A Máquina de Fragmentos
A Máquina de Fragmentos
A Máquina de Fragmentos
A MÁQUINA DE FRAGMENTOS,
a construção da arquitetura através dos primeiros instrumentos óticos.
A domesticação da visão. 1
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“Não acreditamos que a verdade continue sendo verdade depois de ser retirado o véu.” (Nietzsche)
A elaboração de uma teoria dos fragmentos, dos fragmentos fotográficos, passa
pela formação da imagem na câmara escura. A imagem fotográfica é precedida
por toda uma estética da visão: uma moralidade higiênica de mais luz que orienta
e conduziu durante séculos toda a história das práticas pictóricas e arquitetônicas.
No quatrocentos, foram dados os primeiros passos na construção de uma
máquina de fragmentos da representação. Com seus hábeis olhos, os arqueiros
italianos perfuraram o mundo medieval, derrubaram a pirâmide e inverteram o
sentido do cosmo-mundo. Os símbolos que conectavam o acima-abaixo em um
eixo vertical foram substituídos pelo eixo horizontal da representação em
profundidade. Através dos buracos, e das janelas, projetaram novos horizontes
livres de obstáculos.
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Câmaras escuras, espelhos, miras, vedutas, e todo tipo de instrumentos óticos
foram empregados freqüentemente e seu uso foi tão indispensável quanto o uso
do próprio pincel, no meio artístico da época. Ainda que a história da arte oculte
esse fato na maioria das vezes, eles articularam todo o espaço da representação
desde o Renascimento, do mesmo modo que a fotografia constitui um modo de
ver e de construir o mundo.
A perspectiva de ciclope foi o procedimento pelo qual os florentinos aprenderam a
dominar o campo da visão profunda no mesmo instante em que lhes permitiu
perfurar o mundo. A história da câmara escura se entrecruza com a própria
formação da perspectiva, sendo o seu próprio instrumento de investigação e de
difusão. A representação da arquitetura em perspectiva pode ser compreendida
mais facilmente se estivermos familiarizados com a câmara escura.
A Camara escura como definição, não é mais do que uma caixa fechada, ou um
compartimento com um pequeno orifício (piñole) o qual permite a passagem da
luz, que se projeta no fundo da caixa, também chamado Plano da Pintura.
Leonardo da Vinci assim definiu: “Digo que se um compartimento tem diante de
si uma fachada de um edifício ou praça, ou bem uma campina, iluminada pelo sol
e que se no lado da casa que não vê o sol abrimos um orifício circular, todos os
corpos iluminados projetarão suas imagens através de tal orifício. No interior da
habitação e sobre a parede oposta que deve ser branca. Aí apareceram ao ponto
de cabeça para baixo. E se abrires orifícios semelhantes em outros lugares da
parede, obterias por cada um o mesmo efeito.” 3
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As primeiras referencias que se tem desse aparelho é atribuído aos chineses, que
já conheciam e usavam desde o século V ac, mas foi Aristóteles, durante IV a.c.,
quem primeiramente descreveu a totalidade da ocorrência, do efeito da câmera
escura, quando ele observou durante um eclipse solar varias imagens de meias
luas que se formavam no chão devido aos pequenos buracos que se formavam
pela trama das folhas das arvores. Posteriormente, no século X, o que seria uma
das maiores influencias sobre o mundo cientifico do quattrocentos, foi o Tratado
sobre óptica do físico Alhazen, que fez uma serie de experiências com a formação
da imagem. Roger Bacon no século XIII mencionava também a utilização da
camara escura para observar eclipses do sol, e também como atividade para
divertir seus alunos. Lentes, óculos e espelhos côncavos já haviam sido
produzidos no inicio do século XIII, entretanto as lentes ainda não haviam sido
colocadas nos pequenos orifícios, ou no piñole de uma camara escura. 4
Durer, Veduta
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Os termos “perspectiva” e “ótica”, até então, tinham o mesmo significado, se
constituíam praticamente em uma mesma coisa, e só a partir desse momento se
passará a distinguir esses termos: perspectiva naturalis (ótica) e perspectiva
artificialis (propriamente dita).
As câmaras escuras foram de grande utilidade para projetar aquilo que o olho
medieval decididamente não podia ver, porque não exisia: a ortogonalidade em
profundidade. As câmaras escuras são obviamente um aparato ilusionista,
mágico. Naturalmente, com ou sem lentes, obtiveram seu êxito materializando o
imago (imagem formada no buraco da câmara, suspensa, virtual) a custo de uma
fixação do olho e do corpo.6
Os buracos das camaras escuras permitiam ver o mundo mecânico que se opunha
à idolatria religiosa. Permitiam simultaneamente contemplar as leis da
perspectiva e desvelar a realidade medieval. O olho que perfurava em busca da
profundidade da matéria construía a era moderna. Recortar, perfurar era fazer
buracos no mundo, descobrir.
A formação da visão moderna se produziu mediante a utilização sistemática e
imperativa desses instrumentos, permitindo estender a capacidade de
visualização humana; voltando-se, num primeiro momento, para exterioridade do
mundo em rechaço à visão interior. Ao utilizá-los para a construção da
perspectiva, acabaram provocando um distanciamento dos corpos no espaço, não
apenas em relação ao ponto de vista do observador, mas em relação aos próprios
corpos mesmos.
Um distanciamento psicofísico entre o homem e a arquitetura. Eles impuseram
um novo modo de construir a realidade com base as exigências e leis
operacionais dessa “representação em profundidade”.
Tal como observou Leonardo da Vinci “a perspectiva parecerá sem graça, se a
coisa representada não for vista através de um pequeno buraco” e “tanto maior
será o número de coisas vistas por este orifício quanto mais remotas estejam de
tal olho”.7
Enfim, o renascimento havia conseguido racionalizar totalmente no plano
matemático a imagem do espaço mediante uma progressiva abstração da sua
estrutura psicofisiológica, como observou Panofsky8
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A perspectiva não foi o apenas produto de uma doutrina de acomodação do olho
para podermos ver em perspectiva as representações mas sobretudo em seu
projeto ela deveria constituir-se num fato concreto, real, uma realidade, cujo
papel lhe designou a arquitetura em sua construção.
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O arquiteto a partir do renascimento se tornara o observador ideal de suas
próprias cenas: confeccionando-as, como um costureiro, na medida de seu olho
de ciclope, nem mais nem menos.
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arquitetura no qual o distanciamento é a marca visível da razão destes
instrumentos. A arquitetura, ao tornar-se pictórica, representação, terá suas leis
de representação e construção na gramática da perspectiva, ou seja, nas leis da
ótica da câmara obscura.
LUZ E DISTANCIA.
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como se de um São Sebastião se tratasse. É assim que a arquitetura se exibe e
se santifica através do buraco.
As imagens produzidas pela câmara obscura redobram a realidade, a distância
existente, a luminosidade, em uma eterna reduplicação sempre do mesmo. O
peep show de Brunelleschi, o velo de Alberti, o Tratado de Leonardo e todos os
demais tratados de pintura/perspectiva que vieram em continuação cumpriram a
função de ensinar a escrever as marcas das imagens deixadas nas superfícies de
representação. Por trás das diferenças dos métodos construtivos da perspectiva,
todos se assentavam sobre o mesmo plano de base do discurso que regula,
ordena, reparte, seciona, afasta, projeta os corpos no espaço e que compõe a
escritura da imagem amputada do próprio corpo.
“O espaço do texto e o espaço da figura não procedem de uma única extensão
neutra onde foram inscrever-se marcas às vezes gráficas, às vezes plásticas.
Supõe um espaço receptáculo suscetível de receber indiferentemente texto e
figura: o espaço geométrico.”18
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valor do tempo que perdeu. Nada melhor para assinalar a passagem do tempo do
que as flechas do relógio.
O prejuízo da representação que se pretende realista é a fragmentação do mundo
NOTAS
Esse texto foi produzido entre os anos e 1987-1990, e faz parte da tese de doutorado do autor,
Arquitectura como Collage, defendida na Escola Tècnica Superior d’Arquitectura de Barcelona,
Universitat Politècnica de Catalunya, 1992. O subtítulo A domesticação da visão foi incorporado
em 2014, ao estudar "arquitetura e domesticação'.
Sobre a teorização da câmara obscura, oferece interesse a interpretação de Edmund Couchot, no
artigo “Imagens, do ótico ao numérico”, Paris, 1988. “P. 49. Frances titulo
Leonardo da Vinci, Tratado de Pintura, Madrid, 1976, p. 129.
Sobre a história da câmera escura recomendo John Hammond. The camera oscura, a chronicle,
Bristol, 1981. Gian Piero Brunetta, I sentiei luminosi, storie di profeti, viandanti, pellegrini e
cavalieri dell luce, em Le lanterna magiche. Padiova. 1988
Sobre os diversos tipos de instrumentos óticos utilizados para a fabricação de pinturas em
perspectivas veja-se: Martin Kemp, The science of art, New Haven and London, 1990, em especial
o capítulo IV.
Com referência à perspectiva do renascimento, uma distinção que Kepler faz nos ajuda a
distinguir certos pontos essenciais sobre a verossimilhança da perspectiva Albertiana e a produção
das imagens nas câmaras escuras com relação à Arquitetura. E talvez colocar em relevo a
importância do imago no discurso da era do virtualismo que se aproxima. Pintura e imago podem
ser ditas imagem real e virtual respectivamente. A imagem virtual é chamada assim pela sua não
realidade, no sentido físico, isso é evidente na imagem no espelho, a qual não se pode tocar com
a mão. Para Kepler, imago era justamente o ponto em que se formava a imagem no orifício da
câmara (piñole). O imago é efêmero e a pintura é tangível, e ambos pertencem ao mesmo
fenômeno visual. Segundo T. Kaori Kitao, Imago and Pintura perspective, câmera obscura and
Kepler’s optics, em AAVV, “La prospettiva rinascimentale. Codificacione e transgressioni. Atti Del
convegno internacionale”. Firenze, 1980, p 499-510.
Leonardo op. cit.; p. 383 e 146.
Erwin Panofsky, “A perspectiva como forma simbólica” 6a. edição, Barcelona, 1991, p. 47.
Peep show: expressão utilizada por Kubovy para designar a tavoleta construída por Brunelleschi
(1377-1446. A bibliografia sobre a tavoleta de Brunelleschi é bastante extensa e controvertida
quanto à forma do objeto. Me remeto aqui às mais significativas e que aportam uma interpretação
original em relação aos demais: Hubert Damish, La fissure, p. 30-36, Francesco Gurrieri, La ville
de Brunelleschi, p. 57-151, Giorgio Vasari, Vie de Brunelleschi, p. 152-164, na AAVV La nascence
de l’architecture moderne, Fontenay-Sous-Bois, 1980, J. F. Lyotard, Discurso, figura, 1974.
Michael Kubovy, The psycology of perspective and renascence art, Cambridge, 1986, veja-se
especialmente sobre este tema as p. 1-17.
Marin, Louis. Détruire La peinture. Paris , p.60
Bryson, Norman. Herméneutique de la perception, em Les Cahiers Du Musée National D’art
moderne, n.21, setembro 1987, p.116
O filme O contrato do desenhista de Peter Greenaway trata sobre olhar através de vedutas, velos
eburacos no século XVIII.
Veja-se Da Pintura, Alberti.
Freud
Laporte, Dominique. Historia de la mierda. Valencia.1988, p.24
A arquitetura e a pintura proporcionaram os instrumentos á astronomia, sobre essse aspecto esta
o trabalho de Werner Oechsling, Architecture, perspective, and helpful gesture of geometria, em
Daidalos n.11, marz 1984, pp.39-54.
Lyotard op. cit.p.173
“A perspectiva é por natureza uma dupla arma; por um lado oferece aos corpos o lugar para se
despregar plasticamente e mover-se mimicamente, mas por outro oferece à luz a possibilidade de
extender-se no espaço e diluir os corpos pictoricamente; procura uma distância entre os homens
e as coisas, ‘o primeiro é o olho que vê, o segundo, o objetivo visto, terceiro a distância
intermediaria’ como disse Dürer).