instituiu o
Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).
Ademais, como desfecho para a referida celeuma, há o recente reconhecimento constitucional das
polícias penais federal, estaduais e distrital. Entretanto, no que se refere ao SPF, o Poder Executivo
ainda não regulamentou a Polícia Penal Federal. Logo, os processos formativos de seus servidores não
sofreram alterações após a publicação da Emenda Constitucional Nº 104, de 4 de dezembro de 2019
(BRASIL, 2019b). Mesmo diante do imbróglio referente ao atual regime jurídico dos servidores do SPF, os
dados evidenciados neste artigo apontam para uma qualificação profissional voltada prioritariamente à
segurança prisional, inclusive antes da edição da referida Emenda Constitucional, conforme depreendemos
da análise quanto aos eixos de formação privilegiados nos cursos de formação inicial dos Agentes Federais
de Execução Penal (Gráfico 2, a seguir) e dos Especialistas e Técnicos (Gráfico 3).
184 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 174-191
0%
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
ARTIGO
Segurança e Disciplina Saúde ee Qualidade
Qualificação de Vida o currículo a serviço
política penitenciária:
da ordem e da disciplina no cárcere
Administração Penitenciária Relações Humanas e Reinserção Social
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
ESPEN
Gráfico
GRÁFICO2 2
Disciplinas ofertadas em cursos de formação inicial para Agentes Federais de Execução Penal
por eixo de formação
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
2006-1 2006-2 2006-3 2009 2014 2016-2017
Cumpre salientarmos que, a cada novo concurso para o cargo de Agente Federal de Execução Penal,
uma nova proposta de matriz curricular é produzida. Diante dos dados gerados, verificamos que, desde
a primeira qualificação ofertada aos Agentes, o reforço foi dado à identidade do promotor da segurança
pública, servidor que se coloca em claro embate com a criminalidade organizada, o que demanda uma
capacitação fortemente concentrada no eixo “Segurança e Disciplina”. No que concerne aos demais eixos,
chama-nos atenção que o SPF não possui carreira administrativa; logo, os próprios Agentes necessitam
de conhecimentos na área. Em paralelo, tem-se certo cuidado com as questões atinentes às relações
interpessoais entre os servidores. As disciplinas vinculadas à “Saúde e Qualidade de Vida” tendem a ser
menos evidenciadas, uma vez que as penitenciárias federais possuem equipes próprias para o tratamento
dos apenados. Não obstante, a qualificação dessas equipes, no decorrer dos anos, também tem sofrido
uma acentuada tendência ao reforço de questões de “Segurança e Disciplina”. A seguir, apresentamos
o Gráfico 3, o qual mostra as disciplinas ofertadas em cursos de formação inicial para Especialistas e
Técnicos por eixo de formação.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 174-191 185
ARTIGO
Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
da ordem e da disciplina no cárcere
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
Gráfico 3 –
GRÁFICO 3
Disciplinas ofertadas em cursos de formação inicial para Especialistas e Técnicos por eixo de formação
50%
45%
40%
35%
30%
25%
20%
15%
10%
5%
0%
2009 - ESP 2009 - TÉC 2014 - ESP 2016-2017
No que se refere à qualificação inicial de Especialistas Federais em Assistência à Execução Penal e Técnicos
Federais de Apoio à Execução Penal, observamos maior equilíbrio entre os eixos. As discrepâncias
relacionam-se mais ao aumento das disciplinas voltadas ao eixo “Relações Humanas e Reinserção Social”
e à queda bastante acentuada em determinados momentos com relação ao eixo “Saúde e Qualidade
de Vida”. Outrossim, os dois índices apresentam relação direta com a qualificação desses servidores,
visto que, ao possuírem Ensino Superior, tendem a especializarem suas práticas laborais nesses cursos
iniciais. Compreendemos, assim, sua futura atuação no cárcere. Os profissionais de saúde, por exemplo,
não acessam conhecimentos básicos da profissão, mas passam a compreender como irão executar os
procedimentos comuns em um ambiente de confinamento. Assim, conhecimentos sobre o trabalho em
equipe, as rotinas da unidade penitenciária, entre outros, tornam-se mais relevantes.
Dessa maneira, evidenciamos que é a conotação do ambiente prisional que conduzirá a natureza dos
processos formativos e, em grande medida, a fabricação das identidades profissionais irá compor o
campo da prisão federal ao considerar as peculiaridades desse tipo de estabelecimento. Estudos similares
(ARAUJO, 2020a; CUNHA; LEITE, 1996) demonstram que as decisões pedagógicas tomadas a partir de
currículos profissionalizantes, via de regra, são intencionais.
Diante do exposto, sinalizamos que a face assumida pelas Escolas de Governo, para além dos ditames
expressos pela alta gestão, estará vinculada aos objetivos da instituição para a qual os servidores serão
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
da ordem e da disciplina no cárcere
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
formados. Em especial, no caso da Espen, são os objetivos da política penitenciária nacional, e mais
particularmente, a rotina e os preceitos defendidos pelo microssistema de execução penal do SPF que
definirão as tessituras dos processos formativos ofertados aos servidores das carreiras penais.
CONSIDERAÇÕES
O sistema penitenciário brasileiro é tema recorrente de discussões acadêmicas profícuas; sobre o SPF,
porém, ainda pouco se produz. A face diferenciada deste estudo, que o eleva à condição de sistema
de exceção, pode ser uma das justificativas para a pouca produção científica sobre o tema. Tratar dos
seus servidores e dos processos formativos a que são submetidos torna-se, então, assunto igualmente
ignorado no contexto acadêmico.
Supõe-se que a natureza diferenciada do SPF demande um quadro de servidores altamente qualificado,
principalmente no que diz respeito aos conhecimentos oriundos do campo da segurança prisional, uma
vez que o SPF se apresenta como um sistema de excelência no enfrentamento à criminalidade organizada.
Todavia, raros são os trabalhos que se dedicam a essa temática. Assim, este artigo, ao abordar os processos
formativos dos servidores das carreiras penais, a partir do currículo desenvolvido pela Espen, lança luz a
um assunto ainda nebuloso no campo científico.
Observarmos que os servidores das carreiras penais federais devem adequar suas demandas de qualificação
aos ditames da política nacional vigente, no âmbito do Poder Executivo Federal; isso demonstra que
interesses de diversos escalões incidem em tal definição. Mais do que um servidor capacitado, vemos, na
atualidade, a partir do estudo dos processos formativos ofertados aos funcionários públicos, a necessidade
de reforma e transformação do serviço público a partir de parâmetros do setor privado. Nesse sentido,
agem os interesses político-econômicos neoliberais que, em alguma medida, também interferem e ditam
a política de segurança pública e prisional brasileira.
Assim sendo, reiterar o primado da segurança prisional em cursos de formação inicial e continuada, para
Agentes, Especialistas e/ou Técnicos, é reforçar a concepção de que o objetivo único da execução penal é
punir. Relega-se, assim, a outros planos, bem inferiores, quiçá subterrâneos, a possibilidade de fortalecer
os demais eixos da formação de servidores. Desse modo, todos nós perdemos a oportunidade de fazer
emergir um sistema penitenciário mais humano e coeso, e menos coercitivo e degradante.
Por fim, consideramos que, a despeito da política curricular vigente para o campo prisional, as ações
educacionais desenvolvidas na área privilegiam a manutenção de protocolos de trabalho que primam
pela neutralização dos apenados, em clara convergência com a política de controle criminal instituída nos
últimos anos em nossa sociedade.
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Qualificação e política penitenciária: o currículo a serviço
da ordem e da disciplina no cárcere
Stephane Silva de Araujo e Maria Cecilia Lorea Leite
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GOVERNANÇA DEMOCRÁTICA NA
ADMINISTRAÇÃO PRISIONAL: OS DESAFIOS
DA FORMAÇÃO DOS POLICIAIS PENAIS NO
SISTEMA PRISIONAL GOIANO
DEBORAH FERREIRA CORDEIRO GOMES
Mestra pelo Programa de Direito e Políticas Públicas – Programa de Pós-Graduação em Direito e Políticas Públicas –
Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Constitucional. Graduada em Direito pela Universidade Federal de
Goiás. Pesquisadora com foco no campo da Segurança Pública, Políticas Públicas e Efetividade Constitucional.
País: Brasil Estado: Goiás Cidade: Goiânia
E-mail: [email protected] ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4390-657X
Contribuições de cada autor: Deborah Ferreira Cordeiro Gomes é autora principal do artigo, sendo responsável pela
tabulação, redação e referenciação dos dados e informações apresentadas no artigo. Soraia Pereira Silva é coautora do
artigo, sendo responsável pela coleta e revisão dos dados da pesquisa.
RESUMO
O presente artigo apresenta uma avaliação acerca dos processos formativos dentro do curso de formação
dos policiais penais em Goiás a partir de pesquisa empírica qualitativa. Partindo de uma abordagem
socioinstitucional da Administração Penitenciária, a partir dos dados coletados por intermédio de
entrevistas com professores e gestores prisionais, em análise dialética, objetiva-se evidenciar a
capacidade dos servidores em formação para lidar com os problemas penitenciários, perquirindo-se os
impactos dos processos de formação destes profissionais na concretização do direito fundamental à
segurança pública como pressuposto da efetiva redemocratização brasileira. Como resultados, propõe-se
diretrizes para construção de uma política com foco na responsividade dos atores do Sistema Prisional em
direção à governança democrática como baliza de atuação da Polícia Penal no enfrentamento das crises
interseccionais que marcam a realidade prisional brasileira.
Palavras-chave: Segurança Pública. Polícia Penal. Processos formativos. Governança Democrática.
ABSTRACT
DEMOCRATIC GOVERNANCE IN PRISON ADMINISTRATION: THE CHALLENGES OF TRAINING CRIMINAL
POLICE IN THE GOIÁS PRISON SYSTEM
This article presents an assessment of the formative process of the criminal police training course in Goiás
based on qualitative empirical research. Starting from a socio-institutional approach of the Penitentiary
Administration, based on the data collected through interviews with teachers and prison managers, in a
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Governança democrática na administração prisional: os desafios da
formação dos policiais penais no sistema prisional goiano
Deborah Ferreira Cordeiro Gomes e Soraia Pereira Silva
dialectical analysis, the objective is to highlight the capacity of civil servants in training to deal with penitentiary
problems, investigating the impacts of the training processes of these professionals for the realization of the
fundamental right to public security as a precondition for the effective re-democratization of Brazil. As a result,
guidelines are proposed for the construction of a policy focused on the responsiveness of actors in the prison
system towards democratic governance as a guideline for the performance of criminal police officers to face
the intersectional crises that mark the Brazilian prison reality.
Keywords: Public Security. Criminal Police. Formative processes. Democratic Governance.
Posto isto, seria dizer que, apesar do processo de alteração das vertentes de atuação do Estado brasileiro
dadas a partir do advento do projeto social constituído sob a égide da Carta Constitucional de 1988,
destaca-se ainda haver setores sociais denotativos de permanências, inconsistências e contradições
paradigmáticas, tal como o campo da Segurança Pública no qual ainda se procede com o uso normativo
da violência para a resolução de conflitos (OMS, 2002).
Dentro dos desafios estruturais evidenciados pela realidade social brasileira, sobressaem os relativos à
questão da segurança pública, ao passo que carece esta inegavelmente de uma abordagem marcada pela
integridade política e pelo compromisso com projeto democrático (SULOCKI, 2007, p. 1-10). Por evidente,
tais questões ensejam consectários reflexos nas condições laborais e nas exigências de profissionalização
dos servidores que atuarão dentro do Sistema Prisional, especialmente considerando o “isolamento
institucional na área da segurança pública” (BALLESTEROS, 2012, p. 86).
Neste cenário, a avaliação dos processos formativos, como forma de gerar conhecimentos teórico-práticos
de lidar qualificada e criticamente com os problemas penitenciários, torna-se uma necessidade afeta à
real, integral e efetiva transição democrática. Nesse viés analítico, o presente artigo busca promover uma
localização da temática em torno de reflexões acerca do processo formativo dos servidores prisionais a
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formação dos policiais penais no sistema prisional goiano
Deborah Ferreira Cordeiro Gomes e Soraia Pereira Silva
partir da análise da Política da Polícia Penal, isto é, de ressaltar os dilemas e desafios inerentes à formatação
institucional e refletidos nas microrrelações travadas no exercício da funções dos policiais penais.
Em termos práticos, seria dizer que o cenário de insegurança pública dado pela intersecção de crises do
Sistema Prisional, incluída com premência a crise institucional, demanda dos órgãos integrantes do Sistema
Único de Segurança Pública (Susp) um intercâmbio de conhecimentos técnicos e científicos que culmine no
entabulamento de estratégias para a operacionalização de um modelo de segurança cidadã1 para que, deveras,
haja um controle qualificado de infrações penais em alinhamento aos fundamentos do Estado Democrático.
À vista disto, partindo da premissa acerca da necessidade de se “rever os paradigmas conceituais e empíricos
aplicados à análise e construção das políticas de segurança pública” (BALLESTEROS, 2012, p. 19), busca-se
com este trabalho promover reflexões contextuais sobre a responsabilidade dos profissionais que atuam no
Sistema Prisional dentro do desvencilhamento do cenário de violência social e institucional (SOUZA, 2015)
para a desvinculação do campo de um eixo de “ações estatais anacrônicas” (ROLIM, 2006, p. 44).
Por meio de análise dialética, em síntese, o presente trabalho propõe apresentar dados coletados por
intermédio de entrevistas com professores dos cursos de formação e gestores prisionais, seja como um
meio de melhor delinear a função social dos policiais penais, seja como forma de propor mecanismos
de valorização profissional por intermédio da ideia de governança democrática dentro dos processos
formativos, tal como almejado pelo art. 38 da Lei Nº 13.675/2018.
Especialmente no tocante à questão do papel do policial penal dentro do Sistema de Justiça Criminal,
busca-se promover uma abordagem que os desvincule dos dois papéis comumente atribuídos e
desvirtuados dos profissionais que atuam na custódia dos detentos, seja na posição de heróis ou de vilões.
Em especial em relação à figura do policial herói, face ao mantra da guerra contra o crime, destaca-se que
[...] esse mito desvirtua o papel do policial como profissional de segurança pública. Isso porque ele consolida
conceitos autoritários, seja, em nível individual, ao estimular a agressividade e a coragem visceral como
padrão de ser policial; ou ainda, em nível institucional, ao incentivar prioritariamente estratégias bélicas e
violentas como formas eficazes de policiamento. A verdade é que o mito do policial herói é uma farsa de
reconhecimento profissional, o qual desconsidera inúmeras discriminações entre cargos e patentes no âmbito
das corporações; além das gritantes distorções entre polícias civis e militares em níveis estadual e nacional.
Em suma, disfuncionalidades em termos de remunerações, carreiras, organizações, legislações e condições
de trabalho, as quais evidenciam que há várias realidades policiais no Brasil, mas todas equivocadamente
interpretadas pelo mito do policial herói (ROCHA, 2021, on-line, grifos nossos).
1 Dentro do modelo de segurança cidadã observa-se precipuamente que o desenvolvimento humano sustentável se dá pela promoção de
convivência segura por intermédio do fomento a uma cultura de paz pela via do combate de ameaças à vida (enfrentamento da violência e da
criminalidade) e da proteção às vulnerabilidades das possíveis vítimas e dos autores (PNUD, 2016).
2 Ao se promover uma abordagem socioinstitucional da Administração Penitenciária, almeja-se apresentar as características objetivas
de estruturação do órgão com foco nos processos e procedimentos associados à gestão de pessoal. Assim sendo, apresentar-se-á o perfil dos
profissionais que a compõem, seus desafios e suas expectativas como forma de evidenciar a importância e o papel dos policiais penais como atores
institucionais para democratização do Sistema de Justiça Criminal.
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Partindo desta ambientação quanto ao problema de pesquisa, como premissa essencial, evidencia-se a
existência de evidentes gargalos e antagonismos nos padrões de atuação policial como um constructo
socioinstitucional não questionado, a se ressaltar que
o caminho para a profissionalização da Polícia, assim como a vinculação das políticas de segurança pública
aos influxos e demandas por equidade da sociedade brasileira mais ampla, está dividido entre o governo
democrático da segurança e a lógica da guerra (SERRA; SOUZA; GUSSO, 2016, p. 171, grifos nossos).
Isto posto, no tocante aos processos de formação dos profissionais que atuam dentro do Sistema de
Justiça Criminal, afere-se que a nevrálgica questão-problema está associada a
[...] uma concepção bastante forte de que as polícias escolheram – temos aí um ator que define a noção
de ordem – e atribuíram a si o papel de combate ao crime, dentro de uma lógica de guerra. Nessa ideia,
insulamento institucional e falta de governança permitem às polícias definirem a si mesmas suas políticas
que, por sua vez, dissociam-se dos projetos de cidadania que buscamos construir. [...] Uma das características
das corporações profissionais é constituírem barreiras que estabeleçam fronteiras para os de fora. Proteção
às suas ideologias, a seus pares, às suas estratégias de afastarem-se de penetrações externas compõem
esforços de diferentes corporações. Todavia, isso deixa de ser um problema endógeno para ser um problema
público se essas corporações desempenham funções sociais relevantes para o conjunto da sociedade
(FERNANDES, 2021, on-line, grifos nossos).
Nesse contexto, a promoção de reflexões sobre a política da Polícia, especialmente com foco no processo
formativo dos profissionais que atuarão no Sistema Prisional, detém o importante papel de promover
a consolidação dos valores democráticos em todos os nichos sociais. Aparecem, portanto, as políticas
públicas de segurança como vertentes de atuação estatal estratégica para a consolidação do modelo
democrático de resolução dos conflitos sociais (SULOCKI, 2007, p. 190-192).
Feita, portanto, a localização do problema e partindo dessas premissas analíticas essenciais promover-se-á,
nas seções seguintes, uma avaliação contextual do modelo de serviço prisional em Goiás e os correlatos
desafios para a gestão de pessoal dentro do marco da segurança cidadã.
O momento de exercício da pretensão executiva da pena é, sem dúvidas, a fase mais crítica de manifestação
do poder punitivo ante a ausência de uma infraestrutura institucional e organizacional minimamente
adequada para o cumprimento da pena em conformidade com marcos regulatórios. Esse cenário
reflete a imposição e a naturalização de penas ilegais, sendo irrefutável reconhecer a concomitância de
múltiplas crises dentro do Sistema Prisional abarcando tanto a falta de estrutura arquitetônica, gerencial,
orçamentária como a de pessoal.
Partindo, então, desta como a realidade a que adstrita a Administração Prisional e da premissa de que é
a atividade policial um serviço público essencial, dentro do recorte temático proposto por esta pesquisa,
busca-se nesta seção reavaliar o Modelo de Serviço Prisional a partir da sua gestão de pessoal e, a partir
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Governança democrática na administração prisional: os desafios da
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disso, melhor reposicionar a função social do policial penal frente ao estado de coisas inconstitucional do
Sistema Prisional.
Assim sendo, ao se avaliar contextualmente o papel dos policiais penais face ao processo de democratização,
destaca-se precipuamente a importância dos processos formativos para que tais profissionais possam
melhor lidar e dimensionar os problemas penitenciários a partir do rol de ações que integrarão sua práxis
profissional. Destarte, observando a coexistência de regimes não integrados, qual seja de um regime
jurídico-normativo e outro regime prático-operacional para o gerenciamento de crises dentro das rotinas
prisionais, detecta-se como um dos campos prioritários de investigação o relativo ao estabelecimento de
estratégias para o gerenciamento integrado das políticas públicas de segurança.
Por essa razão, estabelece-se como hipótese a ideia de que a melhor estratégia para o gerenciamento
integrado das políticas públicas de segurança é observá-las como política de Estado (FERREIRA, 2016).
Nesse sentido, desbordam as políticas públicas de segurança como instrumentos capazes não apenas de
dinamizar o sistema político-administrativo, mas igualmente de melhor localizá-lo frente à realidade local,
obstando a concorrência ou inconsistência de ações dentro dos órgãos da segurança pública.
Nesse escopo, consoante à literatura especializada no campo da Sociologia da Punição (ROLIM, 2006;
SOARES, 2009; GUINDANI; RESENDE, 2015; SALLA, 2015; SOUZA, 2015), destaca-se que o Modelo de
Serviço Prisional implementado no país estampa o desafio estrutural direcionado à ideia de corporificação
da juridicidade3 dentro dos procedimentos operacionais cotidianos com o propósito de gerar uma atuação
finalística dos órgãos de segurança.
Com isso, destaca-se que a efetivação do modelo de segurança cidadã é um processo que demanda uma
profunda reforma interna das instituições policiais, em um processo aproximativo a uma “nova engenharia
institucional” (ROLIM , 2006, p. 79), como forma de enfrentamento das problemáticas subjacentes ao
dissenso que se vislumbra no campo da Segurança Pública.
Destarte, dentro do modelo de segurança cidadã, desenhado programaticamente a partir do Susp, deve
ser superada a visão do cárcere como instrumento por excelência de dominação institucional no qual a
violência é oficializada, produzida, alimentada e incorporada de forma naturalizada, porquanto manifesta
como o elemento garantidor das relações de dominação social (SULOCKI, 2007, p. 57- 61).
3 No tocante ao princípio da juridicidade, destaca-se que a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) estabelece
dentro de sua principiologia, condensada no art. 4º da Lei Nº 13.675/2018, o integral respeito ao ordenamento jurídico e aos direitos e às
garantias individuais e coletivas; a proteção dos direitos humanos; a promoção da cidadania e da dignidade da pessoa humana e a participação e
o controle social.
4 Nesse mister, é fulcral que ocorram direcionamentos de rearranjo institucional em direção não apenas à otimização dos recursos materiais,
humanos e financeiros das instituições e da proteção, à valorização e ao reconhecimento dos profissionais de segurança pública tal como previsto
no art. 4º da Lei Nº 13.675/2018, mas primordial e precipuamente a um comprometimento com o fortalecimento da cultura de direitos humanos
como único discurso institucional legítimo.
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Em outros termos, sob esses auspícios, seria dizer que se realça o desafio de retirada da instituição
carcerária de dentro de um espectro ideológico e procedimental sedimentado em afirmações punitivas
inócuas no enfrentamento das mazelas sociais condensadas no e pelo Sistema Prisional (REIS, 2014).
Por esse ângulo, dentro desta pretensa reengenharia institucional, torna-se primordial que se superem
práticas dentro da atuação policial lastreadas em uma visão distorcida acerca do direito à segurança pública,
isto é, das práticas direcionadas ao combate ao crime/criminoso e à proteção do corpo social contra a
ação do delinquente. Tal visão anacrônica, com predominância das ações de prevenção especial negativa,
é o que retroalimenta o fenômeno da violência e da criminalidade culminando no aprofundamento da
“eficácia invertida do sistema prisional” (ANDRADE, 2003, p. 102).
Por essa razão, um novo modelo de serviço prisional dentro do marco da segurança cidadã, tem como
imperativo desafio gerar competências administrativas que possibilitem reconhecer e incorporar o
papel de vanguarda das corporações policiais para o fortalecimento da institucionalidade democrática.
Tal processo de transição carrega, em seu âmago, a saída dos padrões de atuação dos corpos policiais
baseados no “modelo de coerção social” para um direcionamento em torno de um “modelo de coesão social”
(SULOCKI, 2007, p. 37-38) .
Nesse sentido, a reversão da crise do sistema prisional, sob a ótica da gestão de pessoal, passa por dois
movimentos reestruturantes: 1) a recompreensão do que é o real interesse público tutelado, melhor
evidenciado a partir do reconhecimento do direito à segurança pública; e 2) o correlato reposicionamento
da função social do policial penal dentro das rotinas prisionais, superando o ainda predominante “modelo
reativo de policiamento” (ROLIM, 2006, p. 31-32) que, ao fim e ao cabo, acaba por não responder às reais
demandas e expectativas dos cidadãos em relação ao ideal de pacificação social.
Os processos de formação e ambientação dos profissionais que atuam dentro do Sistema Prisional,
sob um viés crítico e humanista, é por tudo quanto exposto uma premissa para um real reforço da
institucionalidade democrática. Demonstra-se essencial, portanto, postular formas para transposição da
cultura de direitos humanos de forma aplicada à gestão prisional no preciso sentido de que “a Educação
em Direitos Humanos é uma educação para a mudança capaz de criar uma cultura de respeito à dignidade
humana” (SILVA; ASSIS, 2020, p. 271). À vista disto, urgente se faz pensar, de forma concreta, na tutela da
dignidade tanto dos custodiados como dos profissionais inseridos na custódia prisional.
Sendo assim, para que se possa efetivar tal movimento de reposicionamento do modelo de serviço
prisional dentro do marco da segurança cidadã de forma contextual, forçoso se faz o entabulamento de
novas políticas de educação e profissionalização que assimilem o movimento de geração de “cons(ciência)
em segurança pública” (GOMES; MIRANDA, 2020), isto é, de uma nova agenda para formulação de
políticas a partir do redirecionamento da compreensão das ações no campo da segurança rumo a um
serviço público de excelência (consciência em segurança pública), pari passu ao delineamento de políticas
públicas de segurança com base em evidências (segurança pública com ciência).
Posto isto, tal como disposto no art. 10, § 5º e no art. 38 da Lei Nº 13.675/2018, buscando formatar o
intercâmbio de conhecimentos técnicos e científicos para qualificação dos profissionais da segurança
pública, avança-se propondo-se uma análise aplicada dessas premissas dentro das estruturas da
Administração Prisional em Goiás, a partir da identificação das características, dos gargalos e
potenciais dos cursos de formação dos servidores que atuam no sistema prisional, com o objetivo
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Governança democrática na administração prisional: os desafios da
formação dos policiais penais no sistema prisional goiano
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final de diagnosticar algumas diretrizes corretivas que possibilitem o “fortalecimento do capital social
comunitário” (FERNANDES, 2021, on-line).
Dentro dos objetivos estratégicos para a inserção do serviço prisional como serviço público de excelência
constata-se ser claramente uma meta prioritária a profissionalização dos servidores de forma a fomentar
que estes estejam atualizados e tecnicamente qualificados, acompanhando o desenvolvimento científico
e tecnológico dentro do seu campo de atuação.
Disto emerge a necessidade de estudos técnicos que possibilitem prospectar informações baseadas
em evidências no sentido de promover uma gestão de conhecimento que possa subsidiar processos de
tomada de decisão qualificadas a partir de visão sinérgica sobre o Sistema Prisional, qual seja carece-se de
informação estruturada não enviesada que conjugue uma análise conglobante da gestão prisional aliando
a visão operacional com a visão estratégica.
Partindo desta asserção, dentro do movimento da busca de efetivação dos marcos normativos e regulatórios
dentro da dinâmicas do law enforcement, em análise dialética, busca-se nessa seção promover a apresentação
de dados coletados em um estudo de caso que contemple analiticamente as quatro etapas de avaliação de
políticas a partir do levantamento de informações (scanning), da apresentação de análise contextualizada
(analysis) e da proposição de respostas responsivas para os problemas setoriais (response e assessment).
Neste mister, quanto ao percurso metodológico, ressalta-se que a coleta dos dados foi realizada entre os meses
de janeiro a março do presente ano (2021). Para mais, procedeu-se à padronização na forma de apresentação
das informações coletadas por meio das entrevistas em um modelo de apresentação objetiva e impessoal dos
dados com a correspondente desidentificação dos entrevistados, tanto com objetivo de preservar a identidade
dos profissionais envolvidos no estudo como também de evitar a personificação dos resultados apresentados.
Consequentemente, a abordagem será feita a partir da breve apresentação das diretrizes e estratégias
de formação dos profissionais, pensada a nível estratégico a partir da matriz nacional de formação,
congregada à correlata avaliação dos professores dos cursos de formação sobre a mesma. Busca-se,
portanto, expor observações e reivindicações dos atores institucionais face ao modelo de formação
nacional em uma análise institucional contextualizada dentro da realidade do Sistema Prisional goiano.
Inicialmente, quanto ao perfil profissiográfico, destaca-se que o estado de Goiás adota como política de gestão
de pessoas a contratação temporária de servidores para desempenhar a atividade de custódia prisional e, com
isso, tem-se um cenário adverso quanto à formação destes servidores, tanto por estarem sujeitos a cursos
de formação express, como por haver grande rotatividade nas equipes no sentido de que, nem sempre, os
vigilantes prisionais temporários (VPTs) têm pretensões de verdadeiramente compor a carreira.
Dessas premissas, extraem-se dois importantes eixos de reflexões adjacentes: 1) o papel dos cursos de
formação para maximizar a qualificação técnica e ética desses profissionais para compreender e lidar com
problemas penitenciários; e 2) paralelamente, para engajá-los a partir dessa experiência a desenvolverem-
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se como futuros policiais penais. Logo, diante desses objetivos é que se extrairá o significado constitucional
de uma boa gestão prisional, vislumbrando que o processo formativo traduz o desafio de ativação da
cidadania e de manutenção dessa cidadania ativada durante o cotidiano profissional de forma a engendrar
possíveis reformulações e mudanças nos padrões de atuação institucional.
Nesse sentido, partindo de uma análise aplicada da Matriz Curricular Nacional5 como marco teórico-
metodológico na orientação das ações formativas (BRASIL, 2014, p. 17), perfaz-se uma análise conjuntural
sobre os processos de formação dos servidores penitenciários, contemplando uma avaliação sobre o rol
de disciplinas ofertadas, a carga horária, a abordagem dada pelos professores, bem como o interesse e o
aproveitamento dos formandos nas disciplinas.
Feitas essas considerações, inicia-se o percurso analítico com uma breve apresentação da estruturação da
matriz curricular do Curso de Formação dentro da Administração Prisional em Goiás (Anexo A). No ponto,
entre atividades teóricas e práticas, tem-se uma carga horária total correspondente a 436 horas/aula,
observando-se a estruturação das disciplinas em dois grandes eixos articuladores:
Eixo I: contemplando temas gerais correlacionados à Administração Prisional, engloba uma visão geral,
normativa e administrativa, da Execução Penal e do Sistema de Execução Penal em Goiás, contemplando
ainda assuntos gerais relacionados ao ambiente prisional, à política penitenciária, às políticas de
reintegração social, à gestão penitenciária, à mediação de conflitos e às relações interpessoais;
Eixo II: contemplando temas relacionados à Segurança e Disciplina Prisional, agrega disciplinas ligadas
a todo o rol de atividades física e operacional: procedimentos operacionais, armamento, tiro, defesa
pessoal, uso de força, algemação, intervenção em ambiente prisional, rotinas e procedimentos de
segurança, dentre outras.
A partir da análise temática dos processos formativos, de início, detectam-se problemas na divisão
temática e por carga horária dentro de cada um dos eixos de formação, com evidente predominância dos
processos focados na estrita custódia, segurança e vigilância dos presos. Quanto ao ponto, observando
que são os servidores prisionais o próprio Estado Penal em ação, evidencia-se o essencial desafio de
capacitação dos policiais penais dentro do eixo de formação técnica e humanizada para a suplantação de
formas de “sociabilidade violenta” (SERRA; SOUZA; GUSSO, 2016, p. 162).
Nada obstante, em tese, eventuais distorções no tocante à distribuição por carga horária poderiam
ser equalizadas de acordo com perfil dos professores-formadores e da abordagem por estes dadas na
condução das disciplinas. Por essa razão, buscou-se traçar uma avaliação sobre o perfil dos professores
da Escola Superior de Administração Penitenciária que participam ativamente dos cursos de formação,
averiguando, paralelamente, sua forma de condução das disciplinas ministradas.
Assim sendo, avaliando-se, por amostragem, o perfil acadêmico e profissional dos professores
entrevistados, observa-se haver uma grande variedade de formações de base dos encarregados pela
condução dos cursos formativos em Goiás, conforme Gráfico 1 apresentado logo abaixo:
5 Consoante disposto no art. 39 da Lei Nº 13.675/18: “A matriz curricular nacional constitui-se em referencial teórico, metodológico e avaliativo
para as ações de educação aos profissionais de segurança pública e defesa social e deverá ser observada nas atividades formativas de ingresso,
aperfeiçoamento, atualização, capacitação e especialização na área de segurança pública e defesa social, nas modalidades presencial e a distância,
respeitados o regime jurídico e as peculiaridades de cada instituição”. Para mais, nos termos do § 1º do supracitado artigo, destaca-se ainda que “a
matriz curricular é pautada nos direitos humanos, nos princípios da andragogia e nas teorias que enfocam o processo de construção do conhecimento”.
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GRÁFICO 1
Representatividade da formação inicial
No que diz respeito às espécies de formação complementar dos profissionais, avalia-se ainda alguma
variabilidade, mas com um maior grau de especialização temática, havendo primazia das formações em
cursos de pós-graduação lato sensu relacionadas à Segurança Pública e Gestão Prisional, conforme Gráfico 2:
GRÁFICO 2
Representatividade da formação complementar
6 No ponto, os entrevistados relataram passagens em diversos cargos/funções de coordenação, gerência e supervisão de unidades prisionais
dentro do estado, indicando uma gama diversificada de experiências profissionais dentro da Administração Penitenciária em Goiás. Há
relatos de passagens dentro das seguintes estruturas: Escola Superior de Administração Penitenciária; Gerência de Transportes; Gerência de
Planejamento; Ouvidoria; Superintendência de Reintegração Social e Cidadania; Núcleo de Custódia; Grupo de Operações Penitenciárias e, ainda,
Superintendência de Segurança Penitenciária. Com isso, considera-se que referidos depoimentos são capazes de, conjuntamente, relatar uma
visão global e sistêmica acerca do funcionamento do sistema prisional.
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Nesse direcionamento analítico, como primeiro quesito de avaliação qualitativa, se propôs aos
entrevistados uma avaliação acerca da boa/má distribuição das disciplinas e respectivas cargas horárias
para profissionalização suficiente e adequada dos servidores ingressantes. Quanto ao ponto, sintetiza-se
a avaliação dos professores entrevistados:
PESQUISADORA: Observando a grade de disciplinas apresentada, você acredita que há uma boa distribuição
de disciplinas e da carga horária para a formação tecnicamente adequada e suficiente? Por quê?
ENTREVISTADA 1: Com certeza não. A administração penitenciária goiana exerce uma gama de funções
distintas, desde a função primária, que é o trabalho no cárcere propriamente dito, como funções especializadas
de alta gestão, por exemplo, os setores de licitações, contratos e convênios. Dessa forma, é preciso criar níveis de
aprendizagem, para que o aluno realmente tenha condições de absorver os diferentes níveis de conhecimentos.
Sugiro que a atual gestão da Escola Superior da Administração Prisional (ESAP) promova urgentemente as
adequações sugeridas pela Escola Penitenciária Federal, que em parceria com a ONU, desenvolveu um excelente
trabalho, produzindo uma matriz atual que visa proporcionar uma compreensão global do sistema penitenciário,
bem como a capacidade crítica do agente em identificar as causas e efeitos da execução penal na vida dos
apenados e consequências sociais positivas e negativas advindas dela. Em resumo, busca-se uma formação de
acordo com a função a ser desempenhada (alternativas penais, monitoramento eletrônico e cárcere) e ainda
divide essa formação em três etapas: primeiro, proporcionar a compreensão do que foi passado ao aluno;
segundo, proporcionar a aplicação do que foi passado ao aluno; e terceiro, proporcionar a compreensão global
do sistema penitenciário, voltada para gestão e desenvolvimento de políticas públicas.
ENTREVISTADO 2: Considero ser necessária a ampliação da carga horária para algumas disciplinas, haja
visto o fato de que estas são fundamentais para a atuação do Policial Penal. Vale citar, a disciplina de
uso e manutenção de armamentos, que em suma possui carga horária média de 30 horas; ao meu ver,
necessitaria de uma carga horária ao menos duas vezes maior que a atual.
ENTREVISTADA 3: Não. A parte operacional deveria ter uma carga horária maior; para uma melhor
orientação, deveríamos ter situações e locais para treinamento específico. Algumas matérias específicas
também deveriam ter uma carga horária maior.
ENTREVISTADO 4: Acredito que pode ser melhorado e revisado, com vista ao melhor aproveitamento;
o crucial está na escolha do corpo docente, hoje sem critério algum, apenas na indicação pessoal,
desmerecendo quem possui conhecimento e didática. Hoje, a distribuição das disciplinas acontece por
amizade. Lamentavelmente em uma Escola isso jamais poderia acontecer.
ENTREVISTADO 6: Acredito que, dentro da atual estrutura, a formação está a contento, sendo possível
orientar e instruir os novos servidores para prestar seus labores.
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PESQUISADORA: Como você procura ministrar o conteúdo das disciplinas? Seu enfoque está no
cumprimento da matriz curricular ou em aspectos mais práticos da lida profissional?
ENTREVISTADA 1: É preciso respeitar a matriz, porém é necessário contextualizar a teoria com a realidade,
ou seja, buscar trazer exemplos da aplicação prática do conhecimento.
ENTREVISTADO 2: A atuação deve sempre estar dentro do que dispõe a Matriz Curricular, sendo esta
minha forma de atuação. Assim, por meio da metodologia de apresentação verbal, relaciono as ações
cotidianas com a teoria através de estudos de caso; tem sido possível alcançar os objetivos preconizados
pela matriz, alcançado o melhor nível de aprendizado dos alunos/servidores.
ENTREVISTADO 5: Dentro do Sistema Penitenciário goiano algumas doutrinas não dão para ser aplicadas na
íntegra devido o histórico da unidade e estrutura; assim, sempre procuro abordar a disciplina em um todo e
com exemplos de como e de que forma fica melhor essa doutrina sendo executada em unidade peculiares.
Em análise contínua, buscando, por outra via, verificar o nível de sucesso desta metodologia contextual,
averiguou-se a avaliação dos entrevistados quanto aos níveis de interesse e aproveitamento das disciplinas.
Na oportunidade, em geral, os entrevistados destacaram um aparente desinteresse dos formandos pelas
matérias teóricas e de cunho humanístico, conforme dados abaixo colacionados:
PESQUISADORA: Pela sua experiência, quais são as disciplinas que os alunos têm mais interesse e
melhor aproveitamento? E, ao contrário, quais são aquelas que eles têm menor interesse e menor
aproveitamento?
ENTREVISTADA 1: Maior interesse nas disciplinas práticas e melhor desempenho nas teóricas.
ENTREVISTADA 3: Pela minha experiência, a maioria está interessada nas aulas práticas. Ministro aulas
há 6 anos... Vejo muito interesse também na área de cartório. E, ao contrário, as que eles têm menor
interesse e menor aproveitamento são nas de reintegração social, mas pelo fato de desconhecerem.
ENTREVISTADO 4: O maior interesse sempre recai nas disciplinas operacionais e, por consequente,
aumenta o aproveitamento. Busco mudar isso, apresentando uma aula com exemplos reais, vídeos,
depoimentos e o velho e bom senso de humor. Credibilidade institucional e domínio na matéria também
ajudam a atrair a atenção. E, ao contrário, as que têm menor interesse e menor aproveitamento são
sempre o conteúdo da matriz curricular [teóricas]. Neste sentido, busco inovar, apresentado exemplos
reais, histórias verdadeiras sobre o sistema prisional goiano e brasileiro, evidentemente lincado à
disciplina ministrada.
ENTREVISTADO 5: Todas as disciplinas são importantes, mas como o dia a dia de carceragem exige uma
praticidade e conhecimento, acaba que as práticas saem à frente. E, ao contrário, as que eles têm menor
interesse e menor aproveitamento são as teóricas, principalmente as voltadas ao Direito, pelo motivo que
os alunos se vêm sabatinados e exaustos de tanto estudar para o concurso propriamente dito.
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ENTREVISTADO 6: Ao meu ver a parte as disciplinas relacionadas à parte operacional chamam mais a
atenção dos alunos, uma vez que sonham em ser policiais e desenvolver atividades repreensivas e
ostensivas. No entanto, quando passam a conhecer e estrutura orgânica do DGAP – Diretoria Geral de
Administração Penitenciária, passam a ter uma nova visão da instituição e despertam interesse também
para o potencial das funções de gestão. E, ao contrário, as que eles têm menor interesse e menor
aproveitamento são disciplinas relacionadas à parte administrativa e à parte burocrática.
A partir das informações destacadas acima, verifica-se a confirmação da hipótese acerca da necessidade das
estratégias que possibilitem aos formandos não apenas correlacionar conteúdos, mas, primordialmente,
encontrar aplicabilidade aos conhecimentos teóricos-humanísticos na lida profissional. Com isso,
contextualmente, ao avaliar as balizas de profissionalização dos servidores em Góias, destaca-se o desafio
de superar o dissenso entre o sistema prisional real em face a um sistema prisional forjado pelos marcos
normativos do processo de execução penal.
Fala-se aqui em sistema forjado porquanto lastreado em uma “dissonância entre o seu comportamento
normativo e o seu comportamento real” (SILVA; ASSIS, 2020, p. 261), ou seja, apesar de haver um culto à
principiologia humanista a nível estratégico, observa-se não haver mecanismos de mobilização e reflexão
contextual e aplicada sobre os direitos humanos, inclusive como forma de afirmar a sua essencialidade e
aplicabilidade dentro das rotinas prisionais.
Nesse sentido, avançando nas reflexões, propôs-se uma análise em relação à adequação do curso de
formação frente ao nível de preparação dos profissionais para manejar os procedimentos e conduzir as
rotinas prisionais. Quanto ao nível de suficiência da formação, avaliam os entrevistados, no ponto, que:
PESQUISADORA: Considerando a realidade do Sistema Prisional goiano, você acredita que a grade do curso
atende às necessidades de formação dos profissionais para lidar com as rotinas carcerárias? Por quê?
ENTREVISTADA 1: Não, porque a atual grade não traz uma proposta para uma formação crítica e
humanitária do servidor. Se levarmos em consideração que a ressocialização, ao lado da segurança, é
um dos pilares mais importantes da execução penal, podemos perceber que temas importantes estão
sendo deixados de fora, exemplos: alternativas penais, monitoramento eletrônico, racismo estrutural,
misoginia, os diferentes segmentos religiosos e culturais, atendimento ao público e ética profissional.
Outro apontamento que faço é com relação à disciplina “Gerenciamento de Crises”, pois, também levando
em consideração que 90% das alterações no cárcere se dão por pequenos conflitos, e que a capacidade
de diálogo do servidor é essencial para que o conflito seja solucionado ou agravado, é necessário incluir a
disciplina anterior ao gerenciamento de crises, a saber, “Mediação e Conciliação de Conflitos”, dando-lhe
o devido destaque na atuação penitenciária.
ENTREVISTADO 2: É uma grade bastante ampla. Neste sentido, entendo que seria necessário a ampliação
da carga horária do curso para, no mínimo, 700 horas-aula. Com isso, seria possível a realização de um
acompanhamento mais pormenorizado dos novos servidores em uma etapa de aprendizado prático
melhor dirigida. Neste sentido, seria possível ainda buscar a chancela legal para que o curso de formação
profissional tivesse caracterização de formação lato sensu.
ENTREVISTADA 3: Não, ainda deixou a desejar. Acredito que deveria constar algumas matérias
com procedimentos cartorários, que foi retirada da grade e diluída em outras disciplinas, o que ficou
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extremamente confuso; e o cartório, na minha opinião, é uma das seções mais importantes dentro de
uma Unidade Prisional.
ENTREVISTADO 4: Em parte ela atende, mas devemos profissionalizar e aprimorar o conteúdo pedagógico.
ENTREVISTADO 5: Acompanhando várias formações com feedback pós-formação, noto que estamos
investindo bastante na formação, mas a logística e arquitetura de algumas unidades não propiciam a
prática dos ensinamentos.
ENTREVISTADO 6: Sim, a troca de experiência e a dedicação dos professores supera algumas mazelas. É
válido dizer que sempre que pudermos aprimorar conhecimentos a Polícia Penal ganhará mais. Através
dos anos, nota-se de forma bem clara e evidente a evolução do Sistema Penitenciário que implica nas
melhores condições de trabalho para o próprio servidor.
Foram ainda apresentadas indagações para aferição da visão dos servidores entrevistados no tocante à sua
experiência e visão sobre o processo de ministrar aulas nos cursos de formação, sendo ainda questionados sobre
a sua responsabilidade pessoal para a implementação de melhorias na gestão prisional. No ponto, destaca-se que:
PESQUISADORA: Como tem sido a sua experiência em participar dos cursos de formação? Como avalia
a importância de seu papel para a melhoria da gestão prisional?
ENTREVISTADA 1: Um misto de emoções. Claro que há a gratificação gerada pela experiência da troca
de conhecimentos com os discentes, mas há uma frustração em perceber que o processo de formação é
prejudicado pela falta de estrutura adequada, material didático adequado, carga horária adequada e docentes
preparados adequadamente. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Essencial.
ENTREVISTADO 2: Tem sido uma experiência extremamente importante para meu processo de
crescimento e aperfeiçoamento profissional. A atuação enquanto docente proporciona a quem ensina
uma ampla possibilidade de aprendizagem, ao passo que se tem, na prática, durante tais instruções uma
excelente oportunidade para troca de informações, experiências e conhecimentos. [Quanto à importância
na melhoria da Administração Prisional] Extremamente importante. A referência de um bom profissional
está naqueles que o formaram, instruíram, prestaram monitoria. Deste modo, meu papel enquanto
servidor que produz, administra e instrui é de vital importância para o sucesso da minha instituição.
ENTREVISTADO 4: Lamentável. Atualmente nossa Escola (ESAP) foi desmontada e sem estrutura mínima
para um boa formação prisional. A situação é gravíssima, na medida em que uma boa formação é primordial
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para a construção de um profissional que consiga desempenhar de forma satisfatória seu trabalho.
[Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Penso ser de vital importância, uma vez
que cada Policial Penal, na condição de professor e instrutor, tem sua responsabilidade aumentada em
relação ao sistema prisional como um todo. Por ser formador de opinião e quem, em tese, poderá servir
de exemplo a todos os demais colegas, bem como na formação de cada servidor.
ENTREVISTADO 5: Procuro sempre inovar e trazer novas doutrinas; ver os frutos desse trabalho é
muito gratificante, salientando que as diretrizes agora são voltadas para formação de policiais. [Quanto
à importância na melhoria da Administração Prisional] A Academia de Formação/Qualificação é a porta
de entrada para novos policiais e para educação continuada para os que já estão há tempos; logo, a
responsabilidade de estar sempre formando novos policiais e qualificando os que já estão torna-se uma
responsabilidade bem grande.
ENTREVISTADO 6: O Curso de Formação atual, referente ao concurso de 2019, traz consigo algumas inovações,
tais como a instrução dos novos Policiais Penais quanto aos procedimentos cartorários e administrativos,
e possibilitando aos servidores um entendimento quanto à Gestão do Sistema Penitenciário. É salutar que
a carga horária do curso possibilite uma melhor formação, podendo ser repassado mais conhecimentos e
acompanhamento nos primeiros passos dos novos Policiais Penais no início de suas atividades. O fato de o
curso de formação contar com servidores efetivos da casa traz também a troca de conhecimento e experiências
empíricas adquiridas através dos trabalhos prestados pelos professores, tanto na área administrativa, quanto
na área operacional. [Quanto à importância na melhoria da Administração Prisional] Trabalhando com
seriedade, honestidade, transparência e ética, dando exemplo positivo, mostrando o comprometimento com
a administração pública independente da função exercida.
Em sequência, a fim de avaliar, a nível propositivo, os principais desafios para a reestruturação das
carreiras dentro do corpo da Polícia Penal, buscou-se coletar propostas dos profissionais entrevistados
que apontaram:
PESQUISADORA: A seu ver, quais são os principais desafios para reestruturação e melhoria da carreira
dentro dos quadros da Administração Prisional?
ENTREVISTADA 1: A meu ver, o maior desafio para a reestruturação e melhoria da carreira está no
próprio modelo da gestão da administração penitenciária goiana, na medida que as funções de comando,
culturalmente, vêm sendo desempenhadas por pessoas que ocupam esses cargos, sobretudo, por critérios
políticos, causando grandes prejuízos para servidores e população carcerária já que a falta de preparo
técnico, somado ao apadrinhamento político, cria um ambiente engessado e ineficiente. A enorme
influência política na gestão penitenciária goiana acaba por corromper esta instituição de Estado, dando-lhe
características de instituição de Governo. Se observa uma gestão voltada essencialmente para a adoção de
ações emergenciais e de curto prazo, visando prioritariamente gerar propagandas positivas para o Governo
e, consequentemente, a manutenção dos cargos comissionados, deixando de lado medidas de longo prazo
necessárias para um real avanço da carreira, tais como: gestão adequada e eficiente de dados e de pessoas;
produção e formalização do conhecimento; pesquisas e avaliações dos resultados – elementos fundamentais
para produção de planejamento estratégico nas diversas áreas de atuação da administração penitenciária.
ENTREVISTADO 2: O desafio principal está na melhoria da formação dos novos profissionais, bem como
na necessidade de formação continuada dentro da perspectiva construtiva do saber e do aperfeiçoamento
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profissional. Os estudos da alta gestão devem ser prioridade para os quadros de gestores, melhorando
deste modo o processo de gestão e, por conseguinte, toda atividade desenvolvida pela Polícia Penal.
No que tange à formação dos novos servidores, entendo ser extremamente necessária a atuação de
profissionais como instrutores que tenham passado por um alinhamento pedagógico e didático, para
facilitar o processo de aprendizagem e formação dos novos policiais.
ENTREVISTADA 3: Em primeiro lugar, assumirmos a nossa casa, a nossa Instituição de fato e de direito.
Temos competência para tal, todas as funções devem ser ocupadas por um Policial Penal de carreira, desde
a chefia de equipe, passando por diretores de Unidades, Gerentes, Superintendentes até a Diretoria Geral.
Somente após isso, poderemos falar em reestruturação, em melhorias para o Sistema, em remuneração,
que ao meu ver está sim defasada, precisamos mostrar a importância da nossa profissão dentro do âmbito
da Segurança Pública.
ENTREVISTADO 4: Faz urgente consolidarmos nossa identidade institucional, com a criação da Lei
Orgânica da Polícia Penal. Desta forma, teremos claramente nossas atribuições e prerrogativas. Outro
importante desafio é a ascensão de um Policial Penal na gestão superior da DGAP. Por fim, devemos ter
uma gestão de recursos humanos eficiente que possa aproveitar melhor as habilidades de cada servidor.
ENTREVISTADO 5: O Sistema Penitenciário em um todo passa por um período histórico e de transição com
a criação da Polícia Penal; temos profissionais gabaritados para executar uma ótima gestão nessa nova fase,
porém temos arestas a serem aparadas para uma melhoria de forma macro no sentido de pessoas.
ENTREVISTADO 6: Valorização do Policial Penal. Lei Orgânica que preveja hierarquia entre os servidores,
melhoria salarial.
Por fim, acrescentaram alguns dos entrevistados, de forma complementar, considerações pessoais no
que diz respeito ao aprimoramento de conteúdos para melhoria dos processos formativos, especialmente
quanto ao acréscimos de disciplinas, indicando:
PESQUISADORA: A seu ver, teria alguma disciplina que deveria ser acrescida ou retirada?
ENTREVISTADO 2: Acredito que deveria ser acrescida a disciplina denominada em grande parte dos
cursos de ações táticas como “sobrevivência administrativa”. Esta seria uma disciplina com uma ementa
voltada a orientar o Policial Penal a atuar administrativamente em ações táticas do cotidiano do policial,
empregando o conhecimento administrativo e do regramento legal e infralegal buscando conduzir as
ocorrências com o fito de resolver os problemas e não agravá-los.
ENTREVISTADA 3: Acredito que pode ser melhorado e revisado, com vista ao melhor aproveitamento,
mas o crucial está na escolha do corpo docente, hoje sem critério algum, apenas na indicação pessoal,
desmerecendo quem possui conhecimento e didática. Hoje a distribuição das disciplinas acontecem por
amizade. Lamentavelmente em uma escola isso jamais poderia acontecer.
ENTREVISTADO 4: Deveria aumentar a carga horária da disciplina Lei de Tortura e Regras de Mandela e
acrescentar uma disciplina voltada à inteligência emocional.
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Um dos motes da Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS), nos termos do art.
38 da Lei Nº 13.675/2018, dá-se com o estabelecimento de medidas para a capacitação e valorização do
profissional em segurança pública por intermédio de diretrizes de educação qualificada, continuada e
integrada que abordem transversalmente aspectos gerenciais, técnicos e operacionais como forma de
promoção de mudanças nas práticas no campo da segurança pública.
Face aos dados compilados e tomando como premissa a necessidade de revisão dos processos de
formação policial a partir de um melhor diagnóstico dos mesmos, obtido a partir da combinação da visão
dos profissionais com a literatura especializada no tema, a partir deste momento o presente estudo
se concentrará na apresentação de algumas premissas analíticas para a construção de novas políticas
de formação dos policiais penais que contemplem diretrizes para a reestruturação da carreira, bem
como para a melhoria dos serviços penitenciários dentro dos objetivos traçados pelo Sistema Único de
Segurança Pública (Susp).
Sob esses auspícios, falar sobre o processo formativo dos profissionais do Sistema Prisional implica a correlata
chamada de responsabilidade política e social sobre o estado de coisas inconstitucional e, por conseguinte,
uma nova visão lastreada em uma abordagem em que o direito à segurança pública seja posto com integridade
política e compromisso com o projeto humanista e democrático de sociedade (SULOCKI, 2007).
Nesse eixo de considerações, destaca-se o desafio de suplantar o “isomorfismo reformista” (ROLIM, 2006,
p. 44) característico das instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal. Com isso, partindo de
uma visão constitucionalmente adequada, uma política formativa detém o desafio de conjuntamente
estabelecer como meta-alvo a interconexão de objetivos integrando o eixo institucional ao social, de
forma a traduzir a partir disto o megadesafio da efetivação de direitos e cidadania por intermédio da
concretização do direito à segurança pública.
Partindo do ideário comum de que há um “déficit democrático em matéria de segurança pública” (SULOCKI,
2007, p. 125), observa-se, neste campo, de forma mais premente, a necessidade de arranjos institucionais
para o desenvolvimento da capacidade para o enfrentamento de problemas sociais de forma sistêmica
e coerente, emergindo, assim, a ideia da governança democrática e participativa aplicada à Segurança
Pública como forma de melhor direcionar as políticas de formação dos profissionais.
7 Neste trabalho, adota-se o conceito normatizado de governança dado pelo Decreto Nº 9.203, de 22 de novembro de 2017, que em seu art.
2º, inciso I, estipula que considera-se governança pública o “conjunto de mecanismos de liderança, estratégia e controle postos em prática para
avaliar, direcionar e monitorar a gestão, com vistas à condução de políticas públicas e à prestação de serviços de interesse da sociedade”, sendo
seus princípios essenciais à ideia de instituição de “capacidade de resposta, integridade, confiabilidade, melhoria regulatória e transparência”, nos
termos do art. 3º do mesmo instrumento normativo.
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ARTIGO
Governança democrática na administração prisional: os desafios da
formação dos policiais penais no sistema prisional goiano
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Nesse direcionamento, ressalta-se que para possibilitar a definição de estratégias como o conjunto de
diretrizes, objetivos, planos e ações que possam gerar um melhor alinhamento entre as organizações e
as partes interessadas, com foco no desempenho de serviços de excelência, parte-se da premissa de que
os cursos de formação são as portas de entrada para a construção de arranjos institucionais voltados à
construção e à implementação de medidas saneadoras aos problemas penitenciários, denotativos por
uma intersecção de crises dadas pela verticalização do cenário de violência e insegurança dentro de um
modelo de controle social disfuncionalmente seletivo e dessocializador.
Com isso, se está a reposicionar a formação profissional como uma das ações estratégicas aptas a gerar um
bom modelo de polícia, como aquele capaz de suplantar os preconceitos culturais e sociais imbuídos no
exercício da função, que conflui para um cenário de ação estatal funcional em prol do atravancamento do
processo de erosão democrática. Tal aspecto, contudo, desborda em um secundário desafio a evidenciar
que o acúmulo teórico da produção jusfilosófica sobre a educação humanista não adentra no fluxo
das rotinas prisionais, de forma contextualizada e aplicada, no sentido de obstar processos formativos
desviantes ainda ancorados em racionalidade punitiva e ineficácia estatal.
À vista disto, impõe-se o desafio do estabelecimento de uma nova identidade institucional a partir do
delineamento de nova agenda de ações que possibilitem estratégias top-down. Sob esse direcionamento
analítico, falar em governança democrática no âmbito do Sistema Único de Segurança Pública (Susp)
implica, em síntese, gerar mecanismos de fortalecimento da cidadania por meio da educação corporativa.
Nesse sentido, é fulcral destacar que uma boa gestão administrativa do problema penal depende da
modernização da gestão das instituições de segurança pública a partir da formação e da dotação de
recursos humanos em um processo que congregue densidade axiológica e visão crítico-propositiva aos
profissionais da segurança pública. Assim sendo,
[...] As discussões acerca da educação corporativa e das políticas públicas para formação dos profissionais
de segurança pública deverá estar sempre em processo de ressignificação e articuladas com outras políticas
públicas como de saúde, educação e econômica, uma vez que as formações desses profissionais sofrem
constantemente influências dos Programas de Governo e dos setores que envolvem a sociedade organizada.
Desta forma há uma grande necessidade de avaliar as demandas sociais, a infraestrutura necessária para o
desenvolvimento das potencialidades, competências e ir além das estratégias políticas, considerando que
a segurança pública é um direito constitucional e deve ser garantido pela administração pública (MELO;
CARVALHO, 2019, on-line).
Posto isto, para engendrar medidas que impliquem o engajamento crítico e reflexivo sobre as funções
da Polícia Penal, devem os processos formativos ser reposicionados como forma de combate a “sub-ética
corporativa” (ROLIM, 2006, p. 38), à medida que engendrem formas de responsabilização institucional
no sentido de abarcar um núcleo de ações em direção ao aprimoramento das formas de exercício das
atribuições institucionais considerando toda a complexidade do policiamento (RAMSEY, 2020).
Em termos práticos, o referido processo seria uma forma de gerar formas de avaliação crítico-reflexiva
sobre a encampação dos discursos punitivos sem a correlata criação de infraestrutura material para o
entabulamento da execução da pena e, assim, para o desvencilhamento do atual modelo de desserviço
prisional que resulta não apenas no processo de violação de direitos como de evasão democrática.
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Governança democrática na administração prisional: os desafios da
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Deborah Ferreira Cordeiro Gomes e Soraia Pereira Silva
Assim sendo, a revitalização institucional dentro do paradigma da segurança cidadã direciona-nos a uma
ampla revisão dos processos formativos destes agentes públicos, buscando situá-la propriamente como
política pública constitucional. Em outros termos, a fixação de novo modelo de políticas públicas de
segurança à luz da Teoria das Capacidades Institucionais implica a assunção do poder-dever de otimizar os
serviços prisionais a partir da formação de seu corpo de servidores e de, a partir disto, gerar o engajamento
para a promoção de transformações sociopolíticas direcionadas à efetivação do direito à segurança.
Nesse mister, devem ser refletidas de forma aplicada e cotidiana todo o núcleo de atividades-base que
integram a cosmologia do poder punitivo a fim de se delinear formas de gestão prisional sustentável,
isto é, de promover a saída do padrão dualista, incongruente e reativo. Torna-se imprescindível desenhar
políticas que possibilitem alçar a administração de conflitos como forma de intervir nas relações conflitivas
de modo que caminhem para uma composição na qual todos os atores envolvidos ostentem a qualidade
primária de cidadãos (SINHORETTO, 2021, p. 4-6).
Dentro do direcionamento de políticas públicas de segurança8 voltadas aos processos formativos, vistas
aqui como prioridades estratégicas dentro de uma abordagem multidisciplinar que alie a dimensão
político-administrativa à gestão técnica do conhecimento, é preciso encampar um “modelo de coprodução
de segurança pública com legitimidade às balizas de ação comunitária” (ROLIM, 2006, p. 83), encontrando,
assim, “espaços de negociação e a construção coletiva dos objetivos a serem perseguidos” (BALLESTEROS,
2012, p. 117).
Assim sendo, dentro do núcleo de reflexões que visam apontar para as transformações do Estado, emerge
como imperativo o desenvolvimento de mecanismos de governança participativa para a promoção de
uma real gestão democrática dos processos de ensino dos profissionais que atuam no Sistema Prisional.
Considerando a relação dialética entre o ideal de governança para transição democrática e adotando o
ideal da governança aplicada à teoria organizacional, propõe-se a introdução de um novo marco teórico-
conceitual e processual para orientar os núcleos de ações aplicadas às políticas de formação dos policiais
penais no sentido de obstar a sintomática desarticulação de ações no campo – marcado por produção
e ações insuficientes e ineficientes – delineando, ao revés, estratégias multissetoriais para gerar
intervenções orientadas às pessoas e ao cumprimento de objetivos societais.
8 Quanto ao ponto, demonstra-se interessante proceder a diferenciação terminológica das ações em segurança dentro do modelo tradicional e do
constitucional-democrático por intermédio da diferenciação terminológica sutil, mas significativa conceitualmente, entre as “políticas de segurança
pública” e as “políticas públicas de segurança”. Ressalta-se, assim, que “[...] é preciso ter, de forma nítida, a diferença entre políticas de segurança
pública, que representam todo esse agregado de ações estatais vocacionadas a uma visão reducionista sobre violência e criminalidade direcionada às
ações combativo-punitivistas pontuais, isoladas e midiáticas. Nesse âmbito, ao largo do tempo, a política de segurança é formulada como estratégia
de guerra a ensejar justificação do recrudescimento das estratégias bélicas de controle social como solução definitiva. Por outra via, um novo modelo
de se pensar o tema dá-se através das políticas públicas de segurança que, em uma visão ampliativa, sistêmica, aprioristicamente planejada, pensa
no direito à segurança de forma maximizada como um direito social-fundamental a ser sistematicamente implementado. Para tanto, é essencial
dentro desse viés analítico-compreensivo que as políticas públicas de segurança sejam inseridas dentro da Política Criminal brasileira, que dará de
forma ampla e incremental a definição de estratégias de controle de forma constitucionalmente adequada através de um planejamento estratégico
no qual se reposicionem formas, níveis de atuação e reformatação de práticas institucionais para readequação da tutela penal, de forma não apenas
a obstar a prática e a retroalimentação do crime e da violência social e institucional, mas de gerar políticas de desenvolvimento econômico e humano
em zonas periféricas” (GOMES; MIRANDA, 2020, p. 250-251).
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A segurança pública seria, a nosso ver, um caso típico de governança de política pública. O Estado, não só
por meio de sua polícia, mas de outras estratégias, tanto interorganizacionais quanto intergovernamentais,
promove (ou deveria promover) ações que interferem em uma realidade complexa e indeterminada que são
o crime e a sensação de insegurança [...] Tratar a polícia como função, dentro da perspectiva de construir-se
um novo paradigma para a segurança pública, significa entendê-la como uma entre aquelas ações coletivas
que estão sujeitas à influência de outros atores, que por elas se responsabilizam, mas que também sobre
elas interferem e decidem [...] Partindo, então, do pressuposto de que a segurança pública – e a ordem que ela
enseja – são bens públicos e, portanto, devem ser providos e promovidos pelo Estado, resta-nos perguntar:
qual é, pois, o papel do Estado neste novo cenário de múltiplos atores e novas necessidades? [...] Além de
democratizar suas próprias formas de policiamento, o Estado deve encarar e enquadrar politicamente as
demais formas de prover a segurança, fazendo com que elas se comuniquem entre si e produzam resultados
de modo equitativo e efetivo (BALLESTEROS, 2012, p. 64-67, grifo nosso).
Assim sendo, a política de formação dos profissionais que atuam no Sistema Prisional deve funcionar
como uma dinâmica operacional para a transição democrática a partir de reformas institucionais de fundo
sociocultural e organizacional, promovendo a entrada dos corpos policiais dentro da cultura humanística e
democrática por meio da obstaculização da continuidade das políticas com viés autoritário e sua correlata
aproximação das políticas sociais de enfrentamento da violência social por meio da inclusão de todos os
atores do sistema prisional (RAMALHO, 2002, p. 10-15). Para tanto, torna-se
[...] necessário considerar a necessidade de aprendizado democrático, pois as mudanças no núcleo de direitos
decorrem de um processo histórico de apropriação pela sociedade. Assim sendo, a assimilação não é
instantânea e demanda práticas diárias tanto do Estado quanto dos cidadãos para que os Direitos Humanos
sejam definitivamente difundidos no ordenamento jurídico e na sociedade. Nesse ponto reside a necessidade
de engajamento dos cidadãos no controle e ajuste das práticas estatais em todos os três poderes instituídos
– trata-se da accountability democrática. [...] A accountability democrática exige o envolvimento dos cidadãos,
especialmente em momentos de descrédito estatal (SILVA; ASSIS, 2020, p. 261-264).
Na busca por arranjos e instrumentos de accountability, destaca-se não apenas o necessário dever de
consolidar aprendizados democráticos como forma de obstar o insulamento institucional com baixa
abertura aos atores sociais e o alto custo da descontinuidade administrativa, mas igualmente o dever de
apresentar e fundamentar publicamente os processos de tomada de decisão como forma de controle,
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Governança democrática na administração prisional: os desafios da
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discussão, avaliação crítica e exposição pública de fatos e fundamentos como forma de, deveras, se obter
decisões verdadeiramente coletivas (RACHED, 2021, p. 198-202).
A nosso ver, uma oportunidade concreta de promoção da efetivação do direito à segurança pública à luz
dos princípios da democracia participativa e da vedação ao retrocesso institucional, dentro da janela de
oportunidade dada pela estruturação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para o delineamento
de novas políticas de formação policial, dá-se a partir do engajamento e do incentivo à participação social
integrada dos múltiplos atores e pesquisadores sobre a execução penal no Sistema Integrado de Educação
e Valorização Profissional (Sievap), notadamente por intermédio da construção de redes de discussão e
divulgação do conhecimento, como forma de gerar, compartilhar e disseminar experiências no campo da
segurança, como por meio da recente previsão dos Laboratório de Inovação9.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente artigo, apresentou-se reflexões sobre os desafios para a transição democrática no campo da
Segurança Pública, enfatizando-se o âmbito da promoção de mudanças nos processos de formação e na
postura dos profissionais que atuam face ao Sistema Prisional para sua inserção em um ambiente regido
pelos princípios humanitários e democráticos.
Como forma de se promover a efetivação do direito fundamental à segurança pública, focando na gestão
de pessoal, efetuou-se a localização dos principais desafios para a instrumentalização de um modelo de
segurança cidadã. Por intermédio da aplicação de entrevistas com gestores prisionais e com professores
dos cursos de formação dos policiais penais em Goiás, desenvolveu-se uma análise institucional e
conjuntural sobre os cursos de formação abarcando suas características teóricas, metodológicas e os
correlatos desafios para a formação de servidores como forma a torná-los aptos a melhor lidarem com
problemas penitenciários.
Com isso, partindo da visão da governança aplicada à segurança pública, como forma de conectar a
dimensão política e administrativa e melhor direcionar os esforços para formação de uma agenda para
construção de políticas públicas de formação dos policiais penais, considerando aspectos estruturais,
operacionais e principiológicos, apresentam-se alguns possíveis caminhos de abertura e novos espaços
de participação social efetiva como pressuposto sem o qual não se concretizará o almejado modelo de
segurança cidadã.
9 Nos termos da recente Lei Nº 14.129, de 29 de março de 2021, em seu art. 4º, inciso VIII, aparece o Laboratório de Inovação como o “espaço
aberto à participação e à colaboração da sociedade para o desenvolvimento de ideias, de ferramentas e de métodos inovadores para a gestão
pública, a prestação de serviços públicos e a participação do cidadão para o exercício do controle sobre a administração pública”, estando sua ação
pautada, nos termos do art. 45, na colaboração interinstitucional e com a sociedade; no fomento à participação social e à transparência pública;
no incentivo à inovação; no apoio às políticas públicas orientadas por dados e com base em evidências, a fim de subsidiar a tomada de decisão
e de melhorar a gestão pública; no estímulo à participação de servidores, de estagiários e de colaboradores em suas atividades; e na difusão de
conhecimento no âmbito da administração pública.
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ARTIGO
Governança democrática na administração prisional: os desafios da
formação dos policiais penais no sistema prisional goiano
Deborah Ferreira Cordeiro Gomes e Soraia Pereira Silva
À vista disto, considerando-se as limitações da presente pesquisa, à título de considerações finais, aponta-
se a governança democrática dentro dos processos formativos constitucionalmente adequados como
um mecanismo para sedimentar novas formas de interação e conexão entre cidadãos e corpos policiais,
gerando o necessário engajamento social para a promoção de transformações sociopolíticas no âmbito da
janela de oportunidades dada a partir da criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).
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Governança democrática na administração prisional: os desafios da
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ANEXO A
MATRIZ CURRICULAR DO CURSO DE FORMAÇÃO DENTRO DA ADMINISTRAÇÃO PRISIONAL EM GOIÁS
CARGA
DISCIPLINAS HORÁRIA
2. DIRETRIZES DA GESTÃO 04
DA ASSISTÊNCIA, DIREITOS, DEVERES E DISCIPLINA NA EXECUÇÃO PENAL (LEI
3. Nº 7.210/84) 08
23. ESCOLTA 20
24. ALGEMAMENTO 08
27. USO E MANUTENÇÃO DE ARMAMENTO – CARABINA CTT .40, GAUGE 12, GAUGE 112
12, REVÓLVER 38
28. ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR - APH 4
214 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 192-215
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Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 192-215 215
ARTIGO
RESUMO
Como avaliar um curso de formação de policiais militares, ou seja, saber se ele tem atendido aos anseios
da sociedade que, em última instância, é sua principal beneficiária? Quais os desafios dessa avaliação no
atual modelo de academias integradas de segurança pública, criadas no Brasil a partir do final da década
de 1990 e existentes em alguns estados da Federação? Este artigo se propõe a responder tais questões.
Para isso, utiliza-se de pesquisa bibliográfica e documental, apontando possíveis soluções. Diante dos
impasses gerados por questões jurídicas e políticas historicamente relacionadas ao problema, apresenta-
se a autoavaliação, entre outras, como um método prático e válido para as instituições de ensino,
especialmente as academias integradas, aferirem a qualidade da educação ministrada.
Palavras-chave: Avaliação. Formação de policiais militares. Academias Integradas.
ABSTRACT
EVALUATION OF INITIAL TRAINING COURSES FOR MILITARY POLICIES AN OLD CHALLENGE FOR NEW
INTEGRATED PUBLIC SECURITY ACADEMIES
How to evaluate a certain initial training course for military police, that is, to know if it has met the desires of
the society that, ultimately, is its main beneficiary? What are the challenges of this evaluation in the current
model of integrated public security academies, created in Brazil from the end of the 1990s and existing in
some states of the Federation? This article aims to answer such questions. For this, it uses bibliographic and
documentary research, pointing out possible solutions. In view of the impasses generated by legal and political
issues historically related to the problem, self-assessment is presented, among others, as a practical and valid
method for educational institutions, especially integrated academies.
Keywords: Evaluation. Training of military police officers. Integrated Academies.
216 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 216-231
ARTIGO
Avaliação de cursos de formação de policiais militares: um velho
desafio para as novas academias integradas de segurança pública
Anderson Duarte Barboza
INTRODUÇÃO
Existe um relativo consenso sobre o fato de que uma avaliação realiza um julgamento de valor ou de
mérito sobre determinada atividade, coisa ou pessoa. Sabe-se também que a avaliação possui uma série
de possibilidades de utilização, servindo tanto para mensurar conhecimentos e habilidades de indivíduos e
grupos, quanto para aferir e melhorar a qualidade de processos e serviços prestados por uma determinada
pessoa, física ou jurídica, pública ou privada. A avaliação é, portanto, uma importante etapa do ciclo de
administração de uma determinada organização, permitindo saber se ela está indo na direção certa e
alcançando as finalidades para as quais se propôs.
Entretanto, para além dos pontos aparentemente pacíficos, a avaliação se constitui em um campo de
intensos debates, especialmente quando se refere aos processos e às instituições educacionais. No caso
da educação de militares estaduais, especialmente da formação inicial de policiais militares, que se dá nas
academias e nos centros de formação, as discussões são ainda mais complexas1. Existem várias questões
políticas, as quais envolvem demandas sociais que cercam o tema e que, por sua vez, confrontam-se
com questões jurídicas decorrentes das leis que regulamentam o ensino policial militar. Todos esses
fatores encontram um ambiente ainda mais intrincado quando ocorrem no cenário das novas academias
integradas de segurança pública, que surgem a partir do final da década de 1990. Este último fenômeno,
por sua vez, adiciona um complicador ao problema não resolvido da avaliação dos cursos de formação
inicial dos candidatos ao cargo de policial militar.
Este trabalho tem por objetivo discutir os desafios de avaliar cursos de formação de policiais militares nas
academias integradas de segurança pública, apontando possíveis soluções para o problema de pesquisa.
Não trata de avaliar ou comparar os modelos de academias existentes, mas tão somente apontar alguns
problemas e aventar possíveis soluções relacionadas à avaliação da qualidade dos cursos nessas instituições.
Para compreensão da realidade estudada, utilizou-se de pesquisa bibliográfica, com o objetivo de utilizar
conceitos e noções que auxiliam na interpretação dos fatos, por meio de uma leitura detalhada e atenta das
fontes consultadas, como ensina Deslandes (2016). Buscou-se basicamente a literatura clássica do campo
da avaliação educacional em geral, visto que se tem pouco sobre avaliação de cursos policiais militares
e menos ainda sobre as academias integradas. Além disso, foi feita pesquisa documental sobre o tema,
especialmente analisando uma série de leis e regulamentos sobre as polícias militares e suas peculiaridades.
Tanto a educação quanto a segurança pública são serviços essenciais do Estado. No caso da educação,
ela é o meio pelo qual se pode moldar e/ou produzir indivíduos para que exerçam direitos e deveres,
1 Vale, desde já, explicar que existem basicamente duas formas de ingresso nas polícias militares. A primeira é por meio do concurso público
para a carreira de praças, que vai da graduação de soldado à de subtenente, os quais são os responsáveis pela execução do policiamento. Outra
forma é por meio do concurso para a carreira de oficiais, que formam a categoria que comanda a corporação. Os postos desta carreira vão de
2º tenente até coronel. Existem ainda as praças especiais, que são os aspirantes a oficiais e os alunos das escolas de formação de oficiais. Essa
estrutura de postos e graduações é estabelecida pelo Decreto-Lei Nº 667, de 2 de julho de 1969, com algumas variações, tanto na supressão de
cargos como nos requisitos de ingresso, a depender do estado da Federação.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 216-231 217
ARTIGO
Avaliação de cursos de formação de policiais militares: um velho
desafio para as novas academias integradas de segurança pública
Anderson Duarte Barboza
conforme uma determinada mentalidade de governo, a partir de uma série de práticas pedagógicas2. Por
essa razão, ela é tomada por responsabilidade pela Administração Pública em diversos países. Tal encargo
educativo é, geralmente, compartilhado com a sociedade, que é partícipe na efetivação desse importante
direito social. O art. 205 da Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) resume bem:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).
Já a segurança pública é, da mesma forma que a educação, um dever do Estado, igualmente dividido
com a sociedade. A CF/88 não apresenta uma definição estrita de segurança pública, limitando-se, em
seu art. 144, a afirmar que ela se constitui em “um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”,
expressando a sua finalidade, que é “a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio” (BRASIL, 1988). Esperava-se que a lei de regulamentação do capítulo destinado à segurança
pública trouxesse, enfim, uma definição, o que acabou não acontecendo. Trinta anos após a promulgação
da Carta Magna, a Lei Nº 13.675, de 2018, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública (Susp),
limitou-se a repetir o mesmo texto da CF/88.
O que se encontra como definição do conceito de segurança pública, dada pelo Estado brasileiro, podia
ser visto no portal do Ministério da Justiça e Segurança Pública da seguinte forma:
A Segurança Pública é uma atividade pertinente aos órgãos estatais e à comunidade como um todo, realizada
com o fito de proteger a cidadania, prevenindo e controlando manifestações da criminalidade e da violência,
efetivas ou potenciais, garantindo o exercício pleno da cidadania nos limites da lei. (BRASIL, 2008, p.8).
O que vale ressaltar aqui é que os dois campos são direitos sociais que estão entrelaçados de várias formas,
seja porque os agentes de segurança pública atuam como educadores informais nas ruas, seja também
pelo fato de que esses profissionais, e aqui se destaca os policiais militares, são formados exclusivamente
pelo Estado, ou seja, recebem sua educação profissional inicial por meio das escolas de formação das
próprias instituições das quais farão parte. Isso os diferencia dos campos da saúde e da própria educação
pública que, embora sejam funções essenciais da Administração Pública, podem admitir profissionais
formados exclusivamente em instituições privadas.
Essa questão, entre outras, ressalta a necessidade da garantia da qualidade dessa formação disponibilizada
aos futuros policiais militares, pois dela dependerá, em grande parte, a atuação desses profissionais nas ruas
e a consequente prestação de um bom serviço de policiamento, que é fundamental para uma segurança
pública efetiva, que é, por sua vez, condição essencial para um bom Estado Democrático de Direito3. Em
outras palavras, não é possível pensar em uma democracia saudável sem uma boa polícia e é improvável que
esta exista sem um padrão elevado de rigor e exigência intelectual e moral de seus integrantes, o que passa
pelas exigências de ingresso, mas, principalmente, pelos conteúdos ministrados na formação inicial.
2 Libâneo (2013, p. 15) apresenta duas definições de educação, uma em sentido amplo e uma em sentido estrito. Em sentido amplo, a
educação “compreende os processos formativos que ocorrem no meio social, nos quais os indivíduos estão envolvidos de modo necessário e
inevitável pelo simples fato de existirem socialmente”. Já no sentido estrito, a educação é aquela que “ocorre em instituições específicas, escolares
ou não, com finalidades explícitas de instrução e ensino mediante uma ação consciente, deliberada e planificada”. Embora saibamos que as duas
definições se complementam, neste trabalho será marcada a ênfase na educação em sentido estrito.
3 Bayley (2006, p. 17) afirma que “a manutenção da ordem é a função essencial do governo”. Na mesma passagem, assevera ainda o mesmo
autor que “as atividades policiais também determinam os limites da liberdade numa sociedade organizada, algo essencial para se determinar a
reputação de um governo”.
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No Brasil, observa-se, de maneira geral, um grau de satisfação insuficiente em relação ao trabalho realizado
pela polícia. Esse aspecto subjetivo é fundamental para uma segurança pública de qualidade, pois influencia,
por exemplo, nas cifras ocultas, que são as subnotificações de crimes, bem como na baixa interação entre
policiais e cidadãos e mesmo na predisposição em acatar orientações dessas autoridades (ROLIM; HERMANN,
2018). O medo da polícia, por sua vez, ainda existe, e é percebido, entre outros fatores, como fruto de
treinamento inadequado e más condições de trabalho com as quais convivem (CARDIA, 1997).
Um exemplo de pesquisa que afere essa satisfação popular com a polícia é o Índice de Confiança na Justiça
e na Polícia (ICJBrasil), medido pela Fundação Getúlio Vargas (2017). Em sua última edição, realizada em
2017, obteve a informação de que apenas 26% da população pesquisada confia na polícia. Tal número é
considerado baixo, se comparado, por exemplo, à confiança nas Forças Armadas, instituições de maior
credibilidade no Brasil, as quais, segundo a mesma pesquisa, alcançam 56% de confiança. Comparando-se
com o desempenho de polícias em outros países, o resultado também é insatisfatório. Feltes (2003, p.
111) apresenta uma pesquisa realizada na Alemanha que chegou à conclusão de que “mais de 50% dos
consultados tinham a polícia (em vez de escolas, políticos, igreja ou família) como portadora de valores”,
demonstrando assim todo o apreço do povo alemão à sua polícia. Rolim e Hermann (2018) comentam
sobre uma pesquisa chamada World Values Survey, de 2011, em que o Brasil figura na 34ª posição em uma
lista de 47 países analisados quanto à confiança na polícia.
Após o período da ditadura militar (1964-1985), abre-se uma janela de oportunidade. Com a possibilidade
de participação democrática, uma série de iniciativas de interação entre os órgãos de segurança pública e
a sociedade civil se inicia, inclusive no tocante à formação dos seus agentes4. Observa-se então que,
Portanto, é essa preocupação com a qualidade da formação dos policiais militares, totalmente legítima e
de interesse público, que leva à seguinte pergunta: como obter algum grau de certeza acerca da eficácia
dos cursos de formação inicial de policiais militares, ou seja, saber se eles têm atendido aos anseios da
sociedade que, em última instância, é sua principal beneficiária? Tal questionamento pode ser respondido,
entre outras formas, por meio de uma avaliação desses cursos. Entretanto, a formação desses profissionais
possui algumas peculiaridades que devem ser levadas em consideração.
Como ponto de partida para esta seção, faz-se necessário definir o termo avaliação. Sabe-se que avaliação
diz respeito ao ato de avaliar, que é, segundo o dicionário Michaelis (2020), “apreciação, cômputo ou
estimação da qualidade de algo ou da competência de alguém”. A etimologia da palavra avaliação sugere
que ela deriva do termo em latim valere, que significa “ser forte” e origina também o termo valor. Portanto,
avaliar é atribuir valor, ou seja, a qualidade de “forte”, o que pode ser feito em qualquer área da vida social.
4 Sapori (2007, p. 117) destaca a “proliferação de parcerias entre as organizações policiais militares e as universidades, institutos de pesquisa
e organizações não governamentais”.
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Posicionando o tema em termos científicos, Minayo (2005, p. 19) apresenta a seguinte definição: “avaliação,
como técnica e estratégia investigativa, é um processo sistemático de fazer perguntas sobre o mérito e
a relevância de determinado assunto, proposta ou programa”. Entretanto, o que parece ser simples e
objetivo é, na verdade, um complexo campo em disputa, o qual é “constituído historicamente e como tal
se transforma de acordo com os movimentos e as mudanças dos fenômenos sociais” (SOBRINHO, 2003, p.
14). Apesar disso, há registros de tipos de avaliação desde a antiguidade, em países como China e Grécia,
para o exame de candidatos ao exercício de atividades públicas, prática que passou por várias mudanças,
mas que permanece até os dias atuais5.
Embora a avaliação esteja presente em diversas áreas da vida individual e coletiva, é na educação que ela
encontra melhores condições para se desenvolver, seja como conjunto de práticas em relação a alunos,
conteúdos e instituições, seja como campo de estudos. A avaliação educacional, à qual se refere este
artigo, pode ser compreendida como o campo que inclui, entre outras modalidades,
a avaliação dos alunos, a avaliação dos profissionais (educadores e professores), a avaliação institucional das
escolas, a avaliação dos sistemas ou subsistemas educativos, a avaliação de projetos e programas, e a própria
avaliação de políticas. (AFONSO, 2014, p. 488-489).
As disputas neste campo, como já foi dito, são constantes. Há diagnósticos e análises que mostram
como determinados modelos de avaliação estão ligados às políticas de cunho neoliberal, formuladas por
organismos internacionais (AFONSO, 2014), ou mesmo ao fenômeno chamado de empresariamento da
educação e da sociedade (GADELHA, 2009) e pelo domínio de determinado discurso da qualidade, com a
mera transferência dos conceitos empresariais para o campo das instituições públicas de educação, a ponto
de o debate por democratização ser ofuscado ou mesmo substituído por aquele discurso (GENTILI, 2001).
Entretanto, entende-se aqui que formas de prestação de contas, de transparência e de avaliação podem
ser importantes meios para a democratização das instituições públicas, compreendida por Libâneo
(2013, p. 33) como sendo “a conquista, pelo conjunto da população, das condições materiais, sociais,
políticas e culturais que lhe possibilitem participar na condução das decisões políticas governamentais”.
Na segurança pública, então, o debate sobre esses instrumentos de avaliação mostra ser de fundamental
importância, tendo em vista as demandas por aprimoramento democrático em suas instituições.
Se a discussão sobre avaliação, no campo educacional em geral, é marcada por controvérsias e debates,
na formação de policiais militares ela é ainda mais intensa. Embora tenham parâmetros e estruturas
estabelecidas por legislação federal e sejam, por mandamento constitucional, força auxiliar e reserva do
Exército6, as polícias militares estão subordinadas aos governadores dos estados e trazem as peculiaridades
históricas e sociais da unidade da Federação a que pertencem. Este aspecto híbrido, de dupla chefia,
também se reflete nas instituições de formação, bem como na avaliação de suas instituições de ensino.
5 Segundo Sobrinho (2003, p. 15), essa prática avaliativa praticada na Grécia chamava-se “docimasia”, a qual consistia “numa verificação das
aptidões morais daqueles que se candidatavam a funções públicas”.
6 Muniz (2001) explica que o termo “forças auxiliares do Exército” apareceu pela primeira vez na Constituição de 1934, sendo ampliado para
forças auxiliares e reserva do Exército em 1946. A Constituição de 1967 e a atual Constituição de 1988 mantiveram essa redação.
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Assim sendo, valeria perguntar: a qual instituição cabe o direcionamento e a fiscalização do ensino dos
policiais militares? Segundo o Decreto-Lei Nº 667, de 2 de julho de 1969, cabe ao Estado-Maior do Exército
Brasileiro, por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), como se vê na citada legislação:
Art. 21. Compete ao Estado-Maior do Exército, através da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:
a) Centralizar todos os assuntos da alçada do Ministério do Exército relativos às Polícias Militares, com vistas
ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas.
b) Promover as inspeções das Polícias Militares tendo em vista o fiel cumprimento das prescrições deste
decreto-lei.
c) Proceder ao controle da organização, da instrução, dos efetivos, do armamento e do material bélico
das Polícias Militares.
d) Baixar as normas e diretrizes para a fiscalização da instrução das Polícias Militares.
e) Apreciar os quadros de mobilização para as Polícias Militares de cada Unidade da Federação, com vistas ao
emprego em suas missões específicas e como participantes da Defesa Territorial.
f) Cooperar no estabelecimento da legislação básica relativa às Polícias Militares. (BRASIL, 1969, grifos nossos).
No Decreto Nº 88.777, de 30 de setembro de 1983 (BRASIL, 1983), que regulamenta as polícias militares
e os corpos de bombeiros militares, a fiscalização do ensino e da instrução dessas corporações é reforçada
como atribuição do Exército, por meio da IGPM:
Art. 26 – O ensino nas Polícias Militares orientar-se-á no sentido da destinação funcional de seus integrantes,
por meio da formação, especialização e aperfeiçoamento técnico-profissional, com vistas, prioritariamente,
à Segurança Pública.
Art. 27 – O ensino e a instrução serão orientados, coordenados e controlados pelo Ministério do Exército,
por intermédio do Estado-Maior do Exército, mediante a elaboração de diretrizes e outros documentos
normativos.
Art. 28 – A fiscalização e o controle do ensino e da instrução pelo Ministério do Exército serão exercidos:
1) pelo Estado-Maior do Exército, mediante a verificação de diretrizes, planos gerais, programas e outros
documentos periódicos, elaborados pelas Polícias Militares; mediante o estudo de relatórios de visitas e
inspeções dos Exércitos e Comandos Militares de Área, bem como por meio de visitas e inspeções do próprio
Estado-Maior do Exército, realizadas por intermédio da Inspetoria-Geral das Polícias Militares;
2) pelos Exércitos e Comandos Militares de Área, nas áreas de sua jurisdição, mediante visitas e inspeções, de
acordo com diretrizes e normas baixadas pelo Estado-Maior do Exército;
3) pelas Regiões Militares e outros Grandes Comandos, nas respectivas áreas de jurisdição, por delegação dos
Exércitos ou Comandos Militares de Área, mediante visitas e inspeções, de acordo com diretrizes e normas
baixadas pelo Estado-Maior do Exército. (BRASIL, 1983, grifos nossos).
Essa formulação de diretrizes para fins de instrução das polícias militares, com a correspondente
fiscalização, funcionou por algum tempo. Segundo Veras (2006, p. 35), “a IGPM direcionava o ensino das
corporações, lançando livros que eram incorporados ao conteúdo destinado à formação dos policiais, do
soldado ao oficial”. O mais famoso desses livros foi o Manual Básico de Policiamento Ostensivo (MBPO),
utilizado tanto na formação de praças como de oficiais. No Ceará, especialmente na antiga academia de
oficiais, na qual o autor do artigo foi formado, esse manual recebeu a simpática alcunha de “Amarelinho”7.
7 Veras (2006) afirma que o MBPO ou “Amarelinho” era referência tanto na formação de oficiais quanto de praças, e era utilizado em todas
as polícias militares do Brasil.
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desafio para as novas academias integradas de segurança pública
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Entretanto, para além das publicações, não se tem conhecimento de uma ação coordenada, no sentido de
formular diretrizes curriculares sólidas para os cursos de formação policial, ao longo do tempo. Desta forma,
abriu-se uma lacuna que foi preenchida, pelo menos no que tange ao currículo formal, à Secretaria Nacional de
Segurança Pública (Senasp), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública do Governo Federal8.
Foi a Senasp que, durante pouco mais de uma década, desenvolveu a Matriz Curricular Nacional (MCN) para
Ações Formativas dos Profissionais da Área da Segurança Pública, um instrumento apresentado em 2003, que
passou por atualizações nos anos de 2005, 2009 e 2014, sendo esta a sua versão atual (BRASIL, 2014).
A MCN é, atualmente, o “documento principal para a composição dos novos currículos nos cursos
policiais militares”, conforme França (2018, p. 96). Para Basílio (2007, p. 62), a Matriz “possui uma grade
curricular composta por disciplinas inerentes à atividade policial em uma sociedade democrática”. Pode-
se dizer, então, que a Senasp, por meio da MCN, ocupou um espaço que seria originalmente destinado
à IGPM, no que tange aos militares estaduais, em relação à elaboração de diretrizes para a formação e,
adicionalmente, no esforço de adaptação das polícias ao cenário de um país que realiza esforços, até hoje,
para consolidar a sua democratização.
Embora tenha tomado a vanguarda na elaboração de diretrizes para a educação em segurança pública,
a Senasp não se estabeleceu como o órgão responsável pela avaliação dos cursos de formação dos
profissionais dessa área. Tal fato pode ter ocorrido, pelo menos no que tange aos policiais e bombeiros
militares, por conta da reserva dessa atribuição, feita por lei, à IGPM, como já foi explicado.
Já no ano de 2020, foi criada, por meio do Decreto Nº 10.379, de 28 de maio de 2020, na estrutura do
Ministério da Justiça (MJ) do Governo Federal, a Secretaria de Gestão e Ensino de Segurança Pública
(Segen). O novo órgão foi resultado, na prática, de uma divisão de funções na Senasp. Entre as competências
da Segen, entretanto, não figura a de avaliação do ensino em segurança pública, como se vê:
Na falta das avaliações educacionais feitas por instituições externas aos órgãos ministrantes da formação
inicial de policiais militares com a consequente transparência e o controle social que poderiam trazer,
foram propostas ou mesmo implantadas algumas soluções. Tavares dos Santos e outros (FBSP, 2013), no
documento chamado Mapeamento dos modelos de ensino policial e de segurança pública no Brasil, elaborado
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em parceria com a própria Senasp, fazem uma série de
recomendações relacionadas à avaliação e à padronização de cursos, entre as quais se destacam as seguintes:
8 Criada pelo Decreto Nº 2.315, de 4 de setembro de 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), a Senasp tinha, entre várias
outras funções, as de apoiar a modernização do aparelho policial do País e de estimular a capacitação dos profissionais da área de segurança pública.
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Alguns estados, especialmente das regiões Norte e Nordeste, adotaram esse modelo, enquanto os demais
permanecem com suas tradicionais instituições de ensino, separadas e administradas por cada uma das
corporações9. Comparando-se tais instituições, nota-se uma série de diferenças entre elas, como o fato de
algumas conservarem suas academias antigas, apenas reunindo-as sob a gestão de uma instância superior.
Não é escopo deste trabalho detalhar as diferenças entre todas as academias integradas. Entretanto,
apenas para marcar a diferença, utilizar-se-á dois casos. O primeiro é o do Instituto de Ensino de Segurança
do Pará (IESP-PA). Ele é uma “unidade de ensino com gestão própria, autonomia didática, científica e
disciplinar” (JANUÁRIO; SOUZA, 2018, p. 39), sendo um órgão vinculado à Secretaria de Segurança Pública
e Defesa Social do Pará (SEGUP). Embora possua um Diretor, o IESP-PA é dirigido por um Conselho Superior
(CONSUP), o qual é “deliberativo, responsável pela aprovação das ações formativas e administrativas do
Instituto” (JANUÁRIO; SOUZA, 2018, p. 50). O IESP-PA é organizado a partir das Unidades Acadêmicas, que
são justamente as academias ou escolas de formação existentes no Sistema Estadual de Segurança Pública
e Defesa Social do Pará. Assim, é como se o IESP funcionasse como uma universidade e as academias
fossem faculdades por ele coordenadas.
Já a Academia Estadual de Segurança Pública do estado do Ceará (AESP) possui algumas características
que a diferenciam do Instituto paraense. Ela é a instituição de ensino de segurança pública criada por meio
9 Sales (2016), em seu trabalho, contabilizou 92 instituições de ensino de segurança pública no país, sendo que somente 8,7% utilizavam o
modelo de ensino integrado.
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da Lei Nº 14.629, de 26 de fevereiro de 2010 (CEARÁ, 2010), que também trouxe a previsão da desativação
e extinção de todas as outras unidades de ensino e instrução dos órgãos do sistema de segurança pública
do estado. Em atendimento ao previsto na lei, foi publicado, em seguida, o Decreto Nº 30.188, de 14 de
maio de 2010, por meio do qual foram extintas as seguintes unidades de ensino de segurança pública
do Ceará: Academia de Polícia Civil Delegado Wanderley Girão Maia, Academia de Polícia Militar General
Edgard Facó (APMGEF), Academia de Bombeiros Militar (ABM) e Centro de Formação e Aperfeiçoamento
de Praças da Polícia Militar (CFAP), além da Diretoria de Ensino da PMCE e seu Conselho de Ensino.
Embora já se observe a criação de academias integradas na década de 1990, o surgimento das Academias
Integradas pode ser compreendido como um fenômeno que se inicia com o desejo, de formuladores
de políticas públicas e intelectuais, de integração das polícias estaduais a partir da redemocratização
do Brasil. Esse tema aparece já no plano do governo de Fernando Collor, em 1991 (SPANIOL; MORAES
JR.; RODRIGUES, 2020). No Plano Nacional de Segurança Pública, lançado no ano 2000 no período
da presidência de Fernando Henrique Cardoso, aparece, ainda que de forma tímida, a previsão de
“Estimular a melhor integração entre as polícias civil e militar mediante harmonização das respectivas
bases territoriais, sistemas de comunicação e informação, treinamento básico e planejamento comum
descentralizado” (BRASIL, 2000). Finalmente, no ano de 2003, foi lançado o Projeto Segurança Pública
para o Brasil, já sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Neste, o tema da integração da
formação aparece expressamente em forma de recomendação, sob o título “unificação progressiva das
academias e escolas de formação”:
A unificação progressiva das academias e escolas de formação não se limita à integração dos currículos. É
preciso que as polícias civis e militares, da base operacional aos setores intermediários e superiores, sejam
formadas em uma única academia ou escola descentralizada, fundada nos preceitos da legalidade democrática
e do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. (BRASIL, 2003).
A integração das academias foi ainda apresentada como uma das 20 Proposições para a Reforma do
Ensino Policial no Brasil, presentes no documento produzido pelo FBSP, no ano de 2013. Tal proposição
trazia o seguinte teor: “Integrar todas as escolas de polícia (Polícia Civil, Militar, Serviços Penitenciários
e Perícias) em Centros de Educação em Segurança Cidadã, em um período máximo de dois anos” (FBSP,
2013, p. 60). Algumas dessas academias, inclusive, passaram a formar os futuros policiais militares na
condição de “candidatos”, ou seja, de civis ainda não incluídos na corporação. É o caso, por exemplo, dos
estados do Ceará e do Maranhão, nos quais o curso de formação passou a ser parte do concurso.
O processo de criação de academias integradas, entretanto, parece ter sido praticamente paralisado no
ano de 2010, sendo a AESP a oitava e última instituição conforme tal modelo. No ano de 2016, havia 8
academias integradas no país, conforme Quadro 1, a seguir.
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Avaliação de cursos de formação de policiais militares: um velho
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QUADRO 1
Academias Integradas de Segurança Pública no Brasil, Quadro 1 de 2016
até o ano
Os argumentos que norteiam a criação desse novo modelo de academia parecem ser basicamente dois:
economia e qualidade. O primeiro diz respeito ao fato de que, nos estados em que vigora o modelo
tradicional há, geralmente, em torno de 5 (cinco) escolas de formação: o centro de formação de praças
e a academia de formação de oficiais da polícia militar; o centro de formação de praças e a academia
de formação de oficiais do corpo de bombeiros militar e a academia da polícia civil. O número de
estabelecimentos de ensino pode variar, mas o argumento é de que seria menos custoso para o estado
manter um único espaço físico, que seria utilizado por todas as instituições durante suas formações. O
segundo argumento parece ter um peso maior na decisão de criar uma academia integrada. Veja-se, por
exemplo, o depoimento do então secretário de segurança do estado do Ceará, à época em que a AESP
estava em construção:
Tínhamos quatro academias, uma da Polícia Civil, duas da Polícia Militar e uma do Corpo de Bombeiros.
As quatro, somando-se, não dava uma. Todas muito precárias, em termos de estrutura, equipamento,
professores etc. Então, a ideia do governo foi montar um centro de excelência, uma academia única, que está
sendo construída. Essa academia já terá uma capacidade maior, para formar, por exemplo, de uma vez só,
1.200 homens. (ALMEIDA, 2015, p. 158).
Em que pese a importante diferença que deve ser feita entre qualidade na formação e quantidade de
alunos, o que se nota na fala do ex-secretário é que havia a preocupação em transformar a nascente
academia integrada em um lugar de excelência na educação dos profissionais de segurança pública. Hoje,
10 anos após a sua criação, a avaliação educacional pode ajudar a comprovar se de fato isso tem ocorrido.
O mesmo vale para todas as outras instituições de ensino policial existentes no país.
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Entretanto, esse novo modelo de academia acrescenta um novo elemento ao já complexo problema
de avaliar os cursos de formação dos policiais militares. As academias integradas, que abrigam civis e
militares como discentes em suas respectivas formações iniciais, são instituições civis ou militares? A
resposta, embora nebulosa, parece ser a primeira opção, especialmente nos casos das academias em que
os alunos são ainda “candidatos”.
Diante das situações apresentadas, nota-se que seria preciso, em primeiro lugar, uma definição na legislação
nacional acerca da responsabilidade de avaliar os cursos de formação de policiais militares. É necessário
que algum órgão nacional realize essas avaliações ou, pelo menos, estabeleça parâmetros e indicadores
que possibilitem aferir a qualidade dos cursos, bem como permitam o aprendizado institucional a partir
de exemplos dos estados da Federação que se destaquem na referida avaliação, sempre respeitando as
peculiaridades e identidades regionais.
Enquanto isso não ocorre, algumas soluções possíveis, embora não definitivas, são vislumbradas. Uma
delas é o estabelecimento de convênios ou acordos de cooperação com universidades públicas ou
privadas, para que possam realizar essa avaliação. Tal possibilidade, embora possa ser interessante por
contar com a expertise e a experiência de profissionais e pesquisadores da educação, pode não ser a
melhor opção, tanto pela questão da autonomia das instituições de ensino de segurança pública como
também por conta das peculiaridades do ensino policial militar, em parte desconhecido da comunidade
universitária. Ao mesmo tempo, proporciona uma oportunidade de convivência entre diferentes atores e
uma contribuição da universidade para a garantia de um serviço de policiamento melhor.
Outra opção é a autoavaliação. Além de possibilitar a melhoria dos processos pedagógicos dos cursos,
proporcionando aumento da qualidade, ela é também uma importante ferramenta de gestão e
transparência. Ela permite demonstrar ao cidadão que seus tributos têm sido bem administrados naquele
órgão, e que essa é uma preocupação da própria instituição, sendo mais um passo no processo contínuo
de democratização da sociedade brasileira, por meio da melhoria dos serviços públicos. Boanafina (2009),
que apresenta uma proposta de autoavaliação de cursos, explica:
Um processo de avaliação (no caso, autoavaliação) representa, também, uma forma de prestação de contas
à sociedade (accountability). Considerando que na maioria dos programas governamentais, determinadas
atividades visíveis à população, embora eficientes no uso dos recursos, têm deixado de ser eficazes no alcance
dos objetivos. (BOANAFINA, 2009, p. 12).
No estado do Pará, o IESP-PA, que, como foi dito, pode ser considerado uma academia integrada, instaurou,
no ano de 2017, uma Comissão Permanente de Avaliação (CPA), a qual tem por objetivo:
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O SINAES, ao qual se refere a Portaria do IESP-PA, é o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior.
Instituído por meio da Lei Nº 10.861, de 14 de abril de 2004, tem por objetivo “assegurar processo nacional
de avaliação das instituições de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico
de seus estudantes” (BRASIL, 2004), sendo composto por três partes fundamentais: a avaliação das
instituições, dos cursos e dos estudantes, possuindo uma série de instrumentos avaliativos para isso. Vale
a pena, então, destacar, as dimensões institucionais que, obrigatoriamente, devem estar presentes nesse
tipo de avaliação, segundo a lei que institui o Sistema citado.
Ao se referir a tal diploma legal, o IESP-PA, talvez por ser legalmente reconhecido como uma Instituição de
Ensino Superior (IES), utiliza um instrumento civil de avaliação, equiparando-se, neste quesito, às demais
faculdades, aos centros de ensino universitário e às universidades do país. Seria, afinal, esse o caminho a
ser seguido pelas academias integradas? Só o tempo e os caminhos da política dirão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho, buscou-se apresentar os desafios a serem enfrentados para que exista, em
termos efetivos, a prática da avaliação educacional relacionada aos cursos de formação inicial de
policiais militares. Tais desafios, que já eram, de certa forma, velhos, pois que dependentes de arranjos
institucionais criados por leis de períodos anteriores à Constituição Federal de 1988, especialmente do
período da ditadura militar.
Tais desafios são renovados e recebem um elemento complicador a partir do advento das novas academias
integradas que surgem a partir da década de 1990. Tais academias, embora com características próprias
em cada um dos estados que implantaram tal modelo, recebem integrantes das diversas instituições de
segurança pública para realizarem seus cursos de formação, inclusive policiais militares. Em algumas delas,
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inclusive, o curso de formação inicial para ingresso na corporação policial militar é ainda fase do concurso,
e o seu discente é apenas “candidato”, ainda não incluído nos quadros da instituição10.
Todos esses fatores impõem novas reflexões, na tentativa de resolver um velho problema que é o de
aferir a qualidade da educação profissional oferecida aos futuros policiais militares. Dessa boa formação,
intelectual e moral, depende o seu bom desempenho nas ruas. Além de avaliar, é necessário dar
publicidade e transparência aos resultados dessa avaliação, sendo tal instrumento um importante meio
para a democratização da segurança pública brasileira.
Por fim, apresentou-se algumas soluções para que os cursos de formação de policiais militares possam
ter parâmetros de excelência e, enfim, colaborarem para uma sociedade mais segura e democrática. A
primeira possibilidade é a mudança na legislação nacional, a fim de viabilizar a avaliação desses cursos por
um órgão nacional ou, pelo menos, que sejam criados parâmetros e indicadores que permitam nortear
essa avaliação pelos estados. Outra opção foi a realização de convênios ou acordos de cooperação técnica
com universidades públicas e privadas, para fins de avaliação externa. Por fim, apontou-se a autoavaliação
como caminho possível e efetivo para aferir a qualidade dos cursos ao mesmo tempo em que garante
transparência às instituições de ensino, contribuindo para a democratização da segurança pública.
Espera-se, ao final deste trabalho, que ele tenha contribuído de alguma forma para levantar questões
importantes e novas perspectivas sobre o tema da avaliação educacional na formação de policiais militares,
cada vez mais necessária diante das exigências da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASÍLIO, M. P. O desafio da formação do policial militar do Estado do Rio de Janeiro: Utopia ou Realidade
Possível?. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) – Escola Brasileira de Administração Pública e
de Empresas, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.
br/dspace/bitstream/handle/10438/3463/ACFD95.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 13 fev. 2020.
BAYLEY, D. H. Padrões de policiamento: uma análise internacional comparativa. São Paulo: Edusp, 2006.
10 No caso do estado do Ceará, quando este artigo já se encontrava em fase de conclusão, foi aprovada a Lei Nº 17.478, de 17 de maio de 2021,
que altera o modelo de formação até então vigente. Com a mudança, o curso de formação para ingresso nas carreiras de oficiais e de praças voltou
a ocorrer com o aluno já incluído nos quadros da corporação policial militar, sendo chamado de cadete, no caso dos oficiais, e de aluno-soldado,
no caso dos praças (CEARÁ, 2021).
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ARTIGO
Avaliação de cursos de formação de policiais militares: um velho
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Anderson Duarte Barboza
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ARTIGO
Contribuição de cada autor: Ambos os autores foram responsáveis pela construção dos dados etnográficos, bem como
pela mobilização de ferramental teórico para sua análise. A escrita foi compartilhada, bem como os processos de revisão.
RESUMO
Com base em extenso trabalho de campo, o presente artigo aponta algumas implicações estruturais de
representações e práticas organizadas em torno da implementação da política de formação profissional
esboçada pela extinta Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG) entre os
anos de 2008 e 2017, período conhecido pela chamada política de pacificação. Partindo dos objetivos
da política, conforme professados por seus gestores e idealizadores, o texto explora a forma como o
discurso da pacificação era consumido nos espaços ditos “escolarizados” de socialização da PMERJ no
período em que esta pesquisa foi realizada. A etnografia revelou como a desautorização de discursos
identificados com um funcionamento “ideal” das instituições realizava uma tensão estrutural de fundo,
fazendo com que representações acerca de noções como mudança e continuidade atravessassem o
cotidiano do referido projeto de formação profissional, que era também um projeto de consolidação
de uma “nova polícia”. Característica amplamente reconhecida em diversos outros trabalhos sobre a
formação policial militar, essa tensão encontrava sua expressão mais acabada na frase “na teoria, a
prática, é outra coisa”, repetida à exaustão ao longo de todo o trabalho de campo realizado. Por fim,
o artigo explora a oposição contínua entre mudança e continuidade, nova e velha polícia, entre outros
binarismos que embalaram a política à época.
Palavras-chaves: Polícia Militar. Formação. Violência. Conflito. Divisão Estrutural. Pacificação.
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“Na teoria, a prática é outra coisa!” – socialização
“escolar”, estrutura bipartida e conflitos na Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)
Lenin dos Santos Pires e Elizabete Ribeiro Albernaz
ABSTRACT
“THEORY IS NOT PRACTICE!” – SCHOOLED SPACES, BINARIES APROACHS AND CONFLICT IN THE
MILITARY POLICE
The article addresses the professional training policy outlined by the Rio de Janeiro State Secretary for Public
Safety, among 2008 and 2017. This period was known for the “pacification policy”. Based on that public
politic, the text explores developments with the sectors responsible for police education. Material conditions
are explored to situate the way in which the “speech of pacification” was consumed in the schooled spaces
for socialization of the PMERJ. The ethnography reveals the existence of a fundamental structural tension,
making representations about notions such as change and continuity across the referred training project.
The opposition between theory and practice was reworked in the continuous tension between “change” and
“continuity”; new and old police, among other binaries that packed the Pacification Policy.
Key words: Military Police. Educanting Process. Violence. Conflict. Structural Division. Pacification Process.
INTRODUÇÃO
Com o sol à pino, faziam 42 graus no abafado dia 12 de novembro de 2013. Por volta das 15h, o recruta1
Paulo Aparecido desfaleceu e não mais recobrou os sentidos. Exposto ao rigor físico da chamada
semana zero2 do treinamento do Curso de Formação de Soldados (CFSD), ele não resistiu à prova. Aquela
era apenas a etapa inicial para o ingresso no círculo das Praças3 da Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro (PMERJ). Naquela mesma tarde ensolarada de terça-feira outros 33 alunos, segundo o comando
do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), à época, teriam precisado de algum tipo
de atendimento médico devido às condições climáticas adversas em que realizavam o treinamento.
Dezoito, dentre eles, teriam apresentado também queimaduras nas nádegas e nas mãos. Os demais
registraram sintomas que sugeriram insolação, dores de cabeça e pressão alta. Paulo Aparecido viria
a falecer uma semana depois, no Hospital Central da Polícia Militar (HCPM). A causa mortis divulgada:
“derrame causado por uma série de fatores que incluem a temperatura, a prática de exercício físico
e uma possível propensão genética”4, segundo o Comandante do HCPM, à época, Coronel Armando
Portocarrero. Naquele dia fatídico, a turma de Paulo Aparecido estava sob a supervisão direta de um
grupo de quatro jovens oficiais, em sua maioria tenentes, todos pertencentes ao Corpo de Alunos (CA)
do CFAP. Paulo Aparecido teria morrido durante uma das contumazes sessões da chamada “suga”,
instituto o qual analisaremos mais à frente.
1 Utilizaremos aspas quando estivermos reproduzindo uma fala ou escrita literal. Já o uso do itálico buscará dar tratamento a categorias
específicas ou termos nativos que merecem do leitor atenção para o significado dos mesmos através de conteúdos por nós veiculados ao abordar
os problemas em si, no corpo do texto, ou através de notas de rodapé.
2 A semana de adaptação ou semana zero é o principal marco de “ruptura com a vida civil” do aluno, seja ele praça ou oficial. Foi o que
depreendemos do material empírico construído a partir de trabalho de campo, em pesquisa financiada pela FAPERJ entre 2013 e 2015, como
apresentaremos a seguir. Nos pareceu ser uma espécie de “rito de separação”, nos termos de Victor Turner (1974), a simbologia mobilizada no
contexto da semana zero busca despir os neófitos, futuros policiais militares, dos signos e significados de sua vida pregressa, de suas origens
sociais, para que possam abraçar sua nova condição identitária.
3 O chamado ciclo das praças corresponde às graduações de soldado, cabo, sargento e subtenente.
4 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/coracao-de-recruta-da-pm-para-depois-de-dez-dias-de-internacao-10852509. Acesso em: 31
maio 2020.
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“Na teoria, a prática é outra coisa!” – socialização
“escolar”, estrutura bipartida e conflitos na Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ)
Lenin dos Santos Pires e Elizabete Ribeiro Albernaz
O caso suscitou questionamentos sobre as razões para a aplicação de um tipo de treinamento tão rigoroso,
cruel e irascível àqueles que passariam a integrar o projeto de uma “nova polícia”, centrada na aproximação
com a sociedade e na prevenção à violência, a chamada “Política de Pacificação” (2008-2018)5. À época,
estávamos diretamente envolvidos com a coordenação de pesquisa empírica sobre o processo de formação
de policiais que integrariam as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), e que envolvia a implementação de
um novo currículo para as Escolas de Formação, tanto de Praças quanto de Oficiais. O referido projeto de
formação foi chamado pela Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG) de “Um novo
tempo para a segurança pública” e pretendia promover a “profissionalização das atividades de ensino”,
bem como “uma transformação cultural do fazer policial”, capitaneada pela Doutrina de Polícia de
Proximidade6. Relembramos aqui a trágica morte de Paulo Aparecido para retomar uma série de questões
que nos colocávamos por ocasião da pesquisa. Quais os limites e as possibilidades de projetos que propõem
transformar as práticas policiais ditas tradicionais (principalmente no que se refere ao uso da força) a partir da
formação e do treinamento, com foco nas formas “escolarizadas” de produção e reprodução do saber-fazer
policial? Como o discurso de “reforma” era consumido no caminho entre as instâncias político-estratégicas
responsáveis pela elaboração de uma política pública, e aquelas incumbidas de sua efetiva implementação?
Como estas mudanças são sentidas ou recepcionadas pela sociedade?
No presente artigo buscamos refletir sobre estas questões com base em dados construídos a partir de
estudo empírico realizado entre os anos de 2013 e 20157. Para o desenvolvimento da pesquisa, privilegiou-
se a mobilização de técnicas qualitativas, sobressaindo a observação direta dos ambientes estudados e a
realização de entrevistas com atores relevantes. Foram realizadas visitas in loco ao Centro de Formação
e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e a Academia de Polícia Militar D. João VI (APMDJVI), as unidades
operacionais (batalhões e UPP), bem como o acompanhamento de reuniões de Conselhos Comunitários
de Segurança (CCS) situados na capital e na região metropolitana do Rio de Janeiro. Nestas oportunidades,
acompanhamos por horas a fio as dinâmicas afetas a tais espaços e, em ocasiões pontuais, ocupando
a posição de professores. Para além de observações diretas, foram realizadas conversas informais com
“recrutas” (aluno-Soldado PM), e entrevistas com Comandantes e profissionais diretamente responsáveis
pela orientação e instrução de futuros Praças e Oficiais8.
Buscaremos contribuir com uma compreensão sobre as potencialidades e os limites de tais processos
formativos a partir da análise dos mesmos. Estaremos dialogando com os pontos de vista consolidados
na literatura especializada acerca da existência de uma “cultura” institucional ou de “éticas” policiais,
5 O Programa foi instituído pelo Decreto Nº 42.787 de 06/01/2011, exarado pelo governo do estado do Rio de Janeiro, e dispõe sobre a
implantação, estrutura, atuação e funcionamento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Estado do Rio de Janeiro e dá outras
providências. Alterado, posteriormente, pelos Decreto Nº 44.177/2013 e, finalmente pelo Decreto Nº 45.186/2015. Posteriormente, a Lei
Estadual Nº 7.799, de 04/12/2017, de iniciativa do Poder Executivo, autorizou que batalhões incorporassem as UPPs, o que é interpretado como
a pá de cal no programa.
6 Publicada na Instrução Normativa N° 22, através do aditamento ao Boletim Ostensivo da Corporação N° 027, de 12 de fevereiro de 2015.
7 O Projeto “Saber Policial e Segurança Pública: formas escolarizadas e não escolarizadas de produção, reprodução e transmissão do
saber policial” registrou seu desenvolvimento entre 22/6/2013 e 21/6/2015. Teve por objetivo, durante seu desenvolvimento, compreender,
privilegiando a utilização do método etnográfico de pesquisa, quais processos de produção, reprodução e transmissão dos saberes orientam a ação
e o discurso policial em diversos âmbitos de atuação. Buscou-se perceber como se podem identificar e estabelecer possíveis diálogos e trânsitos
entre a(s) “ética(s) escolarizada(s)” transmitida(s) nas escolas de formação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, perfazendo um código
institucional para determinados universos profissionais, e a(s) “ética(s) não escolarizada(s)”, compartilhada(s) e transferida(s) no dia a dia do fazer
policial “operacional”, prático ou corporativo (KANT DE LIMA, 1995; OBERLING, 2011). Ambas “éticas” entendidas como pautadas em regras e
valores institucionalizados e formalmente estabelecidos, embora nem sempre oficialmente instituídas. Durante as variadas etapas do projeto, a
construção de dados foi objeto de discussões patrocinadas pelos pesquisadores, em seminários de pesquisas mediados por leituras de textos que
contribuíssem para a captação de problemáticas surgidas nas interações em campo envolvendo pesquisadores da universidade e membros da
Secretaria de Estado de Segurança Pública.
8 Entre as entrevistas formais, conduzidas mediante roteiros previamente estabelecidos, a equipe de pesquisa ouviu oficiais coronéis (2, sendo
1 aposentado), tenentes-coronéis (3), majores (2), capitães (2) e, entre as praças, sargentos (4), cabos (2) soldados (5) e um tenente recém saído
do sub-oficialato.
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Lenin dos Santos Pires e Elizabete Ribeiro Albernaz
argumentando para uma dimensão fenomenológica dos processos de constituição dessas identidades
profissionais, que podem combinar predisposições prévias dos indivíduos com formas institucionalizadas
de pensar e agir a partir da socialização dos agentes pela sensibilização sensorial e através de intervenções
sobre seus corpos. Para dar conta deste objetivo, direcionamos nossa análise especificamente para a
política de formação desenhada pela SESEG, expondo os termos pelos quais eram definidos seus objetivos
e desdobramentos junto aos setores responsáveis pela formação policial, problematizando a forma como
o discurso da pacificação era consumido nos espaços escolarizados de socialização da PMERJ na época
da pesquisa. Finalmente, gostaríamos de argumentar que esse estado de coisas, uma vez exposto, só
pode ser devidamente compreendido se remetido à existência de uma tensão estrutural de fundo, que
se abre em uma série de inversões sociologicamente relevantes. Buscamos perseguir estas “inversões”
para refletir não apenas sobre as lutas internas ao projeto de pacificação, mas sobre o papel da formação
policial na consolidação de processos de reforma das organizações, principalmente no que se refere aos
padrões estabelecidos de uso da força.
É muito interessante perceber como, depois de mais de três décadas de governos democráticos, os
desafios para a área de segurança pública persistem em torno das tensões entre as lógicas corporativas
informais e os desígnios normativos institucionais. A nosso juízo, tais tensões envolvem outras
dimensões, de cortes racial, de gênero e de classe, cuja abordagem no presente texto, entretanto, não
será enfatizada. Para a oportunidade, nos interessa chamar a atenção para aspectos mais cotidianos da
socialização corporativa, buscando evidenciar aspectos que favorecem uma inscrição nos sujeitos das
dimensões irrefletidas destas identidades.
Entre os anos de 2012 e 2014 – período que abrange a realização de parte desta pesquisa e a morte
de Paulo Aparecido –, a população do Rio de Janeiro testemunhou o auge da expansão do projeto das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), com a inauguração de várias das 38 UPPs que funcionaram até
20189, quando se iniciou o desmonte do projeto durante a chamada intervenção federal na segurança
pública do Rio de Janeiro10. O recém elaborado Planejamento Estratégico da PMERJ previa a propagação,
para toda a corporação, da chamada Doutrina de Polícia de Proximidade, filosofia criada no âmbito
da Política de Pacificação. Como vimos, esperava-se que a proximidade norteasse todas as atividades
finalísticas da PMERJ, promovendo a sua propalada “transformação cultural”. Apostava-se na ideia de
“prevenção do delito” e na difusão de técnicas de “mediação de conflitos” enquanto estratégias para
“o restabelecimento da legitimidade da polícia militar junto a população”, como afirmavam os gestores
policiais entrevistados. A adoção daquela perspectiva implicava uma verdadeira inversão no foco de
atuação da corporação até então, em que “a prisão de marginais da lei [tornava-se] mera consequência
de uma bem articulada rede solidária de proteção baseada na aproximação entre polícia e sociedade”11.
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“escolar”, estrutura bipartida e conflitos na Polícia
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Nesse período, o Rio de Janeiro testemunhava também os menores índices de violência observados
nos últimos 10 anos, com uma acentuada queda na chamada “letalidade violenta”12 – em especial, dos
‘homicídios decorrentes de intervenção policial’13 – e dos roubos em geral, segundo o Instituto de
Segurança Pública (ISP). Uma pergunta que passamos a nos fazer naquela época era: como, nesse cenário
em que se observava a queda nos índices de criminalidade e o foco institucional na proximidade, se poderia
justificar a rusticidade do treinamento que levou à morte de Paulo Aparecido? Morte esta ocorrida durante
a formação dos policiais que se tornariam os principais promotores da propalada “nova forma de fazer
polícia”, trazida pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e pela Doutrina de Polícia de Proximidade.
Cabe destacar, entretanto, a evidente tensão entre os princípios que idealmente informavam a Política
de Pacificação e sua dimensão performativa. Uma tensão entre o discurso emanado pela esfera político-
estratégica, positivado nos currículos de formação e diretrizes institucionais, e aquilo que era praticado na
ponta, pelos atores em situações concretas, seja na relação entre pares, seja na relação com a população.
Essas questões, em certa medida, já haviam sido colocadas em perspectiva por estudos anteriores sobre
o tema das reformas policiais, no Brasil e no exterior; e a proposta de uma nova polícia, a partir das
chamadas UPPs, aguçava a discussão em torno dele. Quem é o/a policial que é entregue pelo processo
formativo experimentado nas escolas, a partir de saberes ditos escolarizados? Como esse ideal é
consumido pelas pessoas em situações concretas no ambiente organizacional? Quais são as possibilidades
reais de que esse ideal, produzido nas esferas da gestão e da política, possa chegar à “ponta da linha”,
modificando comportamentos concretos na relação entre pares e com a população? Mas que polícia é
essa que se esconde no plano das práticas, que se mantém blindada ao controle e à previsibilidade? Por
que o discurso da “política pública” não consegue alcançá-la? Estes questionamentos não são novos no
tocante às abordagens sociológicas sobre a chamada área da Segurança Pública.
Ao longo de pelo menos quatro décadas, as práticas policiais têm sido colocadas sob análise, indagando-
se sobre as condições de possibilidades para suas reformas, buscando sua modernização. Barreira (2004),
por exemplo, analisou as políticas de segurança pública implementadas no estado do Ceará, no período
entre 1987 e 2002, chamando a atenção para as mudanças, adaptações e readaptações dos aparatos
policiais às conjunturas políticas locais e nacionais. Focalizando o período posterior à ditadura militar,
particular atenção foi dada às alterações na estrutura administrativa da área de segurança, buscando
aumentar a credibilidade dos aparelhos policiais e, com isso, a capacidade discursiva do governo
em oferecer maior segurança para a população. O estudo das transformações internas e externas da
política de segurança pública ocupa uma dimensão essencial na abordagem do sociólogo, sublinhando a
dificuldade da institucionalização das práticas democráticas na dimensão da segurança pública. Barreira
analisa um contexto no qual se travou uma luta pela hegemonia do Estado, no ocaso dos antigos coronéis
mandatários, dando lugar ao chamado “governo dos empresários”. Nele teve lugar uma disputa simbólica
entre o “novo” e o “antigo”, o “moderno” e o “atrasado”, o “racional” e o “irracional”. Seu trabalho é
importante de ser resgatado, em primeiro lugar, por conta destas polarizações.
Outro elemento importante é que no período analisado, a exemplo do observado no Rio de Janeiro no
governo de Sérgio Cabral, se estabelece um contexto de crise de confiança da população diante dos
12 Categoria/indicador que inclui homicídios, latrocínios, homicídios decorrentes de intervenção policial e lesão corporal seguida de morte
(Fonte: ISP).
13 A morte decorrente de intervenção policial é um termo criado para substituir a antiga denominação oficial “ocorrência de resistência
seguida de morte ou auto de resistência”, que ficou popularmente conhecida como “Auto de Resistência”. Como sua predecessora, faz referência
à ocorrência na qual o policial, ao atuar para cessar uma agressão considerada injusta, leva o infrator a óbito. Ver: https://tiagopereira1015.
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“escolar”, estrutura bipartida e conflitos na Polícia
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casos de violência e corrupção. Diferentemente, porém, do observado com as chamadas UPPs, o governo
cearense buscou a parceria e a participação da comunidade local com a criação de conselhos comunitários
de defesa social (CCDS). Estes conselhos seriam o elo de ligação entre a comunidade e os órgãos de
segurança, tendo como principal objetivo “participar ativamente na solução dos problemas de segurança
do bairro, apoiando e auxiliando a SSPDC”. Contudo, o que se percebe, segundo Barreira, é que as mais
variadas demandas são recepcionadas pelas polícias, bem como por parte da população, como meras
distrações diante do que realmente interessa, ou seja, o “combate à criminalidade”, dificultando uma
mudança de paradigma em relação ao período anterior.
Em tais contextos, todo o corolário de discussões dos chamados “Direitos Humanos”, introduzido no
processo de redemocratização, perderia sua força inovadora diante das práticas tradicionais da polícia,
que permaneceria enquanto balizador, uma espécie de “currículo oculto”, conforme identificou Paixão
(1982) ao estudar o policiamento civil em Belo Horizonte. Paixão compreendeu que os policiais da linha de
frente se orientam por um estoque de conhecimento não formalizado institucionalmente, que comporia
sua cultura organizacional. Esse estoque de conhecimento seria formado por teorias sobre a origem e a
natureza dos criminosos, métodos próprios de investigação e por uma série de outros conhecimentos
aprendidos informalmente e que contrastam fortemente com os valores e comportamentos formalmente
prescritos pela organização. O antropólogo Roberto Kant, que estudou a polícia civil no Rio de Janeiro
mais ou menos no mesmo período, identificou tal dinâmica como pertencente a uma “ética policial”
(KANT DE LIMA, 1995), onde os instrumentos legais e os princípios de direitos humanos seriam encarados
como obstáculos à realização de um policiamento eficiente, mais ou menos como apontados em outros
trabalhos sócio-antropológicos, envolvendo outras forças de segurança (ADORNO, 1998; RATTON, 2007;
SAPORI; SOUZA, 2001; SAPORI, 2007).
Esta oposição estrutural original, entre mudança e continuidade, prática e teoria, se desdobra, como
afirmamos, em uma série de outras oposições: rua e administrativo, escola e batalhão, e assim por
diante. Binariedades que irão se alinhar em uma matriz complexa, combinando incessantemente suas
componentes. Assim, afirmar que “na prática, a teoria é outra coisa”, frase que figura no título do presente
artigo, significa negar legitimidade não só ao conteúdo do que é dito, mas também das próprias fontes
de produção do discurso, do lugar institucional identificado com o formal/escolarizado e seus emissores.
A aposta analítica que gostaríamos de desenvolver aqui, portanto, é que a oposição entre teoria e prática
policial se refere, em última instância, a um tipo de antagonismo de classe; um que perpassa toda a
estrutura organizacional da polícia militar: a divisão entre os círculos de oficiais e praças. Toda a estrutura
da organização policial reitera essa oposição. Dos refeitórios ao tipo e à qualidade das refeições, até a
formação de seus quadros, realizada em escolas separadas. Igualmente, se observados mais de perto,
esses contingentes humanos apresentam formações morais e disposições estéticas diversas, balizadas
por um contínuo regime de desconfianças recíprocas.
Aqui introduzimos uma breve digressão para chamar a atenção para os riscos de uma leitura enviesada
nas conjugações estruturais e binárias. Os estudos e as reflexões empreendidas por Roberto DaMatta
(1997) foram profícuas em sinalizar para os limites dessas estruturas bipartidas que caracterizariam a
sociedade brasileira. As distinções entre Indivíduo e Pessoa, bem como as oposições entre a “Casa e a Rua”
são contribuições importantes dessa forma de construir problemas e suscitar abordagens na sociologia
brasileira. Nossa leitura, porém, difere da conjugação empreendida por aquele autor. No contexto por
nós analisado, na maior parte do tempo, o oficial estaria moral e cognitivamente afeito ao espaço dos
batalhões (ou casa, enquanto “caserna”) e os praças, às ruas. Ora, neste arranjo o espaço reservado às
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relações internas seria o lugar da imposição da regra, de uma suposta impessoalidade. Sobretudo se
pensarmos na maneira como os oficiais administram a atividade e a carreira das praças, fundamentados
numa burocracia implacável, cuja autoridade da regra advém do Regimento Disciplinar. Diferentemente,
as ruas conformariam o lugar onde a regra, a lei, seria flexibilizada ao extremo; seja no que concerne
à relação dos agentes com a lei ordinária, seja com os ditames da corporação. A rua é lugar de fazer
“polícia de verdade”. No trato com a administração do uso da força, em nome do Estado, os agentes
experimentariam nesse espaço a discricionariedade própria daqueles que devem agir, não em nome
da lei, mas da ordem. Experimentando, assim, ampla liberdade na perpetração de abusos para com os
direitos de cidadania.
Um ponto que chamou nossa atenção durante a pesquisa – também apontado por outras pesquisas na
área de formação policial no Brasil (ver CARUSO; PATRÍCIO; PINTO, 2010) – foi o papel desempenhado
pelo Corpo de Alunos (CA). Uma de suas funções, segundo consta nos regulamentos da PMERJ, seria
introduzir os novos recrutas à hierarquia e à disciplina militares, princípios organizativos entendidos
como basilares da vida corporativa dos futuros policiais. Nesse sentido, os Oficiais e Praças que
fazem parte do CA, durante a semana zero, assumem um importante protagonismo na socialização
dos alunos. Nesse período, os recrutas são introduzidos nas artes da ordem unida, aprendem a prestar
continência, a reconhecer os postos e as graduações de seus superiores hierárquicos. Também lhes é
apresentado o Regulamento Disciplinar (RDPM), peça igualmente basilar na regulação das relações
hierárquicas na PMERJ, bem como os regulamentos que regem a escola de formação, suas rotinas
administrativas e pedagógicas.
Extraoficialmente, entretanto, o grupo de Oficiais e Praças do CA, durante a semana zero, é também o
principal responsável pela aplicação das chamadas sugas14. Justamente um dos “rituais” que utilizam a
violência como uma forma de produzir uma adesão identitária englobante por meio do suplício do corpo,
como uma forma de nele inscrever uma série de significados sociais – um pouco como as técnicas de
marcação corporal descritas por Pierre Clastres (2004) nas sociedades ameríndias. Estes rituais supliciantes
são conhecidos, no jargão policial, como sugas e são aplicados, segundo interlocutores, para produzir “a
rusticidade necessária à atividade policial militar”.
A morte de Paulo Aparecido, em meio a toda aquela agitação reformista, foi um banho de água fria. Seja
para a própria pesquisa da qual participávamos ativamente – que precisou ser interrompida no âmbito do
CEFAP, por um tempo –, seja para os gestores da SSEVP, diretamente implicados com a mudança cultural
da PMERJ via área de educação. Dentre outras coisas, a trágica morte do jovem recruta, ocorrida nas
dependências da escola de formação de Praças, expunha uma descontinuidade radical entre o discurso da
pretensa política pública, seus emissores, e as práticas adotadas por seus principais consumidores, fossem
estes os gestores das escolas, fossem os responsáveis diretos pelo trato com o alunado.
Essa “descontinuidade” era epitomizada pela frase “na prática a teoria é outra coisa”, um jargão
amplamente difundido na corporação policial militar. Esta foi repetida à exaustão pelos entrevistados e
14 A "suga" é uma categoria que designa a exposição dos recrutas a exercícios e atividades físicas extenuantes, muitas vezes ambientalizadas
em situações de insulto às condições existenciais dos atores. Sobre seu emprego no meio policial, pode-se ler Ramos (2017).
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durante todo o trabalho de campo que embasou esta pesquisa. A tensão entre mudança e continuidade
atravessava o projeto das UPPs como um todo. Essa tensão, quando observada a partir dos cenários
promovidos pela política de formação, encontrava sua expressão numa discursividade que se mostrou
persistente ao longo de todo nosso trabalho de campo. Como referimos, a velha oposição entre teoria e
prática se via reelaborada na tensão entre mudança e continuidade, entre uma nova e uma velha polícia,
que habitavam simultaneamente a Política de Pacificação.
Essa tensão, segundo o argumento que gostaríamos de desenvolver, se realiza num plano de expressão
simbólica que remete a uma oposição estrutural fundada sobre a estrutura bipartida da organização
policial: a chamada “dupla entrada”15. Nesse sentido, a oposição entre teoria e prática – em sua dimensão
sabotadora, que desqualifica e enfraquece o discurso da política – remete, em última instância, a um campo
de disputas institucionais que opõe Oficiais e Praças. Na última seção do presente artigo, exploraremos os
desdobramentos dessa oposição nos diversos âmbitos de socialização policial militar observados durante
a pesquisa. Atribuiremos especial destaque, entretanto, às consequências dessa tensão estrutural de
fundo, encarnada na imagem de uma estrutura fraturada, para as iniciativas de “reforma” focadas nos
espaços escolarizados de socialização policial.
Como mencionamos antes, as escolas de formação – principalmente o CFAP, onde a morte de Paulo
ocorreu – deveriam ser o locus da mudança cultural que viabilizaria a transição para uma polícia de
proximidade. Diversas medidas foram adotadas nesse sentido. Tanto no âmbito dos órgãos de ensino
e instrução da própria PMERJ, quanto por meio da Subsecretaria de Educação, Valorização e Prevenção
(SSEVP). A principal política pública na área de ensino e formação policial, para a gestão do Secretário José
Mariano Beltrame (2007-2016), foi a criação do chamado Banco de Talentos. A ideia central da política, nas
palavras de seus gestores na SESEG, era “profissionalizar o ensino e a instrução nas Polícias Civil e Militar”.
Essa propalada profissionalização envolvia, em termos gerais, a seleção por mérito e a remuneração dos
corpos docentes das unidades de ensino16 e das unidades especializadas17. Antes do Banco de Talentos,
as atividades de docência nas escolas eram organizadas com base em professores voluntários; em sua
maioria, policiais da ativa e da reserva.
Com a nova política, os currículos passaram a ser cadastrados por meio de uma ferramenta aberta,
disponível na internet18, incluindo candidatos civis e policiais. Além disso, a seleção passou a ser feita
por um sistema de pontuações que buscava ponderar a relação entre currículo acadêmico e técnico,
experiência profissional e as ementas das disciplinas. Ementas estas que, diga-se de passagem, não
existiam antes da implantação do Banco de Talentos, o que nos leva à segunda dimensão importante da
missão de profissionalização do ensino policial: as reformas curriculares e pedagógicas.
15 A chamada dupla entrada, como é conhecida, inaugura distintas e mensuráveis trajetórias institucionais para Oficiais e Praças na Polícia
Militar: uma vez ingressando como Soldado, chega-se, no máximo, ao posto de Major QOA (Quadro de Oficiais Administrativos), por meio de um
concorrido concurso interno; apenas para aqueles que ingressam direto como Tenentes, no meio da pirâmide hierárquica da corporação, é possível
chegar ao posto máximo de Coronel. A pirâmide hierárquica completa envolve, no ciclo das Praças, nesta ordem de progressão, Soldados, Cabos,
Sargentos e Subtenentes; no ciclo de Oficiais, Tenentes, Capitães, Majores, Tenente-coronéis e Coronéis.
16 Academia de Polícia Civil (ACADEPOL), CFAP, APM, Escola Superior de Policia Militar (ESPM), entre outras.
17 Batalhão de Operações Especiais (BOPE), Batalhão de Choque da PMERJ, dentre outras.
18 Disponível em: https://bancodetalentos.pmerj.rj.gov.br/. Acesso em. 21/12/2020.
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Para serem beneficiadas pelos recursos do Banco de Talentos, as escolas e unidades especializadas, por
meio de suas Divisões de Ensino, precisaram implementar uma série de medidas de gestão educacional:
construção de ementas e planos de aula das disciplinas, material didático, bancos de questões,
instrumentos de avaliação docente e discente, supervisão, dentre outras. Todo esse ferramental era
empregado em serviço da implementação de uma revisão curricular profunda. Essa revisão, segundo os
gestores da SESEG em entrevista por nós realizadas, tinha partido de uma ampla discussão envolvendo
o público interno e profissionais de fora das corporações, realizada com o intuito de “identificar os
conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao desempenho da atividade policial voltada a uma
polícia de proximidade”. Como a Pacificação era uma política que mobilizava principalmente efetivos da
Polícia Militar, o epicentro desse processo acabava sendo as Unidades de Ensino da PMERJ; em especial,
o CFAP, onde formam-se as Praças da corporação. Na entrada da escola, na época da pesquisa, tinha sido
instalada uma grande placa com os dizeres: “aqui formam-se os pacificadores”.
A despeito da afirmação dos gestores da área de educação de que a “proximidade” era um valor
curricular transversal, no caso da formação de Praças, os princípios da Pacificação eram repassados de
forma organizada em um módulo cursado em separado. No caso da formação de Oficiais, esse módulo
sequer existia; via-se incorporado nas discussões de policiamento comunitário. O módulo de “polícia de
proximidade” do CFSD era coordenado diretamente pelo setor de ensino e instrução de uma unidade
externa ao ambiente do CFAP à época, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP). Por conta disso,
na percepção do alunado do CFSD com quem conversamos, era como se a formação para a Pacificação
fosse um período de suspensão da normalidade, de descolamento em relação à realidade cotidiana das
escolas19. Por uma semana, as futuras Praças eram apresentadas a um “dever ser” que, segundo diziam,
contradizia abertamente aquilo que era praticado no CFAP. Mas de que forma isso se relacionava com as
medidas adotadas no âmbito do projeto do Banco de Talentos?
19 Escolas estas que, por sua vez, eram uma suspensão e uma antecipação da realidade vivida nas ruas, socializada pelos instrutores, nas
unidades operacionais, nos batalhões, da “verdadeira prática de polícia”.
20 Segundo Fromm (2010), a categoria guerreiro conota um defensor da guerra, alguém que não só é habilidoso, mas também sanguinário
e primitivo – ou “antigo e medieval” –, que luta por sua própria glória e deleite e até mesmo por um prazer visceral. Fromm faz alusão ao termo
“warrior ethos”, cunhado por Gray (1998) e é com este sentido que empregamos o termo, considerando a utilização do termo por parte de nossos
interlocutores.
21 Roberto Reiner afirma que a cultura policial, na democracia liberal, não significa meramente atitudes da polícia. Ela, como toda cultura, é um
complexo conjunto de valores, atitudes, símbolos, regras e práticas que resultam da reação do grupo, enquanto categoria profissional, em virtude
das pressões estruturais que os estimulam, cognitivamente (e corporalmente, acrescentamos nós, em virtude de nossa etnografia). No exercício
de suas faculdades e atribuições, adotam estratégias e iniciativas comuns à diversidade existente no âmbito da agência policial, bem como nos
grupos profissionais e sociais com os quais interagem. Modelada por diferentes padrões e legados históricos, a Polícia parece desenvolver suas
ações entre regras de engajamento constituídas a partir de distintas dimensões. As regras legais e de apresentação perfazem os valores, as
normas, as perspectivas e as orientações de ofício que direcionam sua conduta (REINER, 2000).
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Uma das estratégias adotadas – além de todo um trabalho de formação diferenciada e diferenciação
estética – foi a decisão de compor o efetivo das UPPs majoritariamente com policiais novos. Assim, com o
tempo, além de um problema de supervisão de graduado, a medida gerou questões de segurança, uma vez
que expunha jovens policiais a um ambiente complexo de atuação sem o devido suporte de policiais mais
experientes. Mas qual era o valor real dessa medida? Este elemento é assaz importante por duas razões.
Primeiro, por que ao retirar dos batalhões a atribuição de patrulhamento ostensivo em diferentes favelas,
se apostou num redimensionamento de pessoal das mesmas. Esse redimensionamento não aconteceu,
uma vez que 100% do efetivo formado no CFAP, tecnicamente, era direcionado para as UPPs, deixando
os batalhões tradicionais descobertos nesse sentido. A partir de um rotineiro processo de aposentadorias,
desligamentos, falecimentos, entre outras variáveis que fazem oscilar o efetivo policial, este contingente
superdimensionado das UPPs, a princípio, deveria atuar em outras áreas sem equalização orçamentária.
Estes recursos materiais e humanos seriam distribuídos de forma desigual entre os agrupamentos
policiais, privilegiando as UPPs, e deixando os ditos “batalhões convencionais” da PMERJ responsáveis
pela administração de áreas muito maiores e complexas, com restrições severas para o seu desempenho.
Por outro lado, as novas unidades passaram a exibir diacríticos próprios, promovendo uma nova marca: a
UPP. Esta passou a ter carros diferentes, uniformes diferentes e, dessa maneira, atrair atenções externas
e evocar discursos discriminadores e contrários à polícia dita “tradicional”. Barreira e Russo (2012) relatam
uma experiência análoga, em Fortaleza, com a chamada Ronda do Quarteirão, pela polícia militar cearense,
que constituiu uma das principais propostas do então candidato a governador Cid Gomes, contribuindo
para sua eleição em 2006. A proposta deste programa foi criar uma polícia de proximidade, com viaturas
modernas, atuando em uma área restrita, de 3 quilômetros quadrados, com qualificação em Direitos
Humanos. Contudo, antes mesmo de começar a funcionar, o programa recebeu críticas pelo alto custo
das viaturas adquiridas e, como no caso das UPPs, por adotar um uniforme diferente do utilizado pelos
demais membros da Polícia Militar do Ceará, criando uma divisão dentro da Corporação entre aqueles
que eram da Ronda do Quarteirão e os que não eram. Como observado no Ceará, o pretenso processo de
“reforma” que ocorreu com as UPPs no Rio de Janeiro contribuiu para mobilizar antipatia e processos de
sabotagem internos à corporação.
Na prática, as métricas para avaliar esse tipo de impacto são escassas. Entretanto, durante a pesquisa, a
empiria colocou em evidência a suposta eficácia de muitas das estratégias adotadas para a fundação de
uma nova polícia. Em primeiro lugar, mostrou-se frágil a pressuposição de que os policiais novatos seriam
menos suscetíveis à corrupção insidiosa das ruas. Afinal, as pessoas não são tábulas rasas quando entram
22 A política de pacificação se insere na doutrina da Polícia de Proximidade e, subliminarmente, estabelece diferenciação com a lógica de
confronto que, no jargão nativo, se refere ao “tiro-porrada-e-bomba”. historicamente empregado em áreas de favelas. Especialmente nas favelas
da zona norte do Rio de Janeiro. As UPPs seriam, assim, aquelas unidades que, instaladas em áreas de favela, abrigariam agentes orientados
por essa política, buscando prestar serviços de mediação de conflitos, substituindo atores vinculados aos grupos criminosos que, atuantes no
território, se dedicariam a resolver disputas e conflitos entre os moradores dessas regiões.
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para polícia; por ocasião do seu ingresso na corporação trazem ideias e representações claras acerca da
natureza da atividade policial. A partir de uma etnografia com jovens participantes de um curso para
ingresso na PMERJ, oriundos do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, Rodrigues (2021) mostra que
eles têm uma expectativa de se estabelecer naquela profissão para obter ganhos e vantagens a partir
de uma representação do trabalho da polícia voltado para o uso da força, sem se preocupar com seus
eventuais abusos. Um instrutor da APM, responsável pela formação de Oficiais, contava-nos uma história
que era muito ilustrativa nesse sentido. Quando atuava como instrutor do CFSD, pediu a um grupo de
recrutas, logo no início da aula, para realizarem um procedimento de abordagem. Para sua surpresa, antes
mesmo de receberem qualquer informação técnica acerca do procedimento, o grupo já reproduzia a
lógica agressiva com que a polícia realiza revistas pessoais, principalmente em áreas periféricas. Em parte,
considerando o relato do instrutor, a violência policial parece ser um processo de reconhecimento. Se a
polícia é violenta, é também porque a sua composição social é oriunda de áreas em que a polícia aplica a
violência, principalmente contra a juventude, como forma de regulação.
O segundo ponto é a própria violência institucional, promovida entre pares no cotidiano da organização
(escalas, equipamentos, judarias internas23), mas também nos próprios bancos escolares, de onde
deveriam partir os policiais pacificadores. Quando se referiam a um tipo de suspensão da realidade na
relação entre o Módulo de Polícia de Proximidade e o dia a dia do Curso de Formação de Soldados (CFSD)
no CFAP, nossos interlocutores se referiam às sugas. As sessões de suga, como referimos, envolvem a
extenuação física do alunado e alguma dose de violência controlada que, como vimos no caso de Paulo
Aparecido, às vezes pode escapar das mãos dos supostos controladores. Na época da pesquisa, as sugas
eram defendidas abertamente pelo comando do CFAP como forma de produzir “rusticidade”, um termo
que será apresentado mais adiante. As sugas eram aplicadas pelo Corpo de Alunos (CA), órgão que divide
com a Divisão de Ensino, centro da “mudança cultural” nas escolas, a responsabilidade da formação dos
futuros policiais. Na prática, segundo constatou a pesquisa, o CA era um dos responsáveis por sabotar
toda a teoria da Pacificação.
As sugas, como a que vitimou Paulo Aparecido, por diferentes ocasiões, ao longo dos anos, foram
proibidas nas dependências das unidades de ensino da PMERJ por comandantes considerados de linha
mais “progressista”. O mesmo ocorreu com as canções de guerra24, entoadas pelo efetivo quando em
deslocamento no interior das escolas ou durante o condicionamento físico. Ambas atividades, é claro,
sob responsabilidade do Corpo de Alunos (CA). Muda o comando, muda a linha de trabalho da escola
(como ocorre, aliás, com qualquer unidade policial) e as sugas e as referidas canções sempre acabam
sendo restabelecidas na rotina da unidade de ensino, depois de banidas por um certo período de tempo.
Pode-se dizer que é bastante difundida a percepção – mesmo entre os próprios alunos submetidos à
violência ritual das sugas – de que as turmas formadas fora desses rituais de guerra seriam amamãezadas,
como se diz no jargão nativo. “Cheios de direitos e opiniões” – como reclamavam os mais intransigentes na
defesa de tais expedientes –, estas gerações de policiais amamãezados seriam inábeis para o desempenho
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do verdadeiro trabalho de polícia. A expressão faz referência às atividades ditas operacionais e de combate
ao crime, incluindo aí a necessária rusticidade para o seu desempenho. O principal motivo alegado para a
suposta inaptidão dos amamãezados para o trabalho policial seria exatamente a ausência desse atributo,
provocada, por sua vez, pela proibição das sugas, das canções de guerra, dos trotes e de todo um universo
de práticas rituais – informais, porém amplamente aceitas e cultuadas – durante a sua formação. Não é
preciso dizer que os “policiais de UPP” eram considerados como uma geração de policiais amamãezados, o
que conduzia a uma certa tolerância e permissividade no controle de práticas como a suga no interior das
escolas, prática que visa, como vimos, imprimir rusticidade ao futuro policial militar.
Abertamente valorizada como um atributo positivo pela cultura policial (PONCIONE, 2003), a rusticidade
é uma dessas competências “não-escolarizadas” desenvolvidas nos interstícios da implementação do
currículo formal das escolas de formação da PMERJ. O já referido “currículo oculto”25. Faz referência a
uma suposta capacidade física e mental para resistir às condições adversas da atividade policial militar. A
rusticidade – como nos foi explicado diversas vezes – prepararia o policial para a “dura realidade das ruas”,
para enfrentar “os níveis crescentes de violência da criminalidade”, mas também a precariedade de suas
próprias condições laborais. Entre elas, as escalas de 24 horas, a carga pesada de trabalho, as horas em pé
no sol, o peso dos equipamentos, entre outros26.
A rusticidade do policial, segundo nossos interlocutores da pesquisa, deveria ser fustigada ao longo de todo
o processo formativo dos recrutas. Entretanto, era na semana zero que ela vinha a desempenhar um papel
fundamental. Por meio das sugas, os alunos seriam testados no domínio desse atributo, promovendo uma
separação entre os vocacionados e aqueles ditos não-vocacionados para o serviço de polícia. Ficou patente
que, desde o início de seu processo formativo, contradizendo abertamente o que era propalado em sala
de aula, o alunado era exposto a um ambiente organizacional que buscava suscitar o velho ethos guerreiro.
Além disso, para o grupo envolvido com a pesquisa, era como se a Polícia Militar estivesse tentando, por
meio de um tipo de pedagogia informal, ensinar os recrutas a adotarem uma postura cínica em relação
à institucionalidade de sua própria instituição. Uma coisa é o que está escrito, outra é o que se faz na
prática; na sala de aula, um discurso de mudança, no cotidiano da escola, órgãos como o Corpo de Alunos
(CA) desautorizavam todo um esforço baseado em diretrizes formais para a área de educação.
Neste contexto no qual se praticava uma certa pedagogia da dor parecia operar, subliminarmente, uma lógica
que é alcançada por um adágio bastante popular no Brasil que afirma: “quando a cabeça não pensa, o corpo
padece”. Como sugeriu Clifford Geertz (2002: 114), os ditados populares podem encerrar um conhecimento
socialmente instituído, calcado na experiência e nas práticas dos indivíduos. Nas situações comuns, faz-se
apelo a uma racionalidade que se antecipa aos atos irrefletidos, protegendo os indivíduos em seus interesses
e direitos. No caso da PMERJ, o adágio “quando a cabeça não pensa, o corpo padece”, nos pareceu aludir a
um ensinamento básico para a internalização da hierarquia. Quando o superior – a cabeça que pensa – não
era obedecido, o corpo do desobediente sofria. No caso específico, um corpo que padecia em função de
não ser prescrito que este recorra ao ato de pensar. A resistência à introdução dessa heresia – o pensar – no
25 Alguns estudos, oriundos da Pedagogia, entre 1960 e 1970, destacaram a existência de vários níveis de currículo: Formal, Real e Oculto. O
Currículo Formal refere-se ao currículo estabelecido pelos sistemas de ensino, expresso em diretrizes curriculares, objetivos e conteúdos das áreas
ou disciplinas de estudo. O Currículo Real é aquele que acontece a cada dia dentro da sala de aula com professores e alunos, em decorrência de
um projeto pedagógico e dos planos de ensino. Já o Currículo Oculto é o termo usado para denominar as influências que afetam a aprendizagem
dos alunos e o trabalho dos professores. Ele representa tudo o que os alunos aprendem diariamente em meio às várias práticas, atitudes,
comportamentos, gestos e percepções que vigoram no meio social e escolar. Ver Moreira e Silva, 1997.
26 Dentre os vários perigos dessa representação, certamente está a naturalização das condições adversas de trabalho dos agentes. Ao prepará-
los para esse tipo de situação, a corporação acaba por reificar essa condição como um dado inelutável da realidade, dando a sua própria parcela
de contribuição para a perpetuação dos riscos de vitimização a que está exposto o seu efetivo. Sobre o tema da vitimização policial e das condições
de trabalho das polícias ver Minayo, Souza e Constantino (2007, 2008); Minayo, Assis e Oliveira (2011).
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ambiente escolar castrense se dava a partir das lições da chamada ordem unida. Não por acaso, os cursos de
formação de praças da PMERJ, ao longo do período de pesquisa, teve acrescido o número de horas dessa
disciplina. Consiste, aparentemente, em ensinar a tropa a marchar e perfilar. Contudo, é muito mais que
isso, constituindo-se em um processo pedagógico, ritualizado, de internalização de valores fundamentais
da hierarquia militar. Os comandos de ordem unida são dados por um oficial, graduado ou o mais antigo
presente à frente de um grupo, por corneta ou clarim, apito, gestos ou pela voz de comando. Emitido em
tom enérgico, tem por objetivo fundamental inspirar respeito à figura da autoridade presente27.
Como referimos, existe um jargão muito difundido, pelo menos nos meios policiais militares que nos são
mais familiares, na qual se veicula que, “na teoria, a prática é outra coisa”. Este dito, quando evocado
nas interações sociais entre pares, busca quase sempre colocar em oposição a realidade dos batalhões
de polícia, seu caráter operacional, e a das escolas de formação, construídas no imaginário institucional
como um lugar para o dever ser. Esta seria a dualidade original contida na expressão, digamos. Na PMERJ,
como era de se esperar, a frase tem a mesma conotação. À despeito de seu caráter desqualificativo, de
submissão do saber formal à prática policial, ela foi ouvida reiteradamente pelas equipes de pesquisa
durante a realização do trabalho de campo nas próprias escolas de formação de Oficiais e Praças. Mas
dizer “na prática, a teoria é outra coisa” pode se referir também a uma série de outras circunstâncias, que
não se restringem à área de educação.
A expressão tem suas variações, podendo ser aplicada a diversos outros contextos relacionais. Seu sentido
forte, entretanto, se mantém. Seu efeito é atribuir um valor negativo a todo e qualquer referencial que,
no quadro de oposições entre teoria e prática, se situe do lado do conhecimento formal. Por exemplo,
afirma-se que “a radiopatrulha é a verdadeira escola de polícia” (CARUSO, 2004). O que essa frase quer
27 Segundo a doutrina, é através dessa autoridade que se alcançam valores fundamentais como disciplina, autocontrole, senso de grupo,
autoestima e desenvolvimento físico. Ver: http://forcasarmadasbrasil.blogspot.com/2012/03/oque-e-ordem-unida.html. (Acesso em: 30 maio 2020).
28 Os oficiais na PMERJ são responsáveis por comandar as praças (soldados, cabos e sargentos), tendo como premissa institucional a hierarquia
e a disciplina. Entende-se por hierarquia a ordenação da autoridade em níveis diferentes e por disciplina o rigoroso acatamento de leis, normas,
regulamentos e disposições que fundamentam o organismo policial militar. Os oficiais são organizados em três ciclos distintos: a) os oficiais
superiores que reúnem coronéis, tenentes-coronéis e majores; b) os oficiais intermediários, que são os capitães; e c) os oficiais subalternos que são
os tenentes e subtenentes.
29 Fazemos recurso à imagem da Matrix, conforme explorado no filme de mesmo nome, de 1999, dirigido por Lilly e Lana Wachowski. Trata-se
de uma simulação computadorizada que cria um mundo imaginário onde as pessoas são prisioneiras daquela realidade virtual. Enquanto isso, o
corpo humano é preservado em uma cuba com múltiplos fios ligados à Matrix, cujas máquinas se alimentam de sua energia vital como se fossem
pilhas. A analogia aqui, a princípio, se refere à existência de dois planos de realidade, uma cobrando um plano mais hierárquico. Contudo, a
prostração dos corpos guarda relação com a densidade da descrição que queremos empreender neste texto.
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dizer? Principalmente, que o verdadeiro trabalho de polícia se aprende na prática, na dura realidade da rua,
não nas escolas de formação. Ora, existem grandes mercados de bens materiais e simbólicos – políticos,
morais, financeiros e mesmo acadêmicos – disputando o poder de dizer o que é ser polícia, o que é o
trabalho policial. Esses campos de disputas, como se referiu Bourdieu (1983), estão organizados em
formas de dizer esses campos que, no caso da PMERJ, implica o constante tensionamento entre teoria
e prática. Quando os policiais dizem “na prática, a teoria é outra coisa” estão opondo campos de forças,
expondo divisões e tensões, as linhas em disputa e o que está sendo disputado.
É claro que o aprendizado do ofício policial, como todos os demais, tem uma dimensão prática que agrega
competências e conhecimentos experienciais ao fazer profissional. Mas por que, no caso da polícia militar,
ao invés de se complementarem, uma forma de saber parece assumir a desqualificação da outra como
condição? Como essa tendência, reconhecida por uma sólida bibliografia sobre o tema da formação
policial (KANT DE LIMA; MISSE; MIRANDA, 2000; VEIGA; SOUZA, 2018a; 2018b), de desqualificação do
saber formal, pode sabotar as pretensões de transformação cultural de uma política pública, como o fez
com a Política de Pacificação? Primeiro, porque essa oposição, segundo nos parece, pertence ao mundo do
trabalho, não necessariamente à política de educação e à gestão do conhecimento profissional. Ela está
presente nas escolas de formação, é responsável, por exemplo, pelo baixo status da política de educação
na corporação, mas não se restringe a ela.
Os policiais militares, via de regra, se referem às transferências para atuarem profissionalmente vinculados
às escolas de formação como ficar na geladeira. Isso porque os afasta daquilo que realmente importa para
a constituição do “ser policial”, o controle das ruas (MUNIZ, 1999). Um policial pode desejar tal coisa. Mas o
fará sabendo como seus pares interpretarão seu movimento, optando por ser do administrativo em lugar do
operacional. Neste contexto, fazer cursos pode ser uma maneira de galgar posições esperadas, sobretudo,
entre os regimes do oficialato. Mas também pode exprimir um castigo diante de algo equivocado que se
tenha feito. Ou, como diz o termo nativo, “uma cagada”. Nesse último caso, entre os oficiais muitas vezes
se trata de um policial com “costas quentes” ou que tenha padrinho e o curso significa que seu translado
o fará cair pra cima e ascender na hierarquia das patentes. Entretanto, dependendo do curso que fizer (e
com quem faça e o momento que o faça), poderá selar sua identidade mais voltada para a lógica operativa
ou administrativa. Esta última selaria seu afastamento das ruas, episódica ou definitivamente.
Analisando os currículos dos cursos de formação e aperfeiçoamento dessas escolas, ficou claro para nós
que, mesmo formalmente, eles se integravam unicamente sob a perspectiva de formar “comandantes”
e “comandados”30. Essa divisão primal da organização policial militar, como vimos, inaugura uma série
dinâmica de oposições estruturais que organizam campos de disputas em torno do “ser policial”31 e da
natureza do “verdadeiro trabalho de polícia”. Quem pode saber sobre essas coisas? Ou, pelo menos
legitimamente, afirmar um lugar para falar sobre elas? É em torno do poder de traçar essas linhas, entre o
que é ou não o “ser policial” e a natureza de suas atribuições, que se organiza todo um campo de disputas
que tem na oposição oficial/praça o seu enclave primal.
Por outro lado, no cotidiano da PMERJ, existem linhas divergentes em relação a essa estrutura que, ao se
propagarem nos espaços relacionais, a reafirmam a todo instante. Vanessa Cortes (2005), em seu estudo
30 O que mais vimos, seja a partir da análise dos currículos, seja nas incursões pelo CFAP, foi que os praças tinham muito mais ordem unida e
menos sala de aula, bem como empregados em atividades de limpeza e manutenção das instalações. Os oficiais, por seu turno, estavam a maior
parte do tempo em sala de aula, como instrutores. Por outro lado, considerando os conteúdos curriculares, era muito maior a carga de direito
positivo e dogmático, bem como conteúdos herméticos voltados para noções de gestão, liderança e comando.
31 "Ser policial”, afinal, “é sobretudo uma razão de ser”, como diz o Hino da PMERJ.
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sobre o chamado “bico policial”, ou situação de segundo emprego não-regulamentado nas folgas32, chama
a atenção para a maneira como os interesses de oficiais e praças se conjugam, se combinam, possibilitando
premiações tais como mudanças nas escalas de serviços, destinação para funções mais tranquilas, de
forma a que uma praça, ao assumir a função de gestor de um serviço privado, possa beneficiar um oficial
direta ou indiretamente, seja com sociedade na empreitada, seja acolhendo policiais que fazem parte do
“esquema” do superior hierárquico. Essa interessante inversão apenas reforça que, afinal, esses universos
concebem diferentes regimes e públicos sobre os quais se exercem soberanias e mandatos policiais
distintos, combinando processos pedagógicos conflitantes que favorecem o exercício da desigualdade
jurídica e a deslegitimação de direitos básicos, seja em nome da ordem, seja em nome da hierarquia.
COMENTÁRIOS FINAIS
No momento em que concluímos o presente texto, a política das UPPs é mais uma página virada no capítulo
da Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, por uma combinação de elementos, que correspondeu
a uma sucessão de episódios que minaram a credibilidade do modelo. Por um lado, a ocorrência de
situações de violências nas favelas, rompendo definitivamente com a noção de uma polícia de proximidade,
versão não pacificada dentro da própria Polícia Militar e, por conseguinte, não estabelecida como um
padrão em todas as localidades. Por outro lado, a dispersão dos mercados ilegais de drogas e armas para
outras localidades da região metropolitana e do estado, gerando uma maior pressão e certo desequilíbrio
nas relações internas da corporação.
Como um sumário de todo esse processo, se pode depreender que aquilo que foi uma nova polícia na
teoria, era uma velha polícia na prática. A tensão estrutural entre mudança e continuidade esteve sempre
enraizada no coração da Política de Pacificação. Como sabemos hoje, a implementação da mudança
cultural pretendida pelos gestores da política não aconteceu. O imperativo prático, dimensão associada
à velha polícia experimentada no calor das ruas, distante dos gabinetes climatizados, de onde emanam
os princípios da política e da gestão, acabou por englobar a nova proposta33. São variados os motivos
de tal desfecho para mais uma iniciativa de “reforma” da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. E
desde seus primeiros momentos foi constituído um esforço acadêmico para abordá-los em suas mais
diversas facetas (CANO, 2012; MISSE, 2014; 2019; MACHADO DA SILVA, 2015; PIRES; EILBAUM; KANT DE
LIMA, 2017). Afirmamos que foi a partir das vicissitudes das relações estruturais acima descritas que o
projeto se exauriu. As rusgas internas se conjugaram com uma forçosa dispersão de práticas violentas que
encontram abrigo no interior da corporação militar, construindo novos espaços para o exercício de sua
territorialidade de poder e alcance de suas expectativas econômicas.
Nesse sentido, não menos importante é sublinhar as formas de atuação particularizada com que alguns
policiais podem se relacionar com criminosos em áreas de favela, os chamados “arregos” (PIRES, 2010).
Com as UPPs, num primeiro momento, as práticas extorsivas que garantiam vantagens econômicas para
determinados grupos dentro da Polícia Militar sofreram mitigações, sobretudo em áreas extremamente
32 Quando o trabalho foi realizado ainda não existiam legislações que permitiam o emprego do trabalho policial para além de suas escalas de
serviços. Atualmente existe o RAS – Regime Adicional de Serviço, ao qual se associa o Programa Estadual de Integração de Segurança (PROEIS),
que permite o estabelecimento de convênios entre órgãos estaduais e municipais para a percepção de serviço direcionado de policiais militares
visando complementar as demandas por segurança. Em que pese as mudanças, as lógicas estruturalmente descritas não apenas seguem sendo
observadas, como incrementadas em nível significativo. Ver Misse, 2019.
33 Que também não era tão “nova” assim, diga-se de passagem, tendo em vista iniciativas anteriores como o GPAE – Grupamento de
Policiamento em Áreas Especiais, por exemplo, cuja proposta de “policiamento comunitário em favelas” era quase idêntica à da UPP.
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rentáveis da região metropolitana. Entretanto, como pudemos observar, essas práticas acabaram sendo
exercidas em outras localidades, gerando um efeito não desejável de dispersão das dinâmicas inerentes
ao que o sociólogo Michel Misse (2006) denominou por “acumulação social da violência” ou, numa outra
chave de leitura, o que os meios de comunicação chamaram de “migração do crime”.
Um lugar para falar dessas coisas é o lugar da teoria, que nesse imaginário bipartido é o lugar da gestão
e da política pública. O lugar de um discurso que se pretende mais processual, previsível, lugar dos
princípios, das métricas e das ponderações. Esse discurso tendia a ser consumido pelo público interno de
forma cínica. Era como se todos já soubessem que existe uma teoria que opera como um verniz para a
manutenção de velhas práticas. Estas velhas práticas, por sua vez, estão sempre nas ruas, onde o calor dos
acontecimentos promove inexoravelmente a deturpação do princípio, do plano, do procedimento, dando
substância aos vícios das ruas, dos antigos. Afinal, a rua é o lugar onde acontecem as interações com a
população, o “cartão de visitas da polícia”. É onde se exibem também as aplicações de força, dando lugar
ao exercício da violência do Estado. Assim, o lugar da teoria, na perspectiva das Praças, é o lugar do Oficial,
do nível de gestão da corporação, seu ambiente interno/administrativo, de onde emana uma concepção
idealizada da atividade policial, que nada tem a ver com a prática, com a rua, com a rotina da ponta da linha
nos batalhões, vivida pelas Praças.
Poderíamos afirmar, alternativamente, que “a teoria depende da prática, e vice-versa”, como nos foi
também afirmado no campo. Sobretudo no que concerne à disposição econômica dos serviços policiais,
numa perspectiva autônoma – ou “para si” – da organização da corporação policial frente ou contra a
sociedade. Como afirmou Nogueira (2013), o cotidiano dos batalhões é alimentado por uma gestão
criteriosa e interessada, econômica e financeiramente, do que ocorre ou deve ocorrer nas ruas. Economia
essa que envolve recursos monetários, mobiliza muito mais recursos políticos e simbólicos, manejados a
partir de uma concepção de ordem pública estranha à ordem democrática34.
Nesse sentido, a polarização a que fazemos alusão se aproxima mesmo de uma “ideologia” sobre o que
venha a ser a “verdadeira” atividade policial. Ou seja, uma consciência alternativa, autoafirmada, do que
venha a ser a ordem pública patrocinada pelas polícias, que não se conjuga com a ordem pública ou ordem
política como preconizada constitucionalmente (ARAÚJO FILHO, 2003). Neste exercício, onde se observa
a prática do Estado no controle da sociedade, os universos do oficial e da praça, bem como seus diacríticos,
são embaralhados. Ainda que estes antagonismos possam ser reinterpretados na prática, dando lugar a
formas mais ou menos temporais de convivência com estruturas relacionais alternativas – ou um tipo de
“antiestrutura”, para lembrarmos de Victor Turner (1974) –, via de regra, nossos interlocutores, praças
e oficiais, procuravam se apresentar como seres bipartidos, referindo-se a uma discordância perpétua
e persistente entre “teoria” e “prática” que, no fundo, visava blindar o seu fazer e repelir o controle
democrático de sua atividade.
34 O que Reiner, para resgatar sua contribuição a respeito da “Política da Polícia”, afirma ser um desafio permanente nas democracias
liberais. O que dizer, no Brasil, onde o liberalismo sempre teve dificuldades de enraizar-se (SANTOS, 1979; KANT DE LIMA, 1995; PIRES, 2010;
ALBERNAZ, 2018).
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ARTIGO
RESUMO
O presente trabalho analisa o debate sobre a implementação do armamento letal na Guarda Civil Municipal
de Niterói (GCM) adotando uma etnografia construída a partir do acompanhamento da aplicação do curso de
formação profissional aos agentes. Durante o curso, permeado de militarismo, os alunos são submetidos à
prática constante da ordem unida e, por fim, à rotina de patrulha, introduzindo-os à “prática da rua”. O contato
com esses hábitos faz surgir nos agentes o anseio pelo uso de armas letais, vendo-as como fator determinante
na sua identidade, especialmente para os desvincular de uma imagem inferiorizada, apelidada de “guardinhas”.
Nesse sentido, busca-se explorar os pontos de interseção entre o processo de militarização da Guarda Municipal
Civil de Niterói e a busca de seus agentes pelo “respeito” da população, tendo por base seu processo de formação
e suas demandas pela implementação do armamento como discursos a serem analisados.
Palavras-chave: Guarda Civil Municipal. Segurança pública. Militarização. Armas letais. Formação
profissional da GCM.
ABSTRACT
REAFFIRMING IDENTITIES: DEMANDS FOR RECOGNITION AND “RESPECT” IN THE PROFESSIONAL
TRAINING COURSE OF THE AGENTS OF THE MUNICIPAL CIVIL GUARD OF NITERÓI
This paper analyzes the debate about the implementation of lethal weapons in the Municipal Civil Guard of
Niterói (GCM) adopting an ethnography built from the monitoring of the application of the professional training
course to the agents. During the course, permeated by militarism, the agents are submitted to the constant
practice of the united order and, finally, to the patrol routine, introducing them to the “street practice”. The
contact with these habits makes arise in the agents the longing for the use of lethal weapons, seeing them
as a determining factor in their identity, especially to unlink them from an inferior image, known as “little
guards”. In this sense, this study seeks to explore the intersection points between the militarization process
of the Municipal Civil Guard of Niterói and the search of its agents for the “respect” of the population, based
on their training process and their demands for the implementation of weapons as discourses to be analyzed.
Keywords: Municipal Civil Guard. Public security. Militarization. Lethal weapons. Professional training course of GCM.
252 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 252-271
ARTIGO
Reafirmando identidades: demanda por reconhecimento e
“respeito” no Curso de Formação Profissional dos Agentes da
Guarda Civil Municipal de Niterói
Carlos Eduardo Pereira Viana
INTRODUÇÃO
Quando se estabeleceu contato com os primeiros interlocutores na Guarda Civil Municipal (GCM)1 de
Niterói, em 2014, durante a realização do Curso de Formação Profissional de novos agentes, suas falas
indicavam que uma das questões fundamentais para a compreensão da instituição se relacionava com
a organização interna e a distribuição de poder sob o aspecto da influência política, questão que regia
de forma direta o modus operandi dos agentes. Esta distribuição de poder, orientada a partir do poder
executivo e/ou legislativo municipal, ditava o que a GCM teria como foco em sua lógica operacional: o
controle do tráfego da cidade e a repressão ao comércio ambulante.
A função da GCM na segurança pública municipal e, em outro momento, estadual, não esteve definida de
forma contínua em quase ou nenhum momento de sua história, e isto refletiria em muito na construção
de sua identidade institucional e na de seus agentes. Como resultado, em contato com essa estrutura sem
definição aparente, os agentes iam se adaptando aos diferentes modelos de como pensar e de como agir
que fossem surgindo.
Em decorrência dessa estrutura, ou da falta dela, permitiu-se o surgimento de duas principais perspectivas
que alocam a atuação da GCM em diferentes frontes na política pública de segurança. A primeira aponta a
instituição como atuante a nível estadual, aproximando-a de corporações policiais presentes nesse mesmo
nicho, como a Polícia Militar; enquanto a segunda já a direciona para uma atuação com mais ênfase na
estrutura política municipal, em conjunto aos poderes executivo e legislativo. Em meio a este campo de
indefinição, os agentes são levados a buscar, por outras formas, maneiras de demarcar sua identidade e o
que realmente representam no palco da segurança pública.
1 A partir deste ponto, será utilizada GCM como abreviação para Guarda Civil Municipal de Niterói.
2 Cabe o destaque para mudanças significativas ocorridas nas conjunturas política e social, elementos que estabeleceram a emersão da
discussão pública sobre políticas armamentistas, tendo a disputa eleitoral pela presidência da República do Brasil no ano de 2018 como um dos
principais palcos para o debate. Desde as jornadas ocorridas em junho de 2013, a conjuntura política brasileira sofreu grandes mudanças, que
tiveram seu marco com a crescente mobilização de um grupo autoidentificado como “suprapartidário”, que tomou as ruas após as eleições de
2014. No entanto, apesar da defesa desse discurso, com o tempo se observou que, após cada manifestação, os movimentos direcionavam-se à
polarização do público em diversos temas, como por exemplo, a pauta que se ocuparia do tema “muito mais do que os 20 centavos”, em referência
ao aumento na tarifa do transporte público, que foram o estopim para a ocupação das ruas (PIRES, 2013).
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Reafirmando identidades: demanda por reconhecimento e
“respeito” no Curso de Formação Profissional dos Agentes da
Guarda Civil Municipal de Niterói
Carlos Eduardo Pereira Viana
Conversamos por volta de uma hora, sem questionário fechado ou estruturado, sem maiores
provocações nas perguntas e respostas, munido apenas do interesse em dialogar com o agente,
não com o mestre. O primeiro ponto abordado foi o armamento. Mesmo sem indagações ou
direcionamentos sobre um possível uso de armas de fogo, o desejo pelo armamento apareceu de
forma espontânea na fala do agente. Aparecia quando ele falava sobre o “respeito da população
para com os agentes”. Aparecia quando ele citava situações em que, em sua percepção, levavam
“grande risco” à sua vida e a de terceiros. E aparecia muito quando ele falava sobre a sua vida privada,
descrevendo até mesmo uma tentativa de roubo da qual foi vítima quando ainda era quadro da Polícia
Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ).
Com longas experiências em mais de um segmento da segurança pública, o leque de relatos e situações
vividas por ele e por colegas é vasto. Tendo mais de 10 anos completos na GCM, meu interlocutor teve uma
passagem pelo Exército que durou 4 anos e meio e foi quadro da PMERJ por 5 anos, até ser exonerado.
Essa experiência o permite traçar paralelos e comparações entre as instituições, apresentando críticas à
estrutura de comando da Guarda que dialogavam com uma noção de companheirismo no uso da farda e
na busca pelo respeito da população, mas que de alguma forma focava o debate, principalmente sobre a
Guarda, para a relação dos agentes com o uso da arma. Em uma de suas falas, o agente estabeleceu uma
comparação direta entre a estrutura de comando da Guarda e a da PMERJ, deixando claro que a troca
de práticas entre essas instituições não era, segundo ele, algo necessariamente bom para os agentes, tal
como relatado:
Na Guarda a gente vê um companheirismo maior. É um quartel só, uma instituição só. Então as pessoas se
conhecem mais. Dentro da PMERJ é uma coisa muito grande, né. São vários batalhões. É uma coisa assim mais
família na Guarda, você consegue se conhecer melhor. Na PMERJ por muitas vezes você é transferido. Mas
na Guarda é muito mais fácil você ter um elo com um companheiro de farda. Mas a nível de chefia também
é muito pior. Muito pior! Porque geralmente um comandante quando vem pra comandar a Guarda vem com
um aspecto militar, já vem com comando militar e a guarda não é uma instituição militar. É uma instituição
paramilitar conhecida como uma instituição civil também. Tanto que o nome é Guarda Civil Municipal. Então
é bem diferente da PMERJ, né. O modo de se tratar com o guarda. Eu tomei uma punição quando entrei na
Guarda porque não bati continência pra um dos comandantes da Guarda. Na época era o Coronel P., ele veio
do BOPE. Não tem nada no Estatuto que você tem que bater continência pra um comandante da Guarda. Não
é militar. É uma instituição civil. Tomei uma punição de 15 dias no salário. Entrei na justiça, mas a Prefeitura
não acatou. Como os coronéis são ditadores, os guardas trabalham com medo. Ele dá uma punição. Se o
município não acatar, ele entra com outras penalidades até o município acatar. E assim a gente é punido no
salário. Além disso, ele manda os guardas fazerem operações que os guardas sabem que não eram pra serem
feitas e como o guarda tem que defender o pão na sua mesa e não pode ficar perdendo salário por punição,
os guardas vão e fazem. Por isso que eu acho que o Guarda tem que comandar o Guarda. O PMERJ tem que
comandar o PMERJ. O bombeiro tem que comandar o bombeiro. Cada um no seu quadrado. Porque ele vai
saber o que ele sofreu desde lá de baixo. O guarda sofre muito com o comando da PMERJ. (AGENTE DA GCM
DE NITERÓI, 2014).
Como primeiro ponto, chama especial atenção à menção do “medo” no diálogo, como sendo um fator
negativo da influência militar na atuação dos guardas. Isso porque a ideia do “medo” é acionada pelos
guardas como justificativa para suas demandas pelo armamento, mas, ao mesmo tempo, é rechaçada
na afirmação “Aqui não tem guardinha! Aqui tem Guarda Municipal!”, mostrando-os como agentes de
bravura, que não têm medo. Essa frase, recorrente nos discursos, transparece o “pensar” sobre o que
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Reafirmando identidades: demanda por reconhecimento e
“respeito” no Curso de Formação Profissional dos Agentes da
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um agente da Guarda é, na ótica dos próprios agentes, ou estaria na busca de ser. Vê-se, com isso, que
a construção de uma identidade mais militar ou mais civil não exclui ou se contradiz com a expectativa
dos agentes pelo porte de arma, que é facilmente enquadrada pelos agentes em qualquer das categorias
apresentadas, a depender da identidade que buscam externalizar.
A questão da demanda pelo armamento aparecia não só nas falas deste agente em específico, mas
também nas dos demais que tive contato. Aliado a isso, suas falas transpareciam a necessidade de uma
renovação no olhar de como a população enxergava os guardas. Na visão deles, essa “nova” construção
tem como elemento central o imagético popular, levando-os a buscar alcançar uma conceituação que é
reiteradamente expressa através da categoria de “respeito”. Nesse sentido, o armamento dos agentes e
o incremento na ostensividade de sua presença no dia a dia da cidade mostram-se como os mais fortes
argumentos quando da construção de uma imagem “respeitável”. E, justamente nessa seara, é que os
guardas se percebiam disputando um “lugar no sol” (VERÍSSIMO, 2009) com outras instituições, como os
fiscais de posturas, mas principalmente com os policiais militares.
Nesse aspecto, observa-se o surgimento de uma importante questão, trazendo à tona uma antiga
disputa entre as forças, que parece poder se intensificar com o projeto de renovação da Guarda. Pautado
principalmente na questão do armamento, objetivando dar protagonismo à Guarda na estrutura e na
lógica de segurança pública do município, o projeto acaba por abrir, na prática, lugar para importantes
conflitos de espaço e atribuições com a Polícia Militar, como se nota no relato do agente:
Existe uma rixa não declarada entre a Guarda e a PMERJ, porque eles notam que a Guarda tá tomando um
pouco o espaço da segurança pública, então eles entendem como se estivessem dividindo o espaço. Agora
fizeram uma guarita dividida entre a PMERJ e a Guarda na praia de Icaraí. E isso até mesmo pros comandantes
da PMERJ e o comandante da Guarda aceitar, foi uma briga danada. Mas o Prefeito graças a Deus leu o
Estatuto, porque até então ele não sabia da nova regra e parece que está se prontificando a investir na
segurança. [...] Toda polícia tem o seu quadrado. Cada um vai mandar ou proteger aquilo que tá determinado
por lei, ou seja, a PMERJ vai trabalhar mais ostensivamente, mais direto no combate ao tráfico. A Guarda vai
ficar direto voltada para o combate do bairro, mais voltado pro município. A PMERJ mais voltada pro tráfico.
Não que a Guarda não vá combater o tráfico, porque agora é atribuição do guarda também. (AGENTE DA GCM
DE NITERÓI, 2014).
Nessa interpretação, pode-se notar que os investimentos, as propostas e promessas feitas não se
voltavam apenas a melhorar a segurança pública da cidade, mas revelam, em verdade, uma disputa pelo
protagonismo dessa melhoria, com quais recursos, com quais atribuições e em que espaços. Para a Guarda,
no contexto de meu trabalho de campo, essa tensão era expressa no conflito sobre quem deveria estar
armado na patrulha da cidade e o porquê dessa escolha.
Um segundo ponto a ser destacado, ainda da primeira conversa, se apresenta como um dos principais
problemas deste artigo: a interpretação dos guardas sobre a noção de “respeito”. Para meu antigo
mestre, essa noção, presente recorrentemente em muitas outras conversas e situações, se relacionava
diretamente com as críticas que traçava ao comando militar. Para ele, os agentes não seriam “respeitados”
em decorrência das equivocadas instruções que receberiam por parte do comando e, consequentemente,
pela postura que acabavam reproduzindo na rua quando entravam em conflito com os camelôs, por
exemplo. A partir dessa argumentação é possível se evidenciar, novamente, a disputa com outras
instituições, abaixo relatada:
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Reafirmando identidades: demanda por reconhecimento e
“respeito” no Curso de Formação Profissional dos Agentes da
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Carlos Eduardo Pereira Viana
O que acontece é que a população tá acostumada a ver o guarda combatendo com o camelô. Isso não é
atributo do guarda. Isso é atributo do fiscal da Prefeitura. Isso é questão até mesmo do Prefeito não conhecer
a lei orgânica que tramita dentro da Prefeitura, e saber de segurança pública, ele mistura um pouco as coisas.
O guarda vai pra fiscalização, onde não deveria ir. O guarda na verdade está para proteger a vida, que é o
bem do cidadão. Proteger o povo niteroiense. Aí quando chega um novo comandante da PMERJ que entra
a discórdia. Quando o guarda tem que ir pra rua proteger um bem ou a vida, ele vai pra pirataria, vai pra
fiscalização. Coisa que é atributo fiscal da Prefeitura. O guarda tem que coibir o crime e trabalhar em prol
da vida. Armamento é uma questão total de necessidade. Você botar um guarda, hoje em dia com o nível
de crime que a gente tá vivendo, com um cassetete e uma algema na rua, você vira um palhaço. É melhor
botar o guarda pra trabalhar no circo do que na rua. Porque a violência é muito grande, toda hora acontece
delitos, e tudo que a população mais precisa hoje, além de saúde, é da segurança pública. É uma questão de
necessidade. Até pra segurança do próprio guarda. Tanto em serviço quanto fora. Acontece muito em serviço.
Quando o guarda vai fazer um tipo de ocorrência como um furto, ele até apanha. Em segundo lugar entra o
respeito, se um cara se depara com um guarda armado, ele vai analisar o fato e ter um respeito maior. Aqui
na GCM de Niterói eu vejo que é uma total necessidade, porque eu vejo os guardas num total desespero de ir
pra rua sem uma arma. Até uma situação que eu presenciei assim que entrei, a gente foi fazer uma apreensão
e um dos guardas entrou em colapso. Não aguentou a situação. E depois de uma semana ele tinha pedido a
exoneração dele. A gente entrou em conflito, num conflito corpo a corpo. E talvez nessa situação se a gente
estivesse armado, nem teria acontecido o conflito corpo a corpo. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).
A fala do agente permite insistir, por um lado, na existência de evidente disputa em torno das atribuições
da Guarda e das outras instituições, como a PMERJ e os fiscais. Essa disputa e essa indefinição por
competências parecem levar, em um raciocínio direto, à postulação da “necessidade” da arma como
forma de desempenhar as funções atribuídas de modo não só eficiente, mas também “seguro”. De outro
lado, atenta para o fato de que a arma não é vista apenas como uma “necessidade” e como um fator de
“segurança”, mas sim como decisivo instrumento ou meio de transparecer “respeito”, evitando que os
agentes possam ficar na rua e “virar um palhaço”.
Cabe destacar que, neste ponto em especial, o agente não fez nenhuma referência à falta de capacitação
por ele mencionada em outros momentos da conversa. Sua fala, quando tratando especificamente
do “respeito” da população e até mesmo o “respeito” dos criminosos com relação aos guardas, foi
majoritariamente focada na importância do armamento.
Passados alguns anos desta entrevista, a linha de raciocínio desenvolvida e os argumentos utilizados pelo
agente me chamaram a atenção, à época, em razão da experiência de ter trabalhado no acompanhamento
da formação dos agentes da mesma Guarda que meu interlocutor fez parte. Em minha etnografia no
Curso de Formação Profissional (CFP)3, faz-se o relato sobre o desinteresse dos agentes e da própria
3 O curso teve como base sua edição anterior, organizada em parceria do mesmo tipo entre o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da
Universidade Federal Fluminense (NUFEP/UFF) e a Prefeitura do Município de Niterói, realizado nos anos de 2002 e 2003. Esse mesmo curso
também acabou sendo utilizado como base para que o Ministério da Justiça e a Secretaria Nacional de Segurança Pública desenvolvessem uma
matriz curricular nacional voltada para a formação dos agentes das Guardas Municipais pelo país, valorizando a relevância do projeto e o seu
pioneirismo ao tratar do assunto. As aulas eram ministradas em parte por pesquisadores do INCT-InEAC/UFF e professores convidados de outras
universidades, e por agentes da Guarda Civil Municipal, policiais militares e funcionários ligados à Prefeitura de Niterói.
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Guarda Civil Municipal de Niterói
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instituição com relação à formação dos agentes vinculada à academia. Uma das questões mais evidentes
e problemáticas, discutida reiteradas vezes durante as aulas acompanhadas no período da pesquisa,
pautava-se na oposição entre “teoria” e “prática” apresentada pelos guardas. Essa resistência era sempre
trazida como um dos primeiros argumentos construídos com o objetivo de deslegitimar o conhecimento
dos professores e pesquisadores que lecionavam disciplinas no curso.
A intransigência era tanta que, em determinado momento do curso, a discussão se apresentou como
uma barreira declarada e difícil de ser quebrada. Situação similar foi relatada por Robson Rodrigues da
Silva (2011), em que os policiais militares da Academia de Polícia Militar D. João VI classificaram a sala de
aula do curso como uma “ilha da fantasia”, na demonstração de total desprezo pelo saber teórico que
não representava o saber da “prática”, este sim obtido por meio do contato com os seus “iguais” no dia
a dia. Na presente pesquisa, os “iguais” seriam os agentes da própria Guarda ou de outras instituições de
segurança pública e o que valeria, de fato, em suas formações e no momento da ação seria a teoria com
base na prática aprendida na rua, que eles identificavam simplesmente como sendo “a prática”.
Considerando questões já escritas para o caso da Polícia Militar, Kant de Lima (2009a;2009b) definiu
essa problemática como um conflito entre teorias. Segundo essa linha de raciocínio, os guardas tinham
a expectativa de que o aprendizado tivesse por alvo uma teoria que representasse a prática deles,
reproduzindo o autoritarismo, os filtros informais, a repressão, a posição de comando e outras práticas
já institucionalmente naturalizadas. O problema é que a UFF, como representante da academia nesse
contexto de aplicação do CFP, levou para a sala de aula uma teoria que, na visão deles, não seria legítima,
eis que não representavam as práticas e os símbolos presentes no modelo atual de segurança pública,
disseminado e aplicado enquanto um projeto que entende a guerra e o conflito como ferramentas de
combate à criminalidade.
Nesse sentido, é curioso contrastar o acúmulo de pesquisas e trabalhos sobre as Guardas Municipais pelo
país que retratam a percepção dos guardas sobre uma suposta falta de diálogo da academia com eles.
Ao mesmo tempo em que o conhecimento “teórico” trazido pela academia era alvo de desprezo e de
indiferença pelos agentes, era também alvo de reclamação e de cobrança, responsabilizando-se a mesma
academia pela ausência de interesse em diálogo com as Guardas.
Sob esta ótica, de forma concomitante ao trabalho de campo pude ter contato com pesquisas de colegas
que desenvolviam estudos sobre Guardas Municipais em outros municípios do Estado do Rio de Janeiro,
inclusive incluindo pesquisas de agentes no âmbito da academia enquanto estudantes de Graduação e
Pós-Graduação.
Em conjunto a esta série de pesquisas que se desenvolviam ao mesmo tempo que a minha, também
foi fundamental o diálogo com importantes trabalhos como os de Kátia Sento Sé Mello (2011) e de
Marcos Veríssimo (2009). O trabalho de Katia Mello (2011) descreve e analisa a sua experiência com a
Guarda Municipal de Niterói no início dos anos 2000, em uma situação similar com a que eu encontraria
no futuro: em um curso de formação desenvolvido pelo Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas
(NUFEP/UFF) para os agentes da instituição. Da mesma forma o trabalho de Marcos Veríssimo (2009),
em uma etnografia na qual ele mesmo se insere como participante, a partir de sua experiência como
agente da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, desenvolvendo um trabalho interessante sobre a
administração de conflitos no dia a dia das ruas cariocas tendo os agentes da Guarda como mediadores
e atores importantes nesse processo.
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Outro relevante trabalho para esta pesquisa foi à coletânea organizada pelos professores Michel Misse e
Marcos Luiz Bretas et al. (2010), que fizeram um levantamento dos diferentes projetos de funcionamento
com base nos marcos legais, definidores de suas atribuições, e tendo por referência a percepção dos atores
envolvidos quanto às ações efetivas, aos processos de treinamento e recrutamento, à relação com a Polícia
Militar e ao uso ou não de arma de fogo. Com a mesma importância, cita-se a coletânea organizada por Ana
Paula Mendes de Miranda, Joelma de Souza Azevedo e Talitha Mirian do Amaral Rocha (2014), que coloca
em debate a questão da segurança e das políticas públicas ao mesmo tempo em que oferece uma proposta
de um modo de se fazer pesquisa e de se construir uma antropologia sobre as políticas públicas.
A menção a esses trabalhos é relevante ao se notar que, na visão dos guardas, quando o curso “teórico” faz
uso de comparações, por exemplo, entre pesquisas empíricas realizadas em outras instituições e outros
países, por professores/pesquisadores que não faziam parte de nenhuma instituição de segurança pública,
não se está trazendo algo “digno” de sua atenção ou de seus ouvidos, pois aquelas informações de nada
valeriam para eles. Apesar disto, é fácil notar, como acima demonstrado, a relevância da existência de
uma vasta literatura baseada em pesquisas especificamente com Guardas Municipais pelo país, incluindo
o trabalho de Katia Mello com a própria GCM de Niterói, que permitem diversas vezes fundamentar
argumentos apresentados pelos professores durante as aulas.
O problema acima apresentado, assim como o formulado por Kant de Lima (2009b), se demonstrou
como um importante ponto para a análise dos fatos observados, à época, durante o Curso de Formação
Profissional (CFP). Agora retorna, na presente pesquisa, de forma analítica no processo de compreensão
da principal demanda dos agentes da Guarda, qual seja, o armamento. Busca-se, dessa maneira,
compreender a razão pela qual os agentes direcionam suas justificativas sobre a “falta de respeito” por
parte da população, e também dos criminosos, para a questão da falta de uma arma em punho.
Em dado momento do curso, os guardas que incialmente se disseram prontos para servir, agir e, segundo
os próprios, mudar o perfil da Guarda, se encontravam dispersos nas aulas e sem demonstrar qualquer
interesse pelos temas propostos. Essa dicotomia ficou evidente quando os agentes problematizaram a
existência de certa distinção entre as aulas gerenciadas pela Guarda, e as aulas gerenciadas pela UFF,
situação que foi notada pelo corpo acadêmico com o passar dos dias e com a disparidade entre o empenho
dos guardas em cada um desses dois tipos de aula. Enquanto na aula da Guarda via-se em sala a curiosidade
e a atenção dos agentes, nas aulas da UFF poucos demonstravam interesse. Nessas últimas, notava-se que
alguns alunos apenas intervinham para discutir a questão da teoria versus prática, defendendo sempre
que um professor não teria a legitimidade para apresentar realidades relatadas através de pesquisas,
realidades que não envolvessem algum tipo de prática, como se vê:
Aquela professora é muito boa, a aula tava rendendo bem, deu para ver que a pesquisa dela foi muito séria
e que ela realmente se empenhou. Mas quando perguntamos pra ela quanto tempo de prática ela tinha a
resposta foi que não tinha nenhum tipo de prática e que tudo que estava expondo era fruto da pesquisa que
ela fez. Não deu! Como que botam uma professora pra ensinar a gente sobre uma coisa prática sendo que ela
nunca trabalhou com isso e nem foi da polícia? (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2015).
Era notório que os guardas esperavam e ansiavam por aulas mais voltadas para a rotina de conflitos, e não
por aulas de mediação, característica da proposta que os professores do Instituto de Estudos Comparados
em Administração de Conflitos (InEAC/UFF) colocavam à mesa. Nesse sentido, a teoria ensinada pelos
professores posicionava os agentes como mediadores, e não como personagens no conflito. No entanto,
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o que os guardas esperavam aprender não eram formas de evitá-lo ou mediá-lo, mas sim maneiras de
atuar e dar fim aos conflitos pelo intermédio do uso da força e da autoridade, o que nesse espaço de
formação poderia ser aprendido nas aulas de defesa pessoal, de patrulhamento e de imobilização.
“Essa aula aqui a gente não vai usar pra nada! A gente tinha que tá tendo aula de defesa pessoal, isso que
vamos usar na rua!”. Esta talvez tenha sido uma das frases recordistas de repetição pelos guardas.
Demonstrava claramente que o que eles queriam era estar na rua, “mediando” conflitos da maneira que
eles acreditavam ser a mais correta e eficaz, ou seja, aquela proporcionada pelos ensinamentos passados
na sua formação e no treinamento, frutos do contato físico com o conflito. Permite-se, dessa observação,
estabelecer uma conexão entre a postura apresentada pelos agentes durante os processos de formação,
a forma como eles interpretavam suas identidades institucionais e a necessidade da arma para o
exercício de suas funções com plenitude. Exatamente por isso que, quando articulavam de forma direta o
armamento com a questão do “respeito”, estabeleciam uma ligação entre os três tópicos, como se estes
fossem argumentos complementares. Nesse ponto, retomando a fala de meu antigo mestre, parece que
ele queria destacar que existia um problema na formação dos agentes, como acima retratado, mas um
problema ínfimo quando comparado com a questão de não possuírem uma arma em suas cinturas. Para
meus interlocutores, as armas falam por si só.
Como já retratado, a discussão sobre a possibilidade de armamento da Guarda Civil Municipal de Niterói
ganhou protagonismo com a publicação do Estatuto Geral das Guardas Municipais em 2014. Com a
proximidade das eleições, dois anos após, a promessa eleitoral de armamento da instituição surgiu, um
aspecto que merece destaque. Apesar de serem vários os possíveis objetos de uma promessa eleitoral para
os agentes da Guarda, o lobby mais forte foi realizado em torno da questão do armamento. Isso porque,
em que pese às denúncias públicas feitas pelos próprios agentes quanto aos problemas de estrutura da
instituição, sinalizando a precariedade na formação e nas condições de trabalho, sejam elas de estrutura,
sejam de direitos trabalhistas, a mobilização maior se restringiu ao porte da arma.
A defesa do lobby armamentista foi alvo de conversa com um dos meus principais interlocutores dentro
da Guarda. Um agente que, desde o início do curso, se mostrou disposto a colaborar com a pesquisa e que,
por muitas vezes, direcionou o olhar pesquisador para questões que ele achava interessantes de serem
analisadas e estudadas, questões que influenciavam até mesmo a forma como outros agentes agiam e
que, a partir de então, passaram a orientar nossas conversas.
Seguindo a dica de Evans-Pritchard (2005)4 de se deixar interessar por aquilo que interessa aos nossos
interlocutores, e não aquilo que nós achamos relevante previamente, buscou-se olhar e, de certa forma,
mudar a percepção sobre a importância que os agentes davam ao armamento. Assim, permitindo aos
agentes falar livremente sobre aquilo que era importante para eles; dois assuntos apareceram com maior
relevância: um referido ao “descaso” apresentado por uma parcela dos novos agentes com o curso que
estava sendo aplicado, principalmente pelos chamados “concurseiros” e, o outro referia-se à necessidade
de ter o armamento para enfrentar “perigos” que eles imaginavam que poderiam encontrar na rua.
Como se pôde notar, na hierarquia de assuntos relevantes para os agentes, as questões voltadas para a
identidade da instituição e seu armamento tinham grande destaque, deixando de priorizar, por exemplo,
4 Em Algumas reminiscências e reflexões sobre o trabalho de campo, Evans-Pritchard sugere que “o antropólogo deve seguir aquilo que
encontra na sociedade que escolhe estudar”, e exemplifica: “Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para o país zande, mas os Azande
tinham e assim tive que me deixar guiar por eles”. (2005, p. 244-245).
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aspectos relacionados à estrutura da instituição que, em expectativas pessoais, ocuparia um lugar importante.
A razão dessa expectativa era um retrato do que se via nas ruas, de encontrar viaturas que, por vezes, estavam
enguiçadas por falta de manutenção ou de combustível, além de outros problemas que ocorriam dentro do
centro de operações e na distribuição das tarefas, que foram relatados pelos próprios agentes.
Até mesmo as cabines compartilhadas com a Polícia Militar, que deveriam servir como abrigos estratégicos,
foram encontrando dificuldades que denunciavam o perigo da falta de manutenção e a necessidade de
melhorias nos equipamentos da Guarda. No entanto, o discurso dos guardas partia de uma perspectiva que
minimizava as questões de estrutura, tratando-as como pontos que poderiam ser resolvidos facilmente.
Essa afirmação pode ser observada na fala de um dos agentes, enquanto enumerava as medidas que
estariam sendo trabalhadas pelo comando da Guarda junto à Prefeitura da cidade para a implementação
mais rápida de melhorias:
Tá vindo com um quartel novo no Barreto. Pelo que tá previsto vai ter um centro de treinamento, um centro
de triagem, um centro de tiro. A Prefeitura tá pretendendo adotar o armamento. Até agora a gente não ouviu
o Prefeito falar nada. A gente viu a maquete com o stand de tiro. Até porque é aquilo que o Estatuto diz, as
guardas municipais dentro da Prefeitura tem até dois anos pra se enquadrar no Estatuto. Se dentro desse
tempo ela não se enquadrar, ela vai perder até mesmo o investimento federal e correndo o risco de tomar
multa, né. Por não cumprir a lei. Por não cumprir o nosso Estatuto. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2015).
Essa fala deixa evidenciar que, mesmo reconhecendo a precariedade nas estruturas, a questão do
armamento se faz preponderantemente presente, dando ênfase inclusive a parte do projeto que prevê
a instalação de equipamentos e infraestrutura para o tiro, como o centro de tiro e o stand de tiro.
Visitando o áudio da primeira entrevista e o contrastando com registros de conversas em cadernos de
campo construídos ao longo de quatro anos de pesquisa, nota-se quase que o mesmo comentário em
todos os diálogos registrados. A questão que fica é: porque, diante de tantas defasagens, os agentes
não construíram uma pauta sobre melhorias na estrutura da Guarda per se, sem a necessária relação e
priorização da questão do armamento como um elemento fundamental?
Não foi possível encontrar uma resposta objetiva para este questionamento, mas, a partir dos relatos dos
agentes sobre o processo de formação por eles cursado e, posteriormente, com o aprendizado advindo da
“prática” das ruas, fica mais fácil compreender que a estrutura da Guarda era uma questão importante, mas
menos importante do que a implementação do armamento. As falas destacavam que um dos principais
saldos positivos dessa medida seria não apenas uma automática melhoria na estrutura, mas o ganho do
“respeito” da população. Isso porque, na lógica apresentada pelos agentes, uma Guarda “respeitada” seria
uma Guarda que possuísse força política para buscar melhorias nos equipamentos, no plano de carreira dos
agentes e nos treinamentos. O direito à posse da arma se apresentava como um primeiro passo: a arma
traria o “respeito” da população e o “respeito” daria força política à Guarda para reivindicar melhorias.
Quanto ao aspecto dos treinamentos, é válido destacar que a referência feita por meu interlocutor seguiu
a defesa do armamento, adotando a linha de raciocínio de uma capacitação voltada para aprender sobre
o uso das armas e para lidar com as “situações extremas” que a rua apresenta, na forma abaixo relatada:
A minha capacitação eu tive que correr por fora, porque a Guarda não tem esse investimento em capacitação
até a presente data. Eu sempre fiz cursos, dentro das artes marciais, fora das artes marciais, na área militar,
cursos de segurança, cursos de segurança progressiva. Pagos do meu bolso. Até curso da SWAT. Cursos caros
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que tive que tirar do meu bolso. Tive que correr por fora pra me tornar um guarda bom. Continuar atualizado
na segurança pública, atualizado em lei porque também tenho que correr por fora porque a guarda não dá
instrução. [...] Eu acho que no nível que tá hoje a Guarda, qualquer curso que chegue vai ser bem recebido.
Qualquer cursinho de adestramento de cão, um curso de taser, um curso de defesa pessoal. Qualquer curso
que chegue até o guarda vai ser de bom grado, porque a Prefeitura não fornece. (AGENTE DA GCM DE
NITERÓI, 2014).
A ênfase dada ao “treinamento” e à necessidade de capacitação está voltada para uma melhor atuação
dos guardas na área da segurança pública, focando prioritariamente no uso de armas dos mais diferentes
tipos; ambas as vertentes, a militar e a jurídica, foram destacadas por Kant de Lima et al. (2012) como
sendo dominantes na formação policial no Brasil. E essa formação, focada na prática, no treinamento, no
adestramento, é a que, na visão do interlocutor, tornaria um agente em um “bom guarda”.
É também possível notar, pela fala desse agente, que a demanda por esse tipo de capacitação é tratada
com descaso pela gestão municipal, deixando muito a desejar com relação a essa formação “prática”.
Nesse ponto, o agente entrevistado se encontra em uma complexa dualidade: ao mesmo tempo em que
culpa a ausência de estrutura da Guarda pelo não fornecimento de treinamento interno, também se vê
impossibilitado de buscar cursos à parte para suprir a defasagem, uma vez que os salários praticados
inviabilizam esta prática, como ele mesmo retrata:
É uma prática dos guardas já fazer bicos. O guarda sai do plantão às vezes cansado e vai pegar uma segurança
de mais de 12 horas, geralmente uma segurança de rua, de farmácia, posto de gasolina. Isso aí o guarda já
faz de longa data. Os outros guardas até procuram fazer curso, mas como o salário é muito limitado, então
fica difícil. Se o guarda não tiver um outro por fora... É que eu já trabalho com luta há muitos anos, então eu
tenho o meu “por fora” e tenho o da Guarda. Então o que eu consigo fazer é com o meu recurso que tenho de
fora. Se eu dependesse da instituição eu não teria feito nenhum curso. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2014).
Em se tratando do curso de formação, a leitura desse agente sobre a razão de sua realização era clara:
o curso só estava acontecendo por conta do planejamento para a implementação do armamento letal.
E o raciocínio prossegue, pois, uma vez a Guarda estando armada, o poder executivo municipal se veria
obrigado e forçado a realizar investimentos de forma continuada na capacitação dos agentes, o que
elevaria o padrão da instituição.
Dessa maneira, a combinação entre armamento letal, “respeito” da população e protagonismo político
e institucional da Guarda era apresentada em uma dimensão única, capaz de viabilizar o crescimento da
instituição e permitir a conquista de um papel relevante dentro da lógica de planejamento da segurança
pública municipal. Direcionar todos os esforços políticos e sociais para a implementação do armamento
seria, então, uma maneira de elevar a Guarda e seus agentes, tudo incluso em um único pacote para
promover o desenvolvimento da instituição.
Reanalisando a citação acima transcrita sob outra ótica, pôde-se perceber que a demanda pelo armamento
também deixa evidenciar uma outra vertente da falta de estrutura, que tem como consequência a adoção
de práticas não necessariamente legais, como a realização de “bicos”5, muito comum entre os agentes.
5 Os bicos são atividades realizadas por aqueles que buscam um renda extra de forma pontual, sem objetivar a construção de uma carreira. Os
trabalhos feitos por meio dos “bicos” são geralmente de curta duração e com pagamento imediato, antes ou após a prestação do serviço, o que
faz com que muitas pessoas busquem complementação de renda nesse tipo de atividade.
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Esses dois aspectos, quais sejam, a falta de estrutura e a adesão à informalidade, parecem caminhar
de forma conjunta, deixando transparecer que a esfera institucional é, de forma similar, permeada por
interesses pessoais e políticos dos atores da Guarda e do campo da segurança pública e social da cidade.
Com base nessa última afirmação, é possível observar surgirem duas interessantes narrativas com distintas
interpretações. Uma primeira justifica a realização dos “bicos” como uma consequência dos baixos salários
recebidos pelos agentes. Esse fator os leva a complementarem suas rendas prestando atividades outras que
possam ajudar a pagar suas contas, ou até mesmo cursos de capacitação externos, o que, como consequência,
impede que eles exerçam suas funções com dedicação exclusiva, levando à precarização do serviço prestado.
Já uma segunda interpretação revela que a tão desejada demanda pelo armamento dos agentes possa ser
uma verdadeira forma de potencializar seus ganhos com os “bicos”, que, como disse o interlocutor, acontecem
de “longa data”. Se sem a posse de armas letais os agentes já desempenham papéis outros, especialmente
aqueles voltados ao desempenho de atividades ligadas à segurança privada, com a implementação do
armamento suas possibilidades de trabalho externo seriam potencializadas, expandindo-se para concorrer
com um mercado já estabelecido e protagonizado por praças da Polícia Militar.
A ESPERANÇA E O “NÃO”
O caminho que se busca traçar neste artigo descreve como a demanda e o debate acerca do armamento
da Guarda foi evoluindo ao longo do período da pesquisa e, especialmente, como esse aspecto reflete
na construção da identidade sobre o que seria “ser um guarda”. Como mencionado no início do texto, o
debate parece se iniciar com uma elevação nas expectativas dos guardas a partir do momento em que foi
apresentado o projeto de investimentos na Guarda e na sua estrutura em 2013. Depois, com a publicação
do Estatuto das Guardas em 2014 e a posterior mobilização para a discussão do tema em um movimento
organizado pelos próprios guardas. Por fim, ocorreram os debates legislativos e as consultas públicas
que se passaram tanto em Niterói quanto no Rio de Janeiro já em 20176. Em todas essas instâncias
as demandas pelo “respeito” da população e pelo reconhecimento político e social da importância do
trabalho da Guarda estiveram presentes.
6 Como mencionado anteriormente, a conjuntura política contribuiu para que o tema fosse colocado sob as luzes do debate público,
conseguindo ser discutido em vários âmbitos da sociedade, seja na academia, em eventos da sociedade civil organizada ou em ambientes
institucionais da política municipal.
7 “A exigência de reconhecimento assume nesses casos caráter de urgência dados os supostos vínculos entre reconhecimento e identidade, em
que ‘identidade’ designa algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definitórias fundamentais como seres humanos”
(TAYLOR, 2000, p. 241) – neste caso, “definitórias fundamentais” como agentes de segurança pública.
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Essa aura de otimismo foi notada nas falas que seguiram durante todo o processo de “evolução”,
principalmente na formação dos novos agentes, que serviriam como um combustível extra. A ideia era que
os novos agentes fossem entendidos pela população como um importante esforço da Guarda, tornando-a
mais técnica e mais capacitada por contar com uma formação chancelada por uma universidade, a UFF,
carregando, assim, uma credibilidade mais sólida. Nessa linha de raciocínio, a imagem da “nova Guarda”
conseguiria se vincular de forma mais enraizada à noção de pertencimento ao segmento da segurança
pública, e não propriamente ao ordenamento urbano, afastando-a da visão criticada tanto por setores
sociais, quanto pelos próprios guardas, de que “a principal função da Guarda é mexer com camelô”.
Esse último entendimento, que era extraído pela população do que se observava da atuação dos guardas
na rua, ou seja, um atuar em constante conflito com os chamados camelôs, causava grande incômodo
nos agentes, principalmente os recém egressos. Esses, pelo fato de possuírem ensino superior completo
em sua maioria, eram considerados “mais técnicos” e estariam dispostos a serem mais ativos no
patrulhamento de proximidade. Essa ambição era mais um passo em prol do objetivo armamentista, pois
possuía a intenção de modificar aquele incômodo imaginário da população sobre os guardas e, a partir
disto, conquistar respeito, influência e poder político.
O curioso é que passados quatro anos da formação destes novos agentes, muitos deles, que se
mantiveram como interlocutores deste trabalho desde o início, manifestaram a perda da vontade de
“transformar a Guarda em uma ‘nova Guarda’”. Alguns culpavam a questão de o armamento ter sido mais
complexa do que supostamente deveria ser; outros culpavam aqueles colegas que viam na instituição
apenas uma escada para outros concursos públicos; e outros atribuíam essa responsabilidade à
Prefeitura, em razão das promessas que foram feitas, mas que não foram concretizadas por problemas
financeiros e/ou políticos, como se vê:
O [Prefeito] é o único cara nesses anos todos que olhou pra Guarda, então a maioria tá com ele. Mas muitos
guardas se sentiram traídos com essa questão da consulta [pública]. Muitos ficam nessa de que ele não
cumpriu o que falou em campanha. Ele já tinha falado que ia armar e depois mandou essa da consulta popular.
Então isso deixou os guardas muito tristes, desapontados. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).
O ressentimento8 com o Prefeito aparece em muitas das falas, quase que todas as vezes acompanhado
de uma ponderação sobre o quanto de ganhos a sua gestão levou para a Guarda. Novos agentes, novos
uniformes, curso de formação, nova sede e promessas de transformar a Guarda na protagonista que
eles acham que ela deveria ser. Essas promessas podem ser entendidas, seguindo a proposta de Carla
Teixeira (2000), como uma ação política que supõe a contração de uma dívida que, não sendo cumprida,
corre o risco de ser vivida como “traição”. E ocorreu exatamente como argumenta Cardoso de Oliveira
(2002, p. 115), “o sentimento de ressentimento está associado às demandas que fazemos aos outros
em relação a nós mesmos”.
A questão é que tais promessas, por mais que tenham sido cumpridas em algum grau, nem sempre
corresponderam no ritmo e no tempo que as expectativas criadas pelos guardas desejavam. Essa
decepção, expressa na fala do agente com a palavra “traição”, se deu especificamente sobre o ponto do
armamento, questão que era tida como elemento-chave no entendimento dos agentes. Como já exposto,
8 Compreendendo “ressentimento” a partir da definição oferecida por Strawson: "Consideremos, então, ocasiões de ressentimento: situações
em que uma pessoa é ofendida ou ferida pela ação de outra e em que – na ausência de considerações especiais – a pessoa ofendida poderia
naturalmente ou normalmente sentir ressentimento". (STRAWSON, 1962, p. 8, tradução nossa).
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o direito à posse da arma se apresentava como um primeiro passo: a arma traria o “respeito” da população
e o “respeito” daria força política à Guarda para reivindicar melhorias.
Já era claro, a esta altura, que o “avanço” que os agentes buscavam para a Guarda nem sempre se
correlacionava com um plano de carreira mais bem estruturado, com o fortalecimento institucional com
sua corregedoria e controladoria, novos equipamentos ou treinamentos. Para os meus interlocutores, a
noção de “avanço” estava intrinsecamente relacionada à implementação imediata do armamento letal,
questão muito mais relevante do que qualquer melhoria na estrutura da Guarda como um todo.
Esse é um grande ponto de destaque. A clara percepção da existência de uma hierarquia de importância
entre os temas foi observada, de forma expressa e evidente, em diversas conversas, entrevistas, aulas e em
operações acompanhadas ao longo da pesquisa, como a Operação Verão e a Operação Papai Noel. Poucas
foram as vezes que, em um contexto de questionamentos sobre o que deveria mudar ou ser melhorado
na Guarda, foram apresentadas questões burocráticas, técnicas ou estruturais como prioritárias na lista de
desejos dos agentes. A questão sobre a estrutura apareceu de forma destacada apenas em um momento,
quando um guarda, ao falar sobre as promessas que não foram cumpridas, mencionou o stand de tiros,
de forma semelhante ao que me foi relatado ano atrás pelo meu mestre, ao afirmar que “a Guarda perdeu
muito o gosto pelo serviço, ele [o Prefeito] tava injetando novas coisas, dando esperança pra instituição que
ia fazer e acontecer, mas isso [consulta pública] foi um balde de água fria. Tava tudo encaminhado: coletes,
armas, stand de tiros. Tudo!”.
De uma forma geral, a questão da arma encabeçava a lista de prioridade, que também era composta
por menções pontuais sobre a falta material de equipamentos, mas também, e mais relevante para este
trabalho, sobre a “falta de respeito” da população em relação à Guarda enquanto instituição, e com os
agentes enquanto operadores e mediadores dos conflitos na segurança pública9. Permite-se, então,
a defesa de uma ligação direta entre esses fatores. A “falta de respeito” se conecta com a falta do
armamento porque, para eles, a população não “respeita” o trabalho de guardas que não estão armados.
Isso porque, na visão dos guardas, eles nunca são procurados para agir em situações que eles afirmam
que poderiam agir, segundo suas atribuições. Em suas leituras, a não procura pela população se vincula à
ausência de armas (letais) em seus cintos, impedindo a atuação em situações que, por exemplo, requereriam
o uso do armamento como garantia de segurança e efetividade na intervenção. As observações rotineiras
revelam uma procura majoritária da população para a resolução de questões que, na percepção deles, os
diminuem enquanto agentes, comprometendo sua identidade profissional e questionando suas posições
enquanto “agentes da lei”, ou “agentes de segurança pública”.
A união de todos os fatores acima expostos é o que, na visão dos agentes, se apresenta como a “falta de
respeito” que a população demonstra com relação aos agentes. A “falta de respeito” decorre do fato de se
sentirem tratados como “guardinhas”, de serem procurados “apenas” para dar informações sobre linhas
de ônibus, localização de endereços ou para resolver questões de trânsito. A grande mudança desse
imagético da população constituía, sem dúvidas, uma das grandes expectativas dos guardas que, com as
promessas feitas pelo Prefeito, seria fácil e brevemente alcançada.
Nesta linha de raciocínio, a incansável busca pelo “respeito” da população se transforma em uma demanda
9 Importante destacar que a “falta de respeito” por parte da população difere da noção de “desrespeito” que tive contato quando em conversas
com camelôs, onde o insulto moral seria vivido no choque entre os agentes da Guarda e os comerciantes.
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cada vez mais significativa para os agentes por envolver um anseio tido como fundamental: o processo
de construção e afirmação de uma identidade profissional e institucional. Esse processo envolve não só a
definição das competências legalmente a eles atribuídas e as funções a serem por eles desempenhadas,
mas também o tratamento que a população deveria lhes oferecer ou deferir. Em outras palavras, a
perspectiva da compreensão do como “de fato atuam” e do que “de fato são”. Em resumo, aquilo que está
em jogo nas queixas colocadas pelos agentes parece se constituir, em certa medida, de uma “demanda
por reconhecimento” em termos do seu status ou posição social (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004).
Nesse sentido, é de se compreender que as promessas feitas pelo Prefeito elevaram em muito as
expectativas dos agentes no atingimento de um novo status social. Diante da não concretização do
compromisso, tornou-se fácil observar o desânimo que atingiu os agentes, mas essa frustração também
deixa revelar alguns interessantes aspectos sobre a importância que foi depositada no processo de
discussão do armamento. Segundo o comentário trazido por um interlocutor, os novos agentes, de certa
maneira, teriam entendido que seus trabalhos só seriam completos e respeitados após a implementação
do porte de armas letais. Ante o não atendimento da requisição, os agentes se viram tomados por uma
sensação de derrota, que deu espaço para o surgimento de sentimentos de desapego com a “vontade de
trabalhar”, e afastando a vontade de serem o mais produtivo possível em suas jornadas:
Uns trabalham bem, outros não. Fui trabalhar um tempo atrás no centro de Niterói e tá tudo jogado por
lá. Eu via um guarda numa ponta e camelô do lado. Na minha época eu não fazia isso não, não podia ter na
minha calçada! Teve que ir a corregedoria pra rua junto com o Inspetor Geral pra fazer ronda, até os guardas
antigos reclamam de alguns novatos da turma de 2014. Eles são muito frouxos. Tem uns que são bons de
serviço pra cacete, cai dentro e trabalha mesmo. Mas tem outros que só querem moleza. Se acham antigões,
querem fazer o que os antigos fazem. Tem muito guarda novo tomando porrada da corregedoria por conta
desse corpo mole, essa postura incorreta. Tem guarda dessa turma nova que conseguiu ter mais Ficha de
Resposta Disciplinar (FRD) do que eu em mais de 10 anos como Guarda, apenas em três anos de instituição no
probatório. Esses guardas estão em processo de exoneração. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2019).
A análise dessa fala permite inferir a existência de dois grupos distintos: um que é composto pelos agentes
que, outrora esperançosos, viram um Prefeito que “deu mole” e que “traiu” expectativas e promessas; e um
segundo que, em retaliação ao “não”, ou seja, diante da negativa quanto à implementação do armamento,
fizeram “corpo mole”, reagindo de acordo com as suas frustrações e desapontamentos com um processo
que iria, em suas visões, valorizar e reconhecer sua identidade e seu papel na segurança pública.
Como ficou retratado, as expectativas dos agentes em torno da questão do armamento sofreram
constantes vaivéns. Após as promessas feitas pelo Prefeito, no caso da Guarda de Niterói, a decepção
política maior veio da realização de uma consulta pública, determinante nesse processo. Em outubro de
2017, a população niteroiense se posicionou majoritariamente contra à implementação do armamento
letal à GCM10, decisão que acabou impondo um dramático fim aos anseios dos agentes.
10 Na consulta, a população votou contra o armamento da Guarda Civil Municipal em 45 pontos de votação espalhados pelo município. A
adesão foi considerada, por vários canais de comunicação, muito baixa, pois apenas 18.990 dos 371.736 eleitores possíveis do município se
movimentaram para dar seu voto, ou seja, 5,1% do total de eleitores. A proposta foi rejeitada por 13.478 dos niteroienses que foram às urnas.
Somente 5.480 participantes da consulta pública votaram a favor da proposta, enquanto 32 pessoas votaram branco ou nulo. Representando
assim, respectivamente, margens de 70,1% contra 28,9% da população (APURAÇÃO, 2017).
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Neste ponto, esquecidas as expectativas do ano de 2014, com a edição do Estatuto da Guarda,
e desfeitas as promessas eleitorais de 2016, o quadro que se via no final do ano 2017 era de total
frustração, permeada por inúmeros ressentimentos. Mas, das promessas feitas, aquelas que envolviam
a renovação da instituição e as melhorias na estrutura da Guarda de certa forma ocorreram, com a
inauguração de uma nova e equipada sede para os agentes. No entanto, nem mesmo esse aspecto foi
suficiente para a melhoria dos ânimos. A perspectiva dos agentes estava intrinsecamente pautada no
argumento de que o armamento seria o início de uma guinada na questão do “respeito” da instituição
e no ganho de poder político.
Reconhecendo, pelos menos à época, a improvável reversibilidade do quadro e digerindo o fato de que a
Guarda não seria uma instituição armada, foi possível se observar uma mudança do discurso institucional
no campo político, agora voltada para o retorno da valorização da estrutura e das condições de trabalho.
Assim explica um guarda em uma conversa tida no ano de 2019:
Tá rolando problema? Tá! Pra caralho, muita coisa! Essa estrutura nova é muito bonita por fora, por dentro
você tem que ver: várias infiltrações, rachaduras, uma piscina que forma quando chove porque o forro é ruim.
Todas as salas têm ar-condicionado, 98% não funcionam. Foi entregue com muito problema. A estrutura
por fora parece ser excelente, terreno bom, mas por dentro é muito ruim. O que tem menos problema é a
sede da SEOP [Secretaria de Ordem Pública], porque eles que ficam com o dinheiro e esquecem da Guarda.
A Prefeitura não repassa, a SEOP não repassa. Várias viaturas baixadas. Enquanto houver policial militar
comandando a gente vai ter esse problema aqui, não querem que a gente cresça. Então tem problemas
estruturais por conta da falta de investimentos. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2019).
A fala do agente expõe claramente o choque entre a expectativa apresentada em 2014 e a realidade
material e simbólica do que foi construído e posto em operação até 2019. Com o sonho do armamento
reprovado, os guardas viram, na realidade, que o cuidado e a atenção com a instituição ficaram de lado.
Sem armamento e sem estrutura, viram sua situação ainda mais agravada com a valorização da parceria
entre a Prefeitura e o Governo do Estado. Isso porque, quando da realização de uma operação conjunta
entre os níveis municipal e estadual, sentiram que o papel que seria exercido supostamente pela Guarda
em posse de armas letais, foi transferido e rearranjado para a estrutura da Polícia Militar.
Com o olhar voltado novamente para a valorização da Guarda em si, os agentes deixaram transparecer
um estado de ânimo que traz à tona o conflito geral de interesses existente tanto com a Polícia Militar,
quanto com a Secretaria de Ordem Pública. Em particular, destaca-se a histórica prática de nomeações
de ex-militares e militares da reserva como secretários de ordem pública da cidade de Niterói e no
comando da Guarda. Por essa razão, a crítica feita pelo agente atribui a essa disputa não só a possível
falta de investimento, mas, ainda mais, a impossibilidade da Guarda se tornar protagonista – “crescer”
– e ser reconhecida, pois sempre se encontra sob os cuidados de representantes externos, quais sejam,
da Polícia Militar.
Refletindo-se sobre a posição desses militares como comandantes e dos agentes da guarda como
comandados, encontra-se verossimilhança no que esclarece Taylor (2000, p. 241-254) sobre a “preocupação
moderna com a identidade e o reconhecimento”. Nesse sentido, para que alguns tenham honra, é essencial
que nem todos a tenham, dando origem, assim, a uma “política da diferença”, repleta de “discriminações
e de recusas que produzem cidadanias de segunda classe”, ou, no caso, agentes de segunda classe, sem
respeito, sem força política e, principalmente neste contexto, sem armas.
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As questões dessa política da diferença, bem como toda a preocupação com a identidade e o
reconhecimento dos guardas se adensam quando se analisa a forma como foi conduzido o processo
de discussão sobre o armamento na gestão municipal, resumindo-se a uma consulta pública. A forma
simplória de coletar a opinião da população foi um fator que desagradou em muito os agentes. Segundo
suas falas, a consulta contribuiu para que as coisas não saíssem da forma que vinha sendo planejada por
eles desde 2014, como se pode notar:
Uma consulta popular você não é obrigado a sair de casa pra votar, já num plebiscito sim. Então começamos a
lutar pra que fosse um plebiscito, mas não aconteceu. [..] O pensamento dos guardas, mais de 90 %, porque tem
guarda que não quer que arme, achou isso tudo uma grande palhaçada. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).
Novamente se vê surgir a alusão à imagem do “palhaço” ou, no caso, uma “palhaçada”. Por fim, esses
pontos parecem refletir um sentimento recorrente: os agentes se sentem burlados e “não respeitados”
em relação às suas demandas e expectativas. E, cada vez que uma expectativa se frutava, muitas vezes os
agentes eram vistos tentando se amoldar às movimentações políticas do Prefeito e sua equipe, tentando
se fazer presentes e obter êxito em novas demandas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando em 2014, os agentes estavam sendo alimentados pela ideia de que o Prefeito iria, a qualquer
momento, autorizar oficialmente o início das operações com o armamento letal pela Guarda, a expectativa
era impulsionada ato após ato da Prefeitura, que era vista realizando a compra de armas e encaminhado
pedidos de licenciamento para a Polícia Federal, instituição responsável pelos registros do armamento e
pela autorização dos agentes para uso.
Apesar de todos os sinais dados, o problema encontrado, como foi explicado pelos agentes, residia no fato
de que o Prefeito teve “medo” de assumir a responsabilidade pelo armamento. Em outras palavras, teve
medo de se tornar alvo quando chamado a assumir eventuais intercorrências decorrentes de atuações
indevidas por parte dos guardas. É o que se vê:
Ele [o Prefeito] deu mole. Ele chegou a fazer 30 guardas fazerem curso de tiros. Eles deram mais tiros que
soldado da PMERJ no recrutamento. Um soldado da PMERJ dá menos de 100 tiros, os guardas deram mais
de 300. Inicialmente esses 30 guardas iriam pra rua iniciar o serviço armado, e mais tarde mais guardas fariam
a qualificação. Isso foi antes da votação. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).
“O [nome do Prefeito] deu mole”; “O [nome do Prefeito] teve medo”. Estas foram frases ouvidas repetidas
vezes após a negativa da população. Na visão dos guardas, a implementação do armamento não deveria ter
seguido nenhum tipo de consulta à população, afinal, “estava tudo lá preto no branco no Estatuto”. De tudo o
que foi exposto, a leitura do processo que melhor sintetiza essa percepção foi apresentada por um agente
enquanto se conversava sobre o histórico de enfrentamentos com os camelôs pela cidade. Em especial,
sobre a repercussão negativa que esses conflitos geravam na imagem que a população tinha dos guardas:
Esse negócio do armamento foi uma foda mal dada, porque ia fazer a Guarda focar mais na segurança, aí
falaram “não, guarda é maluco! Vai querer intimidar camelô!”, isso já acontece tem muito tempo. Sabe quem
mais tá fazendo apreensão na rua? É a SEOP, vire e mexe eles vêm com um carro com caçamba de apreensão.
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Tão fazendo mais apreensão do que os guardas faziam antigamente. O armamento não era pra intimidar
ambulante, era pra focar mais na segurança, no patrulhamento preventivo, porque não é nem ostensivo, é
preventivo. Muitas vezes uma pessoa chega no guarda e fala que foi assaltada, que o cara tava com uma arma,
e o que a gente vai fazer com cassetete e taser? E aí? Como que trabalha desse jeito? A gente poderia atuar mais
se tivesse condição de trabalho, a arma seria um ponto nesse sentido. (AGENTE DA GCM DE NITERÓI, 2018).
Essa fala tem a capacidade de resumir alguns aspectos tratados neste artigo. Primeiro, por transparecer
as disputas entre a Guarda e outras instituições em termos de atuação e de identidade. Nesse caso em
específico, a tensão é representada pela SEOP, mas isso pode ser constatado em relação à PMERJ. Segundo,
por evidenciar a percepção de uma indefinição nas funções e nas atribuições que deveriam ser exercidas
pela Guarda, fator que parece repercutir negativamente na afirmação da identidade institucional e que
reflete em práticas reproduzidas desde a formação dos agentes. A ausência de definição abre espaço para
o anseio pela atuação pura e simples no âmbito da “segurança pública”, permitindo que seja entendida
apenas nos seus aspectos repressivos, em contraste com uma realidade que os joga para outras tarefas
não tão desejadas.
Terceiro e, por último, por ratificar, reafirmar e reiterar que a plena atuação desejada pelos guardas
encontra como principal obstáculo a ausência do direito ao porte das armas. A frustração se intensifica
quando se faz a possível correlação de que a negativa estaria sustentada no “mau uso” que os agentes
fariam da arma. Em contraponto, eles defendem que a atuação com o armamento letal seria mais
eficiente11 e, dessa forma, capaz de gerar a tão desejada ruptura com o histórico de confrontos com
camelôs. Essa desvinculação da imagem influenciaria positivamente na percepção da população sobre
a importância da Guarda e da atuação de seus agentes, de maneira a possibilitar a recuperação, ou o
estabelecimento, do respeito e da admiração perdidos, ou, ainda, a serem conquistados.
Em linhas gerais, tomando a análise de Goffman sobre o estigma (1980), pode-se destacar que a busca dos
agentes pela ruptura com sua imagem tem por base a forma como eles próprios lidam com as pré-noções
negativas da população, pré-noções decorrentes do histórico material e simbólico de suas interações com
os guardas e suas formas de agir. Expõe-se, assim, que a identidade social virtual dos agentes apresenta
características que os aproximam de suas identidades reais, o que faz com que, segundo a percepção
deles, a reputação da Guarda seja desacreditada e que a “falta de respeito” de parte da população seja
tão arduamente sentida.
A “falta de respeito’, desse modo, apresenta-se como símbolo da ausência de definição de uma
identidade da Guarda, seja no plano da estrutura formal propriamente dita, seja a partir de suas práticas
militarizadas conduzidas por outras instituições, seja no plano mais subjetivo da afirmação e da busca
por um reconhecimento social, político e profissional. De certa forma, o guarda, quando afirma que “não
é guardinha”, que “cai pra frente” e que “necessita” de uma arma letal para “agir como se deve agir”,
está buscando a reafirmação de sua identidade. O que o guarda quer, afinal, é ultrapassar a barreira do
descrédito, é, ao fim e ao cabo, “ser visto como um guarda deveria ser visto”.
Nota-se, no entanto, que esse discurso apresentado pelos agentes distorce as teorias ensinadas em sala
de aula durante o Curso de Formação Profissional, em especial aquelas ministradas sob a responsabilidade
da Universidade. Isso porque a metodologia utilizada na construção dessas aulas foi elaborada justamente
11 Compreendendo a noção de eficiência enquanto a ampliação da capacidade de pronto emprego em um conjunto maior de ambientes
passíveis da atuação dos agentes por conta da ampliação de seus instrumentos de coerção e uso da força.
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ARTIGO
Reafirmando identidades: demanda por reconhecimento e
“respeito” no Curso de Formação Profissional dos Agentes da
Guarda Civil Municipal de Niterói
Carlos Eduardo Pereira Viana
a partir das demandas apresentadas pela própria GCM e pela Prefeitura da cidade de Niterói, o que, de
certa forma, demonstraria uma tentativa na produção de um conhecimento prático e teórico seguindo
o ideal de uma Guarda mais comunitária, ou, ao menos, mais próxima da população. Por essa razão, as
aulas buscaram esclarecer as atribuições que a lei designa para a instituição e para os seus agentes, mas,
de maneira cabulosa, os guardas confundem os limites da função de fiscalização, estendendo sua atuação
para a possibilidade de policiamento ostensivo equiparável ao dos agentes da Polícia Militar.
Neste sentido, a “grande questão” da Guarda Civil Municipal de Niterói até poderia se relacionar com as
suas confusas e opacas atribuições, porém, em verdade, o que se visualiza ao longo do desenvolvimento
deste trabalho é que a incerteza quanto às funções dos agentes serve como uma “carta na manga” para os
que pensam a GCM como uma instituição policial, e não como um órgão de apoio ao ordenamento público
das cidades. Dessa monta, a falta de protocolos e a falta de clareza sobre o “onde”, “como” e “por que”
agir possibilita que seus representantes pautem discussões como a descrita neste artigo sobre o uso de
armas letais, ao tempo que menosprezam a produção teórica que lhes fora apresentada.
A consequência da leitura das atribuições dos guardas nas entrelinhas permite observar que uma instituição
civil, ao se militarizar tanto informalmente na rotina de trabalho de seus agentes, quanto formalmente
durante a aplicação de um curso de formação, acaba se mostrando em uma posição desprestigiada e
confusa para todos os envolvidos, sejam eles munícipes, sejam os próprios agentes, sejam, ainda, as
demais instituições que compõem o ordenamento e a segurança pública.
Sinaliza-se, por todo o exposto, que o desprezo demonstrado pelos agentes com a teoria ensinada em sala
de aula reforça o imaginário do conflito, do embate e, não por acaso, do militarismo. A teoria, apesar de não
ser produto de pesquisadores necessariamente atuantes como agentes da segurança pública, é fruto de
observação prática e busca aclarar para os guardas o seu papel no ordenamento, o que os aproxima, como já
dito, de uma atuação mais comunitária, ou, ao menos, mais próxima da população. No entanto, munidos de
seus discursos militarizados e armamentistas, os agentes parecem insistir em contrariar as convenções mais
atuais sobre o que é, de fato, uma instituição de segurança pública eficaz e produtiva, ou, no caso da Guarda
Civil Municipal de Niterói, do que seria uma instituição do ordenamento público da cidade.
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“respeito” no Curso de Formação Profissional dos Agentes da
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Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 252-271 271
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Contribuição de cada autor: Os autores contribuíram de forma efetiva na pesquisa e na produção intelectual do artigo, de
maneira responsável e criativa.
RESUMO
O artigo discute as competências e os impactos dos mestrados profissionais em segurança pública a
partir dos resultados da avaliação de egressos da Pós-Graduação Profissional em Segurança Pública da
Universidade Federal da Bahia. Para tanto, adotou-se o modelo de personalidade parentética, proposto
por Alberto Guerreiro Ramos, para analisar a interação entre a universidade e campo profissional a partir
de ex-alunos, entendidos como pesquisadores práticos. A pesquisa foi efetuada por meio de questionário
de aplicação ampla enviado, por e-mail, a todos os alunos que concluíram o curso no período de 2013 a
2020. Os resultados, com 40 respondentes, sugerem que estes estão mais conscientes do papel social
de sua profissão, apresentam maior competência em pensar de forma crítica sua realidade profissional,
analisar o ambiente interno e externo de suas organizações e tomar decisões com potencial de impacto.
Palavras-chave: Avaliação de egressos. Impactos do Mestrado Profissional. Personalidade parentética.
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Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
ABSTRACT
COMPETENCIES AND IMPACTS OF THE PROFESSIONAL MASTER’S: THE CASE OF THE PROFESSIONAL
POSTGRADUATE PROGRAM IN PUBLIC SECURITY AT THE FEDERAL UNIVERSITY OF BAHIA
The article discusses the competences and impacts of professional master’s degrees in public security based on
the results of the evaluation of graduates of the Professional Post-Graduation in Public Security at the Federal
University of Bahia. For this, the parenthetical personality model, proposed by Alberto Guerreiro Ramos, was
adopted to analyze the interaction between the university and the professional field through the graduates,
understood as practical researchers. The survey was carried out by means of a broad application questionnaire
sent, by e-mail, to all students who completed the course in the period from 2013 to 2020. The results, with 40
respondents, suggest that they are more aware of the social role of their profession, have greater competence
in thinking critically about their professional reality, analyzing the internal and external environment of their
organizations and making decisions with potential impact.
Keywords: Graduate’s evaluation. Impacts of the Professional Master’s. Parenthetical personality.
INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda o processo de avaliação de egressos dos programas de pós-graduação profissionais,
a partir da análise da experiência do Mestrado Profissional em Segurança Pública, Justiça e Cidadania
(MPSPJC) do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública (PROGESP), da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). O objetivo foi destacar e interpretar o perfil dos egressos do MPSPJC segundo a percepção
que eles têm sobre sua experiência após o curso, levando em consideração as competências desenvolvidas
e os possíveis impactos profissionais da formação sobre a sua atuação profissional e a sua vida pessoal.
De lá pra cá, a pós-graduação foi bem sucedida na formação de professores universitários e na produção
de conhecimento científico. Porém, o sistema definido em 1965 se distanciou da demanda de qualificação
profissional que só ganhou força a partir da década de 1990, quando a Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com a Portaria Nº 47, de 17 de outubro de 1995, retomou a
modalidade profissional ao nível dos mestrados.
Na prática, entretanto, só foram aprovadas propostas de mestrados profissionais no começo dos anos
2000 (BARATA, 2020). Este foi o contexto em que surgiu o MPSPJC. Aprovado pela CAPES, em 2010, por
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Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
meio do parecer APCN Nº 1998/2010, o curso nasceu como uma iniciativa fortemente interdisciplinar
resultante da reunião de esforços de docentes e pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
ligados pelo interesse no estudo de fenômenos da segurança pública e vindos de diferentes campos de
saberes, distintas unidades de ensino, programas e/ou núcleos de pesquisa. Sua gestão, compartilhada
entre a Escola de Administração (EA/UFBA) e a Faculdade de Direito (FD/UFBA), é representada pelo
PROGESP, que em 2005 foi pioneiro na execução da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança
Pública (RENAESP), com a oferta de cursos de especialização profissional que serviram de pressuposto
para a recepção do mestrado no corpo do programa.
Tal objetivo de formação é compatível com o ideal dos mestrados profissionais. Estes cursos atendem à
exigência da sociedade atual por uma formação qualificada que não se restrinja aos domínios da carreira
universitária e contemple setores empresariais e de ensino que necessitam de um perfil diferente do
pesquisador acadêmico (PAIXÃO; BRUNI, 2013). Nesse sentido, os mestrados profissionais atendem a
uma demanda oriunda do mundo do trabalho e apesar de promoverem uma formação de tipo profissional
estão em paralelo ao conhecimento de natureza operacional ou funcional, pois não se resumem à oferta
de simples curso de qualificação. Sua finalidade é formar pesquisadores práticos, dotados de habilidades
e competências para conhecerem sistematicamente sua atividade, aperfeiçoá-la ou corrigi-la em seus
defeitos e insuficiências.
A pesquisa dos mestrados profissionais é ligeiramente diferente da pesquisa dos mestrados acadêmicos.
A pesquisa acadêmica orienta-se pela teorização e é a atividade de teorização que a define como
acadêmica (ANDRÉ, 2017). A parte empírica é indispensável e cumpre um papel de intermediação entre o
conhecimento sistemático já obtido e aquele alcançado pelas pesquisas então em curso ou conclusas. A
parte principal da atividade científica, porém, é teórica. A teoria permeia todo o processo de investigação,
desde o início, na delimitação da questão de partida e definição dos métodos e técnicas de investigação,
até o fim, na análise dos dados e na interpretação dos resultados.
Na pesquisa profissional a situação é um pouco diferente. Ela tanto parte como almeja o universo empírico.
Parte dele porque de lá retira seus problemas, que são problemas reais, relacionados com aspectos de um
setor prático da realidade empírica, reformulados como problemas científicos que exigem uma solução
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Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
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Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
igualmente prática. Tanto a teoria como a empiria cumprem um papel intermediário. A empiria cumpre o papel
convencional de evidência, enquanto a teoria funciona como um meio de elucidação dos problemas práticos,
em suas implicações e seus desdobramentos. A pesquisa move-se dessa maneira em direção à elaboração e
análise de alternativas de intervenção que ao fim da investigação são prescritas, às margens de qualquer teoria,
como soluções ad-hoc. Assim, ela almeja o universo empírico, não no sentido da compreensão desinteressada,
como ocorre na pesquisa acadêmica, mas de sua alteração, de acordo com determinados valores institucionais.
Desta forma, as pesquisas profissionais podem ser vistas como pesquisas “engajadas” e é exatamente essa
característica que as definem como pesquisas profissionais não-acadêmicas (ANDRÉ, 2017).
O tipo de conhecimento produzido pelo pesquisador prático certamente chama a nossa atenção para
as diferenças entre o mestrado acadêmico convencional e o mestrado profissional. Contudo, apesar
das diferenças, ambos os tipos de pesquisa são, antes de mais nada, o aprofundamento do pensamento
crítico alicerçado em conhecimento metodológico. É por essa razão que a pesquisa profissional localiza-
se no mestrado. O mestrado profissional é mestrado antes de ser profissional, até porque na esfera
profissional já existem muitas opções satisfatórias de qualificação. O saber pesquisar com rigor, contudo,
é exatamente o diferencial oferecido pelos mestrados profissionais em comparação com outras espécies
de cursos profissionais (STREHLAU, 2020).
O conhecimento obtido pela pesquisa profissional realizada no âmbito dos mestrados profissionais cria
alternativas de solução de problemas práticos que vão além de simples soluções gerenciais. São alternativas
reflexivas que induzem à prática reflexiva, tornando possível o aprendizado a partir dos desafios do
ambiente de trabalho. As pesquisas profissionais, dessa maneira, estimulam o desenvolvimento de uma
cultura de aprendizado e de proatividade dentro das organizações, trazendo abordagens criativas e
profícuas para a solução de seus impasses. É exatamente neste ponto que reside o seu valor.
METODOLOGIA
A avaliação na perspectiva dos egressos foi operacionalizada por meio de questionários de aplicação
ampla, via e-mail, com os alunos que concluíram o MPSPJC, entre o período de 2013 a 2020. Como afirmam
Dazzani e Lordelo (2012), egressos são sujeitos especialmente importantes para compreendermos como
os programas e as políticas educacionais se articulam com a sociedade. Neste sentido, a nossa intenção
foi examinar a qualidade da formação oferecida, os efeitos do curso sobre o desenvolvimento pessoal
e profissional e os eventuais impactos gerados direta e/ou indiretamente pelo mestrado por meio de
seus ex-alunos. Os endereços de e-mails foram obtidos no banco de dados dos alunos do PROGESP,
disponibilizado pela coordenadora do programa.
O questionário foi enviado a todos os egressos, totalizando 150 indivíduos. Contudo, apenas 40
responderam. No geral, este número pode ser compreendido pelas dificuldades específicas sofridas pelas
pesquisas de avaliação de egressos no Brasil (DAZZANI; LORDELO, 2012). A cultura de acompanhamento
de egressos pelas universidades ainda é bastante incipiente, especialmente quando comparada à
dos Estados Unidos, onde pesquisas deste tipo datam de 1930, enquanto no Brasil só vieram ganhar
preponderância a partir de 2006 (NISHIMURA, 2015).
Essa incipiência geral das pesquisas com egressos foi refletida em nossa pesquisa. Em primeiro lugar, foi
difícil localizar os ex-alunos, pois muitos endereços de e-mail estavam desatualizados. O banco de dados
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disponível não foi pensado para o acompanhamento contínuo de egressos e sim para o acompanhamento
deles enquanto alunos do curso, o que nos criou um obstáculo ao diminuir a extensão do número de potenciais
respondentes. Em segundo lugar, verificou-se a relutância dos egressos em dispor de tempo e oferecer
informações sobre suas vidas. Nem todos os egressos que receberam o e-mail colaboraram, indisposição
que ficou evidente na resposta de um ex-aluno pedindo aos responsáveis pelo PROGESP a retirada de seu
endereço de e-mail da lista de contatos, fato que tipificou a natureza dessa segunda dificuldade.
Apesar desses obstáculos, a partir dessa amostra de 40 respondentes, podemos visualizar os efeitos do
programa sobre os egressos por não ter havido distorções no envio dos questionários. Turma alguma foi
privilegiada em detrimento de outra. Das setes turmas do MPSPJC, de 2013 a 2020, todos os egressos
que tínhamos o contato receberam o e-mail com o questionário e puderam assim dar a sua opinião
sobre o programa. Metaforicamente, estes 40 egressos podem ser vistos como membros de uma turma
“experimental” composta por indivíduos que passaram pelo curso em diferentes momentos de sua
trajetória institucional.
COMPETÊNCIAS GERAIS E
PERSONALIDADE PARENTÉTICA
Dos egressos que responderam ao questionário, há concentração na faixa etária entre 31 e 50 anos. São
majoritariamente graduados em Direito (67% das respostas), com a maioria permanecendo na instituição
em que estava quando entrou no curso (85%) e atuando nela há mais de 5 anos, sendo que grande parte
permanecia na mesma instituição entre 16 e 25 anos (45%).
A origem dos egressos reflete a diversidade institucional que compõe o sistema de segurança pública.
40% são membros das polícias: 17,5% da Polícia Militar da Bahia (PMBA); 12,5% da Polícia Civil da Bahia
(PCBA); 5% da Polícia Técnica da Bahia (PTBA); e mais 5% da Polícia Federal (PF). São seguidos por 27,5%
de membros do Ministério Público; 15% do Tribunal de Justiça da Bahia; e demais instituições somando
17,5% do total de respondentes.
Ramos (1984) argumenta em favor do caráter duplo da noção de racionalidade. Além da clássica
racionalidade instrumental, relacionada com a coordenação entre meios e fins, ele afirma existir um
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segundo tipo denominado de racionalidade noética ou substantiva. Ela é definida como o atributo natural
do ser humano que reside na psique (SERVA, 1997) e que o orienta para a sua autorrealização dentro
das diversas esferas da sociedade. Nesse sentido, o comportamento que ocorre dentro das organizações
é uma manifestação particular da racionalidade noética, a partir da qual os indivíduos tentam conciliar
a busca de autorrealização com o esforço de dotar o seu trabalho de significado e sentido diante da
sociedade.
Para Ramos (1984) o homem parentético está eticamente comprometido com valores que conduzem
ao primado da razão noética na vida social e privada. Apesar de depender de expertises técnicas, o
conhecimento do homem parentético é originalmente crítico. Saber fazer algo é pressuposto indispensável
ao exercício crítico no espaço organizacional. Mas é somente por meio da crítica que são evidenciadas as
condições de possibilidade para a consecução prática, e não apenas retórica, das finalidades institucionais.
Sujeito criativo, que não se perde em fantasias, crítico, sem ser impertinente, e influente, sem ser
subversivo, o homem parentético não obedece cegamente aos padrões de desempenho, antes, busca
neles o que há de significativo para, com base nesses significados, influenciar o seu ambiente de trabalho.
Neste artigo, quando falamos em competências, estamos nos referindo ao conjunto de habilidades de
um indivíduo parentético no papel de pesquisador prático. A personalidade parentética divide-se em
um nível geral e outro específico. O nível geral pode ser caracterizado pelos atributos de consciência
do papel social da profissão, criticidade, analiticidade e engajamento. Para os fins deste artigo, estão
compreendidos no nível específico o domínio de conteúdos relacionados à segurança pública e à
capacidade de manejar procedimentos de pesquisa empírica e a aplicação prática do conhecimento. O
nível específico da personalidade parentética é então o papel que o indivíduo assume como pesquisador
prático. Ao falarmos em pesquisador prático, portanto, pressupomos qualidades parentéticas de fundo e
competências específicas de pesquisa, elaboração e uso do conhecimento.
Numa consulta aos portais das instituições parceiras do MPSPJC, mencionadas anteriormente, verificou-se
que todas elas estão comprometidas com os valores do estado democrático de direito e com a excelência
de seus respectivos serviços (Quadro 1). Ou seja, tais instituições estão comprometidas com valores
socialmente responsivos e podemos dizer que elas estão atentas ao primado da racionalidade noética, no
mínimo discursivamente.
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QUADRO
Quadro 1 1
Finalidades Institucionais
Em sequência, no Gráfico 1, temos a informação de que a maioria dos egressos respondentes apresentou
plena consciência dos valores de cidadania sustentados por suas respectivas instituições e das expectativas
sociais em torno de seu papel profissional.
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Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
Gráfico 1
Gráfico 1
GRÁFICO 1
Item: Após o término do curso sinto-me mais consciente do papel social de minha profissão
30
30
25
25 25
Respondentes
25
NúmerodedeRespondentes
20
20
15 14
15 14
10
10
Número
5
5 1
0 0 1
0 0 0
0
Discordo Discordo Indiferente Concordo Concordo
Discordo
totalmente Discordo Indiferente Concordo Concordo
totalmente
totalmente totalmente
Escala de Opinião
Escala de Opinião
Fonte: Elaborado pelos autores (2021).
Por sua vez, o Gráfico 2 apontou para o fato de que a maioria dos egressos respondentes se sente mais
preparada para pensar de forma crítica após a conclusão do curso.
Gráfico 2
Gráfico 2
GRÁFICO 2
Item: Após o curso houve melhoria em minha capacidade de pensar de forma crítica
30
30
26
26
25
25
Respondentes
NúmerodedeRespondentes
20
20
15 13
15 13
10
Número
10
5
5
1
0 0 1
0 0 0
0 Discordo totalmente Discordo Indiferente Concordo Concordo totalmente
Discordo totalmente Discordo Indiferente Concordo Concordo totalmente
Escala de Opinião
Escala de Opinião
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ARTIGO
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Gráfico Souza
Anderson 3 da Silva, Ivone Freire Costa e
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Gráfico253 3
GRÁFICO 23
Item: Considero relevante a racionalização de métodos e a atualização de práticas dentro da minha
20 de trabalho
Número de Respondentes
instituição
17
25 23
15
20
Número de Respondentes
10 17
15
5
10 0 0 0
0
Discordo Discordo Indiferente Concordo Concordo
5 totalmente totalmente
Escala de Opinião
0 0 0
0
Discordo Discordo Indiferente Concordo Concordo
totalmente totalmente
Escala de Opinião
Gráfico 4
GRÁFICO 4
Item: Considero relevante uma atualização de imagem e valores dentro da minha instituição de trabalho
Gráfico254
20
20
Número de Respondentes
17
25
15
20
20
Número de Respondentes
10 17
15
5
2
10 1
0
0
Discordo totalmente Discordo Indiferente Concordo Concordo totalmente
5
Escala de Opinião
2
1
0 Fonte: Elaborado pelos autores (2021).
0
Discordo totalmente Discordo Indiferente Concordo Concordo totalmente
Escala de Opinião
Para o juízo objetivo das organizações, a analiticidade é requisito imprescindível. O Gráfico 5 aponta
3
para o fato de que a maioria dos 40 respondentes teve uma expressiva melhoria tanto na capacidade
de analisar situações institucionais, administrativas e operacionais, integrantes do ambiente interno das
organizações, quanto de analisar cenários políticos e sociais que configuram seu ambiente externo.
3
280 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291
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GRÁFICO 5
Gráfico 5
Item: Após o curso foi ampliada minha capacidade de analisar situações institucionais, administrativas e
operacionais e cenários políticos e sociais
30
25
25
Número de Respondentes
20
15 14
10
5
1
0 0
0
Discordo Discordo Indiferente Concordo Concordo
totalmente totalmente
Escala de Opinião
Fonte: Elaborado pelos autores (2021).
Além do seu valor intrínseco, a analiticidade pode ser considerada também como um meio indireto
de comprovação do aumento de criticidade, uma vez que o pensamento crítico demanda raciocínios
válidos e bem fundamentados. A razão para melhoria dessa forma de pensar, crítica e analítica, ter
sido questionada, não antes, mas após o curso, está no fato de que competências mentais não podem
ser aprendidas em abstrato e depois aplicadas a qualquer assunto, pois elas são em grande medida
específicas a determinado domínio do conhecimento (HANSSON, 2019). Assim, é possível dizer que há
um tipo específico de pensamento científico sobre a segurança pública que pode ser encontrado no
perfil de formação do MPSPJC. A hipótese aqui aventada é a de que esse perfil encontra-se estruturado
de acordo com as linhas de pesquisa do curso. Nesse sentido, questionou-se aos egressos acerca de sua
capacidade de interpretação de dilemas e perspectivas em torno do conteúdo de cada uma dessas três
linhas (Tabela 1).
Tabela 1
TABELA 1
Item: Após o curso foi ampliada a minha capacidade de interpretação dos dilemas e perspectivas em:
Criminalidade, 60 35 5 - -
violência e métodos de
prevenção e controle
Políticas de Segurança 60 40 - - -
Pública
4
Fonte: Elaborado pelos autores (2021).
Gráfico 6
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Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
Como pode ser visto na Tabela 1, os egressos avaliam positivamente o perfil de formação adquirida. A maioria
afirma sentir maior domínio de assuntos específicos da área de segurança pública. Não houve discordâncias
ou indiferenças sobre o aumento da compreensão de dilemas e perspectivas em torno das políticas públicas
de segurança, porém, observa-se 5% de indiferença em relação às temáticas de criminalidade, violência e
métodos de prevenção; e 12,5% de indiferença no que diz respeito aos temas relacionados à democracia
e à garantia de direitos, o que chama a atenção para a relativa fragilidade desta última linha comparada às
Tabelano
demais 1 corpo do MPSPJC.
Os Criminalidade, 60
problemas organizacionais detectados 35
pelo julgamento 5
da organização -
podem -
ser convertidos em
violência e métodos de
objetos de pesquisa profissional que visa atingir um tipo de conhecimento que capacita a compreensão
prevenção e controle
e a intervenção numa determinada realidade profissional. É exatamente neste momento que o indivíduo
Políticas dedeixa
parentético Segurança 60 crítico e assume
de ser meramente 40 o papel de -pesquisador prático.
- -
Neste ínterim, ele
Pública
demonstra a reciprocidade entre competências gerais, para se chegar a uma opinião, e competências
específicas de pesquisa, ambas, de um lado, desenvolvidas, de outro, adquiridas, durante o processo de
formação no mestrado profissional.
Gráfico 6 6
GRÁFICO
Item: Após o curso houve melhoria em minha capacidade de utilizar metodologias de
trabalho/pesquisa empírica
25
20
20
Número de Respondentes
17
15
10
5
2
1
0
0
Discordo Discordo Indiferente Concordo Concordo
totalmente totalmente
Escala de Opinião
O Gráfico 6 apontou para o fato de que a maioria dos egressos se sente mais capacitada para pensar e usar
metodologias de trabalho e de pesquisa empírica, o que é requisito fundamental para pesquisas científicas
de qualquer espécie, além de ser o diferencial de formação oferecido pelos mestrados profissionais.
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5
ARTIGO
Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
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Já a Tabela 2 traz informações relativas ao impacto profissional do curso e suas dimensões estão
sucessivamente ligadas entre si.
TABELA
Tabela 2 2
Habilidades de engajamento e impacto no contexto profissional
Após o curso Concordância Concordância Indiferença Discordância Discordância
plena (%) (%) (%) (%) plena (%)
Capacidade de relacionar as
temáticas do curso com a 55 42,5 2,5 - -
realidade profissional
Influência do conteúdo
teórico do curso sobre a 45 55 - - -
atividade profissional
Aumento na capacidade de
interpretação dos dilemas e
perspectivas em torno da 50 50 - - -
resolução de conflitos no
ambiente profissional
Aumento na capacidade de
tomar decisões e resolver 57,5 32,5 10 - -
problemas
Aumento da performance em
trabalhos de equipe e
elaboração de projetos de 50 42,5 5 2,5 -
intervenção: planejamento,
organização, comunicação e
liderança
Como pode-se observar, a maioria dos egressos declara ser capaz de relacionar as temáticas do curso
com sua realidade profissional – somando 97,5% – e afirma que a formação teórica proporcionada pelo
mestrado exerceu influência sobre a sua atividade profissional, não havendo discordância ou indiferenças.
Com isso, nota-se um aumento entre os respondentes da capacidade de interpretar dilemas e perspectivas
em torno da resolução de conflitos no ambiente profissional: 50% estão de pleno acordo, enquanto os
demais 50% apenas concordam. Uma maior competência para a tomada de decisões e de resolução de
problemas, 90% de concordância, e por conseguinte um aumento da performance em trabalhos de equipe
e na elaboração de projetos de intervenção, atingindo 92,5% de concordância.
Acerca da produção intelectual dos egressos, de acordo com o Gráfico 7, grande parte considera que
seus respectivos trabalhos finais de conclusão de curso têm potencial de impacto profissional (28), social
(24), educacional (11), cultural (7) e econômico (5), além de outros tipos de impactos (4), como ambiental,
urbanístico, institucional, etc.
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Competências e impactos do mestrado profissional:
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Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
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GRÁFICO 7
Gráfico 7
Item: Meu trabalho final de conclusão de curso, projeto de intervenção ou dissertação,
tem potencial de impacto(s)
Gráfico 7
Outros tipos de impactos 4
Impacto econômico 5
Outros tipos de impactos 4
Tipo de Impacto
Impacto cultural 7
Impacto econômico 5
Impacto educacional 11
Tipo de Impacto
Impacto cultural 7
Impacto social 24
Impacto educacional 11
Impacto profissional 28
Impacto social 24
0 5 10 15 20 25 30
Número de Respondentes
Impacto profissional 28
Fonte: Elaborado pelos autores (2021).
10 150 5
20 25 30
Número de Respondentes
Também foi afirmado pela maioria dos respondentes ter havido experiências inovadoras no seu contexto
profissional em decorrência das reflexões e investigações feitas durante o curso (Gráfico 8). Apenas 3
Gráfico 8
disseram que não, e 9 expressaram alguma dúvida, assinalando a resposta “talvez”.
GRÁFICO
Gráfico 8
8
Item: Houve experiências inovadoras em seu contexto profissional a partir das reflexões e
Sim feitas durante o curso?
investigações 28
ConfirmaçãoConfirmação
Sim
Talvez 28
9
Talvez
Não 9
3
0 5 10 15 20 25 30
Não 3 Número de Respondentes
0 5 10 15 20 25 30
Número de Respondentes
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ARTIGO
Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
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Outra maneira de examinar o impacto profissional do curso sobre os egressos foi questionar sobre sua
produção intelectual de natureza técnica-tecnológica. Usamos a definição de produto técnico-tecnológico
adotada pela CAPES. Ela o define como um “objeto tangível” resultante da aplicação de conhecimentos
científicos ou expertises e usados diretamente na solução de problemas institucionais e organizacionais
(CAPES, 2019). Podemos perceber uma compatibilidade entre esse conceito e o resultado esperado da
pesquisa profissional, discutida anteriormente. Tal definição foi incorporada no item do questionário para
que não houvessem confusões em torno do sentido do termo por aqueles que responderam. Como pode
ser visto no Gráfico 9, 14 egressos respondentes desenvolveram produtos técnicos ou tecnológicos a
partir de seus trabalhos finais ou de projetos científicos, após ou durante o curso, enquanto a maioria,
composta por 26 respondentes, não desenvolveu.
GRÁFICO 9
Gráfico 9
Item: Foi(ram) desenvolvido(s) produto(s) técnico(s) ou tecnológico(s) a partir do seu trabalho final,
projeto de intervenção ou dissertação, ou de sua produção científica após ou durante o curso?
Não 26
Confirmação
Sim 14
0 5 10 15 20 25 30
Número de Respondentes
Gráfico 10
No Gráfico 10, por sua vez, observa-se que a maior parte dos egressos não foi contemplada com a
implantação de quaisquer produtos ou serviços originados de sua produção intelectual, realizada durante
ou após o curso, seja por instituições públicas, privadas ou do terceiro setor.
Não 26
Confirmação
Sim 11
Não sei 3
0 5 10 15 20 25 30
Número de Respondentes
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291 285
ARTIGO
Competências0e impactos do mestrado
5 10
profissional: 15 20 25 30
Número
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em de Respondentes
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
Gráfico 10 10
GRÁFICO
Item: Houve implantação, por parte de instituições públicas, privadas ou do terceiro setor, de algum
produto ou serviço originado da sua produção intelectual realizada durante ou após o curso?
Não 26
Confirmação
Sim 11
Não sei 3
0 5 10 15 20 25 30
Número de Respondentes
As informações dos dados acima demonstram uma melhoria significativa nas competências gerais
da personalidade parentética e nas competências específicas do pesquisador prático. Entretanto, o
conhecimento engajado substantivado nos produtos técnicos-tecnológicos ainda parece esbarrar em
questões estruturais concernentes às instituições nas quais os egressos atuam. Conclusão semelhante
foi feita por Souza, Ramos e Pensador (2018) em estudo sobre o perfil dos egressos do Programa de Pós-
Graduação em Segurança Pública, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal8 do
Pará. Segundo os autores, apesar de a maioria dos egressos daquela instituição fazer parte de instituições
públicas de segurança do estado, como no caso da UFBA, os efeitos de sua atuação ainda eram pouco
visíveis em razão dos desafios enfrentados pelo estado na consolidação de projetos efetivos nesta área.
Diante dos dados informados pelo Gráfico 10, podemos atribuir a escassez de incentivos e oportunidades
para a capitalização de recursos intelectuais disponíveis dentro das instituições de segurança pública
como um possível fator que explica parte desses desafios enfrentados tanto no Pará como na Bahia.
286 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291
ARTIGO
Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
TABELA 3
Tabela 3 –
Impactos pessoais e profissionais
Desta forma, os dados da Tabela 3 contrastam com a tendência de avaliação dos quadros anteriores. A maioria
dos respondentes continua mantendo uma avaliação predominantemente positiva sobre o curso, porém,
chama a atenção a percentagem de afirmações de indiferença. O destaque está nos quesitos Maior visibilidade
dentro do espaço de trabalho e Valorização pessoal e profissional. Em ambos, o grau de indiferença é de
22,5%. Destaque também para o item Abertura de novas oportunidades profissionais, cujo grau de indiferença
esteve em 22% e foi o único em que houve um grau de discordância relativamente elevado (7,5%).
GRÁFICO 11
Autoria em publicações científicas
No que diz respeito à relação entre os egressos e o mundo acadêmico, o Gráfico 11 evidencia que dos 40
respondentes, 23 são autores de publicações científicas, como artigos em periódicos, livros completos ou
organizados, capítulos de livros e trabalhos completos em anais. Contudo, 17 deles apenas são autores de
Gráfico 11 –
Gráfico 12
9
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291 287
completo ou organizado, capítulo
17 de livro e trabalho completo em
ARTIGO anais
23
Apenas da dissertação
Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
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suas dissertações. Este dado é inquietante. Não estando o universo das publicações científicas reduzido à
divulgação de pesquisas acadêmicas, pesquisas profissionais, quando concluídas, merecem ser publicadas.
Mas será que essas pesquisas continuam sendo realizadas pelos egressos após o curso?
GRÁFICO 12
Gráfico 12
Item: Você está dando continuidade ao seu projeto de pesquisa, trabalho de conclusão de curso
(dissertação ou projeto de intervenção) ou desenvolvendo algum trabalho acadêmico com tema
relacionado ao curso?
Não 17
Confirmação
Sim 23
0 5 10 15 20 25
Número de Respondentes
O Gráfico 12 pode responder essa questão. A maioria continua realizando pesquisas (23), porém, um número
considerável de respondentes (17) deixou o mundo da pesquisa, não dando continuidade nem ao projeto de
sua dissertação, nem desenvolvendo algum trabalho acadêmico com tema relacionado ao curso.
GRÁFICO 13
Item: Após
Gráfico 13 – o curso continuei a minha formação acadêmica/profissional em Instituições do
Ensino Superior (IES) 10
Não continuei 25
Doutorado 7
Nível de Formação
Especialização 6
Outro mestrado 0
Outra graduação 4
0 5 10 15 20 25 30
Número de Respondentes
Fonte: Elaborado pelos autores (2021).
288 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291
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Competências e impactos do mestrado profissional:
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Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
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Já o Gráfico 13 aponta para o fato de que a maior parte dos egressos que responderam ao questionário
não continuou a sua formação (25). Apenas 7 alunos seguiram para o doutorado. 6 fizeram cursos de
especialização e 4 buscaram outra graduação.
Apesar de fugir do escopo deste trabalho, também é possível pensar que a não continuidade do
aperfeiçoamento dos egressos como pesquisadores pode estar relacionada com a baixa oferta de
doutorados profissionais no Brasil, especialmente na área de segurança pública. O doutorado é o
caminho mais comum após o mestrado e a ausência dessa oferta pode interromper os planos de carreira
do tipo de pesquisador – prático – discutido ao longo deste artigo. Tal situação revela uma lacuna entre
demandas técnicas e o caminho da universidade, pois o conhecimento científico é recurso imprescindível
para a melhoria dos serviços de segurança pública. A redução desses gaps, como é de se imaginar, não
depende apenas do interesse do pesquisador (GALINDO, 2020). É necessário mecanismos de mediação e
direcionamento de recursos apropriados para o desenvolvimento de pesquisas engajadas e inovadoras,
não apenas no nível dos mestrados, mas também no nível dos doutorados e dos cursos de especialização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados sugerem existir uma colaboração profícua entre a Universidade Federal da Bahia e as
instituições de segurança pública do estado, por meio do MPSPJC. Mostram que os respondentes estão
mais conscientes do papel social de sua profissão, apresentam maior competência em pensar de forma
crítica e em analisar os ambientes interno e externo de seu contexto profissional. Tais habilidades estiveram
relacionadas com a percepção, por parte dos respondentes, de que é relevante para suas organizações
tanto uma mudança ou renovação de imagem e valores, quanto a racionalização de seus métodos e suas
práticas, visando a melhoria no desempenho de seus serviços. Os respondentes também informaram
sentir um aumento na compreensão de dilemas e perspectivas em torno do campo da segurança pública.
Tais características foram consideradas por nós, neste artigo, como dimensões do conceito de homem
parentético, proposto pelo sociólogo Guerreiro Ramos, e que correspondem às competências mais gerais
visadas pela formação profissional.
Entretanto, os resultados confirmaram que a maioria dos respondentes não desenvolveu produtos de
natureza técnico-tecnológica. Apesar disso, foi expressivo o número daqueles que fizeram, não havendo
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291 289
ARTIGO
Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
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grande disparidade. Contudo, a maior parte não conseguiu implantar tais projetos. Acrescido a isto, mesmo
não formando maioria, boa parte dos respondentes confessou sentir indiferença quanto às oportunidades
no trabalho que poderiam ter sido proporcionadas em razão de sua formação no MPSPJC, o que nos leva
a crer existir limitações para o pesquisador de tipo prático junto às organizações contempladas neste
estudo. Ainda no campo das limitações, os resultados mostraram que a maioria não continuou a formação
acadêmica-profissional, e um número considerável não continuou com pesquisas. Assim, apesar da
experiência no curso ter sido avaliada positivamente pelos seus egressos, ainda há desafios relacionados
à exploração das potencialidades que a pós-graduação profissional pode oferecer, tanto por parte das
universidades, como das instituições de segurança pública.
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290 Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291
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Competências e impactos do mestrado profissional:
o caso do Programa de Pós-Graduação Profissional em
Segurança Pública da Universidade Federal da Bahia
Anderson Souza da Silva, Ivone Freire Costa e
Taiala Águilan Nunes dos Santos
SOUZA, J. G.; RAMOS, E. M. L.; PENSADOR, L. E. S. Perfil dos Egressos do Programa de Pós-Graduação em
Segurança Pública da Universidade Federal do Pará. In: SOUZA, J. G.; RAMOS, E. M. L.; PENSADOR, L. E. S. et al.
Segurança e defesa: cidades, criminalidades, tecnologias e diversidades. 1 ed. Praia, Cabo Verde: Uni-CV, 2019.
Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 16, ed. especial, 272-291 291
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