Perseguindo A Paisagem - Jose Viana (2024 - em Revisao)

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Perseguindo a noção de paisagem através de práticas artísticas contemporâneas e

otras cositas más

José Viana1
Doutorando em Artes Visuais - ECA/USP

Olho de boto no fundo dos olhos de toda paisagem.


Nilson Chaves2.

Por que ainda pensar e escrever sobre paisagem, uma questão já tão explorada?

Largamente explorada, mas em movimento, a noção de paisagem atravessa a


história modificando-se conforme a batida das forças operantes em cada momento.
Compreendo aqui o conceito de paisagem como um lugar epistemológico habitado por
diferentes campos – da arquitetura, da geografia, da antropologia, da filosofia, da geologia,
da psicologia, etc, etc. E é comum no campo da arte que a compreensão da paisagem
esteja vinculada a um objeto representado, composto de elementos mais ou menos
paisagísticos, muitas vezes relacionado à ideia de natureza. A praia, a montanha, a estrada,
a ruína, o farol.

Neste artigo, busca-se habitar o conceito de paisagem a partir do campo da arte


com breves aportes da filosofia, no intuito de produzir certos percursos de pensamento, ao
conceber a paisagem num deslocamento – do objeto representado ao território praticado,
do fluxo substancial à experiência. Com isso, deseja-se ir em direção a uma forma de
pensamento-paisagem, proposto por Augustin Berque, ao invés, ou, além de um
pensamento sobre a paisagem. Considera-se que pensar sobre é, de certa forma, operar no
paradigma de objetificação do mundo. Portanto, a intenção é conceber o pensamento e a
paisagem num único ato. “Isso quer dizer que nosso ser comum é em grande parte a
paisagem” (BERQUE, p.123).

Pela janela

1
José Viana é artista-pesquisador-educador, doutorando no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da
ECA/USP. Sua pesquisa gira em torno da paisagem como fenômeno complexo, através da qual articulam-se
memória e cotidiano. Seus trabalhos se materializam em suportes variados entre as artes visuais e o cinema.
2
Trecho da letra de música Olho de Boto, do compositor paraense Nilson Chaves.
Pensemos, inicialmente, a paisagem a partir do que Jean Marc Besse nomeou por
metafísica da janela. “A paisagem seria, portanto, o mundo tal como é visto desde uma
janela, seja essa janela apenas parte do quadro, ou confundida com o próprio quadro como
um todo” (BESSE, p.15). Neste sentido, um gesto de enquadramento produz um dado
recorte na realidade, orientando uma certa distância, que por sua vez, favorece a relação
entre os elementos constitutivos da representação.

Pierre Bonnard. La Fenêtre, 1925. Imagem retirada do site DasArtes3.

Diante desses olhos observadores, ou criadores, a janela materializa-se como


moldura. Produz-se, assim, um objeto. Nele, são representados os campos e os
trabalhadores. Vastidão, separação, mas sobretudo, distância. No interior da janela a
paisagem se estrutura a partir do traço cultural que a produz.

Por exemplo:

No século XIV, período transitório da Idade Média para o Renascimento, nas cartas
escritas por Francisco Petrarca, temos a experiência da paisagem representada no texto
epistolar daquele que enfrenta os limites da cidade para subir um monte ventoso4, e,
situando-se entre o céu e a terra, lá, do alto, diante do vasto, pensa no mundo e pensa em
3
Imagem retirada da matéria Pierre Bonnard, revista Das Artes 91, acessada em 5 de maio de 2024 via
https://dasartes.com.br/materias/pierre-bonnard/
4
PETRARCA, Antonio. Carta do Monte Ventoso Familiarium rerum libri Petrarca 1353-1356 Trad de Paula
Oliveira e Silva. Acessado em 5 de maio 2024 via
https://biosphera21.net.br/CRONOS/1100-1399/EUROPA/ITALIA/1353-1336-Petrarca-CartadoMonteVentoso-Tra
dPaulaOliveira.pdf
si. Ocorre uma espécie de desvelamento da separação, um lá e um aqui. Enxergar a terra
para além dos dogmas religiosos, tencionando-os. Nos montes, nos vales, nos prados,
manifesta-se na experiência desta percepção um tipo de reconhecimento, talvez
espelhamento, terreno fértil para o surgimento de memórias, desejos e perguntas, que dão
lugar ao que Bachelard comenta por um narcisismo cósmico. “O mundo é um imenso
Narciso ocupado no ato de se pensar” (BACHELARD, 2016:27).

No entanto, ainda não trata-se da experiência, e sim, da sua representação, ao


sublinhar a noção de enquadramento, que configura por sua vez a janela, o recorte e a
distância. Na metafísica da janela não há como se aproximar da paisagem. No entanto, “a
paisagem fala-nos dos homens, dos seus olhares e dos seus valores” (BESSE, p.13).

Na pintura europeia a partir do Renascimento, convencionou-se a representar a


paisagem a partir da estrutura da perspectiva, tecnologia que simula no plano pictórico no
interior do quadro, uma profundidade de campo ilusória a ser preenchida pelos elementos.
No século XV, a paisagem passa a ser operada como ferramenta colonial ao possibilitar o
registro do mundo enquanto objeto de descrição. “País e pintura foram dois termos que as
autoridades administrativas espanholas empregaram no Novo Mundo para tratar de
descrever uma realidade geográfica que era difícil de compreender”
(FERNÁNDEZ-CHRISTLIEB, 2014:57)5. Motor cuja necessidade é a de produzir um inventário
cada vez maior dos lugares de domínio. Seja na pintura, ou na escrita, a paisagem é
instrumentalizada pelo projeto de expansão. Habilita, assim, a produção e circulação de
imagens descritivas, potencializada pelo advento da imprensa de Gutenberg, tornando cada
vez mais conhecidos os lugares desconhecidos, oferecendo-os à admiração, ao estudo e
também à vontade de posse.

No seio do Romantismo do século XVIII para o XIX, ganha força a noção de sublime
– que não está exatamente no mundo físico, mas no sentimento que se produz diante de.
Imagens que ao mesmo tempo operam um duplo movimento, de terror e fascínio, do
homem frente à grandiosidade inalcançável da natureza. Trata-se de um sentimento sobre o
inapreensível, um desejo ambíguo, resultado do qual a paisagem ganha outra tonalidade.
Diz Anne Cauquelin que toda a paisagem é uma recriação a partir de figuras de linguagem.
“Com elas ornamos a realidade, transformamos a aparência, ajustamos os fatos a nossos
desejos, nossas aspirações, ou nossos fantasmas” (CAUQUELIN, 2007:15). Sublinha-se,
portanto, esse movimento duplo, da percepção a partir dos traços culturais daquele que
percebe, e de sua representação fabricada. “Uma vez revirada, a realidade não é mais
5
Tradução livre de “País y pintura fueron dos términos que las autoridades administrativas españolas
emplearon en el Nuevo Mundo para tratar de describir una realidad geográfica que les era difícil de
comprender” (FERNÁNDEZ-CHRISTLIEB, 2014:57)
exatamente a mesma: ela é duplicada, reforçada pela ficção”, movimento de “necessária
transformação da realidade em imagem e, outra vez, da imagem em realidade”
(CAUQUELIN, 2007:110).

Dessa forma, também se pode pensar que é “o sentimento que nos liga
indistintamente à paisagem” (BERQUE, p.79). Paul Ardenne, em sua conferência Repenser
la culture à l'ère de l'anthropocène, realizada no Musée d'art contemporain de Lyon em
20206, convoca o retorno da noção de sublime como um dos sentimentos operantes na
produção de imagens na cultura do Antropoceno. Entre a denúncia e a responsabilidade,
desenvolve-se uma vertente profícua na produção de certo tipo de imagens apocalípticas,
infernais, que passam a ser rentáveis a seus produtores, por um estranho desejo – de terror
e fascínio – daqueles que por meio das estruturas de poder são os consumidores e ao
mesmo tempo os maiores responsáveis pelo estado atual das coisas. Diante da inegável
crise climática apontada pelos estudos científicos, e das catástrofes ambientais cada vez
mais vividas localmente ou por meio das redes sociais, a noção de paisagem se rearranja.

Olafur Eliasson e Minik Rosing, Ice Watch, registro fotográfico, 2018.

Ice Watch7 foi um trabalho realizado pela primeira vez em 2014 pelo artista Olafur
Eliasson em colaboração com o geólogo Minik Rosing, no qual um conjunto de icebergs
flutuantes, variando entre 1,5 e 6 toneladas em processo de derretimento, foram coletados
próximos ao fiorde Nuuk, na Groenlândia, para serem instaladas no espaço público. Diante

6
Acessada em 5 de maio de 2024 via https://www.youtube.com/watch?v=X2-TElKkxoo
7
Ice Watch foi instalado em três locais. A primeira instalação ocorreu em Copenhague, na City Hall Square, de
26 a 29 de outubro de 2014, para marcar a publicação do Quinto Relatório de Avaliação sobre Mudanças
Climáticas do IPCC da ONU. A segunda instalação ocorreu em Paris, na Place du Panthéon, de 3 a 13 de
dezembro de 2015, por ocasião da Conferência do Clima da ONU COP21, e a terceira versão do Ice Watch
esteve em exibição de 11 de dezembro de 2018 a 2 de janeiro de 2019 em dois locais em Londres – fora da
sede europeia da Bloomberg e em frente à Tate Modern. Texto retirado do site do artista, traduzido via Google
Translate, acessado em 4 de maio de 2024 via https://olafureliasson.net/artwork/ice-watch-2014/
do espectador, as grandes pedras de gelo deslocadas de uma região quase inacessível, de
um possível desconhecido, derretiam pouco a pouco, anunciando no passar do tempo um
processo maior, talvez incontrolável e mais profundo. À experiência do observador,
manifesta-se um possível sublime, entre o terror e o fascínio, da possível impotência do
homem perante a transformação inevitável pela qual este enfrenta em seu mundo presente.

Pergunto. Estamos diante de um trabalho que opera com a paisagem? Em que


medida? A paisagem representada na fotografia ou a paisagem da experiência do
observador? Ou ainda, uma outra concepção de paisagem, mais complexa e sistêmica, em
que todos estamos implicados, na qual articulam-se fluxos materiais, simbólicos e
principalmente econômicos?

A paisagem sem dono nas propriedades da terra

São diversas as culturas em que a noção da paisagem se manifesta. Na China


Antiga, através de registros produzidos a partir do século III do calendário ocidental,
relata-se uma prática de retirada da cidade, uma vida fora dos meios sociais, reclusa,
contexto propício para a aparição da noção de shanshui, que, pouco a pouco, se desdobra
em uma prática de criação entre a montanha (shan) e a água (shui).

Wang Ximeng, Thousand Li of Rivers and mountains, fragmento de pintura, século XII.

Manifestada na pintura, mas também na poesia, mais do que descrever um lugar


específico, shanshui aponta para as relações sensíveis e materiais da experiência, a que
podemos chamar de filosófica de acordo com os traços culturais da época. Experiência que
toma por realidade o ato e a temporalidade da criação, do espaço, da técnica, da
materialidade, do gesto, do preenchimento e do vazio. No entanto, seja na China ou na
Grécia, na Antiguidade ou no Renascimento, haveria de haver certas condições para que a
noção de shanshui, ou de paisagem, pudesse se manifestar.
Augustin Berque chama a atenção para as relações entre o trabalho, a posse da
terra e o cultivo das letras. Para ele, seria necessária uma certa temporalidade acumulada
que possibilitasse um olhar desinteressado para a terra, desvinculado das obrigações
pesadas de fazê-la produzir o alimento. De Hesíodo, na Grécia, à Virgílio, em Roma, ou Xie
Lingyun, na China, aparece em sua poesia a imagem mítica da terra fecunda, onde o fruto
se dá espontaneamente, terra que por si própria distribui farto alimento.

Tal mito não podia convencer senão a uma mínima fração da sociedade: a
elite letrada, concentrada nas cidades, mas formada pelos grandes
proprietários de terra, para quem o campo era o lugar do otium, essa
condição de lazer letrado que os afazeres (negotium) da cidade negavam
(negare) (é de negotium que vem negócio). Como mostra essa negação, o
otium, para eles, era o tempo normal. (BERQUE, p.38).

Berque nos convida a pensar sobre essa “forclusão do trabalho da terra”, uma
espécie de negação do olhar sobre o trabalho camponês, espécie de reflexo que se
manifesta com muita frequência ainda hoje, não mais sobre o camponês mas sobre o
trabalhador que move a realidade material, sobretudo no campo da arte. Afinal, o olhar não
é somente uma questão de óptica, mas também uma construção social. “Não se vê senão o
que convém ver no mundo ao qual se pertence” (BERQUE, p.38). Seria então essa
forclusão do trabalho um “requisito fundamental das sociedades muito complexas – em
termos de divisão do trabalho social” que produz “uma “classe ociosa” apta a contemplar a
natureza, ao invés de transformá-la laboriosamente com suas mãos” (BERQUE, p.38).

Durante milênios, fazer os outros trabalharem foi, essencialmente, fazê-los


trabalhar a terra. Daí nasceram as cidades e foi, portanto, a partir delas que
um olhar desinteressado – proveniente do frui, não do uti – pôde ser lançado
sobre o meio ambiente, suscitando representações da “natureza” como tal
para fazer dela um objeto de conhecimento (daí vem a ciência) ou de pura
contemplação (daí vem o pensamento sobre a paisagem). (BERQUE, p.40)

A paisagem como território praticado

Nesta cena do filme Garotos de Fengkuei (1984), de Hou Hsiao-Hsien, a janela bruta
de um prédio abandonado funciona como tela de um cinema sem começo nem fim. Nesse
quadro em grande formato, a imagem da cidade se manifesta na subjetividade camponesa
de seus novos operários, que, por sua vez, elaboram suas próprias versões da paisagem.
Hou Hsiou-Hsien, The boys from Fengkuei, frame de filme, 1984.

Neste ato de olhar emerge o encontro de dois mundos, a cidade que se desenvolve,
na medida em que absorve esta juventude camponesa, da qual os três fazem parte, e que
nela inseridos, a reconstroem em um jogo de forças diversas entre emoções, desejos e
possibilidades. No entanto, ainda que essa paisagem se elabore na percepção dos
personagens, é inegável que independente de suas presenças, há uma realidade material
concreta, um dado lugar, uma certa cidade, com sua própria história, seja numa escala
humana ou geológica.

Objetiva e concreta, de materiais e traços acumulados, a paisagem também se faz


em camadas depositadas sobre o espaço partilhado, concebendo-se como "território
produzido e praticado pelas sociedades humanas, por motivos que são, ao mesmo tempo,
econômicos, políticos e culturais" (BESSE, p.27). Neste sentido, para além da paisagem
enquanto representação, discurso, imagem, também pode-se pensá-la desde o ponto de
vista de uma produção cultural de caráter material e espacial, em transformação contínua,
intensificada pela atividade humana, “um espaço organizado, isto é, composto e desenhado
pelos homens na superfície da Terra; a paisagem é uma obra coletiva das sociedades que
transformam o substrato natural.” (BESSE, p.29).

Diva8 é um trabalho de “intervenção na paisagem”, realizado por Juliana Notari em


2020, na Usina de Arte, espaço dedicado à arte contemporânea localizado em uma fazenda
no município de Água Preta, em Pernambuco, nordeste brasileiro. De tamanho
monumental, os 33 metros da obra, por 16 de largura e 6 de profundidade dão lugar a uma
ferida exposta na paisagem da fazenda, que nos séculos passados era utilizada como usina
de plantação e processamento da cana de açúcar com mão de obra escravizada.

8
Informações retiradas do site da artista, acessado em 4 de maio de 2024 via
https://juliananotari.com/diva-intervencao/
Juliana Notari, Diva, registro fotográfico, 2022.

A paisagem é também "uma sucessão de rastros, de pegadas que se superpõem no


solo e constituem, por assim dizer, sua espessura, tanto simbólica quanto material. A
paisagem também é um lugar de memória" (BESSE, p.33). O lago, a casa, o monte, a obra.
Camadas de trabalho depositadas sobre a terra ao longo do tempo reúnem-se neste
presente representado na fotografia. Instalada neste lugar específico, Diva revela as
camadas simbólicas sedimentadas no lugar, trazendo à tona através de um signo ferido,
memórias entranhadas na terra.

Juliana Notari, Diva, registro fotográfico do processo de construção, 2022.

A obra provocou intensas discussões no campo especializado da arte e fora dele.


Debates que podem ser localizados nas interseccionalidades estruturantes da sociedade
brasileira. Da arte contemporânea como camada superficial e produtora de sentidos, do
histórico de exploração da terra, do trabalho escravo, do monocultivo, e do trauma
patriarcal. Para além de uma representação orientada pela janela, através de Diva podemos
pensar a paisagem no campo da arte através da fabricação de formas concretas no espaço,
dispositivos que produzem alterações físicas na realidade. Uma representação por dentro
da própria paisagem.

Ao reconhecer o território praticado, social e político, a ideia de site specific ganha


contorno a partir dos anos 60, com o intuito dos artistas de "realocar o significado interno do
objeto artístico para as contingências de seu contexto". Neste sentido, reúne-se um "modelo
fenomenológico da experiência corporal vivenciada" e a necessidade crescente de "resistir
às forças da economia capitalista de mercado que faz circularem os trabalhos de arte como
mercadorias transportáveis e negociáveis" (KWON,p.168). Tratam-se de obras cuja
concepção integra as características espaciais, materiais e culturais dos sítios onde são
realizadas, a partir da escuta e/ou do diálogo com o contexto no qual o trabalho é
concebido, sem o qual, num primeiro momento, a obra perde o seu sentido e a justificativa
de sua existência. Com o desenvolvimento crítico da prática site-specific, o sítio deixa de
ser tão somente um lugar concreto – um terreno, uma certa instituição cultural na qual os
trabalhos acontecem –, para se configurar em sentido ampliado, onde "diferentes debates
culturais, um conceito teórico, uma questão social, um problema político, uma estrutura
institucional, uma comunidade ou evento sazonal, uma condição histórica, mesmo
formações particulares do desejo, são agora considerados sites." (KWON, p.172).

Nós aqui, entre o céu e a terra, ou a paisagem como fluxo substancial

Convidada a participar da 34ª Bienal de São Paulo “Faz escuro mas eu canto”, a
artista Eleonora Fabião mapeou num raio de 5km, a partir do pavilhão da Bienal, 27
instituições públicas relacionadas à educação, saúde, legislação e cultura, para as quais
propôs um jogo. A doação de uma cadeira à escolha da própria instituição e a indicação de
uma pessoa responsável para facilitar a interlocução nas etapas do trabalho. Ao longo de 9
dias, 27 cadeiras foram transportadas a pé pela cidade, uma a uma, por grupos de
voluntários que deslocaram pela paisagem cada cadeira fixada em uma estrutura feita de 4
varas de bambu, soltas, de 3 metros cada.
Entre o céu e a Terra. Eleonora Fabião. 2022

Acompanhadas de uma série fotográfica com o registro dos deslocamentos e de um


desenho a partir de uma fotografia aérea do pavilhão, as cadeiras foram instaladas no
espaço expositivo durante três meses, o período da Bienal, oferecendo-se como assento
aos passantes e para a realização de pontuais rodas de conversa. A última delas, na
semana de encerramento, acolheu um encontro entre os colaboradores de cada instituição,
na qual a artista promoveu conversas e trocas em torno do trabalho de suas instituições e
possíveis colaborações futuras. Neste período, as 8 das 9 varas de bambu foram
parcialmente enterradas em 8 pontos ao redor do pavilhão, e 1 ficou pendurada no espaço
expositivo próximo às cadeiras. Assim, configurou-se um desenho imaginário, a partir de
três elementos geométricos básicos, um quadrado, um círculo e um triângulo. Elementos
anteriormente utilizados em outros trabalhos da artista.
Print da web-conferência Nós aqui entre o céu e a terra. Eleonora Fabião, 2022.

Em cada um dos 8 pontos distribuídos no parque, 2,20m de cada vara de bambu foi
enterrada no solo, recebendo ao longo dos três meses as influências do sol, da chuva e dos
microorganismos. Em cada vara, nos 80cm que ficaram para fora da terra, um tubo de metal
foi instalado indicando visualmente sua presença. Ao final do período da exposição, as
varas foram queimadas e suas cinzas jogadas no parque. As barras de aço que
acompanhavam cada uma das varas foram transformadas através de uma fundição em uma
esfera de metal do tamanho da mão. Em seguida a esfera foi envolvida em painas, que são
fibras sedosas produzidas por algumas árvores do parque. Cada cadeira foi identificada
com uma placa referente à “Nós aqui, entre o céu e a terra”, o título do trabalho, e em
seguida, foram devolvidas a uma outra instituição, produzindo assim, um troca-troca de
cadeiras interinstitucionais – da escola à câmara, da biblioteca ao centro de saúde. Tal
movimento demandou largos desdobramentos jurídicos em função da legislação de cada
instituição, uma vez que as cadeiras são bens públicos. Uma vez encontradas todas as
soluções jurídicas, foi necessária a definição de um valor para cada cadeira. Após reflexões
e conversas, a artista chegou ao valor de 1 real.

Este trabalho abre muitas portas de reflexão, no entanto, cabe aqui uma questão
específica. Onde está a paisagem? No parque? No pavilhão? Nas instituições? Na cidade?
Na experiência de cada deslocamento? No campo dimensional entre as varas fincadas na
terra com suas pontas de aço expostas ao sol? Na trama humana e institucional sem a qual
o trabalho não existiria? Nos microrganismos da terra? Na fotografia aérea do complexo
com o desenho sobrescrito? Onde está?

Mesmo se a paisagem contém, obviamente, um valor relativo à percepção e


à representação, mesmo se pode ser considerada como o efeito de um
conjunto de ações, uma terceira abordagem teórica (que chamaremos de
“realista”) nos convida a considerar que a realidade da paisagem excede
essas meras significações subjetivas ou sociais. A paisagem possui uma
substancialidade e uma espessura intrínsecas: é um conjunto complexo e
articulado de objetos ou, pelo menos um campo da realidade material, mais
amplo e mais profundo que as representações que a acompanham. A
paisagem também é o vento, a chuva, a água, o calor, o clima, as rochas, o
mundo vivo, tudo que cerca os seres humanos: resumindo, todo um meio
ambiente cujas evoluções, na verdade, são afetadas, mais ou menos
diretamente, pela ação, a emoção e o pensamento humanos; mas, afinal de
contas, esse meio ambiente – somos também forçados a reconhecer –
existe e se desenvolve sem o ser humano, estava aí antes dele e
sobreviverá a ele de uma forma ou de outra. (BESSE, p.39)

Neste raio de 5km, define-se o espaço físico da obra, e nele, ao jogar com a cidade,
as instituições, as pessoas que fazem parte das instituições, as ruas, o pavilhão da Bienal, o
espaço expositivo, a terra do parque, Eleonora produz em seu ato um corte vertical nas
camadas que estruturam essa paisagem, revelando determinados extratos visíveis e
invisíveis, das estruturas sociais aos fluxos substanciais da matéria.

Uma paisagem é, antes de tudo, uma totalidade dinâmica, evolutiva,


atravessada por fluxos de natureza, intensidade e direções bastante
variáveis e, por isso, lhe é atribuída uma temporalidade própria. Além disso,
esses fluxos de matéria e de energia, essas trocas de informações, esses
jogos de forças entre os diferentes elementos que compõem a realidade
paisagística se fazem dentro de morfologias espaciais determinadas: as
estradas, as unidades de povoação, as estruturas parcelares e fundiárias, os
limites fronteiriços, a totalidade, enfim, dos recortes territoriais e das
descontinuidades espaciais, todos constituem quadros dentro dos quais e
com os quais a temporalidade própria do sistema paisagístico deve lidar.
(BESSE, p.43)

Pude acessar o trabalho e aqui compartilhar informações específicas, através de


uma videoconferência realizada no YouTube, como parte da programação do Congresso
Figurações: Interartes - derivas e contágios, realizado pela Eco-Pós UFRJ, em uma
performance expositiva, narrada a partir de registros fotográficos e em vídeo, intercaladas
por leituras e brevíssimos comentários. Eleonora apresenta ao longo dos slides a obra
enquanto processo, no qual uma das questões sobressai nesta leitura, a dimensão do
trabalho – vivido e registrado – desde o contato com as instituições, o deslocamento das
cadeiras a pé, a perfuração das varas de bambu por 2,20 metros cada, a sua desmontagem
e os desdobramentos jurídicos necessários para que a obra siga num acontecer
imprevisível. Todas as ações realizadas com a força do corpo, como trabalho mobilizador de
energia e de colaboração. Trabalho, este que em geral foi, e ainda é, sistematicamente
apagado, forcluído, como diz Augustin Berque, ao inferir sobre as condições culturais no
qual emergem a noção de paisagem. Neste sentido, “aclarar os princípios de relação com a
paisagem, portanto a essência do pensamento-paisagem, é aclarar a essência da realidade
humana, na Terra” (BERQUE, 129).
Print da web-conferência Nós aqui entre o céu e a terra. Eleonora Fabião, 2022.

A partir do percurso de pensamento aqui proposto, podemos inferir que Eleonora,


sem mencionar, estaria a lidar com o pensamento-paisagem na construção de sua obra?
Uma postura na compreensão de seu trabalho que não o separa da realidade partilhada,
mas que através de todos os elementos de seu programa, estrutura a paisagem como uma
entidade relacional9. Para Augustin Berque é a dimensão medial, esse “momento estrutural
da existência humana”10 que corrobora um pensamento-paisagem, “a maneira pela qual
cada ser humano, da sua carne às suas ações, traduz essa mediância” (BERQUE, p.116).

A paisagem como experiência, ou considerações finais

Ao articular contribuições da fenomenologia na concepção da paisagem, aqui


“definida como o acontecimento do encontro concreto entre homem e mundo, uma
experiência” (BESSE, p.47), talvez seja difícil imaginar obras de artes visuais cuja definição
de paisagem como experiência esteja nela presente. Possivelmente, a palavra enquanto
matéria de criação, ofereça um melhor suporte para tal empreendimento. O que me faz
pensar que, aqui, a paisagem não é mais a obra, senão uma espécie de metodologia para
sua criação. Jean Marc Besse partilha o fato de que, “na caminhada, no âmago do meu
cansaço, faço aparecer o mundo tanto quanto faço aparecer a mim mesmo, num espaço
poroso e comum que é o espaço da paisagem” (BESSE, p.48).

Enquanto escrevo estas considerações finais, me habitam os ruídos dos carros em


contínuo movimento na Avenida 23 de Maio, região central da cidade de São Paulo. Penso

9
Ideia concebida por Jean Marc Besse ao pensar a relação entre Paisagem e Natureza. p.41.
10
Tetsurô Watsuji, Fûdo. Ningengakutcki kôsatsu (Milieux. Étude humanologique), 1979, p.3. citado
por Augustin Berque, p.116.
na semelhança que esta avenida tem com um rio, os carros não param nunca de passar,
dia e noite, entre fluxos mais intensos e outros de quase repouso. Dias atrás entendi que lá
está submerso, sim, um braço do Rio Anhangabaú. Esse rio é minha rua, cantou o poeta
paraense Ruy Barata. E não sai de minha cabeça, enquanto reviso, o trecho da letra de
música inserida no início deste artigo. Olho de boto no fundo dos olhos de toda paisagem,
um marco da música popular paraense nos anos 90, do compositor Nilson Chaves. Como
pesquisador no campo da arte oriundo da Amazônia, mais especificamente de Belém,
percebo que sou irrigado de referências onde potencialmente se manifesta um
pensamento-paisagem, do Carimbó cantado pelos mestres antigos e novos, lembro também
do trecho do escritor marajoara Dalcídio Jurandir,

De ordinário, o peixe apenas beliscava a isca, tão de leve, e assim ficavam,


Alfredo e o desconhecido, num colóquio, como se combinassem sonhos e
aventuras ou cada qual falasse de sua vida, do que via e acontecia em seus
mundos. Durante alguns minutos, que para eles tinham a duração de graves
confidências, a linha transmitia essa conversação entre o menino e o peixe.
Depois, silêncio, universal silêncio. A linha sossegava lá no fundo, e tudo
embaixo eram trevas, solidão, talvez a boca de um peixe enorme que
engolia o pequenino confidente. (JURANDIR, 2018:29)

* Esta pesquisa começou a ser realizada durante o Mestrado, sob orientação da professora
Dra. Claudia Leão, no Programa de Pós Graduação em Artes da UFPA, e agora toma corpo
neste artigo, durante o Doutorado, sob orientação da professora Dra. Branca Coutinho, no
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA/USP.
Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos : ensaio sobre a imaginação da matéria. 2ªa Ed.
- São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2013.

BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem/ por Jean Marc Besse;
tradução de Annie Cambe. – Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014.

BERQUE, Augustin. O Pensamento-paisagem / Augustin Berque; tradução Vladimir


Bartalini, Camila Gomes Sant’Anna. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2023.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo : Martins, 2007

FERNÁNDEZ-CHRISTLIEB, Federico. El nacimiento del concepto de paisaje y su contraste


en dos ámbitos culturales: el viejo y el nuevo mundo. No livro: Perspectivas sobre el paisaje.
Universidad Nacional de Colombia / Jardín Botánico José Celestino Mutis, pp.55-79, 2014.

JURANDIR, Dalcídio. Três Casas e um Rio - 4ª ed. Bragança : Pará.Grafo, 2018.

PIMENTA, Emanuel Dimas de Melo. A desintegração da paisagem. Filipe II, Petrarca e os


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KWON, Miwon. (2008). Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. Rio de
Janeiro: Revista Arte & Ensaios, v. 17, n. 17.

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