Revista E - Julho 2023
Revista E - Julho 2023
Revista E - Julho 2023
sescsp.org.br/festa
CAPA: Obra Meninos assistindo
a jogo de fora do estádio do
Pacaembu (São Paulo, 1941),
que faz parte da exposição CRIA:
experiências de invenção, em cartaz
no Sesc Piracicaba a partir deste
mês. Com curadoria do artista
visual Marconi Drummond, a
mostra reúne trabalhos em vídeo,
fotografia, jogos tradicionais,
poesia visual e música, que
celebram a criatividade.
de ensinar Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo
Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik
Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez,
Vanderlei Barbosa dos Santos
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior,
Antonio Di Girolamo, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio
Múltiplos são os caminhos que envolvem Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Marco Antonio
Melchior, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes,
o processo de ensino-aprendizagem. Vitor Fernandes, William Pedro Luz
Sobretudo fora do ambiente escolar, no qual o REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL
conhecimento é estruturado e sistematizado
Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano
num fluxo historicamente estabelecido. No Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho
campo que se constitui como educação não
formal, diversificam-se os formatos e os CONSELHO EDITORIAL | Revista E
métodos de ensinar e aprender, seja pela Adenor Serrano Domiense, Adriano Ladeira Vannucchi, Alexsandra Xavier Do Egito
Costa, Aline Ribenboim, Aline Sagiorato de Castro, Ana Paula Fraay Moyses Henriques,
oralidade dos griôs da tradição africana, Andréa de Oliveira Rodrigues, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Camila
pela prática da celebração da coletividade Freitas Curaçá, Carlos Daniel Dereste, Carolina Vidal Ferreira, Cherrye Mendes Virote,
Cinthya de Rezende Martins, Cléber de Lima Franco Tasquin, Corina de Assis Maria,
da cultura indígena ou pelo conhecimento Cristiane Pereira Isidio Di Berardini, Danny Abensur, Diego Polezel Zebele, Diego
ancestral que é transmitido de geração em Vinicius Teixeira Ferreira, Eduardo Santana Freitas, Emily Fonseca de Souza, Felipe
Veiga do Nascimento, Fernanda Porta Nova, Filipe Augusto Miranda, Flávia Reis
geração num mesmo círculo familiar, os Nocetti, Flávia Teixeira S. Coelho, Geraldo Cruz e Silva Neto, Gislene Lopes Oliveira,
Giulia Maria de Campos Manocchi, Gustavo Henrique Prevatto Zani, Gustavo Henrique
saberes são compartilhados e modificados, Torrezan, Gustavo Nogueira de Paula, Ivan Lucas Araújo Rolfsen, Jose Mauricio
num movimento contínuo e perene. Nisso Rodrigues Lima, Juci Fernandes de Oliveira, Julia Parpulov Augusto dos Santos,
Karen Cristine Pimentel dos Santos, Lígia Helena Ferreira Zamaro, Marcel Antonio
está também a beleza da condição humana: Verrumo, Maria Aparecida da Silva, Mariana Lins Prado, Mariana Martelli da Costa,
Marina Reis, Monique Mendonça dos Santos, Natalia de Souza Freitas, Patricia Maciel
perpetuar-se na mesma medida em que da Silva, Paula Caroline de Oliveira Souza, Pollyanna Dibbern Asbahr, Priscila dos
recebe e transmite essa herança cultural. Santos Dias, Priscila Fischernes, Rachel Amoroso Gonsalves, Rafaela Ometto Berto,
Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Ricardo Lemos Antunes Ribeiro,
Ensinar é, portanto, também tornar-se imortal, Ricardo Tacioli Serafini, Roberta Santos Assef, Roberto Cristiano Santana Santos,
de certo modo, vivendo no e pelo outro. Rodrigo Rodrigues Griggio, Rogério Wong De Oliveira, Romeu Marinho C. Ubeda, Sérgio
Francisco Seabra Moreira, Silvia Cristina Garcia, Stephany Tiveron Guerra, Tamara
Demuner, Thaís Cristina Kruse, Thaís Ferreira Rodrigues, Thiago Zuniga Ferri, Tonny
Aranha, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Viviane Machado Lemos
O que o motiva a ensinar? E como aprendeu?
Essas foram perguntas feitas a cinco artistas Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves
Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno
que participam, neste mês, do FestA! – Thofer e Larissa Ohori • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto
e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia:
Festival de Aprender, nas unidades do Sesc. Adriana Vichi • Repórteres: Luciane de Castro, Luna D’Alama, Manuela Ferreira
As respostas estão reunidas em reportagem e Maria Júlia Lledó • Coordenação-Executiva: Fernando Fialho • Coordenação
Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira •
desta edição da Revista E, que traz, ainda, Propaganda: Daniel Tonus e José Gonçalves Júnior • Arte de Anúncios: Ariane Ramos
entrevista com o poeta e agitador cultural de Azevedo • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa
Ohori • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Nelson
Sérgio Vaz, na qual relata seu encantamento Soares da Fonseca
pela literatura. Na seção Encontros, uma Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)
reflexão da educomunicadora e pesquisadora
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da
Januária Cristina Alves sobre a importância Superintendência de Comunicação Social
da educação midiática no combate à Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios
desinformação. Boa leitura, bons aprendizados!
Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São
Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc
Danilo Santos de Miranda SP para tablets e celulares (Android e IOS).
Cinco artistas
de diversas
áreas, Como ilustrações
linguagens de autoria
e origens negra em livros
compartilham infantis inspiram
inspirações outras formas de
do ofício de ser e enxergar
ensinar e o mundo
aprender Enquanto a bola
rola em campo,
Poeta e cada vez mais
agitador cultural mulheres se
Sérgio Vaz, destacam como
criador do Sarau artes e tecnologias narradoras,
da Cooperifa, jornalistas e
Confira os
celebra o comentaristas
destaques da
despertar das de futebol
programação
do mês, entre potências
Adriana Vichi (Entrevista); Ilustração de Edson Ikê para o livro Edith e a velha sentada (Pallas, 2ª edição, 2021), escrito por Lázaro Ramos (Gráfica).
eles o FIT periféricas
Rio Preto na literatura
– Festival brasileira
Internacional Do rock’n’roll
de Teatro ao pop,
Rita Lee deixou
um legado criativo
de transgressão
e liberdade na
música, na TV, no
entrevista
cinema e na escrita
esportes
gráfica
dossiê
bio
Atriz
Rosi Campos
relembra
personagens
marcantes,
refletindo sobre
processo criativo
Casarões
e diferença de
Artigos de tombados em
gerações na arte
Luiz Augusto diferentes regiões
Campos e de São Paulo
Emerson abrem as portas
Januária para visitação
Ferreira Rocha
Cristina pela memória
refletem sobre
Alves patrimonial
a desigualdade
racial no mercado da capital
de trabalho
brasileiro
Dirceu Neto (Encontros); Ilustração de Ju Vicentis (Inéditos); Instituto Casa Vilanova Artigas/Foto: Drausio Tuzzolo (Almanaque).
depoimento
almanaque David Carlo
Yauri
Caman
encontros
em pauta
inéditos
P.S.
Cataventos
A trajetória ímpar de Hermínio Bello de Carvalho gera este
Cataventos, álbum que reúne novos e velhos companheiros para
entoar 15 canções, sendo 13 delas inéditas, celebrando a longevidade
e inquietude do poeta, figura incontornável da música brasileira.
Com participações de Maria Bethânia, Joyce, Alaíde Costa,
Hermínio Bello de Carvalho Ayrton Montarroyos, Gabi Buarque e estelar elenco.
DISPONÍVEL
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sescsp.org.br/loja
/selosesc
em cena
Matheus José Maria
9 | e
21 a 30 de julho
sescsp.org.br/vem
DOSSIÊ
A cidade
está artista
São José do Rio Preto
(SP) recebe mais
uma edição do FIT –
Festival Internacional
de Teatro, com 30
espetáculos nacionais
e internacionais que
celebram a produção
cênica contemporânea
Na abertura do FIT, dia 20/7, o Grupo Galpão (MG) apresenta o
espetáculo De Tempo Somos, na Represa Municipal.
D
e 20 a 29 de julho, diversos diferentes preferências criativas de programação composta por 30
artistas e companhias teatrais encontram-se com públicos espetáculos, representados por
ocupam a cidade de São José igualmente diversos." Para além Argentina, Brasil, Portugal e Reino
do Rio Preto (SP), no noroeste disso, segue Freire, “é muito rico Unido. Na abertura, dia 20/7, às 20h,
paulista, para celebrar a edição o modo como a cidade, em seus será apresentado, no Anfiteatro
2023 do FIT Rio Preto - Festival equipamentos públicos, praças, Nelson Castro, na Represa Municipal
Internacional de Teatro. O evento, ruas e nas instalações do Sesc, da cidade, o espetáculo De Tempo
com 54 anos de história, é um dos mobiliza-se para receber artistas Somos, do Grupo Galpão (MG).
mais antigos festivais de artes e promover o acesso das pessoas
cênicas do país, proporcionando a uma programação sempre Confira a programação
um espaço de discussão e reflexão inovadora e dinâmica”, completa. completa: fitriopreto.com.br
sobre esta linguagem artística,
com uma programação que reúne Pedro Ganga, secretário de cultura
espetáculos e atividades formativas da cidade e também coordenador
voltadas à democratização da geral do festival, defende o FIT
“É muito rico o modo
produção, acesso e fruição cultural. como um espaço de resistência. como a cidade, em
“Assim como outros festivais de seus equipamentos
Correalizado pela Prefeitura de teatro, o FIT é exemplo da força
São José do Rio Preto, por meio da da escuta na cultura e na arte. públicos, praças, ruas e
Secretaria Municipal de Cultura, É vitrine para o cenário teatral, nas instalações do Sesc,
e pelo Sesc São Paulo, o FIT é, reunindo produções variadas de
mobiliza-se para receber
segundo Thiago Freire, gerente do diferentes países e regiões, que
Sesc Rio Preto e coordenador geral permite a troca de experiências artistas e promover o
do festival, um marco para a cidade. entre artistas e público.” acesso das pessoas a uma
“É muito significativo para um
município do interior de São Paulo A curadoria, composta por
programação sempre
se colocar como ponto de encontro, Fernanda Julia Onisajé (BA), inovadora e dinâmica"
Guto Muniz
uma espécie de encruzilhada onde Fernando Yamamoto (RN) e Tommy Thiago Freire, gerente do Sesc Rio
criadores com diversas origens e Della Pietra (SP), propôs uma grade Preto e coordenador geral do FIT
11 | e
DOSSIÊ
Caricatura do poeta e
produtor musical Hermínio
Bello de Carvalho feita pelo
artista Eduardo Baptistão.
PERFIS CARICATOS
Durante A Feira do Livro,
realizada em junho deste ano,
em São Paulo (SP), as Edições
Sesc São Paulo lançaram a
publicação Passageiro de
relâmpagos: crônicas friccionais e
perfis inexatos, um compilado de
textos, em sua maioria inéditos,
do compositor, poeta e produtor
musical Hermínio Bello de
Carvalho, que celebra mais de 70
anos de carreira. Organizado pela
cantora Joyce Moreno e ilustrado
por caricaturas assinadas por
Eduardo Baptistão, o livro traz
à tona as memórias do autor,
a maioria traçando perfis de
artistas que conviveram e
trabalharam com ele,
como Cartola (1908-1980),
Pixinguinha (1897-1973),
Paulinho da Viola e Dona Ivone
Lara (1922-2018). Conheça
em: sescsp.org.br/edicoes
e | 12
DOSSIÊ
Sobe o som
Um convite para ouvir,
aprender e fazer música de
forma livre, descomplicada e
divertida. Neste mês, o Sesc
São Paulo realiza o VEM –
Venha Experimentar Música,
que entre os dias 21 e
30/7, oferece 70 atividades
gratuitas, entre vivências,
audições, apresentações
e cursos, para imersão
musical e experimentação
em técnicas, sons e
O advogado, filósofo e atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania
melodias. Seis unidades – do Brasil, Silvio Almeida, é um dos entrevistados do documentário
Consolação, Guarulhos, Vila Nossa pátria está onde somos amados, em exibição no SescTV.
Mariana, Santos, Jundiaí
e Rio Preto – recebem,
entre outros destaques, OUTRAS PÁTRIAS palavras que nos unem e nos
uma masterclass com afastam, e como somos formados
Paulo Santos, uma vivência Obra mais recente do diretor Felipe por uma variedade de pátrias.
com o grupo Mawaca, Hirsch, o longa-metragem Nossa O documentário, que conta com
um curso de construção pátria está onde somos amados entrevistas que criam uma narrativa
de miniamplificador (2022) é exibido pelo SescTV a composta pela multiplicidade de
para guitarra e uma partir deste mês. Gravado no origens, ideias e culturas, traz a
oficina de canções Museu da Língua Portuguesa, na complexidade da língua portuguesa
de bordar. Participe: capital paulista, durante uma série em um momento singular do
sescsp.org.br/vem de eventos em celebração ao Dia país. Estreia 29/7, sábado, às
Internacional da Língua Portuguesa, 22h, no SescTV e sob demanda
o filme é um ensaio sobre as em: sesctv.org.br/nossapatria
Rafael Munduruca (Vamos passear?); Reprodução (Outras pátrias)
13 | e
FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA
Ricardo Ferreira
Pessoas que trabalham PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
ou se aposentaram em
empresas do comércio Para fazer ou renovar a Credencial Sobre a Credencial Plena:
de bens, serviços ou Plena de maneira online e • É gratuita
de onde estiver, baixe o app • Tem validade de até dois anos
turismo podem fazer Credencial Sesc SP ou acesse • Pode ser utilizada
gratuitamente a centralrelacionamento.sescsp. nas Unidades do Sesc
Credencial Plena do Sesc org.br. Se preferir, nesses mesmos em todo o Brasil
locais é possível agendar horário • Prioriza os acessos às
e ter acesso a muitos para ir presencialmente a uma atividades do Sesc
benefícios. São aceitos das Unidades (compareça com a • Oferece descontos nas
documentação necessária). atividades e serviços pagos
registro em carteira
profissional (com A Credencial Plena é o acesso para
contrato de trabalho trabalhadores e dependentes ao
uso dos serviços e programações
ativo ou suspenso), nas Unidades do Sesc.
contrato de trabalho
temporário, termo
de estágio e de jovem Acesse a matéria Faça a sua Credencial
aprendiz, e pessoas Tudo o que Plena online!
você precisa Baixe o app Credencial
desempregadas dessas saber sobre Sesc SP ou acesse
a Credencial centralrelacionamento.
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e | 14
À luz
da palavra
Poeta e agitador cultural
Sérgio Vaz ilumina as
periferias paulistanas com a
chama da expressão literária
POR LUCAS ROLFSEN FOTOS ADRIANA VICHI
I
magine alguém que trabalha muito e só quer
chegar em casa e abrir um livro, fazendo da
literatura e da poesia um porto seguro de alegria,
tristeza e boas histórias. É isso que Sérgio Vaz
vem almejando ao longo de mais de trinta anos de
escrita, compartilhados em diversos livros publicados,
entre eles Literatura, Pão e Poesia (Global Editora,
2011): apresentar novos mundos aos leitores e ajudar
as pessoas a desenvolverem o gosto pelas palavras.
17 | e
entrevista
e | 18
entrevista
Era o lugar da escrita esse espaço Paulo Freire (1921-1997): denunciando e anunciando.
onde você se sentia seguro? Ora com uma pedra na mão, ora com um sorriso no
Desde cedo, as palavras atravessam a minha humanidade. rosto, minha poesia fala de amor ou de protesto.
Lia um livro como quem lê uma carta de amor, e cada vez
que eu saía dele, saía diferente. Tinha mais vontade de Qual foi o momento em que você entendeu:
viver, achava mais graça nas coisas, tinha menos medo “Estou no caminho certo e consegui o
da rua, menos medo de mim. Minha mãe se separou reconhecimento do meu trabalho como
do meu pai muito cedo, foi embora, e cresci sem mãe. escritor” e, a partir daí, mais pessoas
A maioria dos jovens cresce sem pai. Pude resolver começaram a olhar para você?
vários problemas que tinha através dos livros. Puxa, nunca tinha pensado nisso. Acho que ninguém
nunca olhou, e quando olhou nem percebi [risos]. Diria
A partir de que momento você [Paulo] Leminski (1944-1989): “Distraídos venceremos”.
passou a se ver como autor? Acho que quando comecei a vender livro em porta de bar
Na minha juventude, até 1981, mais ou menos, eu gostava de é que notei. Ia para a boemia do Bixiga, à noite. Levava
ir às domingueiras e ouvir Marvin Gaye (1939-1984), Betty meus livros e ficava abordando as pessoas. Achava
Wright (1953-2020), Jimmy “Bo” Horne. Fui servir o exército bonito me reconhecerem como poeta, mesmo ninguém
em 1983 e comecei a pegar gosto pela Música Popular comprando meu livro, mesmo ninguém gostando.
Brasileira: Chico [Buarque], Caetano [Veloso], [Gilberto]
Gil, Nana Caymmi, e vi que tinha tudo a ver com literatura. Você é reconhecido por derrubar barreiras
Comecei a analisar as letras e a querer ser poeta. Tinha um com a literatura periférica. Acha que
grupo de música no meu bairro, e eles diziam: “Sérgio, você ainda enfrenta algum tipo de resistência
não pode participar porque você não canta nem toca, mas e que ainda há muito pelo que lutar?
leva jeito para escrever as letras”. Ao ouvir música popular Tem muito pelo que lutar. O Brasil é um país racista,
e ler as letras do Milton [Nascimento], ouvi falar do poeta que tem preconceito linguístico e de classe. Ainda não
Pablo Neruda (1904-1973). Vi que a poesia dele falava sobre somos considerados escritores, as pessoas nos toleram,
libertar um povo, lutar contra a ditadura. Falava de amor, mas não nos respeitam. A academia finge que a gente
mas também tinha essa pegada. Fiquei imaginando: nossa, não existe, tanto é que os saraus aconteceram de uma
então, eu posso escrever sobre isso. Eu tinha a ideia de que forma que ninguém se importou, por isso que cresceram.
o poeta era aquele cara “viajandão”. Me identifiquei muito. Quando foram ver, não dava para cooptar, porque já
estava todo mundo fazendo. Hoje está cheio de saraus,
Quais sentimentos emergem de você quando de slams, batalhas de rimas. Basta ir a uma livraria
olha para o mundo e começa a fazer poesia? e ver a quantidade de livros de literatura periférica,
Achava que o mundo era injusto comigo e com as de literatura negra. Quais são as editoras que editam
pessoas que estavam ao meu redor: minha família nossos livros, quais são as feiras de livros e as bienais
e meus amigos. De alguma forma, tentei escrever o que nos convidam para participar? Então, tem muito
mundo do jeito que gostaria que ele fosse. Como diria ainda o que vencer. Mas, se tem uma coisa que a gente
19 | e
entrevista
[com a Cooperifa] fez, foi ter criado o nosso próprio eu entendia direito. E quando terminei, falei: é sobre
público. A gente fomentou a literatura na periferia, isso que quero escrever. Me lembro também de ler
ou seja, não dependemos só da classe média ou da Capitães de Areia [1937], do Jorge Amado (1912-2001).
academia para impulsionar a nossa literatura. O grande livro da minha vida é Os Miseráveis [1862],
de Victor Hugo (1802-1885). Tem também Um defeito
Você já mencionou que escreve a sua poesia de cor [2006], de Ana Maria Gonçalves, Dom Quixote
para as pessoas e a partir do lugar em que [1605], do escritor espanhol Miguel de Cervantes
elas vivem. Como é seu processo criativo? (1547-1616), Pablo Neruda. Hoje, uma grande referência
O que eu mais gosto é de observar como as pessoas como poeta é Carlos de Assumpção, Solano Trindade
se movimentam, como se olham, trabalham, jogam (1908-1974), Alice Walker, Toni Morrison (1931-2019).
futebol de várzea, como se comportam no fluxo,
no samba. Se tem uma coisa que admiro, e aprendi Qual a importância do Sarau da Cooperifa
na poesia, é observar. Tento, de alguma forma, como espaço de troca de experiências?
transformar a minha quebrada em algo que tenha É quando a poesia desce do pedestal e beija os pés da
poesia, que talvez no dia a dia não seja tão poético, comunidade. O importante do Sarau da Cooperifa é
mas enxergar uma outra periferia, uma periferia dessacralizar a literatura: sagrado não é quem escreve,
possível. Dentro do ônibus, fico pensando: será que é quem lê. Provar que o povo gosta de literatura, só
a pessoa sabe por que ela ganha um salário-mínimo? não sabe que gosta. No sarau, o poeta faz a gentileza
Será que ela sabe por que pega ônibus lotado? Por que de ler e a comunidade faz a gentileza de ouvir. E
ela mora na favela e nessas condições insalubres? nessa troca de gentilezas, entra a literatura.
Para retratar o cotidiano das pessoas, quais Atualmente, você tem visto novos escritores
foram as suas referências na literatura? surgirem a partir do Sarau da Cooperifa? E
A grande referência é Carolina [Maria] de Jesus como é essa troca com a nova geração?
(1914-1977). Quando li Quarto de Despejo [publicado em Quando você cria uma cena, desperta nas pessoas o desejo
1960], não imaginei que poderia escrever daquele jeito. de escrever e de publicar, é porque já tem alguém que lê.
Foi uma ruptura, porque estava querendo escrever A gente veio na frente capinando o mato. Olhar para trás
como intelectual, mesmo sendo analfabeto: o conflito [e ver que] as pessoas estão seguindo no mesmo caminho,
era que tinha de terminar de escrever algo que nem é como se a gente deixasse um despacho. O que é o
21 | e
entrevista
despacho? Uma vela para espantar os bichos, uma cachaça Você circula por toda a cidade de São
para suportar a caminhada e um rango para suportar o Paulo. Já aconteceu de encontrar frases
caminho até o quilombo. Uma poeta chamada Maria Teresa anônimas e ficar com elas na cabeça?
Pina fala que “quando você acende uma vela, a primeira Hoje vejo as pessoas tatuadas com poesias, com frases.
pessoa que se ilumina é você”. O Sarau da Cooperifa Muros grafitados com poemas. Eu olho e falo: valeu a
acendeu uma vela. No meio da escuridão da periferia, as pena lutar. Democratizar a palavra e a literatura é isso. As
pessoas nos encontraram e foram acendendo suas velas. pessoas não vão à livraria. E o livro não é caro, ele tem o seu
valor, mas para as pessoas é caro, porque o salário-mínimo
Tem-se percebido, recentemente, uma é pouco e as pessoas têm outras prioridades. O livro acaba
mobilização a partir das periferias e sobre as sendo uma coisa supérflua, mas que deveria fazer parte da
periferias como um lugar de potência mais do cesta básica. Quando vejo uma frase na rua, fico pensando:
que de carência, como por exemplo, na luta a gente precisa estar nas ruas falando do nosso trabalho.
antirracista. A que você atribui essa mudança O povo brasileiro precisa de poesia o tempo inteiro.
de perspectiva e atitude, e em que medida isso
impacta a produção literária nas periferias? Qual o principal motivo pelo qual você
Todo esse trabalho que várias pessoas fazem na seguirá escrevendo e lutando?
periferia ao longo do tempo explodiu. Não tinha Se a gente imaginar que a maioria das pessoas que moram
mais como esconder, tanto é que, nos últimos tempos, na periferia não gostam de literatura, é lá que eu tenho
os livros mais vendidos são de pessoas negras. Tem que estar e trabalhar. Vejo com esperança esse meu
Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, trabalho. Não fico pensando que é árduo. Já que ninguém
Salloma Salomão, Allan da Rosa, Elizandra Souza. quer ficar aqui e fazer isso, eu vou fazer [risos].
Quando se tocaram que nós fazemos parte do povo
brasileiro, falaram: "Precisamos correr para editar, Assista ao vídeo com
conhecer quem são". E o Brasil precisa nos ouvir trechos da entrevista
efetivamente. Não de uma forma exótica. Nós somos com o poeta e agitador
um povo que pensa. Tudo o que acontece no país tem a cultural Sérgio Vaz,
nossa força e o nosso suor, o nosso sangue e as nossas realizada no Sesc
lágrimas, e precisa ter o nosso sorriso também. Campo Limpo.
e | 22
Inscrições para
tratamento odontológico
de 19 a 26 de julho de 2023
na Central de Relacionamento Digital ou
pelo aplicativo Credencial Sesc SP.
Mais informações em
sescsp.org.br/odontologia
Natália Lopes
tecnologias e artes
CONHECIMENTO
adiante!
A arte de ensinar e aprender no
ofício de cinco artistas de diferentes
áreas, linguagens e origens
POR LUNA D’ALAMA
25 | e
tecnologias e artes
É
de nós, e em cada momento da vida”, defende a
professora. Sem hierarquias, o método da abordagem
triangular – proposta de ensino de arte para crianças,
comum ouvir que uma criança está sistematizada por Ana Mae há 30 anos – baseia-se em
“fazendo arte” ou que nos perguntem três eixos principais: a apreciação (leitura) das imagens,
se é preciso que “desenhem” quando a contextualização das obras e a produção artística.
não entendemos algo. Percebemos
nessas expressões uma conotação A arte-educadora acredita, ainda, no uso de espaços
pejorativa atribuída ao fazer artístico, diversificados para trabalhar as artes visuais, na
mesmo que seja inconsciente ou não reutilização de materiais e em diferentes meios e
intencional. Para a arte-educadora Ana formatos para olhar as imagens. Para além de escolas
Mae Barbosa, porém, a arte possibilita a e espaços institucionais de ensino, a arte pode ser
organização e a expressão mentais, pois, desenvolvida na educação não formal, que se faz
por meio de experiências com diferentes linguagens e presente em lugares de encontro, de convivência, e
técnicas, nos “contaminamos”, ou seja, abrimos nossos nos esforços de muitos profissionais que realizam
processos cognitivos e exercitamos a criatividade. projetos artísticos e ações socioeducativas.
Professora titular aposentada da Universidade de São Nas páginas a seguir, você vai conhecer cinco artistas,
Paulo (USP) e professora da Universidade Anhembi de diferentes áreas, origens e linguagens, que
Morumbi, Ana Mae gosta de citar a visão do poeta e compartilham aprendizados obtidos ao longo da
crítico de arte britânico Herbert Read (1893-1968), carreira. Quais inspirações e motivações os levam a
que acreditava na arte como um esforço humano para disseminar técnicas familiares e ancestrais? Neste
entrar em compasso com os ritmos constantes da vida. mês, eles integram a programação do FestA! – Festival
“Para mim, a arte teve diferentes significados ao longo de Aprender [Leia mais em Aprender é uma festa!],
do tempo. Já simbolizou encantamento e empatia. ação do Sesc São Paulo que oferece cursos, oficinas,
Hoje serve de consolo e proteção para que eu não me bate-papos, feiras, demonstrações e vivências no
sinta vítima da vida”, conta a arte-educadora, que se universo das artes visuais e das tecnologias.
e | 26
A madeira é a matéria-prima escolhida pelo artista visual Taygoara Schiavinoto para a criação de suas esculturas.
27 | e
tecnologias e artes
REFERÊNCIA CAIÇARA
Cida Ivanov
cerâmica
CONSIGO MENSURAR
Em 2001, Cida fez um curso de cerâmica em que
conheceu a professora Adélia Barsotti. “Foi naquele
momento, vendo aquela senhora forte, que decidi
A IMPORTÂNCIA
assumir a responsabilidade de multiplicar esse
saber-fazer caiçara, imerso em histórias indígenas
e afro-brasileiras”, conta a artista, que também
HISTÓRICA E
encontrou na manipulação do barro uma prática
terapêutica. A partir daquele momento, Cida
mergulhou no universo da cerâmica utilitária da
CULTURAL DO
região, para compreender a importância dessa
técnica. Descobriu que, no século 19, utensílios
feitos no local eram enviados em canoas para o
MEU TRABALHO.
Rio de Janeiro e para o Porto de Santos, a fim de
abastecer a Coroa portuguesa. Além disso, serviam
de moeda de troca com moradores de Ilhabela (SP).
CONSTRUÇÃO COMO
Perpetuar e multiplicar esse conhecimento é parte
da minha construção como ser humano”, conta Cida,
que desde 2005 também desenvolve oficinas em
SER HUMANO
escolas municipais e projetos na área de saúde mental,
em Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e na
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae)
da cidade. Entre 11 e 14/7, ela ministra uma oficina e
Mestra Cida Ivanov, ceramista um curso de cerâmica identitária no Sesc Bertioga.
e | 28
Halsey Madeira
Vinda de uma família de italianos e russos, a mestra ceramista Cida Ivanov fez um curso
de cerâmica em 2001 e decidiu multiplicar esse saber-fazer caiçara.
Natália Lopes
“O espírito toca a flauta e a flauta toca o espírito. Sou um guardião das flautas nativas.”.
Para o artista Pedro Karaí Ruvixa, a música é uma ferramenta de conexão com o sagrado.
POVOS ORIGINÁRIOS e tambor. Autodidata, ele conta que foi inspirado por
sua ancestralidade: “O espírito toca a flauta e a flauta
Pedro Karaí Ruvixa toca o espírito. Sou um guardião das flautas nativas.”
música
Após passar a adolescência ouvindo esse instrumento
Artista indígena das etnias Xucuru-Kariri, de de sopro, Ruvixa começou a tocá-lo em 2017, quando
Palmeira dos Índios (AL), Pedro Karaí Ruvixa se conheceu um luthier peruano em um festival de
dedica à musicoterapia nativa e à confecção de música. “Ele fez uma flauta para mim, inspirada
instrumentos sonoros como o maracá. Para ele, no modelo Siyotanka, usado pelo povo Lakota,
transmitir saberes ancestrais é uma maneira de originário da América do Norte. Segundo histórias
valorizar a cultura de seus povos. “Esse é um legado antigas, esse instrumento surgiu em um período
dos meus antepassados, que utilizam o maracá de muitas guerras e lutas dos povos nativos contra
há milênios, como uma ferramenta de conexão invasores, e veio para promover a paz”, destaca.
com o sagrado, a natureza e os astros. Passar esse
conhecimento adiante, portanto, é uma honra e O artista admite que gosta de meditar ao som da
uma forma de ser a continuação deles”, acredita. flauta. “Também busco levar bem-estar às pessoas
com a musicoterapia nativa, em vivências sensoriais
Ruvixa explica que o maracá é usado pelos coletivas.” De acordo com o músico, a vibração desses
Xucuru-Kariri e por outras etnias em rituais de cura sons ancestrais é capaz de promover a conexão
e de passagem, rezas, cantos, danças, lutas e até em consigo e com o ambiente. “São formas de reduzir o
brincadeiras infantis. “Faz parte das nossas tradições estresse e a ansiedade, ao menos por um instante,
e da nossa resistência”, resume. O artista também como um bom vento que sopra levando tudo o
toca diferentes tipos de flautas nativas, flauta doce que pesa e deixando boas sensações”, define.
e | 30
tecnologias e artes
Nascida numa família de artesãos, a designer de joias Cynthia Mariah começou criando acessórios para
uso próprio e logo passou a receber encomendas, pela originalidade de seu trabalho.
Agência Fotosite
O projeto educativo #Robopisca, de Allan Moreira, articula conceitos de eletrônica, solda e
robótica para que cada aluno monte e personalize sua própria criação.
e | 32
para ver no sesc / tecnologias e artes
33 | e
bio
sob o signo da
A
o subir ao palco da lendária terceira edição na vida”, observa a cantora e compositora Zélia Duncan.
do Festival de Música Popular Brasileira A intérprete — que assumiu os vocais de Os Mutantes
de 1967, Rita Lee (1947-2023) tinha um entre 2006 e 2008, no retorno do grupo — enaltece
pequeno coração desenhado na maçã os caminhos desbravados pela autora de clássicos
esquerda do rosto. A singela pintura, um como Ovelha Negra (1975) e Doce Vampiro (1979). “Rita
dos inúmeros traços de autenticidade visual da artista, foi sempre lutou pelas mulheres. Ela sempre foi uma luz,
uma ideia da própria Rita. Estava acompanhada pelo cantor uma liderança feminista da música, com seu jeito de
e compositor Gilberto Gil e os músicos Sérgio e Arnaldo compor, de se impor, sem nunca baixar a cabeça para
Baptista, os irmãos com quem ela formava, há cerca de nada. Chegou a ser presa, perseguida, censurada, e
um ano, o trio Os Mutantes. Sorridente e tocando pratos, nada segurou essa mulher”, complementa a cantora.
a jovem canalizou as atenções da plateia do antigo Teatro
Record, na região central da capital paulista. Enquanto
fazia os vocais de apoio da música de Gil, Domingo no A MARCA DA TRANSGRESSÃO
Parque, Rita Lee teve certeza: nascera para estar em
cena. De tão impactante, o festival está nas origens do Paulistana com orgulho, Rita Lee Jones de Carvalho era
movimento Tropicália e nas bases da moderna MPB. A descendente de norte-americanos e italianos. Cresceu em
ocasião seria para sempre lembrada, também, pela aparição um lar católico — afirmava que a mãe era “mais católica
desta estrela irrefreável, multifacetada e protagonista de que o Papa”. Fez aulas de piano e com as irmãs, Mary e
transformações musicais e de comportamento inestimáveis, Virgínia, gostava de encenar peças no porão do sobrado
que sonhava não com a fama, mas em ser imortal. da família na Vila Mariana, bairro da zona sul de São
Paulo. As três deram o nome de Las Hermanas Sisters
“Os Mutantes foram uma revolução, tanto que, até hoje, para o grupinho de teatro improvisado. “O script variava
causam muita comoção não só com o público, mas com conforme nossas reivindicações [...] Subíamos no palquinho
a classe artística — uma revolução eterna, sem fim. encenando As magrelas felizes, exigindo o fim de tomar
Para quem achava que aquela revolução só tinha a ver óleo de fígado de bacalhau todas as manhãs, quando o
com a química dela com Arnaldo e o Sérgio, Rita Lee foi Biotônico Fontoura era muito mais gostoso como ativador
mostrando, depois, o quanto ela era uma mutante na de apetite infantil”, recordou a artista no livro Rita Lee:
sua essência. Porque ela conseguiu mudar várias vezes uma autobiografia (Globo Livros, 2016). Adolescente, teve
e | 34
Sérgio Lima/Folhapress
Queria dar beijinhos e carinhos sem ter
fim nessa moçada e dizer a ela que a barra
é pesada mesmo, mas que a juventude
está a seu favor e, de repente, a maré de
tempestade muda, fazendo o barquinho
seguir até sua ilha deserta e ensolarada de
amor. Diria também para não planejarem
nada a tão longo prazo, que a frustração
pode assombrar; o que não significa não ter
sonhos, apenas que eles não caem do céu.
seu primeiro conjunto musical, as Teenage Singers, com "Vejo o trabalho como uma ruptura corajosa e problemática
colegas do bairro. Aos 19 anos, fundou Os Mutantes. A naquele momento. O que talvez ajude a explicar os
saída do grupo, em 1972, foi polêmica — a intérprete problemas que surgem com a [gravadora] Philips e a saída
era casada com Arnaldo Baptista e a separação do da empresa. Olhando em retrospectiva, foi o caminho
casal motivou, também, o rompimento musical. que permitiu a Rita abordar um público mais amplo,
embora me pareça complicado afirmar hoje, diante do
O episódio foi narrado em Rita Lee: uma autobiografia sucesso obtido pelo álbum Fruto Proibido (Som Livre, 1975),
com a prosa profundamente franca e irreverente típica que o trabalho buscava o sucesso comercial”, afirma o
da cantora. “Minha saída do grupo aconteceu bem nos docente. Segundo Vicente, não resta dúvida de que Fruto
moldes de 'o noivo é o último a saber', no caso, a noiva. Proibido rompe a barreira do público tradicional da MPB
Depois de passar o dia fora, chego ao ensaio e me deparo ao levar um discurso poético e musical bem diferente
com um clima tenso/denso. Era um tal de um desviar a do “tradicional romântico” a um público jovem que,
cara pra lá, o outro olhar para o teto, firular instrumento certamente, era bem distinto daquele que frequentou os
e coisa e tal. Até que Arnaldo quebra o gelo, toma a festivais da canção da década anterior. “Finalmente, foi o
palavra e me comunica, não nessas palavras, mas o grande momento de afirmação de um rock nacional que,
sentido era o mesmo, que naquele velório o defunto naquele momento, limitava-se em termos de artistas de
era eu. 'A gente resolveu que a partir de agora você está maior projeção, além de Rita & Tutti Frutti, Raul Seixas
fora dos Mutantes porque nós resolvemos seguir na (1945-1989) e, ocasionalmente, Erasmo Carlos (1941-2022).
linha progressiva-virtuosa e você não tem calibre como Ou seja, foram os nomes que mantiveram a chama acesa
instrumentista.' Uma escarrada na cara seria menos antes da grande onda roqueira dos anos 1980”, esmiúça.
humilhante. Em vez de me atirar de joelhos chorando e
pedindo perdão por ter nascido mulher, fiz a silenciosa
elegante. Me retirei da sala em clima dramático, fiz a BELEZA E PROVOCAÇÃO
mala, peguei a Danny (a cachorra) e adiós. No meio da
estradinha da Cantareira, parei no acostamento e chorei, Com o fim do Tutti Frutti, em 1978, Rita Lee mergulhou
gritei, descabelei, xinguei feito louca abraçada a Danny, na parceria musical com o multi-instrumentalista e
que colaborava com uivos e latidos”, relatou na publicação. compositor Roberto de Carvalho — os artistas estavam
casados desde 1976 e assim permaneceram até a morte
da cantora, no dia 8 de maio deste ano, em consequência
EXPLOSÕES SONORAS de um câncer pulmonar. Tiveram três filhos: Beto, João e
Antônio. Juntos, Rita e Roberto atingiram ápices criativos
Antes de deixar Os Mutantes, Rita Lee lançou o icônico que resultaram em diversos sucessos, entre os quais Mania
Build Up (1970), seu primeiro álbum solo. Em 1972, gravou de Você (1979), Baila Comigo (1980), Cor de Rosa Choque
o disco Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida. Já em (1982), Desculpe o Auê (1982) e Pega Rapaz (1987). Ao longo
1973, formou com a cantora, compositora e guitarrista da carreira, a artista emplacou mais de 70 canções em
Lúcia Turnbull a dupla de folk rock As Cilibrinas do trilhas sonoras de novelas da TV Globo. “Todas as épocas da
Éden. No mesmo ano, Rita Lee montou a banda Tutti Rita são incríveis, cheias de ousadias, inovações e sempre
Frutti — um fenômeno comercial e artístico que segue apontando caminhos iluminados para a gente. Mas, a
influenciando gerações. “O período mais importante, fase dela com o Roberto de Carvalho é a minha preferida:
ao menos em termos de consolidação de um caminho, cada música mais linda que a outra, com letras, melodias e
foi aquele com a banda Tutti Frutti. Em primeiro lugar, arranjos sensacionais. Fizeram juntos verdadeiras obras-
por ter sido um claro momento de ruptura com a -primas”, defende a cantora e compositora Marina Lima.
tradição da MPB, que permitiu o desenvolvimento de
um trabalho menos preso aos paradigmas de um certo O período de intensa popularidade foi marcado, também,
bom-mocismo, de um certo 'bom gosto universitário' pela censura. As músicas Papai me Empresta o Carro (1979)
e das pretensões nacionalistas daquela produção. Não e Lança Perfume (1980), por exemplo, foram classificadas
se trata aqui de menosprezar a MPB, mas de apontar como impróprias pela Divisão de Censura em Diversões
para os evidentes sinais de esgotamento que o gênero Públicas da época. A cada veto, Rita e Roberto dobravam
apresentava na segunda metade dos anos 1970, momento a aposta com letras que exaltavam o amor que viviam, o
de florescimento do trabalho de Rita Lee & Tutti Frutti”, corpo e a sexualidade, sem timidez. “O recurso básico do
revela o professor e pesquisador Eduardo Vicente. conservadorismo político e econômico é tradicionalmente
37 | e
Arte feita pelos artistas plásticos Paulo Terra, Pedro Terra e Eraldo Moura em muro na Rua Domingos
de Morais, no bairro da Vila Mariana, zona sul de São Paulo, onde viveu Rita Lee.
o de se aproximar do conservadorismo moral. Isso era tão “Eu fiquei empolgada, nervosa também, com medo de
presente na ditadura cívico-militar de 1964-1985 como dar bola fora ou parecer — parecer o quê? Tivemos uns
ainda é nas manifestações mais evidentes da extrema encontros ao vivo, na Companhia das Letras, e percebi
direita atual. Assim, o enfrentamento à ditadura de 1964 com muita clareza que se tratava de alguém próxima, ou
não se dava somente no campo político, já que a estrutura aproximabilíssima. O jeito dela de tocar nos assuntos,
repressiva se estendia à moral sexual, relações familiares, como se já tivéssemos falado daquilo mil vezes, foi de uma
papel da mulher na sociedade, homossexualidade etc. De beleza para o que eu tinha a fazer”, lembra a cartunista.
modo que, também nesse campo, era preciso enfrentar
o aparato repressivo de Estado, Igreja e Família”, A cantora e compositora Anelis Assumpção, por sua vez,
detalha o professor Eduardo Vicente. “Os inúmeros exalta o legado deixado pela cantora para as mulheres
problemas enfrentados por Rita em relação à censura artistas de antes, de agora e as que virão. “Rita nos esclarece
e às autoridades policiais atestam as dimensões desse a coragem de sermos com nossas vozes pequenas, imensas
confronto, e o perigo que o poder conservador reconheceu ou medianas. Nos encoraja na escrita, na performance, na
no discurso e no exemplo da artista”, acrescenta. postura política, ambiental, social. Na busca por liberdade de
expressão de corpos e ideais sexuais, de relação, de prazer,
de desejos e de outros encontros. Ela rompe muitas bolhas e
MUITAS EM UMA isso só potencializa um campo tão criativo, onde mulheres
são capazes, mas sofrem o desestímulo do mercado, sempre
O legado da cantora se estendeu para além da música engessadas em formatos rasos. Rita Lee nos liberta.”
— Rita Lee foi uma dedicada ativista da causa animal e
do estilo de vida vegano. Explorou as artes plásticas, foi Opinião semelhante à da cantora, compositora e
apresentadora de programa de entrevistas, atuou em empresária Paula Lima. “Acredito que o recado [de
teatro, cinema e televisão e é autora de seis livros infantis, Rita Lee] seja: ser, estar, viver. Aconteça, resista, lute
duas autobiografias e o livro de microcontos Storynhas pelos desejos e pela liberdade. Ame. Seja amada. Tenha
(Companhia das Letras, 2013). A publicação — uma reunião amizade, cumplicidade, um pouco de loucura [ela insistia
de pequenas histórias postadas pela cantora em sua nos últimos discursos para que fosse realmente uma
Adriana Vichi
conta no Twitter — foi ilustrada pela cartunista Laerte loucura sadia]. Rita ultrapassou todas as expectativas e
Coutinho. Entre as memórias que guarda da época em viveu como acreditou. Fez uma vida, que é apenas uma,
que desenvolveram o trabalho juntas, Laerte recorda. valer muito a pena para ela, para os dela e para nós.”
e | 38
para ver no sesc / bio
Pouco tempo após o lançamento feliz”. E deixou escapar uma chega à 13ª edição oferecendo
do disco Rita Lee (1993), a artista travessura à la Rita Lee: andando uma experiência imersiva no
fez uma passagem marcante pela área verde do espaço, colheu bosque do Sesc Thermas de
pelo Sesc Interlagos, na zona sul flores escondida. “Peguei uns Presidente Prudente, no oeste
paulistana. Rita voltava-se, outra ‘geraniozinhos’ escondidos. Mas do Estado de São Paulo. O
vez, para o estilo que a consagrou, eu ganhei!”, falou, aos risos. evento pretende unir gerações
após um hiato de três anos sem por meio da música e celebrar
gravar e uma curta separação A partir de 13/7, Dia Mundial diversas vertentes do ritmo. Na
musical com Roberto de Carvalho. do Rock, os fãs da artista e de programação, shows musicais,
Em entrevista, antes do show, a outros expoentes do gênero bate-papos com artistas,
roqueira se definiu como “uma podem celebrar juntos o Festival oficinas, ateliês e ações lúdicas.
dinossaura em extinção, porém Sesc Thermas do Rock, que Confira alguns destaques:
THERMAS DE
PRESIDENTE PRUDENTE
Festival Sesc
Thermas do Rock
Dias 13, 14 e 15/7.
Sepultura
Dia 13/7, quinta, às 21h.
Black Pantera
Dia 14/7, sexta, às 20h30.
Fresno
Dia 14/7, sexta, às 22h.
Geleia de Roquepepê
Dia 15/7, sábado, às 20h30.
O festival Sesc Thermas do Rock, realizado na unidade de Presidente Prudente (SP), Saiba mais:
é retomado neste ano após interrupção durante a pandemia de Covid-19. sescsp.org.br/thermasdorock
39 | e
TRAÇOS DA
DIVERSIDADEIlustrações de autoria negra em livros
para as crianças inspiram outras
formas de ser e enxergar o mundo
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
e | 40
gráfica
Ilustração de
Rodrigo Andrade
para o livro Com que
penteado eu vou
(Melhoramentos,
2021), escrito por
Kiusam de Oliveira.
41 | e
Ilustração de Juliana Barbosa Pereira para o livro O Pequeno Príncipe Preto
(Nova Fronteira, 2020), escrito por Rodrigo França.
gráfica
E
m Moçambique, quando alguém deseja contar ludicidade, ancestralidade e comunitarismo. “A
uma história, diz, em voz alta: “Karingana ilustração negra apresenta outras possibilidades de
ua karingana!”. Essa frase, em ronga (uma ser e de existir, outras muitas, porque apresentam
das línguas originárias do país africano), é o quanto pessoas negras e suas culturas são plurais
utilizada pelo contador ao pedir licença para e, por isso, têm uma infinidade de narrativas e
narrar enredos que, a partir daquele momento, histórias potentes para contar. E isso é imenso para
passarão a habitar o corpo de cada ouvinte. Esse todos os leitores e leitoras”, complementa Luz.
processo ancestral de incorporação simbólica
também permeia as imagens que moram nas Assim descreve Josias Marinho Casadecaba, um
histórias contadas por um livro. Se as páginas são dos artistas presentes na exposição: “O lápis das
espaços de encontro, “um ilustrador carrega consigo ilustradoras e dos ilustradores seria como um raio que
muita gente”, afirma a especialista em livros para ilumina o céu [e o texto], nos chamando a atenção
as infâncias Ananda Luz, cocuradora da exposição para ele, enquanto sua luminosidade nos permite
coletiva Karingana – Presenças negras no livro para ver detalhes de um ambiente. E com um pouco mais
as infâncias, que entra em cartaz em 15/7, no Sesc de atenção, podemos perceber detalhes naquele
Bom Retiro [Leia mais em Territórios Lúdicos], ambiente, naquela página. São camadas de percepção
reunindo 92 ilustrações de 50 artistas visuais que se misturam às cores, aos traços, àquelas texturas
negros dedicados à literatura para as infâncias. que dão vontade de passar o dedo para tentar sentir
um atrito”. Deste modo, a ilustração é um convite
Cada ilustração abraça diferentes técnicas, linguagens para crianças e adultos entrarem numa roda onde
e significados que, segundo Ananda Luz, foram o encantamento salta das páginas dos livros em
guiados pelos valores civilizatórios afro-brasileiros imagens de autoria negra, valorizando a diversidade
defendidos pela pensadora Azoilda Loretto da das situações, dos tons de pele, das vestimentas,
Trindade (1957-2015), tais como circularidade, das texturas dos cabelos e dos penteados.
43 | e
gráfica
e | 44
gráfica
Este espaço é reservado para a legenda da imagem. Este espaço é reservado para a legenda da imagem.
45 | e
Ilustração de Dalton Paula para
o livro O Jabuti não está nem aí
(Caixote, 2021), escrito por
Itamar Assumpção.
Ilustração de Bárbara Quintino para o livro Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me
chamar de Rainha Kambinda (Pequena Zahar, 2023), escrito por Sonia Rosa.
gráfica
e | 48
gráfica
Ilustração de Beatrice
Ramos para o livro
Luena Gaba (Revista África
e Africanidade, 2023),
escrito por Ricardo Jaheem.
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Ilustração de Bárbara
Quintino para o livro Menina
Nicinha (Leia Mulheres
Negras, 2021), escrito
por Evelyn Sacramento.
Ilustração de Flávia Carvalho para o livro
O Rei que assobiava (Passarinho, 2021), escrito por Heloisa Pires Lima.
para ver no sesc / gráfica
TERRITÓRIOS LÚDICOS
Exposição no Sesc Bom Retiro convida o público a
percorrer narrativas plurais, além de participar de
oficinas, bate-papos e contação de histórias
A exposição Karingana – Presenças sua “capacidade de materializar teatro, dança, música, exibições de
negras no livro para as infâncias, a diversidade de experiências, filmes, atividades físico-esportivas,
em cartaz a partir de 15/7, referências e subjetividades de ações formativas e bate-papos.
no Sesc Bom Retiro, reúne 92 seus criadores”. Ela destaca que
ilustrações assinadas por 50 houve uma “sensível ampliação do
artistas negros que se dedicam número de publicações de alguma BOM RETIRO
à literatura para as infâncias. A forma dedicadas a questões
visita pode ser feita num percurso étnico-raciais ou pautadas pela Karingana – Presenças
guiado pela circularidade, isto representatividade em sua autoria negras no livro para
é, a partir de qualquer uma das nos últimos 20 anos, também no as infâncias
entradas do espaço expositivo. contexto da Lei 10.639/2003, que Exposição coletiva com curadoria
A mostra convida, ainda, para tornou obrigatório o ensino da do Sesc Bom Retiro e Ananda Luz.
uma programação com oficinas, cultura africana e afro-brasileira De 15 de julho de 2023 a
cursos, bate-papos, mediação de nas escolas”, conta. 28 de janeiro de 2024.
leitura e contação de história. Terça a sexta, das 9h às 20h.
A exposição integra o Omodé: Sábados, das 10h às 20h.
Para Ana Luísa Sirota, gerente Festival Sesc de Arte e Cultura Domingos, das 10h às 18h.
adjunta do Sesc Bom Retiro, essa Negra para a Molecada, que celebra GRÁTIS.
produção deve ser evidenciada por as culturas afro-brasileiras com sescsp.org.br/omode
53 | e
mulheres que
COMUNICAM
No jornalismo
impresso, no rádio,
na TV ou na internet,
cresce a presença
feminina para
noticiar, apresentar,
comentar e
analisar o futebol
POR LUCIANE DE CASTRO
N
os últimos anos, tem-se
debatido de modo intensivo
a presença feminina no
mundo do futebol. De fato, se as
quatro décadas de vigência do
Decreto-Lei 3.199/1941 – que
proibiu, até 1979, a prática de
alguns esportes por mulheres,
entre os quais o futebol – protelou
a presença delas, essa realidade
vem mudando nas últimas
décadas. O crescimento é notado,
fundamentalmente, em campo,
Globo - Manoella Mello
CONHECIMENTO
COMO DIFERENCIAL
Para Luciana Mariano, pioneira na
narração de futebol em TV aberta, o
encontro com esse esporte demorou
a acontecer, já que não era um
tema presente na vida em família.
“Nós não falávamos de futebol em
casa. Então, não houve nenhuma
espécie de incentivo à prática”,
lembra. Foi seu interesse pela área
de comunicação que a aproximou
do universo esportivo. A narradora
conta que, aos 16 anos de idade, Em 2022, Ana Thaís Matos tornou-se a primeira mulher a comentar
recebeu o convite para fazer um um jogo do Brasil em Copa do Mundo na TV aberta.
teste na Rádio Difusora de Jundiaí,
no interior de São Paulo. “Comecei
exercendo a profissão, depois me Ao contrário de Luciana, a jornalista um grupo”, afirma a jornalista, que
especializei. Iniciei fazendo resumo Denise Thomaz Bastos vivenciou foi escalada pela Globo, emissora
de horóscopo e de novela. Poucos em família, desde a infância, a onde trabalha, para integrar a
meses depois, uma pessoa da paixão pelo esporte. “O amor pelo equipe de TV que fará a cobertura
Globo - Manoella Mello
equipe de esportes se ausentou futebol se deu por influência da da Copa do Mundo neste mês.
e fui convidada para cobri-la. Por minha mãe, minha avó e minha “Com meu pai, acompanhava
conhecer um pouco mais de futebol tia. A prática começou na rua e alguns jogos de várzea. Torcer em
do que a média das mulheres, fiquei foi o futebol e o esporte que me estádios virou uma paixão com
na equipe esportiva da rádio”, relata. fizeram encontrar meu lugar em uns 12 anos de idade. Minha tia
55 | e
esportes
Celina, já falecida, foi quem me A comentarista teve certeza de do público, por julgar que elas
fez ter amor pelos campos de que seguiria carreira no jornalismo não detêm o domínio sobre o
futebol. Quando entrei na Globo esportivo ainda durante a graduação, tema. Segundo Giovana Capucim
e conheci alguns jornalistas, quando também integrou o time e Silva, mestra em história social
pensei: ‘Quero fazer isso. Vai de futsal da faculdade: “As amigas pela Universidade de São Paulo
me deixar perto do futebol’”. do time que já atuavam na área me (USP) e pesquisadora do assunto,
convenceram. Ainda rolava dúvida o julgamento do futebol como
sobre qual área seguir, se política, espaço masculino foi construído
OLHO NO LANCE cultura ou esporte”. O interesse e a há décadas, mas, aos poucos, vem
experiência no futsal acabaram sendo sendo rompido. “Essa concepção
Se reportar, noticiar ou apresentar o diferencial que a levaram de vez ao se transforma, e mesmo que as
o resultado dos jogos de uma ofício. “Joguei futsal por 15 anos e, se mulheres sofram mais críticas do
Copa do Mundo já é tarefa das não estava jogando, estava torcendo que os homens, elas se mantêm
grandes, o que dizer da função e, mais tarde, trabalhando. Ou seja, nesses espaços. Suas presenças são
de comentarista, historicamente sou a soma da pequena torcedora, fundamentais e instigam a presença
associada à figura masculina? da jovem atleta e da eterna de mais mulheres daqui para o
Esse é o desafio que Ana Thaís apaixonada por futebol”, resume. futuro”, defende a autora do livro
Matos assumiu em sua carreira Mulheres Impedidas – A proibição
profissional, tornando-se a do futebol feminino na imprensa
primeira mulher a comentar ROMPENDO ESTIGMAS de São Paulo (Multifoco, 2017).
um jogo do Brasil em Copa do
Mundo em TV aberta. Sua voz e Ainda que a participação de A pesquisadora avalia que houve
rosto ficaram conhecidos pelos mulheres nas funções de uma mudança importante nesse
telespectadores em 2022, na comunicação no mundo esportivo cenário, especialmente a partir de
Copa do Mundo Masculina de esteja em pleno crescimento, 2015. “De lá para cá, temos um
Futebol, realizada no Catar. persiste a resistência de parte movimento de mulheres que já
e | 56
esportes
estavam narrando e comentando, mulheres e meninas que sempre “Queremos contar a história a
por exemplo, saindo dos espaços amaram o futebol e nunca tiveram partir do nosso ponto de vista,
alternativos e ocupando a grande espaço nos meios tradicionais de da nossa vivência, experiência,
mídia. Isso as coloca mais visíveis comunicação. Além disso, acredito diálogos e vocabulário. Como
ao grande público que consome que passamos a nos indagar o eu sempre digo, quem sabe o
futebol no país. E é importante porquê de não acompanharmos que é melhor para as mulheres
porque, mesmo aos poucos, estamos o mundial feminino como são as mulheres. Então, nosso
conseguindo romper com essa acompanhamos o mundial engajamento tem sido, e sempre
ideia de que o futebol é um espaço masculino”, analisa a narradora foi, fundamental para sedimentar
de reserva masculina”, reforça. de futebol Luciana Mariano. nossas conquistas”, aponta.
responsáveis por essa mobilização, ela, essa mudança traz novas O crescimento de interesse pela
através dos movimentos feministas. perspectivas para o universo antes modalidade passa também por
A rede permitiu e deu voz às tão masculinizado do esporte. sua divulgação”, finaliza.
57 | e
esportes / para ver no sesc
presença das mulheres nos lugares Esporte diverso - O futebol De 27/7 a 10/8, quintas, das
ocupados predominantemente pelos feminino no Brasil 19h30 às 21h30. GRÁTIS.
homens, para além dos campos”, Bate-papo virtual sobre o atual
afirma Carolina Seixas, gerente momento do futebol feminino e Saiba mais:
da Gerência de Desenvolvimento perspectivas para o futuro. Com sescsp.org.br/copanosesc
e | 58
Festival dedicado às crianças
com apresentações de teatro,
dança e música, exibições de
filmes, exposição, atividades
físico-esportivas, ações
formativas e bate-papos.
ATÉ 30 DE
AGOSTO DE 2023
SESC BOM RETIRO
sescsp.org.br/omode
desigualdades
NO MERCADO DE TRABALHO
N
o Brasil, a inserção – assim como a que as pessoas recebem, em função da raça, quando
ascensão – no mercado de trabalho competem por posições no mercado de trabalho”.
é desigual, dependendo de uma série Sendo assim, “combater essas formas de discrimi-
de fatores, como escolaridade, classe, nação, que existem e persistem à margem do que é
cor e gênero. A população negra, por publicamente declarado, assim como das normas e
exemplo, tem menor representatividade e reconhe- dos procedimentos formais, é um dos nossos gran-
cimento, como bons cargos e salários. Dados do IBGE des desafios para o futuro”, defende Rocha.
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apre-
sentados no ano passado, e que integram a segunda Para além do quadro de desigualdade racial, Luiz
edição do levantamento Desigualdades Sociais por Augusto Campos, que é professor de sociologia e
Cor ou Raça no Brasil, demonstram essa realidade. Em ciência política na Universidade do Estado do Rio
2021, mais da metade dos trabalhadores brasileiros de Janeiro (UERJ), destaca a necessidade de uma lei-
(53,8%) era formada por pretos e pardos, mas os dois tura ainda mais ampla, uma vez que o mercado de
em pauta
61
grupos, somados, ocupavam apenas 29,5% dos cargos trabalho pode ser considerado o principal espaço
gerenciais. E, entre aqueles que estão empregados, os de reprodução das desigualdades, e elas dificilmen-
brancos recebem um salário, aproximadamente, 74% te se reduzirão sem um compromisso das esferas
maior que o de trabalhadores pretos, e 68% acima da pública e privada. “Em todo o mundo, políticas de
quantia recebida por autodeclarados pardos. ação afirmativa baseadas em critérios de classe,
raça, gênero etc. são adotadas por empresas, algo
Segundo Emerson Ferreira Rocha, professor do ainda raro no Brasil”, ressalta Campos.
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade de Brasília (UnB), a desigualdade Neste Em Pauta, Rocha e Campos analisam as
racial no mercado de trabalho brasileiro pode múltiplas faces das desigualdades no mercado
ser explicada por dois fatores. “Os atributos e re- de trabalho brasileiro e apontam caminhos para
cursos adquiridos, dentre os quais podemos des- entendermos a complexa rede de desafios lançados
tacar a escolaridade; e o tratamento diferencial à sociedade.
Discriminação Há muitos estudos quantitativos sobre o tema, mas
as métricas utilizadas variam de acordo com o tipo
racial e desrespeito de informação e com a metodologia adotada em
cada pesquisa. Podemos, contudo, dizer que fatores
POR EMERSON FERREIRA ROCHA relacionados ao contexto social, como aqueles arro-
lados anteriormente, explicam pelo menos 50% das
diferenças educacionais entre os brasileiros. Um
dos resultados disso é que pessoas negras têm, em
média, menores níveis de escolaridade que pessoas
brancas. Especialmente, pessoas negras concluem
Quando discutimos discriminação racial, a grande com menor frequência um curso superior e, quan-
preocupação é sobre como o racismo afeta a vida das do concluem, tendem a estar concentradas em cur-
pessoas em sociedade. Um dos efeitos do racismo é a sos com menor prestígio econômico. Condições ini-
desigualdade, entre negros e brancos, na renda ob- ciais menos vantajosas e discriminação no próprio
tida pelo trabalho. Trabalhadores negros, nos mais ambiente escolar contribuem para esse cenário.
diferentes segmentos ocupacionais, de trabalhado-
res manuais a especialistas, auferem renda menor A política de cotas no ensino superior tem colabo-
se comparados aos trabalhadores brancos. Simplifi- rado para reverter esse quadro? A verdade é que
cando bastante as coisas, mas sem perder o que há existem ainda pouquíssimas pesquisas sobre a in-
de essencial sobre a desigualdade racial no mercado serção dos beneficiários das cotas raciais no mer-
de trabalho, podemos dizer que essa desigualdade é cado de trabalho. No entanto, sabemos de algumas
explicada por dois conjuntos de fatores: a) atributos coisas sobre os beneficiários das cotas raciais no
e recursos adquiridos, dentre os quais podemos des- ensino superior. Talvez a mais importante delas
em pauta tacar a escolaridade; e b) o tratamento diferencial seja que o desempenho acadêmico dos cotistas não
62 está abaixo do desempenho dos outros estudantes.
que as pessoas recebem, em função da raça, quando
competem por posições no mercado de trabalho. A Com as cotas raciais, portanto, mais pessoas negras
discriminação racial tem a ver com esses dois fato- estão ingressando no mercado de trabalho em con-
res, não apenas com o último. dições de competirem por melhores posições.
Primeiramente, quando falamos sobre atributos e A política de cotas, então, oferece o caminho defi-
recursos adquiridos, é preciso entender que as pes- nitivo para promover a equidade racial no mercado
soas não os adquirem estando isoladas de seu con- de trabalho? De fato, essa política combate as des-
texto social. Fiquemos com o exemplo da educação vantagens educacionais historicamente experi-
formal. Se uma pessoa vai ou não concluir o ensino mentadas pela população negra. Mas, o que dizer
médio, se ela vai ou não ingressar em um curso su- sobre o tratamento diferencial que as pessoas re-
perior, e qual curso superior ela vai fazer, depende cebem, no mercado de trabalho, em função da sua
muito dos recursos (materiais e imateriais) disponí- cor? Quando comparadas a pessoas brancas com
veis ou não em sua família, da localidade em que essa o mesmo nível de capital humano, pessoas negras
pessoa nasce e cresce, de diferenças de tratamento têm menor chance de ocupar boas posições e, quan-
em função do gênero, da cor da pele etc. Sabemos, do as ocupam, tendem a auferir menor renda. Isso
por exemplo, que crianças negras recebem menos vale, especialmente, para postos que envolvem o
atenção, menos cuidado afetivo e são menos estimu- exercício de autoridade, como funções de gerência
ladas no ambiente escolar. Características mais pes- ou comando. Diante disso, os pesquisadores che-
soais, como resiliência e talento, cumprem, sim, um gam a uma conclusão relativamente simples: se,
papel relevante. Mas a influência do contexto social com os mesmos atributos relevantes para o exercí-
é inescapável. Não é tarefa simples estipular o tama- cio de suas funções, pessoas negras são, em média,
nho dessa influência. menos premiadas, a discriminação racial afeta a
Se, com os mesmos atributos relevantes para o exercício de suas
funções, pessoas negras são, em média, menos premiadas, a
discriminação racial afeta a competição no mercado de trabalho
competição no mercado de trabalho. Há outras evi- ambiente de trabalho. Elas, então, respondiam o
dências que corroboram essa interpretação. quão frequentemente se viram em cada tipo de si-
tuação ao longo de suas vidas. A partir dessas res-
A esse propósito, realizamos entre 2019 e 2020, postas, construímos uma escala refletindo o quanto
uma pesquisa [Percepções Raciais no Distrito Fede- as pessoas sofreram desrespeito no ambiente de
ral, coordenada pelos professores Joaze Bernardi- trabalho. Num segundo momento, verificamos se a
no Costa, Bruna Cristina J. Pereira e Emerson Fer- pontuação das pessoas nessa escala de desrespeito
reira Rocha, da Universidade de Brasília] para saber estaria associada à cor delas. Deste modo, notamos
se pessoas negras são tratadas com menos respeito que pessoas negras, em média, sofrem mais desres-
em diferentes ambientes sociais, dentre os quais o peito no ambiente de trabalho do que pessoas bran-
local de trabalho. Não fizemos isso perguntando se cas. Isso se verifica mesmo quando comparamos ne-
elas sofrem racismo, ou se veem outras pessoas so- gros e brancos com o mesmo nível de escolaridade.
frerem. Os brasileiros, de maneira geral, elaboram Em outras palavras, se as pessoas negras sofrem,
respostas ambíguas, ou mesmo contraditórias, a em média, mais desrespeito, isso não parece se de-
esse tipo de questão. ver ao fato de estarem menos preparadas para exer-
cerem suas funções.
Isso tem a ver com um conjunto de ideias confusas,
em pauta
O resultado se mantém, ainda, quando comparamos
63
mas bastante difundidas, sobre o racismo. Talvez a
principal delas seja a de que, embora partilhemos negros e brancos cujos pais têm a mesma escolari-
certos estereótipos sobre as pessoas negras, que se dade. Dessa vez, o que verificamos é que a extração
expressam, por exemplo, em piadas e coisas do gê- social também não parece ser o que explica o maior
nero, não existe, de fato, racismo no Brasil, onde as desrespeito com as pessoas negras. Em resumo, é
pessoas negras seriam até estereotipadas, mas não evidente que existem diferenças de tratamento no
discriminadas. Outra ideia, semelhante, é a de que mercado de trabalho em função da cor das pessoas,
não existe racismo porque negros e brancos con- mesmo essas diferenças sendo formalmente veda-
vivem nos mais diversos espaços, inclusive consti- das. É evidente também que essas diferenças se dão
tuindo famílias. Essa ideia assume que a única for- em desvantagem das pessoas negras. Combater es-
ma de racismo existente é a separação total entre sas formas de discriminação que persistem à mar-
negros e brancos, o que não se sustenta diante dos gem do que é publicamente declarado, assim como
fatos. O racismo pode existir e existe nas diversas das normas e dos procedimentos formais, é um dos
interações entre as pessoas. O fato de pessoas ne- nossos grandes desafios.
gras e brancas interagirem entre si não significa
que o racismo não interfira nessas interações. Por
serem muito difundidas essas ideias, a maior parte
das pessoas tem dificuldade para identificar situa- Emerson Ferreira Rocha é professor no Progra-
ções de discriminação racial. Mesmo que as viven- ma de Pós-Graduação em Sociologia, coorde-
ciem. Mesmo que as vejam. nador pedagógico da licenciatura em ciências
sociais e presidente do Núcleo Docente Estrutu-
O que fizemos, na nossa pesquisa, foi perguntar às rante do Departamento de Sociologia, todos esses
pessoas sobre várias situações de desrespeito no da Universidade de Brasília (UnB).
O lugar das Desde o fim da década de 1970, diferentes estudos
vêm mostrando que pessoas pretas e pardas tendem
ações afirmativas a ter metade das chances de melhorar de vida do que
pessoas brancas. Isto é, mesmo se compararmos dois
POR LUIZ AUGUSTO CAMPOS indivíduos de uma mesma classe de origem, os pre-
tos e pardos têm, em média, 50% das chances de as-
cender dos brancos. Pesquisas mais recentes, porém,
sugerem que essas diferenças aumentam quanto
mais subimos na pirâmide social. Ao que parece, não
há uma grande diferença nas chances de melhorar
Já é lugar comum repetir que o Brasil é um dos paí- de vida entre brancos e negros das classes baixas.
ses mais desiguais do mundo. No entanto, esse cli- Porém, essa diferença cresce justamente no topo da
chê nos faz perder de vista a forma multifacetada pirâmide: uma pessoa negra de classe média enfren-
de nossas desigualdades e, sobretudo, a complexi- ta muito mais dificuldade de migrar para a classe alta
dade das políticas desenhadas para mitigá-las. Nou- do que um branco de classe média.
tros termos, o Brasil não apenas é um país profun-
damente desigual, mas também aquele onde mais Todas essas disparidades são atravessadas por
desigualdades se interseccionam de modos com- desigualdades de gênero. É curioso notar que mu-
plexos e, portanto, onde políticas redistributivas lheres possuem hoje em dia um nível educacional
demandam desenhos igualmente intrincados. médio superior ao dos homens. No entanto, elas
costumam receber piores salários para desem-
Por isso, não faz sentido questionar se a desigualda- penhar funções similares. Isso não quer dizer
de no Brasil é de classe, raça, gênero, religião etc. A apenas que empresas discriminam as mulheres
em pauta rigor, todas essas dimensões se interseccionam. Sa- deliberadamente, mas também que elas estão alo-
64 cadas em atividades subalternas dentro de uma
bemos que a classe social de origem é o fator prepon-
derante na determinação das chances de vida de um mesma profissão. Dentro da medicina, por exem-
indivíduo, isto é, a posição social da família onde nas- plo, homens são maioria nas especialidades mais
cemos vai pesar sobremaneira nas nossas chances de rentáveis, como neurologia, enquanto mulheres se
ascender ou decair socialmente, mesmo nos casos em concentram na clínica geral.
que indivíduos específicos têm acesso a uma maior
instrução, por exemplo. No entanto, a origem econô- Essas desigualdades se associam de um modo tão
mica não explica todos os obstáculos que uma pessoa imbricado, que é redutor separá-las em parágrafos
enfrentará no decorrer de sua trajetória. distintos. Mulheres negras, por exemplo, não ape-
Não existe uma forma simples de lidar com todas Por isso tudo, é preciso fazer com que a iniciativa
essas desigualdades juntas. Daí a importância da privada entenda a centralidade das ações afirma-
ideia de ação afirmativa, entendida aqui como um tivas em vigor, não apenas no setor público, mas
modo de fazer política pública que foque em mais sobretudo no mercado de trabalho mais amplo. Isso
de uma dimensão das desigualdades ao mesmo envolve não apenas um diagnóstico de como desi-
tempo. As políticas públicas redistributivas mais gualdades raciais, de classe e de gênero se manifes-
bem-sucedidas no Brasil são justamente aque- tam numa empresa específica, mas na incorporação
las mais sensíveis ao caráter multifacetado de de critérios afirmativos nas seleções e contratações
nossas desigualdades. realizadas. O mercado de trabalho é o principal es-
paço de reprodução das desigualdades brasileiras
O recém-recriado Programa Bolsa Família, por e, ao mesmo tempo, relativamente resistente a me-
exemplo, é visto como uma política de redução da didas desse tipo.
pobreza, mas ele considera também as desigualda-
em pauta
65
des de gênero e geração ao privilegiar as mulhe- Políticas afirmativas se aplicam hoje a diferentes
res como titulares do benefício e as crianças como espaços, dentre os quais o ensino superior, as elei-
objetos de grande parte das condicionalidades ções, as contratações do serviço público. No entan-
(frequência escolar, vacinação etc.). As políticas to, poucas medidas impactam o mercado de traba-
de cotas no ensino superior também possuem um lho, em parte porque suas dinâmicas escapam do
desenho multifacetado. Elas são, sobretudo, polí- controle governamental estrito, em parte pelo alto
ticas de classe, já que seu público prioritário são grau de informalidade que impera em seu interior.
estudantes de escola pública e baixa renda. Só den- Sem medidas de redução dessas desigualdades no
tro dessas cotas econômicas é que se aplicam cotas mercado de trabalho, nossas desigualdades não ape-
raciais, algo nem sempre visível no debate público. nas permanecerão imensas, como também seguirão
atingindo de modo desigual grupos distintos.
Ainda assim, as desigualdades brasileiras dificil-
mente se reduzirão sem um compromisso dos en-
tes privados. Em todo o mundo, políticas de ação
afirmativa baseadas em critérios de classe, raça, Luiz Augusto Campos é professor de sociologia
gênero etc. são adotadas por empresas, algo ainda e ciência política no Instituto de Estudos Sociais
raro no Brasil. As tão debatidas ações afirmativas e Políticos da Universidade do Estado do Rio de
nos Estados Unidos, por exemplo, são adotadas ba- Janeiro (IESP-UERJ) e coordenador do Grupo de
sicamente no mercado de trabalho privado. São as Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa
multinacionais, aliás, as suas maiores defensoras (Gemaa). É colunista do Nexo Jornal e autor de
judiciais. Na África do Sul, o governo adota ações publicações como Raça e eleições no Brasil (Zouk,
afirmativas, mas também premia empresas que te- 2020) e Ação afirmativa: conceito, debates e histó-
nham medidas de equidade para vários grupos. ria (EDUERJ, 2008).
leitura
CRÍTICA
Jornalista e escritora, Januária Cristina
Alves fala sobre a importância da educação
midiática na formação de leitores críticos,
éticos e cidadãos desde a infância
POR LUNA D’ALAMA
A
paixonada por ler, escrever um currículo de formação de personagens do folclore brasileiro,
e contar histórias, a professores em alfabetização obra finalista do Jabuti e
paulistana criada no interior midiática e informacional, foi referência para a criação da série
pernambucano Januária Cristina uma das primeiras pessoas a Cidade Invisível, da plataforma
Alves resolveu, aos 12 anos, mandar formar turmas no Brasil. de streaming Netflix. Neste
uma carta a um suplemento Encontros, Januária Cristina Alves
infantil de um jornal do Recife (PE). De volta à academia, Januária fala sobre educação midiática,
Foi incentivada pela mãe, que era obteve o título de mestre combate à desinformação
assinante do diário, a datilografar em comunicação social pela e os desafios apresentados
o texto à máquina. Em 15 dias, Universidade de São Paulo pelas tecnologias digitais.
sua história foi publicada, e logo (USP). Também escreveu mais
a garota se tornou colaboradora de 50 livros infantojuvenis, e já
regular do periódico. Foi quando recebeu dois prêmios Jabuti, EDUCAÇÃO MIDIÁTICA
decidiu que queria ser jornalista. um prêmio Abril de Jornalismo e
um Vladimir Herzog de Direitos A educação midiática nasceu como
Com o diploma, Januária trabalhou Humanos. Educomunicadora, alfabetização midiática. A Unesco
em veículos como Folha de S.Paulo, colunista do Nexo Jornal e até bem pouco tempo atrás a
O Estado de S. Paulo, Jornal da coapresentadora do podcast
Tarde e Diário do Grande ABC, Curti, e daí?, é ainda coautora de
além de revistas como Claudia Como não ser enganado pelas fake
e Superinteressante, ambas da news (Moderna, 2019) e assina
Editora Abril. Na Folha, ficou 13 o prefácio de Manifesto pela
anos colaborando na formação Educação Midiática (Edições Sesc
de professores. E, quando em São Paulo, 2022), do pesquisador
Para a educomunicadora Januária
2010, a Unesco (Organização das inglês David Buckingham. Pelas
Dirceu Neto
chamava de alfabetização midiática não sabe acessar uma informação ECOSSISTEMA INFORMACIONAL
e informacional. Em primeiro lugar, qualificada. Ainda não temos
temos um problema mundial, leitores críticos e competentes. Com o advento da internet,
em que metade da humanidade A educação midiática se propõe a mudou-se muito o ecossistema
está conectada e a outra metade, dar o acesso à informação, ensinar informacional. Lembro, quando
não. Ou seja, apenas metade da como as coisas funcionam e era pequena, que meus pais
população tem acesso às mídias propiciar uma leitura crítica, para gostavam de ler jornal e diziam:
impressas ou digitais. No Brasil, que as pessoas possam entender “Saiu no jornal, é verdade!”. O jornal
vimos esse problema com as o mundo, ter uma participação era uma instituição e a imprensa
crianças durante a pandemia de cidadã e compreender por que tinha credibilidade, porque se
Covid-19. A gente teve um atraso estão acessando, curtindo, esperava que as notícias fossem
muito grande e, entre outros compartilhando tal conteúdo. checadas e rechecadas. Não que
aspectos, houve falta de acesso a A preocupação da educação não tivessem erros, sempre houve,
celular e computador. Então, como midiática é formar não só um era um trabalho feito por humanos.
é que eles teriam aula online? Nós leitor crítico, mas alguém que Porém, a partir do momento em
temos uma geração que domina a produza, compartilhe e consuma que as redes sociais entraram
tecnologia, os aparelhos, mas ainda um conteúdo responsável. na nossa vida, qualquer pessoa
67 | e
encontros
tem acesso à informação e pode CHAMADO À RESPONSABILIDADE É um conceito tão amplo quanto
publicá-la. Brinco que somos todos complexo. A internet foi criada
“jornalistas”. Qualquer um que Hoje, a gente tem uma quantidade sob essa égide [da liberdade de
tem uma câmera, filma e posta, enorme de meios de informação. expressão], um lugar onde [na
e foi aí que começou o grande Aliás, é este o problema: fontes teoria] todos são iguais, têm o
imbróglio das fake news e de todas demais para qualidade de menos. mesmo direito de acessar, falar e
essas questões. Além disso, as Você pode fazer a sua página se expressar. Só que a realidade
plataformas estão envolvidas de rede social, mas tem que mostrou que não é bem assim.
até o pescoço nesses conteúdos, entender o algoritmo, onde a sua Inclusive, nas plataformas, essa
porque são elas que dizem o que mensagem está sendo veiculada, estrutura de poder é bastante
vai ou não para o ar. Então, a por que usar hashtag e para que evidente. Não vamos conseguir
gente precisa responsabilizá-las ela serve. É o que a gente chama avançar na definição de liberdade
também, pois não dá para se de transparência algorítmica. Além de expressão sem ter a lei do nosso
ter educação midiática sem a de produzir conteúdo, temos que lado. A gente tem no Brasil o Marco
colaboração das plataformas. São compreender o modo de produção Civil [da Internet], que é modelo
poucos os países que realmente e, principalmente, os interesses por para o mundo inteiro. Não estamos
tiveram sucesso nisso até hoje. Na trás de tudo isso. Por isso, todos desgovernados nem desamparados,
Finlândia, por exemplo, 98% da os atores envolvidos na educação só que temos visto um uso das redes
população não cai em fake news. midiática têm que ser chamados para fins que não são éticos nem
É uma coisa linda, mas eles têm à responsabilidade para combater cidadãos. Então, é preciso que isso
uma população que confia muito a desinformação. Não é à toa que seja regulado de alguma maneira.
nas suas instituições, no governo, países do mundo inteiro estão
na imprensa. Portanto, está muito batendo cabeça sobre como se
ligado a criar um ecossistema regulam as mídias, porque isso LONGUÍSSIMO PRAZO
informacional confiável. A gente toca numa questão muito delicada,
tem este desafio pela frente. que é a liberdade de expressão. O professor [inglês] David
Buckingham [autor do livro
Manifesto pela Educação Midiática
(Edições Sesc São Paulo, 2022)]
e | 68
encontros
uma epidemia de desinformação, o cinema, e está tudo aí, inclusive S.Paulo, eles ressuscitaram a
que literalmente matou pessoas. o jornal. Então, acho que a gente Folhinha num outro formato,
Não temos precedentes nem vai conviver com o ChatGPT e se dentro do jornal, que a meu
receita, mas não podemos desistir, adequar. Ele não precisou chegar ver não tem que separar [em
porque temos visto os danos que para acabar com profissões como suplemento], até para a criança
o uso inadequado desses sistemas a de taquígrafa [profissional capaz se habituar e conhecer toda
informacionais tem causado à de escrever em alta velocidade, essa arquitetura informacional,
saúde, à democracia, a todas as reproduzindo com abreviações como é que o jornal se organiza.
áreas. Então, precisamos agir. as palavras de um orador] ou Então, tem sido interessante
datilógrafa, por exemplo. As coisas ver como estão tratando as
vão evoluindo, é natural, e não acho matérias, acho que está muito
POLÍTICAS PÚBLICAS que isso deva ser motivo para a adequado. A gente tem também
gente se desesperar. O que vejo a revista Qualé?, para crianças do
Estamos todos imersos neste que o ChatGPT traz é a questão da [Ensino] Fundamental I, vendida
mundo mediatizado. [Isto é], pesquisa e da autoria. Essa é uma por assinatura – basicamente
conhecemos o que acontece ao geração que não suporta a dúvida para as escolas. Há o jornal Joca
nosso redor por meio do que a e, por isso, copia e cola o primeiro e algumas outras tentativas
mídia escolhe nos mostrar. Então, resultado do Google. Então, acho de se fazer jornal ou conteúdo
a gente precisa criar um repertório que a gente precisa recuperar uma jornalístico para crianças. Não é
leitor que faça com que a gente prática muito importante da escola, fácil, porque o conteúdo acaba
também selecione as informações que é a pesquisa. Ter uma hipótese, muito escolarizado. Mas, o texto
de que necessita. Porque a gente ir atrás, traçar um caminho. É algo jornalístico está nas diferentes
se informa para tomar decisões que a gente faz muito em trabalhos mídias, e é sempre possível
boas, úteis ou funcionais. E, se a acadêmicos, mas que, antigamente, conversar sobre qualquer assunto
gente não sabe que tipo de decisão se fazia na escola, até porque só com uma criança, desde que você
quer tomar, o que interessa, não havia enciclopédia. Existia uma vá construindo esse caminho
consegue ser um consumidor de alegria do conhecimento, um prazer de leitura com ela. Todas as
mídia consciente. Esse não é um da descoberta, o próprio exercício iniciativas são válidas, e acho
trabalho para um governo, mas para de construir perguntas, que se muito bacana essa leitura em
todos nós, para a sociedade. Deve perdeu neste imediatismo. Tem conjunto, tanto de livros como
ser uma política pública constante, também a questão da autoria, de de informativos, porque isso vai
consistente e a longo prazo, para você escrever, se expressar. Isso formando o repertório do leitor.
que isso se torne, de fato, parte máquina alguma vai fazer. Além
do nosso cotidiano. Se todo dia a disso, nossa juventude nunca
gente acorda, abre o celular ou o escreveu tanto, mas posta num
jornal para se informar, a gente tem determinado formato, com número
que começar a refletir sobre essa de caracteres [preestabelecido].
atitude. Somos seres que buscamos Até que ponto isso é criativo? Se
informação, mas informação não a gente seguir esse caminho, o
é conhecimento. Conhecimento é ChatGPT poderá ser usado de outra
aquela informação que é degustada, maneira, como uma referência, e
selecionada, e que tem utilidade. não como a única saída para a gente Ouça, em formato de
produzir textos e conhecimento. podcast, a conversa com a
educomunicadora e escritora
NOVAS TECNOLOGIAS Januária Cristina Alves, que
CONTEÚDOS INFANTIS esteve presente na reunião
Não sou futuróloga, mas acho que virtual do Conselho Editorial da
assim como tudo que é novo, a A gente sabe que tudo migrou Revista E, no dia 24 de maio de
gente já viu esse filme. O cinema muito para o digital. Os próprios 2023. A mediação é de Marina
iria acabar com o rádio, depois a jornais quase não têm mais edição Pereira, jornalista e editora de
televisão chegou para acabar com impressa. No caso da Folha de conteúdos digitais da Revista E.
69 | e
inéditos
MANIFESTA
POR SLAM DAS MINAS SP
ILUSTRAÇÕES JU VICENTIS
Quando a útera slam das minas me gestou
foram meses e meses
até nascer
me carregaram no colo
nutriram a minha escrita
até que eu finquei meus dois pés no mic e nasci
olhei em volta e me vi
cheia de histórias
poesia e memória
de cada vez que essa slam me foi casa
sou grata e carrego
cada feitiço que lançamos
no palco
no mundo
essa slam me fez
Escrevo enquanto voo
brotei com palavras Sustentando-me no fluxo constante
ainda que engasgadas das criativas amigas, parcerias
fui caminhando com elas e percebendo Que o mundo poesia
slam das minas é mundo Me deu
onde todes podem existir
Chorando enquanto vendo lenços
Por Ibu Helena me recordo do tempo
Em que escondia meus escritos,
Meus diários, meu eu
Sons e literatura
Distancio do ideal físico
Do senso estético, constante
Fuga
Minha voz rasga censuras
Minha escrita costura paz
faz as pazes com a vida
Fito-a com dignidade
Sensata e sagaz
Eu vou.
Livre e leve,
Carregando minha própria
bagagem
Aqui encontrei o lugar em que vale pertencer
Por Aflordescendente
71 | e
inéditos
e | 72
Força motriz que consta somos a Slam
das Minas, monas e monstres!
73 | e
NOS
CAMPOS
DE ROSI
Acostumada a
transitar entre os
palcos do teatro e
as telas do cinema
e da TV, atriz Rosi
Campos relembra
personagens
marcantes e
reflete sobre
suas experiências
artísticas
POR GUILHERME BARRETO
E LUNA D’ALAMA
F
oi com uma tia professora, britânico adaptado por Marcos porque estava sempre fazendo
chamada Bárbara, que a menina Caruso. Autodeclarada “gente como teatro em São Paulo aos finais de
Rosângela Campos teve seu a gente”, Rosi, que ficou famosa semana. O teatro cura, transforma,
primeiro contato com o teatro. Na como a Bruxa Morgana, no programa facilita a sua vida. Dá disciplina,
cidade de Santa Cruz das Palmeiras, Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997), formação, você se entende
interior paulista, a tia estendia e a Mamuska, na novela Da Cor do mais, transforma seu defeito em
lençóis no varal e convidava as Pecado (2004), diz que circula pela qualidade. O teatro acolhe todo
crianças da família a encenar capital paulista a pé ou de metrô, mundo. E você tem que ler muito,
histórias em frente à cenografia vai à feira e ao supermercado. Neste estudar línguas. Se vai fazer uma
improvisada. A atriz Rosi Campos Depoimento, Rosi – que estampou psicóloga ou uma advogada, tem que
levou a sério as brincadeiras e, a primeira capa da Revista E, em estudar psicologia ou direito. Mas,
hoje, coleciona décadas de vida julho de 1994 –, fala sobre as infelizmente, o teatro quase não faz
dedicadas ao palco, à televisão e ao aproximações e divergências das mais parte da vida das pessoas. O
cinema. Foi por meio da tela grande, linguagens artísticas, internet, público jovem gosta de stand-up, é
inclusive, que ela se apaixonou construção de personagens difícil pegar a moçada. Uma pesquisa
pela arte, enquanto estudava e reflete sobre as diferentes da Folha [de S.Paulo] mostrou que
jornalismo na Universidade de São gerações de artistas no Brasil. o teatro não é uma opção de lazer
Paulo (USP). Só não optou pelo hoje. Além disso, houve uma geração
curso de cinema porque, no auge linguagens de artistas que não vai existir mais:
da pornochanchada, não seria Acho que todas as linguagens Marília Pêra (1943-2015), Eva Todor
fácil convencer seu pai. Naquela artísticas têm suas particularidades, (1919-2017), Aracy Balabanian. A
época, Rosi ia ao Cine Bijou (hoje todas são difíceis. Porque gente teve o privilégio de vê-las
Cine Satyros Bijou), no centro a televisão é uma técnica em cena. Por outro lado, hoje em
de São Paulo (SP), quatro vezes completamente diferente do teatro, dia temos uma geração de musicais
por semana, e logo entrou em e o cinema também. Trabalhei mais que é incrível. Na nossa época,
grupos de teatro. Passou pelo no teatro e na TV, mas, por mim, a gente mal sabia cantar duas
Mambembe, Ornitorrinco e Circo faria cinema a vida inteira. Amo músicas e dar três passinhos.
Grafitti, nos quais consolidou tantos filmes. O Anjo Exterminador
técnicas para composição de (1962), A Bela da Tarde (1967), castelo
suas personagens: “Observava ambos do Luis Buñuel (1900-1983), Tive muita sorte porque acabei
muito. Às vezes, começo com uma Apocalipse Now (1979), do Francis pegando um dos maiores projetos
coisa física; em outras, com algo Ford Coppola, Encurralado da televisão brasileira, que é o
do figurino, da música”, conta. (1971), de Steven Spielberg... Eu, Castelo Rá-Tim-Bum, de uma
inclusive, fiz jornalismo porque qualidade incrível. Ele todo foi
Nascida em Bragança Paulista (SP) naquela época, 1974, só tinha feito com professores, com vários
e fã de atrizes como Bette Davis pornochanchada, então não dava especialistas. Os músicos eram
(1908-1989), Fernanda Montenegro para falar para o meu pai que incríveis, o pessoal do cenário, do
e Berta Loran, Rosi segue dividindo iria fazer cinema. Estava tudo figurino. Tanto que a gente teve
sua carreira entre o audiovisual fervilhando, o movimento hippie, a o reencontro do Castelo [lançado
e o teatro. Em 2022, interpretou Guerra do Vietnã, os movimentos em fevereiro de 2023, no Youtube]
a avó da protagonista na série estudantis, a ditadura. E a gente e finalmente conseguiu saber
juvenil No mundo da Luna, além no meio disso tudo. Foram 25 como muitas coisas eram feitas,
de encenar os espetáculos A Flor anos de novela, e sempre com porque eu, por exemplo, gravava
Ary Brandi
do Meu Bem-querer, com Juca de o teatro em paralelo. Tanto que isolada. O pessoal gravou um ano e
Oliveira, e O Vison Voador, texto nunca morei no Rio de Janeiro, meio a mais do que eu, que gravei
75 | e
depoimento
90 programas em três meses coisas, acha que aquilo não é seu, peças. Com Bella Ciao [de 1982,
praticamente: eram três cenas mas tudo é seu: a rua, o ônibus dirigida por Roberto Vignati],
por dia. Às vezes, eles demoravam em que você anda, a praia aonde também foi assim. Alguns atores
uma semana para fazer um único você vai. Isso é uma coisa que me iam para os sindicatos do ABC
programa, porque tinham todos preocupa muito: a maneira como as Paulista para conversar com o
os quadros, os passarinhos, pessoas tratam o nosso ambiente. pessoal. No espetáculo Você vai
os músicos, os bailarinos, os Eu acho que a Morgana também ver o que você vai ver [de 1989,
dedinhos, as fadinhas. Era uma se preocuparia muito com isso. dirigido por Gabriel Villela], não
farra, uma delícia. Foi realmente eram textos de teatro, mas do
um sucesso muito grande. Vai personagens [poeta e escritor] surrealista
fazer 30 anos [em maio de 2024]. Faço às vezes pela figura, por francês Raymond Queneau. A
Cao [Hamburguer], Flavio de pessoas que conheci. A gente gente sempre complicou, em vez
Souza, Anna Muylaert, uma equipe observa muito. Às vezes, começo de simplificar. Era uma maneira
enorme e de muita qualidade, com uma coisa física; em outras, diferente de falar, de fazer teatro,
em todos os sentidos. A gente com algo do figurino, da música. não usando o que já estava pronto.
fez achando que ia ser mais um Nossos grupos de teatro [como
programa, mas o sucesso foi tão Mambembe, Ornitorrinco e Circo internet
grande que dava 10 [pontos] de Grafitti] também não partiam de Fiz algumas coisas pela internet
Ibope na TV Cultura. Sei que foi textos prontos. A gente sempre [durante a pandemia], mas não
até para Cuba. Fiz também três fazia pesquisa, que é a maneira gostei muito porque achei meio
peças e um filme sobre a Morgana. mais difícil de fazer uma peça. chato. Teve gente que se deu
Em 1980, queríamos falar sobre superbem, porque foi vista até na
ambiente sexo e montamos [a comédia] Foi Dinamarca e na Rússia. Realmente
[Como testemunha ocular da bom, meu bem?, com texto de Luís [por esse lado] é uma experiência
História do Brasil e do mundo, Alberto de Abreu [e direção de muito legal, de você poder estar
a Bruxa] Morgana estaria Ewerton de Castro]. Falamos com no mundo todo, mas para o
preocupada com tudo isso que [a então sexóloga, atual secretária teatro é estranho. A gente gosta
está acontecendo, principalmente de Relações Internacionais de São da pessoa ali, fisicamente. Fora
com o meio ambiente, com a Paulo] Marta Suplicy, [o psiquiatra que na internet todo mundo quer
consciência que as pessoas têm e escritor] Flávio Gikovate ser celebridade. Então, tem uns
que ter. Não sei o que acontece, (1943-2016) e outros especialistas. trabalhos que valem a pena, mas
todo mundo joga coisa no chão, Todo mundo se reunia, fazia outros, não. E tem gente que acha
faz sujeira, não toma conta das altos bate-papos, e depois as que só porque tem uma câmera vai
gerações
Envelhecer é um processo natural,
faz parte da vida. E a gente tem
que aproveitar essa idade. Nós [da
minha geração] não estamos mais
voando como libélulas, mas temos
muita experiência, isso que é legal. A
gente viveu momentos incríveis no
Brasil, com pessoas maravilhosas.
Tive a chance de encontrar meus
ídolos na TV Globo: Tony Ramos,
Ary Fontoura, Arlete Salles e
Susana Vieira [com as quais gravou
o filme Amigas de Sorte (2021),
de Homero Olivetto]. A geração
anterior à minha fez televisão, rádio,
circo, cinema. O Milton Gonçalves
(1933-2022) fez e dirigiu diversos
filmes, teve o Gianfrancesco
Guarnieri (1934-2006)... Pessoas
que misturaram a vida com a arte.
Hoje, há um pessoal mais jovem
que é muito bom, aplicado.
77 | e
ALMANAQUE
Ô de casa!
Leonardo Finotti
De portas abertas, casarões tombados
em diferentes regiões da capital
convidam a uma visita pelos corredores
da memória patrimonial paulista
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
A
o flanar pelas ruas de São Paulo (SP), observamos
janelas, portões e jardins de casarões de outras
épocas. Desejamos ser convidados a entrar para
tomar um café ou quem sabe sentar-se à sombra de
uma árvore ao lado de Lasar Segall (1891-1957);
passear por entre a coleção de obras de arte de Ema
Klabin (1907-1994); escolher um livro na prateleira
do escritório de Vilanova Artigas (1915-1985);
brindar à mesa da sala de jantar com Lina Bo
Bardi (1914-1992); ou simplesmente contemplar
o ângulo com que o sol das três da tarde incide
sobre o vitral da fachada da Casa da Don’Anna.
ERA UMA CASA de 2023, a única residência que a casa ainda mantém, em seu
MUITO MODERNISTA foi inteiramente restaurada em interior, os ladrilhos hidráulicos
sua versão original. Novo espaço assinados por Flávio de Carvalho.
Flávio de Carvalho (1899-1973) teve permanente para realização de
seu estilo definido como “romântico exposições e eventos de artes Casa SP-Arte
revolucionário” pelo arquiteto visuais na capital, a Casa SP–Arte Alameda Ministro Rocha
Le Corbusier (1887-1965). ocupa este projeto residencial Azevedo, 1.052, Jardins.
Entre seus projetos está a Vila que fica na zona oeste. Visitas de quarta a sábado,
Modernista, inaugurada em 1938, Caracterizado por um guarda-sol das 11h às 17h. GRÁTIS.
onde é possível visitar, desde março de concreto na parte frontal, sp-arte.com/casa-sp-arte
e | 78
ÍCONE ENVIDRAÇADO
Henrique Luz
Nelson Kon (Casa-Museu Ema Klabin); Drausio Tuzzolo (Instituto Casa Vilanova Artigas).
LEGADO DE ARTIGAS
Telhado em forma de asa de borboleta, janelões de
vidro e fachadas pinceladas de vermelho, azul e
amarelo. A construção que fica na zona sul da capital
é uma obra de 1949 do arquiteto e urbanista João
Batista Vilanova Artigas, com jardim criado por
Burle Marx, e que foi moradia da família Artigas até
2016. Tombada e revitalizada em 2017, a casa abriu as
portas para visitação há cinco anos, como Instituto
Casa Vilanova Artigas (ICVA), preservando o legado
de um dos maiores nomes da arquitetura brasileira.
Casa da Don’Anna
Rua Guaianases, 1149, Campos Elíseos. Visitas aos
sábados e domingos, das 11h às 17h. Grátis para
crianças (de até 4 anos).
casadadonanna.com.br
PAREDES CULTURAIS
Depois de residirem em Paris, entre 1928 e 1932,
Lasar Segall e sua esposa, a escritora Jenny Klabin
Segall (1899-1967), decidiram morar na zona sul de
São Paulo. No terreno, tanto a casa quanto o ateliê do
artista foram projetados por Gregori Warchavchik
(1896-1972), concunhado de Segall e precursor da
arquitetura moderna no Brasil. Dez anos após a morte
do artista, em 1967, o espaço se transformou no Museu
Lasar Segall e, em 1985, o projeto foi incorporado à
Fundação Nacional Pró-Memória, compondo, hoje,
uma das unidades do Instituto Brasileiro de Museus
(Ibram). Com acervo museológico, documental
Natus Photos (Casa da Don’Anna)
81 | e
P.S.
Educação e propósito
N
o percurso da vida, encontrei a minha vocação e econômicos causados pela pandemia de Covid-19. Foi
entrei nesta jornada com certa inquietação e muitas uma mudança necessária, uma forma de ampliar a
expectativas. Hoje, tenho a honra de compartilhar minha atuação e capacitar empreendedores da cultura
minha história, repleta de desafios, aprendizados e e da arte para gerarem iniciativas de mudança em seus
momentos de pura transformação. Sou um educador projetos e torná-los eficazes e eficientes. Cada aula
que encontrou na educação seu propósito de vida. foi uma oportunidade para compartilhar não apenas
habilidades e técnicas de empreendedorismo, mas os
Em 1994, em meio a uma crise política e econômica que o valores profundos de empatia, compaixão e respeito.
Peru enfrentava, saí à procura de novas oportunidades
no Japão e, posteriormente, no Chile. Desembarquei no Cada momento desta jornada esteve sempre marcado
Brasil em 1999, com o coração cheio de sonhos e esperanças. por muita emoção. Lembro os sorrisos nos encontros
Sabia que estava prestes a começar uma nova fase repleta online, a alegria de cada participante em ter idealizado,
de desafios. Foi no ano seguinte, em 2000, que dei meus construído e finalizado o próprio projeto, a aprovação em
primeiros passos como educador. A emoção e a ansiedade se leis de incentivo, as lágrimas de superação e os abraços
misturaram quando entrei na sala de aula pela primeira vez, virtuais que compartilhamos pelo caminho. Acredito
ciente de que tinha nas mãos uma missão valiosa: despertar firmemente que a educação vai além do conhecimento
nos alunos a curiosidade e o interesse pelo aprendizado. acadêmico, trata-se de relacionamentos, um abraço
que acolhe e incentiva cada indivíduo a florescer.
Ao longo dos anos, descobri que minha aptidão para o ensino
ia além da sala de aula. Encontrei no Sesc uma forma única Neste ano, esse mesmo projeto acaba de ser adaptado e
de incitar a criatividade e a inovação. A cada descoberta, agora faz parte da ação em rede Lab Valoriza, coordenada
projeto, curso e oficina no antigo programa Internet Livre, pela Gerência de Educação para Sustentabilidade e
a oportunidade de abrir horizontes e possibilitar que Cidadania e a Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do
alunos tivessem suas vozes valorizadas em um mundo Sesc, com o objetivo de acolher pequenos empreendedores,
que, frequentemente, suprime suas individualidades. estimular ações, gerir projetos, promover criação e
uso de ferramentas inovadoras, bem como de inclusão
Com o surgimento do programa Tecnologias e Artes, o digital e de ampliação do conhecimento tecnológico.
meu compromisso não se restringiu apenas às oficinas e
cursos. Sentia um chamado para ir além: levar a educação Eu sou grato ao Sesc pelas experiências adquiridas
e a cultura a todos que pudessem se beneficiar delas. e pelos projetos educacionais oferecidos. Como
Foi assim que me envolvi em projetos em rede, cursos educadores, temos o propósito principal de fortalecer
de desenvolvimento artístico, projetos educativos com essas ações transformadoras. Ao unir nossos esforços
idosos, e de tecnologias assistivas para deficientes visuais com determinação e comprometimento, construiremos
e crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista), nos um futuro repleto de oportunidades, no qual o poder
quais encontrei um terreno fértil para cultivar a inclusão da educação, impulsionado pelo propósito, ultrapassa
e a valorização de cada indivíduo. Ali, no ETA (Espaço fronteiras e traz a promessa de uma sociedade melhor.
de Tecnologias e Artes), criamos espaços seguros, onde
o amor e o acolhimento são as bases de toda interação.
David Carlo Yauri Caman é peruano de nascimento,
Então, chegou o momento em que pude compartilhar naturalizado brasileiro. Formado em letras, gestão
meu conhecimento por meio do curso Gestão de empresarial e tecnologias educacionais, é
Projetos Socioculturais, durante o difícil momento de pós-graduando em gestão de projetos e educador
desemprego de artistas, arte-educadores e problemas em Tecnologias e Artes no Sesc Catanduva (SP).
Freepik
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