MulheresInvisiveis Corrigido

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Mulheres

I N V I S Í V EI S
O V i É S D O S DA D O S
em um mundo
p r o j e ta d o
pa r a h o m e n s

carolin e
criado
perez

Tradução de
Renata Guerra
Copyright © Caroline Criado Perez, 2019
Todos os direitos reservados.

título original
Invisible Women, exposing data bias in a world designed for men

preparação
Stella Carneiro

revisão
Camilla Savoia
Anna Beatriz Seilhe

design de capa
Sophie Harris

diagramação
Victor Gerhardt | calliope Soluções Editoriais

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj

P514m

Perez, Caroline Criado, 1984-


Mulheres invisíveis : o viés dos dados em um mundo projetado para homens /
Caroline Criado Perez ; tradução Renata Guerra. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Intrínseca, 2022.
400p. ; 23 cm.

Tradução de: Invisible women : exposing data bias in a world designed for men
Inclui índice
ISBN 978-65-5560-384-2

1. Discriminação de sexo contra as mulheres. 2. Papel sexual. 3. Feminismo.


4. Dominação masculina (Estrutura social). 5. Ciências sociais - Pesquisa. 6. Papel sexual
- Pesquisa - Metodologia. I. Guerra, Renata. II. Título.

22-78633 CDD: 305.420721


CDU: 311.21:316.346.2-055.2

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora intrínseca ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 6º andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Para as mulheres que persistem: continuem difíceis.
A representação do mundo, como o próprio mundo, é obra dos
homens; eles o descrevem a partir de seu ponto de vista, o que
confundem com a verdade absoluta.

Simone de Beauvoir
Prefácio

Boa parte da história humana escrita carrega uma grande lacuna de da-
dos. A começar pela teoria do Homem Caçador, os cronistas do passado
deixaram pouco espaço para o papel das mulheres na evolução cultural
ou biológica da humanidade. No entanto, a vida dos homens sempre
foi considerada representativa da vida de todos os seres humanos. No
que se refere a como vivia a outra metade da humanidade, na maior
parte das vezes, só há o silêncio.
E esses silêncios estão por toda parte. Toda a nossa cultura é per-
meada por eles. Filmes, imprensa, literatura, ciência, urbanismo,
economia. As histórias que contamos sobre nosso passado, presente
e futuro. Tudo isso é marcado — desfigurado — por uma “presença
ausente” do feminino. Essa é a lacuna dos dados de gênero.
Mas a lacuna dos dados de gênero não se resume a silêncio. Esses
silêncios, essas lacunas, têm consequências. Afetam diariamente a vida
das mulheres. O impacto pode ser pouco significativo: tremer de frio
no escritório devido ao ar-condicionado ajustado para o padrão do
corpo masculino, por exemplo, ou ter dificuldade para alcançar uma
prateleira fixada a uma altura cômoda para homens. Irritante, com
certeza. Injusto, sem sombra de dúvida.
Porém, nada que ponha a vida em risco. Não é como sofrer um aci-
dente em um carro cujos recursos de segurança não levam em conta
as medidas de uma mulher. Nem como ter um ataque cardíaco não
diagnosticado porque os sintomas são considerados atípicos. Para as
mulheres que passam por essas situações, o resultado de viver num
mundo construído a partir de informações que tomam os homens por
padrão pode ser fatal.
12 Mulheres invisíveis

Uma das coisas mais importantes a dizer sobre a lacuna dos dados de
gênero é que, em geral, ela não é mal-intencionada, ou sequer deliberada.
Muito pelo contrário. É apenas resultado de um modo de pensar que
existe há milênios e que, por esse motivo, tornou-se uma espécie de não
pensar. Até mesmo um não pensar duplo: entende-se “homens” sem que
seja necessário especificar, e “mulheres” simplesmente não é mencionado.
Porque quando dizemos humano, em geral queremos dizer homem.
Essa percepção não é nova. Simone de Beauvoir tornou-a famosa
quando, em 1949, disse que “a humanidade é masculina, e o homem
define a mulher não por si mesma, mas em relação a ele; ela não é
vista como ser autônomo. [...] Ele é o Sujeito, ele é o Absoluto — ela
é o Outro”.1 Novo é o contexto em que as mulheres continuam sendo
“o Outro”. E esse contexto é um mundo cada vez mais dependente de
dados e controlado por eles. Big Data, ou megadados. Que por sua vez
são garimpados para afirmar megaverdades por meio de mega-algo-
ritmos usados por megacomputadores. Quando os seus megadados
são corrompidos por megassilêncios, as verdades resultantes são, no
melhor dos casos, meias verdades. E muitas vezes, para as mulheres,
não são verdades em absoluto. Como diriam os próprios cientistas da
computação, “lixo que entra, lixo que sai”.
Esse novo contexto torna ainda mais urgente a necessidade de
preencher a lacuna dos dados de gênero. A inteligência artificial que
ajuda os médicos a fazerem diagnósticos, que analisa currículos e até
mesmo faz entrevistas com possíveis candidatos a emprego já se tor-
nou comum. Mas a inteligência artificial foi treinada em conjuntos de
dados permeados por lacunas — e considerando que os algoritmos
normalmente são protegidos, vistos como softwares de propriedade
de alguém, não se pode sequer verificar se tais lacunas foram levadas
em conta. Pelos indícios disponíveis, no entanto, tudo leva a crer que
não foram.
Números, tecnologia, algoritmos, tudo isso é essencial para a nar-
rativa de Mulheres invisíveis. Mas eles contam só a metade da história.
“Dado” é apenas outro nome para informação, e a informação pode vir
de muitas fontes. A estatística é um tipo de informação, claro, mas a
experiência humana também é. Assim, afirmo que, quando projetamos
Prefácio 13

um mundo que deve ser funcional para todos, precisamos ter mulhe-
res inseridas no debate. Se as pessoas tomando decisões que afetam a
todos forem apenas homens brancos e sem deficiência (nos Estados
Unidos, é assim em nove a cada dez casos), configura-se uma lacuna
de dados — da mesma forma que não coletar informação sobre o corpo
feminino na pesquisa médica representa uma lacuna de dados. E, como
demonstrarei, a exclusão da perspectiva feminina é uma das grandes
causas do viés masculino que tenta (muitas vezes de boa-fé) se passar
como “neutralidade de gênero”. É a isso que Simone de Beauvoir se
refere quando diz que os homens confundem o próprio ponto de vista
com a verdade absoluta.
As preocupações especificamente femininas que os homens deixam
de levar em conta cobrem uma grande diversidade de áreas, mas no
progresso da leitura você perceberá três temas recorrentes: o corpo
feminino, a carga de trabalho feminino não remunerado e a violência
masculina contra mulheres. São assuntos de tamanha importância que
afetam quase todos os aspectos de nossa vida, desde o transporte públi-
co até a política, passando pelo ambiente de trabalho e pelo consultório
médico. Mas os homens se esquecem disso, porque eles não têm um
corpo feminino. Como veremos, eles executam apenas uma pequena
parte do trabalho não remunerado feito pelas mulheres. E, embora
também precisem enfrentar a violência masculina, esta se manifesta
de maneira diferente em relação àquela enfrentada pelas mulheres.
E assim essas diferenças continuam sendo desconsideradas, e conti-
nuamos a agir como se o corpo masculino e a experiência de vida que
ele proporciona fossem de um gênero neutro. Essa é uma forma de
discriminação contra mulheres.
Ao longo deste livro, me refiro tanto a sexo quanto a gênero. Por
“sexo”, entendo as características biológicas que determinam se uma
pessoa nasce homem ou mulher. XX e XY. Por “gênero”, entendo os sig-
nificados sociais que são impostos a esses fatores biológicos — o modo
como as mulheres são tratadas por serem percebidas como mulheres.
Um desses conceitos é obra humana, mas ambos são reais. E ambos
têm consequências para as mulheres conforme se deslocam por este
mundo edificado sobre dados masculinos.
14 Mulheres invisíveis

Mas, embora eu fale tanto em sexo quanto em gênero no decorrer do


livro, uso lacuna dos dados de gênero como termo preferencial porque
o sexo não é a razão pela qual as mulheres são excluídas dos dados.
O gênero sim. Ao nomear o fenômeno que prejudica tanto a vida de
tantas mulheres, quero ser clara quanto a sua causa básica e, contra-
riando muitas das declarações que você lerá nestas páginas, quanto ao
fato de o corpo feminino não ser a causa do problema. O problema é o
significado social que atribuímos a esse corpo e a determinação social
que nos leva a não levá-lo em consideração.
Mulheres invisíveis é um relato sobre a ausência — o que às vezes
dificulta escrever sobre o tema. Se existe uma lacuna de dados refe-
rentes a mulheres como um todo (tanto porque não colhemos esses
dados, em primeiro lugar, quanto porque os dados, quando colhidos,
não são separados por sexo), no que se refere a mulheres racializadas,
deficientes e da classe trabalhadora, os dados são praticamente nulos.
Não apenas por não serem colhidos, mas porque não são diferenciados
dos dados masculinos — o que se chama “dados classificados por sexo”.
Nas estatísticas sobre representação, desde cargos acadêmicos a papéis
no cinema, os dados são apresentados como referentes a “mulheres” e
“minorias étnicas”, e com isso os dados sobre mulheres pertencentes a
minorias étnicas se perdem dentro desses conjuntos maiores. Quando
existem, inseri as informações neste livro — mas são ocorrências raras.
A questão, neste livro, não é a psicanálise. Não tenho acesso direto
aos pensamentos íntimos daqueles que perpetuam a lacuna de gênero,
e, por isso, não ofereço prova irrefutável do motivo pelo qual existe tal
lacuna. Só posso mostrar os dados e pedir que você preste atenção nos
indícios. Também não estou interessada em saber se a pessoa que pro-
duziu uma ferramenta com viés de gênero masculino era secretamente
sexista. As motivações particulares são, em certa medida, irrelevantes.
O que importa é o padrão. O que importa é determinar se é razoável
concluir, considerando-se a força dos dados que apresento, que a la-
cuna de gênero não passa de uma grande coincidência.
Eu vou defender que não é. Vou defender que a lacuna de dados
é, ao mesmo tempo, causa e consequência do pensamento leviano
que entende a humanidade como quase exclusivamente masculina.
Prefácio 15

Mostrarei com que frequência e profundidade esse viés aparece e como


distorce os dados supostamente objetivos que têm comandado nossa
vida. Mostrarei que mesmo neste mundo super-racional, cada vez mais
conduzido por computadores superimparciais, as mulheres ainda são
muitíssimo como aquelas de O segundo sexo de Simone de Beauvoir,
e que o perigo de serem, no melhor dos casos, definidas como um
subtipo de homem é tão real como sempre foi.
INTRODUÇÃO

O homem padrão

Enxergar o homem como o padrão humano é fundamental para a es-


trutura da sociedade. É um velho hábito, e tão arraigado quanto as pró-
prias teorias sobre a evolução humana. No século IV a.C., Aristóteles já
afirmava sem rodeios que o padrão masculino era um fato indiscutível:
“A primeira separação da espécie é, com efeito, que a descendência
se torne feminina em vez de masculina”, afirmou em seu tratado de
biologia Da geração dos animais. (Ele admitiu, no entanto, que essa
aberração era “uma necessidade natural”.)
Cerca de dois mil anos depois, em 1966, a Universidade de
Chicago realizou um simpósio sobre as sociedades primitivas de ca-
çadores-coletores. Chamava-se “O Homem Caçador”. Setenta e cinco
antropólogos sociais do mundo inteiro se reuniram para debater o
papel da caça na evolução e no desenvolvimento humanos. Sua im-
portância era um consenso. 1 “A biologia, a psicologia e os hábitos
que nos distinguem dos macacos — devemos tudo isso aos caça-
dores de outrora”, afirmava um dos trabalhos publicados no livro
que resultou do simpósio. Tudo isso seria perfeito, mas, conforme
apontaram as feministas, essa teoria apresentava um problema para
a evolução feminina. Porque, como aquele livro deixava evidente,
a caça era uma atividade masculina. Portanto, se “nosso intelecto,
interesses, emoções e vida social básica são produtos evolutivos do
êxito da adaptação à caça”, o que isso significa para a parte feminina
18 Mulheres invisíveis

da humanidade? Se a evolução humana é conduzida por homens,


seriam as mulheres sequer humanas?
Em seu agora clássico ensaio de 1975, “Woman the Gatherer” [A
mulher coletora], a antropóloga Sally Slocum desafia o primado do
Homem Caçador.2 Os antropólogos, diz ela, “procuram exemplos do
comportamento masculino e supõem que isso basta como explica-
ção”. E então formula uma simples pergunta para preencher o silêncio:
“O que as mulheres estavam fazendo enquanto os homens caçavam?”
Resposta: coletando, alimentando os filhos e cuidando deles durante
“os períodos mais longos da dependência infantil”, e tudo isso também
exigia cooperação. No contexto desse conhecimento, “a conclusão de
que a adaptação humana básica foi o desejo dos machos de caçar e
matar”, contesta Slocum, “dá importância demasiada à agressão, que
é, afinal de contas, apenas um dos fatores da vida humana”.
Sally Slocum fez essa crítica há mais de quarenta anos, mas o viés
masculino na teoria da evolução persiste. “Seres humanos evoluíram
para terem um instinto para a violência destrutiva, segundo pesquisa-
dores”, dizia uma manchete de 2016 do jornal Independent.3 A matéria
se referia a um trabalho acadêmico intitulado “Raízes filogenéticas da
violência humana letal”, que pretendia demonstrar que os seres hu-
manos evoluíram para se tornarem seis vezes mais mortíferos contra
a própria espécie do que a média dos mamíferos.4
Isso é, sem dúvida, verdadeiro para a nossa espécie como um todo
— mas a realidade da violência letal entre humanos é que se trata de
uma atividade esmagadoramente masculina: uma análise de assassinatos
cometidos na Suécia no decorrer de trinta anos mostrou que nove em
cada dez homicídios são cometidos por homens.5 Isso é confirmado por
estatísticas de outros países, entre eles Austrália,6 Reino Unido7 e Estados
Unidos.8 Uma pesquisa da ONU feita em 2013 sobre homicídios revelou
que 96% dos homicidas no mundo inteiro são homens.9 Então, quem são
os assassinos: os seres humanos ou os homens? E se as mulheres não são
muito fãs das matanças, o que pensar da “filogenética” feminina?
Ao que parece, o enfoque masculino-salvo-indicação-contrária con-
taminou todos os pontos da pesquisa etnográfica. As pinturas em ca-
vernas, por exemplo, quase sempre ilustram animais de caça, de forma
O homem padrão 19

que os pesquisadores concluíram que foram feitas por homens — os


caçadores. Mas novas análises das impressões de mãos deixadas junto
a essas pinturas em cavernas da França e da Espanha sugerem que, na
verdade, a maioria delas foram feitas por mulheres.10
Nem mesmo ossos humanos estão a salvo do pensamento mas-
culino-salvo-indicação-contrária. Poderíamos crer que os esqueletos
humanos são objetivamente masculinos ou femininos e, portanto, li-
vres do pensamento de viés do padrão masculino. Seria um erro. Por
mais de cem anos, um esqueleto viking do século X conhecido como
Guerreiro Birka foi considerado masculino — apesar de sua pelve de
aparência feminina — por ter sido enterrado junto a um conjunto
completo de armas e dois cavalos sacrificados.11 Esse conteúdo fúnebre
indicava que o ocupante da sepultura havia sido um guerreiro12 — e
guerreiro significava homem (os arqueólogos associam as numerosas
referências a mulheres guerreiras existentes na tradição viking a “ador-
nos míticos”).13 Mas ainda que aparentemente as armas sejam mais
contundentes do que a pelve no que se refere à determinação do sexo,
o mesmo não ocorre com o DNA: uma testagem de 2017 confirmou
que aqueles ossos pertenciam, de fato, a uma mulher.
No entanto, a discussão não terminou aqui. Sofreu apenas um
desvio.14 Os ossos devem ter sido misturados; deve haver outro motivo
para que um corpo feminino tenha sido sepultado com aqueles objetos.
Acadêmicos negacionistas podem até ter alguma razão ao admitir as
duas possibilidades (ainda que, com base no conteúdo da sepultura,
os autores originais descartem essas críticas). Mas a resistência é, sem
dúvida, reveladora, especialmente porque esqueletos masculinos en-
contrados em circunstâncias semelhantes “não são questionados da
mesma forma”.15 E, de fato, quando os arqueólogos escavam sítios
mortuários, quase sempre encontram restos mortais masculinos em
maior quantidade, o que, como observou laconicamente o antropólogo
Phillip Walker num livro de 1995 sobre definir o sexo de esqueletos,
“não é compatível com o que sabemos sobre a proporção dos sexos
nas populações humanas”. 16 Considerando que as mulheres vikings
podiam possuir propriedades, ser herdeiras e tornar-se mercadoras
influentes, seria tão impossível que pudessem também ser guerreiras?17
20 Mulheres invisíveis

Afinal, esses não seriam em absoluto os únicos ossos femininos de


guerreiras que foram descobertos. “Muitos esqueletos femininos com
cicatrizes de batalha foram descobertos nas estepes eurasianas, da
Bulgária à Mongólia”, escreveu Natalie Haynes para o jornal The
Guardian.18 Para povos como os antigos citas, que guerreavam a cavalo
com arco e flecha, não havia nenhuma vantagem inata em ser um guer-
reiro do sexo masculino, e os testes de DNA nos esqueletos sepultados
com armas em mais de mil cemitérios citas encontrados da Ucrânia à
Ásia Central revelaram que mais de 37% das mulheres e meninas citas
eram combatentes ativas.19
A dimensão em que o masculino-salvo-indicacão-contrária permeia
nosso pensamento parece menos surpreendente quando se entende que
isso está enraizado num dos mais básicos pilares da sociedade: a pró-
pria língua. Com efeito, ao criticar o viés masculino na antropologia,
Sally Slocum indica que essa tendência surgiu “não apenas no modo
como os escassos dados são interpretados, mas na própria linguagem
que é utilizada”. A palavra “homem”, afirma ela, “se usa de modo tão
ambíguo que fica impossível determinar se é aplicada a pessoas do
sexo masculino ou à espécie humana em geral”. Essa duplicidade de
significados levou Slocum a suspeitar de que “na cabeça de muitos
antropólogos, ‘homem’ no sentido de elemento da espécie humana é, na
verdade, o sinônimo perfeito para ‘macho da espécie’”. Como veremos,
há indícios de que ela provavelmente estava certa.
No poema “Myth”, de Muriel Rukeyser, um Édipo velho e cego per-
gunta à Esfinge: “Por que não reconheci minha mãe?” A Esfinge diz que
Édipo tinha respondido incorretamente ao enigma proposto por ela
(o que anda em quatro pernas de manhã, duas à tarde e três à noite?).
“Você respondeu Homem. Não disse nada sobre a mulher.” Édipo con-
testa: mas quando se fala homem “inclui-se também a mulher. Todos
sabem disso”.
Só que na verdade a Esfinge estava certa, e Édipo, errado. Quando
se diz homem, a mulher não “está incluída”, ainda que tecnicamente
todos de fato “saibam disso”. Numerosos estudos feitos nos últimos
quarenta anos em diversas línguas confirmaram que o que se cha-
ma de “masculino genérico” (o uso de palavras como “ele” de forma
O homem padrão 21

neutra quanto ao gênero) não é efetivamente compreendido de forma


genérica.20 É compreendido esmagadoramente como masculino.
Quando se usa o masculino genérico, é mais provável que as pessoas
evoquem homens famosos do que mulheres famosas,21 entendam uma
profissão como dominada por homens22 e sugiram candidatos do sexo
masculino para indicações de emprego e cargos políticos.23 Também há
menos probabilidade de mulheres se candidatarem, e ainda menos de
irem bem em entrevistas, para cargos que são divulgados com o uso do
masculino genérico.24 De fato, o masculino genérico é tão compreendido
como apenas masculino que chega a se sobrepor a estereótipos que de
maneira geral são bastante fortes, de modo que profissões como “este-
ticista”, normalmente exercidas por mulheres, de repente passam a ser
vistas como masculinas.25 Isso chega até a distorcer a pesquisa científica,
criando uma espécie de lacuna de dados metagenérica: um trabalho
acadêmico de 2015 sobre o viés autorreferente em estudos psicológicos
concluiu que o uso do masculino genérico nos questionários influencia-
va as respostas das mulheres, podendo distorcer “o valor da pontuação
nos testes”.26 Os autores concluíram que seu uso “pode retratar diferenças
irreais entre mulheres e homens, que não apareceriam na forma neutra
quanto a gênero ou em versões do mesmo questionário que fizessem uso
de linguagens com pronomes neutros ou pelo gênero natural”.
Mesmo diante de décadas de evidência de que o masculino genérico
é tudo menos claro, a política oficial sobre a língua em muitos países
continua insistindo que se trata de mera formalidade cujo uso deve
prosseguir em nome da... clareza. Em 2017, a Académie Française, au-
toridade máxima no que se refere à língua francesa, esbravejava contra
“a aberração que é a ‘escrita inclusiva’”, afirmando que a língua francesa
se encontrava em perigo mortal devido ao que se tentava fazer com
o masculino genérico. Outros países, entre eles Espanha27 e Israel,28
enfrentaram debates similares.
Como na língua inglesa a variação de gênero se aplica a poucas
classes gramaticais, o masculino genérico é bastante limitado no uso
moderno. Termos como doctor [médico] e poet costumavam represen-
tar o masculino genérico (e algumas médicas e poetas eram chamadas
de doctoresses e poetesses, geralmente em tom de escárnio), mas são
22 Mulheres invisíveis

hoje em dia considerados neutros quanto a gênero. Mas, embora o uso


formal do masculino genérico permaneça arraigado apenas no texto de
pedantes que ainda insistem em usar he [ele] para expressar he [ele] ou
she [ela], foi, de certa forma, reaquecido com o uso informal de gírias
americanas como dude e guys, e, no Reino Unido, lads como termos
supostamente neutros quanto ao gênero. Uma polêmica recente no
Reino Unido também mostrou que, para algumas pessoas, o padrão
masculino ainda importa e muito: em 2017, quando Dany Cotton, a
primeira mulher a comandar a Brigada de Incêndio de Londres, su-
geriu a troca do termo fireman — literalmente, homem do fogo, ou
bombeiro — por firefighter — combatente do fogo, algo bem mais
legal, convenhamos — recebeu uma enxurrada de e-mails raivosos.29
Idiomas como francês, alemão e espanhol, no entanto, apresentam
flexão de gênero, e neles o conceito de masculino e feminino está entra-
nhado na própria língua. Todos os substantivos têm gênero, feminino
ou masculino. Mesa é feminino, carro é masculino: la mesa roja [a
mesa vermelha], el coche rojo [o carro vermelho]. No que diz respeito
a substantivos que se referem a pessoas, embora existam tanto termos
masculinos quanto femininos, o gênero padrão é sempre masculino.
Tente procurar no Google a palavra “advogado” em alemão. A ferra-
menta de busca retorna Anwalt, que significa literalmente advogado
do sexo masculino, mas que é usado genericamente para ambos os
sexos. Se você quiser dizer especificamente “advogada”, dirá Anwältin
(a propósito, muitas vezes, como neste caso, os termos femininos não
passam de termos masculinos modificados, o que é outra maneira sutil
de considerar o feminino como um desvio do padrão masculino ou,
para usar os termos de Simone de Beauvoir, o “Outro”). O masculino
genérico também é utilizado para designar grupos: quando o gênero
é indeterminado, ou se o grupo é misto, usa-se o masculino genérico.
Assim, um grupo de cem docentes do sexo feminino seria chamado em
espanhol de las professoras, mas se a elas se somar um único professor
do sexo masculino o grupo se torna de repente los profesores. Tal é o
poder do padrão masculino.
Nas línguas que apresentam flexão de gênero, o masculino genérico
está em toda parte. Vagas de emprego são anunciadas quase sempre
O homem padrão 23

no masculino, em particular para funções de liderança.30 Uma pes-


quisa austríaca recente sobre a linguagem empregada nos anúncios
de empregos em cargos de chefia detectou uma proporção de 27:1
entre o masculino e “formas mais justas para o gênero” (em que eram
utilizados os termos masculino e feminino).31 O Parlamento Europeu
acredita ter encontrado uma solução para esse problema, e a partir de
2008 vem recomendando que se acrescente (m/f) no final de anúncios
de emprego nas línguas com flexão de gênero. A ideia é tornar o mascu-
lino genérico mais “justo”, uma lembrança de que as mulheres existem.
É uma boa ideia — mas não se apoia em dados. Ao colocar à prova o
seu efeito, os pesquisadores descobriram que não fazia diferença em
relação à influência excludente representada pelo uso do próprio mas-
culino genérico — o que demonstra a importância de coletar dados
antes de tomar medidas.32
Será que toda essa discussão sobre palavras faz alguma diferença
no mundo real? É possível que sim. Em 2012, uma análise do Fórum
Econômico Mundial concluiu que países falantes de línguas com flexão
de gênero, que têm ideias arraigadas sobre o masculino e o feminino
presentes em quase toda verbalização, são os mais desiguais em termos
de gênero.33 Mas aqui ocorre uma peculiaridade interessante: os países
em que se falam línguas sem distinção de gêneros (como o húngaro e o
finlandês) não são os mais igualitários nesse aspecto. Essa honra cabe a
um terceiro grupo, o dos países em que se falam “línguas de gênero na-
tural” como o inglês. Essas línguas permitem que o gênero seja indicado
(female teacher, ou “professor do sexo feminino”; male nurse, ou “enfer-
meiro do sexo masculino), mas não reforça o gênero na palavra em si.
Os autores da pesquisa sugerem que, se não for possível indicar o gênero
de forma alguma, pode-se “corrigir” o viés masculino escondido numa
língua enfatizando “a presença de mulheres no mundo”. Resumindo:
como o homem fica subentendido sem que seja necessário especificar,
é importante que as mulheres sejam literalmente mencionadas.
É tentador pensar que o viés masculino entranhado na língua não
passa de uma relíquia de tempos retrógrados, mas os indícios não apon-
tam para esse caminho. A “linguagem que mais cresce” no mundo,34
usada por mais de 90% da população conectada, é a dos emojis.35
24 Mulheres invisíveis

Essa linguagem originou-se no Japão na década de 1980, e as mulheres


são suas maiores usuárias:36 78% das mulheres contra 60% dos homens
usam emojis com frequência.37 Curiosamente, até 2016, o mundo dos
emojis era masculino.
Os emojis que temos em nossos smartphones são escolhidos pelo
pomposo Unicode Consortium, grupo sediado no Vale do Silício com-
posto de organizações que trabalham juntas para assegurar padrões
internacionais e universais dos softwares. Se o Unicode decide que
determinado emoji (por exemplo, o “espião”) deve ser somado ao con-
junto atual, vai tomar a decisão sobre o código que deve ser usado.
Cada fabricante de celular (ou cada plataforma, como o Twitter e o
Facebook) vai desenhar sua própria interpretação de como seria um
“espião”, mas todos usarão o mesmo código, de modo que, quando os
usuários se comuniquem entre diferentes plataformas, todos estejam,
de modo geral, dizendo a mesma coisa. Um emoji com olhos de coração
é um emoji com olhos de coração.
Historicamente, o Unicode não especifica gênero para a maior parte
dos personagens. O emoji que em quase todas as plataformas mostrava
originariamente um homem correndo não se chamava man running, ou
“homem correndo”. Chamava-se apenas runner, “corredor”. De forma
análoga, o emoji original para policial era chamado pelo Unicode de
police officer, “funcionário da polícia” e não policeman “homem poli-
cial”. Foram as plataformas que interpretaram individualmente esses
termos de gênero neutro como masculinos.
Em 2016, o Unicode decidiu tomar uma providência a respeito.
Abandonando a posição inicial de “neutralidade” de gênero, decidiu
atribuir um gênero explícito a todos os emojis que representassem
pessoas.38 Assim, em vez de runner, que tinha sido representado em
todas as plataformas como um corredor do sexo masculino, o Unicode
lançou um código para a representação de um corredor explicitamen-
te homem e de uma corredora explicitamente mulher. Existem agora
opções masculinas e femininas para todos os profissionais e atletas.
É uma conquista pequena, mas significativa.
É fácil chamar de sexistas os fabricantes de celulares e as redes so-
ciais (o que de fato são, como veremos, ainda que muitas vezes sem
O homem padrão 25

intenção), mas a realidade é que, embora tenham dado um jeito de


desenhar a imagem de um corredor “neutro”, a maior parte das pessoas
enxergou aquele corredor como do sexo masculino porque entende-
mos as coisas como masculinas a menos que sejam especificamente
indicadas como femininas. Assim, embora possamos torcer para que
gramáticos raivosos aceitem a ideia de que dizer “ele e ela” (ou mes-
mo, que heresia, “ela e ele”) em vez de apenas “ele” pode não ser a pior
coisa que lhes aconteceu na vida, a verdade é que livrar-nos do mascu-
lino genérico seria apenas metade da batalha: o viés masculino está tão
entranhado em nosso psiquismo que mesmo palavras autenticamente
neutras quanto ao gênero são entendidas como masculinas.
Uma pesquisa de 2015 identificou as cinco palavras mais usadas
para designar pessoas na relação ser humano-computador nos traba-
lhos publicados em 2014, e descobriu que essas palavras, em inglês, são
todas aparentemente neutras em gênero: user (usuário/a), participante,
person (pessoa), designer e researcher (pesquisador/a).39 Muito bem,
estudiosos da relação ser humano-computador! Mas, como não podia
deixar de ser, há um senão. Quando os participantes da pesquisa foram
convidados a pensar em cada uma dessas palavras durante dez segun-
dos e, em seguida, desenhar uma imagem dela, o que ocorreu foi que
as palavras em teoria neutras quanto ao gênero não foram entendidas
como masculinas e femininas na mesma proporção. Para participantes
do sexo masculino, apenas a palavra designer foi interpretada como
masculino em menos de 80% dos casos (e mesmo assim ficou em 70%).
Foi mais frequente que a palavra researcher fosse interpretada como
não pertencente a gênero nenhum do que ao feminino. As mulheres
se mostraram menos susceptíveis ao viés de gênero, mas, ainda assim,
mais propensas a interpretar palavras neutras como masculinas. Dessa
forma, apenas person e participante (ambas entendidas como mascu-
linas por cerca de 80% dos participantes do sexo masculino) ficaram
em 50% para cada gênero nas respostas das mulheres.
Esses achados desanimadores são coerentes com décadas de dados
do tipo “desenhe um cientista”, em que os participantes desenhavam,
em sua maioria, homens (o viés tem sido historicamente tão extremo
que os meios de comunicação mundiais festejaram como um grande
26 Mulheres invisíveis

progresso o resultado lançado por um trabalho recente que desco-


briu que 28% das crianças agora desenham mulheres).40 São coerentes
também, de maneira mais perturbadora, com uma pesquisa de 2008
na qual estudantes paquistaneses (entre nove e dez anos) foram con-
vidados a desenhar uma imagem de “nós”.41 Bem poucas meninas e
nenhum dos meninos desenharam mulheres.
Também não permitimos que não humanos escapem da nossa per-
cepção do mundo como predominantemente masculino: quando uma
pesquisa usou pronomes femininos para tentar fazer com que os par-
ticipantes vissem um animal de pelúcia de gênero neutro como femi-
nino, crianças, pais e cuidadores continuaram referindo-se ao animal
como “ele”.42 A pesquisa concluiu que o bichinho precisaria ser “super-
feminino” para que “cerca de metade dos participantes se referisse ao
brinquedo como ela”.
Para ser justa, essa suposição não é totalmente descabida: muitas
vezes, trata-se mesmo de um “ele”. Uma pesquisa internacional de 2007
sobre 25.439 personagens infantis de programas televisivos concluiu
que apenas 13% dos não humanos eram femininos (o número de perso-
nagens femininos humanos era um pouco maior, embora ainda baixo:
32%).43 Uma análise de filmes adequados para crianças entre 1990 e
2005 concluiu que apenas 28% dos papéis com falas cabiam a perso-
nagens femininos — e, talvez mais significativo no contexto de seres
humanos masculinos-salvo-indicação-contrária, as mulheres represen-
tavam apenas 17% do total em cenas com grupos de pessoas.44
Os homens não apenas têm mais papéis, como passam cerca do dobro
do tempo em cena — essa diferença se aproxima do triplo quando, como
ocorre na maior parte dos filmes, o protagonista é do sexo masculino.45
Só quando a protagonista é do sexo feminino que homens e mulheres
têm mais ou menos o mesmo tempo de tela (ao contrário do que se pode-
ria esperar, as mulheres não recebem mais tempo). Os homens também
têm mais diálogos, pois falam duas vezes mais que as mulheres no total;
três vezes mais em filmes protagonizados por homens e quase duas vezes
mais em filmes co-protagonizados por homens e mulheres. Novamente,
apenas nos poucos filmes protagonizados por mulheres o tempo de cena
é equilibrado entre personagens masculinos e femininos.
O homem padrão 27

Esse desequilíbrio não ocorre apenas nos filmes e na TV. Está em


toda parte.
Está nas estátuas: contei todas as estátuas que figuram na base de
dados da Associação de Monumentos Públicos e Esculturas do Reino
Unido e concluí que existem mais estátuas de homens chamados John
do que de mulheres históricas, com nomes conhecidos e que não per-
tenceram à realeza (o único motivo pelo qual a inclusão de mulheres
da realeza ao total faria delas mais numerosas do que os Johns deve-se
ao entusiasmo da rainha Vitória por erigir estátuas de si mesma, algo
pelo qual sinto um respeito relutante).
Está nas cédulas de dinheiro: em 2013, o Banco da Inglaterra anun-
ciou que estava substituindo a única figura histórica feminina das
cédulas por outro homem (fiz uma bem-sucedida campanha contra
isso, e pipocaram movimentos semelhantes em outros países, incluindo
Canadá e Estados Unidos).46
Está no noticiário dos jornais: de cinco em cinco anos, a partir de
1995, o Projeto de Monitoramento da Mídia Global vem avaliando os
meios de comunicação escritos e transmitidos quanto à representação
de mulheres. O relatório mais recente desde a publicação deste livro,
lançado em 2015, diz que “as mulheres representam apenas 24% das
pessoas ouvidas, mencionadas ou vistas em matérias de jornais, tele-
visão ou rádio, exatamente como aconteceu em 2010”.47
Está até mesmo nos livros escolares. Trinta anos de pesquisas so-
bre livros didáticos de língua e gramática em países como Alemanha,
Estados Unidos, Austrália e Espanha descobriram que os homens su-
peram de longe as mulheres nas sentenças dadas como exemplo (numa
média de 3 para 1).48 Uma pesquisa americana sobre os dezoito livros
didáticos de história mais usados no ensino médio publicados entre
1960 e 1990 indicou que a quantidade de imagens dos homens men-
cionados nos textos superava a das mulheres numa proporção de 18%,
e que somente 9% dos nomes citados nos índices eram de mulheres
(número que persistiu na edição de 2002 de um desses livros).49 Mais
recentemente, em 2017, a análise de dez livros de introdução à ciên-
cia política mostrou que uma média de apenas 10,8% das páginas de
cada texto mencionava mulheres (alguns textos chegavam a apenas
28 Mulheres invisíveis

5,3%).50 O mesmo viés masculino foi encontrado em análises recentes


de livros didáticos armênios, malawianos, paquistaneses, formosinos,
sul-africanos e russos.51
Esse viés cultural de representação masculina é tão difundido que os
realizadores do Metroid, série de jogos de ficção científica, recorreram
a ele quando quiseram surpreender os usuários. “Ficamos pensando no
que poderia pegar todo mundo de surpresa e pensamos em remover o
capacete do Samus [o personagem principal].” Foi então que alguém
disse “seria sensacional se Samus fosse mulher!”, lembraram eles numa
entrevista recente.52 Para ter certeza de que todos entenderiam, apre-
sentaram Samus usando um biquíni rosa e com as mãos nos quadris.
O Metroid foi e continua sendo uma exceção entre os videogames.
Embora uma pesquisa de 2015 realizada pelo Pew Research Center53
tenha demonstrado que nos Estados Unidos homens e mulheres jogam
videogames em igual número, apenas 3,3%54 dos jogos mais falados
em entrevistas coletivas durante a E3 (a maior feira anual de games
do mundo) de 2016 tinham protagonistas femininas. Essa proporção
é ainda mais baixa que a de 2015, que, de acordo com o blog Feminist
Frequency, foi de 9%.55 Quando personagens femininas aparecem num
jogo, muitas vezes são apenas um extra. Na E3 de 2015, o diretor do
Fallout 4, Todd Howard, mostrou como era fácil alternar personagens
masculinos e femininos — e em seguida voltou à versão masculina,
na qual permaneceu até o fim de sua apresentação.56 Como destacou
o Feminist Frequency ao comentar a E3 2016, “os heróis são do sexo
masculino por padrão”.57
O resultado dessa cultura tão dominada pelo masculino é que a
experiência e a perspectiva masculina passaram a ser vistas como uni-
versais, enquanto a experiência feminina — que consiste na metade da
população global — é vista, bem, como um nicho. É porque o mascu-
lino é universal que uma professora da Universidade de Georgetown
deu a seu curso de Literatura o nome de Escritores Brancos do Sexo
Masculino recebeu notoriedade, enquanto os numerosos cursos sobre
“escritoras” passavam despercebidos.58
Porque o masculino é universal (e o feminino é um nicho), um filme
sobre a luta das britânicas pelo direito ao voto é desqualificado (nada
O homem padrão 29

menos do que pelo The Guardian) como “peculiarmente hermético” por


não cobrir a Primeira Guerra Mundial — demonstrando infelizmente
que a afirmação de Virginia Woolf em 1929 (“Este é um livro importante,
admite o crítico, porque fala de guerra. Este é um livro insignificante
porque fala dos sentimentos das mulheres numa sala de visitas”) ainda é
relevante nos dias atuais.59 É por isso que V. S. Naipaul diminui a escrita
de Jane Austen, acusando-a de “rasa”, mas ninguém espera que O lobo
de Wall Street aborde a Guerra do Golfo, ou que o escritor norueguês
Karl Ove Knausgaard escreva sobre qualquer pessoa além de si mesmo
(ou cite mais de uma única escritora) para receber louvores da New
Yorker por expressar “ansiedades universais” em sua autobiografia em
seis volumes.
É por isso que a página da seleção inglesa de futebol na Wikipédia
refere-se à seleção masculina, enquanto a página da seleção femini-
na é chamada de seleção inglesa de futebol feminino, e que em 2013
a Wikipédia dividia os escritores norte-americanos em “American
Novelists” e “American Women Novelists”. É por isso que uma pesquisa
feita em 2015 sobre a Wikipédia em diversas línguas concluiu que os
verbetes sobre mulheres usam palavras como “mulher”, “feminino” ou
“senhora”, mas os verbetes sobre homens não contêm palavras como
“homem”, “masculino” ou “cavalheiro” (já que o sexo masculino não
precisa ser mencionado).60
Classificamos o período que vai do século XIV ao século XVII como
“Renascimento”, embora, como indica a psicóloga social Carol Tavris
em seu livro The Mismeasure of Woman, de 1991, não tenha sido um re-
nascimento para as mulheres, que, em grande medida, ainda continua-
vam excluídas da vida intelectual e artística. Chamamos o século XVIII
de “Iluminismo”, embora, enquanto possa ter ampliado “os direitos do
homem”, também “reduziu os direitos das mulheres, que eram impe-
didas de controlar suas propriedades e seus bens, além de ficarem de
fora da educação superior e da qualificação profissional”. Pensamos na
Grécia antiga como berço da democracia, embora a metade feminina
da população estivesse explicitamente excluída do direito ao voto.
Em 2013, o tenista Andy Murray foi louvado pelos meios de comu-
nicação por encerrar os “77 anos de espera” dos britânicos por uma
30 Mulheres invisíveis

vitória no torneio de Wimbledon, quando, na verdade, Virginia Wade


tinha sido campeã em 1977. Três anos depois, Murray foi informado
por um repórter esportivo de que era “a primeira pessoa na história
a ganhar duas medalhas de ouro no tênis olímpico” (ao que Murray
replicou, corretamente, que “Venus e Serena ganharam quatro meda-
lhas cada uma”).61 Nos Estados Unidos, é uma verdade universalmente
reconhecida que a seleção de futebol nunca ganhou a Copa do Mundo,
nem sequer chegou a uma final — só que isso não é verdade. A seleção
feminina ganhou quatro vezes.62
Nos últimos anos, houve algumas tentativas dignas de lidar com
esse incansável viés cultural masculino, mas muitas vezes elas foram
recebidas com hostilidade. Quando Thor foi reinventado como mulher
pela editora Marvel Comics,63 os fãs se revoltaram — embora, como
destacou a revista Wired, “ninguém deu a mínima” quando Thor foi
substituído por uma rã.64 Quando a franquia Star Wars lançou dois
filmes seguidos com uma protagonista feminina, uivos de indignação
ecoaram pela manosfera.65 Um dos mais antigos programas de televisão
do Reino Unido ainda no ar, Doctor Who é uma série de ficção cientí-
fica sobre um alienígena que de tempos em tempos se metamorfoseia
e adquire um novo corpo. As doze primeiras encarnações do persona-
gem foram masculinas, mas em 2017, pela primeira vez, o alienígena
se metamorfoseou em uma mulher. Em reação, o ator Peter Davison,
que no passado interpretou o personagem, expressou “dúvidas” quanto
à sensatez de escalar uma mulher para o papel.66 Ele preferia a ideia do
doutor como “um rapaz”, e lamentou “a perda de um modelo que os
homens poderiam seguir”. Homens irritados foram ao Twitter convo-
cando um boicote ao programa e condenando a decisão como se fosse
um exibicionismo “politicamente correto” e “liberal”.67
Colin Baker, sucessor de Peter Davison no papel, discordou de seu
antecessor. Os homens “tiveram um modelo a seguir durante cinquenta
anos”, afirmou. Seja como for, ponderou, é preciso ser do mesmo gê-
nero de alguém para constituir um modelo a seguir? “Não se pode ser
um modelo enquanto pessoa?” Na verdade, não, Colin, porque, como
já vimos, “pessoa” é uma palavra propensa a ser compreendida como
aplicada ao sexo masculino. E, em todo caso, enquanto há indícios de
O homem padrão 31

que as mulheres podem, até certo ponto, aceitar homens como modelo,
a recíproca não é verdadeira. Mulheres compram livros escritos por
homens e sobre homens, mas os homens não compram livros escritos
por mulheres e sobre mulheres (pelo menos não muitos homens).68
Em 2014, quando a série de videogames de aventura Assassin’s Creed
anunciou que não seria possível jogar na pele de uma assassina em sua
nova modalidade multi-player, alguns homens ficaram contentes com
a decisão.69 Jogar como mulher os afastaria do jogo, disseram.
A jornalista Sarah Ditum teve pouca paciência para esse argumen-
to. “Sério mesmo?”, protestou numa coluna. “Vocês jogaram jogos na
pele de ouriços azuis. Como um marinheiro espacial ciberneticamente
modificado. Como um maldito domador de dragão. Mas a ideia de que
mulheres possam ser protagonistas, com personalidade e uma natureza
ativa está de alguma forma além de sua capacidade imaginativa?”70
Claro que Ditum está tecnicamente certa. Deveria ser mais fácil para
um homem se imaginar na pele de mulher do que na de um ouriço azul.
Mas, ao mesmo tempo, ela está errada, porque aquele ouriço azul tem
uma semelhança particularmente importante com os jogadores do sexo
masculino, ainda mais importante do que pertencer à mesma espécie.
É que Sonic, o ouriço azul, é macho. Isso fica evidente porque ele não
é cor-de-rosa, não tem laço no cabelo e não dá sorrisinhos. Ele é do
gênero padrão, que não precisa ser designado, não do gênero atípico.
Esse tipo de reação negativa à introdução de mulheres pode ser
testemunhada ao longo de toda a paisagem cultural. Em 2013, fiz cam-
panha para que se estampasse uma figura histórica feminina na face
posterior das cédulas inglesas, e alguns homens ficaram com tanta
raiva que se sentiram no direito de me ameaçar de estupro, mutilação
e morte. Nem todos os homens que foram contra a campanha chega-
ram a esse ponto, lógico, mas ainda assim o senso de injustiça estava
evidente nas respostas mais comedidas que recebi. Lembro-me de um
homem que protestou utilizando o argumento “mas as mulheres agora
estão em toda parte!”. Considerando a dura campanha que precisei
fazer pela inclusão de uma única mulher, elas obviamente não estão
em toda parte, mas, mesmo assim, o ponto de vista daquele homem é
sintomático. Esses homens estavam enxergando até mesmo a menor
32 Mulheres invisíveis

representação feminina como uma iniquidade. Na opinião deles, o jogo


já estava nivelado, e uma seleção completamente masculina não passa
de um reflexo objetivo de mérito.
Antes que eles cedessem, a justificativa do Banco da Inglaterra para
seu plantel exclusivamente masculino também se apoiou no argumento
meritocrático: as figuras históricas eram escolhidas, afirmavam, com
um “critério objetivo de seleção”. Para chegar à “lista de ouro” das
“grandes figuras de nosso passado”, uma pessoa precisava preencher
os seguintes requisitos: ser um nome amplamente reconhecido, ter boa
produção artística, não ser polêmica e “ter dado uma contribuição du-
radoura universalmente reconhecida e com benefícios permanentes”.
Ao ler essas designações subjetivas de mérito, entendi como o banco
tinha escolhido cinco homens brancos para suas cédulas: a histórica
lacuna de dados de gênero significa nada menos que a probabilidade
de corresponder a todos esses critérios “objetivos” é menor para as
mulheres.
Em 1839, a compositora Clara Schumann escreveu em seu diário:
“Já cheguei a acreditar que tinha talento criativo, mas abandonei essa
ideia; uma mulher não deve aspirar a compor — nenhuma foi capaz
disso, por que eu deveria esperar ser diferente?” A tragédia é que Clara
Schumann estava errada. Antes dela, outras mulheres foram capazes
disso, e entre elas estão alguns dos mais bem-sucedidos e prolíficos
compositores dos séculos XVII e XVIII.71 Só que elas não tiveram seus
“nomes amplamente reconhecidos”, pois uma mulher não precisa mor-
rer para ser esquecida — ou para que seu trabalho, em consonância
com a lacuna de dados de gênero, seja atribuído a um homem.
Felix Mendelssohn publicou em seu nome seis das composições de
sua irmã Fanny Hensel, e em 2010 ficou provado que outro manuscrito
que se acreditava ser de sua autoria era também de Fanny.72 Durante
anos, acadêmicos classicistas afirmaram que a poeta romana Sulpícia
não teria como escrever os versos assinados com seu nome — eram
bons demais, para não dizer obscenos demais.73 Judith Leyster, uma
das primeiras holandesas admitidas por uma guilda de artistas, ficou
famosa em sua época, mas depois de sua morte, em 1660, seu nome foi
apagado e sua obra, atribuída ao marido. Em 2017, foram descobertas
O homem padrão 33

novas obras da pintora canadense Caroline Louisa Daly, do século


XIX, anteriormente atribuídas a homens, um dos quais nem sequer
era artista.74
No início do século XX, a premiada engenheira, física e inventora
Hertha Ayrton observou que enquanto os erros de modo geral são “no-
toriamente difíceis de erradicar [...], um erro que atribui a um homem
o que na verdade foi obra de uma mulher tem mais vidas do que um
gato”. Ela tinha razão. Os livros didáticos ainda citam Thomas Hunt
Morgan como o responsável por descobrir que os cromossomos, e não
o ambiente, são os determinantes do sexo, mas de fato foram os expe-
rimentos de Nettie Stevens com a larva-da-farinha que levaram a essa
conclusão — apesar da correspondência entre ambos, em que Morgan
pede a Stevens detalhes do experimento.75 Cecilia Payne-Gaposchkin
descobriu que o Sol é basicamente composto de hidrogênio, mas sua
descoberta muitas vezes é creditada a seu supervisor homem.76 Talvez
o exemplo mais conhecido dessa espécie de injustiça seja o de Rosalind
Franklin, cujo trabalho (com o uso de raios X e medição de células,
ela concluiu que a molécula de DNA consiste de duas cadeias e grupos
fosfato) levou James Watson e Francis Crick (agora renomados ganha-
dores do prêmio Nobel) a “descobrir” o DNA.
Nada disso quer dizer que o Banco da Inglaterra tenha decidido de-
liberadamente excluir mulheres. Significa apenas que algo visto como
objetivo pode, na verdade, sofrer um profundo viés masculino: nesse
caso, a prática historicamente generalizada de atribuir a homens o
trabalho de mulheres tornou muito mais difícil que uma mulher sa-
tisfizesse as exigências do banco. O fato é que o mérito é uma questão
de opinião, e a opinião se molda pela cultura. E se essa cultura tem um
viés tão masculino quanto a nossa, não poderá evitar estar enviesada
contra as mulheres. Por padrão.
O caso dos critérios subjetivos do banco mostra também que o
modelo masculino pode ser, ao mesmo tempo, causa e consequência
da lacuna de dados de gênero. Negando-se a responsabilidade por uma
histórica lacuna de dados de gênero, o procedimento de seleção usado
pelo banco para escolher figuras históricas foi projetado em torno do
tipo de sucesso em geral conquistado por homens; mesmo um requisito
34 Mulheres invisíveis

aparentemente positivo, como alguém não se envolver em polêmicas,


bem, na famosa frase da historiadora Laurel Thatcher Ulrich, “mulhe-
res bem comportadas raramente fazem história”. O resultado foi que
o banco não apenas fracassou em corrigir a histórica lacuna de dados
de gênero, mas a perpetuou.
Essas definições subjetivas de mérito mascaradas de objetividade
surgem em toda parte. Em 2015, Jesse McCabe, uma estudante britânica
do ensino médio que se preparava para os exames do nível avançado,
observou que nenhuma das 63 obras citadas em seu programa de es-
tudos de música tinha sido composta por uma mulher. Escreveu para
a banca examinadora, da empresa Edexcel, que defendeu o próprio
programa. “Visto que não se destacaram compositoras na tradição clás-
sica ocidental (ou em outras, aliás)”, afirmaram, “haveria muito poucas
mulheres compositoras que pudessem ser incluídas”. O fraseado aqui é
importante. A Edexcel não está dizendo que não existem compositoras
— afinal, só a International Encyclopaedia of Women Composers
[Enciclopédia Internacional de Mulheres Compositoras] tem mais de
seis mil verbetes. O que a empresa está falando é do “cânone”, ou seja, o
corpo de obras geralmente consideradas mais influentes na modelagem
da cultura ocidental.
A formação de um cânone é vista como um funil objetivo do mer-
cado musical, mas, na verdade, é tão subjetiva quanto qualquer outro
juízo de valor emitido numa sociedade desigual. As mulheres têm sido
alijadas em massa do cânone porque o que se entende por sucesso nas
obras de composição foi historicamente impossível de ser alcançado
por elas. Durante a maior parte do decorrer da história, se as mulheres
eram sequer autorizadas a compor, suas obras eram apresentadas em
privado, em ambiente doméstico. Grandes obras orquestrais, tão essen-
ciais para a reputação de um compositor, costumavam ser inalcançáveis
para mulheres, consideradas “inapropriadas”.77 Para elas, a música era
um “ornamento”, não uma carreira.78 Mesmo no século XX, Elizabeth
Maconchy (a primeira mulher a presidir a Guilda de Compositores
da Grã-Bretanha) foi diminuída em suas ambições por editores como
Leslie Boosey, que “não conseguia aceitar de uma mulher nada além
de umas cançõezinhas”.
O homem padrão 35

Mesmo que as “cançõezinhas” que as mulheres eram autorizadas


a escrever fossem suficientes para conquistar um lugar no cânone, as
mulheres simplesmente não tinham recursos ou posição para garan-
tir que seu legado fosse adiante. No livro Sounds and Sweet Airs: The
Forgotten Women of Classical Music [Harmonias e suaves cantos: as
mulheres esquecidas da música clássica], Anna Beer compara a pro-
lífica compositora Barbara Strozzi (que “teve mais músicas impressas
durante a vida do que qualquer outro compositor da sua época”) a um
de seus contemporâneos do sexo masculino, Francesco Cavalli. Como
mestre de capela da igreja de São Marcos, em Veneza (cargo que na
época não podia ser assumido por mulheres), Cavalli tinha dinheiro
e posição para garantir que todas as suas obras, mesmo as muitas que
não publicou em vida, fossem preservadas numa biblioteca. Ele podia
pagar a um arquivista para cuidar delas, e não só podia como pagou
para que as missas que compôs fossem cantadas no aniversário de sua
morte. Diante de tal disparidade de recursos, Strozzi nunca teve ne-
nhuma chance de ser lembrada em igualdade de condições. E continuar
insistindo no primado do cânone que exclui mulheres é perpetuar as
injustiças do passado que favorecem os homens.
Se a ausência de mulheres em posições de poder é usada como
justificativa para a exclusão delas da história cultural, também é uma
desculpa frequente para justificar por que, quando ensinamos as crian-
ças sobre o passado, falamos quase exclusivamente sobre a vida de
homens. Em 2013, houve na Grã-Bretanha uma disputa sobre o que
entendemos por “história”. De um lado estava o secretário de Educação,
Michael Gove, lutando a favor de sua proposta supostamente nova
de uma grade curricular que representasse um “retorno às bases” na
história do país.79 Como um exército de utilitaristas do século XXI, ele
e seus defensores diziam que as crianças precisavam de “fatos”.80 Elas
precisavam de uma “base de conhecimento”.
Nessa “base de conhecimento”, nos blocos “básicos” de “fatos” que
toda criança deveria aprender, era notável, entre outras lacunas, a quase
completa ausência de mulheres. Nenhuma mulher aparecia no Key
Stage 2 (idades de sete a onze anos), exceto duas rainhas Tudor. O
Key Stage 3 (idades de onze a catorze anos) mencionava apenas cinco
36 Mulheres invisíveis

mulheres, quatro delas (Florence Nightingale, Mary Seacole, George


Eliot e Annie Besant) emboladas sob o título “O papel feminino em
mutação” — o que implica, não sem motivo, que o resto da grade cur-
ricular tratava de homens.
Em 2009, o renomado historiador britânico David Starkey criticou
historiadoras por se concentrarem demasiado nas esposas de Henrique
VIII à custa do próprio rei, que, esbravejou ele, deveria ser “o prota-
gonista”.81 Fazendo pouco da “novela” que teria sido a vida pessoal do
soberano, como se fosse secundária para as consequências políticas
formais de seu reinado, como a Reforma Protestante, Starkey insistia
que “se você quiser fazer uma história resumida e adequada da Europa,
será uma história de homens brancos, porque eles eram os detentores
do poder, e fingir qualquer outra coisa seria uma falsificação”.
A posição de Starkey se apoia na suposição de que o que ocorre no
domínio privado não é importante. Mas seria isso verdadeiro? A vida
privada de Agnes Huntingdon (nascida depois de 1320) é revelada por
meio de trechos de documentos públicos dos processos judiciários
referentes a seus dois casamentos.82 Sabemos que ela era vítima de vio-
lência doméstica, e que seu primeiro casamento fora contestado porque
sua família desaprovava a união. Na noite de 25 de julho de 1345, ela
fugiu do segundo marido depois de ser agredida por ele. Mais tarde,
na mesma noite, ele foi à casa do irmão dela com uma faca. Seria o
abuso (e a falta de liberdade de escolha) de uma mulher do século XIV
uma irrelevância privada, ou parte da história da subjugação feminina?
A divisão arbitrária do mundo em “público” e “privado” é, em todo
caso, discutível. Invariavelmente, essas categorias se misturam. Quando
conversei com Katherine Edwards, uma professora de História profun-
damente envolvida na luta contra as reformas educacionais de Gove, ela
mencionou uma pesquisa recente sobre o papel das mulheres na Guerra
de Secessão Americana. Longe de serem irrelevantes, “as mulheres e
sua concepção do papel que desempenhavam sabotaram por completo
o esforço de guerra dos confederados”.
Mulheres da elite, criadas para acreditar sem questionar no mito
do próprio desamparo, simplesmente não conseguiam superar a com-
preensão do trabalho como intrinsecamente não feminino. Incapazes
O homem padrão 37

de se propor a assumir os empregos deixados vagos pelos homens alis-


tados, escreviam aos maridos implorando que desertassem e voltassem
para protegê-las. Mulheres mais pobres representaram uma dor de
cabeça de forma mais proativa, já que organizaram uma resistência
à política dos confederados, “porque estavam basicamente morren-
do de fome e precisavam alimentar a família”. Excluir as mulheres
de uma análise do desfecho da Guerra de Secessão não apenas cons-
titui uma lacuna de dados de gênero como uma lacuna de dados no
entendimento da construção dos próprios Estados Unidos. Isso parece
um “fato” digno de ser conhecido.
A história da humanidade. A história da arte, da literatura e da
música. A história da própria evolução. Tudo isso nos é apresentado
como fatos objetivos. Mas a realidade é que esses fatos têm mentido
para nós. Todos foram distorcidos por não levarem em conta metade da
humanidade — e muitas vezes pelas próprias palavras que usamos para
transmitir nossas meias verdades. Essa falha levou a lacunas nos dados.
Uma corrupção daquilo que achamos que sabemos sobre nós mesmos.
Ela alimentou o mito da universalidade masculina. E esse é um fato.
A persistência desse mito continua a afetar o modo como nos enxer-
gamos hoje em dia — e, se os últimos anos nos ensinaram alguma coisa,
foi que o modo como nos enxergamos não é irrelevante. A identidade
é uma força poderosa que ignoramos e interpretamos mal, por nossa
própria conta e risco: Trump, Brexit e ISIS (para falar em apenas três
exemplos recentes) são fenômenos globais que mudaram completa-
mente a ordem mundial — e esses são todos, em sua essência, projetos
conduzidos pela identidade. Mas interpretar mal e ignorar a identidade
é exatamente aquilo que a masculinidade disfarçada de universalidade
do gênero neutro nos leva a fazer.
Um homem com quem saí brevemente tentou argumentar comigo
dizendo que eu estava cega pela ideologia. Que não conseguia ver o
mundo com objetividade, segundo ele, ou com racionalidade, porque
era feminista e enxergava tudo com um olhar feminista. Quando eu dizia
que o mesmo poderia ser dito sobre ele (que se identificava como liber-
tariano), ele refutava. Não. Aquilo era apenas objetivo, senso comum
— a “verdade absoluta” de Simone de Beauvoir. Para ele, sua maneira
38 Mulheres invisíveis

de enxergar o mundo era universal, enquanto o feminismo — enxergar


o mundo de um ponto de vista feminino — era um nicho. Ideológico.
Lembrei-me desse homem depois da eleição presidencial americana
de 2016, quando parecia que não se podia fazer nada diante de tuítes,
discursos e páginas de opinião (normalmente) produzidos por homens
brancos denunciando os males daquilo que chamavam de “política iden-
titária”. Dez dias após a vitória de Donald Trump, o The New York Times
publicou uma matéria de Mark Lilla, professor de Ciências Humanas
da Universidade Columbia, criticando Hillary Clinton por “dirigir-se
explicitamente a eleitores afro-americanos, latinos, LGBTQ+ e mulhe-
res”.83 Isso excluía “a classe operária branca”. Lilla apresentava a “retórica
da diversidade” de Clinton como incompatível com “uma visão ampla”,
ligando essa visão “estreita” (Lilla, sem dúvida, estava com a leitura de
seu V. S. Naipaul em dia) com o que ele sentia estar percebendo entre
os universitários. Os estudantes de hoje, dizia, são tão instados a focar
na diversidade que “têm absurdamente pouco a dizer sobre questões
permanentes como classe, guerra, economia e o bem comum”.
Dois dias depois de publicada a matéria, o ex-candidato democrata
Bernie Sanders estava em Boston numa parada da turnê de lançamen-
to de seu livro84 afirmando que “não basta que alguém diga ‘sou uma
mulher, vote em mim!’.”85 Na Austrália, Paul Kelly, editor do Australian,
definiu a vitória de Trump como “uma revolta contra as políticas iden-
titárias”,86 enquanto no Reino Unido o primeiro-ministro trabalhista
Richard Burgon dizia num tuíte que a posse de Trump era “o que pode
acontecer quando partidos de centro-esquerda abandonam a transfor-
mação do sistema econômico e se apoiam em políticas identitárias”.87
Simon Jenkins, do The Guardian, encerrou o annus horribilis de
2016 com uma diatribe contra “os apóstolos identitários”, que tinham
“se excedido” na defesa de minorias e assim exterminaram o liberalis-
mo. “Não tenho tribo”, escreveu Jenkins. Ele não iria “aderir à histeria
dominante”. O que ele queria era “reencenar a gloriosa revolução de
1832” — que resultou na extensão da representatividade a algumas
centenas de milhares de proprietários.88 Dias de glória, de fato.
Esses homens brancos têm em comum as seguintes opiniões: a po-
lítica identitária só é política identitária quando se refere a raça e sexo;
O homem padrão 39

que raça e sexo nada têm a ver com questões “mais amplas” como “a
economia”; que é “limitante” tratar especificamente das preocupações
de eleitoras mulheres e eleitores negros; e que por classe trabalhadora
entende-se homens brancos da classe operária. Incidentalmente, se-
gundo o Departamento de Estatísticas Trabalhistas, a mineração do
carvão, que durante a eleição de 2016 tornou-se o parâmetro dos em-
pregos (implicitamente masculinos) da classe operária, emprega 53.420
pessoas no total, com um salário médio anual de 59.380,89 dólares.89
Basta comparar esses números aos da força de trabalho majoritaria-
mente feminina das 924.640 pessoas dedicadas à faxina e aos serviços
domésticos, cuja renda anual média é de 21.820,90 dólares.90 Então,
qual é a verdadeira classe operária?
Esses homens brancos têm em comum o fato de serem homens
brancos. Insisto nesse ponto porque foi exatamente sua branquitude
e masculinidade que os levou a verbalizar a sério o absurdo lógico
segundo o qual as identidades só existem para aqueles que por acaso
não são brancos ou homens. Quando, pelo fato de ser homem branco,
você está tão habituado a achar que branco e masculino são a regra, é
compreensível que se esqueça de que ser branco e homem também é
uma identidade.
Pierre Bourdieu escreveu em 1977 que “o que é essencial não precisa
ser dito porque entende-se sem ser dito: a tradição é silenciosa, inclu-
sive sobre si mesma como tradição”.91 Branquitude e masculinidade
são silenciosas exatamente porque não precisam ser verbalizadas.
Branquitude e masculinidade estão implícitas. São indiscutíveis. São
o padrão. E essa realidade é inescapável para qualquer um cuja iden-
tidade não esteja implícita, para qualquer um cujas necessidades e
perspectivas sejam habitualmente esquecidas. Para qualquer um acos-
tumado a entrar em choque com um mundo que não foi projetado para
si e para as suas necessidades.
O modo como a branquitude e a masculinidade são entendidas
sem que se precise apontá-las me leva de volta ao meu péssimo namo-
rado (na verdade, namorados), porque está intrinsecamente ligado à
crença equivocada na objetividade, na racionalidade, no, como disse
Catharine MacKinnon, “ponto de vistismo” da perspectiva branca e
40 Mulheres invisíveis

masculina. Já que essa perspectiva não se articula como branca e mas-


culina (porque não é preciso), pois é a norma, supõe-se que não seja
subjetiva. Supõe-se que seja objetiva. Até mesmo universal.
Essa suposição é insustentável. Ser branco e homem constitui uma
identidade da mesma forma que ser negra e mulher. Um estudo sobre
posições e preferências eleitorais de americanos brancos concluiu que
o sucesso de Trump reflete a ascensão da “política identitária branca”,
que os pesquisadores definiram como “uma tentativa de proteger os
interesses coletivos dos eleitores brancos por meio das urnas”.92 A iden-
tidade branca, concluíram, “indica uma forte preferência por Trump”.
O mesmo para a identidade masculina. A análise da influência do
gênero no apoio a Trump revelou que “quanto mais hostis fossem os
eleitores em relação às mulheres, maior a probabilidade de que fossem
apoiadores de Trump”.93 Na verdade, o sexismo hostil foi quase tão
indicativo de um apoio a Trump quanto a identificação partidária. E o
único motivo pelo qual isso nos surpreende é que estamos acostumados
ao mito da universalidade masculina.
Supor que o masculino é universal é consequência direta da lacuna
de dados de gênero. Branquitude e masculinidade só estão implícitas
porque nunca se fala de outras identidades. Mas a universalidade é
também uma das causas da lacuna de dados de gênero: como as mu-
lheres não são vistas e não são lembradas, porque os dados masculinos
representam a maioria daquilo que conhecemos, o que é masculino
passou a ser visto como universal. Isso significa relegar as mulheres,
metade da população global, à condição de minoria. Com uma identi-
dade de nicho e ponto de vista subjetivo. As mulheres são encaixadas
nesse contexto para serem esquecidas. Ignoradas. Dispensáveis — para
a cultura, para a história, para os dados. Assim, as mulheres tornam-se
invisíveis.
Mulheres invisíveis é a história do que acontece quando esquecemos
de levar em conta metade da humanidade. É uma evidência de como
a lacuna de dados de gênero fere as mulheres enquanto a vida segue
mais ou menos em sua normalidade. No urbanismo, na política, no
trabalho. Trata-se também do que acontece a mulheres que vivem num
mundo construído com base em dados masculinos quando as coisas
O homem padrão 41

dão errado. Quando ficam doentes. Quando perdem a casa numa en-
chente. Quando precisam fugir de uma guerra.
Mas há também esperança nesta história, porque as coisas começam
a mudar quando as mulheres conseguem sair das sombras com suas
vozes e seus corpos. As lacunas se fecham. E assim, em essência, este
livro é também um chamado para a mudança. Durante muito tempo
consideramos as mulheres como um desvio da humanidade padrão, e
isso permitiu que elas se tornassem invisíveis. É hora de uma mudança
de perspectiva. É hora de as mulheres serem vistas.
Desde o controle do fogo e o domínio da agricul-
tura até as evoluções tecnológicas da atualidade,
as conquistas dos seres humanos sempre
começaram com a observação do mundo, algo
conhecido hoje como coleta de dados. Como base
da ciência, são os dados que determinam a alo-
cação de recursos públicos e privados, ditando o
rumo da sociedade.

Porém, o caráter científico dos dados esconde um


lado perverso: as mulheres não são — e nunca fo-
ram — contempladas por eles. Isso é o que revela
Caroline Criado Perez em Mulheres invisíveis.
Nessa obra, a autora reúne estudos de caso que
explicitam como o olhar predominante considera
que o homem é o padrão e as mulheres são atípi-
cas. Dessa forma, mesmo quando os dados
abrangem o universo feminino, acabam sendo
ignorados na prática, o que aprofunda na base a
desigualdade de gênero.

Inovadora em sua abordagem, Caroline coloca em


números o sofrimento de metade da humanidade,
provando que o preconceito de gênero é muito
mais que uma questão subjetiva. Uma leitura
transformadora e inesquecível, que mudará a ma-
neira como você enxerga o mundo.

SAIBA MAIS:
https://www.intrinseca.com.br/livro/1209/

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