SANTOS, A. A Menina Vitória
SANTOS, A. A Menina Vitória
SANTOS, A. A Menina Vitória
ARNALDO SANTOS 83
ARNALDO SANTOS que, pelo trajeto, ele podia apanhar pequen~s. tufos de capim. ls.50
passou a ser a sua única alegria, porque o Glgl estranhou o colégIO.
Arnaldo Moreira dos Santos nasceu em Luanda, em 1935. Colaborou
em jornais e revistas e sua obra foi incluída em antologias poéticas. nacio-
A professora da 3.a classe, a menina Vitória, era uma mulatinha
nais e estrangeiras. Publicou: Fuga (poemas, 1960); Kinaxixe (contos, 1965); fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole.
Tempo de munhungo (crônicas, 1968); Poemas no tempo (1976); Prosas (1977). Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momento
livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos
alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras
filas.
Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-o
para uma carteira do fundo da aula, junto de um menino com cara
A menina Vitória'" de pu co, a quem chamava cafuzo, por ser muito escuro. Mas o menino
cafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insu-
Transferiram-no no meio do ano letivo para o colégio do Pucha ficiente para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tirava
Beatas, por causa dos piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que os os olhos do livro, nem mesmo quando a menina Vitória se referia a
professores o achavam muito fraco. ele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. "Pareces
o Matoso a falar ... ", "Sujas a bata como o Matoso ... ", "Cheiras
O Sr. Sílvio Marques, embora pouco exigente consigo em relação a Matoso ... " - e ele guardava-se cada vez mais à carteira, transido
à pronúncia - trocava amiúde os vv pelos bb -, era no entanto por aqueles comentários impiedosos.
muito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente o Gigi sem-
Fora também transferido da Escola 8 e, mesmo no dia da apre-
pre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito os
sentação, a menina Vitória não escondera a sua má impressão, com
olhos, o que significava o mesmo. Também os amigos dele, aos do- alusões veladas à sua bata de brim grosso. Porém o seu azedume
mingos, debaixo da mulembeira e entre uma ou outra jogada de cresceu quando, tempos depois, o Matoso lhe respondeu distraidamente
sueca, comentavam as incorreções do Gigi. E sibilavam (alguns eram em quimbundo. "O quê, julgas que eu sou da tua laia ... !?" Daí por
da Beira Alta), lamentando que a pronúncia do garoto se estragava, diante o seu nome era jogado pela aula com crueza, criando um
que era preciso afastá-lo da companhia dos criados e dos colegas símbolo maldito, que o Gigi mais tarde, atemorizado, reconheceu
dos musseques. Todos concordavam que era pena, porque ele já se facilmente. Era uma imagem familiar. Estava muito perto de si e dos
podia considerar como um branco, embora D. Angelina fosse mulata, seus companheiros do 'Kinaxixe. Mas por que ele irritava tanto a
mas enfim ... era senhora de princípios. O Sr. Sílvio ouvia-os atento, professora e lhe merecia aquela troça? O Gigi retraiu-se.
e considerava conscienciosamente a crítica, porque afinal se tratava
Olhava para os colegas de soslaio, inseguro. Eles iriam troçar
do futuro do seu secretário, como dizia referindo-se ao filho.
também dele, da sua bata modesta de brim, dos seus sapatos puídos,
Assim, embora com sacrifício, porque o colégio era caro, a quase rotos? E não respondia quando a menina Vitória o chamava
transferência teve que se fazer. Mas valia a pena, anunciara a mãe às à lição, receando um despropósito que o identificasse com o Matoso.
vizinhas. "Aqueles meninos muito arranjadinhos, levados pela mão "Vêm para aqui neste estado e depois quetem milagres!" - suspirava
dos criados, e alguns até de carro ... ! Que diferença!" - exclamava, a professora. Era com certeza do método de ensino da Escola 8, ou
não escondendo a vaidade, no dia em que o levou ao colégio. da sua influência perniciosa. Mas tolerava-o lá no fundo da aula. E
Gigi ganhou roupa nova, uma sacola bordada e muitos conselhos o Gigi diminuía-se ainda mais para não se tornar notado, esforçando-
de D. Angelina, que se afligia com a sua aparência. Mas da mudança -se num mimetismo impotente por imitar os gestos dos meninos da
mesmo o que o Gigi mais gostou foi dos passeios na moto com carro baixa. Tenho que ser como eles, refletia no recreio, afastando-se dos
lateral, em que o pai o levava ao colégio. O assento era tão baixo alunos da 4.a classe, que eram, na maioria, os seus companheiros ele
vadiação do Kinaxixe. Ficava então a jogar com os estames elos
* Reproduzido de SANTOS, Arnaldo. Kinaxixe e outras prosas. São Paulo. botões que caíam das acácias, e reprimia a vontade de trepar ao cimo
Ática, 1981. p. 32-37·. delas, para colher os botões compridos de estames longos e Clll'VOS,
8~ ESTÓRIAS DE ANGOLA ARNALDO SANTOS 8S
que venciam todos os outros. Bocejava enquanto brincava com o balan- - Higino, a tua redação?
ceio das anteras e via-as cair sem entusiasmo. Depois submergia de O Gigi naquele dia estava contente com o seu trabalho. O tema
novo na turma e só um ou outro desatino o fazia surgir à tona. era sobre uma figura importante do Governo e ele não esquecera os
"Muxixeiro na redação. .. que coisa é esta ... !?" - alarmava-se a adjetivos mais expressivos que na véspera a professora tinha proferido.
menina Vitória, considerando o neologismo inferior. E a meninada Isso dar-lhe-ia com certeza satisfação. Os meninos da baixa, mais
da baixa ria e surriava, porque na baixa não tinha muxixeiro. Gigi libertos da coação da professora, não tinham sido convincentes,
torcia a cara, engonhava com medo de explicar. Calava-se. Mas fixava limitando-se a referências distraídas, o que a tinha irritado.
prudentemente o reparo. Embora confiante, o Gigi estremeceu ao ouvir o seu nome. Que
Nas suas redações vagueava então tímido sobre as coisas, com diria ela, pensava agitado, depois de lhe ter estendido timidamente o
medo de pois ar nelas, decorava os nomes das árvores, das aves, dos caderno. Enquanto a via ler atreveu-se a tentar decifrar-lhe no rosto
jogos descritos no seu livro de leitura. Procurava esquecer o colorido algum indício revelador, mas a menina Vitória parecia de pedra.
vivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco que Reparou-lhe então nos lábios pintados e nas linhas muito definidas
ele perseguia na floresta e cujo canto escutava trêmulo atrás dos dos seus contornos que pareciam emoldurar o bâton. As sobrancelhas
muxitos, o sabor ácido dos tambarinos que colhia sedento, o suor aparadas e finas afastavam-se das órbitas por um traço de carvão, e
e o cansaço das longas caminhadas pelas barrocas, a emoção dos seus isolavam uns. olhos castanhos-barrentos como a água da lagoa do
jogos de atreza e cassumbula. Imitava passivamente a prosa certinha Kinaxixe. Mas subitamente eles abandonaram o caderno e voltaram-
do gosto da menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidades -se para si, perplexos. Apanhado em flagrante, o Gigi baixou a cabeça.
insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de A menina Vitória olhava-o silenciosamente e os alunos da classe, pres-
menino livre, agora proibidas e imprestáveis. sentindo algo de estranho, apagaram as conversas. Esperavam. Gigi
Quando o Matoso lia submisso a sua redação, onde pintassilgos esperou também e as comissuras dos lábios entreabriram-se num sor-
gorjeavam e debicavam cerejas amarelas (o Matoso explicara-lhe num riso de confiança.
recreio que as cerejas eram as gajajas do puto), intimamente o Gigi - Com que então pretendes brincar comigo ... ? - ela falava-
perguntava-se onde é que ele tinha descoberto tudo aquilo. "Cada vez -lhe friamente ...
pior ... !" - rezingava a menina Vitória, que não se compadecia Gigi empalideceu. Alguma coisa tinha falhado. Mas o que é que
com os enganos. E continuava a erguer à volta do Matoso, implacavel- poderia ter sido? Estavam lá todos os louvores pelas pontes e estradas
mente, um círculo intransponível de desprezo, onde ele já não se que ele construíra. Ter-se~ia esquecido de algum fato importante?
debatia, nem chorava. Apenas no rosto as suas feições endureciam Olhou o caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, mas não
sob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a. distinguiu as letras subitamente misturadas. A acusação, porém, veio
Tenho que andar pouco com ele, pensava preocupado o Gigi. A sem tardar, inexorável, imprevisível. Como é que ele se atrevera a
professora pode virar-se contra mim. E fugia, afastava-se também da tratá-lo por tu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear com um
simples artigo definido!?
sua companhia, deixando-o abatido, solitário, dentro das suas ruínas.
Tinha medo de enfrentá-la. Precisava de esconder o segredo ilegítimo - Ouve lá. .. tu julgas que ele anda sujo e roto como tu, e
do seu passado igual. Precisava de o dissimular para que não fosse come funje na sanzala ?
destruído. "Mulatona... nem cabrita é ... " - insultava-a furioso - Não ... não não é ... - gemia o Gigi, desnorteado, ten-
à tardinha quando regressava a casa. E até à noite, descalço, gritava tando estancar o fluxo daquelas insinuações que ele temia.
pelo bairro junto dos seus camaradas do \Kinaxixe a sua; juventude De repente exibia-se aos olhos dos colegas deformado como uma
ameaçada, correndo, bassulando, assaltando as quitandeiras de quitetas. caricatura, o compromisso irrecusável que circulava no seu sangue e
"Restos dos maus hábitos ... " - lamentava-se D. Angelina. A que até ali inutilmente escondera. Uma vaga de calor inundou-lhe o
gradual sisudez começava a animá-la e por isso não compreendia rosto e invadiu-o levemente uma sensação ~ntorpecente. Os seus
aquelas súbitas erupções de revolta. " ... mas o colégio leva-o à ordem!" ombros encurvavam-se. Sentiu-se muito fraco. Já nada tinha que dis-
- confiava. Realmente a menina Vitória, como uma jibóia enlaçada farçar, mas estava triste perante a luta que pressentia. Mas por que,
em cima da árvore, vigiava-lhe os mais pequenos movimentos. por que que ela, logo ela, o queria humilhar? Ela que tinha carapinha.
86 ESTóRIAS DE ANGOLA
UANHENGA XITV 87
Ela que era filha de uma negra, pensou com furor. Os seus músculos
crisparam-se e o caderno começou a amarrotar-se-Ihe nas mãos. Depois
UANHENGA XITU
mal sentiu a violência da palmatória. Só nas faces a queimadura viva
Nasceu Uanhenga Xitu (Agostinho Mendes de Carvalho) em Calomboloca,
da humilhação, só nos ombros a responsabilidade da sua condição, Angola. Esteve preso de 1959 a 1970 em Tarrafal, Cabo Verde. Publicou:
de que ele não tinha culpa, mas que queria aceitar mesmo dolorosa Bola com feitiço (1974); Vozes na sanzala (1976); "Mestre" Tamoda e outros
como as pulsações que lhe ressoavam nas palmas das mãos inchadas. contos (1974); Manana (romance, 1974); Os sobreviventes da máquina colo-
nial depõem (Edições 70, 1979).
E na carteira chorou. Chorou de raiva, da dor que lhe nascia
da piedade dos colegas e da vergonha de não poder esconder a sua
angústia, com os olhos secos, enxutos, e orgulhosamente raiados de
sangue, como os do Matoso.
"Mestre" Tamoda*
À memória do saudoso e malogrado
meu compadre Kamundongo (Higino
Aires Alves de Sousa Viana e Almeida),
falecido em 11/ 1/1970, num domingo.
Morreu o Higino .Aires!!! ...