Por Lugares Devastados - John Boyne
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Por Lugares Devastados - John Boyne
Capa
Folha de rosto
Sumário
parte i: A filha do diabo | Londres 2022 / Paris 1946
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Epílogo
Nota do autor
Sobre o autor
Créditos
Para Markus Zusak
PARTE I
A filha do diabo
londres 2022 / paris 1946
1
Se todo homem for culpado por todo bem que ele não fez, como
sugeriu Voltaire, eu passei a vida inteira convencendo-me de que sou
inocente de todo mal. Foi um modo conveniente de suportar
décadas de autoexílio do passado, para me ver como uma vítima da
amnésia histórica, absolvida da cumplicidade e exonerada de culpa.
A minha história final começa e termina, porém, com algo tão
trivial quanto um estilete. O meu quebrou dias atrás e, achando-o
uma ferramenta útil para guardar em uma gaveta da cozinha, fiz
uma visita à loja de ferragens do bairro para comprar um novo. Ao
voltar para casa, dei com uma carta de um corretor de imóveis à
minha espera, igual à enviada a todos os moradores do Winterville
Court, informando educadamente que o apartamento abaixo do meu
está à venda. O morador anterior, o sr. Richardson, viveu uns trinta
anos no apartamento 1, mas faleceu pouco antes do Natal, deixando
a residência vazia. Sua filha, uma fonoaudióloga, morava em Nova
York e, pelo que me consta, não tinha planos de voltar para Londres,
de modo que só me restou fazer as pazes com o fato de que não
demoraria para eu ser obrigada a interagir com uma pessoa estranha
no saguão, talvez até tendo de me fingir interessada pela sua vida ou
ser levada a revelar pequenos detalhes da minha.
O sr. Richardson e eu tínhamos uma relação de vizinhança
perfeita, já que não trocávamos uma palavra desde 2008. Nos
primeiros anos da sua residência, nós nos dávamos bem e,
ocasionalmente, ele subia para jogar xadrez com meu falecido
marido, Edgar, mas, não sei por quê, ele e eu nunca fomos além das
formalidades. Ele sempre se dirigia a mim como “sra. Fernsby”, e eu
o chamava de “sr. Richardson”. A última vez que pisei no seu
apartamento foi quatro meses depois da morte de Edgar, quando ele
me convidou para jantar e, tendo aceitado o convite, acabei às voltas
com uma investida amorosa, a qual rechacei. Ele não engoliu a
rejeição e nós nos tornamos tão estranhos um para o outro quanto
podem ser duas pessoas que vivem no mesmo prédio.
Minha residência de Mayfair está registrada como um
apartamento, mas isso é mais ou menos como descrever o castelo de
Windsor como o refúgio de fim de semana da rainha. Cada
apartamento do nosso prédio — são cinco ao todo, um no térreo,
dois em ambos os andares acima — se espalha por quatrocentos e
sessenta metros quadrados de um imóvel nobre de Londres, cada
qual com três quartos, dois banheiros e meio e uma vista do Hyde
Park que os valoriza, e eu estou informada com segurança de que
cada um deles vale algo entre dois milhões e três milhões de libras.
Edgar ganhou uma quantidade substancial de dinheiro alguns anos
depois que nos casamos, uma herança inesperada de uma tia
solteirona, e, embora ele preferisse se mudar para uma região mais
tranquila fora do centro de Londres, eu tinha pesquisado um pouco
por conta própria e estava determinada não só a morar em Mayfair
como também a residir neste prédio específico, caso fosse possível.
Financeiramente, isso parecia improvável, mas eis que um belo dia,
como um deus ex machina, tia Belinda faleceu e tudo mudou. Sempre
tive planos de explicar a Edgar o motivo pelo qual eu estava tão
desesperada para morar aqui, mas não sei por que nunca o fiz, e
agora me arrependo disso.
Meu marido gostava muito de crianças, mas eu concordei com
apenas uma, tendo dado à luz nosso filho Caden, em 1961. Nos
últimos anos, com a valorização da propriedade, Caden me
incentivou a vendê-la e a comprar algo menor em uma parte menos
cara da cidade, mas desconfio que é porque ele teme que eu viva até
os cem anos e está ansioso por uma parte da sua herança enquanto
ainda é jovem o suficiente para aproveitá-la. Ele já se casou três
vezes e agora está noivo pela quarta vez; eu desisti de me
familiarizar com as mulheres da sua vida. Acho que, assim que as
conhecemos, elas são despachadas, um novo modelo é instalado, e é
preciso ter tempo para aprender suas idiossincrasias, como se faz
com uma máquina de lavar nova ou com um televisor. Quando
menino, Caden tratava os amigos com uma crueldade parecida. Nós
conversamos regularmente pelo telefone e ele vem jantar comigo de
quinze em quinze dias, mas temos uma relação complicada,
prejudicada pela minha ausência de sua vida durante um ano
quando ele tinha nove anos. A verdade é que eu simplesmente não
me sinto bem com crianças e acho os meninos pequenos
particularmente difíceis.
Minha preocupação com meu vizinho novo não era que ele fizesse
barulho desnecessário — estes apartamentos são muito bem
isolados, e, mesmo com alguns pontos fracos aqui e ali, eu me
acostumei ao longo dos anos com os vários ruídos peculiares que
surgiam através do teto do sr. Richardson —, mas me ressentia do
fato de que o meu mundo ordenado fosse perturbado. Esperava uma
pessoa que não tivesse interesse em saber nada a respeito da mulher
que morava acima dela. Um idoso inválido talvez, que raramente
saísse de casa e recebesse todas as manhãs a visita de uma
empregada doméstica. Uma jovem profissional que desaparecesse
nas tardes de sexta-feira em sua casa de fim de semana e voltasse
tarde aos domingos, passando o resto do tempo no escritório ou na
academia. Um boato se espalhou no prédio de que um conhecido
músico, cuja carreira chegou ao auge na década de 1980, havia
olhado para ele como um potencial lar de aposentado, mas,
felizmente, nada aconteceu.
Minhas cortinas tremiam toda vez que o corretor imobiliário
parava lá fora, escoltando um cliente para inspecionar o
apartamento, e eu fazia anotações sobre cada vizinho potencial.
Apareceu um casal muito promissor, de setenta e poucos anos, fala
mansa, que andava de mãos dadas e perguntou se o prédio permitia
bichos de estimação — eu estava ouvindo na escada — e os dois
ficaram decepcionados quando lhes disseram que não. Um casal
homossexual na casa dos trinta anos que, a julgar pelo estado
deplorável da sua roupa e o seu ar de desleixo geral, devia ser
fabulosamente rico, mas que declarou que o “espaço” era
provavelmente um pouco pequeno para eles, e os dois não
conseguiam se relacionar com a “narrativa” dele. Uma moça de
feições simples que não deu nenhuma pista de suas intenções, além
de comentar que um sujeito chamado Steven ia adorar o pé-direito
alto. Naturalmente, eu preferia os gays — costumam ser bons
vizinhos e têm pouca chance de procriar —, mas eles se revelaram os
menos interessados.
E então, passadas algumas semanas, o corretor não trouxe mais
ninguém para visitar o apartamento, o anúncio sumiu da internet e
eu imaginei que alguém tivesse fechado negócio. Quisesse ou não,
um dia eu ia acordar e dar com um caminhão de mudança
estacionado lá fora e alguém, ou vários alguéns, enfiaria uma chave
na porta da frente e passaria a residir embaixo de mim.
Ah, como eu temia isso!
2
“Você tem marido”, disse eu, mais para ouvir as palavras ditas em
voz alta do que por qualquer outro motivo. “Que bom. E faz tempo
que se casou?”
“Onze anos”, respondeu Madelyn, que, não sei por quê,
pressionou a língua na bochecha ao dizê-lo e mudou de expressão,
como se ela própria mal pudesse acreditar que fazia tanto tempo.
“Pois é”, prosseguiu depois de um instante. “Há onze anos agora.”
“Santo Deus! Mas você é tão jovem!”
“Ah, não, sou velha”, respondeu ela. “Vou fazer trinta e dois anos
no mês que vem. Claro que me casei muito jovem”, admitiu. “Alex
estava pronto para se estabelecer — é dez anos mais velho — e diz
que eu era a garota de sorte que ele estava namorando na época.”
Começou a rir como se aquilo tivesse graça. “Não acha isso
engraçado?”, perguntou.
“Não muito. Ele diz isso como uma piada?”
“Ah, não”, respondeu ela franzindo a testa. “Não, o meu marido
não brinca.”
“E você se importa se eu perguntar o que ele faz?”
“É produtor de cinema”, disse ela.
“Oh, que emocionante!”
“Imagino que sim. Bom, em todo caso, as pessoas geralmente
pensam que é.”
“Que tipo de filmes ele faz?”
“Todo tipo.”
Ela listou meia dúzia e, embora eu raramente vá ao cinema hoje
em dia, já tinha ouvido falar em alguns deles. Eram o tipo de filme
que atraía grandes estrelas e ganhava prêmios. Procurei o nome dele
no meu cérebro. Alex Darcy-Witt. Acaso já o tinha ouvido? Achei
que não. Mas então, como a maioria dos diretores é anônima para o
público, dificilmente hão de procurar o nome dos produtores.
“Eu sou muito grosseira”, disse eu depois de algum tempo.
“Perguntar o que seu marido faz e não perguntar primeiro sobre sua
vida. Você diz que já trabalhou. O que fazia?”
“Eu era atriz”, respondeu Madelyn. “Foi assim que conheci meu
marido. Trabalhei em um dos seus filmes. Desde o começo, ele
deixou claro que estava interessado em mim, e achei difícil resistir.
Era terrivelmente inocente na época, devo acrescentar. Muito
ingênua. Você acredita que eu era virgem? Bom, não propriamente,
mas bem perto disso.”
Eu não sabia ao certo como responder a uma revelação tão íntima.
“Mesmo assim, onze anos”, disse eu, fugindo da sua pergunta,
que eu esperava que fosse retórica. “É muito tempo para os padrões
atuais. Claramente.”
Ela franziu a testa e em seguida baixou a cabeça.
“Preciso ir embora”, prossegui, colocando as mãos nos joelhos e
me preparando para me levantar, mas, para minha surpresa, ela
meneou a cabeça.
“Não, não vá ainda”, pediu. “Se você for embora, eu vou ter de
continuar abrindo caixas e guardando coisas e, sinceramente, estou
sem energia.”
“Tudo bem”, disse eu, satisfeita por ficar um pouco mais.
Esperava que ela me oferecesse um chá, mas a hospitalidade parecia
estar indisponível.
“Você não é inglesa, é”, perguntou ela, e eu senti o corpo enrijecer
um pouco. Fazia muitas décadas que ninguém perguntava isso.
Tinha morado tanto tempo em Londres que imaginava que já não
falasse de modo diferente.
“Como você soube?”, perguntei.
“Quando eu atuava”, disse ela. “Quando estava na escola de
atuação, trabalhei muito com sotaques. Meus professores diziam que
eu tinha um dom para isso. Agora acho que sou capaz de identificar
algo por trás da voz das pessoas, algo que revela o seu passado. Há
um indício da Europa Central no seu discurso. Se eu tivesse de
adivinhar, diria alemão.”
Eu abri um sorriso. Ela me intrigava. “Tem razão”, disse-lhe. “Na
verdade, nasci em Berlim.”
“Eu adoro Berlim”, disse ela com entusiasmo. “Uma vez
representei Sally Bowles lá. A cidade perfeita para isso.”
“De fato.”
“As pessoas diziam que eu era muito boa”, acrescentou, e, pela
primeira vez, eu me perguntei se acaso Madelyn não andava
tomando algum tipo de medicamento. Era como se ela se
distanciasse com os seus pensamentos e se tornasse introspectiva,
esquecendo que tinha companhia.
“O meu falecido marido e eu íamos muito ao teatro”, disse eu, e
Madelyn se assustou na poltrona. “Mais do que íamos ao cinema. Eu
prefiro o teatro, e você?”
“Não diga isso ao meu marido. Ele mandaria fuzilá-la.”
“Acho que as pessoas se comportam melhor no teatro. Não
chegam carregadas de comida e bebida como se houvesse a
possibilidade de morrer de fome ou de desidratação antes de a
cortina fechar.”
“Eu gostaria de ter continuado trabalhando no teatro”, respondeu
ela. “Mas meu marido fez questão de que eu me concentrasse no
cinema. Não que isso tenha me levado a algum lugar a longo prazo.”
“Então você parou de atuar?”, perguntei.
“Algo assim”, disse ela, uma resposta que não era uma resposta.
“Você gostaria de voltar ao teatro?”
Ela olhou para mim como se estivesse surpresa até mesmo com a
minha presença ali. “Não seria possível”, disse. “É tarde demais. Sou
muito velha.”
Desatei a rir. “Você tem trinta e um anos”, disse. “É uma criança!
Hoje em dia, as pessoas parecem não tomar decisão nenhuma antes
de estar à beira dos quarenta.”
“Não”, disse ela. “Não seria possível. Como ele morreu? O seu
marido.”
Eu a encarei. Foi uma mudança de assunto extraordinária, digna
de Heidi Hargrave.
“Ele sofria de asma severa”, respondi. “Por isso foi hospitalizado
várias vezes. Depois, em 2008, durante a estação da rinite alérgica,
nós voltamos de um passeio no Hyde Park e ele se sentou para ler,
mas, assim que pegou o livro, começou a espirrar. Continuou
espirrando e, no início, eu até fiz uma piada, mas então ficou óbvio
que estava com dificuldade para respirar. Fui buscar o inalador dele,
mas não adiantou. Ele começou a engasgar. Seus pulmões ficaram
cheios de líquido, entende? Chamei uma ambulância, eles chegaram
em questão de minutos, mas não conseguiram reanimá-lo. Edgar
morreu na sala. Entre a nossa chegada do parque e a ambulância
levar embora o corpo, não devem ter passado mais de vinte minutos.
Mas, nesse período, a minha vida inteira mudou.” Calei-me e olhei
para o chão. “Foi isso”, prossegui. “Assim é a vida. Assim é a
morte.”
“Lamento”, disse ela, e foi isso que quis dizer. Estava olhando
fixamente para mim, como a examinar minhas feições em busca de
algum vestígio de mentira. Eu me perguntei se tinha aprendido isso
na escola de atuação. “Você o amava?”
“Claro que amava”, retruquei, chocada com a grosseria da
pergunta. Eu já estava lá havia tempo suficiente. Queria ir embora.
“Claro”, repeti, erguendo a voz, irritada com qualquer insinuação
em contrário. “Ele era o meu marido.”
“Desculpe, eu não quis dizer nada com isso.”
Tratei de me controlar. Ela parecia esgotada, a pobre criatura.
“Não, eu é que peço desculpas”, falei. “Em todo caso, tenho
certeza de que você tem o que fazer. Não quer ouvir mais nenhuma
das minhas histórias.”
Levantei-me, decidida a ir embora dessa vez, mesmo que ela
implorasse que eu ficasse, mas ela parecia satisfeita com a minha
partida. Acompanhou-me até a porta.
“E o seu marido”, disse. “Vem ficar com você hoje à noite?”
“Não, ele está em Los Angeles”, respondeu ela. “Só volta daqui a
uma semana.”
“Então você está sozinha”, respondi. “Bem, isso lhe dá uma
chance de se instalar. Pode ser uma coisa boa em si.”
Esperei, sabendo que finalmente teria uma resposta. Na verdade,
eu soube no momento em que ela balançou a cabeça.
“Não estou sozinha”, disse ela. “O meu filho vai chegar mais
tarde.”
“O seu filho”, repeti em voz baixa.
“Sim. Henry. Acabou de começar na escola nova hoje.” Madelyn
consultou o relógio. “Vai chegar mais ou menos às três e meia.”
Eu fiz que sim. Um menino. “Quantos anos ele tem?”, perguntei
enquanto ela segurava a porta aberta e eu saía no corredor.
“Nove”, respondeu ela. “Foi muito bom conhecê-la, Gretel. Espero
que fiquemos amigas.”
“Também espero”, disse eu enquanto ela fechava a porta, mas
então percebi que não, não tinha dito isso, só pensara. Não consegui
pôr as palavras para fora. Eu me perguntei se foi assim que Edgar se
sentiu, naqueles momentos finais da vida, sabendo que precisava
respirar para viver, mas descobrindo que não conseguia deixar o ar
entrar nos seus pulmões. O pânico. O pavor. O medo do que estava
por acontecer.
12
* “Hänsel und Gretel”, conto infantil coletado pelos irmãos Grimm e conhecido no Brasil
como “João e Maria”. (N. T.)
16
Talvez eu não devesse ter ficado surpresa ao ver que a gente não
pode simplesmente aparecer em uma escola hoje em dia, escolher
um menino ao acaso e o levar embora. Acontece que os professores
gostam de sentir que você tem uma conexão real com a criança.
Meu táxi parou diante da escola de Henry às três e vinte, mas não
havia sinal dele do lado de fora. Paguei a corrida e olhei em volta,
perguntando-me se ele estaria andando de um lado para outro na
rua à procura da mãe, mas a rua estava vazia e, assim, eu entrei e fui
até a recepção, onde fui atendida por uma moça sentada atrás de
uma divisória de vidro, que ergueu os olhos quando me aproximei.
“Em que posso ser útil?”, perguntou ela, e eu olhei ao redor,
esperando não ter de entrar em muitos detalhes.
“O meu nome é Gretel Fernsby”, disse-lhe eu. “Estou procurando
Henry Darcy-Witt. Vou levá-lo para a casa dele.”
A moça passou o dedo em um maço de documentos que estava à
sua frente, então pegou o telefone, digitou três dígitos e murmurou
algumas palavras que não consegui ouvir através do vidro. Quando
recolocou o fone no gancho, ela indicou que eu me sentasse em uma
das quatro poltronas coloridas que decoravam o espaço da recepção.
Preferindo não me sentar, pus-me a examinar as fotografias de
classe nas paredes. Tinham tomado a decisão de lá exibir algumas
das fotos mais antigas e eu dei comigo olhando para os rostos
fantasmagóricos de meninos que tinham nove ou dez anos no início
da década de 1930. Todos estavam sentados perfeitamente imóveis,
as costas retas, as mãos no colo, a expressão severa. Na ponta de
cada retrato havia um professor diferente, adornado com capa,
chapéu e bigode fino. Foi difícil olhar para eles e não pensar no
mundo em que estavam crescendo. Cada um daqueles meninos teria
chegado à maioridade no momento em que o Führer enviou os seus
tanques à Polônia. Estariam cortejando a primeira namorada e
pensando na sua carreira quando o sr. Chamberlain voltou para
Londres com a promessa de paz para o nosso tempo. Estendi a mão
e dei com o meu indicador tocando as bochechas daqueles garotos
perdidos. O leve zumbido da escola foi substituído pelo barulho dos
trens chegando tarde da noite. Os gritos dos meninos e meninas
sendo separados dos pais. E então aquele outro garoto, o garoto com
quem me encontrei só uma vez, quando ele estava roubando um
conjunto de roupas. Implorou que eu não o denunciasse. Ele vai me
matar, disse, e eu o encarei, perguntando a quem ele se referia. O
menino olhou para o carro em que Kurt estava, à espera do meu pai.
Eu nunca tinha visto tanto terror quanto nos olhos daquele menino.
Qual era o nome dele? Ele me contou e, durante anos, eu me lembrei.
Depois passei décadas tentando esquecê-lo.
Uma voz atrás de mim me tirou do devaneio e eu me virei.
“Sra.… Ferns, é isso?”, perguntou um jovem negro de pulôver
verde, tão jovem e de bochechas lisas que era difícil dizer se ele fazia
parte do corpo discente ou se era um dos professores.
“Fernsby”, corrigi. “Estou aqui para…”
“A senhora está passando bem?”, perguntou ele, e eu franzi a
testa.
“Sim, acho que sim”, disse eu. “Por que pergunta?”
“Posso pegar um lenço para a senhora, se quiser”, disse ele.
“Por que eu precisaria de um lenço?”
Ele pareceu quase envergonhado com a pergunta.
“Porque a senhora está chorando”, disse ele.
Levei a mão ao rosto e, com certeza, estava molhado de lágrimas.
Acaso eu tinha começado a chorar quando estava examinando as
fotografias? Devia ter percebido, supus, embora tenha me
surpreendido não haver notado. Chocada, um pouco assustada até,
tirei um lenço de papel da bolsa para enxugá-lo, optando por não
responder.
“Eu vim buscar Henry Darcy-Witt”, eu lhe disse quando me
recompus.
“Sim, eu sou o professor de Henry”, respondeu ele, pelo menos
esclarecendo sua função. “Jack Penston.”
“Prazer em conhecê-lo, sr. Penston”, disse eu. “Desculpe o atraso,
eu tive de pegar um táxi e…”
“Acontece que geralmente é a mãe de Henry que vem buscá-lo”,
disse ele.
“Sim, eu sei, mas, infelizmente, hoje ela está indisposta”,
expliquei, olhando para trás, esperando ver o garoto emergir das
sombras. Eu não gostava de escolas e não queria ficar naquela mais
tempo do que o necessário. Havia um cheiro familiar, uma mistura
de cheiros de giz, borracha, desinfetante e menino que, somados,
não chegavam a ser um perfume que eu achasse particularmente
inebriante.
“Espero que não tenha acontecido nada com ela”, disse ele, e eu
meneei a cabeça.
“Não, não”, respondi. “Ela adoeceu um pouco. Coisas de mulher.”
Geralmente, eu achava que essa frase bastava para calar a boca dos
homens, mas o sr. Penston se manteve imperturbável, de modo que
fui obrigada a prosseguir. “Eu a aconselhei a tirar uma soneca. Eu
moro no mesmo prédio que os Darcy-Witt, entende? No
apartamento acima do deles. Imagino que agora ela esteja
dormindo”, acrescentei, certa de que não era bem o caso. Muito pelo
contrário, suspeitava que Madelyn estivesse esticada no sofá,
fazendo novas incursões em uma garrafa de vinho. “Ela me pediu
que viesse buscá-lo.”
“Compreendo”, disse o sr. Penston, franzindo a testa e acariciando
o lugar em que a sua barba deve ter estado um dia. “Só que a
senhora não está na lista, sra. Fernsby.”
“Que lista?”
“A lista de pessoas autorizadas. Os pais fazem uma lista dos
adultos que podem vir buscar os meninos na escola. A maioria deles
inclui um ou dois avós, às vezes um tio ou tia. Alguém em que eles
têm confiança.”
“Ah”, disse eu, assentindo. “Não, não devo estar nessa lista.”
“Não”, concordou ele.
“Mas ela me pediu”, garanti. “Dou a minha palavra.”
“Eu não duvido da senhora nem por um momento”, disse ele,
estendendo a mão como se fosse tocar o meu braço, depois,
pensando bem, devolvendo-a à posição em que estava junto ao seu
corpo. Parecia nervoso. Imagino que não estivesse acostumado a
recusar os pedidos de uma idosa. “Mas a senhora tem de entender,
eu não posso deixar Henry ir com a senhora sem autorização dos
pais.”
Eu fiz que sim. Isso não era insensato, mas certamente
representava um problema. Agora, enfim, uma cabecinha apareceu
no fim do corredor, e eu sorri ao vê-lo, aliviada por ele ainda estar
vivo.
“Oi, Henry”, disse eu, acenando para ele. Ele sorriu e também
acenou.
“Oi, sra. Fernsby”, respondeu ele, aparentemente sem surpresa
por me ver ali.
“Bem, pelo menos o senhor sabe que eu sou quem digo que sou”,
disse eu, voltando-me para o sr. Penston. “Embora eu também tenha
o meu passe de ônibus, se isso servir para alguma coisa.”
“Você conhece a sra. Fernsby?”, perguntou o professor, ignorando
minha observação e virando-se para o menino.
“O quarto dela fica acima do meu”, disse Henry. “Eu ouço quando
ela apaga a luz à noite e vai dormir. Nós somos amigos.”
Eu olhei para ele, levemente surpresa com o modo como ele me
descreveu. Tinha toda a razão também quanto à geografia. Fazia
sentido que o meu quarto ficasse acima do dele, pois a planta dos
nossos apartamentos era exatamente a mesma e eu havia me
mudado para o quarto menor após a morte de Edgar.
“Vou telefonar para a sra. Darcy-Witt, caso a senhora não se
importe”, disse o sr. Penston, e eu concordei com um gesto, embora
temesse que ela fosse incapaz de manter uma conversa coerente. Ele
foi para trás da divisória de vidro e, depois de digitar em um
computador, presumivelmente à procura do número certo, pegou
um telefone e discou. Henry se aproximou e olhou para mim.
“E a mamãe, onde está?”, perguntou.
“Em casa”, respondi. “Eu estava precisando esticar as pernas
porque tenho cento e vinte e seis anos e a artrite me pega se eu ficar
sentada o dia todo. Pedi a ela que me deixasse vir buscar você e levá-
lo para casa, só para me exercitar, e ela, muito gentilmente, disse que
sim. Você não se importa, não é?”
Ele me olhou com desconfiança. Não parecia totalmente
convencido.
“A senhora não tem cento e vinte e seis anos, tem?”, perguntou.
“Cento e vinte e sete no meu próximo aniversário”, disse eu. “Não
dá para perceber? Quando eu era menina, nem meninos nós
tínhamos. Eles só foram inventados na década de 1960.”
Ele riu e pareceu indeciso se acreditava em mim ou não. Estendeu
a mão lentamente em direção às minhas, mas, tal como o seu
professor, mudou de ideia. O que foi isso? Eu me perguntei.
“É para eu pegar meu casaco e minha mochila?”, perguntou ele, e
eu fiz que sim.
“Por favor, faça isso”, disse eu. “Quando o sr. Penston terminar de
telefonar, tenho certeza de que nos deixará sair.”
Com a rapidez de um relâmpago, ele disparou pelo corredor e eu
senti uma estranha vontade de segui-lo e ver como eram as salas de
aula atuais. Muito diferentes das austeras escrivaninhas de madeira
e das fileiras formais que fizeram parte da minha educação em
Berlim. E Jack Penston parecia muito mais alegre que Herr Liszt, o
professor que vinha dar aula ao meu irmão e a mim naquele outro
lugar.
A porta do escritório se abriu e o sr. Penston reapareceu por trás
do vidro.
“Está tudo bem”, disse, sorrindo.
“Que bom”, disse eu com alívio. “Então ela não estava
dormindo?”
“Na verdade, eu não consegui falar com a sra. Darcy-Witt”,
explicou ele. “Ela não atendeu o telefone. Então liguei para o pai de
Henry.”
Fiz o possível para não deixar transparecer a minha ansiedade,
embora ainda pudesse ver a expressão de Madelyn, o modo
assustado como havia dito, Não conte ao Alex. Ele vai me matar. É
verdade. Ele realmente poderia me matar.
“Entendo”, disse eu. “E ele ficou satisfeito por eu ter vindo buscar
o menino?”
“Parece que ficou surpreso. Mas disse que estava tudo bem. Na
próxima vez em que eu estiver com a sra. Darcy-Witt, vou lhe
perguntar se devemos pôr o seu nome na lista de autorizados.”
“Ah, eu não me incomodaria com isso”, disse eu quando Henry
voltou com o casaco todo abotoado e carregando uma mochila que
devia pesar quase tanto quanto ele. “Esta não será uma ocorrência
regular. Foi só uma emergência. Nada mais.”
Henry se despediu do professor com um aceno e nós nos
dirigimos à saída, os olhos dos meninos mortos a me seguirem a
cada passo que eu dava.
“Agora nós precisamos encontrar um táxi”, disse eu quando
saímos.
“Pensei que a senhora queria andar”, respondeu Henry. “Por
causa da sua artrite.”
Eu olhei para ele. Esse garoto não deixa escapar nada, tive de
admitir.
Samuel, pensei. Esse era o nome do garoto. Naquele outro lugar. O
que me implorou que eu não o denunciasse a Kurt por roubar
roupas.
Ele vai me matar, tinha dito ele.
Sim, era esse.
Samuel.
Um nome que soa como o soprar do vento.
8
Cait havia dito que o homem a quem ela se referia como sr. Kozel
visitava o Fortune of War duas vezes por semana, de modo que, na
quarta-feira seguinte, eu fingi estar doente e perguntei se podia sair
mais cedo do trabalho. A srta. Brilliant desconfiava de qualquer
garota que fizesse semelhante pedido, convencida de que ela
simplesmente queria ir em casa trocar de roupa para se encontrar
com o namorado. Então, para reforçar meu caso, passei a manhã
entrando e saindo muitas vezes do banheiro, para que ela aceitasse
que eu estava passando mal. No entanto, no fim da tarde, quando eu
perguntei se podia ir embora, ela me levou ao seu escritório, onde
me olhou da cabeça aos pés com desconfiança, prestando atenção
especial em minha barriga.
“Alguma coisa que você queira me contar?”, perguntou ela, o ar
severo, o tom de voz carregado de suspeita.
“Só que devo ter comido alguma coisa que me fez mal no café da
manhã”, disse eu. “Tenho certeza de que estarei melhor amanhã
cedo. Só preciso dormir.”
“Quero deixar uma coisa bem clara, Gretel”, segurando as mãos à
sua frente, os dedos entrelaçados como se estivesse rezando. “Eu não
exijo muito das minhas meninas, somente honestidade,
pontualidade, boa higiene e polidez com a clientela. Mas este é um
estabelecimento respeitável, e não permitirei que uma assistente sem
aliança no dedo trabalhe na minha loja se estiver em estado
interessante.”
Eu a encarei, perplexa com essa declaração. Nunca ouvira essa
expressão e não sabia o que significava.
“Desculpe?”, disse eu.
“Você está esperando uma surpresa de Natal?”, perguntou a
senhorita, e eu me perguntei se ela havia enlouquecido. “Porque, se
estiver, eu agradeceria se você me dissesse agora, para que eu possa
começar a entrevistar a sua substituta.”
“Desculpe, srta. Brilliant”, disse eu, e a minha expressão deve ter
deixado claro que não tinha a menor ideia do que ela estava falando.
“Eu não…”
“Você vai ter um bebê?”, disparou ela com raiva, e eu senti o meu
rosto corar com a mera ideia.
“Não!”, gritei. “Não, claro que não. A senhora entendeu tudo
completamente errado!”
“Mas você passou mal a manhã toda e…”
“Srta. Brilliant, eu garanto que não estou grávida. Simplesmente
não existe a menor possibilidade de eu estar, pelo menos até onde
entendo os fundamentos da biologia. Eu me comporto muito bem.
Apenas estou mal do estômago, nada mais.”
A mulher aparentemente acreditou em mim agora, e eu fiquei
aliviada, e ela ainda teve a gentileza de parecer envergonhada ao me
deixar sair. Quando peguei a bolsa e o casaco e segui pela George
Street, não pude deixar de rir do mal-entendido. Só tive um único
amante na vida — Émile —, e nossa única noite de amor tinha sido
sete anos antes. Era bem verdade que outros homens me haviam
feito propostas desde então, mas eu nunca cedi a nenhuma dessas
investidas, mesmo quando eu própria estava a fim. Isso não se deveu
a nenhum senso de moralidade da minha parte, mas simplesmente
porque desconfiava e não podia confiar nos homens. Mesmo assim,
isso não significava que eu não tivesse desejos e, aqui em Sydney, os
rapazes eram robustos, bonitos e bronzeados de sol. Eu muitas vezes
passeava os olhos pelo corpo deles e ansiava por alguma intimidade
com eles, mas me continha, certa de que essa abstinência
autoimposta precisava durar para todo o sempre.
Tomei o rumo do Fortune of War pouco antes das seis horas, mas
não entrei imediatamente. Preferi observar de certa distância a
entrada, atravessei a rua e fiquei junto à escada que descia ao First
Fleet Park. As ruas estavam movimentadas àquela hora, com
pessoas indo e vindo enquanto as Rocks enfrentavam um fluxo de
homens que, depois do trabalho, queriam passar uma ou duas horas
tomando chope e batendo papo sem nenhum capataz a fungar no
seu pescoço. Receei perder Kozel entre eles, mas o fato de aqueles
homens serem na maior parte trabalhadores, que vestiam calça curta
e camiseta, significava que ele se destacaria em meio àquela gente.
E assim foi. Eu havia esperado não mais que quinze minutos
quando o vi se aproximar. Levava uma pasta e usava chapéu, coisa
certamente desnecessária naquele clima. Estava sozinho e parou um
instante em uma banca para comprar jornal, pagando com uns
trocados e permanecendo brevemente na rua para ler as manchetes.
A seguir, dobrou-o, colocou-o debaixo do braço e entrou no pub, e
eu observei quando ele foi para os fundos, parando apenas um
momento para fazer seu pedido no balcão, antes de desaparecer na
sua sala habitual.
Se antes eu havia fingido estar doente, senti isso realmente
naquele momento, o meu estômago a dar cambalhotas enquanto eu
pensava nas minhas opções.
Podia ir embora, fugir para sempre do local de trabalho de Cait e
nunca mais cruzar com ele. Podia entrar e conversar com ele. Mas o
que eu diria depois de todo esse tempo? Quando os dois estávamos
fingindo ser pessoas que não éramos.
Por fim, respirei fundo e atravessei a rua, as pernas tão inseguras
que quase fiquei na frente de um carro que se aproximava. Nem
sequer ergui a mão para me desculpar, indo diretamente para dentro
antes de mudar de ideia. Não avistei Cait em nenhum lugar, mas seu
colega Ben estava atrás do balcão e me cumprimentou pelo nome,
perguntando se eu queria um chope. Fiz que sim e me segurei no
balcão de madeira enquanto ele servia, observando o líquido
dourado e frio a borbulhar ao entrar no copo. Então coloquei
algumas moedas no balcão e levei a bebida comigo para a sala dos
fundos.
Estava vazia, a não ser pela presença dele, que, como antes, estava
sentado em silêncio, lendo o seu jornal. Fui para o outro canto e me
sentei, olhando para a própria mesa antes de erguer a vista e olhar
para ele. Agora já não havia a menor dúvida. Era ele. Quase uma
década mais velho, por certo, mas não podia haver nenhum engano.
Sentindo meu interesse, ergueu um instante os olhos e se virou na
minha direção. Esperei para ver se a sua expressão mudava, mas
não, ele parecia não ter me reconhecido. Na verdade, sorriu um
pouco, como se estivesse acostumado com mulheres jovens a
olharem para ele com admiração, então acenou a cabeça em uma
saudação e me senti ruborizar. Ele retomou a sua leitura, o sorriso de
autossatisfação ainda nos lábios, mas então, passado um instante,
algo mudou. Olhou para mim uma vez mais, mas muito
brevemente, então desviou o olhar, o sorriso a desaparecer
lentamente, substituído por um endurecimento da sua mandíbula,
como se estivesse apertando os dentes com força. Na sua mesa havia
uma caneta barata e, depois do que pareceu uma eternidade de
silêncio entre nós, ele a pegou, tirou a tampa e escreveu algo no alto
do jornal.
Agora ansiosa, tentei pegar o chope, mas a minha mão estava tão
instável que esbarrou no copo, derrubando-o, quebrando-o,
derramando a bebida na mesa. Ben veio imediatamente com um
pano de prato, que usou para limpar a mesa, conversou
amigavelmente comigo sobre coisas corriqueiras, embora eu não
conseguisse me concentrar em nada do que ele dizia. Em vez disso,
olhei para o chão, e só quando Ben saiu, levando consigo os cacos de
vidro, eu me atrevi a erguer a vista e olhar para a outra mesa.
Mas agora estava vazia, e eu me achava a sós na salinha. O chapéu
e a pasta do homem haviam desaparecido e os únicos vestígios que
restavam da sua presença eram o jornal e a caneta.
Eu me levantei, atravessei a sala e peguei o jornal. Não eram
palavras que ele havia escrito, tratava-se de uma espécie de desenho.
A princípio, não entendi. Aquilo parecia ser apenas uma série de
linhas que se cruzavam vertical e horizontalmente. Mas então
reparei no que pareciam ser folhas de grama pontilhadas na base e
compreendi que ele pretendera deixar uma mensagem para mim. Ou
um aviso.
Pois Kurt Kotler, o então Untersturmführer naquele outro lugar,
assessor pessoal do meu pai e o garoto pelo qual me apaixonei pela
primeira vez, havia desenhado uma cerca.
9
Foi poucos meses depois. Kurt já tinha ido embora a essa altura,
despachado para o front, deixando-me às voltas com a traumatizada
certeza de que o haviam matado. Meu irmão, é claro, ficou
satisfeitíssimo com a demissão de Kurt e me provocava
implacavelmente por causa desse fato.
E eu o detestava por isso.
Detestava-o tanto que, quando ele finalmente me confidenciou
seus encontros com Samuel, fingi achar maravilhoso ele ter um
amigo com quem conversar.
E, quando ele me contou que o pai de Samuel havia desaparecido
e que o menino queria que ele passasse por baixo da cerca para
ajudá-lo a procurá-lo, eu o aconselhei a fazê-lo. Era para isso que
serviam os amigos, argumentei.
“Mas e se me virem?”, perguntou ele, e eu abanei a cabeça.
“Há um armazém”, disse. “O seu amigo deve saber onde fica. É lá
que guardam todos os uniformes. Ele pode pegar um para você e é
só vesti-lo quando se encontrar com ele. Então ninguém vai notar
sua presença.”
Eu queria que ele fosse pego.
Queria que se encrencasse.
Talvez que fosse mandado embora, como Kurt.
“Não é perigoso?”, perguntou ele.
“Claro que não! Você pode ajudá-lo a encontrar o pai.”
Ele se mostrou indeciso, mas não queria que eu percebesse seu
medo.
“Tudo bem”, disse. “É o que eu vou fazer. Direi a ele amanhã.”
Tudo aquilo era uma piada para mim. Um modo mesquinho de
me vingar dele.
Foi só alguns dias depois que minha mãe abriu a porta do meu
quarto, com ar nervoso e assustado.
“Gretel”, disse ela. “Você viu seu irmão? Não consigo encontrá-
lo.”
PARTE III
A solução final
londres 2022 / londres 1953
1
Foi difícil saber por onde começar, mas escolhi Berlim, a minha
cidade natal e o lugar em que morei durante doze anos, até que um
convidado para jantar e sua amiga chegaram uma noite para
informar meu pai do seu novo cargo, e a minha vida e a de toda a
minha família mudaram para sempre.
“Berlim?”, perguntou David, deixando-se cair em uma poltrona
do meu quarto. Sentei-me diante dele, na cama, tentando parar de
tremer. Não quis olhar para o rosto dele enquanto falava. Não podia
suportar a ideia de ver o seu amor desaparecer aos poucos. Era mais
fácil simplesmente contar a minha história em voz alta, como se
fosse para uma sala vazia. “Mas você disse que nasceu na França.”
“Eu sei, mas era mentira. A verdade é que só pus os pés na França
em 1946, alguns meses depois do fim da guerra.”
“Você morou em Rouen, não é? Isso era verdade?”
“Durante uns seis anos, sim. Mais tarde. Naquele primeiro ano,
minha mãe e eu permanecemos em Paris. Só nos mudamos para
Rouen quando se tornou impossível continuar mais tempo na
capital. E eu parti para a Austrália quase imediatamente depois da
morte da minha mãe.”
“Tudo bem”, disse ele, meneando a cabeça. “Então você é alemã.”
Havia uma ponta de suspeita no seu tom de voz, reprovação
mesclada com medo.
“Sou”, admiti. “Embora não vá para lá desde 1946. Nem tenho
planos de retornar.”
“Então você não passou a guerra na Alemanha?”
“A guerra toda não.”
Ele pareceu aliviado. “Então você saiu”, disse. “Não participou
daquilo. Foi corajoso por parte da sua família. Se você tivesse sido
capturada…”
“Espere, David. Apenas me ouça.”
“Mas eu sei alguma coisa a esse respeito”, disse ele, inclinando-se
para a frente e tentando segurar minha mão, mas eu me afastei. “Sei
que não lhe contei muito sobre a minha família, mas devia ter
contado. É importante que você saiba o que aconteceu com eles.”
“Eu já sei um pouco”, contei-lhe. “Acerca dos seus pais e da sua
irmã enfim. Acerca de Treblinka.”
Ele me encarou com incredulidade.
“Como foi que você…?”
“Ele tinha boas intenções; você precisa acreditar nisso. Ele só me
contou porque sabia que eu estava preocupada com você, com o fato
de você nunca falar neles nem no que tinha acontecido. E então,
naquela noite, quando fomos assistir àquele filme terrível…”
“Quem tinha boas intenções?”, perguntou ele, erguendo um pouco
a voz. “Quem lhe contou tudo isso?”
“Edgar”, respondi.
Ele ficou um pouco tenso, e a sua expressão misturava
incredulidade com raiva.
“Edgar lhe contou sobre a minha família?”, perguntou.
“Não tudo”, disse eu. “Só a história básica, mais nada. Eu lamento
muito o que lhe aconteceu, David.”
Ele ficou algum tempo em silêncio, refletindo. “Edgar não devia
ter feito isso”, disse enfim. “Essa não era a história dele.”
“Ele é seu amigo. Importa-se com você.”
David deixou escapar uma espécie de grunhido. Era evidente que
estava contrariado, mas não queria insistir naquele tema no
momento. Levantou e se aproximou da janela, então reparou no
porta-joias Seugnot na minha mesa de cabeceira.
“Que bonito”, disse, estendendo a mão para pegá-lo, talvez
ansioso por mudar inteiramente de assunto.
“Não”, disse eu com voz mais alta de medo, pois não queria que
ele visse a fotografia que o porta-joias continha. Se eu não podia vê-
la, tampouco ele podia. “É muito frágil.”
Ele se voltou para mim, sem dúvida surpreso com a insistência da
minha voz, mas desistiu do porta-joias.
“Conte-me o que ele lhe disse”, pediu, voltando à sua cadeira, e eu
repeti o que Edgar havia dito, que os seus avós o trouxeram para a
Inglaterra quando perceberam que os nazistas estavam prestes a
invadir o país e que os seus pais deviam vir encontrá-los, mas não
conseguiram.
“E minha irmã?”, quis saber ele. “Você esqueceu da minha irmã.”
“Sim, ela também”, disse eu, tentando manter meu tom de voz o
mais solidário possível. “Estava no hospital, foi o que ele me contou.
Uma operação de apêndice, certo?”
David balançou a cabeça. “Não. Foi o que eu disse a ele, mas não é
a verdade.”
Aguardei que ele continuasse.
“Eu não queria lhe contar o que os meus pais fizeram. Como eles
foram insensatos.”
Permaneci em silêncio uma vez mais.
“Minha irmã se chamava Dita. Ele lhe contou pelo menos isso?”
“Não.”
“Ela tocava piano”, prosseguiu ele, sorrindo com a recordação.
“Era muito talentosa. Eu não tenho nenhuma aptidão nessa área. O
meu pai esperava que tivesse, mas eu sou surdo para as notas. Dita,
porém, era capaz de ouvir uma música uma única vez e
simplesmente sentar-se e tocá-la com perfeição. Tocava em concertos
o tempo todo — concertos infantis, é claro, mas todo mundo podia
dizer como ela era habilidosa e que futuro extraordinário a esperava.
Ela ia participar de um recital importante, que estabeleceria ainda
mais sua reputação, e meus pais fizeram questão de que ela ficasse
para se apresentar. Meus avós lhes disseram que eles eram loucos,
que nós todos devíamos partir juntos, mas eles se recusaram. Minha
mãe teria concordado, creio eu, mas meu pai era um homem
teimoso. Um homem orgulhoso. Queria ouvir sua filha tocar para
um público grande. Então nós três partimos, eles ficaram de vir para
a Inglaterra quatro dias depois. Mas nunca chegaram. Eu nem sei se
houve o recital. Minha avó tentou durante muito tempo descobrir o
que lhes aconteceu, mas tanto ela quanto meu avô foram para o
túmulo sem nada descobrir. Só muito depois, quando os registros de
Treblinka foram liberados e se contataram os familiares que
restavam, eu soube de seu destino. Embora já o tivesse presumido.”
Escorreram lágrimas pelo seu rosto, mas David se apressou a
enxugá-las. Eu mal podia olhar para ele. A culpa que sentia estava
crescendo em um lugar dentro de mim, ameaçando partir-me em
duas.
“Ainda sonho com eles”, disse David, esboçando um sorriso em
meio à sua dor. “Eu digo sonho”, acrescentou, “mas é claro que se
trata de pesadelos. Eu estou lá com eles, nus na câmara de gás…”
“David, não”, supliquei.
“Queimando no fogo.”
“David!”
“Eu nem me sinto humano nesses sonhos. Mas é assim que eles
faziam que nos sentíssemos, não é? Como se não fôssemos seres
humanos.”
Uma recordação — o meu pai no seu escritório — “Essas pessoas? Ora,
elas não são gente. Não o que nós chamamos de gente”.
“Eu sou apenas um espírito flutuando no céu da Polônia, uma
ideia, não uma pessoa. Uma coleção de pensamentos aleatórios a se
mesclarem com as nuvens.”
“Pare! Por favor, pare”, supliquei, os punhos agora cerrados. Eu
queria gritar bem alto. Essa era a realidade do que minha família
tinha feito e o que eu vinha escondendo durante todos aqueles anos.
David soltou um longo suspiro, que emanava das profundezas do
seu ser. Eu não disse nada. Quando ele voltou a falar, a voz lhe saiu
tão baixa que eu tive de me esforçar para ouvi-la. Ele não olhou para
mim.
“Você vai me dizer que ele era soldado, não é?”, perguntou. “Seu
pai. Você vai dizer que ele lutou. Para eles.”
“Sim”, admiti. Não conseguia mais fingir.
“Foi o que imaginei. Eu esperava, talvez, estar equivocado.”
“Ele era soldado”, prossegui. “Mas não combateu.”
“Bem, já é alguma coisa, suponho”, disse ele, uma faísca de
esperança a passar pelo seu rosto. “Um burocrata então? Algo
parecido? Um motorista, quem sabe?”
Eu não disse nada e o silêncio entre nós tornou-se tão avassalador
que, quando David se levantou de um salto e foi até a janela, eu
estremeci de susto. Ele ficou de costas para mim, olhando para a rua
lá embaixo.
“Perdoe-me, Gretel”, disse ele por fim.
“Perdoá-lo?”, perguntei, levantando-me e me aproximando dele.
De algum modo, involuntariamente, percebi que estava pondo a
mão na barriga para proteger o bebê que crescia dentro de mim.
“Perdoar o quê?”
“Toda esta raiva dentro de mim. Acho difícil falar nisso tudo.
Nessas pessoas. No que fizeram. Eu quero todas elas mortas. Mas
ainda estão lá fora, você sabe. Na Europa, na América do Sul, na
Austrália. Muitas delas ainda à espera de justiça. Às vezes eu penso
que é assim que eu devia passar a vida. Caçando-as. Acabando com
elas.”
David se virou a fim de olhar para mim. Seu rosto estava marcado
pela dor.
“Meu problema é que eu ainda amo você”, disse ele, dando a
impressão de que achava atormentador até admitir isso. Estendeu a
mão para mim, mas logo afastou os braços. Por ora, ele não queria
me tocar, a primeira vez no nosso relacionamento que ele conseguiu
manter as mãos longe do meu corpo. “Não é culpa sua, nada disso.
Quer dizer que o seu pai era um, sei lá, um humilde funcionário, um
mero burocrata em um lugar qualquer. O que mais ele podia ter
feito? Não posso culpá-la por isso.”
“Não é tão simples assim.”
“Mas não consigo pensar nisso agora. Há tanta coisa para absorver
e considerar. Se um dia tivermos um filho, por exemplo, o que lhe
diríamos? Como explicaríamos o que seu avô fez?”
“Seria necessário?”, perguntei.
“Claro que sim”, disse ele, começando a andar de um lado para
outro. “Eu não poderia viver com segredos e mentiras.”
“Mas de que adiantaria?”
David deu de ombros, talvez indeciso também.
“Eu preciso de algum tempo”, disse finalmente. “Só para lidar
com isso mentalmente. Você o odeia, imagino.”
“Odeio quem?”
“Seu pai.”
Pensei um pouco nisso. Compartilhar somente uma fração da
verdade era não compartilhar nada. “Eu o amava muito quando era
menina”, disse. “Ele se foi há oito anos, mas… não posso evitar, há
ocasiões em que ainda sinto falta dele. Sei o que ele fez, como
viveu… mas me amava muito, David. Não consigo explicar. Se eu
pudesse tê-lo de volta só um dia, se pudesse falar uma hora com
ele…”
Naquele instante, tive a impressão de que David ia me atacar. Ele
respirou rapidamente, fechou os olhos com força.
“Preciso ir para casa”, disse. “Não posso discutir isso com você
agora. Eu não a culpo, Gretel, juro que não. Entendo que você
amasse o seu pai, é simplesmente natural, mas…”
“David, você nem chegou a ouvir o que eu preciso lhe contar”,
disse eu, minha frustração crescendo à medida que a conversa se
desviava da minha história. “Você me falou de sua família. Agora eu
tenho de falar da minha. Se for realmente para nós termos um futuro
juntos, que é o que eu mais quero na vida, é importante que você
conheça todos os detalhes.”
“Há mais detalhes ainda?”, perguntou ele com ar angustiado.
“Que outros poderia haver? O que poderia ser pior do que saber que
seu pai era um pequeno funcionário daqueles animais?”
Eu me sentei na cama e escondi o rosto nas mãos.
“Sente-se, David, por favor”, disse, e ele me atendeu. “Eu preciso
lhe pedir uma coisa, e, se você a fizer, prometo nunca mais lhe pedir
nada nesta vida.”
“Que coisa?”
“Só quero que você me deixe contar minha história do começo ao
fim sem interrupção. Quando eu chegar ao fim, quando você já tiver
ouvido tudo e me conhecer melhor do que qualquer outra pessoa
viva, pode decidir se quer ficar ou ir embora. Você faz isso, David?
Me ouve até o fim?”
Ele fez que sim. “Ouço”, disse.
“Então eu vou recomeçar”, respondi em voz baixa. Engoli saliva,
respirei fundo e comecei.
“Eu nasci em Berlim em 1931”, disse. “Morava com meu pai e
minha mãe e, três anos depois do meu nascimento, nasceu o meu
irmão. Nós vivíamos bem. Meu pai não era um burocrata humilde,
como você sugeriu, e sim um funcionário do Reich. Um alto
funcionário. Claro está que eu era apenas uma criança e sabia muito
pouco do que ele fazia no dia a dia. A guerra estava em curso, ele
raramente ficava em casa, mas isso não nos afetava muito. E, então,
uma tarde, meu irmão e eu voltamos da escola e ficamos surpresos
ao dar com Maria, a empregada da nossa família, que sempre
mantinha a cabeça baixa e nunca olhava acima do tapete, no quarto
do meu irmão, tirando todos os seus pertences do guarda-roupa e
guardando-os em quatro caixotes, até mesmo as coisas que ele havia
escondido no fundo e que dizia que lhe pertenciam e não eram da
conta de mais ninguém.”
13
Quando Alex voltou a bater em Madelyn, acho que foi menos para
castigá-la do que para me provocar, para ver se eu respeitaria nosso
acordo. Foi em um sábado tarde da noite, e eu estava começando a
pensar em ir para a cama quando escutei vozes no apartamento de
baixo, evidentemente uma briga. Fechei os olhos, esperando que
aquilo acabasse logo, porém, minutos depois, ouvi o barulho de uma
porta batendo e de pés pequenos correndo para os fundos do prédio.
Levantei-me, fui até a janela de trás e vi Henry sentado à meia-luz
em um canto do jardim, os joelhos dobrados na altura do queixo,
envoltos pelos braços, o rosto mergulhado nas mãos. Eu queria
deixá-lo em paz, ficar fora daquilo como havia jurado fazer, mas não
consegui. Havia presenciado muito sofrimento na vida e nada fizera
para ajudar. Tinha de intervir.
Desafiando todo instinto de autopreservação, desci a escada,
tentando ignorar os gritos que se ouviam na sala de estar dos Darcy-
Witt, e saí ao jardim dos fundos. Henry ergueu os olhos,
imediatamente receoso, imagino, de que fosse seu pai se
aproximando, mas se mostrou aliviado ao ver que era apenas eu.
“Henry”, chamei. “Você está bem?”
“Eu o detesto”, respondeu ele, começando a chorar, e eu me sentei
ao lado dele, passei o braço em torno do seu ombro, e,
instintivamente, ele encostou o corpo no meu. Eu não sentava tão
perto de uma criança desde que Caden era menino. “Queria que ele
estivesse morto.”
Talvez outra pessoa tivesse castigado o garoto por dizer coisa tão
terrível, mas eu sabia um pouco dos traumas que os pais podem
infligir aos filhos.
“Por que ele está bravo com você agora?”, perguntei.
“Eu devia estar fazendo a lição de casa”, respondeu ele. “Mas, em
vez disso, ele me pegou lendo e ficou furioso.”
“Eles queimavam livros, sabe?”, disse eu baixinho.
“Quem fazia isso?”
“Não importa.”
“Quem fazia isso?”, repetiu Henry. “Por que alguém queimaria
um livro?”
“Pessoas malvadas”, disse eu. “Todas mortas há muito tempo. A
maioria delas, em todo caso. Elas tinham medo dos livros, entende?
Medo das ideias. Medo da verdade. As pessoas ainda têm medo
disso, acho. As coisas não mudam tanto assim.”
“Gente burra”, disse Henry, fungando um pouco.
“Gente muito burra. Ele bate em você com frequência, não bate?”
Henry fez que sim, quase imperceptivelmente, e eu o puxei para
junto de mim.
“Não há como fazê-lo parar?”, perguntei, e não estava
perguntando isso ao menino, que, obviamente, não poderia dar uma
resposta, e sim ao universo. De algum modo, o homem conseguira
convencer os policiais de que não tinha feito nada errado. Aposto
que os havia bajulado e usado a sua celebridade ou, pelo menos,
seus contatos com celebridades para impedi-los de continuar
investigando o que estava acontecendo no Winterville Court, de
modo que acreditava que podia simplesmente continuar e continuar.
E, como eu lera muitas vezes no jornal, era isso que os homens
faziam tantas vezes quando o mundo fechava os olhos para seu
comportamento. Até o momento em que matavam a esposa e os
filhos, isto é, o ponto em que os vizinhos fingem surpresa e dizem:
“Mas ele sempre pareceu ser um homem tão tranquilo e amável…”.
Madelyn saiu à porta e olhou para nós dois. Tinha sangue no
queixo, abaixo do canto esquerdo da boca, e seus olhos pareciam
vidrados.
“Henry”, chamou. “Volte para dentro. É tarde. Você devia estar na
cama.”
“Não quero”, disse o menino. “Não vou voltar nunca mais.”
“Entre já!” rosnou ela, repentinamente furiosa, falando tão alto
que os dois estremecemos. O menino saltou do banco e correu tanto
quanto podia para dentro do prédio. Pouco depois, eu me levantei e
olhei para ela.
“Ele vai matar você um dia desses”, disse. “Você percebe isso,
não?”
Madelyn exalou um suspiro profundo. “Por favor, vamos deixar
isso para amanhã”, disse, virando-se e seguindo o filho para dentro
de casa.
Fiquei alguns minutos ali onde estava, zangada comigo mesma,
odiando meu vizinho e até desprezando sua esposa por permitir que
aquilo continuasse, embora eu soubesse que ele a tinha em tal estado
de pavor que ela simplesmente não podia enfrentá-lo. Inquieta,
voltei a entrar e, para meu horror, dei com Alex Darcy-Witt à minha
espera do lado de fora de sua porta. Com as mangas arregaçadas,
abria e fechava os punhos junto ao corpo. Estava suado, mas parecia
estar curtindo qualquer trauma que infligira a sua família.
“Você simplesmente não consegue se conter, não é?”, perguntou.
“Sinto muito”, disse eu. “Mas eu vi o menino lá fora e ele estava
tão chateado. Eu tive de ir confortá-lo.”
“Eu lhe disse para ficar longe dele. Dos dois.”
“Não vai acontecer de novo. Prometo.”
Ele se aproximou de mim, e eu senti seu bafo de uísque.
Perguntei-me quanto teria bebido antes de atacá-los. Se isso tornava
a violência mais fácil para ele.
“O que eu hei de fazer com você, Gretel?”, perguntou ele em voz
baixa. “Você simplesmente não escuta a voz da razão, escuta? Eu
tenho um amigo, você sabe. Bem, eu tenho muitos amigos. Mas esse
é um jornalista importante. Sempre à procura de uma boa matéria.
Se eu posso torná-la a mulher mais famosa do planeta, posso torná-
lo o jornalista mais famoso. Estou pensando em ligar para ele.
Lembre-me: qual é o nome do seu filho? Caden, não é? Um nome
incomum. Não há de ser difícil rastreá-lo. Posso ver todas as vans
dos jornais acampadas em frente à casa dele agora. Os repórteres lhe
gritando perguntas. Devo telefonar para ele, Gretel? O que você
acha? Nós poderíamos acabar com isso agora mesmo. Ou você vai
manter distância?”
“Vou manter distância”, respondi.
“Ótimo”, disse ele, recuando em direção ao seu apartamento.
“Porque este é meu último aviso.”
Ele entrou e eu o ouvi chamar o nome de Henry e então,
momentos depois, os gritos do menino quando voltou a apanhar do
pai. Corri até a porta, mas não havia nada que eu pudesse fazer.
Tapei os ouvidos para não ouvir os gritos de Henry. E então subi a
escada, quase tropeçando no último degrau lá em cima. Eu bem que
lamentei não ter caído. Como seria fácil para mim simplesmente cair
e rolar para a morte. Uma mulher da minha idade não sobreviveria a
isso. Verdadeiramente, eu entendi o desejo de Madelyn de passar
deste mundo para o outro, pouco importa a punição que lá me
aguarda.
14
John Boyne
Dublin, 2022
richard gilligan
john boyne nasceu na Irlanda, em 1971. Seu livro mais célebre, O menino
do pijama listrado, lhe rendeu dois Irish Book Awards, vendeu mais de 11
milhões de exemplares pelo mundo e foi adaptado para o cinema. Entre
outros títulos do autor publicados pela Companhia das Letras, estão O
garoto no convés, O palácio de inverno, Uma história de solidão e As fúrias
invisíveis do coração.
Copyright © 2022 by John Boyne
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Título original
Capa
Imagens de capa
Shutterstock
Preparação
Isabel Cury
Revisão
Marise Leal
Aminah Haman
Versão digital
Rafael Alt
isbn 978-65-5921-552-2
www.companhiadasletras.com.br
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