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REVISTA DE HISTRIA
SO PAULO, N 167, p. 223-260,
JULHO / DEZEMBRO 2012
MARCUS J. M. DE CARVALHO
O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
O DESEMBARQUE
NAS PRAIAS:
O FUNCIONAMENTO DO
TRFICO DE ESCRAVOS
DEPOIS DE 1831
1
Marcus J. M. de Carvalho
Universidade Federal de Pernambuco
Resumo
Depois de 1831, o trfico mudou-se para os portos naturais do litoral, passando
a empregar muita gente em diversas atividades. Barcos menores apoiavam os
navios negreiros a alcanar a costa. A populao local passou a ter novas oportu-
nidades de emprego e negcios. Os traficantes tiveram que comprar ou arrendar
os portos naturais ou se associarem a seus proprietrios. O trfico mudaria a
economia e a poltica local.
Palavras-chave
Trfico de escravos lei antitrfico de 1831 navios negreiros.
1
Agradeo ao CNPq pelo apoio a esta pesquisa.
Contato
Av. Boa Viagem 3020 apto. 501
51020-000 Recife Pernambuco
E-mail: [email protected]
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MARCUS J. M. DE CARVALHO
O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
LANDING ON THE
BEACHES:
THE FUNCTIONING OF THE
BRAZILIAN SLAVE TRADE
AFTER 1831
Marcus J. M. de Carvalho
Universidade Federal de Pernambuco
Abstract
After 1831, the slave trade moved to natural harbors on the littoral, where it
employed scores of people catering, healing, guarding the survivors, burying
the dead. Smaller boats also helped the slave ships to reach the coast. The local
population found new opportunities of employment and trade. Slave dealers had
to buy or rent those lands, or associate themselves with their owners. The illegal
slave trade would change the local economy and politics.
Keywords
Illegal slave trade 1831 antislave trade law slaveships.
Contact
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depois de 1831
Um assunto ainda pouco tratado pela historiograa como se davam
efetivamente os desembarques de cativos no litoral brasileiro depois de 1831.
Isso curioso, pois existe uma literatura muito vasta sobre o trco depois
daquela data com aproximaes conveis do volume de cativos que para c
vieram ilegalmente. H estudos sobre navios negreiros em diferentes pocas,
bem como sobre as estratgias empregadas para ludibriar as autoridades
brasileiras e internacionais. A historiograa tambm tem trazido tona a
vida de inmeros personagens do trco, de marinheiros a negociantes.
2

Todavia, pouco sabemos sobre como o trco era efetivamente operaciona-
lizado nas praias brasileiras, como era a chegada de um navio negreiro fora
dos portos das capitais, como se davam os desembarques, quem trabalhava
nisso, o que era preciso para a recepo, recuperao, manuteno, vigiln-
cia e tratamento da carga humana. O trco mudou a vida do litoral brasi-
leiro. Um documentrio de Hebe Mattos, Martha Abreu e Ana Lugo Rios
mostra que, mesmo hoje em dia, os descendentes dos habitantes das praias
controladas pelos irmos Breves, no Rio de Janeiro, so capazes de relatar
memrias do que acontecia sob as vistas dos seus antepassados.
3

Neste trabalho, vamos investigar essa mudana do trco para as praias
da Zona da Mata pernambucana. Ao sair das cidades porturias, o comrcio
atlntico de escravos passou a envolver outros agentes, criou novas tenses
na poltica local, empregou muita gente no litoral fora do permetro urba-
no das capitais provinciais. Surgiram novas oportunidades e novas tenses
para os proprietrios rurais cujas terras margeavam os portos naturais das
provncias. Depois de 1831, o desembarque de africanos deixou de ser um
episdio mercantil a mais da vida urbana para se tornar um grande evento
no litoral da Zona da Mata brasileira. O trco teve que se adaptar. Seus
agentes tambm. Muita coisa mudaria para os ocupantes das terras no lito-
ral, agora diretamente envolvidos no comrcio negreiro, bem como para a
populao que vivia nas proximidades dos portos naturais mais apropriados
para recepo de navios negreiros. Todos foram atingidos, dos agricultores
aos pescadores. Sendo uma antiga capitania, Pernambuco serve de modelo
para outros casos anlogos nos imensos brasis. Explorando o impacto da
lei antitrco de 1831 em vrios nveis sobre a sociedade brasileira, Elciene
2
Seria pretencioso elencar toda essa historiograa. As pginas seguintes exemplicam uma
pequena parte dela.
3
MATTOS, Hebe e ABREU, Martha (dir.). Passados presentes. Memria negra no sul uminense. DVD,
produo LABHOI/UFF, 2011 (www.labhoi.uff.br).
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depois de 1831
Azevedo, Beatriz Mamigonian e Keila Grinberg destacaram que esta no foi
apenas para ingls ver, mesmo se deixarmos de lado seu uso pelos cativos
em aes de liberdade depois da lei Rio Branco, em 1871.
4

O objetivo deste artigo contribuir para essa discusso.
1. A escolha da praia
Quando foi decretada a lei antitrco de novembro de 1831, existia toda
uma rotina porturia para aquele tipo de negcio nas principais cidades
costeiras. Rotina construda atravs de sculos de experincia, de tentativa e
erro, de tal forma que, em 1654, j havia no bairro porturio do Recife uma
rua da Senzala Nova e, obviamente, uma rua da Senzala Velha, onde eram
aprisionados os africanos recm-chegados, conrmando que no fora em
vo o pedido de Duarte Coelho, ainda em 1542, para que a Coroa facilitasse a
vinda de gente da Guin para a provncia.
5
Mas no bastava apenas ter onde
armazenar com segurana a carga humana recm-desembarcada. O esque-
ma de recepo dos negros novos, como se dizia na poca, era complexo.
Primeiro os navios teriam que ser guiados barra adentro para o ponto
de desembarque, funo clssica dos prticos do porto. Em terra, invaria-
velmente, os africanos requeriam cuidados, alm de gua, alimentos e,
claro, vigilncia. Tudo em larga escala e muito bem organizado para no
4
Veja-se o exemplar da revista Estudos Afro-Asiticos, organizado por Beatriz Mamigonian e Keila
Grinberg (Estudos Afro-Asiticos, nmero 29, n 1/2/3, jan-dez 2007, passim). AZEVEDO, Elciene.
O direito dos escravos: Lutas jurdicas e abolicionismo na provncia de So Paulo. Campinas: Editora da
Unicamp, 2010. Veja-se ainda: MAMIGONIAN, Beatriz. A proibio do trco atlntico e a
manuteno da escravido. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imprio (1808-
1889). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2008, vol. 1, p. 207-233. Sobre os desembarques,
vistos da perspectiva dos prprios cativos, veja-se: CARES SILVA, Ricardo Tadeu. Memrias
do trco ilegal de escravos nas aes de liberdade: Bahia, 1885-1888. Afro-sia, vol. 35, 2007,
p. 37-82. Sobre a demograa do trco, veja-se o site http://www.slavevoyages.org. Sobre
Pernambuco, veja-se: DOMINGUES DA SILVA, Daniel Barros e ELTIS, David. The slave trade
to Pernambuco, 1561-1851. In: ELTIS, David e RICHARDSON, David (eds.). Extending the frontiers:
Essays on the new transatlantic slave trade database. New Haven: Yale University Press, 2008, p. 95-
129. Sobre a conduo do problema no parlamento, entre o nal do Primeiro Reinado e a lei
antitrco de 1850, veja-se: RODRIGUES, Jaime. O m do trco transatlntico de escravos
para o Brasil: paradigmas em questo. In: GRINBERG e SALLES (orgs.). O Brasil Imprio (1808-
1889), vol. 2, p. 297-337. NEEDELL, Jeffrey. The abolition of the Brazilian slave trade in 1850:
Historiography, slave agency and statesmanship. Journal of Latin American Studies. Cambridge:
Cambridge University Press, vol. 33, 2001, p. 681-711.
5
Carta de Duarte Coelho, 27/04/1542. In: GONSALVES DE MELLO, Jos Antnio e XAVIER DE AL-
BUQUERQUE, Cleonir (orgs.). Cartas de Duarte Coelho a el rei. Recife: Imprensa Universitria, 1967, p. 86.
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faltar nem desperdiar, conforme ditava a contabilidade fria dos negocian-
tes de escravos. O local de depsito deveria ser seguro, mas minimamente
ventilado, atendendo a teoria miasmtica que dominava a medicina na pri-
meira metade do sculo XIX. Os doentes mais graves deveriam ser afastados
dos demais. Os desenganados colocados a uma distncia considerada segura
para que os chamados evios pestilenciais emanados dos seus corpos
moribundos no se espalhassem.
Poucos negcios davam to pouca margem a improvisos como o co-
mrcio atlntico de escravos. Mau gerenciamento resultava em mortes e pre-
juzo. Morte que poderia se espalhar pela cidade, quem sabe dizimando at
a famlia do consignatrio da carga humana, j que nem os capites e tripu-
lantes escapavam do regime epidemiolgico do trco. No difcil imagi-
nar o impacto do comrcio atlntico de escravos na tecnologia de navegao
atlntica, no direito comercial, nos equipamentos porturios nos pontos de
desembarque e nas rotinas mdicas urbanas, anal de contas nunca antes
houve uma experincia semelhante com o transporte de bens semoventes em
larga escala entre um continente e outro. E essa mercadoria viva era capaz de
resistir, rebelar-se, fugir e at de interferir no processo de venda, apresentan-
do-se bem ou mal, conforme sua interpretao do signicado de sua venda.
Depois de novembro de 1831, tudo isso iria mudar. No seria mais vivel
desembarcar cativos nos principais portos brasileiros, todos em cidades im-
portantes, geralmente sedes de governos provinciais. Continuaria havendo
desembarques bem perto das capitais ou mesmo vista da Corte, mas isso
era um atrevimento de tracantes excessivamente ousados. Desobedecer
lei assim to frontalmente era desaar no apenas os governos provinciais,
mas a marinha brasileira e a prpria Coroa. A crescente demanda por cativos
no Primeiro Reinado acelerou a expanso das importaes de cativos antes
de 1831. Os repetidos avisos sobre a iminncia do m do trco no nal do
Primeiro Reinado e a relativa queda do preo dos cativos na maioria dos
portos da costa africana nessa poca tambm justicam que tenha havido
at certo aprovisionamento anterior lei de novembro de 1831, o que pro-
vavelmente facilitou a diminuio do trco logo nos primeiros meses de
1832. Era como se o efeito imediato da lei tivesse sido realmente devastador,
impactando as atividades dos negociantes de escravos. Mas como h sempre
mistrios envoltos em prticas ilegais, talvez os observadores imediatos, que
costumavam comentar sobre o inuxo de africanos para o Brasil, particular-
mente os cnsules ingleses, estivessem apenas desatentos ao que acontecia
nas praias das zonas agroexportadoras. Mas logo caram atentos e sabemos,
atravs de uma longa literatura, que o comrcio, quer dizer, da em diante
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apenas trco atlntico de escravos, continuaria at sua abolio nal na
dcada de 1850.
Transferir todas essas rotinas para portos naturais no litoral no era
simples. Nos portos urbanos, o comrcio de gente empregava equipamentos
e pessoal treinado nos seus vrios processos, do desembarque aos cuida-
dos antes da venda. Depois de quase 300 anos, havia prossionais espe-
cializados, processos rotinizados e prticas de gesto consolidadas. Mas as
circunstncias eram diferentes fora dos portos das capitais das principais
provncias importadoras de cativos diretamente da frica como Rio de Ja-
neiro, Salvador, Recife e So Luiz. Mesmo os melhores portos naturais no
dispunham dos equipamentos daqueles portos e dicilmente tinham espao
de ancoragem e estrutura em terra para receber mais de um navio simulta-
neamente. A prpria chegada ao ponto exato de desembarque era complexa.
Os tracantes no podiam mais se guiar por faris permanentes encimados
nas encostas contguas s grandes cidades, evitando mais facilmente os ar-
recifes, os bancos de areia, sendo informados das correntes mais fortes e da
direo a ser tomada para entrar na barra.
Alm disso, no havia apenas um tracante, havia muitos. Por mais
aliados que fossem em torno da defesa do trco, no cotidiano do mun-
do dos negcios, eram concorrentes. Isso desde a costa da frica, onde as
relaes entre os mercadores atlnticos foram sempre complicadas. Todos
queriam o monoplio dos negcios. Sempre que possvel, afastavam os con-
correntes menos capitalizados ou militarmente mais frgeis. No toa que,
no sculo XVIII, no apogeu do comrcio atlntico de escravos, os canhes
das fortalezas europeias ou apontavam para o mar, ou para outras fortalezas
europeias. Era na direo do forte ingls que estava apontada metade dos 30
canhes franceses em cabo Corso, segundo o testemunho de um comandan-
te de navio negreiro em 1731.
6

Essa competio armada, belicosa at, tambm existia entre os gran-
des proprietrios rurais de Pernambuco, cujas terras chegavam ao litoral.
Eles tambm eram concorrentes, inclusive na poltica local. Depois de 1831,
ter o controle sobre uma praia apropriada para desembarque de africanos
ganhou relevncia nessa equao poltica. Essa uma histria sobre a qual
ainda sabemos pouco, mas fcil intuir que as praias mais apropriadas para
desembarques, prximas aos mercados, valorizaram-se. Na equao da po-
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HARMS, Robert. The diligent: A voyage through the worlds of the slave trade. Oxford: Perseus Press, 2002, p. 157.
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ltica local e provincial, aumentaria muito o poder daqueles que detinham
o controle sobre um bom porto natural prximo dos grandes engenhos de
cana, fazendas de caf e principais vilas e cidades brasileiras.
Aqui cabe uma observao bastante simples que, por vezes, relega-
da, quando pensamos no trco: no era qualquer lugar que servia para
ancoragem de um navio do qual seria desembarcada uma carga delica-
da, complexa e que exigia cuidados especiais. E tambm vale ressaltar que
descarregar um navio diferente de carreg-lo. Sabemos que alguns dos
principais pontos de embarque de cativos na costa da frica estavam situ-
ados onde no era possvel se aproximar muito da praia. Os navios tinham
que car ao largo, ancorados por vezes a centenas de metros da costa. Os
cativos tinham que ser levados em barcos a remo atravessando ondas por
vezes muito violentas. At a marinha inglesa temia essas vagas em vrios
pontos da frica atlntica. Na entrada do rio Benin, o rio Formoso dos por-
tugueses quinhentistas, na chamada costa dos escravos, eram essas ondas,
o surf como diziam os ingleses, um empecilho real, no apenas entrada
dos cruzadores rio adentro para apreender negreiros, como tambm para os
prprios tracantes, que sofriam com o mesmo problema, conforme relatou
o capito Henry James Matson ao parlamento ingls em 1850.
7
Esse problema aigia outros pontos de embarque muito utilizados pe-
los comerciantes atlnticos de escravos. O capito de navio negreiro Teophile
(ou Theodore) Canot elogiou a destreza dos canoeiros no delta do rio Pongo,
os kroomen, capazes de anar atravs das imensas ondas com suas longas
canoas, escapando da morte certa caso fossem menos hbeis.
8
Mohammah
Gardo Baquaqua, que desembarcou como cativo em Pernambuco por volta
de 1846, contou essa parte de sua desventura, ao embarcar como escravo
em algum dos portos no entorno de Uid, provavelmente Little Popo (atual
Anho), segundo Paul Lovejoy.
9
Sua narrativa deixa claro que o embarque
no era fcil naquela parte do litoral africano onde havia gente especializada
7
Minutes of evidence before Select Committee, 21/06/1849, Parliamentary papers. Reports from
the select Committee of the House of Lords to consider the best means which Great Britain can
adopt for the nal extinction of the African slave trade with minutes of evidence, appendix
and index, vol. 6, p. 201-202.
8
CANOT, Theodore. Adventures of an African slaver (being a true account of the life of captain Theodore
Canot, trader in gold, ivory & slaves on the coast of Guiena: His own story as told in the year 1854 to Brantz
Mayer. Now edited with an Introduction by Malcolm Cowley). Nova York e Londres: Cornwell Press,
Bonibooks series, 1935, p. 153, 272 e cap. XIV, passim.
9
LAW, Robin e LOVEJOY, Paul (orgs.). The biography of Mahommah Gardo Baquaqua: His passage from
slavery to freedom in Africa and America. Princeton: Marcus Wiener, 2001, p. 149.
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no transporte de cativos at os navios ao largo, anal de contas, foram in-
meras as pessoas que vieram dali para as Amricas naqueles anos, gerando
uma estrutura empresarial complexa. O primeiro barco com cativos a bordo
alcanou o navio em segurana, foi o que contou Baquaqua. Mas o segundo
foi virado por uma onda. Trinta pessoas acorrentadas afundaram para a mor-
te. Diante da dimenso do barco, capaz de carregar trinta cativos com suas
correntes e gente vigiando e remando, pode-se imaginar como era o mar ali.
Apenas um sujeito extremamente robusto, na descrio do narrador, mante-
ve-se agarrado ao barco e, mesmo acorrentado, conseguiu revir-lo e subir.
10
Ora, por piores que fossem as condies no trajeto do interior costa da
frica, por maiores que fossem as privaes, os cativos no ponto de embar-
que estavam mais bem hidratados e alimentados do que depois da travessia
atlntica. Um tracante arrependido contou ao parlamento ingls que, de-
pois de semanas de fome e sede, na hora do desembarque, muitas vezes os
cativos tinham que ser carregados para fora do navio.
11
Pode-se imaginar
as consequncias se esse desembarque fosse feito em condies anlogas s
descritas por Baquaqua, s que um pouco piores, j que as ondas pegariam o
barco por trs, em direo praia, quebrando em cima dele, virando, afun-
dando ou impelindo a embarcao contra rochas e corais. No era, portanto,
qualquer ponto da costa que servia para desembarque de cativos. E mesmo
nos locais adequados, no era a qualquer hora ou mar. O momento certo,
de mar calmo, no podia ser desperdiado. O local teria que ser exato, as
circunstncias tambm. O trco ilegal no era negcio para amadores.
2. Chegando e desembarcando
A identicao de bons ancoradouros naturais no esgotava o proble-
ma dos tracantes para continuar seus negcios depois de 1831. Claro que
havia muitas praias prprias para ancoragem e desembarque espalhadas
pelo imenso litoral brasileiro. A existncia desses portos naturais com gua
potvel perto foi o que possibilitou a ocupao inicial da colnia. Mas foi
justamente nesses locais que o Brasil comeou. Era neles que se situavam as
capitais provinciais das provncias costeiras. Esses portos, portanto, estavam
vetados depois de 1831. A soluo no era fcil, pois os escravos tinham
10
Apud LAW e LOVEJOY (orgs.), op. cit., p. 152.
11
Depoimento de Joseph Cliffe. In: CONRAD, Robert. Children of Gods re: A documentary history of
black slavery in Brazil. Princeton: Princeton University Press, 1983, p. 36.
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destino certo. No era muito prtico desembarc-los em portos naturais per-
feitos, se depois fosse preciso caminhar dias, semanas, no meio da mata
atlntica at o ponto de entrega, comercializao ou emprego direto da carga
humana. O risco de fuga ou mesmo de roubo dos africanos novos au-
mentaria exponencialmente. Desembarc-los e depois reembarc-los para
transporte de cabotagem poderia ser uma soluo, mas obviamente tambm
no era a mais racional. O ideal era que o porto fosse perto das propriedades
agrrias produtivas ou ento das povoaes mais importantes, onde havia
compradores certos, ou onde estavam os consignatrios da carga.
Resumindo: havia mercados a serem atendidos. A carga humana tinha
que chegar at l, ou pelo menos perto o suciente para ser distribuda sem
atropelos em poucas horas ou dias de caminhada. E mais, qualquer descuido
e os cativos poderiam tentar fugir para o mato. A presena de negros boais
em quilombos pelo Brasil afora o testemunho exato dessa possibilidade.
Em Pernambuco, os portos ao sul do eixo urbano Recife-Olinda cavam
prximos s matas onde ocorreria a Cabanada (1832-1835). Aqueles ao norte
margeavam as matas do Catuc, onde sempre havia negros fugidos, inclu-
sive boais. No Rio de Janeiro, como indicam os estudos de Flvio Gomes,
havia negros aquilombados no entorno da prpria capital imperial, depois
de 1831, no auge do trco negreiro.
12
Ora, se os cativos conseguiam fugir
mato adentro assim to perto dos pontos de revenda e distribuio, quanto
mais se o desembarque se desse em pontos ermos da costa, imprprios para
qualquer plantio, muito longe das principais propriedades agrrias e po-
voaes. Quanto mais perto fosse o porto dos mercados a serem atendidos,
melhor para os negociantes atlnticos de escravos.
Alm disso, para que um navio pudesse fundear em segurana, era
preciso que suas ncoras alcanassem o fundo, redundante, mas neces-
srio lembrar isso. E a navegao era vela, salvo excees nos anos nais
do trco. Assim, por vezes, era difcil alcanar o ponto exato de ancoragem
na primeira investida, obrigando o mestre ou o piloto a manobrar, fazer at
meia volta, seguir para o alto mar e retornar at chegar ao lugar certo. So
inmeras as narrativas coevas sobre as diculdades de se alcanar o porto
desejado quando os ventos e as correntes no ajudavam. Isso mesmo no
comrcio legal. por essa razo que, ao chegar a um porto qualquer, navios
de maior calado raramente dispensavam os servios da gente da terra, do
12
Veja-se: GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de quilombolas: Mocambos e comunidades de senzalas
no Rio de Janeiro sculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, passim.
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prtico do porto, que guiava o barco at a entrada da barra rapidamente e
em segurana. A vida imprecisa, mas navegar no, dizia corretamente o
grande poeta lusitano. Baquaqua tambm passou por isso, enquanto ainda
era escravo. A primeira, no momento do desembarque como cativo em Per-
nambuco quando o navio cou circulando um longo tempo antes de fun-
dear. Havia risco de captura e de naufrgio. O navio demorou a jogar suas
ncoras, navegando at o cair da noite. A segunda, quando trabalhava em
um navio mercante que, devido aos maus ventos e correntes, penou muito
para chegar ao porto de destino apesar de poder ser avistado a olhos nus.
13
Essa diculdade em chegar ao ponto certo criaria ainda um problema
adicional para os tracantes, pois navios de maior calado que passavam direto
pelos portos das principais cidades costeiras e seguiam adiante sem estarem
deriva, arribados ou simplesmente perdidos, no podiam estar fazendo ou-
tra coisa a no ser tracando escravos. Anal de contas, quem iria trazer al-
guma carga de maior volume e desembarc-la em uma praia qualquer, onde
no havia sequer onde armazen-la adequadamente, muito menos vend-la?
Era essa uma das principais maneiras de identicar navios negreiros ainda
no mar. Os cnsules ingleses cavam atentos a isso, o mesmo acontecendo
com as poucas autoridades brasileiras que porventura tivessem alguma pre-
ocupao sincera em reprimir o trco. Como disse um ocial da marinha
inglesa, qualquer navio que fosse avistado em rota errante, sem estar em
direo aos portos mais conhecidos, era, obviamente, um navio negreiro.
14
Assim, no bastava o navio chegar a qualquer lugar do imenso litoral
brasileiro. A navegao tinha que ser exata e tudo tinha que ser adaptado
nova situao, inclusive os navios que, paulatinamente, foram cando cada
vez menores. O uso de brigues, escunas e depois sumacas, palhabotes e at
iates no trco, depois de 1831, era uma adaptao s novas circunstncias.
Barcos menores podiam ser carregados mais rapidamente na frica, eram
velozes e de fcil manobrabilidade e mais difceis de serem espreitados
distncia. Tambm custavam menos. Em caso de captura, o prejuzo era me-
nor, tanto que, no raro, eram abandonados aps o desembarque. Ubiratan
Castro ressaltou o uso de navios baratos no trco ilegal, justamente para
13
Apud LAW e LOVEJOY (orgs.), op. cit., p. 155, 164.
14
WILBERFORCE, Edward e HURLBERT, William Henry. Brazil viewed through a naval glass: with
notes on slavery and the slave trade. Londres: Longman, Brown, Green and Longmans, 1856 [http://
books.google.com.br], pp. 200-201.
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depois de 1831
cortar o custo dos riscos.
15
s vezes, a natureza do negcio exigia tanta pres-
sa que as evidncias cavam expostas, como no caso de um navio negreiro
abandonado na praia de Porto de Galinhas, em 1844, com 37 pipas de gua,
caldeira, alguns pares de machos (tipo de algema para prender os cativos).
A 600 passos dele havia o cadver de um infeliz africano agrilhoado em
estado de muita putricao [sic].
16
Aos poucos, os navios foram encolhendo ainda mais. Em 1845, o cn-
sul ingls em Pernambuco informava aos seus superiores que era fre-
quente o uso de embarcaes bem menores do que aquelas que haviam
se tornado o padro depois de 1831. Ressalte-se que, depois de 1815, os
navios j haviam diminudo consideravelmente de tamanho em rela-
o poca quando era legal tracar cativos ao norte da linha do Equa-
dor. Segundo o cnsul, ao invs de navios de 150 a 300 toneladas, agora
apareciam barcos de apenas 45 a 60 toneladas. Esses iates saam do Brasil
com a carga j empacotada para poder ser descarregada rapidamente na
frica na cabea de um nico homem. Deixavam o Brasil com passapor-
te para navegao de cabotagem, mas, uma vez em alto mar, mudavam o
rumo em direo frica. Transportavam 100 a 150 africanos, por vezes
at 300 pessoas. Nesse caso, no havia espao sequer para deitar.
17
Barcos
assim entravam mais facilmente nas barras dos pequenos portos naturais.
Claro que era possvel car ao largo, em alto mar at e desembarcar os
cativos em canoas, barcaas e jangadas. Mas o barco caria a descoberto,
desprotegido contra a marinha inglesa e a brasileira e ainda menos contra
as intempries naturais. Desembarques assim eram mais arriscados. Uma
simples mar cheia ou um mar agitado poderiam atrapalhar a operao
mais bvia, que era descer os cativos at os barcos que os levariam praia.
Cativos estropiados, desidratados, esfomeados, muitos certamente incapazes
de se segurarem com rmeza. Ao descer podiam facilmente cair na gua e
se afogarem ou serem devorados pelos tubares que costumavam seguir
15
CASTRO DE ARAJO, Ubiratan. 1846: um ano na rota Bahia-Lagos. Negcios, negociantes e
outros parceiros. Afro-sia. Salvador: Ceal/UFBA, vol. 21-22, 1998-1999, p. 90.
16
Caetano Jos da Silva Santiago a Chichorro da Gama, 08/02/1844. Arquivo Pblico
Estadual de Pernambuco Jordo Emerenciano (Apeje). Polcia Civil, vol. 8, s. 40-
42. Jos Venceslao Affonso Pereira Rigueira Pereira de Bastos para Caetano Jos
da Silva Santiago, 15/02/1844. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (ANRJ). Fundo
Justia, pasta IJ-1-323.
17
Mr. Goring a lord Aberdeen, 16/05/1845. Parliamentary papers. Slave trade. Cor-
respondence with foreign powers relative to the slave trade [class B], vol. 30, p. 443.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
os navios negreiros. Dentro das grandes baas, como a de Guanabara ou a
de Todos os Santos, os navios podiam mais facilmente car ao largo, j que
estavam relativamente protegidos do mar aberto. Mas, ento, cavam mais
vulnerveis em relao ao cruzeiro ingls nos ltimos anos do trco. E,
mesmo ali, o mar no era sempre amistoso, que o digam as ressacas at os
dias de hoje. As praias ocenicas, por sua vez, no innito litoral brasileiro,
escondiam melhor os negreiros, mas, nesse caso, era preciso adaptar o navio
s circunstncias dos portos naturais.
Quanto mais prximo do litoral e quanto mais protegido das ondas e
correntezas, mais seguro era o desembarque. O emprego de pequenos iates
abarrotados de gente nos ltimos anos do trco no era, portanto, o re-
sultado de improvisos, nem falta de planejamento, sequer simples sadismo
dos tracantes. E convm ressaltar, no era apenas para escapar do cruzeiro
ingls em alto mar ou estratgia de pequenos negociantes sem capitais para
comprar navios maiores. Era tambm uma adaptao aos portos de em-
barque e desembarque. O uso de embarcaes menores permitia a entrada
segura em pequenos portos naturais, nas baas mais estreitas e esturios de
rios na frica e no Brasil, quase na beira da praia, embarcando e desembar-
cando os cativos em segurana.
Da perspectiva dos tracantes, essa lgica explica o sucesso de algu-
mas viagens absolutamente grotescas da frica para Pernambuco, como a
do Conceio, um pequeno iate de 21 toneladas que carregou 97 pessoas nos
seus pores, das quais 91 sobreviveram viagem.
18
Ou ainda o caso do Ma-
riquinhas, um iate com o dobro do tamanho do Conceio, 45 toneladas, mas
tambm com o dobro da carga, 203 africanos, dos quais 201 desembarcaram
vivos em Pernambuco.
19
Ou ainda de uma simples lancha, sem nome de to
pequena, que atravessou o atlntico apenas com o mestre e dois tripulantes,
com 42 cativos a bordo dos quais 36 sobreviveram ao inferno, garantindo
o lucro da empreitada.
20
Barcos assim poderiam ser levados at encalhar na
praia, sendo abandonados ou destrudos aps o desembarque, sem o mesmo
custo da perda de uma embarcao de maior tonelagem.
18
Mr. Cowper a lord Aberdeen, 01/01/1844. Parliamentary papers. Slave trade. Correspondence
with foreign powers relative to the slave trade [class B and C], vol. 28, p. 407-408.
19
First enclosure in n. 265, 01/01/1844. Parliamentary papers. Correspondence with foreign
powers relative to the slave trade [class B and C], vol. 28, p. 411.
20
Mr. Cowper a lord Aberdeen, Second Enclosure in 292, 31/12/1841. Parliamentary papers.
Slave trade. correspondence with british commissioners and with foreign powers relative to
the slave trade [class A and B], vol. 23, p. 437.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
Os grandes negreiros chamavam muita ateno e eram mais facilmente
capturados. O uso deles incrementou o trco, mas logo comearam a ser
capturados, pois precisavam car ao largo, longe da praia, tanto no litoral
africano enquanto eram carregados, quanto no Brasil, onde se davam os de-
sembarques. O Providncia, talvez o mais famoso deles, no fez mais do que
cinco viagens levando cativos para a Corte imperial.
21
O nico vapor que
reconhecidamente aventurou-se a trazer cativos para Pernambuco foi fabri-
cado em Nova York, como inmeros outros navios negreiros nessa poca.
22

Custou uma pequena fbula e saiu do Recife sob um daqueles velhos pre-
textos utilizados pelos tracantes: a navegao de cabotagem. Seu passapor-
te indicava Santos como porto de destino, mas o navio foi apreendido pelos
ingleses a apenas 140 milhas de Cabinda. O Cacique no conseguiu completar
sua primeira viagem frica, sendo apreendido no dia 25 de setembro de
1845. Segundo os ingleses, era capaz de carregar at 1.500 cativos.
23
Em sua Corograa braslica, Aires de Casal relatou que Pernambuco era
talvez a provncia melhor aquinhoada com portos naturais, se bem que
a maioria deles servisse apenas para embarcaes menores, as sumacas.
24

Ora, era disso que precisavam os negreiros. O entusiasmo de Aires de Casal
explica-se pela linha de arrecifes que atravessa o litoral da provncia, em
frente a qual existe uma fossa abissal. Os arrecifes de Pernambuco mere-
ceram at um estudo de Charles Darwin que passou por Recife voltando
de sua viagem no Beagle. Odiou tudo o que viu e zarpou para a Inglaterra
feliz por deixar o pas onde ouviu os gemidos de um cativo ou cativa sendo
torturado(a). Mas no deixou de se impressionar com os arrecifes em frente
21
Relatrio Alcoforado-Africanos. ANRJ, Justia, pasta IJ6 525, s. 7-8. Sobre o relatrio desse
agente pago pelos ingleses, veja-se RODRIGUES, Jos Honrio. Brasil e Africa: Outro horizonte.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 216-217. BETHELL, Leslie. A abolio do comrcio brasileiro
de escravos. Braslia: Senado Federal, 2002, p. 397.
22
Sobre capitais, trabalhadores e navios americanos empregados no trco brasileiro, veja-se:
HORNE, Geraldo. O sul mais distante: Os Estados Unidos e o trco de escravos africanos. So Paulo:
Companhia das Letras, 2010, cap. 2, passim. GRADEN, Dale T. O envolvimento dos Estados
Unidos no comrcio transatlntico de escravos para o Brasil, 1840-1858. Afro-sia. Salvador:
Ceal/UFBA, vol. 35, 2007, p. 9-35.
23
Lord Aberdeen ao cnsul Cowper, 21/02/1846 e Enclosures 1 a 9. Parliamentary papers. Cor-
respondence with foreign powers relative to the slave trade [Class B, C e D], vol. 33, p. 283-288.
Edmund Gabriel a lord Aberdeen, 31/12/1845. Parliamentary papers. Correspondence with
British commissioners and proceedings of the vice-admiralty courts relative to the slave trade,
[Class A], vol. 32, p. 293.
24
AIRES DE CASAL, Manuel. Corograa braslica. Rio de Janeiro, 1817; reedio: Belo Horizonte:
Itatiaia, 1976, p. 259.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
ao porto da cidade. Uma linha reta com quilmetros de extenso. Nas suas
palavras, talvez no houvesse no mundo uma estrutura natural com a apa-
rncia to articial quanto aquela.
25
Essa mesma linha brota novamente ao
sul do Recife, descendo a costa. Em cada corte nessa linha de arrecifes, h
um porto natural, permitindo a existncia de diversos ancoradouros segu-
ros. Esses portos serviam para contrabando desde o perodo colonial. Foram
eles, inclusive, que permitiram que a resistncia luso-brasileira continuasse
exportando seus acares durante a ocupao holandesa (1630-1654).
Em 1821, o contrabando continuava sendo um problema para as auto-
ridades provinciais do Reino Unido. Praias como Itamarac, Cabo de Santo
Agostinho, Porto de Galinhas, Rio Formoso e Tamandar permitiam a en-
trada de navios de cem toneladas.
26
Na poca em que o comrcio atlntico
de escravos era uma atividade legal, um navio negreiro poderia receber at
cinco cativos por cada duas toneladas de arqueao segundo o primeiro
artigo do conhecido alvar de 1813 que regulava essa matria.
27
Cem tone-
ladas, portanto, signicavam poder transportar 250 africanos legalmente,
atendendo as exigncias das empresas de seguro e autoridades porturias
brasileiras. Ora, sabendo que os negreiros, depois de 1831, no obedeciam
essas regras, ca claro que esses portos podiam receber bem mais gente em
cada navio que l chegava. No nal da dcada de 1830, o pastor Kidder viu
um desses barcos ancorado em Itamarac, desembarcando cativos sem ser
incomodado.
28
Para que a operao pudesse transcorrer assim, na calma, sem
sobressaltos, era preciso, portanto, encontrar o porto certo e entrar na barra
em segurana. Isso no era para amadores. Era preciso habilidade, conheci-
mento da costa, embarcao gil e de boa manobrabilidade.
25
I doubt whether in the whole world any other natural structure has so articial an appearance. DARWIN,
Charles. The voyage of the Beagle. Londres, 1860; reedio: Nova York: Anchor Books, 1962, p. 495-496.
26
Joaquim Batista Moreira ao Ministrio dos Negcios Estrangeiros, 31/12/1850. Torre do Tombo
(Lisboa): Coleo do Ministrio dos Negcios Estrangeiros, Pernambuco, caixa 3, s. n. Arquivo
Pblico Estadual (Recife): Porto do Recife, vol. 15, 03/12/1821. Veja-se ainda FIGUEIRA DE
MELLO, Jeronymo Martiniano. Ensaio sobre a estatstica civil e poltica de Pernambuco. Recife, 1852;
reedio: Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979, p. 56-63. Esse contrabando muito pro-
vavelmente j inclua cativos.
27
Alvar de 24 de novembro de 1813. Colleo das leis brasileiras, desde a chegada da corte at a poca da
Independncia - 1811 a 1816, vol. 2, p. 292-302. Veja-se ainda FLORENTINO, Manolo. Em costas
negras, uma histria do trco atlntico de escravos entre a frica e o Rio de Janeiro (sculos XVIII e XIX).
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993, p. 49.
28
KIDDER, Daniel P. Reminiscncias de viagens e permanncias nas provncias do Norte do Brasil. So Paulo:
Itatiaia, 1980, p. 119.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
A adequao das embarcaes para entrar nas barras dos portos natu-
rais no esgotava as diculdades para o sucesso da operao. Havia a ques-
to da navegao atlntica e costeira em si. Era preciso que o navio chegasse
em segurana em um determinado ponto exato. Em tese, era possvel cons-
truir na praia alguma estrutura alta para sinalizao, ou, no mnimo uma
fogueira, mas isso no bastava. Qualquer descuido e o navio podia bater
em arrecifes ou encalhar nos bancos de areia nos deltas dos rios maiores e
botar tudo a perder. Era preciso atingir o ponto exato de entrada da barra.
Talvez seja at redundante esticar este pargrafo, pois, para simplicar nosso
argumento, at os dias de hoje existe a prosso de prtico de porto. Pro-
sso bem remunerada, inclusive, que no Brasil atual depende de concurso
pblico. Tal como os tabelies, o prtico pago pelos servios prestados e
no atravs de salrio. ele o prossional que traz o navio do alto mar para
seu ponto de ancoragem. Cada porto tem os seus prticos. So prossionais
valorizados, pois o especialista que conhece as correntes locais, as pedras,
os bancos de areia, os humores do mar, os ventos, a tecnologia de navegao
e tudo o mais que preciso para que o navio entre sem problemas no porto
para desembarcar sua carga. Da habilidade do prtico depende a celeridade
e a segurana do desembarque.
No era diferente naquela poca, tanto que Theodore Canot, j expe-
riente na arte de navegar, cou muito aito quando lhe mandaram atuar
como prtico de um determinado porto na Amrica do Norte. quela altura
de sua carreira martima, ele j se considerava um bom navegador, mas no
tinha o conhecimento especco que era exigido para se chegar exatamente
no ponto que lhe foi indicado, rapidamente e em segurana. Algum tempo
depois, j comandante de navio negreiro, empregou um piloto local para
entrar no rio Pongo na costa da frica. Fez o mesmo, alguns anos depois,
quando esperou a chegada de um piloto antes de entrar no rio Nunez na
Costa dos Escravos.
29
Tinha razo em preocupar-se nessas situaes, con-
forme o traado da costa, a localizao de bancos de areia e arrecifes, o ritmo
das correntes e ventos, o perigo de naufrgio era concreto. Um bom prtico
podia ganhar um bom dinheiro nos portos secundrios, que se tornaram
relevantes depois de 1831. Foi isso que aconteceu com o patro-mor (ou
seja, o prtico mais graduado) da barra de Campos, no Rio de Janeiro, que,
junto com um marinheiro, enriqueceu durante o trco ilegal de escravos,
29
CANOT, op. cit., p. 40-42 e p. 190.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
segundo nos conta o famoso relatrio Alcoforado, sobre o trco de escra-
vos, datado de outubro de 1853. Os dois malandros terminaram se tornado
at comendadores, tanto zeram para facilitar o desembarque de cativos
africanos para prover a capital imperial.
30
Cedo os tracantes comearam a sinalizar na costa. Os tracantes no
Rio de Janeiro criaram um sistema de sinais costeiros. Na Bahia, eram in-
meras as fogueiras.
31
Em 1837, foi apreendida uma srie de documentos em
um navio negreiro no rio Benin. Entre os papis havia uma srie de instru-
es aos funcionrios de uma empresa formada por negociantes envolvidos
no trco para Pernambuco. Entre elas, havia um sistema de bandeiras e si-
nais que deveriam ser empregados tanto na costa da frica como nas praias
pernambucanas para onde iam os navios. Em ambos os lados do Atlntico,
foram construdas estruturas altas para a comunicao entre os negreiros e
seus cmplices em terra utilizando o cdigo de sinais estipulado.
32
Barcos
de diversos tipos e tamanhos tambm colaboravam na empreitada, indo
encontrar os negreiros em alto mar nos dois lados do Atlntico, ajudando a
gui-los at o ponto certo, ou mesmo embarcando cativos na costa da frica,
ou desembarcando-os no Brasil, como veremos a seguir.
As diculdades em se chegar a um ponto certo da costa so conrmadas
pelos inmeros naufrgios nessa poca. Sabemos que muitos deles eram pro-
positais, pois no era incomum se sacricar navios velhos, ou mesmo novos,
trazendo-os abarrotados, abandonando-os ou destruindo-os aps a viagem,
principalmente nos ltimos anos do trco. Mas uma coisa era fazer isso de-
pois do desembarque, com a carga j em terra. Outra coisa era perder a pre-
ciosa carga humana j no m da viagem. Os prejuzos poderiam ser imensos.
A tragdia, terrvel. Foi isso que aconteceu com um navio velho que naufra-
gou na praia, em algum ponto entre Alagoas e Pernambuco. Pelo que se pode
deduzir a partir dos relatos coevos, o navio foi levado por uma onda e rolou
de tal forma que 60 crianas, que estavam connadas na parte que inundou,
simplesmente se afogaram. Originalmente, o navio trouxera uns 350 cativos.
160 morreram durante a viagem. Apenas uns 130 foram desembarcados em
30
Relatrio Alcoforado-Africanos, s. 2.
31
VERGER, Pierre. Fluxo e reuxo do trco de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos
dos sculos XVII a XIX. So Paulo: Corrupio, 1987, p. 460. BETHELL, op. cit., p. 99.
32
REIS, Joo Jos; GOMES, Flvio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O aluf Runo: Trco,
escravido e liberdade no Atlntico negro (c. 1822 - c. 1853). So Paulo: Companhia das Letras, 2010,
cap. 10. MARQUES, Joo Pedro. Trco e supresso no sculo XIX: o caso do brigue Veloz.
Africana Studia. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n 5, 2002, passim.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
estado muito debilitado e foram mandados s pressas para o Recife. No sabe-
mos quantos sobreviventes foram parar nos engenhos das duas provncias.
33

Uma boa medida para evitar acidentes era enviar ajuda aos navios ainda
em alto mar. No Rio de Janeiro, na dcada de 1840, havia inmeros barcos
espreita da chegada dos negreiros. Segundo os ingleses, eles se aproximavam
dos negreiros e cobravam dez mil ris por cada cativo que desembarcassem
em segurana ou mesmo para desembarcar os africanos. Por essa razo, via-
se muita gente sendo levada pelo interior, mas nem sempre era possvel saber
em que navio tinham vindo. O capito do Anna recusou essa ajuda e terminou
capturado pelos ingleses. Segundo a correspondncia diplomtica enviada a
lord Aberdeen em 1844, devido a sua incompetncia no episdio, o capito
no apenas perdeu seu emprego como ainda cou muito mal visto entre os
negociantes de escravos da Corte.
34
No nal de 1852, na foz do rio Bracuhy
em Angra dos Reis, aconteceu um dos ltimos desembarques nas terras de
Joaquim Jos de Sousa Breves, um dos maiores tracantes do Imprio. Ao se
aproximar, o navio foi logo recebido por inmeras canoas que colaboraram
no desembarque de 500 cativos de Moambique e Quelimane.
35
Os prprios
consignatrios da carga e possveis compradores muitas vezes chegavam
mais rapidamente aos pontos de desembarque de barco do que a cavalo.
36

Percebe-se, portanto, que o trco se tornaria uma alternativa concreta
de renda extra para os barqueiros da costa, antes envolvidos apenas com a
pesca e o transporte de pessoas e mercadorias. Quem tinha barco e conhecia
o litoral ganhou uma oportunidade de lucro com o contrabando de escravos,
mesmo que no tivesse nenhum contato com a frica, nem capital ou mes-
mo experincia nesse ramo de negcios. O trco deu emprego a muita gen-
te antes dependente da pesca e do pequeno comrcio de cabotagem. Esse ce-
nrio, superlativo no Rio de Janeiro, repetiu-se em menor escala nas outras
33
Cowper a lord Aberdeen, 01/04/1844. First enclosure in n. 266. Parliamentary papers. Corres-
pondence with foreign powers relative to the slave trade, [Class B and C], vol. 28, p. 414.
34
John Samo e Fred Grigg a lord Aberdeen, 20/02/1844. First Enclosure in n. 135. Parliamentary
papers. Correspondence with British commissioners and with foreign powers relative to the
slave trade (class A and D), vol. 27, p. 184.
35
ABREU, Martha. O caso do Bracuhy. In: MATTOS, Hebe e SCHNOOR, Eduardo. Resgate: uma
janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 167.
36
Isso no apenas nas praias ocenicas, como as de Pernambuco, mas mesmo dentro das grandes
baas, como atesta o depoimento de um diplomata francs, que acompanhou um tracante
numa canoa at o fundo da baa da Guanabara onde se dera um desembarque. RODRIGUES,
Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermedirios do trco negreiro de Angola ao Rio de Janeiro
(1780-1860). So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 310.
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depois de 1831
provncias. O m do trco liquidaria muitos negcios locais, vinculados
aos inmeros barraces para depsito de africanos novos, que viriam a ser
queimados pelas autoridades brasileiras encarregadas de exterminar o trco.
No Nordeste do Brasil, havia inclusive um tipo de embarcao, muito
popular entre pescadores devido a seu baixo custo de fabricao, que podia
se adaptar a esse novo uso. Eram as jangadas, feitas de pau de jangadeira, que
tanto chamaram a ateno de europeus como Koster, Tollenare e Rugendas,
perplexos diante de uma embarcao to eciente quanto simples e inusita-
da.
37
Eram variados os seus empregos, inclusive transportar escravos fujes.
38

Acrescento que, depois de 1831, foram muito teis ao trco. Com leveza,
quase voando sobre as ondas com uma nica vela latina e leme de popa,
eram elas que primeiro encontravam os navios negreiros, guiando-os at
aqueles portos naturais elogiados por Aires de Casal no comeo do sculo. Do
alto mar podiam chegar at a areia da praia sem problemas. A participao
delas no trco incomodava o cnsul britnico em Pernambuco. Dizia ele,
em 1837, que as jangadas, literalmente, sem traduo alguma para o ingls,
lanavam-se ao mar espreita da chegada dos navios negreiros, do mesmo
modo, portanto, dos barcos menores no Rio de Janeiro, como vimos acima.
Eram elas que indicavam o local e o momento seguro para o desembarque.
39

Colaboravam tambm com o desembarque dos cativos e da tripulao.
O mestre de um pequeno navio negreiro, por exemplo, teve a pachorra de
tentar entrar na barra vista da fortaleza do cabo de Santo Agostinho, um
dos pontos estratgicos mais importantes e bem vigiados do litoral brasilei-
ro, por ser o cabo mais oriental da costa da Amrica do Sul. O comandante
da fortaleza atirou trs vezes no navio que fez meia volta e foi desembarcar
mais adiante, ainda vista da fortaleza, mas fora do alcance de suas armas.
O comandante mandou um barco, que capturou o mestre do navio que
estava em uma jangada indo para a terra.
40
Podemos inferir, portanto, que
37
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Londres, 1816; reedio: Recife: Secretaria de Edu-
cao, 1978, p. 27. TOLLENARE, L. F. Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no
Brasil, em 1816, 1817 e 1818. Salvador: Progresso, 1956, p. 20-21. RUGENDAS, Joo Maurcio.
Viagem pitoresca atravs do Brasil. So Paulo: Itatiaia, 1979, p. 233.
38
SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma etnograa histrica sobre as gentes do mar (scs. XVII
ao XIX). So Paulo: Papirus, 2001, p. 115.
39
Consul Watts a mr. Hamilton, 09/05/1837. 3
rd
Enclosure to n. 84. Parliamentary papers. Cor-
respondence with foreign powers relating to the slave trade, 1837 [Class B], vol. 15, p. 76.
40
Vicente Thomas Pires de Figueiredo Camargo a Francisco Antonio de S Barreto, 01/08/1837
e 24/11/1837. Apeje. Ofcios da Presidncia Prefeitura, Repartio Central de Polcia, s. s/n.
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O desembarque nas praias: o funcionamento do trco de escravos
depois de 1831
quando os navios cavam ao largo, as jangadas tambm poderiam servir
para desembarcar os cativos.
O risco de naufrgio no era o nico problema a ser enfrentado por um
navio negreiro que errasse a rota. Nunca pouco lembrar que o trco era
um negcio ilegal, feito em freguesias onde as autoridades locais, regra geral,
tambm eram proprietrias de terra e escravos. Assim, mesmo que fossem
coniventes com o trco, no signicava que iriam assistir seus vizinhos,
muito menos concorrentes e adversrios polticos, se beneciarem sozinhos.
Se um navio negreiro fosse parar na praia errada, o potentado local que con-
trolava o acesso a ela por terra poderia muito bem aproveitar a situao para
se apropriar dos cativos desembarcados sem sua autorizao. Nesses casos, a
vantagem estava com o pessoal de terra, pois a carga humana tinha que ser
desembarcada rapidamente. Isso mesmo se relevarmos, como secundrio, o
risco de apreenso pela marinha brasileira ou pela inglesa, pois todos sabiam
que quanto mais tempo os cativos permanecessem a bordo, mareados, sem
higiene adequada, sequer gua fresca, como se dizia na poca, e expostos
a um regime epidemiolgico brutal, maior a mortalidade. Em Pernambuco,
todas as praias prprias para o trco tinham dono.
41
possvel at que fos-
sem desprezadas antes de 1831. Mas depois daquele ano no. Principalmente
aquelas onde havia portos naturais cuja barra e profundidade permitiam a
entrada de navios negreiros em segurana.
Assim, em 1845, quando um negreiro sem nome errou a rota, por en-
gano ou por diculdade de enfrentar as correntes e os ventos, o capito teve
que se virar. A praia certa, segundo o cnsul ingls era barra de Catuama,
justamente um dos portos naturais mais elogiados por Aires de Casal quase
quarenta anos antes. Mas o navio, tonteante, foi parar em Macaro, logra-
douro da comarca de Tejucupapo, prximo s praias de Carne de Vaca e
Catuama. rea de plantation desde o sculo XVI, os proprietrios das praias
de Goiana no eram contrrios ao trco. Mas como homens de negcios
que eram, quiseram tambm lucrar com a situao. Antes mesmo de con-
seguir se comunicar com o consignatrio da carga no Recife, o comandante
41
No litoral pernambucano, os principais portos naturais situavam-se em praias contguas a
grandes engenhos de cana, ou margeando povoaes tambm submetidas esfera de inuncia
dos grandes potentados rurais. Uso aqui a expresso coloquial dono da praia para indicar
o membro da oligarquia agroexportadora capaz de defender a posse do porto natural contra
outros ocupantes, permanentes ou eventuais. Dependia de sua conivncia o uso daquele
porto por outrem, inclusive por navios negreiros. Assim, como se a praia a rigor terreno
de marinha tambm tivesse dono.
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depois de 1831
teve que vender 30 cativos, provavelmente a baixo custo, para poder custear
suas necessidades imediatas, o que demonstra que os negociantes locais no
iriam deixar barato a oportunidade de lucro.
No difcil inferir que os cativos e a tripulao precisavam de cui-
dados, vveres e gua. Isso tudo era urgente. Para garantir a segurana do
desembarque, ele ainda repassou outros 11 africanos como propina para as
autoridades locais. E no parou a. Segundo o cnsul ingls, uma poro do
resto da carga humana foi simplesmente roubada pela populao local. No
total, segundo o cnsul ingls, 146 africanos foram desembarcados nesta mal
sucedida empreitada dos tracantes que operavam em Pernambuco. Imagi-
ne-se o prejuzo dos consignatrios da carga humana.
42
Esse tipo de situao
podia acontecer em qualquer lugar. No Rio de Janeiro, onde os cativos eram
mais valorizados, um negreiro teve que desembarcar s pressas, em local
no combinado, devido ao risco iminente de ser apreendido por um cruza-
dor que vinha em seu encalo. Desesperado, o comandante tentou vender os
cativos a 200 mil ris cada para a populao local. Ningum quis. Terminou
baixando o preo para pos 20 mil ris por cada escravo. O dono da carga
do Tentativa era ningum menos do que Manoel Pinto da Fonseca, um dos
maiores negociantes de escravos do Imprio. Mas, diante das circunstn-
cias, de nada lhe valeu sua inuncia.
43
Sendo o trco um negcio ilegal,
os tracantes no tinham recurso lei nesses casos. No podiam processar
ningum por lhe roubar os cativos. Ficava por isso mesmo o achaque dos
donos da praia e da populao circunvizinha. Chegar ao porto errado, por-
tanto, s no era pior do que ser apreendido pela marinha inglesa.
Esse ltimo detalhe, o roubo da carga, provavelmente era o maior pro-
blema que poderia enfrentar um navio negreiro que fosse parar em local
diferente do planejado. A propina, ou talvez, melhor dizendo, o gio a ser
pago pelo engano, era administrvel, era parte do negcio, como observou
Ubiratan Castro para o caso da Bahia.
44
Mas o roubo no. Era insustentvel.
Numa praia estranha, a tripulao estava indefesa diante da populao local.
Nunca pouco lembrar que, em uma sociedade escravista, todos tinham ar-
mas e a populao masculina era organizada em batalhes hierarquizados,
42
Cowper a lord Aberdeen, 02/03/1845. Parliamentary papers. Correspondence with foreign
powers relative to the slave trade [class B, C and D], vol. 33, p. 290-293. De acordo com as
inferncias de Robin Law e Paul Lovejoy foi nesse navio que Baquaqua viajou para o Brasil
como cativo. LAW e LOVEJOY, op. cit., p. 45.
43
James Hudson a lord Palmerston, 15/03/1851. In: WILBERFORCE e HURLBERT, op. cit., p. 236.
44
CASTRO DE ARAJO, op. cit., p. 85, 102-103.
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depois de 1831
antes nos corpos de Ordenana, depois na Guarda Nacional. No seria difcil
para algum senhor de engenho assumir seu cargo de juiz de paz, ou sua
patente de ocial da Guarda Nacional, ou mesmo do (ocialmente) extinto
corpo de ordenanas, armar seus dependentes e at seus cativos de con-
ana e se apropriar de africanos ilegalmente desembarcados nos limites de
suas terras.
45
por isso que os juzes de paz foram os que primeiro lucraram
com as propinas do trco segundo o relatrio Alcoforado.
46
As autoridades
locais se regalaram com o trco. Em um dos principais portos do trco de
Pernambuco, na foz do rio Una, era o vigrio quem cobrava 10 mil ris por
cada cativo desembarcado em segurana.
47
Dentro dos navios negreiros, a carga estava protegida da gente da terra,
pois os navios navegavam bem armados, prontos para reagir at contra a
marinha inglesa. Mas em terra, a coisa era diferente. Por melhor armados
que estivessem os marinheiros, qualquer senhor de engenho era capaz de
arregimentar mais gente em pouco tempo. Sem a proteo de algum poten-
tado local, uma carga dessas na praia podia ser apreendida, digamos assim,
at pelo sargento da guarda nacional da esquina, pequeno rendeiro ou co-
merciante de alguma povoao prxima, que tambm poderia juntar gente
armada com essa nalidade. Roubar 300, 400 cativos talvez fosse difcil, mas
surrupiar alguns no. J em 1839, o Carapuceiro comentava esse problema com
na ironia. Segundo a bem humorada folha, o trco atlntico seria extinto
por seus prprios excessos, pois haviam surgido companhias, cujo nico
negcio era saltear por essas praias aos donos das partidas de escravos, to-
mando-lhe os cativos fora darmas.
48
Aqueles que detinham o controle
sobre os principais portos naturais, os donos das praias, tiveram que se ar-
mar. Estavam prontos para proteger seus desembarques e, havendo chance,
tomavam os cativos dos outros.
45
Em Pernambuco, durante o quinqunio liberal (1844-48), a polcia civil, dominada pelos
praieiros, apreendeu diversos carregamentos, apropriando-se dos cativos que raramente torna-
ram-se africanos livres, pois eram simplesmente distribudos pelos engenhos dos aliados do
partido. Veja-se: CARVALHO, M. J. M. A represso ao trco atlntico de escravos e a disputa
partidria nas provncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo
praieiro, 1845-1848. Tempo. Revista do Departamento de Histria da UFF , v. 27, 2009, p. 151 - 167.
46
Relatrio Alcoforado-Africanos, s. 2.
47
M. Goring a lord Aberdeen, 16/05/1845. Parliamentary papers. Correspondence on the slave
trade with foreign powers, parties to treaties, under which captured vessels are to be tried
by mixed tribunals, [class B], vol. 16, p. 443.
48
O Carapuceiro (Recife), 23 de maro de 1839, p. 3.
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depois de 1831
O desembarque de Sirinham, em 1855 em Pernambuco, s foi mal su-
cedido por causa desse tipo de engano, atracar na praia errada. O episdio
ganhou projeo na imprensa da poca por ter sido aquele palhabote sem
nome o ltimo negreiro apreendido na costa brasileira com cativos africanos
a bordo. Na investigao, at o presidente da Provncia e os Cavalcanti foram
considerados suspeitos. Mas tudo comeou justamente porque o comandan-
te do palhabote errou o local de desembarque. Ao invs de ir para o enge-
nho de Joo Manoel de Barros Wanderley, foi parar na casa de outro senhor
de engenho que denunciou o caso s autoridades locais. Foi um pequeno
engano. O engenho certo cava ali perto, mas foi o suciente para atrapa-
lhar tudo. O sujeito que apreendeu o desembarque, todavia, deixou esca-
par o comandante e a tripulao do navio. Nunca cou claro se no tinha
como mant-los presos, como alegou, ou se deixou que escapassem mesmo.
E mais, boa parte dos africanos livres desapareceu misteriosamente. Dizia
uma parte da imprensa local, talvez roubados, quer dizer apreendidos, pelo
prprio lho do denunciante, o coronel Drummond que, ressalte-se, havia
se tornado amigo do cnsul ingls em Pernambuco, que o defendeu em sua
correspondncia.
49

Essas circunstncias, todavia, talvez paream excepcionais. Anal de
contas, em 1855, os envolvidos no trco, uma vez indiciados, caam nas
mos da Auditoria de Marinha. J se fora o tempo em que jurados localmen-
te escolhidos, submetidos ou dependentes dos poderes locais, eram os encar-
regados de decidir o destino dos negociantes pegos em agrante. Ao colocar
o julgamento nas mos da marinha e oferecer recompensa, o governo im-
perial inverteu a vantagem dos tracantes, antes julgados pela justia local,
incapaz de se desvencilhar das malhas clientelares e da inuncia dos po-
tentados rurais. A aplicao desse dispositivo dicultaria muito o trco. To-
davia, entre 1831 e a lei de setembro de 1850, os tracantes que errassem de
praia tambm estavam se arriscando um bocado. E no falo aqui de apreen-
so, ou ter que pagar propinas, mas serem roubados simplesmente, como vi-
mos acima. O prejuzo era enorme, apenas o navio se salvava. Claro que isso
j era alguma coisa, mas imagine-se o impacto nas nanas de um tracante
se a carga de gente fosse surrupiada depois de tanto trabalho e investimento.
Devido ilegalidade do negcio, so relativamente poucos os registros
de ladro roubando ladro quer dizer senhor de engenho roubando tra-
49
VEIGA, Glucio. O desembarque de Sirinham. Recife: Imprensa Universitria, 1978, passim. O Liberal
Pernambucano, 27 de junho de 1856. Arquivo Nacional. Srie Justia-Polcia, pasta IJ 6 -521.
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cante, ou senhor de engenho e tracantes roubando tracantes e senhores
de engenho... Enm, qualquer uma dessas possibilidades (o leitor pode at
pensar em mais algumas) mas os casos do Feliz e do Mariquinhas esto
documentados. O Feliz, tpico tumbeiro, embarcou 200 africanos, dos quais
70 morreram na travessia atlntica. Ao chegar ao Brasil, 80 foram roubados
pelas autoridades locais e seus aliados que, depois, cumprindo a lei, envia-
ram ao Recife os remanescentes, um total de 50 pessoas, entre mulheres e
crianas, todos muito doentes. Nenhum deles escaparia da morte nos dias
subsequentes. O Mariquinhas teve destino semelhante em 1846. Foi parar na
praia errada. Certamente, sabendo o que poderia acontecer, seu proprietrio
foi pessoalmente para o ponto de desembarque, provavelmente conante
na sua capacidade de comprar a conivncia alheia, pagando ou repassando
alguns escravos como propina. No foi bem-sucedido. As autoridades locais
eram mais ambiciosas do que pensava e no apenas caram com todos os
cativos como ainda lhe deram uma bela de uma surra.
50

3. Recepo, vigilncia e morte
Resolvido o problema da chegada do navio na praia certa, onde era
esperado, havia ainda outros detalhes que requeriam cuidados. Primeiro,
era preciso alguma estrutura de recepo para os cativos recm-desembar-
cados. Nunca pouco lembrar as condies em que chegavam: esfomeados,
desidratados, muitos enfermos, todos completamente nus, zesse calor ou
frio. Na poca em que o trco era legal, a nudez incomodava as autorida-
des pernambucanas, ao ponto de emitirem um bando proibindo a exibio
de negros novos despidos venda no Recife.
51
Eram assim que estavam
depositados, no Arsenal da Marinha, as dezenas de cativos apreendidos no
Bom Jesus em 1846.
52
Mesmo na Corte, viajantes viram gente completamente
nua exposta venda.
53
Canot explicava a nudez durante a travessia atlntica
50
Enclosure 2 in number 12, 04/05/1846. Parliamentary papers. Correspondence with British
commissioners and proceedings of the vice-admiralty courts relative to the slave trade, [Class
A], vol. 32, p. 46.
51
Bando sobre a proibio dos negros pelas ruas, 18/03/1822. Apeje. Registro de Provises
(R-PRO) 09-01, s. 108-108 verso.
52
Antonio Brito Chichorro da Gama ao sr. desembargador chefe de Polcia interino, Manoel
Rodrigues Villares, 17/03/1846. Apeje. Polcia Civil. vol. 327, . 80.
53
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. So Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 78.
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depois de 1831
alegando que era a nica maneira de manter os cativos limpos e saudveis,
mas podemos supor que tambm era uma forma de impedir que escondes-
sem apetrechos para defesa pessoal.
54
Mas, uma vez desembarcados, era preciso abrigo mnimo e vigilncia
mxima. As praias do trco encheram-se de barraces com essa nalida-
de. Eram estruturas impressionantes, aptas a receber centenas de pessoas
de uma s vez. No litoral do Rio de Janeiro, muitos desses barraces foram
destrudos depois de setembro de 1850.
55
Deve ter sido alguma estrutura
assim que Baquaqua encontrou ao chegar a Pernambuco. Segundo seu re-
lato, ao desembarcar foi levado at a casa de um plantador que funcionava
como uma espcie de mercado de escravos. Este um detalhe relevante, pois
indica uma situao que deve ter se tornado a regra e no uma exceo,
ou seja, passou a ser difcil separar o tracante do senhor de engenho que
controlava o acesso praia. Depois de 1831, o acordo mercantil entre o dono
da praia e o dono da carga humana deveria ser o mais estreito possvel. No
caso de Pernambuco, onde os portos naturais eram bem denidos, pode-se
at falar nessa categoria social sem aspas, o senhor de engenho-tracante
ou vice-versa ou seja, aquele potentado rural que se tornou tracante, ou
o tracante que se tornou rendeiro ou dono de terra, enm, alguma forma
de aliana mercantil e poltica viabilizando a empreitada.
Pois bem, ali onde desembarcou Baquaqua, havia abrigo e comida, es-
senciais para estancar a mortalidade da carga humana. O principal eram
gua e alimentos frescos como se dizia na poca, pois no se conhecia a
vitamina C, mas sabia-se, por uma longa experincia com o escorbuto, que
o consumo de frutas frescas e misturas de carnes com ervas evitava o mal
de Luanda, como se dizia na poca.
56
Da mesma forma que os navios ne-
greiros tinham imensos caldeires e inmeras pipas de gua para prover os
africanos, o ponto de desembarque deveria ter cozinha, estoque de vveres,
gua potvel e lenha sucientes para as necessidades das centenas de pes-
soas que l estavam, entre africanos desembarcados, tripulao do negreiro,
negociantes e trabalhadores engajados nos servios necessrios para a recu-
perao, manuteno e vigilncia dos africanos novos.
54
CANOT, op. cit., p. 102.
55
Relatrio Alcoforado-Africanos, s. 2. WILBERFORCE e HURLBERT, op. cit., p. 233.
56
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Cirurgies e mercadores nas dinmicas do comrcio
atlntico de escravos (sculos XVIII e XIX). In: MELLO SOUZA, Laura; FURTADO, Jnia; BICA-
LHO, Maria Fernanda (orgs.). O governo dos povos. Relaes de poder no mundo ibrico na poca moderna.
So Paulo: Alameda, 2009, p. 289. RODRIGUES. De costa a costa, op. cit., p. 261-265 e passim.
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depois de 1831
Entre as atividades desenvolvidas no ponto de desembarque, temos que
incluir os cuidados com o prprio navio que teria que ser preparado para
navegar at o porto ocial mais prximo, onde receberia passaporte e seria
aprestado para outras aventuras mercantis, quem sabe at outra viagem
frica. No bastava livrar-se de correntes e outros equipamentos prprios
do trco que poderiam chamar a ateno das autoridades no porto legal de
destino. Signicava tambm fazer pequenos consertos, alguns dos quais de-
mandavam servio prprio de trabalhadores porturios, como, por exemplo,
carpintaria e calafetagem. Uma tarefa era rotina: a limpeza do barco, geral-
mente com alcatro, para chamar menos ateno no porto de destino ameni-
zando o chamado cheiro de escravo
57
e, principalmente, por causa da crena
de que os odores nauseabundos, os miasmas pestilenciais que emanavam
do navio poderiam contaminar o ar, causando doenas difceis de curar.
O caso do Aracati, um brigue-escuna de 162 toneladas, traz algumas in-
dicaes do funcionamento desses procedimentos. O barco foi capturado em
1842, prximo ao cabo de Santo Agostinho, aps desembarcar 385 africanos
que sobreviveram em uma viagem onde outras 27 pessoas morreram de sede,
segundo os autos de sua apreenso. Seu mestre Manoel Jos Fernandes era
natural de Pernambuco e, portanto, provavelmente bom conhecedor daquele
trecho da costa brasileira. Alis, convm mencionar que o piloto tambm era
pernambucano. No havia, portanto, margem para erro na rota. Estava tudo
bem planejado. Sabiam para onde ir e onde entrar. Conheciam os mares por
onde navegaram e a barra onde foram capturados. Foi uma escuna da mari-
nha brasileira que apreendeu o Aracati. No momento da apreenso, a tripula-
o estava no navio se regalando com melancia, manga, laranja e maracuj.
58

A abundncia e variedade de frutas demonstravam claramente que o
navio viera de uma longa viagem, segundo deduziam as autoridades bra-
sileiras. Ao serem questionados sobre elas, os tripulantes alegaram que as
frutas no tinham vindo da praia imediata, o que seria um indcio claro do
desembarque, no entender das autoridades da marinha. De acordo com a
tripulao, elas haviam sido compradas de uma barcaa que passou por ali.
O que sabemos ao certo que essas frutas eram essenciais para que a tripu-
57
RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p.. 149.
58
Embarcao Aracaty, lata 2, mao 1, pasta 1. Arquivo Histrico do Itamaraty. Colees Especiais.
Comisses Mistas (trco e negros). Parliamentary papers. Slave trade. Correspondence with
British commissioners and with foreign powers relative to the slave trade [class A and B], vol.
23, p. 268-273. REIS, GOMES e CARVALHO, op. cit., p. 161-162.
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depois de 1831
lao e os cativos se recuperassem. Nunca pouco lembrar que o escorbuto
tambm afetava a marujada, cuja mortalidade era altssima. A praia tambm
teria que acolher os tripulantes doentes e moribundos.
quela altura, no se sabia que os cajus, onipresentes nas praias do
Nordeste no apogeu do vero, tinham um teor de vitamina C maior do que
as laranjas que a tripulao chupava. Mas, certamente, deviam ser consumi-
dos pelos desembarcados por serem frutas praticamente sem custo algum
durante a safra. J se sabia que as frutas ctricas eram ecazes contra o escor-
buto.
59
Mas era maro. Acabara-se a safra. Mas, como vimos, havia manga,
laranja, melancia e maracuj no Aracati. Havia, portanto, variedade e abun-
dncia. Pensando bem, talvez os tripulantes tenham dito a verdade quanto
origem desse pequeno banquete. Talvez, realmente tivessem comprado as
frutas de uma barcaa que passava carregada de alimentos frescos. S que,
se isso aconteceu, a tal barcaa no apareceu por acaso. Nos portos das gran-
des cidades, havia os chamados barcos de quitanda, como observou Silva-
na Jeha, que vendiam comida e outras mercadorias aos barcos maiores.
60
A
barcaa que passou pelo Aracati era uma adaptao nova situao. Era um
barco de quitanda, s que para navios negreiros.
Um desembarque de 385 pessoas famlicas era uma excelente opor-
tunidade para se comercializar frutas que, em outras circunstncias, talvez
no tivessem uma demanda to grande e urgente. A variedade no Aracati
expressa exatamente isso, pois juntar, em um mesmo barco, melancia, man-
ga, laranja e maracuj em grande quantidade no exato momento de um
desembarque de centenas de cativos, indica a existncia de uma estrutura
de distribuio bastante especializada. Melancia e maracuj so trepadeiras
plantadas e colhidas anualmente. Mangueiras so rvores frondosas, laran-
jais, arvoredos que exigem cuidados. Demoram a produzir. Mas maracuj
e melancia so frutas sazonais. Podem ser plantadas em um leiro simples,
desde que se cuide para que os animais e insetos da roa no as devorem.
Havia, portanto, pomares e gente capaz de plantar, colher, juntar e manusear
frutas prontas para o consumo dos desembarcados. No podemos garantir
que eram todas vendidas em barcos de quitanda. Talvez o dono da praia
tivesse pomares prontos para atender as necessidades do trco. Mas o que
importa aqui apontar a existncia de mecanismos de produo e distri-
59
RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 262. WISSENBACH, op. cit., p. 295.
60
JEHA, Silvana Cassab. A galera heterognea: naturalidade, trajetria e cultura dos recrutas e marinheiros da
armada nacional e imperial do Brasil , c. 1822-c. 1854. Tese de doutorado, Histria, PUC-RJ, 2011, p. 95.
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buio complexos e ecazes. Nesse sentido, importante atentar para um
detalhe: as frutas teriam sido adquiridas de uma barcaa, uma embarcao
movida a vela ou remo de pau capaz de navegar em guas rasas, podendo
assim entrar nos rios alcanando pontos distantes do litoral.
Foi isso que notaram os ociais da marinha inglesa perto de barraces
no Rio de Janeiro. Num deles, havia vastas plantaes de banana, laranja e
mandioca.
61
Talvez alguns senhores de engenho mais sintonizados com essa
necessidade aqueles senhores de engenho-tracantes mencionados acima
tenham at incentivado, ou obrigado, seus cativos a plantar melancias e
maracuj, por exemplo, ou outras hortalias. Assim, podem ter surgido roa-
dos que no eram apenas o resultado direto da tensa e desigual negociao
entre senhores e cativos, mas tambm uma necessidade das propriedades
prximas das praias acolhedoras de navios negreiros. O emprego do traba-
lho escravo voltado para a manuteno do trco uma possibilidade. Mas
no a nica. Essa podia ser uma nova oportunidade para roceiros menores
ou mesmo para moradores de engenho que vendiam seus excedentes nas
feiras, ou ainda para pescadores que passaram a ter a possibilidade de ganhar
alguns trocados, fazendo uso dos seus barcos, barcaas, canoas e jangadas.
Importa repetir aqui que tudo tinha que ser rpido e ecaz. O dono
da carga no podia esperar pelos refrescos, como se dizia na poca. Era
preciso recuperar os cativos imediatamente. Qualquer demora resultava em
mais fatalidades e, consequentemente, prejuzos. Imagine-se o vuco-vuco
que devia ser o desembarque de um navio negreiro em um ponto qualquer
onde, antes de 1831, havia apenas pescadores e gente da clientela de algum
senhor de engenho prximo. A massa de gente escravizada que desembar-
cou naqueles anos fora das capitais certamente mudou os mercados locais de
vveres e a vida das comunidades costeiras, antes dependentes da pesca, de
modestos roados, cujos excedentes eram vendidos nos dias de feira no inte-
rior. O impacto do trco ilegal sobre o cotidiano das populaes envolvidas
no pode ser subestimado. Foi brutal, mesmo em mercados menores do que
o Rio de Janeiro, como era o caso de Pernambuco. Uma injeo de capital
mercantil imediata e profunda. A chegada de um navio negreiro represen-
tava o surgimento de um mercado de ocasio, restrito no tempo e no espao.
Mas, naquele momento exato, havia uma demanda a ser atendida. O recep-
tador dos cativos no podia depender do dia de feira ou de fornecedores
61
WILBERFORCE e HURLBERT, op. cit., p. 235.
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depois de 1831
eventuais. Tinha que estar tudo pronto. Muita gente estava envolvida nes-
sas operaes, entre trabalhadores livres, roceiros, pescadores e at cativos.
Feito o desembarque, a desova, como diziam na poca, era preciso um
local de depsito seguro e bem vigiado, o que signica que deveria haver
gente preparada para essa nalidade com armas e outros tantos apetrechos
de conteno. Cavalos, mulas e cachorros tambm eram teis neste caso. Res-
salte-se que havia gente tambm especializada em roubar escravos recm-
desembarcados. A vigilncia, portanto, tinha que ser muito bem orquestrada.
Era preciso tambm que houvesse uma estrutura mdica mnima, um
bom barbeiro-sangrador ao menos, talvez at africano, para cuidar das cen-
tenas de pessoas que certamente desembarcavam estropiadas, muitas grave-
mente enfermas, inmeras com diarreia, outras tantas com conjuntivites que
podiam levar a cegueira e, talvez todos at, com alguma molstia de pele,
sarna principalmente, alm de feridas vrias devido s condies da viagem.
Sabemos do descuido dos negociantes de escravos em relao s recomen-
daes dos mdicos sanitaristas, mas havia um limite, que deviam conhecer
muito bem, entre deixar os cativos embarcados menos capazes de se rebelar
devido fome e sede e simplesmente mat-los durante a viagem.
Depois do desembarque, o problema continuava. Segundo o depoimen-
to ao parlamento ingls de um homem envolvido no trco para o Brasil, os
cativos precisavam de uns trs meses para se recuperar da travessia atln-
tica.
62
Ricardo Cares Silva elencou uma srie de depoimentos de africanos,
que vieram para o Brasil depois de 1831, no qual cou explcito que muitos
cavam vrios dias, at meses, perto do local de desembarque antes de se-
rem comercializados. Recuperavam-se da viagem, aprendiam melhor por-
tugus e assim alcanavam melhores preos.
63
Como indica Manolo Florentino, a taxa de mortalidade dos recm-de-
sembarcados tambm era muito alta.
64
Nem sempre era possvel estancar
totalmente a diarreia e demais doenas infecto-contagiosas contradas na
viagem, principalmente quando viajavam apinhados, como se dizia no
Brasil, ou spooned, literalmente como colheres empilhadas, como diziam os
ingleses.
65
Na poca do trco legal, observou Mary Karasch, era exigida at
62
Apud CONRAD, op. cit., p. 36.
63
CARES SILVA, op. cit., p. 50-58.
64
FLORENTINO, op. cit., p. 154.
65
HARMS, op. cit., p. 305.
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depois de 1831
certa ateno psicolgica para evitar o banzo e o suicdio.
66
Os ingleses com-
putavam os bitos dos africanos livres que levavam para Serra Leoa aps a
captura dos navios negreiros onde eles estavam viajando como cativos para
as Amricas. Numa amostra de 38.033 africanos livres desembarcados entre
1840 e 1848, 3.941 morreram antes que os navios em que estavam fossem
leiloados.
67
Isso signica que mais de dez por cento dos africanos transpor-
tados pelos ingleses para a sua principal colnia africana faleciam em terra
devido aos padecimentos da viagem.
Ao chegar ao Brasil, portanto, muitos morriam. O Temerrio viajou com
913 cativos apinhados, dos quais apenas 816 desembarcaram em Catuama.
Muitos foram distribudos como propina para as autoridades locais durante
o desembarque. Mas, no engenho onde estavam aprisionados, morreram
outros 300. Imagine-se o terror que uma cena desse tipo provocava nas co-
munidades litorneas recm-expostas ao trco. Como teria sido o enterro
daquelas 60 crianas que se afogaram dentro do navio encalhado em uma
praia entre Alagoas e Pernambuco? Maria Graham cou aita ao ver um co
arrastando na boca o brao de um pobre cativo mal enterrado no areal do
istmo entre Olinda e Recife.
68
As cenas presenciadas prximas ao Valongo
no Rio de Janeiro eram ainda mais brutais, segundo os contemporneos.
Eram inmeros os cadveres mal enterrados, espalhando uma fedentina in-
suportvel.
69
Em Salvador, a busca pela dignidade na hora do enterro levou
os cativos a se levantarem na Cemiterada.
70
No h porque subestimar o que
acontecia nesse plano no litoral afora depois de 1831. Cenas dantescas de en-
terros em massa iriam se repetir nas praias. S que piores, podemos inferir,
pois, ao menos nas cidades, o trco sofria algum controle, por menor que
fosse, por parte das autoridades que cuidavam da higiene urbana. No por
compaixo, mas simplesmente porque todos temiam o contgio.
A desventura dos sobreviventes obviamente no era apenas o cativeiro.
A tragdia do Temerrio, por exemplo, no parou na morte de centenas de
66
KARASCH, op. cit., p. 79-80.
67
Report from the select Committee of the House of Lords, etc., 19/07/1850. Parliamentary
papers. Report from the select Committee of the House of Lords to consider the best means
which Great Britain can adopt for the nal extinction of the African slave trade with minutes
of evidence, appendix and index, vol. 6, p. 228.
68
GRAHAM, Maria. Dirio de uma viagem ao Brasil (e de uma estada nesse pas durante parte dos anos de
1821, 1822 e 1823). Londres, 1824; reedio Belo Horizonte: Itatiaia, 1990, p. 140.
69
KARASCH, op. cit., p. 77.
70
REIS, Joo Jos. A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX. So Paulo:
Companhia das Letras, 1992, passim.
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pessoas aps o desembarque. Pelo menos uns cem cativos caram cegos
pela ophtalmia que os atacou, sendo, por isso, distribudos gratuitamente.
Os restantes foram vendidos normalmente, para escndalo do cnsul ingls
no Recife que disse nunca ter visto uma ofensa lei to agrante, pois tudo
aconteceu quase s vistas de Olinda e com o conhecimento do ento presi-
dente da Provncia, o baro da Boa Vista.
71
Isso tambm teria consequncias
para a populao costeira.
No nos iludamos, conjuntivites virticas ou bacterianas, facilmente
curveis hoje em dia, podiam resultar em cegueira permanente. E tudo isso
com muita dor, muito sofrimento, alm do isolamento devido ao temor que
todos tinham do contgio. Imagine-se o terror dos infelizes passageiros do
Temerrio condenados escravido e cegueira simultaneamente. O perigo
de cegueira era to real que os episdios mais aterrorizantes circulavam
pelo Atlntico rapidamente. O caso do Rodeur foi narrado por Thomas Clark-
son em seu livro publicado em 1830. Sem cit-lo, em janeiro de 1839, o Dirio
de Pernambuco contou o mesmo episdio, certamente chocando seus leitores.
Segundo o jornal, o Rodeur, um negreiro de 200 toneladas, zarpou de Calabar
em janeiro de 1819 com 22 tripulantes e 160 africanos, quando uma oftalmia,
que comeou entre os escravos, atingiu um dos marinheiros e da se espalhou
cegando praticamente toda a tripulao. Apenas um marinheiro ainda podia
ver o suciente para guiar o navio. No caminho, o Rodeur cruzou com um ne-
greiro espanhol, o Leon, acometido pelo mesmo problema, mas foi incapaz de
ajud-lo. Doze tripulantes caram permanentemente cegos, inclusive o cirur-
gio-barbeiro do navio. O capito conseguiu salvar apenas um dos olhos.
72

Por ltimo, depois do desembarque, comeava outro processo que podia
ter vrias formas: a distribuio da carga. Baquaqua, por exemplo, no falou
muito sobre como foi a sua prpria comercializao, mas deixou a impresso
de que foi vendido e revendido sucessivas vezes individualmente at chegar
s mos de um padeiro. Mas tambm havia caravanas que partiam das praias
em vrias direes. Incomodava o cnsul ingls em Pernambuco a tranquili-
dade com que essas inusitadas procisses seguiam pelas estradas sem serem
incomodadas pelas autoridades que deveriam coibir o trco. Esquecia-se
71
National Archives (Londres). NA-FO 84/470, 08/05/1843. Ibid. FO 84/526, Slave trade, Brazil,
03/09/1844.
72
Diario de Pernambuco, 04/01/1839. CLARKSON, Thomas. Abolition of the African slave-trade by the
British Parliament. Augusta, P.A. Brinsmade, 1830, vol. 2, p. 221-225. Veja-se ainda: http://www.
slavevoyages.org/tast/database/search.faces
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depois de 1831
que isso j era uma rotina em Pernambuco. A diferena que essas carava-
nas no partiam mais do Recife ou de uma ou outra vila costeira que, even-
tualmente, recebia contrabando desde o perodo colonial. Agora, elas saam
dos portos do trco em direo ao interior ou mesmo para Recife e Olinda.
Aqui, gostaria de ressaltar que o trco ilegal teve dinmica prpria. Ele
no foi igual nos seus mais de vinte anos de existncia. Houve adaptaes s
circunstncias, tanto no mar como em terra. bem possvel que, no comeo
dos anos 1830, as caravanas com cativos realmente andassem tranquilamen-
te pelo interior afora. Mas, com o passar do tempo, a vigilncia deve ter se
aprimorado, no apenas para coibir as fugas, mas tambm por temor dos
ladres de escravos, como vimos acima. Enquanto o trco existiu, os ne-
greiros podiam ser atacados por piratas. Depois de 1831, isso passou a acon-
tecer em terra. As caravanas eram o alvo. Vale ressaltar que, obviamente, os
cativos no eram gado, mas gente, ou seja, eram capazes de participar do
seu prprio roubo, trocando de senhor no meio do trajeto. Em 1837, o Dirio
de Pernambuco publicou uma carta que defendia explicitamente o comrcio
atlntico de escravos. O sarcstico missivista, que se assinava Anjo Gabriel,
contou que viu passar na porta do seu engenho uma caravana levando uns
200 colonos africanos que haviam desembarcado ali perto. Alm dos tais
colonos, havia uns 40 homens armados vigiando a triste procisso.
73
Em
zonas de plantation prximas costa no deviam ser raras essas cenas. Mas
o que aconteceria se a caravana tivesse que atravessar algumas lguas antes
de chegar ao ponto de distribuio dos cativos? Os vigilantes, como os 40
homens da estria do Anjo Gabriel, no estavam ali de graa. Alm disso,
todos tinham que ser providos de vveres e gua durante o trajeto para que
a distribuio usse a contento. Portos naturais em locais ermos do imenso
litoral do Brasil poderiam servir emergencialmente, mas no para as rotinas
do trco. Tudo tinha que ser muito bem arranjado, da chegada do navio
distribuio dos cativos.
4. Consideraes nais
Aps 1831, o comrcio atlntico de escravos passou a empregar muita
gente em diversas atividades no imenso litoral brasileiro fora das capitais
provinciais. Esta constatao permite algumas reexes.
73
Correspondncia. In: Dirio de Pernambuco, 17/04/1837.
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Agricultores e roceiros ganharam fregueses para escoar sua produo.
Barqueiros, jangadeiros, pescadores em geral encontraram uma nova fonte
de renda. Desocupados robustos passaram a ter empreitada na vigilncia
dos desembarcados ou nas caravanas de distribuio dos cativos. Barbeiros
subempregados nas modestas povoaes costeiras passaram a ter trabalho
certo e intenso, mesmo que por poucos dias mal distribudos no ano. Padres
viram seus servios valorizados nas capelas dos engenhos. No se limitavam
apenas a benzer as mquinas na primeira moagem. Batizavam turmas de
negros novos e benziam enterros em massa, evitando assim malassobros,
feitios e maldies. Para alguns desses servios, tambm podiam servir os
especialistas religiosos locais mais afamados, inclusive africanos.
Quando os navios negreiros deixaram de desembarcar nas capitais,
muita gente deve ter perdido o emprego nos portos urbanos. Mas, talvez,
ainda mais tenha se empregado pelo litoral afora. No temos como aferir
exatamente o impacto desse processo nas comunidades costeiras, mas no
deve ter sido pequeno. O trco trouxe um novo uso para as embarcaes
antes devotadas apenas pesca e cabotagem de mercadorias menos va-
liosas do que a mo-de-obra escrava. Criou um novo mercado para vveres
frescos, que muitas vezes tinham que ser levados at os barcos, principal-
mente quando eles cavam a bordejar esperando um momento melhor para
aportar ou esperando o desembarque completo em segurana.
Sabemos que, no sculo XIX, o trco foi ganhando adversrios nos
mais variados estratos sociais. Em seus ltimos anos, no havia muita gen-
te armando nos jornais que era uma atividade boa e louvvel, ao menos
to explicitamente como zera o tal Anjo Gabriel no Dirio de Pernambuco.
Muito menos em textos assinados por pessoas reais, com nome e sobreno-
me. Isso mesmo sendo corriqueiro denunciar as arbitrariedades cometidas
pelos ingleses contra a marinha mercante brasileira sob o pretexto de uma
causa nobre, fomentando assim a anglofobia. O medo das rebelies escravas,
das doenas trazidas da frica e a prpria conscincia de que a escravido
era um mal que devia ser erradicado adensavam a massa de defensores da
abolio do trco. Havia emancipacionistas sinceros e boa parte da opinio
pblica concordava. Mas ser que os agentes consulares britnicos e portu-
gueses estavam simplesmente mentindo quando diziam que muitos brasi-
leiros apoiavam o trco nessa mesma poca? Estariam os ingleses apenas
defendendo a expanso do seu imprio sob a fachada de uma causa huma-
nitria? Estariam os agentes consulares lusitanos apenas defendendo seus
cidados envolvidos no trco, jogando a culpa nos brasileiros?
Sim, a resposta bvia. A hipocrisia humana universal.
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Mas preciso qualicar essa resposta. No podemos ser to simplistas,
pois, no mesmo momento em que crescia a opinio pblica contra o tr-
co principalmente nas cidades , havia muita gente no litoral que dele se
beneciava. Nos locais de desembarque, muitos passaram a depender do
trco, seno para sobrevivncia, ao menos como uma fonte de renda an-
tes inexistente. Depois de 1831, muitas localidades costeiras receberam uma
brutal injeo de capital mercantil, gerando renda nas mais diversas ativida-
des. ingnuo supor que a falta de denncias de desembarques era apenas
por temor aos tracantes. duro admitir, mas havia gente que no podia ser
radicalmente contra seu prprio ganha-po. O famoso relatrio Alcoforado
narra uma complexa escala de propinas, desde os mais altos escales at as
autoridades locais menos expressivas.
74
O dinheiro do trco pulverizava-se.
Dizer que a maioria da populao o apoiava uma proposta absurda. Mas
no podemos negar que muita gente dele se beneciava.
O cnsul ingls em Pernambuco achava que a populao mais pobre
era quem mais apoiava o trco por ser um negcio que gerava muita rique-
za, empregando muita gente em pequenos servios, distribuindo propinas
em todos os nveis da burocracia imperial.
75
Mais uma vez, evidente o
exagero da retrica consular. Bem prpria da mentalidade de um represen-
tante da ento maior potncia do planeta. No razovel alicerar o trco
justamente na populao no proprietria de escravos. Isso tambm bvio.
Todavia, no devemos subestimar a participao das populaes costeiras,
reduzindo o trco a um negcio de grandes tracantes urbanos. O Nazareno,
por exemplo, era uma folha que defendia os direitos dos caixeiros brasilei-
ros e dos negros presos no Recife por seguirem a seita do Divino Mestre em
1846.
76
Seu editor, Borges da Fonseca, era um admirador de Cipriano Barata
e autor do manifesto mais radical da insurreio Praieira (1848/49), no qual,
entre outras propostas, defendia o voto universal para os cidados brasilei-
ros. Borges da Fonseca, todavia, no deixou de publicar um texto defendendo
a anulao da lei antitrco de 1831. Citou explicitamente Bernardo Pereira
74
Relatrio Alcoforado-Africanos, s. 3.
75
NA-FO 84/470, 04/08/1843.
76
ALMEIDA SANTOS, Mrio Mrcio de. Um homem contra o Imprio: Antnio Borges da Fonseca. Joo
Pessoa: Unio, 1994, passim. CARVALHO, Marcus J. M. Que crime ser cismtico? As transgres-
ses de um pastor negro no Recife patriarcal, 1846. Estudos Afro-Asiticos, 1999, vol. 36, p. 97-122.
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de Vasconcelos escrevendo que a escravido um elemento de civilizao
para o Brasil.
77
Ele certamente no estava sozinho.
Claro que o trco tambm trazia doenas terrveis para as populaes
do litoral. Da cegueira a diarreia mortal, passando por inmeras enfermidades
graves. Quem no se chocaria ao ver, pela primeira vez, a chegada de centenas
de pessoas famlicas, desidratadas, com sarna, muitas cegas ou at moribun-
das nos ltimos suspiros? Quem no se incomodaria ao testemunhar, ou mes-
mo participar, de enterros de dezenas, s vezes centenas de pessoas poucos
dias aps um desembarque? A maior presena africana tambm aumentava
o temor de uma grande rebelio escrava, um problema tanto para os grandes
como para os pequenos e mdios proprietrios de cativos. Mas, por outro
lado, o trco empregava de pescadores a roceiros, passando por desocupados
mais robustos, barbeiros, prticos de portos secundrios, carpinteiros, calafa-
tes etc. Eram muitos esses empregados em Pernambuco. Mais ainda na Bahia e
Rio de Janeiro. Vinha da o tal apoio ao trco de que falavam os agentes con-
sulares ingleses e portugueses. Quer dizer, talvez apoio seja uma expresso
superlativa, mas conivncia no. Partia da a silenciosa, mas concreta, nesga
de legitimidade que porventura ainda possua o trco entre a populao no
proprietria de escravos depois de 1831. Muita gente lucrava com ele.
Estamos falando, portanto, de um empreendimento de grande porte.
Por mais discretos que fossem os tracantes, por mais silenciosas que fos-
sem as velas recolhidas aps a ancoragem, um desembarque era um grande
evento. A notcia da chegada de um navio negreiro se espalhava como fogo
na palha (wild-re), na expresso do prprio Baquaqua.
78
Euzbio de Queiroz
tinha a mesma opinio. Segundo ele, bastava o governo querer para acabar
com o trco, pois era impossvel esconder uma operao dessa escala.
79

Todo mundo via. Muitos participavam.
Depois de 1831, os negociantes envolvidos no comrcio atlntico de es-
cravos procuraram tambm possuir terras no litoral, ou constituir alguma
forma de acordo com os proprietrios das terras prximas aos terrenos de
77
Apeje. O Nazareno. Typograa Nazarena de Antonio Borges da Fonseca, 23/03/1846. Ao discutir
os roubos de escravos que ocorriam em Pernambuco na dcada de 1840, Borges tambm de-
fenderia a propriedade sobre os africanos que entraram no pas depois de 1831. Para ele, era
preciso pegar os ladres de escravos, mas o domnio propriamente dito, ou seja a propriedade,
no deveria ser questionada. ALMEIDA SANTOS, p. 115.
78
Apud LAW e LOVEJOY (orgs.), op. cit., p. 158.
79
Relatrio apresentado Assembleia Geral, 1852. Center for Research Libraries, Brazilian Go-
vernment Document Digitalization Project, http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/660/000005.html.
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marinha, as praias propriamente ditas. Assim viabilizaram seus negcios.
Houve, portanto, um rearranjo nas relaes entre os detentores dos melhores
portos naturais e os tracantes. Como voz corrente na literatura e nas mem-
rias coevas que os senhores de engenho costumavam estar endividados com
os tracantes, talvez fosse essa uma boa alternativa para aqueles cujas terras
margeavam os melhores portos naturais, abatendo dbitos em troca de pro-
teo aos desembarques, ou sendo pagos em negros novos. Para os tracan-
tes, no havia outro caminho, ou tinham acesso aos melhores portos naturais
prximos dos centros de consumo da mercadoria contrabandeada, ou saam
do negcio. Quanto melhor o porto natural, quanto mais pronta e segura a
estrutura de recepo, mais rpido, discreto e bem-sucedido o desembarque.
Depois de 1831, dicilmente um navio negreiro iria zarpar da frica
na louca, sem destino certo, pronto a atracar em qualquer lugar. Quando
isso acontecia, o risco de fracasso era iminente. Tracantes bem articulados
poderiam at dispor de mais de um ponto de desembarque a sua disposio,
inclusive em diferentes provncias, pois s vezes era preciso mudar a rota
para escapar dos ingleses. Mas o essencial era garantir ao menos um local
certo para o desembarque. Volto a lembrar que a possibilidade de apreenso
pelos ingleses no era o nico risco. Os negcios do trco eram concorridos
e as disputas polticas e pessoais frequentemente resolvidas com violncia.
Nas localidades litorneas onde esses atritos eram mais acirrados, havia o
risco dos negros novos serem tomados pelos adversrios dos responsveis
pelo desembarque. Em lugares mais remotos, a carga poderia ser roubada
por ladres de escravos. Proprietrios rurais empossados de cargos no apara-
to repressivo tambm podiam tentar se apropriar de cativos desembarcados
por seus adversrios na poltica local. Esses riscos impeliam os tracantes
a entrar em sintonia com os potentados locais, tecendo alianas polticas e
mercantis nas imediaes dos melhores portos naturais, ou mesmo com-
prando ou arrendando essas terras. Essa rede de apoio era a melhor garantia
do sucesso de um desembarque. Depois de 1831, os negociantes de escravos
no podiam mais se limitar a negcios urbanos e atlnticos. Era preciso
consolidar alianas alm das capitais provinciais. Agora tambm interessava
a eles conhecer ou tornarem-se o juiz de paz, o comandante da guarda
nacional, o subdelegado de polcia. Uma nova relao se estabelecia. Tra-
cantes tornaram-se donos de terra no litoral e, provavelmente, vice-versa.
No que diz respeito ao volume do trco, Pernambuco est em 3 lugar, atrs
da Bahia e Rio de Janeiro. Todavia, a provncia serve como um microcosmo
do trco mais amplo. Processos anlogos devem ter ocorrido em outras
provncias depois de 1831.
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Recebido: 08/02/2012 - Aprovado: 13/08/2012

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