REVISTA ROSA 2ed
REVISTA ROSA 2ed
REVISTA ROSA 2ed
Revista Rosa
Arte e Literatura Queer
16
Paperhairy
8 CONTOS
Brilhantes 16 Fotografias
Paperhairy
42 Conexões Berlim — Lapa 54 Queerfest
46 Helicóptero 62 eXtimidade
58 OHugo
estranho mundo de
Guimarães
28 Entrevista
Marcus Lontra Costa
12 ENSAIO
Do consumo à diver-
sidade: um par 32 Arte
Francisco Hurtz
70 Fernando Cardoso
24
POEMAS
Rafael Mantovani
48 Maíra Parula 74 CRÔNICA
Depois da sua bunda
Revista Rosa
Arte e literatura de temática queer
Junho 2013
Organização/ Execução
Felipe Miguel
Editores
Felipe Miguel
Thiago Barbalho
Projeto Gráfico e Diagramação
Liziane Sutile
Capa
Flora Fontes
Arte
Fernando Cardoso
Francisco Hurtz
Ilustrações
Liana das Neves
Textos
Fernando de F. L. Torres
Hugo Guimarães
Maíra Parula
Mauro Siqueira
Rafael Mantovani
Rodrigo Novaes de Almeida
Thiago Barbalho
Wilton Garcia
Entrevistador
Francisco Hurtz
Fotografia
Aaron Kawai
Alvaro Sasaki
Viviane Rodrigues
Juh Moraes
Website
Juliano Luiz Fernandes
Liziane Sutile
Mande suas críticas e sugestões para
[email protected]
Meses atrás, circulou pela internet um
infográfico que resumia uma pesquisa sobre o perfil
das personagens dos romances publicados no
Brasil entre os períodos de 1965-1979 e 1990-2004.
Coordenado por Regina Dalcastagnè, o estudo teve
resultados que já esperávamos: homens brancos,
heterossexuais e de classe média são predominantes
nas páginas da literatura brasileira.
Fernando Cardoso é
formado em desenho pela
Escola de Belas Artes da
Flora Fontes tem 20 anos Liana das Neves é for- UFMG, onde foi professor
e mora em Natal - RN. For- mada em Artes Visuais. na década de 90, e realiza
mada em Design Gráfico, É educadora em museus exposições no Brasil e em
trabalha como ilustradora. e artista plástica. Ela fez outros países. Além de
Para conhecer mais o tra- a arte do texto de Maíra artista, também é jardineiro,
balho dela:
Parula. Contato: liana- cozinheiro e dá aulas de
flickr.com/lisfontes desenho para crianças.
[email protected]
Rodrigo Novaes de
Almeida é escritor e
jornalista. Publicou “A
saga de Lucifere” (Mojo
Books, 2009), “Rapsódias –
Primeiras histórias breves”
(2009) e “Carnebruta”
(Apicuri e Oito e Meio, Viviane Rodrigues, fotó- Mauro Siqueira é
2012), além do livro de grafa, jornalista e profes- ficcionista, editor da revista
crônicas “A construção da sora, e Juh Moraes, fotó- Rapadura e autor dos livros
paisagem” (com Christiane grafa, produtora e editora, “De vermes e outros animais
Angelotti, 2012). são donas proprietárias do rastejantes” (Multifoco,
Site: rodrigonovaes- site Fotografia Orgânica 2008) e “Pequenas
dealmeida.com e autoras do projeto “eX- colisões”, a ser lançado em
timidade”, publicado nesta 2013 (ed. Oito e Meio).
edição da Rosa.
Conversou uma ou duas vezes com uma prima que dividia o quarto
e não lembrava nem chegou a perguntar seu nome. Teus pais, primos
distantes, nunca se encontravam. Alguma história que não sabia.
Do consumo
à diversidade:
um par
Wilton Garcia
Gui
Davi
Bibi
cavalinho, passarinho
Por Rafael Mantovani
pela possibilidade
de você ser enrustido
faço meu cavalinho esperar na
chuva
enquanto ele não se gripe
atirar de qualquer la
do rumo ao meio, o passeio
meio interesseiro do ladrão
a abundância de mãos
ao redor do torno
e se for assim
que eu entenda logo
e aceite
agradeço a outubro
por existirem os meus
contemporâneos (alguns deles
querendo chupar meu pau).
ENTREVISTA
Marcus Lontra
Costa Por Francisco Hurtz
Francisco Hurtz - Existe arte gay? FH - Qual a sua opinião sobre a postura
Marcus Lontra Costa: Adjetivações dos museus e instituições em relação à
em arte são sempre perigosas, arte homoerótica no Brasil e no mundo?
elas estruturam um pensamento MLC - Acho que os museus são sensíveis
classificatório que acaba por determinar à questão da arte homoerótica; no
relações de poder autoritárias. Não Brasil talvez alguns centros culturais
acredito em arte gay, como não acredito sejam refratários, mas é algo a ser
em arte feminina, etc, mas acredito sim enfrentado através da qualidade e do
haver espaço para a circulação de uma profissionalismo das propostas.
ação artística de caráter homoerótico.
FH - Qual é o nível de aceitação do
FH - Levando em consideração a erotismo e do homoerotismo no
sociedade atual e a produção dos mercado de arte atual?
artistas contemporâneos, o que MLC - O mercado começa a responder
significa o homoerotismo na arte hoje? positivamente a esse tipo de arte e é
MLC - Significa marcar e conquistar importante que colecionadores gays
espaços de representação estética invistam parcelas consideráveis de seus
no cenário da arte, onde se valorize o investimentos em arte homoerótica de
olhar sobre o corpo masculino, onde qualidade.
se defenda a liberdade e a autonomia
dos gêneros e suas formas variadas de FH - Sinto ainda certo receio em parte
encanto, sedução e beleza. dos novos colecionadores, mesmo
que sejam gays, ao adquirirem obras
FH - “A arte consiste em fazer os outros homoeróticas. O Brasil hoje está mais
sentirem o que nós sentimos, em libertá- careta? A arte brasileira ainda está no
-los deles mesmos, propondo-lhes armário? Por quê?
a nossa personalidade para especial MLC - Não acho que o Brasil esteja
libertação” (Fernando Pessoa - Livro mais ou menos careta. O Brasil é,
do Desassossego) - o homoerotismo essencialmente, hipócrita. Essa é a
pode ser um meio de transformações essência da classe média brasileira,
sociais? que se revela no homoerotismo, na
ARTE
Francisco Hurtz
Sem Título 10, 2013
Estratégias, 2012
Exame Físico, 2013
Oficiais 3, 2013
Oficiais 4, 2013
Oficiais I, 2012
Oficial 2, 2013
Oficiais II, 2012
— TALVEZ ENTÃO DE FRANKFURT... ES- boêmios do bairro brilhantes e
TIVE NA ALEMANHA HÁ DOIS ANOS... escorregadios, ela andava com a
mesma desenvoltura exibida do
(A bateria fez uma paradinha, ela samba de antes, eu seguia; nos
rebolou até o chão) Meus olhos perdíamos propositadamente entre
vidrados, escaneando o corpo: as ruas, vielas e becos da Lapa — a
muito branca, veias azuis, verdes, mais escura nos serviria. A Lapa é
sardas, manchas de sol, marca de famosa, é badalada, cool, agitada,
biquíni! essas merdas todas, e para mim que
já zanzou pela metade do mundo,
— QUEM PODERIA IMAGINAR QUE IRÍA- a Lapa é só mais um lugar para se
MOS NOS ENCONTRAR LOGO AQUI?... esquecer no dia seguinte ao porre.
NA LAPA... NA LAPA! É ATÉ ENGRAÇA- O bairro já teve seu inferno astral,
DO..., NÃO ACHA? e hoje mais uma vez se reinventa,
e por ironia (ou não) perde a sua
(Do chão rebolou até o alto, o cor local: boemia autêntica... samba
sambão recomeçando... emulava de raiz... berço da malandragem
movimentos eróticos: subia e descia, carioca (mais merdas assim) e como
os músculos das coxas ali rígidos, todos os locais da moda sempre há
subia e descia). um lugar ou outro que conserva a
velha aura. Era dessas babaquices
— MAS VOU TE CONFESSAR: ESQUECI que conversávamos enquanto
SEU NOME. andávamos observando os bares
pequenos e antiquados. Ela com o
Vislumbrei nos seus olhos pela mesmo pensamento de desencanto
primeira vez uma ponta de atenção do lugar, o mesmo papo furado
genuína — passou a sambar à minha pseudo-inconformado, algo para
volta e eu ali. Ela então parou na falarmos enquanto andávamos... Ela
minha frente e riu: decidiu onde pararíamos e entre os
bairros da Lapa e Glória se deu nosso
— QUEM ME CONHECE NÃO ESQUECE entendimento. Conversamos mais
MEU NOME. alguma coisa sobre as conexões
Lapa-Berlim: inferninhos, drogas,
Eu ri mais para mim do que para ela: Arcos e o Portão de Brandeburgo... e
saberia dizer até seu sobrenome: percebemos que não tínhamos nada
Klein-Hoffmann. a dizer um ao outro, como qualquer
outro casal que se (re)conhece
— NÃO QUER SAIR PARA CONVERSAR... na noite. Ela então me mostrou
SEM GRITARMOS? TALVEZ LÁ FORA EU as novas tatuagens, as serpentes,
CONSIGA ME LEMBRAR DO SEU NO... enormes e de cores vivas, dando
voltas adentrando pelas costas dos
Ela não me deixou terminar o gracejo, braços.
pegou a minha mão e me tirou da
roda. Lá fora uma garoa recém- — Onde elas terminam? — perguntei com sin-
-caída deixava os paralelepípedos cera curiosidade.
Ela riu, deu as costas e levantou Enquanto transávamos, ela dizia
a blusa folgada. As tatuagens coisas em um alemão incompreen-
seguiam na direção dos ombros, sível para mim, talvez um dialeto, o
um pouco abaixo das omoplatas se que só me deixava mais excitado a
encontravam e se fundiam os dois fazer tudo com mais vigor... arfáva-
ofídios na bem demarcada coluna mos juntos e sincopados, acariciava
vertebral como uma cobra só, os seus seios eternamente tungi-
descendo até a base do cóccix — dos, beijava suas costas, segurava
era uma coisa de louco... Excitante com força sua cintura... E a bunda
só de olhar. Não resisti ao que enorme na minha frente, eu até me
queria desde o momento em que sentia pequeno diante dela. Apoia-
reconheci Vonnegut e Paulo Coelho. das nela, minhas mãos escorrega-
Numa pegada apertada pela cintura ram para as coxas — afinal eu não
a envolvi, uma risadinha nervosa tinha esquecido Berlim. Sentia os
autorizava a conduta. Esfregava a músculos das pernas, os dedos va-
barba por sua nuca, mordiscava sua garosamente seguindo para o que
orelha — um gritinho de nervoso. havia entre elas...
Virou-se bruscamente e tomando o — O que você quer ai — me disse ela num ar-
meu rosto em suas mãos, me beijou remedo de português afetado com alemão.
com demasiada força. O abraço era
o mesmo de Berlim, a maneira das — Você sabe bem...
mãos as mesmas, o cheiro da pele o
mesmo, a língua... — não tinha como Encontrei, e ela riu. O que eu fazia
ser outra pessoa — toda ela a mesma era tocá-lo — era duro... pulsante.
mulher. Foi então que levando para Abruptamente ela ergueu todo
uma parte mais escura da rua, o corpo e girou, me beijou e me
entre dois sobrados centenários, mordeu o lábio, senti o sangue... ela
nós trepamos. (E daí se pudessem me empurrou com força contra a
nos ver? Não seria a primeira vez parede, dessa vez eu fui pego pela
para ninguém: eu, ela, moradores cintura... me virou com calma... um
voyeurs). Ela desafivelava meu cinto silêncio se fez na Lapa e por um
com dificuldade; a qual eu não tive momento nada se mexia — como
para tirar a blusa e o sutiã dela — sim, naquela vez em Berlim. Ouvi o som
os seios cabiam corretamente em da cusparada em sua própria mão.
minhas mãos. E como no apertado Encostou o corpo no meu corpo
banheiro de uma boite alemã onde e enquanto me penetrava com
nos conhecemos, ela se virou para carinho, falou no meu ouvido com a
mim, empinando com talento a sua voz grossa e vigorosa:
bunda branca crescente feito lua
querendo ser cheia, e eu no escuro — Joachim Klein-Hoffmann, e da próxima
podia claramente delineá-la por não esqueça mais meu nome.
completo: alisei-a por um momento
hipnotizado... logo fui tomado pelo
óbvio: terminei com o cinto, nem me
dei conta da cueca...
HELICÓPTERO Por Dennis Cooper
Tradução de Thiago Barbalho
Dima, cujo nome real é Dimitry Marakov, nasceu em 1986 na cidade de Nalchik,
Rússia. Desde muito jovem, sonhava em trabalhar como designer no mercado da
moda. Sem apoio moral ou financeiro de seus pais, o garoto fez contatos com a
indústria fashion através da internet. Aos 14 anos, aproximou-se de um fotógrafo
em São Petersburgo que o convidou a se mudar para sua casa e trabalhar como
seu assistente. Dima aceitou a proposta e foi morar com o fotógrafo. De acordo
com os amigos de Dima, ele e o novo patrão foram amantes por um ano. Dima
frequentemente mostrava insatisfação com a falta dos benefícios que seu chefe
havia prometido como parte do acordo. Ele abandonou o fotógrafo e foi morar
com um novo e rico namorado, cujos negócios se centravam em investimentos
em sites de pornografia gay. Foi nessa época que Dimitry adotou o nome artístico
Dima e, com a ajuda de documentos falsificados em que sua idade foi alterada
para 18 anos, começou uma carreira de sucesso como modelo nu, além de atuar
em vídeos de sexo explícito em sites gays financiados pelo seu amante.
Entre os 15 e os 18 anos, Dima Lebedev afirma ter relatado o
rendeu lucros significativos como modelo ocorrido ao primeiro namorado de Dima,
e performer. O rapaz juntou parte do o qual lhe disse que o rapaz havia sido
dinheiro dos cachês com a intenção de assassinado algumas semanas antes e
financiar seus estudos numa renomada que Lebedev não deveria mais tocar no
faculdade de moda na qual esperava assunto. Ignat reportou tudo à polícia. No
ingressar ao alcançar a maioridade. entanto, após entrevistarem o amante
Em um certo ponto, Dima começou a de Dima e ouvir dele que Lebedev havia
complementar sua renda trabalhando inventado aquela versão, os policiais
também como acompanhante de desistiram de investigar o caso. Em 2006,
homens pertencentes ao círculo de Lebedev convenceu um reconhecido
contatos do seu namorado. De acordo jornalista russo gay a escrever um artigo
com amigos de Dima, isso incluía muitos sobre o desaparecimento de Dima,
líderes da indústria do entretenimento, mas durante o curso das investigações
assim como um dos homens mais para produzir seu texto, o jornalista foi
poderosos do crime organizado russo. sequestrado por razões desconhecidas,
Dima passou a demonstrar preocupação espancado e jurado de morte caso
aos seus amigos sobre a suspeita de publicasse a história. Dima nunca mais foi
que o influente líder do crime estava vista nem tem entrado em contato com
obcecado por ele. Mesmo assim, o nenhum conhecido há mais de três anos,
garoto se recusou a deixar de encontrá- embora em 2007 outra figura central
-lo, uma vez que recebia altas quantias do crime organizado, Evgeny Ershova,
como pagamento por esses encontros. que esperava pelo próprio julgamento
De repente, no ano de 2005, Dima por assassinato, confessou que no final
abandonou abruptamente seu amante, de 2005 havia visto um jovem garoto
desistiu da carreira de modelo, cortou de programa muito parecido com a
todos os contatos com seus amigos e foi descrição policial de Dima ser empurrado
viver com o sujeito do crime organizado. para fora de um helicóptero numa região
A última vez em que Dima apareceu florestal remota no norte da Rússia.
em público foi naquele mesmo ano, Em 2007, antes de morrer devido a um
quando seu amigo Ignat Lebedev, que câncer no pulmão, o ex-amante de Dima
também trabalhava como garoto de declaradamente confessou aos seus
programa, foi com um cliente a um clube amigos que o rapaz tinha sido vendido
de sexo privado e avistou Dima, agora como escravo sexual para um homem
extremamente magro e de aparência na Ucrânia no final de 2005 e que vivera
esquisita, sendo sodomizado à força até meados de 2006, quando cometeu
por um grupo de aproximadamente suicídio.
dez ou quinze homens. Ignat afirma que
seu acompanhante identificou um dos
homens como o líder criminoso, mas
convenceu Lebedev a não falar com
Dima por sua própria segurança.
Maíra Parula
Amar é sofrer, eu vou te dizer. “Não se esqueça de trazer uma
lagosta pra mim”, disse ela bem assim na beira do cais antes de eu partir para um
mergulho de onde não sabia se voltaria. Agora aqui, a 45 metros de profundidade,
e descendo cada vez mais, fico me perguntando por que não a mandei à merda,
sem endereço. Desde criança que tenho dois sonhos: resgatar do fundo do mar a
cruz do bispo Sardinha e me apaixonar por uma samurai que pisasse minha gar-
ganta até que me faltasse o oxigênio pra eu gozar. Se isso é pecado, me puna. A
cruz do bispo eu ainda não achei, mas continuo mergulhando, e fundo, muito fun-
do. Tão fundo que acabei descobrindo Isabel dentro de uma ostra, escondidinha.
Hoje vivemos juntas, só eu pago o aluguel enquanto ela arde na Fogueira Santa de
Israel. Amar é sofrer, não preciso dizer mais do que as canções banais: é só uma
gota de sangue verbal, apaixonei-me por uma obreira pentecostal.
cuando voy, estoy en mi
vou passar o natal em pedro juan caballero com Jeanne Duval, mas acho que é
pseudônimo. “eu sou retardada e gosto de você”, ela disse-me assim. não pude re-
sistir. não é paraguaia. nem brasileira. não é poeta, ou sacoleira, o que pra mim dá
no mesmo. duval insistiu no mistério e está me esperando num hotel duas estrelas
ao lado da fazenda esperança de laranjinha. me poupando das vaquejadas, vai me
apresentar à academia pontaporanense de letras, à Talita, a lagartixa que ri, me
vender baratinho uns ingressos pra copa de 2014 e cantar baixinho no meu ouvido
boate azul com sua voz de índia canoeira. mandou-me um mapa para minha ori-
entação, eu já estava fazendo as malas. e cadê o caballero aqui? tive de perguntar
a minha tia, ex-guerrilheira do Cerro Corá, que fez outra rota mais segura pra mim
e me deu um kit sobrevivência, pois não perde os velhos hábitos. não sei o que me
espera em Jeanne Duval. o avião sai em duas horas do aeroporto de mossoró para
o meu éden latino. eu não deveria me iludir tanto, leio na lâmina da faca dentro do
kit. pero así ha sido, es y será.
Admito achar que viajar é algo necessário para o ser humano, proporcionando
um crescimento do espírito, mas não realizo isso com a frequência que desejaria.
Prioridades, agenda, trabalho (ou a falta dele) são alguns obstáculos para isso.
Porém, 2012 foi um tanto frutífero dentro de trabalhos estranhos com números,
desenhos sem muito sentido e relatórios bizarros devidamente remunerados. Com
isso fui vendo uma lógica se formar lá pelo final daquele ano.
Já 2013 teve um início morno, do “Teu Pai Já Sabe?” de longa data
meio sem graça, com umas dores de da banda, show acústico na FNAC
cabeça envolvendo garotos gritando com direito a punks tomando chá ao
via celular que algo “NÃO ESTÁ lado de senhores finos, clipes com
CERTO”, piras estranhas de conhecidos bonecas infláveis, queijo quente,
(“Cara, o Brasil é só nosso! Do povo! E o minha bateção de cabelo distribuída
governo é o povo!”), entre outras coisas ao vivo pela internet, jeans rasgados
que deveriam ser algo além gritando estrategicamente, abraços xoxo ao
para que eu mudasse de ares. Logo capitalismo e preços promocionais
avistei algo interessante no Facebook.
Algo envolvendo xerocadas de terceira Teve também facilidades
geração, vinis, toques de rosa e herbáceas, muitos shows incríveis
vegetarianismo. Era o Foca, ex-”Nerds de outras bandas, a melhor rapper
Attack”, jogando papos aqui e acolá que já pude ter a honra de ver
com o o Mamá, do “Teu Pai Já Sabe?”, (Lulu Monamour), falta de açúcar
sobre um tour pelo cerrado e um tal ocasionando ondas de mau humor
de QueerFest em Brasília. Contei as dignos de ditadores norte-coreanos,
economias, conversei com eles sobre a aranhas, gel, camisinha, Yoko Ono
possibilidade de fazer algumas fotos e no YouTube, picolé de mamacadela,
quem sabe até um mini documentário. bicicletas, despedidas, turismo na
Logo já estava trocando figurinhas louca, mala não acompanhando
com o Foca sobre os voos e o resto é ritmo da viagem (ficou em SP dois
história. dias a mais do que eu, por conta da
companhia aérea) e, claro, um monte
Uma história envolvendo os sites de gente maravilhosa com corações
mais horríveis da humanidade para que transbordam tudo de positivo e
compra de passagens, chope às 8 da que nos acompanharam a viagem toda.
manhã em Guarulhos, gripe, complexo As fotos a seguir registram alguns
residencial lindo-maravilhoso-luxuoso- momentos dessa mini tour do “Teu Pai
do-outro-mundo-o-qual-eu-sequer- Já Sabe?” pelo cerrado, que tocou em
cheguei-a-sonhar-em-pernoitar- Brasília e Goiânia no fim de março. Mais
devido-a-não-conseguir-sonhar-com- imagens podem ser conferidas em
tamanha-magnitude, fãs ardorosos http://bit.ly/tpjs-cerrado-mar2013
O Estranho Mundo de
Hugo Guimarães
Por Hugo Guimarães
Então eu não sou um best seller. Então eu não sou um rock star. Então eu
não sou filha do Dias Gomes. Então eu não sou um milionário. Então simplesmente
eu não faço o que eu poderia superficialmente gostar. Então eu simplesmente não
faço o que eu poderia superficialmente suportar, aguentar. Eu sou um analista de
importação. Eu chego ao meu trabalho. Muitas vezes atrasado. Isso sopra no meu
estômago porque eu não posso perdê-lo. E serão dez longas horas dentro dessa
imensa caixa de concreto com milhares de caixas de papelão dentro.
Eu sei que algum dia eu vou sair. Quando eu for velhinho, eu sei que serei
livre, mas eu ainda estou na cadeia. Liberdade condicional, eu cumpro pena du-
rante o dia e à noite, vou dormir em casa. E eu não fui condenado. Eu não fui for-
çado. A culpa é minha.
Muitas vezes muito trabalho e muitas vezes, não. Sou mal pago e eu não sou
respeitado. Talvez porque eu ainda pareça um garoto de 18 anos, irresponsável,
não confiável e então eu não confio que ninguém aqui sequer existe. Eles morrem
todos os dias, toda vez que pressiono meu dedo no relógio digital. Eles desmo-
ronam como dados.
‘Poemas maravilhosos plus the early years’ está congelando. É o meu nem
ruim e segundo livro de poesia que está sob considerações de três editoras. Sei
que ele dificilmente será publicado. Provavelmente porque não consigo promovê-
-lo melhor, melhorá-lo, ou conseguir novas possibilidades de edições porque passo
meu tempo com meus maridos do webcam. E então caminho para ser um escritor
de um livro só: O excelente ‘Poesia gay underground: história e glória’, publicado
dois anos atrás. Você se lembra? Sim, você se lembra, nós lembramos. Nós nos
lembraremos.
Dez horas de trabalho. Três horas de transporte. Horas amando maridos do
webcam. Não sobra nada e lá está meu quarto de novo: minha coleção de filmes
de horror, minha gata siamesa em processo de monstruosidade fazendo cocô to-
dos os dias, minha guitarra morta, minha parede branca na qual eu prometo que
colocarei pôsteres quando eu não passar tanto tempo com maridos do webcam.
Desde que fiz minha tatuagem, não levantei mais pesos. Eles estão no chão
há um tempão. Meus mamilos não estão mais firmes como antes. Água cresce na
minha barriga como ondas do Havaí. Meus cabelos me deixam. Vou comprar Finas-
terida quando eu conseguir controlar meu dinheiro melhor ou quando eu terminar
de pagar tantos cartões de crédito.
Tenho tudo planejado, mas vou trabalhar amanhã com sapatos sujos porque
estou muito cansado para limpá-los. Nem mesmo sei a camisa que vou usar
amanhã e estou muito cansado para pensar nisso. Ás vezes nem mesmo consigo
limpar a bosta da minha gata e nem mesmo vou mencionar de novo os maridos do
webcam.
Tenho tudo planejado.
O grande escritor Hugo Guimarães tem tudo planejado.
Então eu venho correndo, correndo mais e mais rápido com minhas roupas
apertadas e sapatilhas pela pista. Eu piso na tábua, voo e aterrisso na cama, em um
vestido.
Boa noite.
eXtimidade:
NOVAS LEITURAS PARA O CORPO NA FOTOGRAFIA
Em sentido horário
eXtimidade (1), eXtimidade (3),
eXtimidade (6)
eXtimidade (4)
À direita
eXtimidade (2)
Chapéu de
mágico
Por Rodrigo Novaes de Almeida
Colagem: João Paulo Burigo
Na verdade nunca fui mágico. Sabia meia dúzia de truques e uma vez um maca-
co de circo me ensinou a hipnotizar pedras e tigres.
É verdade que eu trabalhei no circo, já fui mulher barbada sem nunca ter sido
mulher, já me vesti de urso, já derrubei touros capados, mas nunca fui mágico.
Eu aproveitei. Lambi os beiços. E como gostei da menina, não contei pro povo
que de donzela ela já passava longe.
No dia seguinte, veio a conta. Como fui tolo, pensei. Metido em outra enras-
cada. Os pra-lá-dos-montinenses estavam cansados de tanta seca naquelas
terras. E cansados também estavam da chuvarada que quando vinha não vinha
só, mas vinha enchente.
Era tarde pra dizer que eu não era mágico e me lembrei do macaco do circo. Eu
já tinha hipnotizado pedra, já tinha hipnotizado tigre, não seria difícil hipnotizar
aquela gente.
Acabou seca, acabou enchente. Quer dizer, o povo todo não viu mais seca nem
enchente. Alguns morreram comendo terra e outros morreram afogados na
última estação. E quando o efeito do transe passou eu me chispei daquele lugar
e trouxe comigo a donzela que não era donzela.
Fernando
Cardoso
aniquilar a apatia dos objetos pendurados
nas paredes, o ceticismo dos panos nos
cabides, o niilismo das luzes no teto, a
deprê inescapável do chão. Sua bunda vai
preencher o que é meu: tudo o que é vazio
e pesa. Sua bunda vai me deixar cheio e
leve. Um mundo melhor é possível graças
à sua bunda.
A sua bunda virou o meu modelo de
bunda. Assim como existe A cadeira A mesa
O bem O bom O belo, existe A bunda. Essa
bunda é a sua bunda. Por isso não penso
numa bunda feia quando penso em bunda.
Nem penso numa bunda lisa. Também não
penso numa bunda muito grande nem
muito pequena. A sua bunda é a bunda.
Quero gastar minhas noites fazendo
odes a bundas, desenhos de bundas,
pinturas de bundas, performances de
bundas, romances de bundas, esculturas
de bundas, óperas de bundas, filmes
de bundas, assemblages de bundas,
readymades de bundas.
Se eu escrever mais algum livro, o
título dele será “Bunda” e consistirá num
romance sobre bundas composto pela
palavra bunda escrita em série na forma
de curvas carnívoras, exatamente como
são os contornos da sua bunda.
Vou mudar meu apelido de Maçã pra
Bunda. Vestir o nome da sua bunda vai me
deixar mais bonito, sexy.
Em todas as canções tento encaixar
sua bunda. Por ex., “do leme ao pontal
não há nada igual à sua bunda legal”, “eu
tenho pressa e tanta coisa me interessa
mas nada como a sua bunda”, “não quero
ficar dando adeus às bundas passando
eu quero passar com elas”. MPB significa
Música Popular das Bundas.
De todas as coisas que pensei a
respeito das bundas e da bunda ideal – que
é basicamente a sua bunda, e por isso não
é uma bunda ideal, e sim real – cheguei a
uma frase capaz de sintetizar quase tudo
o que podemos pensar sobre esse órgão,
quaisquer que sejam as línguas valores
fetiches pânicos morais: