MulheresInvisiveis Corrigido
MulheresInvisiveis Corrigido
MulheresInvisiveis Corrigido
I N V I S Í V EI S
O V i É S D O S DA D O S
em um mundo
p r o j e ta d o
pa r a h o m e n s
carolin e
criado
perez
Tradução de
Renata Guerra
Copyright © Caroline Criado Perez, 2019
Todos os direitos reservados.
título original
Invisible Women, exposing data bias in a world designed for men
preparação
Stella Carneiro
revisão
Camilla Savoia
Anna Beatriz Seilhe
design de capa
Sophie Harris
diagramação
Victor Gerhardt | calliope Soluções Editoriais
P514m
Tradução de: Invisible women : exposing data bias in a world designed for men
Inclui índice
ISBN 978-65-5560-384-2
[2022]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora intrínseca ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 6º andar
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www.intrinseca.com.br
Para as mulheres que persistem: continuem difíceis.
A representação do mundo, como o próprio mundo, é obra dos
homens; eles o descrevem a partir de seu ponto de vista, o que
confundem com a verdade absoluta.
Simone de Beauvoir
Prefácio
Boa parte da história humana escrita carrega uma grande lacuna de da-
dos. A começar pela teoria do Homem Caçador, os cronistas do passado
deixaram pouco espaço para o papel das mulheres na evolução cultural
ou biológica da humanidade. No entanto, a vida dos homens sempre
foi considerada representativa da vida de todos os seres humanos. No
que se refere a como vivia a outra metade da humanidade, na maior
parte das vezes, só há o silêncio.
E esses silêncios estão por toda parte. Toda a nossa cultura é per-
meada por eles. Filmes, imprensa, literatura, ciência, urbanismo,
economia. As histórias que contamos sobre nosso passado, presente
e futuro. Tudo isso é marcado — desfigurado — por uma “presença
ausente” do feminino. Essa é a lacuna dos dados de gênero.
Mas a lacuna dos dados de gênero não se resume a silêncio. Esses
silêncios, essas lacunas, têm consequências. Afetam diariamente a vida
das mulheres. O impacto pode ser pouco significativo: tremer de frio
no escritório devido ao ar-condicionado ajustado para o padrão do
corpo masculino, por exemplo, ou ter dificuldade para alcançar uma
prateleira fixada a uma altura cômoda para homens. Irritante, com
certeza. Injusto, sem sombra de dúvida.
Porém, nada que ponha a vida em risco. Não é como sofrer um aci-
dente em um carro cujos recursos de segurança não levam em conta
as medidas de uma mulher. Nem como ter um ataque cardíaco não
diagnosticado porque os sintomas são considerados atípicos. Para as
mulheres que passam por essas situações, o resultado de viver num
mundo construído a partir de informações que tomam os homens por
padrão pode ser fatal.
12 Mulheres invisíveis
Uma das coisas mais importantes a dizer sobre a lacuna dos dados de
gênero é que, em geral, ela não é mal-intencionada, ou sequer deliberada.
Muito pelo contrário. É apenas resultado de um modo de pensar que
existe há milênios e que, por esse motivo, tornou-se uma espécie de não
pensar. Até mesmo um não pensar duplo: entende-se “homens” sem que
seja necessário especificar, e “mulheres” simplesmente não é mencionado.
Porque quando dizemos humano, em geral queremos dizer homem.
Essa percepção não é nova. Simone de Beauvoir tornou-a famosa
quando, em 1949, disse que “a humanidade é masculina, e o homem
define a mulher não por si mesma, mas em relação a ele; ela não é
vista como ser autônomo. [...] Ele é o Sujeito, ele é o Absoluto — ela
é o Outro”.1 Novo é o contexto em que as mulheres continuam sendo
“o Outro”. E esse contexto é um mundo cada vez mais dependente de
dados e controlado por eles. Big Data, ou megadados. Que por sua vez
são garimpados para afirmar megaverdades por meio de mega-algo-
ritmos usados por megacomputadores. Quando os seus megadados
são corrompidos por megassilêncios, as verdades resultantes são, no
melhor dos casos, meias verdades. E muitas vezes, para as mulheres,
não são verdades em absoluto. Como diriam os próprios cientistas da
computação, “lixo que entra, lixo que sai”.
Esse novo contexto torna ainda mais urgente a necessidade de
preencher a lacuna dos dados de gênero. A inteligência artificial que
ajuda os médicos a fazerem diagnósticos, que analisa currículos e até
mesmo faz entrevistas com possíveis candidatos a emprego já se tor-
nou comum. Mas a inteligência artificial foi treinada em conjuntos de
dados permeados por lacunas — e considerando que os algoritmos
normalmente são protegidos, vistos como softwares de propriedade
de alguém, não se pode sequer verificar se tais lacunas foram levadas
em conta. Pelos indícios disponíveis, no entanto, tudo leva a crer que
não foram.
Números, tecnologia, algoritmos, tudo isso é essencial para a nar-
rativa de Mulheres invisíveis. Mas eles contam só a metade da história.
“Dado” é apenas outro nome para informação, e a informação pode vir
de muitas fontes. A estatística é um tipo de informação, claro, mas a
experiência humana também é. Assim, afirmo que, quando projetamos
Prefácio 13
um mundo que deve ser funcional para todos, precisamos ter mulhe-
res inseridas no debate. Se as pessoas tomando decisões que afetam a
todos forem apenas homens brancos e sem deficiência (nos Estados
Unidos, é assim em nove a cada dez casos), configura-se uma lacuna
de dados — da mesma forma que não coletar informação sobre o corpo
feminino na pesquisa médica representa uma lacuna de dados. E, como
demonstrarei, a exclusão da perspectiva feminina é uma das grandes
causas do viés masculino que tenta (muitas vezes de boa-fé) se passar
como “neutralidade de gênero”. É a isso que Simone de Beauvoir se
refere quando diz que os homens confundem o próprio ponto de vista
com a verdade absoluta.
As preocupações especificamente femininas que os homens deixam
de levar em conta cobrem uma grande diversidade de áreas, mas no
progresso da leitura você perceberá três temas recorrentes: o corpo
feminino, a carga de trabalho feminino não remunerado e a violência
masculina contra mulheres. São assuntos de tamanha importância que
afetam quase todos os aspectos de nossa vida, desde o transporte públi-
co até a política, passando pelo ambiente de trabalho e pelo consultório
médico. Mas os homens se esquecem disso, porque eles não têm um
corpo feminino. Como veremos, eles executam apenas uma pequena
parte do trabalho não remunerado feito pelas mulheres. E, embora
também precisem enfrentar a violência masculina, esta se manifesta
de maneira diferente em relação àquela enfrentada pelas mulheres.
E assim essas diferenças continuam sendo desconsideradas, e conti-
nuamos a agir como se o corpo masculino e a experiência de vida que
ele proporciona fossem de um gênero neutro. Essa é uma forma de
discriminação contra mulheres.
Ao longo deste livro, me refiro tanto a sexo quanto a gênero. Por
“sexo”, entendo as características biológicas que determinam se uma
pessoa nasce homem ou mulher. XX e XY. Por “gênero”, entendo os sig-
nificados sociais que são impostos a esses fatores biológicos — o modo
como as mulheres são tratadas por serem percebidas como mulheres.
Um desses conceitos é obra humana, mas ambos são reais. E ambos
têm consequências para as mulheres conforme se deslocam por este
mundo edificado sobre dados masculinos.
14 Mulheres invisíveis
O homem padrão
que as mulheres podem, até certo ponto, aceitar homens como modelo,
a recíproca não é verdadeira. Mulheres compram livros escritos por
homens e sobre homens, mas os homens não compram livros escritos
por mulheres e sobre mulheres (pelo menos não muitos homens).68
Em 2014, quando a série de videogames de aventura Assassin’s Creed
anunciou que não seria possível jogar na pele de uma assassina em sua
nova modalidade multi-player, alguns homens ficaram contentes com
a decisão.69 Jogar como mulher os afastaria do jogo, disseram.
A jornalista Sarah Ditum teve pouca paciência para esse argumen-
to. “Sério mesmo?”, protestou numa coluna. “Vocês jogaram jogos na
pele de ouriços azuis. Como um marinheiro espacial ciberneticamente
modificado. Como um maldito domador de dragão. Mas a ideia de que
mulheres possam ser protagonistas, com personalidade e uma natureza
ativa está de alguma forma além de sua capacidade imaginativa?”70
Claro que Ditum está tecnicamente certa. Deveria ser mais fácil para
um homem se imaginar na pele de mulher do que na de um ouriço azul.
Mas, ao mesmo tempo, ela está errada, porque aquele ouriço azul tem
uma semelhança particularmente importante com os jogadores do sexo
masculino, ainda mais importante do que pertencer à mesma espécie.
É que Sonic, o ouriço azul, é macho. Isso fica evidente porque ele não
é cor-de-rosa, não tem laço no cabelo e não dá sorrisinhos. Ele é do
gênero padrão, que não precisa ser designado, não do gênero atípico.
Esse tipo de reação negativa à introdução de mulheres pode ser
testemunhada ao longo de toda a paisagem cultural. Em 2013, fiz cam-
panha para que se estampasse uma figura histórica feminina na face
posterior das cédulas inglesas, e alguns homens ficaram com tanta
raiva que se sentiram no direito de me ameaçar de estupro, mutilação
e morte. Nem todos os homens que foram contra a campanha chega-
ram a esse ponto, lógico, mas ainda assim o senso de injustiça estava
evidente nas respostas mais comedidas que recebi. Lembro-me de um
homem que protestou utilizando o argumento “mas as mulheres agora
estão em toda parte!”. Considerando a dura campanha que precisei
fazer pela inclusão de uma única mulher, elas obviamente não estão
em toda parte, mas, mesmo assim, o ponto de vista daquele homem é
sintomático. Esses homens estavam enxergando até mesmo a menor
32 Mulheres invisíveis
que raça e sexo nada têm a ver com questões “mais amplas” como “a
economia”; que é “limitante” tratar especificamente das preocupações
de eleitoras mulheres e eleitores negros; e que por classe trabalhadora
entende-se homens brancos da classe operária. Incidentalmente, se-
gundo o Departamento de Estatísticas Trabalhistas, a mineração do
carvão, que durante a eleição de 2016 tornou-se o parâmetro dos em-
pregos (implicitamente masculinos) da classe operária, emprega 53.420
pessoas no total, com um salário médio anual de 59.380,89 dólares.89
Basta comparar esses números aos da força de trabalho majoritaria-
mente feminina das 924.640 pessoas dedicadas à faxina e aos serviços
domésticos, cuja renda anual média é de 21.820,90 dólares.90 Então,
qual é a verdadeira classe operária?
Esses homens brancos têm em comum o fato de serem homens
brancos. Insisto nesse ponto porque foi exatamente sua branquitude
e masculinidade que os levou a verbalizar a sério o absurdo lógico
segundo o qual as identidades só existem para aqueles que por acaso
não são brancos ou homens. Quando, pelo fato de ser homem branco,
você está tão habituado a achar que branco e masculino são a regra, é
compreensível que se esqueça de que ser branco e homem também é
uma identidade.
Pierre Bourdieu escreveu em 1977 que “o que é essencial não precisa
ser dito porque entende-se sem ser dito: a tradição é silenciosa, inclu-
sive sobre si mesma como tradição”.91 Branquitude e masculinidade
são silenciosas exatamente porque não precisam ser verbalizadas.
Branquitude e masculinidade estão implícitas. São indiscutíveis. São
o padrão. E essa realidade é inescapável para qualquer um cuja iden-
tidade não esteja implícita, para qualquer um cujas necessidades e
perspectivas sejam habitualmente esquecidas. Para qualquer um acos-
tumado a entrar em choque com um mundo que não foi projetado para
si e para as suas necessidades.
O modo como a branquitude e a masculinidade são entendidas
sem que se precise apontá-las me leva de volta ao meu péssimo namo-
rado (na verdade, namorados), porque está intrinsecamente ligado à
crença equivocada na objetividade, na racionalidade, no, como disse
Catharine MacKinnon, “ponto de vistismo” da perspectiva branca e
40 Mulheres invisíveis
dão errado. Quando ficam doentes. Quando perdem a casa numa en-
chente. Quando precisam fugir de uma guerra.
Mas há também esperança nesta história, porque as coisas começam
a mudar quando as mulheres conseguem sair das sombras com suas
vozes e seus corpos. As lacunas se fecham. E assim, em essência, este
livro é também um chamado para a mudança. Durante muito tempo
consideramos as mulheres como um desvio da humanidade padrão, e
isso permitiu que elas se tornassem invisíveis. É hora de uma mudança
de perspectiva. É hora de as mulheres serem vistas.
Desde o controle do fogo e o domínio da agricul-
tura até as evoluções tecnológicas da atualidade,
as conquistas dos seres humanos sempre
começaram com a observação do mundo, algo
conhecido hoje como coleta de dados. Como base
da ciência, são os dados que determinam a alo-
cação de recursos públicos e privados, ditando o
rumo da sociedade.
SAIBA MAIS:
https://www.intrinseca.com.br/livro/1209/