Perseguindo A Paisagem - Jose Viana (2024 - em Revisao)
Perseguindo A Paisagem - Jose Viana (2024 - em Revisao)
Perseguindo A Paisagem - Jose Viana (2024 - em Revisao)
José Viana1
Doutorando em Artes Visuais - ECA/USP
Por que ainda pensar e escrever sobre paisagem, uma questão já tão explorada?
Pela janela
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José Viana é artista-pesquisador-educador, doutorando no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da
ECA/USP. Sua pesquisa gira em torno da paisagem como fenômeno complexo, através da qual articulam-se
memória e cotidiano. Seus trabalhos se materializam em suportes variados entre as artes visuais e o cinema.
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Trecho da letra de música Olho de Boto, do compositor paraense Nilson Chaves.
Pensemos, inicialmente, a paisagem a partir do que Jean Marc Besse nomeou por
metafísica da janela. “A paisagem seria, portanto, o mundo tal como é visto desde uma
janela, seja essa janela apenas parte do quadro, ou confundida com o próprio quadro como
um todo” (BESSE, p.15). Neste sentido, um gesto de enquadramento produz um dado
recorte na realidade, orientando uma certa distância, que por sua vez, favorece a relação
entre os elementos constitutivos da representação.
Por exemplo:
No século XIV, período transitório da Idade Média para o Renascimento, nas cartas
escritas por Francisco Petrarca, temos a experiência da paisagem representada no texto
epistolar daquele que enfrenta os limites da cidade para subir um monte ventoso4, e,
situando-se entre o céu e a terra, lá, do alto, diante do vasto, pensa no mundo e pensa em
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Imagem retirada da matéria Pierre Bonnard, revista Das Artes 91, acessada em 5 de maio de 2024 via
https://dasartes.com.br/materias/pierre-bonnard/
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PETRARCA, Antonio. Carta do Monte Ventoso Familiarium rerum libri Petrarca 1353-1356 Trad de Paula
Oliveira e Silva. Acessado em 5 de maio 2024 via
https://biosphera21.net.br/CRONOS/1100-1399/EUROPA/ITALIA/1353-1336-Petrarca-CartadoMonteVentoso-Tra
dPaulaOliveira.pdf
si. Ocorre uma espécie de desvelamento da separação, um lá e um aqui. Enxergar a terra
para além dos dogmas religiosos, tencionando-os. Nos montes, nos vales, nos prados,
manifesta-se na experiência desta percepção um tipo de reconhecimento, talvez
espelhamento, terreno fértil para o surgimento de memórias, desejos e perguntas, que dão
lugar ao que Bachelard comenta por um narcisismo cósmico. “O mundo é um imenso
Narciso ocupado no ato de se pensar” (BACHELARD, 2016:27).
No seio do Romantismo do século XVIII para o XIX, ganha força a noção de sublime
– que não está exatamente no mundo físico, mas no sentimento que se produz diante de.
Imagens que ao mesmo tempo operam um duplo movimento, de terror e fascínio, do
homem frente à grandiosidade inalcançável da natureza. Trata-se de um sentimento sobre o
inapreensível, um desejo ambíguo, resultado do qual a paisagem ganha outra tonalidade.
Diz Anne Cauquelin que toda a paisagem é uma recriação a partir de figuras de linguagem.
“Com elas ornamos a realidade, transformamos a aparência, ajustamos os fatos a nossos
desejos, nossas aspirações, ou nossos fantasmas” (CAUQUELIN, 2007:15). Sublinha-se,
portanto, esse movimento duplo, da percepção a partir dos traços culturais daquele que
percebe, e de sua representação fabricada. “Uma vez revirada, a realidade não é mais
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Tradução livre de “País y pintura fueron dos términos que las autoridades administrativas españolas
emplearon en el Nuevo Mundo para tratar de describir una realidad geográfica que les era difícil de
comprender” (FERNÁNDEZ-CHRISTLIEB, 2014:57)
exatamente a mesma: ela é duplicada, reforçada pela ficção”, movimento de “necessária
transformação da realidade em imagem e, outra vez, da imagem em realidade”
(CAUQUELIN, 2007:110).
Dessa forma, também se pode pensar que é “o sentimento que nos liga
indistintamente à paisagem” (BERQUE, p.79). Paul Ardenne, em sua conferência Repenser
la culture à l'ère de l'anthropocène, realizada no Musée d'art contemporain de Lyon em
20206, convoca o retorno da noção de sublime como um dos sentimentos operantes na
produção de imagens na cultura do Antropoceno. Entre a denúncia e a responsabilidade,
desenvolve-se uma vertente profícua na produção de certo tipo de imagens apocalípticas,
infernais, que passam a ser rentáveis a seus produtores, por um estranho desejo – de terror
e fascínio – daqueles que por meio das estruturas de poder são os consumidores e ao
mesmo tempo os maiores responsáveis pelo estado atual das coisas. Diante da inegável
crise climática apontada pelos estudos científicos, e das catástrofes ambientais cada vez
mais vividas localmente ou por meio das redes sociais, a noção de paisagem se rearranja.
Ice Watch7 foi um trabalho realizado pela primeira vez em 2014 pelo artista Olafur
Eliasson em colaboração com o geólogo Minik Rosing, no qual um conjunto de icebergs
flutuantes, variando entre 1,5 e 6 toneladas em processo de derretimento, foram coletados
próximos ao fiorde Nuuk, na Groenlândia, para serem instaladas no espaço público. Diante
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Acessada em 5 de maio de 2024 via https://www.youtube.com/watch?v=X2-TElKkxoo
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Ice Watch foi instalado em três locais. A primeira instalação ocorreu em Copenhague, na City Hall Square, de
26 a 29 de outubro de 2014, para marcar a publicação do Quinto Relatório de Avaliação sobre Mudanças
Climáticas do IPCC da ONU. A segunda instalação ocorreu em Paris, na Place du Panthéon, de 3 a 13 de
dezembro de 2015, por ocasião da Conferência do Clima da ONU COP21, e a terceira versão do Ice Watch
esteve em exibição de 11 de dezembro de 2018 a 2 de janeiro de 2019 em dois locais em Londres – fora da
sede europeia da Bloomberg e em frente à Tate Modern. Texto retirado do site do artista, traduzido via Google
Translate, acessado em 4 de maio de 2024 via https://olafureliasson.net/artwork/ice-watch-2014/
do espectador, as grandes pedras de gelo deslocadas de uma região quase inacessível, de
um possível desconhecido, derretiam pouco a pouco, anunciando no passar do tempo um
processo maior, talvez incontrolável e mais profundo. À experiência do observador,
manifesta-se um possível sublime, entre o terror e o fascínio, da possível impotência do
homem perante a transformação inevitável pela qual este enfrenta em seu mundo presente.
Wang Ximeng, Thousand Li of Rivers and mountains, fragmento de pintura, século XII.
Tal mito não podia convencer senão a uma mínima fração da sociedade: a
elite letrada, concentrada nas cidades, mas formada pelos grandes
proprietários de terra, para quem o campo era o lugar do otium, essa
condição de lazer letrado que os afazeres (negotium) da cidade negavam
(negare) (é de negotium que vem negócio). Como mostra essa negação, o
otium, para eles, era o tempo normal. (BERQUE, p.38).
Berque nos convida a pensar sobre essa “forclusão do trabalho da terra”, uma
espécie de negação do olhar sobre o trabalho camponês, espécie de reflexo que se
manifesta com muita frequência ainda hoje, não mais sobre o camponês mas sobre o
trabalhador que move a realidade material, sobretudo no campo da arte. Afinal, o olhar não
é somente uma questão de óptica, mas também uma construção social. “Não se vê senão o
que convém ver no mundo ao qual se pertence” (BERQUE, p.38). Seria então essa
forclusão do trabalho um “requisito fundamental das sociedades muito complexas – em
termos de divisão do trabalho social” que produz “uma “classe ociosa” apta a contemplar a
natureza, ao invés de transformá-la laboriosamente com suas mãos” (BERQUE, p.38).
Nesta cena do filme Garotos de Fengkuei (1984), de Hou Hsiao-Hsien, a janela bruta
de um prédio abandonado funciona como tela de um cinema sem começo nem fim. Nesse
quadro em grande formato, a imagem da cidade se manifesta na subjetividade camponesa
de seus novos operários, que, por sua vez, elaboram suas próprias versões da paisagem.
Hou Hsiou-Hsien, The boys from Fengkuei, frame de filme, 1984.
Neste ato de olhar emerge o encontro de dois mundos, a cidade que se desenvolve,
na medida em que absorve esta juventude camponesa, da qual os três fazem parte, e que
nela inseridos, a reconstroem em um jogo de forças diversas entre emoções, desejos e
possibilidades. No entanto, ainda que essa paisagem se elabore na percepção dos
personagens, é inegável que independente de suas presenças, há uma realidade material
concreta, um dado lugar, uma certa cidade, com sua própria história, seja numa escala
humana ou geológica.
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Informações retiradas do site da artista, acessado em 4 de maio de 2024 via
https://juliananotari.com/diva-intervencao/
Juliana Notari, Diva, registro fotográfico, 2022.
Convidada a participar da 34ª Bienal de São Paulo “Faz escuro mas eu canto”, a
artista Eleonora Fabião mapeou num raio de 5km, a partir do pavilhão da Bienal, 27
instituições públicas relacionadas à educação, saúde, legislação e cultura, para as quais
propôs um jogo. A doação de uma cadeira à escolha da própria instituição e a indicação de
uma pessoa responsável para facilitar a interlocução nas etapas do trabalho. Ao longo de 9
dias, 27 cadeiras foram transportadas a pé pela cidade, uma a uma, por grupos de
voluntários que deslocaram pela paisagem cada cadeira fixada em uma estrutura feita de 4
varas de bambu, soltas, de 3 metros cada.
Entre o céu e a Terra. Eleonora Fabião. 2022
Em cada um dos 8 pontos distribuídos no parque, 2,20m de cada vara de bambu foi
enterrada no solo, recebendo ao longo dos três meses as influências do sol, da chuva e dos
microorganismos. Em cada vara, nos 80cm que ficaram para fora da terra, um tubo de metal
foi instalado indicando visualmente sua presença. Ao final do período da exposição, as
varas foram queimadas e suas cinzas jogadas no parque. As barras de aço que
acompanhavam cada uma das varas foram transformadas através de uma fundição em uma
esfera de metal do tamanho da mão. Em seguida a esfera foi envolvida em painas, que são
fibras sedosas produzidas por algumas árvores do parque. Cada cadeira foi identificada
com uma placa referente à “Nós aqui, entre o céu e a terra”, o título do trabalho, e em
seguida, foram devolvidas a uma outra instituição, produzindo assim, um troca-troca de
cadeiras interinstitucionais – da escola à câmara, da biblioteca ao centro de saúde. Tal
movimento demandou largos desdobramentos jurídicos em função da legislação de cada
instituição, uma vez que as cadeiras são bens públicos. Uma vez encontradas todas as
soluções jurídicas, foi necessária a definição de um valor para cada cadeira. Após reflexões
e conversas, a artista chegou ao valor de 1 real.
Este trabalho abre muitas portas de reflexão, no entanto, cabe aqui uma questão
específica. Onde está a paisagem? No parque? No pavilhão? Nas instituições? Na cidade?
Na experiência de cada deslocamento? No campo dimensional entre as varas fincadas na
terra com suas pontas de aço expostas ao sol? Na trama humana e institucional sem a qual
o trabalho não existiria? Nos microrganismos da terra? Na fotografia aérea do complexo
com o desenho sobrescrito? Onde está?
Neste raio de 5km, define-se o espaço físico da obra, e nele, ao jogar com a cidade,
as instituições, as pessoas que fazem parte das instituições, as ruas, o pavilhão da Bienal, o
espaço expositivo, a terra do parque, Eleonora produz em seu ato um corte vertical nas
camadas que estruturam essa paisagem, revelando determinados extratos visíveis e
invisíveis, das estruturas sociais aos fluxos substanciais da matéria.
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Ideia concebida por Jean Marc Besse ao pensar a relação entre Paisagem e Natureza. p.41.
10
Tetsurô Watsuji, Fûdo. Ningengakutcki kôsatsu (Milieux. Étude humanologique), 1979, p.3. citado
por Augustin Berque, p.116.
na semelhança que esta avenida tem com um rio, os carros não param nunca de passar,
dia e noite, entre fluxos mais intensos e outros de quase repouso. Dias atrás entendi que lá
está submerso, sim, um braço do Rio Anhangabaú. Esse rio é minha rua, cantou o poeta
paraense Ruy Barata. E não sai de minha cabeça, enquanto reviso, o trecho da letra de
música inserida no início deste artigo. Olho de boto no fundo dos olhos de toda paisagem,
um marco da música popular paraense nos anos 90, do compositor Nilson Chaves. Como
pesquisador no campo da arte oriundo da Amazônia, mais especificamente de Belém,
percebo que sou irrigado de referências onde potencialmente se manifesta um
pensamento-paisagem, do Carimbó cantado pelos mestres antigos e novos, lembro também
do trecho do escritor marajoara Dalcídio Jurandir,
* Esta pesquisa começou a ser realizada durante o Mestrado, sob orientação da professora
Dra. Claudia Leão, no Programa de Pós Graduação em Artes da UFPA, e agora toma corpo
neste artigo, durante o Doutorado, sob orientação da professora Dra. Branca Coutinho, no
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA/USP.
Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos : ensaio sobre a imaginação da matéria. 2ªa Ed.
- São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2013.
BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem/ por Jean Marc Besse;
tradução de Annie Cambe. – Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2014.
KWON, Miwon. (2008). Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity. Rio de
Janeiro: Revista Arte & Ensaios, v. 17, n. 17.