Manual Da Historia Da Litteratura Portug

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 496

y

1154432

MANUAL
DA

HISTORIA DA LITTERATURA
PORTUGUEZA
MU
SH SE
TI UM
HT

EYMAN
MANUAL
DA

HISTORIA DA LITTERATURA
PORTUGUEZ A
DESDE AS SUAS ORIGENS ATÉ AO PRESENTE

POR

THEOPHILO BRAGA

Professor de Litteraturas modernas,


e especialmente de Litteratura Portugueza, no Curso Superior
de Lettras

Obra approvada pela Junta Consultiva


de instruoção publica ,
para os cursos do 3.º anno de Portuguez dos Lyceus ,
por despacho de 28 de Abril de 1875

PORTO
LIVRARIA UNIVERSAL
DE

MAGALHÃES & MONIZ , EDITORES


12 - Largo dos Loyos - 14
-

1875
FIU
SEU
S EIS
H
3 M

PORTO
IMPRENSA LITTERARIO - COMMERCIAL
489, Rua do Bomjardim , 493

1875
Durante a publicação do longo trabalho da Histo
ria da Litteratura portugueza , muitas e muitas vezes
recebemos o precioso alvitre de fazermos o resumo
d'essa obra, para que se vulgarisasse o conhecimento
de uma litteratura tão ignorada : a eminente romanista
de Berlin, Carolina Michaëlis, e o professor da Poly
technica de Munich, Dr. Karl von Reinhardstoettner ,
manifestaram esse desejo auctorisando-se a fazerem o
substractum do livro caso nos faltasse o tempo ; o dis
tincto escriptor russo Platão Lvovitch de Vakcel, que
dotou a lingua portugueza com o magnifico livro dos
Quadros da Litteratura da Russia , insiste sobre este
desejo com as palavras as mais animadoras. Porém ,
acima de todas estas provas do interesse scientifico,
obriga-nos mais o testemunho dos professores dos nos
sos Lyceus, que se queixam da falta de um livro ele
VI

mentar que satisfaça as necessidades do ensino nas au


las de Oratoria, Poetica e Litteratura, aonde a histo
ria da litteratura nacional está reduzida á relação de
alguns nomes de escriptores. Dos snrs. Dr. Henrique,
Midosi, do Lyceu de Lisboa;; Joaquim Duarte Moreira
de Sousa, Reitor do Lyceu de Castello Branco ; Dr. José
Simões Dias, do Lyceu de Vizeu ; Dr. Alvaro Rodri
gues de Azevedo, do Lyceu do Funchal ; Dr. José
Joaquim d'Araujo Salgado, Reitor do Lyceu de Vianna
do Castello ; e finalmente dos Directores de Estabele
cimentos particulares de ensino, como o snr. Eduard
von Hafe, recebemos o honroso convite e quasi missão
de redigirmos um Manual da Historia da Litteratura
portugueza .
A reforma do ensino da Litteratura deve partir
da conclusão a que chegou a sciencia moderna : que
o estudo das creações intellectuaes não se pode fa
zer em abstracto ; é necessario nunca abandonar a
communicação directa com os monumentos, explican
do-os e apreciando-os pelas suas relações historicas com
o meio ee circumstancias em que foram produzidos. O es
tudo das Litteraturas feito nas vagas generalidades
conduz a essas receitas rhetoricas de trópos, que tiram
a seriedade ás mais altas concepções do espirito hu
mano . Na instrucção de um paiz deve entrar com toda
a sua importancia um elemento nacional; no ensino
VII

fundado nas ôcas abstracções nunca esse sentimento


se desperta ; pelo desenvolvimento historico, mostrando
como se chegou á unidade systematica de qualquer
sciencia, é que se pode imprimir uma direcção justa
e um vivo interesse nos espiritos que desabrocham .
Este resumo, emquanto ao plano e ideia geral, é
superior á Historia da Litteratura portugueza, d'onde
o extrahimos ; a causa d'esta vantagem explica-se
pela velha maxima de Antoine de la Salle : « Celui
qui commence un livre, n'est que l'écolier de celui qui
l'achève.»
A26US7 8
பார்EUN
1 MANUAL
D.

HISTORIA DA LITTERATURA

PORTUGUEZA

Dá-se o nome de Historia da Litteratura ao com


plexo das creações sentimentaes e intellectuaes em que
o grao de consciencia que um povo teve das condições
vitaes da sua nacionalidade, chegou a ser revelado .
Quando n'este quadro se comprehendem tambem as
obras scientificas, esta designação alarga-se sob 0o titulo
de Historia litteraria. A litteratura de um povo é sem
pre a mais clara expressão do seu genio nacional : a
A feição peculiar da raça , ou o caracter ethnico, dá
esse colorido privativo das inspirações de cada littera
tura, como vemos no elemento dorico ou jonico na
Grecia, no elemento ticiense ou lucerense em Roma ,
Ino elemento saxão e normando em Inglaterra, a no
elemento gaulez e franko em França. b] A tradição,
que vincula as differentes raças sob uma mesma uni
dsde politica, e que é uma das formas da aspiração
nacional e um dos seus sustentaculos , é o fundo orga
nico sobre que se basêam as concepções individuaes
das litteraturas reconhecidas como originaes o fecun
das. A obra do genio popular não é propriamente lit
teratura; mas a concepção individual que se não in
spira 1d'esta parte tradicional, é uma aberração men
ਪਰਮਾ ਮਰ

2 PRELIMINARES

tal, incommunicavel, sem sentido e de mera curiosi


dade. A mutua relação entre a tradição nacional e a
interpretação artistica constitue a manifestação do
bello nas obras de uma litteratura ; os modellos classi
cos o os canones rhetoricos de nada servem, quando
se não tem a intelligencia d'esta relação. c ] A par das
condições geographicas o dos recursos industriaes, a
lingua de um povo constitue uma como barreira mo
ral que o não deixa ser confundido, e é um orgão da sua
independencia. Se um povo persiste na immobilidade
a sua lingua resente -se d'esse atrazo; se progride quer
industrial ou intellectualmente, produzem -se as formas
dialectaes, já pelo archaismo popular, ou pelo neolo
gismo provocado pelas novas necessidades. Se a lin
gua nacional permanece sem ser escripta, dá-se a in
disciplina grammatical, a incerteza de fórmas, uma
variedade arbitraria de polysynthetismo, até que des
apparece pela necessidade de adoptar um idioma mais
communicativo e ao corrente da civilisação; quando
porém a lingua se torna escripta , estabelece -se a har
monia philosophica das leis syntacticas, prevalece a
lei instinctiva da analogia que leva á regularidade,
emfim a lingua fixa -se de modo que domina os diale
ctos secundarios sem ser absorvida por elles, o em
quanto uma lingua subsiste póde-se acreditar que uma
nacionalidade é viva. Esta relação entre a nacionali
dade e a lingua, e a dependencia em que estão para
com a forma escripta , basta para nos mostrar o alcance
do estudo da historia de uma litteratura. O estudo de
qualquer lingua pode ser feito independentemente do
criterio litterario , sob a direcção puramente philologica
ou glottica ; a litteratura estuda-se tambem separada
mente segundo as obras artisticas, as correntes de
imitação, e as feições moraes de cada epoca ou de cada
grande individualidade. Mas, nas litteraturas neo-lati
nas, explicar o problema da formação das linguas ro
PRELIMINARES 3

manicas, é explicar conjunctamente o genio das raças


que transparecem em cada litteratura , é descobrir o
espirito popular ou vulgar que reagiu contra a absor
pção litteraria do latimclassico, como o observou Fre
derico Schlegel, finalmente, é filiar essa litteratura no
grupo congenito que imprimiu a civilisação moderna
uma determinada feição.

**
CAPITULO I

Origem e formação da lingua portugueza


Lei de formação das linguas romanicas.---- Filiação da lingua
portugueza .--- Condições ethnicas e sociaes que influenciaramı
na formação do portuguez : Raças anteriores á conquista ro
mana . Acção dos Romanos : Magistrados, Colonos, Merce
narios . Influencia germanica na liberdade dialectal. O
christianismo desleixa a cultura da lingua latina. Influen
cia arabe sobre as designações technologicas. - A existen
cia politica da nacionalidade portugueza : separação da lin
gua portugueza do gallego, que se torna dialecto archaico.
- Quando começa o portuguez a ser livga: escripta : os do
cumentos diplomaticos, Chronistas e eruditos ecclesiasticos.
Primeira disciplina grammatical. Os documentos poeticos e
a influencia franceza. Caracter e tendencias do desenvol
vimento da lingua portugueza : Os eruditos aproximam -na
da regularidade latina artificialmente.- A falta de tradi
ções nacionaes leva essa lingua a exercer-se em obras tam
bem imitadas artificialmente .

Lei de formação das linguas romanicas


Depois de haver estudado o desenvolvimento his
torico das sciencias fundamentaes, Hoefer chegou a
esta verdadeira conclusão a que o espirito humano está
de certo modo condemnado a passar pelo que é com
plicado e falso, antes de attingir o que é simples e ver
dadeiro .» ( 1 ) Esta lei fatidica predominou na creação
scientifica da Philologia ; por isso'a explicação do appa
recimento das linguas romanicas foi um problema que
esgotou a imaginação dos eruditos, desyairados nas
artificiosas theoriaspela vaidade patriotica . As origens
da lingua italiana , segundo Maffei ou Ciampi; da lin
gua provençal, segundo Raynouard ; da lingua hespa
nhola, segundo Aldrete ou Larramendi; da lingua por
(1) F. Hoefer, Hist. des Mathematiques, Avant propos .
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 5

tugueza, segundo Duarte Nunes de Leão, Antonio Ri


beiro dos Santos e o Cardeal Saraiva, explicam-se por
meio de hypotheses maravilhosas e phantasticas, por
esforços de argumentação, ao passo que o facto natu
ral é na sua essencia claro e simples. A impossibili
dade da solução provinha de estudarem cada lingua
separadamente; desde 1808, Frederico Schlegel lan
çara á actividade d'este seculo a ideia da connexão
entre o sanskrito e algumas linguas da Europa; es
tava achado o novo criterio para se comprehender o
facto da linguagem , por via do estudo comparativo.
Determinada esta direcção clara, constituiu -se em

sciencia, a Philologia ou linguistica, que andava sub


mersa pelos des varios de Court de Gebelin ou de La
Tour d'Auvergne. O primeiro que pôde explicar com
clareza e simplicidade a formação das linguas romani
cas foi Frederico Diez, porque não estudou isolada
mente nenhuma d'essas linguas, mas todas conjuncta
mente , sob o ponto de vista da comparação. Em 1827,
tocou pela primeira vez no seu livro Da Poesia dos
Trovadores as ideias justas que o conduziram ás segu
ras conclusões que, de 1836 a 1844, expoz na Gram
matica das linguas romanicas, « onde se vê á eviden
cia que os sons, as particularidades prosodicas, as fór
mas grammaticaes, a syntaxe d'essas linguas são ape
2

nas em tudo uma transformação regular dos sons, das


fórmas grammaticaes, da syntaxe latina.-- Os ele
mentos do vocabulario das mesmas linguas ... são na
maior parte mais essencial, de origem latina .» (1) Isto
veiu lançar por terra as velhas hypotheses, de Maffei,
que julgava o italiano um latim vulgar que existira a
par do latim , e que se tornou independente com a
queda da civilisação romana ; de Raynouard, que jul
gava o provençal essa lingua romana, cuja unidade
(1) Adolpho Coelho, Questões da lingua portugueza, p. 24 .
6 CAPITULO I

se quebrou dando origem as linguas neo -latinas ; de


Ribeiro dos Santos e do CardealSaraiva, attribuindo
a lingua portugueza ao celtico. A verdade tem este
poder maravilhoso ; na formação das linguas romani
cas, uma lei geral domina o processo da derivação
latina, é a persistencia do accento latino. O accento,
conservando - se através de todos os accidentes extra
ordinarios porque passou a palavra no uso dos italia
nos, francezes , hespanhoes ou portuguezes, mostra-nos
que mesmo nos phenomenos de decomposição ou de
cadencia existe uma lei intima inherente a natureza ;
e portanto, não é necessario inventar a hypothese de
que existisse um dialecto popular junto do latim ur
bano destinado a produzir os novos dialectos latinos.
Uma outra lei egualmente natural e fecunda é a da
suppressão da vogal breve; por ella se explica o modo
porque desapparecem muitas flexões nominaes e ver
baes, isto é, como se obliteram os casos, e por conse
quencia como começa o uso excessivo das preposições,
como
se perde a noção prosodica da quantidade, e
como se toma para base da metrificação o syllabismo
ou accentuação, como os verbos deixam de ser passi
vos e precisam de ser auxiliados ; como esta incom
pleta expressão, para se fazer comprehensivel, tende
a tornar -se immensamente analytica, empregando con
stantemente os pronomes, que pelo seu extremo uso se
tornam artigos ; por outro lado, recorre-se aos circumlo
quios, sempre explicativos, e assim o adverbio recebe
uma nova forma final; os comparativos e superlativos
desdobram -se em phrases inteiras, e os participios tor
naram-se adjectivos. Tal é a revolução immensa que
produz novas formas linguisticas, novas syntaxes, unica
menteporque as flexões latinas que se exprimiam por
meio de vogaes breves, desappareceram com a sup
pressão da vogal breve entre aquelles povos que ha
viam acceitado ou sido forçados ao uso da lingua la
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 7

tina. Uma terceira lei, egualmente natural o impor


tante, é a queda da consoante medial ; esto facto veiu
tornar contrahidas as linguas neo-latinas, o apagar
bastante os vestigios immediatos da derivação latina ;
o adverbio semetipsum , dá no italiano medesimo, e no
hespanhol e portuguez mesmo, e no francez même. D'a
qui um corollario sobre a marcha do desenvolvimento
das linguas romanicas : aquellas que estiverem mais
avançadas na forma escripta, serão tambem as que se
apresentam mais contrahidas; de todas ellas, a fran
ceza é a que tem seguido mais além esta evolução .
Depois do conhecimento da lei fundamental é ne
cessario determinar tambem a mesologia do phenomeno,
para vêr as circumstancias especiaes que o modifica
ram . Com a lingua latina deu -se o que se dá com to
das as linguas extensamente falladas ; ao passo que
ella recebia a fórma culta e disciplinada pelos escri
ptores e rhetoricos, as camadas populares que apenas
a usaram oralmente deviam por uma marcha natural
seguir a direcção divergente dos dialectos . D'aqui
o apparecimento das formas duplas no vocabulario,
pertencendo uma ao povo, outra ao erudito; este mesmo
phenomeno se reproduz agora nas linguas neo-latinas
com uma riqueza admiravel, (1 ) sem comtudo ninguem
acreditar que uma mesma nação tenha duas linguas
uma para o vulgo e outra para os magnates. As ex
pedições e guarnições militares romanas isoladas da
metrópole, e em contacto com povos barbaros, tendiam
por um esquecimento natural e pela necessidade de
usar uma giria com os estrangeiros, a adoptarem fór
mas faceis; assim se formou o valachio, lingua da fa
milia neo-latina, seculos antes da queda do Imperio
romano . A politica romana acceitava para o serviço !
das armas mercenarios germanicos, da mesma fórma
(1) Coelho, Questões, p. 27 .
8 CAPITULO I

que as monarchias do seculo xvi assalariavam as guar


das suissas ; aqui estava outra causa de degeneração
phonetica em actividade constante e accelerando a ten
dencia popular. Os escriptores dramaticos, como Te
rencio, reproduziam nas suas comedias algumas d'essas
construcções com os verbos auxiliares ou com as pre
posições. Mas, quando a politica romana conheceu o
seu erro, vendo que confiára quasi completamente a
força armada a mercenarios a quem combatia, recor
reu ao novo expediente do colonato, concedendo terras
ás hordas barbaras e regularisando entre ellas os seus
direitos ; não sendo isto já bastante, constituiu os Mu
nicipios, e por fim estendeu a todos os territorios con
quistados o direito de cidade. Foi durante estes tres
ultimos esforços da politica romana, que o latim, como
lingua que expriinia as relações juridicas, foi adoptado
pelos povos conquistados; que os colonos seguiram os
avançados processos da agricultura romana ; e que os
que abraçavam o prestigio da civilisação romana tra
taram de esquecer as linguas das raças a que perten
ciam , para escreverem como os poetas e prosadores de
Roma. Sem tantas causas, apenas com a necessidade
de communicar com agentes commerciaes de differen
tes povos, vêmos desde o seculo XVII fallar-se o impor
tante dialecto do portuguez usado na ilha de Ceylão.
Todas estas causas seriam sufficientes para determina
rem por uma evolução lenta a creação das linguas
romanicas ; mas quebrada a unidade romana pelas in
vasões germanicas, refugiada a litteratura latina nos
claustros, prohibido o estudo do latim pela egreja, ( 1) a
indisciplina grammatical prevaleceu , a degeneração
phonetica progrediu , a ponto de, já no seculo vil, se
ignorar o uso dos casos dos nomes. A phase vital da
(1) Raynouard, Elements de la Grammaire de la langue
romaine, p . 13 e 14.
9
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA
formação das linguas romanicas dá-se d'este momento ,
até ellas se tornarem linguas escriptas; n'este inter
medio se elaboram as lendas das sanctificações locaes,
repetem-se as tradições que hão de produzir as Can
ções de Gesta. Por fim Carlos Magno vem fixar a in
certeza politica da Europa e acontinuar aa missão imper.
feita no ponto em que Roma a deixára. Collocado na
Gallia, que se havia tornado o centro normal do Oc
cidente, Carlos Magno poz a peito o acabar com a
barbaria d'além do Rheno . D'esta vez o successo foi
completo o sem hesitação : não sómente as invasões
agressivas dos germanos cessaram , mas elles pro
prios attrahidos para a causa commum da civilisação,
oppuzoram uma barreira inexpugnavel a uma mais
longiqua e selvagem barbaria. Carlos Magno romani
sou os vastos paizes da Allemanha, tanto quanto o
exigia a adjuncção ao movimento europeu ; e desde
então o corpo social, incomparavelmente mais pode
roso do que fôra em tempo algum , achou-se consti
tuido . » (1) O facto das cruzadas, assim como deu prin
cipio á independencia do poder real e á existencia da
burguezia, tambem veiu influir no apparecimento da
poesia provençal : phenomeno assombroso do mundo
moderno, que se resume em certos costumes poeticos
gaulezes, que andavam oraes e prohibidos, receberem
a forma escripta e serem imitados pelas novas naciona
lidades ; as cartas municipaes, communaos ou foralei
ras serviram tambem de primeiro thema sobre que se
exerceram as linguas romanicas.

(1) Littré, Application de la Philosophie positive au gou


vernement de la Société, p. 116.
10 CAPITULO I

Filiação da lingua portugueza

Quando no seculo XII se constituiu a. nacionalidade


portugueza, já o periodo fecundo da elaboração da
edade media estava a terminar ; estavam creadas e com
fórma escripta as differentes linguas romanicas, trans
formados os velhos mythos nas tradições epicas das
Gestas francezas, já existia o espirito secular que lu
ctava pela realisação da independencia civil, já esta
vam escriptos os codigos locaes, as lendas piedosas, e
produzida a nova architectura ogival . Portugal era o
ultimo vindo á vida historica ; era preciso que impe
riosas e fataes circumstancias provocassem o appare
cimento d'esta tardia nacionalidade; confinado entre
o continente e o mar, desmembrou -se da Hespanha,
como a Hollanda se desmembrou da Allemanha. A
lingua portugueza tomou tambem muito cedo um as
cendente litterario, servindo de vehiculo para a imita
ção da poesia provençal na Peninsula ; mas este des
envolvimento prematuro submetteu-se ao pedantismo
grammatical, desnaturando-a. A lingua portugueza é
a ultima no quadro das linguas neo-latinas; pertencem
estas linguas ao grupo das linguas pelasgicas, que com
prehendem o Grego e o Latim ; o latim subdividiu -se
em dialectos, desenvolvidos ao contacto das linguas
slavas, como o valachico ou daco - romano ; das linguas
celticas e germanicas, como o provençal, o francez e o
italiano; e actuando conjunctamente o arabe, como o
hespanhol e o portuguez . Cada uma d'estas linguas ro
manicas tem os seus dialectos particulares, de uma ri
queza incalculavel para o problema das origens ; e até
o portuguez, cuja extensão e vida historica não foi tảo
vasta como qualquer das outras linguas, apresenta os
seus dialectos importantissimos, como o gallego, que
estacionou por não ter tido oo desenvolvimento da forma
escripta e da vida politica ; o indo-portuguez, fallado
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 11
nas relações commerciaes em Columbo, capital de Cey
lão, o brazileiro, tanto o que fallam os antigos colonos
internados ou fazendeiros, como os da capital que pra
ticam insensivelmente a degeneração phonetica ; final
mente no proprio territorio portuguez existe uma lin
guagem archaica, na povoação de Suajo, tambem no
tavel pela sua organisação social, aonde se diz em vez
de vosso, bostro, em vez de senhoria , senhorença . Esta
scissiparidade que nas linguas modernas forma os dia
lectos, é tambem o porquê natural do modo como do
latim se foram desmembrando as linguas romanicas.
Condições ethnicase sociaes que influiram
na formação do portuguez
a ) Raças anteriores á conquista romana. Muito
antes da unidade politica romana, pela administração
e pela lingua, imprimir aos povos do meio dia da Eu
ropa um caracter commum, que tem levado a caracte
risal-os como uma raça latina, já existia um elemento
ethnico uniforme, commum ao hespanhol e portuguez,
ao francez e italiano : é raça celtica. Vinda da Asia
pelas migrações indo-europêas, a raça celtica trazia
comsigo esse naturalismo védico e ao mesmo tempo
essa metaphysica religiosa das theocracias brahmani
cas, que reproduziu no druidismo. De uma organisa
ção contemplativa e artistica, o Celta accommodou -se
facilmente a todas as condições do meio ; incapaz de
produzir por simesmo uma nacionalidade, recebeu das
invasões de differentes raças essa tempera que leva a
fundamentar a autonomia de um povo. O Ibero, que
primeiro apparece na vida ante historica da Peninsula,
é o Celta d'áquem do Ebro, sobre que se tem tecido
as mais phantasticas theorias para explicar o seu ap
parecimento; a primeira invasão que recebeu foi dos
Phenicios, raça do ramo semitico que entrou na Pe
12 CAPITULO I

ninsula apenas com o espirito da exploração mercantil.


O Phenicio trazia já comsigo dois poderosos elementos
de civilisação, o alphabeto e a troca de mercadorias ;
a mistura do Celta com o Phenicio realisada por sim
ples cohabitação, e successivamente pela invasão dos
Carthaginezes, preparou este novo povo a receber os
Persas (Sarmatas), os cosmopolitas judeus , que precede
ram o que em parte prepararam a invasão arabe. A
colonia phenicia que havia fundado ao norte da Africa
o imperio de Carthago veiu por seu turno explorar a
Peninsula, conservando uma guerra continua com as
tribus celtiberas, não para alargar a possessão do ter
ritorio, mas para garantir a segurança do commercio.
Por esta circumstancia deduz -se que seria quasi nulla
a acção da lingua punica sobre os dialectos celticos
então . fallados na Peninsula . Só depois da primeira
guerra punica, é que os ,Carthaginezes comprehende
a
ram o valor da nova conquista ; (1) perdendo-a na se.
gunda guerra punica , depois da violação do tratado
em que os Romanos obrigavam os Carthaginezes a não
transporem o Ebro, Annibal ataca Sagunto para re
adquirir o dominio perdido. A Peninsula não se rendeu
logo ás armas romanas; foram longos os recontros das
legiões quirinaes com as guerrilhas de Sertorio e Vi
riato . Roma ia comprando o dominio com garantias
politicas ; firmava a posse estendendo o direito italico
ás novas Provincias ; as raças da Peninsula , cansadas
de luctar, sentiam-se seduzidas pela civilisação que as
visitava e enfraquecia.
b ) Acção dos Romanos : Magistrados , Mercenarios,
Colonos. - Quando Roma consolidou o seu poder na
Peninsula, já a lingua euskariana se tinha desmem
brado nos dialectos formados pelas relações com os po
(1) Ticknor, Historia da Litt. hespanhola , t. I, p. 422 .
Trad. Magnabal
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 13
vos invasores, e se distinguiam como diversos o0 turde
tano, o bastulo e o celtibero. A lingua culta do povo
dominante era uma distincção aristocratica para aquelle
que a fallava ; as relações politicas e a lettra das leis e
editos, familiarisavam com o latim os povos vencidos .
Os magistrados que vinham governar as differentes pro
vincias, traziam familia e clientes ; e as escholas rhe
toricas de Roma eram frequentadas pelos naturaes da
Peninsula, que se distinguiram na litteratura, como
Marcial ou Lucano . Mas d'este simples facto para a
formação de um latim vulgar na Peninsula não se pode
estabelecer uma connexão intima e causal . O latim
vulgar ia sendo formado por causas mais imperiosas ;
o estado da lingua latina, quando os Romanos entra
ram na Peninsula , pela guerra de Sagunto, (336 U. c.)
era ainda o da edade ferrea . ( 1 ) Os soldados da occu
pação, eram de ordinario os mercenarios germanicos :
ao uso imprudente de recrutar os oxercitos romanos
entre os barbaros, fez progressos bastante rapidos.
Probus deu o exemplo de uma reserva cuja prudencia
deixou mais tarde de ser imitada ; elle determinou o
numero de Barbaros que podia ser admittido em uma
Legião ; apesar d'isso houve logo legiões inteiras com
postas de barbaros .» (2) D'este erro politico deduzem
se duas consequencias; a facilidade da queda do mun
do romano quando no seculo v irromperam as invasões
germanicas, e conjunctamente aa facilidade da creação
de dialectos romanicos em toda a parte que Roma occu
pava pelas armas . A instituição do colonato romano cor
robora ainda mais esta causa; quando Roma não podia
conter os povos insurgentes, dava- lhes as suas con
quistas, com tanto que lhe reconhecessem a auctori
dade politica . Assim como os jurisconsultos romanos
( 1) Viterbo, Elucidario, p. 5 .
(2) Ampère, Hist. litt. de la France avant Charlemagne, II, 97.
14 CAPITULO I

inventaram a subtileza civil da emphyteose para a


propriedade, os politicos inventaram essa outra forma
de cmphyteose administrativa, chamada o colonato . As
hordas errantes vinham offerecer -se muitas vezes ao
imperio, pedindo terrenos para a cultura, o defesa
contra outras tribus que as perseguiam . N'estas con
dições o latim era o meio de uma mais vasta commu
nicação, e até uma garantia para quem o fallava. A
lingua pura ou urbana, ia sendo fatalmente modificada
pelos que ignoravam todos os segredos do ore rotundo;
à coexistencia do latim com os dialectos primitivos da
Peninsula activava esta como rusticação. Cicero co
nhecia que o latim em Hespanha tinha um que de es
trangeiro, mesmo nos escriptores litterarios . ( 1) Quin
tiliano já o encontrava tambem envolvido de pala
vras gaulezas, como rheda, petoritum, de palavras
2

punicas, como mappa, ou ibericas, como gurdus. (2)


Estas palavras conservadas por Quintiliano, mostram
a coexistencia dos dialectos populares com o latim ;
no primeiro seculo da nossa era, Marcial dando-se
como filho dos Celtas e dos Iberos, diz que não se peja
de empregar as rudes denominações dasua patria. (3)
No segundo seculo, o christianismo é importado da
Africapara a Peninsula, e com elle se propaga o uso
do latim na liturgia e catechese, misturando - o com os
dialectos populares, a ponto de não ser entendido o0 la
tim da missa . (4) No seculo terceiro, uma lei do Di
gesto, publicada por Alexandre Severo em 230, per

(1) Orat. pro Archia, § 10. « ... pingue quidam .., atque
peregrinum .»
(2) Liv. I, cap . 5. Gellius, liv. xvi, cap. 7. Aldrete, Del
origen y principio de la lengua castellana, fol. 40 .
(3) Liv. iv, Epigram ., 55, v. 8-10.
Ticknor, Hist. da litt . hesp., t. I, p . 428, not. 3. Trad .
Magnabal.
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 15
mitte fazer os fideicommissos nas linguas vulgares,
como na gauleza ou na punica . (1) No quarto seculo,
no quarto concilio de Carthago, em 398, prohibe-se a
leitura dos livros profanos; a forma litteraria, que po
deria conservar por mais tempo a pureza do latim ,
deixa por tanto de ter acção ; na vida do papa Gre
gorio Magno, escripta por João Diacono, vê-se qual
era o espirito da egreja; o papa desprezava acintosa
mente o uso dos casos, porque achava indigno submet
ter as palavras celestes ás regras de Donato . Logo que
as invasões germanicas viessem quebrar a organisação
romana e crear uma nova ordem de cousas sob o pre
dominio do individualismo, a liberdade dialectal havia
forçosamente de manifestar-se em novas linguas con
stituidas, na Italia, em França e na Peninsula hispa
nica .
c) Influencia germanica : adopção do christianis
mo. --O elemento germanico apparece na Italia com a
invasão dos Ostrogodos e Lombardos; em França, com
o Franko e Bourguinhão, e na Peninsula hispanica com
o visigodo. Os colonos, que preexistiam antes da inva
são, e os que a acompanharam como lites ; os compa
nheiros dos homens nobres ou wher -man , esses conserva
ram as primitivas tradições das raças germanicas, de
rivadas dos seus mythos odinicos, que perderam o sen
tido religioso pela adopção do christianismo. D'estas
tradições, saíram as profundas creações poeticasda Eu
ropa moderna, como os cyclos carlingio e arthuriano,
o como a epopea dos Niebelungens. A aristocracia ger
manica, como toda a aristocracia, imitou a cultura ro
mana e desnaturou- se com ella, acceitando os codigos
e a lingua. Porem , o que ha de vivo nas litteraturas

(1) Digesto, tit. 1, lib. 33, § 11. Inst . § 1. De verb, sign.


e a Const . leon .
16 CAPITULO I

modernas derivou -se das tradições, essas só se con


servaram entre as classes populares . Mas o christia
nismo ao ser abraçado pelas raças germanicas recebeu
uma nova feição do genio aryano naturalista ; tal foi
a crença na humanidade de Jesus. D'aqui se originou
um combate travado entre a egreja e os que abraça
vam a doutrina de Ario ; as raças que seguiam o aria
nismo, como a gotica, foram as mais combatidas, o
n'esta lucta da integridade canonica perderam as suas
tradições poeticas , que foram condemnadas, e a lingua
deixou de ser empregada na liturgia : « Em quanto os
visigodos professaram o arianismo, gosou a sua lingua
de uma vantagem que faltou ao frankico e ao lombar
do : era ella usada na vida ordinaria, mesmo na ogreja .
Depois que o rei Rekaredo se converteu ao catholicis.
mo, (586) e a todos os seus vassallos sem consideração
de origem foi concedido direito egual, a fusão dos ger
manos e romanos, favorecida por elle e seus successo
res , realisou -se mais promptamente que em qualquer
outra parte, com prejuizo da lingua gotica. ) (1) N’este
facto apresentado por Diez, dá -se a notavel circum
stancia de se vêr que a mesma causa da decadencia
da lingua gotica é tambem a que influe na oblitera -
ção das tradições poeticas , como primeiro o provou
Jacob Grimm . A phonetica dos godos segue como no
latim , essa grande lei natural da persistencia da vogal
accentudda ; as consoantes teutonicas conservam -se
com mais tenacidade, resistindo geralmente ao abran
damento e á syncopa. (2) Por aqui se vê, que a in
fluencia do gotico na creação das linguas romanicas
da Peninsula, além de favorecer a tendencia que já
existia para a degeneração phonetica, se limita ao au

( 1) Dicz, Grammatik des rom . spr. t. I, 64-5. Ap . Coelho,


1 a Lingua portugucza, p. 23.
(2) Adolpho Coelho, A lingua portugueza, p. 116.
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 17

gmento do vocabulario. (1) A falta de forma escripta


facilitou tambem esta tendencia. Se a influencia go
tica em quanto á lingua, se limita aqui, em quanto ás
origens litterarias vae muito mais longe; dos godos
provieram esses numerosos symbolos juridicos que ap
parecem nas cartas de Foral; muitas d'essas super
stições, que são restos de mythologias que se extingui
ram ; as tradições heroicas, que serviram de thema ás
redondilhas populares dos Romanceiros hespanhole
portuguez ; e muitas das formas da penalidade do di
reito consuetudinario. Quando, seguindo a rigorosa di
recção scientifica, se tem de procurar a inspiração das
obras de uma litteratura na tradição nacional, por
certo que o elemento gotico tem de ser interrogado,
de preferencia ao elemento romano, que não deixou
tradições. O genio gotico persiste através da invasão
arabe do seculo VII , n'uma classe numerosa e activa
chamada os Mosarabes, nos quaes se encontra todos
os recursos da tradição necessarios para fundar ricas
litteraturas. Negue-se embora ao Mosarabe a impor
tancia ethnologica de uma raça , é certo que não se
póde supprimir o facto de ser d'elle que provém as
tradições sobre que se crearam as litteraturas da Pe
ninsula .
d) Influencia arabe. RS
O cesarismo e a theocracia
levaram pela corrupção o imperio visigotico da Pe
ninsula á ruina. Desde Wamba, que os Arabes ten
tavam entrar em Hespanha ; os Judeus eram os prin
cipaes agentes d'estes planos . Só depois das perfidias
do Conde de Cordova e da traição vingativa do Conde
Julião, é que a conquista arabe se effectuou , em 711 .

(1) « Numerosos idiotismos, e sobretudo vocabulos impor.


tantes que em as novas linguas se encontram , devem a sua
existencia aos conquistadores germanicos. A. Coelho, Ib .,
>>

p . 23 .
18 CAPITULO I

Como o Arabe vinha com o intuito de fixar o seu do


minio, trouxe tambem ao mundo moderno o primeiro
exemplo da tolerancia politica ; mediante uma capi
tação, o djizyeh , consentia aos vencidos o exercicio
das suas crenças, das suas industrias, dos seus direi
tos, finalmente a estabilidade das suas instituições :
Os christãos foram admittidos aos cargos do Estado ;
C

os sacerdotes do Christianismo tiveram livre entrada


no palacio dos Khalifas ; compunha-se de mosarabes a
guarda particular do Emir; os laços matrimoniaes li
garam a miudo mais estreitamente vencedores e ven
cidos; finalmente os hespanhoes idontificaram -se a tal
ponto com os arabes, quo, um seculo depois da con
quista, tinham esquecido até a lingua propria .) (1)
Taes são os factos exteriores de tolerancia politica o
moral, que nos mostram quanto foram falsos os qua
dros negros do dominio arabe traçados pelos latinistas
ecclesiasticos, como Isidoro de Beja, Sebastião de Sa
lamanca, Sampiro, o Silense, Lucas de Tuy e Alvaro
de Cordova. Mas collocados os factos com a clareza
desprevenida dos historiadores modernos, importa ex
plicar a causa porque se não deu a fusão completa dos
povos conquistados com os Arabes . De todos os ramos
da grande raça semitica, o Arabe é de todos o mais
incommunicavel; este mesmo caracter se observa na
sua lingua, onde os dialectos nunca tiveram importan
cia ; entre a estructura organica das linguas indo-ger
manicas e as semiticas, existe uma differença incon
ciliavel. Como os Arabes traziam grande desenvolvi
mento de artes technologicas e de sciencias positivas,
foram fatalmente imitados. O facto da tolerancia po
litica fez com que as povoações ruraes não abando
nassem o seu solo , como a aristocracia intransigente,
e por isso redigiram livremente os seus Costumes, que
( 1) A. Soromenho, Origem da Lingua portugueza, p. 10 .
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 19

vieram a constituir as cartas foraleiras. As letras ara


bes foram adoptadas nos escriptos aljamiados, mas
nem por isso nenhumadas formas da syntaxe arabe ;
o mesmo se deu com a lingua, no que era exterior, isto
é , o simples vocabulario adoptou -se, como os nomes
technicos, os dos magistrados e das instituições, como
se pode vêr pelos Vestigios da lingua arabica em Por
tugal, por Frei João deSousa, e no Glossario de Dozy
• Engelmman. Coelho, fundado na auctoridade de
Diez e de Delius, avança : « que a influencia do arabe
sobre o hespanhol e o portuguez se reduziu á intro
ducção n'ostes, d'um numero bastante consideravel de
vocabulos, e de modo algum se estendeu á gramma
tica. E' até errado suppôr que o arabe tenha influen
ciado o consonantismo do hespanhol. Diez (Grammatik,
1, 308, n. 366-7) e Delius ( Romanische Sprachfami
lie, S. 29) provam que a guttural aspirante dos nos
sos visinhos de modo algum pode ser olhada de ori
gem arabe. O h aspirado e os outros sons que o hes
panhol possue a mais que o portuguez e a que se at
tribuiu semelhante origem , nenhum direito têm tam
bem a tal genealogia.» (1) Na parte litteraria, tam
bem se attribuiu á influencia arabe a origem da ver
sificação octosyllabica dos Romanceiros, o que tambem
é errado; mas foi sobretudo pelo canto e dansa arabe
é que esses romances se conservaram . A influencia
exterior dos arabes revela-se tambem na propagação
dos Contos indianos ao sul da Europa, na Italia, Hes
panha e Portugal ; o nosso povo, essencialmente catho
lico, ainda hoje invoca Allah na sua interjeição Oxalá,
do arabe Inshallah .

(1) A. Coelho, Ib. p. 25.


20 CAPITULO I

Existencia politica da nacionalidade


o gallego dialecto archaico

Antes da independenciapolitica, tentada pelo Conde


D. Henrique, Portugal fazia parte da Galliza, a qual
desde Fernando Magno se estendia até ao Mondego.
Pertenciam ainda em 1065 á Galliza as conquistas ao
norte do Mondego e do Alva. Em 1093, estenderam -80
as fronteiras da Galliza até á foz do Tejo, depois da
tomada de Santarem , de Lisboa e de Cintra . Affonso VI
de Leão, querendo fortalecer a administração d'este
immenso dominio da Galliza, encarregou do seu go
verno a Raymundo, que viera com os guerreiros fran
kos, que ajudaram o monarcha leonez em 1086 na
batalba de Zalaka. Em 1094 , Affonso entregou-lhe a
administração de toda a Galliza casando Raymundo
com sua filha Urraca. Basta o enunciado d'estes sim
ples factos historicos para se crêr que era uma unica
a lingua failada em toda a Galliza ; a esta unidade
politica corresponde tambem uma uniformidade etnho
logica, que se revela principalmente na prioridade
da poesia lyrica começada a escrever na lingua gal
lega. Nas invasões germanicas do seculo V a Galliza
ficou em partilha aos Suevos, e a estas se encorpora
ram os Silingos e Alanos, quando Walia os forçou a
abandonarem a Betica e a Luzitania ; mais tarde as
sim fortalecidos, os Suevos estenderam o seu dominio
pela Betica e Luzitania, sendo encorporados depois na
monarchia visogotica no tempo de L uwigildo.Terri
torio e raça , tudo influia para a unidade da lingua gal
lega. Mas a decadencia successiva do galleziano e o
apparecimento do portuguez, ficando aquelle um sim
ples dialecto, e este uma lingua escripta, proveiu d'esse
outro facto profundo, o da formação de uma naciona
lidade, com condições de vida e de independencia, no
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 21
seculo XII. Henrique, primo de Raymundo, acompa
nhara -o á Peninsula, e tambem casou com uma filha
de Affonso vi, Dona Tareja ; por este facto ficou go
vernando o districto de Braga, sob a dependencia de
seu primo. Para que o territorio das margens do Mi
nhoaté ao Tejo se desmembrasse da dependencia do
condado de Galliza, não bastava só a ambição do
Conde Dom Henrique ; a propria situação geogra
phica estava provocando essa revolta. A proximidade
do mar não era só uma barreira defensiva, era um
recurso inexgotavel de riqueza; por elle vinham as
armadas queajudavam á reconquista, por elle se fa
ziam as incursões nas costas do Algarve, por elle final
mente se encetou o periodo fecundo dos descobrimen
tos. A vida historica da Galliza foi quasi nulla ; dis
pendeu -se em pretenções das varias casas reinantes de
Leão, de Castella ee de Aragão, e já no fim do seculo xiv
a tentativa de renascença da poesia gallega por Vil
lasandino e Juan Rodrigues da Camara, ficou sem re
sultado. Sobre as relações da lingua gallega e portu
gueza escreve Nunes de Leão : « as quaes ambas eram
antigamente quasi uma mesma, nas palavras, nos diph
tongos e pronunciação, que as outras partes de Hes
panha não tem . Da qual lingua gallega a portugueza
se avantajou tanto , quanto na copia e elegancia d'ella
vêmos . O que se causou por em Portugal haver rei e
côrte, que é a officina onde os vocabulos se forjam e
pulem ,e d'onde manam paraos outros homens, o que
nunca houve na Galliza. » (1) Nunes de Leão confunde
o facto exterior e accidental de realeza e de côrte com
a causa organica de nacionalidade e de vida historica .
Aldrete, na Origen y principio de la lengua castellana ,
tambem propõe o problema da identidade do gallego
e do portuguez, mas não sabe explicar o motivo da
(1) Leão, Origem da Linguaportugueza. p. 32, ed. 1606 .
22 CAPITULO I

separação: « Bien sé que otros atribuyen lo particular de


aquella lengua à la communicacion de Gallizia, donde
la antigua parece la misma que la portugueza, y la
vezindad, y averse desde ali començado la conquista
fué la causa de dilatar-se la lengua. A que pueden
aiadir, que en Gallizia varió la lingua por aver puesto
en ella su reyno los Suevos, y assi fué causa de que
la lengua se corrompiesse en aquella forma. Pero tengo
por mas ciertó lo primero ; pues no ay rason, para que
en Portugal se aya conservado assi, y en Gallizia nó,
si fué la de Gallizia la misma que la portugeza .» (1)
O dialecto gallego ainda se conservou nas varias côr
tes de Hespanha empregado artificialmente na poesia
lyrica palaciana ; d'aqui veiu a illusão dos proprios
escriptores hespanhoes suppôrem , que Affonsoo Sabio
escrevera os seus versos em lingua portuguesa : « EI
estylo de ellas, (rectifica o Padre Sarmiento,) no es
castellano antiguo, como debiera, sino gallego anti
guo, al qual se parece mucho el portugues.» (2) Ar
gote y de Molina provando que Macias não era portu
guez, avança este facto , que não écerto, como vimos
na declaração de Sarmiento : « Y se á alguno le pare
ciere que Macias era portugués, esté advertido que
hasta los tiempos del Rey D. Enrique tercero, todas
las coplas que se hacian comunmente por la mayorparte
eran en aquella lengua ; hasta que despues, en tiempo
del Rey D. Juan, con la comunicacion de naciones
estrangeras, se trató de este genero de letras con mas
curiosidad. » (3) As poesias da eschola provençal es
criptas no portuguez anterior a D. Diniz, apresentam
ainda bastantes galleguismos como o che em vez do

(1) Aldrete, Origen y principio, cap. Ili, fl. 39,v.


(2) Memorias para laHistoria de la Poesia y Poetas espa
noles, p. 198, n.° 456.
( 3) Nobleza de Andalucia, cap. 148.
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 23
pronome te, dise por disse, quige por quiz, devidos
principalmente a serem muitas d'essas poesias imita
das das Serranilhas populares e dos cantos de ledino,
cujo typo ainda no seculoxvi apparece conservado
pelo genio popular de Gil Vicente. Como vimos, em
1096o Conde D. Henrique toma posse do territorio
que formou Portugal, casando com D. Tareja ; começa
então a differenciação entre a lingua gallega e a por
tugueza ; o Conde de Borgonha trouxera comsigo ca
valleiros, homens de armas, e amanuenses que vie
ram de França, para que copiassem os Evangelhos
em letra francesa, como ordenava o Concilio de Leão
de 1090. Muitos Bispos e Arcebispos eram francezes,
como S. Geraldo, D. Mauricio, Dom Hugo, Dom Ber
nardo ; ia -se estudar a França como Dom João Peculiar,
Frei Gil Rodrigues. Dom Affonso Henriques concedeu
a Guilherme de Cornes as terras de Athouguia para
serem colonisadas por francezes egallegos . Em França
se refugiaram as principaes familias de fidalgos portu
guezes,nacôrte de S. Luiz, voltando para Portugalpelo
triumpho da sua causa, na deposição de D. Sancho II.
Algumas palavras francezas privativas dos costumes
feudaes apparecem na poesia portuguesa d'esta epoca..
As fórmas contrabidas, que tanto distinguem o portu
tuguez do castelhano, como vemos em padre e pae,
caracterisam - nos essa influencia franceza, de que já
falla Aldrete : « en Portugal ay otra lengua diversa de
la Castellana, que sin duda tiene mescla de la fran
cesa . Pegosele de los Francezes que truxo consigo
Don Henrique, primero Conde de Portugal...) (1)
catalão e o italiano, por via do casamento das duas
rainhas D. Dulce e D. Mafalda, e o inglez, enrique
ceram tambem o nosso vocabulario, em consequencia
da vida historica da nova nacionalidade. Quando no
(1) Origen y principio, cap. 3, fl. 39.
24 CAPITULO I

meado do seculo XIII, Affonso Lopes Bayão escreve


a Gesta de mal-dizer, já emprega satyricamente certas
formas archaicas, como de uma lingua atrazada e que
não correspondia á civilisação do tempo.

Quando começa o portuguez a ser lingua


escripta

a) Os documentos diplomaticos. - Escreve Viterbo,


na advertencia do Elucidario : « Os documentos que até
os fins do seculo XI entre nós se exararam, quasi nada
mais tem de latim que a inflexão alatinada dos mes
mos termos com que o vulgo se exprimia. O Livro dos
Testamentos de Lorvão, o Livro Preto de Coimbra , o
de D. Mumadona, de Guimarães, os documentos de
Pedroso, de Braga, e outros muitos, que nos originaes
se conservam ... não permittem hesitar, que a lingua
portugueza era por este tempo o mesmo que a hespa
nhola , cujos monumentos, por Ypes, Florez, Risco e ou
tros até hoje publicados nos offerecem antes uma ver
dadeira identidade do que uma mera similhança .» ( 1)
Esta identidade não se pode entender com relação ao
organismo das duas linguas, mas sim em quanto á gi
ria tabellionica derivada dos mesmos direitos canonico
e romano, e empregada pelos amanuenses judiciaes.
João Pedro Ribeiro, que, em quanto a questão philolo
gica, ainda acreditava na persistencia dos dialectos
vulgares anteriores á conquista romana, conservados
através da dominação dos godos e dos arabes até se
tornarem nos dialectos modernos da Peninsula, (2) fa
voreceu a phantastica celtomania de Ribeiro dos Santos
e Saraiva ; mas na parte diplomatica a sciencia deve

(1) Elucidario , p. VIII .


Dissert. chronolog., V, p. 179.
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 25
the muito, e com toda a sua veracidade nos apresenta
como primeiros monumentos da lingua portugueza:
1. Uma noticia particular de Lourenço Fernan
des, que remonta ao reinado de D. Sancho I, achada
no Cartorio do Mosteiro de Vairão. ( Diss. Chronolog .,
t. I, Doc. n.° 60.)
2.º Noticia de umas partilhas, de 1192, de março
da era de MDCCXXX . ( Ib ., Doc. n.° 61.)
3.° No reinado de D. Affonso III, e desde 1293 é
que começam a apparecer os documentos em vulgar,
e em escasso numero, até ao tempo de D. Diniz. ( Ib .,
Doc . n.°0 62-68 .)
4.0 De 1334 por diante começam todos os docu
mentos a serem escriptos na lingua vulgar. ( Ib., p .184) .
E' de 1281 a celebre lei de Pontarias, que D. Diniz
escreveu acerca da administração da justiça. João Pedro
Ribeiro attribue a importancia que ia recebendo a lin
gua portugueza á crescente ignorancia do latim ; mas
a verdadeira causa descobre -se claramente nos monu
mentos litterarios, que então começaram a ser escriptos.
b) As formas litterarias : Chronistas e eruditos
ecclesiasticos. Primeira disciplina grammatical. --- No
tempo de D. Affonso III é que começa a ser escripta
a lingua portugueza ; voltando de França para occu
par o throno extorquido ao irmão, vieram com elle os
fidalgos facciosos que se haviam expatriado. Começa
ram por imitar a poesia provençal, que estava em moda
na corte de Sam Luiz. Aqui repete -se essa grande lei
historica das linguas começarem a sua litteratura pelas
formas poeticas . Depois da poesia, a lingua exerce -se
nas traducções dos livros hespanhoes, como as Leis de
Partidas, adoptadas por D. Diniz, e a Chronica geral
de Hespanha ; do arabe, como a obra do Moo Rasis,
por Gil Pires (1), e do latim, como a Regra de Sam
(1) Bibl. Luzit ., t. 12, p. 382.
26 CAPITULO I

Bento, e as traducções de Sam Gregorio e daBiblia, do


seculo xiv, publicadas por Frei Fortunato de S. Boa
ventura. (1) A lingua portugueza seguiu n'este ponto
a direcção das litteraturas daedade media, que se exer
ceram em grande parte em traducções paraphrasticas.
A estes monumentos se devem ajuntar o Livro velho
das Linhagens, com o seu fragmento, bem como o
Nobiliario do Conde D. Pedro, publicados pela Acade
mia das Sciencias, e alguns Foraes em vulgar. A Chro
nica breve, que se achou junto com as Inquirições de
D. Affonso III, pertence já ao principio do seculo xv ;
mas a traducção do Indiculusfundationis Monasterii
S. Vicentii, conhecida com o titulo de Chronica dos
Vicentes, não vae além do reinado de D. Affonso III.
A fundação da Universidade de Lisboa, por D. Diniz,
em 1291, desenvolveu o estudo da grammatica, que já
era cultivado nas escholas das Collegiadas. Foi assim
que a lingua portugueza entrou no seu regimen disci
plinar, e foi isto que a fez tornar desusado o latim . A
grammatica era uma das partes mais importantes do
Trivium, organisação escholastica do ensino de que
ainda nos resta a designação trivial; o estudo da gram
matica tinha tambem um sentido mystico, que a fazia
occupar o primeiro logar do Trivium , e a tornara pri
vativa das escholas religiosas das Collegiadas; no
poema Image du Monde, se diz que a grammatica é
a sciencia da palavra e com a palavra Deus creou o
mundo. (2) « Foi mais estabelecido, que se apresentasse
na Collegiada (de Guimarães) um mestre que désse
lição de grammatica, e que para isso se pedisse a sua
santidade a primeira prebenda que vagasse, e que em
quanto não vagasse se tirasse de todas as mais uma
porção para o leitor da dita grammatica ; de que resul

(1) Ineditos de Alcobaça , 3 vol. Coimbra, 1829.


(2) Ap. Comparetti, Virgilio nel medio evo, t. I, p. 104 .
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 27
tou haver a conezia magistral , e por se não querer
occupar o seu successor a lêr moral, dá uma pensão
aos seus religiosos de Sam Domingos, para elegerem um
padre que a venha dar na capella de Sam Pedro, si
tuada no claustro da real collegiada. Esta eschola se
ordenou em tempo de el-rei Dom Sancho II. (1)
c) Os documentos poeticos: Influencia franceza.-
Nos Nobiliarios antigos citam -se bastantes Trovadores
portuguezes, pertencentes quasi todos ao século XIII.
No Livro velho das Linhagens, cita-se o nome de João
Soares de Paiva ; (p. 166) no fragmento de Nobiliario
do Conde D. Pedro, os nomes de João Garcia Esgara
yunha, (p . 192, 290) de Estevam Annes de Vallada
res, (p. 199) e de João Soares de Penha; (p. 208) no
Nobiliario do Conde D. Pedro, vem citado João de
Gaia, ( p. 272) João Soares de Penha ou Paiva, (p . 297)
Vasco Fernandes de Praga, (p. 349) João Martins (p.
302) e um outro João Soares. (p. 352) Embora não
sejam estes os trovadores portuguezes mais antigos, são
comtudo os mais afamados na sociedade aristocratica
do seculo xiv ; Faria e Sousa julgava-os pertencendo
á côrte de D. Affonso Henriques, mas a maior parte
d'elles pertence ao grupo que esteve em França com
Dom Affonso III. A poesia teve um desenvolvimento
extraordinario durante o reinado d'este monarcha, que
no Regimento de sua Casa admittia dois jograes de
Segrel, e que mandou educar seu filho Dom Diniz por
Ebrard de Cahors, francez meridional. A lingua fran
ceza gosava então de uma popularidade immensa ; era
o vehiculo de todas as tradições medievaes. Em Ingla
terra, no seculo XIII, as proclamações dos reis, o en
sino nas escholas, as balladas do povo eram em fran
cez ; na Italia, Brunetto Latini escrevia o Tesoro em

( 1) Padre Torquato Peixoto de Azevedo, Mem . ressuscit .,


t. I, p.229, ann. 1692.
28 CAPITULO 1

francez, porque achava esta lingua « plus ostendible


à tous vertueus et nobles courages... pour ce que la
parleure françoise est la plus gracieuse et delictable
de tous les autres languages, etpar consequent la plus
commune entre tous les princes chretiens.) Tal era a
ideia de D. Affonso III no plano da educação de seu
filho. Dante, no De Vulgari Eloquio, reconhece, ape
sar do seu patriotismo exaltado, que o francez é a
fonte das mais ricas tradições poeticas da Europa.
Nos velhos romances allemães acham -se palavras e ver
808 inteiros em francez, como no Tristam , de Gottfrid ,
A lingua franceza, servindo de modelo para as
composições poeticas portuguezas, fez com que o gal
lego , lingua especial da poesia até ao tempo de Affonso
o Sabio, decaisse para o uso popular, ficando o portu
guez a lingua das canções. D'esta influencia ainda
restam nas canções dos nossos trovadores versos intei
ros de estribilhos francezes, como :

Or sachaz veroyament
Que ie soy votre ome-lige.

No Cancioneiro de Dom Diniz, tambem se citam os


poemas francezes de Tristão e Yseult e de Flores e
Brancaflor; e de França veiu essa tradição da fideli
dade de Amadas et Ydoine sobre que elaboramos o
preciosissimo documento hoje perdido, do Amadis de
Gaula. A tradição do Rei Lear, que vem no Nobilia
rio do Conde D. Pedro, denota tambem que se conhe
cia n'este tempo em Portugal o Roman "du Brut. O
exercicio da metrificação obrigava a procurar ( trouver )
novas construcções grammaticaes aos nossos trovado
res , e a admittirem vocabulos extranhos para exprimi
rem a casuistica sentimental. Os documentos poeticos
foram numerosos, e ainda restam bastantes apezar de
se terem perdido muitos : O Cancioneiro da Ajuda,
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA 29
achado no espolio dos Jesuitas, e publicado por Lord
Stuart, e segunda vez por Varnhagen, com alterações;
o Cancioneiro de Dom Diniz , intercalado no Cancio
neiro manuscripto da Vaticana, que comprehende em
uma copia mais moderna os dois monumentos anterio
res ; e entre os perdidos, o Livro das Cantigas do Con
de de Barcellos, o Cancioneiro de Nossa Senhora de
el -rei Dom Diniz, o Livro das Trovas de El-Rei Dom
Affonso, encadernado em couro, o qual compilou F. de
Monte-Mór -o -novo, e se guardou na Bibliotheca de Dom
Duarte, o poema em redondilhas da Batalha do Sala
do, por Affonso Giraldes, ainda existente no seculo pas
sado, e finalmente 0o Cancioneiro do Conde de Marialva ,
que appareceu em Hespanha. São estes os principaes
monumentos da lingua portugueza do seculo XIII eXIV
no que respeita á sua cultura poetica. Está completa
mente creada a lingua para servir a nacionalidade por
tugueza e a sua litteratura. Vejamos de ella encontrou
as condições para este fim .
Caracter e tendencias do desenvolvimento
da lingua portugueza

a ) Os eruditos aproximam -n'a artificialmente do


latim.- Se procurarmos quaes os livros que consti
tuiam as riquezas scientificas da sociedade portu
gueza no seculo XIII, vemos que eram quasi todos la
tinos e exclusivamente da litteratura ecclesiastica. No
testamento de D. Mumadona, de 959, deixou ella
ao Mosteiro de Guimarães entre outras obras liturgi
cas, as Vitas Patrum , Apocalipsin , Etimologiarum ,
(de Santo Isidoro de Sevilha ), Dedeca Psalmorum ,
Regula beati Pacomië, Regulapuellarum , Institutiones
beati Ephren, Vita beati Martini Episcopi. (1) No pre
(1) Mon. hist., Diplomata et Chartae, vol. 1, fasc. 1, 64.
30 CAPITULO I

sente de livros mandados pelo mosteiro de Sam Rufo


para o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, vieram ,
Commentario a Sam João Evangelista e ao Genesis
por Santo Agostinho, Praticas sobre os Evangelhos de
Sam Matheus ee Sam Lucas; o Exameron de Santo Am
brosio; o Pastoral do mesmo, e o livro de Beda, Sobre
Sam Lucas. (1) Conhece-se tambem d'este tempo a Bi
bliotheca do Cabido da Sé do Porto. Por tudo se vê
que a erudição ecclesiastica absorvendo a instrucção e
alem d'isso banindo da liturgia os cantos vulgares,
tornou o latim a giria de communicação nas escholas;
por outro lado a renascença do direito romano, tornava
o latim a linguagem das allegações juridicas. As nu
merosas traducções do latim de que ha lembrança no
seculo xiv
XIV, fizeram adoptar artificialmente do vocabu
lario classico muitas palavras que não nos adviriam
nunca pela corrente do latim vulgar. As Universida
des começaram na Europa como um esforço para a
secularisação do ensino ; em Portugal tambem segui
mos essa corrente mas sem lhe perceber o alcance,
porque a Universidade de Coimbra nasceu protegida
pelo Bispo de Lisboa e pelo Prior de Santa Cruz de
Coimbra, que a dotaram . A lingua portugueza obede
ceu a esse pedantismo grammatical que se continuou
até aos Nebrixas, por isso que só teve um desenvolvi
mento de erudição ; a parte popular da lingua ficou
absorvida n’essa massa de elementos eruditos, em que
sem duvida perdeu muitas das suas riquezas e onde o
tacto philologico a reconhece.
b ) Falta de tradições nacionaes. - O motivo por
que a lingua portugueza só recebeu um desenvolvi
mento erudito, acha -se em um outro facto mais intimo,
isto é, na falta de tradições que o povo elaborasse e
transmittisse na sua linguagem , como aconteceu com a
(1) Ib •.,‫ ܙ‬Scriptores.
ORIGEM E FORMAÇÃO DA LINGUA PORTUGUEZA. 31
lingua e litteratura franceza. D'essa falta de tradi
ções, de que tanto se resentiu a lingua, resultou uma
grande falta de originalidade na litteratura portugueza,
que começou logo por imitar a poesia provençal atra
vés dos usos palacianos da côrte de Sam Luiz; e na
necessidade de imitar, a acceitar de preferencia os
modelos de auctoridade classica, contrarios ao espirito
individual o revolucionario das linguas neo -latinas.
Como não existiam tradições organicas, que interes
sassem o enthusiasmo do povo e o provocassem a trans
mittil-as, pode-se dizer, que o povo foi mudo até ao
tempo de Dom João I, em que nos apparecem os seus
primeiros cantos. A cultura latina ecclesiastica sup
priu-nos esta falta de tradições por lendasescriptas
artificialmente. O mesmo facto se deu com a Provença;
a persistencia da cultura latina suppriu a falta dos
elementos de epopêa com lendas individuaes. N'este
periodo da litteratura portugueza temos algumas len
das bastante curiosas, como a do Pagem doCavalleiro
Henrique, na Chronica dos Vicentes, a lenda de
Gaia , a do Solar dos Marinhos, a Dama pé de cabra
nos Nobiliarios, e os elementos legendarios para uma
epopêa sobre Dom Affonso Henriques, nas Chronicas
breves e memorias avulsas. Explicado o problema da
formação da lingua portugueza, e a relação intima da
lingua para com o espirito da sua litteratura, caracte
risemos as epocas do seu mutuo desdobramento.
PRIMEIRA EPOCA

TROVADORES E CANCIONEIROS
SECULO XII A XIV )

CAPITULO II

Os Trovadores portuguezes
Ophenomeno moral e litterario do apparecimento da poesia pro
vençal. -Teria o lyrismo da Provença uma origem popu
lar ? - Situação geographica, e condição ethnologica da
-

Galliza, parase communicar a Portugal e Hespanha a poe


sia provençal. - Trovadores que alludem a Portugal, ou o
visitaram , - Existencia de um elemento popular portuguez
d'onde saiu o lyrismo dos Cancioneiros. A Carta do Mar
quez de Santillana, e as formas populares da Serranilha,
Dizeres, Cantares de Amigo, de ledino e Guayados.-- canto
do Figueiral. — Cyclo dionisio ou jogralesco e a corrente
provençal pelo norte da França.— Dom Diniz e os seus
bastardos trovadores. - A introducção dos versos limosi
nos. — Lucta com as tradições poeticas bretans.-Ten
tativa de uma renascença da poesia gallega. - Emigra
ções de fidalgos gallegos para Portugal. - Vasco Pires de
Camões. --- Restos da tradição provençal em Sá de Mi
randa, Ferreira e Camões.

Apparecimento da Poesia provençal. - Teria


uma origem popular ou tradicional :

No seu primeiro periodo de desenvolvimento ve


mos as litteraturas romanicas imitarem as canções
de um exagerado subjetivismo o de um requintado
artificio poetico escriptas pela primeira vez na lin
gua d'oc, que se fallava na parte meridional da
França. ( 1087) Em quanto se estudou esta poesia se
parada das suas origens populares, pareceu ella como
OS TROVADORES PORTUGUEZES 33

um phenomeno extraordinario, um como acordar do


mundo moderno, uma harmonia orphica ao som da
qual se iam fixando os direitos civis e as instituições
sociaes. Porém o criterio positivo da filiação historica
reduz ao natural este phenomeno maravilhoso, que se
communicou ao norte da França, à Italia, & Peninsula
hispanica, e até á Inglaterra é Allemanha. Duas cau
sas ethnologicas nos explicam porque se deu de pre
ferencia o apparecimento d'esse lyrismo na Provença.
A zona geographica em que se operou esse desenvolvi
mento poetico abrange desde o norte do Loire, passando
pela ponta do lago de Genova, de Sevres ‘ niorteza
para oeste, ducado' de Aquitania, Auvergne, Rodez,
Tolosa, Provença e Vienna. ( 1) Foi justamente n'esta
zona que a raça gauleza ficou submettida á conquista ro
mana; o romano ao fixar o seu dominio não se cruzava,
comoaconteceu com o elemento germanico; comtanto que
se submettessem ás formulas da sua administração e lhe
reconhecessem a auctoridade, o romano deixava o livre
exercicio das crenças religiosas, dos costumes, das in
dustrias. Este facto, que se deu em todos os paizes que
obedeceram á conquista romana, e aonde a parte aris
tocratica imitava a civilisação de Roma, fez com que
na parte meridional da França o elemento gaulez se
conservasse puro, pelo menos em quanto ás suas tra
dições poeticas. Os cantos.gaulezes não apparecem es
criptos, porque era uma prohibição religiosa o reco
Jhel-os da tradição oral ; mas é certo que esses cantos
subsistiram ainda depois da conquista romana , porque
varios Concilios , como o de Auxerre , de 578, prohi
biam os cantos das donzellas , os cantos satyricos, e ao
mesmo tempo davam nomes infamantes aos que os can
tavam , como joculatores (que depois se tornou na pro
fissão dos jograes) os ministralles , scurrae , os mimi,

(1) Diez, Poesie des Troubadours, p. 1. Trad. Roisin.


34 CAPITULO II

jocista , e histriones. Estes cantos vulgares dos costu


mes gaulezes propagaram -se nas camadas populares,
sempre condemnados como despreziveis, até que um
facto politico veiu influir na importancia repentina,
isto é, na imitação e importancia litteraria que rece
7

beram . A primeira Cruzada, publicada em 1095, fez


com que o elemento senhorial, sempre admirador dos
eruditos ecclesiasticos, se ausentasse dos seus castellos
meridionaes, para a conquista do santo sepulchro ; foi
então que os cantos que eram simples costumes popu
lares receberam forma litteraria . Prova-se isto com
factos reproduzidos na propria poesia provençal : a sir
vente satyrica tinha sido o canto bardico com que se
castigava entre os gaulezes as acções indignas ; a rota ,
ou oinstrumento de corda, a que se acompanhava o
trovador, éaa croud gauleza, a que Venancio Fortunato
chamava chrotta britana ; as Cortes de Amor, aonde
se discutia a casuistica do sentimento e da galanteria
eram uma renovação do costume dos Puy ou assem
bleias poeticas ; o segrel, que apparece nas côrtes de
Hespanha e Portugal no seculo XII, como vêmos pela
canção de Giraud de Riquier:
E ditz als trobadors
Segriers por totas cortz.
é ainda derivado dos costumes gaulezes . No seculo x,
quando Hoel o Bom, mandou recolher as leis consue
tudinarias cambrianas, estatuiu acerca dos Bardos as
seguintes disposições que levam a inferir que o Segrel
deriva d'esses antigos costumes : « Quando a rainha
quizer ouvir um canto, o Bardo domestico será obri -
gado a cantar um á sua escolha, mas em voz baixa ,
ao ouvido, para que a côrte não seja perturbada. » ( 1)
( 1) Leges Walliæ ecclesiasticce, etc. Londres, 1730, p . 35.
Ap. Ampère, Hist. litteraire de la France, t. 1, p. 70. Éd . 3.a
OS TROVADORES PORTUGUEZES 35

Este facto justifica a derivação de Segrel de Se


cretela , que segundo Durand, no Rationale, significa a
oração em voz baixa. D'aqui se vê, que se o jogral
vagabundo tinha a sua origem popular, o trovador se
dentario tambem provinha da tradição consuetudina
ria. As divagações nocturnas, provocadas pelo clima
agradavel da zona gallo-romana, é que motivaram as
fórmas poeticas provençaes da Aubade e da Serena .
A contra prova, de que a efflorescencia da poesia pro
vençal proveiu da liberdade popular e da importan
cia nova dos antigos costumes, está em que este ex
plendor poetico só dura no intervallo em que se succe
dem as Cruzadas. Da primeira ( 1095) até á ultima
Cruzada, (1268) é que o lyrismo provençal attinge a
sua plenitude. Uma outra causa da vitalidade da tra
dição popular gauleza no momento em que toma o cara
cter de litteratura provençal, é essa lucta de absorpção
da França feudal do norte para submetter a França
meridional democratica o governada por instituições
municipaes. Dá-se aqui a grande lei de Lemecke: 0
conflicto d'estas duas raças, gallo-frankos e gallo-ro
manos, produz um desenvolvimento de poesia . Porém
a França do norte venceu , e o triumpho ensanguenta
do na cruzada contra os Albigenses, trouxe a ruina da
litteratura provençal, mas aomesmo tempo a sua dif
fusão e imitação nas diversas côrtes da Europa.
Os trovadores serviram com os seus cantos demo
craticos a causa da liberdade da França municipal ;
a origem tradicional do canto lyrico consuetudinario
recebia um novo vigor, pelo espirito de independencia
local que procurava elevar-se a nacionalidade. A poe
sia provençal tendo-se levantado dos costumes popu
lares , em 1095, volta outra vez para 0o povo em 1290,
quando os jograes se espalham por toda aa Europa. A
necessidade de communicar essa poesia nova, estabe
leceu * a unidade de um dialecto poetico, entendido
36 CAPITULO II

tanto na França do norte como na Inglaterra, na Ita


lia como na Galliza ; era o dialecto de Poitou . Esto
mesmo habito litterario fez com que na Peninsula his
panica o dialecto gallego fosse a linguagem commum
da poesia tanto para Portugal como para Castella .
Appliquemos agora estes principios, á luz dos
quaes a poesia provonçal se tornou um simples facto
de evolução ethnologica, para comprehender o sentido
do lyrismo dos Trovadores portuguezes.
Communicação do lyrismo da Provença
a Portugal

a ) Situação especial da Galliza para a commu


nicação da Poesia provençal.-- A zona aonde primeiro
despontou o gosto pelas canções provençaes foi ao norte
da Peninsula, no territorio que comprehende desde a
Galliza até ao Mondego. O Marquez de Santillana,
na Carta ao Condestavel de Portugal, accentua cla
ramente: « E depois acharam esta Arte, que Maior se
chama , e Arte Commum, creio, nos reinos de Galliza
e Portugal, aonde não ha que duvidar que o exerci
cio d'estas sciencias mais que em nenhumas outras
regiões e provincias de Hespanha se acostumou ; em
tanto gráo, que não ha muito tempo, quaesquer dizi
dores e trovadores d'estas partes, ou fossem castelha
nos, andaluzes ou da Extremadura, todas as suas
obras compunham em lingua gallega ou portugueza.
E ainda é certo que recebemos osnomes d'arte, como
maestria maior e menor, encadenados lexapren e man
sobre. » (1) Este periodo, que o Marquez de Santillana
fundamenta citando um Cancioneiro portuguez que vira,
sendo criança, em casa de sua avó D. Mecia de Cis
neros, é fecundissimo em revelações. Em primeiro lo
(1) § xiv. Apud Poetas palacianos do seculo XV, p. 166.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 37

gar apparece-nos a Galliza, que então comprehendia


Portugal, como o ponto aondo primeiro se manifes
tou esse novo lyrismo . N'esta prioridade, distingue as
duas formas porque a poesia provençal se manifesta,
à Arte Maior, ou aquella em que se usam os deca
>

syllabos limosinos, e a Arte vulgar, ou os versos usa


dos pelos dizidores . Em terceiro logar mostra que a
lingua gallega era um dialecto poetico commum a Por
tugal, aonde era ingenito, a Castella, a Extremadura
e Andaluzia . Por fim mostra quaes eram as formas
poeticas da poesia provençal ou de Arte maior usadas
em Portugal e Galliza, taes como maestria menor, que
emprega os versos de redondilha , os encadenados, o
lexapren e o mansobre. No $ xv da mesma Carta,
çita o Marquez de Santillana as fórmas poeticas da
Arte vulgar as quaes são « cantigas, serranas , (ou
serranilhas) e dizeres portuguezes e gallegos . Por esta
ultima parte se vê que a poesia provençal tambem
tem entre nós uma origem popular, como adiante pro
varemos .

Ha uma causa organica para este predominio do


lyrismo na zona da Galliza; sob o ponto de vista ethno
graphico, foi na região da Galliza que se estabele
ceram os Suevos ; este ramo das raças germanicas,
pelo facto de ter sido o mais catholico de todos, per
deu mais cedo e completamente as suas tradições
epicas e cantilenas heroicas. Isto se deu, mas sinpre
com lucta, com o ramo gotico egualmente. Demais,
absorvida e disputada ou desmembrada, a Galliza não
chegou a ter vida nacional e independente, e por isso
não chegou a elaborar tradições. Sem interesse pela
lucta das novas nacionalidades, e sem se recordar, sob
a pressão catholica, das antigas cantilenas condemna
das, entregue a uma vida pastoral e agricola, a Gal
liza acceitou por via da Aquitania o primeiro influxo
lyrico da Provença. Os habitos da sua vida propria
38 CAPITULO II

por si creavam os cantares actuaes, derivados das si


tuações simples de quem trabalha nos campos, baila
nos dias sanctificados e se diverte com romarias. Era
uma Arcadia temperada pela devoção catholica. E'
este o espirito das canções que conhecemos através das
imitações aristocraticas. A este genero poetico, cha
mava o Marquez de Santillana no principio do seculo
xv, Serranas o Dizeres, que ainda no seculo xvi se
conservavam em Portugual na tradição litteraria de
Gil Vicente, Christovam Falcão, Sá de Miranda ee Ca
mões. O que vimos da situação da Galliza , dá -se tam
bem com o norte de Portugal , aonde ainda hoje se nota
a falta de romances épicos, que abundam na Beira
Baixa, Algarve e Açores. A Galliza ainda conserva
o seu antigo estribilho poetico o Alalála , ao qual se
refere Silio Italico : « ululantem carmina .) Ein Portu
gal ainda se conserva esse outro estribilho o Ay, dos
cantares guayados, de que falla Gil Vicente . Desde o
momento que os nossos trovadores procurassem assum
pto proprio para os seus cantos, tinham fatalmente
de recorrer à riquissima veia da tradição popular.
b) Phase italo -portugueza : Trovadores que vie
ram a Portugal. - Fauriel cita o trovador Marcabrus,
que pertencia ao ramo da Gasconha, da eschola poe
tica da Aquitania, como tendo frequentado as côrtes
christans d'áquem dos Pyreneos, « nomeadamente a
de Portugal , o é o0 unico dos trovadores positivamente
conhecido por ter visitado esta ultima.» (1) Foi este
trovador o que incitou pelos seus cantos e que provo
cou a alliança das pequenas potencias das costas do
Mediterraneo com Affonso VII, contra os Almohades.
Diz elle : « Que o Conde de Barcelona persista somente
na sua resolução com o Rei de Portugal e o de Na
varra,, immediatamente iremos plantar nossos pavi
(1) Fauriel, Hist. de la Poesie provençale, t. II. p . 6.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 39

lhões junto aos muros da imperial Toledo, e destruir


os pagãos que a guardam.j)
Ab lavador de Portegal,
E del rei navar atretal,
Ab sol que Barsalona i a vir
Ver Toleta l'emperial
Segur poirem cridar reial
E paians gen desconfir. (1)
Dom Affonso Henriques tomou parte n'esta pe
quena cruzada, e teve assim occasião de conhecer a
organisação das republicas italianas, que tanto in
fluenciaram no espirito de independencia local das car
tas foraleiras. Em 1146 , casou estemonarcha com uma
princesa italiana, D. Mafalda. (Mahaut) O nome de
Potestade, de algumas familias citadas no Livro velho
das 'Linhagens, denota quo no séquito d'essa rainha
vieram italianos para Portugal, bem como alguns tro
vadores, como era então de costume. E provavel que
>

Marcabrus viesse a Portugal por 1146 ; elle allude em


outro logar dos seus versos a Portugal.
En Castella et en Portugal
No trametre aquestar salutz ; (2)
Gavaudan 0o Velho, incitando por meio de uma can
ção os monarchas da Peninsula contra a invasão de
Mahomed al Nassir, que chegara a Sevilha com cento
6 sessenta mil homens, allude a Portugal exclamando
ironicamente :
Portugales, Gallicx, Castellas,
Navars, Arragones , Ferraz
Lura ven en barra gequitz
Qu'els an rahuzatz et unitz (3).
(1) Rayaonard, Choix des Poesies des Troubadours, t. iv,
p. 130-131 .
Apud Baret, Les Troubadours, p . 192.
Raynouard, Choix des Poesies, t. iv, p. 86-87.
40 CAPITULO II

Segundo Baret, as Canções de Cercamons e de


Peire Valeira, tambem foram conhecidas em Portu
gal, (1 ) o de Peire Vidal ha tambem indicios de ter
estacionado aqui algum tempo. O contracto de casa
mento do filho de Raymundo de Beranger, um dos
grandes protectores dos trovadores, com uma filha de
D. Affonso Henriques, e depois o casamento de D.
Sancho i com D. Dulce, filha do Conde de Provença,
são factos que nos explicam o motivo por que differen
tes trovadores visitaram Portugal. Differentes armadas
de cruzados aportaram em Portugal ; eram estes caval
leiros quasi sempre acompanhados de trovadores ; na
tomada de Lisboa se achou um guerreiro, que descre
veu a campanha em versos latinos, o Carmen Gosui
nus, hoje publicado nos Monumenta historica.
Elemento popular do lyrismo provençal
portuguez

Nem somente os cantos épicos precisam do elemento


tradicional, de que se inspiram ; como vimos com rela
ção á Provença , tambem as canções lyricas anteriores
a el-rei Dom Diniz e da época d'este monarcha rece
beram o influxo fecundo do genio popular. No meio
das insipidas allegorias e subtilezas sentimentaes dos
trovadores portuguezes, todas aquellas composições
moldadas sob o gosto das serranilhas, resaltam por
uma graça ingenua que as melhores composições mo
dernas não attingem . As similhanças notadas entre al
gumas d'essas composições portuguezas e as antigas
ballettes francezas e as balladas provençaes , (2) pro
vém d'um mesmo typo popular, commum ao Meio-dia,
o qual entre nós foi maisdominante. Nos costumes po
(1) Les Troubadours, p. 119.
(2) Romania, t. II, p. 265.
os TROVADORES PORTUGUEZES 41

pulares existem os vestigios por onde se prova a vita


lidade de uma certa poesia lyrica. No primeiro Con
cilio de Braga, prohibe-se o cantar-se nas egrejas can
tigas, a não serem unicamente os psalmos; e um Ca
non de Sam Martinho de Braga, exclue da liturgia
« Psalmos compositos et vulgares. Em algumas egrejas
do arcebispado ainda hoje o povo toma parte na li
turgia com os seus cantos. Ainda existe a designação
de clamores, a reza sobre as sepulturas, que tinha sido
uma forma poetica popular da edade media, como o
Vocero em Italia ; o tamo era o canto nupcial ou a
dansa, prohibida pela reforma dos Foraes por Dom Ma
noel; o Arremedilho pago a Dom Sancho I por Bon
Amis e Acompaniado, denota -nos que entre nós exis
tiu essa classe jogralesca dos Remendadores, de que
falla Giraud de Riquier. Finalmente el-rei Dom Duarte
prohibe o uso das cantigas sagraes, como seu pae já
havia prohibido o bradar sobre finado. O gosto musi
cal das povoações do Minho era tão persistente, que
ainda no principio do seculo XVII escrevia o Marquez
de Montebello; Com grande destreza se exercita a
(

musica, que é tão natural em seus moradores esta arte,


que succede muitas vezes aos forasteiros que passam
pelas ruas, especialmente nas tardes de verão, parar
e suspenderem-se ouvindo as trovas que cantam em
córos, com fugas e repetições, as raparigas, que para
exercitar o trabalho de que vivem lhes é permitti
do... (1)
As repetições de que falla o Marquez de Monte
bello, são os estribilhos ou retornellos das pastorellas,
que tiveram o nome nacional de Serranilhas. Traze
mos para aqui este importante facto para mostrar não
só que a musica era a parte principal das Serranilhas,
ao contrario do que succede com os romances narra
(1) Ap . Introducção á Hist. da Litt. portug., p . 83.
42 CAPITULO II

tivos, mas que foi pela musica , que essas composições


entraram nas collecções litterarias do seculo XIV, sendo
por isso tomadas por typos.
Nos Canti antichi portoghesi, Ernesto Monaci pro
duz um facto importantissimo, que fundamenta este
modo de vêr : é uma canção de Ayres Nunes moldada
com versos inteiros de outra de João Zorro, sem com
tudo se poder concluir qual foi o plagiario. Acredita
mos de preferencia, que nem um nem outro foi plagia
rio, e que ambos se serviram de uma letra ou tono
conhecido para fazerem um son ou cantar. Aproxime
mos as duas peças, para se fixar bem este facto fun
damental :
De João ZORRO

Bailemos agora, por Deus, ai velidas


So aquestas avelaneiras frolidas;
E quem for relida, como vós velidas,
Se amigo amar,
So aquestas avelaneiras granadas
Verrá bailar !

Bailemos agora, por Deus, ai loadas


So aquestas avelaneiras granadas
E quem for loada, como vós, loadas
Se amigo amar ,
So aquestas avelaneiras granadas
Verrá bailar (1)
DE AYRES NUNES

Baylemos já todas, todas, ay amigas


So aquestas avelaneiras floridas,
E que for velida como vós velidas
Se amigo amar
So aquestas avelaneyras floridas
Verrá baylar.

0
(1) Cancioneirinho de trovas antigas, n.° 14, p. 31.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 43

Baylemos já todas, todas, ay, yrmanas


So aqueste ramo d'estas avelanas;
E que for louçana como vós louçanas
Se amigo amar
So aqueste ramo d'estas avelanas
Verrá baylar. (1)

Este paradigma encerra a explicação do meio como


a Serranilha popular entrava nos Cancioneiros ; a aris
tocracia cultivava a musica e ensoava; servia-se da ve
lha letra das tonadilhas vulgares para fixar a sua
composição melodica, do mesmo modo que em França
se cantava na missa a canção popular de Belle Alix
matin leva . A tendencia da imitação popular, fez com
que a instituição jogralesca recebesse um certo favor
e viesse a dominar nos usos publicos, a ponto de ver
mos já no tempo de Dom Diniz os trovadores palacia
nos defenderem -se para que os não tomem porjograes,
porque esses só cantam na estação das flores:

Mais os que troban no tempo da frol


E non en otro ...

Que os que troban quando a frol sazon


Ha, e no ante .....
Ca os que troban, e que se alegrar
Van, en o tempo queten a calor
A frol consigue, tanto que se for
Aquel tempo, logo eu trobar razon
Non han .. (2)

Estes versos'escriptos em endecasyllabos ( em ma


neira de Provençal, como particularisa el-rei Dom Di
Monaci,
(1)estrophe
outra .
Canti antichi portoghesi, p. 5, 6. Traz mais
( 2) Cancioneiro de D. Diniz, p. 70.
44 CAPITULO II

niz) condemnam a forte influencia das Serranilhas, em


arte menor ou vulgar, caracterisando-as pelo facto a
que ellas mais alludem, que é a estação florida, como
se pode verificar em muitas canções :
-- Ai flores, ay flores do verde pino.
Vede la flor del pino.
Só aquestas avelaneyras frolidas.
- Sob o ramo verde florido. ( Passim .)
O trovador servia-se da letra vulgar e sobre ella
compunha, como vemos por esta authoridade de Julião
Bolseiro :
Mais como x' é mui trobador
Fez umas lirias no son,
Que mi sacan o coraçon. (1)

Quer dizer, compoz o canto da fórma poetica pro


vençal chamada lyra. Os nomes dos trovadores que
assignam as mais ingenuas Serranilhas são plebeus,
não se encontram nos Nobiliarios, o que nos prova
que tinham realmente uma communicação directa com
o povo, e que eram ao mesmo tempo indispensaveis
para as festas palacianas. Nas proprias canções artis
ticas achamos fragmentos intercalados de genuinas
canções populares, não continuadas por serem bem co
nhecidas. Gil Vicente tambem procedia d'este modo,
quando intercalava nos seus Autos tonadilhas vulga
res. Em uma Canção de Ayres Nunes, vem esta Ser
ranilha, que elle ouviu cantar a uma pastora :
Sob o ramo florido
Vodas fazem ao meu amigo.
Choram olhos de amor ! (2)

(1) Cancioneirinho de trovas antigas, p. 97.


(2) Ibidem , p. 13.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 45

A influencia do gosto popular communicado ás Can


ções eruditas conhece -se que era forte, pela continua
persistencia d'essas Serranilhas, que penetraram na
litteratura até ao seculo XVII, em que este gonero po
pular se extinguiu . Nas Obras de Gil Vicente, como
primeiro notou Frederico Diez, (1) encontramos ainda
typo das Serranilhas intercaladas nos seus Autos,
sempre a pretexto da musica. Tambem natural do Mi
nho, e profundamente observador, Gil Vicente recolhe
as duas correntes populares, a dos Romances, que cita
com frequencia, e que pertence a Beira Baixa, e as
cantigas lyricas do Minho, a que elle chama Cantar
gayado, (2) da neuma guay, que nas Serranilhas é o
Ay com que ainda hoje se começam . Gil Vicente, em
uma rubrica de um cantar que faz repetir a um per
sonagem dos seus Autos, diz : a arremedando os da
serra.» (3) Da forma do Dizer, ainda no seculo XVI
se dava o nome de Dizidor ao poeta popular ; assim
era conhecido o chistoso Chiado amigo de Camões e
de Jorge Ferreira. (4) A designação de Arte vulgar,
e o nome de lingua ladina dado a que o povo fallava,
leva-nos a filiar n'esta classo os cantos de ledino, a
que allude Christovam Falcão, na Ecloga de Cristal:
Antre estas soo , saudosa
vi antre duas ribeiras
huma serrana queixosa
cercando umas cordeiras,
sendo cordeira fermosa .

(1) Uber die erste portugiesische Kunst-und Hofpoesie,


p. 100.
(2) Obras, t. 1, p. 143.
( 3) 16. t. 1 , p. 444 .
(4) Sobre esta forma poetica, vid. Epopeas mosarabes,
p. 80.
46 CAPITULO II

Tendo parecer divino


para que melhorlhe quadre
cantou canto de ledino :
Yo me yva la, mi madre,
a Santa Maria del pino. (1)
No Cancioneiro da Vaticana apparecem bastantes
cantares de ledino, dignos de se approximarom do
fragmento que vem como centão no Crisfal; eis um de
Martin Pedrozelos :
Por Deus, que vos non pres
Mha madre, mha senhor,
D'ir a San Salvador,
Ca si oje y van tres
Fremosa eu serei
A hua, beu o sei .
Por fazer oraçon
Quer ' oj'eu a la ir ;
E por vos non mentir
So oj' y duas son.
Fremosa eu serei
A hua, ben o sei .

Y é meu amig', ay !
Madre, il- o - ei vêer,
Por lhe fazer prazer :
Sę oj'y hua vai
Fremosa, eu serei
A hua, ben o sei . (2)

Todos os cantares d'este genero referem -se a ro


marias, ainda hoje muito dos costumes populares de
todo o paiz :

A la egreja de Vigo,
É o amor salido, etc.

Obras de Christovam Falcão, p. 6.


Cancioneirinho , n.º XXXI.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 47

- Non poss'eu , madre


Ir a Santa Cecilia, etc.
-Ora vou a San Servando,
Donas, fazer romaria, eto.
-- Amigo, se me grande ben queredes,
Ide a Sam Mamede veer -m'edes, etc.
Se quizer ir a Santa Maria
Que se non vaa pela Trindade , etc.
Seria -m'eu na ermida de S. Simon
E cercaram -me as ondas que grandes son ; etc. (1)
Por todas estas differentes canções se vê, que o
canto de ledino era especialmente o que se usava nas
vigilias das romarias, o cra assim chamado pelo con
traste com o pretexto religioso que os provocava .
N'este genero popular tambem se encontra uma outra
subdivisão, a dos Cantares de amigo ; em uma das
partes do Cancioneiro de D. Diniz vem a rubrica : « Em
esta folha se.começa as cantigas de amigo, ... ) são can
tigas de amor , dirigidas a quem inspirou esse senti
mento, caracterisadas pela invocação Ay meu amigo,
rigorosamente popular. Depois de enumerarmos as fór
mas provençaes portuguezas derivadas da tradição po
pular, importa vêr a persistencia d'este genero na lit
teratura. Aproximemos uma velha Serranilha do Can
cioneiro da Vaticana de qualquer das de Gil Vicente,
o vêr-se-ha um mesmo espirito e gosto popular :
DE PERO ALCOBO

- Digades, filha, mha filha velida


Porque tardaste na fontana fria ?
« Os amores ei.

(1 ) 16., ( passim .)
48 CAPITULO II

– Digades, filha, mha filha louçana,


Porque tardaste na fria fontana ?
« Os amores ei.

Tardei, mha madre, na fontana fria,


Cervos do monte a agua volviam. Etc. ( 1)
DE GIL VICENTE

--D'onde vindes, filha, branca è colorida ?


« De lá venho, madre, de ribas de um rio ;
Achei meus amores n'um rosal forido .

- Florido, enha filha, branca e colorida ?


« De la venho, madre, de ribas de om alto,
Achei meus amores n'um rosal granado.
-Granado, enha filha, branca e colorida. ( 2)
E no mesmo estylo e quasi com o mesmo pensa
mento, recolhe Gil Vicente esta outra lição :
Del rosal vengo, madre,
Vengo del rosale.
A riberas d'aquelle vado
Viera estar rosal granado.
Vengo del rosale.
A ribera d'aquelle rio
Viera estar rosal florido .
Vengo del rosale.
Viera estar rosal florido,
Cogi rosas con suspiro .
Vengo del rosale. (3) !
!

Cancioneirinho , p, cxiv.
(2) Obras, t. III, p. 270.
Obras, t. 11, p. 481-82.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 49

Eis uma Serranilha de Pedro Gonçalves de Porto


Carrero,cujo typo estrophico é exacto é conform e com
as de Gil Vicente :

PORTO CARRERO

O anel de meu amigo


Perdi-o sol-o verde pino ;.
E chor'eu bella.

O anel do meu amado


Perdi- o sol.o verde ramo ;
E chor'eu, bella, etc. (1)
GIL VICENTE

Já não quer minha senhora


Que lhefale em apartado.
0 que mal tãoalongado.

Ir -me-hei gó pelo mundo


Onde me levar a dita.
Oh que mal tão alongado. (2)
O mesmo espirito de uma Serranilha de Pero Garcia
Burgalezse encontraemoutraanaloga conservada
Vicente
porGil :

PERO GARCIA BURGALEZ


Ay madre, bem vos digo,
Mentiu -me o meu amigo;
Sanbuda and'eu !

Do que m'houve jurado ;


Pois mentiu -me por seu grado.
Sanhuda , and’eu ! etc. (3)

(1) Monaci, Canti antichi portoghesi, p. 11.


Obras, t. II, p . 444.
Cancioneirinho, n.º XXVII .
50 CAPITULO II

GIL VICENTE

Que sanhosa está la niña,


Ay Dios, quien le hablaria ?
En la sierra anda la niña,
Su ganado a repastar ,
Hermosa como as flores,
Sanhosa como la mar.

Sanhosa como la mar ,


Está la niña,
Ay Dios, quien le hablaria ? (1)
No seculo XVI, quando os nossos poetas obedeciam
á dupla influencia castelhana e italiana, tambem fo
ram á poesia popular buscar motes velhos, glosando-os
em diversas oltas, ou contrafazendo-os ao gosto do
vulgo. Este facto ajuda a explicar como o lyrismo do
povo influiu nos Cancioneiros. Sá de Miranda traz
uma cantiga, que era Cantada pelas ruas em dialogo :
Naquella alta serra -me quero ir morar ;
Quem bem me quizer - lá me irá buscar .

Esta barcarolla de Nuno Fernandes de Torneol :


Vej'eu, mha madr', andar
As barcas en o mar ;
E moiro-me d'amor ! etc. (2)
é ainda o mesmo espirito d'essas coplilhas de Camões :
Ir-me quiero, madre,
A’quella galera,
Con un marinero
A ser marinera..

(1) Obras, t. I, p. 46 .
Cancioneirinho, P. XLVI.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 51

Estas coplas são verdadeiramente populares, por 7

que na scena iv do Filodemo, repete como em ane


xim : « acolheu -se a uma galera ; e vêde la Princeza
em huma galera nueva :
con el marinero
á ser marinera . »

Ainda se conserva na tradição popular portugueza


o typo da Serranilha, sobretudo n'essas coplas conhe
cidas nas collecções com o titulo de Linda pastorinha.
Assim como esta tradição das Serranilhas populares
chegou até Gil Vicente, Christovam Falcão, "Sá de
Miranda e Camõos, adiante veremos como a tradição
litteraria
culo XVI.
provençal foi egualmente conhecida no se

O cyclo dionisio e a corrente franceza

a) Elemento portuguez nas Canções : Estribilhos


historicos.- Uma vez determinado um elemento po
pular no lyrismo da eschola provençal portugueza, essa
seiva profunda devia incutir alguma cousa de priva
tivo n'esses cantos allegoricos, desprendidos quasi sem
pre de toda a realidade. De facto no Cancioneiro da
Ajuda encontra-se uma canção, que pelo seu estribilho
póde referir -se á tomada de Santarem em 1147 ; diz o
trovador :

E nom sey ome tan entendudo,


Que m'oj'entenda o porque digo:
Ay Sentirigo ! ay Sentirigo !
Al e Alfanx, e al Sesserigo. ( 1)

(1) Trovas e Cantares, n.° 119.


**
52 CAPITULO II

Em uma relação da tomada de Santarem em prosa


poetica latina, (1) que chegou a ser attribuida ao pro
prio D. Affonso Henriques, aí se diz que os que ata
caram pelo lado direito subiram o Alphan; postoque
esta fórma latina esteja alterada, achamol- a no se
culo xv egual á do Cancioneiro, em Ruy de Pina, na
Chronica de D. João II : « E sendo já el-rei no ter
reiro de fóra, o olhou para traz contra os paços, e viu
já o principe e a princeza a uma janella, de cuja vista,
porque sempre era muy alegre, rindo -se lhe fez sua
mesura, e abalou adiante para o Tejo, caminho d'Al
fanxe.» (2) Na tomada de Santarem , Gonçalo Gon
salves atacou pelo lado esquerdo, por Seterigo , como
diz a relação poetica, que é identico ao Sentirigo da
Canção ; Sesserigo designava o mesmo arrabalde, ou
parte baixa de Santarem , como se vê em um docu
mento dos Templarios de 1159, citado por Viterbo (3 ). .

O estribilho da Canção era tirado do grito de guerra


tradicional; a côrte portugueza de D. Affonso III fi
xou-se em Santarem , mas como diz o velho trovador
já não havia aíentre essa geração nova quem enten
desse o porque dizia Al e Alphang e al Sesserigo. Só
a communicação com a poesia do povo é que podia
influir n'esta originalidade do trovador. Um outro es
tribilho, notavel por se referir a um costume portu
guez é o d'essa Canção satyrica contra Dom Affonso II :
Quem da guerra levou cavalleiros
E a sa terra foi guardar dineros :
Non ren al Maio ! etc. (4)
Nos documentos do direito consuetudinario portu
guez, encontram-se as phrases Morabitino de Maio, e
(1) Append. da Monarchia Lusitana, Part. II, escript. 20.
(2) Op. cit. , cap. 50, p. 132.
(3) Elucidario, t. 1 ,p. 358.
(4) Cancioneirinho, fl. cxxx .
OS TROVADORES PORTUGUEZES 53

Cavallo de Maio, especie de tributo ou fossad eira que


se pagava para alimentar a guerra sagrada da fron
teira, que tinha de começar n'este periodo do anno
regularmente. ( 1) Estes documentos de 1250 , expli
cam -nos o sentido nacionaldo estribilho satyrico. Na
Carta do Marquez de Santillana, cita-se entre as fór
mas poeticas que caracterisam a Arte mayor usada na
Galliza e em Portugal, os versos encadenados, o lexa
pren , e o mansobre. Estas fórmas são peculiares do
artificio provençalesco, mas é certo que appareceram
primeiramente em Portugal com relação à Peninsula .
Chamava-se Canson redonda, aquellaem que o ultimo
verso da estrophe se repetia no começo da seguinte ;
mas tinha a designação de encadenada, quando a rima
que finalisava a estrophe servia de primeira á estrophe
nova. Diez cita a rubrica de uma canção de Giraut
Riquier, que diz : « Canson redonda et encadenada de
motz o de son. ) (2) No Cancioneiro da Ajuda appa
rece frequentemente o cncadenado, sendo a primeira
rima repetida no primeiro verso de todas as outras
estrophes :
1 .. st . Nu ca fiz cousa de que me tão ben
2.a st. E tenho que me fez Deus mui gran ben
3. st. E de pran sempre, des que lh'eu quis ben,
4. * st. Porque quero tão boa dona ben . (3)

ou a ultima rima repetida sempre, mas não como es


tribilho :
1.a st . Nen ar desejas neum ben .
2.a st . Eu por el prendo neum ben.
3. st. D'este mundo, nen prestar ben.
4. st . A null'ome nado, nen ben. ( 4)
(1) Herc. , Hist. de Port., t . 111, p. 325.
(2) Les Troubadours, p. 119.
(3) Trovas e Cantares, n.º 223.
(4 ) Ibd ., n.o 78.
54 CAPITULO II

O segundo caracteristico da poetica provençal por


tugueza , apontado pelo Marquez de Santillana, era o
lexapren ; consistia em repetir o ultimo verso da estro
phe como primeiro da que se lhe seguia. Na Canção n.º
114, temos um exemplo :

1. st. E rogo a Deus, que mais d'oje este dia


Non viva eu, se m'el y non conselho.
2. st. Non viva eu , se m'el y non conselho
Non viverei, non é cousa guisada...
Que se eu moir' assi d'esta vegada
Que a vol.o demande meu linage.
3. st. Que a vol-o demande meu liñage
Señor fermosa, cá vós me matades...
E ide-vos, e me desamparades,
Desampare -vos Deus, a quem o eu digo
4. st. Desampare -vos Deus, a quem o eu digo
Do mal per fic'oje eu desamparado, etc.
A terceira forma notada por Santillana era o Man
sobre, que consistia no artificio da rima, ora no meio
e fim do verso, e então se chamava mansobre doble; ora
somente no meio, e era o mansobre sencilho ou menor.
No Cancionero de Baena, o verso « Sin doble manso
bre, sencillo ò menor » mostra -nos que só no se
culo xv é que se vulgarisou em Hespanha esta forma;
o mansobre-menor eraainda usado noseculo XVI por Sá
de Miranda. No Cancioneiro da Ajuda encontra - se um
notavel exemplo da complicadissima forma do manso
bre doble :

Vi eu viver coitada, mas nunca tan coitado


Viv'eu com’oj' eu rivo, nen o vio ome nado,
Des quandofui ú fui, e a que vol-o recado, etc.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 55
bor
30
Todo este artificio denota-nos já uma imitação cal
tro
culada, uma affectação, para seguir um gosto domi
nante . Vejamos essa influencia d'onde veiu .
b) Influencia do norte da França.- A Canção n .
140 das Trocas e Cantares, (edição tumultuaria do
Cancioneiro da Ajuda) traz um retornello francez re
stituido admiravelmente por Frederico Diez ; esse re
tornello allude a costumes feudaes, que não existiram
no sul da França , e muito menos em Portugal ; o tro
vador, para exprimir o sentimento de fidelidade pela
sua dama, constitue- se seu home-lige :
Dizer-vos quero una ren,
sempre ben quige:
Señor, queveroaya
Or sachaz men ,
Que ie soy votre ome-lige.

Não é isto um facto isolado, que se poderia expli


car por conhecimentos particulares, de um dado trova
dor, dos costumes francezes; no grande Cancioneiro da
Vaticana 4803, apparecer outros documentos que cor
roboram este ; em uma Canção de Pedr'Amigo de Se
*
vilha, repete-se a allusão ao home-lige:
E por aquesto vos venho rogar
T.
Que eu seja vosso ome esta vegada. (1 )

Em outra Canção, de João de Aboim , fidalgo que


pertence a uma das familias insurgidas contra Dom
Sancho II, e que se reuniram junto de D. Affonso III,
que frequentava a côrte de Sam Luiz, achamos esté
começo :

Cavalgava n'outre dia


Por um caminho francez

(1) Monaci, Canti antichi portoghesi, n.. xii.


56 CAPITULO II

E huna pastor ouvia


Cantando com outras trez, etc. (1)

No Cancioneiro da Ajuda , encontra-se outra Can


ção em que se allude a um imposto feudal francez, o
Garbagium , que descrevo Ducange; na Canção portu
gueza toma-se esse direito feudal no sentido figurado :
E vós, filha de don Pay
Moniz, e ben vos semella
D'aver eu por vós guarvaya. ( 2)
El-rei Dom Diniz, em uma Canção diz, que vae fa
zer um cantar á maneira da Provença, isto é, allego
rico , e metreficado pelo systema limosino, ou de doz
syllabas, ao contrario do genero das Serranilhas :
Quer'eu en maneira de Proençal
Fazer agora un cantar de amor... ( 3)
E, caracterisando bem o estylo que quer seguir nos
seus versos, el-rei Dom Diniz distingue bem aquelles
que cantam por officio, sem paixão, nem amor, que
são os jograes :

Proençaes sóem mui bem de trobar,


E dizem elles que é com amor ;
Mais os que troban no tempo da flor,
E nom em outro,sei eu bem que nom
Hảo tan gram coita no seu coraçom ,
Qual m'eu por minha senhor vejo levar. ( 4)
As provas d'esta corrente franceza abundam ; ago
ra já não é a imitação poetica, é tambem a leitura

( 1) Monaci, Canti antchi portoghesi, n.° XI.


( 2) Trovas e Cant. frag. g . p. 305 .
3) Cancioneiro de Dom Diniz, p. 64.
( 4) Tbid ,., p. 70 .
OS TROVADORES PORTUGUEZES 57

dos monumentos litterarios do norte da França . El-rei


Dom Diniz conhece esses typos dos amantes celebres
dos popularissimos poemas da edade modia, symbolos
da fidelidade, Tristão e Yseult, Flores e Branca -flor ;
nas suas Canções o monarcha portuguez compara -se a
esses typos tradicionaes dos poemas de aventuras :
Qual mayor posso e o mais encoberto
Que eu posso e sei de Branca -flor
Que lhe não houve om Flores tal amor,
Qual vos eu hey ....
Qual mayor posso e o mui namorado
Triste, sey bem que nom amou Oseu
Quanto eu vos amo .... ( 1)
N'este ponto a tradição litteraria encontrou-se com
a tradição popular, porque o typo de Tristão foi re
produzido pelo nosso povo no romance do Conde Niño;
e Branca -flor vulgarisou -se tambem na fórma popu
5 lar de conto . ( 2) Na litteratura portugueza, por isso
que não teve tradições sobre que elaborasse epopeas,
falta a designação d'este genero, a que a França e a
Hespanha chamam Canção de Gesta ou simplesmente
Gesta . Uma só vez nos apparece este nome usado por
um trovador dos que estiveram com Dom Affonso III
em França; Affonso Lopes Baião escreveu em forma
monorrima, e com a nouma Aoi da Chanson de Roland,
uma Gesta de mal dizer, especie de satyra pessoal
moldada nas fórmas épicas francezas. De todos estes
factos conclue -se, que a introducção do gosto proven
çal data desde 1238, epoca em que o Affonso III,
então infante, se achava em França.
Logo que Dom Affonso III subiu ao throno, man
dando organisar o Regimento da sua Casa, em 1245,
Canc, de Dinix, p. 53.
Romanceiro geral portugulx , n.08 14 e 38 .
58 CAPITULO II

estabeleceu ao modo de França : « El-Rei aia trez jo


gráres, em sa casa e nom mais, eo jogral que veher
de cavallo d'outra terra, ou segrel, dê-lhe el-rei ataa
cem (maravedis ?) ao que chus der, e nom mais se
lhe dar quizer. » ( 1) No Cancioneiro ms., que se guarda
na Bibliotheca Vaticana , encontramos os seguintes jo
graes : Affonso Gomes, jograr de Sarria ; Ayres Do
res, jograr ; Diogo Pezelho, jograr ; João,jograr, mo
rador em Leon ; Lopo, jograr . Este ultimo parece ter
pertencido á corte de Dom Affonso III, por que fala
nas parcialidades e favoritismo da côrte, com que o
rei distinguia as familias que lhe deram o throno :
Vós que soêdes em côrte morar,
D'estes privados queria saber
Se lhes hade privança muito durar ... (2)
Como já observámos, a imitação provençal come
çou propriamente em Portugal pela influencia do norte
da França, aonde essa poesia estava tambem na moda
palaciana ; mas é digno de notar-se, que a esta cor
rente aristocratica pertence tambem uma outra in
fluencia franceza, que se exerceu entre o povo, e que
veiu provocar o desenvolvimento dos Romances, que
começaram a ser cantados no seculo xv, como se pode
verificar nos romances da Filha do Rei de França ,
Gerinaldo, (Eghinard) e Bernal Francez . (3)
c) El-Rei Dom Diniz e a sua côrte poetica. Jus
tamente no periodo em que a poesia provençal decaía,
é quando na côrte de el -rei Dom Diniz se torna uma
distincção aristocratica ; n'este periodo, assignado por
Frederico Diez em 1290, se escreveu a maior parte

(1) Mon. Hist., Leges, 1, 193.


(2) Cancioneirinho , fl. cviii.
Romanceiro geral, n.º 1, 2. - Cantos do Archipelago,
n. ° 38 , 39.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 59

d'essas mil trovas amorosas, satyricas e eroticas, que


formam o Cancioneiro da Vaticana. Assim como Dom
Diniz tentou conservar a extincta Ordem dos Templa
rios refundindo - a nos Cavalleiros de Christo, do mesmo
modo deu um desenvolvimento artificial á actividade
dos Trovadores, quando a Europa entrava em outros
interesses mais vitaes, como era o reconhecimento do
Terceiro Estado. Os sentimentos que inspiram essas
Canções, tanto do monarcha como dos seus fidalgos , é
affectado: nós não tivemos essa profunda scisão de
classes, que tornava a paixão amorosa uma audacia
mortal, e por tanto o trovador, ao cantar a sua dama,
>

tinha sempre de occultar esse nome e de tirar do seu


permanente segredo esse vago mysterioso e à ancie
dade dos seus cantos . Pelo contrario, ao passo que
Dom Diniz celebra ee envolve com mysterio os seus amo
res poeticos, vêmos contradizer-se na realidade dos cos
tumes publicos, protegendo publicamente os seus bas
tardos, o Conde Dom Pedro e Dom Affonso Sanches ;
e por parte dos outros trovadores, os Nobiliarios estão
cheios dos raussos ou violações, a que andavam su
jeitas as damas, que muitas vezes guancavam . Bastava
um tal contraste entre os costumes e a poesia para
concluir pelo artificio e imitação inorganica d'esta. Eis
as causas que provocaram o gosto pela poesia em Dom
Diniz : primeiro, a educação que D. Affonso 111 lhe deu
por mestresfrancezes, entre os quaes se cita Dom
Aymeric d'Ebrard, de Cahors, na Aquitania ; (1) este
factonãopassou desapercebido ao historiador Schaeffer,
que diz d'esses mestres francezes : « Foram certamente
elles que accenderam no joven principe tão impressio
navel amor pela poesia. » ( 2) Em segundo logar, Dom
Affonso III, por uma especie de manha de Luiz XI,
(1) Noticias chronolog. da Univers., p. 5, § 10.
Historia de Portugal, liv. II, cap. 1 , § 1.
60 CAPITULO II

« avia bem catorze annos que jazia em uma cama, e


que se nom podia levantar,» como se lê em um docu
mento já citado ; (1) era assim que elle evitava o ne
gar-se de frente ás exigencias do clero e fidalguia, que
The haviam dado o throno ; com estes habitos apathicos
do rheumatico, a poesia tornou -se forçadamente uma
distracção da côrte , que se achava fixada em Santarom .
Em uma Canção ainda se encontra o retornello :
Tode este mal soffro e soffri
Desque me vim de Santarem . ( 2)

Quando D. Affonso III deu casa apartada a Dom


Diniz, apparecem dois fidalgos ao serviço do principe,
que tambem eram trovadores, como João Velho ee De
reda; subindo ao throno em 1279, o trovador D. João
de Aboim assistia, com a mãe do poeta, a uma espe
cie de regencia. Nas cento e vinte outo Canções, que
existem publicadas, d'este monarcha, predominam duas
feições que accusam duas épocas na sua actividade poe
tica; na primeira época, o verso limosino ou endeca
syllabo é o que prevalece nas Canções, que têm por
assumpto essa vaga casuistica sentimental da su
perioridade diante da creatura amada, da necessidade
do segredo absoluto, da severidade implacavel da
sua dama; na segunda época, as Canções são em ge
ral bellas e inimitaveis , porque se inspiram d'esse
elemento popular, que já estudamos sob a denomina
ção de Serranilhas,e a que el-reiDom Diniz chamava
Cantares de amigo. A' maneira da collecção feita das
Canções de seu avô Dom Affonso o Sabio, tambem se
fez em Portugal no seculo XIV uma collecção de ver
sos de el-rei Dom Diniz, e dos poetas da sua côrte .

(1) Hercul.,7 Hist. de Port .. t III, not. XII, p. 418.


Trovas e Cantares, n.° 121.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 61

O merecimento d'esta grande collecção foi logo reco


nhecido, porque se tiraram varias copias que foram
para a côrte de Castella. O Marquez de Santillana,
na sua carta ao Condestavel de Portugal, diz que se
lembrava de ter visto esse Cancioneiro em casa de
sua avó D. Mecia de Cisneros : « de las quales a mayor
parte eran de el-rei Don Diniz de Portugal... ) Este
exemplar é muito differente de um outro que ficou
em Portugal, que andou junto aos Nobiliarios do se
culo xiv, o que hoje existe sob o titulo de Cancioneiro 0
da Ajuda ; na Livraria de el -rei Dom Duarte, n .° 37,
existia um Livro das Trovas de El-rei Dom Diniz ,
diverso no titulo das collecções antecedentes, e por
tanto de uma outra copia, o qual suppômos ter exis
tido na Livraria dos Freires de Christo ,de Thomar. (1)
Nunes de Leão attribue a El-rei Dom Diniz um outro
livro, que diz guardar -se na Torre do Tombo, e que
era de Louvores de Nossa Senhora ; (2) mas esta col
lecção pertence indubitavelmente a Affonso o Sabio,
cujas Canções foram copiadas em Portugal por F. de
Montemór. Do Codice dionisio, que existia em casa
de Dona Mecia de Cisneros, foi tirada a copia que .
desde o seculo xvi se sabe que existe na Bibliotheca
do Vaticano; e das relações d'este com o da Ajuda se
conclue pela identidade das Canções entre um e Ou

tro, sendo n'um anonymas, por a copia illuminada


estar incompleta, e no outro assignadas. Fernando José
Wolf fixa o periodo dos trovadores da Collecção Va
ticana entre 1245 e 1357, o que se corrobora pela
falta de monumentos poeticos da côrte de Dom Af
IV existindo apenas poucas Canções que allu
fonso iv,

(1) Ferdinand Dinis, Portugal, p . 31.


(2) Nunes de Leão, Chron . dos Reis de Port., P. 1, t . I,
p. 76. (1774 ).
62 CAPITULO II

dem á batalha do Salado. (1) Dos trovadores portu


guezes d'esta epoca encontram -se dados biographicos
nos Nobiliarios; o por este facto pode- se concluir, que
estes foram os mais conhecidos, e por isso se não con
fundem com os nomes de outros trovadores da Galliza,
de Castella ou de Aragão. Ennumeramol-os : Dom Es
tevam Peres, Fruyam , Fernão Gonçalves, Fernão
Gonsalves de Seabra, Fernão Velho, Gonçalo Gomes
do Vinhal, João Soares Coelho, Martim Moya ou Moxa,
Nuno Fernandes, Pero Annes Marinho, Pay Soares,
Pero Barroso, Pero Gonsalves de Portocarrero, Ro
drigo Annes de Vasconcellos, Rodrigo Annes Redondo,
Ruy Martins, e Vasco Peres. Quasitodos estes trova
dores pertencem á facção, que, nas luctas contra Dom
Sancho II, se refugiou em França, ou descendem d'es
sas familias notaveis, como os Portocarreros, Viegas e
Reymondos.
d) O Conde de Barcellos.- D. Affonso Sanches.
Eram ambos filhos bastardos de Dom Diniz, e ambos
notaveis trovadores; o primeiro, que se tornou celebre
pela organisação de um cadastro das familias nobres
de Portugal conhecido pelo titulo de Nobiliario do
Conde D. Pedro, tambem escreveu um Cancioneiro
das suas obras poeticas, que está hoje irrevogalmente
perdido. Sabe -se da existencia d'este monumento, pela
clausula do seu testamento, feito a 30 de Março de
1350, na qual diz : «Item, mando o meu Livro das
Cantigas, a El-rei de Castella. » (2) Apesar d'esta
perda, ainda existem nove Canções suas na collecção
Vaticana, sendo trez de amigo, ou no genero popular,
trez de escarneo, ou sirventesco ; por estes rasgos de
humor satyrico se descobre que o Conde D. Pedro
era considerado um fraco trovador, plagiario de Ber
(1) Cancioneirinho, fl. xxxir a XXXVIII.
(2) Apud Sousa, Provas da Hist. Geneal., t. 1, p. 138.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 63

nal de Bonaval, de quem Affonso xi,


XI de Castella, dizia :
avós não trovaes como provençal, e accoimava o
Conde de metrificar mediocremente :

Pois se de quant'el ten errado


Serve Dom Pedro, nem lh'y dá em grado.
Apesar d'isso, o amor que o Conde D. Pedro dedi
cava å poesia foi talvez o que fez com que se organi
sasse essa rica collecção da Vaticana ou da Ajuda , se é
que o genio compilador, que anda a pár da mediocri
dade, não foi o que dirigiu o Conde n'esse trabalho.
Dom Affonso iv , em cuja côrte a poesia provençal
teve ainda alguma consideração, estimava o Conde de
Barcellos,
Diniz
apezar dos antigosconflictos com el-rei Dom
por causa dos seus bastardos ; o Conde era cha .
mado pelos outros trovadores o Rimante de El-rei :
E al Conde fallamos
Que é rimante de el-rei
E muito bem del diremos,
Segundo como assi sey . (1)

Dom Affonso Sanches, bastardo de Dom Diniz,


nascido em 1286, não é menos notavel do que seu
irmão, sendo comtudo pronunciado o odio de D. Af
fonso IV contra elle por causa da predilecção exclu
siva que Dom Diniz tinha por este filho. No Nobilia
rio, ao alludir-se ás luctas de D. Diniz com seu filho
D. Affonso iv, lê-se: « porque se dizia que el-rei Dom
Diniz queria fazer rei D. Affonso Sanches, seu filho
de ganhadia, que trazia comsigo e que elle muito ama
va. » (2) A causa d'esta predilecção seria talvez o seu
talento poetico, de que temos a prova em quatorze
(1) Notas ás Trovas e Cantares, p. 358.
(2) Mon. hist., Scriptores, p. 258.
64 CAPITULO II

Canções que restam d'elle na collecção da Vaticana,


com a epigraphe de Dom Affonso Sanches,filho de el- rei
Dom Diniz de Portugal. D'essas Canções uma ape
nas é legivel, e é a que está publicada ; (1) as restan
tes só podem ser restituidas" á força de estudo. En
saiamos aqui esse processo, publicando a seguinte Can
ção inedita restituida :

Pois que vós per hi mais de sala cuidades


mal vos quer'eu consellar mha senhor ;
pera sempre fazedelo peyor,
quero ir eu dizer como façades ;
Amad' aquelle que vos tem em desdem ,
e leysade que vos quero ben,
nunca vos fius' aehades.

Al vos er quero dizer que faredes


poys que vos lo mal eyde conselhar ;
pois per hy mais cuidados acabar
a si faredes como vos fazedes :
Fazede bem sempre aa quem vos mal fez,
matade mi, so ami, pois vos prez,
e nunca vos melhor mouro matedes .

Ca non sey homem que se mal não queixe


do que m'eu queyxo d’uma sempre mal,
porem dig' eu com gran coyta mortal :
Aquell que vos filhar nunca vos leyxe,
e morra eu por vós como a razon ,
e poys ficando con el des enton
cossar - vos- edes con espinha do peixe.
Do que diram , pois se Deus vos perdon' ,
por vós ,señor, quantas nomundo som ,
dade tudo, e fazed'ende ruim feixe. (2)

(1 ) Cancioneirinho, fi. CXXI.


2) Bibl. do Vaticano, Ms. 4803, f. 7 v. , col. 1 Commu
nicação de Monaci a Coelho.
OS TROVADORES PORTUGUEZES 65
..

A poesia amorosa do gosto provençal, como todas


as modas, tornou -se extemporanea e ridicula ; acabou
entre nós pela forma das satyras pessoaes .
e) Lucta com as tradições bretās.- O filho de An
tonio Ferreira colloca a formação do Amadis de Gaula ,
na côrte de D. Diniz ; de facto já ali eram conhecidos .
os poemas de Flores e Brancaflor e de Tristão. Isto
denota que uma outra corrente poetica entrava em
Portugal. Desenvolvia-se a tendencia para a poesia
narrativa e para os contos ou Noellaire. Ojogral Mar
tin Moxa dizia, alludindo a esta forma:
D'estes fidalgos non sei novellar... (1)
No poema de Affonso Giraldes á Batalha do Sa
lado, hoje perdido, ainda se allude a alguns cantos
narrativos, como Bistoris e o Abbade João:

Outros fallam de gram razão


De Bistoris, gram sabedor ;
E do AbbadeDom João
Que venceu rei Almanzor.

Do poema de Affonso Giraldes, que ainda existia


no seculo passado, e do qual restam doze estrophes,
citadas por Frei Antonio Brandão e por Bluteau, se
conclue, que no reinado de D. Affonso IV, e depois da
batalha do Salado em 1340, estavamos já sob a influen
cia litteraria de Castella. O poema de Affonso Giral
des era uma especie de chronica rimada, com intimas
relações
bre
de imitação com esse outro poema escripto so
o mesmo assumpto historico e em egual metro por
um Rodrigo Yannes, e conhecido pelotitulo de Cro
nica en coplas de redondillas de Alfonso Onceno,

(1) Cancioneirinho, p.p cvili.


66 CAPITULO II

achada por Diego Hurtado de Mendoza em 1573. Ve


jamos algumas d'essas analogias :
Str. 385 : E dióles grandes franquias
Por Castilla mas valer,
Todas estas cortezias
El buen rey fizo fazer .

E em um dos fragmentos de Affonso Giraldes :.


Todas estas cortezias
Este rei mandou fazer.

Str. 1326 : Todos gran muy sin medo


Para cumplir su perdon ,
E Gonzalo Gomes de Azevedo
Levava el su pendon .
Em Affonso Giraldes :
Gonçalo Gomes de Azevedo
Alferes de Portugal,
Entrava aos Mouros sem medo
Como fidalgo leal.
O poema de Rodrigo Yannes, alludindo ao Leão
dormente, que declara ser D. Affonso iv , remisso em
accudir a seu genro, e ao Porco selvagen symbolisando
o poder dos mouros vencidos no Salado, mostra -nos
que esta tradição, derivada das prophecias de Merlim,
ainda se conservou no seculo XVI nas redondilhas pro
pheticas de Bandarra. Do Cancioneiro Ms. do Conde
de Marialva, que existe hoje em Hespanha, extraiu
Soriano Fuertes parte de uma Canção já com caracter
narrativo, que mostra a tendencia que levava a poesia
portugueza :
A Reina groriosa
tan é de gran santidade,
que con esto nos defende
do demonio de sa maldade;
OS TROVADORES PORTUGUEZES 67

e
e tal razom com'esta
RE
un miragre contar quiero
que fez a Santa Maria
apôsto e grande e fero;
que namfoi feito tangrande
ben des lo tempo de Nero ,
que emperador de Roma
foi d'aquella gram cidade , etc.

As ficções bretãs entraram em Portugal n'esse pe


riodo de syncretismo em que as Gestas se tornavam
chronicas historicas; é por isso que no Nobiliario do
Conde Dom Pedro, vem a genealogia do rei Arthur,
segundo os poemas da Tavola Redonda, e se fala em
Lançarote do Lago, em Galvan, (Gauvain) na Islava
lon ; (Ilha de Avalon) seguindo o Roman de Brut, des
creve tambem as aventuras do Rei Leyr (Lear) e de
Merlim . O lyrismo provençal devia ser odioso a D.
Affonso iv, não só pela sua energica virilidade, como
>

por ser essa poesia o instrumento com que seus irmãos


bastardos captavam as graças de el-rei Dom Diniz. A
anedocta da emenda mandada fazer no episodio dos
amores de Briolanja, no Amadis, mostra-nos que a
litteratura sob sua influencia não se occupava com alle
gorias sentimentaes. Por outro lado, as questões conti
nuas com seu filho Dom Pedro I, por causa dos amo
ros com D. Ignez de Castro, tambem não favoreceram
esse remanso palaciano para se discretear em verso .
Fernão Lopes fala no favor que el -rei Dom Pedro
dava aos seus dois trombeteiros João Matheus e Lou
renço Paulos, que o acompanhavam ; na Summa Vitiis,
de Guillaume Perrauld , acha-se a explicação porque
Dom Pedro prohibia os instrumentos musicos que não
fossem a trompa ou a corneta : O ouvir canções é

(1) Apud Soriano Fuertes, Historia de la Musica en Es


paña
68 CAPITULO II

muito para se temer... Tambem são muito para se te


mer os instrumentos musicos, pois tocam e amollecem
os corações humanos. (1) Na Chronica de Bertrand du
Guesclin descrevem - se as festas costumadas na côrte
d'este monarcha, em que figurava um certo bretão
chamado La Barre. A communicação das ficções bre
tās viera-nos por via dos soldados expedicionarios
chamados á Peninsula para defenderem alegitimidade
de Pedro Cruel, de Hespanha, alliado intimo do monar
cha portuguez. Segundo a tradição, hoje invalidada,
Dom Pedro I tambem tinha sido poeta. A este tempo
a poesia provençal estava decaída em Hespanha por
via da primeira influencia do novo lyrismo da Italia
introduzido por Micer Imperial. Em Portugal o conhe
cimento de Dante e de Petrarcha só se deu nos fins do
seculo XV, e é por essa causa que, desde Dom Pedro I
até ao Infanto Dom Pedro, não tivemos a quem imi
tar, e por consequencia, não houve actividade poetica.

Tentativa de uma renascença da Poesia


galle ga

a) Emigração de fidalgos gallegos para Portugal.


Nas luctas entre Pedro Cruel e Henrique de Tras
tamara, a Galliza seguiu a causa do monarcha vencido ;
mas emquanto durarain estas luctas o poder central
relaxou -se, e desabroxa na Galliza um novo explendor
poetico : Villasandino, Macias el Enamorado, Jerena
e depois João Rodrigues del Padron, tentam offuscar
a poesia de Castella . Quasi todos os documentos d'este
phenomeno litterario se acham no Cancionero de Baena .
A lenda amorosa de Macias é egual ás mais bellas
tradições dos trovadores provençaes conservadas pelo
(1) Apud Léon Gautier, Les Epopées françaises, t. I,
pag . 783,
OS TROVADORES PORTUGUEZES 69

Monge das Ilhas de Ouro; ella impressionou todas as


Côrtes da Peninsula, e o Condestavel de Portugal tam
bem recolheu um d'esses rasgos delirantes do ultimo
enamorado. Mas a Galliza tinha perdido para sempre
a autonomia politica, e portanto faltava -lhe o ele
1

mento vital para poder crear uma litteratura . Esses


poucos genios lyricos da Galliza foram em breve offus
cados peloextraordinario vigor lyrico de que estão
cheios os Cancioneros castelhanos. Foi n'este periodo
do reinado de Dom Fernando que a causa politica da
Galliza se perdeu para sempre. Dom Fernando acober
tou as suas pretenções ao throno de Castella com o pre
texto de vingar a morte de Pedro Cruel; muitas ci
dades da Galliza se declararam pelas pretenções do
monarcha portuguez , taes como Ciudad Rodrigo, Le
desma, Alcantara, Valencia d'Alcantara, Zamora,
Tuy, Coruña, S. Thiago, Lugo, Orense, Padron ee Sal
vaterra. N'esta lucta de ambições, Dom Fernando
mostrou-se inferior em tudo a Henrique de Trastamara,
que chegou a invadir Portugal; incapaz de susten
tar -se na lucta, o monarcha portuguez offereceu asylo
no seu reino aos fidalgos gallegos que se compromet
teram seguindo a sua causa. D'esta emigração resul
tou a vinda de Vasco Pires de Camões, terceiro avô
do grande épico portuguez, e das familias d'onde nas
ceram Sá de Miranda e Pedro de Andrade Caminha .
Assim , tendo o lyrismo provençal portuguez começado
pela corrente galleziana, foi ainda d'essa mesma cor
rente que no seculo xvI surgiram os genios que pro
duziram a notavel epoca dos Quinhentistas.
b ) Vasco Pires de Camões . - O Marquez de San
tillana, na sua Carta ao Condestavel, depois de indi
car os poetas portuguézes do nosso periodo provençal,
enumera aquelles que pertencem a esta phase da ephe
mera renascença da poesia gallega : « Despues d'estos
venieron BascoPeres de Camões é Ferrant Casquacio,
70 CAPITULO II

é aquel gran enamorado Macias... ) O nome de Ma


cias tornou-se proverbial entre nós durante todo o se
culo xv, como se vê nas coplas do Cancioneiro de Re
sende e ainda em Gil Vicente ; Fernando de Cascaes
(Ferrant Casquacio) é totalmente ignorado. Vasco Pi
res de Camões, tendo-se declaradoem 1384 pelo par
tido de el-rei D. Fernando, refugiou -se em Portugal,
e aqui soffreu novos revezes levantando-se com a Al
caidaria de Alemquer contra o Mestre de Avis. Pelas
innumeras doações que Dom Fernando lhe fizera, se
infere quo elle foi o seu poeta favorito, como João de
Mena foi o predilecto de Henrique de Castella ; d'onde
veiu a dizer Manoel Machado de Azevedo, que devia
enfreiar sua penna
Quem quizer ser mais medrado,
Que Camões ou João de Mena .

No Cancionero de Baena acham -se varias poesias


dirigidas a Vasco Pires de Camões, consultando -o como
sabio, sobretudo por Fray Diego de Valencia. As suas
poesias não se acham recolhidas, e dois Sonetos em
lingua gallega, que andam nas obras de Luiz de Ca
mões, foram -lhe attribuidos, mas é certo que a forma
do Soneto assim regular ainda não era conhecida em
Portugal no seu tempo, porque Petrarcha ainda não
era lido entre nós. Em todo o caso, os poetas qui
nhentistas oriundos de fidalgos gallegos, ao começarem
a revolução da nova poetica italiana conheceram a
connexão historica com a tradição provençal; Sá de
Miranda falla dos Provençaes, «do que o Petrarcha fez
tão rico ordume;» e Camões cita nos Commentarios aos
Triumphos de Petrarcha muitos trovadores com os
dados biographicos tirados de Nostradamus. D'este ul.
timo facto conclue-se essa grande lei de Wolf, que
uma epoca litteraria é fecunda todas as vezes que se
inspira da tradição.
CAPITULO III
Ficções, Lendas, Chronicas e Philosophia
Confusão entre os justos limites da ficção e da Historia.- 0
Rei Lear no Nobiliario e na tradição popular.- A Dama pé
de catra ; vestigios do maravilhoso popular : o Cavallo Par
dallo.— A Gaia , e a tradição nobiliarchica do Solar dos Ma
rinhos.- Formação do Amadis de Gaula.- A independencia
do poder monarchico produz a formação dos Livros de Li
nhagens. - A redacção dos Codigos foraleiros. - Fundação
da Universidade de Coimbra em 1291.-- A Philosophia em
Portugal é uma tradição das escholas arabes : Pedro His
pano e as Sumwulas logicas. Estado da Historia : 0 Fra
gmento de uma Relação da batalha do Salado.- A Lenda
de Santa Teabel. - Traducção da Chronica geral de Hespa
nha. — Traducções da Regra de Sam Bento e da Biblia.
-

Como foi comprehendida a Renascença do seculo xin : a in


dependencia foraleira submettida ao direito romano ; na fun
dação da Universidade não se comprehende o espirito secu .
lar; a autoridade latina prevalece sobre a concepção origi
nal.

Confusão entre os justos limites da poesia


da historia

Quando terminou o brilhante periodo da elabora


ção das Canções de Gesta, na litteratura franceza, no
fim do seculo XIII, começou uma nova actividade re
sultante do syncretismo entre o valor da ficção poetica
e o da realidade historica ; foi então que se escreveram
as Chronicas rimadas . Como isto é um facto resultante
de uma lei moral, repetiu-se com a mesma fatalidade na
litteratura portugueza ; no seculo XIV apparecem na
litteratura portugueza algumas ficções , como a do Rei
Lear, Dama pé de cabra e do Cavallo Pardallo, da
Gaia e do Solar dos Marinhos, mas introduzidas nas
noticias historicas como authenticando a realidade. Tra
taremos de cada uma d'estas tradições poeticas, até
72 CAPITULO III

chegarmos a uma obra inteiramente litteraria, que


influiu e fundou um genero novellesco entre os povos
modernos, o Amadis de Gaula .
a ) O Rei Lear. – O Conde D. Pedro, ao preceder o
sou Nobiliario com um breve resumo da historia uni
versal, como então se comprehendia, traz o seguinte
conto : « E este rei Leyr nam houve filho, mas houve
tres filhas mui fermosas, e amava -as muito. E um dia
houve suas rasões com ellas ee disse-lhes, que dissessem
a verdade : -Qual d'ellas o amava mais ? Disse a maior,
que não havia cousa no mundo que tanto amasse como
elle; e disse a outra, que o amava tanto como a si
mesma ; e disse a terceira, que era a meor, que o amava
tanto como deve amar lha a pae . E elle quiz-lhe mal
por en, e por isto não lhe quiz dar parte no reino. E
casou a filha maior com o duque de Cornoalha, e casou
a outra com o rei de Tortia, o nào curou da meor. Mas
ella, por sua ventura casou -so melhor que nenhuma das
outras, cá so pagou d'ella el-rei de França, e filhou - a
por mulher. E depois, seu pae d'ella em sua velhice
filharam -lhe seus genros a terra e foi malandante, e
houve a tornar á mercê d'el-rei de França e de sua
filha a meor, a quem não quiz dar parte no reino. E
elles receberam -no mui bem, e deram -lhe todas as cou
sas que lhe foram mister, e honraram-no mentre foi
vivo, e morreu em seu poder.» ( 1) O Conde D. Pedro
representa no seculo XIy o estado da erudição portu
gueza, e por tanto pode-se afirmar que esta tradição
preciosa lhe adveiu por communicação litteraria ; na
tradição oral do nosso povo ainda hoje se encontra este
conto, com os mesmos traços, mas com outra forma,
como adiante veremos .
A fonte litteraria da tradição do Rei Lear, no No
biliario do Conde D. Pedro, foi a Chronica breta de
(1) Portug. Mon., Scriptores, fas. Ir, p. 238.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 73
Geoffroy de Montmouth, que o genealogista resumiu
nos traços capitaes: « Depois da morte desgraçada de
Bladud, Leir, seu filho, foi installado sobre o throno, e
governou nobremonte o seu paiz sessenta annos . Edifi
cou sobre o rio Sóre uma cidade, chamada na lingua
bretā, Kaesleir, nå saxã Leircestre. Não tinha poste
ridade masculina, mas tinha tres fillas, cujos nomes
eram Gonorilla, Regan, e Cordeilla, que elle amava
apaixonadamente. Quando se achou velho, teve ideia
de dividir o seu reino entre ellas, e de lhe dar mari
dos capazes de governarem com ellas. Mas para sa
ber qual era digna de ter a melhor parte do reino,
perguntou a cada uma d'ellas qual o amava mais.
Feita a pergunta, Gonorilla respondeu: -- Assim o céo
me ouça, em como te amo mais do que a minha alma.
etc. ) Éis os principaes traços do Roman de Brut, de
Robert Wace :

Léir tint l'onor quitement


Soixante ans continuellement ;
Trois filles eut, n'eut nul autre hoir,
Ni plus ne put enfant avoir.
La première fut Gornorille,
Puis Regain, puis Cordeille ;
La plus belle fut la puînée,
Et le père l'a plus aimée.
Quand Leir alques affaibli,
Comme l'homme qui a vieilli,
Commença soià pourpenser
De ses trois filles marier ;
Se dit qu'il les marieroit
Et son raine leur partiroit. etc.

Eis como a mesma tradição se conta na versão


oral portugueza: « Um rei tinha tres filhas, e pergun
tou a cada uma d'ellas, qual era mais sua amiga
mais velha respondeu, que lhe queria como ao sol;a
do meio , que lhe queria como a si mesmo ; a mais
74 CAPITULO III

moça, que lhe queria tanto como a comida quer o sal.


O rei entendeu que a filha mais moça o não amava, o
pôl-a fóra do palacio. Ella foi por esse mundo, e chegou
ao palacio de um grande rci, aonde se offereceu para
cosinheira. Todos os manjares que cosinhava eram os
mais saborosos do mundo . Um dia veiu á meza um
pastel muito bem feito, e o rei ao partil-o achou den
tro um annel muito pequeno, e muito precioso. Per
guntou -se a todas as damas da côrte de quem seria
aquelle annel ; mas não servia nos dedos de ne
nhuma das damas. Por fim foi chamada à cosinheira,
e só a ella servia o annel. O principe viu isto e ficou
logo apaixonado d'ella ; começou a espreital- a, porque
a menina só cosinhava ás escondidas, e viu -a vestida
como princeza que era. Foi chamar o rei , e assim que
conheceram que a cosinheira era uma princeza, o rei
deu licença ao filho para casar com ella . A menina
tirou por condição que queria cosinhar o jantar do dia
do noivado . Chegado esse dia foi convidado para vir
ao banquete o rei que havia lançado fora de casa a fi
lha. A menina cosinhou o jantar bem gostoso, mas
nos manjares que haviam de ser postos ao rei seu pae,,
que fôra convidado para a festa, não lhe botou sal de
proposito. Todos comiam com vontade porque a co
mida estava saborosa, mas só o rei convidado nada
comia. Por fim perguntou -lhe o dono dacasa, porque
não comia e não honrava a sua festa ? Elle respondeu ,
porque a comida não tinha sal, e por isso não a podia
levar. O rei fingiu -se encolerisadoe mandou que a co
sinheira viesse å sua presença ; appareceu ella então
vestida de princeza, mas assim que entrou na sala o
pae conheceu - a logo, e confessou ali a sua culpa por
não ter comprehendido quanto era amado por sua fi
lha, que lhe queria tanto como a comida quer o sal . ”
Esta versão popular mostra - nos uma outra fonte
tradicional ; qual seja ella, pode-se descobrir pelos ves
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 75
tigios mythicos, em que o Rei Lear apparece confun
dido no typo de Dirghatamas, do poema Mahabha
rata , o cego abandonado por seus filhos; ou de Ya
yati, que envelhece repentinamente , e só o filho mais
novo é que lhe sacrifica a sua mocidade . Sobre esta
aproximação, diz Gubernatis: « Nas legendas de Dir
ghatamas e de Yayati, um primeiro esboço do Rei
Lear .»» ( 1 ) Gubernatis cita uma outra versão indiana
conservada por Eliano ; ( 2) sabendo-se como as legen
das da India, já na forma de contos, passaram para os
Persas, o d'estes para os Arabes, que os communica
ram ao sul da Italia e á Peninsula, temos achado o
fio para entrar no labyrintho da imaginação popular.
E da aproximação da fórma litteraria e da vulgar da
lenda do Rei Lear, já podemos concluir e fixar aqui
uma caracteristica da litteratura portugueza : a forte
separação que geralmente se conservou entre os seus
escriptores e o povo.
b) A Dama pé de cabra .--- Esta tradição foi tam
bem recolhida pelo Conde Dom Pedro , para funda
mentar a origem maravilhosa da Casa de Haro ; len
das d'esta mesma natureza seryem de fundamento he
raldico ás casas de Lusignan, de Croy, de Salin, Bas
sompierre, e Argonger. Quando a nobreza ia sendo
submettida ao cadastro regio, á egualdade perante a
lei realisada pela independencia do poder monarchico,
é que estas lendas apparecem na forma escripta como
um ultimo lampejo da vida soberana dos grandes vas
sallos. Eis a linguagem do Conde D. Pedro: « Dom
Diego Lopes era mui bom monteiro, o estando um
dia em sua armada e attendendo quando viria o porco,
ouviu cantar muito alta voz uma mulher em cima de
uma penha : e elle foi para lá e viu-a ser mui fermosa
(1) Mythologie. zoologique, t. 1, p. 93.
3 Ib ., t. II, p. 242.
76 CAPITULO III

e mui bom vestida, o namorou -se logo d'ella mui for


temente, e perguntou -lhe quem era ? E ella lhe disse,
que era uma mulherde muito alto linhagem ; que ca
saria com ella se ella quizesse, cá elle era senhor
d'aquella torra toda. E ella lhe disse, que o fazia se
lhe promettesse que nunca se sanctificasse, e elle lhe
outorgou, e ella foi-se logo com elle. E esta dona era
mui fermosa, e mui bem feita em todo o seu corpo,
salvando que havia pé forcado, como pé de cabra . E
viveram gram tempo e houveram dous filhos, e um
houve nome Enhegues Guerra e a outra foi mulher e
houve nome... E quando comiam juntos, Dom Diego
Lopes e sua mulher, assentava elle a par do seu filho,
o ella assentava a par de si a filha da outra parte. E
um dia foi elle a seu monte, e matou um porco mui
grande e trouxe-o para sua casa, e poze- o ante si hu
sia comendo com sua mulher e com seus filhos : e lan
çaram um osso da meza, e vieram a pelejar um alão
é uma podenga sobre elle, de tal maneira, que a po
denga travou ao alão em a garganta e matou-o. E
Dom Diego Lopes, quando esto viu, teve por milagre,
e signou -se, e disse : Santa Maria! val, quem viu
nunca tal cousa ! E sua mulher quando o viu assi si
gnar, lançou mão da filha e do filho, o Dom Diego
Lopes travou do filho e nom lho quiz deixar filhar : 0
ella recudiu com a filha por uma porta do paço e foi
so para as montanhas em guisa que a nom viram mais
nem a filha.> ( 1) O valor d'esta tradição do seculo
XIV resalta sobretudo, se a aproximarmos da lenda de
origem mythica, que vem no Mahabhârata , e que Gu
bernatis resume: « O sabio e brilhante Çântanu vem
caçar ás bordas do Ganga, e ali encontra uma nympha
encantadora, de que fica apaixonado. A nympha corre
sponde -lhe, e acceita o ficar com elle, com tanto que
(1) Port. Monum ., Scriptores, fasc. 11, 258..
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 77
nunca lhe diga cousa desagradavel, faça ella o que
fizer ou pense o que pensar; levado pelo seu amor, o
09 rei consente em sujeitar-se a este grave comprommisso .
he Passam assim dias felizes, porque o rei cede em todas
18: as cousas á nympha. Comtudo, outo filhos são já nas
le cidos, e a nympha lançou já sete ao rio, sem que o
ON rei, sempre ralado intimamente de tristeza, ousasse
apresentar-lhe o menor reparo ; porém , quando a nym
pha estava para se desfazer do ultimo, o iei supplica
IM The para poupar esse , e pede-lhe que descubra o seu
re nome. Então a nympha confessa -lhe que é a Ganga
sob figura humana ,e que os outò filhos, fructos dos
seus amores, são encarnações dos outo deuses Vasus,
. que, precipitados no Ganges, ficavam livres da mal
dição que pesava sobre elles e á qual deviam a forma
hehu humana.» (1) No Romance popular portuguez da In
jantina, tambem se encontra uma donzella encantada,
que desce da arvore em que está, a pedido do caval
leiro que a lova comsigo. Por aqui se vê que existia
1 uma corrente popular, e por tanto uma derivação my.
thica. Se não predominasse no soculo XIV a monoma
nia da erudição, tinhamos então elementos tradicionaes
bastantes para começar a creação litteraria.
N'este mesmo conto da Dama pé de cabra apparece
uma outra tradição dos cavallos-fadas, das tradições
celticas; é o cavallo Pardallo, que não tem sido expli
cado ; mas pela corrente arabe, por onde o nosso povo
podia receber as tradições indianas, se explica o seu
e sentido erudito. Foram osArabesquerevelaram á
Europa as obras de Aristoteles ; e no Liv. VI, cap . 6
da Historia Natural, se acha este nome Pardalis, dado
em grego á panthera. ( 2) Junto d'esta derivação eru
dita, en’este mesmo conto apparece -nos um vestigio de
(1) Mythologie zoologique, t . I, p. 74 .
(2) Berger Šivrey, Traditions tératologiques, p . 239.
78 CAPITULO III

mythologia celtica; falando d'esta Dama pé de cabra ,


diz o Conde D. Pedro : «e dizem hoje em dia ... que
este é o coouro de Biscaia .» São os Courils ou Gories,
os diabos que dansam ao luar, nas superstições de Fi
nisterra, que explicam o sentido tradicional d'este
COOuro .

c) Gaia.- A lenda de el -rei Ramiro, procurando


sua mulher que estava em poder do rei Abencadão, é
tambem contada na prosa ingenua do Livro velho das
Linhagens ; basta-nos apenas reproduzir aqui a situa
ção do annel com que el-rei Ramiro se dá a conhecer,
para determinarmos a tradição arabe : « e uma don
zella que servia a rainha levantou -se pela manhã, que
lhe fosse pela agua para as mãos; o aquella donzella
havia nome Ortiga; e ella na fonte achou jazendo rey
Ramiro, e nom o conheceu, e el pediu-lhe d'agua pela
aravia, o ella deu-lha por um autre, e elle metteu um
camafeo na bocca, o qual camafeo havia partido com
sa mulher a rainha pela meadade; e e deu -se a beber
e deitou o annel no autre, e a donzella foi -se e deu a
agua a rainha, e caiu -lhe o annel na mão, o conheceu
ella logo; a rainha perguntou -lhe quem achara na
fonte; ella respondeu que nom era hi ninguem : ella
disse que mentia, e que lhe nom negasse, cá lhe faria
por ende bem e mercê; o a donzella lhe disse então
que achara um mouro doente ee lazarado, e que Ihe pe
diu d'agua que bebesse, e ella que lh'a dera; e entam
lhe disse a rainha, que lhe fosse por el, e se o hi achasse
que lhe aducesse. » ( 1) Na poesia arabe do periodo em
que principiou a missão de Mahomet, encontra -se uma
situação egual nos amores do poeta Murakkich quando
quer dar a saber a Esma a sua chegada : « A ' noite,
á hora em que a escrava trazia o jarro em que bebia
sua ama, o pastor ao deitar-lhe o leite, tambem dei

(1) Mon. hist ., Scriptores, p. 180.


>
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 79
xou caír o annel. Ao beber, Esma sentiu o
o annel que
tinia contra os seus dentes, tomou-o na mão, olhou - o
ao clarão do fogo, e conheceu -o por cortos signaes que
n'elle gravara quando o dera a seu primo.» ( 1) Esta
tradição pertence ao cyclo dos moallacats, que anda
ram na memoria das tribus até receberem aa forma es
cripta ; é pois natural que a tradição portugueza viesso
das relações com as classes inferiores, como acontece
tambem com a lingua . A tradição da origem do Solar
dos Marinhos, trovadores da corte de D. Diniz, é uma
variante da Dama pé de cabra, com a differença que,
a donzella sao do mar, o que approxima a situação
mais do conto indiano de Cântanu nas bordas do
Ganga. Todos estes factos dispersos, por onde recon
stituimos o estado das ficções portuguezas no seculo xiv,
são indispensaveis para nos mostrarem como uma con
sequencia natural esse extraordinario producto da côrto
de Dom Diniz, a Novella do Amadis de Gaula.
Formação do Amadis de Gaula

De todas as Canções de Gesta francezas que foram


recebidas nas litteraturas neo -latinas, nenhuma talvez
attingiu uma vulgarisação maior do que a do Amadis de
Gaula ; esta Gesta pertence já ao cyclo de aventuras ,
independente de todo o intuito nacional. Por muitos
annos ignorou -se a existencia do poema francez ante
rior á Novella portugueza, e as palavras d'Herberay
des Essarts, traduzindo essa novella para francez, em
que dizia, que existia um poema em lingua picarda,
pareceram por muito tempo gratuitas e sem funda
mento. No seculo passado, o Conde de Tressan escrevia
na sua abreviação do Amadis : « estou intimamente
convencido de ter visto estos manuscriptos (que se jul
(1) Apud Lamartine, Hist. de la Turquie, t. i, p. 79.
-
80 CAPITULO III

gam picardos) escriptos em antigo romance na Biblio


theca do Vaticano, isto é, na parte d'esta Bibliotheca
formada com a que a celebre rainha Christina tinha for
mado, e na qual estão comprehendidos os nossos mais
celebres o antigos poemas .) (1) Em 1810 publicou -se
uma versão poetica ingleza, ainda com o laconismo de
Cantilena, intitulada Šir Amadace ; depois descobriu
se o poema francez intitulado Roman d'Amadas et
Ydoine, acabado de copiar por João de Mados . Depois
d'estes elementos para a critica, Victor Le Clerc avan
çou : quando se comparar o poema francez com o in
glez, onde Amadas ou Amadace são ambos modellos
de fidelidade e de bravura, então se verificará o fun
damento da existencia de uma versão manuscripta em
lingua picarda . No poema francez de Amadas allude
se a immensa extensão que as suas aventuras tinham
na Europa :
Tout droitement par Alemaigre,
Puis fait son tour parmi Bretaigne
Espandue est já par Bourgoigne
De lui la haute renommée

Qu'il n'a dusqu' as pors d'Espagne.


Dont si grans est la renommée
De lui par tuit le mont alée
Que d'Angleterre jusqu'à Rune etc.

De facto em todos estes pontos indicados pelo poema


francez encontram -se vestigios da tradição poetica de
Amadis. Nas referencias do poeta Maörlant, reformador
da poesia neerlandeza, e morto em 1291 , cita -se o
Amadis. (2) No poema inglez de Gower, Confessio
Amantis, (lib. VI) vem :

( 1) Tradution libre d'Amadis, t. 1, XXII.


(2) Jonckbloet,hist. da litteratura neerlandeza,vol. 1, p. 161.
1

FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 81


Is fed with redynge of romance
Of Idoyne and Amadas.

No romance de Emare, tambem inglez, vem mais


esta outra referencia :

In that on korner mad was


Idoyne and Amadas...

No poema francez Donat des Amants, já 0o Amadis


é citado como um typo proverbial de fidelidade :
Que fist Didum pur Eneas
E. Ydoine pur Amadas...

Em Hespanha ha a mesma vulgarisação poetica,


mas só a contar do fim do seculo XIV para o seculo
XV; citam -no os trovadores Fray Miguel, Pero Fer
rus, Chanceller Ayala, Villasandino e Micer Impe
rial. Em Portugal existe no fim do seculo XIII muito
vulgarisado entre a aristocrcia portugueza o nome
de Oriana, a amante de Amadis, e no Cancioneiro
do Dr. Gúalter Antunes, visto no seculo passado por
Antonio Ribeiro dos Santos, vem a Chacone de Oria
na, aonde em tres estrophes se celebra á maneira de
sonet poitevin, o rapto da donzella por Archeláo..
D'esta immensa vulgarisação já se conclue, que a
tradição poetica não podia ter nascido originariamente
em Portugal; еe que se derivou da litteratura que mais
influiu na imaginação dos povos modernos einspirou
as suas litteraturag - a frånceza. As Cantilenas do
Amadis ou o poema deAventuras, soffreram a mesma
sorte a que ficaram sujeitas as mais celebres Gestas
francezas : foram diluidas em prosa, e no principio do
seculo XV estavam transformadas em Novellas. Em
Portugal foram conhecidas muito poucas Gestas fran
82 CAPITULO III

cezas ; não tivemos o feudalismo; não respeitámos as


tradições opicas, por que as não herdamos : era por
tanto este paiz aquelle que mais cedo chegaria a esse
estado de syncretismo que confundiu as Gestas com as
chronicas, que foi como começaram as novellas. Conhe
cemos os poemas de Tristão e Brancaflor, e foram
estes poemasos que mais contribuiram para a amplia
ção da novella em prosa.
Como as grandes epopêas se derivam de uma ori
gem mythica, tambem algumas das Canções de Gesta
da edade media se desenvolveram sobre varias lendas
de sanctificações locaes. O Amadis de Gaula , antes de
ser o cavalleiro typo de fidelidade, da novella, foi o
santo da legenda , Santo Amandio. Comprovemos esta
lei com alguns outros factos : a canção de Gesta intitu
lada Aiol, dorivou-se da legenda latina de Santo Agiul
pho ; (1) o santo abbade de Lerins, do seculo vii, tor
na-se na Gesta um extrenuo cavalleiro que defende o
imperador Luiz, filho de Carlos Magno, da revolta dos
seus barões, e se retira para o claustro, aonde expira
em santidade . Guillaume au court nez, cujas façanhas
são celebradas em dezoito Gestas, é derivado do typo
devoto de Saint Guillaume de Gellone, da legenda do
seculo ix, recolhida pelos Bollandistas. (2) Omesmo
phenomeno tradicional se dá com a Gesta de Miles et
Amiles, que tem por base uma londa agiographica. ( 3)
Esta fonte de derivação épica, considerada por alguns
medievistas, taes como Paulin Paris e Leon Gautier,
como excepcional, perdeeste caracter, logo que a lenda
agiologica é tratada pelo povo como um mytho reli
gioso. Na novella do Amadis de Gaula encontra-se o
fio tradicional que leva a derivar o poema ou as can

(1) Acta SS ., t. I, p. 728, 763.


(2) Acta SS . Maii, t. VI, p. 809.
(3) Léon Gautier, Les Epope'es françaises, t. 1, p. 89.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 83
tilenas de Amadas d'esse Sanctus Amandius Galle
sinces . (1) Lê- se no poema :

Venés, dame, par Saint Amant !


( v. 3092 )

E na Novella tambem se explica o nome do heroe :


« Este es Amadis ... y este nombre era alli muy pre
ciado, porque assi se llamaba un Santo à quien la
doncella lo encommendó .» (2) Na edade media as vidas
dos Santos eram muitas vezes tratadas em verso ; e na
Histoire litteraire de la France achamos : « Outras vi
das de Santos em versos provençaes parecem remon
tar ao seculo XI, como a de Santo Amandius, bispo
de Rodez... ) ( 3) No catalogo de uma bibliotheca mo
nastica do seculo XII, vem junto com o poema de Mi
les et Amiles : «Milo unus, cum Sci Amrindis vita me
trice composita .» ( 4) As relações da lenda agiologica
com a novella são numerosas : Santo Amandio foge
de casa de sous pacs, e esconde-se na Ilha Ogia ; no
poema, Amadas tambem se ausenta de casa de seus
paos, e na Novella refugia -se na Ilha da Peña Po
bre aonde faz vida eremitica. Mas estes paradig
mas levar -nos-iam longe. As relações entre o poema e
a Novella são muito mais interessantes : Tanto Ama
das como Amadis servem na côrte de um rei, por cuja
filha Ydoine ou Oriana se apaixonam , e para merece
rem -na vão nobilitar -se nas armas , correr aventuras,
até serem armados cavalleiros. E ' n'este longo decurso
de provas, que os dois amantes dão o exemplo de uma
extranha fidelidade; até que por fim , depois de terem

(1) Acta Sanct., Febr. p. 816 .


2) Ed. de Gayangos, Cap. I.
Op .cit. , Tom . un,pag . 240 .
Bull. de l'Académie de Bruxelles, (1843) 11, 591.
84 CAPITULO III

salvado as suas amantes dos encantamentos, casam


com ellas e herdam o reino do pae que se oppozera a
este enlace. Na redacção em prosa, tanto pelo caracter
de ampliação erudita, como pelo gosto palaciano que
obedecia á corrente culta da primeira Renascença , os >

innumeros episodios, as largas genealogias, os pompo


sos discursos dos differentes personagens, fazem esque
cer
por tal forma aa trama simples do poema, que por isso
não resalta á primeira vista a relação entre os dois
monumentos litterarios; esse confronto é antes de tudo
provocado pela analogia dos titulos, que depois se ve
rifica na estructura intima .
Resta -nos ainda a questảo, se o Amadis de Gauia ,
recebeu a forma de Novella em prosa em Portugal ou
em Hespanha. Os documentos positivos são todos a fa
vor da redacção portugueza . No seculo xiv a Hespa
nha estava occupada na profunda elaboração do seu
vasto Romanceiro, e toda a sua seiva poetica não bas
tava para dar forma ás tradições nacionaes do Cid,
dos Sete Infante de Lara , de Bernardo del Carpio; as
Gestas francezas pouco penetraram em Hespanha, por
que a imaginação nacional estava entretida com os
seus heroes nacionaes . As condições do espirito nacio
nal portuguez eram outras : não tinhamostradições, o
por tanto estavamos n'esse estado de syncretismo em
que se acceitam todas e se confundem todas . Quando
D. Affonso III voltou de França, já as Canções de
Gesta francezas decaíam do seu vigor primitivo ;
quando ellas foram conhecidas na côrte de D. Diniz
já estavam no cyclo de aventuras, isto é, confundiam
se nas suas situações ; (1 ) faltava-nos a realidade dos
costumes feudaes. E por isso que o filho do Dr. An

( 1 ) A acção de Amadas et Ydoine, repete -se nos poemas


Blonde d'Oxford, Eledus et Serène, Guy de Werwk, et Ille et
Galeron .
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 85
tonio Ferreira, fundado n'uma tradição litteraria do
seculo xvi, collocava a redacção do Amadis de Gaula
na côte de Dom Diniz : «na linguagem que se costu
mava n'este Reyno, em tempo del -rei Dom Diniz, que
>

é a mesma em que foi composta a Historia de Amadis


de Gaula, por Vasco da Lobeira, natural da cidade
do Porto, cujo original anda na Casa de Aveiro. » ( 1)
A rubrica introduzida na Novella , (liv. I, cap . 40)
acerca da emenda mandada fazer pelo Infante Dom
Affonso de Portugal , explica -se pelo caracter de Dom
Affonso IV, filho de Dom Diniz, accrescendo que já na
sua côrte estava decadento o gosto pelo lyrismo pro
vençal. São muitos os argumentos com que se prova, a
prioridade da redacção portugueza do Amadis de Gaula;
enunciemol- os pela sua ordem chronologica :
1.° Existencia de uma redacção anterior á fórma
em que o trasladou o hespanhol Montalbo, em 1492,
o qual justifica o seu trabalho dizendo, que o original
estava antiquado. Do fim do seculo xiv até ao fim do
seculo xv, a revolução operada na lingua portugueza
foi muito maior do que na hespanhola, a ponto de D.
Manoel mandar traduzir para portuguez moderno os
Foraes .
2.° Essa redacção primitiva era portugueza e escri
pta entre 1297 e 1325 , como se infere da allusão ao
Infante D. Affonso de Portugal, que começou a rei
nar n'esta ultima epocawcom o nome de D. Affonso IV ;
o que tambem se corrobora pela tradição conser
vada pelo filho de Ferreira. –- No Amadis tambem
não se empregam armas de fogo, ainda nas mais arris
cadas aventuras, por isso quesó foram usadas na ba
talha de Aljubarrota em 1385.
3.º Até 1406 só eram conhecidos os trez livros,
que ainda estavam em continuação; as allusões de Fray
(1) Edição dos Poemas lusitanos, de 1598 .
86 CAPITULO III .

Miguel, de Micer Francisco Imperial, .de Ferrus, de


Pero Lopes de Ayala, de Hernà Peres de Gusman e de
Villasandino, fixam -se todas em 1406 , o que nos leva
a determinar a epoca em que o Amadis foi conhecido
em Castella, desde a batalha do Salado, até á batalha
de Aljubarrota .
4.0 o quarto livro de Amadis, só foi recolhido em
1492, por Garci Ordoñes de Montalbo; mas deve tam
bem entender -se ter sido escripto em Portugal, porque
se aproxima bastante do final do Amadas et Ydoine;
porque se allude a esso quarto livro logo no principio,
promettendo desenvolver o episodio deBriolanja, que
o proprio Montalbo desapprovava.
5.° O nome de Lobeira figura na côrte de Dom
Diniz, em um trovador ; Vasco de Lobeira, figura na
lista dos que foram armados cavalleiros na batalha de
Aljubarrota, em 1385 ; a allusão do personagem Mo
candom , armado cavalleiro com mais de sessenta an
nos, parece referir-se a situação de Vasco de Lobeira.
6.0 A primeira vez que se encontra o nome de
Vasco de Lobeira affirmado como auctor do Amadis de
Gaula, é na Chronica do Conde D. Pedro de Menezes,
escripta em 1454, por Azurara, a qual esteve inedita
até 1792. Ahi se lê : « o Livro d'Amadis, como quer
que soomente fosse feito a prazer de hum homem que
se chamou Vasco de Lobeira , em tempo d'el-rei Dom
Fernando , sendo todalas cousas do dito Livro fingidas
do Auctor...) (cap. 63). Azurara escrevia na Biblio
theca de D. Affonso v ; e tendo existido o original de
Amadis na Casa do Duque de Aveiro, que era bisneto
de D. Affonse v, facilmente se induz da sua prove
niencia .
7.0 Na Novella de Cavalleria, Tirant il Blanch ,
de 1460, apparece citada a fada Urganda la Desco
nocida, a qual exerce uma grande parte da acção no
Amadis de Gaula . D'aqui se infero, que sendo a no
}

FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 87


vella valenciana escripta para lisongear o principe por
tuguez Dom Fernando, irmão de Ď. Affonso v, e al
ludindo -se por isso a uma concepção novellesca portu
gueza, temos já umadata para corroborar aa existencia
e popularidade da redacção portugueza, primeiramente
indicada por Azurara .
8.° Nos versos do Cuidar e Suspirar, do Cancio
neiro geral, escriptos em 1483, citam -se como prover
biaes os amores de Oriana; ora a versão de Montalbo só
se fez em 1492, justamente quando as duas côrtes cas
telhana o portugueza entravam depois de Aljubarrota
em boas relações, pelo casamento do principe D. Af
fonso com D. Isabel. Nós fômos influenciados pelo ly.
rismo castelhano , mas exercemos uma acção reflexa
pela galanteria novellesca.
9.° Em 1526, o Bacharel João Dias dedica ao du
que D. Jorge uma continuação do Amadis de Gaula .
Pela escolha d'este personagem se deduz, que já n'este
tempo andava o original do Amadis na Casa que veiu
a ter o titulo de Aveiro.
10.° Em 1549, já o escrivão da Camara de Dom
João III, o Dr. João de Barros, no Ms. das Antigui
dades de Entre Douro e Minho, dizia do Amadis ma
nuscripto tambem : < obra mui subtil e graciosa e apro
vada de todos os galantes, mas como estas coisas se
seccam em nossas mãos, os Castelhanos lhe mudaram
a linguagem e attribuiram a obra a si. » (Fl. 32.) Este
documento é de uma grande importancia para a ques
tão da prioridade.
11. Em 1557 colligiu o Dr. Antonio Ferreira os
seus Poemas luzitanos ; os dois Sonetos em linguagem
antiga sobre a anedocta do Infante D. Affonso do
Portugal e os amores de Briolanja, datam , o mais tar
dar, d'este tempo, e mostram -nos a continuidade da
tradição, que attribue a Novella a Vasco de Lobeira.
88 CAPITULO III

A esta anedocta por ventura se referem as Voltas sa


tyricas de Camões, que comecent

Por amores de vós, Briolanja,


Ando eu morto ...

Cumpro notar que 0o pae do Dr. Antonio Ferreira


era Védor da Casa do Duque Dom Jorge, e por tanto
o poeta tinha fundamento para a sua affirmação.
12.° Ainda em 1598, se guardava o Ms. do Ama
>

dis de Gaula na Casa de Aveiro, como se vê pela


nota de Miguel Leite Ferreira, que vem nas erratas
da primeira edição dos Poemas luzitanos.
13.0 No Catalogo da Livraria do Conde de Vic
meiro, de 18 de março de 1686, vinha enumerado o
Amadis de Gaula em Portuguez. Na Relação d'esta
Livraria dada pelo Conde de Ericeira em 1726 á Aca
demia de Historia , diz que a novella já lá se não
achava. O incendio de varias livrarias no terremoto
de 1755 veiu extinguir todas as esperanças de encon
trar esse original primitivo.
14.° Alem d'estes argumentos, accrescem os portu
guezismos, que transparecem ainda debaixo da forma
hespanhola, e sobretudo os costumes portuguezes, como
a camera cerrada, os ricos homens, os homens- bons, e a
mulher que vae gritando contra o que attentou contra a
sua honra, como mandam os Foraes.
A influencia do Amadis de Gaula foi immensa
na Europa, e raros são os livros dos moralistas que
não clamam contra a sua leitura ; mas esta propaga
ção prodigiosa deve attribuir-se mais ás tendencias da
vida social, porque era este um meio por onde a aris
tocracia protestava contra a vida e os usos burguezes
que a supplantavam .
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 89

Os Livros de Linhagens ou Nobiliarios

A actividade litteraria em Portugal dispendeu -se


no seculo xiv em Livros de linhagens; a sua produc
ção revela-nos uma necessidade social, que a pro
pria epoca nos hade explicar. Quatro são os monu
mentos conhecidos : 0 Livro velho , publicado pela pri
meira vez por D. Antonio Caetano de Sousa ; (1) um
Fragmento de Nobiliario, que andava junto ao Can
cioneiro da Ajuda ; e finalmente, o chamado Nobilia
rio do Conde D. Pedro, que se guarda na Torre do
Tombo . ( 2) Com relação à necessidade da organisa
7

ção d'estes livros, lê-se logo no principio do Livro


velho : aPor saberem os homens fidalgos de qual li
nhagem vem , e de quaes coutos, honras, mosteiros e
egrejas som naturaes, o per saberem como som pa
rentes, fazemos escrever este livro verdadeiramente
dos linhagens d'aquelles que som naturaes e morado
res no reino de Portugal estremadamente. E d'este
livro se pode seguir muita prol, e arredar muito dano :
cá muitos vem de bom linhagem e nom sabem elles,
nem o sabem os reis, nem o sabem os grandes ho
mens : ca se o soubessem em alguma maneira lhes vi
ria ende bem , em alguma maneira dos senhores. E
2

os outros nom casam como devem, e casam em pec


cado por que nom sabem o linhagem . E muitos som
naturaes e padroeiros de muitos mosteiros e de muitas
egrejas, o de muitos coutos e de muitas honras o de
muitasterras, que o perdem á minguem de saberem de .

quelinhagens vem : e outros se fazem naturaes de mui


tos logares onde nom som .. (3) No Nobiliario do

( 1) Provas da Hist. geneal. t. 1, p. 145 .


2) Publicadas nos Port. Mon. hist., vol. I, Scriptores.
Mon. hist., Scriptores, p. 143.
90 CAPITULO III

Conde D. Pedro desenvolvem- se mais claramente es


tas origens dos livros de linhagens : Porem , eu Dom
Pedro, filho do muy nobre rey Dom Deniz, ouve de
catar por gramtrabalho por muitas terras escripturas
que fallavam dos linhagens. E veendo as escripturas
com grande estudo e em como fallavam d'outros gran .
des feitos compuje este livro por gaanhar o seu amor
e por meter amor e amisade antre os nobres fidalgos
de Hespanha ...E o que me a esto moveu foram sete
cousas : A primeira para ssc comprir e guardar este
precepto de quo primeiro fallamos. A segunda he por
saberem estes fidalgos de quaes descenderam de padre
a filho e das linhas travessas. A terceyra por seerem
de hum coraçom de averem de seguir os seus emigos
que som em estromento da fé de Jesu Christo, ca pois
elles veem de huum linhagem , e seiam no quarto ou
no quinto graao ou d'alli acima nom devem poer dif
ferença antre ssy. E mais que os que som chegados
como primos e terceiros, ca mais nobre cousa he o
mais santa amar o homem a seu parente alongado per
devido se boom he, que amar ao mais chegado se fal
leçudo he . E os homens que nom som do boo conhe
çer nom fazem conta do linhagem quo ajam senom
d'irmãos e primos coirmãos e segundos e terçeiros. E
dos quatro acima nom fazem conta. Estes taaes erram
a Deus, e a ssy, ca o que tem parente no quinto ou
sexto gráo ou dalli acima se he de gran poder deveo
servir porque vem do seu sangue. E se he seu igual
deve-o dajudar. E sehe mais pequeno que ssy deve lhe
fazer bem e todos devem seer de um só coracom . A
quarta por saberem os nomes d'aquelles donde vem ,
e algumas bondades que em elles ouve. A quinta per
os rreys averem de conhecer aos vivos com mercêes por
os merecimentos e trabalhos e grandes lazeiras que
receberam os seus avóos em se gaanhar esta terrade
Espanha, per elles. A sexta pera saberem como po
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 91
dem casar, sem peccado segundo os sacramentos da
ON
santa egreja. A septima, pera saberem de quaes moes
teiros som naturaes e bemfeitores. ( 1) Todas estas
to causas da elaboração dos Livros de Linhagens são ex
MI teriores, e taes como o poder real tentou justificar-se
perante a fidalguia que pretendia submetter ao seu
fôro. O facto intimo e vital do seculo XIV, que provo
cava estes cadastros da nobreza, o mesmo seculo não o
podia conhecer; repetiu -se pela Europa com a mesma
regularidade; o que nos leva a inferir de uma lei do
evolução social que entrava então no seu vigor.
No seculo xiv o poder real procurava constituir -se
independente, submettendo a sua unidade legal a arbi
trariedade dos barões ; para isto tratou de dar exis
tencia politica ao servo tornando -o povo, conceden
do-lhe cartas communaes e foraleiras em que ficava
17 escripto o seu direito consuetudinario, e depois que o
os tornou terceiro estado, fortaleceu - se com elle contra
ed os barões ; contra os barões, fez renascer o direito
AI romano, em que estava bem definida a esphera dos
direitos reaes , e além de avocar a si o direito de le
vantar hoste, bater moeda, ter justiças proprias, tam
bem o poder real se reservou o privilegio,exclusivo de
f conferir nobroza. A contar do cadastro heraldico, só
1 podia existir nobreza por fôro de el- rei. O Direito ro
mano entrou em Portugal primeiramente pela adopção
das Leis de Partidas, mandadas traduzir por el-rei Dom
Diniz; (2) nas Leis de Partidas estatue -se aos fidalgos:
«que escrivian seus nomes, o el linage onde venian ,
e los logares onde eran naturales en el Libro que es
tavan escriptos todos los nomes de los otros cavalle

(1) Ibid ., pag. 231.


Guardavam -se na Livraria de Alcobaça em um codice
do seculo xiv com 179 fol. com o titulo Das Partidas de Cas
tella . ( Cod. n.° cccxxiv .)
92 CAPITULO III

ros . » (1) Uma lei portugueza incorporada nas Orde


nações Affonsinas, explica mais claramente estes li
vros : anenhum homem dos concilios de mha terra nom
podem ser cavalleiros senão per mim ou per meu man
dado. (2) O mesmo phenomeno moral , que no se
culo XIV fazia com que se escrevessem os Livros de
Linhagens, fazia tambem que florescesseLOo Direito ro
mano na nova Universidade de Coimbra ; fazia que se
fundasse o Ministerio Publico, e que os concelhos
tivessem uma vida local independente. Comprehendido
o espirito dos Livros de Linhagens, resta -nos accen
tuar o seu caracter litterario . Por entre as listas fati
gantes de nomes, apparecem de longe em longe as tra
dições maravilhosas da origem dos Solares, como da
Casa de Haro ou dos Marinhos ; as grandes prepoten
cias da arbitrariedade feudal, como os incendios dos
castellos; o roubo ou violencia nas mulheres, como
com a celebre D. Maria Paes da Ribeira ; a cegueira
infligida por vindicta pessoal, e a herança do crime e
da vingança entre as familias; os velhos symbolos ger
manicos, como o fazer burrella, e o montar n'um burro
com a cara para traz ou o coser em uma pelle de
ursa ; os factos historicos, como a lide do Porto entre
os partidarios de Dom Sancho II e os de seu irmão,
ou o rapto do leito d'este monarcha da propria inu
lher D. Mecia Lopes ; os varios apellidos das familias
derivados muitas vezes de feitos grotescos, e os cara
cteristicos de certos fidalgos, como o trovador, o que
foi trovador e muy saboroso, ou que trobou bem, oo que
nos mostra a relação da aristocracia portugueza com
os nossos velhos Cancioneiros provençaes. Para a pbi
logia estes livros são preciosissimos pelas velhas fórmas
da linguagem que conservam , o sobretudo para a eth
(1) Part. ir, tit. 21, L. 21 .
(2) Ord . Af., Liv. 1, t . 63.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 93
nologia, por que d'esse onomastico se deriva muitas
vezes os elementos de raça que constituiram a nossa
nacionalidade.

:
Fandação da Universidade de Lisboa

No seculo xiv a sociedade civil da Europa tendia


& secularisar -se; a divisa : As Universidades servem
.

para ensinar, era um grito de revolta contra o mono


polio da instrucção das Collegiadas e Abbadias ; a este
grito correspondia esse outro : As Jurandus servem para
edificar, com que se destruía аa tradição immovel dos
pontifices religiosos; e na ordem politica : Os Estados
servem para governar, divisa com quo o direito escri
pto e a vontade nacional se affirmava contra o arbi
trio senhorial . A esta corrente dos costumes e da so
ciedade civil da Europa, corresponde no fim do se
culo xiii a fundação da Universidade de Lisboa, por el
rei Dom Diniz, em 1291. Mas em vez de nascer com o
espirito da secularisação, ficou immediatamente sob a
tutella ecclesiastica dos Abbades de Alcobaça , de Sam
Bento e do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra . Na
Bulla do Papa Nicolao iv se lê : « Com effeito chega
ram a nossos ouvidos, que por esforços do nosso caris
simo filho em Christo, Diniz, illustre rei de Portugal,
se implantaram de novo, não sem muita e louvavel
previsão na cidade de Lisboa estudos de certa facul
dade permittida, a cujos mestres, a fim de que podes
sem dedicar -se exclusivamente aos estudos e sciencias,
se diz ter sido promettido e estipendiado certo salario
por alguns Prelados, Abbades da Ordem de Cistere
Priores das Ordens de Santo Agostinho e de Sam
Bento, e Reitores de certas egrejas seculares dos rei
nos de Portugal e Algarves. ) A protecção do Papa,
Nicolao iv limitava -se à conceder aos lentes escho
lares o privilegio do fôro ecclesiastico, perturbando
94 CAPITULO III

logo no principio o intuito da Universidade, que pelo


ensino do direito romano tendia para a unificação do
fôro civil. Os gráos ficavam sujeitos á confirmação do
Bispo de Lisboa : « Item , que os Escholares, nas Artes
e no direito Canonico e Civil e na Medicina, os quaes
seus mestres julgarem idoneos, possam ser licenciados
na sobredita sciencia pelo Bispo de Lisboa que n'esse
tempo o fôr, e quando estiver sede vacante por meio
do vigario capitular.» As differenças do fôro entre os
escholares e os moradores de Lisboa, produziu dissen.
ções taes que Dom Diniz teve de mudar a Universi
dade para Coimbra, em 1308. O ensino das Decretaes,
Leis, Medicina, da Dialectica, da Grammatica e Theo
logia, ficou a cargo dos religiosos de Sam Domingos
e Sam Francisco. (1 ) Os primeiros Estatutos foram
dados por Dom Diniz em 1309 ; (2 ) tendo de serem
outra vez refundidos em 1347. O vicio organico da
instituição reflectiu -se na sua vida de continuas refor
mas, sendo mudada outra vez para Lisboa, em 1375
por el-rei Dom Fernando, recebendo novos Estatutos
em 1431 , (3) até que em 1537 foi transferida para
Coimbra, caindo no abysmo que lhe foi cavado á nas
cença, isto tornando-se o centro da influencia dos je
suitas em 1547. A organisação do ensino era baseada
n'essa tradição escholar da edade media, o Trivium
o o Quadrivium ; ao primeiro, pertencia o estudo da
Grammatica , que produziu entre nós no seculo xiy al
guns glossarios da Biblia, e uma tentativa de diccio
nario latino; a Rhetorica, que só produziu homilias e
divagações apologeticas; e a Dialectica ,que era então
em que se resumia toda a philosophia.

(1) Monarch. Luz., P. v, liv. 16, cap. 57 , 72 e 73. Ib .,


P. vi, liv. 18, cap . 28.
(2) Vem na Mon. Lux. P. v. App. Escr. 25.
(3) Noticias chronologicas da Universidade, A. 270, 429.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 95

Philosophia aristotelico-averrois ta

Portugal não estava em um grao de desenvolvi


mento talque podesse dar grande incremento aos estu
dos philosophicos; de um lado predominavam no ensino
as explanações theologicas, e no seculo xiv reinava a
ideia de que a philosophia era à ancilla theologiae ;
por outro lado a civilisação arabe da Peninsula havia
de fatalmente imprimir a auctoridade da sua tradição
no ensino. Aristoteles foi a unica auctoridadephiloso
phica em Portugal; logo no principio do Nobiliario do
Conde D. Pedro se encontra citado : « Esto diz Aris
totilles, que sse os homeens ouvessem antre si amisade
verdadeira nom averiam mester rreys nem justiças, cá
amisade os faria viver seguramente en o serviço de
Deus.) (1) Efallando de Alexandre, continua : «morreu
como havia dito Aristotilles seu mestre . » (2) Temos um
documento por onde se vê que Aristoteles era conhe
cido em Portugal pela eschola arabe avorroista ; es
creve Victor Le Clerc: « Em uma obra inedita Colly
rium fidei contra haereseos, Alvar faz menção de um
3

certo Thomaz Scot, umas vezes minorita, outras frade


pregador, com o qual tinha muitas vezes discutido, e
que se achava então nas prisões de Lisboa, por ter ou
sado repetir por toda a parte, que houve no mundo
Tres impostores, (tres fuisse in mundo deceptores .) Como
é que esta
impiedade tão antiga, o que Gabriel Barlette
no seu sermão sobre Santo André, attribue por ante
cipação a Prophyrio, teria chegado a Lisboa ? » ( 3) A
resposta a este problema proposto por Victor Le Clerc,

(1) Mon. Hist., Scriptores , 1, 230.


(2) Ib ., p. 246 .
tres etc.Hist. litteraire de la France, t. II, p. 46: Etat des Let
96 CAPITOLO III

Só se pode dar deduzindo esse conhecimento por via


da eschola arabe; caracterisado o movimento hetero
doxo da edade media em duas correntes, a mystica,
ou o Evangelho eterno de Joachim de Flores ; e a ma.
terialista, resumida no livro mythico Dos trez Imposto
res, vê- se qual a tradição que esteve em vigor em Por
tugal ; diz Renan : « Vê-se que não foi sem alguma ra
são que a opinião attribuiu a Averroes o pensamento
criminoso do parallelo das religiões e do titulo dos
Tres Impostores. Este pensamento, que perseguiu como
um pesadello todo o seculo XIII, era em parte o fructo
dos estudos arabes... ) (1 ) Um outro corypheu do Aris
totelismo averroista em Portugal, foi Gil de Roma, o
auctor do livro De Regimine principum , que Dom
João I citava aos seus cavalleiros durante o cêrco de
Ceuta , e que o infante Dom Pedro traduziu para por
tuguez. Gil de Roma foi o que atacou mais vivamente
a doutrina averroista do parallelismo das religiões. As
sim como Dante celebra o nome de :

Averrois che'l gran comento feo,

tambem cita o nome de um philosopho portuguez , que


se tornou elementar em todas as escholas da edade
inedia, collocando-o entre os principaes vultos litterarios
da Europa :

Ugo da Sanvittore è qui con elli


EPietro Mangiadore, e Pietro Hispano
Lo qual giù luce in dodici libelli. (2)

« Hugo de Sam Victor, e Pedro Comestor, e Pedro


Hispano, que brilha na terra com os seus doze livros. »

(1) Renan, Averroes, p. 234 1852 ).


(2) Paraiso, cant. XII.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 97
vii Já tinhamos um vulto litterario , que era lembrado na
ON
+ obra prima da Renascença da Europa ; Pedro Hispano
Ica, era natural de Lisboa, e foi eleito papa com o nome
11 %

usto
de João XXI; as Summulas logicales tornaram -se o re
sumo canonico da logica aristotelica : « é a elle que
By pertence sem duvida o engenhoso quadro das diversas
12
especies de argumentos, reproduzido frequentemente
nto
d'ali em diante .» (1) Pedro Hispano tambem se de
do stinguiu por esse outro livro não menos celebre, intitu
m'lado Thesaurus pauperum , livro de medicina composto
co sob a influencia aristotelica.
Escreve Daremberg, na Historia das Sciencias Me
dicas, citando Pedro Hispano como um dos continua
om
dores de Bartholomaeus, de Cophon, de Maurus e dos
de outros mestres da Eschola de Salerno : « Póde-se acre
ar ditar, que no seculo XIII O ensino inedico se torna me
nte
nos individual, experimentando algumas mudanças na
56sua fórma pela influencia da philosophia scholastica
ou aristotelica ; mas por pouco que se seja versado em
as obras medicas mais antigas do que a Scholastica, no
ta-se ali um methodo dialectico euma linguagem que
excede ou vae alem da dos philosophos ; o tom de
e riva -se mui directamente de Galeno, tão aristotelico
2 nas suas fórmas . ) ( 2) A Medicina era então exercida
i em Portugal pelos Mudejares, ou arabes tolerados de
pois da reconquista christã. Sobre a nacionalidade de
Pedro Hispano encontramos no poema de La vida y
la Muerte , de Fray Francisco de Avila , (1508) os se

( 1) Kaebler, Noticias completas sobre o papa João XXI,


celebre medico e philosopho, sob o nome de Pelrus Hispanus.
0
Gotting . 1760 , in . 4.° Apud Tennenann.
( 2 ) Ch . Daremberg, Histoire des Sciences medicales, t. 1,
p. 282. - 0 Thasaurus pauperum , ainda apparece prohibido no
Index expurgatorio, de 1624.
98 CAPITULO III

guintes versos, por onde se vê que mesmo os hespa


nhoes o reconhecem como portuguez :
Con estos entran en campo
El Apono y Marlian ,
Vectin, Valens y Melampo .
Trusiano y Pedro Hispano
O bispo fué tusculano ,
Portuguez de tanto tiento
Que por gran merecimiento
Fué pontifice romano.

Do caracter d'esta nossa primeira epoca da histo


ria da philosophia portugueza, conclue -se facilmente
que estavamos sob o dominio da Eschola de Aristote
les, na sua forma mais dialectica e intolerante, o aver
roismo. Foi talvez á influencia d'esta violenta scho
lastica, que se deveu a extincção do lyrismo portuguez
tal como apparece no Cancioneiro da Vaticana, o qual
não torna mais a apparecer senão em Bernardim Ri
beiro . A philosophia platonica não penetrou em Por
tugal senão muito tarde, e por via de um reflexo in
directo, pelos poetas italianos; mas logo que os jesui
tas se apoderaram do ensino official, temendo as inno
vações philosophicas dos idealistas, reconcentraram to
das as suas forças no exercicio da rigorosa scholastica,
e fundaram a Philosophia Conimbricense do seculo XVI,
que não foi mais do que uma segunda phase do Aris
totelismo em Portugal, que se distingue da antecedente
em ser caracterisada pela sua direcção humanista ou
alexandrista .

Chronicas e Relações historicas


Sarmiento, nas Memorias para la Historia de la
Poesia española, escreve : « Este siglo decimo quarto
que con razon se poderá llamar el siglo de las Chro
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 99
2

nicas verdaderas, se poderá llamar tambien de las


Chronicas fingidas.) (i) Estas duas formas litterarias
apparecem e absorvem quasi completamente a nossa
actividade n'este periodo. Das Chronicas phantasiosas
deixámos um monumento, que seria tanto mais bello se
elle se conservasse na sua forma primitiva, se existisse
hoje a redacção portugueza do Amadis de Gaula ; das
Chronicas historicas são muitos os documentos que res
tam , deixando mesmo os registos latinos em forma de
obituarios, que se usavam nos claustros. O appareci
mento repentino do grande chronista Fernão Lopes, no
s principiodo seculo xv, não se comprehende se não pro
curarmos a filiação do sou genio n'estas tradições par
ciaes. Enumeremol-as :
a ) Chronica breve do Archivo nacional.- A Chro.
nica mais antiga, escripta em lingua vulgar, que te
mos é anonyma, e trata desde a fundação da monar
chia até Dom Diniz. Acha-se publicada com o titulo
de Chronica breve do Archivo nacional , e foi oncon
trada intercallada no liv. Iv
IV , fl. 6 v, das Inquirições de
DomAffonso IIr. Foi escripta em 1429 do nascimento
de Christo : aata a presente era que ora corre do naci
mento de nosso sonnor Jeshu Christo de mil quatro cen
tos e vynte e nove annos.» O sentimento com que foi
escripta é o mesmo dos Nobiliarios : « A qual rrenen
brança serue a proll porque muytas vezes mostram
porante ElRey nosso sennor o perante os sous juizes
algumas doações e outras escripturas, que fazem em
prejuizo dos direitos e cousas da corôa dos Regnos, fa
zendo taaes cartas de doações e escripturas mençom
que forom outorgadas per huum Rey o quall segundo
a dada d'essa escriptura já era finado : E pora tirar
estas duvidas aproveitam muyto estas eras. » A Chro
nica é descarnada e secca, como o seu proprio auctor
( 1) Ob. cit., p . 330.
100 CAPITULO III

confessa : « faz mencom quando cada huum Rey começou


de rregnar, e quando se finou, e onde jaz sepultado .)
Apenas traz um traço pittoresco acerca de Dom Af
fonso II : « E entom filhou ElRey huma dona de que se
non póde saber o nome... E filhou Dona Maria Paos
da Ribeira, a que elle deu Villa do Conde... Estas
violencias contra o pudor das damas estavam em con
tradição com os usos provençaes da côrte portugueza,
como se verá pelo Cancioneiro galleziano.
A linguagem da Chronica não é muito antiga ;
apenas se encontra uma palavra franceza adaprès da
Cidade de Lisboa . » Esta Chronica termina no reinado
de D. Diniz, o que basta para fixar a epoca em que
foi escripta ; e, segundo a auctoridade do collector dos
Monumentos historicos, é a Chronica vulgar mais an
tiga que nos resta. ( 1)
b) Chronica Geral de Hespanha.- Este livro man
dado traduzir por el -rei Dom Diniz do original caste
Ihano escripto por seu avô Dom Affonso Sabio, foi um
dos primeiros ensaios em que a lingua portugueza se
preparou para fixar as formas severas da Historia. Na
Bibliotheca de Dom Duarte se conservou essa preciosa
traducção, (n .° 26) que já no seculo XVI se encontrava
no Mosteiro de Peralonga, como se sabe pela declara
ção de Fernão de Oliveira : «As dicções velhas são as
que foram usadas, mas agora são esquecidas, como ...
ruão, que diz cidadão, segundoque eu julguei em hum
livro antigo, o qual foi trasladado em tempo do mui
esforçado rei Dom Johão de boa memorea , o primeiro
d'este nome em Portugal: por seu mandado foi o livro
que digo escripto , e está no moesteiro de Peralonga,
o chama-se Estorea Geral, no qual achei estas com
outras anteguidades de falar....) ( 2) Com egual titulo
(1) Mon. hist., Scriptores, p. 22.
(2) Fernão d'Oliveira,Grammatica de linguagemport., p. 80 .
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 101
se encontra na Bibliotheca de Dom Duarte uma Histo
ria geral; ( n .° 24) mas estes dois titulos parecem de
signar duas copias do mesmo Livro, porque na Biblio
net theca nacional de Paris, se conserva um manuscripto
Pas portuguez com o titulo : Historia geral de Hespanha ,
Et composta em Castelhano por El-rei de Leão e Castella ,
ME Dom Affonso o Sabio, trasladada em portuguez por
pel rei Dom Diniz ou por seu mandado . A esta traducção
foram os diversos copistas ajuntando os sucessos da
historia de Portugal acontecidos até ao tempo em que
escreviam ; e por isso se vê tambem no titulo : «e con
tinuada na parte que diz respeito a Portugal até ao
anno de 1455 , no reinado de Dom Affonso V.» (1)
Como excerpto da linguagem da Chronica geral, trans
crevemos aqui a pena symbolica dos traidores : « E
quando chegou a perto de Tolledo, quanto duas leguas,
71 mandou perante ssy trazer Paulo com seus companhei
# ros, e feze-os trosquear em cruz, e rraer as barbas e
tirar-lhe os olhos, e vestidos de almaffega por grande
. deshonra, e fezeos poer em cima de camellos, que
V levava muytos, o Paulo porque era d'elles o mayoral
poseram -lhe uma coroa de pez na cabeça , e pozeram -no
11 em cabeceira de todos, e elles hyam amarrados em
huma corda, e assy entraram na cidade de Tolledo
feitos em escarnho ee rriso e doesto a todos como tree
dores. Desy mandouos el-rroy meter em carcer, e hy
jouverom em toda sua vida ataa sua morte . » A Chro
nica geral exerceu uma influencia salutar sobre o ge
nio historico portuguez, porque veiu mais tarde reve
lar aFernãoLopes como a vida moral da historia se
tira das tradições. Já no seculo xv, n'essas pequenas
Relações hoje intituladas Chronicas breves e Memorias
avulsas de Santa Cruz de Coimbra , se cita a Chronica

( 1) Este manuscripto começou a ser impresso em Coimbra ,


pelo Dr. Nunes de Carvalho, de pag. 1 a 192. (1863.)
102 CAPITULO III

geral como fonte historica: « A chronica de spanha con


ta que el-rei
- dom affonso ... > (1)
c) Vida da Rainha Santa Izabel.Este monumento
litterario pertence a essa classe de narrações da edade
media chamadas Lendas, em que as tradições oraes
recebiani a forma escripta para serem lidas, este ge
nero era o ponto aonde o povo e o clericus se encon
travam na fórma historica, do mesmo modo que suc
cedia na poesia, nos cantos farcis dos goliardos. A
Vida do Santa Isabel apparece pela primeira vez ci
tada no testamento do Infante Dom Fernando o Santo,
escripto antes da partida para Tanger : « Item , o Li
vro da Rainha Dona Nizabeth .» (2 ) Este livro veiu
parar ao convento de Santa Clara, de Coimbra,
d'onde o copiou depois Frei Francisco Brandão, em
1751 , ( 3) que d'elle deixou o seguinte juizo : « O au
ctor d'esta Relação se não declara, mas d'ella se col
lige que he muito antiga e muito proxima á morte da
Santa Rainha . (1374) No principio do livro está pin
tada a imagem da Santa, vestida com habito, cordão,
manto e véo da Ordem de Santa Clara. Tem na mão
direita um crucifixo, e na cabeça uma corôa de espi
phos. A seus pés estão lançadas uma corôa e sceptro
reaes com a letra seguinte: Crux et spinea corona
Domini mei, sceptrum et corona mea . E no titulo : « he
um livro escripto de mão, que está no Convento de
Santa Clara de Coimbra. A Relação da vida gloriosa
de Santa Isabel rainha de Portugal, não chegou a ser
recolhida nos Monumentos historicos da Academia,
mas não por falta de authenticidado; bastava appare
cer citada no testamento do Infante Santo, para se co
nhecer a sua antiguidade. Por outro lado, as formas
(1) Mon. hist., Scriptores, p. 25, col. 1.
(2 ) José Soares da Silva, Mem . de D. Jodo I, t. iv, Doc.
1, p . 150.
( 3) Part. vi, da Monarch. Luzit., aonde se acha improssa.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 103
linguisticas fixam a sua redacção no ultimo quartel do
seculo XIV ; taes são as palavras: sa por sua; lidimo
por legitimo; dispensaçom por dispensa ; erom , por
eram ; mesura, filhar, tolher , guisa, comprideiro, ensem
bra, gafo ; logo por logar; participios em udo, como cres
gudo, sabudo ; accorrimento ; segrar, por secular ; cá ,
prasmar , aguisado, meatade (no Nob . meadade); con
sirar, ousança, comesto , recudir, etc. Um pequeno ex
cerpto nos fará conhecer a antiguidade da sua redac
ção: « Em sa casa se criavam filhas de muitos nobres
homens, e filhos de cavalleiros e d'outros homens, o
des que erom de idade, e achavam casamentos a si
eguaes, casava -os, e outros punha em ordem a cada
uma Deos procurava, e dava a elle de seu haver, se
gundo a pessoa que era e o estado que filhava. Outros
muitos e muitas que nom erom de sa casa, que o a
ella demandavam , fazia ella ajuda para casarem seus
filhos ou para necessidades outras que houvessem ; di
zendo que alguns que parecia que haviam o que lhes
cumprisse, haviam mister ajuda para se manteer mais
que outros que pareciam em si pobres e desempara
dos. E por hu ella hi nom ficavam emparedadas, nem
gafos, nem presos, que sa esmola nom recebessem
parte. )
d) Relação da Batalha do Salado.- Este grande
facto historico, que assegurou a estabilidade das mo
narchias christãs da Peninsula, inspirou em Hespanha
a Chronica en redondillas de Rodrigo Yanes , o a
sua imitação ou traducção feita por Affonso Giraldes;
mas no fragmento do Nobiliario, que anda junto ao
Cancioneiro da Ajuda, encontra -se uma extensa rela
ção d'essa batalha, da qual se pode dizer que é aa pa
gina historica mais perfeita a que chegou a litteratura
portugueza do seculo xiy, O genealogista bem conhece
que aquella narração historica não pertence a essa or
dem de escriptos de linhagens: « e se alguns ouvesse
104 CAPITULO III

contar as maravilhas e bondades que faziam , seeria o


livro tam grande que os que o lessem com a grande
escriptura se anojariam , e os outros de que aqui nom
falassem ficariam reprehendidos. Des i porque este li
vro he de linhagees nom faz mester de en el falar de
todo salvo dalgumas cousas maravilhosas...) ( 1) O ge
nealogista costumado á rhetorica dos estudos do Tri
vium , não pode descrever sem collocar na bocca dos
seus personagens allocuções, como no estylo de Tito
Livio, que ainda então não era conhecido na Penin
sula : « È el-rei Dom Affonso de Portugal era de gran
des feitos, o quanto mais olhava polos mouros, tanto lhi
mais e mais crecia e esforçava o coraçom como home
que era de grandes dias e tinha que deus lhi fezera
gram mercee en o chegar aquel tempo hu podia fazer
emmenda de seus peccados por salvaçom de sa alma
e receber morte por Jhesu Christo . El de todo boom
contenente falou ali com os seus e disse-lhes assi :
Meus naturaaes e meus vassalos, sabede bem en como
esta terra da espanha foy perduda por rei Rodrigo e
ganhada pelos mouros, e en como outra vez entrou Al
mançor, e em como os nossos ayoos donde descende
des por gram seu trabalho e por mortes e lazeiras ga
nharom o reino de Portugal, en como el-rei dom af
fonso anriques com que a eles ganharom lhis deu on
ras e coutos e liberdades e contias porque vivessem
honrados, e nom tam solamente fez estoa eles, mais
por a sua onra dava os maravedis aos filhos que ja
ziam nos berços e os padres serviam por eles. En como
os reis que despois el veerom aguardarom esto. Eu
depois que vim a este logo fiz aquelo que estes reis
fezerom , o se alguma cousa hy a pera emendar eu o
corregerei se me deus d'aqui tira. Olhade por estes
mouros que nos querem ganhar e espanha de que di

(1) Mon. hist., Scriptores, p. 190.


FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 105
91
zem que estam forçados e oie este dia a entendem de
cobrar se nós nom formos vencedores. Poede em vos
OM
808 corações de usardes do que usarom aquelles donde
viides como nom percades vossas mulheres nem vossos
filhos, e o em que ande viver aqueles que depois nós
veerem , os que hy morrerem e viverem seeram salvos
e nomeados pera sempre.-- Os fidalgos portugueoses
lhi responderom : -- Senhor, os que aqui estam oie este
.
dia vos farom vencer ou hy todos prenderemos morte .
-El-Rei foy desto muy ledo. (1) Seriam estas as
EL tradições ouestoreas, que Fernão Lopes poz em Ca
1 ronica ? Assim, a Historia como forma litteraria tem
uma origem o desenvolvimento analogo ao da poesia.
Pr e ) Chronica da Conquista do Algarve. --A'cerca
zel d'esta Chronica ou Relação da Conquista do Algarve
pelo mestre de Sam Thiago D. Payo Peres Corrêa,
00 escreve Frei Joaquim de Santo Agostinho : « Em Agosto
do anno de 1788 descobri na Camara da cidade de
Tavira, no reino do Algarve, uma pequena Chronica
l da conquista do mesmo reino, que julguei de algum
# interesse. Nos Tomos velhos da mesma Camara vem
lançadas no I, que por sua muita antiguidade não tem
principio nem fim , desde pag. 207 até 213, por treze
ſaudas completas de fol. grande.» (2) A antiguidade
l: d'esta Chronica é indubitavel emquanto ao espirito lit
! terario, postoque a linguagem seja já reformada pelo
copista do seculo XV ; a copia que existe nos tomos re
formados de 1733, leva -nos a inferir ter a Chronica
soffrido essa renovação de linguagem pelo copista an
tigo e por isso menos reverente. Aquelle que escreveu
essa Chronica , não estava tão remoto do successo, que
ainda no seu tempo se não vissem as ossadas no sitio
das Antas : « e quando chegou ás antas e vio os cavallei
(1) Ib . p. 185.
(2) Memorias de Litter. da Academia , t . I.
106 CAPITULO III

ros mortos começou com os moros mui dura pelleya, e


morreu tanta gente d'elles que ainda hoje em dia jaz
alli a ossada d'elles, e desde que os venceo seguiu ho
alcance fazendo grande estrago em elles ... ) (1) A
tendencia para a forma historica no ultimo quartel do
seculo xiv , é um dos argumentos mais fortes para fi
xar a data d'esta composição , muito mais perfeita e
narrativa do que a Chronica breve, que se achou en
tre as Inquirições de D. Affonso III.
f) Traducções diversas.-- Frei Fortunato de Sam
Boaventura, nos Ineditos de Alcobaça , dá -nos noticias
de diversas obras traduzidas em lingua portugueza do
seculo XIII para xiv, recolhendo outras sem comtudo
seguir a ordem chronologica. O mais antigo documento
que reproduz é a traducção da Regra de Sam Bento,
do seculo XIII, que pertenceu ao Convento de Sam
Paulo de Almaziva a par de Coimbra. Começa: « Fi
lho, ascuyta os preceptos do meestre, e inclina a ore
lha de teu coraçom o recibe de boamente o amoesta
mento do padre piadoso , e afficadamente o comple,
por que te tornes per trabalho de obediencia aaquel
do qual te partiste per priguiça de desobediencia. » (2)
Dá-nos tambem noticia da traducção do Viridiario
de Sam Pedro Paschoal, com o titulo de Vergeu de
Consolação, e reproduz uma Historia do Antigo Tes
tamento, «que pelo menos em o seculo XIV foi trasla
dada do latim de Pedro chamado Comestor, e que
sendo tecida pela maior parte das palavras formaes
do texto sagrado e na parte da historia, que falta
n'este, seguindo litteralmente a Flavio Josepho, de
verá ser tida em tanto maior preço, quanto é certo
que o traductor portuguez cortou absolutamente o que
na obra de Pedro Comestor ou cheira demasiadamente

(1) Mon. Hist ., Scriptores, p. 418.


(2) Ineditos, t . 1, p . 249.
FICÇÕES, LENDAS, CHRONICAS E PHILOSOPHIA 107
2

a escholasticismo ou foi bebido em fontes menos puras


je e tradições fabulosas . ) (1)
Tube Na Bibliotheca dos Bispos de Lamego existia uma
11 outra copia d'esta antiquissima traducção do Velho
& Testamento, a qual « pertencera a Francisco de Sá o
Miranda . ) (2) O valor litterario d'estas traducções da
Ete? Biblia é immenso para o estudo comparativo das di
en
versas phases da lingua portugueza. Com as traduc
ções do seculo xiv , com a dos Actos dos Apostolos
Siap do seculo xv , com a do Padre João Ferreira de Al
cia meida do seculo XVII, e do Padre Antonio Pereira do
adi seculo XVIII, junto com a traducção no dialecto indo
tud portuguez fallado em Columbo, temos accentuadas to
cent das as transformações successivas por que tem passado
Ent a lingua portugueza .
Seu No Codice 251 da Livraria de Alcobaça existia
of uma traducção de 1399, feita por Frei Roque de Tho
One mar , com o titulo : Começa-se o pobre Livro das Con
fissões, dito assi porque he feito e compellido para
os clerigos minguados de sciencias, e porque he assi,
como mendigado e apanhado dos Livros de Direito e
da Sagrada Theologia . O excesso das traducções no
seculo xiv , e a actividade dispondida na apologetica
religiosa não deixaram que a litteratura portugueza
fizesse os progressos para os quaes não lhe faltavam
condições vitaos. O grande phenomeno da civilisação
moderna chamado a Renascença do seculo XIII ou
a primeira Renascença , que Dante caracterisava com
o verso Dolce color d'oriental zaffiro, em Portugal
foi apenas um crepusculo ; comprehendemos mal esse
phenomeno: em vez dos escriptores da antiguidade clas
sica fizeram -nos lêr Summas estereis de theologia ; em
vez do espirito idealista de Platão, que fez nascer a bella
(1) Ib ., t . I, p. 16. Publicadas no t. II e II.
Ib ., t. II, p. VII .
108 CAPITULO III

poesia italiana, agrilhoaram -nos á dialectica de Aris


toteles sublimada por Avincena e pela tradição arabe;
em vezdos planos de D. Affonso III, que dava Car
tas de foral ás terras, seguiu -se o Direito romano e a
superstição das Decretaes; a Arte gothica na archite
ctura ainda não tinha podido penetrar por causa da
immobilidade hieratica do estylo byzantino. Todas
estas condições fizeram que a actividade litteraria
do seculo XIII e XIV se reduza a muito pouco ; era
preciso que fossemos um tanto com a corrente da ci
vilisação europea e que a comprehendessemos. Dom
João í reconhecendo a independencia do braço popu
lar, acceitando a soberania da eleição, abriu o cami
nho para uma era nova na civilisação portugueza.
SEGUNDA EPOCA

ESCHOLA HESPANHOLA
(@ECULO Xv )

CAPITULO IV

Estado da lingua portugueza e do meio litterario


Relação entre a lingua e a litteratura no seculo xv : Na litte
ratura dá-se uma completa separação entre o escriptor e o
genio popular.- Na lingua dá -se um desenvolvimento eru
dito, quea afasta da actividade espontanea, que ella ia se
guindo.— Explicação dos duplos ou formas divergentes resul
tantes conjunctamente da corrente popular e erudita. - In
fluencia dos traductores e latinistas sobre o vocabulario
portuguez . - Como a linguagem popular se torna archaica.
-Primeiro estudo da synonimiaportugueza, por El- rei Dom
Duarte. As suas regras de traducção, e applicação a um
hymno do seculo x. - Influencia do meio litterario sobre a lit
teratura.-- Quaes eram os livros mais lidos em Portugal no
seculo xv . - Porque predominou entre nós a influencia hespa
nhola.

Relação entre a lingua e a litteratura


no seculo XV

Apezar de se encontrarem n'este seculo os primei


ros monumentos directos da poesia popular portugueza ,
é tambem n'elle que se torna mais manifesto o cara
cter particular da litteratura, creada e inteiramente
separada das tradições e das necessidades moraes do
povo portuguez. E ' facto que existiam productos da
invenção popular; mas isto torna mais palpavel a cal
culada separação da litteratura, que só procura de
senvolver - se pela imitação de elementos eruditos. O
110 CAPITULO IV

seculo xv foi a grande epoca da erudição ; era uma


moda que havia de fatalmente seduzir um povo re
cente, que procurava affirmar a sua civilisação mos
trando que estava a par das correntes predominantes
do gosto. Isto que vamos vêr desenvolvido mais am
plamente no decurso da epoca denominada Eschola
hespanhola , é o topico por onde melhor se conhece o
estado da lingua portugueza. Como a litteratura, a
lingua portugueza tambem recebeu um desenvolvimento
erudito, que a modificou e lhe imprimiu uma forma
muito diversa da que teria, se os escriptores do se
culo xv , em vez de augmentarem o vocabulario com
as palavras que tiravam directamente do latim ur
bano, fossem obrigados a escrever para o povo e
em linguagem que elle entendesse . So a lingua por
tugueza seguisse a sua evolução natural,, chegaria
indubitavelmente a essa contracção das palavras, que
tanto distingue a lingua franceza, que só no seculo XVI
foi submettida á authoridade dos eruditos, quando
já não podiam alterar a sua estructura, não obstante
todas as innovações do vocabulario . A lingua portu
gueza, desde que começou a ser escripta, foi fixando
as suas formas ao capricho dos traductores, e por isso
as duas leis phoneticas, que predominaram constante
mente na formação divergente das linguas romanicas,
-o desapparecimento das vogaes mudas o a queda
das consoantes mediaes, -pela fatalidade da natureza
exerceram -se sempre na linguagem oral, mas foram
modificadas na linguagem escripta. Sobre esse ponto
escreve o auctor das Questões da lingua portugueza :
« Em virtude da cultura litteraria, do estudo dos aucto
res latinos, tem passado para o portuguez um grande
numero de palavras que, sendo tiradas immediata
mente d'aquelles auctores, apenas se apresentam mo
dificadas na terminação e mesmo só quando as analo
gias maisevidentesda lingua o exigem . Essas formas
ESTADO DA LINGUA PORTUGUEZA 111

não obedecerampor tanto as leis daalteraçãophonetica,


que presidiram á formação da lingua ; todavia, por
outro lado podiam as palavras originaes pertencer ao
fundo da lingua e achar -se alteradas confórme aquel
las leis ; d'ai resulta que muitas se apresentam em
portuguez com duas formas : uma popular, verdadei
ramente portugueza, outra classica, erudita. Em se
guida extraíremos alguns dos seus exemplos :
FORMA POPULAR FÓRMA ERUDITA LATIM

Abrego Africo Africus.


Alhear Alienar Alienare .
Ancho Amplo Amplus.
Bésta Balista Balista .
Cabedal, Caudal Capital Capitalis.
Chão Plano Planus.
Cheio Pleno Plenus .
Chamma Flamma Flamma .
Delgado Delicado Delicatus.
Eira Area Area .
Insosso Insulso Insulsus.
Findo Finito Finitus.
Inteiro Integro Integrus.
Mister Ministerio Ministerium
Nedio Nitido Nitidus.
Palavra Parabola Parabola .
Quedo Quieto Quietus.
Raido Rugido Rugitus.
Sello Sigillo Sigillum .
Tea, Tela Tela .
Velar Vigilar Vigilare. (1)
As formas populares só foram introduzidas na lin
(1) Coelho, Questões da lingua portugueza , p. 99 .
112 CAPITULO IV

guagem escripta accidentalmente, como por vicio do


escriptor; as formas eruditas introduzidas com perten
ção culta, tornaram a lingua litteraria convencional,
a que ainda no seculo xv Dom Duarte chamava lingua
ladina e ladinha; lingua que se tornou de uso entre
as classes illustradas, a ponto de, mesmo no seculo xv ,
se julgar a linguagem propriamente , vulgar de tal
modo archaica, que foi preciso traduzil -a para a lin
guagem corrente, como se deu na reforma dos Foraes
tentada já no tempo de Dom João II. Ainda hoje se
se escrevesse o portuguez tal como é pronunciado pelo
povo,, conhecer-se-hia a distancia que 0o separa da forma
escripta. No reinado de Dom João i continuou mais
calorosamente o enthusiasmo das traducções latinas;
era esta uma das causas do caracter erudito que ia re
cebendo a lingua portugueza ; vêmos isto mesmo nas
outras linguas romanicas. Pedro de Bercheure , tradu
zindo Tito Livio introduz nas linguas modernas as
palavras Cohorte , Colonia , Magistrado, Tribuno do
povo, Fastos, Facção, Transfuga, Senado, Triumpho,
Auspicio, Auguro, Inauguração; Oresme, traduzindo
Aristoteles, introduz os novos vocabulos, Monarchia ,
Tyrannia , Democracia , Aristocracia , Oligarchia , Des
pota , Demagogia , Sedição, Insurreição. Tambem o
Infante Dom Pedro, ao fazer uma compilação dos sete
livros de Seneca, usa d'esta mesma liberdade descul
pando-se : «E os que menos letrados forem do que eu
som , nem se anojem d'algumas palavras latinadas e
termos scuros, que em taes obras se nam podem escu
sar. » ( 1 ) N'esta introducção constante de palavras no
vas acontecia muitas vezes que o vocabulo innovado
se encontrava com outro derivado da mesma origem
latina mas pelos processos naturaes da degeneração
phonetica , como em testemoya e testemunha (de testimo
(1) Ms. da Virtuosa Bemfeituria, liv. I, cap .2.
ESTADO DA LINGUA PORTUGUEZA 113

ria ); d'aqui resultava « em geral difforença de signi


ficação entre os dois termos, » (1) e ao mesmo tempo
as primeiras observações para formar a synonimia e
constituir a disciplina grammatical. Diz o Infante Dom
Pedro, no livro da Virtuosa Bennfeituria : «A taes pra
zeres como estes chamam-se em latim specialmente
Jocunditates. E nós, por não termos em nossa lingua
gem vocabulo apropriado, podemol-os chamar Sobre
avondante e extremada alegria .» No Leal Conselheiro
de el rei Dom Duarte, abundam os documentos d'esta
revolução erudita por que passava a lingua portugueza:
«Da yra,seu proprio nome em nossa linguagemhe sa
nha... ) (2) « do odio, ou segundo nossa linguagem
malquerença ...» (3) Sobre tudo o cap. xxv d'esta no
tavel encyclopedia portugueza da edade media apre
senta já uma especulação philosophica, sobre a syno
nimia da lingua: « Antre nojo, é tristeza eu faço tal
deferença; porque a tristeza , por qualquer parte que
venha, assy embarga sempre contynuadamente o co
raçom , que non dá spaço de poder em al bem pensar
nem folgar ; e o nojo he a tempos, assy como se vee
na morte d'alguns parentes e amygos, onde aquel
tempo que per justa falla ou lembrança se sente, o
sentymento he muýto ryjo ; porém taaes hi ha que
passado o dia logo riim, fallam e despachadamente
no que lhes praz pensam . E a tristeza nom consente
fazer assy , por que he hứa door, e contynuado gas
tamento como apertamento do coraçom ; e o nojo nom
contynuadamente,, salvo se tanto se acrecenta que der
riba em tristeza .
« E tal deferença se faz antre nojo e o pezar ; por
que o nojo no spaço que o sentem faz em aquel que o

(1) Questões da lingua portugueza, loc. cit .


(2) Leal cons., p. 96.
( Ibid ., 103 .
(3)
114 CAPITULO IV

ha grande alteração, mostrando manyfestos sygnaos


em chorar, sospirar, e outras mudanças de contenença,
o que nom mostra o pesar sollamente, ca bem veemos
que das mortes d'alguns nos pesa muyto, e nom nos
derriba tanto que façamos o que o nosso nos con
strange fazer, e menos caymos em tristeza , nem d'el
les avemos sanha, mas propriamente sentymos no co
raçom hum pesar com assas de sentido... O desprazer
he ja menos, porque toda cousa que se faz, de que nos
nom praz, podemos dizer com verdade que nos despraz
d'ella, aynda que seja tam ligeira que pouco sinta
mos . — E o avorrecimento avemos de algumas pessoas
que desamamos, ou de que avemos enveja, posto que
seja em nossa secreta camara do coraçom, e dos desa
graciados, enxabiidos ou sensabores, e aquesto do queĒa
fazem que a nós nom perteeça nem nos torve ;
suydade nom descende de cada hua d'estas partes,
mas he hun sentido do coraçom que vem de sensuali
dade e nom de razom , e faz sentir aas vezes os sen
tidos da tristeza e do nojo; etc. » (1) A revolução eru
dita dava-se assim tambem na parte morphologica da
lingua, porque é a datar do seculo xv que tomamos
directamente o suffixo issimus, para formarmos os su
perlativos simples, que até então eram feitos com o
adverbio muito. No Leal Conselheiro se encontra a in
troducção d'esse superlativo litterario : aporque nos
Senhores esta virtude antre todas muyto recebe grande
louvor, onde por special d'ella som chamados illustris
simos e serenissimos, mostrando que som assy claros
em verdade ... » (2) E' d'esta mesma epoca o documento
sobre Bohetrias, onde se lê : « Conde de Barcellos , filho
do muito virtuoso e vitorissimo rey Dom Joham. » ( 3)
(1) Leal Conselheiro, cap. xxv, p. 149.
(2) Ibid ., p. 213.
(3) Apud Mem . de litt. port., t. 1, p. 182.
1
ESTADO DA LINGUA PORTUGUEZA 115

Nas Côrtes de Evora, de 1481 , apparecem os seguin


tes superlativos simples : santissima, Christianissimo,
e grandissimo. A natureza d’estes ultimos documentos
nos revela que pelo seu lado tambem os jurisconsul
tos nas suas traducções das leis romanas imprimiram
á lingua esse cunho artificial, aproximando o portu
-guez tanto do latim, quanto Ronsard pretendia con
e fundir o grego com o francez. D'esta revolução re
pentina resultou o ser a linguagem do seculo xiv já ar
chaica e inintelligivel passados cem annos. (1).
Por isso em 1492, Garci Ordoñes de Montalbo jus
tificava a sua refundição do Amadis de Gaula, dizen
do: «é corregiole de los antiguos originales, que esta
ban corruptos é compuestos en antiguo estilo, por falta
de los differentes escriptores; quitando muchas pala
bras superfluas, é poniendo otras de mas polidoy ele
gante estilo .... Esta revolução não se deu na lingua
hespanhola, que ainda hoje está mais antiquada do que
o portuguez . Os philologos do seculo xvi reconheceram
este extraordinario phenomeno , como Duarte Nunes de
Leão: « Do tempo da rainha D. Philippa e de seus fi
lhos para cá, houve em Portugal na policia e trata
mento das pessoas reaes muita differença e bons esty .
los e muita differença na linguagem e nos conceitos . ) (2)
E Frei Manoel do Sepulchro tambem assignala o mes
mo facto; « E não ha duvida , que maior mudança fez
a lingua portugueza nos primeiros vinte annos do rei
nado de Ô. Manoel : como o vêmos pelos escriptos em
verso e prosa de uns e outros tempos . » (3) De facto já
(1) João Pedro Ribeiro tinha já notado estes neoterismos
do seculo xv: « E que não fez o aliảs erudito Frei João Alves,
secretario do Infante D. Fernando, e depois abbade do Paço
de Sousa ? Parece quiz trasladar todas as palavras latinas para
o nosso idioma.» Reflex. philologicas, N. 4, p. 12.
(2) Chr . de D. João I, cap .86.
(3) Refeição Espiritual., § 2 , n.° 3.
116 CAPITULO IV

em 1495 a traducção da Vita Christi, mandada fa


zer pela rainha D. Izabel, estava antiquada na lin
guagem, como o declara Frei André, que a reviu. Dom
Manoel, por Carta Regia de 22 de Novembro de 1497,
mandou ( ... veer... e declarar os Foraes todos d'es
tes nossos Regnos... e tornal-os a tal forma e estilo que
se possam bem entender,...) E no Foral de Lisboa, de
1550, se repete: « a variedade das moedas, o diverso
valor, lingua latina e linguagem antiga e desacostu
mada, deu motivo a El-Rei Dom Manoel mandasse
fazer todos os Foraes do Reino ...) Aqui se vê por to
dos os lados reconhecida a revolução erudita e artifi
cial que a lingua portugueza fizera; a lingua vulgar é
que era archaica . El-rei Dom Duarte, dedicando - se
aos estudos litterarios tinha o exemplo de grande parte
dos reis da Europa, e segundo a tradição latina , via
Salomão e Cesar , que honraram o sceptro e o cálamo;
em casa , Dom Diniz, Affonso Sanches, seu pae Dom
João I, o seu irmão Dom Pedro, Duque de Coimbra,
dedicavam-se.com esmero ao estudo das boas lettras .
Dom Duarte confessa o motivo da sua determinação:
«E semelhante o muy excellente e virtuoso Rey, meu
Senhor e Padre, cuja alma Deus aja, fez hun liuro das
Horas de Sancta Maria, e salmos certos pera os fina
dos, e outro de Montaria ; e o Iffante Dom Pedro, meu
sobre todos prezado e amado irmão , do cujos feitos e
vyda som contente, compoz o liuro da virtuosa bem
feituria, e as horas da confissom ; e aquel honrado Rey
Dom Affonso estrollogo, quantas multidões fez de lei
turas ? E assy Rey Sallamom , e outros na ley antiga,
o doutras creenças, seendo em real estado , filharlhom
es
desejo e folgança em screver seus liuros do que
prouve, os quaaes me dam para semelhante fazer nom
pequena autoridade. » (1) No livro da Ensinança de
(1) Leal Conselheiro, cap. XXVII, p. 169.
ESTADO DA LINGUA PORTUGUEZA 117

bem cavalgar, confessa que escreve o seu tratado a


exemplo de Julio Cesar , que no desenfado dos nego
cios graves se distrahia escrevendo: « E sentyndo esto
o vallente emperador Jullyo Cesar, por guardare re
ter seu cuydado, por muyto que ouvesse de fazer,
sempre quando avya spaço, seguya o estudo, e alguas
obras de novo screvya. E veendo que meu coraçom
nom pode sempre cuydar no que, segundo meu esta
do, seria melhor e mais proveitoso ; alguns dias por
andar a monto, caça e camynhos, ou desembargadores
pom chegarem a mym tam cedo, estou como ocioso ,
ainda que o corpo trabalhe por nom filhar em tal tem
po algun cuidado que empeecymento me possa trazer,
por tirar outros do que me nom praz, achoy por boo
e proveytoso remedio alguas vezes pensar,e de my
nba mało screver em esto por requirymento da von
tade, e folgança que em ello sento, ca doutra guysa
nunca o faria, porque bem sey quanto pera mym
presta fazello ou leixallo de fazer .) ( 1) Levado por
estas imitações classicas, Dom Duarte seguia escru
pulosamento a tradição latina, como a vereda da boa
cultura . Aconteceu como acontece com toda a mani
festação da auctoridade, o exclusivismo; assim como
o papado formulou — fóra da egreja não ha salvação,
tambem as academias e as côrtes dos principes illus
trado proclamaram : fóra do latim não ha sabedoria ;
e a intelligencia tevo de permanecer esterilisada du
rante o dominio d'este longo duumvirato, que entre si
travou uma alliança doutrinal e prepotente.
Os processos que assim actuaram sobre esta degene
ração da linguaportugueza, reduzem-se a dois, a in
novação dos traductores e a influencia do meio litte
rario em que os escriptores viviam e pensavam . O bom
(1) Ib ., Prologo, p. 498
118 CAPITULO IV

saber consistia na arte de bem traduzir, que então se


usava de uma maneira paraphrastica. Dom Duarte
expõe as regras a Da maneyra para bem tornar alguma
leiturà em nossa linguagem : Primeiro, conhecer bem
a sentença do que a tomar, e poella enteiramente,
nom mudando, acrecentando, nem minguando alguma
cousa do que está escripto. O segundo, que nom po
nha palavras latinadas, nem d'outra linguagem , mas
todo seja em nossa linguagem scripta, mais achega
damente ao geeral boo costume de nosso fallar que se
poder fazer. O terceiro, que sempre se ponham pala
vras que sejam direita linguagom , respondente ao la
tim , nom mudando umas por outras, assy onde desser
per latim scorregar, nom ponha afastar, e assy em ou
tra semelhante, entendendo que tanto monta uma co
mo outra, porque grande deferença faz para se bem
entender serem estas palavras propriamente escriptas.
O quarto, que nom ponha palavras, que segundo o
nosso costume de fallar sejam havidas por deshones
tas. O quinto, que se guarde aquella ordem que egual
mente deve guardar em qualquer outra cousa que se
escrever deva, scilicet, que escrevam cousas de boa
sustancia claramente para se bem poder entender , e
fremoso o mais que elle poder, e curtamente quando
for necessario, e pera este aproveita muito paragraphar,
e pautar bem. Se um rasoar tornan do
do latim em lin.
guagem , e outro escrever, achará melhoria de todo
juntamente per hum só feito . » O erudito monarcha ap
plica em seguida estas regras, traduzindo para verso
portuguez um hymno latino do seculo x, a pedido de
sua mulher Dona Leonor : « E porque per vosso re
querimento tornei em linguagem simpresmente rima
da de seis pés de um consoante a Oraçom do Justo
Juiz Jesus Christo, vol-a fiz aqui screver, a qual pera
fazer consoar nom pude compridamente dar sua lin
ESTADO DA LINGUA PORTUGUEZA 119

guagem , nem a fiz em outra melhor forma por con


cordar com a maneira e tencom que era feita em la
tim . » ( 1) Os versos portuguezes são os unicos que res
tam de el-rei Dom Duarte , porque se perdeu o livro
(n.° 76 do Catalogo dos livros de uso) intitulado Livro
das Trovas de El-Rei ; o original latino só foi achado
em 1873. Aproximemol-os:

Juste judex Jesu Christe, regum rex et domine,


Qui cum patre regnas semper, et cum sancto fi'ammine
Te digneris preces meas clementer suscipere.

Justo Juyz Jhesu Xpisto,


Rey do rex e boo Senhor,
Que com Padre regnas sempre,
Hu he dambos hun amor ;
Praza- te de me ouvir
Pois me sento peccador .

Qui de coelis descendisti Virginis in uterum ,


Inde summens veram carnemvisitasti saeculum ,
Tum plasma redimendo sanguinem per proprium , etc.

Tu que do ceeo descendiste


En o ventre virginal,
Hu tomando logo carne
Livraste o segre de mal,
Por teu sangue precioso
De perdiçom eternal. etc. (2)

O furor das traducções applicou -se áá poesia ; d'este


periodo do seculo xv são as traducções poeticas das
horas do officio divino pelo Dr. Frei João Claro, e as

( 1) Leal Conselheiro, p . 476.


( 2) Seguem-se mais dez strophes.
120 CAPITULO IV

traducções de Ovidio por João Rodrigues de Lucena


e João Rodrigues de Sá, já recolhidas no Cancioneiro
geral. O meio litterario, isto é, a communicação com
as creações poeticas da edade media, à medida que
nos tirava a nossa feição nacional, obrigava os erudi
tos a acostarem -se cada vez mais á auctoridade latina.
O Catalogo dos Livros de uso de el -rei Dom Duarte,
o Testamento do Infante Santo, e o do Doutor Mangan
cha, enumerando os livros mais estimados e lidos, de
finem -nos qual era o meiolitterario que actuava sobre
nós. Na Bibliotheca de Dom Duarte guardava -se a
Dialectica de Aristoteles, um Valerio Maximo, Seneca
commentado, Marco Tullio, Vegecio, Julio Cesar; as
obras dos Santos Padres e os moralistas ecclesiasticos
occupam a parte fundamental da sua bibliotheca. Mas
a parte verdadeiramente importante são os poemas e
historias da edade media, como o Livro de Tristão;
apparece aí o Amante, traduzido do original inglez de
João Gower por um conego de Lisboa, Roberto Payno,
livro que hoje se guarda na Bibliotheca do Escu
rial; (T) Merli, era um outro poema do cyclo da Ta
vola Redonda ; (2) e o Livro de Galaaz, tambem lido e
imitado pelo Condestavel, como se vê pelo principio
da sua Chronica anonyma. No livro da Côrte Impe
rial, especie de dialogo allegorico, que se attribue a
Dom João 1, cita-se ali com auctoridade scientifica o
poema De Vetula , que anda em francez escripto por
Richard de Fournival. No Capitulo xir da Côrte Im
perial, que se guarda na Bibliotheca do Porto, se lê :
a bem sabedes que hun grande poeta muy genhoso e
(1) Amador de los Rios, Hist. de la Litt. esp ., t. VI, p. 46.
2) Na Bibliotheca de Vienna existe um Ms. portuguez
Demanda do Santo eGreal, do qualporventura formavam parte
o Livro de Tristão e Merli. E o Ms. 2594. D. João I, no cerco
de Coria comparava os seus cavalleiros aos da Tavola Redonda,
como se vê em Fernão Lopes.
ESTADO DA LINGUA PORTUGUEZA 121

muy sotil antre os outros poetas foy, o que ouve nome


Ovidio Naso, e foi gintil. E este fez muitos livros,
o qual antes da sua morte compoz hun livro que
chama Ouvidio da velha, e este livro foi achado em
no muymento ... » O livro intitulado Orto do Sposo,
(n.° 56) até hoje desconhecido, era traduzido de um
3
original latino Hortus Sponsi, pergaminho in - 4.º que
se guardava na Livraria de Alcobaça . (1) O poema
de Benoit de Sainte More, Historia de Troya, per ara
guez, era a traducção de Jacques Coresa, por ventura
1
trazida para Portugal pelo casamento de el-rei Dom
Duarte . Da litteratura hespanhola começava então a
influencia que predominou absolutamente no Cancio
neiro geral ; taes eram o Livro da Cetraria , por cas
$ tellão, o Livro da Lepra ; o Livro do Conde de Luca
.
nor , de Dom João Manoel, contos no gosto oriental,
tirados em parte da Disciplina clericalis, de Petrus
Alfonsus; (2) a Gram Conquista de Ultramar ; o Livro
das Trovas d'El-rei Dom Affonso; as poesias do Ar
3 cipreste de Fysa ou Hita ; Livro de Monteria, o Livro
da Primeira Partida, etc. Por esta simples enumera
ção se vê que no seculo xv predominaram em Portu
gal as seguintes correntes litterarias: a monomania da
erudição latina, resultante da mà comprehensão da
primeira Renascença ; o gosto pelas epopêas medievaes,
communicado pela tradição ingleza, trazidapela vinda
da rainha D. Philippa, filha do Duque de Lencastre ;
e por ultimo a admiração pola poosia hespanhola, que
progredira immensamente com a imitação da nova
poesia italiana de Dante e Petrarcha. O fervor pelas
epopêas da edade media chegou a penetrar nas rela
0

( 1) N.° 274 da Livraria de Alcobaça, junto com o livro De


Institutione Coenobium , de S. João Cassiano.
(2) No Cod. 241, da Bibl. de Alcobaça, ms. do seculo XIII,
vem o Dialogum Petri Alphonsi, etc.
122 CAPITULO IV

ções civis da aristocracia, aonde vemos usados os no


mes de Yseu , Briolanja , Genebra, Viviana , Oriana,
bem como de Tristão, Lancarote, Lisuarte, Arthur e
Persival. Emquanto a Europa creava as suas novas
instituições sociaes sobre a independencia da burgue
zia, a aristocracia portugueza e a litteratura, separa
das do povo, procuravam os seus interesses e a sua
inspiração fóra da realidade da vida.
CAPITULO V
Existencia de um elemento popular para a
litteratura do seculo XV

Contradicção entre o elemento popular e os eruditos.- Cantos


satyricos do povo na revoluçãode Lisboa, e na tomada de
Portel, Padeira de Aljubarrota, e Condestavel.- A poesia
culta desconhece o espirito nacional ee imita os poetas cas
telhanos.- Formação dos Romances no seculo xv.- Desdem
dos eruditos contra os cantares denominados de romance .
Opinião do Marquez de Santillana. Como o povo denomi
nava os seus cantos, ou Aravias. Conclusões ethnologicas
tiradas d'este nome. -O verso de redondilha menor e o septi
syllabo. - Prohibição dos cantos populares.- Cantos do povo
sobre successos do século xv ; o Conde Pedro Ninho e o Ca
samento mallogrado.-- Estado de tradição nos tres centros
ethnologicos da Beira baixa, Algarve, é Ilhas da Madeira
e Açores.

Contradicção entre o genio popular


e os eruditos

O quadro que acabamos de esboçar do desenvol


vimento da lingua e da litteratura no seculo xv,
mostra - nos que a exclusiva auctoridade dos eruditos
devia afastar a lingua e a litteratura o mais possi
vel da sua origem popular. Se o plano politico de
Dom João I foi elevar essa numerosa camada social
á altura de terceiro estado, plano continuado tambem
por Dom João II, não aconteceu assini no campo in
tellectual, aonde o povo não teve existencia moral,
nem tampouco se pensou nem escreveu para elle . To
das as vezes que uma litteratura, á maneira de uma
planta , não alimenta as suas raizes n’este humus forte
chamado a tradição nacional, cresce, mas de uma
maneira doontia; como o ramo estiolado que procura
a luz, ella procura a corrente de gosto que lhe sirva
de modello para imitação. Não é o povo que cria as
124 CAPITULO V

litteraturas, mas é ello que conserva as tradições e as


repete. Por ventura, seria completa a separação en
tre os escriptores e opovo portuguez, o resultado d'este
ultimo não ter vida moral, não ter cantos, nem festas,
nem costumes proprios? Não. Apesar de terem sido
sempre desprezados os seus cantos, alguns d'elles ainda ,
persistiram bastante para chegarem até hoje. Fixemos
à existencia de um elemento popular, e vejamos de
pois se era possivel uma conciliação e harmonia com
a erudição e imitações litterarias dos escriptores.
Um dos cantos populares portuguezes mais antigos
era uma Canção satyrica allusiva aos amores de el-rei
Dom Fernando I, com a mulher de João Lourenço da
Cunha : «é por esto se levantó la cancion, que dice :
Ay donas ! porque tristura ?» (1)
Fernão Lopes, tambem no meio da sua ingenua
narrativa traz uma Cantiga satyrica que o povo can
tava depois do assassinato do Conde Andeiro, quando
Lisboa era o centro da revolução feita pelo mestre de
Aviz :

Esta es Lisboa prezada,


Miralda у leixalda !

Si quisierdes carnero,
Qual dieran al Andero ;
Si quisierdes cabrito ,
Qual dieran al Arçobispo. ( 2)

Na Chronica do Condestavel, ao descrever-se a to


mada do Castello Portel, que se não queria render ao
(1) Llaguna y Amirola, Compendio historial, ap. Rios,
Hist. crit., t . vir, p. 437, not. 2 .
( 2) Fernão Lopes, Chr., t. I, p. 205.
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO POPULAR 125

Mestre de Aviz, vem intercalada essa outra Cantiga


satyrica :

Pois Mariana balhou ,


Tome o que ganou .
Milhor era Portel
Velha ruiva, p ... velha ;
Que nom caffra e segura ,
Tome o que ganou . (1)

Depois da batalha de Aljubarrota, o povo conti


nuou a dar aos seus cantos esse caracter satyrico; em
um velho romance hespanhol, em que figura um namo
rado portuguez cantando debaixo da janella da sua
dama, vem este Cantarcillo da Padeira de Aljubar
rota :
Pois que Madanella
Remediou meu mal,
Viva Portugal
E morra Castella.
Seja amor testigo
De tamanho bem ;
Não chegue ninguem
zombar commigo .
Que a espada é rodella,
A Forneira sal; (sae)
Viva Portugal,
E morra Castella. (2)

Na Chronica dos Carmelitas, pelo Padre José Pe


reira de Santa Anna, vom diversas cantigas do povo,
recolhidas dos Manuscriptos deGomesEannes de Azu
rara , com que a memoria do Condestavel Dom Nuno
Alvares Pereira era perpetuada na tradição nacional.
O povo cantava a porta do mosteiro aonde o Conde
Chr. do Cond ., cap . 37.
( 2) Romancero general: Un gallardo portugues.
126 CAPITULO V

stavel se recolhera da vida das armas à vida da peni


tencia :

O santo Condestabre
En o seu Mosteiro
Dá - nos sua sopa .
Mail - a sua roupa ,
Mail-o seu dinheiro, etc.
E pela Paschoa florida as mulheres de Lisboa can
tavam varias Seguidilhas sobre a sepultura do Con
destavel, taes como :
No me lo digades, none,
Que Santo es el Conde.

O gram Condestabre
Nunalves Pereira
Defendeo Portugale
Com sua bandeira
E com seu pendone. etc.
Os moradores do Restollo vinham tambem á se
pultura do Condestavel pela segunda oitava do Espi
rito Santo, o cantavam :
Santo Condestabre,
Bone portugués .
Conde d'Arrayolos,
De Barcellos, d'Orem .
Na campanha sondes
Alem duma bez, etc.

E os moradores de Sacavem, no anniversario do


Condestavel, cantavam tambem em volta da sua so
pultura :

Do Restello a Sacavem,
Nem ningola, nem ninguem
Tem semelho ao Condestabre,
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO POPULAR 127

3 Que le prouge, e que lo praze,


Ho fazer -nos tanto bem , etc. (1)

Comparado o espirito satyrico, revolucionario e na


cional d'estes cantos do povo com as trovas dos Can
cioneiros palacianos, vê -se que as duas indoles diversas
se devem repellir; os poetas aulicos escreviam em hes
panhol, citavam como seus modellos João de Mena,
Stuñyga,, Aguillar, Garci Sanches ;celebravam os mo
narchas hespanhoes, como Fernando e Izabel, e além
d'isso procuravam as mais requintadas allegorias para
exprimirem os seus sentimentos, e a forma
aa mais dif
ficil, como os versos aliterados. Do seculo xv ainda nos
résta o vestigio de um outro canto popular,, citado no
cêrco de Tanger, em 1460, de que Azurara traz os
primeiros versos, o que se pode completar pela tradi
cão actual :

<< Ó noite má
P'ra quem te apparelhas?
Pr'os pobres soldados
E pastores de ovelhas.
«E os homens do mar
Aonde os deixas ?
Esses ficam mettidos
Até ás orelhas.

A melancholia dos Cancioneiros tinha outro cara


cter ; era mais pessoal, a ponto de ser uma confiden
cia que servia de motivo para se discretear nos se
rões da côrte. De todos estes factos conclue -se, que a
litteratura do seculo xv tinha um elemento popular
bastante vasto e nacional, de que se poderia aprovei
tar se o comprehendesse. Mas um dos principaes es

9-13cantigas
1) Todas, p.estas
neiro( popular .
se acham recolhidas no Cancio
128 CAPITULO V

criptores do seculo xv, que bastante influencia exer


ceu nas litteraturas da Peninsula, o Marquez de San
tillana, na sua Carta ao Condestavel de Portugal, di
zia, classificando os varios generos ou gráos da poesia :
« Infimos são aquelles, que sem nenhuma ordem, re
gra, nem conta fazem estes Romances, e cantares de que
a gente baixa e de servil condição se alegra .» Na eru
dição predomina a auctoridade, e desde que esta au
ctoridade do Marquez de Santillana se propagou, es
tava para muitos seculos estabellecida à scisão entre
o genio popular e a litteratura portugueza.

Formação dos Romances no seculo XV

Quando Affonso o Sabio escreveu a Chronica ge


ral de Hespanha , no seculo xiii, já buscou muitas das
suas narrativas em cantos populares. Mas écerto que
o maior desenvolvimento do Romanceiro hespanhol
deu-se no seculo xv, talvez por que começaram os
romances a ser recolhidos e impressos. Em Portugal
existe apenas a chamada Canção do Figueiral, que é
anterior ao seculo xv ; mas pode-se avançar que n'este
seculo estavam os romances populares no seu pleno
fervor de elaboração e interesse, como se pode co
nhecer pelas riquezas tradicionaes das colonias insu
lanas da Madeira e dos Açôres. Muitos d'esses ro
mances eram velhas tradições cuja fórma se conservou
renovando-se com sentido novo, como o romance de
Tristão apropriado para a historia veridica dos amo
res de D. Pedro Ninho com a princeza D. Beatriz ; ou
tros são provocados pelos interesses e emoções do
tempo, como o desastro da morte do principe D. Af
fonso em 1491 , no romance intitulado Casamento mal
logrado. Nos romances portuguezes notam -se duas fór
mas particulares de verso, o de redondilha menor ou
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO POPULAR 129

de cinco syllabas e o de redondilha maior ou de sete


syllabas metricas.
Até ao seculo xv prevaleceu a redondilha menor
nos cantos populares, talvez por influencia do alexan
drino dos cantos jogralescos ;na tradição oral são muito
raros os cantos em redondilha menor, como a Santa
Iria, o Cego, a Pastorinha, o Hortelão das flores, a
• Confissão do Pastor e a Xacara do Galante ; tanto a
1
sua raridade como os paradigmas fundamentam esta
antiguidade. Dá-se no seculo xv a substituição da re
dondilha menor pelo verso de sete syllabas, que hoje
se tornou exclusivo da cantiga e do romance . Qual a
causa d'este phenomeno ? A contar do seculo xv 08
romances deixaram de ser cantados e foram resados
s ';
o verso de sete syllabas é harmonioso mesmo recitado.
Mas de repente os cantos do povo foram prohibidos
na liturgia; Dom Duarte falla na prohibição de can
tar cantigas sagraes ; os eruditos não as queriam ouvir
porque as achavam despreziveis. O povo repete os seus
cantos, porque não tem outra cousa que lhe encha o
seu vacuo moral, mas não se atreve a mais do que a
dizel-os em voz baixa, a resal-os. Gil Vicente falla d'esta
revolução dos costumes :

Em Portugal vi eu já
Em cada casa pandeiro,
E gaita em cada palheiro,
E de vinte annos a cá
Não vi gaita, nem gaiteiro, etc.
N’estas condições os romances do povo tiveram
uma vida menos exterior, mas mais intensa, a ponto
de se irem esquecendo no silencio.
Os cantos populares apparecem -nos designados por
duas maneiras, uma creada pelos eruditos, e outra
achada pelo proprio povo ; n'estas duas designações
acha -se
9
a ideia que cada qual formava do seu valor e
130 CAPITULO V

da sua origem. Os eruditos chamavam -lhes Romance,


porque romance se denominava a linguagem vulgar;
e como esses cantos eram compostos si regla ni cuento,
como dizia o Marquez de Santillana, d'ahi vinha o
equiparal-os á linguagem vulgar livre de todo o arti
ficio. Bem se vê que este nome era dado por desprezo
e como protesto, para não reconhecer esses cantos
como poesia; o erudito só julgava poesia as difficul
dades da metrificação e da rima ; e o verso octosyl
labo, que é natural e fallado, apenas assonantado em
uma mesma vogal accentuada, não podia parecer aos
poetas palacianos senão um vernaculo rasteiro. Até
ao seculo xv o uso principal da palavra Romance ti
nha sido para significar a lingua vulgar. O nome que
o povo dava aos seus cantos era o de Aravia ; esta
designação é ainda corrente nas ilhas dos Açores,
signal de que era commum á tradição continental;
está hoje perdida em Portugal e em Hespanha. Com
tudo, nas colonias do Mexico ainda se encontra o nome
de Yaravi, dado a cantos heroicos, septisyllabos, as
sonantados. Derivar-se-hao Yaravi dos colonos hes
panhoes, da mesma forma que nas colonias insulanas
dos portuguezes do seculo xv ? A connexão historica
affirma -nos positivamente que sim . O missionario Acos
ta, na Historia natural da India, falando do gosto dos
mexicanos pela poesia , e da vantagem que se tirava
d'isto para a catechese, diz : « Tambien han puesto en
su lengua composiciones y tonadas nuestras, como de
octavas e canciones, de Romances de redondilhas; y es
maravilha cuán bien las toman los indios, y cuanto
gustan . ( 1) Ora os romances de redondilhas é que
são propriamente a Aravia; no onomastico local de
Hespanha tambem se encontra um sitio chamado
Araviana. Esta designação tem uma grande importan
(1) Op. cit., p. 447.
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO POPULAR 131

cia ethnologica; são numerosos os documentos em


que usamos a palavra Aravia significando uma lin
guagem plebêa, giria e canto . Sabe-se que os cantos
arabes e à dansa eram só permittidos ao baixo povo ;
sabe da persistencia d'esses cantos ou tonadilhas, pelo
Arcipreste de Hita, que allude aos cantares de Cagil
hallaco, e de Gil Vicente, que allude ao Calbi ora
bin ; ora os romances tradicionaes, creados entre o
baixo povo formado na totalidade de Mosarabes, con
servaram-se em quanto se amparavam com tonadilhas
ou cantos, que são como a sua mnemonica. A prova
é, que desde que os romances se tornaram resados,
mais facilmente se esqueceram ; e quem tem colligido
romances da boca do povo hade ternotado que muita
gente os não pode dizer sem cantar. O povo, que vi
veu em contacto com os arabes, que apropriou a
musica aos romances, e os conservou por essa causa,
chamou -lhes por isso Aravias. O titulo de Aravia não
quer dizer, como se tem querido entender, que os ro
mances são de origem arabe ; quer dizer, que a classe
Mosarabe transmittiu as suas tradições, acceitando da
coexistencia com os Arabes a sua musica simples
mente . Os romances populares portuguezes estão cheios
de vestigios mythicos, como o reconhecimento pelo
anel, na Bella Infanta; o accordar o marido, como
no Dom Garfos; o lançar ao mar, como na D. Ma
ria ; as arvores nascidas na sepultura , como no Conde
Niño ; o cavallo que falla , como no Passo de Ronces
val. Todos estes mythos, como se pode ver em Guber
natis, provém da grande tradição indo-gormanica,
restos das primitivas crenças pre-védicas. Além d'isso,
nos Romances apparecem muitos symbolos analogos
aos que se encontram nos Foraes, oo que que denota per
tencerem essos cantos a essa classe que redigiu o seu
direito consuetudinario ; e esses symbolos são eguaes
aos dos costumes germanicos, o que leva a concluir
132 CAPITULO V

que os Romances pertencem a classe Mosarabe . Isto


mesmo se verifica na sua distribuição ethnologica nas
tres zonas tradicionaes da Beira baixa, Algarve e Ilhas
da Madeira e Açores. A Beira, como prova Herculano,
é o centro das povoações mosarabes, e Garrett reconhe
ceu sempre mais pura e completa a tradição oral ali;
o Algarve, povoado de Arabes tolerados ou mudejares,
não tem tido vida economica, e por isso os seus can
tos apesar de antigos apparecem interpollados. Era
do Algarve a mulher que no seculo xvi cantára a Mi
guel Leitão o Canto do Figueiral, que ainda hoje ali
so repete transformado em redondilha maior. Na tra
dição insulana, de uma riqueza incalculavel, appare
cem os velhos symbolos, taes como se encontram nos
Foraes, sem comtudo ter existido ali o regimen con
suetudinario foraleiro ; é nos cantos insulanos que se
encontram variantes diversas de um romance cantado
á morte do principe D. Affonso, filho de D. João II.
Os poetas do Cancioneiro geral celebraram este desas
tre, mas pelas suas numerosas coplas não se sabe que
o povo tivesse vida moral. Apenas se cita um ou dois
versos de romance como proverbio, o mais nada. O
antagonismo e desprezo dos eruditos chegou no fim do
seculo xv a ser causa d'uma ignorancia completa do ge
nio popular.
CAPITULO VI

Thu O Cancioneiro geral e suas origens --Poesia na côrte


de Dom Affonso V e D. João II
3:04

Causas do desenvolvimento da poesia palaciana; transforma


ções sociaes que actuaram sobre esse novo ideal.- Os Can
ru, cioneiros de mão anteriores a Garcia de Resende.- O Can
car eioneiro de D. Duarte . - Cancioneiro do Conde de Marialva :
critica d'essas cinco reliquias da poesia portugueza, Perda
de Hespanha, Cartas de Egas Moniz, Figueiral e Canção de
Traga -Mouros.- Formação do Cancioneiro geral, de Garcia
de Resende.- Sua posição excepcional na côrte. - Relações
ti do Cancioneiro geral com a vida historica no seculo xvi
O Cancioneiro considerado como obra litteraria .-- Fórmas
are
que contém .--- Caracteristicos da poesia palaciana.
Da
ON
Causas do desenvolvimento da poesia
palaciana

1
Nenhum facto litterario pode ser comprehendido
por si, se o destacarmos do meio em que elle se pro
duziu; o meio de toda a concepção litteraria é sempre
a sociedade, cujas aspirações a litteratura exprime.
Assim como so não comprehende a poesia provençal
separada das suas origens populares, do successo das
Cruzadas, e da creação do terceiro estado, assim tam
bem o desenvolvimento da poesia palaciana seria ab
surdo, se a creação definitiva do poder monarchico
não reduzisse a aristocracia a uma posição secundaria
e parasita. Depois de atacada a nobreza na indepen
cia do seu fôro, primeiro pela creação dos Livros de
Linhagens, o em seguida pela adopção de um Codigo
geral e commum ; atacada na sua parte vital, a pro
priedade, pela Revogabilidade das doações regias ou
pela necessidade das Confirmações geraes, ou por meio
d'essa outra ficção romana, a Emphytheose ; redu
zida á inactividade por ter acabado a reconquista so
134 CAPITULO VI

bre o poder mussulmano ; e privada de vontade indi


vidual , porque a sua justiça arbitraria tomára um ca
racter abstracto na creação do Ministerio publico , n'es
tas condições em que se occuparia a nobreza ? Acer
cou-se do rei, fez -se palaciana, inventou festas cava
lheirescas, divisas, brazões, e para encher o longo
vazio dos serões do paço fez - se tambem poeta. O Cou
del -Mór dando instrucções a seu sobrinho para tratar
o paço , recommenda -lhe :

Apupar alto lhe rima ...


E é bom ser rifador...

O mesmo phenomeno se repetia em Hespanha, por


que aí se estava passando a mesma revolução social;
em volta de D. João II de Castella agrupam -se o Mar
quez de Vilhena, o Marquez de Santillana, João de
Mena, Stúñyga, da mesma forma que em volta de
Dom Affonso v se agrupam o Coudel-Mór, Fernão
da Silveira, o Conde de Marialva, Alvaro de Brito
Pestana e Dom João de Menezes. Separados do povo
politica e moralmente, aonde iriam estes fidalgos pro
curar as suas inspirações ? Os fidalgos castelhanos imi
taram o idealismo da poesia italiana, e em Portugal,
desde o Infante Dom Pedro, imitou-se a poesia de
Castella . Sem um porquê vital que provocasse a con
cepção - litteraria, serviam-se da erudição que então
dominava, para variarem as formas cansadas. Que
rendo evitar as repetições da formaprovençal das côr
tes do seculo xiv, mas não podendo achar novos in
teresses que produzissem um novo ideal, contentaram -se
em substituir o nome de trovador pelo de poeta , que
a erudição lhes apresentava. O Marquez de Santillana,
querendo dar um titulo condigno aos talentos de Im
perial, que introduzira a imitação italiana em Hespa
nha, diz: « al qual yo no llamaria decidor ở trovador,
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 135

mas poeta . ) A poesia aristocratica do seculo xv é in


ferior á poesia aristocratica da eschola provençal ; o
a superioridade d'esta, egualmente allegorica e arti
ficial, provém de não ter ignorado completamente a
tradição. A poesia palaciana tornou-se exclusivamente
pessoal, anedoctica e satyrica, procurando pela eru
dição o uso da mythologia classica para dar algum
colorido ao que se apagavano convencionalismo. Este
genero de poesia, tanto em Portugal como em Hespa
nha, formou numerosos Cancioneiros de mão, e quando
lhes falta a importancia litteraria têm o valor de re
velarem certos lados da vida moral do tempo, que as
Chronicas officiaes não relatam .

Cancioneiros anteriores á collecção


de Garcia de Resende

Quando Garcia de Resende começou a recolher as


poesias da sociedade aristocratica do seculo xv, dizia,
como justificação do seu trabalho, « muytas cousas de
folguar e gentylezas ssam perdydas ssen auer d'elas
notyçia . - E sse as que ssam perdidas dos nossos pas
sados se poderam aver, e dos presentes s'escreveram ,
creo que esses grandes poetas, que per tantas partes
ssam espalhados, nam teveram tanta fama como tem . »
Os desastres succedidos na côrte de Dom Duarte, que
viu seu irmão morrer cativo em Fez, o assassinato do
Infante Dom Pedro, o exilio do Condestavel Dom Pe
dro, e por fim as derrotas de Dom Affonso v, foram
por ventura a causa de não terem sido recolhidos an
tes de Resende os Cancioneiros que -se produziam na
vida palaciana. Ainda assim restam noticias dos se
guintes :
a ) Livro das Trovas d'El-rei Dom Duarte . - Sabe-se
da existencia d'este livro pelo Catalogo dos seus livros
de uso achado na Cartucha de Evora ; sabe -se tambem
136 CAPITULO VI

que el- rei Dom Duarte ora poota, pela traducção pa


raphrastica de um hymno do seculo x, feita apedido
de sua mulher. Bastava finalmente conhecer-se quanto
os poemas da edade media occupavam a melhor parte
da sua livraria, para se caracterisar o seu gosto poe
tico . Muitos doslivros da Bibliotheca de D. Duarte
ainda hoje se conservam , como a Côrte Imperial, a
Ensinança de bem cavalgar toda sella, a Historia ge
ral de Hespanha, o Amante, a Virtuosa Bemfeituria,
e o Cancioneiro de Dom Diniz ; não apparecendo o
Livro das Trovas de El-rei, éé porque naturalmente se
desmembrou em folhas soltas, que mais facilmente se
perderam . Na Bibliotheca do Porto, existe uma folha
de pergaminho escripta a duas columnas, que anda
juncta ao livro, do qual servia de guarda, intitulado
0
Liber gestorum Barlaam et Josaphat; (n.° 785 ) esta
folha tem dezouto strophes escriptas no mesmo estylo
que se conhece de DomDuarte, emquanto á lingua
gem a á metrificação. Póde suppôr -se que esse frag
mento pertenceria a uma traduccão de Barlaam e Jo
saphat, quetambem existia na forma latina na Livra
ria de Alcobaça, (1) como as ultimas duas estancias
levam a inferir :
1
Era um rey de mouros,
alcaras nombre avia,
e naçe-lhe huŭ filho,
mays que aquel no tenya ;
mandou perseus sabedores,
ca d'elles saber queria
o synal e a praneta
do filho que lhe naçia .
Antre aquelles estrologos
que hi veerom para veer,

(1) Cod. 213,do seculo XIII, f. 151 : S. Joanis Damasceni,


Librum de Gestis Barlaam et Josaphat. - Bernardes, nos Ulti
mos fins do homem, p. 113, cita uma tentação de Josaphat.
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 137

veerom hi cinquo d'elles


que erom de mayor saber;
desque o ponto tomarom
no qual el ouve de nacer,
disse lhe huũ dos maestres,
que medrado hade ser, etc.

E ' provavel que com o Livro das Trovas de El-rei


se perdessem tambem bastantes composições poeticas de
seu irmão o Infante Dom Pedro, que teve relações in
timas com Juan de Mena, e de sua irmã a Infanta
Dona Filippa. A estas mesmas causas attribue-se o fi
carom em Hespanha quasi todos os versos do Conde
stavel de Portugal, Dom Pedro, discipulo do Marquez
de Santillana, e apenas conhecido em Portugal por
duas pequenas Canções que Resende alcançou.
b ) Cancioneiro do Conde de Marialva. Só no fim
doseculo xvi é que foi pela primeira vez accusadaa
existencia d'este Cancioneiro , por Frei Bernardo de
Brito, a proposito da celebre Canção do Figueiral: «E
porque em materias ondo faltam authores vale muito
a tradição vulgar, e as cousas que antigos traziam en
tre si como authenticas e verdadeiras e as ensinavam
aos seus descendentesnos romances ecantares que então
se costumavam , porei parte d'aquelle cantar velho que
vi escripto em um Cancioneiro de mão, que foi de D.
Francisco Coutinho, Conde de Marialva, o qual veiu
á mão de quem o estimava em bem pouco...) (1) Este
Cancioneiro nunca mais apparece citado senão no fim
do seculo XVIII por Antonio Ribeiro dos Santos, que
o diz ter visto nas mãos de um antiquario do Porto,
o Doutor Gualter Antunes; ultimamente apparece ci
tado por D. Mariano Soriano Fuertes, na Historia de
>

la Musica española. Existindo no Cancioneiro do


Conde de Marialva a Canção do Figueiral, e achan
(1) Monarch . Luzit., fl. 296 .
138 CAPITULO VI

do-se com os mesmos documentos no exemplar do Dr.


Gualter, da mesma epoca,, nada mais logico do que in
ferir da identidade d'estas duas referencias. Diz Ri
beiro dos Santos : « Vimos em tempos passados um Co.
digo Ms. que parece letra do seculo xv, em que se
tratavam louvores da lingua portugueza, em que vi
nha esta canção de Hermingues, o Fragmento do
Poema da perda de Hespanha, e as duas Cartas de
Egas Moniz com as Cantigas de Goesto Ansur, e com
variantes em alguns termos, que iremos notando em
seus logares competentes : este Codigo era da escolhida
livraria do Doutor Gualter Antunes erudito cidadão
da cidade do Porto, que nol-o mostrou e d'elle copiá
nos as ditas obras. E em seguida accrescenta : « Por
D

morte do Doutor Gualter Antunes, não sabemos onde


foi parar com os mais Mss . , livros e preciosidades do
seu precioso gabinete. ) Antes de 1855 escrevia So
riano Fuertes : « Para dar alguma ideia da poesia por
tugueza no seculo xil e principios do seculo XIII, co
piaremos uma Canção extractada de um Cancioneiro
antigo, que foi de D. Francisco Coutinho, Conde de
Mariulva . Junto com a Canção da Reyna groriosa,
Fuertes extractou tambem a Canção do Figueiral
com a musica notada, comose encontra nas Canções
de Affonso o Sabio . Este ultimo facto acaba de nos
identificar o Cancioneiro do Conde de Marialva, que
foi visto por Frei Bernardo de Brito, com o exemplar
do Dr. Gualter Antunes . Importa insistir sobre estas
condições de critica externa, porque d’aqui depende a
verdadeira critica d'essas cinco reliquias da poesia
portugueza sobre que tanto se tem desacertado :
1. A Canção do Figueiral.-- Lembrando -nos da
actividade poetica do povo portuguezno fim do seculo
XIV, e de como essa poesia era recolhida por Fernão
Lopes, Azurara e pelo auctor anonymo dà Chronica
do Condestavel, vendo tambem quaes as formas stro
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 139

Ephicas que predominavam então, podemos avançar,


3
que essa Canção é genuinamente popular, o que já
andava na tradição oral no fim do seculo XIV. Era
puramente popular, porque a Canção foi composta 80
bre a tradição do tributo das donzellas, que em Hes
panha existe em Simancas, e na Veiga de Carrião,
na tradição heraldica dos Queiroz , e em Betancos ou
Peito Bordelo, na Galliza; em Portugal existiu no si
tio de Figueiredo das Donas em Vizeu, em Alfandega
da Fé, om Castro Vicente, Chacim e Balsemão . Frei
Bernardo de Brito diz d'esta . Canção, depois de a ter
lido no Cancioneiro do Conde de Marialva : « e depois
ouvi cantar na Beiru aa lavradores antigos , com alguma
corrupção... ). No fim do seculo xvi tambem escreve
d'esta Canção Miguel Leitão d'Andrada : «A qual me
lembra a mim ouvil -a cantar muito sentida, a uma
velha de muita edade natural do Algarve , sendo eu
muito menino . » (1) Na poesia popular é impossivel
dar-se falsificação, como o provou admiravelmente
Jacob Grimm . Do caracter popular e genuino da
Canção do Figueiral não se pode duvidar sem ser pyr
rhonico; o problema a resolver era, quando se formou.
Mas nas questões de origens tradicionaes não existe
chronologia. A Canção do Figueiral soffreu uma nova
elaboração no seculo xv passando para o verso asso
nantado, como ainda hoje se repete na tradição do Al
garve. As circumstancias imaginosas de que Frei Ber
nardo de Brito revestiu este monumento poetico, é
fizeram com que
que João Pedro Ribeiro duvidasse da
sua authenticidade, confundindo as circumstancias com
o monumento, e não notando que as creações popula
res são faceis de reconhecer, o que não acontece com
as obras artificiaeg .
2.° Fragmento do poema da Perda de Hespanha.
(1) Miscellanea, p. 27. Miguel Leitão nasceu em 1555.
140 CAPITULO VI

Estas quatro outavas tem sido sempre citadas em to


dos os livros que fallam da nossa litteratura como um
dos monumentos mais antigos que restam da lingua
portugueza , alguns fazendo -o coevo da invasão arabe.
Pelo sou lado João Pedro Ribeiro lovou a severidade
até reproval-o como apocrypho. Importa notar que
essas quatro outayas não são um documento historico,
cuja critica dove ser diplomatica ; mas sim um docu
mento litterario, cuja critica se deriva do conheci
mento do meio intellectual que o produziu. O primeiro
topico para julgar esse fragmento é a fórma strophica:
esse genero de outavas, em que rimam o primeiro,
quarto,quinto e outavo verso, emparelhando o segundo
e terceiro, e depois o sexto e septimo, só apparece
pela primeira vez usado por Affonso 0o Sabio, em Hes
panha, e em Portugal só no seculo xv. Aqui temos os
dois limites em que collocar a composição d'essas ou
tavas denominadas Lamentação , genero litterario pre
dominante nas litteraturas da Peninsula no fim do se
culo xiv, como o sabemos pelo Marquez de Santillana.
Depois dos caracteristicos litterarios, temos os dados
philologicos, o estado da lingua em que essas outavas
estão escriptas: aqui vemos uma linguagem antiquada
ou archaica, a qual já não condiz com a que se usava
no periodo em que o genero de Lamentação estava em
vigor. Mas esta contradicção, que parece a principio
complicar a critica, ajuda -a mais, porque nos revela
uma intenção archaica da parte do poeta, intenção
que achamos já empregada na Gesta de Maldizer de
Affonso Lopes Bayão, escripta nos principios do se
culo xiv. (1 ) Comparando a versificação e o vocabu
lario d'estas duas composições archaicas, conhece -se
que pertencem a mesma corrente litteraria, e a maior
intenção archaica da Lamentação da Perda de Hespa
(1) Canc, da Vaticana, f . 176 v. (Cod. 4803.)
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 141

nha , aproxima-a já bastante da erudição philolo


gica do principio do seculo xv. O facto de andar no
mesmo Cancioneiro do Conde de Marialva um elogio
da lingua portugueza, corrobora esta ultima affirma
ção.
3.° As duas Canções de Egas Moniz .--Estas duas
poesias recolhidas por Miguel Leitão de Andrada, tam
bem foram , por uma simples circumstancia de nome,
attribuidas a um cavalleiro da côrte de D. Affonso
Henriques. Aqui seguimos os mesmos principios em
pregados para restabelecer o valor da poesia antece
dente. Em primeiro logar, a fórma strophica só ap.
parece empregada pelo Arcediago do Toro, no fim do
seculo xiv; n'estas Canções portuguezas encontram - se
certas fórmas gallegas, como :
Dizei Egas cum folgança
Hu xiquer ...

que se explicam pela emigração de fidalgos gallegos


para Portugal no reinado de D. Fernando 1. No fim
do seculo XIV apparece-nos um fidalgo com o nome de
Egas Moniz , que atraiçôa el-rei Dom João I, passan
do-se para Castella, (1 ) o que tambem se nota na
Canção:
Cambastes a Portigal
Por Castilla, ..

Pelo facto de terem os criticos visto o nome de


Egas na Canção, attribuiram -na logo ao primeiroEgas
que acharam ; ora nos Nobiliarios nunca Egas Moniz
é notado como trobador. Este outro Egas Moniz, de
que se sabe a existencia historica, erafilho de Pero

(1) José Soares da Silva, Memorias de D. João I.


142 CAPITULO VI

Coelho, o tinha regressado a Portugal no tempo de D.


Fernando, achando-se na batalha de Trancoso. O facto
de apparecerem as duas Canções no Cancioneiro de D.
Francisco Coutinho, confirma uma tal interpretação,
porque este Egas Moniz Coelho foi casado com D. Maria
Gonsalves Coutinho, filha de Gonçalo Vaz Coutinho,
d'onde precedem os Condes de Marialva. ( 1) Em vista
d'estes dados, não ha que hesitar sobre a epoca das
duas Canções .
4.° Canção de Hermingues, ou do Traga -Mouros.
-Appresentada pela primeira vez por Frei Bernardo
de Brito, na Chronica de Cister, revestindo - a de cir
cumstancias maravilhosas, e dando -a em nome de um
-

cavalleiro do tempo de D. Affonso Henriques. ( 2) Se


esta composição fosse obra de Brito não appareceria
com erros de leitura imperfeita, nem tampouco viria
reproduzida no Cancioneiro do Doutor Gualter Antu
nes ou do Conde de Marialva. N'esta poesia existem
dois versos que nos dão a intelligencia do seu sentido
e a epoca aproximada do seu apparecimento :
De la chacone sem referta
Ouroana oy tem por certa ...

A chacone era a antiga fórma popular das Cieco


nes, ainda existente na poesia popular hespanhola no
seculo xvi, como se sabe por Cervantes e Quevedo, o
até om Italia penetrando no canto ecclesiastico . Sal
vator Rosa, na Satyra 1, condemnando a poesia pro
fana que se cantava na capella pontifical, escreve :
Cantar su la ciaccona il Miserere... ( 3)

(1) Ms. da Pedatura luzitana, t. 1 , f. 7; da Bib . do Porto.


( 2) Ob. cit., p . 713.
( 3) Apud Lady Morgan, Salvator Rosa, p. 263.
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 143

O nome de Ouroana apparece -nos frequentemente


usado no meado do seculoxiv pelas damas portugue
zas, como se pode ver a cada pagina nos Livros
de Linhagens e Nobiliarios; este nome só foi corrente
na sociedade aristocratica depois dese tornarem pro
verbiaes os amores de Amadis e Oriana . Por estes
dois caracteristicos se vê que a pretendida Canção de
Hermingues, não é mais do queuma canção motivada
sobre as aventuras de Oriana , da mesma forma que
Camões fez varias tensões á Miraguarda, do Palmei
rim de Inglaterra. E portanto só podia ser produzida
depois de bem vulgarisado o Amadis, isto é, nos fins
do seculo XIV. Isto coincide com a epoca das outras
composições, o que explica o seu agrupamento.
c) Cancioneiro do abbade Dom Martinho.- Este
Cancioneiro está perdido ; estava formado antes da col
lecção de Garcia de Resende, que o desejou consultar
para extractar algumas composições : « Trova sua a
Diogo de Mello, que partia de Álcobaça e havia-lhe
de trazer de lá um Cancioneiro d’um Abbade, que cha
mam Frey Martinho :
Decoray pelo caminho
té chegardes ó mosteiro
qu ' hade vir o Cancioneiro
do abbade frey Martinho, etc. (1)
d ) Cancioneiro portuguez .-- D'este livro falla Gil
Vicente, citando composições que não se acham no
Cancioneiro Geral, o que faz crêr que era uma outra
collecção diversa ; n'elle escreve um poeta de Thomar,
chamado Affonso Lopes Sampaio, de que não apparece
noticia em outras collecções :« Affonso Lopes Sampaio,
christão novo que vivia em Thomar, fezum rifão, que
andava no Cancioneiro portuguez; ao rifão se fizeram
(1) Canc. geral, t. III, p . 634.
144 CAPITULO VI

muitas trovas e boas. Pediu o Conde de Vimioso a


Gil Vicente que fizesse tambem , e elle fez esta trova ..
O rifão de Affonso Lopes era :

Matou-me moura e não mouro ,


Equem m'a lançada deu,
Moura ella e mouro eu.

e) Cancioneiro manuscripto da Bibliotheca de Evo


ra . - Escripto em letra do seculo xvi ; n'elle se acham
poesias de Fernão Brandão e de Bernardim Ribeiro,
nomes que apparecem na collecção de Resende.
f) Cancioneiro portuguez, da Bibliotheca de Ma
drid . - Sabe-se d'estacollecção pela descripção que
d'ella fez o hespanhol Don José Thomaz em 1790, e
que parece ter sido a collecção que mais contribuiu para
a formação do Cancioneiro geral de Garcia de Re
sende; Don José Thomaz descreve esse codice, como
contendo : « obras burlescas na lingua portugueza, re
copilado segundo parece, no seculo decimo quinto. Com
prehende 96 folhas, de folio, e ainda é maior o numero
dos auctores de poesias n'elle conteudas, as quaes são
todas coplas reaes, compostas de duas redondilhas de
cinco versos cada uma, outras de quatro : algumas
mixtas : poucos vilhancicos, e redondilhas de quatro
versos com alguns tercetos. A maior parte dos versos
sãoclos que chamamos de redondilha maior ou de outo
syllabas, muito poucos de redondilha menor ou deseis
syllabas, e se encontra frequentemente o verso quebra
do .» A descripção d'este Cancioneiro dá -nos uma ideia
das fórmas poeticas do seculo xv, e por ventura seria
esse outro citado por Gil Vicente com o mesmo titulo.
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 145

801
012
Formação do Cancioneiro geral por Ga rcia
de Resendo

Garcia de Resende entrou muito criança para


moço da Camera de Dom João II, que começou a rei
nar em 1481; a grande importancia que elle via dar
no paço á poesia, que formava a parte principal dos
divertimentos dos serões, levou - o a cultivar tambem a
1x poesia. Natural de Evora, da cidade erudita por ex
baie cellencia desde o seculo XV até ao dominio dos jesui
IN tas, Garcia de Resende foi educado com esse talento
compilador e curioso, que o fez chronista, desenhador,
musico e collector do Cancioneiro Geral. Dom João ií
convencia -o de que a poesia era uma singular manha .
Conta Resende a animação que lhe dava o monarcha .:
72 «E estando uma noite na cama já despejado, me per
guntou se sabia as trovas de Jorge Manrique, que co
Emeçam :

Recuerd el alma dormida, etc.

. e eu lhe disse que sim ; fez-m'as dizer de cor e depois


de ditas me disse, que folgava muito de m'as vêr sa
.
ber, e que tão necessario era um homem sabel-as, como
saber o Pater noster, e gabou muito o trovar de sin
gular manha, e isto porque eu fiz uma trova que elle
viu e a gabou muito, por me dar vontade de o appren
der e saber fazer.» (1) A posição excepcional de Gar
cia de Resende no paço, os seus varios talentos de il
luminador, debuxador, musico e poeta, o seu carater
jovial e fleugmatico, a sua obesidade que provocava o
chiste, tudoo tornava sympathico para se comprazer

176 Chron .. de D. João II, cap. 200.


(1)
10
146 CAPITULO VI

com elle entregando -lhe os cadernos de poesia que pre


tendia recolher. Alguns, como Jorge de Vasconcellos,
Provedor dos Armazens de Lisboa, recusavam-se a isso,
mas por fim não resistiam aos apodos facetos que Re
sende lhes dirigia. A collecção foi formada ao acaso,
conforme lhe iam ministrando os varios Cancioneiros
de mão ; provavelmente 0o facto que o provocou a em
prehender este trabalho seria o certame poetico que se
deu na côrte em 1483, entre os varios poetas que ad
vogavam o Cuydar e o Suspirar. A estima que por
elle tinha el-rei Dom João II fez com que pudesse al
cançar, talvez da Bibliotheca que fora de Dom Af.
fonso V, algumas das poucas obras que restam do Infante
Dom Pedro e de seu filho o Condestavel de Portugal.
O Cancioneiro geral encerra de uma modo confuso as
composições de trezentos e cincoenta e um fidalgos das
côrtes de Dom Affonso v, Dom João II e Dom Manoel.
Resende estava no caso de poder deixar este thesouro
poetico organisado chronologicamente; mas ainda as
sim pelos nomes que assignam as Canções esclareci
dos pelas matriculas dos Livros das Moradias, se pode
demarcar satisfatoriamente cada uma d'estas epocas..
Em quanto á importancia philologica, o Cancioneiro
geral é de uma riqueza em nada inferior ás Ordenações
Affonsinas. Apezar d'essas composições serem imita
ções artificiaes da poetica hespanhola, têm intimas re
lações com ossucessos historicas desde a regencia do
Infante Dom Pedro até ao valimento de Dom Luiz da
Silveira .
a ) Relações do Cancioneiro com a vida historica
do século XV.- Infante Dom Pedro, a quem João
de Mena escrevia, foi dotado com esse espirito cosmo
polita que appareceu na Europa no seculo XIV e que
animou Marco Polo. João de Mena escravendo ao In
fante, alude ás suas viagens, conhecidas na tradição
pelo nome das Sete partidas do mundo :
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 147

Nunca fué despues, niante


quyen vyesse los atavios
88 e secretos de levante,
sus montes, insoas e ryos,
sus calores y sus frios,
2105
como vos, senhor Ifante. (1)
2
O exémplo de Marco Polo não deixaria de influir
em Portugal, aonde as suas viagens eram lidas, porque
men
se guardavam na Livraria de D. Duarte, e aonde este
리 viajante era conhecido pelo seu appellido vulgar na
Italia, onde lhe chamavam Marco o Milhão. Nos ver
sos de Anrique de Almeida Passaro,-se lê :
outros metem mais Mylham
do mesmo ponteficado . (2)

Depois do regresso do Infante Dom Pedro das suas


viagens, casou em 1429 com uma princeza de Ara
gi gảo, o que motivou uma aversão secreta da parte de
Dona Leonor, mulher de seu irmão Dom Duarte, e que
veiu a produzir o desastre de Alfarrobeira. Do Infante
Dom Pedro resta um longo poema allegorico sobre
2 o Menospreço do Mundo, escripto em 1446, porque ai
chama a Alvaro de Luna Mestre de Santhiago, digni
dade que só alcançou depois da morte de Dom Hen
rique após a batalha de Olmedo :
fable elMaestre, senhor de Escalona
diga si le fueste fiel é leal. ( 3)

Desde 1429 a 1445 foi João de Mena o Chronista


real de Dom João II de Castella; nos versos do Infante
(1) Canc. geral, t. II, p. 72.
( 2) Ib ., t. 1, p. 141.
Io ., t. II, p. 82.
148 CAPITULO VI

Dom Pedro a este chefe da eschola hespanhola, cha


ma - lhe:
coronysta abastante ... (1 )

João de Mena, respondendo ao Infante, allude á


sua regencia na menoridade de Dom Affonso v :

que, por serdes byen regido


dios vos fyzo su rregente.

A triste catastrophe de Alfarrobeira, aonde o In


fante foi assassinado em 1449, vem celebrada com ver
sos de indignação por Luiz de Azevedo: « á morte do
Ifante Dom Pedro ,que morreu na Alfarrobeira, e vam
em nome do Infante ;aí allude outra vez ás viagens das
Sete partidas :
Eu andei por muitas partes
e por inuito boas terras,
muita paz e tambem guerras
vi tratar per muitas artes ;
Mas aqueste dia martes (terça feira )
foi infeliz pera mim;
o meu sangue me deu fim ,
e rompeu meus estandartes.

O pocta Anrique da Mota tambem allude a este suc


cesso, mas com um certo tom ironico :

Que não sinto quem vos queira,


porem sey
quando foi d'Alfarrobeira
qu'andaveis na dianteira
c'os del rey. ( 2)

Do regresso do filho do Infante Dom Pedro, o Con

(1) Canc. geral, t. II, p. 70.


(2) 16., t. II, p. 505.
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 149

destavel, a Portugal em 1464, acham-se ai uns ver


809 do Coudel-mór: aa el -rei Dom Pedro, que chegando
á côrte se mostrou servidor d'uma senhora a quem
elle servia .) (1) O Condestavel de Portugal havia sido
acclamado Conde de Barcellona e rei de Aragão; as
suas poesias, que se acham no Cancioneiro eram in
scientemente attribuidas a D. Pedro 1. No Cancioneiro
descrevem -se como bons tempos as festas da Impera
triz, por occasião do casamento da Infanta Dona Leo
nor com o Imperador da Allemanha, em 1451 ( 2) e uns
>
aricos momos que o Infante D. Fernando per si fez .»
Allude tambem á descoberta da Mina em 1469, (3) 2

e á batalha do Toro em 1474 ; (4) ás celebres côrtes


feitas por Dom João II em Monte-Mór, em 1477; (5 )
o á morto de Dom Affonso V em 1481. (6) Alem
d'estes são muitos os successos do reinado de Dom
Affonso V, que ali se apontam incidentemente, o que
dão ás trovas palacianasum certo interesse de realida
de. No reinado de Dom Affonso y, como se conhece
pelo Cancioneiro, é que começaram em Portugal as
modas francezas, e o conhecimento de certas cançonet
tas , das quaes Gil Vicente ainda cita uma. (7)
Na côrte de Dom João II a poesia tomou outro ca
racter; poz em vigor o que se usava nas antigas Cor
tes de Amor, em que seprocessava uma certa questão
subjectiva e de moral allegorica. Este reinado foi per
turbado com grandes desastres politicos, mas os fidal
gos favoritos de Dom João II não deixaram por isso
(1) Ib ., t. I, p. 179.
( 2 Ib ., t . I, p. 367.
(3) 16., t . II, p .159.
Ib . , t. 1, p. 458 .
(5) Ib., t. 1, p. 136 .
(6) Ib ., t. 111, p .92, 101.
Quando D. Duarte de Menezes estava cercado em Tan
ger, sem mantimentos nem munições, « fez um aviso a el-rei, e
por mór cautella escripto en francez ...» Pina, Chron ., p . 471.
150 CAPITULO VI

de metrificar, de rifar e de apodar. Nas trovas do


>

Coudel -Mór, a João Affonso de Aveyro, allude-se ao


>

grande successo de 1483, a .execução do Duque de


Bragança: «mas isto veo no tempo da morte do Du
que. » (1) Foi n'este mesmo anno que se fez o celebre
pleito poetico do Cuydar e Suspirar. Em uns versos
de Pero de Sousa Ribeiro, refere -se essa grande festa
publica, de 1490 ,, « quando el-rei nosso senhor veo
de Santyago, que fez o singular Mômo de Santos...
O torneio e as divisas por occasião do casamento do
principe Dom Affonso com a filha de Fernando ee Isa
bel, em 1491 , a sua morte, e finalmente o enterro e
trasladação de Dom João II, tudo alipulsa a sua corda
plangente ou chistosa, fazendo do Câncioneiro de Re
zende um verdadeiro monumento da vida moral da
sociedade aristocratica portugueza do seculo xv . N'este
Cancioneiro ainda figura Gil Vicente, então mancebo
e já lavrante da rainha Dona Leonor, mulher de
Dom João II ; apparece Bernardim Ribeiro e Fran
cisco de Sá, com composições secundarias, mas como
vagos clarões de um crepusculo matutino que vem
depois de um crepusculo vespertino; Gil Vicente ainda
não tinha fundado o theatro portuguez, e Sá de Mi
randa ainda não havia introduzido na poesia o novo es
pirito idealista da Italia. E como na historia não existe
solução de continuidade, os Mômos, Entremezes e
dansas de retorta da côrte de Dom João II influiram
sobre o genio de Gil Vicente, assim como a tradição
provençal foi recebida por Sá do Miranda, que falla
com respeito e saudade do tempo em que ainda pôde
ouvir Dom João de Menezes, o ultimo dos nossos tro
vadores.
b ) O Cancioneiro geral, como obra de litteratura.
-Assim como se desconheceu na sua colleccionação a
( 1) Ib ., t. 1, p. 157.
O CANCIONEIRO GERAL E SUAS ORIGENS 151

ordem chronologica, tambem era impossivel introduzir


ai qualquer classificacão por generos litterarios . Na
forma narrativa ai se encontram os versos á morte do
principe Dom Affonso, e á morte de Dom João II por
Diogo Brandão; á tomada de Azamor, por Luiz Hen
riques, e á morte de D. Ignez de Castro, por Garcia
de Resende. Se não existisse esse inimitavel episodio
dos Luziadas, os versos em que Resende celebra este
>

desastre seriam uma das melhores obras da litteratura


portugueza . O Cancioneiro é essencialmente lyrico,
predominando a feição satyrica, ás vezes até tocar a
obscenidade, como acontece com os versos de Ruy Mo
niz. Nas redondilhas quebradas ha a constante imita
ção das Coplas de Jorge Manrique; os versos em en
dechas ( en decas) são pouco frequentes. Da forma dra
matica ha apenas um rapido esboço no Mômo do An
jo, feito pelo Conde de Vimioso, quando ainda era na
morado . A maior parte d'essas composições eram im
provisadas nos serões do paço, sobre qualquer pretexto
que animasse a reunião; um propunha o thema, em
forma de Pergunta, sobre qualquer descuido de uma
dama, qualquer traje menosgalante de um cavalleiro,
como aconteceu com as ceroulas de cham lote de Ma
noel de Noronha, ou com a gangorra de solya, ou com
os pombos que uma dama atirou de uma janella; os
poetas que entravam no Apodo, vinham como Ajuda,
e destacavam -se em duas parcialidades, atacando
defendendo, ás vezes durante bastantes serões succes
sivos . Outras vezes tomava o caracter de um processo
forense simulado, em que a propria rainha Dona Leo
nor vinha dar a sentença, como aconteceu com o que
os poetas fizeram a Vasco Abul. Garcia de Resende
tambem foi victima de uma enorme carga satyrica,
que elle proprio publicou no Cancioneiro geral, e por
onde se sabem alguns traços da sua vida. Esta ordem
de composições entrou por tal forma nos costumes pa
152 CAPITULO VI

lacianos, que a aristocracia oppoz -se com todas as vé


ras à introducção dos novos metros e de novo estylo
da Eschola italiana, obstinou -se aa metrificar na medida
velha ou de redondilha; e ainda no reinado de Dom
João Iii prevalecia tanto a medida velha no paço, que
a composição das Voltas, Motes o Esparças de Camões,
que andam reunidas com o titulo de Redondilhas, fo
ram um resultado da sua concessão benevola para com
as damas do paço, que não admittiam galanteria n'um
outro metro . Tambem nas obras de Sá de Miranda,
de Caminha e de Bernardes, vêm uma grande parte
escripta no chamado estylo de Cancioneiro. Entre toda
aquella alluvião de poetas, que metrificaram por moda
e feição aristocratica, alguns apparecem que só por si
assignalariam uma epoca litteraria, como são, Fran
cisco de Sousa, Alvaro Barreto, Duarte de Brito, Fer
não Brandão, Alvaro de Brito , e Resende. No decurso
do seculo xvi ainda continuou a monomania de ter
Cancioneiros de mão, mania ridicularisada por Gil Vi
cente e por Jorge Ferreira; ficaram como os albuns do
nosso tempo .
CAPITULO VII

Historia, Philosophia, Ficções e Viagens


Desenvolvimento da forma historica no seculo xv . - Influencia
da organisação de um Archivo nacional. A conversão das
Estorias, ou forma tradicional,em Caronycas,ou forma criti
co -narrativa . — A Chronica da fundação do Mosteiro de Sam
Vicente.-
Vida de Dom Tello.—Chronica do Condestabre .--
Os grandes chronistas do seculo xv. -Fernão Lopes , Gomes
Eannes de Azurara, Ruy de Pina .-- Restituiçãoda Chronica
geral do reino aa Fernão Lopes. Oschronistas latinos .-- Es
tado da Philosophia propendendo para o dogmatismo moral.
-A Côrte Imperial. -A Virtuosa Bemfeituria, o Leal Conse
lheiro, eo Tratado de Virtudese a Retorica feitas por Dom
Affonso de Cartagena a pedido de el -rei Dom Duarte.---Pri
meiros productos da Imprensaportugueza no seculo xv. - As
Novellas manuscriptas do cyclo de Santo Greal. Cartas e
Viagens.

Desenvolvimento da forma historica


no seculo XV

A realeza travou no seculo xv a sua ultima lucta


contra o poder senhorial; o movimento levado a cabo
em França por Luiz xi contra o Daque de Borgonha,
teve tambem em Hespanha e Portugal uma acção ana
loga; o seculo xv foi o seculo das conspirações, dos se
gredos de estado, por consequencia das Memorias
particularos. Foi por esta via que a velha Chronica,
ainda confundida com a tradição poetica, veiu procu
rar nos factos da vida social, nos interesses da ordem
politica, nas transformações das relações civis o obje
cto das suas narrações. As nacionalidades já constitui
das desejaram que os eruditos lhes inventassem as suas
genealogias, e os eruditos foram procurar as origens
dos francezes, dos venezianos, dos hespanhoes e dos
portuguezes nos foragidos de Troya ; os estados geraes
ou as côrtes quizeram que se fixassem as suas razões
154 CAPITULO VII

e as reformas que estatuiam ; pelo seu lado a realeza


tinha praticado actos de uma justiça menos provada,
e não queria que o seu nome andasse ligado a lendas
menos dignas. Foi no meio d'estas pretenções de uma
vaidade erudita que appareceram os chronistas, os
Comines, os Platinas, os Oliviers de la Marche. ( 1 )
Foi no seculo xv que se propagou entrenós a tradi
ção das Armas nacionaes derivadas do milagro de Ou
rique, como se vê em La Marche; n'este mesmo seculo
o bispo Dom Garcia de Noronha orando diante do
Papa chama pela primeira vez a Portugal a Luzita
nia , considerando esta nação como essa tribu celtica
que maravilhosamente persistira através de todas as
revoluções. A realeza preoccupava-se com a organisa
ção das Chronicas do reino, e convidava latinistas es
trangeiros como Matheus Pisano, Fr. Justo, bispo de
Ceuta, (2) ou Angelo Policiano para traduzirem em la
tim as memorias nacionaes. De Angelo Policiano nada
conseguiu Dom João ir ; de Matheus Pisano resta ape
nas a narração da tomada de Ceuta; do Bispo de Ceu
ta , veiu -nos um mal incalculavel, a perda na sua mão
dos melhores materiaes já recolhidos para a nossa his
toria. E comtudo, apesar d'este profundo respeito pe
los latinistas estrangeiros, é no seculo xv que appa
recem os grandes chronistas portuguezes, que escreve
ram na lingua nacional, sem pretenções a escriptores,
e dotados de um bom senso pratico, de uma certa
philosophia humana, e de uma independencia de ho
(1) Damião de Goes revela como Affonsode Albuquerque
presenteava com joias o Chronista Ruy de Pina, para lhe ser
?

favoravel nas Chronicas.


(2) « era tão curioso de fazer vir em luz hos feitos d'este
Conde D. Duarte e do Conde D. Pedro seu pae,e hos dos Reys
passados,que pera se divulgarem em lingua latina, mandou vir
de Italia Dom Justo, frade da Ordem de Sam Domingos, a quem
por este respeito fez Bispo de Septa... (Goes, Chron. de Dom
Manuel, P. vi, 38 , f. 49 .
HISTORIA , PHILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 155
mens honrados; foram Fernão Lopes, Gomes Eannes
de Azurara e Ruy de Pina. O apparecimento succes
sivo d'estes chronistas dignos já de nome de historia
dores, não foi devido à importancia que a forma vul
gar das chronicas houvesse merecido; mesmo essa forma.
era provisoria, destinada a ser ampliada em latim aca
demico, e isto se prova pelo modo como os originaes
de Fernão Lopes foram plagiados pelos outros chro
nistas, de uma honradez indisputavel. A instituição de
um Archivo dos documentos nacionaes por Dom Fer
nando I, e em seguida a creação do cargo de Chro
nista do reino, inherente aos guardas d'esse Archivo,
crearam as condições que produziram esses tres emi
nentes historiadores.
a) Torre do Tombo.- Fernão Lopes, nas Chroni
cas de D. Pedro le D. Fernando, falla da Torre alvar
rã ou do aver , construida primitivamente para se guar
dar o thesouro real. (1) D. Fernando foi o primeiro
que mandou guardar junto com o thesouro o Archivo
do Reino, e d'este modo as escripturas publicas esta
vam sob a vigilancia dos empregados de fazenda ; em
resultado d'esta modificação, começou -se a chamar
desde então Torre do Tombo. Os primeiros guardas da
Torre do Tombo, ainda não separados nas suas attri
buições dos empregados do Thesouro, foram João An
nes, vedor da Fazenda, por 1378 ; Gonçalo Esteves,
Contador dos Contos de Lisboa, encarregado do serviço
da Torre em 1403 , vencendo o mantimento e vestir,
postoque não trabalhasse nos Contos, o que leva aa fi
xar a separação do cargo de Archivista do de Thesou
reiro em 1403 ; seguiu -se -lhe Gonçalo Gonçalves, Con
tador dos Almoxarifados de Setubal e Obidos, incum
bido do serviço do Archivo em 1414, e exercendo -o

( 1) Chr. de D. Pedro, cap . 12. - Chr. de D. Fernando, pr.


e cap . 48 .
156 CAPITULO VII

até 1418. Em Outubro d'este anno estava já de posse


d'este logar Fernão Lopes, o fundador da historia por
tugueza ; o facto de apparecer nomeado em vida de
Gonçalo Gonçalves leva a induzir que as attribuições
de Archivista e de Thezoureiro foram completamente
separadas e tornadas independentes com a nomeação
de Fernão Lopes. A competencia de Fernão Lopes se
ria reconhecida durante o exercicio de secretario do
Infante Dom Duarte e de Dom Fernando ; a riqueza da
Bibliotheca de Dom Duarte e o gosto litterario do In
fante Santo são o documento mais eloquente da supo
rioridade de Fernão Lopes. Desde 1418 até 1420 ap
parecem bastantes documentos assignados por Fernão
Lopes « a que d’esto he dado seu especial encarrego de
guardar as chaves das dictas escripturas e o traslado
d'ellas.» Fernão Lopes exerceu durante trinta e seis
annos este cargo, pedindo a sua exoneração : ajá tam
velho e flaco, que per si não pode bem servir o dito of
ficio...)
A nomeação do novo archivista caiu em Go
mes Eannes de Azurara, indigitado pelo proprio Fer
não Lopes: « per seu prazimento, e por fazer a elle mer
2

cê, como he razom de se dar aos boos servidores.>» Fer


não Lopes, como se sabe, ainda sobreviveupor mais
cinco annos á sua aposentação. A Gomes Eannes de
Azurara, succedeu em 1490 Ruy de Pina, tão severo
na critica historica como o seu antecessor. São estes
os grandes historiadores portuguezes do seculo xv, ver
dadeiros censores independentes, apezar da sua posi
>

ção official, accompanhando sempre as narrações dos


factos das inspecções locaes, o até certo ponto despre
venidos de toda a vaidade litteraria de escriptor, o
que dá em resultado essa ingenuidade pittoresca dos
Herodotos e Froissarts, e ao mesmo tempo essa facili
dado com que entre si se copiam sem terem aa minima
intenção de plagiato. A instituição do Archivo nacio
HISTORIA , PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 157
nal deu até Damião de Goes estes magnificos resulta -

dos . (1)
b ) Conversão das Estorias em Caronicas. Na
Carta escripta por el rei Dom Duarte, de Santarem
a 19 de Março de 1434 a Fernão Lopes, encarregava
este guarda-mór da Torre de Tombo « de poer em ca
ronyca as estoreas dos Reys que antigamente em Por
tugal foram ; etc. » O snr. Herculano liga um valor dif
ferente a estas duas palavras ; a estorea representava
as memorias tradicionaes, os registos latinos os obitua
rios, as lendas oraes ; de facto para o syncretismo da
edade media os cantores poeticos foram chamados his
triones, o historia ou gesta foi dado aos poemas nar
rativos. Por effeito d'esta corrente litteraria em Por
tugal é que ainda no tempo de el rei Dom Duarte a
palavra estorea designava a tradição. A Chronica era
à ephemeride palaciana, com o caracter de um ro
gisto; era assim que a erudição comprehendia a histo
ria. Ao relancear o estado da historia no soculo XIV,
já deixámos indicadas quaes as tradições recolhidas
anteriormente a Fernão Lopes ; mas, no seculo xv ain
da, a concepção superior da narração historica era
rara, e é por isso que antes de accentuar o valor d'es
ses trez grandes chronistas, vamos indicar as narra
ções moldadas sob a concepção limitada do seculo xiv ,
que então se escreveram :
1.º A Chronica da fundação do Moesteyro de Sam
Vicente.-No principio do seculo xv fez-se uma tra
ducção de uma relação latina do seculo xiv intitulada
Indiculum fundationis Monasterii Sancti Vicentii. Essa
traducção guardava -se com o mais rigoroso afferro na
livraria do Mosteiro de Sam Vicente, em Lisboa, a

(1) Sobre a historia d'este Archivo, veja -se João Pedro Ri


beiro, Memorias authenticas para a Hist. do real Archivo da
Torre do Tombo .
158 CAPITULO VII

ponto de a occultarem a todas as vistas. Frei Antonio


da Purificação, referindo -se ao seu original latino diz :
« tambem me admira o notavel cuidado que se tem no
Convento de Sam Vicente sobre a guarda d'aquella
escriptura latina da sua fundação, e do Ordinario de
Sam Rufo, não consentindo que pessoa alguma as tome
na mão para as ler... Porque as escondem não só a
nós, mas até aos outros historiadores e Chronistas do
Reino.» (1) O motivo d'este ciume provinha das lu
ctas entre esta ordem e os augustinianos acerca de mu
tuas jurisdicções. Em 1538 Dom João III mandou im
primir este vedado manuscripto, por ventura para for
necer aos Chronistas móres do reino os materiaes para
historiarem os primeiros successos da monarchia. De
facto é esta a grande importancia da chamada Chro
nica dos Vicentes. Dom Rodrigo da Cunha, cita estes
dois escondidos manuscriptos doArchivo de Sam Vicen
te, dizendo que cachou Dom Aleixo de Menezes em uma
Memoria lançada ás folhas 84 de um livro, quese guar
dava na Livraria do mesmo Mosteiro de Sam Vicente,
no Almario 4, chamado Ordinario da Congregação de
Sam Rufo . ) ( 2) A Chronica dos Vicentes é uma tra
ducção livre do Indiculum ; já no seculo XVII assimo
julgava Dom Rodrigo da Cunha: « Affirma assi o mesmo
auctor que em linguagem antiga portugueza converteu
o Relatorio que allegamos e se imprimiu em Coimbra,
por mandado del Rei Dom João III, anno de 1538,
de que temos um volume. Diz o seguinte : Estando em
este pensamento; chegou a Lisboa um Abbade... E de

(1) Chron. dos Eremitas deSanto Agostinho, t. I, fl. 993.


(2) Historia da Egreja de Lisboa, p . 215. - E em quanto a
outra escriptura latina: « Escrevemol-o assi pela auctoridade do
Relatorio, que d'esta fundação anda escripto e estampado en
tre as escripturas lançadas no fim da 3a Parte da Monarchia,
escripta pelo P. Chronista Frei Autonio Brandão. » Hoje nos
Portugalia Monumenta hist., Scriptores, p. 91.
HISTORIA, PHILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 159

pois de um curto extracto, Dom Rodrigo da Cunha,


deduz do proprio texto da Chronica dos Vicentes quem
foram os seus auctores : ( e os auctores que de propo
sito trataram a fundaçam do Mosteiro de Sam Vicon
to, Otha, allemão, e Fernão Pires, natural de Lisboa,
ambos d'aquelle mesmo tempo, e de que tomou o au
ctor do Relatorio em portuguez com grandes abonos
de sua verdade e vida inculpavel, pouca rasão teria
quem quizesse dar credito a memorias vagas , escriptas
como ao acaso o provar penna, sem nome de auctor,
anno em que escreveram, lançadas em livros de outros
argumentos, qual foi a que viu ee leu o Arcebispo Dom
Aleixo de Menezes, no cerimonial de Sam Rufo, por
mais guardada que estivesse no Almario 4 da Livra
ria de Sam Vicente, de que os Padres d'aquelle Mos
teiro nenhuma relação nos souberam dar n'esta occa
sião. (1642) Mas, ou ella se perdesse, ou na verdado
se conserve ainda, não fazia mais fé apparecendo, do
que fazem outras que se acharam nas mesmas circum
stancias, e de que auctores melhores considerados en
tam se aproveitam quando as vêem conformar com as
que por si sam de calidade do Relatorio e Chronica
que allegamos, que mui fortemente a contradizem . » ( 1)
Frei Antonio da Purificação refuta a asserção
a de
Dom Rodrigo da Cunha, aproximando a intelligencia
da Chronica da sua forma original latina do Indicu
lum « Porque diz serem seus auctores Fernão Pires o
Otha , constando o contrario da mesma escriptura, onde
se vê que o auctor d'ella confessando, que o que diz,
é o que ouviu contar a diversas pessoas já mortas, que
sabiam de experiencia, accrescenta que ainda d’estas
eram vivas duas, Fernão Peres e Otha, e que ambos
uniformemente davam por verdade o que elle escreve .
Hi duo, diz elle, Dei miseratione adhuc superstites quasi
( 1) D. Rodrigo da Cunha, 16.,• ‫ ܕ‬P. 1 , c . 75,n. 9.
160 CAPITULO VII

uno confitentur ore quæ hic ponimus. Não foram logo,


Fernão Peres e Otha auctores d'esta escriptura, mas
outrem que com elles allega para abonação do que
diz.o (1) O logar da Chronica dos Vicentes refutado por
Frei Antonio da Purificação é o seguinte: « Era na dita
cidade um homem bom , que havia nome Fernão Pe
rez, e era cavalleiro de bom entendimento e teúdo com
Deos; e tinha sempre na dita cidade logo julgavel por
El Rei, ee regedor dos cidadãos maiores, o dos meno
res, mantenedor de direito e justiça. E em este tempo
era na dita cidade outro homem bom religioso e de
sancta vida, o da geraçom dos theutonicos, os quaes
foram na filhada da dita cidade, e do fundamento do
dito Mosteiro de Sam Vicente em como fora edificado.
E estes dois homens, pelo seu sancto accordo, do que
viram no seu tempo, e outrosim do que ouviram a seus
antecessores, de como fora o começo da filhada da dita
cidade e fundamento do dito Mosteiro, e por a vida que
haviam da virtude de Deos, e desy seu accordo, e por
seu verdadeiro entender escreveram esta historia que
adiante é escripta, tornada de latim em linguagem
como já de suso dito he... Por esta traducção da
Chronica , na especie de prologo que transcrevemos se
deprehende, que Fernão Pires e Otha, redigiram o In
diculum fundationis e portanto que somente é anonymo
o traductor ; pela intelligencia do Indiculam conclue
Frei Antonio da Purificação, que Otha e Fernão Pe
res são apenas testemunhas contemporaneas da tomada
de Lisboa, que ainda viviam ao tempo em que a re
dacção latina era escripta, e que para ella contribui
ram com as suas memorias e tradições oculares. E'
esto o sentido mais verdadeiro, o fortalece-se pela
epoca em que o Indiculum foi escripto, já no reinado
de Dom Affonso III ; sobre este ponto transcrevemos

(1) Chron. dos Eremitas de Santo Agostinho, P. I, f. 102.


HISTORIA , PHILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 161
da Historia de Portugal de Herculano : « Tem -89 offe
recido algumas duvidas sobre a sua authenticidade . O
que se pode ter por certo é que ou não foi escripto nos
primeiros annos do reinado de D. Sancho I, como aí
se indica, ou que é uma copia tirada posteriormente...
A lettra porem do manuscripto de Sam Vicente é se
melhanteem grandeza, em forma, em tudo á de um
volume de Chancellaria de Dom Affonso II, (Maço 12
de Foraes antigos, n . 3.) e ainda aos volumes das In
quirições do mesmo Affonso II .” (1) Portanto era mais
crivel que Fernão Peres e Otha, depois de 1211 só
pudessem testemunhar. do successo de 1148 e não es
crever-lhe a Chronica . A traducção anonyma do Indi
culum pertence ao meado do seculo xv; a edição man
dada fazer por Dom João III, diz : « em a propria lin
gua antigua em que foi achada. » Do Archivo de Sam
Vicente saíu a copia para a edição de 1538 , e por ven
tura tiraram-se por esta occasião outras copias, porque
existe uma outra na Torre do Tombo, que foi repro
duzida em 1861 nos Portugalice monumenta . ( 2) Con
frontadas as duas lições, vê -se que ha uma grandis
sima differença entre ambas, postoque com o mesmo
caracter de antiguidade.
O valor da Chronica dos Vicentes, além de ser um
monumento do estado da lingua no seculo xv , é ina
preciavel para o que estuda a historia dos primeiros
annos da nacionalidade portugueza; ali se encontram
as primeiras tradições poeticas ligadas á memoria dos
francezes que vieram ajudar á conquista de Lisboa,
como a sentidissima lenda do Cavalleiro Henrique eda
fidelidade do seu pagem . Nos Luziadas introduziu Ca
mões a lenda agiologica da palmaque nasceu sobre a se
pultura do Cavalleiro Henrique. Finalmente, o linguista
( 1) Ob. cit. , t . 1, p . 506 .
(2) uScriptores, p. 407.
162 CAPITULO VII

tem ali um documento vivo, que lhe explica os pro


cessos, como o idioma portuguez era levado pelos tra
ductores e eruditos á disciplina grammatical.
2.0 Vida de Dom Tello. ---Aqui nos apparece a his
toria na sua forma biographica; a vida de Dom Tello,
arcediago de Santa Cruz de Coimbra, foi escripta em
latim no seculo XII, e encerra muitas circumstancias
da historia nacional que não haviam sido recolhidas
em outros monumentos. Foi traduzida para portuguez
por Mestre Alvaro da Mota, dominicano, como se vê
pelo seguinte prologo : « Aqui se compeça a obra que
fala do fundamento do moesteiro de Santa Cruz de
Coimbra, e quaes foram aquellas pessoas que este or
denaram , e fala mais da vida de Dom Tello e d'ou
tros homens seus companheiros. Esta obra está em la
tim no livro do erdamento de santa cruz, e foi tor
nado em linguagem , porque o entendessem muitos, a
requerimento de pedre annes, prior de podentes, irmão
de affonse annes conigo de santa cruz. E este foy em
tempo de dom gomes prior de santa cruz, homem de
santa vida, que primeiro foi abbade de frorença. E
esta treladacom fez de latim em linguagem mestre al
varo da mota , da ordem dos pregadores, o maior le
trado da ordem, estando em santa cruz com o prior
dom gomes no anno de Lv, no mez de Novembro. » A
Vida de Dom Tello, termina com esta outra rubrica:
« Escripta em santa cruz por o meestre alvaro da mota,
da ordem dos pregadores, tornado do latim em lingoà
gem, em na era de ihesu christo de mil e IIIIC e Luo
anos. Em tempo del Rey dom Afonso o vº, e da rainha
dona Isabel sua mulher, filha do Ifante dom Pedro de
purtugal e da Ifante dona Isabel, filha do Conde de
Urgel. » (1) N'esta biographia se vê qual era a littera
tura cultivada no mosteiro de Santa Cruz, no seculo

(1) Mon. hist., Scriptores, p . 75 a 78.


7

HISTORIA, PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 163


XII; aí relata os livros offerecidos pelo mosteiro de Sam
Rufo: « Eemviarom -nos santo agustinho, Sobre Joham
evangelista e sobre o genesy , que se chama adliterom ;
questom sobre sam mateu ē sam lucas; e o examerom
de santo ambrosio, o pastorall de santo ambrosyo;
beda, sobre sam lucas, pelas quaaes cousas somos muito
obrigados ao convento de sam Ruffo ... ) A linguagem
da Vida de Dom Tello tem formas que já se não en
contram em outros escriptores contemporaneos de mes
tre Alvaro da Mota ; mas este phenomeno explica-se
pela maior aproximação ou afastamento do que escre
via do uso vulgar ou da affectação erudita. Aí se en
contra : « Vinham muitos velhos cãaos (canos ou enca
necidos) fazendo grande chanto por dom tello...) A
forma vulgar de cãaos desappareceu por causa da ho
monymia com cão, conservando-se a forma feminina că ,
porque não tinha esse inconveniente ; o chanto é a forma
vulgar de planctus, que tambem desappareceu, sendo
substituida pela forma erudita pranto por causa da ho
monymia com chanto e chantar, de plantare. Era o uso
erudito que ia reconhecendo estes phenomenos e fixando
as formas da lingua.
3.° Chronica do Condestabre. O auctor anonymo
da Chronica do Condestavel, no seu pequeno prologo
classifica esta biographia com o nome de estoria ; a
mesma designaçãolhedá Gomes Eannes de Azurara,
comparando -a com a Canção de Gesta do Duque João
de Tanson, uma das menos conhecidas da tradição me
dieval. ( 1 ) Entre Nuno Alvares Pereira, typo historico
o sustentaculo de uma nacionalidade, e o Duque João
de Lanson, typo dos principaes da faulse geste ou dos
traidores, ha uma grande differença para o paralello
de Azurara. Mas opensamento de Azurara explica -se
pelas primeiras palavras do auctor anonymo : « Anti
(1) Chronica da Conquista de Guiné, p. 2.
*
164 CAPITULO VII

guamente foi costume fazerom memoria das cousas que


se faziam , assi erradas, como dos valentes e nobres
feitos. Dos erros, porque se d'elles soubessem guar
dar:: e dos valentes o nobres feitos aos boos fezessem
cobiça aver pera as semelhantes cousas fazerem . » 0
espirito tradicional predomina na Chronica do Con
destabre; ai o appresenta como apaixonado pelos poe
mas da Tavola Redonda : « E com esto avia gram sa
bor de leer livros de estorias, especialmente usava mais
ler a estoria de Galaaz em que se continha à somma
da Tavola Redonda. E porque em ella achava que per
vertude de virgindade que em elle ouve, e em que
perseverou galaam, acabara muitos grandes e notaveis
feytos, que outros nom puderom acabar. E elle dese
java muito de o parecer em alguma guisa, e muitas
vezes em sy cuidava de ser virgem ... » (1) Ali se en
contra tambem essa lenda da espada encantada, que
o alfagenede Santarem entregou ao Condestavel, o
sobre que Garrett fez um drama nacional. (cap. XVII.)
Por todas estas particularidades se vê que a Chronica
do Condestabre pertence a essa classe de fórmas tra
dicionaes designadas no tempo de Fernão Lopes pelo
nome de estoreas. Desde o momento que se organisas
sem os documentos para a formação das Chronicas ge
raes do reino era ind ispensavel procurar e consultar
estas diversas Relações. Foi o que D. Duarte encarre
gou a Fernão Lopes.
Os grandes Chronistas do seculo XV

1.° Fernão Lopes.- E' este o verdadeiro fundador


da sciencia da historia em Portugal; para ello o rela
tar os factos, o julgal-os é como o achar -se investido
da missão grave e conscienciosa de proferir uma sen
(1) Сар. п .
HISTORIA, PHILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 165
tença perante a posteridade. Como o homem-bom da
tradição juridica chamado como arbitro, foi pelo seu
caracter,2 que el rei Dom Duarte, por Carta de 19 de
Março de 1434, lhe deu o « carrego a Fernão Lopes
seu escripvam , de poer cm caronyca as estorias dos
Reys que antigamente em Portugalforom ; esso moesmo
os grandes feitos e altos do mui vertuosso e de grandes
vertudes el Rey seu senhor o padre, cuja alma deos
aja; e por quanto em tal obra elle há assas trabalho e
ha muito de trabalhar, porém querendo -lhe agallardoar
e fazer graça e merceo, manda que el aja de teença
em cada hum anno em todollos dias da sua vyda, des
primeiro dia do mes de janeyro que ora foy da era
d'esta carta em deante, pera seu mantimento quatorze
mil libras em cada huû anno, pagadas aos quartees
do ano.) . As relações de Fernão Lopes com o erudito
monarcha, e com o não menos erudito Infante Dom
Pedro, é que revelaram a sua profunda capacidade e
probidadepara historiador. A carta supra, vem inclusa
em uma outra dada em 3 de Junho de 1439 « com ac
cordo do Yfante Dom Pedro, seu tyo, defensor por el
dos ditos Regnos, e senhorios... ) Quando o Infante
Santo partiu para Tanger, no testamento que fez cita
o seu escrivão da puridade Fernão Lopes : «Item leixo
a Fernam Lopes, meu escrivão da puridade um livro
de linguagem , que ell me deu que chamam hermo es
piritual . » ( 1)
A grande influencia que Fernão Lopes exerceu 80
bre os chronistas Azurara, Ruy de Pina, Duarte Gal
vão e Nunes de Leão, leva a suppôr que o singular des
envolvimento litterario dos filhos nobilissimos de D.
João i partiu d'este homem . Azurara fala com um pro
fundo respeito do seu caracter : « notavel pessoa, homem
(1) J. Soares da Silva, Mem . de D. João I, t . IV , Doc. p.
150 ,
166 CAPITULO VII

de communal sciencia e grande authoridade ; escrivão


da puridade do Infante D. Fernando ; ao qual El Rei
Dom Duarte, em sendo Infante, commetteu o cargo de
apanhar os avisamentos que pertenciam a todos aquelles
feitos (guerra entre Portugal e Castella) e os ajuntar e
3 ordenar segundo pertencia á grandeza d'elles, e authori
dade dos princepes e outras notaveis pessoas que os
fizeram . » (1) Tanto pela Carta de Dom Duarte, como
por esta outra citação de Azurara, se vê que Fernão
Lopes foi encarregado de escrever a historia geral do
reino, e ao mesmo tempo a de D. João I, que já era
fallecido; na Carta de mercê de D. Affonso v , feita em
Lisboa em 11 de Janeiro de 1449, tambem se allude
ao trabalho de uma historia geral : « pelos grandes tra
balhos que elle ha tomado e ainda hade tomar em fa
zer a Chronica dos feitos dos Reys de Portugal...) (2)
De todo este vasto trabalho de Fernão Lopes só res
tam as Chronicas de D. Pedro I, de Dom Fernando,
e a de João I, incompleta ; todos os outros livros foram
passando por copias successivas, até que os copistas
nas suas interpollações se persuadiram que eram au
ctores d'esse vasto trabalho . Damião de Goes, na
Chronica de Dom Manuel, restituiu pela primeira vez,
por um processo critico, a Fernão Lopes as Chronicas
desde o Conde Dom Henrique até Dom Duarte, que
ainda andam sob outros nomes . (3) Tanto José Soares
da Silva como Mendo Trigoso, seguiram a auctoridade
de Damião de Goes e a reforçaram : «Gomes Annes, (

no ultimo capitulo da Chronica do Conde D. Pedro,


primeiro capitão de Ceuta, que elle compoz, na qual
para verificar a jornada dos Infantes a Tanger, cita
a Fernão Lopes, na Chronica geral do Reino, como
(1) Chron . de Dom João 1, Port. 1 , c. 2 .
( 2), Apud Damião de Goes, Chron. de D. Manuel, P. IV, c.
38, A. 49, v .
(3) Part. IV, cap. 38. E' importantissimo.
HISTORIA, PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 167
assim mesmo o allega em outras partes; dando d'ella
um notavel testemunho no principio do segundo capi
tulo da sua historia de Ceuta... E ainda que algumas
d'estas Chronicas se achem accrescentadas ou recopi
ladas, como são as de D. Affonso Henriques por Duarte
Galvão (a quem o grande João de Barros na terceira
Decada, liv. I, cap. 4 , chama seu apurador ) a de Dom
Duarte por Gomes Annes ou Ruy de Pina; as dos
nove reis, por Duarte Nunes de Leão ; sempre as sub
stancias e o principal d'ellas é de Fernão Lopes. « (1)
Esta tendencia de todos os chronistas das primeiras
duas dynastias em plagiarem Fernão Lopes provinha do
modo como Fernão Lopes procedera no trabalho his
torico, tendo com uma immensa actividade esgotado
todas as fontes; diz elle no principio da Chronica de
Dom João I, que « com cuidado e diligencia vira gran
des volumes de livres e desvairadas linguagens e ter
ras, e isso mesmo, publicas escripturas de muitos car
torios e outros logares, nos quaes, depois de longas vi
gilias e grandes trabalhos, mais certidam aver nom
pode do conteudo em esta obra. » Azurara caracterisa da
mesma forma o trabalho do venerando mestre : « em
andar pelos Moesteiros e Igrejas buscando Cartorios e
os lettreiros d'ellas, para aver sua informação; e não
só em este Reyno, mas ainda no Reyno de Castella
mandou el ReyDom Duarte buscar muitas Escripturas,
que a este pertenciam. ) (2) Foi assim que Fernão Lo
pes foi levado a comprehender a historia como uma
realidade, ao passo que Dom Affonso v chamava la
tinistas estrangeiros para que a mascarassem com rheto
rica banal. As Chronicas de Fernão Lopes são immen
samente dramaticas ; os ditos populares, que definem
( 1) José Soares da Silva, Mem . de D. João I, t . 1, proem .
-Na Livraria de D. Duarte, n. 27, guardava -se umna Chronica
de Portugal.
(2) Azurara, Chron. de D. João I, P. 111 , cap. 2.
168 CAPITULO VII

um typo ou uma acção, cruzam-se por entre os para


ceres sensatos do chronista que os vae acareando com
os documentos; os costumes publicos formam o fundo
d'este vasto quadro em que se vive e sente ; a lingua
gem é natural, a construcção franca, n'essa justa pro
porção que só o bom senso sabe achar; o espirito de
Froissart educado por Montaigne, é que nos pode dar
o equivalente da superioridade de Fernão Lopes, não
só em Portugal, mas na civilisação do seculo xv. As
suas Chronicas são hoje para o que estuda perfeitos do
cumentos ethnologicos.
2.º Gomes Eannes de Azurara . - Este chronista
succedeu a Fernão Lopes a prasimento do venerando
fundador da historia portugueza, que já não podia con
tinuar as suas investigações; Azurara compoz a To
mada de Ceuta , que forma a terceira parte em conti
nuação da Chronica de D. João I, escripta trinta e
quatro annos depois da interrupção de Fernão Lopes.
Dom Affonso v encarregou d'este trabalho Azurara,
que tambem era bibliothecario do monarcha, posição
que influiu para essa affectação de citações eruditas,
que se tornou uma mania do seculo xv. Azurara não
é menos consciencioso do que Fernão Lopes, embora
lhe falte esta ingenuidade de dizer, que a erudição
classica não destruiu no velho chronista ; Azurara para
descrever as guerras de Africa residiu bastante tempo
a
om Alcacer Ceguer, podendo assim descrever a tomada
de Alcacer, de Arzilla e de Tanger. Escreveu as Chro
e

nicas do Conde D. Pedro de Menezes, e de Dom Duarte


seu filho, escrevendo tambem uma Chronica de D.
Affonso v até a morte do Infante D. Pedro em Alfar
robeira. Ruy de Pina apropriou -se d'esta Chronica,
ampliando- a e continuando-a, da mesma forma que
Azurara com relação á Chronica de D. João I, accre
scentando - lhe varios successos da guerra entre Portu
gal e Castella, como elle proprio Azurara confessa na
HISTORIA , PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 169
Hist. de Ceuta . (cap. 2.) Para a Chronica da Con
quista deGuiné, ou mais propriamente, vida do In
fante D. Henrique e historia dos seus descobrimentos,
serviu -se Azurara de uma Relação escripta por Affonso
Cerveira. Todo este processo para distinguir como o
trabalho do Azurara foi aproveitado pelo chronista
Ruy de Pina, acha -se lucidamente tratado pelo histo
riador critico Damião de Goes. (Parte iv da Chronica
de D. Manoel, cap. 38.) Como discipulo de Fernão Lo
pes, Azurara tambem procurava compenetrar-se da
verdade da historia visitando os logares da acção,
como hoje fazem os grandes historiadores modernos,
Niebhur, Mommsen . Azurara residiu em Alcacer Ce
guer por alguns annos para se informar da tomada de
Ceuta. O seu caracter é egualmente completo, como o
de Fernão Lopes, mas a erudição veiu destruir em
grande parte essa ingenuidade medieval que elle tem
vergonha de deixar fallar, justificando-se sempre com
sentenças auctoritarias de Aristoteles, de Valerio Ma
ximo, de Tito Livio, de Ovidio e Lucano, de Seneca,
o dos Santos Padres. Azurara escrevia em 1453 as
suas Chronicas na Livraria opulenta de D. Affonso V ;
o ambiente material e moral dominava- o, era preciso
ir com a corrente, desfazer-se do ouro de lei para os
tentar os ouropeis que mais lisongeavam os novos cul
tistas.
3.0 Ruy de Pina . - A Azurara succedeu na guarda
da Torre do Tombo e no encargo de escrever as chro
nicas do reino, Ruy de Pina, que floresceu desde Dom
Affonso V a Dom João 111. Escreveu a Chronica de
Dom João II, plagiada por Garcia de Resende, compi
lou dos chronistas seus antecessores as de Dom Duarte
e Dom Affonso V, e escreveu a de Dom Manoel até á
tomada de Azamor, em 1514. No capitulo em que Da
mião de Goes faz o processo critico da originalidade
dos Chronistas do seculo xv , reproduz parte de uma
170 CAPITULO VII

Carta de « João Rodrigues de Sá de Menezes, Alcaide


mór da cidade do Porto, senhor de Sever, homem que
agora será de mais de outenta annos, o qual sa
bendo o trabalho em que eu andava me escreveu uma
Carta da cidade do Porto, onde reside, em Novembro
de mil quinhentos cinquoenta e outo, de que poreio
que toca a este negocio, a quem se pode dar inteira
fé pela muita e varialição e doctrina que n'elle ha nas
Artes liberaes, e Philosophia, e experiencia das cou
sas que de seu tempo aconteceram n'estes regnos e ou
tros.» (1) Eis o fragmento da preciosa Carta de João
Rodrigues de Sá, por onde se pode fazer uma ideia do
estado dos trabalhos historicos no periodo da activi
dade de Ruy de Pina : « Folguo muito de lhe darem o
carguo da Chronica del rei dom Emanoel,> quomo me
escreve, porque sei que a fará muito bem por a devo
çam e amor que teve a seu serviço e ás suas cousas, e
parece esta conta que dá de quomo andou de mão em
mão esta Chronica, o que se escreve das Rhapsodias
de Homero, e assi foram as Chronicas dos Reis passa
dos de Portugal, que se perderam em poder de Frei
Justo, Bispo de Septa, italiano, que elrei Dom Affonso
mandou buscar a Italia pera Th'as escrever em latim ,
e ello morreu da peste em Almada, e aí. se perderam .
Ruy de Pina, em tempo de Dom João segundo houve
á mão, por mandado de elrei umas Chronicas dos Reis
antiguos, que mingoavam , de hum homem d'esta ci
dade mui principal, que se chamava Fernam Novaes,
e um seu filho que se chamava Fernam Novaes, como
elle, me mostrou a Carta de elrei, com o conhecimento
de Ruy de Pina; e regnando elrei Dom Emanoel, elle
ou por ter estas Chronicas ou tambem por estar em
seu poder o Tombo, em que estavam as cousas d'a
quelles tempos, e por Chronicas de Castella, se offere
(1) Chron . de D. Manoel, Part. iv, cap. 38, f. 50.
HISTORIA, PHILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 171
ceu a elrei a lhe fazer as Chronicas que faleciam , e a
isso veo da Guarda a Lisboa, e as fez com grande
gosto de elrei, e com lhe fazer muita mercê por isso .
Depois de acabadas, muitas pessoas vi descontentar-se
d'ellas, à minha vontade sem rasão, posto que o es
tylo de Ruy de Pina pelos muitos adjectivos e epithe
tos que se usavam n'aquello tempo, he muito afeita
do. O juizo de João Rodrigues de Sá é verdadeiro ;
Ruy de Pina foi censurado, e a sua Chronica de Dom
Affonso V ficou inedita talvez por essa causa. Quaes
seriam essas censuras ? Ruy de Pina era escrivão da
Camara de Dom João II, e bastante considerado pelo
implacavel monarcha ; em uma Carta datada de Evora
de 16 de Fevereiro, de 1490, nomea-l -lhe um amanuense
para o ajudar « no carrego e negocio de escrever em
nossos feitos famosos e de nossos Reynos.» Com egual
data lhe manda passar uma Carta de tença de nove
mil quinhentos e sessenta reis. Ruy de Pina estava em
uma posição difficil; teve de contar todos os meios em
pregados pelos Braganças desde a morte do Infante
Dom Pedro em Alfarrobeira, envenenamento da rai
nha Dona Isabel, filha do Duque, até à traição casti
gada com a execução em 1483. Ruy de Pina diz as
cousas pelo seu nome. O odio que esta liberdade pro
vocou foi depois pago por seu filho Fernão de Pina, o
incansavel reformador dos Foraes . No Cancioneiro de
Rosende, Ruy de Pina tambem tem oseu remoque sa
tyrico; a proposito das ceroulas de Chamalete de Ma
noel de Noronha, escreve Anrique Correa :
Esta cousa he muito dina:
para no Tombo jazer ;
aa mester qu'a Ruy de Pina
se faça logosaber. (1)
El Rei Dom Manoel, respeitando sempre os planos
(1) Canc. ger. t. III, p. 137.
172 CAPITULO VII

de Dom João II, estimou Ruy de Pina, concedendo


lhe uma tença de doze mil reis annuaes, e nomeando-o
« Coronista Moor das Caronicas e das cousas passadas
e presentes e por vir de nossos Regnos e Senhorios ); e
tambem o nomeou seu bibliothecario com « o carrego e
a chave da nosa Livraria que está nos nossos paços
da cidade de Lisboa , o qual officio e carrego quere
mos que o dito Ruy de Pina aja e tenha assy o pela
guisa que ho tinha o doutor Vasques Fernandes do
nosso conselho e nosso chanceller em a casa do Civel
que no lo leixou pera o darmos ao dito Ruy de Pina
por satisfação que lhe delle demos de que foy con
tente e como o tyveram os outros coronystas damte
elle ... » (1) N'este tempo viviano paço Garcia de Resende,
moço que fóra da escrivaninha de Dom João II; quando
mais tarde cra já fallecido Ruy de Pina, e Resende ti
nha a certeza de que essas Chronicas não viriam á
luz, foi então que fez o plagiato da Chronicade Dom
João II. E' de crer que Resendo fosse obrigado a isso
por quem pretendesse eliminar essas Chronicas escri
ptas com uma franqueza nada official. Em Ruy de
Pina termina o cyclo dos grandes Chronistas do se
culo xv, vultos capitaes em qualquer das ricas littera
turas da Europa, que per si teriam fundado a scien
cia da historia, se ella não existisse.
Philosophia , Legislação, Imprensa

O regimen auctoritario em que estava a intelligen.


cia portugueza anullou uma grande parte da activi
dade d'este seculo xv, fecundissimo na Italia e em
França; em Philosophia continuamos o aristotelismo in
tolerante dos Averroistas, conciliando- o com a meta
physica dos moralistas catholicos; no Direito as Or
(1) Dada em Evora, a 24 de Junho de 1497.
HISTORIA , PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 173

denações de D. Duarte e de D. Affonso V puzeram


em vigor o direito romano, conciliando - o com as De
cretaes . Sempre uma certa antinomia , resultante da
incompleta comprehensão d'estes diversos poderes es
pirituaes que disputavam a influencia na sociedade
europea. No meio d'este conflicto, a Imprensa longo
de parecer um fanal, affigura-se uma syrte; foi por
isso que essa entrou em Portugal, já no fim do seculo
e introduzida por uma classe social então mal vista,
os Judeos. Os principaes livros philosophicos d'esta
epoca , tem o caracter de compilações encyclopedicas, >

prevalecendo sempre o dogmatismo moral em todas as


suas conclusões; d'estes, apenas está impresso o Leal
Conselheiro, de el rei Dom Duarte, mas guarda-se
na Bibliotheca do Porto a Côrte Imperial, e na Bi
bliotheca da Academia a Virtuosa Bemfeituria , do In
fante Dom Pedro :
1.° Côrte Imperial.- Este livre apparece como for
mando parte da Bibliotheca de el rei Dom Duarte,
(N.° 38.) escripto em pergaminho com 134 folhas. E'
crivel que o nome que traz logo no frontispicio seja do
seu possuidor, e não do seu auctor : « Este livro he
chamado corte enperial, o qual livro he dafons Vas
ques de Calvos morador na cidade do Porto :) Este
possuidor do livro, como se sabe pelos Nobiliarios, foi
criado do Duque de Bragança em 1442, e em 1454
lhe alcançou o Duque de el rei o isental-o com privile
gio de não ser vereador, nem ter algum officio da ci
dade . A Corte Imperial pode attribuir -se a el-rei Dom
João 1, que escreveu outras obras, o Livro das Horas
do Espirito Santo, os Psalmos certos para os finados,
eo Livro da Montaria ; no manuscripto parece lêr-se
o nome de joham na seguinte passagem do principio :
« E em as tuas pessoas divinaes do que eu pecador
iohan do começo este livro no como auctor e achador
das cousas em elle contendas, mas como simples ajun
174 CAPITULO VII

tador d'ellas em huũ vellume. » ( fl. 2.) O porque do ti


tulo Corte Imperial explica completamente a sua in
tenção e a sua indole: « e tal nome lhe he feyto, porque
asy como na côrte do Rey e do emperador ou d'outro
alto princepe socê a seer trautados os grandes nego
cios e os altos feytos, e as arduas questões determina
das, asy este livro tracta de grandes cousas e de muy
altas questões asy como a essencia de Deos e da
trindade e da encarnação divinal e d'outras materias
proveitosas para conhecer e entender o senhor deus,
segundo o poder da fraqueza humanal, provando tuđo
por auctoridades da santa escriptura cõ declarações e
exposições de doutores e per razões evidentes e dize
res de barões sabedores declarados de latim om lin
guagem portuguez... » A monomania da erudição obri
gava a este trabalho esteril das compilações encyclo
pedicas. Por este livro se pode saber qual o estado do
conhecimento dos livros arabes em Portugal em uma
epoca em que nos paizes mais civilisados da Europa
era ignorado; vejamos algumas citações : « segundo po
dedes vêer por seus livros ante os quaes foy hũn que
houve nome hermoge, em huū livro que chầma logoste
leos ... ) (cap. XII.) —— « Cá mafamede em no livro al
carð en que he escripta a vosa ley e preceptos que vos
ele deu , o qual livro he principal e authentico antre
vós. » (Cap. XII) Esta obra tem o seu principal valor
para a philologia.
2.° A Virtuosa Bemfeituria . - E'outro livro de mo
ral,e em forma de compilação, escripto pelo Infante
D. Pedro ; guardava-se na Bibliotheca de seu irmão,
el-rei D. Duarte, (N.° 46.) que o cita como auctori
dade no seu Leal Conselheiro : « e o Infante D. Pedro,
meu sobre todos prezado e amado irmão, de cujos fey
tos e vida som contente, compoz o livro da virtuosa
bemfeituria, e as horas da confissom .» ( op. cit. p.
169.) O chronista Ruy de Pina tambem falla do In
HISTORIA , PHILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 175
fante « e foi bem latinado e assás mystico (encyclope
dico) em sciencias e doutriuas de lettras, e dado muito
ao estudo ; elle tirou do latim em linguagem o Regi
mento de Princepes, que Froy Gil Correado compoz,
e assi tirou o livro dos Officios de Tullio, e Vegecio
De Re Militari, e compoz o livro que se diz da Vir
tuosa Bemfeituria .) ( 1) Todas estas obras se devem
julgar escriptas antes de 1438, pelo facto de pertence
rem aos livros de uso de el-rei Dom Duarte . Era de
dicada a Virtuosa Bemfeituria ao monarcha, seu ir
mão ; e nos seis livros de que constava, tratava : que
cousa é virtuosa bemfeituria; como o beneficio deve
ser dado ; como a virtuosa bemfeituria deve ser reque
rida ; como o beneficio deve ser recebido; o que é agra
decimento , e como as bemfeiturias se perdem . A con
fusão da philosophia com a moral theologica, fez com
que a tendencia encyclopedia que tanto distingue os
grandes espiritos do seculo xv, Pic de la Mirandola,
Leonardo de Vinci e outros, se acanhasse n’estas com
pilações em que se tinha em mira mostrar a área das
suas leituras.
3.° 0 Leal Conselheiro, de Elrei Dom Duarte.
Quem lê o catalogo dos Livros de uso d'este monar
cha, e conhece a historia intellectual do seculo xv, é
capaz de prevêr o contheudo d’essa vasta encyclope
dica de theologia, moral, medicina, pedagogia, e gram
matica, de envolta com rapidas memorias pessoaes de
uma certa ingenuidade medieval. E' a compilação na
sua fórma habitual, com que el-rei Dom Duarte exer
cia a sua aptidão calligraphica, prenda ainda rara no
seculo xv entre os altos personagens. Com o Leal Con
selheiro vê-se esse facto que tanto caracterisa a nossa
litteratura no seculo xv , a separação entre os sabios
e o povo : « E tal trautado, (diz o monarcha alludindo

(1) Chron. de D. Affonso V , cap. 125, p. 433.


176 CAPITULO VII

á sua obra) me parece que principalmente deve per


tencer para os homens da côrte, que alguma cousa sai
bam, de semilhante sciencia, e desejem viver virtuosa .
mente, porque aos outros bem penso que nom muyto
Thes praza de o ler, nem de o ouvir. ) (1) O Leal Con
selheiro é um dos documentos maiores e mais impor
tantes para a historia da lingua portugueza; apezar
de escripto sob o regimen de uma importuna erudição,
a sua origem familiar o domestica leva-o a evitar a
elocução rhetorica usada pelo Infante Dom Pedro, e
obriga -o, como elle proprio confessa, « de levar esta or
dem de escrever na geral maneira de nosso falar na
tural. » (2)
( 1) Leal Conselheiro, p. 8.
(2) 16., p. 8. — Os seguintes livros sãouma prova da influen
cia erudita de D. Duarte: Tratado de Virtud, de D. Alonso de
Carthagáfa : traz o seguinte : « Porque las cosas nobles e pro
vechosas, mientras más se extienden al pro comun , non sola
mente mas nobles, mas aun divinas se facen, segund que lo es
cribio Aristoteles en el tomo de las Ethicas. Commigo pen
sando determiné trasladar en nuestra commun lengua castel
lana un graciosoe noble tratado que de virtudes fallé, el cual
de los dichos de los Morales filosofos compuso el de loable me
moria D. Alfonso de Santa Maria, o bispo de Burgos, al muy
illu muy inclito Sr. D.Duarte, rey de Portugal, seyendo
primero princepe, al cual Memorial de Virtudes intituló .» Ap.
Bibl. de Gallardo, t. II, p. 255 .
Libro de Marcho tullio çiçeron, que se llama de la Re
torica , trasladado de latin en romance por el muy reverendo
don Alfonso de Cartagena, oppô de Burgos a ynstancia del
muy esclarecido Principe don Eduarte Rey de Portugual. (Na
Bibl . do Escurial. Fi . 45 f1.- « Fablando con yos, princepe escla .
-

recido, en materias da sciencia en que vos sabedes fablar, en


algunos dias de aquel tiempo en que la vuestra corte, por man
dado del rey catholico mi señor, estaba , viuvos a voluntad de
haber la Arte de la Retorica, en claro linguage, por conocer
algo de las doctrinas que los antiguos dieron para fermoso fa
blar. Et mandasteme, pues yo a esta sason parecia haber algunt
espacio para me occupar en cosas estudiosas, que tomase un
pequenotrabajo, e pasase de latin en nuestra lengua la Reto
rica que Tulio compuso.»» etc. Ap. Gallardo, 11, 260.
HISTORIA ,7 PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 177
4.° As Ordenações Affonsinas. - N’uma epoca em
que a legislação era casuistica e não fundada sobre
um certo numero de principios abstractos que tornam
a redacção da lei formalistica , os Codigos apresentam
um certo numero de particularidades que são verda
deiros documentos ethnologicos. Sob este ponto de vis
ta, as Ordenações Affonsinas são um quadro fidedigno
e intimo da vida portugueza. No seculo xv, é por ven
tura o mais certo repositorio da linguagem popular
portugueza . No seculo xv, já os jurisconsultos cram
homens de letras, e foi d'esta tradição que se formou
o espirito de Cujacio e da eschola historica de direito.
E' por isso que os jurisconsultos encarregados de co
dificarem as leis portuguezas, como João Mendes Ca
2

valleiro, por D. João I, e o Doutor Ruy Fernandes,


por el rei Dom Duarte e D. Affonso V , se devem con
siderar como completos homens de letras . De ordina
rio cada titulo de legislação é acompanhado de um pro
logo em que se compila a opinião dos moralistas . Um
verdadeiro monumento litterario é o Regimento de
guerra, ( Tit. 51.) aonde o espirito cavalheiresco da
edade media ainda se conserva no direito de levantar
hoste. Esta renascença da tradição cavalheiresca
no momento em que ella vae ser uniformisada na lei
commum , e assegurar ao rei a sua independencia sobre
os barões por meio dos exercitos permanentes, é tam
bem uma antinomia, provocada pela influencia da eru
dição, que tendia a absorver fatalmente os juriscon
sultos romanistas.

Imprensa em Portugal - Pablicação da Vita


Christi

Os primeiros trabalhos da Imprensa em Portugal,


já reconhecida como uma instituição publica, foram
protegidos
12
pela rainha D. Leonor, mulher de Dom
178 CAPITULO VII

João II ; esta mesma senhora, foi a que instituiu em


Portugal os Hospicios ou Misericordias; foi ella que
primeiro conheceu o assombroso talento de Gil Vicente,
nomeando o seu lavrante; e se o theatro portuguez des
abrochou no principio do seculo xvi, deve-se esse passo
na civilisação às suas repetidas instancias para que Gil
Vicente escrevesse novos Autos para os serões do paço
ou para as festas religiosas. Um dos primeiros traba
lhos dos prelos portuguezes foi sem duvida o opusculo
do Infante Dom Pedro sobre o Menosprecio do Muiz.
do ; segundo José Soares da Silva, existia um exem
plar d'este rarissimo monumento, « na livraria que foy
do Cardeal Sousa, e existe na Casa dos Duques de La
fões, Marquezes de Arronches. » Descrevendo o livro
diz que traz no fim a declaração de que fora impres
80 anove annos depois de inventada a famosa Arte de
Impressão . Tambem o Conde da Ericeira, relatando o
»

estado da livraria do Conde de Vimeiro á Academia


de Historia portugueza, escreve : (« Tambem entre os
impressos permanecem muitos esquisitos, e entre elles
as obras do Infante Dom Pedro, com esta declaração
no fim : « Este liuro se imprimiu seis annos depois que
em Basilea foy achada a famosa Arte de Impressão.
O que serve muito para averiguar a epoca d'este 'ad
miravel invento, e disputar a gloria a Moguncia, o
mostrar abrevidade com que seintroduziu em Portu
gal.» O Conde de Ericeira comprehendeu a importan
cia d'essa declaração final, e portanto é de crêr que a
copiasse textualmente. Sendo a Imprensa introduzida
em Basilea em 1474, é facil de inferir que a Imprensa
começou a funccionar entre nós em 1480, conforme a
rubrica copiada por Soares da Silva; as duas rubricas,
accusam uma nota manuscripta pelo facto de variarem
entre si, o que mais se corrobora pela existencia de
dois exemplares um na bibliotheca de Vimeiro, outro
na de Lafões. Em todo o caso a nota serve de base
HISTORIA, PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 179
para uma tradição verdadeira; as Coplas do Infante
Dom Pedro foram impressas ainda no seculo xv, com
certeza sob a mesma influencia que mandou dar pu
blicidade ao outro livro traduzido por ordem de sua fi
lha a rainha D. Isabel, mãe de Dom João II, a Vita
Christi de Ludolpho Cartusiano. Este livro andava na
casa real desde Dom Duarte, e apenas se havia tra
duzido o capitulo 7 da Primeira parte, no Leal Con
selheiro ; (Cap. 89.) tambem no tempo d'este monar
cha ainda era considerado anonymo: « aquelle livro de
Vita Xpo, que fez, segundo dizem , que por el nom se
nomea , huū freire da ordem dos Cartuxos .» (Cap. 85.)
A filha do Infante Dom Pedro, a duqueza Dona Isa
bel, « mandou trasladar de latim em linguagem por
tuguez , ao muy pobre de vertudes dom Abbade do
moesteiro de S. Paulo . A rainha Dona Leonor en
carregou aos impressores Valentim de Moravia e Ni
coláode Saxonia da Impressão d'esta obra opulenta ,
que terminaram em 1495. A linguagem do tempo da
rainha D. Isabel já pareceu antiquada em 1495, e foi
por isso que a rainha Dona Leonor encarregou ao seu
pregador Frei André, franciscano, da revisão do texto .
E' um dos livros , ainda hoje , dos maisbellos dos pré
los portuguezes . Valentim de Moravia figura até 1514
em Portugal, com o nome de Vatentim Fernandes, im
primindo logo em1496 a celebre novella de cavalleria ,
intitulada Estoria do muy nobre Vespasiano ; em 1500
as Obras de Cataldo Siculo, do qual diz Fray Juan
d'Avila , apodando os eruditos:

Aquel Siculo elegante,


Que por estes reinos vino... (1)

( 1) La Vida y la Muerte, ed. 1508.


180 CAPITULO VII

Em 1501 imprime Valentim Fernandes as Coplas


de Jorge Manrique, de que tanto gostava Dom João II,
circumstancia que leva à crêr ter sido feita a impres
são por ordem da rainha Dona Leonor.

Ficções novellescas , Viagens

O gosto das Novellas de Cavallaria, que Fernão Lo


pes accidentalmento revela que existia na côrte de Dom
João 1 ; os noines de heroes da Tavola Redonda com
que a aristocracia se arreiava ; os riquissimos thosou
ros poeticos da livraria de ol-rei Dom Duarte, tudo
nos revela que devia existir em Portugal uma grande
actividade litteraria sacrificada a essa paixão extempo
rânea . A dedicatoria do Tirant il Blanch ao Infante
Dum Fernando, irmão de Dom Affonso v, pelo valen
ciano João de Mortorell, bem nos mostra que esse
gosto litterario ainda dominava no meado do seculo xv.
Mas o que é verdadeiramente notavel, é que abundam
os livros de moral e de rhetorica, e só so conhece pu
blicada a novella intitulada Estoria do Imperador Ves
pasiano. Tinha razão o Dr. João de Barros quando di
zia que estas cousas se seccam entre as nossas mãos.
E certo que a nossa actividade litteraria n’este genero
foi grande, como se pode vêr pelos differentes achados
que se seguem :
1.º Demanda do Santo Greal -- Eis a descripção
d'este precioso codice, que se guarda na Bibliotheca
de Vienna (1) : « Da parte d'este, que respeita a Lan
çarote, existe uma versão livre contemporanea de Dom
João I, na Bibliotheca imperal d'esta côrte, escripta
em pergaminho, e com o maior esmero possivel. Não
contém , é verdade, o principio, mas nas 199 folhas
existentes se encerra a parte mais importante da No
(1) N.° 2594, da Bibl. de Vienna.
HISTORIA , PHILOSOPHIA , FICÇÕES E VIAGENS 181

vella, com a circumstancia de que não se encontra


no texto francez, apesar de citado pelo escriptor.»
O Ms. da Tavola Redonda existente em Vienna, con
siste ( sem principio) em parto do Conto ou Romanço
de Lançarote, tirado da copia franceza de Elie de Bo.
ron , segundo consta do mesmo texto. Parece que o
Codice , que é um volume grosso, fazia parte de uma
collecção maior, comprehendendo o Brado de Merlim ,
ea Estoria de Tristam .---Ahi ainda se vê mui usado
o ren e en , no mesmo sentido que os trovadores os usa
vam . » ( 1) De facto, na Bibliotheca do Dom Duarte en
contram-se estas duas partes Merlim e o Livro de Tris
tão. Ainda no Cancioneiro geral se lê :

O que foi d'esse Merlim


E d'outros tantos d'aguora ... ( fl. 57.)

2.° Livro de Josep ab Arimathia. - D'este Manu


scripto do cyclo das novellas portuguezas da Tavola
Redonda, då noticia Varnhagen, como tendo - o visto
em Lisboa, em 1846 : « A cerca do Santo Greal tive
mos occasião de vêr, ha uns 24 annos, em Lisboa,
outro manuscripto intitulado : Livro de Tosep ab ara
matia Intitulado a primeira parte da Demāda do Sãto
Grial ata a presète idade nunca vista treladado do
proprio original por ho doutor Manuel Avèz correge
dorda Ilha de Sã Miguel Deregido ao muyalto e po
deroso principe el Rei Dom João ho 3.º deste nome
Elrei nosso Sñor , » Na dedicatoria ao monarcha escre
via o Dr. Manuel Alvares : « Com esta ousadia come
cey a tresladação do presente livro que a V. A. hofe
reço. O qual eu achei em Riba Dancora em poder de
hữa velha de muy antiga idade no tempo que meu
pay Cor de Vossa Corte servia V. A. de Cor Dantre
(1) Cancioneirinho, p. 165, 168.
182 CAPITULO VII

Douro ee minho. O qual livro, segundo por elle parece he


spto em porgaminho ee iluminado. E a caise de dozentos
annos quo fo spto trata muitas antiguidades e mate
rias boas e sabrosas como V. A. por elle verá . » Na
descripção d'este Manuscripto, recolheu tambem o col
lector do Cancioneirinho, da f. 311 v. do notavel Co
dice : « Este livro mandou fazer João Sanches mestre
escolla d'Astorga no quinto ano que o estudo de Coim
bra foy feito e no tempo do papa Clemente que des
troio a ordem dol Temple e fez o Concilio geral em
Viana e pos ho entredicto em Castela, e neste ano se
finou a rainha dona Constança em São fagundo e ca
sou o Infante Dom Felipe com a filha do Dom A.°
ano de 13 bij anos. ) Eis o summario de alguns capi
tulos d'esta novella manuscripta, hoje perdida : « Como
o Emperador (Vespasiano) perguntou se J. C. creia
nos idolos. (cap. 4.) Como o Emperador emviou bus
car as reliquias de J. C. pelo seu mestre sala (Gay .)
(cap. 5.) Como Vespasiano ... foi gafo. (cap. 21.)
Como a Veronica veio a Roma, e como Vespasiano
foi são, etc. (cap . 23.) Vespasiano havendo promettido
não queimar nem enforcar a Caifás, o manda meter
em uma barca á ventura . ( cap. 25.) Baptisa-se Ves
pasiano. (cap. 27.) Pilatos na prisão . (cap. 28.) E'
condemnado ao Diabo. (cap. 29.)» (1 ) No Cancioneiro
geral acha-se uma poesia de Alvaro Barreto á morte
do Infante D. Pedro, em que diz :
Do comprido mestre escolla,
ou Josep Baramatya. (2 )

3.° Chronica de Dom Duardos.- Encontramos tam


bem uma novella,> que se attribue no frontispicio a Go

( 1) Cancioneirinho, notas, p. 165 a 167.


(2) Can. ger. , t. I, p. 278.
HISTORIA, PAILOSOPHIA, FICÇÕES E VIAGENS 183
mes Eannes de Azurara : Cronica do invictissimo
Dom Duardos, princepe de Inglaterra, filho de Pal
meiry e da Princeza Polinarda, na qual se contem
seus extremados feitos em armas, e purissimos amores,
com outros de outros cavalheiros que em seu tempo con
correram . Composto por Henrique Fauste, cronista In
grés e transladada em portuguez por Gomes Eannes de
Azurara, que fez a Chronica d'el-rei D. Affonso Hen
riques, achada de novo entre seus papeis.) Azurara
cita o Amadis de Gaula com conhecimento de causa ,
e a Gesta do Duque Jean Lanson, o que torna plausi
vel esta attribuição .
4.° Estorea do muy nobre Imperador Vespasiano.
E ' esta a unica novella do seculo xv que chegou a
ser impressa ; pertence ao cyclo erudito greco -romano,
e foi talvez por a tomarem como tendo valor historico,
que alcançou a publicidade. Vespasiano foi heroe de
muitas Gestas da edade média ; Francisco Michel cita
um largo poema francez existente em uma Bibliotheca
de Inglaterra, ( 1 ) e Herculano, um poema provençal
na Bibliotheca de Paris ; (2) mas quanto á origem da
Novella portugueza podemos affirmar que ella foi tra
duzida do hespanhol, por isso que existe impressa
in -4 .° sem data,uma Historia de Vespasiano emperador
de Roma, de que resta noticia pelo catalogo da Livra
ria de Fernando Colombo , o que elle comprou em
Sevilha por outo maravedis. ( 3) A novella de Sem
Ventura Isêa tambem é traduzida do castelhano, como
as Coplas de Vita Christi, de Fray Iñigo de Mendoza,
que o Coudel-Mór cita :
Como os grosa Vita Christe. ( 4)
(1) Relatorio, p. 119.
(2) Panorama , t. iv , p .8.
(3) Bibliotheca de Gallardo, t. II, p. 530.
Canc. ger ., Al. 9, col. 1.
184 CAPITULO VII

Viagens . - Como livros de Viagens temos ainda per


tencentes ao seculo xv o livro de Marco Polo, que
já fôra traduzido pelo Infante Dom Pedro, e que Va
lentim Fernandes traduziu de novo ajuntando-lhe o
de Nicolao Veneto, imprimindo -os ambos em 1502.
As Cartas de D. Lopo de Almeida, escriptas da Al
lemanha a Dom Affonso V, em 1451 , contando-lhe a
jornada e festas do casamento da imperatriz D. Leo
nor sua irmå, são preciosissimas, pelas suas observa
ções pittorescas e involuntariamente engraçadas. (1)
O Roteiro da Viagem de Vasco de Gama, em 1497 ,
escripto por um marinheiro da náo de Paulo da Gama,
por ventura Alvaro Velho, é um documento cuja im
portancia litteraria só se avalia procurando n'elle os
elementos historicos e tradicionaes de que se aprovei
tou Camões nos Lusiadas. Um grande elemento poe
tico predominou na actividade historica do seculo xv,
e pode-se dizer, que grande parte das viagens foram
provocadas pela descoberta das Ilhas encantadas,
de que fala o Cavalheiro Rosenthal, na sua viagem a
Portugal, e pela investigação da realidade do Preste
João das Indias.

(1) São quatro; vem nas Prov . da Hist. yen., t. ,1, p. 633.
TERCEIRA EPOCA

OS QUINHENTISTAS
(SECULO XVI)

CAPITULO VIII

A disciplina grammatical no seculo XVI

Influencia da educação portugueza feita no estrangeiro. - A


erudição toma um caracter profano na Renascença. - Ne
brixa e os estudos classicos na Peninsula.-- A Grammatica
de Fernão de Oliveira : como elle observa o estado do ar
chaismo e do neologismo : as alterações phoneticas, mor
phologicas e syntacticas. - A auctoridade escripta usada
por Fernão de Oliveira. - A Grammatica de João de Bar
ros . - Influencia dos poetas no desenvolvimento da lingua
portugueza desde Gil Vicente até Camões. - A lexicogra
phia no seculo xvi. — Os trabalhos de Duarte Nunes de
Leão sobre a Orthographia e sobre a Origem da lingua
portugueza.

A educação portugueza no estrangeiro

O seculo xvi é o periodo de maior actividade da


lingua e da litteratura portugueza ; a lingua fixa-se
por meio da constituição das suas leis grammaticaes,
o a litteratura chega a ser uma das formas de mani
festação do sentimento nacional e das grandes indivi
dualidades. Para que estas duas profundas revoluções
se operassem , não bastava o esforço dos eruditos da
eschola de Nebrixa, nem as mais ou menos habeis imi
tações dos poetas italianos; existiu uma causa orga
nica, inmanente na vida social, que se revelou por
esta forma. Com a descoberta da India, com a inde
pendencia das grandes navegações, Portugal entrou
186 CAPITULO VIII

n'esse periodo a que no quadro das civilisações se da


o nome de vida historica de um povo . E por isso que
o seculo xvi em Portugal reconhece pela primeira vez
na sua litteratura o genio popular, em Gil Vicente; a
consciencia historica em João de Barros; a disciplina
1
grammatical em Fernào d'Oliveira ; a preferencia da
lingua portugueza para as concepções ideaes em An
tonio Ferreira ; e o espirito da nacionalidade em Ca
mões. Apezar dos grandes erros politicos de D. Ma
noel, expulsando de Portugal os Judeos , e de Dom
João III, fundando a Inquisição e entregando aos Je
suitas todos os estabelecimentos de instrucção, ainda
assim, o seculo xvi foi de uma riqueza não excedida
até hoje, em toda a ordem de actividade, porque era
organica a causa que o fecundava . Não comprehendê
mos o phenomeno moral e litterario da Renascença,
não chegou até nós esse outro phenomeno religioso e
politico da Reforma; mas, apezar de tudo, o seculo dos
Quinhentistas é o periodo mais bello da nossa historia,
porque o movimento que o activou partia da totalidade
da nação . E' por isso que no seculo xvi acaba a lin
gua portugueza da edade media, e começa o portuguez
moderno, como o fallava e escrevia Camões. Os phe
nomenos d'esta natureza, como escreve Adolpho Coe
lho, nunca se dão isolados n'uma lingua, porque as
condições em que se produzem são, ou a decadencia
litteraria ou o movimento historico do povo que falla
essa lingua, ou ambos reunidos, isto é, causas de
grande extensão e não causas inteiramente locaes e só
capazes de produzir uma ou duas especies de altera
ções. D'elles se serve a glottica para caracterisar os
periodos da historia das linguas ; etc. ) (1) Bastava o
movimento historico do povo portuguez no seculo XVI
para poder-se determinar por elle um periodo capital
(1) Questões da Lingua portugueza, p. 68 .
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 187

do desenvolvimento da lingua portugueza. Assim como


á descoberta da America por Christovam Colombo,
oppuzemos a descoberta do Oriente por Vasco da Gama,
deu -se nos dominios litterarios a mesma rivalidade
com a Hespanha. Dominava ali o erudito Nebrixa,
centro de todos os estudos classicos; desde 1490 que
apparecera a primeira Grammatica hespanhola, por
Alonso de Palencia ; em 1492 Nebrixa publicava o
primeiro Diccionario. Por este tempo tinha Dom
João III a educar em Italia sob a direcção de Angelo
Policiano, os filhos do Chanceller -mór João Teixeira.
Em uma Carta de Angelo Policiano ao Chanceller,
diz-lhe dos seus discipulos : « Para a Italia os mandas
tes, a fim de se lhes formarem os costumes, serem ins
truidos nas boas lettras e apprenderem todas as artes
liberaes, segundo é proprio de quem tem de occupar
a mais elevada posição.» ( 1) A Italia era o foco puro
das tradições classicas; mas as revoluções a que a Italia
se viu sugeita fizeram com que Paris fosse procurado
de preferencia pelos portuguezos; a reforma dos estudos
no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, faz-se com
os alumnos vindos das escholas de Paris, e com mes
tres d'ali trazidos. Ayres Barbosa, André de Resende,
Damião de Goes, Caiado, Achilles Estaço , figuram no
estrangeiro como grandes eruditos antes de virem acti
var a educação publica em Portugal; em 1537 empre
hende Dom João III a reforma da Universidade, mu
dando-a definitivamente para Coimbra. Foi na vespera
d'este notavel acontecimento, e pouco depois do regresso
dos cavalleiros portuguezes que acompanharam o In
fante Dom Luiz a tomada de Tunis, que se publicou
em Portugal a primeira Grammatica portugueza. Diz
Fernão de Oliveira : « Tudo ante quem não folga de dizer
mal terá escusa com olhar aa novidade da obra, e como es .
(1) Apud Poet. palacianos, p. 305.
188 CAPITULO VIII

crevi sem ter outro cocemplo antes de mi, e isto muito


mais escusará o defeito da ordem que tive em meu
proceder, se foi orrada ..» (1)
( A causa porque só tão
tarde se procurou estabelecer a disciplinagrammatical
da lingua portugueza só pode ser attribuida ao estudo
supersticioso do latim, que era imposto como lingua
gem usual desde as escholas de Santa Cruz atė aos
paços de D. Manoel . Em uma relação dos costumes
de Santa Cruz de Coimbra se lệ : «Em este tavoleiro
ha grande concurso de estudantes, que continuamente
conferem entre si, huns em grammatica, outros em
rhetorica, outros em logica e philosophia, outros em
santa theologia, outros em medicina da vida e saude
humana reparadora ; e a todos é opprobrio fallar , salvo
em a lingua latina ou grega . » ( 2) André de Resende,
na Vida do Infante Dom Duarte, mostra tambem como
nas lições de Clenardo se fallava latim : «Muitos houve,
que tinham opinião de letrados, que per não descobri
rem o fio de quam mal sabiam fallur latim , escolhe
ram antes não ir á lição, nem entrar emquanto o mes
tre lá estivesse, e não é necessario nomeal-os . » ( 3) Por
1516 escrevia o Conde de Vimioso a Ayres Telles ::
Coytado, triste de ti
Homem mofino,
Quefoste nascer em sino
De latim . ( 4)

Até as damas se entregaram ao estudo do latim ,


como a Infanta D. Maria ; D. Leonor de Noronha tra
dúzia do latim as Eneadas de Sabellico, e as Sigêas
compunham versos em latim e eram polyglotas. Foi

(1) Grammat., p. 120. Ed. 1871.


(2) Apud Juromenha, Obras de Camões, t. 1, p. 19.
3) Ob. cit., cap. 10.
Canc. ger., III, 121.
wile
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 189

esta a causa porque a grammatica portugueza se pu


blicou tão tarde, em 1536. A erudição do seculo XVI
era humanista , e não exclusivamente ecclesiastica,
como no seculo xv; é por isso que Nebrixa apparece
apodado pelos escriptores moralistas:
Con dotrina muy prolija
Nuestras tierras embotadas
Por el fomoso Lebrija .

Quedraran acecaladas ::
Son las gentes alumbradas,
De su ciega grosseria
Ja no hablan grosseria,
Mas razones alindadas . (1)
El rei Dom Manoel tendo casado successivamente
trez princezas castelhanas, fizera insensivelmente
com que a linguagem da aristocracia portugueza fosse
a que se fallava em Castella. Os poctas,que imitavam
os novos metros italianos, a exemplo de Boscan ee Gar
cilasso, ensaiavam o endecasyllabo na versificação
castelhana, como o fizeram Sá de Miranda e D. Ma
noel de Portugal. Mas, apezar de todas estas causas
atrazadoras, a lingua portugueza desenvolve-se larga
mente, fixa muitas das suas fórmas, simplifica a sua
syntaxe, accentúa mais a sua differença do castelhano,
de modo que, quando as grammaticas foram organisar
as suas regras não tiveram mais do que reconhecer os
factos consummados .

A Grammatica de Fernão d'oliveira 1586

Postoque as ideias grammaticaes de Fernão de Oli


veira estivessem viciadas por uma falsa comprehensão
da origem ethnologica do povo portuguez, e derivasse
a sua lingua das colonias lusitanas, e a sua erudição
(1) Fray Juan d'Avila, La vida y la Muerte. Ed. 1508.
190 CAPITULO VIII

fosse recebida por authoridade pedantesca, citando in


digestamenteMarciano Capella , Nebrissa, Marsilo, en
tre Cicero, Quintiliano, Marco Varrão e Probo Gram
matico, é certo que a sua origem popular influiu pro
fundamente para que com este passado não perdesse
o conhecimento da lingua portugueza, Dedicando a sua
Grammatica da linguagem portugueza a Dom Fernando
de Almada, confessa o seu nascimento : « sou um ho
mem baixo. » (p . 4 ) Fernão de Oliveira era natural da
Beira, a provincia aonde a linguagem portugueza con
servara maior estabilidade, bem como uma poesia tra
dicional ; foi educado em Evora, na capital da erudi
ção, no Convento de S. Domingos: « sendo eu moço
pequeno fui criado em S. Domingos d'Evora, onde fa
ziam zombaria de mi os da terra, porque o eu assi pro
nunciava, segundo que o apprendera na Beira. »
( p . 114.) Depois d'isto Fernão de Oliveira foi prece
ptor em casa de Dom Fernando de Almada, que tam
bem era homem lido : « aproveita seu tempo lendo bons
livros para si, e no regimento de sua casa primeiro,
cria com muito cuidado dom Antão seu filho, a quem
Deus guarde e prospere, para cuja doutrina com muita
despeza me trouxe a sua casa, e graciosa e comprida
mente me conserva n'ella .» (p . 4.) Aqui temos as boas
condições de Fernão de Oliveira, para assignar as re
voluções experimentadas pela lingua portugueza no
primeiro quartel do seculo XVI ; criado entre o povo,
na Beira, é educado sob o regimen da erudição em
Sam Domingos de Evora, e passa a vida em contacto
com a aristocracia, em casa de D. Fernando de Al
mada .
Fernão de Oliveira nota o grande desleixo que os
portuguezes tem pela sua lingua, isto é, caracterisa o
facto do estado de indisciplina da lingua : « Já confes
sámos ser verdade o que diz Marco Varão, nos livros
da Etymologia, que se mudam as vozes e com ellas é
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 191

1 tambem necessario que se mudem as letras; mas não


com tão pouco respeito como agora alguns fazem , os
quaes como chegam a Toledo, logo se não lembram
de sua terra, a que muito devem . E em vez de apu
rarem sua lingua corrompem-na com emprestilhos, nos
quaes não podem ser perfeitos. Tenhamos pois muito
resguardo n'esta parte, porque a lingua e escriptura
é fiel thezoureira do bem da nossa successão, e são, diz
Quintiliano, as letras para entregar aos que vierem, as
cousas passadas.» (pag. 18.) Falando da renascença
dos estudos sob Dom João III, continúa : « porque já
os priguiçosos não tem escusa , nem se podem chamar
remissos por falta de premio : e comtudo appliquemos
nosso trabalho a nossa lingua e gente, e ficará com
maior eternidade a memoria d'elle; e não trabalhemos
em lingua estrangeira, mas apuremos tanto a nossa
com boas doutrinas que a possamos ensinar a muytas
outras gentes e sempre seremos d'ellas louvados e ama
dos, porque a semelhança é causa de amor, e mais em
as linguas. E ao contrayro vemos em Africa, Guiné,
Brasil e India não amarem muito os Portuguezes que
antr'elles nacem , só polla differença da lingua ; e os
de lá nacidos querem bem à os seus portuguezes, o
chamam -lhes seus, porque fallam assi como elles . )
(p. 16.) Fernão de Oliveira presentiu vagamente que a
lingua é o orgão mais poderoso da unidade nacional :
«porque desfazem muito na gloria do çeptro e corôa
do nosso reino, estes assi como tambem cortam a per
petuidade d'elle os que de novo trazem nova lingua á
terra ; porque a lingua e a unidade d'ella é mui corto
apellido do reino, do senhor, e da irmandade dos vas
salos ;.. quanto de minha parte, segundo eu enten
.

do, eu juraria que quem folga de ouvir lingua estran


geira na sua terra não é amigo da sua gente nem con
forme a musica, natural d'ella ;» (p. 72.) D'aqui tira
Fernão de Oliveira a necessidade de se organisar a
192 CAPITULO VILI

disciplina grammatical da lingua portugueza : « e é


verdade que se não tivermos certa lei no pronunciar
das letras não pode haver certeza de preceitos, nem
arte na lingua; e cada dia acharemos n'ella mudança
não sómente no som da melodia, mas tambem nos si
nificados das vozes, etc. ) (p. 25.) Estas duas altera
ções da lingua, notadas por Fernão de Oliveira, são
0 Archaismo, e o Neologismo. Vejamos como o velho
grammatico observou a revolução archaica do portu
guez pela estabilidade da dicção popular: « As dições
velhas são as que foram usadas, mas agora são esque
cidas ... ruão que quiz dizer cidadão, segundo que eu
julguei em hum liuro antigo, o qual foi trasladado em
tempo do mui esforçado rei Dom João : por seu man
dado foi o liuro que digo escripto e está no moes

teiro de Peralonga, e chama -se estorea geral; no


qual achei esta com outras anteguidades de falar ;
Poys em tempo del rei Dor Affonso Anriques capa
pelle era nome de umacerta vestidura, e não somente
de tanto tempo, mas tambem antes de nós hum pouco
nossos paes tinham algumas palauras que já não são
agora ouvidas; como, compengar, que queria dizer,
comer o pão com a outra vianda; e nemichalda, o
qual tanto valia como agora nemigalha, segundo se
declarou, poucos dias ha,uma velha, que por isto foi
perguntada, dizendo ella esta palavra; e era a velha a
este tempo quando isto disse, de cento e dezeseis an
nos de sua edade ...... acarão, quer dizer junto ou
a par ; e samicas, que significa, por ventura, e outras
peores vozes ainda agora as ouvimos e zombamos d'el
las ... muitas vezes algumas dições, que ha pouco são
passadas, são já agora muito avorrecidas, como : aben,
ajuso , acujuso, a suso , e hogano, algorrem , e outras
muitas; e porém se estas e quaes outras as meterem
em mão de um homem velho da Beira ou aldeão, não
lhe parecerão mal ; etc. » (p. 80, 82.) A linguagem ar .
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 193

chaica usada por Gil Vicente nos seus Autos, era o


resultado do seu espirito de observação , quando pro
curava imitar os costumes populares da Beira. E'por
isso que Fernão de Oliveira cita Gil Vicente como au
ctoridade grammatical, no modo de escrever as inter
jeições. (p. 32.) Da observação do estado archaico da
lingua, é Fernão de Oliveira levado para o conheci
mento da forma dialectal resultante do archaismo :
« tambem se fez em terras esta particularidade, porque
os da Beira tem umas falas, e os Dalentejo outras ; e
os homens da Extremadura são differentes dos d'Antre
Douro e Minho ; porque assi como os tempos, assi tam
bem as terras criam diversas condições o conceitos ;
etc. » (p. 85.) « E tambem se este verbo nego , servia
em lugar de conjunção e valia ante os velhos tanto
como senão, e ainda agora assi val na Beira. » ( p. 118.)
A vida civil no seculo xvi provocava fatalmente
á admissão de novos vocabulos, ou neologismos. Fernão
de Oliveira nota esse facto : ( o costume novo traz à terra
novos vocabulos; como agora pouco ha, trouxe este
nome picote, que quer dizer burel; do qual porque de
fóra trouxeram os malgalantes o costume, ou para mi
lhor dizer o desdem de vestir o tal pano, trouxeram
tambem o nome com esse costume ; e alquice, tam
pouco é vestido da nossa terra, por isso tambem traz
o nome estrangeiro comsigo. E arcabuz, ha sete ou outo
annos pouco mais ou menos, que veo ter a esta terra
com seu nome d'antes nunca conhecido n'ella. » (p . 69) .
atornemos a falar das dicções alheas, as quaes tambem
com algum trato vem ter a nós : como de Guiné, e da
India, aonde tratamos, e com arte não somente quando
a arte vem novamente a terra, como veo a da Impres
são ; mas tambem nas artes já usadas, quando de novo
usam algum costume os alfayates em vestidos, e os sa
pateiros em calçado, e os armeiros em armas de novas
feições,13 e assi os outros ; porque os homens falam do
194 CAPITULO VIII

que fazem , e portanto os aldeãos não sabem as falas


da côrte, e os sapateiros não são entendidos na arte de
marear, nem os lauradores d'antre Douro e Minho en
tendem as novas vozes que este anno vieram de Tu
nis com suas gorras . » (p. 70.) Mas estas tres corren
tes do Archaismo, da formação dialectal e de Neolo
gismo, são como uma revolução superficial que se dá
na lingua, sem modificar - lhe a essencia. Porém no se
culo xvi essas modificações radicaes deram -se no por
tuguez , nos sons, nas formas e nas construcções syn
tacticas, como vamos vêr pelas proprias observações
de Fernão de Oliveira :
1.° Alterações phonicas.- Da mudança do l por r,
fixando -se o seu uso no seculo XVI, diz o velho oma
tico : « saberemos que a forma e melodia da nossa lin
gua foi mais amiga de pôr sempre r onde agora escre
vemos ás vezes l, como gloria e flores, onde diziam gro
rea e frores, e tambem outras partes comestas .» (p . 35)
Do phenomemo phonetico da permutação das letras,
diz : « Tambem em se mudar umas em outras tem as
letras communicação, e guardam a rasão de seu pa
rentesco ou visinhança. Como todondia , por todo o
dia ;.... pois as consoantes antre si tambem se mudam
humas em outras, como amarano seu Deos, por ama
ram o seu Deos; no amor de Deos por em o amor de
Deos; pollo conselho de meus amigos, em logar de por
>

o conselho de meus amigos . Pul-a mão por pus a mão,


etc. (p. 42.) Apezar de todo o estudo do latim, no
seculo xvi, já se não sabia a razão das vogaes do
bradas conservadas na ortographia antiga; Fernão de
Oliveira, diz que eram para fazerem sentir a vogal
accentuada: «e faz que muitos em logar d’estas vo
gaes grandes (accentuadas) escrevem duas, como quer
que a voz não seja mais que huma...» ( p. 20.) Por
.

ex. vêer, conserva os dois e e , porque na derivação


phonetica do latim videre, apenas se deu a queda da
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 195

consoante medial; a vogal muda desappareceu mais


tarde. Pela explicação de Fernão d'Oliveira , conhece-se
que as vogaes mudas de derivação latina tinham caído.
As alterações phonicas que se deram na lingua portu
gueza no seculo XVI , correspondem as duas correntes ,
a popular, que tende a desviar-se do typo latino, o
que de vez em quando se immobilisa no archaismo, e
a erudita, que aproxima a pronuncia do typo latino
artificial e inorganicamente, como se vê em trauto ,
auto, substituidos no seculo XVI por tracto, apto e acto.
O numero d'estes factos, como observa A. Coelho, é con
sideravel o « constitue uma das differenças mais impor
tantes entre o portuguez medieval e o portuguez clas
sico, o portuguez a partir dos grammaticos, Gil Vicen
te, Fernão de Oliveira, Barros, isto é, depois do pri
meiro quartel do seculo XVI. ) (1) Entre estes factos
mais capitaes nota-se a queda do d medial nas segun
das pessoas do plural; ex. digades, digaes ;faredes,
fareis ; sodes, sois. Fernão de Oliveira nota a mudança
da primeira pessoa do modo indicativo do verbo ser,
que no seculo xv se dizia som, e que elle propõe que
seja definitivamente sê : «o verbo substantivo o qual
huns pronunciam em om , como som , e outros em ou,
como sou ; e outro em ão, como são, tambem outros que
eu mais favoreço em o pequeno, (breve) como so . Do
parecer da primeira pronunciação com o, e m, que diz
som , é o mui nobre Johã de Barros, e a razão que dá
por si he esta, que de som , mais perto vem a formação
do seu plural, o qual diz somos ; comtudo sendo eu
moço pequeno , fui criado em S. Domingos d'Evora ,
onde faziam zombaria de mi os da terra, porque o eu
assy pronunciava, segundo que o aprendera na Beira .” )

Bemse vê que a pronuncia som , era um archaismo dia


lectal da Beira, e que só por um pedantismo gramma
(1) Questões da lingua portugueza, p. 7 .
196 CAPITULO VIII

tical é que João de Barros o queria impôr. Mas as lin


guas tem a sua vitalidade propria, que ninguem sub
juga ; é como um d'estes orgãos que está fóra da acção
da vontade.
2.° Alterações morphicus.-- Alguns suffixos thema
ticos decaíram de uso, como a fórma mento, tão pecu
liar aos substantivos do seculo xv ; Fernão d'Oliveira
notou este facto : cos quaes velhos tambem foram ami
gos de pronunciar hunscertos nomes verbaes em mento,
como comprimento, afeiçoamento, e outros que já agora
não usamos.» (p. 99.) Por effeito da imitação latina dos
eruditos, o suffixo mente dos adverbios tornou -se mais
raro no seu emprego : « e não todos os que sinificam cali
dade acabam em mente, porque já agora não diremos
prestemente, como disseram os velhos, nem raramente .)
>

(p. 98.) A fórma mais usual entre os eruditos quinhen


tistas foi presto, raro. Os antigos substantivos em om ,
passaram para a forma ão, complicando assim a for
mação dos pluraes : « se olharmos ao singular antigo
que já tiveram, não mudam tanto como agora nos pa
rece, perquo estes nomes todos os que se acabam em ão
ditongo, acabaram -se em om , como licom , podom , me
lom , e accrescentando um eos, formavam o plural li
ções, podões e melões, como ainda agora fazem ; e ou
tro tanto podemos affirmar dos que fazem o plural em
ães, comopães, cães, dos quaes antigamente era o seu
singular pam , cam, cujo testemunho ainda agora dá
Antre Douro e Minho .» (p . 108 ). A alteração da fór
ma do infinito poer (ponere) em pôr é notada por Fer
não d'Oliveira : « este verbo ponho, pões, faz oseu infi
nitivo em or , dizendo pôr, o qualtodavia já fez poer ,
e ainda assim ouvimos a alguns velhos: etc.» (p . 114.)
Os participios dos verbos da segunda conjugação que
eram formadas em udo, como vemos nos Cancioneiros
e nas Ordenações Affonsinas, passam a fixar-seno typo
em ido, como estabeleçudo, recebudo, em estabelecido,
>
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 197

recebido. Alguns participios conservaram a antiga fór


ma; sobretudo pela immobilidade da tradição juridica,
em teudo ee manteudo, que no sentido vulgar receberam
a forma de tido өeo mantido. Esta tendencia para os par
ticipios em ido já existia desde o seculo XIII, como
notou Coelho, (1) mas o seculo xvi é que a fixou na
regularidade.
3.° Alterações syntacticas.-- As alterações syncta
ticas de uma lingua não são tão faceis de dar-se como
as alterações phonicas ou morphologicas, posto que re
sultem d'estas, como se vê com o phenomeno do des
apparecimento dos casos; o organismo de uma lingua
uma vez constituido mantêm -se, embora o vocabulario
se renove completamente e a sua morphologia varie.
Por outro lado a construcção synctatica está sujeit
aos modos peculiares de cada individuo, isto é, ao seu
estylo, á sua affectação ou imitação. Importa distin
guir estes dois feitos. No seculo Xvi, pode-se dizer,
que, a lingua não soffreu alteração synctatica, mas
conservando o mesmo systema de construcção variou-se
profundamente o estylo. Foi n'esta parte que assentou
a obra dos quinhentistas, e por isso foi dado a um in
dividuo só, como Camões, simplificando esse estylo, tor
nal-o o typo mais completo da lingua portugueza. Adol
pho Coelho nota algumas alterações syntacticas, como
o verbo começar, seguido das preposições a , de, ou
mesmo sem preposição; (2 ) mas esta incerteza de con
strucção explica-sepela influencia individual do estylo
de cada escriptor. So no seculo XVI se não deram alte
rações syntacticas organicas, pão foi por falta de ten
tativas dos eruditos ; Fernão de Oliveira accusa os
grammaticos : « dando noticia dos casos a seus princi
piantes, o quam mal o elles entendem se mostra no

( 1) Questões da Lingua Portugueza, p. 72.


( 2) Ibid .., p. 74.
198 CAPITULO VIII

pouco proveito que lhes com isso fazem , e mais lhes


parecem que podem ensinar a falar com cerimonias
mudas. » (p. 101.) João de Barros commetteu este erro
na sua Grammatica; e os esforços para escreverem
versos em latim podendo ser lidos simultaneamente nas
duas linguas, só mostram o desvairamento erudito .
Na época em que Fernào de Oliveira quiz consti
tuir a nossa disciplina grammatical, havia ainda pou
cos livros publicados ; elle precisava de auctoridades
escriptas, e muitas vezes teve de abonar-se com o uso
oral : « n'este vocabulo convem a saber, ao qual pode
nios dividir e dizer como vem a saber. Porque assi o
ouvi pronunciar poucos dias ha no pulpito ao muito re
verendo padre mestre Balthazar, da Ordem do Carmo,
cuja lingua em não tenho em pouco antre os portugue
zes. » (p. 53.) Não foi feliz a ideia. Quanto ao uso de
escrever e pronunciar até ou té, abona -se tambem com
auctoridades oraes : « Antre os quaes eu contarei trez
(

não de pouco respeito na nossa lingua : antes se hade


fazer muita conta do costume de seu fallar, e são es
tes : Garcia de Resende, em cujas obras eu li no Can
cioneiro portuguez que elle ajuntou e ajudou. E Joam
de Barros, ao qualeu vi affirmar que isto lheparecia
bem; e o mestre Balthazar, com o qual falando lhe ouvi
assi pronunciar este adverbio, que digo, sem a no co
meço ; e comtudo a mi me parece o contrairo ; e ao con
trairo o uso dando-lhe a no começo, assim como o da
mos a muitas dicções, segundo o que fica dito. » ( p. 77.)
Tambem cita a auctoridade de dois poetas do Can
cioneiro geral, Jorge da Silveira ( p. 107) e Nuno Pe
reira (p. 108.) para a formação de certos pluraes. Fer
não d’Oliveirabem conhecia que ainda era cedo para
organisar a syntaxe portugueza, ee é por isso que diz :
« N'esta derradeira parte, que é da constituição ou com
posição da lingua não dizemos mais, porque temos co
meçada uma obra em que particularmente e com mais
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 199

cumprimento falamos d'ella. » Esta obra não chegou a


ap parecer,> ou talvez nem foi escripta.
21

A Grammatica de João de Barros 1539


3

O insigne historiador das conquistas da Asia , tam


bem compoz uma Grammatica, que elle julgava a pri
meira escripta na lingua portugueza; exemplificando
o uso do nome proprio desacompanhado de artigo, diz:
« Joam de Barros foi o primeiro que poz a nossa lin
guagem em Arte, e a memoria de Antonio seu filho, que
a levou ao princepe nosso senhor, não será esquecida. »
Como se sabe pelo proprio João de Barros e por Se
verim de Faria, esta Grammatica foi escripta para
ser ensinado por ella o principe Dom Philippe, que en
tão tinha por mestre : « O pregador Frei João Soares. E
logo perguntei porque o principiava; por causa do tra
balhoque levou em a composição da grammatica da
nossa linguagem que lhe tem deregida.»(1) Esta Gram
matica foi escripta por 1538, e publicada em 1539 pela
anciedade em que estava o livreiro de tirar lucro da
publicação, como o proprio João de Barros confessa.
Ora a Grammatica de Fernão de Oliveira já estava
escripta na volta da guerra de Tunis . Na dedicatoria
ao principe D. Philippe, diz Barros : « Qual será logo
a linguagem que n'esta terra e delicada edade mais
natural e obediente vos deve ser, senam a vossa por
tugueza, de que Deus vos fez princepe o rey em es
perança ... Com zelo de apprender a qual lingua, qua
tro dos princepes d'este povo veeram este anno; (1538)
por mais sem pejo dos empedimentos da patria cá
n'este reino a pudessem melhor praticar... Aos quaes
el-rei vosso padre como zelador da fé, mandou reco
(1) Compilação de varias obras, p. 207.
200 CAPITULO VIII

lher na casa de Santo Eloy d'esta cidade, pera ai


aprenderem com os outros Ethyopas do Congo...)
A Grammatica de João de Barros vem confundida
com um cathecismo catholico, e moralisada á maneira
da edade media, comparando as formas linguisticas
com o jogo do xadrez ; com o seu livro começou o ce
lebre alphabeto por arte memorativa , com as pequenas
vinhetas de A arvore, B bésta , que os jesuitas ado
ptaram ainda n'esse seculo para a sua Cartilha do Pa
dre Ignacio de Azevedo. João de Barros, cae n'esse
erro de que falla Fernão de Oliveira, de explicar a
natureza dos casos aos que aprendiam portuguez; mas
teve a grande superioridade de conhecer a utilidade
da comparação do italiano, do francez e do hespanhol,
sem comtudo o ter feito. São poucas as observações
quese podem tirar da sua Grammatica e do Dialogo
em louvor da nossa linguagem , porque a monomania
da erudição levava-o a conformar artificialmente o
portuguez com o latim .
Quanto ao archaismo, cita poucos factos de persi
stencia : «E apraz, jaço, carecem de participio om boa
linguagem ; porque os rusticos o0 formam muitas vezes . »
(p. 139.) Mas João de Barros era a favor dos archais
mos : « Não somente os que achamos por escripturas an
tigas, mas muitos que se usam Antre Douro e Minho,
conservador da semente portugueza : os quaes alguns
indoutos desprezam por não saberem a raiz d'onde na
cem . » (p . 225.) Com o neologismo não é este gramma
tico tão complacente por causa do purismo classico;
elle indica -nos alguns neologismos resultantes da acti
vidade social : «mas agora em nossos tempos com ajuda
da impressão, deu -se tanto a gente castelhana o fran
ceza a traducções latinas, usurpando vocabulos, que os
foz mais elegantes do que foram ora ha cincoenta an
nos. Este exercicio, se o nós usaramos, já tiveramos
conquistada a lingua latina, como temos Africa e Asia ;
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 201

á conquista das quaes nos mais démos que ás traduc


ções latinas. E o signal d'esta verdade, é que não so
mente temos victoria d'estas partes, mas ainda toma
mos muitos vocabulos; como podemos ver em todoslos
que começam em al e em sa, e os que acabam em % ,
os quaes são mouriscos. E agora da conquista da Asia
tomamos chatinar, por mercadejar; beniaga, por mer
cadoria; lascarim , por homem de guerra ; e outros vo
cabulos que são tão naturaes na bocca dos homens que
n'aquellas partes andaram , como o seu proprio portu
guez . » (p. 224.)
Mas com a sua preoccupação de rhetorico, João de
fi
Barros não vê nas alterações phonicas, mais do que .
guras, paragoges, barbarismos. Esse resto de galle
guismo , aristocratico nos Cancioneiros do seculo xiv,
mas popular ainda no seculo XVI, considerava elle como
a figura antithese : « como quando dizemos dixe, por
disse. A qual figura é acerca de nós mui usada, prin
cipalmente n'esta letra x , que tomamos da pronuncia
ção mourisca, ainda que alguns digam que devemos
dizer dixe, porque nopreterito latino este verbo dico,
faz disi.» (p. 165.) Aqui a erudição latina falsea- lhe
o criterio ; no tempo em que escrevia ainda se não ti
nha descoberto na Vaticana o Cancioneiro de D. Di
niz, aonde estes galleguismos são frequentes. Barros
chama paragoge esse outro facto natural da phonetica
popular: « como se faz nos rimances antigos, quo por
fazerem consoante diziam - Os que me soē guardare
por guardar.» (p. 163.) Porém sobre a alteração mor
phica proveniente dos neologismos, apresenta Barros
uma concepção justa ; diz elle do emprego do infini
tivo : qporque os meninos quando começam formar nos
sas palavras, primeiro conhecem a elle, que algum ou
tro modo, o por elle os ensinam suas madres. Os bar
baros, que vem a nosso serviço d'elle começam como
em primeiro elemento de formação verbal.» (p. 141.)
202 CAPITULO VIII

Por fim chama barbarismo ás alterações phonicas e


morphologicas que a nossa vida historica causava na
lingua : «E em nenhuma parte da terra se commette
mais esta figura da pronunciação do que n'estes reinos,
por causa das muitas nações que trouxemos ao jugo
do nosso serviço. » ( p. 161.) João de Barros conheceu
que este era o momento historico da lingua, em que
ella ia entrar na sua disciplina grammatical, mas es
tava sob o jugo da grammatica latina, e por isso não
soube observar as tendencias d'ella nem tão pouco re
gularisal-a. Como as alterações syntacticas são de mero
estylo entre os escriptores, não é sem interesse que se
póde comparar a traducção poetica do Juste Judex ,
por el-rei Dom Duarte, com a traducção que João de
Barros fez em prosa, levando ás vezes a redacção de
el-rei Dom Duarte vantagem á de Barros pela sua
simplicidade comparativamente moderna. (1)
(1) « Justo juiz Jesu Christo rey dos reys e senhor, que com
o padre reinas sempre e com o spirito santo, tem por bem de
receber agora os meus rogos piadosamente: tu dos ceos des
cendeste em o ventre da virgem , donde tomando verdadeira
carne visitaste o mundo, remindo tua feitura por teu proprio
sangue . Peço - te Deos meu, que a tua gloriosa paixam mede
fenda sempre de todo perigo, porque persevere sempre em o teu
serviço. Seja sempre commigo a tua virtude, saude e defensam ;
e

porque o encontro dos imigos não torve o meu coração, nem o


meu corpo seja danado por laço enganoso. Com a tua dextra
forte com que abriste as portas infernaes, quebranta os meus
imigos e as suas espreitanças com as quaes querem occupar as
carreiras do meu coraçam . Ouve, Christo, a mi que brado mi
seravel rogando : e a mi que busco piedade manda consolaçam
porque se nam levantem os imigos em doesto meu. Sejam de
stroidos e enfraqueçam os que me querem perder; o laço da en
veja seja a elles em queda, Jesu bom e piedoso, nam me quei
ras desampar : tu sejas meu escudo guardador e defendedor,
porque resista aos que de mi sendo tu governador; e depois
d'elles vencidos me alegre longamente. Envia das altas sedes o
santo consolador, que alumia o meu conselho em o teu resplen
dor, etc.» A traducção de elrei Dom Duarte pode vêr-se nocap .
IV supr. ( Compil. de Obras varias, p. 55. )
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 203

Influencia dos poetas, de Gil Vicente a Camões

No desenvolvimento de uma lingua na forma es


cripta cabe aos poetas uma acção predominante, por
que são elles que submettem a lingua a essa variedade
infinda do construcções, só com o fim material de preên
cherem a harmonia do metro, e de vencerem a diffi
culdade da rima. Pela dependencia em que está a
construcção grammatical das exigencias do metro e da
rima, se vê a grande verdade do pensamento de Jacob
Grimm, que as alterações syntacticas pertencem nãoá
grammatica mas ao estylo. Os dois poetas do seculo
XVI que mais representam o espirito portuguez, Gil
Vicente, que protesta pela liberdade de consciencia, e
Camões, que exprime a consciencia da nacionalidade,
são tambem os que melhor accentuam o estado da lin
gua portugueza. Gil Vicente é duas vezes citado com
auctoridade de grammatico por Fernão de Oliveira e
por Joãode Barros; o grande comico era do alto Mi
nho, aonde estava em vigor entre o povo o portuguez
archaico ; vivendo entre Lisboa, Santarem e Coimbra,
os typos dos seus Autos são quasi sempre tirados da
Beira, o centro mais puro da lingua e da tradição por
tugueza. Gil Vicente, escreve muitas vezes em hespa
nhol, por isso que inventava os seus Autos para a
côrte,mas quem quizer fazer uma ideia clara do es
tado da lingua popular não acha nenhum documento
tão vasto etão intencional como as suas obras. O sa
micas, já considerado archaico por Fernão de Oliveira ,
é frequentissimo nos typos de Gil Vicente ; em geral
nos Āutos da escola de Gil Vicente, como os typos
são sempre tirados da classe popular, a linguagem tem
sempre esta importancia historica. Os poetas lyricos,
ao descreverem as suas emoções pessoaes não podiam
servir- se da linguagem do povo sem cairem n'um des
204 CAPITULO VIII

engraçado prosaismo ; nem mesmo nas Eclogas pasto


risdeixaram de empregar uma certa expressão affe
ctada, em contradição com as situações e interesses
rusticos quó queriam descrever. Mas o contraste da
lingua não escripta ou fallada, com a expressão artifi
cial dos eruditos era tal, que mesmo nos poetas lyri
cos se descobre um certo numero de tentativas histo
ricas de imitação d'essa linguagem . Os Sonetos XXXIV
e xxxv do livro segundo dos Poemas luzitanos do
Dr. Antonio Ferreira , são,, como o disse seu filho,
escriptos: «na linguagem que se costumava neste Reyno,
no tempo de elrei D. Diniz... » Em Camões se encon
tra tambem um artificio egual, n'osses dois Sonetos es
criptos em lingua gallega , o que já foram attribuidos
a Vasco Piresde Camões. O poemeto á perda de Ar
zilla, os versos que andam em nome de Ayres Telles,
os versos em louvor de Lisboa, pelo Infante D. Po.
dro, pertencem a esta corrente de imitação archaica,
estudada no processo da disciplina grammatical do se
culo xvi. Oculto da lingua, antes de cair n'esse pu
rismo litterario, a que se chama o quinhentismo, teve
uma acção benefica ; propoz que se escrevesse na lingua
portugueza, abandonando a monomania de poetar em
castelhano e a de escrever em latina . E' certo que nas
obras de Ferreira só se acha a lingua portugueza em
pregada exclusivamente; elle dizia : Fale -se , escreva -se,
cante -se, e termina : « Ah, Ferreira ! dirão da lingua
amigo.» Mas todas as questões não comprehendidas tor
nam-se sempre mesquinhas; o estudo do portuguez re
sumiu -se em duas questões estereis o insensatas: pri
meiro, no emprego dos archaismos ou neologismos.
N'esta parte Camões foi o que procedeu com esse bom
senso do genio ; aonde o colorido poetico precisava de
uma palavra de formação erudita formou -a com a ma
xima liberdade, aonde o sentimento patrio precisou de
um velho vocabulo, como mouro por morro, fruito por
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 205

fructo, ou mesmo o uso do a expletivo, não se emba


raçou com o sobrecenho dos cultos. Os epigrammas de
Caminha e uma censura de Bernardos caíram ; e foi
por essa intuição do genio que Camões conseguiu fixar
à lingua portugueza em uma forma, que não sendo
completamente a linguagem popular nem a erudita,
povo e eruditos entendem -se e tem-se aproximado con
stantemente pela tendencia para esse centro determi
nado por Camões. A segunda questão em que se gas
tou uma preciosa actividade, foi em convencer o vulgo,
de que alingua portugueza era capaz de servir como
o latim ou o hespanhol para as obras do pensamento.
Esta these inutil, fez com que João de Barros es
crevesse um Dialogo em louvor da lingua portugueza ;
que Fernão Lopes do Castanheda se justifique com Sá
de Miranda , para escrever a Chronica do desco
brimento da India, em portuguez; Fernão Alvares
d'Oriente, em uma das prosas da Luzitania transfor
mada defende a lingua portugueza. Foi n’este momento
que Duarte Nunes de Leão escreveu a sua Orthogra
phia da lingua portugueza em 1576 ; mas a falsa di
recção continuou particularmente no seculo XVII, com
Francisco Rodrigues Lobo na Côrte na Aldea , e com
Manoel Severim de Faria . Mas antes de terminar este
quadro do trabalho da disciplina grammatical no se
culo XVI, resta fallar nas tentativas de Nunes de Leão .
Orthographia da lingua portugueza , 1576.
- Origem da lingua portugueza , 1606.

Quando já estavam publicados os Lusiadas, e Je


ronymo Cardoso, o severo pedagogo de todos os gran
des eruditos da ultima metade do seculo xvi fazia uma
primeira tentativa do Diccionario portuguez misturado
ainda com o latim, já se estava mais no caso de fallar
sobre a lingua portugueza scientificamente ; o licen
206 CAPITULO VIII

ciado Duarte Nunos de Leão, pelo trabalho que tivera


de compilar em nova fórma as velhas Chronicas do
Reino, e o colligir a antiga Legislação, offerecia garan
tias de fallar com segurança sobre a lingua portu
gueza ; mas, assim como os verdadeiros methodos le
vam o espirito mediano ás grandes descobertas scien
tificas, a falsa direcção annulla fatalmente os resulta
dos das completas investigações. Foi o que se deu com
Duarte Nunes Leão . Na Orthographia portugueza to
cou muito poucos factos vitaes da lingua; apenas da ,
alteração phonetica do v pelo b, diz: «O« Ó que muito
mais se vênos gallegos, e em alguns portuguezes d'en
tre Douro e Minho, que por vós e vosso, dizem bos e
bosso, e por vida , dizem bida .» ( p. 4 ). Do phenomeno
da mudança do 1 por r , diz : « que os vulgares erra
damente screvem por ”, dizendo froles e creligo, per
>

vertendo as letras .» (p. 11.) E explica a mudança de


om do seculo xv em am, pela : « analogia e respeito
que a lingua portugueza vae tendo com a castelhana;
que sempre ondo a castellana diz an ou on, que é sua
particular terminação, responde a portugueza com
aquella pronunciação de ão, que succede em lugar
da antiga terminação dos portuguezes de om , que pu
nham em logar de an ou on dos castelhanos. À qual
ainda agoraguardam alguns homens d'entre Douro e
Minho, e os gallegos, que dizem fizerom , amarom, ca
pitom , cidadom, tabellion , apellaçom .) ( p. 29.) Nu
nes de Leão não conheceu o interesse scientifico d'es
tas observações sobre a lingua do povo ou fallada, e
derrama-se em explanações segundo o espirito de Mar
ciano Capella e dos velhos grammaticos da idade mé
dia. A lista que tem por titulo Reformação de algu
mas palavras que a gente vulgar usa e escreve mal,
(A. 69) que Nunes de Leão publica como mera obser
vação orthographica, é que determina um certo nu
mero de alterações que a lingua soffreu no seculo xvI ;
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 207

como por exemplo: a tendencia do a expletivo popular


extincta pelos eruditos; assim Nunes de Leão apre
senta como incorrectas as palavras correntes no seu
tempo :
Acipreste por Cypreste
Acupar > Occupar
Adaião Deão
Agabar » Gabar
Alanterna Lanterna
Acarcovado Corcovado
Alicornio >> Unicornio
Alifante > Elefante
Antre >> Entre
>>
Apoupar Poupar
Avangelho Evangelho
Ayoar >> Voar .

Nota tambem a necessidade de estabelecer uma or


thographia por causa das homonymias, ou amphibio
logias . (f . 71 a 74.) D'este livro diz o proprio Nunes
de Leão : « compuz em minha verde edade um livro
da Orthographia da Lingua portugueza , em que re
duzi a arte e preceptos o que nunca teve arto nem
concerto, o qual de todos os homens doctos foi bem re
cebido, e perque se muito melhorou a escriptura , que
entre nós andava mui depravava .» (1) A causa d'esta
falta de orthographia deve attribuir- se em parte á falta
de livros impressos, porque a melhor parte das obras
dos quinhentistas só foi impressa na ultima metade do
seculo xvi ; e, em segundo logar, á grande imperfeição
da imprensa, que usava os caracteres gothicos, quando
os aldinos e elzevires os substituiram por mais legi
veis. Duarte Nunes de Leão escrevia já em 1606 uma
dissertação sobre a Origem da Lingua portugueza ,
(1) Origem da Lingua portugueza, dedic.
208 CAPITULO VIII

que dedicava ao intruso Filippe de Portugal ; se a


lingua é a expressão da nacionalidade, como a com
prehenderia este compilador, que bajulava o monar
cha invasor ? Diz elle referindo -se ao Demonio do
Meio -dia : « porque desde que a este reino voo, até
que Deus o levou ao céo, nunqua me deixou estar
ocioso, mas o fim de hum serviço era começo de outro ...
E agora por refocillar do trabalho d'outros estudos
mais pesados tentei fazer este tratado da Origem da
mesma lingua, etc. ) Nunes de Leão estava intrigado
na Côrte de Castella, e para despertar a lembrança de
Filippe III, é que lhe dedicou o seu opusculo. Tudo
isto mostra que trabalhou, mas não para servir a
sciencia . A parte geral que acompanha sempre estes
trabalhos, é a pura tradição dos grammaticos da edade
media, que ia desapparecendo diante dos grandes hu
manistas.
Nunes de Leão propõe a origem da lingua portu
gueza n'estes termos « que a lingua latina se fallou
pura como em Roma... até á vinda dos Vandalos, Ala
nos, Godos e Suevos, e outros barbaros que aos Ro
manos succederam , e corromperam a lingua Latina
com a sua e a misturaram de muitos vocabulos assi
seus, como de outras nações barbaras que comsigo
trouxeram , de que se veiu fazer a lingua que hoje fal
lamos...» (p. 38.) O pouco de verdade que ha n'esta
.

affirmação, está complicado sob uma imperfeita collo


cação do problema. As trez simples leis da formação
das linguas romanicas, não foram previstas, mas Nu
> 2

nes de Leão explica já a corrupçãopor terminação de


palavras, por accrescentamento de letras ou syllabas,
por troca ou transmudação de umas letras por outras,
por mudança de genero, por mudança de numero e do
significação . Mas, quanto clara e simples não era a
observação da persistencia da vogal accentuada ! Como
já se formavam Diccionarios portuguezes, como os de
A DISCIPLINA GRAMMATICAL NO SECULO XVI 209

Jeronymo Cardoso e de Agostinho Barbosa, Nunes de


Leão formou listas de palavras archaicas no seu tempo ,
palavras de origem germanica, de origem arabe, de
origem franceza, que nos mostram que estava a uma
linha da verdade , se lhe fosse possivel prevêr a grande
luz do methodo comparativo. O trabalho sobre a Ori
gem da linguaportugueza de Nunes de Leão representa
dignamente o estado da erudição do ultimo quartel do
seculo xvi ; com relação à philologia-- divagações er
radas em volta daverdade, e por isso mesmo compli
cando -a. Mas de Nunes de Leão até á direcção rece
bida de Frederic Diez, nada mais se avançou no es
tudo scientifico do portuguez.

14
CAPITULO IX
Existencia de um elemento tradicional e popular
na Litteratura

Separação entre osescriptores e o povo. -Restosdos Goliar


dos da edade média em Portugal, no seculo xv . Os escripto
res hespanhoes do seculo xvi aproveitam -se do elemento tra
dicional.-- Vestigios dos Romances populares no seculo xvi
achados nos escriptores mais nacionaes : Gil Vicente, Jorge
Ferreira, Antonio Prestes, Camões, e Diogo de Couto. Os
Indices Expurgatorios condemnam a poesia popular. – Fórmas
do lyrismo popular portuguez:Orações, Ensalmos, Salvas,
Clamores, Loas, Prophecias , Vilhancicos, Enseladas, Chaco
tas, Xacaras, Soláos e Baylhes, Cantos Farsis.— Elemento
tradicional no theatro ; fórmas hieraticas prohibidas pelas
Constituições dos Bispados. - Fórmas populares : a Dansa
-

dos Espingardeiros. - Fórmas aristocraticas: os Mômos e


Entremezes da côrte de D. Affonso V e D. João Ir. Como Gil
Vicente se aproveita de todos estes elementos tradicionaes
para a creação do theatro portuguez.

Separação entre os escriptores e o povo


A contar do seculo xvi dá-se na litteratura portu
gueza um phenomeno particular e interessante, o da
separação progressiva que se estabelece entre o escri
ptor e o povo . Estas duas entidades não se conhe
cem, nem communicam os seus sentimentos ; o escri
ptor não procura a tradição para servir-se do persti
gio d'essa forma e generalisar assim um sentido novo ;
o povo vegeta sem vida moral,> sem educação, nem al
tura, porque não acha quem o ensine. O resultado
d'este phenomeno foi a decadencia da litteratura, as
signalada pelas academias, aonde se discutiam em verso
as questões mais frivolas e insensatas. A tradição tem
o poder de imprimir ás litteraturas a seriedade e um
interesse vital nas suas creações. Apezar de todo o re
gimen da erudição classica do seculo xv, ainda havia
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 211

um intermedio entre o povo e o escriptor ; nas litte


raturas da edade média esse antagonismo que existe
entre o clericus e o laicus, adoça -se por meio de uma
classe de poetas, que tem a educação dos escholares,
mas que vive em contacto com as camadas infimas da
sociedade; elles escrevem em latim com a ingenuidade
do povo. Um dos typos litterarios mais notaveis d'esta
classe a que se chamava os Goliardos, é Gaultier
Maps. Sabemos da existencia d'esta classe em Portu
gal pelas Ordenações Affonsinas: « Todo o clerigo jo
gral, que tem por officio tanger e per elle suporta a
mayor parte de sua vida, ou publicamente tanger por
preço que lhe dem em algumas festas, que não são
principalmente ecclesiasticas ... o tergeitador, e qual
quer outro que per dinheiro faz ajuntamento do povo ;
e o goliardo, que ha em costume almoçar, jantar, me
rendar ou beber na taverna, é bem assim o bufam , 2

que por as praças da villa ou logar traz o almáreo ou


arqueta ao colo ... ) ( 1) No Cancioneiro geral, vemos
ainda uma outra allusão a esta classe :
Estudantes pregadores
metem santas Escripturas
em sermões
dirivados em amores,
fazem de falsas feguras
tentações. (2)

Em Hespanha chamava- se a esta classe intermedia


aos eruditos e ao povo, os Sopistas, e Estudantes da
tuna , a que allude o Arcipreste de Hita :
Cantares fiz algunos...
... para escholares que andan nocherniegos
(st. 1489.)
(1) Liv. m , tit. 15, $ 18.
( 2 ) Fl. 25, col. 1.2 - Sá de Miranda, Obr. Carta its st. 33.
*
212 CAPITULO IX

Antonio Ribeiro Chiado, na Pratica de outo Figu


ras, ainda diz : « No beber sou um Golias. » Esta classe
- diminutamente representada na litteratura por
acha-se
tugueza, sendo o ultimo que soube conciliar o espirito
popular com a erudição, o auctor da Macarronea . Ao
passo que os escriptores do seculo xvi se vão apar
tando da communicação com o povo, assim se tornam
gradualmente mais mediocres; em Hespanha é a con
tar do seculo xvi que as tradições e romances popula
res se vivificam pela imprensa ; fazem -se as collecções
de Sevilha e de Anvers, e é então que começa a ele
var-se essa pleiada inexcedivel dos grandes genios dra
maticos, Lope de Vega, Cervantes, Calderon e Tirso
de Molina; os grandes novellistas, como Diego de Men
doza, Mateo Alleman, e o auctor do Diabo cocho; os
grandes lyricos, como Lope, Leon e Herrera . Pode-se
dizer, que a litteratura hespanhola entrou no seu pe
riodo de fecundidade e grandeza depois que se resta
beleceu a harmonia entre os escriptores e o povo , que
o regimen da pesada erudição do seculo xv se quebrou.
Mas a separação que em Portugal se estabelecia
entre o escriptor e o povo, não era motivada pela falta
de tradições. Vamos vêr a sua vitalidade pelo unico
meio que nos resta, que são as differentes allusões dos
principaes escriptores aos cantos do povo . Importa
observar, que a superioridade dos escriptores quinhen
tistas determina -se de um modo palpavel segundo o
maior ou menor conhecimento que tiveram d'esses can
tos tradicionaes. Tal é o0 facto que se deduz d'esta sim
ples relação.
Allusões dos escriptores aos Romances
populares

Gil Vicente. Este poeta, cujo espirito está á al


tura dos grandes genios encyclopedicos do seculo xv,
1
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 213

o que melhor comprehendeu o sentimento nacionale


o que fundou o nosso theatro, isto é, a forma littera
ria mais intimamente ligada ao desenvolvimento da
sociedado civil, este escriptor é, por isso mesmo, o
que apresenta mais abundantes vestigios da tradição
portugueza. Na Comedia de Rubena , traz uma longa
enumeração das cantigas populares, anteriores aa
1521 :

FEITICEIRA: E que cantigas cantaes ?


AMA: A = Creancinha despida
E tambem Val -me Lianor
E De pequena mataes, Amor.
E - Em Paris está Dona Alda .
Di-me tu, señora, di.
Vamo-nos, dijo mi tio.
E Llevadme por el rio .
E tambem Čalbi ora bi.
E - Llevanterne un dia .
Lunes de Mañana.
E- Muliana, Muliana.
E Não renhaes,alegria .
E outras muitas d'estas taes, etc.

São numerosos os romances populares citados por


Gil Vicente, o que basta para vêrmos como a tradi
ção inspira o seu bello lyrismo e a sua graça inimita
vel . Basta percorrer os seus Autos para aí encontrar
as seguintes referencias : Los hijos de Dona Sancha,
(I , 227) Nunca fue pena mayor, ( II, 410) Eu me sam
dona Giralda, (II, 27) Mål me quieren en Castilla ,
(III , 143) La bella mal maridada, (11, 333) D'onde
estás que te no veo, (I1 , 329) Guay Valencia, guay Va
7

lencia, (III, 270) En el mez era de Abril, (II, 249) Yo


me estaba em Coimbra. (111, 212) No seculo xvi a lin
gua hespanhola tornara-se para nós uma lingua poetica
convencional, como o portuguez ou o gallego o fôra no
214 CAPITULO IX

seculo XIV para a côrte do Castella; cra por isso que


Gil Vicente dizia :

Porque quem quizer fingir,


Na castelhana linguagem
Achará quanto pedir,
( 111, 449.)

Jorge Ferreira de Vasconcellos. - As obras d'este


escriptor encerram as locuções mais ricas e pittores
cas da lingua portugueza, o o maior thesouro de ane
xins ou dictados do vulgo. A esta importancia litte
raria corresponde o seu amor pela tradição; elle pro
testa pela sua integridade: «Não ha entre nós quem per
doe a uma trova portugueza, que muytas vezes é de
vantagem das castelhanas, que se têm aforado com
nosco e tomado posse do nosso ouvido. » (1 ) Nas suas
comedias abundam as referencias aos romances tradi
cionaes ; na comedia Eufrosina (p. 12) cita : Por aquel
postigo viejo ; Buen Conde Fernam Gonçalves; Conde
Claros ; (p . 19) na comedia Ulyssipo, cita o celebre
romance tão glosado no seculo xvi, Retrahida esta la
Infanta , (p . 256) Para que paristes madre ; ( p . 260)
e na Aulegraphia, o romancePregonadas son las guer
ras. Jorge Ferreira não queria que a tradição se per
desse totalmente pelo desprezo dos eruditos, e falando
de um romance cantado à viola de arco, diz : « n'este
o por este modo usaram os passados celebrar seus he
roicos feitos, porque a gloriosa memoria d'elles assi
viesse até nossos tempos é se conservasse, do que tam
bem em Espanha se usou muito, e usar-seagora para
estimulo de imitação não fora máo. » ( 2) Esta confis
são de Jorge Ferreira é importantissima, porque nos
mostra que elle conhecia a separação que em Portu

(1) Aulegraphia, act. 11, sc. 9.


Memorial dos Cavall, da seg. Tavola redonda, p. 10.
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 215

gal se dava entre o escriptor e o povo , ao contrario


do que ia succedendo em Hespanha. Foi esta compre
hensão que lhe deu a sua superioridade.
Antonio Prestes.- Quasi todos os escriptores dra
maticos, sobretudo os que seguiam a eschola de Gil
Vicente, tiveram uma grande intuição do genio po
pular. Nos Autos de Antonio Prestes abundam tam
bem as referencias aos romances antigos ; no Auto da
Ave Maria, cita : Moro Alcalde, moro Alcaide; Yo le
daria bel Conde; Sereis vós meu Durandarte; no Auto
do Procurador, cita : Vamo-nos, dijo mi tio ; Ibanse las
casadas. No Auto do Desembargador, cita o Dom Duar
dos, o Conde Claros; Falso malo enganador, e Guay Va
lencia. No Auto da Ciosa, o Miran ojos e a Bella
mal maridada ; e no Auto do Mouro Encantado,
cita a oração do Justo Juiz. Os outros poetas comi
cos, que andam na collecção dos Autos de Prestes,
têm o mesmo culto pela tradição. Jorge Pinto, no Auto
de Rodrigo e Mendo, cita En el mez era de Abril ; a
Bella mal maridada ; Helo, helo, por do viene ; Ribe
ras del Dauro arriba . Jeronymo Ribeiro cita : Sobre
mi vi guerra armar ; e seu irmão Antonio Ribeiro
Chiado , no Auto das Regateiras, bem como Sá de Mi
randa, citam o popularissimo romance da Bella mal
maridada. Todos estes romances andavam na tradi
ção portugueza, antes de serem recolhidos em Hespa
nha, na Silva de Romances, de 1551, e no Cancionero
de Romances, de 1555. Havia um poderoso elemento tra
dicional sobre que fundar as concepções litterarias in
dividuaes; só Camões é que comprebendeu o valor
d'esta relação, quando agrupou em volta do facto his
torico dos Lusiadas todas as tradições portugue
zas .

Luiz de Camões. - Quando a escola italiana do


minava em Portugal, quando a Renascença latinista
se apossava dos estudos na reforma da Universidade
216 CAPITULO IX

de Coimbra, é que se manifesta o genio de Camões,


incerto entre a influencia erudita e a tradição popular.
Espiritos como o de Antonio Ferreira ou de Caminha
entregaram-se completamente a esse humanismo este
ril, e romperam com a tradição. Ferreira não escre
veu em sua vida um unico verso nacional de redon
dilha. Camões pela verdadeira superioridade do seu
genio , soube conciliar estas duas correntes. Depois de
Gil Vicente, é com certeza em Camões que se encon
tra o maior numero de referencias ao Romanceiro tra
dicional; nos Disparates da India , cita o Mi padre
era de Ronda; na Carta i da India, Riberas del Dauro
arriba ; Su comer las carnes crudas, e Afora, afora
Rodrigo ; e nas Cartas em redondilhas, traz : Una
adarga ate os pechos; Mirando la mar de España ;
Vi benir pendon vermejo ; La flor de la Berberia ; Ca
balleros de Alcalá ; À las armas Mouriscote; D'onde
estás que te no veo ; Y que nova me traedes ; Mira Nero
da Tarpea , etc. As suas comedias estão cheias d'estas
referencias a uma poesia profunda e vigorosa que os
eruditos não quizeram conhecer, e que se perdeu em
grande parte nas versões oraes, porque os Indices Ec
purgatorios a condemnaram como uma cousa pecca
minosa . Assim 0o Index de 1564, prohibe : « todos os ro
mances tirados ao pé da lettra do Evangelho.» O Index
de 1581 , prohibe o romance Con rabia está el Rey
David , e todos os mais tirados do Velho Testamento
ou do Novo; o Index de 1597 prohibe: Ogeri Dani
Fabulae, sem duvida a gesta de Ogier le Danois, não
falando já das diversas Orações que o povo teve de
esquecer, entre as quaes se comprehendiam as Loen
das (Legenda) e os Escemplos. O intimo amigo de Ca
mões, o judicioso chronista Diogo do Couto, traz nas
suas Decadas alguns factos que nos revelam como na
India esta poesia condemnada pela egreja estava vi
gorosa ; elle nos conta como a Dom Jorge de Mene
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 217

zes, querendo no mar dar -lhe um aviso D. Antonio de


Noronha, lhe disse :
Vamonos, dijo mi tio,
A Paris essa Ciudad...

E Dom Jorge comprehendendo que era para irem


á expedição de Surate, lhe respondeu com o mesmo
romanc Ꮎ :

No en trajes do romero ,
Porque os no conosca Galvan.

Quando D. Luiz de Attayde entrou victorioso em


Barcellor, o musico Veiga ia cantando :
Entran los Moros en Troya,
Trez e trez e quatro e quatro.

E quando o partido de Francisco Barreto insul


tava o Vice -rei Dom Constantino de Bragança, can
tava - lhe tambem debaixo das janellas:

Mira Nero da janella


La nave como se hazia .

Diogo do Couto traz tambem o fragmento de um


romance cantado pela occasião da victoria de Salsete :
Pelos campos de Salsete
Mouros mil feridos vão ;
Vae-lhe dando no alcance
O de Castro Dom João .
Vinte mil eram por todos, etc.

Sobretudo nos individuos que não tinham tido uma


educação litteraria é que o sentimento da poesia po
pular era mais vivo. De Affonso de Albuquerque, diz
218 CAPITULO 1X

João de Barros : «Era sagaz, e manhoso em seus ne


gocios, e sabia enfiar as cousas a seu proposito ; trazia
grandes Anexins de Ditos pera comprazer á gente, se
gundo os tempos e qualidades da pessoa de cada
um . ) ( 1) João de Barros considerava o perstigio da
tradição dovido unicamente á acção material do tempo :
« Pois as cantigas compostas do povo, sem cabeça, sem
pés, sem nome ou verbo que se entenda, quem cuidas
que as traz e leva da terra ? quem as faz serera tra
tadas e recebidas do commum consentimento ? O tem
po. » ( 2) João de Barros era grammatico e moralista,
e emquanto viveu sob esta influencia viu a poesia do
povo como uma incorrecção, e frivolidade. Os romances
ainda estiveram algum tempo em moda na côrte de
D. João III, por influencia da musica a que eram can
tados; a viola de arco, de uma introducção muito
recente, era o instrumento favorito d'esses cantos . Por
fim os asceticos baniram do canto esses velhos ro
mances, como vemos pela Paixão metrificada de Frei
Antonio de Portalegre. A tradição popular do seculo
XVI não ficou totalmente morta ; em 1572 foi a bata
lha naval de Lepanto, na qual a liga catholica redu
ziu para sempreo poder dos Turcos a uma importan
cia menos que secundaria. O povo reconheceu o alcance
d'esta victoria ganha por Dom João de Austria, e co
lebrou-o em numerosos romances populares, dos quaes
restam ainda um fragmento da versão continental, e
tres lições da versão insulana. Mas, nem Pedro da
Costa Perestrello, nem Jeronymo Côrte Real, conhece
ram a existencia d'esse veio aurifero da tradição, o
por isso nos seus poemas sobre Lepanto ficaram muito
aquém da mediocridade, tocaram a chateza.

(1) Decada II, lib . 10, cap. 8, ad fin.


2) Dialogo de louvor da nossa linguagem , p. 226.
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 219 .

31
Fórmas do lyrismo popular

O lyrismo tradicional differe do lyrismo individual


em que este tira o seu movimento o colorido dos pe
quenos interesses egoistas da personalidade do escri
ptor ; e o outro repete- se inconscientemente como desa
fogo em certos actos da vida para que foram inventa
dos. As Orações, as Salvas, os Ensalmos, as Lôas, as
Prophecias, os Clamores, são ainda um resto d'essas
fórmas hymnicas que correspondem a um certo estado
de vitalidade de crenças mythicas; os Vilhancicos e
Villancetes, as Enseladas, as Chacotas; as Xacarandinas
o Solaos, os Baylhos, correspondem aos differentes tra
balhos da vida civil , ao lavrador , ao marinheiro , ao
vagabundo, a todo aquelle que se sente immerso no
combate da vida.
A Oração popular é a fórma poetica que o povo
ainda conserva com certo vigor ; no Index Expurgato
rio, de 1581 , prohibe-se a Oração do Conde, talvez.
alguns dos cantos cantados sobre a sepultura do Con
destavel; a Oração de Sam Christovam e de Sam Cy
priano ainda hoje se repetem, apesar do rigor d'esse
Index ; a da Emparedada, da Imperatriz , de Sam
Leão Papa, de Santa Martinha o do Testamento de
Jesus Christo, que ainda se repetiam no fim do seculo
XV!, estão perdidas. A Oração tambem servia de me
dicina mystica, e com ella se curavam os côbros, a
azía , o fogo louro, as dôres de dentes; a Oração de
Santa Apollonia , que é como que o nó da acção na
comedia de Celestina, é repetida ainda na tradição
oral da Ilha do Sam Jorge. (1) Os Clamores, que por
uma Postura da Camara de Lisboa, de 1385, eram pro
hibidos, « que se brade sobre algum finado, » ainda se
(1) Cantos do Archipelago, p . 156 .
220 CAPITULO IX

usam no Minho, mas já sem a fórma poetica. As Sal


vas era um canto religioso, usado antes do dormir,
como se vê pelos versos de Gil Vicente :

Y luego todos digamos


La Salve antes del dormir.
( in , 321.)

.
A Náo de Amores, remata com a rubrica : «Come
çaram acantar a prosa, que commumente cantam nas
ndos á Salve, que diz :

Bom Jesus , nosso Senhor


Tem por bem de nos salvar, etc.

A esta mesma classe pertence essa outra antiphona


popular, que começa Boa gente, boa gente ! da qual Ga
rett debalde procurou os vestigios, que se acham em
Jorge Cardoso :
Boa gente, boa gente
Fazeie penitencia
Se vos quereis salvar.
Confessade e commungade,
Que este mundo é yaidade .

Senhor Jesu Christo


Misericordia com piedade. (1)
A Lôa é uma outra forma das prosas populares,
por ventura derivada das antigas laudes, quando
vulgo participava da liturgia. Berceo, no Sacrificio
de la missa, diz :
La laude es materia é voz de alegria,
Hymno que en na alma pone placentaria
(st. 43.)
(1) Agiologio lusitano, 111, 114.
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 221

A Lôa tomou um caracter dramatico , servindo de


prologo aos Autos hieraticos. Dos cantos farsis temos
alguns specimens em Gil Vicente, como o Padre Nosso,
que traz no Velho da Horta :
Pater noster creador,
Qui es in coelis poderoso ;
Sanctificetur, Senhor,
Nomen tuum vencedor
Nos ceos e terra piedoso, etc.
Na poesia popular europea do seculo XIV e XV a
farsiture teve um grande desenvolvimento. Os jesui
tas procuraram extinguir todo este lyrismo popular;
do Padre Ignacio de Azevedo, escreve Balthazar Tel
les : « e para que os meninos fugissem de musicas des
honestas, fez compôr a elle mesmo compoz algumas
canções espirituaes e cantigas devotas, que andam no
fim da Cartilha , as quaes ainda que não são as que
estimam os cultos são as que prezam os Santos, e es
tas lhes fazia tomar de cor e lhes fazia cantar de dia
e de noite... ) (1 ) Esta obra de degeneração da poesia
tradicional , mesmo antes dos Indices Expurgatorios,
começára pela condemnaçãodas Constituições episco
paes . Nas do Porto, se prohibem o cantar «chansone
tas e villancicos, nem motetes, antiphonas e hymnos,
que não pertençam ao sacrificio que se celébra, nem
emquanto se disser alguma missa, se consinta cantar
cantigas profanas, nem festas, dansas... nem clamores
petitorios de esmolas, etc. ) (2) Gil Vicente termina
muitos dos seus Autos com Vilhancicos, forma popu
lar que teve um extraordinario desenvolvimento mu
sical no seculo XVII; Vilhancico era uma especie de
(1) Chronica da Companhia , P. 11, liv. 4, cap. 49.
(2) Constituições do Bispado do Porto, Liv. II, Tit . 1,
Const. 7.
222 CAPITULO IX

colloquio cantado, que se usava nas matinas do Natal ;


era como o Noël peninsular. Cervantes falando de um
personagem do seu Don Quijote, diz : «fué grande
hombre de componer coplas, tanto que el hacia los vil
lancicos para la noche del nacimiento del Señor. » (1)
Descrevendo o casamento de Filippe II, em 1570, diz
Colmenares : « Nove meninos do côro, em trajo de pas
tores, saíram bem ataviados, do sanctuario, e canta
ram um villancico , dançando. Gil Vicente tambem
dá o nome de Vilancete, sobretudo á fórma abreviada
do vilhancico . Muitos d'estes cantos acompanhados de
dansa taes como a Enselada e a Chacota , com que
Gil Vicente termina os seus Autos, eram derivados
dos costumes arabes; entre as Cantigas citadas na
Rubena , e no Dom Duardos, cita Gil Vicente a Galbi
ora bi, que nos apparece explicada nos versos do Ar
cipreste de Hita :
Cabel e orabin, teniendo la su rota,

que era um instrumento musico ao som do qual se


cantava na aria Avante, Arabes ! No Cancioneiro de
Resende descreve -se ao doce baylho da mourisca , quo
o sentido faz perder ); a nossa legislação obrigava os
mudejares ou arabes tolerados a irem ao encontro dos
reis, nas festas publicas, com as suas dansas e jogos.
Gil Vicente foi o que mais se inspirou d'estes elemen
tos tradicionaes; por isso coube- lhe o crear a littera
tura dramatica :
A forma do Soláo, tambem era popular, postoque
a achemos citada por Bernardim Ribeiro, Så de Mi
randa, D. Manoel de Portugal e Jorge Ferreira, que
mais ou menos conheceram o lyrismo provençal d'onde
ella se derivou para a litteratura. Mas 0o solatz proven

(1) Don Quijote, P. I, cap. 12.


EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 223

çal não pertencerá a essa ordem de cantos em que os


trovadores imitaram a ingenuidade popular ? 0 Soláo,
tambem se acha em Hespanha, em versos de arte me
nor; Quevedo, que imitou este genero, diz : « Romance
de versos cortos... las antiguas Solariegas, composicio
nos de Castilla ... de los ancianos, de quien oy aun du
ran testimonios . » (1) A Xacara toma desenvolvimento
litterario no seculo XVII, não só em Hespanha, por Que
vedo, mas em Portugal; diz Dom Francisco Manoel de
Mello : « á força d'ellas (sacaras e seguidilhas) um ras
cão musico trazia amartellada uma escrava de uma
casa . » (2) A seguidilha era a cantiga solta, a quadra
improvisada segundo as circumstancias do momento;
em Sá de Miranda, em Camões e Rodrigues Lobo en
contram-se bastantes seguidilhas antigas glosadas ; tra
zem de ordinario aa rúbrica mote velho . A pureza do seu
lyrismo mostra claramente a origem da sua inspiração.
Dos Jogos populares do seculo XVI traz Gil Vicente al
gumas reminiscencias, como este que é commum á tra
dição europea :
No penedo João Preto,
E no penedo.
Quaes foram os perros,
Que mataram os lobos,
Que comiam as cabras,
Que roêram o bacello,
Que puzera João Preto
No penedo ? (3)
Os Jogos populares do fim do seculo xvi foram re
colhidos com uma metrificação e aperfeiçoamento litte
rario por Francisco Lopos, no livrinho intitulado Pas
satempo honesto, pelo qual se pode recompôr o estado
da tradição n'este
n
ponto. As Prophecias são uma forma
(1) Musa VI, p. 477, Rom . 94 .
( 2) Apologos dialogaes, p. 72.
(3 ) Obras, 11, 448.
224 CAPITULO IX

poetica commum a quasi todos os povos que tem ele


mento celtico na sua raça ; não foi debalde que no se
culo XIV e XV se conheceram em Portugal as prophe
cias attribuidas a Merlim, porque ellas é que influiram
n'esse vago sonho do Leão dormente e do Porco espinho
que em vão se tem interpretado nas Prophecias de
Bandarra, e que a Chronica en redondillas de Rodrigo
Yannes, que esteve na batalha do Salado, diz serem
Dom Affonso IV , e o rei de - Benamarim . Bandarra
deu fórma poetica ás tradições que ainda se repetiam
no seu tempo, talvez vulgarisadas no poema de Affonso
Geraldes. O typo de Bandarra é o mais popular de
todos os nossos escriptores; pouco se sabe da sua per
sonalidade historica, mas pelo processo do Santo Offi.
cio de 1541 , já se podem determinar bastantes datas .
Como consta d'esse processo, Bandarra, tinha sido rico
e abastado, mas para acudir á sua pobreza abraçou
o officio de sapateiro; isto se comprova talvez, porque
na Chronica de Azurara , vem o nome de Bandarra
usado por um capitão, nas conquistas de Africa. Gon
çalo Annes Bandarra, leu durante nove annos uma
Biblia em vulgar, que pertencera a João Gomes da
Gram ; em 1531, vem pela primeira vez da villa de
Trancoso a Lisboa, e pousa em casa de João de Bilbis,
aonde João Lopes, Caixeiro, lhe pediu explicação das
suas Trovas. Em 1537, quando já se achava em Tran
coso, é visitado por Heitor Lopes que lhe diz que o
Livro das Trovas andava já velho o roto , e lh'o que
ria mandar trasladar. E' certo que quando em 1535
a expedição dos cavalleiros portuguezes voltou de Tu
nis, trouxeram varias prophecias acerca de Carlos V ;
e portanto é talvez d'este tempo que as Trovas de Ban
darra receberam novo interesse entre o povo, por se
rem interpretadas segundo o pensamento do Quinto
Imperio. Em 1538 Bandarra é visitado em Trancoso
por um certo Vargas, da Covilham, que o procura
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 225

para argumentar com elle sobre a Biblia ; n'esse anno


vem novamente a Lisboa. As Prophecias exerciam
sobre аa imaginação popular uma fascinação immensa ;
todos procuravam o trovista. Em 1539 é consultado
por Filelfo ao tempo em que se achava na Guarda ,
e ali lhe pergunta pelo Livro das Trovas. Em 1540
procuram - o em Trancoso em casa de Manoel Alvares,
para que ello explique uma copia das Trovas ; em
1541 o Santo oficio apodera-se de Bandarra, e só
pela sua muita simplicidade é queo não lança á fo
gueira. Depois da condemnação de Bandarra, as Tro
vas tiveram uma maior popularidade; os christãos
novos viram n'ellas annunciada a vinda do Messias;
depois de 1578 os politicos viram prophetisada a vinda
de Dom Sebastião , que á imitação do el-rei Arthur na
Ilha de Avalon, tinha de vir de uma ilha encantada ;
o Padre Vieira via nas Trovas o Quinto Imperio do
mundo fundado no Brazil, para onde os Jesuitas que
riam levar Dom João iv . As Trovas de Bandarra an
daram manuscriptas até ao meado do seculo XVII, sen
do impressas pela primeira vez em Nantes. Os maio
res genios, como Montaigne, Luthero e Goethe, antes
mesmo dos trabalhos scientificos haverem achado a im
portancia das tradições, confessaram a profunda bel
leza da poesia popular. Gil Vicente tambem possuiu
essa rara intuição; vejamos como a tradição o tornou
fecundo .
Autos hieraticos, populares e aristocraticos
O theatro éʻuma creação resultante da existencia
de uma burguezia, e de vida publica ; a vida po
litica da edado média começou nas cathedraes, aonde
se faziam as eleições e os contractos, aonde se conspi
rava, e aonde se concentravam as mais francas ale
grias. E por isso que o theatro europeu teve o seu
começo pelas fórmas hieraticas ou religiosas. Quando
15
-
226 CAPITULO IX

a Egreja baniu da sua liturgia a participação do povo,


teve de condemnar os dramas representados nas tres
grandes festas Paschoa, Natal e Reis . Nas Constitui
ções do Bispado de Evora, se prohibe: « nem se façam
nas ditas egrejas ou adros d'ellas jogos alguns, posto
que sejam em vigilia de santos ou algumafesta; nem
representações ainda que sejam da Paixão de Nosso
Senhor J. C. , ou da sua ressurreição, ou nascença ,
de dia nem de noite, sem nossa especial licença ; por
que de taes Autos se seguem muitos inconvenientes, e
muitas vezes trazem escandalo no coração d'aquelles
que não estão mui firmes na nossa santa fé catholica,
vendo as desordens e excessos que n'isto se fazem. » (1)
Estas Constituições são de 1534, e portanto póde-se
inferir que a par do desenvolvimento litterario dado
por GilVicente ao theatro, o povo continuou a repre
sentar nas egrejas os seus velhos Autos hieraticos;
ainda hoje alguns d'estesmonumentos se conservam
oralmente pelas aldeias. Nas festas de Corpus Christi,
instituidas por Dom João II, as invenções hieraticas
eram tam livres, que foi preciso organisar-lhes um re
gimento imposto pelos municipios; cada officio das
mestrias dava a sua dansa figurada. A Dansa das
Donzellas, que ainda actualmente se representa na
freguezia de Arcozello da Serra, diocese da Guarda,
pode dar-nos uma ideia d'essa forma dramatica primi
tiva : seis ou outo meninas, bem enfeitadas, correm as
ruas da povoação dançando, levando um anjo na frente
do baile; depois páram , cada menina recita a sua parte,
epedem aoAnjo que as baptize, abjurando da lei de
Mafoma.
O theatro popular ou leigo não teve existencia in
dependente; era sempre motivado por alguma festa
religiosa. Mesmo as comedias profanas da Bazoche
( 1) Const. 10, tit . 15.
EXISTENCIA DE UM ELEMENTO TRADICIONAL 227

(Basilica) foram de origem ecclesiastica, como se vê


pela sua designação. Ainda na freguezia de Arco
zello da Serra se conservam algumas d’estas tradi
ções dramaticas, ligadas a um facto nacional, tal como
a Dansa dos Espingardeiros ; compõe-se este Auto po
pular de outo oudez mancebos, armados, e marchando
ao som de tambor, divididos em dois bandos ; repre
sentam o exercito portuguez e o hespanhol; percorrem
as ruas da povoação, escolhem logar para darem a
batalha, e depois de longos discursos de parlamenta
rios, e de doestos insolentes, trava -se o combate, os
portuguezes vencem , e o general hespanhol ajoelha aos
pés do seu vencedor, que lhe concede aa vida bem como
a todos os seus . E assim que um povo que tem uma
grande existencia politica inventa o seu theatro. Os
cantos dialogados, em volta da sepultura do Conde
stavel, eram uma especie de drama na sua primeira
manifestação inconsciente .
Otheatro aristocratico apresenta tambem uma
fórma tradicional; eram os Mômos o entremezes usa
dos na côrte de Dom Affonso v e de D. João II ; nas
festas do casamento da Imperatriz D. Leonor foram
1.
extraordinarios os divertimentos scenicos ; depois d'esse
tempo havia na côrte, como diz um poeta do Cancio
neiro, crisautos, (ecclipse de Autos.) Pelas festas do ca
samento do principe Dom Affonso fizeram -se novas e
mais extraordinarias representações, nas quaes até o
proprio Dom João II tomou parte, apparecendo inven
cionado Cavalleiro do Cyrne. Dom Martinho de Cas
tello Branco era o director d'estas apparatosas festas,
que estão descriptas na Miscellanea de Garcia de Re
sende. No reinado de Dom Manoel e de D. João III,
o theatro aristocratico decaíu de moda, talvez pelo es
tigma dos canonistas sobre os actores ; é certo que Sá
de Miranda se lamenta por ter acabado na côrte o
tempo dos bons serões. E então que Gil Vicente dá
228 CAPITULO IX

fórma litteraria, reunindo nos seus Autos esses tres


elementos tradicionaes; a fórma hieratica nos Autos
de Natal e obras de dovação ; a forma popular, nas far
ças ; e a forma aristocratica nas tragi- comedias. Funda
a sua obra desde 1502 a 1536 ; mas, sempreguerreado,
tinham tanta vida os elementos sobre que fundou o
theatro portuguez, que quando Garrett o quiz restau
rar, serviu -se do perstigio d'esse venerando nome.
CAPITULO X

Creação do theatro nacional por Gil Vicente


Personalidade historica de Gil Vicente : nasce em Guimarães,
por 1460, e morre em Evora em 1536. Frequenta a corte de
D. João 11, tendo em 1482 o titulo de Escudeiro do Rei.-
Era lavrante da rainha D. Leonor. - Condições em que cria
a instituição do theatro portuguez, em 1502 .-- Protecção da
rainha D. Leonor a esta nova invenção.-A farça de Inez.
Pereira e a lucta contra a auctoridade dos eruditos . -Gil
Vicente é mais conhecido no seculo xvi como ourives, o ma
ravilhoso artistada Custodia, de Belem.-Como se perdeu
o conhecimento da personalidade artistica de Gil Vicente.
Eschola nacional no theatro portuguez : Antonio Ribeiro
Chiado, Antonio Prestes, Camões, Balthazar Dias, e anony
mos .—Como o theatro nacional é combatido e quasi extincto
pela censura .
Personalidade historica de Gil Vicente

No Cancioneiro de Resende, entre essa aristocra


tica pleiada de poetas da corte de D. João II, encon
tra-se o nome de Gil Vicente, dando o seu parecer so
bre o processo chistoso de Vasco Abul, por mandado
da rainha D. Leonor. (1) No Auto Pastoril caste
lhano, sobre a alegoria de Juan Domado « dizia por
Dom João II .» D'aqui se vê que antes de 1495, já .
»

vivia na côrte, aonde era considerado como poeta e


estimado pela rainha D. Leonor, esse que mais tarde
havia do fundar o theatro portuguez, e a quem a rai
nha chamava Mestre Gyl . Isto concorda com os docu
mentos authenticos em que apparece citado o seu nome,
taes como : Carta de 13 de Maio de 1482, em que é
nomeado Requeredor das Cizas de Santarem , aonde é
morador ; ( 2 ) Carta de 14 de Fevereiro de 1482, em
(1) Canc, ger . A. 210, col . 2 .
Arch . nac. , Liv. vi de D. João 11, f . 54.
230 CAPITULO X

que é nomeado, como creado e escudeiro de D. João II,


porteiro dos Contos no Almoxarifado de Beja . (1)
Em 20 de Septembro de 1485, faz D. João di mercê
a Gil Vicente de uns certos bens na villa de Beja ; (2)
em 1846 , sendo mestre da Carpentaria de Santarem ,
é nomeado por Dom João II mestre da Carpentaria
da villa e paços de Almeirim ; (3) e em 1 de Março
de 1491 é nomeado Porteiro dos Contos do Mestrado
de Avis . (4) Taes são os documentos do reinado de
Dom João II que nos levam a fixar a data do nasci
mento d'este extraordinario genio não muito antes de
1460. Em uma Carta escripta de Santarem em 21 de
Janeiro de 1531 a el-rei Dom João III, emprega Gil
Vicente a phrase : « assi visinho da morte como estou. »
E na Dedicatoria das suas Obras a Dom João III, di z
mais : «Por cujo serviço trabalhei a compilação d'ellas
com muita pena da minha velhice ... ) No fim da Tra
gicomedia intitulada Floresta de Enganos, vom a rú
brica pósta por seu filho, que lhe assigna o anno de
1536: « a derradeira que fez Gil Vicente em seusdias.»
Pode -se acceitar esta data como a da morte de Gil Vi.
cente, porque na Grammatica de Fernão de Oliveira,
fallando do modo de escrever as interjeições, diz : « não
me parece este bom riso portuguez, postoque assi o
escreva Gil Vicente nos seus Autos. » (5 ) Esta Gram
matica foi começada a compôr em 1535, e por isso
na referencia usa o escrever no presente ; porém na
Grammatica de João de Barros , que já estava im
pressa em 1539,7 se lê sobre o uso da desenvoltura da

( 1) Ib ., f . 12, v .
(2) Ib., Liv. i, f . 40 .
( 3 ) Ib .,. Liv. VII , f . 14.
(4) 16., Liv. ix, A. 73 .
Granmat., cap. 14. - Vid. infra a Petição de Garcia
Fernandes, de 1540, aonde se falla de Gil Vicente como falle
cido.
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 231

linguagem : «E Gil Vicente, Comico, que a mais tra


tou em composturas, que alguma pessoa d'estes reinos,
nunca se atreveu aa introduzir um Centurio portuguez .)
O modo de escrever de João de Barros, usando com
relação a Gil Vicente os verbos no passado, bem nos
revela, que antes mesmo de 1539 já elle era fallecido .
Na propria tragicomedia escripta ainda em 1536, diz
o poeta sob o personagem de Doutor Justiça Mayor:
Já fiz os sesenta e seis (setenta e seis)
Já o meu tempo é passado.

Se narealidade contava setenta e seis annos em 1536,


que é como se justifica as phrases : assy visinho da
morte, e pena da veihice, que elle tanto emprega, en
tão pode affirmar-se indubitavelmente que nasceu em
1460. Sobre a sua filiação e naturalidade , de que nada
se sabia, acha -se no Nobiliario ms. de Alão de Moraes :
« Martim Vicente, um homem natural de Guimarães; di
zem que era ourives da prata ; não podemos saber com
quem casou; só se sabe certo que teve a Gil Vicente . »
E em seguida accrescenta o mesmo genealogista : « Gil
Vicente, filho unico d'este Martim Vicente, foi homem
mui discreto e galante, e por tal foi sempre mui esti
mado dos princepes e senhores do seu tempo. Foi o
que fez os Autos, que em seu nome se imprimiram , e
por sua muita graça foram sempre celebrados pelos
melhores que se fizeram n'aquelle genero. Está sepul
tado em Evora . » (1) Esta preciosa noticia vem -nos ex
plicar ainda mais cabalmente a personalidade his
torica de Gil Vicente : um Alvará de 15 de Fe
vereiro de 1509, de Dom Manoel, em que Gil Vi.
conte apparece com o titulo de Ourives da Rainha
minha irmã, ( D. Leonor, viuva de D. João II) no
(1) Pedatura luzitana, Ms. 441 da Bibl. do Porto, f. 176.
232 CAPITULO X

meia-o Vedor de todas as Obras de ouro e prata fei


tas para o Mosteiro de Belem, Hospital de Todos os
Santos ee Convento de Thomar ; por outros differentes
documentos, em que se citam varios trabalhos artisti .
cos de Gil Vicente, se vê que além da admiravel crea
ção do theatro portuguez, é elle tambem um dos mais
insignes representantes da Ourivesaria da Renascença .
Esta vastidão encyclopedica é o caracteristico que mais
distingue essa pleiada de espiritos extraordinarios do
seculo xv, como Leonardo de Vinci e Miguel Angelo.
Gil Vicente é o admiravel lavrante da Custodia de
Belem , como se sabe pelo testamento de D. Manoel ;
é um excellente poeta lyrico, conhecedor d'esse pro
fundo segredo da ingenuidade popular; compõe os seus
1
Autos e representa -os, como vemos pelos versos de An
dré de Resende, que lhe chama auctor et actor ; era
elle que escrevia a musica dos seus vilhancicos (ensoa
va ) ; finalmente teve uma grande missão politica na ci
vilisação portugueza, o luctar pela liberdade de con
sciencia, pela secularisação da sociedade civil, e o ter
salvado em 1531 os habitantes de Santarem de uma
carnificina de fanaticos. Quando em qualquer época
apparece uma individualidade d'esta ordem , todos os
pequenos factos da sua personalidade são rigorosamente
historicos, e despertam o maior interesse.
Condições em que introduz o Theatro ,
em 1502

Sabendo -se que em 1482 era Gil Vicente já desi


gnado como creado e escudeiro de João II, o que em
1492 já figura como poeta no processo de Vasco Abul,
vê-se que até á morte do principe Dom Affonso ello
não pôde manifestar o seu genio dramatico, por causa
da sua muita juventude. Depois d'esse desastre do
principe, succedeu a morte de Dom João II pouco de
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 233

pois, e em seguida a viuvez de Dom Manoel, de modo


que as festas costumadas na côrte estiveram por muito
tempo interrompidas. Como lavrante da rainha D.
Leonor, Gil Vicente occupou-se em trabalhos de ouri
vesaria religiosa, taes como relicarios, calices, cruzes
e custodias, que a rainha offerecia por devoção a va
rios mosteiros. Um accidente casual veiu despertar o
genio dramatico de Gil Vicente ; Dom Manoel, tendo
casado em segundas nupcias com sua cunhada D. Ma
ria, para verse assim recuperava todas as esperanças
perdidas com a morte de D. Isabel e do principe D.
Miguel da Paz, seu filho, recebeu a noticia do nasci
mento do seu novo herdeiro, que lhe voiu a succeder
com o nome de D. João III . O successo da rainha cau
sou uma alegria publica ; todas as classes saíram com
suas festas. Gil Vicente, com as relações que tinha na
côrte, em uma quarta -feira, 8 de Junho de 1502, dois
dias depois do parto da rainha, entrou no quarto da
cavalescente, o ai recitou um Monologo de um Va
queiro, que tambem se intitula da Visitação, especie
de colloquio do Natal, em que fazia varios offerecimen
tos e vaticinios ao principe recem-nascido . Esta home
nagem poetica agradou bastante na côrte, e a rainha
D. Leonor, irmã do monarcha, descobrindo esta nova
prenda no seu lavrante, animou-o para que continuasse
a compôr mais alguma cousa n'aquelle novo genero.
Até aqui Gil Vicente não fez mais do que imitar os
costumes populares da noite do Natal, na forma do
seu Monologo do Vaqueiro, e ao mesmo tempo fazer
reviver na côrte o antigo costume dos Mômos, que já
estavam esquecidos. A intelligencia superior da rainha
D. Leonor,que se assignalou pelo grande desenvolvi
mento que deuá Imprensa, e pela fundação das primei
ras Misericordias, faz -se notar aqui pelo tino com que
soube conduzir o genio de Gil Vicente a lançar as ba
zes do theatro portuguez. Representado o Monologo da
234 CAPITOLO X

Visitação a 8 de Junho de 1502, a rainha D. Leonor


pediu -lhe logo que o tornasse a repetir na festa do Na
tal. E' preciosa a rúbrica de Gil Vicente no fim d'esse
primeiro ensaio : « E por ser cousa nova em Portugal,
gostou tanto a rainha velha, d'esta representação, que
pediu ao auctor isto mesmo lhe representasse ás mati
nas do Natal, endereçando ao nascimento do Redem-,
ptor . Quem era esta Rainha velha, senão a que fôra
mulher de Dom João II, e que vivia na côrte de seu
irmão el-rei Dom Manoel . Gil Vicente em vez de re
petir no Natal o Monologo, porque a substancia era
mui desviada » compoz o Auto Pastoril castelhano, na
lingua então mais fallada na côrte . A rainha D. Leo
nor ficou maravilhada com a obra; é encantadora esta
revelação de Gil Vicente : « A dita Rainha satisfeita
d'estapobre cousa , pediu ao auctor que para dia de
Reis logo seguinte the fizesse soutra obra ...» Escreveu
então o Auto dos Reis Magos, em 1503. N'este mesmo
anno, representa o Auto da Sybilla Cassandra em En
xobregas, sem dúvida no Convento da Madre de Deos,
o mosteiro predilecto da rainha D. Leonor. Logo em
1504, representa diante da mesma rainha nas Caldas o
Autode Sam Martinho, que não chegou a acabar por
lhe ter sido pedido muito tarde. O Auto dos Quatros
tempos, de 1505, o Auto da Alma, de 1508, foram
todos representados diante da rainha D. Leonor.
O theatro estava introduzido no gosto palaciano ;
póde-se dizer, que desde 1502 até 1536 raro é o anno
em que Gil Vicente não compõe algum Auto para
distrair a côrte que foge da peste, o anda de Lisboa
para Evora, Almeirim , Santarem e Coimbra. Em qual
quer successo das armas portuguezas na India ou na
Africa, é Gil Vicente que vem distrair os animos al
quebrados pelos desastres, ou exaltal-os na partida
para a expedição, como no Auto da Exhortação de
Guerra, por occasião da partida para Azamor. E
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 235

elle tambem o que festeja o nascimento dos principes,


como os Infantes D. Luiz e D. Filippe, e os casamen
tos dos monarchas, como o de D. Manoel, de D. João III,
e da imperatriz D. Isabel. Era preciso um talento
indiscutivel e deslumbrante para atravessar essas épo
cas de intriga palaciana, de que o proprio Sá de Mi
randa, apesar da sua prudencia, teve de fugir para
segurar-se. Gil Vicente soffrou com todas essas altera
ções provocadas pelos validos do principe Dom João
entreelle e seu pae. Os versos recitados em 1523, no
Auto pastoril portuguez, nos revelam como a intriga
dos aulicos o procurou demolir:
E um Gil, um Gil, um Gil,
(Que má retentiva hei)
Um Gil ... já não direi ;
Um que nãotem nemceitil,
Que faz os Aitos a el-rei .

Aito cuido que dizia,


Aito assi cuido que é,
Mas não já Aito, bofé,
Como os Aitos que fazia
Quando elle tinha com quê ?

Esta data de 1523 é exactamente a mesma em que


o vêmos em lucta com os eruditos, que propagavam o in
sulto de que Gil Vicente não é auctor dos Autos que
representava.
A farça de Inez Pereira e os criticos eruditos

Como vemos pela Carta de de Sá de Miranda a


Antonio Pereira, em que chama Pasquinos aos que met
tem em scena os mysterios da religião, (1) os eruditos
renegavam a fórma hieratica do theatro medieval.

(1) St. 33.


236 CAPITULO X

No prologo da comedia dos Estrangeiros, Sá de Miranda


censura o ter-se substituido o nome de Auto ao de
Comedia , e o ter-se escripto em verso rimado : « Já
sois no cabo, o dizeis ora não mais ; isto é Auto, e
desfazeis as carrancas; mas eu, o que não fiz até agora,
não queria fazer no cabo do meus dias, que é mudar
de nome. Este (de Comedia) me deixae por amor de
minha natureza, e eu tambem de vossos versos tam
bem vos faço graça, que são forçadas d'aquelles sous
consoantes.» Garcia de Resende, a quem Gil Vicente
apóda na tragi-comedia das Côrtes de Jupiter, alludin
do ao seu saber encyclopedico e á sua muita gordura,
tambem pela sua parte na Miscellanea, elogiando a
Gil Vicente, procura insidiosamente tirar-lhe a origi
nalidade da invenção dos Autos portuguezes :
E vimos singularmente
Fazer representações
D'estyllo mui eloquente,
De mui novas invenções,
E feitas por Gil Vicente.
Elle foi o que inventou
Isto cá , e o usou
Com mais graça e mais doutrina;
Postoque Juan del Enzina
O Pastoril começou .

Gil Vicente bem sabia d'onde lhe partiam os gol


pes ; os eruditos colligaram -se sem o saber com
o partido clerical , que via em Gil Vicente o protesto
do bom senso , A estes que o atacavam , chamava -lhes
acertos homens de bom saber . » Gil Vicente escreveu a
farça de Inez Pereira para levantar o repto ; a rú
brica que a acompanha é importantissima: « O seu
argumento he, que, porquanto duvidavam certos homens
de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas
obras, ou se as furtava de outros auctores, the deram
este thema sobre que fizesse: 8. hum exemplo commum ,
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 237

que dizem : Mais quero asno que me levo,que cavallo


que me derrube. E sobre este motivo se fez esta far
ça. » Pode-se dizer, que a farça de Inez Pereira foi a
primeira comedia regular que appareceu no theatro
portuguez ; com regular, quer -se dizer, nem exclusi
vamente inspirada da tradição da edade média , nem
cegamente imitada dos modellos classicos de Plauto
ou Teroncio ; é uma comedia como a vida moderna a
póde produzir. O modo como Gil Vicente desempe
nhou este grave comprommisso, vê-se no interesse com
que Dom João III lhe pediu que continuasse a dita
farça , o que elle fez no Clerigo da Beira . Não se pode
saber com certeza se Gil Vicente escreveu para o pu
blico ; mas pela farça de Quem tem farellos ? se vê
que o publico as conheceu e lhes dava ás vezes o ti
tulo : « Este nome da farça seguinte - Quem tem fa
rellos ? - poz -lh'o o vulgo. Era esta communicação com
o vulgo, que tornava Gil Vicente temido pelos eru
ditos ; Gil Vicente era o unico que em Portugal tinha
a coragem de proclamar as ideias de Reforma. Por
isso o guerreavam . Uma coincidencia notavel se dá
com a morte de Gil Vicente ; é no anno do 1536 que
80 estabelece a Inquisição em Portugal, justamente
quando o grande propugnador da liberdade de con
sciencia deixou de protestar nos sous Autos.
Gil Vicente , Ourives

Assim como no seculo XVI, aquelles que conhece


ram o talento artistico de Gil Vicente não queriam
acreditar que elle fosse o auctor dos Autos portugue
zes, assim tambem os que mais tarde o reconheceram
como fundador do theatro nacional julgaram que o
afamado ourives da Custodia, de Belem, era uma outra
individualidade. Quando o vulgo chega a reconhecer
o genio, concede-lhe a admiração, mas prendendo -o
238 CAPITULO X

sempre em uma exclusiva especialidade. Dom João II,


por Carta de 12 de Outubro de 1486, e Dom Manoel
por outra de 3 de Dezembro do 1496 concederam a
Gil Vicente toda a ordem de privilegios, como a dis
pensa de pagar portagens, fintas, talhas, serviços ou
pedidos lançados pelo concelho aonde fôr morador ;
isemptando-o ao mesmo tempo de ser tutor ou cura
dor, de servir cargos do concelho, nem bésteiro do
conto, nem pague jugada nem outavo, nem que seja
obrigado a dar pousada em sua casa. ( 1) Todos estes
privilegios só sepodem justificar pelos admiraveis tra
balhos de ouriversaria , de que estava encarregado
pela rainha D. Leonor. Em uma Carta de el-rei Dom
Manoel, de 4 de Fevereiro de 1513, diz, que confiando
na bondade e fieldade de Gil Vicente, ourives da rai
nha, minha muito amada e prezada irmã, lhe faz a
graça de o nomear Mestre da Balança da Casa da
. Moeda de Lisboa. A ultima mercê que achamos feita
a Gil Vicente, é por Dom João III, em 19 de Janeiro
de 1525, em que lhe dá de tença tres moios de trigo
no recebimento do um por cento. No Testamento de
el-rei D. Manoel, se lê : WItem , Mando que a Custodia,
feita por Gil Vicente para o Mosteiro de Belem , seja
entregue á dita casa, bem como a grande Cruz que
foi guardada na minha thezouraria, feita tambem pelo
mesmo Gil Vicente... » (2) Este Testamento é de 7 de
Abril de 1517 ; no fragmento do Testamento da Rai
nha D. Leonor, tambem se lê : « Item , Deixo ao dito
Mosteiro da Madre de Deos o Relicario que fez Mes
tre João, em que está o Santo Lenho da vera cruz, ...
e os dois Calices que andam em minha Capella, a sa
ber, o que corregeo Gil Vicente , e outro dos que elle
fez, que já está no dito Mosteiro, etc. > (3) Nos Autos
(1) Arch , nac. , Liv. 30 de D. Manoel, fl. 8.
2) Sousa, Provas da Hist. geneal. , t. 11, p. 328.
(3) Frei Jeronyno de Belem , Chr. Seraph ., t. III, p. 85 .
CREAÇÃO DO TREATRO NACIONAL 239

de Gil Vicente, feitos na maior parte a pedido da rai


>

nha D. Leonor de quem era lavrante , vêm muitas al


lusões á profissão de Ourives que tinha o poeta ; nas
Côrtes de Jupiter cita Diogo Fernandes, que no Can
cioneiro geral apparece tambem como ourives e poeta :
Diogo Fernandes irá
Porque é commendador. ( 1)
E n'esta mesma tragi-comedia faz a descripção do
andor em que hade ser levado o principe na viagem :
O princepe, nosso senhor,
Irả em quatro rocins
Marinhos, em um andor
Do ouro mellor que fôr
Em toda a terra dos Chins:
E um sobrecéo por cima
D'esmeraldas e rubis,
Lavrado de obra de lima,
Que não possam dar estima
A lavores tão subtis.
( 16., t. 11, 405.)

Na farça dos Almocreves ,representada em Coim


bra em 1526 , descreve Gil Vicente um typo nacional
de fidalgo pobre, que vae demorando o pagar o que
deve ao seu ourives :

FIDALGO : Que bastiàes tão louçãos !


Quanto pesava o saleiro ?
OURIVES : Dois marcos bem, ouro e fio.
FIDALGO: Essa é a prata ; e o feitio ?
OURIVES : Assás de pouco dinheiro.
FIDALGO : Que val com feitio e prata ?
OURIVES : Justos nove mil reaes .
E não posso esperar mais
Que o vosso esperar me mata.
( Ibd ., t. 111, 208. )
(1) Ibid ., t . 11, p. 406 .
240 CAPITULO X

Demais o proprio Gil Vicente, na dedicatoria da


tragi-comedia Dom Duardos, confessa que os seus Au
tos foram feitos em serviço da Rainha D. Leonor :
« Como quiera, Excellente Princepe y Rey mui pode
roso, que las Comedias y Farcasy Moralidades, que
he compuesto en servicio de la Reyna vuestra tia ... »
Como é possivel que a mesma rainha tivesse outro
lavrante com este nome de Gil Vicente, sem que os
poetas satyricos, como Resende, não houvessem tirado
partido d'essa homonymia . No seculo xvi a gloria de
Gil Vicente provinha-lhe quasi que exclusivamente dos
seus admiraveis trabalhos de ouriversaria ; o seu nome
era citado como uma honrosissima antonomasia ; alguns
dos seus filhosapparecem citados nas Chronicas e nos
documentos officiaes com o titulo : o filho de Gil Vi
cente. Nos Commentarios de Affonso de Albuquerque,
ao narrar a embaixada mandada ao Hidalcão, se lê :
aDespachado este Embaixador, mandou Affonso de
Albuquerque em sua companhia, peraassentarpaz,
Diogo Fernandes, adail de Goa, e o filho de Gil Vi
cente por seu escrivão... ) ( 1) Chamava -se este, «Mar
)

tim Vicente, que serviu bem na India, onde morreu


solteiro , como se sabe pelo Manuscripto de Alão de
Moraes. Em uma petição do Garcia Fernandes .a Dom
João III, de 16 de Abril de 1540, em que reclama os
privilegios que lhe concedera Dom Manoel no caso de
acabara obra do palacio da Justiça de Lisboa, figura
n'essa petição como testemunha Belchior Vicente, fi
lho de Gil Vicente, a quem Deos haja , moço da ca
pella del rei nosso Senhor.) (2) Estas duas antonoma
sias, revelam-nos a profunda admiração que havia por
Gil Vicente, muitos annos antes de se terem publicado
as suas Obras por seu filho Luiz Vicente, em 1562 .
(1) Part. 111, cap. 52, p. 442.
( 2) Arch, nac., Corpo Chronolog., Part. 111, Maç. 15, Doc.
13 .
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 241

D'onde proviria esta admiraçãosenão pelas obrasque


todos conheciam , a Custodia o Cruz grande dos Jero
nymos, e muitas peças dos Mosteiros de Thomar, To
dos os Santos, Madre de Deos ? Luiz Vicente era
Moço da Camara do principe D. João; Paula Vicente,
tambem poetisa e actriz, era camareira da rainha
D. Catharina, e Belchior Vicente,era Moço da Capella
2

real. O Manuscripto de Alão de Moraes dá noticia de


uma outra filha de Gil Vicente, chamada Dona Vale
ria Borges, que foi mulher de D. Antonio de Mene
zes. E' certo que depois da publicação das obras de
Gil Vicente , a gloria do poeta dcrivou-se exclusiva
mente dos Autos com quefundou o theatro portuguez,
chegando-se ao ponto de ignorar que tivesse havido
algum ourives chamado Gil Vicente. Quando se des
cobriu esse facto, facilmente se propoz o problema
historico - se o ourives e o poeta seriam uma mesma
personalidade ? A resposta affirmativa, em face dos
documentos que temos descoberto, é inabalável. Im
porta insistir sobre a superioridade d’este grande vulto
da arte e da litteratura portugueza que erradamente
tem sido considerado como uma natureza humilhada
pela posição de actor, ou de histrião da côrte, quando
pelo contrario foi respeitado pelo seu vasto saber,
pelo seu generoso caracter, e pelos trabalhos inexce
diveis de arte com que nos enriqueceu. Quando o ge
nio é acompanhado com qualidades d'esta ordem, hade
por força imprimir ao seu seculo uma direcção segura ;
vencido na grande lucta da liberdade de consciencia,
não excedido nos trabalhos da ourivesaria, foi no thea
tro que o seu exemplo deixou encetada a vereda para
os novos espiritos. Já era conhecida e imitada a co
media e a tragedia classicas nos divertimentos escho
lares, mas para que se continuasse com mais vigor a
escrever na forma de Auto era preciso que a impres
são que Vicente deixou fosse muito funda . Os seus
Gil
16
242 CAPITULO X

Autos fizeram uma eschola que florescia ainda nos fins


do seculo XVII ; elle possuia as mais eminentes quali
dades, um lyrismo apaixonado e gracioso, um raro
tino das situações comicas, um conhecimento dos de
feitos da sua época e da sociedade em que vivia, e
um bom senso imperturbavel que só podia prorir de
uma natureza em que a força e a bondade se equili
bravam .

Eschola de Gil Vicente : Chiado, Prestes ,


Camões, Balthazar Dias

Na lucta que Gil Vicente teve de batalhar com


acertos homens de bom saber ) que eram o páo man
dado do partido clerical, apparece-nos um plano ar
diloso, como o de inventarem a reputação de um ou
tro genio dramatico para lhe oppôrem ; caiu essa es
colha sobre Affonso Alvares, mulato e criado do Bispo
de Evora Dom Affonso de Portugal. Este poeta escre
via Autos « a pedimento dos muy honrados e virtuosos
conegos de Sam Vicente,» sobre assumptos tirados da
Legenda Aurea de Voragine. D'elle restamo Auto de
Santa Barbara, que ainda se representa pelas aldeas,
o Auto de Santo Antonio, o de Sam Thiago, e o de
Sam Vicente. Mas, apesar de todas as protecções, não
passou de um poeta sem ideal, e de um escriptor dra
matico sem conhecimento da scena. Entre aquelles a
quem se procurou attribuir a invenção dos Autos de
Ĝil Vicente, foi o Infante Dom Luiz, por muito tempo
considerado auctor de Dom Duardos ; mas cáe, por
terra a supposição de ter sido achado entre os papeis
de Gil Vicente, por que elle proprio o dedicou aa Dom
João III.
O poeta dramatico de mais talento e graça depois
de Gil Vicente, é Antonio Ribeiro Chiado, inimigo fi
gadal de Affonso Alvares ; d'elle fala Jorge Ferreira
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 243

de Vasconcellos, em 1544 : « Torná por ella, que con


cierte do razones .-- Isso é vosso ? -Senhor, não ; é do
Chiado.- Em algumas cousas tem vêa esse escu
deiro. ) (1) Em 1546 Camões tambem o cita com não
monos estima no Auto de El Rei Seleuco : «Aqui mo
veiu as mãos, sem piós nem nada, e eu por gracioso
o tomei; o mais tem outra cousa, que uma trova fal-a
tão bem como vos, como eu, ou como o Chiado . » Era
este o legitimo successor de Gil Vicente, como se pode
suppôr pelas datas em que apparece memorado, che
gando tambem a representar diante de D. João III O
Auto da natural Invenção. Nos seus Autos, que são nu
merosos, encontram -se allusões aos successos do tempo,
como a quebra da moeda em 1569, antes da peste
grande. Fixa -se a sua morte em 1591 ; a Pratica de
outo Figuras, em que fala no cêrco de Mazagão de
1547; 0 Auto das Regateiras, em que allude a partida
de D. Sebastião para Almeirim no inverno de 1568 , 2

a Pratica de Compadres são hoje conhecidos pelo unico


exemplar depositado na Bibliotheca nacional em Lis
boa . O seu Auto de Gonçalo Chambão, está perdido .
A vida de Antonio Ribeiro Chiado é tão aventurosa
como as peripecias dos seus Autos ; fôra frade francis
cano em Evora, e entregou -se depois á vida de go
liardo, vindo para Lisboa aonde viveu entre os Valen
tones de que Camões da noticia. Seu irmão Jeronymo
Ribeiro tambem foi escriptor dramatico, e d'elle resta
o Auto do Physico, escripto depois da reforma dos es
tudosde Coimbra,ojá com um conhecimento d'essa ex
traordinaria comedia hespanhola a Celestina, que ainda
hoje anda nas locuções populares ; n'este Auto allude
tambem Jeronymo Ribeiro aos Emphatryões, sem dú
vidaem es
consequencia do Auto escripto com esse titulo
por Camõ .

(1) Aulegraphia, act. x1, sc. 2, fi . 126, etc.


244 CAPITULO X

Depois do Chiado, é Antonio Presteso que teve


uma maior fecundidade e popularidade; Enqueredor
do Civel em Santarem, é de crêr que n'essa terra ,
aonde residia Gil Vicente, recebesse elle a tradição
dramatica. O Auto da Ave-Maria resente -se da pri
meira maneira de Gil Vicente, no periodo das Mora
lidades, como elle proprio lhe chamava; os restantes
pertencem ao periodo das farças. O Auto da Ave -Mil
ria, foi escripto em 1530 , quando Gil Vicente ainda
vivia. O Auto dos Cantarinhos traz esta preciosa rú
brica : « Representado n’esta cidade de Lisboa ,) o que
nos revela que já então existia algum Pateo de Co
medias aberto ao publico. O Auto do Procurador, foi
escripto antes de 1556. O Auto dos dois Irmãos é pre
ciosissimo emquanto à sua relação com a velha lenda
do Rei Lear, que já se achava no Gesta Romanorum;
foi escripto depois de 1546, como se infere da referen
cia ao Palmeirim , de Francisco de Moraes. Em Anto
nio Prestes encontra-se esse typo popular da Comedia
portugueza, chamado o Ratinho; o sentido d'esta de
signação acha-se explicado na Miscellanea de Miguel
Leitão de Andrade : « os Ratinhos, que, sendo o con
celho de Rates uma só freguezia de quatorze ou quinze
lugarinhos ou aldeias, e estes só sejam os Ratinhos,
d'elles se estende o nome a quasi todaa Beira, que
quer dizer bordas do mar. » ( 1) Era na Beira que Gil
Vicente procurava os typos, as danças e as cantigas
nacionaes para os seusAutos. Prestes, censurandoas
novas modas nas vestimentas, no Auto do Procura
dor, diz :

ho a Beira por discreta,


não curam de mais contenda,
senão de adubar fazenda, etc.

(1) Miscell., p. 342.


CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 245

Era a provincia em que se conservava a pureza


tradicional. Balthazar Dias, que pertence tambem á
eschola de Gil Vicente, cita varioscostumes da Beira.
Admira por certo vêr Camões, que conhecia inti
mamente a Renascença classica, e que se inspirava da
poesia italiana, seguir no theatro a eschola de Gil Vi
cente. O Auto de El Rei Seleuco, dos Emphatriões, e
Filodemo, são em redondilha, e com certeza as crea
ções mais bellas depois das de Gil Vicente . O Auto
dos Emphatryões foi escripto sem dúvida nos diverti
mentos escholares ; n'elle allude ao celebre romance de
Flérida, composto por Gil Vicente. Sabendo -se que Si
mão Vaz, pae do poeta , casara om Santarem, onde
residia Gil Vicente, e citando o velho dramaturgo na
Farça dos Almocreves a Simão Vaz, que então vivia
em Coimbra , em 1526, tudo nos leva a suppôr que
nas proprias tradições de familia é que Camões teve
conhecimento dos Autos de Gil Vicente. Imitou -os na
fórma, por que teve a intuição do seu cunho nacional.
O Autode El Rei Seleuco , foi já escripto em Lisboa,
em 1542; ai se acham allusões que cabem bem ao
facto de ter Dom Manoel casado em terceiras nupcias
com a noiva que era destinada a seu filho. Se tal as
sumpto, como os amores de Stratonice , foi escolhido
intencionalmente, aí está mais um pretexto para a
desgraça de Camões. O Auto de Filodemo foi escripto
já na India, por occasião das festas que se fizeram em
Goa quando Francisco Barreto foi nomeado Governa
dor. N'esta composição se refere ao Auto do Braz
Quadrado, que vem condemnado nos Indices, mas que
2

está totalmente perdido. Bastavam estes tres Autos de


Camões para revelarem um grande poeta, em nada
inferior a Gil Vicente; escrevendo Autos e redondilhas
obedeceu á tradição da poesia nacional, que o tornou
inexcedivel no lyrismo da eschola petrarchista e na
magestade da sua epopêa classica .

..
246 CAPITULO X
De todos os poetas da eschola de Gil Vicente,
aquelle com quem o povo mais sympathisou, por que
ainda hoje o lê e o representa, foi Balthazar Dias,
poeta cego, da Ilha da Madeira, e que escreveu no
reinado de D. Sebastião. Pouco ou nada mais se sabe
da sua personalidade, senão que viveu algum tempo
na Beira. Pertence -lhe a celebre tragedia em redoir
dilhas do Marquez de Mantua, formada com romances
hespanhoes; a Imperatriz Porcina, que pertence hoje
á litteratura de cordel, é a forma portugueza da po
e
pularissima e universal legenda de Crescencia; o Auto
de Santo Aleixo, ainda hoje se imprime quasi annual
mente. Este Auto não tem invenção, é metrificado 80
bre a Legenda Aurea , como o Auto de Santa Cathe
rina tambem vulgarissimo. Os Indices Expurgatorios
citam como de Balthazar Dias o Auto do Nascimento
de Christo, o Auto de Salomão, e o Auto breve da
Paixão, que se não encontram , e provavelmente es
tão perdidos para sempre. A fórma hieratica tornou
se quasi exclusiva entre os imitadores do theatro de
Gil Vicente, e a isso se deve attribuir a sua decaden
cia .
Muitos são os Autos anonymos, que pertencem ainda ·
>
ao seculo XVI ; entre elles citaremos o deGuiomar do
Porto , cujo merecimento se define em poucas palavras
apresentando-o como a Celestina portugueza ; o Auto
do Duque de Florença e o de D. Florambel tem uma
certa frouxidão que só se releva pela muita antigui
dade. No Auto dos Escrivães do Pelourinho cita -se a
giria do jogo no seculo XVI, tão importante para a
historia dos costumes:

DUARTE : E que jogo jogaremos ?


Primeirinba a descartar ?
GONÇALO : Jurei de não jugar,
mas aos dados rifaremos,
que he jogo singular...
CREAÇÃO DO THEATRO NACIONAL 247

DUARTE : Quanto havemos de jugar ?


Gonçalo : Cada rifa um vintem . (1 )

Pertencem a este cyclo nacional os tres bellos Au


tos hieraticos o de Dia de Juizo, o Auto da Geração
humana, de 1536, que se attribue a Gil Vicente, e o
Auto de Deos Padre, Justiça e Misericordia. O thea
tro nacional do seculo xvi foi riquissimo, mas os In
dices Expurgatorios e os ataques dos Jesuitas aos Pa
teos dasComedias reduziram -o a menos de uma quinta
parte , que é o que resta ainda hoje. Só se conservou
o que ficou com a vitalidade da tradição. Os Autos
de Simão Garcia, de João de Escobar , de Francisco
Luiz, de Frei Braz de Resende, de Frei Antonio de
Lisboa, de Gaspar Gil Severim , de Antonio Peres, e
de outros muitos estão irremediavelmente perdidos.
Apezar de toda esta devastação , era preciso que o
theatro de Gil Vicente, derivado da tradição nacional
tivesse penetrado profundamente nos costumes portu
guezes, para que fosse só esta ordem de escriptos a
que se serviu da lingua portugueza, quando era des
prezada pelos que acceitaran o dominio castelhano.
O theatro da eschola de Gil Vicente um foi agente da
revolução da nossa independencia .

(1) Citado no Glossario da ed. de Castanheda, de 1883 .


CAPITULO XI

Os Bucolistas — Eschola hispano- italica


-

Caracter tradicional da poesia pastoril portugueza. - Fórmas


hespanholas é espirito italiano. - Influencia da educação em
S

Italia para a introducção do gosto siciliano. — Bernardim


Ribeiro e sua personalidade historica. - As cinco Eclogas
em redondilhas.— Relações pessoaes e litterarias com Chris
tovam Falcão.- Origem daEcloga Crisfal. - Camões imita
Christovam Falcão. - Como os versos octosyllabicos se con
servam na tradição palaciana: Sáde Miranda, Camões, Ber
nardes, Caminha, D. Manoel de Portugal, e Falcão de Re
zende, apesar de pertencerem á eschola italiana, escrevem
tambem em redondilhas. – Reacção contra a eschola italiana
pelos poetas da medida velha.

Caracter tradicional da poesia pastoril


portugueza

O genero pastoril separa completamente a poesia


dos Cancioneiros palacianos d'esse lyrismo apaixonado
e individualcom que começa em Portugal o seculo XVI.
No vasto Cancioneiro de Resende, nada se acha que
indique o minimo conhecimento do bucolismo, e com
tudo os primeiros poetas quinhentistas que escreveram
Eclogas, Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda, figuram
ainda no Cancioneiro como poetas dos serões do pa
ço. Como se deu o apparecimento d'esta nova forma
de poesia ? Bouterwek notou este facto explicando-o
por esta forma: « Portugal pode ser considerado como
à verdadeira patria da poesia pastoral, que, no mesmo
periodo, floresce em Italia, aonde adquire fórmas mais
cultas, particularmente depois de Sanazarro .» (1)
(1) Historia da Litteratura portugueza, p. 43. (Trad. ingl.)
OS BUCOLISTAS --- ESCHOLA HISPANO - ITALICA 249

A corrente da imitação castelhana desde o infante


Dom Pedro até aos fins do reinado de D. Manoel, fi
zera esquecer a tradição do lyrismo provençal portu
guez do seculo xiv ; n'essa poesia trobadoresca, dava-se
a imitação das serranilhas populares e dos cantos de
ledino, em que as damas em vez de serem chamadas
mia sennor , eram chamadas mia pastor. No Cancio
neiro de D. Diniz, sobretudo nos Cantares de amigo,
encontra -se o genero pastoril :
Hunha pastor ben talhada
Cuydaya en seu amigo;
Estava, ben vos digo,
Per quanto eu vi, mui coitada, etc. (1)
Ou tambem :

Oy oj'eu cantar d'amor


En bu fremoso virgeu
Uå fremosa pastor
Que ao parecer seu ,
Já mais nunca lhi par vi.
E porém, dixe-lhe assi :
Senhor, per vosso vou eu. etc. ( 2)

Por isto se vê que na litteratura portugueza existia


a tradição do genero pastoral, imitado no seculo xiv
directamente do povo , o no seculo XVI renovado
pelo conhecimento da eschola provençalesca. Os pri
meiros que escreveram Eclogas, Bernardim Ribeiro
e Sá de Miranda, são justamente os que mostram um
conhecimento mais claro dos nossos trovadores . Em
Bernardim Ribeiro achamos essa preciosa referencia :
acomeçou a cantar um cantar á maneira de Soláo , que

( 1) Canc. da Vaticana, f. 17. (Ap. Monaci.)


(2) Canc. de D. Diniz, p . 108.
250 CAPITULO XI

era o que nas cousas tristes se acostumaya . Sá de


Miranda é muito mais explicito :

Suspirou -se melhor, veiu outra gente,


De que o Petrarcha fez tão ricoordume ;
Eu digo os Proençaes, de que ao presente
Inda rythmas ouvimos, que entoaram
As musas delicadas altamente. (1 )

Está explicado como o genero pastoril, postoque


eruditamente, nasceu de uma tradição nacional. O
desenvolvimento que lhe deu Bernardim Ribeiro foi
anterior á imitação directa da Italia, como se acha na
segunda feição de Sá de Miranda, que emprega já os
endecasyllabos. A educação da aristocracia portugueza
no fim do seculo xv fazia -se na Italia, sob o regimen
de uma pezada erudição; ali se recebia o0 conhecimento
respeitoso da antiguidade classica, e pela primeira vez
se leram os Idylios de Theocrito. Ao obedecermos a
esta primeira influencia italiana, acceitámos pacifica
mente esse vago platonismo que nos era desconhecido,
e continuámos a conservar os velhos metros peninsu
lares da Redondilha. A este periodo de conciliação en
tre a corrente de imitação hespanhola e o novo gosto
siciliano, é ao que chamamos Èschola hispano-italica.
Quando, porém , os velhos metros foram substituidos
pelos endecasyllabos, e as estrophes em decimas pelos
capitulos petrarchistas, foi então que rebentou uma
lucta desesperada, que se repetiu com os mesmos ca
racteres tanto em Portugal como em Hespanha. Boti
terwek confunde estas duas épocas, uma pacifica, di
rigida por Bernardim Ribeiro até 1526 , e a outra tem
pestuosa encetada por Sá de Miranda depois do seu
regresso da Italia, dizendo : « A introducção do gosto
italiano na poesia portugueza não foi acompanhada de
(1) Obras, de Sá de Miranda, p. 109. Ed. 1804.
OS BUCOLISTAS - ESCHOLA HISPANO - ITALICA 251

nenhuma tempestade ou extranheza . » (1) Emquanto se


imitou apenas o gosto siciliano, não se levantou con
flicto algum ; quando o metro de redondilha foi amoa
çado de ser substituido pelo endecasyllabo, é que se
desencadearam as tempestades, que o proprio Sá de
Miranda descreve, e é que se estabeleceu uma reacção
systematica dos chamados poetas da medida velha.
Historiemos esta primeira phase, apontando os vultos
principaes da Eschola hispano -italica.
Bernardim Ribeiro

A biographia d'este poeta é o commentario unico


das suas obras; natural da villa do Torrão, e oriundo
da familia dos Mascarenhas, que tinha o maior vali
mento de Dom João II, veiu frequentar a côrte em
1496, quando contava então vinte e um annos de
edade. Este facto, que se deduz categoricamente de
varios logares da sua Ecloga II, explica-nos porque é
que no Cancioneiro de Resende ainda figura elle com
suas voltas e Coplas do gosto castelhano , que estavam
então em moda na côrte . A data de 1496 só por si
descobre as alterações feitas nos costumes palacianos;
era morto Dom João II, e o seu successor Dom Ma
noel era casado com a princeza D. Isabel, viuva de
Dom Affonso; haviam regressado de Castella varias
familias aristocraticas comprommettidas na conspiração
dos Duques de Bragança e de Viseu , e entre ellas a
de D. Alvaro de Portugal, com a sua formosissima fi
lha D. Joanna de Vilhena, que em 1483 fôra levada
para Castella muito criança,na fuga da conspiração,
que agora regressava camareira da rainha nova . Foi
n'esta renovação do pessoal na côrte, que appareceu
Bernardim Ribeiro, a quem pedia versos a formosa
(1) Hist. da Litt. portugueza, p. 59.
252 CAPITULO XI

D. Leonor de Mascarenhas. Era um reinado que come


çava pacificamente, conciliando antigos validos e an
tigos homisiados ; é certo que o lyrismo mostra d'aqui
em diante uma paixão desconhecida na litteratura
portugueza, e desde então se canta o amor como uma
realidade séria da vida . Bernardim Ribeiro amou essa
& quem chama pelo annagramma de Aonia , (Joanna)
a qual «Menina e moça fora levada de casa de seus
paes... ) As suas cinco Eclogas são a historia d'estes
amores, contados com uma frescura e ingenuidade pit
toresca de uma natureza fórte em uma epoca primi
tiva . A interpretação d'essas Eclogas comprova -se com
a intelligencia da novella pastoral da Menina eMoça.
D. Joanna de Vilhena era prima de el -rei D. Manoel,
o que vem harmonisar -se com o fundo de verdade da
tradição corrente no seculo XVII , de que amára uma
infanta, filha do rei. A primeira Ecloga passa -se entre
dois pastores, Persio e Fauno ; Persio queixa-se de ter
sido desprezado por aquella que amava , a qual se ca
8ou com um pastor mais rico ; Fauno é ainda inexpe
riente no amor, o lança -se inconsiderado apoz o que
lhe representa a phantasia. Se isto fosse apenas uma
vaga situação banal , a Ecloga sería illegivel; mas os
seus versos vibram de realidade, de verdade e de
exaltação. O pastor Persio representa Christovam Fal
cão, cujos amores com D. Maria Brandão foram como
esta Ecloga os figura, repetindo ás vezes quasi com
as mesmas rimas os versos do Crisfal:
Levada para outra terra,
Vendo -se Persio sem ella,
Vencido de nova guerra,
Mandou á alma traz ella
E o corpo ficou na serra ; etc.
E no Crisfal:
Então descontentes d'isso,
Levaram -na a longes terras,
OS BUCOLISTAS - ESCHOLA HISPANO -ITALICA 253

Esconderam -nà antre umas serras


Onde o sol não era visto,
E &a Crisfal deixaram guerras.

Lida sob este criterio a Ecloga i de Bernardim


Ribeiro é de um encanto, como seouvissemos um dia
logo de Romeo ; aqui a verdade eleva-se á altura da
mais completa realisação artistica . Na Ecloga II o in
teresse augmenta; fallam dois pastores De estranhas
terras nascidos; a personalidade de Bernardim Ri
beiro é evidente, ao descrever a sua naturalidade, e
como veiu para a côrte no tempo das pestes do Alem
tejo, quando a secca e as fomes affligiam aquella
provincia. O outro pastor é Franco de Sandomir , que
outr'ora cantou Celia, nympha que « Em Mondego se
banhou . Evidentemente este interlocutor é Sá de Mi
randa, auctor da Ecloga Celia, e natural de Coim
bra. E' n'esta Ecloga II, que Bernardim Ribeiro de
screve os seus amores com Aonia :

O dia que alli chegou

Joanna acertou de vêr


Que se andava pela ribeira
Do Tejo a flores colher.

D. Joanna de Vilhena vivia como camareira da


rainha nos Paços da Ribeira :

Ribeira mór das ribeiras


Que levam aguas ao mar ,
Vós me sereis verdadeiras
Testemunhas do pesar.

N'esta Ecloga II, em que a poesia serve como


que de cifra para encobrir uma confidencia, encon
291

254 CAPITULO XI

tra-se um vestigio, que explica o remate d'estes amo


res :
Que não me entendo commigo,
D'onde esperarei repairo ?
Que vejo grande o perigo
E muito mór o contrairo.

A superioridade d'este contrario fundamenta -se em


ter o Conde de Vimioso, Dom Francisco de Portugal,
tambem poeta do Cancioneiro geral, casado com D.
Joanna de Vilhena por ajuste de el-rei D. Manoel.
A Ecloga III é um dialogo entre Silvestre ee Amador ;
fallam dos mutuos desastres dos seus amores . Amador
é BernardimRibeiro que deixa a côrte, e encontra no
Alemtejo a Christovam Falcão, de quem, sob a per
sonificação de Sylvestre, se despede, como quem vae
deixar Portugal:
Não te alembre que me viste
Pois nunca mais me hasde ver ;
Leixa- me a mim esquecer,
Que aa minha lembrança triste
Mais triste te hade fazer.

Ir-me -hei commigo queixoso


Sem me queixar do que sento,
Em meus cuidados cuidoso ;
Oh quem fôra tão ditoso
Que perdera o pensamento !
Bernardim Ribeiro, de facto saiu de Portugal; na
Ecloga v, introduz o pastor Agrestes, de quem deixa
os seguintes traços :
E posto que sou doente
Pera este mal não consente
Haver Arte appolinea .
Estes áres são mortaes,
E o que mais me desbarata ,
E dá dores desiguaes,
E' lembrar -me os sinceiraes
De Coimbra , que me mata .
OS BUCOLISTAS ESCHOLA HISPANO - ITALICA 255

E vivendo triste , cego,


Não sei mesquinho, que faça
Que suspiro por Mondego
E chôro pora Regaça .
Todos estes traços quadram perfeitamente a Jorge
de Monte-Mór, que tinha em Hespanha a profissão de
musico, o que era natural de Coimbra ; a Ecloga v
foi encontrada fóra da collecção de Bernardim Ri
beiro, como se pode inferir da rubrica : « A qual di
zen ser do mesmoAuctor. ) Não ha lyrismo que exceda
em melancholia, em naturalidade e vehemencia esta
Ecloga. Só em Camões é que se torna a reunir a per
feição poetica e um amor ardente, como o que vemos
em Bernardim Ribeiro, a quem o cantor dos Lusiadas
chamava o seu Enio. A morte de Bernardim Ribeiro
deve fixar-se não longe de 1554 ; porque n’este anno
appareceu pela imprensa o volume das suas Obras, e
o editor de 1645 diz, que : « se não imprimiu em sua
vida ; por morte se achou entre os seus papeis. » Adiante
trataremos da novella pastoral Menina e Moça. As re
lações poeticas entre Bernardim Ribeiro e Christovam
Falcão, determinadas nas Eclogas I o III, adquirem
mais fundamento desde que vimos que a Ecloga de
Crisfal e as poesias soltas de Christovam Falcão vi
ram pela primeira vez a publicidade junto com as de
Bernardim . Alliados pelos desastres amorosos, acham -se
irmãos pelo genio e pela arte.
Christovam Falcão

Algumas das poesias de Christovam Falcão andam


no Cancioneiro de Resende sob o nome de Bernardim
Ribeiro ; (1) sabendo já a relação intima que existiu
(1) Taes são, fl. 211, col. 3: A uma senhora que se vestiu
de amarello; Ib. , col. 4: Antre tamanhas mudanças; Ib. , col. 5 :
Antre mim mesmo e mim ,
256 CAPITULO XI

entre estes dois poetas, sômos levados a inferir, que


Christovam Falcão nasceu ainda no seculo XV. A sua
alta nobreza e a convivencia na côrte é que o dirigi
ram para a imitação da eschola hespanhola. No Can
cioneiro encontram-se poesias de um João Falcão, es
criptas por 1479, em harmonia com a tradição aristo
cratica que aliava á bravura militar a improvisação
poetica. Christovam Falcão era filho primogenito de
João Vaz de Almada Falcão, que foi Capitão da Mina,
e de D. Brites Pereira. Os manuscriptos genealogicos
conservam vagas referencias a sua vida romantica a
ao amor desgraçado que inspirou a sua lindissima
Ecloga intitulada Crisfal, das primeiras syllabas do
seu nome. Cristovam Falcão amou, sendo bastante
criança, a D. Maria Brandão, filha mais nova do opu
lento Contador do Porto, João Brandão, e irmå dos
dois poetas do Cancioneiro Diogo Brandão e Fernão
Brandão. Resentimentos ou calculos de familia opu
zeram-se a esta paixão sincera entre as duas crianças,
resultando da parte de Christovam Falcão o jazer du
rante cinco annos em carcere privado, e da parte de
D. Maria o ser clausurada no mosteiro de Lorvão. Se
gundo os Nobiliarios, D. Maria Brandão obedeceu a
final ás sugestões da familia , acceitando por marido a
Luiz da Silva, Capitão de Tanger; e Christovam Fal
cão « porque não casou com sua dama foi para a In
dia . E' o que nos conta o Manuscripto de Alão de
Moraes ; bastavam estes simples factos para desperta
rem o mais alto interesse pela leitura do Crisfal, se
essa Egloga não fosse uma das obras mais bellas da
litteratura portugueza. Nas litteraturas da Europa, no
meiado do seculo xvi não existe uma pagina tão elo
quente e apaixonada, como o Crisfal. A Ecloga co
meça por descrever o principio dd'aquelles amores, de
pois como foram separados um do ontro, como conse
OS BUCOLISTAS - ESCHOLA HISPANO - ITALICA 257

guiram ver-se,, e como injustamente se recrimina


ram :

E dizendo : Oh mesquinha !
Como pude ser tão crua ?
Bem abraçado me tinha,
A minha bocca nasua,
A sua face na minha,
Lagrimas tinha choradas,
Que com a bocca gostei;
Mas com quanto certo sei
Que as lagrimas são salgadas,
Aquellas doces achei.

As situações fazem lembrar a ingenuidade primi


tiva do lyrismo dos Fieis do Amor :
Entam ella assi chorosa ,
Por tão choroso me vêr,
Já para me soccorrer,
Com uma voz piadosa
Começou assi a dizer :
-Amor da minha vontade,
Ora não mais, Crisfal manso ;
Bem sei tua lealdade.
Ay que grande descanso
E' falar com a verdade .

Na Ecloga revela o convento aonde foi clausurada


D. Maria Brandão :

Chorando a lembrança d'ella,


Virada foi minha face
Para onde o gado pasce
Da grande Serra da Estrella,
Da qual o Zezere nace .
Indo com não menos dor
Em que já com mais socego,
Os ventos me foram pôr,
Depois de passar o Mondego
Sobre as Serras de Lor.
17
258 CAPITULO XI

Vamali grandes montanhas


De alguns valles abertas,
Todas de soutos cobertas,
Aos naturaes extranhas,
Mas à saudade certas .

Em uma segunda parte apocrypha do Crisfal,


tambem se emprega este mesmo artificio da metrifica
ção, para descobrir o sitio onde Maria estava clausu
rada :
E nas Serras de Lor
Vão sinaes de tuas dores....

Uma Carta em redondilhas de Christovam Faleão,


traz a rubrica : aestando preso, ... a uma Senhora com
quem era casado a furto contra vontade de seus pa
rentes d'ella, os quaes a queriam casar com outrem ,
sobre que fez ( segundo parece) a passada Ecloga .» Á
impressão produzida por esta Ecloga foi immensa ; Ca
mões,7 na primeira Carta da India, escripta em 1554,
cita quatro versos d'ella de uma maneira proverbial.
Este conhecimento dos versos de Christovam Falcão
prova a verdade de algunsparadigmas de Camões,
notados por Faria e Sousa . E como ria Camões tão
perfeito e delicadamente gracioso nas Redondilhas so
elle não houvesse estudado Bernardim Ribeiro e Chris
tovam Falcão. Diogo do Couto, no meio das narra
ções das Decadas, fallando de Damião de Sousa Fal
cão, accrescenta: « irmão de Christovam Falcão, aquelle
que fez aquellas antigas e nomeadas trovas de Cris
fal...» (1) O Padre Cordeiro , fallando do Capitão do
natario da Ilha de Santa Maria e do casamento d'elle
com uma filha de João de Sousa Falcão, accrescenta :
aparente muito chegado do Barão velho, e do famoso
poeta Christovam Falcão, que fez a celebre Ecloga
(1) Decada VII, cap . 34.
OS BUCOLISTAS - ESCHOLA HISPANO -ITALICA 259

Crisfal, das primeiras syllabas do seu nome... ) (1)


N'esta Ecloga allude -se claramente ao desastre dos
amores do Infante Dom Fernando com a filha do
Conde de Marialva, Dona Guiomar Coutinho, casada
a furto com o Marquez de Torres Novas. Restam de
Christovam Falcão pequenas composições lyricas com
postas nas formas da poetica hespanhola, com tal fer
vor que esse estylo cansado pelo maneirismo palaciano
recebe na expressão dos seus sentimentos um extraor
dinario vigor. Esse estado moral de melancholia e de
vago, que tanto caracterisa o espirito romantico das
concepções modernas, acha -se descripto em Christo
vam Falcão como uma feição natural do seu espirito .
Vejamos as seguintes Voltas á ultima e desesperada
situação do seu amor :
Casada, sem piedade
Vosso amor me hade matar.

Se vos eu vira casada


Com quem vos bem conhecera,
Já em vos vêr descansada
Algum descanso tivera ;
Mas o vosso máo casar,
Dobra minha saudade :
Casada sem piedade,
Vosso amor me hade matar.
Para sempre vos casastes,
Para sempre o sentirei,
E pois no casar errastes
Dae-me parte do que errei .
Não vos engane o casar,
Pois não tolhe a liberdade ;
Casada, sem piedade
Vosso amor me hade matar.

Christovam Falcão morreu na India ; por ventura


a tradição recolhida por Camões e Diogo do Couto,
(1) Hist. insulana, p. 113.
**
260 CAPITULO XI

estava ali vigorosa na epoca das suas viagens. O nome


de Crisfal chegou a penetrar na vida civil; nas Mora
dias da Casa de el-rei Dom Sebastião encontra -se in
scripto um certo Cristal Dias. (1) No fim do seculo XVI
Balthazar de Brito e Andrade (Frei Bernardo de
Brito ) escreveu uma segunda parte do Crisfal, imi
tando com felicidade o estylo e a paixão. Brito an
dava realmente impressionado pela sua Sylvia, e com
poz essa segunda parte para mostrar que o pastor
Crisfal deixaria de soffrer na fonte em que estava
tranformado, quando apparecesse um namorado mais
exaltado do que elle.

Os poctas da medida velha

Medida velha era o nome que se dava ao verso


de redondilha ou octosyllabo depois da reforma ope
rada por Sá de Miranda. Esta designação de medida
velha , representa um certo partido de reacção littera
ria contra a innovação italiana. Em Hespanha, Castil
lejos e Gregorio Silvestre (portuguez) foram os caudi
lhos d'esta lucta a favor dos metros peninsulares. Em
Portugal não vêmos surgir nome algum á frente da
defeza da medida velha, mas nos costumes palacianos
a redondilha era a unica forma admittida para galan
tear as damas. Na Arte de Galanteria, da D. Fran
cisco de Portugal, exalta-se a superioridade das de
cimas : « Las Decimas, no se les serrará la puerta de
Palacio, pues tanto se entran por las del pecho ; las
otras modas de versos hizieronze para leydos, y estes
pera sentidos ... » (2) «Glosas, solamente quando el

(1) Souza, Provas da Hist. geneal.,> t. VI, p. 598.


(2) Ob. cit ., p . 111.
OS BUCOLISTAS -- ESCHOLA HISPANO -ITALICA 261

mote fuere de Dama ... las Coplas castelhanas son


las mas proprias para Palacio ... ni ay muger que
apeteca versos sino aquelles que tienen pocas sylla
bas, pensamientos vivos y mucho ayre, que son pro
priedade de Romance, cuyos desenfados parece que se
hezieron solamente para ellas .» ( 1) João de Barros,
em 1539, nos Louvores da lingua portugueza, tam
bem se queixa de estarem desprezadas as redondi
lhas. A' influencia dos costumes galantes do paço é
que se deve attribuir essa particularidade curiosa que
se dá com Sá de Miranda, Camões, Bernardes, Ca
minha, Falcão de Resende, e D. Manoel de Portu
gal, que escrevendo no gosto da eschola italiana, tam
bem metrificaram no antigo verso de redondilha . Sa
de Miranda, fallando com saudade dos tempos dos
bons serões da côrte portugueza, e ufanando-se por
ter ainda ouvido Dom João de Menezes e Dom Ma
noel de Menezes, obedeceu fatalmente a essa influen
cia, em quanto não fez a viagem artistica da Italia .
Quando Camões frequentou a corte, depois de 1542,
já a poesia italiana estava no seu explendor; o facto
de compôr nos metros de redondilha era para com
prazer com o gosto do paço. E na verdade essas Re
dondilhas excedem em graça e espontaneidade os
grandes lyricos da medida velha, Gil Vicente, Ber
nardim Ribeiro e Christovam Falcão. Entre os poetas
da medida velha que resistiram com tenacidade á imi
tação italiana, deve citar - se o aulico Jorge Ferreira
de Vasconcellos, de que restam algumas Coplas pre
ciosas junto da Aulegraphia ; na sua Novella Memo
rial dos Cavalleiros da segunda Tavola Redonda in
tercalou bastantes composições na forma do romance
popular, compostas sobre situações dos poemas dos
cyclos de Arthur e greco-romano. N’esta parte Jorge
(1) Ib ., 118, 143, 114 .
262 CAPITULO XI

Ferreira seguia à pura tradição castelhana; n'este


tempo o romance popular tambem recebia na littera
tura visinha uma forma culta, em Sepulveda, Lobo
Lasso de La Vega, Juan de la Cueba; em musica, por
Torres, Fuenllana e outros compositores, chegando -se
a compôr romances sacros, como vemos em Frei An
tonio de Portalegre, escriptos para introduzir na cor
rente do gosto . o sentimento devoto acobertado com
?
essas tonadilhas mais repetidas. As trovas de Luiz
Brochado, intituladas Coplas do Moleyro, pertencem
ao estylo da medida velha, tambem adoptado por
Soropita para as Satyras politicas. A melhor parte
d'estas composições, sobretudo a que não foi recolhi
da em Cancioneiros de mão, perdeu -se, como sabemos
pela confissão de Luiz Vicente ácerca das Obras meu
das de seu pae. No fim do seculo XVI ainda era bas
tante geral à monomania de ter cada individuo o seu
Cancioneiro manuscripto, como ainda hoje se guardam
os albuns ; mas estes Cancioneiros de mão, sabe -se
pela affirmação de Faria Sousa, foram recolhidos
pelo Santo Officio, que os destruia para aperfeiçoa
mento dos costumes . Algumas das composições d'este
genero receberam uma certa popularidade, taes como :
Pensando-vos estou filha, de Bernardim Ribeiro, e o
Pranto de Maria Parda, de Gil Vicente, que Jorge
Ferreira cita com esse caracter; e as Trovas moraes
de Luiz da Silveira, citadas na Pratica de Outo figu
ras, pelo Chiado. Os Avisos para guardar, os Arre
negos de Affonso Valenté, os Letreiros sentenciosos, Re
gra Espiritual, e Petição ao Commissario, por Anto-.
nio Ribeiro Chiado, são as composições da medida ve
lha que mais se leram e repetiram na ultima metade
do século xvi, não exceptuando os Conselhos para
casar e Malicia das mulheres, por Balthasar Dias. Os
poetas da medida velha esqueceram -se do bucolismo,
e afrouxaram -se nas composições moraes o satyricas.
CAPITULO XII

Sá de Miranda e a introducção da Eschola


italiana em Portugal

Acção da Italia nas litteraturas romanicas: França,Hespanha


e Portugal.-- Em que condições se introduz em Portugal a
imitação da poesia italiana, em 1527. Personalidade de Sá
de Miranda, introductor dos novos metros .-Como se orga
nisa uma Eschola poetica em volta d'elle .-- A comedia clas
sica, imitada de Terencio, Plauto eAriosto.-Jorge Ferreira
imita a Celestina . - Elemento tradicional que conduz o Dr.
Antonio Ferreira a crear a verdadeira tragedia moderna.
Poetas da Eschola de Sá de Miranda : Pedro de Andrade
Caminha, D. Manoel de Portugal, Diogo Bernardes, Frei
Agostinho da Cruz, André Falcão de Re nde . --Seu valor
litterario.

Repascença da Italia nas Litteraturas


romanicas

No seculo xvi estavam criada аa sociedade burgueza,


estabelecida a independencia monarchica, disciplinadas
e escriptas as novas linguas dialectaes que se substi
tuiram ao latim ; mas sob o ponto de vista politico as
novas nacionalidades, provenientes da mesma origem
ethnica e egualmente herdeiras da civilisação romana,
estavam profundamente separadas por odios dynasti
008. A Renascença da antiguidade operada na Italia,
veiu imprimir uma direcção uniforme ás litteraturas
romanicas, e postoque as desviasse do elemento fe
cundo das suas tradições, serviu para tornar por esse
orgão mais evidente aа . unidade moral d'estes povos mo
dernos. A Italia achou - se em condições especiaes para
a obra da Renascença ; em primeiro logar a tradição da
antiguidade nunca se perdeu ali completamente. As Es
cholas de jurisprudencia eram tão reputadas como as
antigas de Lobeão ou Capitão ; os monumentos e as
264 CAPITULO XII

ruinas foram educando os novos genios, de modo que


quando a Italia se viu disputada pela Allemanha, in
vadida pelaFrança, conquistada pela Hespanha, atrai
çoada pela Theocracia, esses grandes genios desgosta
dos da vida publica e sem esperança dofuturo da sua
patria, refugiaram -se no mundo sereno do passado, re
construiram a vida grega e romana , consolaram -se re
produzindo esse ideal antigo que lhes apparecia no
meio das catastrophes. Que esperanças não teve Pe
trarcha na hallucinação de Rienzi, quando tentou re
stabelecer o Imperio em Roma ! Emquanto os exercitos
francezos talavam o solo italiano, os sabios discutiam
o platonismo, os pintores e os poetas, como outr'ora
Archimedes, não sentiamo estrepito das armas do
invasor. Mas os que conquistavam a Italia admiravam
a sua cultura intellectual, e a Italia exercia sobre o
vencedor o seu perstigio da Arte, como Roma ficou
exercendo depois da queda o dominio das Leis . Com
a França vemos Carlos VIII chamar para a sua côrto
os sabios italianos ; Luiz XII, enriquecer com as bi
bliothecas da Italia as livrarias francezas; Francisco I
é educado por um pedagogo italiano, e inscreve -se ci
dadão no Livro de Ouro, de Veneza. O conhecimento
da litteratura italiana levanta a Pleiade.
Pela imitação faustosa da côrte e da aristocracia ,
é que a Renascença entra em Inglaterra ; depois de
1554 as villas substituem -se aos castellos feudaes. Na
côrte de Henrique viii, apparecem os lyricos Wyat
e o Conde de Surrey, que imitam o gosto italiano.
Com relação à Hespanha, a influencia da Italia é
muito mais antiga ; data ella desde o principio do se
culo xv, quando Micer Francisco Imperial introduziu
o conhecimento de Dante ; o Cancioneiro de Stúñiga
revela a cada pagina que foi escripto por poetas que
estiveram na conquista de Napoles . Mas o lyrismo cas
telhano estava immobilisado nas velhas formas da poe
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 265

tica provençal, e o gosto dos Cancioneiros havia re


duzido a poesia a um convencionalismo mechanico. Em
1524, Andrea Navagero foi enviado como Embaixador
de Veneza a Carlos V ; durante seis mezes que esteve
om Granada encontrou -se com Boscão, e nas suas lar
gas conversas sobre litteratura trouxe á observação
do poeta os caracteres particulares do metro italiano,
e pediu-lhe que experimentasseo metrificar em caste
lhano no verso endecasyllabo. Boscan, satisfeito com
a sua tentativa, continuou a exercitar-se, mas teria
por certo desfallecido no meio da empreza, debaixo dos
ataques dos apaixonados do metro de redondilha, se
Garcilasso, já então reconhecido como um eminente
lyrico, o não viesse fortalecer com a sua adhesão. A
questão dos novos metros italianos foi o facto unico
em volta do qual se deram grandes batalhas contra a
introducção da eschola italiana ; accusavam o metro
endecasyllabo de não ser nacional , mas é certo que a
sua accentuação está de tal forma em harmonia com
a prosodia das linguas romanicas, que bastava esta
primeira conformidade para determinar uma relação
commum entre ellas, e portanto o criterio compara
tivo para estudal- as.
Vendo-se a epoca em que entrou em Hespanha a
Eschola italiana , em 1524, immediatamente se nota
que se deu egual phenomeno em Portugal, quasi ao
mesmo tempo,quando Sá de Miranda regressou da
sua viagem á Italia, em 1526. Esta phase litteraria
foi tão tempestuosa em Portugal comoem Hespanha.
No prologo da Ecloga Encantamento, fala Sá de Mi
randa d'essa lucta :

que são dinos


De perdão os começos que já fiz
Aberta aos bons cantares peregrinos.
Fiz o que e pude , como pors si diz s
Aquell , um só dos lyrico latino ...
266 CAPITULO XII

Andando apoz aa paga, houve aos sizos


Gram medo, (que o confesso ) e a huns pontosos
De rostos carregados, ou de uns risos
Sardonios, ou mais claro,maliciosos...
Immediatamente, agruparam -se om volta de Så de
Miranda o nobilissimo D. Manuel de Portugal, filho
do Conde de Vimioso, Pero de Andrade Caminha,
depois Ferreira, em seguida Bernardes, mais tarde
André Falcão de Resende. Estava criada a Eschola
italiana em Portugal; as novas poesias corriam de
mão em mão manuscriptas, e pouca influencia po
diam exercer sobre o gosto publico, porquesó viram
a luz no ultimo quartel do seculo xvi. Este facto
tambem nos explica a persistencia da chamada Es
chola da medida velha .

så de bliranda

Dá-se n'este homem a perfeita alliança do talento


com o caracter ;a sua vidanão é menos bella do que
as suas obras. Fixa Dom Gonçalo Coutinho, na vida
que d'elle escreveu sobre tradições conservadas por
Bernardes e por D. Manoel de Portugal, o seu nasci
mento em 1495. Nasceu Francisco de Sá o Miranda
em Coimbra, de uma mulher nobre e do Conego Gonçalo
Mendes de Sá ; o em casa de seus avós João Gonçal
ves de Miranda e Souto Mayor e Filippa de Sá, que
residiam em Buarcos, passou os primeiros tempos
da sua meninice. Gonçalo Mendes de Sá era no
principio do seculo xvi um dos personagens de mais
valimento em Coimbra ; sua irmã D. Guiomar de Sá
era estimada pelo violento Bispo de Coimbra, Dom
João Galvão, primeiro Conde de Arganil. Francisco
de Sá e Miranda teve numerosos irmãos, mas nos seus
versos apenas fez menção de Mem de Sá, que foi Go
>

vernador do Brazil; na Elegia á morte de Garcilasso,


DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 267

dá- se como parente d'esse insigne poeta por parte dos


Souto -Mayores:
Al tan antiguo aprisco
De Lassos de la Vega
Tuyo, el nuestro de Sá viste ayuntado.
De facto pelos Nobiliarios se verifica o casamento
de «uma filha de Ruy Paes de Souto Mayor -om Gar.
cia Lasso de la Vega o velho.» ( 1) A nobreza princi
pal vinha da parte dos Sás, affamadissimos poetas do
Cancioneiro, João Rodrigues de Sá, o velho, Henrique
de Sá e Francisco de Sá de Menezes, o joven poeta
queria assim mostrar que por parte de seupae não era
inferior em nascimento . Em 1505 ainda Sá de Miranda
residia em Coimbra, porque allude á abertura do tu
mulo de Dom Affonso Henriques, na Carta a Pero Car
valho; o como a Universidade estava em Lisboa, por
certo veiu muito cedo frequentar esses estudos convi.
vendo tambem na côrte, por isso que em 1516 já fi
gura como poeta no Cancioneiro de Resende, e com a
rubrica de Doutor. (2) Esto titulo não deixa confun
dil-o com o outro seu homonymo Francisco de Sá tam
bem poeta, o qual foi Capitão dos Guardas de el-rei;
na Carta que lhe dirigiu Manoel Machado de Azevedo,
tem o nome de letrado :

O grande affeito me ordena


Que aconselhe a um letrado... (st. xx.)

Segundo a tradição conservada por Dom Gonçalo


Coutinho, Sá de Miranda ficou na Universidade de Lis
boa regendo uma cadeira ; seria n'esta epoca que elle
teve mais intimidade na côrte, ouvindo ainda as ulti
(1) Mon. hist., Scriptores,p. 387.
( 2) Cano. geral., f. 109, col. 1.
268 CAPITULO XII

mas coplas de Dom João de Menezes, Conde de Can


tanhede, e metrificando com Bernardim Ribeiro a pe
dido das damas do paço, como vemos succeder com
Dona Leonor de Mascarenhas. Mas em 1521, Sá de
Miranda deixa a côrte e emprehende a viagem da Ita
lia. Na Carta a D. Fernando de Menezes, diz elle :
Vi Roma, vi Veneza e vi Milão
Em tempo de Hespanhoes e de Francezes...

Foi em 1521 que os exercitos de Carlos V o de


Francisco I se encontraram sobre o territorio italiano
disputando -o. Não era esta uma occasião favoravel para
emprehender a viagem da Italia como artista ou eru .
dito ; por tanto Sá de Miranda saíu do Portugal por
uma causa imperiosa. Sabe -se que em 1521 saíram de
Portugal bastantes fidalgos que seguiam o partido do
principe contra Dom Manoel, porque o velho monar
cha casara em terceiras nupcias com a noiva de seu
filho. O facto de Sá de Miranda regressar da Italia
somente depois que Dom João III subiu ao throno con
firma a primeira inducção. Durante a sua viagem , Sá
de Miranda conversou com varios eruditos italianos,
como João Ruscellai e Lactancio Tolomei; as campinas
desoladas das cercanias de Roma tambem lhe causaram
uma melancholia profunda, como as aguas turvas do Ti
bre contrastavam com a limpidez e serenidade do seu
patrio Mondego. Em 1526 é que Sá de Miranda regressa
a Portugal, voltando immediatamente para Coimbra,
aonde em 1527 recita uma Oração na chegada de D.
João III e da rainha D. Catherina que fugiam da peste
de Lisboa. N'este anno tambem GilVicente foi a Coim .
bra representar a sua comedia da Divisa , e é natural
que os divertimentos scenicos despertassem em Sá de
Miranda a lembrança da Comedia classica italiana, por
que n'este mesmo anno escreve os Estrangeiros. No
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 269

prologo d’esta comedia em prosa, diz que não se can


sem a accusal- o de imitar Ariosto, o muito menos
Plauto ou Terencio ; n'esta mesma comedia condemna o
titulo de Auto, que se lhe costumava dar em Portugal.
Na Carta aa Pero Carvalho, fala Sá de Miranda da inso
lencia dos fidalgos que acompanharam a côrte, que di
ziam mal de Coimbra e empobreciam os parvos hon
rados que os sustentavam . Na Carta de Manoel Ma
chado de Azevedo a Sá de Miranda, diz - lhe:
Põe- se em muito grande perigo
Quem descobre todo o peito ;
Por um bom dito ou conceito
Não perdaes nenhum amigo.
Os Carvalhos e os Carneiros
Da Beyra, Entre Douro e Minho,
São mui bons qua no seu ninho,
Aos fidalgos e escudeiros.
A quem d'elles se aproveita
São de proveito e sustento ;
Mas lá com seu valimento
Só vive quem os respeita.
(st. XII-XIV.)

Estes versos descobrem-nos o fio que levou Sá de


Miranda a abandonar a côrte muito cedo. O seu ca
racter justo e incapaz de tergiversar, obrigava-o a fal
lar como pensava ; em volta d'elle deu-se esse extraor
dinario escandalo do Marquez de Torres Novas que se
oppoz ao casamento de D. Guiomar Coutinho com o in
fante Dom Fernando, dizendo que era casado clandes
tinamente com ella. Depois de largos processos cano
nicos e civis, o Infante casou, mas em bem poucotempo
morreram successivamente elle, sua mulher ee filho. Sá
de Miranda escreveu a Ecloga Andrés, em que allude va
gamente a estes desastres ; por ventura d'aqui se ori
ginou o conflicto que o fez aborrecer a vida da corte
270 CAPITULO XH

para sempre. Em 1534 Sá de Miranda abandona de


finitivamente a côrte, como se pode bem determinar
pela Elegia á morte do principe Dom João, em que
diz que vive á sombra dosarvorodos, desde que 0o mal
vado Inglez, Henrique VIII, so separou da egreja .Dom
João III, sempre amigo de Sá de Miranda, deu -lhe a
Commenda das DuasIgrejas; na vida da provincia e
para conversar sobre o que vira e o que lera, aproxi
mou-se de Antonio Pereira Marramaque, senhor de
Basto, e ali na sua quinta da Tapada,sentados ao pé
da fonte da Barroca , liam Sanasarro e Bembo, e por
via de seu amigo tomava conhecimento das obras de
Garcilasso :
A vossa fonte tão fria
Da Barroca em Julho e Agosto,
Inda me é presenteo gosto,
Quão bem que nos hi sabia
Quanto na meza era pôsto.
Deshi o gosto chamando
A outros móres sabores,
Liamos pelos amores
Do bravo e furioso Orlando,
Envoltos em tantas flores.

Liamos os Assolanos
De Bembo, engenlio tão raro .
N'estes derradeiros annos ,
E os pastores italianos
Do bom velho Sanasarro.

Liamos ao grande Lasso


Com seu amigo Boscão,
Que honraram a sua nação ;
Ia -me eu passo a passo
Aos nossos, que aqui não vão.
(Carta 11) .
Por ventura pelas relações litterarias que contra
hiu com Manoel Machado de Azevedo, da Casa de
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 271

Crasto, é que Sá de Miranda veiu a casar com D.


Briolanja de Azevedo. A tradição de que ella era ve
lha e feia é fundada sobre uma má interpretação de
uma galanteria de Sá de Miranda, que lhe disse no
acto de a pedir : Dae-me com esse páo, porque vim
tão tarde. Nos Sonetos, falla Sá de Miranda da pre
cocidade dos seus cabellos brancos ; e, costumado como
estava á galanteria do paço, esse dito só podia re
ferir -se a si proprio. Foi durante a sua tranquilla
existencia na quinta de Entre-homem e Cávado,
que recebeu as mais sinceras homenagens dos bons
espiritos que iam surgindo na litteratura. Em 1545 o
Cardeal Infante Dom Henrique manda -lhe pedir as
suas duas comedias dos Vilhalpandos e Estrangeiros
para as fazer representar; o principe Dom João, filho
de Dom João III, manda - lhe pedir a collecção dos
seus versos. No doce remanso da familia, como o do
screve Bernardes como testemunha occular, ensinava
musica a seus filhos Gonçalo de Sá e Jeronymo de
Sa. Mas toda esta santidade domestica ia em breve
ser destruida . Em 1553 morre - lho na Africa seu filho
Gonçalo de Sá, n'essa desastrada expedição de Couta
aonde tambem morreu Dom Antonio de Noronha, o
intimo amigo de Camões; sua mulher D. Briolanja
de Sá nunca raais teve saude e morreu logo em 1555 ;
a tristeza de Sá de Miranda agravou -se com a morte
do principe Dom João em 1554, o com a de Dom
João III em 1556. Ferreira escrevia-lhe uma formo
sissima Elegia a consolal-o pela morte de seu filho;
Jorge de Monte -Mór escrevia -lhe com enthusiasmo con
sultando - o sobre se deveria ficar em Portugal; Dom
Manoel de Portugal mandava -lhe os seus versos para
os emendar , todos o cercavam no seu retiro com o
mais profundo respeito. Mas aquella natureza pura e
boa achava -se só no mundo, e apenas sobreviveu mais
trez annos a sua mulher, morrendo em 1558. Sá de
272 CAPITULO XII

Miranda escreveu uma grande parte das suas Eclogas


em castelhano, e pode-se dizer que a sua reputação
europêa provem d'essas Eclogas, que em Portugal
quasi se não apreciam ; Bouterwek diz que na histo
ria da litteratura hespanhola ficará uma lacuna se se
não fallar em Sá de Miranda. Este escriptor, apezar
de ter composto uma grande parte das suas poesias em
castelhano,não foi menos propugnador da lingua por
tugueza do que Ferreira ; Castanheda, no prologo da
Chronica do Descobrimento da India , confessa que
deve a Sá de Miranda a animação para escrever a

sua narrativa em portuguez. Sá de Miranda distin


gue -se por uma tal abundancia do locuções populares,
que se não sabe se aquella é a sua linguagemnatural
se um effeito artistico aproveitado com um delicadissimo
gosto ; com esta linguagem a sua expressão senten
ciosa toma uma magestade secular, os seus quadros
pastoris uma frescura de realidade, a sua tristeza
deixa de ser um mal estar pessoal, mas o sentimento
da vida como as cousas o despertam . Pode-se dizer, é
um grande poeta filho de um sublime caracter .
Eschola de Sá de Miranda : Ferreira
e o Theatro classico

O Doutor Antonio Ferreira distingue -se entre


todos os Quinhentistas pelo seu immenso respeito á
auctoridade classica ; não se encontra entre os seus
versos nenhum signal de que tivesse, pelo menos nos
seus primeiros ensaios litterarios, empregado o verso
de redondilha ; pelo contrario dizia : « a antiga trova
deixo ao vulgo. ) Mas apesar do seu profundo conhe
cimento do grego e do latim, o da exclusiva ad
miração pela poesia italiana, as suas composições re
velam um espirito superior, o qual se dá a conhecer
mais claramente na comprehensão que teve das tra
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 273

dições nacionaes . O assumpto do poema de Santa


Comba dos Valles, já bastava para se vêr que a tra
dição continha para ello um certo perfume de poesia ;
mas a tradição dos amores de Ignez de Castro tomada
como objecto de uma tragedia regular, em tempo em
>

que ainda na Europa ninguem se atrevia a tratar


sobre a scena assumpto que não fosse da historia grega
ou romana, este raro tino de Ferreira é prova de
que a exagerada educação classica não pôde completa
mente desnaturar -lhe o genio. Antonio Ferreira nas
ceu em Lisboa, em 1528, de Martim Ferreira, escri
vão da fazenda do Duque de Coinbra, e de D. Mecia
Fróes Varella ; a primeira educação de Ferreira fez -so
em Lisboa, por ventura no Collegio de Mangancha,
que só mais tarde acompanhou a Universidade para
Coimbra, com o titulo de Collegio de Sam Paulo ;
ainda em Coimbra cursou humanidades, já sob o re
gimen dos professores francezes que vieram de Paris
por intervenção do Dr. André de Gouvêa, em 1547 .
Pelas obras de Ferreira conhece-se como recebeu o
conhecimento da litteratura grega pelo celebre erudito
Diogo de Teive; florescia tambem a este tempo em
Coimbra Jorge Bucchanan, que tornou mais frequen
te o uso das comedias classicas nos divertimentos es
cholares. Em 1553 já Antonio Ferreira conhecia a
eschola italiana, e escrevia em tercetos a Sá de Mi
randa essa affectuosa Elegia em que o consola no de
sastre daperda de seu filhoem Ceuta. As poesias ly
ricas de Ferreira foram escriptas até ao anno de 1557,
em que já as tinha recolhidas com o titulo de Poemas
lusitanos, porventura para serem dadas ao prélo ;
compõem -se de Sonetos, em parte de uma metrifica
ção de quem não domina perfeitamente o endecasyl
labo, mas em compensação de uma pureza e natura
lidade de sentimento tal, que provoca a vontade de
descobrir 18sob as suas palavras apaixonadas quem é
274 CAPITULO XII

que assim o inspirava. De facto a maior e melhor


parte dos seus versos descrevem o seu amor por Maria
Pimentel, com quem veiu a casar, e de quem viuvou
em 1568, ficando -lhe tres filhos : Miguel Leite Fer
reira, que da morte de seu pae, logo em 1569, diz ::
« deixando-me em tal edade que o não conheci ; » >

Dona Catherina de Moredo, Ruy Leite. Por estes


tros filhos se pode fixar aproximadamente a epoca do
seu casamento. Os outros seus versos são Cartas,
Eclogas , Elegias, Epithalamios aos espiritos mais no
taveis do seu tempo, especie de conversas sodalicias,
mas que derramam uma luz immensa sobre a vida
intellectual do seculo xvI . Ferreira tambem conheceu
a tradicção provençal portugueza ; no seu tempo dos
cobriu - se no Vaticano o Cancioneiro de Dom Diniz,
e é por isso que elle lhe chama:
e

.da sua lingua amigo,


D'aquellas Musas rusticas emparo.
Quando Sá de Miranda tentou introduzir em Por
tugal a Comedia classica, escreveu : « Extranhaes-me,
que bem o vejo... mas não hade fallecer quen me ar
remede .» De facto, o Dr. Antonio Ferreira, o princi
pal discipulode Sá de Miranda, desempenhou este pre
sentimento do mestre . Nos divertimentos escholaros,
anteriores a Ferreira, já se haviam feito tentativas dra
maticas ; a comedia Eufrosina, de Jorge Ferreira de
Vasconcellos, fôra escripta em 1527, em Coimbra,
e a Ulyssipo em 1547. Em 1551 achamos, por occa
sião das festas do doutoramento de D. Antonio, Prior
do Crato, representada a tragi-comedia em latim inti
tulada Golias: « que representaram os estudantes no
bres da Universidade na claustra da Portaria, que fica
anterior ao Mosteiro. » (1) Por motivo das festas pu
( 1) D. Nicolao de S. Maria, Chr. dos Regr., p. 183.
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 275

blicas pelo casamento do princepe Dom João com a


princeza D. Joanna, filha de Carlos ,
v , é que Ferreira
allude a outros divertimentos escholares: « n'esta Uni
versidade... onde pouco antes se viram outras , que a
todas as dos antigos ou levam ou não dão vantagem .»
Ferreira tambem confessa no prologo o que deve a Sá
de Miranda : « não falo nos que o seguiram até agora
em Italia, pois em nossos dias vêmos n’este Reyno a
honra e o louvor de quem novamente a trouve à elle,
com tanta differença dos antigos quanta é a dos mes
mos tempos.». E por fim confessa que a comedia de
Bristo fôra composta em ferias furtadas ao estudo
« como cousa de poucos dias ordenada. » A Comedia
Cioso, pertence á mesma imitação classica terenciana,
em que os personagens são o Miles gloriosos, ou o fan
farrão italiano, a hetaira groga, ou a cortegiana ita
liana, e os filhos-familias pervertidos entre estas duas
forças dissolventes. Com a morte do princepe Dom
João em 1554 os divertimentos escholares ficaram in
terrompidos; era para este princepe que Jorge Ferreira
de Vasconcellos escrevia a Comedia Julegraphia , que
deixou inedita e que só foi publicada por seu genro .
As tres comedias de Jorge Ferreira pertencem á es
chola classica, mas a influencia italiana está substituida
n'ellas pela imitação da Comedia Celestina, a grande
maravilha do theatro hespanhol. Jorge Ferreira pro
testava contra a monomania aristocratica da viagem á
Italia .
Em 1555 a reforma dos Estudos em Coimbra foi
completamente arruinada pela entrega que D. João III
mandou fazer dos estabelecimentos litterarios aos Je
suitas, como se pode vêr por esta Carta dirigida a
Diogo de Teive : Mando- vos que entregueis esse Col
legio das Artes, e o governo d'elle mui inteiramente
ao Padre Diogo Mirão, Provincial da Companhia de
Jesus, o qual assim lhe entregareis do primeiro do mez
276 CAPITULO XII

de Outubro, que vem d'este presente anno de 1555 em


diante, etc.» ( 1) O resultado d'esta reforma, acha -se
>

na Carta de Martim Gonçalves da Camara om 1570,


ao Reitor da Universidade, dizendo que os nossos ho
mens se contentam mais em serem « catholicos aindaque
menos Latinos . ) Ferreira ainda estava em Coimbra
quando Diogo de Teive teve de abandonar em 1555
a direcção dos Estudos; quando já se achava em Lis
boa, em 1557 escreveu ao seu antigo Mestre:
Prometti-te, meu Teive, á tua partida,
Mil prosas e mil versos, e em mil mezes
Uma Carta té outra terás lida.

Não sabiam mentir os portuguezes,


Entrou novo costume ...

Cabe tambem a Ferreira a gloria de ter protes


tado a favor da liberdade do pensamento, quando o
Cardeal Dom Henrique creou em 1564 o primeiro In
dex Expurgatorio :
Escuro e triste foi aquelle dia
Que ao saber e engenho um juiz foi dado,
Que nunca ao claro sol olhos abria .
(n, 112 ).

Quando Ferreira já residia na capital, occupando


o alto cargo de Desembargador da Relação deLisboa,
é que escreveu essa sua preciosa tragedia Castro, cuja
composição se pode fixar em 1558. Com certeza Fer
reira teve o pensamento d'esta tragedia nacional des
pertado pela tradição que em Coimbra se repetia
ainda vivamente no seculo XVI; o Padre D.Marcos de
Sam Lourenço, commentando o episodio de Inez de
Castro nos Luziadas, allude aos cantos populares que
(1) Compendio hist., p. 4.
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 277

ouvia repetir nas margens do rio Mondego. Pela Cas


tro, conhece-se que Ferreira imitava directamente as
fórmas gregas, sem récorrer a Seneca, como então se
usava na Europa ; elle reproduz esse caracter divino
da tragedia antiga na lucta entre o amor e a obedien
cia filial; uma sombra de fatalidade logo no principio
empana a alegria do Côro com que começa a acção;
nos monologos e dialogos ha essa expressão e ardor
exaltado que na tragedia grega é o movimento dithy
rambico do lyrismo religioso ; a acção dramatica é sim
plesmente episodica em volta d'este lyrismo elegiaco, e
apenas serve para trazer logicamente a catastrophe,
que se sabe que hade succeder fatalmente. Para imi
tar o iambo trimetro usado pelos gregos para a lin
guagem simples, Ferreira serve-se pela primeira vez
do verso solto usado por Trissino, quebrando-o nos
seus hemistychios. A theoria dos Córos gregos, tão dif
ficil de comprehender, acha-se no modocomo Ferreira
os talhou. Emfim , analysando -se a Castro de Ferreira
é preciso ter em vista, que não é uma tragedia de ef
feito, mas uma reconstrucção conscienciosa e bella da
estructura tradicional da tragedia grega. A Castro,
postoque não seja a primeira tragedia classica que
appareceu nas litteraturas modernas, conservará sem
pre esse logar de prioridade, porque foio primeiro fa
cto de historia nacional tratado pela Renascença no
theatro. A influencia da Castro de Ferreira estendeu-se
a toda a Europa, apesar de ter sido publicada qua
renta annos depois da morte do seu auctor; o theatro
moderno todas as vezes que quiz tomar uma feição na
cional sob a corrente italiana ou franceza, veiu orien
tar-se sobre este assumpto. Em Hespanha escreve
ram-se ainda no século xvi duas tragedias, Nise lasti
mosa ' Nise laureada, de Jeronymo Bermudez, que
foram as primeiras do reportorio tragico. Disputou -se
algum tempo se a Castro de Ferreira era traduzida do
278 CAPITULO XII

castelhano, pela sua conformidade com a Nise lastimosa.


Felizmente a questão está resolvida mesmo pelos hes
panhoes, como Martinez la Rosa, a nosso favor; Fer
reira morreu em 1569 da peste grande, e desde 1557
que tinha as suas Obras collecionadas; a Nise lastimosa ,
de Bermudez, que esteve em Portugal, só se imprimiu
em Madrid em 1577. Pelo facto da Castro de Ferreira
apparecer posthuma em 1598 é que se suppoz, sob a
primeira impressão, ser um plagiato ; mas comparadas
as duas tragedias salta á primeira vista a originali
dade da portugueza, e a mediocridade poetica de Ber
mudez accentua -se immediatamente no modo como tra
tou o assumpto na Nise laureada, especie de coroação
como a usou Nicoláo Luiz . Em 1555 publicou-se tam
bem em Lisboa a traducção da tragedia Agamemnon ,
por Henrique Ayres Victoria, « tirada do grego em lin
guagem troada. » A direcção da Renascença exagera
damente erudita é que nos afastava das tradições na
cionaes para astraducções, que a nada conduzem . Cabe
tambem a Ferreira a gloria de ter presentido a ne
cessidade de uma Epopêa nacional ; elle não tinha ima
ginação nem poder creador para a fazer, mas se a
morte o não arrebatasse tão prematuramente teria bas
tante influido para que se realisasse mais cedo este
bello pensamento .

Caminba , Bernardes , D. Manoel de Portugal,


Fr. Agostinho da Cruz e Falcão de Resende

Pedro de Andrade Caminha -pertence ao numero


d'essas familias fidalgas da Galiza, que nas luctas de
Pedro Cruel contra Henrique IV , emigraram para a
côrto de D. Fernando de Portugal. Caminha nasceu,
conforme se póde inferir por differentes logares das
suas obras, não longe de 1520. Foi este o poeta qui
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 279

nhentista que mais cedo teve relações com Sá de Mi


randa ; mas tambem foi o mais mediocre e quasi sem
ideal, suppondo- se mesmo que teve uma certa baixeza
de caracter, como se prova pelos Epigrammas odientos
contra Camões e pela accusação violenta que em 1571
fez ao Santo Officio acerca das opiniões hereticas do
eminente historiador Damião de Goes . Caminhą en
trou muito cedo para o cargo de Camareiro do prin
cepe Dom Duarte, o que o levou a bajulal-o constan
temente nos seus versos; as composições inspiradas por
uma continua adulação alcançaram pingues tenças,
como a de parte dos direitos do vinho que sae pela
barra do Porto, por carta de 21 de Outubro de 1553 ;
a Alcaidaria -mór de Celorico de Basto ; e uma tença.
de duzentos mil reis pelo princepe Dom Duarte ; to
das as joias do guarda-roupa do mesmo princepe; e
mais sessenta mil reis de tença , que lhe dera o rei .
Caminha elogia o Cardeal Dom Henrique por estabe
lecer a Censura dos Livros, recolhendo tambeni os
seus versos para lisongear o Duque Dom Duarte seu
amo; era amigo intimo do censor ecclesiastico o Padre
Bartholomeu Ferreira, ee por isso facil lhe era alcançar
as licenças para a publicação; mas quiz uma certa
fatalidade que os seus versos ficassem ineditos até a
edição feita pela Academia das Sciencias em 1791 ,
sobre dois manuscriptos que pertenceram á Livraria
do Convento da Graça e á do Duque de Lafões. Os
versos de Caminha são importantes sobretudo como
documentos para conhecer a vida moral de alguns
poetas do seculo XVI; por elles temos algum conheci
mento d'esses estimaveis poetas João Lopes Leitão e
Heitor da Silveira, e a noticia da morte de D. Ca
therina de Athayde, filha de D. Antonio de Lima e de
D. Maria Boca-Negra. Quando um seculo apparece na
historia como este dos quinhentistas, tudo quanto con
tribue para aprofundar o seu conhecimento será sem
280 CAPITULO XII

pre tido como de valia. A's vezes as epocas levan.


tam os homens ; Andrade Caminha teve esta fortuna,
Diogo Bernardes - foi um dos mais intimos amigos
de Caminha, como elle, tambem inimigo de Camões,
sendo accusado de ter roubado bastantes Sonetos,
Eclogas e o poema de Santa Ursula ao desgraçado
cantor dos Lusiadas; mas uma tradição litteraria o
lava em parte d’estas maculas, e é, o ter pedido que
o enterrassem junto da sepultura de Camões. Ber
nardes era natural de Ponte do Lima, circumstancia
que não pouco influe no caracter de perfeição do seu
lyrismo, porque o Minho foi a patria do primeiro ly,
rismo portuguez na epoca em que imitámos os trova
dores . Bernardes visitou Sá de Miranda na sua vi
venda das Duas Igrejas, muito antes de 1553; por
ventura as fórmas hespanholasde Vilancetes, Voltas
Glosas, Endexas, Respostas e Romances, de que elle
usou, pertencem a um periodo em que não conheceu
a eschola italiana. Quando voiu viver para Lisboa é
que Bernardes travou relações com Caminha e com o
Doutor Antonio Ferreira, que o aconselharam nas suas
primeiras tentativas dos metros italianos. Ferreira
mostrou -lhe a sua tragedia Castro , como Bernardes o
revela no Soneto cx.A superioridade do lyrismo de
Bernardes provém da sua paixão pela decantada Syl
via, que sesabe hoje ter sido D. Maria Coutinho com
quem casou . Tambem algum tanto bajulador, quali
dade adquirida pela convivencia de Caminha, Bernar
des recebeu bastante protecção de Pedro de Alcaçova
Carneiro, a quem chama:
Este meu Mecenas portuguez,
A cuja sombra canto descançado.
Bernardes acompanhou este ministro na sua via
gem a Hespanha em 1576, quando foi por Embaixa
dor a Philippe II. Quando em 1578 D. Sebastião par
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 281

tiu para a desgraçada expedição de Africa, Bernardes


foi preferido a Camões para acompanhar o exercito,
como um novo Taillefer, para cantar as façanhas do
monarcha que já levava comsigo a corôa de ouro com
que se havia de coroar imperador em Fez. Em con
sequencia da derrota de Alcacer -kibir, Bernardes ficou
captivo em Africa, como Fernão Alvares d'Oriente,
Miguel Leitão de Andrada, Ayres Telles, André de
Quadros e outros muitos poetas. Em 1581 já Bernar,
dos se achava na patria ; e, sem aquelle sentimento que
fez morrer Camões ao saber que entrava em Portugal
a tropa de Philippe II, acceitou do invasor a tença
de quinhentos cruzados em propriedades e fazendas,
por Carta de 16 de Outubro de 1582, que lhe foi con
ferida pelo facto de ter sido moco da toalha de Dom
Sebastião «e a ir com elle na jornada de Africa e ser
captivo na batalha de alcacere . » Em 1593 ,Philippe II
agraceou Bernardes com uma nova tençade quarenta
mil reis em cada anno em sua vida, podendo testar
metade d'esta quantia a sua mulher ee filhos. Era esta
largueza o que motivava a bajulação dos outros poetas
a Philippe II, como o vêmos da parte de Caminha, de
Falcão de Resende, de Jeronymo Côrte Real, de Pe.
dro da Costa Perestrello e de Francisco Rodrigues
Lobo. E' certo que afastada a litteratura da sua ori
gem tradicional, vêmos darem-se dois extraordinarios
phenomenos: de um lado, os escriptores perdem o sen
timento da independencia e da dignidade nacional
exaltando nos seus versos o invasor; por outro, a con
cepção litteraria torna-se uma habilidade mechanica,
uma engenhosa curiosidade desligada completamente
da consciencia da realidade e dos interesses da vida,
que é o que constitue a poesia sempre bella em todos
os tempos. Bernardes apezar da sua notavel perfeição
não está fóra d'esta sentença ; os seus plagiatos de So
netos e Eclogas de Camões foram talvez feitos com a
282 CAPITULO XII

U segurança de que tendo -se perdido o Parnaso de Ca


mões em 1570, ninguem mais acharia a proveniencia
das poesias que publicava em seu nome em 1594 e
em 1596. Mas é certo que essas poesias roubadas não
só se referem a circumstancias peculiares da vida de
Camões, senão que foram recolhidas de manuscriptos
diversos, alguns d'elles mandados vir da India, e sem
pre com variantes mais bellas. A perfeição de Ber
nardes deve attribuir-se á imitação d'esse vago idea
<
lismo e melancholia, que tanto distingue o estylo de
Camões. As Varias Rimas ao Bom Jesus, trazem nu
merosos Sonetos plagiados; e as Flores de Lima, as
cinco Eclogas que andam hojo restituidas a Camões
com variantes fundamentaes, o que indica um traba
lho differente do de Bernardes. E este um problema
litterario em que se pode educar o espirito critico.
Bernardes já não tem essa sublime aspereza de Sá de
Miranda ou de Ferreira, a qual provinha em parte da
inflexibilidade de caracter de que foram dotados; é de
uma suavidade idylica que illude, e de uma correcção
de quem não sente. A boa direcção que recebeu de
Ferreira, o encontro das inimitaveis poesias lyricas de
Camões, e alguns desastres da sua vida, é que lhe de
ram esse talento que o colloca distinctamente na pha
lange dos quinhentistas.
Agostinho Pimenta - irmão mais novo de Diogo
Bernardes, mais conhecido pelo nome de Frei Agosti
nho da Cruz, distingue-se como um lyrico exaltado
pela vida mystica. Agostinho nasceu em Ponte do
Lima em 1540, e ali recebeu a primeira direcção
poetica de seu irmão ; póde-se
- inferir que seriam imi
tações das formas bespanholas conhecidas através dos
Cancioneiros manuscriptos que alguns fidalgos da pro
vincia conservavam . Em 1556 Agostinho Pimenta foi
accommodado na Casa do Duque Dom Duarte, neto
de el-rei Dom Manoel; n'esta casa reinava o fanatismo
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 283

até ao desvario visionario, como se pode vêr pela


vida que de Dom Duarte, seu pae, escreveu André de
Resende. Os frades da Arrabida tinham entrada em
casa da Duqueza, e d'ali foi seduzido o0 joven poeta
Agostinho Pimenta, que tomou o habito em 3 de Maio
de 1560, indo passar 0o noviciado no convento de Santa
Cruz da Serra de Cintra . Agostinho queimou todos os
seus versos profanos, e só depois que a acidia o acom
metteu é que se congrassou com a poesia, escrevendo
os seus arrobos mysticos . A vida austera da solidão
da Arrabida apressou-lhe a morte, em 14 de Março
de 1619. Frei Agostinho da Cruz é mais correcto
ainda do que seu irmão Diogo Bernardes; mas como
poeta mystico falta -lhe essa faísca de hallucinação que
arrebata o genio de Santa Thereza de Jesus ou Sam
João da Cruz. Sempre de bom conselho , sempre mo
ralisando e chamando á paz espiritual, cae n'essa mo
notonia de quem quer retratar o eterno drama da vida
sem ter vivido.
Dom Manoel de Portugal— foi o mais considerado
de todos os quinhentistas , e hoje é o menos lido. Sá
de Miranda chamava -lhe «Lume do paço, das Musas
mimoso ;» e Camões considerava-o como um dos res
tauradores da poesia portugueza. Este poeta pertencia
á mais alta aristocracia, filho do afamado poeta do
Cancioneiro geral o Conde de Vimioso, e da decantada
Aonia ou Dona Joanna de Vilhena; este caracter aris
tocratico influiu de certo na particularidade de serem
quasi todos escriptos em hespanhol os versos de D.
Manoel de Portugal. A lingua castelhana era a que se
fallava no paço, porque desde Dom Manoel se succe
deram quatro rainhas vindas de Hespanha com os
grandes séquitos de damas que comsigo traziam ; os
poetas da côrte escreviam para essas damas, e a pre
ferencia que ellas davam aos versos compostos na lin
gua natal, é que tornou o uso do hespanhol uma das
284 CAPITULO XII

regras da Arte de Galanteria . Dom Manoel de Portugal


amou sem felicidade аa formosissima dama do paço Dona
Francisca de Aragão, que distinguia Camões entre to
dos ospoetas pedindo-lhe versos; os versos amorosos
de D. Nanoel podem considerar-se como perdidos, ape
zar de se encontrarem bastantes no Cancioneiro ma
nuscripto de Luiz Franco. Os versos que nos restam
são mysticos, celebram um vago amor divino, uma
aspiração que não é d'este mundo, uma preoccupação
constante do estado transitorio da vida, e são de uma
monotonia quasi illegivel, postoque perfeitos na sua
construcção material. Mas este caracter dos seus ver
sos
808 tem uma explicação que faz estimal-os apezar de
tudo. Dom Manoel de Portugal não quiz acceitar a
corrupção de Philippe II, e a Casa de Vimioso soffreu
as maiores atrocidades do invasor; Dom Manoel de
Portugal assistiu á ruina completa de toda a sua fa
milia e viveu sempre suspeito ao dominio hespanhol.
As suas profundas tristezas é que lhe dirigiram o es
pirito para a monomania ascetica. Quando Dom João III
deu casa ao princepe Dom João, Dom Manoel de Por
tugal recebeu logo as entradas em casa do princepe,
que era então o maior protector da poesia ; mas n'esta
posição nada pôde fazer a favor de Camões, que era
então victima das mais perfidas intrigas provocadas
pela inveja litteraria; quando em 1572 Camões quiz
appresentar a Dom Sebastião a epopêa dos Lusiadas,
foi Dom Manoel de Portugal que empenhou o seu va
limento para o introduzirna côrte. Dom Manoel de
Portugal morreu em 26 de Fevereiro de 1606, bem
longe da esperança da restauração da nacionalidade.
André Falcão de Rezende é tambem um dos poe
tas mais notaveis da eschola de Sá de Miranda, ape
sar de ser pouco conhecido pelo motivo de terem fi
eado ineditas as suas obras até hoje . André Falcão de
Resende é filho d'esse celebre poeta do Cancioneiro ge
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 285

ral, Jorge de Resende, e sobrinho do chronista Gar


cia de Resende. Nasceu em Evora, como se pode infe
rir da aproximação de varios logares dos seus versos ,
em 1535 ; foi educado sob a crudição que reinava em
uma terra aonde os Jesuitas assentaram o seu arraial
litterario . Em 1553 apparece o seu nome inscripto na
matricula dos fidalgos da Casa do Cardeal Infante D.
Henrique, achando-se formado por 1558, sendo em se
guida nomeado letrado e Ouvidor da Casa do Duque
de Aveiro. Foi já n’esta posição que escreveu esse il
legivel poema allegorico da Creação do Homem , que
os editores nescios durante muitos annos imprimiram
sob o nome de Camões . Como erudito, Falcão de Re
sende foi o primeiro que tentou uma traducção das
Odes de Horacio, que não deixou completa ; apesar de
toda esta authoridade dogmatica através dos seus ver
sos se descobrem as aventuras de um amor romantico
que o fizeram sair da casa paterna, e que por fim per
deu pela morte prematura da que fez sua mulher. Fal
cão de Resende ainda escreveua Sá de Miranda, man
dando-lhe os seus versos ; e em outro logar das suas
obras inveja a sorte de um volume de Sá de Miranda,
porque estava sendo lido pelos formosos olhos de uma
dama. Falcão de Resende exerceu o cargo de Juiz de
Fóra em Torres Vedras em 1577 , e não obstante o abor
recimento que lhe causavam os litigios, ia escrevendo
já para se desenfadar, já para dar noticias suas aos
amigos que tinha na India, como eram Heitor da Sil
veira ou Antonio de Abreu, já para se fazer lembrado
dos poderosos, já para moralisar sobreos costumes do
tempo. Falcão de Resende foi a Madrid requerer uma
mercê de Philippe II, e nos seus versos queixa -se bas
tante da pobreza. Não tinha ideal, postoque ainda
assim seja indiscutivelmente superior a Caminha ; os
seus versos só exprimem os pequenos interesses da sua
personalidade, e é por esta inferioridade perante a ver
286 CAPITULO XII

dadeira concepção artistica, que elles têm hoje o va


lor de ricos documentos; é o unico dos poetas da
pleiadade Sá de Miranda que cita Camões pelo seu
nome . Em uma Satyra em que verbera os costumes
publicos, falla de Camões como bacharel latino, des
considerado, emquanto os bôbos do paco têm Dom, e
vivem ricos ; n'essa poesia allude ao poema dos Lu
siadas, como um poema destinado a causar uma im
pressão profunda. Em uma Ecloga unica, parece re
ferir- se a morte de Camões . Falcão de Resende mor
reu da peste de Lisboa de 1599. Ficaram tres ma
nuscriptos das suas obras, um que o poeta colligira para
offerecer ao filho segundo do Duque de Aveiro ; outro,
a que allude no seu Soneto xxv, o finalmente o auto
grapho achado depois da sua morte, que pertencera á
Bibliotheca da Universidade, e sobre que se começou
:
a fazer a edição dos seus versos.
A direcção nova que Sá de Miranda imprimiu á
poesia portugueza revelando-nos a superioridade do
verso endecasyllabo sobre as endechas ou metro de la
mentação ; o novo espirito idealista recebido nos Sone
tos e Canções de Petrarcha ;, essa soltura de uma ima
ginação alegre achada nas outavas de Ariosto, o lado
poetico da vida real descoberto na Arcadia de Sana
zarro e em Bembo, nada d'isto foi percebido pelos que
accudiram ao jubiloso apello do mestre. Assim como
as luctas da eschola italiana se reduziram á questão
material se se devia usar o endecasyllabo o pôr de
parte a redondilha, e se os tercetos eram melhores que
as coplas, assim tambem foi comprehendido o espirito
da poesia italiana ; as estreitas relações da personali
dade, as anedoctas domesticas que eram privativas das
coplas de Cancioneiro, passaram tambem para essas
fórmas que até então só haviam servido de expressão
ao sentimento vago da melancholia humana. A eschola
quinhentista tem este grave deffeito; e a Arcadia
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 287

achando em Horacio os mesmos interesses de vida pa


laciana, fundiu estas duas qualidades, julgando que
restaurava assim a poesia portugueza. No meio d'esta
pleiada que não pôde secundar os esforços de Sá de
Miranda , apparece Camões como um grande astro que
com a luz natural offusca a claridade artificial. Foi
por esta superioridade de intelligencia e de genio que
o repelliram , que o guerrearam e o fizeram desgraça
do ; e foi n'estas tempestades que o envolveram de to
dos os lados, que elle teve a revelação do que era a
vida e portanto o conhecimento de um ideal profundo.
A vida de Camões

O nome de Camões não pertence somente á histo


-ria e á litteratura portugueza ; é um dos primeiros eg
piritos em uma das epocas mais brilhantes da civili
sação da humanidade; a sua vida é um longo poema
de lucta contra a dura realidade das cousas que não
pôde destruir -lhe o immenso ideal dos seus sentimen
tos ; a sua obra é inspirada de todos os elementos poe
ticos que constituem a tradição de uma nacionalidade,
e ao mesmo tempo representa esse grande facto da
vida historica do seculo Xvi, a alliança do Ocidente
com o Oriente, realisada pelas descobertas dos portu
guezes. A gloria de Camões tem augmentado sempre
com os progressos crescentes das sciencias e da philo
sophia; ea medida que os seculos passam, e a memo
ria das civilisações se symbolisa em um grande nome,
Camões ficará como a expressão da maior altura poe
tica a que a mente humana chegou n'esse seculo em
que começou a verdadeira actividade scientifica. E'
de uma rigorosa verdade o juizo de Fred . Schlegel
sobre o caracter litterario de Camões : « Nunca, desde
Homero, poeta algum foi tão honrado o amado pela
sua nação como Camões; de modo que, tudo quanto
288 CAPITULO XII

esta nação, decaída da sua gloria immediatamente


apoz a morte d'elle, conservou de sentimentos patrio
ticos, tudo se liga a este unico poeta , que pode com
justiça substituir á maioria dos outros, e ser conside
rado como uma litteratura inteira. » (1) Em Camões
achamos todas as influencias que actuaram em Portu
gal na Renascença ; oriundo de uma familia do Al
garve e da Galiza, na sua alma a tradição popular
portugueza e o lyrismo trobadoresco dos costumes pa
lacianos harmonisam -se de modo que elle excede em
belleza os Vilancetes mais bellos de Gil Vicente e as
redondilhas mais apaixonadas de Bernardim Ribeiro
é Christovam Falcão . Educado com todos os recursos
da erudição do seculo xvi, não cae n'essa adoração das
fórmas classicas, na immobilidade supersticiosa dos
canones da arte antiga, porque a sua vida tempestuosa
avigora-lhe a forte individualidade que impõe o seu
modo de sentir original. Quando as fórmas da poetica
italiana foram conhecidas por Camões, já lhe era fami
liar a philosophia platonica, já havia sacudido do seu
espirito a subserviencia á logica esteril dos averroistas,
era um neo -platonico mais avançado do que Petrarcha
e capaz de julgal-o e corrigil-o. E ' por isso que na Es
chola italiana dos Quinhentistas, Camões constitue
>

uma entidade independente, com a sua pleiada for


mada dos que o amaram .
Camões nasceu em Lisboa , em 1524, como se
prova pelo Registo das pessoas que passaram a servir
na India desde 1550, o qual se guardou no Cartorio
da Casa da India , e pela allusão da Canção XI aos
terriveis prognosticos d'esse anno. Foram seus paes ,
Simão Vaz de Camões , segundo neto do trovador Vasco
Pires de Camões, e D. Anna de Sá e Macedo , dos Ga
mas do Algarve . Em 1527 , seu tio Dom Bento de Ca
(1) Hist. da Litteratura antiga e moderna, t. II, p. 115.
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 289

mões toma o habito em Santa Cruz de Coimbra; n'este


mesmo anno a côrte foge da peste de Lisboa para
Coimbra, e é de crêr que Simão Vaz de Camões, ca
valleiro fidalgo, acompanhasse à côrte indo residir
para Coimbra no solar de seu avó João de Camões.
İsto concorda com a confissão do poeta na Canção iv,
que diz ter passado a sua meninice nás margens do
Mondego. Em 1537 fez Dom João III a reforma da
Universidado mudando-a para Coimbra, e nomeou o
Geral de Santa Cruz de Coimbra, Cancellario d'ella.
Camões fez o seu curso de humanidades no Mosteiro
de Santa Cruz, para aonde a aristocracia portugueza
affluia, e era recebida aos doze annos de edade. D'esta
8 convivencia escholar datam as principaes amisades que
Camões encontrou no decurso da sua vida. Nos pri
meiros annos da reforma da Universidade a frequen
cia não era obrigatoria, e fazia-se aa formatura provando
por testimunhas a assistencia ás lições ; tal é a razão
porquo se não acha o nome de Camões nas matriculas
antigas do Cartorio da Universidade . Ainda nos estu
dos de Coimbra escreveu a Elegia da Paixão, que
dedicou a seu tio D. Bento de Camões, o que foi re
colhida por Luiz Franco ; e ainda estava em Coimbra
em 1542, quando o Duque Dom Theodosio se hospe
dou em Santa Cruz . E ' n'este anno que frequenta á
côrte de D. João III, aonde a erudição era considerada
como uma prenda essencial para os altos cargos, e aonde
o talento poetico era tido como uma segura prova
de fidalguia. Camões nutriu boas esperanças deabrir
carreira social ; mas o seu genio era realmente extraor
dinario, para que não amedrontasse todas as medio
cridades que se colligaram para produzir a sua ruina.
Seu tio Dom Bento de Camões havia tido dois confli
ctos com Dom João III, sobre o thezouro achado em
Santa Cruz, e em seguida sobre as rendas
rado ; o poeta tambem pertencia a essa classe aventu
19

1
290 CAPITULO XII

reira de mancebos atrevidos a que no seculo XVI se


dava o nome de Valentones, e que desembainhavam a
espada á primeira voz ; por fim as suas relações com
as damas da côrte, e em especial os seus amores com
a joven D. Catherina de Athayde, filha do Camareiro
Mór do principe Dom Duarte, Dom Antonio de Lima,
amores que se tornaram publicos por causa da homo
nymia de D. Catherina de Athayde, da familia dos
Gamas, ainda sua parenta, ( prima, segundo a tradi
ção recolhida por Pinto Ribeiro) e de outra dama
do mesmo nome, filha de Alvaro de Sousa, fize
ram com que fosse afastado da côrte pouco mais ou
menos em 1546. Todas estas causas influiram no seu
destino, ás quaes se pode tambemligar a interpreta
ção malevola do Auto de El rei Seleuco, allusivo aos
amores de Dom João III pela que foi sua madrasta.
Camões bem nos revela todas estas causas da sua des
graça, no Soneto 193, em que as enumera, erros meus,
má ventura e o amor, dizendo quo bastava um só
d'estes poderes para o arruinar. Camões ao sair da
côrte dirigiu -se para Coimbra, demorando-se na sua
excursão pelo Ribatejo; mas em 2 de Janeiro de 1547
morre seu tio Dom Bento de Camões, e portanto cessa
o motivo que o levava para Coimbra ; n'este mesmo
anno espalha-se a noticia do cerco de Mazagão, e Ca
mões embarca para Africa. Ali se demora dois annos,
perdendo em uma surpreza dos arabes o olho direito.
Nomeado em 1549 Vice -rei da India Dom Affonso de
Noronha, Camões regressa a Lisboa com elle, e in
screve-se om 1550 como homem de guerra para ir na
Náo Sam Pedro dos Burgalezes. N'esse mesmo anno
a Náo arriba desarvorada, e Camões não segue via
gem , porventura esperançado na grande estima que
o principe Dom João então dispensava aos melhores
poetas. Mas as intrigas contra Camões eram tantas
que o sou talento não pode fazer mais do que acabar
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 291

de perdel-o. A' frente d'estas intrigas figura Caminha,


e até certo ponto JeronymoCôrte Real . Como valente,
e no seu desespero, em 1552, por occasião da procissão
de Corpus Christi, feriu com a espada o moço dos ar
reios de D. João III, Gonçalo Borges. Foi recolhido
no Tronco da Cidade, e só em 23 de Fevereiro do
anno seguinte é que foi perdoado, sendo sôlto a 7 de
Março de 1553. Durante este longo tempo em que es
teve preso, e sujeito aos maiores rigores da lei por pu
char arma em sitio aonde estava o rei, entreteve- se a
compôr o primeiro canto dos Lusiadas, com certeza
inspirado pela leitura das primeiras duas Decadas pu
blicadas por João de Barros. O pensamento da epopêa
nacional occupou a sua alma em todas as desolações;
para servir esse pensamento, offereceu -se para substi
tuir Fernando Casado na viagem da India, comomais
tarde Anquetil Du Perron, quando foi estudaro Zend.
Parte para a India a 24 de Março de 1553, chegando
a Goa no principio de Setembro, sendo a Náo Sam
Bento a unica que chegou ao seu destino por causa
das constantes borrascas. Na India a sua vida foi ainda
mais tempestuosa ; entra logo em combate na expedi
ção contra o Chembé; atravessa as doenças de um
longo cruzeiro junto do Monte Felix , que elle descreve
na admiravel Canção x ; e em 1556 parte para a
China, indo exercer para a colonia portugueza de Ma
cáo o difficil cargo judicial de Provedor Mór dos De
funtos e Ausentes, ao qual competia tratar da arreca -
dação das heranças. N'esse anno morria em Lisboa
D. Catherina de Athayde. Mexericado pelos amigos,
foi chamado a Goa passados dois annos ; durante a re
sidencia em Macáo, ia compondo no seu poema dos
Lusiadas, e ali chegou até ao canto vii. No regresso
a Goa , debaixo de prisão, naufragou na costa deCam
boja , salvando-se a nado com o seu poema na foz do
rio Mecon . Em Goa esteve preso, e sobre a perda do
292 CAPITULO XII

pouco que grangeára em Macáo, recebeu tambem a


nova da morte de sua amada. Restituido á liberdade
e vivendo na intimidade de João Lopes Leitão, de
Heitor da Silveira, e de D. Francisco de Almeida, ia
escrevendo no seu poema, e dava-o a revêr ao seu eru
dito amigo Diogo do Couto. Não querendo esperar
para entrar na sobrevivencia da Feitoria de Chaul,
acompanhou Pedro Barreto para Moçambique em 1567,
e ali soffreu novos desastres que o lançaram na maior
indigencia; Diogo do Couto regressando ao reino, e
arribando a Moçambique em 1569, diz que ali o acha
ram tão pobre que comia de amigos, occupado em
colligir o seu Parnaso, e em revêr para a impressão
o poema dos Lusiadas. Diogo do Couto e outros ami
gos pagaram -lhe a passagem para Lisboa, aonde che
gou na náo Santa Clara a 7 de Abril de 1570. Ca
mões veiu achar a opulenta Lisboa devastada pela
Peste grande de 1569 ; sua mãe era ainda viva. Desde
a chegada até 1572 levou a preparar o seu poema,
a procurar ensejo para offerecel-o a Dom Sebastião, e
a atravessar os embaraços da censura do Santo Officio .
N'este intervallo roubaram -lhe a collecção das suas
poesias lyricas, que elle intitulava Parnaso. Depois do
apparecimento dos Lusiadas começou para Camões
uma nova lucta contra as invejas de outros poetas,
mas teve o prazer de se vêr estimado pelo maior poeta
de Hespanha n'esse tempo,o chamadodivino Herrera,
e pelo de Italia, o grande Torquato Tasso . Agraciado
com uma mesquinha tença, e essa mesma sempre atra
zada nas mãos dos funccionarios de fazenda , Camões
assistiu com mágoa a todos esses enthusiasmos que ar
rastaram Dom Sebastião para Africa. Depoisque elle
soube do desastre de Alcacer Kibir, em 1578 , nunca
mais teve saude; ao começarem as alterações ou mo
tins populares no curto governo do Cardeal Dom Hen
rique, era em volta de Camões que se agrupavam os
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 293

leaes portuguezes que queriam que succedesse no throno


o Prior do Crato ,como rei nacional. Quando em 1580
a exercito de Filippo il marchava sobre Portugal,
Camões morre a 10 de Junho, tendo escripto ao seu
amigo Dom Francisco de Almeida, aque morria com
a patria. >» Tal foi o homem ; vejamos o escriptor.
T

O Parnaso de Luiz de Camões

Na Decada VII, Diogo do Couto conta como en


controu Camões em 1569 em Moçambique trabalhando
2
em um livro que intitulava Parnaso, o que lhe foi
roubado pouco depois da sua chegada a Lisboa. Qual
seria o objecto d'esse livro ? Com certeza o titulo de
Parnaso só se dava a collecção de poesias, e com este
titulo Camões designava as composições que escrevera
no gosto da Eschola italiana. E ' certo que na Elegia
á morte de Dom Tello, vem a rubrica do editor :
«Achou -se em um Manuscripto do Bispo D. Rodrigo
da Cunha , feito no anno de 1568.» Esta data concorda
eom o tempo em que o poeta se achava em Moçam
bique e trabalhava no seu Parnaso ; pela dedicatoria
do livreiro Domingos Fernandes a Dom Rodrigo da
Cunha, de uma nova edição das obras de Camões, se
vê que aquelle prelado lhe forneceu uma grande abun
dancia de Manuscriptos: «não se descuidou minha
ventura em me offerecer esta occasião de andar jun
tando estas Rimas, e V. S me fez mercê de aver a
maior parte certificando serem do Autor ... Por isto se
conclue que uma parte d'esses manuscriptos de 1568,
que em Lisboa foram roubados a Camões, vieram pa
rar mais tarde á mão do Bispo D. Rodrigo da Cunha;
e pela natureza de taes Manuscriptos conclue-se que o
Parnaso era composto d'essas poesias lyricas forneci
das ao livreiro Domingos Fernandes, as quaes perten
2

sem á eschola italiana .


294 CAPITULO XII

As formas usadas por Camões, são o Soneto, a


Elegia, a Outava, a Canção, a Sextina, a Ecloga e o
Poemeto, taes como as achamos em Sá de Miranda,
ou Ferreira ; mas o espirito é que differe. Camões não
publicou em sua vida essas poesias lyricas com que
pretendia formar o seu Parnaso; mas a grande quan
tidade de cópias de que ha noticia nos mostra o modo
como elle actuou sobre a poesia portugueza do seculo
XVI. Camões completou a obra de Sá de Miranda; este
introduziu o gosto da metrificação italiana, e Camões
esse espirito platonico-mystico a que o seu genio im
primiu umafeição peculiar.
No seculo XVI era -se camoniano, como no fim do
seculo XVIII se era elmanista . Se a vida de Camões é
um doloroso drama, todas as suas poesias são anima
das d'esse movimento ; são como uma historia moral
da grande época da Renascença; o amor considerado
como um sentimento divino, a natureza rehabilitada
pela sciencia, a belleza exaltada como uma manifesta
ção da divindade, as reminiscencias da mythologia
grega ajudando -lhe a exprimir por allegorias este es
tado novo da alma moderna; a graça anecdotica, a
comparação dos phenomenos naturaes aos moraes, a
vaga incerteza entre os limites da realidade e da as
piração quando conta as suas aventuras, uma certa in
genuidade de um espirito criança, e que na superiori
dade se lança de encontro a demolir as convenções
banaes, tudo isto anima o lyrismo de Camões, de tal
forma repassado da connexão d'estes diversos senti
mentos, que parece um longo poema subjectivo. Se a
fatalidade o tivesse privado dos Lusiadas no naufra
gio da costa de Camboja, bastavam estes versos para
o fazerem considerar como o primeiro lyrico portuguez.
Mas, perdidos os Luziadas, quem provocaria esse inte
resse que fez procurar desde 1595 os manuscriptos
despedaçados que formavam o seu Parnaso ? Com cer
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 295

teza se pode prevêr, que d'este genio extraordinario


nada ficava que o revelasse á historia. A fatalidade
que o perseguia d'este sentido torna.o egual a Leo
nardo de Vinci. A linguagem de Camões differe da
de todos os seus antecessores em uma certa harmonia
que estabelece no uso dos archaismos que os eruditos
condemnavam , e dos neologismos, latinos. Tendo vi
>

vido em Lisboa e Coimbra, nas colonias de Africa, da


India e da China, elle fallou o portuguez com todas as
classes e em todas as condições ; e escrevendo sempre
os seus versos para o meio que frequentava, Camões
estabeleceu insensivelmente esse caracter de unidade
que existe hoje entre a linguagem fallada e escripta.
Muitas das composições lyricas de Camões apparecem
em nome d'outros escriptores; este facto explica -se por
terem andado ineditas as lyricas de Camões até ao
anno de 1595 em que as começou a recolher Soropita,
e portanto alguns copistas inconscientes as foram at
tribuindo gratuitamente a quem lhes prouve. E' pos
sivel tambem que os differentes editores, na sua avidez
de ajuntarem maior numero de ineditos de Camões,
lhe attribuissem obras de outros , visivelmente inferio
res ao seu genio, como o poema da Creação do Ho
mem , de Falcão de Resende. ' E' por isso que não se
deve accusar Camões de qualquer imperfeição metrica,
porque as suas lyricas soffreram os baldões das cópias
manuscriptas. Os versos de Camões tornaram -se cen
tão para os escriptores da ultima metade do seculo XVI ;
e pode dizer-se que é difficil sempre apontar os mais
bellos, porque mesmo os mais descuidados, como ex
primem dados autobiographicos , imprimem em quem
os estuda uma impressão indelevel. Póde dizer-se do
lyrismo de Camões, que as impressões pessoaes de uma
grande individualidade tornam -se uma philosophia.
296 CAPITULO XII

Os Lusiadas, epopêa de nacionalidade

Ao tempo em que Camões trabalhava nos Lusia


das, outros poetas elaboravam o pensamento de uma
epopêa portugueza; esta coincidencia, explica -se pela
propria corrente da Renascença, que se manifesta com
o mesmo caracter em França e na Hespanha. Os eru
ditos confundindo as epopêas organicas da Grecia com
a epopea litteraria de Virgilio, entenderain que as lit
teraturas dos povos modernos não tinham essa forma
esplendida da poesia. Em Portugal achamos esforços
para a realisação de uma opopêaem Ferreira que in
stiga Caminha para essa obra ; em Jorge de Monte-Mór,
em Pedro da Costa Perestrello. O assumpto da nave.
gação de Vasco da Gama chega a ser indicado pelos
Chronistas, quando comparam as navegações antigas
com as portuguezas. Mas, individuos educados sob um
regimen doutrinario, sabios de gabinete, escrevendo
em nobres ocios e completamente separados do povo ,
como poderiam ter essa virilidade moral e intellectual
para conceberem a epopêa de uma nação ? O ideal da
patria para esses eruditos consistia en confundir as
nossas origens ethnologicas, e identificarem Portugal
com a Lusitania , terra imaginaria de uma tribu cel
tica, cuja persistencia através da acção romana, goda
e arabe, se teria conservado intacta até nós os portu
guezes ; pelo seu lado, o povo acreditava na missão
providencial de Portugal, e procurava as coincidencias
maravilhosas que annunciavam que era anós que es
tava reservado o descobrir o caminho do Oriente. Ca
mões inventou o seu poema sob esta dupla influencia .
Todas as grandes epopêas antigas se formayam pela
agglomeração dos cantos cyclicos quando algum grande
perigo ameaçava a unidade nacional; apezar d'esta
causa ser privativa da concepção anonyma, Camões
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 297

obedeceu tambem a ella ; tendo batalhado nas conquis


tas de Africa, aonde se repetiam as nossas tradições
mais gloriosas, viu ai abandonadas as fortalezas que
custaram tanto sangue, e por causa da incuria real
perdida Arzila e outros postos importantissimos. Ca
mões conheceu a causa que nos levava á ruina, e o
seu poema foi publicado por assim dizer na vespera
da perda da nossa autonomia nacional. Se o poema
de Valmiki tornava livre e puro o sudra que o
lêsse, a epopea dos Lusiadas é que levantou o espirito
que soltou o brado revolucionario de 1640. Os Lusia
das foram escriptos nas prisões de Lisboa, no desterro
ou missão perigosa de Macáo, nos carceres de Goa,
na miseria de Moçambique, eacabados no conflicto de
uma grande peste que deixára Lisboa na desolação pro
funda. Tudo isto deu á linguagem dos Lusiadas um
tom solemne e magestoso, e uma convicção sublime
de quem , através de tudo, affirma por todos os mo
dos a vida gloriosa e historica da sua nacionalidade.
A epopêa é escripta nas formas italianas usadas por
Ariosto, com a estructura ou trama como a da Eneida;
.mas hanos Lusiadas um pensamento que os separa
de toda imitação, que é a aproximação da civilisa
a
ção occidental das suas origens do Oriente. Baccho,
oppondo -se a descoberta da India que é senão o Deos
Soma, que veiu pela Thracia para a Grecia , e da Gre
cia para a civilisação europea ? E Venus , defendendo
os Portuguezes, que é senão uma divindade maritima
da antiga Roma, agora representada por um dos ra.
mos neo-latinos ? Un instincto profundo levou Camões
a estas aproximações ; a mistura da mythologia com
o christianismo, foi provocada por esse extraordinario
phenomeno de conformidade entre as tradições de
Christo e Christna, que ao proprio auctor do Roteiro
de Vasco de Gama e a Castanheda não escaparam . Os
criticos aristotelicos atacaram Camões por esta irreve
298 CAPITULO XII

rencia, que a sciencia moderna vem caracterisar como


uma superioridade. Com uma immensa intuição artis
tica, soube Camões agrupar em volta do facto histo
rico que constitue a epopêa, todas as mais bellas tra
dições das nossas Chronicas nacionaes; d'essas tradi
ções formou elle os encantadores Episodios dos Lusia .
das : a tradicção do Milagre de Ourique, de Egas Mo
niz e da praga de Dona Tareja contra seu filho, reco
lhidas durante os seus estudos no Mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra, bem como os amores de Dona Inez
>

de Castro, então celebrados nas cantigas do povo ; as


tradições de Giraldo -sem -Pavor , da batalha do Salado,
do Condestavel, dos Doze de Inglaterra, do Infante
Santo, e das Ilhas encantadas que tantas vezes se

citam nas nossas leis, conferidas a Capitães donata


rios e d'onde veiu a ideia da Ilha dos Amores ; todas
estas tradições são o grande quadro da vida nacional
sobre que se desenha esse grande facto com que vive
remos eternamente na historia. O episodio de Adamas
tor, o desastre de Sepulveda, são o producto sublime
das suas impressões pessoaes ; aa passagem do Cabo das
Tormentas acha-se pela primeira vez esboçada na Ele
gia III, e o caso de Sepulveda foi-lhe com certeza con
tado com todas as cores sinistras ao aportar a Moçam
bique em 1553, na viagem para Goa; elle mistura ai
as suas affeições mais carinhosas, como Heitor da Sil
veira e D. Francisco de Almeida, dos temidos Almei
das, por quem ainda o patrio Tejo chora. E' sublime
a independencia de caracter com que condemna a el
rei Dom Manoel como iniquo contra Duarte Pacheco ;
e como sentenceia a dureza de Affonso de Albuquerque
por mandar matar sem causa ao joven soldado Ruy
Dias; e como accusa a nobreza de Portugal da falta
de illustração e da apagada e vil rudeza em que está
caida ! Os Lusiadas são para Portugal o que nenhuma
obra prima conseguiu ainda ser : o mais completo do
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 299

cumento da vida de uma nacionalidade; é a sombra


d'esse poema, que se perpetuará o nosso nome.
Os lyricos camonianos

Pode-se designar por este nome aquelles poetas que


foram amigos pessoaes de Camões, taes como Heitor
da Silveira, João Lopes Leitão, Antonio de Abreu,
Luiz Franco, Fernão Alvares d'Oriente, e Dom Gon
çalo Coutinho ; e tambem aquelles que o imitaram não
só n'essa vaga melancholia e forma correcta do soneto,
como tambem chegando a reproduzir versos inteiros
de Camões, como Pedro da Costa Perestrello, Fran
cisco Galvão, Estevam Rodrigues de Castro, Soropita
Leitão de Andrada, Balthazar Estaço e Vasco Mousi
nho de Castello Branco . Caracterisaremos rapidamente
cada um d'estes escriptores, postoque se tenham per
dido as obras de uma grande parte d'elles. Heitor da
Silveira era filho d'esse terrivel poeta do Cancioneiro
geral, Francisco da Silveira, indo militar na Africa e
na India para fugir á barbaridade do pae; era irmão
d'esse outro poeta Fernão da Silveira, senhor de Sar
zedas, cujas obras poeticas o principe Dom João man
dou copiar a Evora pelo seu secretario, o filho de Gil
Vicente. Os versos de Heitor da Silveira tambem se
perderam ; mas pelas obras de Camões e de André
Falcão de Resende, se conhece o pouco que resta d'elle.
Era tambem apaixonado, como os bons espiritos da
Renascença, e a Belisa de que sempre viveu saudoso
por uma ausencia forçada não chega a recompensar-lhe
a sua constancia, porque morre em 1570 ao entrar no
Tejo, vindo da India. Os seus versos revelam um bom
caracter, tal como se confirma nas relações genealogi
case nas Chronicas, mas tem um poucod'aquella falta
de limpidez de estylo, que o colloca a par de Caminha
o Falcão de Resende, de quem era intimo amigo. Um
300 CAPITULO XII

nome egualmente sympathico, mas alegre e travesso,


é o d'esse joven João Lopes Leitão, preso por ir vêr
as damas do paço contra vontadedo Camareiro; brin
dando algumas damas com peças de cacha ; assistindo
ao Convite de Camões em Goa, quando banqueteou os
2

seus amigos com trovas, e por fim morrendo no mar


de uma maneira desconhecida, quando a sua bravura
o o seu talento o tinham de tornar admirado. Encon
tram -se alguns versos seus nas obras de Caminha e
de Camões. Ferreira estimava-o, e Heitor da Silveira
chora - o com verdade. E' de João Lopes Leitão esse
celebre soneto Quem é este que na harpa lusitana,
elogiando Camões pela sua comedia de Filodemo, re
presentada em Goa em 1555. Com a presença de Ca
mões, Goa tornava - se uma especie de contro litterario ;
muitos poetas tomavam como titulo honroso o epitheto
que escreviam nos seus Cancioneiros de mão : «muito
amigo e companheiro de Luiz de Camões .» Achamos
este titulo usado por Diogo do Couto, por Antonio de
Abreu e Luiz Franco Corrêa. Os versos de Antonio
de Abreu foram desconhecidos até ao principio d'este
seculo, em que os publicou A. L. Caminha; pesou so
bro esta publicação o labéo de apocrypha, mas depois
de virem a lume as obras de Falcãode Resende, n'el
las se acharam bastantes Sonetos de Antonio de Abreu,
cuja conformidade com a edição de Caminha authon
ticam estas obras. Ao tempo em que teve relações com
Camões era já velho, e foi um dos que acceitou cédula
de Filippe ir; de Luiz Franco apenas se conhecem
poucos Sonetos, pelas suas relações com Bernardes 8
Dom Gonçalo Coutinho, mas o seu principal titulo lit
terario é ter sido um collector cuidadoso de poesias de
Camões, as quaes estão hojo aproveitadas na edição
Juromenha. Fernão Alvares d'Oriente é um dos pou
cos escriptores do seculo xvi, que cita Camões ; era na
tural de Goa, e em 1576 veiu a Europa, ficando captivo
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 301

na jornada de Africa em 1578. Elle imita e glosa os


versos de Camões, mas a preoccupação de se mostrar
>

sabedor de todos os artificios da poetica italiana ás ve


zes faz com que esta boa organisação poetica desça
abaixo da mediocricidade, sobretudo quando quer pôr
em moda o uso dos exdruxulos. Na sua viagem a Ita
lia tomou conhecimento da Arcadia de Sanazarro, e
sobre esse typo procurou introduzir uma novella pag
toral allegorica aos costumes do tempo, a que chamou
Lusitania transformada . E' n'esta pastoral que veem
intercaladas as suas poesias. Fernão Alvares recebeu
de Filippe II a mercê de duas viagens de Coroman
del, na vagante dos providos em 1584 ; em 25 de
Março de 1598 conseguiu o privilegio de poder trans
ferir para seu filho Luiz Alvares esse direito . A data
da sua morte pode fixar-se em 1599, por ventura de
pois dos primeiros rebates da peste. A Lusitania
transformada só appareceu em 1606 .
De Pedro da Costa Perestrello restam poucas poe
sias lyricas, e essas mesmas publicadas pelo professor
Caminha; os Sonetos em grande parte encontram -se f

nas obras de Camões com variantes notaveis, o que


nos explica a analogia de estylo e ao mesmo tempo a
não falsificação do suspeito editor. Perestrello traduziu
algumas lições do livro de Job em torcetos, e a ello
se attribuem esses versos que foram achados no paço
o que os Jesuitas ali lançaram segundo dizem para
amedrontar Dom Sebastião acerca da expedição de
Africa. Perestrello era Secretario do Archiduque Al
berto, sendo dos que recebeu a cédula ou preço da trai
ção por Filippe II, e um dos que mais o bajulou em
verso. Desde que a litteratura se não baseava sobre a
tradição nacional, e o escriptor não tinha communica
ção com o povo, não repugnava o tornar a poesia um
instrumento de degradação.
A' casa de Dom Theodosio II, Duque de Bragança,
302 CAPITULO XII

pertenceram esses dois poetas camonianos Francisco


Galvão e Manoel da Veiga Tagarro. Se nos lembrar
mos das relações amigaveis de Camões com o Duque
Dom Theodosio, e com o Vice- Rei Dom Constantino
de Bragança, e observando como D. Theodosio II era
considerado pelo partido da independencia nacional
como uma das suas esperanças, facilmente se observa
como a memoria de Camões veiu a influir n'esses dois
poetas. Dos poucos Sonetos que restam de Francisco
Galvão, quatro andam em nome de Camões com va
riantes curiosissimas ; esses Sonetos foram colhidos de
cópias dispersas. Manoel da Veiga é um poeta camo
niano já sob a influencia de Lope de Vega; o celebre
Soneto da fuga do pajarillo acha -se imitado digna
mente na Laura de Anfriso. Manoel da Veiga reuniu,
quando já era velho, em um livro os versos que fez
quando passou extraordinarias aventuras pela amante
que se fez freira. Esteve em carcere privado, como
Christovam Falcão, estudou jurisprudencia, e por
fima accolheu-se tambem ao claustro. O motivo da
publicação do seu livro foi a vinda a Portugal de Dom
Duarte, Marquez de Frechilla, irmão de Ď. Theodo
sio II, e tambem bom poeta . A Laura de Anfrise,
provoca um certo interesse desde que se procure atra
vés d'essas palidas Odes o interesse da realidade que
houve nos amores ali descriptos. Manoel da Veiga
allude a Camões com um respeito profundo; e a sua
constancia em não escrever em hespanhol, em uma
época em que era a linguagem da litteratura, mostra .
nos uma especie de protesto a favor da extincta na
cionalidade portugueza .
O nome de Estevam Rodrigues de Castro, que
tanto illustra o nome portuguez na marcha das scien
cias no seculo xvi, chegando a ser professor na Uni
versidade de Pisa, apparece -nos tambem dotado de
uma elevação poetica, de quem comprehendeu que o
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 303

ideal é uma das formas da verdade. As suas poesias


são Sonetos verdadeiramente camonianos, pela perfei
ção artistica e por essa vaga melancholia que tanto o
separa do modo pessoal de sentir dos seus contempo
raneos. Alguns dos Sonetos de Estevam Rodriguesde
Castro andam recolhidos nas varias edições de Camões
desde 1598, bem como uma notavelEcloga; este facto
explica-se pelo modo como Estevam Rodrigues de Cas
tro colligiu os seus versos, reunindo-os com varias com
posições de amigos, cujosoriginaes conservava em Ita
lia . Seu filho Francisco Estevam é que publicou essas
obras, que interessam tanto alitteratura, porque nos
trazem algumas composições de poetas quasi desco .
nhecidos, como Bernardo Rodrigues, intimo amigo
de Camões, e de Jorge Fernandes, vulgo o Fradinho
da Rainha , que foram excellentes lyricos. Estevam
Rodrigues de Castro, segundo se pode inferir por uma
phrase de D. Francisco Manoel deMello, que diz d'elle
ateve melhor musa que fé » saiu de Portugal talvez
forçado pela intolerancia religiosa que perseguia os que
se entregavam ao estudo da historia natural ; os seus
versos de louvor a Filippe II parecem accusar um
certo despeito. Bernardo Rodrigues, que tratou pes
soalmente com Camões, foi um dos que introduziu em
Portugal a fórma lyrica das Ballatas. De Jorge Fer
nandes, mais conhecido pelo nome de Frei Paulo da
Cruz , pouco existe publicado; o poemeto da Traslada
ção de Sam Vicente, pertence aesse genero decom
posições como a Santa Ursula de Camões, a Santa
Comba dos Valles, de Ferreira, e a Santa Isabel, de
Vasco Mousinho de Quevedo. Este ultimo poeta, mais
conhecido como épico, tambem apresenta nos seus
versos lyricos bastantes reminiscencias de Camões, so
bretudo nos Sonetos. Foi amigo intimo de Pedro de
Mariz, o primeiro biographo de Camões, circumstan
cia que em certo modo nos indica como foi levado
304 CAPITULO XII

para a imitação camoniana. Vasco Mousinho de Qur


vedo Castello Branco é um dos primeiros poetas que
se levam pela influencia castelhana, adoptando a fórma
do romance subjectivo , e um dos que celebrou a en
trada de Filippe II em Portugal, com não menos sub
serviencia do que Francisco Rodrigues Lobo. Entre os
lyricos camonianos um dos que protesta contra esta
falta de sentimento nacional é o faceto Fernão Rodri.
gues Lobo Soropita ; as suas obras revelam - nos tres
phases distinctas do seu espirito. Primeiramente, en
tregue á soltura escholastica, e como digno antecessor
de Antonio Duarte Ferrão (pseudonymo de Prior da
Nazareth) e do Malhão, Soropita escreveu varias pro
sas e Vejamens poeticos que revelam apenas uma certa
graça sem alcance; depois d'esta phase, adquire, tal
vez na tradição academica, uma admiraçãoprofunda
por Camões, o na sua volta paraLisboa, aonde exercia
à advocacia, entrega -se ao trabalho de colligir as poe
sias lyricas de Camões, das quaes apenas estavam publi
cas aa Ode a Garcia d'Orta apresentando-o aa D. Fran
cisco Coutinho, a Elegia a Magalhães Gandavo, apre
>

sentando -o a D. Leoniz Pereira, e o Soneto à Ma


noel Barata . Foi em 1595 que Soropita conseguiu dar
á estampa o primeiro corpo das Lyricas de Camões ,
augmentado logo em 1598 com novas descobertas de
ineditos . N'estes trabalhos, Soropita adquiriu um per
feito conhecimento do estylo camoniado, o imitava - o
a ponto de se confundir com elle ; n'esta phase, Soro
pita éé respeitavel pelo amor á causa perdida da na
cionalidade, e escreve uma sentida Satyra politica em
redondilhas. Por fim Soropita abandonou a poesia pela
advocacia, como o fizera tambem Vasco Mousinho de
Quevedo, e no meio das ruinas sociaes e incerteza de
direitos em um paiz usurpado ou vendido, volveu -se
para a concentração mystica, e parece ter -se acolhido
ao claustro, como se infere da Elegia A ' penitencia de
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 305

Soropita. Depois de Soropita cabe a Dom Gonçalo


Coutinho o primeiro logar entre os lyricos camonianos
que mais trabalharam para tornar vivo o culto por este
extraordinario genio ; as obras de D. Gonçalo Cou
tinho estão perdidas, mas ainda assim se sabe pelas
>

obras de Bernardes, que o cantor do Lima o doutri


nou em poesia, o que elle na sua quinta dos Vaquei.
ros, aonde hospedára Camões, estava entregue aos
ocios litterarios. As poucas composições de Dom Gon
çalo Coutinho que ainda se conservam , revelam um
bom poeta , porque realmente foram poeticos os seus
amores com Armia, a sua dedicada esposa D. Maria
de Oliveira . Vivendo no fim do seculo XVI, tendo tra
tado pessoalmente com Camões, é realmente lamenta
vel que este escriptor, que recolheu as primeiras tra
dições da vida de Sá de Miranda , não tivesse organi
sado uma biographia com dados historicos sobre a vida
de Camões. Assim como soube respeitar a sua memo
ria dando-lhe « sepultura honrada, » melhor fôra que se
aproveitasse das relações pessoaes que teve com Ca
mões para legar á historia alguns factospositivos, que
a critica com tanto esforço tem procurado assentar.
O nome de Miguel Leitão egualmente respeita
vel por ter sabido honrar o nome de Camões , me
rece mencionar-se, porque algumas Canções e Sone
tos d'aquelle poeta foram recolhidos na sua Miscella
nea. Miguel Leitão é um d'aquelles poetas que ficaram
captivos em Africa em 1578 ; o livro intitulado Miscel
lanea é uma obra no estylo de Dialogo em louvor,
como então se escrevia não só sobre as linguas como
sobre as terras ; é extraordinario pela riqueza de tra
dições e memorias avulsas dos sucessos tenebrosos do
fim do seculo XVI ; como autobiographia provoca o
teresse. Como poeta é essencialmente mystico,
tendencia exclusiva do lyrismo portuguez no fim do se
xvi, como vemos nas obras de Balthazar Estaçó.
culo 20
306 CAPITULO XII

Este escriptor tambem cita allusivamente Camões,


quando esboça qual é o destino do que cultira a poe
sia‫ ;ܕ‬os seus Sonetos reproduzem as figuras rhetoricas
mais habitualmente usadas por Camões, caindo noex
cesso enfadonho, como nos Sonetos em dialogismoe
em antithese. Uma imperfeita comprehensão do estylo
camoniano tinha fatalmente de conduzir a esse defeito
capital do conceito, como o elmanismo conduziu aos
versos de banalidade os poetas do principio do nosso
seculo. Póde dizer-se, que no fim do seculo XVI OS es
criptores estavam absolutamente separados do povo;
que nenhuma tradição nacional era tomada como ele
mento de creação artistica; que nenhum facto da vida
social motivava a inspiração individual; que as obras
litterarias só procuravamrealisar canones abstractos
de rhetorica, e eram concebidas com o fim de distrac
ção para os ocios nobres. N'estas condições a littera
tura tornou -se uma aberração, como vamos vêr na
época dos Seiscentistas. Até ao ultimo quartel do se
culo XVI as obras poeticas dos Quinhentistas corriam
ineditas ; é um phenomeno extraordinario, que não
pouco influiu na decadencia litteraria e falta de plano
nos escriptores, que não souberam conservar as tradi
ções d'essa grande época. Depois da perda da nacio
nalidade portugueza em 1580 é que se dá um certo
movimento litterario a favor da grande pleiada dos
Quinhentistas; era como um esforço inconsciente a fa
vor da vitalidade da lingua que se extinguia ; assim
em 1587 reproduzem -se pela primeira vezos Autos de
Prestes e deCamões; en 1590as obras lyricas de Vasco
Mousinho do Quevedo ; (em 1592 as obras de Grogo-
rio Silvestre, em hespanhol,talvez para desnaturar o
movimento litterario ); em 1594 as obras de Sá de Mi
randa ; em 1595 1598_as lyricas de Camões ; em
1595 e 1597 as rimas de Bernardes; em 1598 os Poe
mas lusitanos do Dr. Antonio Ferreira; em 1597 &
DA ESCHOLA ITALIANA EM PORTUGAL 307

Silvia de Lisardo de Frei Bernardo de Brito ; em


1602 as obras de Balthazar Estaço ; em 1604 aa Laura
de Anfriso, de Manoel da Veiga ; em 1605 as obras
de D. Manoel de Portugal; em1606 as obras de Fer
não Alvares d'Oriente, etc. Basta este simples relance
para se vêr, que a época em que os principaes Qui
nhentistas acham interesse perante o publico ,é justa
mente quando o espirito nacional procurava affirmar-se
e não achava nos novos escriptores a intelligencia d'esta
necessidade moral. Até ao ultimo quartel do seculo XXI
os escriptores quinhentistas viveram e pensaram sepa
dos do povo : isto basta para se conhecer o muito que
fizeram , mas tambem o muitissimo que deixaram de
fazer .

*
CAPITULO XIII

Camões e a sua influencia na litteratura


e nacionalidade

Dados biographicos de Camões indispensaveis para a intelli


gencia da sua obra. -- Formação do corpo das poesias lyricas
com o titulo de Parnaso de Luiz de Camões. Critica dos
Lusiadas segundo a theoria historica e comparativa da epo
pêa. - Importancia do elemento tradicional dos Lusiadas.
Extensão dos imitadores do lyrismo camoniano, e caracter
litterario dos principaes imitadores. -Desenvolvimento da
fórma épica no seculo xvi : Jeronymo Côrte Real, Francisco
de Andrade, Luiz Pereira, Vasco Mousinho de Quevedo.-
Principio de decadencia da Litteratura entre os quinhentis
tas . Suas causas.

Epopêas historicas do seculo XVI

Assim como Perestrello rasgou a sua epopêa do


Descobrimento de Vasco da Gama ao vêr publicados
os Lusiadas, a leitura d'este poema excepcional des
pertou um prurido extraordinario, que produziu nada
menos do que seis epopêas volumosas. Portugal era
um paiz cujas origens eram claramente historicas ; sem
ter um passado mythico, que com as revoluções da ci
vilisação se tornasse tradicional, como é que poderia
inspirar legitimamente a forma épica, a não ser sob
esse ponto de vista unico achado pelo genio de Camões ?
Mas os poetas que procuraram supplantal-o entende
ram que para fazer uma epopea bastava tomar qual
quer facto da historia , e com uma fecundidade esteril,
fizeram Chronicas rimadas. Para se conhecer a relação
em que estão para com Camões os épicos Jeronymo
Côrte Real , Francisco de Andrade, Luiz Pereira Bran
dão e Vasco Mousinho de Quevedo, basta notar que
elles escreveram sob as mesmas condições de que se
CAMÕES E A SUA INFLUENCIA NA LITTERATURA 309

inspiraram Lucano, Stacio, Silio Italico e Valerio


Flaco, depois de creada a Eneida.
Jeronymo Côrte Real é o primeiro d'esses épicos
chronistas, e distingue-se por ter sido inimigo de Ca
mões ; em uma Epistola escripta em 1574 ao seu pa
rente Francisco de Sá de Menezes, pedindo-lhe conse
lho para a composição do Segundo Cêrco de Diu,
mostra que para elle não existiam os Lusiadas , que
havia dois annos que estavam duas vezes reproduzi
das pela imprensa ; fallando das suas leituras classicas
diz :
Estes Authores lendo, fui cuidando
Com quanto mais razão justo seria
Da nossa portugueza ir tratando :
Pois em batalhas mil se lhe devia
Uma fama e um nome eterno ao mundo
E de Homero ou de Virgilio a poesia. (1)

Jeronymo Côrte Real era filho de Manoel Côrte Real,


Capitãoda Ilha Terceira, e por parte de sua mãe
D. Brites de Mendonça, neto de D. Maria Baçan ; toca
mos esta circumstancia, porque o seu parentesco com
a fidalguia hespanhola levou-o a escrever em castelhano
um longo poema sobre aa batalha do Lepanto, ganhada
por Dom João de Austria, e que ello intitulou Aus
triada. Jeronymo Côrte Real Offereceu -o em 1576 a
Filippe i de Castella, que lh'o agradeceu em Carta
especial, com que ficou vinculado á causa da usurpa
ção. Este poeta teve uma vida aventurosa, indo á
Africa e India, e por fim ficando captivo em Alcacer
Kibir. Sobre este successo escreveu uma outra epopêa
intitulada Perdição de el rei Dom Sebastião em Africa
e das calamidades que se seguiram a este Reino ; está
perdido. Todos os seus biógraphos encarecem o talento
raro que tinha para a pintura, o qual Raczynski con
(1) Canc. Ms., de Luiz Franco.
310 CAPITULO XIII

sidera como sem fundamento ; quando escrevia os seus


poemas costumava acompanhal-os dos desenhos das ba
talhas e dos naufragios. Em 1574 publicou o poema
Sussesso do Segundo Cérco de Diu estando Dom João
de Mascarenhas por Capitão da Fortaleza . Dedican
do-o a Dom Sebastião o reconhecendo a impossibili
dade de fazer lido esse longo poema, acrescenta : « E
porque a leitura é grande, debuxei de minha mão os
combates, os soccorros e tudo o mais que no descurso
d'este trabalhoso cerco succederam , para que a inven
ção da pintura satisfaça a rudeza do verso. » Bernar
des, Caminha, Francisco de Andrade e outros que fi
caram mudos quando Camões publicou em 1572 os
Lusiadas, vieram festejar o Segundo Cêrco de Diu ,
do novo Orpheo, novo Apollo e novo Marte. Basta lêr
o summario ou argumento dos vinte e um cantos de que
se compõe, para ver a falta de concepção poetica; o
systema de verso solto que adopta torna - o do mais tri
vial prosaismo. Jeronymo Côrte Real foi casado com
D. Luiza da Silva, filha de Jorge de Vasconcellos,
Provedor dos Armazens de Lisboa‫ ; ܀‬tocamos esta cir
cumstancia, porque ella só influiu na composição d’esga
outra epopêa sua intitulada Naufragio de Sepulveda.
D'este poema, publicado posthumo em 1594, diz o edi
tor, genro do poeta: « fez este discurso do naufragio
de Manoel de Souza Sepulveda e D. Leonor de Sá
sua mulher, vindo da India por capitão de uma náo,
por nome o Galeão grande, assy por ser esta senhora
muito parenta de sua mulher D. Luiza da Silva a
quem elle muito amava ...) Este poema já estava escri,
pto em 1589, porque Caminha o elogia no Epigramma
185; é tambem escripto em verso solto com algumas
outavas intercaladas, como as emque descreve a perda
de Alcacer Kibir. Esse bello quadro traçado por Ca
mões em tres estancias dos Lusiadas excede os deze
sete cantos em que Jeronymo Côrte Real estafa uma
CAMÕES E A SUA INFLUENCIA NA LITTERATURA 311

tenebrosa tradição de familia e um grande desastre.


Começa-o desde o nascimento de D , Leonor de Sá, de
quem os Tritões se enamoram , provocando o naufra
gio para possuil-a ! Quem lêr essa rapida Relação do
Naufragio do Galeão Sam João , por Alvaro Fernan
des, é que descobre como a realidade é immensamente
mais poetica do que os convencionalismos tolos de vi
sões, vaticinios e concilios épicos, a que os bons rheto
ricos chamaram Machinas. Côrte Real deixou inedito
um outro poemeto sobre os Novissimos do Homem , hoje
publicado, que é o retrato moral de um homem cujo
cerebroestava esterilisado, mas que obedecia á mono
mania de escrever .
Francisco de Andrade, auctor da epopêa Primeiro
Cêrco de Diu, publicada em 1589, é francamente bis
toriador antes depoeta ; elle foi escolhido para substi
tuir Antonio de Castilho como Guarda-mór da Torre
do Tombo, e nomeado Chronista -mór do Reino em 24
de Julho de 1599 por Filippe III, ( 1) deixando escri
pta a Chronica de D. João III. Como poeta lyrico é
immensamente prosaico; a Philomena de Sam Boaven
tura , que elle traduziu em 1566, acha-se copiada no
Cancioneiro de Luiz Franco, (f. 224) mas não tem
colorido. A sua mesma correcção metrica é uma prova
da sua frieza. O poema do Primeiro Cêrco de Diu
compõe-se de vinte cantos em outava rima, cuja uni
formidade estrophica o torna mais difficilde lêr . Aquel
les que o avaliam pelas regras da epopêa, segundo o
Padre Bossu, acham n’este poema digno de notar-se a
biographia episodica de João de Sam Thiago, no canto
segundo; o amor de dois esposos Mogores, no canto
nove ; o combate de um joven portuguez que investe
contra um mouro que foge pelo rio, no canto dezesete ;
(1) Torre do Tombo, liv. 8 das Mercês de Filippe 11, fl.
12 a 14 , v .
312 CAPITULO XIII

o palacio de Eolo e a Cova dos Ventos, no canto


quarto; a Casa de Somno, no canto decimo-sexto. Mas,
apezar de todas estas bellezas convencionaos, achadas
por um criterio que passou, o poema de Francisco de
Andrade não pode ser apontado para modello, mas
sómente como um pronunciado documento para se de
terminar por elle as tendencias litterarias de uma época.
Luiz Pereira Brandão, é auctor de uma epopêa
sobre o desastre de D. Sebastião em Africa em 1578 ;
appareceu á luz em 1588 ; o escrever epopêas sobre
essa catastrophe era uma mania do seculo xvi, como
vêmios nas tres tentativas, de Jeronymo Côrte Real,
Estevam Rodrigues de Castro, e do Anonymo de que
restam umas quarenta outavas nos Ineditos do profes
sor Caminha. A Elegiada de Luiz Pereira é exaltada
com phrenesim nos Sonetos de Francisco de Andrade,
de Jeronymo Côrte Real, de Bernardes e de Pedro
de Andrade Caminha, emquanto os Lusiadas eram
amputados pela Censura. O partido que se pode tirar
de uma derrota para sobre esse facto suscitar as pai
xões épicas, vê-se na Chanson de Roland ; mas sob o
regimen de uma falsa erudição separada da tradição
nacional, que outra cousa se podia fazer se não uma
obra bastarda, um producto hybrido da Chronica e da
ficção ? De mais, como é que Luiz Pereira podia ter
essa grande indignação para protestar pela vida d’este
povo, se a Elegiada é dedicada ao Cardeal Alberto,
Archiduque de Austria , que estava governando Portu
gal por ordem de Filippe I1 ? Essa cantiga que o povo
cantou na morte do Cardeal-Rei substituirá na historia
a epopêa que os escriptores portuguezes não souberam
fazer .
Pertence ainda a este seculo o poema em doze
cantos, de Vasco Mousinho de Quevedo, intitulado
Affonso Africano. Na verdade, as nossas expedições
em Africa, desde Dom João i аà Dom Affonso V, são o
CAMÕES E A SUA INFLUENCIA NA LITTERATURA 313

periodo verdadeiramente cavalheiresco da nossa histo


ria, cujas tradições tanto inspiraram Camões. Vasco
Mousinho de Quevedo, celebrando uma parte d'esses
feitos na tomada de Arzilla o de Tanger, em uma
época em que não tinhamos nacionalidade, porven
tura teria uma intenção sublime, se vinha lembrar a
este povo morto o seu passado. Mas não ; Vasco Mou
sinho de Quevedo faz uma epopêa com um fim moral
e por uma forma allegorica : Dom Affonso v é a alle
goria do varão forte que combate contra si mesmo
para avassallar a Cidade da sua alma ; Arzilla com as
suas cinco portas, é essa cidade que tem os cinco sen
tidos, e uma torre com tres baluartes, que são as po
tencias da alma, e uma mesquita, que é o coração hu
mano. Por isto se pode imaginar o que é uma epopêa
concebida sob um tal ponto de vista, e até aonde a
falta de senso artistico pode ser levada, quando o es
criptor não anima a sua creação com o elemento tra
dicional. Por tanto entre a ultima época dos Quinhen
tistas e os Seiscentistas não existe solução de conti
nuidade .
CAPITULO XIV

Historia , Philosophia e Eloquencia


Como se desenvolve a paixão pela historia no seculo xvi.-- For
tes individualidades de Castanheda, Antonio Galvão, João
de Barros, Diogo do Couto, Damião de Goes . — As narrações
são pittorescas no maior gráo possivel . -A historia nos claus
tros perde essa vitalidade que provinha da relação que o
Chronista tinha com o que contava.- Os historiadores insu
lanos. — Em Philosophia predomina o aristotelismo alexan.
drista, e as obras versam sobre especulações moraes. - A
Eloquencia torna -se exclusivamente sacra, por causa de falta
de participação da vida publica.
Historiographia

Pela data da formação da nacionalidade portu


gueza e pela falta de tradições primitivas d'onde a
litteratura recebesse uma forte originalidade, que nunca
pôde ter, se conhece immediatamente que Portugal é
uma nação historica no sentido rigoroso da palavra;
desde o seu começo, que os reis nomearam os Priores
Crasteiros de Santa Cruz de Coimbra, Chronistas-mó.
res ; (1) desde o fim do seculo xiv que já tinhamos
fundado um Archivo para guardar os principaes docu
mentos da nossa vida politica. A historia tornou -se
officialmente uma especie de registo authentico, pela
instituição dos Chronistas-móres do reino, que durou
até Garrett ; a actividade particular exerceu -se espe
cialmente n'este sentido, compondo relações, memorias,
noticias, summarios, viagens, com uma exuberancia
tal que só o seu estudo poderia constituir uma Litte
ratura . Se no seculo XV se levantam esses tres gran
des Chronistas Fernão Lopes, Azurara e Ruy de Pina ,
(1) D. Nicoláo de Santa Maria , Chron . dos Regrantes, P.
2, cap. 9, n. 8.
HISTORIA , PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 315

no seculo xvi a phalange é tão numerosa, que se torna


impossivel poder caracterisal-os individualmente com
provas positivas, porque isso daria a essa parte da
nossa litteratura uma extensão demasiada. Castanheda,
João de Barros, Diogo do Couto, Gaspar Corrêa,
Duarte Galvão,Damião de Goes,Jeronymo Osorio,
Magalhães Gandavo, Castanhoso, Garcia de Resende,
Francisco de Andrade, e tantos outros são de tal fórma
ricos de factos e de observações ethnologicas, que se
póde affirmar que é uma mina aurifera ainda não ex
plorada pelos modernos philologos indianistas. A maior
parte d'esses escriptores recebeu a impressão imme
diata dos factos e dos logares que viram ; poucos são os
que têm a preoccupação rhetorica do estylo; nenhum
tem a impassiblidade critica de discernir o real do
maravilhoso ; nenhum concebe a historia como uma
sciencia em que se dá a previsão, e, por tanto, ex
põem os factos sem as leis que os motivam , e sem a
unidade da evolução que realisam. Elles tambem não
se preoccupam com as fontes em que estribam a sua
veracidade; como Chronistas, crêem -se investidos de
uma judicatura responsavel, e authenticam o que af
firmam com a pureza da sua consciencia, visto que em
parte são testemunhas dos successos. São narradores
annalistas, com uma certa ingenuidade pittoresca com
que supprem a falta de liberdade; a historia critica
só veiu muito tarde, e a historia philosophica ainda é
desconhecida a sua forma entre nós. Esses Chronistas
do seculo xvi, são, primeiro que tudo, homens extraor
dinarios, grandes individualidades dignos de memoria
por si mesmos, que atravessaram grandes fadigas e
aventuras, como Antonio Galvão, Damião de Goes,
Fernão Mendes Pinto ou Diogo do Couto; esta quali
dade da ás suas narrativas um colorido inimitavel e
até certo ponto ellas podem ser consideradas como per
feitas obrasde arte.
5

316 CAPITULO XIV

Fernão Lopes de Castanheda, é talvez um dos pri


meiros Chronistas a quem cabem as considerações que
expuzemos ; natural de Santarem , e filho illegitimo de
Lopo Fernandes de Castanheda, primeiro Ouvidor de
Goa, acompanhou seu pae para a India em 1528, e
ali recolheu todos os factos que comprehendem os cin
coenta annos da sua Historia do descobrimento e con
quista da India , pelos portuguezes . Elle descreve as
condições em que escreveu e com que garante a sua vo
racidade : « Mas que a fui saber å India passando na
viagem bravas e vivissimas tormentas com que me vi
perto da morte e sem esperança da vida, com traba
Thos de grandes fomes e de muyto maior sède. E lá
com mil perigos, em mui espantosas pelejas do bom
bardas, espingardadas sem conto ; e antre ellas soube
eu a verdade do que havia de escrever de muitas cou
sas de vista e outras d'ouvido. » Quando escrevia e já
estava em Portugal, aonde sabia que vivia um homem
que estivera na India, ia procural-o para o consultar :
«E assy em trelados e lembranças que muitos curio
sos escreveram o que se fazia n'aquelles tempos .. E'
admiravel este processo historico comprehendido por
Castanheda : « E por isso quem ha de escrever historia
hade fazer as deligencias que eu fiz e ver a terra de que
hade tratar, comoeu vi, que assi o0 fizeram esses histo
riadores antigos e modernos. E bem sentia isto el-rei
Dom Affonso o Quinto de Portugal, quando mandou
Gomezeannes d'Azurara, cronista d'estes reinos a Alca
cere pera lá escrever como testemunha de vista o que os
nossos fizessem . Castanheda foi guerreado por duas or
dens de influencias, os eruditos e os descontentes com a
franqueza das suas narrativas, contra os primeiros jus
tifica -se mostrando a importancia que a sua historia
achou em França : « Do que he testemunha imprimir -se
agora em Pariz em lingua franceza o primeiro livro
d'esta historia, que tornou na mesma lingua Mestre Ni
HISTORIA, PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 317

coláo, que cá foy lente d'artes no Collegio real... ) Os des


contentes com a sua imparcialidade fizeram que o nono
e decimo livros fossem suprimidos, como o descobriu
Diogo de Couto, quando narrou o caso do requerimento
de alguns fidalgos a Dom João III, que por terem-se
achado no Segundo Cerco de Diu , pediam que o rei
mandasse eliminar o decimo livro de Castanheda por
motivos de suas honras. ( 1) A este tempo já Fernão
Lopes de Castanheda não era vivo (1559 ), « que com
o fim da historia se lhe acabou a vida, que tinha muito
trabalhada de muitas indisposições causadas de continuo
cuidado e de continuas vigilias e leitura de muitos pa
peis que da India trouxera. Castanheda nunca achou
recompensa de suas fadigas, e apenas para sustentar sua
familia conseguiu o miseravel emprego de Bedel da Fa
culdade de Artes (Lyceu) e guarda do Cartorio da
Universidade : « gastei vinte annos, que foi 0o melhor
tempo de minha idade, e n'elle fui tão perseguido da
fortuna e fiquei tão doente e pobre, por não ter ou
tro remedio com que me mantivesse, acceitei servir
uns officios na Universidade de Coimbra, onde no
tempo que me ficava desoccupado do serviço d'elles
com assåsfadiga do corpo e doespirito acabei de com
poer esta Historia que reparti em dez livros.» Tal é a
individualidade do Chronista ; a sua obra tem toda a
originalidade de um tal caracter.
Antonio Galvão, é um Chronista cuja personalidade
é ainda mais extraordinaria, tocando até o assombro ;
foi dotado d'esse excepcional cosmopolitismo a que obe.
cemos no seculo xvi, d'esse interesse scientifico dos
espiritos da Renascença, e d'essa paixão ideal e já ex
tincta civismo- ou amor da patria, que nos levou á
grandeza e á atrophia.
(1) Decada IV , liv. 5, cap . 1,
318 CAPITULO XIV

Era quinto filho do antigo Chronista Duarte Gal


vão (n. 1446 , m. 1517.) nascido fóra do matrimonio,
na India ; ( 1) foi nomeado Capitão de Maluco em 1536
pelo Governador Nuno da Cunha, conseguindo reme
diar pela sua prudencia todos os erros dos seus ante
cessores. Depois de ter augmentado em mais de qui
nhentos mil cruzados o rendimento da corôa, foi-lhe
offerecido o throno de Ternate, por se achar ali ex
tincta a dynastia ; findo o triennio do seu governo re
gressou à India e depois a Portugal, o quando espe
rava receber a recompensa dos seus immensos sacrifi
cios, achou o desprezo e a miseria , tendo de acolher -se
ao hospital, aonde alguns amigos lhe mandavam alter
nadamente o sustento. N'este desgraçado estado viveu
dezesete annos, sem conseguir nunca despacho aos seus
requerimentos, de modo que para o seu enterro o hos
pital lhe accudiu com a mortalha, e a confraria da
côrte com as despezas do enterro. Entrando para o
serviço do estado com uma fortuna rasoavel, nem de
pois de morto lhe pagaram uma parca divida que dei
xára . Morreu em 1557 ; e só em 1563 é que o seu tes
tamenteiro o amigo Francisco de Sousa Tavares con
seguiu publicar o notavel livro que deixou Antonio
Galvão : Tratado dos diversos e desvairados caminhos
por onde nostempos passados a pimenta e especiaria
veiu da India ás nossas partes, e assi de todos os des
cobrimentos antigos e modernos que são feitos até á era
de 1550. No meio das suas doenças e decepções, fiado
sempre em que a injustiça da sua época não prevale
ceria contra a integridade de que era dotado, Antonio
Galvão occupava- seno labor d'esse livro, escripto, como
diz o editor seu amigo, nas torturas « de animo affligi
do . ) Antonio Galvão escreve sem conhecer pretenções

(1) Cardoso, Agiologio lusitano, t . ií, p . 140.


HISTORIA ,7 PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 319

litterarias; e quando um caracter distincto escreve com


esta liberdade de espirito a sua linguagem produz o
encantó de um bello quadro da natureza .
João de Barros, é um dos principaes Chronistas
da grande época quinhentista, e o que em parte me
rece já o nome de historiador. Educado sob a disci
plina da erudição classica, preparando o seu estylo para
narrar a historia, com uma Novella cavalheiresca as
sás diffusa, tomando o rhetorico Tito Livio para seu
modelo, ainda assim João de Barros conseguiu ser na
tural e desaffectado em consequencia da impressão ima
mediata que recebeu nas suas viagens. João de Bar
ros nasceu em Viseu em 1496 ; tendo seu tio Lou
renço de Caceres, mestre do Infante Dom Luiz, falle
cido em 1531 sem ter cumprido o seu comprommisso
como Chronista -mór do reino, a quem competia redi
gir a Historia da India , João de Barros offereceu -se
à Dom João il para desempenhar esse encargo. O
modo como se houve na composição das Decadas da
Asia, conhece -se evidentemente naimpressão produzida
em Camões, a qual lhe provocou a concepção dos Lu
siadas, em 1553. Nas suas obras philosophicas e mo
raes João de Barros não parece o mesmo; falta -lhe aa
liberdade critica. A vida de João de Barros foi per
turbada com grandes desastres mercantis, saindo -se
sempre com sua honra illibada, e sacrificando -se pe
los seus amigos. Já velho retirou -se à sua quinta da
Ribeira de Alitem, em Pombal, aonde morreu passa
dos tres annos, em 20 de Outubro de 1570. Tambem
se distinguiram nas letras seu primo D. Frei Braz de
Barros, reformador de Santa Cruz de Coimbra, o seu
sobrinho Gaspar Barreiros. Em 1591 , Filippo II man
dou recolher os fragmentos das obras de João de
Barros, entre elles o da quarta Decada, que esta
vam em poder de sua nóra D. Luiza Soares, mulher
de Jeronymo de Barros; foram entregues estes papeis
320 CAPITULO XIV

a Dom Fernando de Castro Pereira, mas tendo falle


cido pouco depois, foram recolhidos no Collegio de Sam
Roque para serem entregues ao Jesuita Christovam
Clavio ; como este não pode vir de Roma, foram en
tregues a Duarte Nunes de Leão, que os nãopode ti
rar a limpo. Por fim , Filippe II encarregou Diogo do
Couto de continuar as Decadas da Asia , do ponto em
que estavam publicadas. Só em 1616 é que João Ba
ptista Lavanha satisfez o encargo commottido a Nu
nes de Leão. (1)
Diogo do Couto, distingue-se nas suas Decadas pelas
observações dos costumes, e pela narrativa pittoresca
aproveitadadas versões oraes dos proprios heroes dos
successos ; elle era tambem poeta e soldado, o amigo
intimo de Camões. Foi preciso dez annos de batalhas
na India, para que a natureza tornasse a despontar
por debaixo das devastações da educação erudita do
Collegio de Sam Roque, onde a Grammatica do Pa
dre Manoel Alvares, e a Rhetorica do Padre Cypriano
Soares conduziam fatalmente ao pedantismo. Nasceu
em Lisboa, em 1542, foi protegido pelo Infante Dom
Luiz, e quando a viagem da India se tornou uma mo
nomania, partiu com dezesete annos para aquella co
lonia, na Armada de 1559. O seu talento poetico o fez
procurar a amisade de Camões ; dos seus versos fala
Manoel Severim de Faria : « compoz alguns poemas
assi na nossa vulgar, em que teve particular graça,
tudo obras lyricas e pastoris, de que deixou um grande
tomo de Elegias, Eclogas, Canções, Sonetos ee Grosas.)
Elle acompanhou Camões, na viagem para Portugal
em 1570, e na sua Decada VII, narra o profundo es
tado de miseria em que esse seu «matalote e amigo
estava em Moçambique ( comendo de amigos . Depois
que regressou para a India foi encarregado de conti
(1 ) Severim de Faria, Vida de João de Barros.
HISTORIA, PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 321

nuar as Decadas de Barros, e nomeado Guarda -mór


do Archivo da India. A ' nobre independencia de juizo
que Diogo do Couto emito a respeito dos Capitães e
Governadores da India, se deve attribuir o roubo da
Outava e Nona Decada , de sua casa, em uma occa
sião de doença . Diogo do Couto, fallando da suppressão
do decimo livro de Castanhcda exigida pelos partida
rios de D. João de Castro, diz com uma certa inten
ção : « A estes e outros riscos se põem os escriptores
que as escrevem em quanto vivem os homens, de quem
o fazem ; nem por respeitos, nem por temor
deixaremos de as fallar; e postoque tambem em al
gum tempo semande recolher algum volume dos nos
sos, outro vira em que se ellas manifestem :) Quando
Diogo do Couto escrevia já o caracter nacional es
tava degradado, e a nobreza antes queria dinheiro que
tradições, apois' houve alguem que dizia publicamente
que não queria andar em Chronicas, fazendo pouco
caso que n'ellas se tratasse d'elle com elogios ou vitu
perio .» Morreu em Goa, a 10 de Dezembro de 1616,
com setenta e quatro annos. ( 1)
Damião de Goes é o primeiro Chronista critico, e
um verdadeiro espirito encyclopedico do seculo xvi; a
sua vida não é menos cheia de aventuras do que a do
Antonio Galvão, e a sua morte foi ainda muito mais des
astrosa . Nasceu em Alemquer em 1501 ; em 1518 foi
dos poucos admittidos na côrte å recepção do terceiro
casamento de el- rei Dom Manoel, circumstancia que o
faria, depois da subida de D. João III ao throno, en
tregar-se ao prazer das viagens pela Europa. D'esse
seu cosmopolitismofalla Antonio Galvão, dizendo : « viu
e fallou, conversou com todos os reis, principes, no
bres, povos de toda christandade, em vinte dois an
nos que gastou n'estes trabalhos ; viu e correu a mór

.), Severim de Faria, Vida de Diogo do Couto.


(12
322 CAPITULO XIV

parte da Europa por sua livre vontade, cousa digna


de louvor o memoria, pois deu luz a sua patria de
muitas cousas occultas a ella. ) Damião de Goes tra
tou negocios diplomaticos nas côrtes da Polonia, Di
namarca e Suecia , e em 1542 defendeu a cidade de
Lovaina por eleição dos seus habitantes, nas guerras
entre Carlos V e Francisco I. Durante as suas alongas
e varias peregrinações» teve amisade com Erasmo, o
tratou com Luthero ee Melanchton , que viviam na po
breza. Estas relações causaram o desastre da sua
morte, porque vindo para Portugal com o fim de es
crever à Chronica de Dom Manoel, que começou em
1558 e acabou passados nove annos, foi encarcerado
em 1571 nas enxovias da Inquisição de Lisboa, como
consta do curiosissimo processo do Santo Officio, que
está na Torre do Tombo. (1) Em 1564, Damião de
Goes, occupado na Chronica de que o encarregaram ,
lembrou a Pero de Andrade Caminha, que pedisse à
viuva do Infante Dom Duarte lhe mandasse alguns
apontamentosácerca de seu marido para intercalar na
Chronica de Dom Manoel. A Infanta D. Isabel man
dou -lhe uma relação das visões e penitencias de seu
marido, e Damião de Goes sobre isso disse a Caminha :
aque não havia homem que na morte não dissesse al
gumas parvoices.» Passados sete annos, quando Da
mião de Goes jazia na Inquisição, Caminha appresen
tou -se espontaneamente a aggravar-lhe a posição com
o seu miseravel depoimento. A morte de Damião de
Goes é obscura, e é de crêr que morrera no carcere
inquisitorial. Damião de Goes era um excellente mu
sico e compositor ; a convivencia com Erasmo, o
a sua estadà em Hollanda, na terra livre do pensa
mento na epoca do fanatismo religioso e politico, de
ram -lhe uma superioridade de critica sobre os outros
( 1) Lopes de Mendonça, Damião de Goes e a Inquisição.
HL
HISTORIA, PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 323

Chronistas; foi elle o primeiro que fez uma analyse


comparativa dos Chronistas que o precederam .
Braz de Albuquerque, mais conhecido pelo nome
de Affonso de Albuquerque, é tambem notavel entre
esta selecção de bons espiritos que narram os factos
com a desaffectação superior e intelligente de quem
praticou ou viu. Nasceu em 1500 , e querendo D. Ma
noel recompensal-o pelos serviços de seu pae, o grande
Affonso de Albuquerque, mandou-o na comitiva da
Infanta D. Beatriz a Saboya; porém quando voltou a
Portugal, já o rei estava morto « e ficou sem a satis
fação que mereciam os grandes serviços de seu pae,
assi polo pouco cuidado que elle teve de os requer,
como tambem pela mudança do tempo . » Escreveu os
Commentarios de Affonso de Albuquerque, sobre os do
cumentos que seu pae enviava officialmente a D. Ma
noel. O Dr. Antonio Ferreira era amigo de Braz de
Albuquerque, e celébra os seus Commentarios como
uma « nua e chã pintura .» Muitos são os Chronistas
portuguezes do seculo xvi, cuja feição litteraria se
resente e eleva com o meio em que escreveram ; na
impossibilidade de enumerar todos, resumimo -nos a
essa caracteristica geral.
Historia nos claustros

As primeiras Chronicas portuguezas, como já vi


mos, foram elaboradas na vida sedentaria dos claus
tros, mas sem progresso sensivel até a segunda me
tade do seculo xvi. O desenvolvimento que a Historia
recebeu pelos Chronistas officiaes e nas relações avul..
sas, acordou a importancia d'este genero litterario, e
as Ordens religiosas consideraram a redacção historica
como um seu apanagio, chamandoado para si a nomeação
de Chronistas -móres do Reino . Mas a Historia per
deu a vitalidade; o escriptor já não tinha esse conheci
324 CAPITULO XIV

mento pratico dos successos e dos caracteres adquirido


nas batalhas, nas viagens, no trato das feitorias, nas
injustiças contemporaneas; a historia tornou -se uma
tela esfumada, um pretexto para dissertar sobre ori
gens prehistoricas, parainventar auctoridades e docu
mentos suppositicios, reduzir a historia as vidas dos
reis, e a vida d'estes á enumeração de fundações pie
dosas. Escreve-se algumas historias de institutos mo
nasticos, mas em vez de pôrem em relevo a parte d'es
sas congregações na illustração portugueza pelo ensino,
relatamasdoações e as lendas artificiaes de santidade;
n'esta classe ainda o espirito da Chronica secular ap
parece, quando se contam os trabalhos das missões,
como é a Ethyopia oriental, de Frei João dos Santos,
2

ou o Tratadodas Cousas da China, por Frei Gaspar


da Cruz. Esta classe de livros ainda está por explo
rar pelos modernos orientalistas; e quando vêmos as
grandesluzes que se tira das viagens de Fra Paolino
de San -Bortholomeo , surprehende-nos o terem até hoje
deixado intacta esta fonte portugueza .
Todos os defeitos da educação erudita aggravados
com as phantasmagorias de uma imaginação poetica
bastante vigorosa, apparecem em Frei Bernardo de
Brito, auctor da Monarchia Lusitana, especie de corpo
da historia nacional continuado successivamente depois
da sua morte e com melhor vantagem. A historia an
tiga existia na sua cabeça em um tal estado de syn
cretismo, que são as suas reminiscencias auctoritarias
que o perturbam ; para elle as tradições, sobretudo
agiologicas, são uma realidade. Tem a grande quali
dade de dar movimento ao que conta, mas 'essa vida
não a tira dos successos, insufla - a com as suas affir
mações imaginosas. O estylo é calculadamente rheto
rico. E' um typo bem pronunciado na decadencia da
Historia. Pertence tambem a esta época Frei Marcos
de Lisboa, atctor da Chronica dos Menores ; a negli
HISTORIA , PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 325

gencia e simplicidade do seu estylo provêm do espirito


humilde do seu instituto, que até na architectura im
punha como typo a construcção grosseira o sem bel
leza. A grande época da poesia dos claustros francis
canos era já passada, e foi debalde que Frei Marcos
de Lisboa estudou as poesias de Fra Jacopone da Todi.
Historiadores insulanos

O livro intitulado Saudades da Terra , em que se


trata da Historia das Ilhas dos Açores, do Porto Santo,
Madeira, Desertas e Selvagens, foi escripto pelo Dr.
Gaspar Fructuoso em 1590, como se deprehende do
proprio texto : « será n'esta era de 1590 de edade
de... » (1) Esta data presta para mostrar os subsidios
de que Fructuoso se serviu, o por onde se pôde re
compôr a historiographia insulana no seculo xvi. Pri
meiramente Fructuoso cita uma Historia da Ilha da
Madeira. ( p. 18.) Este livro não pode ser senão uma
relação attribuida a Gonçalo Ayres Ferreira, compa
nheiro de João GonçalvesZarco,ampliada pelo conego
madeirense Hieronymo Dias Leite, como vamos vêr.
Em 1566 o Dr. Gaspar Fructuoso, sabendo da devas
tação que tres corsarios francezes fizeram na Ilha da
Madeira, e do estado desgraçado da população, tratou
logo de promover soccorros na Ilha do Sam Miguel,
indo pedindo dinheiro de porta em porta ; desde este
facto é que teve relações com Hieronymo Dias Leite,
a quem mandou pedir o manuscripto de Gonçalo Ay
res Ferreira, por intervenção de Belchior Fernandes
de Castro, e por Marcos Lopes. A relação do Desco
brimento da Ilha da Madeira andava na casa dos Ca
maras, como cousa hereditaria ; e como o seu possuidor
estava em Lisboa, o conego Leite lhe escreveu pedin
(1) Ed ., de Alvaro Rodrigues de Azevedo, p. 159,
326 CAPITULO XIV

do-lh'a, e João Gonçalves da Camara a mandou copiar


em tres folhas de papel pelo seu camareiro Lucas de
Sá. O conego Leite ampliou essa relação com noticias
de sua curiosidade e remetteu - a a Fructuoso. (p . 265.)
O livro de Gaspar Fructuoso tem todos os defeitos da
sua época, e já nenhuma das bellezas d'ella ; tendo
consultado João de Barros e Damião de Goes, os que
tiveram mais senso critico, não chegou mais do que a
ser um diffuso Chronista sem plano, sem alcance phi
losophico, sem senso critico para distinguir d'entre as
pequenas anecdotas quaes são aquellas que retratam
a vida moral do passado. O seu estýlo é affectado e falso
e mostra-nos que o mal dos seiscentistas já lavrava no
fim do seculo XVI .

Philosophia

A nossa actividade intellectual sobre esta forma


synthetica das sciencias foi diminuta ; não tivemos des
envolvimento nas sciencias naturaes bastante para po
dermos gradualmente ser elevados a constituir uma
philosophia; por tanto, acceitamos a philosophia que se
impunha com mais auctoridade. Foi o Aristotelismo ;
porém , renovado pelos Jesuitas sob a forma conhecida
pelo nome de humanista ou alexandrista. Os Jesuitas
apoderaram -se do ensino, e por via d'elledas novas in
telligencias desde 1555, com a expulsão do sabio Diogo
de Teive; a consequencia foi a decadencia immediata
no seculo XVI eXVII, em que o nivel intellectual baixou
em extremo. Sob a pezada Grammatica do Padre Ma
noel Alvares, sob as suas Logicas Barreta e Carvalha ,
sob as suas Rhetoricas do Padre Cypriano Soares e
de Pomey, surgiu uma geração de mediocres.
São poucasas obras philosophicas escriptas no se
culo xvi; e como essas poucastinham de ser rigora
samente submettidas á orthodoxia, tornaram -se restri
HISTORIA , PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 327

ctamente moralistas. E' curioso o modo mechanico como


o illustre Chronista João de Barros philosophava :
avendo como os homens occupavam o mais do tempo
jogando, inventou umjogo de tabolas a que reduziu as
Ethicasde Aristoteles, introduzindo n'elle as virtudes e
vicios por excesso e por defeito, o qual jogo imprimiu
6
no anno de 1540, e o dedicou à Infanta Dona Maria,
princeza que depois foi de Castella, a qual jogava com
el-rei D. João seu pae déstramente, segundo elle affirma
em varias partes , e teve intenção de pôr a Economia
tambem em jogo de cartas, e a Politica no enxadrez,
por estes troz jogos serem os mais communs, e pera
n'elles ao menos aprenderem os homens o nome das
virtudes ...D (1 ) Em quanto João de Barros esteve fu
gido da peste de 1530 na sua quinta junto a Pombal,
compôz o mandou a Duarte de Resende o dialogo mo
ral intitulado Rhopica pneuma, ou mercadoria espiritual;
é a allegoria em que são interlocutores a Vontade, o
Entendimento, a Rasão, o Tempo, obra muito apreciada
>

no seculo XVI, o para nós hoje legivelsópor uma ou ou


tra referencia aos costumes d'aquella época. Escreveu
um segundo Dialogo em 1539 intitulado da Viciosa
vergonha , com o fim de tirar das escholas o uso de se
lêr em processos judiciarios, substituindo-os pelo seu
tratado. Não é mais importante do que o antecedente.
Com o mesmo nome de João deBarros, figura na
côrte de D. João III, um Doutor , que escreveu um
livro de philosophia moral, o Espelho de Casados. O
Doutor João deBarros, é natural de Braga , comodiz
Severim de Faria, e cidadão do Porto, aondo residiu
até 1549, como elle proprio o dá a entender; cursara
os canones em Salamanca, por 1522, e em 1549 Dom
João III o chamou para seu Escrivão da Camara, como
elle o declara no livro inedito das Antiguidades de En
(1) Severim, Vida de João de Barros.
328 CAPITULO XIV

tre Douro e Minho. O livro intitulado Espelho de Ca


sados foi publicado em 1540; pertence a essa classe de
livros em que o ascetismo toma o aspecto de philoso
phia para dominar certas instituições sociaes, entre
os quaes se pode citar a Femina Christiana, de Vives,
a Perfecta casada, de Frei Luis de Leão, e o Casa .
mento perfeito, de Diogo de Paiva de Andrade, sobri
nho do celebre prégador quinhentista. O Espelho de
Casados representa uma comprehensão do casamento
fundada sobre as relações da familia romana com as
tradições do peccado do Eva ; se os chefes de familia
comprehendiam assim esto facto organico da sociedade,
a vida de familia no seculo xvi devia ser soturna pela
desconfiança e pelo aviltamento. Para estes moralistas,
a falta de abstracção e do poder de observação sup
pre -secom textos auctoritarios dos santos padres, o
com Exemplos, ou pequenos contos.
.

É verdadeiramente notavel como documento psy


chologico, o livro intitulado Ditos da Freira, attri
buido a D. Joanna da Gama, reclusa do Salvador de
Evora . Alguns desastres da vida a fizeram crear em
volta de si uma solidão religiosa , e os desabafos das
suas angustias eram recolhidos pelas suas companhei
ras como maximas, que se transmittiram tradicional
mente na clausura . As maximas nada têm de profun
didade, mas tem aquella graça desenfeitada das natu
rezas simples .
1 Eloquencia

Assim como a palavra escripta produz a poesia, a


palavra oral é o elemento com que se cria uma forma
sublime da arte, chamada Eloquencia. Só existe na
turalmente no momento em que actua sobre as paixões;
fixada pela escripta, torna-se como o retrato com re
lação àá figura. Por isso, para criticar as obras da Elo
quencia importa ter presente sempre a fórma precaria
HISTORIA , PHILOSOPHIA E ELOQUENCIA 329

em que se reproduz. Para que a Eloquencia se desen


volva, é necessario que exista vida publica , do mesmo
modoque exista burguezia e opinião para que se desen
18
volva o theatro. No seculo xv , sob 0o cesarismo politico ,
e intolerancia religiosa, não era possivel que existisse
nenhuma d'essas condicções que revelam 0o orador. João
de Barros escreveu Panegyricos, a imitação de Plinio,
que eram para lêr diante do rei ou da infanta , o ape
nas teve algum desenvolvimento a prédica religiosa.
Entre os pregadores do seculo xvi, figuram com grande
vantagem Dom Antonio Pinheiro, pela correcção da
linguagem , Diogo de Paiva de Andrado, pela uncção,
o o Padre LuizAlvares, parente de Diogo do Couto,
pelo extraordinario arrebatamento que causava na mul
tidão, a ponto de chegar a Roma a sua fama, e Pio v
lhe chamar o novo Paulo. Mas n'uma época em que a
carnificina de S. Barthelemy era celebrada em Por
tugal com um sermão de graças, é inutil investigar a
verdade d'essa eloquencia .

Data

013,1
form
steB
ixie
om
CAPITULO XV

Viagens, Ficções novellescas

Tendencia cosmopolita do caracter portuguez noseculo xvi.-


Typos extraordinarios de Fernào Mendes Pinto, Antonio
Tenreiro, Padre Francisco Alvares. - A poesia bucolica con
verte-se nas Novellas pastoraes.- Formação da novella Me
nina e Moça de Bernardim Ribeiro, anterior á influencia ita
liana. - Explicação das suas allegorias. Imitação de Jorge
Monte -Mór, na Diana. O Clarimundo de João de Barros, ea
novella na côrte de D. João : Palmeirim de Inglaterra, de
Francisco de Moraes, e o Memorial da Tavola Redonda, de
Jorge Ferreira . — Contos populares recolhidos inconsciente.
mente por Gonçalo Fernandes Trancoso. Sua importancia.

Viagens

O facto das descobertas e conquistas na Africa


na Asia modificou o caracter portuguez, tornando -o de
apathico , aventureiro, com um amor do imprevisto e
do difficil, como se vê nas relações de naufragios e no
desastre dos Côrte-Reaes . Esta ordem de sentimentos
creou na litteratura portugueza uma serie de obras in
teressantissimas, em que os nossos viajantes contam as
suas expedições, e aomesmo tempo influiu tambem 80
bre o gosto popular, produzindo alguns pequenos qua
dros com que elle ainda hoje se regosija. Pertence ao
seculo xvi o opusculo intitulado as Sete Partidas do
Infante Dom Pedro, escripto por Gomes de Santo Es
tevam ; este titulo voga corrompido por influencia da
designação dos outros folhetos a que andava unido,
como se vê pela edição de Barcelona, de 1595 : Los
siete Sabios de Roma, con el Libro del Infante D. Pe
dro de Portugal, que anduvo las quatro partidas del
.
VIAGENS, FICÇÕES NOVELLESCAS 331

mundo . (1) A redacção primitiva do Livro do Infante


D. Pedro já se não conhece, porque segundo o costume
dos livreiros do seculo xvi, as palavras antiquadas eram
sempre substituidas por vocabulos novos ; épor issoque
não se encontrarão dois exemplares que não tenham
entre si variantes o até lições differentes. A' littera
tura popular do seculo xvi pertencem as Relações de
Naufragios, que mais tarde foram recolhidas por Ber
nardo Gomes de Brito ; é n'essas relações que se en
contra a verdadeira prosa portugueza, natural, espon
tanea, verdadeira, em que o que narra desconhece a
affectação rhetorica, e descrevendo as impressões im
mediatas do desastre excede em colorido e vigor todos
os recursos da arte. O Naufragio do GaleãoGrande,
em que succedeu a perda de Sepulveda e sua mulher
em 1552; o Naufragio da Náo Sam Bento, em 1554 ;
da Náo Conceição em 1555 ; da Náo Aguia e Graça,
em 1559 ; de Santa Maria da Barca , no mesmo anno;
da Náo Sam Bento em 1560 ; o Naufragio de Jorge de
Albuquerque Coelho, em 1565 ; da Náo Sam Thiago,
em 1585 ; da Náo Sam Thomé, em 1589, escripta por
Diogo do Couto ; da Náo Santo Alberto , em 1593 ; -
da Náo Sam Francisco, em 1596, publicadas em folhas
volantes, foram a litteratura popular do seculo XVIem
Portugal. Acham-se recolhidos na Historia Tragico
maritima .
De todos os viajantes portuguezes, o mais extraor
dinario é sem duvida Fernão Mendes Pinto , nascido
em Monte-Mór -o -Velho, em 1509, aonde viveu na es
treiteza da casa paterna até 1519, até que entrou para
Moço da Camara do Duque de Coimbra Dom Jorge
de Lencastre; embarcou para a India aos vinte annos
de edade, e n'essa vasta região divagou durante vinte
um annos, sendo captivo tres vezes e vendido dezesete
( 1) Ap. Bibliotheca de Gallardo, p. 1144.
3
1
332 CAPITULO XV

vezes; as suas maravilhosas aventuras na China, na


Tartaria, em Sião, em Calaminhan , no Pegú, no Mar
tavão, as suas relações com o Apostolo dasIndias Sam
Francisco Xavier, tudo relatou no seu livro intitulado
Peregrinaçam . Fernão Mendes Pinto regressou a Por
tugal em 1558, e desde esta época até 1580, em que
morreu na villa de Almada, escreveu esse livro inti
mo das suas memorias, o qual deixou á Casa Piados
Penitentes de Lisboa. Poucos serão os livros que pos
sam equiparar-se áá Peregrinaçam , pelas condições uni.
cas em que foi escripto e pelo interesse crescente que
provoca . Longo tempo considerado como fabuloso,as
modernas explorações dos Viajantes na Africa e na
Asia tem-no rehabilitado como uma obra scientifica.
D'esta obra plagiou o Padre João Lucena as pagivas
mais importantes da Vida de Sam Francisco Xavier.
O Itinerario de Antonio Tenreiro, que veiu da In
dia por terra a Portugal em 1529, é tambem o pro
ducto de uma d'essas organisações cosmopolitas que 50
hoje a Inglaterra ainda apresenta nos seus Speke,
Grant, Baker ou Livingston. Tenreiro sabia muito
bem as linguas orientaes, e foi isso que o animou á
sua destemida empreza . Era tambem natural de Coim
bra, como Tenreiro, o Padre Francisco Alvares, que
descreveu a Verdadeira informação das Terras do
Preste João, aonde acompanhou Dom Rodrigo de Lima
em 1520, e aonde se demorou seis annos . Um livro
bastante raro, e tambem escripto com esse assombroso
espirito cosmopolita, que só tivemos no seculo xvi, é
o que se intitula Relaçam verdadeira do descobrimento
da Frolida, em 1558, feito por Dom Fernando do
Soutoe por mais outo companheiros, André de Vas
concellos, Fernão Pegado e Estevam Pegado, Antonio
Martinez Segurado, Bento Fernandes,Alvaro Fer
nandes,> e Mem Rodrigues Pereira . Por fim , faremos
menção do Itinerario da Terra Santa feito por Frei
333
VIAGENS,> FICÇÕES NOVELLESCAS
Pantaleão de Aveiro, depois da sua jornada em 1563.
Poucas litteraturas haverá tão ricas como a portugueza
n'este genero de composições. (1)
Ficções novellescas e Contos

Não tendo conhecido as Gestas francezas tanto car


lingianas como arthurianas, d'onde sairam as princi
paes novellas de cavalleria no periodo em que essas
epopêas foram transformadas em prosa, não tinhamos
por tanto um elemento organico, sobre que elaboras
semos as nossas ficções, e por isso imitámos n'este ge
nero as correntes europeas. Começámos pelas allego
rias historicas, com o Clarimundo de João de Barros,
e acabámos pelas pastoraes allegoricas, como a Luzi
tania transformada, do Fernão Alvares d'Oriente. De
toda a actividade n'este genero de litteratura, nenhuma
obra se tornou popular, porque nenhuma se derivou
de uma fonte tradicional ; é esta tambem a causa mui
tas vezes da absurda e diffusa narração.
Quando João de Barros foi dado como guarda
roupa do principe Dom João, reinava no paço de Dom
Manoel o gosto pelas novellas de cavalleria; facil lhe
foi ser seduzido por essa monomania. Diz Severim de
Faria : « Era então João de Barros de pouco mais de
vinte annos de edade, o como andava em serviço do
princepe, que lhe occupava a mór parte do tempo, só
nos espaços que lhe restavam publicamente, e como
elle diz, na mesma Guarda roupa do paço sem outro
repouso , nem mais recolhimento .... em outo mezes
compoz esta historia , (de Clarimundo que para tal
edade e occupação se pode ter por grande cousa. Ainda
que o princepe Dom João , a quem elle communicou

(1) Vid. Collecção de Noticias para a Historia e Geogra


phia das Nações ultramarinas, t. I -iv .
334 CAPITULO XV

seu intento, o favoreceu tanto, que ello mesmo ia re


vendo e emendando os cadernos que compunha; este
favor lhe fez publicar logo o livro; e estando el-rei
Dom Manoel na cidade de Evora, no anno de 1520,
Jh'o appresentou, dizendo-lhe que a intenção com que
o fizera fôra pera se empregar na historia de Portu
gal, e principalmente na da conquista de Oriente. » (1)
Não obstante Rodrigues Lobo o considerar como um
dos livros de cavalleria mais bem escriptos, o Clari
mundo é hoje quasi illegivel, porque, além da ficção
ser arbitraria e desconnexa, o auctor desprendeu -a do
interesse das allusões contemporaneas.
Por este mesmo tempo escrevia Bernardim Ribeiro
a Novella pastoral intitulada Meninu e Moça ; póde-se
dizer que a primeira parte d'esta obra é uma mara
vilha litteraria pela graça ingenua, pela simplicidade
profunda, que deixa descobrir debaixo d'aquellas quei
xas de pastores os amores de Bernardim Ribeiropor
D. Joanna de Vilhena . A menina e moça que figura na
novella é a Aonia , annagramma da formosissima prima
de Dom Manoel, que foi casada depois com o Conde
de Vimioso ; a dama que lamenta a morte de seu filho,
representa a rainha D. Leonor, viuva de Dom João II ;
o logar da acção é nas cercanias de Evora, aonde por
1491 residia à côrte. A Menina e Moça trata do caso
de dois amigos, o Cavalleiro da Ponte e Bimnarder;
o Cavalleiro da Ponte, que morre de uma queda é o
principe Dom Affonso, o os tres annos do Passo de
armas, são o das Terçarias antes do seu casamento
com a infanta D. Isabel. Esta princeza figura ali como
Beliza, o casa depois com Lamentor, que allude a
el -rei Dom Manoel; como a rainha D. Isabel, Beliza
morre egualmente de parto. Os amores de Aonia e
Bimnarder são a parte essencial da acção na Menina
(1) Severim de Faria, Vida de João de Barros.
VIAGENS, FICÇÕES NOVELLESCAS 335

e Moça, e o desenlace da Novella corresponde á rea


lidade historica a que allude, por que Aonia casa com
Fileno e Bimnarder desapparece, da mesma forma
como D. Joanna de Vilhena casa com o Conde de Vic
mioso, e Bernardim Ribeiro abandona a patria. Uma
vez achado este fio no labyrinto d'essas paizagens pas.
toraes, a Menina e Moça torna-se de uma leitura en
cantadora; póde-se dizer que é a principal novella que
temos. A segunda parte pertence a outra mão, é dis
paratada e illegivel; uma redacção manuscripta da
Menina e Moça ,que se guarda na Bibliotheca da Aca
demia hespanhola, e que se julga a mais antiga, só
consta da primeira parte. ( 1) Esta Novella é o pro
ducto natural e por isso bello do lyrismo bucolico, que
Bouterwek considerava nacional entre nós ; é a Pasto
ral anterior á influencia italiana .
As relações pessoaes entre Bernardim Ribeiro e
Jorge de Monte-Mór, que se descobrem pelas Eclogas
d'aquelle bucolista, vem explicar-nos agora a influen
cia que a Menina e Moça exerceu na creação da
Diana. Jorge de Monte-Mór escreveu a historia dos
seus amores infelizes em castelhano, e ainda que a sua
obra seja uma das mais notaveis da litteratura hespa
nhola, pertence-nos pela naturalidade do poeta e pela
origem da sua imitação. O talento musico de Jorge
de Monte -Mór fel -o procurar em Hespanha a sua car
reira artistica, entrando como cantor na capella am
bulante de Filippe II, posição que lhe proporcionou
o ensejo de viajar pela Europa. Quando a princeza
Dona Joanna veiu para Portugal em 1552 para casar
com o filho de Dom João II, Jorge de Monte-Mór
regressou á patria, aonde se não pôde demorar, não
obstante todas as vantagens que na côrte lhe offere
ciam. Foi por este tempo que teve relações pessoaes
(1) Acad. hespanhola, Ms. n.° 76, de pag . 1 a 39.
336 CAPITULO XV

com Camões; Monte-Mór eraentão já celebre pela im


mensa popularidade da sua Diana . Pela novella não
se pode descobrir se elle teve por modello a Arcadia
de Sanazarro; mas é certo que factos particulares da
sua vida contados sob a forma allegorica dão um
vivo interesse a essa narrativa, às vezes desnatu
rada pelo apparecimento de gigantes, selvagens e
fadas das novellas de cavalleria , o de nymphas das
tradições cultas da Renascença . A Jorge de Monte
Mór cabe a gloria de ter inspirado Shakespeare. A
Diana teve asorte do Amadis; tambem inspirou um
longo cyclo de continuações .
O genero pastoral foi mais cultivado a medida que
caminhava para a decadencia ; a ultima novella d'este
genero é a Lusitania transformada, em que Fernão
Alves do Oriente imitou directamente a Arcadia, de
Sanazaro; consta de prosas o versos em que o au
ctor conta , segundo o costume, um desastre do seu
amor que o fez partir da India para a Europa, e em
que introduz como personagens varios pastores, que
são em geral os poetas do ultimo quartel do seculo XVI.
A Lusitania transformada começou a ser escripta
em 1594, quando Dom Gonçalo Coutinho trasladou
Os ossos de Camões da sepultura rasa em quejaziam . A
novella pastoral foi uma degeneração da poesia bu
colica, como a novella de cavalleria uma degeneração
da poesia épica .
1
As novellas de cavalleria foram immensamente
apreciadas na côrte de Dom João ini ; a antiga sym
pathia do monarcha, que na sua mocidade copiava
pela sua mão os cadernos do Clarimundo, devia re
Hectir -se em todos aquelles que o cercavam ,
Em 1543 voltou a Portugal Francisco de Moraes,
que estava em Paris como secretario do embaixador
D. Francisco de Noronha ; tendo vivido na corte de
Francisco I, casado com a viuva de el -rai D. Manoel,
VIAGENS, FICÇÕES NOVELLESCAS 337

ao regressar á patria dedicou a sua filha a Infanta


D. Maria a novella do Palmeirim de Inglaterra. Esta
obra imprimiu -se anonyma, e como tal foi traduzida
em hespanhol em 1547, resultando d'ahi o ser attribuida
ao editor castelhano Luiz Hurtado ; mas é certo quo
os versos em que Luiz Hurtado traz o seu acrostico,
dizem da traducção: « Robando la fructa de agenos
huertos. Demais, no Palmeirim de Inglaterra ha cir
cumstancias pessoaes que só se referem a Francisco
de Moraes, como os amores com a Torsi em França,
de que tracta outra vez nos seus Dialogos. Apesar de
Cervantes perdoar ao Palmeirim de Inglaterra, no
auto de fé feito ás Novellas de cavalleria pelo Cura, o
elogiar as aventuras do castello de Miraguarda, a no
vella é extremamente diffusa , de uma exagerada am
plificação rhetorica, como consequencia de um genero
mal comprehendido e extemporaneo. Todos estes de
feitos se aggravaram nas continuações da Novella por
Diogo Fernandes, que ainda no seculo xvi escreveu
a terceira e quarta parte do Palmeirim de Inglaterra,
e por Baltazar Gonçalves Lobato, que escreveu uma
quinta e sexta parte nos principios do seculo XVII .
Desde o momento que a unidade da ficção se que
brava, os continuadores caíam irremediavelmente no
absurdo. A Dom Gonçalo Coutinho tambem se attri
bue uma Novella intitulada Historia de Palmeirim de
Inglaterra e de Dom Duardos, hoje perdida . Os Pal
meirins formam um cyclo novellesco á parte.
Jorge Ferreira de Vasconcellos, que escrevia para
comprazer com o principe Dom João, tambem com
poz essa Novella intitulada Memorial dos Cavalleiros
da Segunda Tavola Redonda, que nada tem como
cyclo arthuriano, e na qual se descrevem as festas ou
torneios de Xabregas, quando este principe foi armado
cavalleiro. Parece que esta mesma Novella se chamou
anteriormente Triumphos de Sagramor ; o nome de
22
338 CAPITULO XV

Sagramor apparece no poema do Bel Inconu, e n'um


poema allemão antigo. Diz Gervinus, na Historin
da Poesia allemã : « assim como estas relações appare
cem tambem tres fragmentos de um Segramor em
.

medio alto allemão, formado como o Wigalois, com


tiradas finaes de tres rimas, e outros de um Edolantz,
que parecem revelar enchertos artificiaes que se ori
ginaram de nomes secundarios da lenda arthuriana .»(1)
As relações dos antigos Triumphos de Sagramor com
o Memorial, mostram -nos as vagas ligações d'esta No
vella com o cyclo de Arthur. Emum documento de 1533
achamos o nome de Sagramor de Basto ; (2) ora og
nomes cavalheirescos usados na sociedade portugueza,
eram sempre tirados das Novellas que estavam mais
em voga, o que nos vem precisar a época em que te
riam sido compostos os Triumphos de Sagramor. O
estylo de Jorge Ferreira na Novella é inferior ao das
suas tres comedias ; falta- lhe esse elemento popular
das locuções e dos Anexins, que o torna bem digno de
ser estudado .
Por ultimo fallaremos dos Contos proveitosos de
Gonçalo Fernandes Trancoso, natural da Beira, o cen
tro das tradições populares. Viveu em Lisboa aonde
foi mestre de humanidades; em 1544 já se achava
na côrte, e allude á morte do principe em 1554. Os
seus Contos foram escriptos por occasião da peste
grande de 1569, morrendo-lhe por essa ocoasião al
guem de sua familia; só em 1585 resolveu publicar as
duas partes, e só depois de sua morte é que seu filho
Antonio Fernandes publicou em 1596 a terceira parto
dosContose Historiasde Proveito e exemplo. Consta
de vinte e nove Contos, importantes pelas suas origens
tradicionaes, embora ó estylo rhetorico e as divaga
( 1) Ob. cit ., t . 11, p. 42.
i2) Archivo portuguez oriental, p. 57 .
VIAGENS, FICÇÕES NOVELLESCAS 339


IN
ções moraes lhe tirem grande parte do merecimento .
Alguns d'esses Contos acham -se no Decameron de Boc
cacio, tal como a Griselidis ; outros nas Notte piacevoli
1
de Straparole , e nas Novellas de Sachetti, como o conto
do segredo revelado á mulher ; outros no Conde de Lu
canor, como o que versa sobre o thema o que Deos
faz é o melhor ; outros emfim são derivados da tradi
ção oral, como o de Dom Simão, que é o conto do Pa.
dre Frei João Sem cuidados. Depois que a cadeia tra
dicional dos Contos foi descoberta, desde os estudos da
Pantchatantra por Benfey até aos Contos oraes de to
dos os paizes , olivro de Trancoso adquiriu uma grande
importancia, porque representa Portugal n'esse grande
confronto das origens, sobre que tanto trabalha аa scien
cia moderna .

Shah
QUARTA EPOCA

OS SEISCENTISTAS
(SECULO XVII )

CAPITULO XVI
Estado da Lingua e da Litteratura

O seculo xvii caracterisa -se pela actividade scientifica.- A


creação das Academias litterarias torna -se nos paizes sem
liberdade intellectual um movel do Cultismo e da rhetorica
esteril.-- Imitação da litteratura hespanhola em Portugal.
Os philólogos procuram a explicaçãode certos factos da lin
gua portugueza no hespanhol.- Trabalhos philológicos de
Manoel Severim de Faria, de Alvaro Ferreira de Vera, de
João Franco Barreto, do Padre Bento Pereira .-- O methodo
grammatical alvaristico , e os Chorros, Cartapacios e Prom
ptuarios. – Tentativa de reforma do ensino por Amaro de
Roboredo.- Importanciada traducção da Biblia pelo Padre
João Ferreira de Almeida.- Anquetil Du Perron falla do
dialecto portuguez de Ceylão.

Caracter do seculo XVII e dos Seiscentistas

No vasto quadro da civilisação moderna, o ca


racter do seculo XVII é quasi exclusivamente scienti
fico. Venceu o espirito critico da Reforma, rompendo
a pesada tradição aristotelica, platonica, pythagorica,
averrhoista e alexandrista, que embaraçava a marcha
da intelligencia, desvairando os cerebros mais bem or
ganisados, como o de Cardan . No seculo XVII accu
mulam -se as descobertas no campo da sciencia, sen
te-se a necessidade das gazetas litterarias e das cor
porações dos homens instruidos, congregados para o
ESTADO DA LINGUA B DA LITTERATURA 341

trabalho. A' medida que as nacionalidades se separam


pela falsa ideia do equilibrio europeu, a intelligencia
humana sente-se solidaria pela identidade dos proces
sos logicos, pelo interesse commum dos seus novos me
thodos de observação e de calculo. Desapparece diante
da rasão o maravilhoso da edade media ; está termi
nada a época das descobertas aventureiras e começam
as invenções por via do raciocinio . Descartes, Neper,
Pascal trazem a intelligencia humana ao conhecimento
da realidade. Comprehende-se diante d'esta elabora
ção coino o seculo XVII foi o da fundação das Acade
mias. Em Portugal tambem repercutiu essa creação
das Academias, mas sem o fervor, nem a seriedade
scientifica; como podiamos nós entrar n'essa carreira
vertiginosa, se a acção philosophica da Reforma foi
abafada em Portugal pela Inquisição, e se os Jesuitas
continuaram a fabricar Commentarios aristotelicos
para obstar á liberdade da razão ? As nossas Acade
mias reproduziram só o que era exterior, e tornaram -se
Tertulias, segundo o gosto litterario de Hespanha, e
com essa feição de convivio que lhe deu a Italia. Por
tanto este seculo scientifico, foi para Portugal o seculo
da rhetorica 8e dos declamadores; rhetorico, porque não
podendo ter a liberdade intellectual, a palavra servia
unicamente de objecto e fim do discurso, contornava-se,
virava -se, porque nada havia que dizer . A incapaci
dade da analyse e da concepção subjectiva conhece-se
no falso lyrismo culteranêsco ; na predilecção exclusiva
pelas epopêas historicas ; na decadencia do theatro,
porque não existia opinião pública de que fosse orgão;
finalmente a época seiscentista e a arcadica , caracte
risam -se pelo desconhecimento total da tradição na
cional, pela separação entre o escriptor e o povo, e
pela inspiração independente dos successos e interes
ses da vida real. Tal é a causa da inferioridade dos
Seiscentistas e das suas aberrações. E' certo que a
342 CAPITULO XVI

corrente erudita da Renascença produziu eguaes es


tragos nas litteraturas da Europa; mas os Marinistas, 7

Gongoristas, Euphuistas , e as divagações do paiz de


Tendre passaram como um rapido contagio, o a vita
lidade das tradições restabeleceu-se pelas investigações
scientificas : a litteratura allemã levantou -se vigorosa
no fim do seculo XVIII por ter procurado a verdadeira
inspiração nas suas origens. Em Portugal durou para
mais de dois seculos este estado em que, sem o calor
das tradições, as obras individuaes foram estioladas e
pêcas. Passemos de alto e rapidamente sobre estas
duas épocas, como as aves por sob as alagoas morti
feras.

Estado da lingua e da philologia

Estavamos sob o dominio hespanhol não só em po


litica como em litteratura ; a lingua portuguoza, como
sabemos por uma declaração de Galhegos, que se de
fende de ter escripto na lingua patria, era considerada
pelas classes elevadas como propria para ser fallada
nas praças e pelo vulgo rude ; a lingua hespanhola era
uma linguagem de distincção e propria para as locu
brações litterarias . Partindo d'esta falsa ideia, era im
possivel estabelecer-se a minima relação entre o escri
ptor e o povo, e por forma nenhuma os poetas se lem
brariam de procurar a sua inspiração nas tradições
nacionaes. Na primeira metade do seculo XVII é quando
os grandes genios da litteratura hespanhola se reve
lam , como Cervantes, Lope de Vega, Tirso de Molina,
Calderon, Gongora, Alarcon e outros tantos; as suas
obras tiveram muitas vezes primeiras edições em Por
tugal. Quem organisasse os annaes da imprensa em
Portugal n'este periodo, veria que tres quartas partes
das obras publicadas foram em castelhano. Os escri
ptores portuguezes viviam na intimidade d'esses gran
ESTADO DA LINGUA E DA LITTERATURA 343

des genios, dos quaes alguns visitaram tambem Por


tugal. Assim tudo concorria aa desnaturar a lingua e a
litteratura. Os proprios philologos, que, pela excessiva
educação grammatical dos Jesuitas, se occuparam
d'esta ordem de problemas, para comprehenderem a
lingua portugueza tinham sempre de comparal- a com
o castelhano. Assim , a philologia portugueza apresenta
n'esta época dois caracteres : aquelles que repetem to
dos os factos já observados por Fernão de Oliveira e
João de Barros sem avançarem uma idéa nova ou ra
soavel ; e os que fazem divagações rhetoricas sobre as
qualidades da lingua portugueza. Vejamos cada um
d'estes grupos separadamente. Em 1631, Alvaro Fer
reira de Vera publica uma Orthographia emodo para
escrever certo na lingua portugueza; confundia -se geral
mente com o acto material da transcripção da pala
vra, os factos organicos dos sons e das formas da lin
3

gua. N'este trabalho de Ferreira de Vera, apenas se


encontra um facto importante não pela sua solução
mas por ser necessario propôl-o : é a incerteza da fornia
ção do plural dos nomes acabados em ảo . Ainda hoje
os nossos grammaticos não deram uma regra racional
para esta formação, porque a não derivam da historia
da lingua. Alvaro Ferreira de Vera resolve o problema
submettendo a lingua portugueza á castelhana : «E
porque no formar dos pluraes dos nomes, cujos singu
lares são em ảo, se embaraçam muitos sem saberem se
hão de pronunciar e escrever cidadães, cidadões ou
cidadãos ; villães, villões ou villãos, cortezâes, corte
zões ou cortezãos, farei aqui regra geral pera esta pro
nunciação e escriptura : Todas as vezes que na lingua
portugueza acabar qualquer nome em ão, avendo du
vida na forma do plural reja -se como se termina na
lingua castelhand, porque se acaba em an , faz o plu
ral (acerca dos Castelhanos) em anes, como : capitan ,
capitanes, gavilan, garilanes, alleman, allemanes. E
344 CAPITULO XVI

assi forma sempre sem exeição alguma o Portuguez o


singular em do e o plural em đes, como de capitão,
capitães, gavião, gaviães, allemão, allemães. Mas se
acerca dos Castelhanos o singular, que os Portuguezes
acabam em ão, elles formam em ano, como villano,
ciudadano, aldeano, de que elles formam o seu plural
em anos, o nosso plural será em ãos; e assi como elles
dizem , villano, villanos, ciudadano, ciudadanos, al
deanos, diremos nós cidadãos, aldcãos, villäos. E se
o sigular acerca dos mesmos Castelhanos for em on ,
será o nosso plural em ões, como : sermon , opinion,
conicon, que dizem , sermones, opiniones, coraçones; di
remos nós, sermão, sermões, coração, corações, opinião,
opiniões. Porque n'isto e em outras cousas que por
brevidade deixo, tem respeito e correspondencia a lin
gua portugueza e castelhana. Porém, se os vocabulos
em ão são meros portuguezes ou communs a outras
linguas e os não ha em castelhano, sempre se acabará
a voz do plural em ões, como patacão, patacões, tece
lão, tecelões. Porque tem n'isto respeito ao antigo, que
as palavras que agora acabam emão acabavam todas
em on . E pelo costume, (que n'isto sempre hemos de
seguir ) ficaram fóra da dita regra tabeliães, escrivães,
que pela dita analogia houveram de fazer tabelliões,
escrivões; e tambem ficam fóra da dita regra indiffe
rentes, como cidadão, cidadões, villão, villões.» (1 )
A impossibilidade de se elevar ao criterio historico
da lingua portugueza é que fazia procurar estas expli
cações em uma lingua, que obedeceu tanto como a por
tugueza á degenaração phonetica latina; pela etymo
logia historica se vê que os suffixos latinos em anus
degeneram em ãos, ossuffixos em anes, dão åes, e os
suffixos em ones , dão oes, conservando-se porém a fór
ma hespanhola mais proxima do latim. A regra geral
( 1) Ob. cit. , A. 25 v.
ESTADO DA LINGUA E DA LITTERATURA 345

proposta por Ferreira de Vera só serve para nos des


cobrir a grande vulgarisação do castelhano em Portu
gal no seculo XVII. O Padre Bento Pereira, em 1655,
« renovando a memoria dos annos que professou letras
humanas) compoz um Florilegio dos modos de fallar
e Adagios da Lingua portugueza, no qual traz uma
Prosopopêa del Idiomaportuguez a su hermana la len
gua castellana, em que ridiculariza os philologos por
tuguezes que derivam a lingua patria das sessenta e
duas falladas na confusão da torre do Babel, e propõe
a derivação tanto do hespanhol como do portuguez do
latim . Depois de mostrar a communicação que tinha
mos com a litteratura hespanhola pelo theatro , pelas
coplas o villancicos, organisa um glossario das pala
vras identicas entre as duas linguas, mas sem um fim
scientifico, e quando muito com o caracter de guia de
conversação. João Franco Barreto escreve tambem em
1671 a sua Ortographia da Lingua portugueza, pobre
mente calcada sobre o opusculo de Vera, apenas com
mais dislates sobre a origem da linguagem , chegando
quasi a copial-o na regra da formação dos pluraes dos
nomes acabados em ão. (1 ) Sobre o uso dos accentos
e o perigo da amphibologia, levanta essa ridicula ques
tão dos litteratos do seculo xvir que se encarniçaram
para determinar a hora em que Camões suscitou o
sonho de Dom Manoel, nos Lusiadas. (2) Se estes phi
lólogos nåo foram além de Oliveira, nem de Barros, os
declamadores sobre a lingua portugueza repizaram as
phrases banaes de Pedro de Magalhães Gandavo, no
Dialogo em defensão da lingua portugueza, ou de Fer
não Alvares d'Oriente, na Lusitania transformada .
(liv. II, prosa 6.) Os philologos tornaram- se rhetoricos,
e contentaram -se com repetir louvores da lingua por
(1) Ob. cit. p . 192.
Ibid ., p. 207.
346 CAPITULO XVI

tugueza. Declama Francisco Rodrigues Lobo: « A lingua


portugueza assim na suavidade da pronunciação, como
na gravidade e composição das palavras é lingua ex
cellente... E' branda para deleitar, grave para enca
recer, efficaz para mover,, doce para pronunciar, breve
para resolver , e accommodada ás materias mais im
portantes da pratica e escriptura... Tem de todas as
linguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem
da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura
da franceza, a elegancia da italiana . etc. ( 1 ) De que
lingua se não poderá dizer isto mesmo, e com eguaes
fundamentos ? Transcrevemos estas phrases como typo
seguido por todos os outros philologos; assim Manoel
Severim de Faria, no Discurso das partes que hade
haver na linguagem para ser perfeita ; e como a Por.
tugueza as tem todas ee algumas com eminencia de ou
tras linguas, estabelece os seguintes topicos para ava
liar a perfeição de uma lingua: «ser copiosa de pala
vras, boa de pronunciar, breve no dizer, que escreva
o que falla, o que seja apta para os estylog.» E em
seguida exemplifica estas categorias com observações
tiradas da lingua portugueza, que nada tem de cara
cteristico e que todas as linguas fornecem . A fórma
desconnexa e casuistica da sua exposição é a prova da
decadencia dos estudos humanistas sob a direcção je.
suitica . Os Breves louvores da Lingua portugueza com
notaveis exemplos da muita semelhança que tem com a
Latina, por Alvaro Ferreira de Vera, são o documento
palpavel d'essa erudição abstracta e tradicional dos rhe
toricos ; como todos os outros philólogos, que seguem
este espirito declamador, contenta -se em reproduzir
essa habilidade escholastica dos versos que se podem
conjunctamente lêr em latim e portuguez, e que nada
provam : são os versos de um religioso a Santa Ursula ;
(1) Côrte na Aldéa, Dial. 1, p. 9.
ESTADO DA LINGUA E DA LITTERATURA 347

o Soneto de Joséph Barroso de Almeida em louvor da


Commentador portuguez das Georgicas de Virgilio ; os
versos de D. Miguel da Silva em louvor de Portugal;
o os versos de um curioso a Roma e Belem . Por fim ,
Ferreira de Vera conclue : « que não ha em Europa
lingua ( tomada nos termos em que hoje a vemos) mais..
digna de ser estimada para historia que a Portugueza :
pois ella entre as mais he a que em menos palavras.
descobre móres conceitos, e a que com menos rodeios
e mais graves termos dá no ponto da verdade .» E re
mata sobre o amor que os verdadeiros portuguezesde.
vem á sua lingua : « Porque por elles sós se pode dizer
que tem a melhor e mais ditosa lingua(excepta a latina)
de todo o universo : etc. ) Antonio de Sousa Macedo,
nas Flores de España, trata das excellencias da lin
gua portugueza, arrastando as formaes amplificações
de Severim de Faria. Que mais se podia vêr sob a fé
rula alváristica ? Não bastava a atrophia produzida.
pela Grammatica latina do Padre Manoel Alvares, se
não que á sombra d'ella dominavam no ensino os Car.
tapacios, os Chôrros e os Promptuarios absurdos, que
Verney stigmatisa : « Sei que em muitas partes onde se
explica a Grammatica de Manoel Alvares, tambem lhe
acrecentam algum livrinho ; mas tantos como em Por
tugal nunca vi. As declinações dos nomes e verbos,
estudam pela Grammatica latina ; a esta se segue um
Cartapacio portuguez de rudimentos ; depois outro para
generos e preteritos muito bem comprido; a este um
de synthaxe bem grande, (por José Soares; Lisboa,
1684, 4.°) depois um livro a que chamam Chôrro, e
outro a que chamam Promptuario, pelo qual se ap
prendem os scholios dos nomes e verbos ; e não sei que
mais livro ha. ) (1) O vicio capital do ensino do latim
é que influiu no modo de estudar a lingua portugueza.
(1) Verney , Verdadeiro Methodo de estudar, Carta 1.
348 CAPITULO XVI

empregado por Severim de Faria, Ferreira de Vera,


Lobo e Macedo . As doutrinas do Padre Alvares foram
submettidas por Sanchez na sua Minerva á subservien
cia rhetorica; todos os factos grammaticaes se expli
cavam pela figura ellipse, e portanto por uma ampli
ficação ; o emprego de determinados casos, as regras
da concordancia, e as de regencia tinham um certo nu
mero de ellipses que se preenchiam com dadas redun
dancias, que tornaram a syntaxe uma cousa mechanica
e sem progresso .
Tentativa de reforma dos Estudos
philologicos

Em quanto o methodo alvarístico, e a syntaxe rhe


torica de Sanchez dominavam absolutamente os estu
dos humanistas, já as ideias de Bacon sobre a Gram
matica geral se disseminavam pela Europa à espera
do dia em que a intelligencia readquirisse a direcção
dos seus processos racionaes. Bacon avança as seguin
tes phrases, que encerram uma das maiores descober
tas realisadas pelo nosso seculo : « Em verdade seria
obra preciosa aquella em que um homem que conhe
cesse perfeitamente o maior numero possivel de lin
guas scientificas e vulgares, tratasse das propriedades
do cada uma, mostrando os defeitos de cada qual....
Basta-me distinguir a Grammatica simples e elemen
tar da philosophica, e notar que esta, que ainda está
por nascer, he digna da nossa attenção. Em Portu
gal já em 1619 publicava Amaro de Roboredo o seu
Methodo grammatical para todas as linguas, cujas
doutrinas se derivam ou são um presentimento das
theorias de Bacon. Roboredo quer que seestude pri
meiro o portuguez para melhor ter a intelligencia da
lingua latina : « Pera o que fora de muita importancia
crear -se uma cadeira da lingua materna, ao menos nas
ESTADO DA LINGUA E DA LITTERATURA 349

côrtes e Universidades... Saberão os principiantes per


Arte em poucos annos e melhor a lingua materna, que
sem Arte mal sabem per muitos annos, com pouca
certeza, a poder de muito ouvir e repetir... e serão
mais certos e apontados no que fallam e escrevem ;
terão mais copiade palavras e usarão d'ellas com mais
propriedade. Porque, por falta de regras, ainda nas
Côrtes e Universidades se fallam e escrevem palavras
necessitadas de emenda. Saberão per regras de com
pôr e derivar, ampliar a lingua maternae ajuntar-lhe
palavras externas com soffrivel corrupção, e formar
outras de novo ; para que com menos rodeios se pos
sam explicar os conceitos e as sciencias, quando nas
maternas se queiram explicar. Porque a pobreza das
maternas na traducção do livros gregos e latinos e na
declaração do especulações philosophicas se manifesta.
Saberão fugir de palavras externas ainda não recebi
das, quando têm proprias, por não mostrarem que a
lingua é mais pobre...
« O principiante que passar por este Methodo para
as outras linguas, tem meio caminho andado ... Como
por exemplo: quem souber bem per Arte a Portugueza
ou Castelhana, descorrendo na Latina per semelhança,
irá descubrindo um concerto, propriedade e metaphora
racional, e ainda as irregularidades e particulares mo
dos de fallar, que o ignorante vulgo introduziu : os
quaes são certas quebras da arte, que sendo mui ar
reigadas devemos usar. A razão é, que os Latinos
eram homens com os quaes concordamos na raciona
lidade, que encaminha o entendimento e lingua a de
clarar o que sentimos : e ainda que as palavras sejam
diversas, assi cada uma per si,> como muitas juntas, na
razão da phrase, comtudo, a união racional d'ellas em
todos é a mesma.» Amaro do Roboredo era capaz de
realisar a nossa reforma da philologia, mas, segundo
-350 CAPITULO XVI

grammatico Moura as suas reflexões foram « tão at


stendidas como os vaticinios de Cassandra. » ( 1)
A traducção da Biblia pelo Padre João
Ferreira de Almeida

E' esta traducção o maior e mais importante do


cumento para se estudar o estado da lingua portu
gueza no seculo XVII; o Padre João Ferreira de Al
meida, ministro pregador do Evangelho em Batavia,
pela sua longa residencia no estrangeiro escapou in
colume à rhetorica dos seiscentistas ; a sua origem po
pular e a communicação com o povo levaram -no a em
pregar fórmas vulgares que nenhum escriptor cultista
do seu tempo ousaria escrever. Muitas vezes o esque
cimento das palavras usuaes portuguezas leva-oa recor
dar-se de termos equivalentes, e é esta uma das cau
sas da riqueza do seu vocabulario. Alem d'isso a tra
ducção completa da Biblia presta-se a um severo es
tudo comparativo com as traducções do seculo xiv , pu
blicadas por Frei Fortunato de S. Boaventura, e com
a traducção do Padre Antonio Pereira, do seculo XVIII.
E' um magnifico monumento litterario, o como tal
-transcrevemos o Apologo das arvores que quoriam um
rei :
« Foram uma vez as arvores a ungir rey sobre si :
e disseram á oliveira: Reyna tu sobre nós outros.
« Porem a oliveira lhes disse : Deixaria eu minha
gordura, que Deos e os homens em mi prezam ? e iria
a labutar sobre as arvores ?
« Então disseram as arvores á figueira : Vem tu, e
reyna sobre nós outros .
a Porem a figueira lhes disse : Deixaria eu minha
( 1) Monumentos da Lingua latina, p. 354.
ESTADO DA LINGUA E DA LITTERATURA 351

doçura e meu bom fruito ? e iria a labutar sobre as


arvores ?
« Então disseram , as arvores å videira : Vem tu, e
roina sobre nós outros .
Porem a videira lhes disse : Deixaria eu meu
mosto , que alegra a Deos e a os homens ? e iria labu
tar sobre as arvores ?
« Então todas as arvores disseram a o espinhal :
Vem tu, e reina sobre nós .
« E disse o espinhal a as arvores : Se em verdade
C

me ungís por rey sobre vós outros, vinde e confiae - vos


debaixo de minha sombra; mas senão, fogo saia do
ospinhal, que consumma os cedros do Libano .» ( 1)
»

Com a perda da nacionalidade portugueza as nos


sas colonias passaram tambem para o dominio extra
nho ; esta circumstancia actuou bastante para que a
lingua portugueza se desdobrasse no dialecto mer
cantil de Ceylão, mais conhecido pelo nome de Indo
portuguez.
« Sabe-se que os portuguezes foram os primeiros eu
ropeus que fundaram estabelecimentos na India. Esta
nação não se deu ao trabalho de apprender as suas
linguas, e por isso, até certo ponto forçou os natu
raes a apprenderem a sua. Os descendentes dos primei
ros Indios submettidos pelos portuguezes, Christãos ou
outros, sabem geralmente o portuguez. Elle espalhou -se
com os descobridores ao largo das duas costas ; e como
a maior parte dos creados dos Francezes, Inglezes,
Hollandezes, Dinamarquezes descendem d'esses pri
meiros indianos ou dos escravos abyssinios dos portu
guezes , os estrangeiros ao chegarem á India, acham -se
na necessidade de apprenderemo portuguez . Por con
sequencia os mercadores hindus, mouros, arabes, per
sas, parsis, judeus, armenios, que traficam nas feito
( 1) Juizes, cap. ix, 8-15.
352 CAPITULO XVI

rias europeas, bem como os negros que querem exer


cer o mister de interpretes, sãoobrigados a falar esta
lingua ; ella serve tambem de communicação entre as
nações europeas estabelecidas na India . Mas é preciso
que seja o portuguez puro, chamado na India 6 Por
tuguezreinol. O que costuma escrever -se aproxima-se
mais d'elle, sobretudo na Costa Malabar, aonde esta
nação teve numerosas feitorias. O portuguez fallado,
não é propriamente mais do que uma giria, consis
tindo em cento e cincoenta ou duzentas palavras, quasi
sem construcção.
« Nas nossas feitorias os negocios são geralmente
tratados com os naturaes e mesmo com as outras na
ções europeas por meio da giria portugueza, do que
acabo de fallar ;» etc. ( 1 )

(1) Anquetil Du Perron, Recherches historiques et geogra


phiques sur l'Inde, p. XII.
CAPITULO XVII

O culteranismo na Poesia portugueza

Superioridade do lyrismo de Francisco Rodrigues Lobo, devida


ao elemento tradicional das Serranilhas. -Dom Francisco
Manoel de Mello, nas Segundas trez Musas,។ estuda a antiga
poesia portugueza; como a tradição poetica o desvia do cul
teranismo. - Fundação da Academia dos Generosos : catalogo
dos socios. - Academia dos Singulares, e a decadencia da
poesia e do gosto litterario .-- Poesia mystico -amorosa : Frei
Antonio das Chagas, Soror Violante do Céo, Bernarda Fer
reira de Lacerda . Os Poetas da Phenix Renascida, e os ca
racteres do culteranismo.-- As Epopêas historicas : elemento
tradicional das epopêas do seculo xvii; elemento historico
das epopêas cultistas.- Falsa comprehensão da epopêa. Os
Tassistas. - Os Pateos das Comedias, e os Autos, as Tragi
comedias dos Jesuitas, os Autos hieraticos e as Comedias de
Capa e espada.

As lyricas de Francisco Rodrigues Lobo

A poesia do seculo XVII não se esqueceu repenti


namente da tradição ; nos versos de Francisco Rodri
gues Lobo, que se resentem já da exuberancia de
imagens e do abuso de epithetos, resultantes de uma
má comprehensão da poesia castelhana, ha ainda esse
espirito quinhentista, de quem estudou bastante Ca
mões, e ao mesmo tempo soube conhecer quanto ha de
bello na poesia popular. As relações do seu estylo com
o de Camões, levaram Faria e Sousa a suppôr que
este poeta roubara o manuscripto do Parnaso de Ca
mões, mas sem fundamento algum : «Al tiempo que
empecé a estudiar, que fué a los años de 1600, y los
onze de mi edad, me cogió este libro un mozo, que
luego se fué a estudiar en Coimbra, aonde entonces
florecia Francisco Rodrigues Lobo, que entonces pu
blicó un libro intitulado Primavera, que consta de pro
23
354 CAPITULO XVII

sas y versos, y siempre me pareció que en el avia al


gunas cosas de las que estavan en aquel libro. Mas
porque yo no vi este de Lobo, luego quando salió,
tiempo en que de esse otro teria algo en la memoria,
sino mucho despues, quando ya no la tenia d’el, no
pude assegurarme bien : pero imagino que unas Ota
vas que allitiene Lobo, luego al principio, a que llama
la historia de Sileno estaban en aquel libro; y tam
bien unas coplillas que estan antes d'ella; y tambien
una Cancion, que se vê a la entrada da Floresta
sexta.) A suspeita de Faria tem apenas uma verdade
que elle transtorna ; é que depois de Camões, e na
pleiada do seculo XVII, Rodrigues Lobo é o lyrico mais
completo e apaixonado . Tendo-se investigado constan
temente em 1616 por Diogo Fernandes, e depois por
Dom Antonio Alvares da Cunha e pelo proprio Faria
e Sousa, os ineditos de Camões, nunca appareceram
obras manuscriptas que já estivessem publicadas em
nome de Rodrigues Lobo. Um ou outro mote, se en
contra commum a Camões e a Lobo, como este: Sem
vós e com meu cuidado ; mas acha-sc glosado diversa
mente pelos dois. Rodrigues Lobo teve o extraordina
rio senso artistico de exprimir os seus sentimentos na
poesia das Serranilhas, que ainda se repetia tradicio
nalmente na provincia :

Levantaram logo
Aquelle outro canto
Que ao som do rabil
Cantam os serranos, etc. (1)

N'este genero é realmente inimitavel ; a tradição


communica-lhe o seu vigor, e o poeta eleva-se á ver
dade da arte como um espirito da pleiada de Bernar
( 1) Desenganado, p. 323,
F
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 355

dim Ribeiro, de Christovam Falcão ou Camões. Elle


chama-lho Endechas, segundo a designação antiga :

Quem poz seu cuidado


Em pastora loura,
Nãoveja a lavoura,
Nem sirva o arado .
Nem já mais se empregue
Em lavrar abrolhos ;
Semêe em seus olhos ,
E em seus olhos cegue .
Se em monte ou ribeira
Cria enxame bravo,
Dê- lhe doce favo
Da cresta primeira ,
Pardos rouxinoes,
Ledos passarinhos
Lhe traga em seus ninhos
Quando vem dosbois .
Em quanto a manada
Anda apascentando,
Lhe lavre cantando
A a ciprontada . etc. (1)

Nos cantos populares da Freira arrependida en-


contra- se a mesma forma estrophica usada n'este ge
nero de Serranilhas por Lobo :
Uma fermosa serrana
Que do cimo d'esta serra
Faz a todo o valle guerra
Com seus olhos ;

A quem serve de giolhos


Amor já como ven
Porquevá n'elles perdido
Seu poder,

(1) Primavera, p . 240.


356 CAPITULO XVII

Uma festa de prazer


Deceo ao nosso lugar,
Sicais para o cativar
De seus amores .

Juntaram -se os guardadores


Por vêr sua formosura ,
E alli me trouxe a ventura
Aquelle dia .
Chamava- se ella Luzia ... (1)

Tocámos a realidade que inspirava Francisco Ro


drigues Lobo : « quanto tinha cantado nas ribeiras de
Liz e Lena, nos loucos amores da aia ou dama do pa
lacio do Duque de Caminha, em Leiria ... ) ( 2) Nas
folhas volantes do seculo XVII é este o genero que pre
domina, como o que estava mais no gosto que era
alheio ou ignorava os absurdos das academias; as Can
tigas da Menina formosa foram bastantes vezes desen
volvidas em dialogo :
Menina fermosa
dizei de que vem
que sejaes irosa
a quem vos quer bem ?
Porque se concerta
rosto e condição,
pois daes galardam
a pena mais certa.

E' este mesmo lyrismo o que apparece na Cantiga


de Abela no Auto do Dia de Juizo , do principio do sé
culo XVII :
Doloroso gado
De tanto primôr,
Dôa - te o fado
Do triste pastor.

(1) Pastor peregrino, p. 140.


(2) Mem . do Bispo doGram Pará, p. 124.
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 357

Lembrae-vos cordeiros
De minha tristura ,
Ovelhas, carneiros
Que pastaes verdura...
Nos romances e cantigas com que se celebrou a
beatificação de S. Francisco Xavier , em 1620, acha-se
ainda esse estylo da endecha popular, que se perde na
litteratura portugueza e só torna a reapparecer naMo.
dinha do seculo XVIII introduzida por Antonio José,
que a trouxe do Brazil, aonde a Sarranilha se conser
vara tradicionalmente .
Com um raro tino poetico, Rodrigues Lobo imita
as formas da poetica italiana; a sua linguagem não
procura na imagem um meio de illudir a falta de
ideia, mas deslumbra-se com ella, e sacrifica -lhe a sua
naturalidade, porque não queria ficar inferior aos poe
tas castelhanos. As suas Eclogas, de 1605, passam por
ser a sua melhor obra ; mas é certo que nas redondi
lhas é que se descobre a verdadeira fonte tradicional
da sua inspiração. A posição de inferioridade em que
viveu em Leiria nos paços do Duque de Caminha não
deixa que os seus versos tenham essa nobre audacia
de Camões, quando galantêa com redondilhas as da
mas do paço. Rodrigues Lobo, o infeliz Lereno pasto
ral, recebeu a tradição poetica em Coimbra, aonde fre
quentara os estudos da Universidade, mas a vida de
provincia esterelisou-o. Por fim seguiu a influencia
hespanhola no romance allegorico -subjectivo, imitou o
gosto mourisco dos romances de Gongora, e cantou a
visita a Portugal de Philippe 111. Esta falta de indi
vidualidade e de consciencia de uma missão litteraria
explica-nos talvez o pouco que se sabe da sua vida,
que em relação ao seu talento deveria ter provocado
mais interesse. A sua morte é tambem obscura ; o pa
dre Manoel da Esperança, diz que morreu afogado no
Tejo; o mesmo repete ó Bispo de Grão Pará : «Mor
358 CAPITULO XVII

reu afogado no Tejo, e foi enterrado em Sam Fran


cisco da Cidade, na capella dos Queimados. » Na Phe
nix renascida vem um Soneto à sua morte por Dom
Thomaz de Noronha :

Desencache -se o céo de polo a polo,


A douda Venus morra, e seu cachôpo ;
Emfim pereça tudo quanto topo,
Que aa Lereno matou o villão Eolo. ( 1)
Como o seculo XVII foi de pedantismo erudito, os
versos de Rodrigues Lobo ficaram esquecidos diante
da alta importancia que se ligou aos dialogos rhetori
cos da sua Côrte na Aldea , que era tambem uma imi
tação de Balthazar Castiglione.
D. Francisco Manoel de Mello

De ordinario a grande individualidade que se af


firma inabalavel nos desastres da vida, apresenta nas
manifestações do sentimento um caracter de profundi
dade, que embora não seja a expressão do bello revela
uma parte d'essa superioridade complexa chamada ge
nio . D. Francisco Manoel de Mello foi de todos os es
criptores do seculo XVII aquelle que mais soffreu d'esse
« antigo abuso » de que falla Camões, a arbitrariedade
humana; as suas obras resentem -se das aberrações do
gosto da sua epoca, e sobretudo d'esse estado moral
do homem que vive longos annos solitario em um car
cere . Era preciso que tivesse uma organisação bem
constituida para não ter cabido na hallucinação, o
para ser, apezar de tudo, o melhor lyrico e o melhor
historiador do seculo XVII em Portugal. Estas duas
feições do escriptor tem uma rasão intima de sêr : como
lyrico, D. Francisco Manoel de Mello é dos poucos
(1) Ob . cit., t. v, p. 230 .
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 359

poetas que conheceram as tradições populares e na


cionaes ; como historiador, elle teve a grande eschola
da vida politica, das batalhas, das viagens, das re
voltas e dos cativeiros. No seu tempo imperava a rhe
torica dos canones abstractos, mas no meio dos des
varios das Tertulias ou Academias, a impressão da
realidade trouxe-o sempre para o senso commum. Ve
jamos o poeta.
Basta perpassar as Obras metricas de D. Fran
cisco Manoel de Mello para se conhecer que a superio
ridade da sua poesiaprovém de uma fonte desconhe
cida pelo seu tempo. No bello Auto do Fidalgo apren
diz, traz uma scena tão bella como a da Rubena de
Gil Vicente, na qual cita os principaes recursos da
tradição do seculo XVII :

Brites : Entoay por meu prazer


Qualquer cousa .
Gil : Sem guitarra ?
BELTRÃO : Eil- a! tomae.

( Dá -lhe uma viola ; tange como quem quer cantar .)


Gir : Pois que não posso al fazer ...
BRITES : Ay que canta e não escarra!
Gil : Ora eil-o, vae :
Passeava - se Silvana
Por um corredor um dia ...
BRITES: Ay, senhor, eu não queria
Senão letra castelhana.
Gil : Cantarei algaravia
Se mandais; pois que quereis?
Uma letra nova quero
BRITES : .
Gil (Canta ): A caçar va el caballero...
BRITES: Ay mae ! acinte o0 fazeis ?
Por isso eu me desespero .
Gir: Ora estae, que já entendo;
Quereis Romances trovados ;
Mis amorosos cuidados
Como se estaran durmendo .
360 CAPITULO XVII

BRITES : Isto foram meus peccados?


:

Vós, cuido, que estaes zombando;


Ora dizei.
GIL . Já me estanco :
Gavião, gavião branco,
Vae ferido, vae voando...
Brites : Hui! pelo passaro manco.
Sabeis algum ao divino?
Gil : Sei .
BRITES : Dizei .
GIL : Pois é famosa :
Andorinha gloriosa .
BRITES : Tendes cousas de menino
Gil : Sou todo amor, minha rosa. (1) .

Esta scena é inapreciavel para se conhecer qual


era essa parte de litteratura nacional que era desco
nhecida ou que repugnava ao gosto dos cultistas, e
da qual D. Francisco soube comprehender o espirito
quando tentou seguir uma nova róta na sua metrificá
ção. No romance xxii da Cythara de Erato, traz á
maneira aphoristica os versos dos romance mais cele
bre :
Perguntad allá en la corte
por la virtud , у os diran :
Si is a Francia el cavallero
por Gayferos perguntad ...
Nas suas Segundas tres Musas de Melodino, D.
Francisco Manoel de Mello nos explica como e porque
meios quiz emancipar-se da subserviencia do estylo
e lingua castelhana, e romper com os absurdos dos
seiscentistas :. «Uma só cousa vos lembro, que me de
veis um grande desejo de ressuscitar o grave estillo de
nossos passados. Não aquelle cuja aspereza já para
muitos foi desagradavel, como no antigo Mena condem
nou
o grande Sá; mas aquelle outro, d'onde, como
o diamante que reluz por entre os diamantes da luva,
(1) Segundas trez Musas, p. 148.
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 361

vai scintillando por entre as phrases naturaes engraça


das e facilissimas. Se minha tenção fôra allegar -vos
serviços, e ainda á patria, bem pudera dizer-vos que
de fim de vos renovar este interesse, da formosa imita
ção da antiguidade, passei mil descontos com meu na
tural, que o prendi e sopeêi, a trôco de seguir aquel
les nobres exemplos.» As consequencias d'este esforço
para inspirar -se da tradição nacional, são admiraveis,
o fazem de D. Francisco Manoel o maior lyrico do se
culo XVII. Os seus Sonetos pódem-se comparar em me
lancholia,verdade e delicadeza de expressão aos de Ca
mões ; as suas Eclogas e Cartas em redondilhas tem
essa graça ingenua de uma clara comprehensão de Sá
de Miranda ; o seu Auto do Fidalgo aprendiz, que pre
cedeu o Bourgeois gentilhomme de Molière, é omelhor
0

producto da eschola nacional fundada por Gil Vicente.


Entre os seus Mottes acha-se este, tambem glosado por
Camões :
Catarina bem prometie,
Aramá , como ella mente .

Aí mesmo se acha esta outra rubrica : « Mandou


quem podia, que se glossassé ao menino Jesu esta can
tiga vulgar, na festa do natal:
Os vossos olhos, menino
A vender andam na praça;
Não ha dinheiro que merque
Olhos de linda graça .

A phrase : Mandou quem podia , é uma allusão a


Dom João iv , porque Dom Francisco Manoel dirige
lhe umas trovas « pelo modo antigo: »
Rey mui alto e sublimado,
A quem Deos por seus poderes
Fez subir;
362 CAPITULO XVII

Lá d'esse throno empinado


Attentae quanto puderes
Por me ouvir .

Guardou- vos Deos tantos dias


Encuberto, e da maneira
Que ordenou ;
qual c'o Anjo a Tobias
Comvosco nossa cegueira
Alumiou . etc.

Dom Francisco Manoel de Mello allude aqui ds


Trovas de Bandarra, que recebiam novos commentarios
propheticos entre o povo; mas a forma estrophica é
verdadeiramente uma surpreza no seculo XVII ; só ap
parece pela primeira vez empregada por Gil Moniz no
Cancioneiro geral,derivada das Coplas de Jorge Manri
que, que segundo Herr Schak, é de origem arabe. E '
por tanto esta forma poetica inteiramente tradicional.
D. Francisco Manoel tornou a empregar este ensaio
de renovação nas Coplas antigas celebrando as intem
pestivas cans de uma dama :
Trovas que fez um poeta ,
Não por certo dos mais francos
Nos escritos,
A certa dama secreta
Por uns cabellinhos brancos
Furtuitos....

Uma das peças lyricas mais bellas é o Canto de


Babylonia, em que D. Francisco Manoel paraphra
sêa o mesmo psalmo sobre que Camões fez as Redon
dilhas depois do naufragio na foz do Mecon ; a com
prehensão do espirito tradicional leva- o a hombrear
com vantagem com Camões :

Sôbolas aguas correntes


De aquelles rios cantados,
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA
363
Que a Babylonia levados
Com lagrimas dos ausentes
Chegam ricos e cansados ;
Uma tarde me assentei
Cheio de dor e fadiga,
E hoje, do que lå passei
Me manda o tempo que diga
Quanto em lagrimas direi.

Espalhei meu triste canto


Pelas desertas areias ;
Os olhos foram as vêas,
A musica foi o pranto ,
O instrumento as cadeias, etc.

As poesias hespanholas de D. Francisco Manoel


revelam uma boa organisação poetica estragada pelo
desvario rhetorico dos cultistas hespanhoes ; elle pro
cura ensaiar todas as formas, como o romance mou
risco, as jacarillas ou xácaras póstas em moda pelo
seu amigo Quevedo de Villegas , os madrigaes italia
nos, as sylvas academicas, os tonos e villancicos para
os quaes os compositores da côrte de D. João IV es
creviam a musica, e finalmente os primeiros rudimen-
tos da Opera. A vida de D. Francisco Manoel é um
terrivel drama ; a grande amisade que lhe tinha Dom
João iv tornou-se em um odio profundo, conservando-o
prezo durante nove annos na "Torre do Castello, sem
nunca se ter sabido a causa de tamanho castigo. Nas
Memorias do Bispo do GrãoPará, explica -se que os
amores com a Condessa de Villa Nova e Figueiró fo.
ram a causa d'essa vingança, mas sem descer a mais.
particularidades, que só em alguns Nobiliarios manu
scriptos se acham largamente relatadas. Faz realmente
pena vêr este fecundo espirito dirigindo as sessões da
Academia dos Generosos, occupado a fazer obeliscos
litterarios e encomios banaes aos insulsos metrificado
res que se agrupavam em volta d'elle.
364 CAPITULO XVII

Academia dos Generosos

Dava - se na Italia o nome de Academia a uma


reunião de poetas e cantores; foi assim que começou
tambem em Portugal a Academia dos Generosos, por
ventura como effeito do grande desenvolvimento que
a musica teve na côrte de Dom João iv, que influiu
tambem na poesia pela letra dos Tonos, Motetes e Vil
lancicos. A Academia dos Generosos foi fundada por
D. Antonio Alvares da Cunha, trinchante -mor de
Dom João iv, Guarda -mór da Torre do Tombo e um
dos solicitos investigadores dos incditos de Camões.
Celebravam - se as Sessões dos Generosos em casa de
D. Francisco Manoel de Mello, e desde 1647 até 1668
em casa do proprio fundador, aos domingos. Nas obras
de D. Francisco Manoel vem algumas das theses que
se discutiam n'esse cenaculo rhetorico, e alguns dos
discursos que se recitavam . A esta Academia perten
ceram os mais notaveis espiritos do seculo XVII, mas
infelizmente esse meio esterelisou-os . Transcrevemos
aqui a lista dos seus socios, que pela primeira vez se
reune, e que representa o estado da Academia em
1661 :

D. Francisco Manoel de Mello João Rodrigues de Sousa


João Nunes da Cunha João de Saldanha
D. Francisco de Azevedo Simão Correia da Silva
D. Fradique da Camara D. Francisco de Mello
Conde da Torre Alexis Calloto Jantillet
Dr. Gaspar de Meri Pedro Garcia de Faria
Antonio de Mello e Castro Carlo Antonio Paggi
Antonio de Sousa Macedo Nuno da Cunha Athayde
Francisco Correia de Lacerda D. Antonio Alvares da Cunha
Conde do Sabugal Dr. João de Ilbuquerque
D. Francisco de Sousa Frei André de Christo
Manoel da Cunha Luiz Serrão Pimentel
Jeronymo Barreto Christovam Alão de Moraes
Pedro Severim O Marques de Fontes
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 365

Conde da Ericeira Henrique de Moura Manoel


Conde deTarouca,João Gomes Antonio JacquesBaharem
da Silva Heitor de Brito Pereira
Fernão Telles de Menezes (2.º André Rodrigues de Mattos
Marquez de Alegrete. ) Luiz do Couto Felix
Nuno da Silva Manoel Pimentel
Antonio Telles Francisco Mascarenhas Hen
Julio de Mello e Castro (Vis- rique
conde da Asseca) João Pereira da Silva ,

Tal é a lista mais completa dos Socios da Acade


mia dos Generosos, como se pode organisar pelos va
rios encomios das Orações panegyricas. Bastava serem
na maior parte aristocratas, para escreverem em hes
panhol . As theses discutidas fazem piedade; a lingua
gem dos seus discursos faz lembrar as decorações de
cartão mal collado . Em uma sessão academica D. Fran
cisco Manoel de Mello disserta sobre « el descontento de
algunos Autores quexosos de los princepes por falta de
premio. E tambem : Por assumto academico cuya lei
era mostrar em pocas estancias como la gloria de los
reales Alfonsos pide la pluma de mejores Tassos, para
lisongear o desvairado infante, que depois de rei foi
deposto pelo irmão. N'estas condições a poesia tornou
se um artificio insensato, como os annagrammas , os
acrosticos, os labyrinthos, os obeliscos e pyramides,
que tornaram a litteratura quasi inteiramente dispa
ratada. Por ultimo, para se fazer uma ideia da acti
vidade litteraria dos Generosos, basta transcrever as
primeiras linhas de um Discurso de D. Francisco Ma
noel de Mello, intitulado Triumpho academico : « Que
é isto ? Hoje é Domingo ? Hoje éo celebre dia do nosso
celebrado ajuntamento ? Hoje é o dia em que eu devo
ostentar alguma generosa Oração ao generoso audito
rio de nossos Generosos ? Sim. Hoje é este dia. Tal é
hoje minha obrigação, e maior minha divida ; etc. ) Por
esta linguagem se vê que as reuniões academicas não
podiam constar só de discursos, porque se morria ; era
366 CAPITULO XVII

preciso que a imitação de Italia fosse mais além, e fi


zessem d'estes certames um pretexto para encobrir
o sybaritismo. Depois da morte de Trinchante-mor, a
Academia dos Generosos foi renovada por seu filho
Dom Luiz da Cunha, tendo depois por secretario o
Conde de Villar Mayor.
Academia dos Singulares

D'esta tertulia litteraria escreve D. Francisco Ma


noel de Mello, na Visita das Fontes: « famosa Acade
mia de Lisboa, que se chamou dos Singulares por ser
a primeira que se celebrou n'esta cidade, á imitação
dos Illuminados, Insensatos, Lyricos da Italia, em Ur
bino, Padua, e Roma. » (1 ) Foi instituida a Academia
dos Singulares em Outubro de 1663 e celebrava - se em
casa de Pedro Duarte Ferrão, Inquiridor das causas
de sua Magestade. O producto das suas reuniões acha-se
hoje publicado em cinco volumes, dos quaes, qualquer
pagina basta para se formar ideia do miseravel estado
de perversão das ideias litterarias. Contentamo-nos com
transcrever aqui os nomes dos seus socios, porque al
guns d'elles publicaram obras separadas do corpo aca
deinico :

Antonio Marques Lesbio (Can- André Rodrigues de Mattos


tor da Capella real) João Pereira da Silva
Christovam de Mello e Silva Pedro Valejo
Pedro Duarte Ferrão Jeronymo de Faria
Luiz Bulhão Padre João Ayres de Moraes
Dr. Henrique do Quental Viei. Antonio Serrão de Castro
ra Bento Coelho
Antonio Lopes Cabral (Capel. Dr. Fernando Cabral
lào ee cantor da capellà real) João Rodrigues das Neves
e Paiva
Bartholomeu de Faria Sebastião da Fonseca
Dr. Simão Cardoso Pereira Manoel Carvalho

(1) Ob. cit., p. 203.


O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 367

Manoel Luiz da Silva Dr. Francisco Cabral de Al


Vicente d'Avellar mada.
Dr. André Nunes da Silva Manoel de Galhegos
José da Cunha João Duarte.
Padre André de Christo

D'entre estes poetas, distinguem- se André Rodri


gues de Mattos sua pela traducção da Jerusalem li
bertada ; o Dr. André Nunes da Silva pelo poema his
torico da Destruição de Hespanha ;Manoel deGalhegos,
pela Gigantomachia, e Templo da Memoria. Ordina
riamente as ephemerides do paço eram o unico ideal
cantado pelos academicos; alguns monarchas, como em
Hespanha, visitavam estas Academias, e era por isso
>

que se tornava uma grande gloria o pertencer ao nu


mero dos seus socios. Filippe iv visitava a celebre
Academia poetica de Sebastiano Francisco de Medrano,
á qual pertencia Manoel da Silveira, auctor do Maca
beo. Debalde procurou Manoel de Faria e Sousa en
trar como membro da Academiade Medrano, e foi por
isso que no seu despeito escreveu contra as Academias,
nas Noches clarus : « Cuantos poetas revientan por ver
divulgados sus nombres en letras de molde, ó por me
nos, tener entrada en las Academias, piensan algunos
que tienen mejor silla en el Parnaso ; como si acá por
fuera nos no diseran sus obras el lugar que les cabe. )
A indignação fez achar a Faria e Sousa aquellas ver
dades que o bom juizo não sabia formular . Esta abun
dancia de poesiasnão correspondia a nenhuma neces
sidade moral do tempo,, e é por isso que Faria ee Sousa
na Parte III da Fuente de Aganippe, descobre : «Ya se
tienen por escusados libros de rimas por ser tantas; por
malas si, que por muchas, a ser buenas, no pudiera
ser. » Por fim defende-se de ter escripto a maior parte
dos seus versos em castelhano : « algo se verá an por
tuguez de cada suerte de rima, por no negar a mi
lengua, tenienilo un justo sentimento de que no me vea
368 CAPITULO XVII

en nuestro reyno para no escrivir en otra : bien que


huyen d'ella muchos, que estando en el y escriviendo
en la castellana muestran claramente que no saben
ninguna. Duelome de que siendo tan parecidas estas
dos lenguas no se entienda la portugueza en Castilla. )
Os versos que compõem todas as partes da Fuente de
Aganippe, não se levantam acima de uma rasa medio
cridade, apezar de Faria e Sousa ser bastante consi
derado porLope de Vega. Esta prolixidade de que Fa
ria se defende era tambem um dos grandes vicios do
seculo , motivado pela material educação humanista
dos collegios dos Jesuitas.

Poesia mystico- amorosa

As festas religiosas das canonisações, dos oragos,


das eleições de geraes e abbadessados , eram o principal
objecto da poesia, composta em congressos academicos
chamados Certamens. O tio de D. João iv, D. Duarte,
marquez de Franchilla, e protector de Manoel da
Veiga, tambem foi juiz em um Certamen poetico por
occasião da canonisação da rainha Santa Isabel, tendo
por adjunto Lope de Vega. Quando se soube em Por
tugal da morte do Infante Dom Duarte, irmão do
Dom João iv, que tambem foi poeta o cujas poesias
andam em nome do seu secretario João Bautista de
Leon, a Universidade de Coimbra celebrou esse de
sastre por um grande Certame poetico. N'elle tomou
1
parte Braz Garcia de Mascarenhas, com um Laby
rinto, que mereceu o primeiro premio porque se lia
por todos os lados comdiversos sentidos . N'esta época
predominam os romances sacros ; em theologia reinava
à doutrina sensual do Quietismo, ee por ella recebeu a
poesia um caracter amoroso. A paixão de S. Thereza
de Jesus,> de Sam João da Cruz ou de Frei Luiz de
Leão, não podia inspirar os freiraticos, porque já não
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 369

tinham crença . Fallando do poeta mystico Frei Anto


nio das Chagas, diz o Bispo do Grão Pará : « Em Odi
vellas pregava elle em companhia de Frei Leandro, e
n'este mesmo tempo estavam o mestre Frei Ignaciode
Athayde e Frei Antonio de Tovar, depois pregador
geral. Eram moços, e muita a liberdade das grades
d'aquelle miseravel tempo. Emquanto durava a missão
não se fechavam palratorios, como hoje se usa. Por
ali pois se passava o tempo . » O mysticismo não podia
encontrar uma época mais adequada para as suas ele
vações e subtilezas como o seculo XVII ; os requintes
do amor divino eram o thema para as mais concei
tuosas imagens do gongorismo. O mais notavel de to
dos estes poetas é Frei Antonio das Chagas, já bem
conhecidoantes da sua conversão pelo nome de Anto
nio da Fonseca Soares, e como auctor dos mais desen
chabidos romances em assonancia, á moda hespanhola.
Esta primeira phase da sua actividade poetica passou -se
emquanto seguiu a vida das armas. Um crimede homi
cidio o obrigou a abandonar a patria e a fugir para a
(
Bahia. Diz o Bispo do Grão Pará : « Este veneravel
frade foi muito amigo dos benedictinos entre os quaes
esteve retirado, quando matou um homem , no Brazil,
sendo soldados Passados alguns annos voltou a Por
tugal, e escapando de um tiro que lhe dispararam em
Setubal, accolheu -se á ordem franciscana, aonde pro
fessou em 1663. Entre os poemas da sua vida desen
volta, conta-se a Filis e Demofonte, em doze cantos,
do qual diz Barbosa : «promettia o veneravel padre a
quem lh'as désse para as reduzir a cinzas, jejuar ou
disciplinar-se um anno por sua tenção . ) Com isto con
corda o dito do Bispo do Grão Pará : « Depois de re
ligioso, sabendo que no mosteiro de S. Bento da Saude
vivia o seu amigo Frei Jeronymo Vahia, e que havia
copia de versos seus entre aquelles cujos olhos se de
viam 24tam sómente occupar em versos de David no
370 CAPITULO XVII

Côro, quiz rasgal-os, por terem as taes coplas muitas


profanidades. Não obteve despacho; gracejaram com
elle e metteram -no a bulha. Apezar da sua peniten
cia, Frei Antonio das Chagas não deixou de metrifi
car, e na sua Vida, escripta pelo Padre Monoel Go
dinho, vem Elegias, verdadeiramente estimaveis ; aí
pinta o habito monastico como a mortalba, a cella
como a sepultura, e deprime-se a si proprio compa
rando-se ao guzano que se esconde no tumulo que vae
abrindo . Os des varios de uma mocidade turbulenta
passam -lhe pela imaginação como a nuvem que tolda
um céo sereno e aberto ; chora como penitente nas co
vas dos seus olhos, e vendo em tudo quanto é da vida
real uma tentação, representa o ribeiro que
գ desliza
entre flores como um aspidedeprata. Frei Antonio das
Chagas recusou a mitra de Lamego em 1679, a morreu
com cheiro de santidade em 20 de Outubro de 1682 .
Um caracteristico d'esta poesia do ascetismo é a. mistura
disparatada de elementos picarescos; é por isso que o
auctor da Fabula burlesca de Iphis e Anawarte acaba
tambem a sua vida no mysticismo: Dom Francisco de
Portugal, que sem se lembrar que era da Casa de Vi
mioso viveu na côrte de Filippo ili em Madrid, depois
de ter militado na Bahia em 1624, tomou o habito de ter
ceiro franciscano, compondo tambem os Divinos e hu
manos versos em castelhano, cansando mais uma vez
essas pobres fórmas do Soneto, Canção, Outava, Sex
tinas, Mottes e Romances, sem ideia. E quo se poderá
dizer d'essa conceituosa freira discreta Soror Violante
do Céo, nascida em 1601, e que morreu em 1693 com
sessenta e tres annos de clausura ! O seu ascetismo
1
poetico não passa de obra de relicario ; são numerosas
as suas composições na totalidade em hespanhol, escri
ptas para as festas do seu Convento de Nossa Se
nhora da Rosa. As Soledades do Bussaco , de D. Ber
nardo Ferreira de Lacerda, são tambem escriptas sob
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 371

esse somnambolismo moral de quem perdeu o senso


da realidade, e reune palavras mechanicamente não
para exprimir necessidades do sentimento mas para
fazer como os outros. As fórmas lyricas já não bas
tavam para exprimirem a devoção exterior d'estas
pobres almas ; pôz-se tambem em verso heroico a vida
a

dos Santos, como a Vida de S. João Evangelista por


Nuno Barreto Fuzeiro, do qual diz a censura que o
auctor se empenhara a mostrar « que em Poesia podia
haver formosura sem fabula, melodia sem Musas, ma
ravilha ou admiração sem ficções, sem Polifemos, sem
Circes, sem Medeas, sem Calipsos, sem redes de Vul
>

cano, sem furia de Orestes. E por fim julgam -no a


par de Camões, por que é : atão corrente a historia
como se fosse em solta prosa , qualidade sempre dese
jada na poesia, conseguida do grande Camõesno nosso
idioma, o segunda vez do Auctor.» Quando o senso
critico chega a esta depravação, não admira que as
obras litterarias desçam até ao absurdo.
O poema sobre Sam Thomaz, por Manoel Thomaz,
sobre Sam Thomé, por Bernardo Rodrigues o Mocho, a
vida de Santo Antonio e dos Martyres de Marrocos,
por Francisco Lopes, fixam -nos qual a direcção des
vairada do ideal artistico, que nem mesmo os grandes
assumptos poderam levantar, como se vê n'esse insulso
poema dos Novissimos do Homem, de D. Francisco
Child Rolim de Moura, do qual o bom Costa e Silva,
diz : « o theologo suffoca o poeta, e a devoção apaga
a invenção, e que nem o estylo, nem a versificação
corresponde á grandeza do assumpto . Quando uma
época desce a esta atonia intellectual, é porque o or
ganismo social soffro profundas perturbações no equi
librio das forças dynamicas, sacrificadas aquillo que,
por isso que é de sua natureza statico, não precisa do
conservação artificial dada pela auctoridade politica .
372 CAPITULO XVII

Os poetas da Phenix Renascida

Sob o nome de Phenix Renascida, o livreiro Ma


thias Pereira da Sylva recolheu, no principio do se
culo XVII, uma collecção de poesias Seiscentistas de
diversos manuscriptos que corriam por mãos de curio
sos : «(« Não pouco trabalho me custou a pôl-as em limpo,
para o que me foi necessario vêr e conferir muitos
traslados, porque a grande variedade que d'elles se
tem feito foi a causa de não andarem todos do mesmo
modo, padecendo alguns diminuição, outros misturando
intoleraveis alterações . Por esta declaração se co
nhece que as poesias dos cinco volumes da Phenix
eram as mais apreciadas no seculo XVII. N'esta mesma
collecção se encontra a Satyra do culteranismo : .

Do quarto globo a gema nunca avara ,


Quetempor cascao céo, nuvens por clara,
Nunca ninguem tal disse,
Não vi mais descançada parvoice !
Grande cousa é ser Culto,
Fingir chimeras e fallar a vulto.
Mas sempre ouvi dizer d'esta poesia,
Que vestido de imagem parecia,
Pois quando vemos o que dentro encobre,
Quatro páos carunchosos nos descobre.
Faça-lhe a culturana
Muy bom proveito áá lingua castelhana.
Que a phrase portugueza por sezuda,
Por prezada e por grave nãose muda.
Não se occulta entre cultas ignorancias,
Pois toda é cultivada de elegancias.
Mas porque me não digas, culto amigo,
Que do ovo a metaphora não sigo... etc. (1)
Notaveis traços investiga um Culto
Para poder fazer versos de vulto.

(1) Phenix, t. V, p. 53.


O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 373

Triste culturania !
Não he melhor dizer que o sol nascia ? (1)

Um poeta dos que melhor caracterisa a Phenix ,


é o amigo de Freiº Antonio das Chagas, o estólido
Frei Jeronimo Vahia, que compoz o celebre Soneto ao
Girasol, quo começa :
Amante girasol, aguia das flores,
Que com vista de bronze em olhos de ouro ,
Contas no louro Deos o Deos do louro,
Eguaes a suas luzes, seus ardores, etc.
Não bastava accumular metaphoras sobre meta
phoras, senão que o sentimento da poesia do povo es
tava ignorado, o a linguagem nacional só era conside
rada como giria burlesca. Vahia glosa uma cantiga,
tambem glosada por Camões, e que começa : Esconju
ro-te Domingas, da seguinte fórma, parodiando a lin
guagem usual :

Magina o meu coraçom ,


Vendo -te tão bella e dura,
Que és anja na fermosura,
Diabro na condiçom :
Cresce em mim tua affeiçam ,
Mas tu no meu amor mingas,
Quero-te bem, tu respingas ;
Fallo, num respondes nada,
Pois se estás endiabrada
Esconjure-te, Domingas, etc.

Era assim que se comprehendia o estylo e lingua


gem popular; não admira que a poesia lyrica descesse
tão baixo. De que servia glosar a cada passo os ver
sos de Camões , se faltava o conhecimento das fontes
poeticas de que se inspirou o grande lyrico ? No se
(1) Ib., p. 40.
374 CAPITULO XVII

culo xvii deu -se o grande facto da restauração da na


cionalidade portugueza, e a lucta da fronteira contra a
tentativa da reconquista hespanhola ; se houvesse es
pirito nacional, isto bastava para levantar o ideal e
produzir obras primas . Nos versos da Phenix acham -se
algumas Sylvas a varias victorias campaes, mas essas
batalhas eram patrocinadas pelos santos,e o espirito
patriotico revelava -se cantando Dom Affonso vi por
ter mandado alistar Santo Antonio por soldado:
Pois que ? com tal valentia
Não vencerá Portugal,
Quando tem soldado tal,
E mais em tal companhia ?
Castella, de medo fria,
Tema tão grande invasão,
Que não pode escapar, não,
Empenhando Antonio o braço,
Nem soldado do seu laço,
Nem praça do seu cordão. etc. (1)
A falta de ideal levava fatalmente os poetas para
o estylo picaresco, que não respeita nem os Cantos de
devoção, nem as Sylvas ás victorias portuguezas. A'
imitação de Gongora, tambem o soprado rhetorico Ja
cintho Freire de Andrade escreveu uma Fabula de
Narciso, ( 2) que explica pelo gosto do poeta o cara
cter do historiador. O poeta picaresco Diogo de Sousa,
ou Camacho, na sua Jornada ás Côrtes do Parnaso,
chega até á obscenidade. Para elle a tradição littera
ria quinhentista que ainda animou Rodrigues Lobo e
D. Francisco Manoe um
l, é escarn
pretexto de eo :
Um Luiz de Camões, poeta torto.
Que era em cousas de mar este mui visto,
E já comera muita marmelada
Desde o polo de antarctico aa Calisto ...
( 1) Phenix, t. I, p. 369.
Ibid ., t. nii, p. 274.
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 375

No fim da companhia tão lustrosa


Um Francisco deSá, apparecia
Poeta até o embiyo, os baixos prosa .
No Hospital das Letras, D. Francisco Manoel, ao
fallar de Sá de Miranda, protesta : « E ' este por quem
disse Diogo de Souza, no seu Parnaso : Poeta até o
embigo, os baixos prosa. - Essa foi uma travessura
de um bargante, que não embargante, maldito o mal que
lhe tem feito .» ( 1) Tal era o estado em que se achava
a tradição nacional e litteraria . Na Jornada ás Côrtes
do Parnaso, Camacho escreve pela primeira vez no
estylo macarronico, que o seculo xviii desenvolveu
até ao fastio; transcrevemol -o para que se veja como
da aberração seiscentista até ás Arcadias, não houve
solução de continuidade :

Siquidem es tam sapiens et tam sengus


Et est tuus versus bene numeratus,
Esto solus poeta burdalengus.
Et ut sis semper mihi, et Musis gratus,
Mendicabis, ut picarus, vel quasi,
Et sic esto Poeta laureatus.
Vade in pace, mangás : datum Parnasi. (2)

Mesmo n'esta decadencia do gosto e na predilec


ção do estylo picaresco, a Hespanha teve grandeza ;
Quevedo de Villegas por si bastava para accentuar
uma época litteraria.

As Epopêas historicas.-- Os Tassistas.


.

a) Elemento tradicional das Epopêas do seculo XVII .


-As nações que têm menos origens tradicionaes, são >

as que apresentam mais epopêas litterarias e indivi

(1) Apologos dialogaes, p. 313.


( 2) Phenix, t. v, p. 37.
276 CAPITULO XVII

duaes. Dá-se isto com Roma, e principalmente com


Portugal; são duas nações historicas, em que a rhe
torica suppria a falta do facto da elaboração nacio
nal . Virgilio e Camões distinguem-se entre todos os
épicos dos processos aristotelicos, por terem tido o
raro senso artistico de agruparem em volta de um
successo historico todos os elementos lendarios que po
deram recolher; e assim como apoz Virgilio vem essa
phalange dos poetas-chronistas, em volta de Camões
desenvolve -se uma actividade mechanica em que para
se ser poeta épico bastava pôr a historia em verso.
No seculo XVII nem já o romance de redondilhas can
tado pelo povo era conhecido. A monomania dos Va
lentones, que distinguira a fidalguia, passára tambem
para as classés infimas; e no seculo XVII os mulatos
de D. Affonso VI espancavam e assassinavam de noite
com a maxima soltura . N'estas condições os Roman
ces de Guapos, compostos nos reinados deprimentes
de Carlos II e de Filippe v, compostos em Sevilha,
eram o que mais se lia em Portugal; ainda hoje abun
dam nas nossas Bibliothecas essas folhas volantes. O
cyclo dos Romances de Guapos em Hespanha era uma
especie de faulse geste, como vemos na epopêa fran
ceza, que celebrava os traidores e a rebeldia pelo seu
lado poetico. Nas façanhas dos Guapos ha o mesmo
instincto, mas a resistencia dá -se contra os fiscaes das
barreiras, contra a arbitrariedade da administração
dos Alcaldes e Corregedores; como os Hardré, Fro
mond, Aloris, ou Lanson, da faulse geste , esses ty.
pos épicos acham - se moldados em uma sociedade sob
o despotismo monarchico nas accentuadas figuras do
Francisco Esteban, D. Salvador Bastante, Agustin Flo
rencio, e tantos outros, que deram motivo a series de
romances novos. Tal era o estado do antigo Romance
tradicional da Peninsula . Como é que os cultistas que
desprezavam o povo , saberiam inspirar-se das suas
OCULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 377

tradições , quando, se tivessem conhecimento d'ellas,


era só pela forma degenerada dos Romances de Gua
pos ? Era-lhes por isso mais facil procurar elementos
historicos paraas suas epopêas, e pôr em pratica com
toda a severidade as regras de Aristoteles, para jul
garem ter creado uma obra eterna.
b ) O elemento historico das Epopêas cultistas,
A. fonte historica que os épicos do seculo XVII mais
consultaram foi Frei Bernardo de Brito ,na Monarchia
lusitana ; ali achavam as fabulas de Ulysses ligadas
ás origens ethnologicas da nossa nacionalidade, ali as
aventuras de Viriato, e os costumes imaginarios dos
tempos de Noé e de Hercules. Bastava só pôr em verso,
tendo em vista as regras aristotelicas da bracologia e
da ecthania , para alargar ou encurtar a fabula . Per
dido tambem o criterio historico pela rhetorica, o li
vro do credulo Brito era um manancial inexgotavel;
é por isso que, perdida na primeira metade do seculo
XVII a ideia e o sentimento da nacionalidade, é quando
se escrevem mais poemas sobre as origens da nacio
nalidade portugueza , diffusissimas outavas sem um
unico protesto de independencia . A Ulyssea , de Ga
briel Pereira de Castro, o Ulyssipo, de Antonio de
Sousa Macedo, o Alfonso, de Francisco Botelho de
Moraes e Vasconcellos, a Hespanha destruida , de An
>

dré Nunes da Silva, e a Hespanha libertada, de Ber


narda Ferreira de Lacerda, mesmo a Henriqueida, do
Conde da Ericeira, são longos poemas épicos em ou
tava rima, baseados sobre a formação da nacionalidade
portugueza. Se tivessemos tradições que nos commu
nicassem esse facto, e se os poetas as elaborassem ,
pode-se affirmar que nenhuma litteratura das mais ori
ginaes appresentaria uma tão extraordinaria riqueza ;
mas partindo do syncretismo historico de Frei Ber
nardo de Brito, que enramalhetava as falsificações de
Annio de Viterbo e de Martin Polonus, e acabando de
378 CAPITULO XVII

deturpar estes elementos falsos com as receitas absur


das de Quintiliano, ois aí está o que fizeram os nos
sos épicos do seculo XVII, e aí está o valor da sua
obra .
O primeiro poema épico d'esta época culterana, pela
ordem chronologica, é o Condestabre, de Francisco Ro
drigues Lobo, escripto invita Minerva. O typo épico
do Condestavel estava destinado para ser um Cid da
tradição portugueza, e o povo chegou a cantar varios
cantos acerca da sua alta personalidade, como já vi
mos . Mas se esses Cantos tivessem de constituir uma
acção épica, essa vitalidade tradicional era prova de
uma maior energia na ordem politica, que não tivemos .
O typo do Condestavel decaiu como heroe poetico, e
pela tendencia do nosso espirito ficou um personagem
historico, com a sua Chronica em prosa. Foi a esta
fonte que Francisco Rodrigues Lobo foi buscar inspi
rações, ee pensando que, accumulando Outavas e divi
dindo-as em Cantos, fazia uma epopêa, deixou apenas
uma relação historica em verso .
Gabriel Pereira de Castro, é o grande épico que
o seculo xvii ainda hoje nos impõe á admiração com
a Ulyssea ; muitos litteratos seus contemporaneos qui
zeram -no collocar acima de Camões, assombrados pelo
regular alinhamento da fabula metrificada por esse
erudito Doutor, Corregedor do Crime da Côrte, e, no
meado pelo invasor castelhano, Chanceler-mór de Por
tugal. Todas estas categorias nos mostram o seu es
tado moral, e a direcção das suas ideias para a conce
pção de uma epopea. Pode -se asseverar, que todas as
vezes que em Portugal se enfraqueceu o sentimento
3 da nacionalidade, a comprehensão da epopêa de Ca
mões enfraqueceu tambem . Sob a monarchia usurpa
dora de Hespanha, admirar simultaneamente os Lu
siadas, que são um protesto da nossa nacionalidade,
era uma contradição. Tratou -se de deprimir Camões,
O CULTERANISMO NA POESÍA PORTUGUEZA 379

com esses logares communs da falta de unidade de


acção, mistura de mythologia com o christianismo,
collectividade de heroes, Outavas menos perfeitamente
construidas, e faltas de accentos que tornavam o pen
samento obscuro. Não faltaram um Manoel Pires de
Almeida, um João Soares de Brito, um D. Francisco
Child Rolim de Moura, para atacar o grande épico.
De facto, os Lusiadas satisfaziam a necessidade de
uma epopêa nacional, como vemos pelo allivio que . ti
rava da sua leitura o velho Bispo de Targa, e pelo fa
cto de terem sido commentados por João Pinto Ribei
ro, o revolucionario de 1640. Para oppôr a Camões
um outro poeta, lembraram-se do Tasso, por causa do
seu assumpto religioso; levantou -se o grupo dos Tas
sistas, e a Jerusalem Libertada foi traduzida. O appa
recimento da Ulyssea veiu serenar esta divergencia,
e foi o tertius gaudet. Manoel de Galhegos foi man .
dado fazer o elogio do poema, publicado em 1636, de
pois da morte do auctor. Galhegos, como um sincero
mediocre, condemna Camões dando a primazia a Ga
briel Pereira de Castro : « Em nenhuma cousa mostrou
mais o nosso poeta seu talento, que no exordio da nar
ração, pois começa do principio da fabula, que é o
ponto d'onde deve começar o poema heroico, e não no
meio, como fez Camões, vendo que Virgilio dá princi
pio ao seu poema com Eneas á vista de Carthago ...»
È logo adiante : «Valerio Flaco, no seu poema dos Ar
gonautas (que he quasi a mesma acção, que a de Luiz
de Camões...)» especie de insinuação perfida de falta
de originalidade : E não se entenda que o meu animo
é reprovar a Luiz de Camões ; que isto em que elle se
não ajustou com a arte, he cousa em que muitos se
enganaram , e não lhe tira a authoridade; etc. » Não
é outra a linguagem da mediocridadeinsolente e do
pedantismo na sua expressão erudita . Por fim , as re
gras da arte, que Galhegos applica á Ulyssea para a
380 CAPITULO XVII

considerar como a melhor epopêa moderna, são a morte


de toda a concepção poetica ; mostra que é admiravel
emquanto á Peripesia , ou imprevisto das situações ;
magnifico na Magthainia, ou o emprego das machinas
secundarias do maravilhoso, taes como os sonhos, os
vaticinios, as feiticerias; na Periferia , ou área per
corrida pelos heroes; compassado na Bracologia, e
Ecthania, ou os cordeis rhetoricos para alargar ou en
curtar a fabula ; que Gabriel Pereira de Castro res
peitou a figura Dianomi, repartindo symetricamente
as partes do poema ; e bem assim , a Parasceve, a Ana
logia e a Teliotis, na preparação, proporção e perfei
ção, não se esquecendo da Gorgotis ou o laconismo do
conceito, com a competente Enargia ou claridade no
dizer, etc. E infelizmente tudo isto é verdade, com a
differença que os melhores versos da Ulyssea são re
miniscencias dos Lusiadas. Com a falsa tradição rece
bida em Frei Bernardo de Brito, com a educação hu.
manista dos Jesuitas, parodiando Homero como auctor
e como personalidade litteraria, seguindoas regras de
duzidas de observações de Aristoteles, demais, baju
lando o usurpador da sua patria, como é que Gabriel
Pereira de Castro podia elevar-se ás grandes conce
pções épicas, elle que era juiz do crime, costumado a
achar só moveis indignos nas acções ? Decididamente a
Ulyssea é o reflexo de todas estas qualidades. Foi este
épico o que deu a sentença injustacontra o infeliz Si
mão Pires Solis, e foi a preoccupação d'este facto o
que lhe causou a morte. ( 1 )
Manoel Thomaz, natural de Guimarães, que viveu
na Ilha da Madeira aonde morreu assassinado em 1665,
com outenta annos de edade, é auctor de um poema
épico sobre a descoberta da Ilha da Madeira, publicado
(1) Dr. Ribeiro Guimarães, Summario de Var. Hist., 1, 76
e 199.
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 381

em 1635. Chama-se Insulana ; o poeta em vez de ir


directamente á bella tradição dos Amores de Machim
e de Anna d'Arfet, diz : .« Na verdade historica segui
o mais apurado e verdadeiro Manuscripto, cujo prin
cipio abreviou na Primeira Decada da sua Asia... )
E assim encaminhado agarra -se á mythologia grega,
e aos prosaicos vaticinios, e ás amplificações rhetori
cas. O seu poema, Phenix da Lusitania, em dez Can
tos á acclamação de D. João iv, é a bajulação enco
miastica, tão necessaria no seculo XVII para a rheto
rica dar largas aos seus vôos. Manoel de Galhegos,
esse amigo intimo de Lope de Vega,quequando o en
contravalhe citava sempre o verso da Ulyssea, sobre
o apparecimento da aurora :

Que quando ri nos céos, nos campos chora ...


(1, 44.)

Galhegos tambem bajulou o Duque de Bragança


com o epithalamio no seu desposorio, intitulado o Tem
plo da Memoria. A Lusifineida, poema em dez Cantos
sobre a decadencia e exaltação de Portugal, desde
D. Sebastião até Dom João iv, por Frei Manoel de
Santa Thereza e Sousa, pertenceria tambem a este
cyclo da bajulação encomiastica. O poema do Acade
mico dos Generosos, João Nunes da Cunha, em doze
Cantos sobre Lisboa conquistada, era tambem á exal
tação do Duque. Temos no seculo XVII mais um des
embargador poeta épico ; é André da Sylva Masca
renhas, auctor do poema em Outava rima, em nove
Cantos, sobre a Destruição de Hespanha e restauração
summaria da mesma . Segue passo a passo a historia
de el-rei Rodrigo com a intervenção de Venus, Plutão
e Jupiter, e com « o favor de Deos esperava compôr
mais outro poema sobre os milagres de Nossa Senhora
feitos em uma lapa .» Por fim desculpa-se com Camões,
382 CAPITULO XVII

por ter usado versos agudos, o que nos denota a al


tura da critica camoniana no seculo XVII : « E rara é
a folha em todos os Lusiadas, aonde não ajam versos
agudos de dez syllabas . » « E postoque alguns poetas
modernos, (aliás mui doctos) contente mais a opinião
contraria ...) N'este estado de critica o que poderia fa
zer esta gente ? metrificava. No principio doseculo xvii
escreviaMiguel Leitão de Andrada, da España li
bertada de Bernarda Ferreira de Lacerda : « obra por
certo excellente, e tal que se não sabe outra de mu
lher que possa ser sua comparação .» (1 ) Tal foi o mo
tivo do pasmo em um seculo em que se considerava a
mulher como em honesto idiotismo. Bernarda Ferreira
de Lacerda escreveu os argumentos em Outava rima
á epopêa de Francisco de Sá de Menezes, a Malaca
conquistada . Este poeta, filho de João Rodrigues de Sá
e de Dona Antonia de Andrade, obedeceu å monoma
nia aristocratica, trocando o seu nome heraldico pelo
de Frei Francisco de Jesus em 1642, em Bemfica,
aonde morreu em 1644. A Malaca conquistada não
appresenta mais qualidades poeticas do que as outras
Chronicas rimadas, de Francisco de Andrade ou de
Rodrigues Lobo. Aquelle que nos apresenta uma per.
sonalidade verdadeiramente accentuada, cuja vida de
aventuras lhe revelaria o que a realidadetem de poe
sia, é Braz Garcia de Mascarenhas, nascido em 1596.
Foi preso, ainda em criança, em Coimbra, por causa
de uma intriga de amores, e da cadêa da portagem
conseguiu evadir-se, passando-se a Madrid ; quando
passados annos se dirigiu a Portugal foi aprisionado
pelos corsarios que o deixaram em um porto de Ita
lia. Depois de ter corrido a França foi para o Brazil,
aonde batalhou contra os Hollandezes, o regressando
á patria luctou tambem a favor da restauração de
(1) Miscellanea, p . 617.
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 383

D. João iv. Os invejosos da sua bravura fizeram com


que fosse destituido das suas honras militares e preso
aia Torre do Sabugal. Ali, por meio de umas letras re
cortadas de um Flos Sanctorum e colladas, conseguiu
provar a D. João IV a sua innocencia, morrendo re
pousado em 1656. A escolha do assumpto do Viriato
tragico tem uma certa analogia com o seu caracter in
dividual, mas as machinas obrigatorias da epopea e a
submissão á rhetorica annullava os melhores talentos.
Quando nos apparecem tantas epopêas em um periodo
tão pequeno, e todas ellas sem condições de vitalidade,
é porque uma falsa comprehensão da arte perturbava
e desvairava essas intelligencias.
Theatro : Autos e Comedias de capa e espada

a) Os Pateos das Comedias. -Já no prologo do


Auto de El- rei Seleuco, achamos uma allusão aos côr
ros, ou theatros publicos, e no prologo das Tragedias
latinas do Padre Frei Luiz da Cruz ,se falla da vinda
de companhias dramaticas italianas, depois de 1578.
O jesuita Ignacio de Azevedo, agrupava as crianças
que ia esperar á saída das escholas, e invadia os thea
tros, aonde se representava de tarde, e de cima do
palco reprchendia -os da sua immoralidade ee terminava
com um longo sermão. Como um orgão de opinião pu
blica, o theatro era combatido em uma nação que não
tinha direito de pensar, porque perdera a sua autono
mia. Para poder ser admittido o theatro, foi preciso
tornal-o uma instituição pia. Por um Alvará de Fi
lippe 11, de 20 de Agosto de 1588, concedeu -se ao Pro
vedor e mais officiaes do Hospital de todos os Santos
o privilegio de não deixarem representar comedias sem
sua licença, com direito a parte dos proventos dos espe
ctaculos. Renova-se este privilegio no Alvará de 7
de Outubro de 1595. Por Alvará de 9 de Abril de
384 CAPITULO XVII

1603, Filippe III concede ao Hospital a mercê de se


representarem comedias logo depois da quaresma, fi
cando a censura delegada aos desembargadores do
paço. Estes privilegios eram sempre por dois annos;
mas por Alvará de 1612 , passado a 10 de Novembro,
0. Hospital de todos os Santos ficou com esse direito
indefinidamente. Da mesma forma que em Hespanha,
chamava -se Pateo ao theatro ; o mais antigo é o que
se conhece pelo nome de Pateo das Fangas da Fari
nha , citado desde 1588, e que se suppõe ter existido
até 1633 ; de 9 de Maio de 1591 , apparece a escri
ptura para a construcção do Pateo da Bitesga, e
acha-se já funccionando desde 11 de Julho de 1594,
sob a exploração de um Manoel Rodrigues. O Pateo
mais celebre é o das Arcas, tambem conhecido pelo
nome de Pateo da praça da Palha, ao qual o padre
Ignacio dava os maiores assaltos ; suppõe-se ser este
Pateo construido por La Torre, por obrigação contra
hida simultaneamente com o da Bitesga. Póde dizer-se,
que a vida da arte dramatica se concentrou no Pateo
das Arcas, até ao seu incendio em 1698. Para este
theatro se projectou contractar a companhia hespa
nhola do celebre Escamilha, achando-se tambem em
1668 escripturada uma outra companhia hespanhola
que viera àa Lisboa. As representações eram dadas por
companhias ambulantes vindas de Hespanha , e o gosto
publico só admittia comedias escriptas em castelhano.
Na verdade, o seculo xvII distingue -se pela assom
brosa fecundidade do genio dramatico em Hespanha ;
as creações de um Lope de Vega , de Cervantes, Tirso
de Molina, de Luiz de Belmonte, Guevara , e Alarcon
coincidem com a época em que o espirito hespanhol es
tava mais abafado pela prepotencia do cesarismo e pelo
obscurantismo religioso . Esta apparente antinomia tem
o seu porque organico, que é a synthese philosophica
do theatro hespanhol: Pelo facto material da fecundi.
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 385

dade, sômos levados a notar o immenso interesse que


o publico sentia pelas representações scenicas, e d'aqui
a reconhecer, que, quando a censura religiosa e civil
com os seus carceres e fogueiras abafavam toda a ma
nifestação da liberdade individual e da critica, o thea
tro hespanhol se tornou insensivelmente o unico orgào
da opinião publica. Tal é a condição fundamental para
que prosperem as creações dramaticas. O theatro hes
panhol dominou -nos; os proprios escriptores dramati
cos, ao procurarem variadissimos assumptos para as
suas comedias famosas, trataram com frequencia algu
mas tradições da historia portugueza. No Florilegio,
do Padre Bento Pereira, escripto em 1655 , se lê so
bre o gosto das comedias hespanholas em Portugal:
« Todos los dias resuenan en los teatros de Lisboa la
discrecion de sus Comedias ; en todas las fiestas que en
las Iglesias d'este Reyno se celebran, con sus Coplas,
Villancicos y Motetes se alientan las armonias. ) (1)
Francisco Rodrigues Lobo attribue tambem ao costume
hespanhol o dividirem -se as comedias em Jornadas; em
Miguel Leitão achamos citadas as Comedias de Lope
de Vega representadas na provincia, tal como La Oca
sion perdida. Era quasi impossivel, que o theatro por
tuguez pudesse ter originalidade no seculo XVII.
b ) As Tragi- comedias dos Jesuitas.- No regula
mento escholar dos Jesuitas, ou Ratio Studeorum , es
tabelecem-se exercicios litterarios de composição e de
declamação . Estava na indole rhetorica do tempo e no
exclusivismo humanista . Nas festas da ordem repre
-
sentavam- se nos collegios Jesuitas certas peças drama
ticas, escriptas em hexametros latinos sobre passagens
da Biblia, as quaes levavam dois e tres dias a repre
sentar, com grande apparato de coros e de decora
ções. As Tragi- comedias tornaram-se o modo mais
(1) Ob . cit . , Prosopopêa, p. 10.
25
386 CAPITULO XVII

faustoso de celebrar as visitas reaes e os casamentos


dos principes. Quando el rei D. Sebastião foi a Coim
bra, ainda menino, o Collegio das Artes representou
lhe uma Tragi- comedia de Sedecias, composta pelo je
suita Luiz da Cruz, que levou alguns dias a desempe
nhar. Este genero litterario é a ultima degradação da
arte ; teve principio logo que os Jesuitas se apodera
ram do ensino em 1555 ; eram de ordinario compostas
pelos professores de rhetorica das escholas da compa
nhia. Os principacs auctores d'este genero hybrido,
são o Padre Luiz da Cruz, D. Affonso Mendes, Pa
dre Luiz Ribeiro, Padre José Leite, Frei Manoel
Rodrigues, Padre André Fernandes, e outros muitos. A
Tragi-comedia mais celebre do seculo XVII é a que
compoz Padre Antonio de Sousa, com o titulo de
Real tragi-comedia do Descobrimento e conquista do
Oriente, que se representou na recepção de Filippe u
1 em Lisboa, em 1619. A riqueza do scenario , o dos
vestuarios dos actores acha-se descripta em uma ex
tensa Relação do Mimoso Sardinha, a qual nos faz crêr
que era um espectaculo mais apparatoso do que a
opera moderna a Africana. Não contentes em terem
esgotado a actividade dos que frequentavam as suas es
cholas, os Jesuitas procuraram extinguir o theatro na
cional com o volumoso Index Expurgatorio de 1624,
aonde se condemna Gil Vicente, Affonso Alvares, Frei
Antonio de Lisboa, Balthazar Dias, Francisco Vaz
de Guimarães, Antonio Ribeiro Chiado, e os principaes
Autos anonymos do seculo xvI .
c) Autos hieraticos nacionaes. - Em 1634, escre
via Manoel de Galhegos, no prologo do seu poema
Templo da Memoria, esta importantissima revelação:
« A lingua portugueza, como não é hoje a que domina,
esqueceram - se d'ella os engenhos; o quem agora se
atreve a sair ao mundo com um livro de versos em
portuguez, arrisca- se a parecer humilde; pois escreve
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 387

n'uma lingua cujas frases e cujas vozes se usam nas


praças: o que não deixa de ser embaraço para a alti
veza, que as palavrasde que menos usamos soam bem
e agradam em razão da novidade, e por isso os rhe
toricos lhes chamam peregrinas. » A lingua portugueza
era então considerada como uma cousa desprezivel,
e o que é mais para notar, depois da restauração
de 1640 a lingua portugueza nem por impulso de
reacção nacional adquiriu mais importancia. As obras
litterarias em que a lingua portugueza apparece mais
empregada, são os Autos hieraticos, com que no se
culo XVII se imitou a antiga eschola nacional de Gil
Vicente. São muitos os titulos de Autos que se conhe
cem, mas poucos são os que restam hoje, signal de que
foram recebidos com pouco interesse e que se não im
primiram . Os principaes auctores são Antão Pires
Gonge, Clemente Lopes, Francisco Lopes Livreiro,
D. Francisco Manoel de Mello ; o Auto do Fidalgo
aprendiz, foi representado na corte de Dom João iv,
en'elle se achaesse typo tradicionaldo nosso theatro,
o fidalgo pobre, que Gil Vicente já havia retratado na
Farsa dos Almocreves. Póde -se dizer, que D. Francisco
Manoel de Mello presentiu annos antes a concepção
de Molière no Bourgeois gentilhome. O Tratado da
Paixão, pelo Padre João Ayres de Moraes, é um do
cumento por onde se vê o culteranismo seiscentista per
verte a expressão singela dos Autos populares. Fi
nalmente, mesmo n'esta pequena e accidental manifes
tação do theatro portuguez, os Autos Sacramentaes
hespanhoes vieram -nos impôr o seu typo, como se vê
pelas composições de Soror Maria do Céo, José Cor
reia de Brito e Manoel Thomaz. A collecção dos vinte e
cinco entremezes publicada por Manoel Coelho Rebello
com o titulo de Musa entretenida é a ultima degrada
ção da arte dramatica em Portugal. A tradição de
388 CAPITULO XVII

Gil Vicente fica totalmente perdida, e por isso toda a


ordem de disparates é permittida.
d) As Comedias de capa e espada.- A influencia
das comedias hespanholas, já pela sua representação
exclusiva nos Pateos de Lisboa, já pelos assumptos da
historia portugueza que muitas vezes tratavam , não
podia deixar de actuar no genio portuguez directa
mente. De facto entre a grande pleiada dos escripto
res dramaticos hespanhoes, figuram com honra alguns
portuguezes, como João de Mattos Fragoso, Jacintho
Cordeiro, Antonio Henriques Gomez e Manoel Freire
de Andrade. Escreveram exclusivamente em hespanhol.
N'este genero litterario o unico verdadeiramente na
cional é Pedro Salgado, soldado das guerras da inde
pendencia portugueza, que reduzia a drama os succes
sos da guerra, como se pode vêr no Dialogo gracioso
de Terracuça, e no Hospital do Mundo, imperfeitos na
fórma, mas aspirando a exprimir um sentimento bem
definido.
As Comedias de Simão Machado, são um mixto
dos Autos portuguezes da eschola de Gil Vicente com
os versos hespanhoes das Comedias de capa e espada,
e com o abuso de tramoyas, ou magicas impossiveis,
E ' tambem nos fins do seculo xvil que se fazem as
primeiras tentativas para a introducção da Opera, na
côrte musical de D. João iv, que pelas relações de pro
tecção que recebia de França, começou por imitar os
Ballets da côrte de Luiz XIII . A’ medida que o tempo
avança , cada vez se separa mais o escriptor das rela
ções da vida social ; chega-se mesmo a perder o conhe
cimento d'essa entidade moral----aa nação, e os que pen
sam e escrevem só tem em vista lisongear o cesarismo
que distribue as graças, ou os altos personagens que
vivem junto ao rei que podem interceder para a con
cessão de qualquer tença. A vida de escriptor não é
O CULTERANISMO NA POESIA PORTUGUEZA 389

ainda uma industria taxada nos gremios contribuin


tes, mas é um meio de se encostar a alguma pessoa
poderosa e comer com os seus creados. Aqui está a que
conduz uma litteratura completamente desligada das
origens tradicionaes.
CAPITULO XVIII

Historia , Eloquencia, Novellas


Estado da historia no seculo xvii . - Frei Luiz de Sousa elabora
rhetoricamente as investigações de Frei Luiz de Cacegas.
--Merito do Frei Luiz de Sousa, segundo o Bispo de Viseu.
-Jacintho Freire de Andrade e a falta de vocação histo
rica . — Alta capacidade historica de D. Francisco Manoel
de Mello. — Vieira e a Eloquencia sagiada : Os Sermões sup
priam em Portugal o habito civil das comedias. -Critica dos
oradores do seculo xvi pelo Padre Vieira. „As Allegorias
Pastoraes ou o bucolismo conimbricense : é cm Coimbra
que se escrevem , o Desengann, Primavera e Pastor pere.
grino, de Rodrigues Lobo; as Ribeiras do Mondego, de Eloy
de Souto Mayor; os Desmaios deMaio, de Diogo Ferreira
Figueirôa ; os Christaes d'Alma, de Escobar.-Às Cartas da
Religiosa portugueza .

Frei Luis de Sousa , Chronista

Assim como a philologia e a poesia do seculo XVII


nos apparecem viciadas pela monomania da rhetorica,
a linguagem da historia não podia escapar a este ge
ral contagio imposto pelas disciplinas da educação hu
manista . No seculo xvi os historiadores são pro oca
dos por uma vocação irresistivel, que os força a08
mais extraordinarios sacrificios para recolheremog fa
ctos na sua inteira verdade; no seculo xvii, os histo
riadores são frades, que escrevem para cumprirem o
preceito da obediencia . Emquanto a vida das bata
Ihas e das viagens dá aos historiadores do seculo XVI
uma certa aspereza masculina na dicção, a apathia da
clausura dá aos Chronistas uma certa despreoccupação
dos factos e um exquisito cuidado pela ornamentação
do estylo. De todos os Chronistas do seculo XVII O
mais celebrado, e aquelle a quem se attribue a ultima
perfeição da lingua portugueza, é Frei Luiz de Sousa.
Este nome é proverbial como representando o estylo
HISTORIA, ELOQUENCIA, NOVELLAS 391

e a locução portugueza no seu maior purismo. Os elo


gios desencadeiam -se em admirações desde os seus
contemporaneos até hoje; e a mesma continuidade
d'estas acclamações é uma prova de que se repetiu in
conscientemente os juizos, que eram verdadeiros e lo
gicos para o criterio rhetorico do seculo XVII . Ir de
encontro a estas opiniões, que se tornaram auctori
dade, parecerá um attentado; mas custe isso embora,
o nosso seculo tem novos pontos de vista , que se não
basêam sobre exclamações admirativas . Transcreve
mos certos trechos do mais completo biógrapho de
Frei Luiz de Sousa para que mais auctorisadamente
se aquilate o seu valor. Frei Luiz de Sousa escreveu
a Vida de Frei Bartholomeu dos Martyres, e a Chro
nica de S. Domingos ; mas d’estas obras apenas lhe per
tence o estylo, porque os materiaes verdadeiramente
historicos pertenciam a Frei Luiz de Cacegas, falle
cido, segundo Barbosa, em 1616. Era Frei Luiz de Ca
cegas um collector infatigavel de antiguidades, tendo
para esse fim percorrido o reino por mais de vinte an
nos ; além dos materiaes para a historia de Sam Do
mingos e para a vida do Arcebispo, tambem escreveu
das Genealogias de Portugal, das Matronas illustres
dominicanas, e sobre os Santos da Ordem dos Préga
dores. O modo de trabalhar de Frei Luiz de Cacegas,
revela a sua incapacidade para os arrebiques da rheto
rica; logo que morreu, os superiores da sua ordem ,> co
nhecendo os talentos cultos de FreiLuiz de Sousa, entre
garam -lhe esses manuscriptos, para que os aprimorasse,
por ventura, por ser, elle já notado como subtil nas
suas poesias latinas . Quando Frei Luiz de Sousa to
mouconța d'este trabalho, contava já, como infere
D. Francisco Alexandre Lobo, pouco mais de sessenta
annos; estava n'essa edade apathica e desapaixonada,
em que o dizer toma uma forma conceituosa e aucto
ritaria. Livre do trabalho das investigações, que é o
392 CAPITULO XVIII

que revela ao historiador a importancia e vitalidade


dos factos, entretinha-se socegadamente a arredondar
phrases e a soprar as expressões narrativas de Cace
gas . Como tinha só isto a fazer, n'isto empregou todo
o cuidado, a ponto de tornar a historia descriptiya
como uma especie de pastoral . Como era este o es
tylo que estava na moda seiscentista, o trabalho se
cundario de Frei Luiz de Sousa foi considerado uma
maravilha de genio, chegando -se a esquecer o nome
de Frei Luiz de Cacegas. Frei Luiz de Sousa, con
fossa sempre quanto deve ao ignorado obreiro que
reuniu os materiaes : « Frei Luiz de Cacegas, a cujo
nome e trabalho se deve a parte mais substancial da
presente escriptura, e dos outros dois volumes... ) (1)
E accrescenta: « Serviram-me os seus caminhos para
eu poder escrever assentado, quieto o escondido no
canto da cella ... » Mas na obra da historia o que
menos se procura é o estylo, que pertence propria.
mente ás obras artisticas ou do sentimento ; na histo
ria quer-se o juizo, a critica, a alta comprehensão da
lei que domina os factos. Frei Luiz de Sousa não pas
sou de um Chronista monastico ; o seu biógrapho ca
racterisa por esta forma essa classe de escriptores, re
ferindo-so tambem ao seu escriptor predilecto : « Estes
Chronistas quasi nunca são muito habeis, e raramente
podem ou se atrevem a sair da esphera que o costume,
à authoridade dos superiores e as ideias na corpora
ção dominantes lhes tem assignado . A fundação dos
Conventos ou Mosteiros, o descahimento e reformas,
as vidas espirituaes e prodigiosas dos alumnos, enchem
totalmente a dita esphera ; e de ordinario os casos po
liticos e ainda militares, com que estes prendem, as
>

alternativas da litteratura, as causas do descahimento,


os meios sabios e efficazes de reforma, são deixados
(1) Chron. de Sam Domingos, Parte 11, 1. 4, c. 7.
HISTORIA , ELOQUENCIA , NOVELLAS 393

com descuido muito digno de censura . Não accusarei


ou arguirei Frei Luiz de Sousa de ir aqui pela ve
reda dos mais Chronistas . Sei que não foi o arbitrio
seu ... Mas nem por isso deixarei de confessar, que
a sua Chronica é n'esta parte com poucas, posto que
com algumas excepções, similhante as outras; e que
não deve servir de exemplar no tocante á selecção dos
factos graves e momentosos, que podem interessar e
aproveitar a grande numero de leitores .» ( 1 ) Esta in
teireza de juizo do Bispo de Viseu, redunda de re
pente em grande injustiça contra o obscuro obreiro
Frei Luiz de Cacegas. Aquilatando a Vida do Arce
bispo Frei Bartholomeu dos Martyres, escreve : ( 0
Arcebispo, que na maior parte dos casos, representa
>

um honrado principe da Egreja, aqui e alli parece só


mente um frade rasteiro ; e fôra melhor que o oraculo
de Trento, o desenganado e intrepido conselheiro do
Vaticano ou de Belvedere, se não mostrasse comendo
as ccouvesgrosseiras em tisnada escudella nas choupa
nas de Barrozo . Eu creio que Frei Luiz de Sousa er
rou n'esta parte por seguir os papeis de Cacegas ;
etc. ) (2) E desenvolvendo esta ultima affirmação, in
siste : « O exemplo de Cacegas o arrastou ainda a va
rios erros de critica. Mas o seu socio, como toda a
turba de Chronistas monachaes, laborava em duas er
radas maximas, de que Frei Luiz de Sousa se deixou
tambem hallucinar : Referir só o bem, e ainda engros
sal-o sem escrupulo. Admittiu facilmente prodigios,
como seja para honra da piedade e seu incentivo.» (3)
Dosde que o seu mais consciencioso admirador, D.
Francisco Alexandre Lobo, caracterisa por essa forma
a capacidade historica de Frei Luiz de Sousa, elle

(1) Obras, de D. Francisco Alexandre Lobo, t. 11, p. 151 .


(2) Ib ., p . 153 .
(3) Ib ., id.
394 CAPITULO XVIII

mesmo se confessa obrigado a reservar as suas admi


rações para o estylo. Mas a preoccupação exclusiva do
estylo não pertence ao historiador; e o estylo é um re
sultado da convicção de quem prova, do enthusiasmo
de quem descobre, da tenacidade de quem investiga,
da paixão de quem anima o que concebe de um dado
modo na sua mente, e não esse cosmetico rhetorico de
quem mira ao effeito . Ora 0 -seculo XVII comprehendeu o
estylo como esse cosmetico artificial, e tomou sempre a
arrebique pela belleza. A predilecção pelo estylo de Frei
Luiz de Sousa, fez com que Filippe iv, por Carta de 20
de Outubro de 1627 0o escolhesse para redigir a Chro
nica de D. João III, o que já tinha feito em 11 de
Maio d'esse anno por intermedio do Marquez de Cas
tello Rodrigo. Como o que se pretendia de Frei Luiz
de Sousa era o estylo, trataram de lhe tirar todo o
trabalho de investigação, e assim D. Luiz Lobo man
dou-lhe um manuscripto das cousas da Africa ; o Se
cretario Francisco de Lucena mandou -lhe um livro
dos despachos de Pero de Alcaçova ; o Chronista Gil
Gonçalves de Avila indicava -lhe os caminhos a seguir
na composição da historia : «Em 17 de Julho ( 1627)
fallei com Gil Gonçalves de Avila, Cronista maior de
Espanha, meu amigo: dir, que lhe parece bem escre
vermos por annos, ao modo que escreveu o chronista
d'el-rei Dom João II de Castella,cujas obras vimos e
lemos, e é de estimar . Diz que lhe parece metamos
na de el rei Dom João todas as pessoas que sairam de
Portugal com nome, e as que foram de fóra de boa
calidade. Manoel Severim de Faria, que então ti
nha a melhor bibliotheca de Manuscriptos, offereceu
lhe uma Chronica de D. João Ill, esboçada por An
tonio de Castilho‫ ;ܪ‬as notas diplomaticas de Pero de
Alcaçova, e uma Chronica de Arzilla por Pero de An
drade Caminha. N'esse seculo da rhetorica só se pro
curava o estylo ; era o que se pedia a Frei Luiz de
HISTORIA , ELOQUENCIA, NOVELLAS 395

Sousa para se ter uma boa Chronica de João III. De


facto o purista escreveu uns Annaes de D. João III,
que se perderam , e que foram achados em um sótam
da Bibliotheca das Necessidades. (1) Herculano, que
reviu o manuscripto authentico para a edição de 1844,
diz que é : « cheio de muitas emendas, mais de estylo e
de linguagem , que de outra cousa .) Mas apezar de
tudo, o proprio editor conhece que esses Annaes não
tem vida. Quanto aos successos da India resume Bar
ros ; quanto aos successos da metropole : «são pouco
mais que uma serie de apontamentos. (2) Na historia
politica faltava-lhe o elemento descriptivo, e é por isso
que ficou palido. Pode-se dizer, que o perstigio de
Frei Luiz de Sousa é para nós como a monomania da
admiração de Racine para os francezes.
Jacintho Freire de Andrade

As tendencias que se conhecem nas poesias de Ja


cintho Freire, apparecem augmentadas no historiador
palavroso, costumado aos banaes effeitos das apostro
phes, das prosopopêas, e das fallas postas na bocca
dos capitães á maneira de Tito Livio. Depois de Frei
Luiz de Sousa, Jacintho Freire de Andrade é o esty
lista mais admirado pelos sectarios da velha tradição
humanista dos collegios da Companhia. O estudo da
historia não foi para elle uma paixão; para compra
zer com o Bispo Inquisidor Geral Dom Francisco de
Castro, escreveu a Vida de Dom João de Castro,
quarto visorei da India ; Jacintho Freire era Abbade
de Sambade e de Santa Maria das Chans, aonde
viveu até á época de 1640, e escreveu para lisonja
do seu superior. Dom Francisco Alexandre Lobo, que
(1) Impressos em 1844.
(2) Herculano, ed. dos Annaes, p. xx.
396 CAPITULO XVIII

tambem estudou este escriptor, caracterisa - o com des


prevenção, e com uma auctoridade insuspeita : « Um
ostylo tão discreto, tão agudo, tão affectado, não diz
com heroe tão grave ; diria melhor, por exemplo com
Persiles y Sigismunda. Quer ser eloquente o auctor e
não é senão inchado. A larga oração de Coge Çofar,
nem tem verosimilhança, nem tem em varios rasgos
senso commum ... Até o numero e cadencia das på
lavras em todo o livro são pouco entendidos, porque
fogem do que é dado á prosa, e vão entrar no que
pertence á poesia. A cada paragrapho e quasi a cada
oração topamos com versos.) ( 1) Quem conhecer os
versos de Jacintho Freire de Andrade, publicados na
Phenix, recompõe a fórma da prosa que elle fatal
mente havia de adoptar. E' um vicioso panegyrista
imposto pela superstição classica, mas que o proprio
bom senso vae destituindo de importancia.
D. Francisco Manoel de Mello

E' este o unico homem que no seculo XVII appre


senta em Portugala mais, alta concepção da historia,
no livro sobre as Guerras da Catalunha. Ninguem na
Europa o egualava então no vigor das narrações e na
unidade philosophica dada aos factos por um criterio
apprendido na vida real, como parte activa nas revolu
2

ções, como victima das arbitrariedades, como prudente


nas negociações diplomaticas, e como bom poeta, com
esse dom de animar o que se passou diante dos seus
olhos, ou que o impressionou profundamente. Como o
que revela o historiador é o criterio e não o estylo, é
por isso que fallamos aqui de D. Francisco Manoel de
Mello, apezar de ter escripto em castelhano a Histo
ria das Guerras da Catalunha. Philarete Chasles dis
(1) Obras, de D. Francisco Alexandre Lobo. T. II, p . 164.
HISTORIA, ELOQUENCIA, NOVELLAS 397

tingue este livro com este juizo, que demonstra larga


mente : « A simplicidade viril do estylo, alheio aos or
namentos ridiculos com que a poesiase arreiava então;
a liberdade dos juizos, o vigor com que os caracte
res se desenham , são dignos do assumpto. Vê-se ali uma
nação selvagem combatendo pelos seus direitos, gover
nando-se assi propria, completamente republicana pe
los costumes, catholica pelas crenças , monarchica
pelo habito, muitas vezes esmagada pelo inimigo,
mas nunca abatida.- Os personagens do drama col
locam-se todos em relevo ; conheceil-os ; estaes a ou
vil-os ; acha -se ali o movimento dramatico de Thucy .
dides ee de Herodoto, sem esforço, sem imitação da an
tiguidade. Circumstancias analogas produziram com
muns resultados ; estes homens proferiam esses discur
sos assim ; comportaram-se por essa forma; verdade,
pujança, eloquencia, interesse energico sobre um thea
tro acanhado, pintura animada dos costumes catalães ;
axiomas politicos naturalmente deduzidos do jogo das
paixões e do curso dos successos ; estes meritos nume
rosos deveriam ter fixado a attenção sobre um livro que
desgraçadamente appareceu pela primeira vez em Por
tugal, em um paiz então pouco litterario, e que se
precipitava rapidamente para a decadencia. (1) Parte
d'estes dotes extraordinarios se descobrem ainda nos
seus pequenos quadros historicos chamados Epana
phoras.
A historia decaíra visivelmente ; começou o jornal
politico, introduzido pelo secretario Antonio de Souza
Macedo, com o Mercurio portuguez; as necessidades de
saber dos acontecimentos fez produzir uma alluvião in
terminavel de folhas volantes, com que se explorou a
curiosidade publica.

(1) Voyage d'un critique, etc. Espagne, p. 283.


398 CAPITULO XVIII

A Eloquencia sagrada Vieira

Sem vida parlamentar, sem liberdade do pensa


mento, era impossivel que a Eloquencia, esta forma
de arte, que só pode ser produzidapela actividade so
cial, se manifestasse. No seculo XVII apparece-nos uni
camente a Oratoria sagrada; os Sermões foram para
nós como as comedias para o espirito hespanhol ; era
no pulpito aonde havia a liberdade para dizer tudo,
sob pretexto de verberar os costumese as iniquidades
do seculo. O ridendo castigat mores, que justificava as
comedias, convertia-se aqui no outro extremo, no ter
ror, no amedrontamento com as penas do inferno. O
povo accudia mais ao pregador que lhe sabia produ
zir essa sensação. No celebre Sermão da sexagesima,
prégado por Vieira em 1655, accentúa-se este juizo
do sermão do seculo xvII : « antigamente prégavam
bradando, hoje prégam conversando ... os ouvintes
vem ao sermão como á comedia, o ha pregadores que
vem ao pulpito como comediantes. Uma das felicida
des que se contava entre as do tempo presente, era
acabarem -se as Comedias em Portugal ; mas não foi
assi: não se acabaram , mudaram -se, passaram -se do
theatro para o pulpito. Não cuideis que encareço em
chamar comedias à muitas prégações que hoje se
usam . )
Os Sermões do seculo XVII refletem todos os de
feitos litterarios do seiscentismo; disserta -se sobre equi
vocos de palavras, sobre interpretação allegorica dos
textos, apimenta- se a moral com Exemplos decame
ronicos, com allusões politicas, fala - se com os santos
em familiares prosopopêas, troveja -se contra a multi
dảo quando ella seenfada, emfim , o melhor pregador
era o que se mostrava mais à vontade.
O Padre Vieira caracterisa o estylo dos Sermões
HISTORIA, ELOQUENCIA , NOVELLAS 399

do seculo xvii: «Um estylo tão empecado, um estylo


tão difficultoso, um estylo tão affectado, um estylo tão
encontrado a toda a arte e a toda a natureza ? O es
tylo hade ser muito facil e muito natural. Por isso
Christo comparou o prégar ao semear .... E' uma arte
sem arte, caia onde cahir... Assi hade ser o prégar.
Hão de cabir as cousas e hão de nacer : tão naturaes,
que vão cahindo, tão proprias, que venham nacendo.
Que differente é o estylo violento que hoje se usa. Ver
vir os tristes passos da Escriptura como quem vem ao
martyrio: uns vem acarretados, outros vem arrastados,
outros vem despedaçados , só atados não vem ... Este
desventurado estylo que hoje se usa, os que o querem
honrar chamam-lhe culto; e os que o condemnam-lhe es
curo, mas ainda lhe fazem muita honra. O estylo culto
não é escuro, é negro bocal e muito cerrado. E' possi
vel, que sômos portuguezes e havemos de ouvir um
pregador em portuguez e não havemos de entender o
que diz ? Usa -se hoje o modo que chamam apostillar
© Evangelho, em que tomam muitas materias, levan
tam muitos assumptos ; ... prégam o alheio e não o seu . )
A eloquencia sacra tem contra si o impôr a cren
ça, e por isso chegar á convicção por authoridade e
>

não suasoriamente. Isto dá ao orador um certo numero


de recursos mechanicos, que se repetem como typo de
genero. Mas essa familiaridade dos oradores do seculo
XVII venceu a monotonia das fórmas rhethoricas, e
póde-se dizerque foi o seculo dos grandes prégadores.
O Padre Vieira é o typo mais completo dos pre
gadores do seculo xvii ; a sua personalidade mistura -se
com a historia politica da defeza do throno de Dom
João iv . As suas ideias phantasticas sobre as Trovas
de Bandarra eram suscitadas pelas difficuldades em
que via a sustentação da dynastia de D. João iv , ee
por isso queria induzir o monarcha a que, como Con
400 CAPITULO XVIII

stantino passou a séde do imperio romano para Byzan


cio, se passasse tambem para o vastissimo territorio
do Brazil, aonde bem podia fundar o Quinto Imperio
do mundo. O Padre Vieira nasceu em Lisboa em 1608,
mas logo em 1615 teve de acompanhar seus paes,
Christovam de Oliveira Ravasco e D. Maria de Aze
vedo, para a cidade da Bahia de Todos os Santos. Ali
fez a sua educação nas escholas humanistas dos Jesui
tas, e por elles seduzido vestiu a roupeta com pouco
mais de quinze annos de edade. Em 1641 voltou o Pa
dre Vieira a Portugal na commissão que vinha decla
rar a Dom João IV que o Brazil adherira á revolução
de 1640. Todos estes factos nos mostram como Vieira
foi conduzido a essa nova aspiração do Quinto Impe
rio, que localisava na vastissima America e na pessoa
de D. João iv. Vieira, ao chegar a Lisboa, revelou -se
logo como un extraordinario prégador; mandava-se
de manhå lançar tapete na egreja para ir ouvil.o á
tarde; os seus dotes poeticos faziam -no achar as mais
inesperadas imagens,que elle desenvolvia até á sacie
dade , como se vê no homem -pó; a sua intervenção no
paço e a larga correspondencia politica dava ás suas
phrases o interesse das mais ironicas allusões pessoaes;
emfim , com essa flexibilidade de um talento discipli
nado pela Ratio Studeorum e pela Monita secreta,
Vieira exercia uma geral seducção. Os seus numero
sissimos Sermões sãouma prova do interesse que ha
via em ouvil-o . A sua actividade como missionario no
Maranhão, como agente diplomatico nas côrtes da Eu
ropa, e ultimamente como perseguido por heterodoxia,
mostram -nos uma organisação excepcional para toda
a ordem de luctas, que os Jesuitas sabiam admiravel
mente conbecer . As ideias do Quinto Imperio foram
causa da sua perseguição no Santo Officio de Coim
bra. A sua biographia é um grande quadro historico do
HISTORIA, ELOQUENCIA, NOVELLAS 401

seculo xvii, na sua totalidade, porque morreu com perto


de noventa annos, em 1697. (1) No Sermão 1 de Vieira,
$ 5, faz elle a critica dos desvarios de estylo usados
pelos oradores do seculo xvir ; apezar da immensidade
dos oradores sacros que tornaram ridicula esta forma
litteraria, são recommendaveis os Sermões de Baltha
zar Paes, Balthazar Limpo, Frei Filippe da Luz, Frei
Christovam de Lisboa, Padre Luiz Alvares, Padre
Francisco de Mendonça, Frei Thomaz da Veiga, Dr.
Francisco Fernandes Galvão, Frei Antonio Feo, Frei
João de Ceita, Frei Antonio das Chagas e Padre Ma
noel Bernardes. Não contentes com o privilegio do pul
pito, as ordens monasticas inventaram um divertimento
escholar de defezas de theses para darem assim evasão
aos ferventas impulsos da rhetorica que os dominava.
Póde-se dizer que essa quantidade de sermões absurdos
e gongoricos de seculo xvi é uma prova do grande
despotismo rhetorico, que chegou a ser ainda mais forte
que o respeito pelos dogmas religiosos, que eram tra
tados como pretexto para trópos.

As Allegorias pastoraes
Os absurdos da linguagem e da imaginação, que
Cervantes admiravelmente ridicularisara parodiando
o estylo das Novellas cavalheirescas, não conhecem li
mites nas Pastoraes do seculo XVII . A Novella de ca
valleria ao constituir cyclos genealogicos, desde que
perdeu as relações com as suas origens tradicionaes,
caíu na rhetorica banal ; mas as Pastoraes, que não
• derivavam de nenhum elemento de tradição, ás pri
2 meiras imitações cairam na insensatez . E' esta a forma
litteraria mais frequente dos seiscentistas ; foi aqui que

(1) Vid. a sua larga biographia nas Obras de D. Francisco


Alexandre Lobo, t . 11, p. 173 a 356.
26
402 CAPITULO XVIII

o culteranismo deu largas aos seus conceitos . E' quasi


inutil gastar tempo em condemnar estes productos do
idiotismo, que envergonham uma época. Estas Novel
las constam sempre de um apaixonado pastor, que des
abafa as suas auzencias em largos soliloquios; que in
termeia as suas prosas calcadas de cansados epithetos
com elegias e romances, recitados junto das fontes ;
intervem outros pastores para o consolarem , as nym
phas escutam-pos por detraz dos arvoredos, condóem-se
do triste, que morre quando sabe já tarde que tam
bem é amado . O fundador d'este genero na Peninsula,
Jorge de Monte -Mór, soube infundir interesse n'estas
creações incolores, animando-as com as allusões a in
teresses pessoaes; mas os seus imitadores eram na ge
neralidade nullos, e, sem factos importantes de sua
vida, não fizeram mais do que recortar vagas situa
ções idyllicas das reminiscencias da férula humanista.
As Pastoraes que ainda merecem attenção são as que
publicou Francisco Rodrigues Lobo, o Desenganado,
Primavera, e Pastor peregrino. Produz um cansaço
immenso essa leitura accidentada de prosa e verso ; os
nomes arcadicos dos pastores que discorrem , por forma
nenhuma se fixam na memoria; não se sabe por que
vêm, nem por que vão ; o que dizem é tão parecido
com o que já disseram , que chega a produzir -se a il
lusão intellectual de parecer que se perdeu o logar
aonde se estava lendo. E a seu favor tem Rodrigues
Lobo um grande vigor lyrico, e uma certa naturali
dade nos versos de redondilha em que imita o estylo
popular; tem mais a peripecia ignorada dos seus amo .
res com uma aia da casa dos Duques de Caminha, a
que por ventura haverá alguma allusão autobiogra
phica. Mas nem assim se pódem lêr sem um heroico sa
crificio centenas de paginas d'onde se não apura uma
unica ideia. Depois d'isto, o que se pode dizer dos que
lhe succederam ? As Ribeiras do Mondego, do Eloy de
HISTORIA , ELOQUENCIA, NOVELLAS 403

Sá Souto Mayor, segundo a affirmação do seu auctor,


disputam a prioridade do genero ás Pastoraes de Lobo ,
por já estarem escriptas quando estas foram publica
das. Acabar a sua leitura é como o acordar de um
longo lethargo, em que se não sentiu dôr, mas em que
>
a falta de consciencia de nós mesmos nos encommoda.
Mas a medida que se avança o senso commum vae
faltando. E o que succede com os Desmaios de Maio
em sombras do Mondego, por Diogo Ferreira Figueiroa,
creado do Duque de Bragança , em Villa Viçosa, em
cujos paços em 1636 compoz essa phantasmagoria. Fi
gueirôa declara que foi violentado por amigos para dar
á estampa esta Pastoral, que tencionava proseguir:
anas Cortes de amor , que entre os pratos do Theatro
da Fama, e outros que ainda por informes desmerecem
nome, vos prometto . Felizmente nenhum d'esses abor
tos veiu contaminar mais a litteratura . Começa o dis
paratado livro, ou desmaio primeiro: « Sobre o mais le
(

vantado das floridas espessuras, que bem variadas li


brés, ondeando voltas, sobem por montes varios a ser
como naturaes columnas ao monte Herminio (assim lhe
chama Cesar, quando na difficil conquista de seus na
turaes, o eterniza alumno bellicoso dos mais bellicosos,
que de todo nunca vencidos conquistaram as legiões
romanas) entre o vistoso aprazivel de uma espaçosa
veiga, vulgarmente chamada dos cantaros, sitio em
que a lisongeira molher de Favonio se mostra mais se
nhora...) E prosegue assim indefinidamente, accumu
lando epithetos, e incidentes sobre incidentes, para sup
priro vacuo immenso de ideias . Ainda mais baixo
desce o cerebro humano n'essa outra pastoral de 1672,
os Crystaes da Alma, frases do coração, rhetorica do
sentimento, e amantes desalinhos, de Gerardo de Es
cobar . Como as precedentes novellas pastoraes, foi
tambem escripta em Coimbra ; o que nos mostra que
era do centro litterario mais activo que saíam estas

I
404 CAPITULO XVIII

aberrações que pertencem mais á psychologia morbida,


do que a historia . O Retiro de Cuidados, do Padre Ma
theus Ribeiro, de 1688, e o Serão politico de Felix
Castanheira Turacem , não abusam tanto do ludibrio
do bom senso , mas com os mesmos recursos de um
falso estylo não se prendem á litteratura por nenhuma
tradição dos Contos seculares, que circulavam com
grande vitalidade na Europa. Os Contos de Trancoso,
ainda se reimprimiram bastantes vezes, no seculo XVII,
mas ninguem seguia esse singularexemplo, consultando
outra vez a tradição popular. O Padre Manoel Ber
nardes, no seu Estimulo pratico, recolhe bastantes Con
tos, que moralisa largamente á maneira das antigas
paraphrases do Gesta Romanorum, mas a preoccupa
ção ascetica tira -lhe o valor litterario. Este gosto de
pravado das Novellas pastoraes allegoricas represen
tava uma grande corrente do espirito publico, e como
tal os Jesuitas aproveitaram-na logo. A Historia do
Predestinado peregrino e de seu irmão precito, pelo Pa
dre Alexandre de Gusmão, é uma continuada allego
ria catholica sobre os fins que esperam a virtude e o
vicio . Este livro tem uma verdadeira importancia, não
pelo modo como está escripto, mas pela sua origem
litteraria ; o Predestinado peregrino é uma parodia do
Pilgrim Progress, de Bunyan, allegoria admiravel do
um anabatista, que conseguiu pela hallucinação reli
giosa dar o effeito da realidade ás suas representações
de vagas entidades moraes . O Padre Alexandre de
Gusmão converteu ao seu intuito a allegoria do fana
tico, mas com todos os defeitos com que a reflexão
aggrava o que se deduz de uma comprehensão falsa.
As Cartas da Religiosa portugueza
E' este o unico producto verdadeiramente sentido,
verdadeiramente bello, que a alma portugueza appre
senta no seculo xvii . São cinco Cartas, escriptas por
HISTORIA, ELOQUENCIA, NOVELLAS 405

uma menina reclusa em um Convento de Beja a um


official francez, o Conde de Saint-Leger, que conhe
cera quando Luiz XIV mandou socorrer Portugal , que
se debatia contra uma nova invasão nas guerras do
Alemtejo em 1663. Boissonade descobriu em uma nota
manuscripta do seu exemplar das Cartas o nome da
dama que as escrevera : « Sobre o meu exemplar da
edição das Cartas portuguezas, de 1669, ha esta nota,
de uma lettra que me é desconhecida :--La Religieuse
qui a écrit ces Lettres se nommait Marianne Alcofo
rado, religieuse à Beja, entre l'Estremadure et l'An
dalousie. Le chevalier à qui ces lettres étaient écrites
était le Comte de Chamilly, dit alors Comte de Saint
>

Leger.» (1) Embora essas Cartas só existam hoje na


traducção franceza de Cuilleraque , de 1669, ainda re
velam a feição da syntaxe portugueza, e são de modo
que por si têm caracterisado na Europa o genio e o
caracter portuguez. E' por isso que não podem passar
desapercebidas na historia da litteratura nacional.
Podem pôr-se a par das Cartas de Heloisa, com a dif
ferença para melhor, que Marianna Alcoforado igno
rava as preoccupações do estylo. As observações inti
mas feitas pelosmaiores genios e artistas, como Shakes
peare ou Goëthe, não retratam com mais vida as pai
xões do que a pobre Marianna descrevendo a sua situa
ção de mulher abandonada. Como aquelle que vol- .
teava por entre a multidão com a lanterna acceza á
busca de um homem, como elle podemos findar este
exame do Seiscentismo, porque achamos uma incon
sciente obra de arte que é bella pela sua verdade.

(1) Journal de l'Empire, du 5 Janvier, 1810.


QUINTA EPOCA

AS ACADEMIAS LITTERARIAS
( SECULO XVID )

CAPITULO XIX

Reacção a favor da Lingua e da Litteratura


Caracter moral e litterario do seculo xvii : a feição official pre
domina em tudo. – Primeiros trabalhos para a formação do
Vocabulario portuguez : Bluteau .-- Fundação da Academia
de Historia portugueza . — Lucta de Verney com o Verdadeiro
methodo deEstudar: reproduz o movimento de Feyjó em
Hespanha.-- Trabalhos da Arcadia para o estudo da lingua
portugueza : Francisco José Freire. - Desprezo pelas locu
ções populares no livro Enfermidades da Lingua .- Funda
ção da Academia das Sciencias: trabalhos philologicos de
Francisco Dias Gomes, Padre Antonio Pereira, Antonio das
Neves Pereira.- Pedro José da Fonseca e o Diccionario da
Academia ; a Grammatica philosophica, de Jeronymo Soares
Barbosa .

Espirito do seculo XVIII. - Blateau


e o Vocabulario

Nenhuma das condições moraes e intellectuaes dos


Seiscentistas deixou de exercer-se com a mesma con
tinuidade ee intensidade no seculo XVIII : a mesma falta
de representação politica, a mesma espionagem da con
sciencia e das censuras do pensamento, fizeram que se
continuasse a distracção das Academias litterarias, mas
com um novo caracter, que pervertiamais a sua na
tureza : com esse cunho de respeitabilidade exterior,
e da immobilidade e garantia de instituição, que se ex
prime pelo distinctivo de Official. O Cesarismo do se
culo XVIII, precisando gastar todas as riquezas que lhe
| REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 407

ministravam , por que esse era o unico meio de gosar


e mostrar o seu poder, estendeu tambem um raio da
sua opulencia a estas curiosas reuniões, e o seu reco
nhecimento official tornou-as conservadoras da lingua,
da litteratura, da historia ee até dos costumes nacionaes .
As relações de Luiz xv com a Academia franceza, que
nos serviu de typo, explicam em toda a sua clareza a
transformação organica que a palavra official encerra .
Repete-se em Portugal egual phenomeno, postoque em
proporções menores ; mas ainda assim é bastante cu
rioso observar como o sôpro official fez florescer ou es
tiolar as Academias do seculo XVIII, que nos seus

esforços de reacção contra os desvarios dos Seiscentis


tas, trabalharam para fundar uma linguagem official,
uma poesia official e uma critica tambem official. O
seculo XVIII teve mais actividade porque teve um pen
samento; mas debalde se procura uma centelha mi.
nima d'isso a que se chama genio, unica força crea
dora das litteraturas.
O primeiro philologo do seculo XVIII, na Ordem
chronologica, propõe que se faça a reforma da lingua
portugueza de um modo official; no Antidoto da Lin
gua portugueza , publicado em 1710, Antonio de Mello
da Fonseca, propõe, como que insinuando a Dom João v:
« se alguma pessoa de authoridade falasse ao nosso mo
narcha sobre a reformação da nossa lingua, mui fa
cilmente se moveria o seu generoso animo a fazer -nos
tocante a este negocio algum favor tão grande que
parecesse dos maiores que um princepe pode fazer a
seus vassalos, e que por isso bem se podesse contar en
>

tre as acções mais memoraveis de sua mayestade, e as


mais dignas do amor paterno que nos deve mostrar, e
da summa propensão e benevolencia com que nos deve
favorecer.» (1) Tal era o criterio da pbilologia; assim
( 1) Ob. cit., p. 416 .
408 CAPITULO XIX

como se acreditava na sua formação mechanica, tam


bem se esperava a sua reforma official. O facto por
onde julgavam que a lingua portugueza precisava de
reforma, consistia em abolir as terminações em ão e
simplicar a orthographia. Diz Fonseca, no seu Antidoto;
que julgavam no seu tempo a lingua portugueza inferior
ácastelhana pela «grande frequencia com que usamos do
diphtongo ão, faz a nossa lingua muitosca e muito gros
seira . Isto confesso que nunca n’ella me pareceu bem ;
mas nem basta queeu a julgue inferior a alguma das
vulgares, nem cuido, como cuidain geralmente todos os
portuguezes, que é irremediavel este defeito . » No An
tidotopropõe a substituição das formas em ão pela de
rivação do nominativo latino ; assim substituía solidão
por solitude, mansidão por mansuetude, etc. Este livro é
bastante anecdotico e digressivo, mas sem vislumbre
de methodo scientifico. Vê-se que este livro foi provo
cado por um novo interesse que despertara a lingua
portugueza, depois de haverem terminado as guerras
da fronteira. Bluteau conta a seguinte anecdota, que
mostra a relação do interesse pela lingua com a inde.
pendencia nacional: « Nos principios da acclamação
de el -rei Dom João IV... reconheciam os portuguezes
aos Castelhanos que encontravam de noite, porque obri
gando -os a dizer area, diziam arena ; e esta única pa
lavra, diversamente pronunciada, os declarava extra
nhos, por não dizer inimigos. Logo por 1696 se inau
gurou na Livraria do Conde da Ericeira , D. Francisco
Xavier de Menezes, uma Academia, especie de succes
sora dos Generosos, que terminou em 1663, e tinha por
titulo Conferencias discretas, era composta da mais se
lecta aristocracia, que tinha a monomania da erudição
latina, e ali se reuniam aos domingos « a examinar e
resolver questões physicas e moraes; e pera maior ele
gancia da sua prosa e poesia nacional, decidia as
difficuldades que se propunham sobre a significação
REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 409
dos vocabulos da sua lingua. » (1 ) No meio de todos
os soprados discursos das Conferencias discretas, não
se levantou ninguem que sentisse a necessidade de um
Diccionario da linguaportugueza ; 0o apparecimento do
theatino D. Raphael Bluteau, inglez, fez com que o es
tudo da lingua portugueza se fizesse em quanto aos
vocabulos de uma maneira pratica , recolhendo-os. Diz
Bluteau : « No anno de 1668 cheguei a este reino, e
desde aquelle tempo, raro foi o dia em que me não
aproveitasse de alguma noticia da lingua portugueza. »
Bluteau com a sua candida probidade scientifica cita
os individuos de quem recebeu alvitres e subsidios ;
taes foram Antonio Luiz de Azevedo, Mendo de Foyos
Pereira, Antonio Rodrigues Costa ; D. Francisco de
Sousa, o Marquez de Alegrete, que o auxiliou em ter
mos de cavalleria; o Conde da Ericeira, que o coad
juvou nos additamentos ; o Conde de Assumar, que
mandava vir de Madrid as noticias de que carecia ;
José Soares da Silva, o licenciado Agostinho Gomes >
Guimarães, que desfez um dos embaraços economicos
da empreza; Ignacio de Carvalho e Sousa; o cosmo
grapho Manoel Pimentel; Luiz Peres, que tomou a sua
conta os vocabulos peregrinos; o desembargador Gre
gorio Fidalgo, os dois oratorianos Padre Antonio dos
Reis, e Padre Domingos Pereira ; os Padres D. José
Barbosa, D. Luiz de Lima, D. Jeronymo Contador de
Argoto e D. Manoel Caetano de Sousa « ministraram.
lhe varios cadernos com catalogos de palavras. » Para
os termos indianos usados pelos nossos classicos, auxi
liou - o o Padre Frei Affonso de Madre do Deos Guer
reiro; José Caetano, consultava as expressões e formas
oraes em Setubal, o advogado Manoel Tinoco de Ma
galhães, de Braga, mandava -lhe um Vocabulario de
nomes, pela maior parte ignorados. Todos estes homens
(1) Bluteau, vb . Academia . Vocab .
410 CAPITULO XIX

pertenciam a diversas provincias ; e tudo aquillo de


que tinham noticia e lhes passara desapercebido ou
que julgaram futil, provocava o maior interesse aos ou
vidos estrangeiros de Bluteau . Foi assim que se reu
niu essa riqueza incalculavel da linguagem oral no
Vocabulario portuguez. O conto do Girifalte cafaro,
escripto por Bluteau com os termos technicos de alta
volateria, é a prova mais clara da pasmosa riqueza do
technologismo popular. Nenhum diccionarista tornou a
fazer este processo á parte oral da lingua. Enquanto
Bluteau trabalhava, e imprimia o Vocabulario, foi
muito accusado da loucura de ser estrangeiro e pre
tender fazer um diccionario portuguez . Verney, nas
Cartas, a inda diz : « e alembrando -me eu de alguns,
que me disseram muito mal do grande serviço que fez
ao reino o Padre Bluteau, compondo o seu vocabula
rio ; ) etc. Mas o seculo XVIII só existia pela vida of
ficial, e foi por essa via que se conseguiu ter esse
grande monumento : « foi acabado no reinado de um
monarcha tão amante das lettras, que de seu motu
proprio e por essa ingenita munificencia lhe deu, para
sair á luz, preciosos alentos.» E torna a repetir Blu
teau : « Se com auxilios do real erario não acudira V.
M.7, no meio da carreira paraya a obra, e a suspensão
d'ella era por agora uma especie de suffdcação emorte
para a lingua portugueza. O trabalho do Vocabula
rio, apezar da sua importancia, é puramente material,
e por isso podia fazer-se sem principios puros de phi
lologia; as questões de que a lingua portugueza era
então objecto resultaram da absoluta ignorancia do
criterio historico da lingua.
Bluteau resume algumas d'essas questões : « Tam
bem houve quem com rustica simplicidade me disse,
que não merecia a lingua portugueza tanto trabalho.
A razão d'este disparate é, que na opinião da maior
parte dos estrangeiros, a lingua portugueza não é lin
REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 411

gua de per si, como é o francez, o italiano, etc., mas


lingua enxacôca, e corrupção do castelhano, como os
dialectos ou linguagens particulares das provincias,
que são corrupções das linguas, que se fala na côrte e
cabeça do reino... Sobre esta errada apprehensão te
nho tido grandes debates com estrangeiros de porte e
litteratos . A razão em que se fundam , é que muitos
vocabulos portuguezes são radicalmente castelhanos,
mas truncados e diminutos ; falta que (segundo elles
dizem) derrota a sua pouca derivação. Trazem por
exemplo umas dicções em que o portuguez tem uma
ou duas lettras de menos; v . g. Fogo, Morte, que em
castelhano é fuego, muerte; pé ,mão, que em castelhano
é pie, mano, etc. ) Bluteau refuta -os com argumentos
de egual espirito citando relox, mais extenso no portu
guez relogio, arbol, em arvore. Este phenomeno das
fórmas contrahidas prevalecendo em uma lingua, es
tava longe então de ser explicado pela vida historica
d'essa lingua, e pela continuidade com que se exer
cem as tres leis de alteração phonetica. Imaginava- se
então, por 1727,2 que a lingua portugueza era «casual
mente formada de varios fragmentos da lingua mou
risca e castelhana. » E em seguida Bluteau confessa :
« depois de ajuntar os materiaes para esta obra, eu
mesmo fiquei admirado e juntamente opprimido da
multidão de vocabulos que achei nos Autores antigos
e modernos. » Mas esta riqueza de vocabulos proveiu
em grande parte da indisciplina grammatical na deri
vação.

Fundação da Academia de Historia


portugueza

A monomania das Academias do seculo XVII, re


cebeu a vida official por Dom João v, na creação da
Academia de Historia . Foi esta corporação constituida
-
412 CAPITULO Xix

com os elementos da Academia dos Anonymos, á qual


pertenciam José do Couto Pestana, Frei Thomaz de
Sousa, Luiz Simões de Azevedo, o Dr. José Baptista
Henriques, e outros; de elementos das Conferencias
eruditas, que se celebraram pela primeira vez no pa
lacio do Cunhal das Bolas, em 19 de Fevereiro de 1696,
ás quaes pertenciam Bluteau, D. Manoel Caetano de
Sousa, o primeiro e segundo Marquez de Alegrete,
D. Francisco de Sousa, José de Faria, Luiz do Couto,
Felix, guarda-mór da Torre do Tombo, Manoel Go
mes Palma, Ignacio da Silva, e o Conde da Ericeira,
que n'esse tempo contava vinte tres annos ; as Conferen
cias duraram somente até ao tempoda guerra em 1703 .
Na Oração panegyrica do quarto Conde da Ericeira,
se lê : « Por emulação dos Scientes de França, ou com
o exemplo do Cardeal de Richelieu, que no anno de
1635 estabeleceu em Paris a Academia franceza,> com
tanta utilidade da sua nação, formou o Conde (da Eri
ceira) outra com o titulo de Portugueza, no seu pala
cio na Annunciada. ) (1) Fez-se uma sessão na côrte,
em dia de Sam João Evangelista em 1710, para ce
lebrar com um certame litterario os annos de Dom
João v. Foi o caso a pedido da rainha, o d'aqui re
sultou dignar -se Dom João v insuflar a vida official,
mandando que se regulamentasse a Academia portu
gueza, e tomou - a sob a sua protecção a 4 de Novem
bro de 1720. Foi a sua primeira sessão sob o titulo de
Academia real da Historia de Portugal, a 9 de De
zembro de 1720 ; e n'esse tempo constava já de cin
coenta membros, sendo quarenta da anterior e extra
official Academia portugueza, de 1719, e dez escolhi
dos pelo monarcha. Os trabalhos d'esta sumptuosa Aca
demia distinguem -se pelas suas opulentas edições in -fo
lio, adornadas de frontespicios em estylo lapidar e com
(1) Oraç., p. 8
REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 413

gravuras allegoricas á magnanimidade de D. João V. A


quantidade de volumes e regularidade das sessões da
Academia da Historia, só pelo seu aspecto exterior in
cutiriam o respeito de uma transformação intellectual
operada n'essa época, se o estylo da mais crassa ba
julação não viesse mostrar que toda aquella vegeta
ção é ficticia, feita ao calor falso do official. Apezar de
todos esses vicios do seculo essencialmente cesarista,
а essa corporação se deve a grande Bibliotheca lu
sitana , de Barbosa Machado, eas Memorias de Dom
João I, de José Soares da Silva. A erudição tem esse
caracter pedante e vagabundo, que Verney põe em re
levo no Verdadeiro methodo de Estudar, em 1747. O
Conde da Ericeira morreu em 1744 ; esta edade inte
ressa -nos para fixarmos a quantidade de pequenas Aca
demias litterarias que ainda existiam, eque lhe fi
zeram o seu panegyrico: « Os Academicos Escolhidos,
deram tambem já fiel testemunho da sua (gratidão )
em elegerem os mais suaves orgãos da eloquencia, que
com os harmoniosos Cysnes da Poesia immortalisaram !
o seu memoravel culto em dôr mutuamente sensivel e
racional. Por isto se faz ideia do estado em que ainda
>

estavam as Academias. A Academia dos Applicados,


era celebrada na cella do Padre Ceculano, que depois
foi Bispo de Beja ; a esta Academia pertenceu o Conde
« por commum accordo e sem escrupulo de inconfidente
n'aquelle tão conspicuo congresso ... » Tambem celebra
ram os seus encomios funebres à Academia dos Parti
culares e a Academia dos Unidos. Basta citar os titu
los de outras corporações d'este estofo, para notar
mos a direcção dos espiritos; taes eram a Problema
tica de Setubal, a Scalabitana, a Pastoril, Aventurei
ros de Santarem , Abandonados, Marianna, da Villa
de Bellas, Conformes Lisbonenses, Sertoria, Obsequio
sos de Sacavem , etc.
Esta alluvião de Academias era um resultado da
414 CAPITULO XIX

educação pedante e do estado de atrazo em que esta


vam as sciencias na Peninsula, para quem o seculo XVII,
essencialmente scientifico, passou incommunicavel e es
teril. Em 1727, o benedictino Dom Benito Jeronymo
Feyjó, espirito mediano mas de um seguro bom senso,
lançou a primeira bomba explosiva contra esta mole
inerte do auctoritarismo tradicional das escholas, com
o primeiro volume do seu Teatro critico. A principio
bem recebido, Feyjó suscitou em volta de si uma tem
pestade de malevolas impugnações, que o não pertur
baram na realisação do seu plano, atacando a esta
fada dialectica e metaphysica formal das escholas de
Hespanha, e defendendo o systema da inducção das
sciencias physicas, de Bacon . (1) Este movimento tam
bem se repercutiu em Portugal em 1747, com o livro
composto de Cartas sobre o Verdadeiro methodo de Es
tudar, processo critico da maior coragem e severidade,
feito por Luiz Antonio Verney.
Verney, e o Verdadeiro methodo de Estudar

E' realmente assombroso, como este escriptor sob


continuas ironias faz o exame de todos os vicios das
sciencias professadas em Portugal, e como sem ter o
criterio positivo se aproxima tanto d'elle ao propôr os
meios da reforma. Acatando exteriormente com todas
as formas de respeito os Jesuitas, Verney mostra-lhes
palpavelmente os erros da rotina nas disciplinas que
ensinavam . Póde-se dizer, que as grandes reformas da
instrucção publica em Portugal feitas pelo Marquez de
Pombal, em 1770, sairam do Verdadeiro methodo de
Estudar, que tambem ministrou os principaes argu
mentos para esse relatorio dos estragos dos Jesuitas
no ensino, que se intitula Compendio historico. O livro
(1) Ticknor, Hist. de la Literatura española , t.iv, p. 38.
REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 415

de Verney provocou uma extraordinaria reacção da


parte dos Jesuitas e seus partidarios, que sob varios
pseudonymos, Frei Arsenio da Piedade ee Padre Seve
rino de S. Modesto, atacarain Verney sob o pseudonymo
de Frade Barbadinho, com que escrevera as suas Car
tas. Esta polemica litteraria é um dos grandes factos
da historia do nosso seculo XVIII, pelo valor da ques
tão o pela abundancia de opusculos que especula
vam com o interesse da opinião publica. Mas as con
sequencias da critica inflexivel de Verney foram im
mediatas ( 1750 ); os Padres da Congregação do Ora
torio fortaleceram o movimento pondo em execução
algumas das ideias de Verney, pelos Padres Manoel
Monteiro e Antonio Pereira de Figueiredo. O systema
alvarístico usado no latim levou um golpe mortal, dado
pelo Novo Methodo do Padre Antonio Pereira, que
pela primeira vez mostrou que a syntaxe latina tinha
principios racionaes em que se fundava, e nãofiguras
de rhetorica. Sob o pseudonymo de Manoel Mendes
Moniz a paixão alvarística ainda se insurgiu, mas já
debalde, porque o trabalho de Verney prevaleceu com
o espirito official nas Instrucções regias de 1759 para
as escholas de latim , grego, hebraico e rhetorica .
A nova Academia intitulada Arcadia Ulyssipo.
nense , de que trataremos especialmente, tambem con
trahiu a obrigação de reformar a lingua e a poesia
portugueza. As suas questões philológicas não foram
além da- importancia quedeve merecer o archaismo
ou neologismo; a obra de Francisco José Freire, Re
flexões sobre a Lingua portugueza, não é mais do que
uma série de observações lexicologicas, segundo a au
ctoridade dos escriptores considerados mais classicos. Os
nossos grammaticos depois d'este horisonte, tinham ou
tro que era ainda mais predilecto , a orthographia ; pre
tendiam estabelecer uma transcripção, ignorando as
origens historicas das palavras. A lingua portugueza
416 CAPITULO XIX

era estudada somente nos monumentos escriptos. O


livro das Enfermidades da Lingua e arte em que en
sina a emudecer para a melhorar, publicado por Ma
nuel José de Paiva, em 1760, é o documento mais
vivo do desprezo que os philólogos do seculo XVIII ti
nham pela linguagem oral e popular. Este livro assi
gnado por Silverio Silvestre da Silveira e Silva, nas
ceu d'esse espirito de curiosidade excentrica, que é
frequentissimo no genio inglez ; os capitulos são desi
gnados por Visitas; e na maior parte é uma allegoria
moral sobre elementos philológicos :é uma grammatica
moralisada. Abre : « Em um leito de marfim , debaixo
de um céo de cortinas de escarlata, se reclina a lin
е
gua humana; e quem imagina, que com um tratamento
tão magnifico, a havia de achar enferma ? » Parte do
erro de considerar o neologismo popular camo impro
prio da lingua : « Entre as innumeraveis palavras que
a ignorancia tem introduzido, e em que a lingua tem
degenerado, escreverei as que agora me lembram , e
as indignas phrases de que o vulgo usa, infamando -as
por discretas, por loucas e por temerarias ; já porque
não tem recta deducção da linguagem ; já porque não
são attendidas pela prudencia ; já porque as não re
cebeu a indiscrição , já porque se usam nos periodos
descompostos; e já porque só d'ellas se trata nas pra
ticas deshonestas .» (1) É sobre o emprego d'estes neo
logismos, ou propriamente giria, continua : « vejo que
os bons entendimentos só as usam como quem d'ellas
está fazendo zombaria , e vejo que tanto se tem apo
derado das linguas, que até nos actos sérios, são por
discretos e idiotas inconsideradamente adoptadas. A
parte util do livro é esse catalogo em ordem alphabe
tica das palavras de giria do seculo XVIII, algumas das
quaes estão ainda em vigor, como antigualha, apani

(1) Enfermidades da lingua, p. 102.


REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 417

guado, e outras totalmente extinctas como, avançar


rages , aljamaça, etc. ( 1) Uma vez collocado o estudo
da lingua portugueza sob este falso criterio , a compo
sição do Diccionario portuguez, de Bacellar, tornou -se
uma consequencia logica. Bacellar fez um livro mo
numental pela insensatez do plano e das definições;
o plano era o dos diccionarios das linguas classicas,
que partem dos radicaes, e por isso inventou gracio
sissimos radicaes portuguezes ;; as suas definições tor
naram -se em grande parte anecdotas.
Pelo estado da Philosophia em Portugal, se pode
vêr qual seria o estado das sciencias, antes da re
forma de Pombal : reinava a Philosophica Conimbri
cense , chegando a um dogmatismo auctoritario de tal
força, que no Ritual theologico do Collegio das Ar
tes se determina : « Não se defenderão opiniões con
tra Logica conimbricense ; o quando muito, se poderá
pôr a questão problematicamente, mas poucas ve
zes . » (2 ) O Marquez de Pombal no seu combate con
tra os Jesuitas, atacou -os no reducto em que eram
mais fortes, no ensino; secularisou a instrucção publica,
conservando o regimen policial da Companhia. A re
forma da Universidade ficou no molde em que elle a
refundiu . Algumas Ordens religiosas secundaramo
energico ministro ; em 1776 o Superior Provincial dos
franciscanos reforma tambem o plano dos seus estu
dos sobre um largo exame do seu passado litterario,
e sobre o estado contemporaneo das sciencias . (3) Mas
a reforma do Marquez de Pombal teve o vicio do se
culo, foi meramente official; estavamos separados da
(1) Ib ., p . 104 a 153 .
(2) Ms. da Meza da Consciencia , ap . Cenaculo, Mem .
hist., t. II, p. 136.
( 3) Cenaculo, Parte iv das Disposições do Superior provin
çal, etc. O t . ir narra os progressos e estabelecimentos das le
tras.
27
418 CAPITULO XIX

civilisação europea e temiamos abraçar as novas scien


cias como estrangeirismo. O Intendente da policia, Ma
nique, tambem estendia a sua rede aos livros que su
speitava trazerem o contagio da Revolução franceza.
Não obstante este estado , o Duque de Lafões, que
viajára pelas côrtes inais illustradas da Europa, que
tratara com os grandes artistas e eruditos do seculo,
ao regressar a Portugal depois da ruina do Marquez,
tratou de fundar a Academia real das Sciencias, de
Lisboa, corporação que foi confirmadapor Aviso regio
de 24 de Dezembro de 1779 , celebrando-se a primeira
sessão a 16 de Janeiro de 1780. A Academia teve logo
oin mira formar o Diccionario official da lingua por
tugueza, e na commissão que se organisou para isso
em 28 de Junho de 1780, foi eleito director o afa
mado professor de rhetorica de Lisboa, Pedro José
da Fonseca. Este homem, posto que victima da er
rada disciplina que ensinava, era um valente traba
lhador ; elle, juncto com Agostinho José da Costa de
Macedo e Bartholomeu Ignacio Jorgo, deram prompto
em menos de quatro annos o grande volume do Dic
cionario da Academia , que comprehende a letra A.
Os seus collaboradores cegaram sobre o trabalho, e
Pedro José da Fonseca ficou doente para todo o resto
da vida. O Diccionario é immensamente rico em au
ctoridades, mas falta-lhe o elemento historico , sem
o qual não é possivel a etymologia. As Memorias da
Academia correspondem a um periodo de enthusiasmo
e fervor scientifico, que por algum tempo prevaleceu
sobre o caracter official da instituição ; por essas Me
morias é ainda conhecida na Europa. Ai se acham
bastantes estudos philologicos sobre a lingua portu
gueza , pelo Padre Antonio Pereira de Figueiredo, por
Francisco Dias Gomes e Antonio das Neves Pereira;
mas a ausencia completa do criterio comparativo le
vava-os a não poderem desembaraçar-se de um certo
U
REACÇÃO A FAVOR DA LINGUA 419

numero de questões frívolas que lhes consummiam a


actividade. À Grammatica philosophica, de Jeronymo
Soares Barbosa, foi a primeira consequencia da Gram
matica geral da philosophia de Condillac. D'ella saí
ram os resumos que ainda prevalecem no ensino .
CAPITULO XX

A Arcadia Ulyssiponense, - Dissidentes da Arcadia


e á Nova Arcadia.

Estado da poesia portugueza antes da fundação da Arcadia ;


exame feito por Verney . - Influencia da Arcadia de Roma
sobre a Arcadia Ulyssiponense. — Primeira fundação em 1756,
e dissidenciacom D. Joaquim Bernardes .--Inauguração defi
nitiva em 1757.-
Organisação da Arcadia; catalogo dos seus
socios. - Garção, Diniz , Quita e Manoel de Figueiredo. - 08
Dissidentes da Arcadia : Nicolao Tolentino de Almeida ,
Francisco Manoel do Nascimento . A nova Arcadia ou Aca
demias de Bellas Lettras : Bocage e José Agostinho de Ma.
cedo, caracter litterario de cada um . - Falta de sentimento
nacional, e desconhecimento completo da tradição.-- A Ar
cadia Ultramarina : José Basilio da Gama e Frei José de
Santa Rita Durão ; o Uruguay e Caramuru inspiraram - se
de um elemento tradicional. -O lyrismo brazileiro : as Mo
dinhas são um resto das antigas Serranilhas, portuguezas.
Estado do Theatro : a Opera.

Estado da Poesia antes da Arcadia

Nenhum quadro pode ser traçado com mais ver


dade ácerca dos poetas portuguezes, no meado do se
culo XVIII, do que com as palavras de Verney. Ca
racterisa-os com um juizo seguro: « quando escrevem
dez versos lhe chamam Decima; e quando unem qua
torze chamam-lhe Soneto, e assim das mais composi
ções. De sorte que compõem antes de saberem o que
devem dizer e como o devem dizer... Geralmente en
tendem que o compôr bem consiste em dizer bem sub
tilezas, e inventar cousas que a ninguem occorressem ;
e com esta ideia produzem partos verdadeiramente
monstruosos, o que elles mesmos, quando os examinam
sem calor, desapprovam . Os mestres de Rhetorica, em
cujas escholas é que se faz algum poema... envergo
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 421

nham -se de poetar em portuguez, e têm por peccado


mortal ou cousa pouco decorosa fazel-o na dita lin
gua . »(1) Caracterisando o falso engenho, Verney vae
determinando quaes foram as formas mais predilectas
da primeira metade do seculo XVIII : « o falso engenho
consiste na semelhança de algumas letras, como os
Anagrammas, Chronogrammas, etc., ás vezes na se
melhança de algumas syllabas, como os Eccos, e al
guns consoantesinsulsos; outras vezes na semelhança
de algumas palavras, como os Equivocos ; finalmente,
consiste tambem em composições inteiras, que appa
recem com differentes figuras ou pintura ...» ( p. 179.)
« aquellas ridiculas composições que tanto reinaram...
no fim do seculo XVI a metade do seculo XVII, e des
terradas dos paizes mais cultos, ainda hoje se conser
vam em Portugal...» Verney attribue a Bluteau a in
troducção dos poemas pintados; maseste systema dos
versos pyramidaes, já se acha em D. Francisco Ma
noel, louvando a Academia dos Generosos. Os poemas
lipogrammaticos, nos quaes não se empregava uma
dada letra do alphabeto, estavam tambem em moda,
como diz Verney: « Eu vi uma composição moderna,
que seguia o mesmo methodo .» « Mas não se pode sof
frer que homens modernos, e que mostraram doutrina
em muitas cousas, caissem n'esta rapaziada, condem
navel ainda em um rapaz; e que fizessem composições,
expressamente para mostrar que sabiam fazer Écco.
Eu vi Eccos que respondiam em latim e outras lin
guas, e tive compaixão com o poeta que se cansara
com aquillo... Quando eu li algumas das Jornadas de
Joronymo Bahia, tive compaixão do dito religioso (es
creve em Equivocos) e assentei que a jornada que de
via fazer era da sua caza para o hospital. Esta sorte
de poetas são doidos, ainda que não furiosos,... eu
(1) Verdadeiro methodo de Estudar, I, 177 .
422 CAPITULO XX

ainda conheço quem o pratica, e quando se lhe offe


rece occasião de dizer um Equivocosinho ,... estes cha
mados doutos, frades, seculares, sacerdotes e estudan
tes, etc. » (p. 182.) Fallando do uso dos Anagrammas
revela : « Acham-se além d'isso mestres, que fomentam
isto, dando premios aos rapazes, que nas escholas ou
vindo alguma palavra, descobrem n'ella um anagramma
puro. Seria isto nada se se contivesse dentro das es
cholas ; mas o máo é que sae para fóra, o se introduz
nos discursos graves... Os Acrosticos, são primos coir
mãos dos Anagrammas;... Acham -se engenhos tão ma
riolas, tão infatigaveis, que no mesmo Soneto poem
tres vezes o mesmo nome, duas nas extremidades o
huma no meio . » « Mais vulgar é em Portugal outra
sorte de engenho falso a que chamam Consoantes for.
sados. Quando querem experimentar um homem se
tem engenho, dam -lhe consoantes estramboticos para
que complete os vorsos, e como isto seja o mesmo que
obrigar um homem a que diga despropositos, já se
sabe que saem composições indignas de se verem . )
( 185.) «Tambem os Laberyntos de Letras são mui mi
mosos em Portugal... Outros tem por cousa grande
fazer Labyrintos de quartetos, dispostos em certa fi
gura, de sorte que selêem por todas as partes, e sem
pre conservam a mesma consonancia. Outros fazem
versos que se lêem para diante e para traz ; de uma
parte fazem um sentido, de outra, outro contrario;
empregam n'isto tempo consideravel, não só em fa
zel-o, mas em decifral-o; e chamam a isto, emprego de
sublime engenho» (p. 186.) Tanto o Labiryntho como
as composições que não tem a mesma palavra do pri.
meiro verso, acham -se na poesia portugueza do fim do
.
seculo XVI, em Fernão Alvares d'Oriente e Balthazar
Estaço : «Egualmente é estimadada n'este paiz, uma
especie de Sonetos, em que se repete a mesma palavra
em todos os versos... Podia citar mil exemplos, mas
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 423

nenhum melhor que o Soneto que se attribue ao Cha


gas, e começa :

O tempo já de si me pede conta . »


( p. 187.)

Taes eram as formas da poesia portugucza , na


primeira metade do seculo xviii . Verney escrevia em
1747. Como não havia liberdade intellectual , nem re
ligiosa nem politica , deviam prevalecer mais as com
posições que exigissem pachorra e que fossem inspi
radas pelo sentimento geral que reinava , a bajulação.

A Arcadia Ulyssiponense

A Arcadia de Lisboa , surgiu no meio d'esta de


pravação geral do gosto, para restabelecer a pureza
da lingua e dos bons modelos da poesia . A Arcadia
nascia: «no tempo em que no reino dominava o calor
das Academias de Bellas Lettas, das quaes umas fo
ram acabadas pela critica ou invectivas mal soffri
das. ) (1 ) A Arcadia trazia o vicio organico d'estas
corporações; modelou -se sobre o typo da Arcadia de
Roma, à qual pertenceram , Dom João V, com o nome
de Albano, o Conde da Ericeira com o nome de Or.
manio Palisco, e Verney, com o nome de Verenio Or
giano. O seu apparecimento em 1756, mostra a aspi
2

ração que tinha, a que o Marquez do Pombal, preoc


cupado na restauração material e intellectual de Lis
boa, depois do terremoto, lhe garantisse a existencia
official. A vida da Arcadia de Lisboa foi rachitica, e
extinguiu-se insensivelmente, porque nunca chegou a
o vigor de instituição official. Foi inaugurada em
(1) Cenaculo, Mem . hist. , t. II, 180.
424 CAPITULO XX

11 de Março do 1756 , entre Theotonio Gomes de Car


valho, Antonio Diniz da Cruz e Silva, e Manoel Ni
coláo Esteves Negrão, altos funccionarios publicos,
para quem a poesia era um passatempo . Nas obras de
Manoel de Figueiredo celebra -se a união dos Arcades
em 1757, mas este facto explica-seporque na primeira
inauguração entrou um elemento dissidente, Dom Joa
quim Bernardes, sobrinho do Padre Manoel Bernar
des, o auctor anonymo da satyra El Duente de Ma
drid, que não queria que o seiscentismo fosse con
demnado na nova Academia . Foi por isso que só em
1757 é que teve principio a vida definitiva da Ar
cadia. As sessões publicas eram no Mosteiro dos Pa
dres das Necessidades, ou na Saia da Junta do Com
mercio .
a ) Organisação da Arcadia . - Eis uma reconstrucção
dos seus Estatutos organisados por Antonio Diniz da
Costa e Silva : 1.° Uma sessão particular cada mez.
:

2.º Duas sessões publicas durante o anno, não con


tando as extraordinarias. 3.° Os cargos da Academia
constavam de Presidente, dois Arbitros, dois Censores
temporarios, eleitos á sorte d'entre os membros.
Renovava -se em cada conferencia só o segundo
Censor, seguindo os outros pela graduação apontada,
até ao cargo de Presidente. 4.° Só eram perpetuos os
logares de Secretario, Vice -Secretario e Guarda. 5.º
Podiam ser admittidos como socios da Arcadia , todos
os individuos que pareciam capazes de a illustrar. 6.°
A admissão de qualquer socio tinha logar por escru
tinio secreto e unanimidade de votos. 7.° Todos os Ar
cades presentes tinham obrigação de apresentarem em
cada sessão uma peça em prosa ou verso, escripta em
latim , francez, hespanhol ou italiano; sendo reputada
de mais primor e melhor recebida a que fosse escripta
em portuguez. 8.° As obras, depois de lidas na Aca
demia, são distribuidas pelos Secretarios a alguns dos
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 425

Censores, dando em outra conferencia o seu parecer


por escripto sobre o merito da composição. 9.° Era
ouvida a defesa do auctor, sendo arguido, e a causa
decidida pelo Presidente e Arbitros, obrigando o socio
a fazer as emendas que lhe indicarem , na presença da
Sociedade. 10.º As Conferencias eram secretas, admit
tidas somente a ellas as pessoas convidadas pelo Se
cretario e introduzidas pelo Guarda. 11.0 O Livro dos
Registos dos Pareceres dados, e o Livro das Resolu
ções tomadas em casos controversos só podiam ser li
dos pelos Arcades. 12.° Qualquer socio que revelasse
o conteudo do Livro dos Pareceres, ficava inteira
mente excluido da Sociedade . 13. A divisa da Arca
dia consistia em um meio braço armado de um podão,
com a lenda : Truncat inutilia. 14.° Esta empresa
conservava -se guardada na sala das conferencias, junto
com o sello do Secretario . 15.° ( sello do Secretario
era egual á empresa, tendo a mais na sua circumfe
rencia Sigillum Maenalo Pastorum . 16.° Quando os
Arcades se reuniam em conferencia, usavam por di
visa um Lyrio, figurando allegoricamente Nossa Se
nhora . 17.0 Sob o titulo da Conceição, a Virgem Ma
ria era a protectora da Arcadia. 18. O local aonde
se celebravam as Conferencias recebeu o nome de
Monte Menalo. 19.0 Os Socios eram obrigados a ado
ptarem um nome e sobrenome de um dos muitos pas
tores celebrados pelas musas gregas e romanas. .

b ) Catalogo dos Socios da Arcadia .--Como vemos


pela artigo 12 dos Estatutos da Arcadia , são poucas
as noticias que restam d'esta instituição litteraria ; o
numero dos seus socios foi longo tempo desconhecido,
e só por um longo exame das rúbricas das poesias
dos árcades mais notaveis, chegamos a apurar a lista
de quarenta dos seus membros. Taes são:
Antonio Gomes de Carvalho, ( Terce Minteu, ou
Thelgon ) Antonio Diniz da Cruz e Silva, ( Elpino
426 CAPITULO XX

Nonacriense) Manoel Nicoláo Esteves Negrão, (Al


meno ) Pedro Antonio Corrêa Garção, ( Corydon Ery
mantheo ) Manoel de Figueiredo, ( Lycidas Cynthio)
Domingos dos Reis Quita, ( Alcino Micenio Claudio
Manoel da Costa, (Glauceste Saturnio ) Thomaz An
tonio Gonzaga, ( Dirceu ) Frei José do Coração de Je
sus, ( Almeno Sincero ) Francisco José Freire, ( Can
dido Lusitano) Padre José Dias Pereira, ( Silvano
Ericinio) Manoel Pereira de Faria , ( Silvio Aquace
lano ) Padre José Theotonio de Canuto Forjó, ( Leuca
cio Fido) José Gonçalves de Moraes, ( Fido Leucacio)
Silvestre Gonçalvesda Silva Moraes, ( Siveno Cario)
José Xavier de Valladares e Sousa, ( Sincero Jerabri
cense) José Caetano de Mesquita, (Metalesio Klasme
nio) Luiz Corrêa do Amaral França, (Melizeu Cyle
nio Francisco de Salles, ( Titiro Partiniense ) Marian
no Berganzoni Martelli, (Mirtillo Felsineo Ignacio
Garcez Ferreira , (Gelmedo) Nicolau de Sousa, (Myr
thilo) Damião José Saraiva, (Dàmeta ) José Rodrigues
de Andrade, (Montano) Pedro Caetano, Melibeu ) Ma
noel José Pereira, ( Albano Frei Alexandre da Silva,
( Silvio ) Dr. Ignacio Tamagnini, ( Alceste ) Feliciano
Alves da Costa, ( Palemo, o Nemoroso Cyllenio) José
2

Antonio de Brito, (Olino) D. Vicente de Sousa , (Mir


tillo Padre Caetano Innocencio, ( Melibeu ) João Xa
vier de Mattos, (Albano Erythreo) Joaquim José Sa
bino, ( Termindo Sepilio ) Miguel Tiberio Piedgache
Brandão Ivo (*) os seguintes : Ismeno "Cisalpino,
Silvandro , Albano Melino e Amintas, cujos nomes
ainda se ignoram . N'esta lista tambem se inclue D.
Joaquim Bernardes, separado logo em 1757, e por ven
tura Domingos Maximiniano Torres, ( Alfeno Cynthio)
nos ultimos dias da Arcadia .
D'entre esta lista de socios, mui poucos são di
gnos de memoria historica ; cabe o primeiro logar a
Garção, pelo seu talento correcto, a Antonio Diniz da
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 427

Cruz e Silva, pela felicidade com que soube crear o


o genero heroi-comico; depois a Manoel de Figueiredo,
pela coragem e extraordinaria dedicação pela restau
ração do theatro portuguez ; a Quita, pelo delicado
lyrismo das suas eclogas e drama pastoral Lycoris; a
Gonzaga, pelas admiraveis lyras ; e a Francisco José
Freire , pela sua actividade de traductor. A Arcadia
não produziu mais ; tinha em vista restaurar a lingua
portugueza, a poesia dramatica, combater o seiscen
tismo e restaurar a imitação da antiguidade ; mas de
todo este programma só conseguiu arreigar mais a
rhetorica . Em vez de se inspirar nas fontes tradi
cionaes da nação, os motivos das suas conferencias
publicas foram o restabelecimento ou OS annos de
D. José I, a inauguração da Estatua equestre, os fes
tejos pela graça do titulo de Conde de Oeiras dado a
Sebastião José de Carvalho, os anniversarios dos
Principes, ou a Paz geral, etc. Estes assumptos não
podiam inspirar obra litteraria ; produziram declama
ções servis, que tornaram a poesia do seculo XVIII UM
meio de pedir esmola em verso, e fizeram dos poetas
uma especie de bobos das mezas dos grandes, ou dos.
festejos publicos .
Alguns poetas da Arcadia foram perseguidos pelo
Marquez de Pombal; a academia perdeu então as es
peranças da estabilidade official, e em 20 de Janeiro
de 1774 celebrou a ultima sessåo de que ha noticia,
existinguindo-se insensivelmente, sem deixar falta,
sem fazer ruido . Só muito tarde se tornou a fallar
n'ella, não pelo que fez, mas pela aspiração que teve
em vista, que nunca realisou, por não ter encontrado
um genio .
c ) Garção, Diniz , Quíta e Manoel de Figueiredo.-
O homem de mais gosto litterario o de mais auctori
dade na Arcadia, é Garção, nascido em Lisboa a 29
de Abril de 1724 ; éstudou humanidades nas escholas
428 CAPITULO XX

da Companhia, e cursou a Universidade de Coimbra,


como se vê pela ode : Pois sabes que nas margens do
Mondego, etc. A perda de seu pae Filippe Corrêa da
Silva, por occasião do terremoto de 1755, o obrigou ą
abandonar a sua direcção para a magistratura, e a
acceitar o ser escrivão da Receita da moza do Consu
lado geral da saida. O Marquez de Pombal, sabendo
do seu talento teve em vista empregal- o na Secretaria
do seu Ministerio ; mas Garção, não era habil para
servir junto a altos personagens, porque lhe era im
possivel observar um acto injusto sem o condemnar
immediatamente. O Marquez conservou um odio occulto
a Garção ; e quando o poeta tratou a unica tradição
nacional que a Arcadia conheceu; a de ter o Infante
Dom Pedro regeitado uma Estatua que Lisboa lhe que
ria levantar, o Marquez considerou aquillo allusivo ao
facto de ter mandado collocar o seu medalhão no pe
destal da Estatua equestre, e sob um pretexto futil de
uma carta em inglez, mandou encarcerar Garção no
Limoeiro, na noite de 9 de Abril de 1771. Em uma
nota de Frei Vicente Salgado, se lê:: «Este Auctormor
reu prezo no Limoeiro em 1771 (aliás 1772) e era o
que fez as ultimas Gazetas Portuguezas antes da guerra
de 17... com Castella, em que se mandaram suspen
der. » (1) O estado de miseria em que ficaram sua mu
lher e filhos, affligiu de tal forma a Garção, sem es
perança, que morreu na manhã do dia 10 de Novem
bro de 1772 ; o Marquez de Pombal não queria tanto
para saciar-se, mas logo que soube da morte do poeta
n'essa mesma data de 10 de Novembro mandou lavrar
por José de Seabra da Silva o Alvará de soltura para
Garção, que n'esse mesmo dia tinha de ser sepultado
na egreja de Sam Martinho. Estas particularidades

( 1) Bibliotheca da Academia, Ms. 'n.º 35 (Gab. 5, Est. 8.)


A ARCADIA ULYSSIPONENSE 429

tornam o typo de Garção bastante sympathico, e a


pureza da sua vida reflecte- se nos seus versos; os So
netos, postoque familiares, ad sodales, valem como
traços pittorescos de uma bella individualidade ; as
Odes e Epistolas, têm um tom sentencioso e hora
ciano de quem realmente soffreu ;as suas duas come
dias em verso endecasyllabo, o Theatro novo e a As
semblêa, são satyras excellentes sobre os costumes de
Lisboa, aonde a monomania das representações particu
lares e o fervor das reuniões e chás de familia, eram
consequencia de uma sociabilidade ficticia, que não
estava nos habitos portuguezes, e se implantava como
moda condemnada pelos nomes de peraltice ee moder
nismo. Uma das composições mais bellas da poesia
portugueza d'este seculo é a Cantata de Dido; a per
feição da fórma é excedidapela comprehensão do es
pirito da arte grega, que elle revela no pathetico re
ligioso, extranho à paixão, mas communicando ter
ror ; é um quadro em que cada situação, cada grada
ção está submettida a uma unidade intima que as do
mina . Ha ali um estudo perfeito sobre a acção, uma
certa serenidade ao narral-a, e pode-se dizer , que pela
primeira vez se fez do sentimento religioso pagão , em
Portugal, a luz do quadro, e não essas machinas do
maravilhoso, de que a Arcadia tanto abusou.
Depois de Garção, é Antonio Diniz da Cruz e
Silva ö árcade de mais talento ; as suas Odes pidan
ricas são uma falsificação artistica, e como taes, em
2

bora bem metrificadas, não passam de uma reproduc


ção morta d'aquillo que era vivo nos costumes gre
gos; as suas lyricas, meramente pessoaes, são martel
ladas n'esse typo combinado entre a admiração deHo
racio e a poesia franceza desde Malherbe até João
Baptista Rousseau; interessam só pelo lado historico
da Arcadia. Mas o seu conhecimento da litteratura
franceza tornou -se para elle fecundo na imitação do
430 CAPITULO XX

Lutrin de Boileau, que elle em certos pontos excedeu


no Hyssope. Em um seculo de convencionaes respei
tos, de servilismo, de bajulação da parte dos que de
viam levantar a opinião publica, a composição de Hys
sope era um arrojo que só devia, no regimen de então,
ser castigado nas galés; o Hyssope era a longa histo
ria anecdotica do conflicto de precedencias entre o
Bispo d'Elvas e o seu Deão, sobre se competia aquelle
a honra de lhe ser entregue áá porta da Sé, e se assis
tia a este a obrigação de lhe entregar o Hyssope ali .
Diniz communicou a este poema uma certa graça, que
só se deriva de quem assistiu ao grotesco da realidade.
Diniz estava na occasião do conflicto em Elvas, doente
dos olhos e forçado á escuridade e inercia, em casa do
seu amigo Falcato ; foi n'estas condições e sob as im
pressões anecdoticas que repetiam os amigos em volta
d'elle, que o Hyssope foi escripto. Uma das muitas co
pias do poema chegou até ao Marquez de Pombal,
que o lou com interesse, porque lhe servia á sua causa :
ridicularisava as theses e sciencia claustral, os advo
gados boçaos, etc. Pombal soube aproveitar-se dos ta
lentos de Diniz como jurisconsulto.
Domingos dos Reis Quita , não foi menos infeliz do
que Garção; nascido em 1728 , de um commerciante,
que falliu em 1735, época em que a fallencia era morte
civil e por isso teve de ausentar-se de Portugal, Quita
viu-se forçado logo aos treze annos de edade a susten
tar sua mãe e mais seis irmãos mais novos. Aprendeu
o officio de cabelleireiro, n'essa época dos penteados
phantasticos, verdadeira profissão artistica, na qual
alguns, como Leonardo, chegavam a ter intimidade
com as testas coroadas. A manifestação do talento de
Quita, n'estas circumstancias desesperadas, é real
mente um assombro ; a sua natureza submissa e timo
rata levou-o para essa ordem de composições tenues,
como Eclogas; póde-se dizer, que elle é o legitimo con
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 431

tinuador de Francisco Rodrigues Lobo. Debalde ten


tou ser criado grave de um dos Meninos de Palhavam,
ou de alcançar a protecção do Marquez de Pombal. A
sua profissão não deixou que os seus talentos o elevas
sem ; o trabalho manual era entre nós considerado
comodegradante. A sua tragedia Segunda Castro, que
mal foi apreciada, é hoje popularissima no plagiato que
d'ella fez na Nova Castro João Baptista Gomes. De
pois de uma longa lucta com a miseria, morreu a 26
de Agosto de 1770 .
O typo verdadeiramente heroico da Arcadia , é
Manoel de Figueiredo, que apezar de conhecer a in
ferioridade do seu talento, á força de meditação e de
estudo procurou abrir o verdadeiro caminho da Litte
ratura dramatica, viciada pelas Operas de Antonio
José, e pelas comedias plagiadas do theatro hespanhol,
francez e italiano por Nicoláo Luiz . Nasceu Manoel
de Figueiredo em Lisboa, em 1725, o vendo repre
sentar em 1733 a celebre companhia de Antonio Ro
drigues é que se lhe revelou a paixão pelo thea
tro, longo tempo guerreada pelos seus protectores. Em
consequencia de um despacho, esteve sete annos enı
Madrid, o que influiu tambem na sua comprehensão
da scena. A sua actividade começou muito tarde, o
foi isto que não o deixou dar forma aos bellos pensa
mentos dramaticos ; as suas obras são consideradas
por Garrett « mina tão rica e fertil para qualquer me
diano talento dramatico. Algumas d'essas peças com
bem pouco trabalho, com um dialogo mais vivo, uin
estylo mais animado, fariam excellentes comedias. >»
.

A sua tragedia Inez de Castro , é a unica que apre


senta uma intriga racional fundada em paixões natu
raes, como a de D. Affonso IV receiar que os filhos da
amante do principe venham a privar do throno seu
neto Fernando, pela grande ascendente que Inez exerce
em Pedro. Figueiredo deixou incompletas as suas obras,
432 CAPITULO XX

as quaes receberam a luz publica pelo extraordinario


affecto de seu irmão Francisco Coelho, que depois de
ter terminado a empresa da sua amisade, achou tam
bem acabado o seu porquê na vida. Manoel de Figuei
redo não exerceu acção nem sobre o publico, nem so
bre a litteratura . Se o theatro portuguez trabalhasse
sobre a sua propria tradição, era indispensavel partir
do estudo de Manoel de Figueiredo, que com relação
a Garrett se deve considerar uma especie de Ennio .
Os Dissidentes da Arcadia

Entre varias poesias dos Arcades allude -se frequen


tes vezes ás longas luctas e malevolencias que recebia
esta instituição poetica. De facto, no periodo da activi
dade da Arcadia , florescem alguns poetas distinctos,
que não foram convidados para aquelle gremio, e que,
e

sendo especialmente satyricos não podiam deixar de


desaggravar a sua vaidade. Entre 1757 e 1774 flores
cem Francisco Manoel do Nascimento, Nicolao Tolen
tino, Joaquim José Sabino, Antonio Lobo de Carva
lho, Placido de Andrade Barroco, Dr. Jeronymo Es
toquete, Domingos Pires Bandeira, e outros, que ap
parecem extranhos á Arcadia . Póde considerar-se que
era d'estes que vinha o ataque, e podemos agrupal-os
como Dissidentes da Arcadia . Nicolao Tolentino de
Almeida é o poeta que melhor representa qual era o
ideal da poesia no seculo XVIII: não fez mais do que
bajular os principes e os fidalgos que tinham influen
cia no paço, e cada verso é um peditorio importuno de
esmola. Póde-se applicar a elle, o que Beckford disse
do povo portuguez n'essa época, representando -o como
o mais obstinado em pedir. E assim como muitos men
digos para melhor conseguirem a esmola fazem esga
res grotescos, Tolentino affectava graça para poder
ser lido por aquelles que muito bem sabiam o que pe
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 433

dia. Sob este ponto de vista, Tolentino é nacional ,


como o caracterisava Bouterwek. Tolentino nasceu em
Lisboa, em 1741 ; residiu em Coimbra durante sete
annos, e ali sem auxilio paterno viveu essa vida va
gabunda da lebre ; (parasitismo, na giria academica) con
trahiu relações importantes que lhe valeram bastante
em Lisboa, e adquiriu essa liberdade de critica para
retratar os costumes do seu tempo ; viveu algum tempo
na intimidade de outro poeta , hoje pouco conhecido,
Domingos Pires Monteiro Bandeira, até que á força de
rogos conseguiu ser empregado em uma secretaria do
estado por alvará de 21 de Junho de 1781, penduran
do assim a terrivel férula de professor de rhetorica
que
se o ist
guir encommodava.
e Tolentino foi poeta só para con
; porque Dom Diogo de Noronha, Conde
de Villa Verde, em uma doença que teve, fazia que
Tolentino lhe lêsse á cabeceira as Cartas de Sá de
Miranda em quintilhas, e as redondilhas de Bernar
dim Ribeiro, para o lisongear estudou essa bella poe
sia portugueza, mas para a aproveitar nos seus Me
moriaes mendicantes: As proveitosas lições dos nos
sos dois portuguezes Bernardim Ribeiro e Francisco
de Sá de Miranda, com que v. exc.a fazia uteis ao
seu espirito aquellas horas que a natureza, e muito
mais a molestia lhe tinham destinado ao descanso do
corpo, crearam insensivelmente no meu coração amor
a esta especie de poesia ... V. exc.a me fazia a honra
de mandar que lhe lesse estes dois preciosos livros ;
e а musa que preside as minhas trovas , affeita
áquella lição, rimou em quintilhas, e carregou de mora
2

lidades, talvėz intempestivas, o memorial que ponho nas


mãos de V. exc.a com muito respeito e com muitas
esperanças. » Isto nos explica a superioridade das quin
tilhas de Tolentino ; a vontade de lisongear o aulico
aproximou-o insensivelmente da fonte tradicional qui
28
434 CAPITULO XX

nhentista, e foi justamente nas quintilhas que se tor


nou inimitavel. Nas suas extensas relações com os fi
dalgos a cujos mezas comia, e em cujas seges andava,
privado de dignidade e de ideal, Tolentino tornou-se
distincto na poesia obscena com que os lisongeava. A
soltura do tempo exigia estas baixezas, em que tam
bem viveu Antonio Lobo de Carvalho, notavel pela
independencia audaciosa de caracter que lhe complicou
a vida. Como mestre de rhetorica, Ťolentino é seve
rissimo na metrificação, e até certo ponto a sua indif
ferença pelas obras do pensamento deixa perceber de
baixo das regras que executa uma certa espontanei
dade . Morreu em 1811 tendo assistido aos grandes
successos do seculo, qui não comprehendeu.
Francisco Manoel do Nascimento, nascido em Lis
boa a 21 de Dezembro de 1734, o ordenado de pres-.
bytero em 1754, no meio do movimento litterario da
Arcadia ficou dissidente, por ventura pelas suas ideias
mais avançadas do que as que reinavam n'essa corpora
ção, e queo fizeram adherirá philosophia dos encyclope
distas. Foi seu professor de latinidade o poeta Anto
nio Felix Mendes, que a 3 de Julho de 1778 o accu
sou no Santo Officio, e tambem aos seus companheiros
Jeronymo Estoquete e Manoel Coelho de Lima, de
« que todos estes trez sujeitos estavam exercitados e
instruidos na lição dos Livros prohibidos, digo de Li
vros de Philosophias modernas, que... affectam seguir
sómente a rasão natural. » No depoimento do velho
mestre de latinidade, que então contava setenta annos,
descobre -se que em volta de Francisco Manoel, que era
estimado emmuito pelo Bispo Cenaculo, se reunia uma
pequena Academia poetica : « é geralmente reputado
por homem douto, e que por esta rasão é muito pro
curado por varias pessoas para conferirem com elle al
gumas obras que compõem principalmente em verso ...
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 435

e entre outras pessoas é frequentemente visitado por


alguns religiosos do Convento de Jesus, maiormente
por um religioso por sobrenome Barroco ... ) ( 1)
Por este tempo era tambem accusado José Anas
tacio da Cunha, pelas suas reuniões com João Paula
Bezerra, Dr. José Francisco Leal, lente de medicina,
filhos do Morgado de Matheus, D. Luiz de Sousa, o
Padre Apollinario José Vieira da Silva, o Dr. Luiz
Cechi, lente de anatomia , por apraticarem publica
mente sobre poesia , eloquencia e bellas letras) e por
que tinha o Candido, o Diccionario philosophico , de
Voltaire, as obras de Hobbes e Helvetius, o Bon Sens,
· do Cura Meslier, etc. (2) A 22 de Junho de 1778 co
meçara a accusação secreta de Francisco Manoel, o
logo a 13 de Julho já elle seguia para fora do reino,
tendo conseguido evadir-se no momento da prisão pela
sua admiravel presença de espirito. Viveu em França
o ultimo e maior tempo da sua vida, occupando-se do
estudo litterario como um lenitivo do seu desterro vo
luntario; foi ali que escreveu a maior parte dos seus
versos, que entravam em Portugal e aonde exerceram
uma certa influencia no estudo da lingua portugueza.
Uma exclusiva imitação de Horacio transpira em to
das as suas poesias, escriptas com naturalidade e cor
recção, mas sem o menor enthusiasmo . Francisco Ma
noel do Nascimento, mais conhecido pelo nome de Fi
linto Elysio, rompeu abertamente com o uso da rima ;
isto tornou os seus versos pouco lidos pelo vulgo, mas
muito estudados pelo grupo denominado Filintista, ao
qual pertence o insulano Bento Luiz Vianna . Filinto
assistiu à grande renovação litteraria do Romantismo
em França, e com o espirito de imitação que domina
todos os aferrados aos modelos classicos, experimen

(1) Torre do Tombo, Processos do Santo Officio, n.º 14048 .


( 2) Ibid.
2:
436 CAPITULO XX

tou traduzir para portuguez algumas das obras nota


veis d'essa revolução do gosto ; poz em versos asperos,
mais cheios das mais incalculaveis riquezas de con
strucção, o poema que Wieland compoz sob o titulo de
Oberon , tirado da velha gesta franceza de Huon de
Bordeaux ; traduziu os Martyres de Chateaubriand, e
pode-se dizer, que a sua auctoridade se deve a adhe
são dos novos espiritos criados sob o regimem arcadico
a essa nova comprehensão da Arte. Os versos de Filinto
não são bellos, mas é indispensavel o seu estudo para
quem quizer metrificar bem na lingua portugueza.
Garrett, que tanto condemnava o elmanismo, ou imi
tação de Bocage, deve a pureza e vigor dos seus ver
sos soltos ao estudo de Filinto. O motivo da fuga do
Filinto em 1778, isto é, o estado de intolerancia reli
giosa, activara tambem a ruina da Arcadia em 1774 ;
pode-se dizer que desde esta época até ao appareci
do Bocage, a poesia portugueza não deu mais signaes
de vida .

A Nova Arcadia

Esta academia teve em vista levantar a poesia por


tugueza da morte completa em que estava ; foi fundada
em 1790 por Domingos de Caldas Barbosa, e celebrava
ás quartas-feiras as suas sessões com o titulo de Aca
demia de Bellas -Lettras no palacio do Conde de Pom
beiro, depois Marquez de Bellas, José de Vasconcellos
e Sousa. Os grandes successos politicos do fim do se
culo e do principio do seculo xix, não levantaram ne
nhum espirito com esse alto ideal que Dante exprime
1 no secuol si rinuova ; pelo contrario a poesia continuou
a exercer-se nas cansadas banalidades, nos servis elo
gios dramaticos, e o que mais é, o estado da sociedade
tornava mediocres aquelles que tinham uma faisca de
genio, como Bocage . A lista dos socios da Nova Ar.
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 437

cadia é grande, e só pode completar-se pelo estudo


das collecções manuscriptas :
Domingos de CaldasBarbosa, ( Lereno Selinuntino )
José Thomaz Quintanilha, ( Eurindo Nonacriense) João
Baptispa de Lara, ( Albino Ulyssiponense) Belchior Ma
noel Curvo Semedo, ( Belmiro Transtagano) Francisco
Joaquim Bingre,( Francelio Vouguense) Joaquim Franco
de Araujo Freire Barbosa , ( Corydon Neptunino) Nuno
Alvares Pereira Pato Moniz, ( Olino) Joaquim Martins
da Costa, ( Cassidro Ulyssiponense) Luiz Corrêa do
Amaral França, ( Melizeu Cyllenio) Ignacio José de
Alvarenga Peixoto ( Alcindo Palmireno)Thomaz Anto
nio dos Santos Silva, ( Thomino) Bento LuizViana, (Fi
linto Insulano) Sebastião Xavier Botelho, ( Clario ) An
tonio José de Lima Leitão, ( Almiro Lacobricense)
Francisco Freire de Carvalho, ( Filinto Junior ) José
Monteiro da Rocha, ( Tirceu ) João Vicente Pimentel
Maldonado (3) Antonio Bersane Leite, Anacleto da
Silva Moraes, Frei José de Santa Rita Durão, Vicente
Pedro Nolasco da Cunha, Joaquim Severino Ferraz de
Campos, e tambem os desconhecidos Marisbeu Ultra
marino, Cassidro Tagino, Menalio Ulyssiponense, Al
cino e Jonio Scalabitano, pertenceram a essa sociedade
anachronica, que ainda se alimentava intellectualmente
do insulso idylio, em quando desde 1774 circulava na
Europa u Werther, de 1794 a 1796 o Wilhelm Meis
ter , de 1773 o Goetz de Belinchingen , de 1786 a Iphi
genia em Taurida, de 1788 a melhor parte do Fausto,
tudo de Goethe; e quando já o genio de Schiller ha
via sido truncado pela morte. Quando se faz o syn
chronismo dos factos, é que se vê o atrazo a que nos
levou o esquecimento dasnossas origens, e como a lit
teratura que primeiro comprehendeu o valor da tra
dição nacional so levantou com gigantes creações. A
Nova Arcadia , teve uma vida tempestuosa perturbada
438 CAPITULO XX

pelo humor turbulento dos seus socios Manoel Maria


Barbosa du Bocage (Elmano Sadino e Padre José
Agostinho de Macedo, ( Elmiro Tagideu ).
Depoisde Camões, Bocage é o unico poeta de quem
o povo se lembra, e aquelloque lhe mereceu o privi
legio de uma vida legendaria. O povo conhece - o como
parasita vagabundo, repentista jocoso, e em volta da
sua personalidade agrupou todos as velhas anecdotas
picarescas da sociedade do seculo XVIII, as feições mais
>

caracteristicas do antigo regimen. Bocage nasceu em


Setubal, a 17 de Setembro de 1766, o segundo o cos
tume do tempo submettido á férula latina de D. João
Medina, saíu um bom latinista ; mas apezar da direcção
litteraria que recebeu, seguiu a vida militar, e foi até
á India, fazendo -se notar em Gôa pela virulencia dos
seus versos; viajou tambem até Macáo por 1789, re
gressando a Portugal em 1790, com vinte e quatro
annos dissipados, que nunca mais o deixaram tomar
a vida a serio. Em 1790 começaram as luctas contra
os poetas da Nova Arcadia , que puzeram em re
levo o genio Bocage, pela exclusão que lhe infligi
ram . Bocage morava com André da Ponte do Quen
tal, e junto com outros poetas imitadores de Parny
e de Desaugiers, frequentavam o botequim do Nicola,
aonde tinham um retiro especial chamado o Agu
lheiro dos Sabios. O Intendente Manique farejava por
toda a parte as ideias da Revolução franceza, sendo
preso Bocage a 10 de Agosto de 1797, por auctor de
papeis impios, sediciosos e criticos, e entregue á Inqui
sição em 7 de Novembro. No meio de uma sociedade
assim constituida Bocage entregou -se á crápula, e ex
plorava o dom especial do improviso, de que era do
tado . As suas composições eroticas tornavam - no que
rido dos ricos devassos. Bocage chegou a exercer
uma grande influencia na metrificação, tornando o verso
À ARCADIA ULYSSIPONENSE 439

mais harmonico, mas mechanico, pela continuidade


de epithetos regularmente repetidos, e pelo uso de
determinadas figuras de rhetorica.
Os seus Sonetos, tão admirados, são materialmente
bem feitos, mas sem ideal , sem esse espirito de melan
cholia e profundidade que só se encontra em Camões. As
suas qualidades brilhantes accenderam a inveja do Padre
José Agostinho de Macedo ; n'esta lucta mostrou Bo
cage a intima relação que existe entre o genio impro
visador e a satyra . Bocage foi accusado de pedreiro
livre em 1802 á Inquisição , e terminou a sua vida es
gotada na orgia em 21 de Dezembro de 1805. E' con
siderado como excellente traductor, o que é uma qua
lidade negativa de seu genio inventivo .
O temperamento irascivel de Bocage é tambem a
qualidade distincta do Padre José Agostinho de Ma
cedo, aggravada por uma vaidade impossivel, por uma
vasta leitura superficial, e por nenhuma d'essas virtu
des que tornam Bocage sympathico. E' a mediocridade
na sua forma mais insolente e completa ; para elle a
obra litteraria foi um producto mechanico , porque se
inspirou de todos os sentimentos da época que quiz
lisongear, celebrando o absolutismo, o constituciona
lismo, a intolerancia religiosa e a razão. José Agosti
nho de Macedo nasceu em Beja, a 11 de Setembro
de 1761 ; tendo professado no Mosteiro da Graça em
1778, depois de doze annos de revolta contra a disci
plina monastica foi posto fóra do convento com infa
mia, estando presente toda a communidade, em 18 de
Fevereiro de 1792. Passou a presbytero secular, e fez
da prédica o seu ganha-pão, conseguindo ser nomeado
prégador regio em 1802 ; tendo sido deputado nas côr
tes de 1822, acceitou de D. Miguel a nomeação de
Chronista do reino substituto em 1830. A sua vida
litteraria foi uma constante e virulenta polemica pes
soal ; nunca a linguagem portugueza desceu tão baixo
440 CAPITULO XX

como nos bicos da sua penna. Producto de uma d'es


tas tristes épocas de esterelidade moral, a sua fecun
didade infunde tristeza, pela falta de critica, de phi
losophia, de dignidade, e por uma erudição de appa
rato que lhe recrutava partidarios entre os inscientes.
Tendo lido o Ensaio sobre a Poesia epica de Voltaire,
quiz desenvolvel-o com relação a Camões, mostrando
que os Lusiadas eram um poema desprezivel, por que
não seguia servilmente as regras de Aristoteles . Para
melhor fundamentar as suas curtas ideias elaborou de
novo o mesmo assumpto épico, no Gama, em 1811 ;
tres annos depois refundiu de novo este acervo de Ou
tavas banaes o da mais soprada rhetorica, acrescen
tando -lhe mais dois cantos aos dez que contava, com
o titulo de Oriente. A ignorancia total do que é uma
epopêa é que lhe podia dar coragem para metrificar
essa longa cousa sem sentimento, sem tradição , sem
nacionalidade, e sem imaginação creadora. A sua falsa
ideia da poesia, dominado pelo pseudo-classicismo fran
cez, levou -o a adoptar o genero didactico, imitando
Delille no Newton, na Meditação, na Viagem extatica
ao templo da Sabedoria , e em outras peças, em que
fracos conhecimentos de Physica recolhidos na Recrea
ção philosophica, do Padre Theodoro de Almeida, e
uma comprehensão esterior de algumas anecdotas scien
tificas, lhe serviram para fazer retumbantes endeca
syllabos. Em 1812 as paixões politicas fizeram -lhe es
crever um poema heroi-comico Os Burros, que é uma
monstruosidade moral e litteraria ; para Macedo o es
crever era um meio de dar largas á sua bilis, porque
eram diminutos os lucros que tirava das suas obras ;
como Lobo de Carvalho, como Bocage, Macedo per
tence a essas naturezas desesperadascom que ás vezes
um seculo protesta contra a falsidade das ideias mo
raes e politicas em que se vive pela alliança da ine
recia com a da auctoridade nunca discutida.

.
A ARCADIA ÚLYSSIPONENSE . 441

A poesia do.seculo XVIII exprime a profunda de


gradação moral do tempo, tornando -se a linguagem
da devassidão . Em nenhuma litteratura se fez da poe
sia um agente aphrodisiaco de uma geração gasta,
como em Portugal: o poema de Caetano José da Silva
Souto -Mayor (m . 1739) contra o confessor de D. João V ;
as poesias joviaes de Antonio Lobo de Carvalho ; (n.
1730, m. 1787) de Domingos Monteiro de Albuquer
que, ( n. 1744, m. 1830 ) de Pedro José Constancio,
(n. 1820) de Frei José Botelho Torrezão, do Abbade
de Jazende, do Padre José Agostinho de Macedo, do
Padre Francisco Manoel do Nascimento, o de José
Caetano de Figueiredo, são o documento da ultima
baixeza a que pode descer a litteratura de um povo,
que vive sem tradição e sem ideal.
Arcadia ultramarina

As Academias litterarias estenderam- se tambem


até á colonia portugueza do Brazil ; om 1736, o me
dico Saraiva funda no Rio de Janeiro a Academia
dos Felizes, cujas conferencias versavam sobre bo
tanica. Em 1752 creou-se uma outra Academia com
o titulo dos Selectos, que tinham por fim bajular
em verso o general Freire d'Andrada. A Sociedade
litteraria e os Academicos renascidos são ainda um
producto da mesma monomania ; todas estas prece
deram a celebre Arcadia ultramarina , fundada no
Rio de Janeiro por Manoel Ignacio da Silva Alva
renga e José Basilio da Gama, pouco mais ou menos,
por 1779 ; como todas as creações do seculo era pre
ciso que o calor official a animasse, e por isso acos
tou-se á protecção do Vice-rei D. Luiz de Vasconcellos
e Sousa e do Bispo D. Joaquim . Os socios mais co
nhecidos da Arcadia ultramarina, foram além dos dois
fundadores, Bartholomeu Antonio Cordovil, Domingos
442 CAPITULO XX

Vidal Barbosa , João Pereira da Silva, Balthazar da


Silva Lisboa, Ignacio de Andrade Souto -Mayor, Ren
don , Manoel de Arruda Camera, José Ferreira Car
doso, José Marianno da Conceição Velloso, e Domingos
Caldas Barbosa. (1) O unico talento d'esta Arcadia é
José Basilio da Gama ; mas a sua principal gloria
vem- lhe dos poetas da provincia de Minas, conhecidos
pelo epithetode Poetas Mineiros, taes como Frei José
de Santa Rita Durão, Claudio Manoel da Costa , Igna
cio José de Alvarenga Peixoto, e Thomaz Antonio
Gonzaga . Levar-nos-hia longe o accumular os dados
biographicos d'estes poetas ; basta somente caracteri
sar as suas tendencias . Os poetas mineiros tiveram o
primeiro sentimento da independencia do Brazil, e a
sua precoce aspiração nacional custou -lhes a vida . Era
a mesma corrente de liberdade que criara os Estados
Unidos e suscitara a Revolução franceza. Infelizmente
as suas poesias lyricas, compostas no meio da natu
reza luxuriante do Brazil, vem buscar ás desbotadas
paizagens da Europa as côres mal desenhadas das Aca
demias. As Lyras de Gonzaga, inspiradas por um pro
fundo amor, cortado pela desgraça politica, sob a
sua cansada ingenuidado pastoril chegam a despertar
interesse . O lyrismo brazileiro appresenta na Arcadia
ultramarina uma feição tradicional; as velhas Serra
nilhas portuguezas que no meado do seculo xvi ainda
impressionavam Camões, conservaram - se na colonia do
Brazil, e quando, no seculo XVIII, alguns dos seus
poetas visitaram o reino ou cá fixaram a sua residen
cia, essas Serranilhas receberam um novo vigor com
o título de Modinhas. As Lyras de Gonzaga, a Viola
de Lereno de Caldas Barbosa, muitas das Arias de
Antonio José da Silva, têm essa origem , e esse alto
merecimento ; chegaram a influir na poesia portugueza.
(1) Pereira da Silva, Varões illustres, 1, p. 335, 338.
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 443

A verdadeira superioridade dos poetas da Arcadiaul


tramarina revela-se na comprehensão da epopêa ; José
Basilio da Gama, com o seu Uruguay, e Frei José de
Santa Rita Durão, com o Caramuru, acharam esse
veio occulto da riqueza épica, a tradição . E ' a pri
meira vez que o seculo XVIII se aproxima da fonte
pura de toda a poesia e de toda a liberdade; a tradi
ção foi mal comprehendida no Uruguay, em que conta
a luctados portuguezes contraos indios do Paraguay
revoltados pelos Jesuitas em 1756 ; os costumes dos in
dios absorveram com um raro tino a attenção do poeta,
que chega a inspirar sympathia pelos revoltosos ; a
fórma rompe tambem com as velhas machinas mytho
logicas e com a prolixidade insulsa dos seus contem
poraneos. E' um poeta nacional preparando 0o caminho
para a originalidade da nova litteratura do Brazil.
Não menossympathico e generoso do que José Basi
lio da Gama , é Durão, que revelou a mesma justa
comprehensão da epopêa no Caramuru , que elle com
poz sobre a antiga tradição brazileira do naufrago
Diogo Alvares, que tendo escapado á antropophagia
dos Tupinambas, na costa da Bahia em 1510 , viveu
n'essa tribu, onde dominou pelo perstigio, e depois,
evadindo -se com Peraguassá, filha de um chefe indi
gena, chegou aFrança, aonde a desposou com o nome
de Catherina. Como todas as organisações brazileiras,
Durão metrificava com facilidade; e se se houvesse
desprendido da subserviencia da outava-rima, os seus
quadros e situações teriam ganhado em simplicidade
é verdade. Quando o seculo se appresenta exhausto
de vigor moral e de talento, é da colonia que se agita
na aspiração da sua independencia, que lhe vem a
seiva das naturezas creadoras .
444 CAPITULO XX

A Opera e o Cesarismo

O theatro no seculo XVIII é uma creação pura do


cesarismo; não havendo uma opinião publica de que
fosse orgão natural, tornou-se materialmente grandioso
e opulento. A' imitação das côrtes mais faustosas da
Europa, aonde a Opera se tornava uma distracção
aristocratica, Dom João v tambem quiz ter esse dis
pendioso divertimento, e a medida que o cesarismo se
foi definindo melhor, assim appareceram os theatros
regios de Queluz, de Salvaterra, da Ajuda, e a Opera
do Tejo, de uma grandeza verdadeiramente fabulosa.
As composições dramaticas perderam o valor littera
rio, porque tiravam todo o seu interesse do scenario e
do machinismo ou tramoias, não podiam formar -se ar
tistas nacionaes, porque a profissão de actor era con
siderada infamante. Até ao esforço da Arcadia para
a restauração do theatro portuguez, pode-se resumir
toda a nossa litteratura dramatica em Antonio José da
Silva, cujas comedias tem o titulo posto pelo vulgo de
Operas do Judeu . Garção no Theatro novo, allude á
influencia de Antonio José :

As portuguezas Operas impressas,


Encantos de Medea ; Precipicios
De Phaetonte ; Alecrim e Mangerona ;
Em outras nunca achei galanteria.

Antonio José da Silva nasceu no Rio de Janeiro,


em 8 de Maio de 1705, de uma familia de christãos
novos longo tempo perseguida pela Inquisição . No pe .
queno intervallo de liberdade que a espionagem da
Inquisição lhe deixou é que escreveu para os theatros
do Bairro Alto, da Mouraria as suas Comedias, mistu
radas de prosa e verso e com modinhas musicaes. Es
sas Comedias são um producto hybrido das Operas
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 445

italianas e da baixa-comedia portugueza, servindo de


pretexto para empregar o machinismo das imitações
scenicas, e para cantar-se a parodia dos trechos mu
sicaes que andavam mais na memoria dos espectadores.
Antonio José não podia prestar-se a ser simplesmente
escriptor d'esta ordem de comedias impostas pelos em
prezarios, e introduziu- lhes um interesse novo, a lin
guagem chula, a graçola pezada, o equivoco sujo, e
todas as locuções pejorativas do idioma portuguez.
Lisongearam uma sociedade sem dignidade, e por isso
essas Comedias se sustentaram durante todo o seculo
na scena. O talento de Antonio José não chegou a des
abrochar completamente ; foi preso pela segunda vez
em 5 de Outubro de 1737 , sendo relaxado à execu
ção do braço secular em 18 de Outubro de 1739. O
seu processo do Santo Officio , que se guarda na Torre
do Tombo, é profundamente tragico.
A paixão pela Opera, que dominava na côrte e na
aristocracia, fez com que se manifestassem alguns ta
lentos musicaes, taes como Luciano Xavier dos San
tos, João de Sousa Carvalho, Antonio da Silva, Jero
nymo Francisco de Lima, João Cordeiro da Silva e
Antonio Leal Moreira. Havia um elemento tradicional
para fundar a Opera portugueza, mas os compositores
desconheceram -no e imitaram ' a Italia . Os grandes
compositores allemães tiveram o extraordinario senso
artistico de procurarem a inspiração e os seus themas
nos lieder nacionaes ; em Portugal possuiamos alguma
cousa que nos poderia ter conduzido á originalidade.
Das Modinhas brazileiras, escreve o judicioso Beckford :
« Quem nunca ouviu este original genero de musica,
ignorará para sempre as feiticeiras melodias que tem
existido desde o tempo dos sybaristas. Consistem em
languidos e interrompidos compassos, como se faltasse
o folego por excesso de enlevo, e a alma anhelasse
unir-se a outra alma identica de algum objecto que
446 CAPITULO XX

rido. Com infantil desleixo, insinuam -se no coração an


tes de haver tempo de o fortificar contra a sua volu
ptuosa influencia ; imaginaes saborear o leite, e o ve
neno da sensualidade vae calando no intimo da exi
stencia... etc. ) (1) Stafford , na Historia da Musica,
precisa mais claramente a importancia do Lied portu
guez : « O povo portuguez possue um grande numero
de arias lindissimas, e de uma grande antiguidade.
Estas arias nacionaes são os lunduns e as Modinhas.
Em nada se parecem com as Arias das outras nações,
a modulação é absolutamente original. As melodias
portuguezas são simples, nobres e muito expressivas.
para sentir que os compositores portuguezes abando
nem o estylo da sua musica nacional para adoptarem
a maneira italiana .» (2) E ' realmente admiravel como
a theoria da invenção litteraria coincide na mesma
base esthetica com aa da originalidade musical . Foi
este espirito das arias portuguezas que tornou Luiza
Todi a primeira cantora de sentimento do mundo mo
derno, e teria levantado Marcos Portugal, se tivesse
procurado na tradição nacional os verdadeiros elemen
tos de creação .
Depois de Antonio José, o typo mais sympathico
do publico, e o que exerceu maior actividade foi Nico
láo Luiz , o croador da comedia de cordel; distingue -se
por uma absoluta despreoccupação litteraria, que o le
vou ao maximo syncretismo de organisar as suas co
medias com tudo quando conhecia , do theatro hespa
nhol, do italiano ē do francez. Apenas deixou assi
gnada a comedia dos Maridos peraltus, que pouco va
>

lor tem. A sua profissão de ensaiador do Bairro Alto,


obrigava -o a fornecer comedias novas para os espectacu
los regulares d'aquella empresa ; representava-se ainda
( 1) Carta VIII.
Ob. cit.,. p. 265. Trad. fr.
A ARCADIA ULYSSIPONENSE 447

em verso, por effeito da longa influencia das comedias


famosas, e Nicoláo Luiz poz ein verso tudo quanto pôde
traduzir. A sua comedia mais popular foia D. Ignez
de Castro, traduzida livremente de Vellez de Guevara ;
este assumpto tradicional desde o seculo xvi estava in
dicando a verdadeira direcção para os fundadores do
drama portuguez ; os poetas, por um certo tino incon
sciente , vieram por seu turno ensaiar ou orientar-se
n'este elemento tradicional. A longa actividade mecha
nica de Nicoláo Luiz não foi mais do que a acção per
manente de Metastasio e de Goldoni sobre o gosto
portuguez. No meio d'estas continuas imitações appa
receu alguma cousa derivada dos costumes portugue
zes, satyrisando a monomania de occultar à miseria
em que se vivia para deslumbrar os outros com appa
ratos exteriores; é a baixa comedia , em que os typos
não tem dignidade e em que o artista ignora o que é
idual ; o typo do fidalgo pobre, já observado pelo es
trangeiro Clenardo no seculo xvi, aproveitado por Gil
Vicente, na farça dos Almocreves , o por D. Francisco
Manoel de Mello, no Fidalgo Aprendiz, revive no se
culo xviii, não para ser um motivo de protesto , mas
unicamente para dar largas á galhofa. A ultima co
media baixa que sobreviveu na scena portugueza é o
Manoel Mendes, de Antonio Xavier Ferreira de Aze
vedo . O theatro disputou debalde o gosto pelos ser
mões, e ficou vencido ; o povo portuguez não teve vida
intellectual, e as suas leituras resumiram-se aos se
guintes livros, citados na comedia da Incisão na Pe
raltice :

Vem cá, homem, que tens lido ?


Oh, lá , n'isso não fallemos :
Li os Contos de Trancoso ,
As diabruras de Roberto,
As Constancias de Florinda
Da Magalona os extremos.
448 CAPITULO XX

O entremez dos Peraltas,


E na Hora de Recreio,
A Vida de Carlos Magno.

Dos Contos proveitosos, de Gonçalo Fernandes


Trancoso, escriptos em 1569, já fallámos na época dos
Quinhentistas; o Roberto do Diabo, é a traducção de
uma folha volante hespanhola, impressa em Burgos em
1509, com o titulo Vida de Roberto admirable y es
pantosa, que já se acha prohibida em Portugal no In
dex expurgatorio de 1581. A Formosa Magalona é
tambem uma traducção paraphrastica hespanhola do
pliego suelto, impresso em Sevilha em 1519, com o ti
tulo : La historia de la linda Magalona , fija del rey de
Napoles, y del muy esforçado caballero Pierres
Provença . A Historia de Carlos Magno, é ainda hoje
bastante lida pelo povo portuguez, e egualmente tra
duzida da novella hespanhola impressa em Sevilha
em 1525, por Jeronymo Moreira de Carvalho, e con
tinuada com novos e desconnexos elementos por Caetano
Gomes Flaviense. A Hora de recreio, do Padre João
Baptista de Castro, que é uma serie de anecdotas e de
extractos poeticos, e a Constante Florinda, estão to
talmente esquecidos.
O seculo xviii em Portugal desconheceu a tradi
ção em todas as suas formas; as consequencias que vi
mos na litteratura, foram verdadeiramente lastimosas
para a nacionalidade, que perdeu a tal ponto o senti
mento da sua independencia, que não resistindo á in
vasão napoleonica, entregou-se para sempre ao prote
ctorado de Inglaterra. (1)
(1) A Russia para conquistar completamente a Polonia,
tratou de fazer- lhe esquecer å força as suas tradições: « Tudo
o que se liga a um pensamento de independencia,tudo quanto
possadespertar uma recordaçåo da nacionalidade, é severamente
punido.» Rev. des Deux Mondes, 1843, 11, 51.
.
SEXTA EPOCA

O ROMANTISMO
( SEOULO XIX )

CAPITULO XXI

Tentativa de renascença do genio nacional


Valor philosophico do Romantismo, é modo da sua manifesta
7

ção na Allemanha, Inglaterra e França.--Creação da Historia


da Litteratura portugueza por Bouterwek, Sismondi, e Fer
dinand Diniz. - Influencia da emigração de 1824 sobre a in
troducção do Romantismo, depois de 1833.-- Garrett procura
inspirar -se da tradição nacional: trabalhos sobre o Roman
ceiro portuguez; sobre a fundação do Theatro e do drama
nacional. — Como as desencontradas ambições politicas do
constitucionalismo desviaram o espirito da obra da renovação
litteraria .

Valor do Romantismo

Desde o seculo xvi que as nações da Europa se


esqueceram das suas origens medievaes ; d'aqui resul
tou o duplo facto da decadencia daliberdade politica
no cesarismo, e o maneirismo e affectação nas litte
raturas. A França chegou a desconhecer totalmente
as suas tradições épicas, e mesmo a existencia das
Canções de Gesta, e a considerar os escriptores rheto
ricos da corte de Luiz XIV como constituindo o seu
maior titulo de gloria ; a Allemanha e a Italia seguiam
a pauta mediocre d'esse pseudo -classicismo francez; a
Inglaterra, em Pope, Dryden e Addisson , abafavá a
impetuosidade do genio saxonio para seguir as formas
convencionaes de uma rhetorica esterilisada, que ainda
seduzia
29
o elemento normando. Pela dependencia poli
450 CAPITULO XXI

tica da Hespanha paracom a França, no reinado de


Filippe v, esta nação fecunda torna-se traduccora, o
Luzan legisla no Parnaso hespanhol segundo o gosto
francez. Quando nações fortemente constituidas pela
tradição perderam durante o seculo XVIII as legitimas
feições da sua individualidade litteraria, qual não ha
via de ser a decadencia da litteratura portugueza ? De
termina -se pelo tempo em que entrou em Portugal a
ideia do Romantismo, depois da primeira emigração
em 1824, quando já a Europa entrava no periodo da
renovação scientifica. Asubserviencia ao gosto francez
datava do seculo XVII, desde que o Cardeal de Riche
lieu julgou a bem da sua politica auxiliar a revolução
de 1640 ; com a vinda do Marechal Schomberg a Por
tugal, as relações litterarias tornaram-se mais intimas,
e o Conde da Ericeira traduzia em versos portuguezes
a Poetica de Boileau . Agradecendo-lhe a remessa da
traducção, escrevia o dictador do Parnaso: « Dizei-me
antes, como fizestes para me perceber tão bem, e para
alcançar na minha obra até essas cambiantes que eu
julgava que só podiam ser sentidas só por gente nas
cida em França, o que vivesse na corte de Luiz o
Grande. » O Conde da Ericeira, mandara-lhe tambem
versos seus em francez, dos quaes Boileau dizia : « Não
ha n'elles de estrangeiro senão o vosso nome, e não ha
em França homem de bom gosto que não quizesse tel-os
escripto . ( 1) As tragedias philosophicas de Voltaire,
quasi todo o theatro de Racine, as melhores comedias
de Molière, tudo se traduziu para satisfazer esta pre
dilecção pelo gosto francez . O rompimento com a can
sada imitação da França só podia começar em uma
nação forte pela fecundidade da raça e pela riqueza
das suas tradições, para fundar a sua litteratura na
inspiração das proprias origens . Por occasião da guerra
(1) Obras de Boileau, Cart. xiv.
TENTATIVA DE RENASCENÇA 451

dos sete annos, a Allemanha separa-se da imitação fran


ceza , e a leitura dos antigos poetas inglezes revela -lhe
que fóra da rhetorica da côrte de Luiz XIV existiam
formas tambem artisticas e inexcedivelmente bellas.
Lessing, na Dramaturgia, funda a nova prosa allemã
lança por terra as theorias dos tragicos francezes ;
a corte de Weimar, alentada pela paz da regencia
de Anna Amelia de Brunsvic, agrupa essa grande
pleiada de genios creadores de que era chefe Goethe. Os
irmãos Grimms começam os seus estudos sobre a lingua,
a mythologia, o direito , as velhas epopêas e os contos
populares da Allemanha, e a par d'estes elementos no
vos e fecundantes, a litteratura allemã, que mal se de
finia, torna -se uma das mais opulentas do seculo. Para
a Allemanha o Romantismo foi o procurar a inspira
ção para as creações litterarias e artisticas nas
suas esquecidas tradições germanicas. O Romantismo
appareceu entre os outros povos da Europa por um
successo natural e logico. A Revolução franceza reco
meçou a obra das luctas das classes servas da edade
media, que a creação dos exercitos permanentes e da
independencia do poder monarchico vieram sustar ; a
ideia da Revolução propagou -se a toda a Europa, e as
monarchias absolutas viram -se forçadas a acceitarem
o regimen das Cartas Constitucionaes. Era a forma
politica da Inglaterra, peculiar ao genio saxo-normando,
que os povos modernos abraçavam como conciliação .
Ñ'esta aspiração de liberdade, a Irlanda e a Escossia
revelaram os seus sonhos de independencia pela litte
ratura ; Thomaz Moore canta as tradições da verde
Erin, e Walter Scott, recolhe os cantos populares da
fronteira da Escossia, e recompõe a vida dos clans nos
romances historicos que a Europa inteira leu com in
teresse; Byron, na sua indisciplina litteraria, tornou a
achar individualidade saxonia tão profundamente re
velada em Shakespeare e Marlow . Em França, o Roman
452 CAPITULO XXI

tismo teve uma phase inconsciente de rehabilitação da


edade media, e esse periodo admiravel de erudição que
levou a achar as Gestas carlingianas e arthurianas, os
fabliaus e as sotties; a primeira esgotou-se facilmente
nos seus processos mechanicos de reproducção da edado
media e de violencias moraes do ultra-romantismo; po
rém esse trabalho que começa com Raynouard e chega
até Gaston Paris, veiu prestar á Europa os elementos
para reconstituir entre todos os povos modernos as tra
dições que primeiro puzeram em actividade as suas
creações sentimentaes , e que tornaram as suas linguas
escriptas.
estudo do sanskrito, é o criterio comparativo
fundado por Bopp, tornaram conhecidas a filiação das
linguas da Europa com as da Asia e a unidade ethnica
dos povos indo-germanicos ; e revelando os monumen
tos da litteratura nos periodos védico, brahmanico e
buddhico, vieram mostrar a continuidado das formas
litterarias através de todas as civilisações , e portanto
prestar os meios para uma critica ségura, ee para o ap
parecimento da Philosophia da Arte , e da Historia das
Litteraturas .

Formação da Historia da Litteratura


portugueza

Como uma consequencia da grande renovação do


genio germanico, no Romantismo, Eichorn fundou em
1796 a grande empreza para a publicação de uma
Historia completa das Sciencias, das Artes e das Let
tras, desde o seu renascimento na Europa moderna ;
coube a Bouterwek n'esta gigante obra a parte rela
tiva ás litteraturas modernas; em 1804 publicou o
tomo terceiro do seu vasto quadro, aonde pela primeira
.
vez apparece feita a Historia da Litteratura portu
gueza , junto com a da Litteratura hespanhola . Bou
TENTATIVA DE RENASCENÇA 453

terwek confessa que foi auxiliado n’este seu trabalho


por um sabio portuguez; é um livro ainda hoje excel
lente nas apreciações geraes, na determinação das épo
cas, e nas comparações com as correntes estrangeiras,
que só um talento superior podia escrever, sobretudo
em uma época em que em Portugal se ignorava todo
o nosso passado litterario . ( 1 ) A Historia da Littera
tura portugueza, de Bouterwek, foi tratada sob um
ponto de vista menos technico pelo seguro historiador
Sismondi, em 1819, mas com uma certa expressão co
lorista, de quem conheceu bem, ainda que em pequeno
numero, as obras litterarias portuguezas. Em 1825, o
erudito viajante Ferdinand Denis publica o seu Resumé,
de l'Histoire littéraire du Portugal, com aquella luci
dez vulgarisadora do espirito francez. Estes trabalhos
feitos no estrangeiro não produziram ecco em Portugal ;
estavamos separados da Europa, como quando o In
tendente Manique poz um cordão policial contra as
ideias da Revolução franceza. Os successos politicos que
se seguiram á queda da Constituição de 1820, força
ram um grande numero de liberaes a emigrarem de
Portugal ; foi pela primeira vez que communicámos
directamente com a Europa. A época era fecunda em
todos os paizes, e entre esses emigrados portuguezes,
contam -se Almeida Garrett e Alexandre Herculano,
que tentaram reproduzir depois de 1833 as novas ideias
do Romantismo em Portugal. Era a communicação
com o estrangeiro que nos revelava a poesia do nosso
passado nacional; Byron , M.me de Stael, Raynouard,
Schlegel, fallavam de Camões com as mais sublimes
expressões de sympathia ou do assombro . O nome de
Camões tornava-se como um palladio dos emigrados
liberaes; o grande pintor Domingos Antonio Sequeira,

(1) Traduzido em inglez por Miss Thomasina Ross, em


1823. in-8.°o gr. de 406 p.

1
454 CAPITULO XXI

refugiado em França, realisava o seu quadro da Morte


de Camões ; Domingos Bomtempo consagrava á memo
ria de Camões a sua Missa de Requiem ; finalmente,
Garrett escrevia o elegiaco poema Camões. Sentia -se
que tambem tinhamos tradição nacional ; e durante o
tempo que Almeida Garrett estivera em Inglaterra,
ao vêr os trabalhos de Percy, de Ellis, de Rodd e de
Walter Scott, sobre a poesia popular, apprendeu a co
nhecer o interesse d'essa parte da tradição, e depois
que pôde regressar á patria, veiu procural- a nas nos
sas provincias. O seu pequeno quadro Bosquejo da
Historia da Poesia e Lingua portugueza, publicado
• em 1827, é composto sobre os valiosos recursos de
Bouterwek, Sismondi e Ferdinand Deniz, mas com
uma certa concisão dogmaticaque torna mais evidentes
os erros sobre a formação da lingua portugueza, o des
conhecimento das imitações provençaes e castelhanas,
e o juizo litterario formulado em phrases feitas. No
trabalho do Romantismo em Portugal, a falta de
quem investigasse a Historia da nossa litteratura fez
com que se não criasse uma disciplina critica, e com
que as obras de arte não tivessem seriedade.

Garrett, e a inspiração tradicional


a ) O Romanceiro portuguez ,-O povo portuguez
foi o ultimo no estudo das suas tradições; até Garrett
nunca os romances antigos tiveram importancia, e até
se suppunha, que em Portugal, assim como não ha fes
tas publicas, tambem não havia cantos seculares.
Comtudo, Garrett conta que foi embalado na sua me
ninice com as trovas do Conde Alarcos, mas a imita
ção das odes arcadicas e das tragedias francezas fi
zeram-no esquecer d'essa reminiscencia, que apezar
de tudo influiu no seu gosto litterario. A emigração
em Inglaterra fel -o assistir ao estudo sempre crescente .
TENTATIVA DE RENASCENÇA 455

das origens nacionaes das litteraturas : « Antes que,


excitado pelo que via ee lia em Inglaterra ee Allemanha,
eu começasse a emprehender n'este sentido a rehabi
litação do romance nacional, já Grimm , Rodd, Dep
ping, Müller e outros varios tinham publicado impor-
tantes trabalhos sobre as preciosas quam mal estima
das antigas collecções castelhanas. ( 1 ) Quando Gar
rett voltou a Portugal em 1826, tentou recolher a tra
dição, da qual já se havia informado : « Recorri á tra
dição: estava eu então fóra de Portugal; estimula
va-me a leitura dos muitos ensaios estrangeiros que
n'esse genero iam apparecendo todos os dias em In
glaterra e França, mas principalmente na Allemanha.
Uma estimavel e joven senhora ... foi quem se in
cumbiu de procurar em Portugal algumas copias de
cacaras e lendas populares . Depois de muitos traba
lhos e indagações de conferir e estudar muita copia
barbara que a grande custo se arrancou á ignorancia
e acanhamento de amas -seccas e lavadeiras e saloias
velhas, hoje principaes depositarias d'esta archeologia
nacional... alguma cousa se pôde obter, informe e
mutilada pela rudeza das mãos e memorias por onde
passou ; mas em fim , era alguma cousa, e forçoso foi
contentar -me com o pouco que me davam , e que tanto
custou. Assim consegui umas quinze rhapsodias, ou
mais propriamente, fragmentos de romances e xácaras,
1

que em geral são visivelmente do mesmo estylo, mas de


conhecida differença em antiguidade, todavia remo
tissima em todos. ) (2) Garrett foi depois auxiliado
n'esta collecionação pela colheita do consul francez Mr.
Pichon, entre 1832 e 1833, pelo Dr. Emygdio Costa,
com relação ao Alemtejo, pelo Bibliotecario Rodrigues,
com relação ao Minho, e pelo Dr. Nunes, com relação
Romanceiro, t. 1, p. XII!.
(2) Ib., t. 1, 15 á 17.
456 CAPITULO XXI

á Extremadura. A collecção de Garrett chegou ső


mente a trinta e dois romances nacionaes ; faltou - lhe 0

criterio historico e philosophico para saber respeitar


na sua integridade estas venerandas reliquias da tra
dição de um povo ; receiando que o Romanceiro fosse
recebido como um trabalho frivolo, falsificou a tradi
ção embellezando -a
- a com versos e situações suas, o as
suas investigações comparativas limitaram - se a fazer
notar as expressões pittorescas e os rasgos sublimes das
obras anonymas. D'aqui resultou considerarem os es
trangeiros, e entre elles Mr. Du Puymaigre, que os
cantos nacionaes portuguezes eram mais perfeitos do
que os castelhanos e por isso de uma elaboração se
cundaria o mais moderna. Os romances portuguezes
recolhidos da tradição desde Garrett até 1869 sobem
a oitenta ; se eliminarmos d'entre os romances de ori
gem litteraria, isto é, d'entre os dois mil da colleção
de Duran, aquelles que são puramente tradicionaes e
anonymos, conclue - se que a tradição hespanhola não
é mais rica do que a portugueza . Os romances portu
guezes estão cheios de symbolos germanicos, que se
encontram repetidos no direito consuetudinario das
Cartas de Foral; isso leva á conclusão, de que a
mesma classe que formulou essas garantias juridicas
tirou os seus cantos dos costumes da sua sociedade.
Essa classe em que predomina o elemento germanico
é Mosarabe; quer dizer - pertence a essa parte dos in
vasores germanicos que seguiam a condição do colo
nato, e que diante da invasão arabe acceitaram o
novo dominio, que pela sua immensa tolerancia poli
tica e religiosa, lhes consentia as suas tradições. Além
d'isso, a abundancia e a pureza d'esses cantos corre
spondem aos logares em que a classe Mosarabe mais
prevaleceu ; Garrett conheceu praticamente que era
da Beira -Baixa que lhe vinham as lições mais com
pletas e originaes do Romanceiro. Depois da Beira, o
TENTATIVA DE BENASCENÇA 457

Algarve, já no seculo xvi revelava a antiguidade dos


seus cantos a Miguel Leitão de Andrada ; as Ilhas dos
Açores e Madeira, colonisadas no seculo xv, quando
a nossa tradição poetica estava mais viva, são hoje
as que appresentam as mais bellas tradições, chegando
a perpetuar factos da historia portugueza ou do se
culo XVI, como a morte do principe Dom Affonso em
1491, ou a batalha de Lepanto em 1572, tratados
nos seus rudimentos épicos. Esta relação ethnolo
gica entre a tradição poetica e as localidades em que
se conservou o Mosarabe, é um facto immenso para o
problema da constituição da nacionalidade portugueza.
Foi pelo. Romanceiro , que Almeida Garrett começou a
obra do Romantismo em Portugal ; a sua falta de res
peito scientifico fez com que fosse imitado mais des
graçadamente, pelos noveis escriptores que inventa
ram tradições de sua phantasia e as metrificaram em
redondilhas de estylo popular . Garrett foi o que mais
lucrou com este estudo , porque o seu lyrismo, ad
scripto aos moldes arcadicos nas Flores sem fructo e
nasFabulas e na Lyrica deJoão Minino, a ponto de
se appellidar idylicamente Jonio Duriense, apparece
transformado nas Folhas cahidas, que se distinguem
por uma verdade de sentimento, melancholia profunda,
paixão da realidade, e eloquencia simples, que só lhe
foi descoberta pela communicação directa com os can
tos tradicionaes, que muitas vezes lhe ministraram
estrophes inteiras, com que exprime centonicamente
a sua impressão.
b) Fundação do theatro portuguez.-- A obra prin
cipal de Garrett está nos extraordinarios esforços que
fez para que se fundasse o theatro nacional; não bastou
sómente o crear o drama, se não ter de interessar
pelo seu pensamento os novos governos, e a propria
sociedade que acabava de sahir das longas luctas ter
minadas em 1833 com a queda do absolutismo. Para
458 CAPITULO XXI

a creação do drama portuguez bastava-lhe o seu ta


lento0 ; para suscitar na sociedade o respeito por esta
grandeinstituição dos povos livres é que era preciso
um instincto maravilhoso ; Garrett pressentiu o poder
da tradição, e como a não tinhamos inventou-a : Disse
que nós os portuguezes é que haviamos fundado o
theatro europeu : « Mas tudo nos tem sempre assim
ido, em Portugal, cujo fado é começar as grande cou
sas do mundo, vêl-as acabar por outros — acordarmos
depois á luz e não vêr senão trevas . » E torna a re
petir : « Todos os povos foram uns de pós os outros,
pelo caminho que nos encetaramos, adiantando -se na
carreira dramatica ; nós voltamos para traz, e perde
mos o tino da entrada, que nunca mais acertamos com
ella . » E por fim insistia, que Dom Manoel, mandava
descobrir a India e ( tambem abrir a scena moderna
da Europa.» Era um erro flagrante contra a histo
ria, mas vulgarisou-se essa tradição patriotica, que in
spirou actividade e amor para a creação de um thea
tro normal, e de um Conservatorio da Arte dramatica
aonde se premiassem as melhores composições para a
scena portugueza. Garrett, essencialmente apathico pela
sua natureza de artista, desenvolveu uma actividado
que vence tudo.
Para crearo drama moderno, Garrett teve tambem
de se desprender da velha influencia dos tragicos fran
cezes e italianos, por cuja pauta escreveu o Catão, a
Merope e outras muitas peças que inutilisou, e procu
rar as tradições nacionaes sobre as quaes desenvol
vesse as suas novas concepções. Convidado por uma
portaria de 28 de Setembro de 1836 a appresentar ao
governo o plano para a fundação e organisação do thea
tro nacional ; nomeado em 2 de Novembro d'esse mesmo
anno Inspector geral dos theatros, no meio dos seus
complicados trabalhos officiaes entregou -se tambem á
creação litteraria. Garrett escreveu em 1838 o pri
TENTATIVA DE RENASCENÇA 459

meiro drama intitulado Um Auto de Gil Vicente ; elle


mesmo conta como a tradição o inspirava : « O que eu
tinha no coração e na cabeça — a restauração donosso
theatro, seu fundador Gil Vicente, seu primeiro prote
ctor el-rei Dom Manoel, aquella grande época, aquella
grande gloria, de tudo isto se fez o drama.» Apezar dos
defeitosde estructura e da errada comprehensão histo
rica, o Auto de Gil Vicente produziu um enthuziasmo ge
ral, e propagou o interessedo publico pela obra da re
stauração do theatro . Este drama saiu de um outro facto
anterior da renascençanacional, a publicação dos Autos
de Gil Vicente em 1834, reproduzidos do rarissimo
exemplar da Bibliotheca de Goettingue. Garrett, com
um raro tino artistico, ligou ao seu drama essa outra tra
dição sentidissima dos amores de Bernardim Ribeiro por
uma infanta portugueza. Tudo isto estabelecia relações
intimas com o publico, e uma predisposição sympathica
que nem mesmo sabia explicar. Em 1840 escreveu o
drama historico Filippa de Vilhena, sobre essa bella
tradição que anda ligada á Revolução de 1640, em que
Portugal recuperou a sua nacionalidade; ligou -lhe esse
outro motivo, de ser escripta para ser representada pe
los discipulos do Conservatorio dramatico. N'este drama
tinha Garrett já creado o typo artistico do Pinto de
Lemercier, aonde a Revolução apparece em todos os.
seus conflictos moraes ; Garrett evitou-o, porque real
mente a sociedade portugueza ainda sangrava da re
cente lucta de que acabava de sair. Em 1841 , com
poz esse outro drama Alfageme de Santarem , em que
é heroe o vulto secular e venerando de Dom Nuno
Alvares Pereira, o Santo Condestabre das cantigas do
povo ; a acção era a liberdade da patria salva da in
vasão castelhana, e em volta d'este facto ligou essa
tradição lindissima da espada maravilhosa dada pelo
armeiro de Santarem , tal como a foi descobrir na
Chronica do Condestavel nos capitulos XVII e LI . N'este
460 CAPITULO XXI

drama Garrett intercala tambem a melopêa de um an


tigo romance nacional que acabava de encontrar na
tradição oral, conhecidopelo titulo de Conde da Alle
manha. Mas a sua obra prima, e uma das primeiras
do theatro moderno europeu, é o drama Frei Luiz de
Sousa ; aconteceu -lhe na sua concepção como se dá
com a origem de todas as obras primas: assim como
Goethe recebeu a primeira ideia do Fausto no thea
tro dospuppenspiel, (bonifrates) Garrett tambem sentiu
o valor dramatico d'esta tradição de Frei Luiz de
Sousa em 1818, em um theatro ambulante, na Povoa
de Varzim. Este primeiro germen laborou no seu es
pirito, e levou-o a estudal- o na Memoria historica do
Bispo D. Francisco Alexandre Lobo, e nas narrati
vas de Frei Antonio da Encarnação. A interpretação
individual e propria do modo de sentir artistico de
Garrett, são admiraveis, sobretudo na creação do ve
lho aio Telmo Paes; a tradição que se applica a Frei
Luiz de Sousa, é frequente na edade media com os
cavalleiros que voltavam da terra santa e achavam as
suas mulheres casadas ; ainda modernamente o Coro
nel Chabert, de Balzac, é essa mesma tradição de um
militar supposto morto na guerra da Russia, nas cam
panhas de Napoleão. O incendio que Manoel de Sousa
Coutinho lança ao seu palacio de Almada, quando sabe
que os Governadores do reino tentam refugiar- se ali
por causa da peste de Lisboa, acha-se tambem na tra
dição hespanhola do Conde de Benavente, que incen
diou o seu palacio quando Carlos V o mandou sair d'elle
para ser entregue ao Duque de Bourbon ; o Duque de
Rivas, trata no seu romance Un Castellano leal, esta
heroica tradição. Taes são os elementos vitaes da obra
de arte ; a originalidade está unicamente no modo in
dividual de conceber e na superioridade da interpre
tação. No drama Frei Luiz de Sousa, em que Gar
rett introduziu menos elementos de sua imaginação, é
TENTATIVA DE RENASCENÇA 461

aonde elle se eleva a essa expressão shakespereana


das paixões, á nitidez logica dos caracteres, á natura
lidade na sua maxima verdade .
Mas Garrett collocava a sua gloria em um facto
menos pessoal, nas consequencias do Conservatorio
dramatico, do qual escrevia : « Começámos ha pouco
mais de um anno, e vinte tantos dramas originaes tem
apparecido já n'esta lingua portugueza, que ha outo
seculos se falla, ba cinco que tão elegante se escreve,
que por mais de outo milhões é hoje fallada, o que
e

ainda tanto não tinha feito desde que nascera. » ( 1) A


obra de Garrett não foi comprehendida ; os noveis es
criptores, em vez de estudarem o recompôrem a tradi
ção nacional, inventaram -na e crearam esses abortos
que a França tambem conheceu na época do Ultra
romantismo. Herculano, nas Censuras do Conservato
rio dramatico , caracterisou a nova geração pelo seu
estylo : « a maior parte das vezes falso : comparações
frequentes, que a situação moral dos personagens que
as fazem não comportam ; certa poesia na dicção im
propria do dialogo; fartura d'essas exagerações com
que embasbacam os parvos da platêa e que os homens
de juizo não podem soffrer. A's mãos cheias estão por
ai derramadas as maldições, os anjos de azas brancas,
os rochedos em braza, os demonios, toda a mais fer
ramenta dramatica usada hoje no theatro, e que não
sabemos d'onde veiu, porque sendo evidente que os
nossos escriptores principiantes buscam imitar os gran
des dramaturgosfrancezes, é certo que raramente acha
rão lá essa linguagem ôca e falsa , que só pode servir
para disfarçar a falta de affectos e pensamentos; Victor
Hugo e Dumas não precisam nem usam de taes meios,
e para citarmos de casa, já que temos cá o exemplo,
que esses noveis vejam se nos dramas do nosso pri
(1) Jornal do Conservatorio, n.º 2.
462 CAPITULO XXI

meiro escriptor dramatico, se no Auto de Gil Vicente,


ou no Alfageme, ha essa linguagem de cortiça e ouro
pel, ha essas expressões turgidas e descommunaes que
fazem arripiar o senso commum , e que offendem a ver
dade e natureza .» (1) O vicio que esterilisou a obra
de Garrett foi a imitação, por falta de um elemento
nacional que a nova geração não soube descobrir, nem
sentir.
c) Os Romances historicos.-- Os romances com que
Walter Scott avivou as tradições da Escocia tambem
produziram uma grande impressão em Portugal, e al
guns d'elles foram admiravelmente traduzidos por José
Maria Ramalho e Sousa. O romance historico era uma
fórma transitoria, quetinha de ser substituida pelodesen
volvimento da erudição ; éé este o seculo dos grandes his
toriadores . Garrett, quando ainda estava no cerco do
Porto, começou a elaborar o Arco de Sant'Anna sobre
essa tradição recolhida na Chronica de D. Pedro 1 por
Fernão Lopes ; como artista, teve o conhecimento da
relação entre essa lucta da cidade burgueza contra o
seu bispo feudal, e a lucta recente contra o ultimo
monarcha do direito divino. E' este o grande merito
d'esse romance . Os Nobiliarios tambem appresentaram
tradições portuguezas sobre que Herculano escreveu
as Lendas e Narrativas. O grande orgão d'este tra
balho de renovação litteraria foi o Panorama, em 1837,
aonde « sinceramente se confessava a nossa decadencia
intellectual . » Esse jornal foi um fructo da emigração
em Inglaterra, e seguiu em tudo o Penny Magazine:
ao Penny Magazine, em cujo molde vasámos o Pa
norama, é o periodico mais popular de Inglaterra, de
um paiz onde o habito da leitura descae ás classes in
feriores, e sem mudar o systema de redacção, inteira
mente semelhante ao nosso, extrae semanalmente de
(1) Mem . do Conservatorio, p. 144.
4
TENTATIVA DE RENASCENÇA 463

cada numero acima de trezentos mil exemplares.» (1)


O novo jornal litterario circulou sobre todos os pontos
de Portugal: «do Panorama ... logo ao 5. numero se
tirava a cinco mil exemplares, caso unico em a histo
ria das publicações periodicas em Portugal.» (2) Já
havia sido precedido pelo Repositorio litterario, do
Porto, em 1834, e pelo Jornal da Sociedade dos Ami
gos das Lettras, em 1836 ; mas nenhum teve tanto em
vista, como o Panorama, o recolher os factos mais
importantes da nossa historia, as biographias dos ho
mens célebres, as noticias dos monumentos artisticos,
os excerptos dos classicos, a reproducção de alguns
documentos, emfim , tudo quanto um povo precisa sa
ber para ter consciencia do seu passado. O Panorama,
propagou tudo quanto hoje a maioria das classes instrui
das conhece de Portugal; mas como não houve outro
movel que nos levasse para o regimen scientifico, esses
conhecimentos produziram um vago patriotismo banal
que se affirma por phrases feitas e não por obras. A
culpa foi da geração que, em vez de acceitar o alto en
cargo de educar este povo, quiz aproveitar os seus ta
lentos na arena das ambições politicas aonde se este
rilisou. A lição da historia leva a concluir, que os
povos, quando esquecem o seu passado, perdem insensi
velmente a nacionalidade ; e quando se sustentam fortes
o activos, devem o seu vigor e fecundidade ao regimen
scientifico . (3)

FIM .

( 1 ) Panorama, t. 1, p . 53 .
(2) Ib.
3) Buckle, ideia fundamental da sua obra Civilisação na
Inglaterra.
PRITISE
26 JY 84
M M
U
INDEX

Advertencia Pag.
MANUAL DA HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA

Preliminares 1
CAP. 1.- Origem e formação da lingua portugueza : 4
Lei de formação das linguas romanicas.
Filiação da lingua portugueza 10
-
-Condições ethnicas e sociaes que influiram na
formação do portuguez 11
a ) Raças anteriores á conquista romana. 11
b ) Acção dos Romanos: Magistrados, Mercenarios 12
c) Influencia germanica : adopção do christianismo 15
d ) Influencia arabe . 17
Existencia politica da nacionalidade --Ogallego 20
dialecto archaico .
Quando começa oportuguez a ser lingua escriptà 24
a ) Documentos diplomaticos . 24
b) As fórmas litterarias: Chronistas,e eruditos ec
clesiasticos.- Primeira disciplina grammati
cal . . 25
c) Os documentos poeticos : influencia franceza 27
Caracter e tendencias do desenvolvimento da
lingua portugueza 29
a ) Os eruditos approximam -na artificialmente do
latim 29
b) Falta de tradições nacionaes : 30

PRIMEIRA EPOCA

TROVADORES E CANCIONEIROS
(SECULO XI A XIV )
CAP . 11. - - Os Trovadores portuguezes :
- Apparecimento da Poesia provençal. Teria
uma origem popular ou tradicional ? 32
Communicação do lyrismo da Provença a Por:
30
tugal .. 36
466 INDEX

a ) Situação especial da Galliza para a communi


cação da Poesia provençal. 36
b ) Phase italo-portugueza : Trovadores que vie
ram a Portugal 38
- Elemento popular do lyrismo provençal portu 40
guez
0 cyclo dionisio e a corrente franceza 51
a) Elemento portuguez nas Canções : Estrebilhos
historicos . 51
b) Influencia do norte da França 55
c) El-rei D. Diniz e a sua côrte poetica 58
d) o Conde de Barcellos . -D . Affonso Sanches : . 62
e ) Lucta com as tradições bretās 65
Tentativa de uma renascença da Poesia gallega 68
Emigração de fidalgos gallegos para Portugal. 68
b ) Vasco Pires de Camões . 69
CAP. III. Ficções, Lendas, Chronicas e Philosophia :
Confusão entre os justos limites da poesia e da 71
historia
a ) O Rei Lear. 72
b ) A Dama pé de cabra . 75
c) Gaia 78
Formação do Amadis de Gaula . 79
Argumentos afavor da redacçãoportugueza 85
Os Livros de Linhagens ou Nobiliarios . 89
- Fundação da Universidade de Lisboa . 93
Philosophia aristotelica- averroista : 95
98
Chronicas e Relações historicas.
a) Chronica breve do Archivo nacional 99
100
b ) Chronica geral de Hespanha 102
c ) Vida da Rainha Santa Isabel
d ) Relação da Batalha do Salado . 103
105
Chronicu da Conquista do Algarve. 106
f) Traducções diversas

SEGUNDA EPOCA
ESCOLA HESPANHOLA
(SECULO XV)
CAP, IV. Estado da Lingua e do meio litterario :
Relação entre a lingua e a litteratura no se
culo XV 109
INDEX 467

CAP. V .-- Existencia deumelemenio popular para a litte


ratura do seculo XV :
Contradicção entre o genio popular dos erudi
tos . 123
- Formação dos Romances no seculo xv 128
CAP. Vir- Cancioneiro geral e suas origens. Poesia na
côrte de D. Affonso Ve D. João II :
Causas do desenvolvimento da poesia palaciana 133
Cancioneiros anteriores á collecção de Garcia
de Resende 135
a) Livro das Trovas de El-rei D. Duarte . 135
b) Cancioneiro do Conde de Marialva . 137
'1 .. A Canção do Figueiral . 138
2.° Fragmento do poema da perda de Hespanha 139
3.º As duas Canções de Egas Moniz. 141
deHermingoresou oTraga -Mouros. 142
4. Canção
Cancioneiro do Abbade D. Martinho 143
Cancioneiro portuguez 152
Cancioneiro manuscripto da Biblioth. d'Evora 144
144
Cancioneiro portuguez da Bibl. de Madrid.
Formação do Cancioneiro geral por Garcia de 145
Resende
a) Relaçõesdo Cancioneiro com a vida historica
do seculo xv . 146
b) O Cancioneiro geral como obra de litteratura 150
CAP. v.- Historia, Philosophia , Ficções e Viagens :
Desenvolvimento da fórma historica no se
culo XV 153
a) A Torre do Tombo 155
b ) Conversão das Estorias em Caronicas. 157
1.0A Chronica da fundação do Moesteiro de s.
Vicent 157
e .
2. Vida de Dom Telio 162
3.0 Chronica do Condestabre . 163
Os grandes Chronistas do seculo xv 164
1.• Fernão Lopes 164
2.• Gomes Eannes de Azurara 168
3. Ruy de Pina . 169
- Philosophia, Legislação, Imprensa. 172
1.• Côrte Imperial 173
2.• A Virtuosa Bemfeituria . 174
3.° 0 Leal Conselheiro 175
4.• As Ordenações Affonsinas 177
-Imprensa em Portugal- Publicação da Vita
Christi 771
468 INDEX

-Ficções novellescas.- Viagens. 180


1.º Demanda do Santo Great 180
2.° Livro de Josep ab Arimathia . 181
3.º Chronica de Dom Duardos 182
4.•Estoriadomui nobre Imperador Vespasiano 184
183
- Viagens

TERCEIRA EPOCA
OS QUINHENTISTAS
(SECULO XVI)
CAP. VIII. A disciplina grammatical no seculo XVI :
A educação portugueza no estrangeiro • .
185
- A Grammatica de Fernão de Oliveira 189
1. • Alterações phonicas . 194
2.° Alterações morphicas. 196
3. ° Alterações syntacticas 197
- A Grammatica de Joâo de Barros. 199
- Influencia dos poetas, de Gil Vicente a Ca
mões 203
- Orthographia da lingua portugueza - Ori-: 205
gem da lingua portugueza
po :
CAP. ix.- Existencia deum elemento tradicional e popu
lar na litteratura :
Separação entre os escriptores e o povo . 210
-Allusões dos escriptores aos Romances popu
lares . 212
Gil Vicente 212
Jorge Ferreira de Vasconcellos. . 214
Antonio Prestes . 215
Luiz de Camões 215
– Fórmas do lyrismo popular. 219
- Autos hieraticos, populares e aristocraticos .
225
CAP . X. Creação do Theatro nacional por Gil Vicente :
Personalidade historica de Gil Vicente . 229
Condições em que introduz o theatro em 1502. 232
- A farça de Luiz Pereira e os critico eruditos . 235
-Gil Vicente, Ourives 237
Eschola de Gil Vicente: Chiado, Prestes, " Ca.
mões e Balthazar Dias . . 242
CAP . XI.- Os Bucolistas- Eschola hispano-italica :
Caracter tradicional da poesia pastoril port. 248
· Bernardim Ribeiro 25 ]
INDEX 469

Christovam Falcão 255


Os poetas da medida velha 260
CAP . XII.- Sá de Miranda e a introducção da Eschola ita
liana em Portugal :
Renascença da Italia nas litteraturas romani
cas 263
Så de Miranda 266
- Eschola de Sá de Miranda : Ferreira e o Thea.
tro classico . 272
Caminha, Bernardes,D. Manoel de Portugal,
Frei Agostinho da Cruz, Falcão de Resende 278
A vida de Camões 287
O Parnaso de Luiz de Camões . 293
Os Lusiadas, epopêa de nacionalidade. . .
296
Os Lyricos camonianos 299
CAP. XI .-- Camões e a sua influencia na litteratura e na
cionalidade:
Epopêas historicas do seculo xvi . 308
CAP . XIV.- Historia, Philosophia e Eloquencia : 314
Historiographia .

323
Historia nos claustros
Historiadores insulanos. 325
Philosophia . 326
328
-- Eloquencia
CAP. XV. Viagens, Ficções novellescas:
330
Viagens
- Ficções novellescas e Contos 333

QUARTA EPOCA
OS SEISCENTISTAS
(SECULO XVII)

CAP . XVI.--Estado da Lingua e da Litteratura:


Caracter do seculo xvii e dos Seiscentistas 340
Estado da Lingua e da Philologia . 342
Tentativa de reforma dosestudos philologi
COS 348
A traducção da Biblia pelo Padre João Fer
reira de Almeida. 350
Indo -portuguez, ou Portuguez -reinol 351
CAP. XVII.— O culteranismo na poesia portugueza :
As Lyricas de Francisco Rodrigues Lobo 353
- D. Francisco Manoel de Mello . 358
470 INDEX

-
Academia dos Generosos . 364
Academia dos Singulares 366
Poesia mystico -amorosa. 368
Os Poetas da Phenix renascida 372
As Epopêas ricas. Os Tassistas 375
a) Elemento tradicional nas epopêas do seculo
XVII . 375
b) O elemento historico das Epopêas cultistas . 377
Theatro : Autos e Comedias de capa e espada 383
a) Os Pateos das Comedias 383
b) As Tragi-comedias dos Jesuitas 385
c) Autos hieraticos nacionaes. 386
Cap. xviii.-Historia, Eloquencias,Chronista
Novellas :
-Frei Luiz de Sousa, 390
Jacintho Freire de Andrade : 395
- D. Francisco Manoel de Mello . 396
A Eloquencia sagrada – Vieira 398
As allegorias pastoraes 401
- As Cartas da Religiosa portugueza 405

QUINTA EPOCA
AS ACADEMIAS LITTERARIAS
(SECULO XVIII)
CAP. XIX. Reacção a favor da lingua e da litteratura :
Espirito do seculo xyii. - Bluteau e o Vocab. 406
-- Fundação da Academia ds Historia portug. 411
Verney e o Verdadeiro methodo de Estudar . 414
Cap . XX ,
A Arcadia Ulyssiponense- Dissidentes da Ar
cadia e a Nova Arcadia :
Estado da Poesia antes da Arcadia . 420
A Arcadia Ulyssiponense 0 423
a) Organisação da Arcadia. 424
b) Catalogo dos Socios da Arcadia 425
c) Garção, Diniz, Quita e Manoel de Figueiredo 427
Os Dissidentes da Arcadia . 432
A Nova Arcadia . 436
· Arcadia ultramarina . 441
A Opera e o Cesarismo 444
INDEX 471

SEXTA EPOCA

O ROMANTISMO
(SECULO XIX)
CAP . XXI. Tentativa de renascença do genio nacional:
· Valor do Romantismo 449
-- Garrett e a inspiração nacional 454
a ) O Romanceiro portuguez 454
b ) Fundação do Theatro portuguez 457
Os Romances historicos . 462
Index. 465
Indice onomastico . 472
-
INDICE ONOMASTICO

Affonso de Albuquerque, 323. Antonio Ribeiro dos Santos ,


· Affonso Alvares, 242 . 5, 81 , 138 .
Affonso Giraldes , 65 . Antonio de Sousa Macedo, 347,
Affonso Lopes Baião, 57, 140 . 397 .
Affonso Sanches, 59, 63 . Antonio Vieira (Padre) 225,
Affonso Valente, 262. 398 .
Agostinho Barbosa, 209 . Ayres Barbosa, 187 .
Agostinho da Cruz ( Fr.) 282. Ayres Telles, 188, 281,
Alexandre de Gusmão, ( Padre) Balthazar Dias, 245, 246, 262.
404 . Balthazar Estaço, 305.
Alvaro Fernandes, 311 . Balthazar Gonçalves Lobato,
Alvaro Ferreira de Vera, 343, 337 .
346 . Bento Pereira (Padre) 345,385.
Alvaro da Mota, 162. Bernardim Ribeiro , 98, 144,
Alvaro Velho, 184. 249, 251 , 334 .
Amaro de Roboredo, 348 . Bernarda Ferreira de Lacerda,
André Falcão de Resende, 284, 370, 382.
295, 299, Bernardo de Brito (Fr. ) 137,
André Nunes da Silva, 381 . 260, 324, 377 .
André de Resende, 187, 188, Bernardo Rodrigues, 303.
283 . Braz Garcia de Mascarenhas,
André Rodrigues de Matos, 367 368, 382 .
Antonio de Almen , 285, 300. Conde da Ericeira, 412, 450.
Antonio Brandão ( Fr.) 158 . Conde D. Pedro , 59, 62.
Antonio das Chagas, (Fr.) 369. Condestavel de Portugal, 128,
Antonio Diniz da Cruz e Silva, 137, 149 .
424 , 429. Christovam Falcão, 45, 252,
Antonio Ferreira, 204,272,323. 255 .
Antonio Galvão , 317 , 321 . Damião de Goes, 154, 166, 279,
Antonio José da Silva, 444. 321 .
Antonio de Mello da Fonseca, D. Diniz, 25, 56, 58, 63.
407 . Diogo Bernardes, 280.
Antonio Pereira Marramaque , Diogo Camacho, 374.
270. Diogo do Couto, 216, 258, 292,
D. Antonio Pinheiro, 329 . 320 .
Antonio Prestes, 215, 244. Diogo Ferreira Figueirôa, 403.
Antonio Ribeiro Chiado, 45, Diogo de Paiva de Andrade,
242. 328, 329.
INDICE ONOMASTICO 473

Diogo de Teive, 275 . Garcia de Resende, 145, 151,


Domingos dos Reis Quita, 169, 172, 236 .
430 . Garrett, 453.
D. Duarte, 113, 114, 116-119, Gaspar Barreiros, 315.
135, 175, 176 . Gaspar Correia, 315.
Duarte Nunes de Leão, 5, 206, Gaspar da Cruz, 324.
320 . Gaspar Fructuoso, 325 .
Egas Moniz, 141 . Gerardo de Escobar, 403.
Eloy de Sá Soutomayor, 402 . Gil Pires, 25.
Estevam Rodrigues de Castro, Gil Vicente, 44 , 45, 48,49, 129 ,
302. 131, 150, 203, 212, 242.
Felix Castanheira Turacem , Gomes Eannes de Azurara, 125 ,
404 . 127, 156, 163, 168, 182,221,
Fernão Alvares d'Oriente,281, 228 .
300, 336 . Gomes de Santo Estevam ,330.
Fernão Lopes de Castanheda, Gonçalo Annes Bandarra ,224,
205, 272, 316 . 362 .
Fernão Mendes Pinto, 331 . D. Gonçalo Coutinho, 266, 267,
Fernão Novaes, 170. 305 , 337.
Fernão de Oliveira , 187, 189, Gonçalo Fernandes Trancoso ,
230 . 338 .
Fernão Rodrigues Lobo Soro- Heitor da Silveira, 278, 285 ,
pita , 304. 299 .
Francisco Alvares,(Padre) 332. Henrique Ayres Victoria ,278 .
Francisco de Andrade, 311 . Hieronimo Dias Leite, 225.
Francisco Brandão, (Fr.) 102. Ignacio José da Silva Alva
Francisco Galvão, 302. renga , 441 .
Francisco José Freire, 415. Infante D. Pedro, 113 , 146
Francisco Lopes, 223. 148 , 165, 174, 178.
D.Francisco Manoel de Mello, S. Isabel ,102.
223, 358, 387, 396. Jacintho Cordeiro, 388 .
Francisco Manoel do Nasci- Jacintho Freire de Andrado,
mento, 434 . 374, 395 .
Francisco de Moraes, 244,336 . Jeronymo Cardoso, 205.
D. Francisco de Portugal,260, Jeronymo Corte Real, 218,
370 . 309.
Francisco RodriguesLobo,346, Jeronymo Ribeiro, 243 .
353, 378, 402 . Jeronymo Vahia , 369, 373.
Francisco de Sá de Menezes, D. Joanna da Gama, 328.
309, 382. João Ayres de Moraes (Padre )
Francisco de Sá de Miranda, 387.
107, 205, 249,253, 265, 266. João Baptista Gomes,481 .
Francisco Vaz de Guimarães João deBarros, 199, 230, 291,
(Padre) 386 . 319, 327, 333
Gabriel Pereira de Castro, Dr. João de Barros, 87, 327.
378. João Claro, (Frei) 119.
474 INDICE ONOMASTICO

João Ferreira de Almeida (Pa- D. Manoel de Portugal, 222,


dre ) 107, 350. 283 .
João Franco Barreto, 345. Manoel Severim de Faria, 320 ,
João Lopes Leitão, 300 . 394.
João de Lucena (Padre) 332. Manoel doSepulchro ( Fr.) 115.
João 1 (D.) 173. Manoel Thomaz, 371, 386.
João Rodrigues de Sá,171,267. Manoel da Veiga, 302.
João Zorro, 42. Marcos de Lisboa, (Fr.) 324.
Jorge Cardoso, 220. Maria, (D.) 188.
Jorge Fernandes, 303. Marianna Alcoforado, 404 .
Jorge Ferreira de Vasconcel- Matheus Pisano, 154 .
los,45,152, 214,261,274,337. Matheus Ribeiro, (Padre) 404.
Jorge deMonte-Mór,255, 271, Miguel Leitão de Andrada,132,
297, 335, 402. 139, 244, 281 , 305 .
Jorge de Vasconcellos, 146. Miguel da Silveira, 367.
Jose Agostinho de Macedo,439. Nicolao Luiz, 278 .
José Basilio da Gama, 443. Nicoláo Tolentino, 432.
José de Santa Rita Durão,443. Nuno Alvares Pereira Pato
José Soares da Silva, 413. Moniz , 437.
D. Leonor de Noronha, 188. Nuno Barreto Fuzeiro , 371.
Lopo de Almeida (D.) 184 . Pantaleão de Aveiro ,(Fr.)332.
Luiz Antonio Verney ,347,414. Paula Vicente , 241.
Luiz Brochado , 262 . Paulo da Cruz (Fr.)Vid . Jorge
Luiz de Cacegas, (Fr.) 392. Fernandes .
Luiz de Camões,70, 203, 215, Pedro Antonio Corrêa Garção,
245, 287 . 427.
Luiz da Cruz ( Padre) 383 . Pedro de Andrade Caminha,
Luiz Franco Corrêa, 284, 289, 278, 322, 394.
300. Pedro da Costa Perestrello,218
Luiz Henriques, 151. 281, 297, 300.
Luiz (Infante D. ) 187, 242. Pedro Hispano , 97.
Luiz Pereira Brandão ,312. Pedro Salgado, 388.
Luiz de Sousa , (Fr.) 390. Raphael Bluteau, ( D. ) 408 .
Manoel Alvares, (Padre) 347. Rodrigo da Cunha, D.) 158,
Manoel Barata , 304. 293.
Manoel
404 .
Bernardes (Padre) 401, Roque de Thomar ,(Fr.) 10.7.
Ruy de Piņa, 52, 169 .
Manoel de Faria e Sousa, 367. Simão Machado, 388.
Manoel de Figueiredo, 431 . Thomaz Antonio Gonzaga ,442.
Manoel de Galhegos, 379, 381, Thomaz Antonio dos Santos
386 . Silva , 437 .
Manoel José de Paiva, 416. Vasco de Lobeira, 85, 86, 87.
Manoel Machado de Azevedo , Vasco Mousinho de Quevedo,
267, 269. TIS , 303, 312 .
Manoel Maria Barbosa a Bo- Vasco Pires deCamões,69,20
370 .
4.
cage, 438. 26 JY
Violante do Céo, (Soror)
84

LUSEURS
ERRATAS PRINCIPAES

PAG . LINHA ERRO EMUNDA

25 33 Moo Mouro
57 25 Aoi da Aoi da
63 16 fallamos . fallemos
64 26 morra . moira
84 not. Werwic et Werwik e
89 27 minguem mingoa
92 32 logia , lologia
94 10 produziu . produziram
128 13 buscou baseou
167 17 livres . livros
171 28 Chamelete chamalote
173 18 livre livro
198 15 em . .eu
199 23 terra tenra
204 24 latina . latim
207 25 depravava depravada
222 15 Galli . Calli
228 20 sobre . sob
K % 吡 7 % 47B % A % 87KB4 % A8

234 17 soutra outra


244 22 Andrade . Andrada
263 ult. Lobeão Labeão
267 -om com
)) 22 dos das
288 á &
298 tradicção tradição
299 Soropita - Soropita ,
303 24 introduziu introduziram
345 10 do . de
355 A a ciprontada, etc. A roca pintada, etc.
360 22 bre bres
367 sua pela . pela sua
>) 17 Manoel Miguel
387 16 Antão . Simão
399 14 condemnam-lhe condemnam, chamam-lhe
407 20 Ordem . ordem
411 10 derrota . denota
412 21 1710 . 1719
26 JY 84

USLUN
5
‫܊‬

Você também pode gostar