Figueiredo - Descolonizacao Do Conhecimento

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Descolonização do Conhecimento no Século XXI

Ângela Figueiredo

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao convite, mas,


sobretudo, agradecer a confiança depositada em mim pelos pro-
fessores Ronaldo Barros, Ana Rita Santiago e Denize Ribeiro para
proferir a palestra de abertura do II Fórum Internacional 20 de No-
vembro e o do VII Fórum Pró-Igualdade Racial e Inclusão Social
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Quero
justificar a ausência do professor e amigo Ramon Grosfoguel, da
Universidade de Berkley. Ramon deveria estar hoje aqui conosco,
mas, infelizmente, ficou muito doente após uma viagem à Colôm-
bia, o que lhe impossibilitou de vir ao Brasil. Gostaria de agrade-
cê-lo pelos intensos debates por quase uma década nos encontros
promovidos pelo curso Fábrica de Ideias e dizer o quanto foi difícil,
para mim, assumir uma postura descolonial na produção do conhe-
cimento. Pior do que isso foi reconhecer o quanto a minha formação
era machista, sexista e colonizada. Quero agradecer, especialmente,
a minha querida Cintia Tâmara pelo apoio e estímulo e por cobrar
de mim a necessária e urgente coerência entre a teoria e a prática.
80 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

Dizem que santo de casa não faz milagre. Por isso, hesitei
em aceitar o convite, pois sei que o habitus acadêmico, muitas vezes,
depõe contra nós, quer dizer, de acordo com um conjunto de regras
pré-estabelecidas, a nossa produção/reflexão deve sempre ser mostra-
da e discutida fora de casa. Está prática reflete de certo modo a crença
numa desvinculação entre a produção do conhecimento e interesse
político, assim como revela uma suposta “neutralidade” na produção
do conhecimento, dois grandes mitos que procurarei desconstruir ao
longo da minha fala, pois, como afirmam as feministas, “todo conhe-
cimento é posicionado”.
Além disso, estou ciente da minha responsabilidade, já que os
Fóruns têm se constituído como um espaço importante de reflexão co-
letiva sobre as hierarquias raciais, as diferentes formas de resistência,
as articulações política e acadêmica negra no Brasil. Igualmente im-
portante é a minha responsabilidade em fazer a abertura de um evento
que, no ano passado, contou com a valorosa contribuição da ativista
dos direitos civis e professora Ângela Davis. Espero que os orixás me
iluminem nesta tarefa desafiadora.
Ingressei na UFRB como professora em julho de 2008, desde
então, tenho acompanhado o crescimento, desafios, aprendizados e os
embates teóricos e políticos que caracterizam o cotidiano de nossa uni-
versidade. A UFRB já nasceu com o sistema de cotas iniciado no Bra-
sil, desde 2002, e que reserva um percentual do número de vagas para
negros, indígenas e estudantes oriundos de escolas públicas. Mas, de
que modo a adoção desta política influencia a nossa reflexão acadêmica
e a nossa prática cotidiana? O que temos aprendido? O que fazemos
e o que ainda precisamos fazer para que a universidade cumpra o seu
papel? Como não transformar os nossos estudantes em assimilados,
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 81

aqueles precisam esquecer quem são para se transformar num outro


aceitável? Qual o papel do (a) intelectual negro (a) nesse processo?
A implementação do sistema de cotas nas universidades pú-
blicas brasileiras tem suscitado intenso e caloroso debate entre os
intelectuais brasileiros antirracistas, que almejam a construção de
uma sociedade mais justa, mas que se colocam em posições contrá-
rias quando o tema é a implementação de cotas. A reação negativa
desses interlocutores brancos e mestiços, de esquerda e de direita,
com relação às políticas de cotas, deriva da preocupação com a pos-
sibilidade de criarmos um Brasil racializado, destruindo, assim, o
nosso tão caro discurso da mestiçagem.
A década de 1990 constitui um período singular na história das
relações raciais brasileiras. Afinal de contas, é no governo de Fernando
Henrique Cardoso que, pela primeira vez, se admite, oficialmente, a
existência de preconceito e de discriminação raciais em nossa socieda-
de. Isto veio, do ponto vista político, ao encontro das conclusões a que
haviam chegado diversas pesquisas realizadas desde a década de 1970,
que deslocavam a crença na democracia racial brasileira, paradigma
interpretativo sobre a nossa sociedade que teve na obra Casa grande &
senzala, de Gilberto Freyre, sua grande representação.
Esse movimento, que se consolida na década de 1990, con-
tou, fundamentalmente, com a contribuição de dois atores: o ativis-
mo negro e alguns cientistas sociais aliados à luta política. Mas, é
também nas ciências sociais que se encontram os maiores opositores
ao sistema (MAGGIE e FRY, 2009; CHOR MAIO, 2004 e VENTU-
RA (2005). Do ponto de vista da produção acadêmica nesse âmbito,
é incontestável a contribuição de alguns autores que se encarrega-
ram de demonstrar, já na década de 1970, as desigualdades raciais na
82 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

configuração do mercado de trabalho e dos seus desdobramentos, em


períodos posteriores, nas pesquisas sobre as desigualdades no acesso
à educação e nos desníveis de renda entre negros e brancos. O ar-
gumento desenvolvido por essa nova vertente sociológica opunha-se
tanto à tese anterior, que buscava entender as manifestações de pre-
conceito e de discriminação raciais apenas nas relações interpessoais
e menos na estrutura – por isso mesmo, a importância atribuída à mo-
bilidade ascendente e aos casamentos ou uniões interraciais –, quanto
à tese, inicialmente formulada por Florestan Fernandes, em 1972, de
que as desigualdades raciais no Brasil eram resquícios de um passado
escravista e que tenderiam a desaparecer a partir das novas relações
de trabalho presentes no sistema capitalista.
A tese defendida por Carlos Hasenbalg, em 1979, por exem-
plo, argumentava que o racismo e a discriminação racial resultavam da
competição só existente no capitalismo, no sentido de que só a partir
da concorrência em que tal sistema viceja é que veríamos surgir a dis-
criminação racial e o racismo sob sua formulação moderna. Entretanto,
a perspectiva da colonialidade do poder, articulada por Aníbal Qui-
jano (1993, 1998 e 2000) considera que o racismo e a construção de
categorias raciais começam com a formação da divisão internacional
do trabalho do sistema-mundo europeu capitalista/patriarcal moderno/
colonial no final do século XV, em 1492.
É importante destacar três importantes aspectos: primeiro, as
diferentes formas de interpretação das desigualdades raciais e do racis-
mo na sociedade brasileira; segundo, a evidência, como mostra a pers-
pectiva latino-americana, de que o racismo não é um fenômeno moder-
no; terceiro, a necessidade de estabelecer, desde já, uma ruptura entre o
racismo contemporâneo e as teorias raciais ocidentais prevalecentes no
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 83

século XIX, mais conhecidas entre nós, que eram fundamentalmente


baseadas na crença da diferença biológica. Pois sabemos que, na mo-
dernidade, os racismos culturais, mais conhecidos como (xenofobia) e
o racismo biológico coexistem, porém, dependendo do contexto histó-
rico-colonial, um prevalece sobre o outro.
Estudos genéticos mais recentes, inclusive desenvolvidos no
Brasil, mostram que, do ponto de vista biológico, somos todos mes-
tiços e, para utilizar uma linguagem mais moderna, somos quase to-
dos afrodescendentes, euro-descendentes e índio-descendentes, como
demonstrado por Pena e Bortolini (2004). Nesse sentido, os achados
presentes nos estudos genéticos, nesse âmbito, não servem como base
para o argumento a ser utilizado por racistas e antirracistas, mas para
reafirmar apenas que a raça é uma construção social e, assim sendo, o
nosso diálogo não deve ser estabelecido no campo da natureza, mas,
sim, no da cultura, já que o nosso diálogo tem de ser estabelecido no
campo das relações sociais e das diferenças histórica e socialmente
construídas, em que o fenótipo, e não o genótipo, é importante.
Abordarei nesta fala algumas reflexões sobre a experiência ne-
gra na universidade, tomando como ponto de partida o conhecimen-
to empírico obtido através dos diálogos e as conversas informais com
professores e estudantes negros. Para tanto, assumirei a perspectiva
da colonialidade do poder articulada por Aníbal Quijano, associado à
contribuição fundamental das feministas negras. Desse ponto de vista,
nos parece importante entender a importância da geopolítica do conhe-
cimento, já que é determinante compreendermos a localização epistê-
mica e os interesses políticos existentes na produção do conhecimento.
Para tanto, a minha fala está estruturada em quatro: na primei-
ra, apresentamos a perspectiva da colonialidade do poder para enten-
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der tanto as hierarquias raciais existentes nas universidades brasileiras


quanto alguns aspectos relativos ao debate sobre as cotas; na segunda,
dada a importância do tema das desigualdades ou das hierarquias ra-
ciais no Brasil, apresentamos, ainda que brevemente, a formação do
campo de estudos definido como Estudos das Relações Raciais no
Brasil e as mudanças e tensões ocorridas a partir da entrada em cena
de pesquisadores negros; já na terceira, discorremos sobre as políticas
descoloniais na produção do conhecimento, e, finalmente, no quarto
ponto, retomamos as questões relativas à colonialidade do poder e à
negação do racismo no espaço acadêmico.

A Importância dos Estudos das Relações Raciais no Brasil e a Emer-


gência e Sujeitos Políticos Negros nas Universidades Brasileiras

O campo de estudos conhecidos como Estudos das Relações


Raciais no Brasil constitui o objeto de conhecimento historicamente
produzido por acadêmicos mestiços claros, brancos ou quase brancos,
cuja epistemologia baseia-se no estudo sobre negros, por isto mesmo,
a noção de estudos sobre as “relações raciais” mantém o mito de uma
horizontalidade entre os grupos racialmente diferenciados. Por isso
mesmo julgamos ser mais adequado falarmos de “hierarquias raciais”,
já que enfatizaríamos a verticalidade das relações sobre a suposta ho-
rizontalidade expressa na definição “Estudos das Relações Raciais”.
Diferentemente de outros países, o interesse em entender os
problemas das “relações raciais” constituiu uma preocupação que an-
tecedeu a institucionalização da Sociologia brasileira, a partir da cria-
ção da Escola Livre de Sociologia e Política, em 1933, e da criação da
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 85

Universidade de São Paulo (USP), em 1934. Inicialmente presente no


relato dos viajantes e, em seguida, na obra dos ensaístas, a exemplo de
Sílvio Romero, Manoel Bonfim, Oliveira Viana e, posteriormente, a
partir dos trabalhos de Gilberto Freyre (OLIVEIRA, 1995).
Nesse sentido, a preocupação com as questões de natureza ra-
cial sempre despertou o interesse dos estudiosos, independentemente
dos enfoques e das agendas acadêmicas e políticas. A primeira geração
estava preocupada com o futuro da nação brasileira, condenada pelos
efeitos “maléficos” da mistura de raças. Nesse período, os estudos vis-
lumbravam uma única saída: o clareamento ou o embranquecimento
da população brasileira a partir da mistura das raças em gerações con-
secutivas, ou seja, havia uma crença de que mestiçagens sucessivas
levariam, inevitavelmente, ao desaparecimento da população negra. A
partir dos trabalhos de Freyre, há uma interpretação do Brasil numa
chave cultural; para alguns autores, há em Freyre uma valorização da
mistura racial e cultural. O culturalismo de Freyre acabou por consoli-
dar a crença na democracia racial brasileira, paradigma interpretativo
vigente pelo menos até o início dos anos 90.
O terceiro momento é caracterizado pela institucionalização da
Sociologia e, consequentemente, pela adoção de técnicas de pesquisa
e reflexões teóricas mais rigorosas. Aqui é importante destacar a figura
de Donald Pierson e a influência que exercerá sobre a Sociologia brasi-
leira a Escola de Chicago. Pierson desenvolve uma importante pesqui-
sa sobre as “relações raciais” na Bahia, em que acaba por corroborar,
ou fortalecer, a crença na inexistência do preconceito racial, enfatizan-
do que o preconceito no Brasil é de classe. A maioria destes estudos
enfocava na experiência negra, levando a constatação do que Guerreiro
Ramos (1995) denominou de “o problema dos negros brasileiros”.
86 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

É importante destacar algumas mudanças de enfoque nos es-


tudos sobre as “relações raciais” empreendidos a partir do final dos
anos 70, sobretudo com os estudos realizados por Carlos Hasenbalg
(1979) e em trabalhos posteriores que demonstravam as desigualdades
no acesso à educação e nos desníveis de renda entre negros e brancos,
aliados às denúncias empreendidas pelo então recém-formado Movi-
mento Negro Unificado sobre o preconceito e a discriminação racial
no Brasil. Ainda que nos períodos anteriores tenhamos tido a contri-
buição de intelectuais negros, como por exemplo, Guerreiros Ramos
(1996) e Abdias de Nascimento (2002) dentre outros, é, principalmen-
te, a partir dos anos 80 que se inicia uma produção negra significativa
sobre desigualdades raciais que contribuíram de modo definitivo para
a implementação do sistema de cotas nas universidades públicas bra-
sileiras (SILVA e SILVÉRIO, 2003; ANDRADE e FONSECA, 2002;
AUGUSTO, 2007; SANTOS e ROCHA, 2007).
Esta breve descrição sobre como se configurou o campo dos
“Estudos das Relações Raciais” no Brasil, em vez de Estudos das Hie-
rarquias Raciais, como sugerimos acima, objetiva demonstrar, num
primeiro momento, não só a importância dos estudos sobre as “rela-
ções raciais” nas Ciências Sociais brasileiras, bem como evidenciar a
existência de um campo institucionalizado e hegemonizado por pers-
pectivas e epistemologias euro-brasileiras, em que já havia uma pers-
pectiva comparativa com os Estados Unidos.
Ainda que tradicionalmente existisse essa perspectiva, sabemos
que historicamente os pesquisadores compararam, principalmente, al-
guns aspectos, tais como: a importância da raça na construção do Esta-
do- nação; a escravidão negra; a própria definição da raça e do racismo
nas duas sociedades (SKMIDORE, 1974 e 1980). Trata-se, portanto,
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 87

da análise de macro fenômenos, de diferentes ideologias e das cons-


truções sociais acerca da raça (NOGUEIRA, 1998). A conclusão de-
pende dos diferentes pontos de vista. Para a maioria dos pesquisadores
brasileiros, assim como para alguns pesquisadores norte-americanos,
o racismo no Brasil é “melhor” do que aquele existente nos Estados
Unidos, dado que aqui não houve segregação racial oficial, assim como
não houve impossibilidade/interdição com relação aos casamentos in-
ter-raciais, o que possibilitou a existência de um maior número de mes-
tiços e, consequentemente, uma diluição das fronteiras e do preconcei-
to racial. A partir da década de 1970, pesquisadores afro-americanos
(HANCHARD, 2001) e alguns ativistas negros passaram a considerar
que o racismo no Brasil é pior do que aquele existente nos Estados
Unidos, já que a dinâmica racial no Brasil impossibilitou que os ne-
gros-mestiços desenvolvessem uma consciência racial.
De um modo geral, os pesquisadores negligenciaram a au-
sência de pesquisadores negros num campo que estava principal-
mente voltado para a compreensão da população afro-brasileira.
Contudo, é fundamental para o desenvolvimento de nosso argu-
mento refletir sobre a formação dos campos.

Uma Olhada para os Estados Unidos

African-American Studies é o nome utilizado para definir o


campo que estuda a experiência negra nos Estados Unidos. Como de-
monstrou Maldonado (2006), o surgimento dos estudos de minoria nos
Estados Unidos resultou, por um lado, do final da Guerra Fria e do
menor interesse pelos estudos de área e, por outro, da pressão exerci-
da pelos movimentos sociais – quer dizer, havia uma necessidade não
88 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

só de produzir uma reflexão sobre as minorias étnico-raciais, como


também de incorporar membros dessas populações nas universidades
não somente como estudantes, mas, principalmente, como professo-
res/pesquisadores. De fato, o surgimento do primeiro Departament of
Black Studies, em San Francisco State University, em 1968, resultou
da pressão dos movimentos negros. Talvez, por isso, haja uma estreita
relação entre os temas tratados pelo movimento social e político e pe-
las pesquisas acadêmicas. Dito de outro modo, há uma maior conexão
entre as questões acadêmicas e as questões que realmente importam
para a comunidade afro-americana. A consequência disso é que existe
ou existia maior proximidade entre a demanda dos movimentos sociais
e as pesquisas acadêmicas.
Como foi apresentado, a origem do programa de African-
American Studies é muito diferente dos Estudos das Relações Ra-
ciais no Brasil. Neste, somente a partir do final da década de 1990,
temos presenciado a emergência de uma geração, um grupo de in-
telectuais negros que não só tem contribuído para a reconfiguração
do campo e da variação de temas de pesquisa quanto tem aliado de
maneira criativa a atividade acadêmica e a prática política. Não que-
remos dizer com isso que não houve importantes intelectuais negros
no passado, a exemplo de Milton Santos e Edson Carneiro, mas ape-
nas salientar que esta é a primeira geração, no sentido da existência
de um número mais expressivo de negros, que busca prosseguir e
afirmar-se na vida acadêmica. A existência da Associação de Pesqui-
sadores Negros é um bom exemplo dessa mudança.
Certamente, há bons exemplos de como a entrada de “novos
sujeitos” na universidade amplia o conhecimento. Londa Schienbinger
(2001) indicou como a entrada das mulheres na atividade acadêmica
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 89

não só alterou a agenda de pesquisa, como contribuiu para a amplia-


ção dos temas e perspectivas adotadas. O mesmo poderíamos afirmar
acerca dos estudos sobre homossexualidade levados a cabo por pes-
quisadores homossexuais. Do mesmo modo, Werneck Vianna (1998)
tem sinalizado como a entrada das mulheres e de pessoas oriundas de
camadas populares no judiciário ampliou o número de questões abor-
dadas. Todos estes exemplos apontam a relação entre o sujeito e a pro-
dução do conhecimento.
Nesse sentido, podemos constatar os diversos aspectos posi-
tivos derivados da entrada no campo de pesquisadores membros de
grupos minoritários e integrantes do grupo pesquisado. Entretanto, se
esta reflexão positiva ocorre com relação à entrada de outros grupos, o
mesmo não acontece no que diz respeito à inserção de alunos negros no
campo de Estudos das Hierarquias Raciais no Brasil.
Desse modo, os pesquisadores negros não só historicamente
estiveram à margem, como ainda, na maioria das vezes, são tratados
com desconfiança, já que a proximidade com o tema e a perspectiva
política presente nos estudos, muitas vezes, servem de argumento
para desqualificar a produção de intelectuais negros, por estarem
demasiadamente próximos do objeto e, portanto, supostamente não
terem a necessária neutralidade e objetividade para analisar um fe-
nômeno social do qual fazem parte.
Esse tipo de argumento é justamente o contrário do que nos su-
gere Patrícia Hill Collins (1990), quando destaca as questões relaciona-
das às implicações da posicionalidade na produção do conhecimento.
Collins aponta a noção de stand point como um lugar privilegiado, um
lugar historicamente construído e através do qual é possível observar/
compreender aspectos importantes do grupo quando se é parte dele.
90 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

Na geração de que faço parte e de outras gerações passadas,


levavam-nos a crer que nós éramos exceções à regra, pois éramos con-
vencidos de que a vida acadêmica era um funil e nós deveríamos estar
felizes por sermos tão esforçados, a ponto de termos vencido. Note que
o termo utilizado é esforçado e, não tão inteligente. Acontece que como
exceção, raramente, conseguíamos empregos nas universidades públi-
cas, pois, certamente, éramos bons, mas não o suficiente para ganhar a
concorrência com os candidatos brancos. Além disso, a dificuldade de
acessar a universidade pública, na condição de professor (a), impossi-
bilitava a formação de novos quadros, através da orientação e da leitura
de nossas produções intelectuais.
É importante destacar esta reflexão no que diz respeito aos es-
tudos de genro e raça. Aqui, as reflexões de Azeredo (1994) e Caldwel
(2000) sinalizam como o campo dos estudos de gênero e raça no Brasil
sofreram e sofrem devido à ausência de mulheres negras enquanto pro-
fessoras nas universidades, uma vez que o tema foi e continuada sendo
tratado por mulheres negras.
Acontece que a política de cotas ampliou o número de alunos
(as) negros (as) na universidade, a presença deles tensiona o campo e
desafia as regras pré-estabelecidas. A maioria dos estudantes negros
cotistas ou não tem orgulho de suas trajetórias e não mais querem ser
exceção. Eles reclamam uma inclusão mais verdadeira, para além do
acesso agora garantido através das cotas. Nossos alunos querem co-
nhecer para intervir, transformar as históricas relações de desiguais de
poder estabelecidas dentro e fora da universidade.
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 91

Colonialidade do Poder e Políticas Descoloniais do Conhecimento

A pirâmide social, como é descrita a estrutura da sociedade bra-


sileira, expressa muito bem a manutenção das hierarquias raciais exis-
tentes desde o período escravista, conforme apresentada com base na
perspectiva da colonialidade do poder. Está fundamentalmente dividi-
da entre as ocupações desempenhadas pelos mestiços mais claros – que
estão sobrerrepresentados nas universidades, sobretudo nos cursos de
maior status e prestígio, nos cargos de direção e chefia e nas funções
de comando, no Judiciário e na política, para citar alguns exemplos – e
os mestiços mais escuros – subrrepresentados em todas as ocupações
mencionadas e sobrerrepresentados nas ocupações subalternas, princi-
palmente naquelas que pagam baixos salários e que envolvem a força
física.
Isto faz parte da colonialidade do poder existente no Brasil e
em outros países das Américas. Como observou Aníbal Quijano (1993,
2000), as independências latino-americanas e norte-americanas, desde
o final do século XVIII, com exceção do Haiti, foram “independências
coloniais”. Esse paradoxo se refere ao fato de que a luta pela indepen-
dência dos brancos crioulos (poderíamos dizer mestiços claros), nunca
descolonizou a hierarquia étnico-racial do poder político, econômico
e social construído durante o colonialismo europeu nas Américas. O
Estado independente foi dominado e controlado pelos filhos dos es-
panhóis, portugueses e britânicos nas Américas, deixando intactas as
hierarquias raciais existentes. Ainda que os Estados fossem nominal-
mente independentes dos impérios europeus, de fato eram coloniais
no que diz respeito a dois processos: primeiro, as relações de poder
na divisão internacional do trabalho em âmbito global, com a periferia
92 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

explorada pelos impérios europeus e mais recentemente pelo império


norte- americano; segundo, e mais importante para o nosso tema, as
relações de poder raciais e de classe no interior de seu território. Os
negros, pardos, mestiços e indígenas mantiveram-se nas posições mais
baixas e mais exploradas da sociedade.
A abolição da escravatura foi um processo importante, mas não
suficiente para a descolonização das sociedades. No Brasil, a “indepen-
dência sem descolonização” manteve os negros, pardos e indígenas ex-
cluídos, explorados, marginalizados, segregados dos espaços de poder
social, cultural, econômico, político e educativo.
No que se refere à descolonização do conhecimento, é im-
portante destacar esse tema tem sido discutido por vários autores e
em diferentes perspectivas. As feministas negras norte-americanas e
chicanas – pessoas de origem mexicana nascidas nos Estados Uni-
dos – (Moraga e Anzaldúa, 1983), assim como alguns pensadores do
Terceiro Mundo, dentro e fora dos centros metropolitanos (MIGNO-
LO, 2000), lembram constantemente que sempre falamos de uma
localização particular nas relações de poder. Ninguém escapa às hie-
rarquias de classe, raciais, sexuais e de gênero, linguísticas, geográ-
ficas e espirituais do sistema-mundo. A feminista norte-americana
Donna Haraway (2004) enfatiza que nossos conhecimentos sempre
estão situados. As feministas negras têm denominado essa perspec-
tivada epistemologia de “ponto de vista afro-centrado” (COLLINS,
1990). Entretanto, o filósofo da liberação latino- americano Enrique
Dussel, desde os anos 1970, a define como “geopolítica do conhe-
cimento” (DUSSEL,1977). Seguindo o pensador afro-caribenho
Frantz Fanon (2007) e a feminista chicana Gloria Anzaldúa (1987),
deveríamos falar também do “corpo-polítizado conhecimento”.
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 93

Essa estratégia epistêmica tem sido crucial para os desenhos


imperiais/globais ocidentais e para a hegemonia dos brancos crioulos
nas Américas. Por meio do encobrimento da localização particular do
sujeito de enunciação, foi possível para a expansão e a dominação co-
loniais europeias/euro-norte-americanas e para o poder das elites euro-
-latino-americanas construir uma hierarquia do conhecimento superior
versus conhecimento inferior e, portanto, de seres superiores versus
seres inferiores no mundo. Passamos de povos sem escrita no século
XVI a povos sem história no século XVIII, a povos sem civilização
no século XIX, a povos sem desenvolvimento em meados do século
XX e, agora, a povos sem democracia no início do século XXI. Pas-
samos dos direitos dos povos no século VI aos direitos dos homens
no século XVIII e aos direitos humanos no final do século XX. Todos
esses discursos fazem parte dos desenhos globais imperiais articulados
à simultânea produção e reprodução da divisão internacional do traba-
lho entre centros e periferias que se superpõem de maneira complexa
entrelaçados às hierarquias etnicorraciais globais entre europeus e não
europeus, entre euro-brasileiros e o povo.
A produção do conhecimento nas universidades brasileiras,
como em todas as universidades ocidentais, privilegia a epistemolo-
gia eurocêntrica da egopolítica do conhecimento. Essa epistemologia
contribui para encobrir as hierarquias de poder raciais hegemônicas
nos espaços universitários. A epistemologia branca da egopolítica do
conhecimento, ao ser normalizada como a epistemologia do senso co-
mum nos espaços universitários, está inscrita como neutra, universalis-
ta e objetiva. A perspectiva particular do homem branco se ergue como
a norma universal de produção de conhecimentos, por meio da qual
se medem e avaliam todas as outras formas de produzir conhecimen-
94 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

tos. O homem branco pensa desde uma geopolítica e corpo-política


do conhecimento particular, como homem, branco e privilegiado;
porém, em nome de um suposto universalismo, encobre sua loca-
lização, recorrendo ao mito que lhe permite pensar fora do corpo
e fora do tempo e do espaço. Por isso mesmo, qualquer demanda
de acadêmicos negros que reivindique sua própria geopolítica e
corpo-política do conhecimento é imediatamente rechaçada pela
grande maioria dos universitários brancos como uma perspecti-
va particular e parcial, quando não a denominam de essencialis-
ta. Nesse sentido, o essencialismo é uma categoria acusatória, que
visa deslegitimar as demandas de grupos subalternizados.
Quando aludimos à posicionalidade, não estamos nos referindo
apenas a uma questão de valores sociais na produção do conhecimento,
ao fato de que nossos conhecimentos são sempre parciais, perspectiva
já bastante abordada dentro das Ciências Sociais. O ponto central aqui
é o lugar da enunciação, isto é, a localização étnica, sexual, racial, de
classe e de gênero do sujeito que enuncia. Na filosofia e nas ciências
ocidentais, o sujeito que fala está sempre encoberto; a localização do
sujeito que enuncia está sempre desconectada da localização epistê-
mica. Por meio desta desconexão entre a localização do sujeito nas
relações de poder e a localização epistêmica, a filosofia ocidental e
suas ciências conseguiram produzir um mito universalista que encobre
o lugar de quem fala e suas localizações epistêmicas nas estruturas
de poder. Isto é o que o filósofo colombiano Santiago Castro-Gomez
(2003) chamou de epistemologia do “ponto zero”, que caracteriza as
filosofias eurocêntricas. O “ponto zero” é o ponto de vista que esconde
e encobre seu próprio ponto de vista particular, isto é, a construção de
um ponto de vista que representa a si mesmo como não tendo nenhum
ponto de vista e, portanto, almeja ser neutro e universal.
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 95

Colonialidade do Poder e a Negação do Racismo no Espaço Acadêmico

Ainda que a maioria dos brasileiros reconheça que o Brasil é


uma sociedade desigual racialmente, há controvérsias não somente
acerca dos motivos ou da origem da desigualdade racial e da forma de
combatê-la, mas ainda em relação à enorme dificuldade de identificar
práticas racistas no cotidiano da sociedade brasileira. Desde as pes-
quisas desenvolvidas por Florestan Fernandes, temos conhecimento
de que os brasileiros têm preconceito de ter preconceito. Essa ca-
racterística do racismo à brasileira é corroborada por pesquisas mais
recentes. Lilian Schwarcz, analisando os dados de uma pesquisa re-
alizada pela USP, em 1988, demonstra que: 97% dos entrevistados
afirmaram não ter preconceito; 98% disseram conhecer, sim, pessoas
e situações que revelam a existência de preconceito racial no país.
Ao mesmo tempo, quando inquiridos sobre o grau de relação com
aqueles que denominam racistas, os entrevistados indicaram com fre-
quência parentes próximos, namorados e amigos íntimos. A conclu-
são informal da pesquisa era, assim, que todo brasileiro parece se
sentir como uma “ilha de democracia” cercado de racistas por todos
os lados. (SCHWARCZ, 2001, 76). Dados da pesquisa feita pelo Da-
tafolha, em 1995, reafirmam esta tendência ao revelar que “apesar de
89% dizerem haver preconceito de cor contra negros no país, só 10%
reconhecem ter preconceito” (SCHWARCZ, 2001, 77).
Do mesmo modo, os brasileiros estão convencidos da exis-
tência do preconceito e da discriminação raciais, mas, na maioria
das vezes, eles não acreditam que isto afete mais profundamente a
vida daqueles que são discriminados; menos ainda, acreditam que
o racismo comprometa o desempenho escolar das crianças e jovem
96 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

negros, assim como as suas expectativas de vida e escolhas profis-


sionais. Nesse sentido, cabe destacar que não só o Brasil é um país
em que existe racismo, sem que haja racistas, como o racismo é
visto como algo abstrato, e que não afeta a vida real.
Quase todos concordam com a existência das desigualdades ra-
ciais, mas é quase impossível constatar o racismo existente em nossa
sociedade. Para a grande maioria dos brasileiros, a discriminação racial
ainda é vista como sinônimo de interdição, impossibilidade de entrar
em algum lugar. É claro que isso resulta da histórica comparação en-
tre as relações raciais brasileiras e estadunidenses, em que os autores
frequentemente destacavam a ausência de segregação racial oficial no
Brasil em oposição aos Estados Unidos, além da suposta benevolência
do colonizador português e da miscigenação como importantes fatores
que contribuíram para tornar as relações raciais no Brasil mais amenas.
O apartheid na África do Sul também era usado como um exemplo
importante para se opor às práticas oficiais de segregação racial.
Essa mesma dificuldade ocorre com alguns acadêmicos e in-
telectuais brasileiros, que têm enorme dificuldade em reconhecer o
racismo institucional existente no espaço universitário, como asso-
ciado às práticas cotidianas que desqualificam ou desestimulam a
trajetória de acadêmicos negros.
Num outro texto (FIGUEREDO e GROSFOGUEL, 2007),
observamos que, consciente ou inconscientemente, raramente os
autores negros estão nas bibliografias dos cursos ministrados nas
universidades. Consequentemente, poucas vezes, temos a oportu-
nidade de conhecer a contribuição desses autores, refletindo, inclu-
sive, não apenas sobre o conteúdo de seus trabalhos, mas sobre o
contexto político-intelectual em que foram produzidos. Definimos
essa prática como “política do esquecimento”.
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 97

Durante a nossa formação, não temos tido a oportunidade de


ler e conhecer a contribuição de intelectuais negros. Essa ausência
de referência contribui, sobremaneira, para a sensação de estarmos
“fora do lugar”, ou de sempre nos considerarmos pioneiros. Além
disso, temos refletido pouco sobre a eficácia do discurso sobre a de-
sigualdade de classe no Brasil e, consequentemente, sobre o precon-
ceito e a discriminação de classe que perdura em nossas representa-
ções até hoje. Desde crianças, somos socializados para percebemos
a desigualdade de classe – quando visitamos um bairro cujos habi-
tantes são majoritariamente, quando não exclusivamente, brancos,
denominamos o local de bairro de classe média, e não como bairro de
brancos; o mesmo ocorre com as escolas, sempre referidas a partir da
classe, e não da cor. Frequentemente, quando somos excluídos, ten-
demos a interpretar a exclusão a partir da classe, e não da cor. Essa
dimensão das representações sobre a sociedade brasileira dificulta
não só a visibilidade de práticas racistas em nosso cotidiano quanto
contribui para a rejeição a políticas públicas voltadas para segmentos
específicos da população com base na cor/raça.
Efetivamente, conhecemos muito pouco sobre o cotidiano dos
alunos negros e de como se presentifica o racismo nas suas diferentes
formas e manifestações (negação/rejeição/estereótipos) dentro das uni-
versidades brasileiras. Um dos poucos exemplos a que tivemos aces-
so é o de Ari Lima. Lima (2001) narra um fato ocorrido na UnB, em
1998, em que foi reprovado em uma disciplina sem que houvesse uma
chance sequer de diálogo entre ele e o professor que o desqualificou,
chamando-o de medíocre. Após o resultado indicando sua reprovação,
Lima apelou a três instâncias dentro da universidade, solicitando que
o seu caso fosse revisto, sem que obtivesse êxito. Na quarta tentativa,
98 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

felizmente, a nota atribuída foi revista, e Ari Lima foi aprovado na


disciplina. Com relação ao período que marcou duramente a sua tra-
jetória, ele afirma:

Acredito que se pode ver nesse 'drama social' forte in-


dício de crime de racismo. Entretanto, como prová-lo?
Quais dados, palavras, ideias, representações, categorias
podem sustentar esta suspeita? O que posso realmente
falar sobre isso? Ao contrário, recebi fortes pressões
para que eu me calasse, inclusive de professores do PP-
GAS. Confesso que nunca me senti tão bloqueado ou
repercutindo o abandono histórico ao qual o segmento
social a que pertenço foi relegado. (Lima, 2001, p. 311)

De acordo com Carvalho (2003), menos de 1% do universo de


professores das universidades públicas é formado por negros. O núme-
ro total de docentes, atualmente ativos nas 53 universidades federais,
é de aproximadamente 46.679. Até onde sabemos, não deve passar de
200 o número de professores negros em todas essas universidades.

Vale a pena perguntar-se como foi possível um grau de


exclusão racial tão escandaloso não tenha suscitado,até
agora, praticamente nenhuma discussão ou mesmo incô-
modo modo por parte dos acadêmicos brancos brasilei-
ros. (CARVLHO, 2003, p. 329)

Além disso, Carvalho contesta o suposto discurso univer-


salista presente nos argumentos relativos aos preenchimentos de
vagas por concursos públicos, quer sejam para professores ou para
a pós-graduação
Os concursos para docentes preenchidos quase que ex-
clusivamente por candidatos brancos já não podem ser
vistos apenas como resultado de decisões racionais, ba-
seados em padrões inteiramente impessoais dos mem-
bros das bancas. Os concursos são na verdade o resul-
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 99

tado de uma complexa equação que envolvem variáveis


como: a política acadêmica (pressões internas e externas
a favor de um determinado candidato); as redes de rela-
ções dentro da comunidade acadêmica (linhas de pes-
quisas, filiações teóricas, campos de atuação); além, é
claro, do desempenho e da trajetória acadêmica (artigos
e livros publicados, experiência em pesquisa).
(CARVALHO, 2003, p. 310)

Essa prática de exclusão sistemática de professores negros não


é recente. Dois exemplos são bem conhecidos do público brasileiro:
Guerreiro Ramos e Edson Carneiro, intelectuais negros, foram im-
possibilitados de ingressar na extinta Universidade do Brasil, atual
UFRJ. Alguns autores tentaram entender os motivos que levaram à
marginalização de Guerreiro Ramos no meio acadêmico. Oliveira
(1995) alude ao fato de ele ter reagido aos cânones institucionais das
Ciências Sociais brasileiras; Além do mais, Guerreiro tinha uma pers-
pectiva segundo a qual a Sociologia era uma ciência engajada, ou
uma Sociologia militante. Algumas explicações sobre o esquecimen-
to de Guerreiro Ramos giram também em torno de sua personalidade.
Ainda que tenham encontrado respostas plausíveis para a exclusão
de Guerreiro, nenhum dos autores citados aludiu à questão de ele ser
negro num contexto em que havia e, ainda há, poucos autores negros
nas Ciências Sociais. Desse modo, as referências, ao fato de Guerrei-
ro ter sido preterido nas duas vezes que disputou uma vaga para pro-
fessor universitário, giram em torno do passado integralista, portanto,
remetendo- se à afiliação política e não à sua condição racial. Como
explicar o fato de Guerreiro ter assumido a função de técnico em ad-
ministração, em 1943, no Departamento Administrativo do Serviço
Público (DASP), quando deveria ser professor universitário?
100 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

Parafraseando Schwarcz, acreditamos que essas universida-


des são “[...] ilhas de brancos cercados de negros por todos os lados”.
Como dito anteriormente, embora concordem que há poucos professo-
res negros nas universidades públicas federais, muitos acreditam que
os resultados dos concursos derivam apenas de avaliações objetivas
(constituídas da avaliação do currículo, prova escrita, prova didática e
entrevista), em que o mérito e não a pertença etnicorracial, as redes e
as conexões acadêmicas e a trajetória importam.
Desse modo, percebemos que, mesmo quando encontramos
exemplos de prática sistemática da exclusão de professores negros das
universidades públicas brasileiras, há uma enorme dificuldade de en-
tender tal atuação como reflexo, como prática resultante de uma cultura
racista, que é internalizada e reproduzida, mesmo quando se acredita
imparcial. Mas, afinal de contas, como comprovar a existência de dis-
criminação racial diante de atitudes supostamente tão universalistas,
em que se procura, pelo bem do conhecimento produzido na universi-
dade, identificar apenas o melhor candidato e, se coincidentemente, os
negros não foram aprovados é porque efetivamente eles não são/ foram
suficientemente bons para ocupar o cargo?
Gostaria de retomar algumas questões cruciais que foram apre-
sentadas ao longo da minha fala e destacar outras, cuja resposta depen-
de de um esforço coletivo. A primeira delas diz respeito à necessária
e importante formação de uma rede de pesquisadores que proponha
ações que vá além dos encontros anuais ou bi-anuais propostos pe-
las então associações. É preciso construir uma reflexão conjunta, for-
talecermos coletivamente em rede; é preciso descolonizar as nossas
próprias atitudes que ainda reproduz uma lógica da colonialidade e
hierarquias regionais, pois, mesmo quando somos considerados bons/
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 101

competentes, ainda assim somos raramente incluídos nas bibliografias


dos cursos ministrados em nossas universidades. Certamente, esta ati-
tude não contribui para ampliarmos as nossas referências e ainda se-
guimos mencionando o nome de poucos intelectuais negros que cabe
nos dedos de nossas mãos, como se estivéssemos ainda nos anos 80.
Efetivamente, precisamos aprender a operar em rede, pois, ainda temos
o resquício de uma geração formada para ser uma exceção, e como
tal deveríamos agir individualmente. É importante observar a lógica
através da qual operavam estas redes, pois os indivíduos negros nun-
ca são considerados bons/competentes o suficiente para ingressar na
carreira universitária autonomamente. Quase sempre somos tratados
como um eterno enfant, nunca adulto o suficiente para seguir os seus
próprios passos, como sugere Franz Fanon, em seu livro “Pele negra
máscara branca”, quando diz que a linguagem diminutiva, utilizada
para tratar com os homens negros visava infantilizá-los, tornando-os
menos homens, portanto, menos donos de seus atos. Como as crianças,
os homens e mulheres negras precisavam ser eternamente tutelados.
Os nossos estudantes já não aceitam mais essas regras pré-es-
tabelecidas. Para eles, é preciso transformar e, definitivamente, deixar
claro de que lado nós estamos. Diferente de outras experiências, a ge-
ração atual criou espaço para a socialização das experiências, e não
mais se isolam diante de práticas discriminatórias. Os coletivos negros,
criados dentro dos espaços universitários, ajudam a socializar as expe-
riências e encontrar saídas coletivas.
Voltarei à questão central desta fala de abertura que me parece
tão oportuna para iniciar os nossos trabalhos nestes três dias de evento.
É preciso descolonizar o nosso conhecimento e isso não poderá ocor-
rer se não formos generosos, ativistas e solidários uns com os outros.
102 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

É preciso desenvolver novas epistemologias e novas metodologias do


conhecimento; é preciso ir além das sociologias das ausências e das
urgências de que nos fala Boaventura Souza Santos. Precisamos, efe-
tivamente, aprender a nos amar, exatamente como nos propõe Audre
Lord. É preciso construir novas formas de relacionamento e de relação
fora e dentro do espaço acadêmico.
A minha experiência profissional tem me ajudado a compreen-
der melhor o porquê muitas de nós encontramos dificuldades para con-
cluir os nossos trabalhos de pesquisa. O nosso tempo não pode e não é
o tempo de dedicação exclusiva aos estudos. O nosso tempo é o tempo
da sobrevivência e da ajuda, é o tempo do corre, como diz os estudan-
tes. Sabemos que o espaço acadêmico não é construído com um espaço
acolhedor para nós, pois nele também é compartilhada a representação
social sexista e racista que “[...] atuando juntos, perpetuam uma icono-
grafia de representação da negra que imprime na consciência cultural
coletiva a de que ela está neste planeta principalmente para servir aos
outros” (HOOKS, 1995, p. 468).
Nesse sentido, é preciso sair de linhas demarcatórias de disci-
plinaridade, é preciso nos tornar multi-disciplinares, pois é desse modo
que compreenderemos as questões das desigualdades. É preciso incluir
novas áreas de conhecimento e procurarmos construir conhecimentos
mais horizontais. É preciso reconhecer a pluralidade dos saberes, in-
cluindo os conhecimentos que advêm dos nossos estudantes de cama-
das populares e de comunidades tradicionais. É preciso transformar os
nossos currículos para que sejam incluídas outras formas de saberes
não hegemônico. Enfim, é preciso definitivamente abandonar a prática
assimilacionista que permeia a nossa universidade, que inclui o outro
para transformá-lo.
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 103

Por fim, a pergunta que ainda merece resposta é: como transfor-


mar uma universidade de maioria negra, em uma universidade negra?
A questão aqui não é só retórica, pois coloca no centro a questão da
produção do conhecimento, a legitimidade e a política acadêmica.

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Prefil dos estudantes cotista da UFRB:
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Bruno José Rodrigues Durães1

O objetivo do texto é apresentar dados sociais dos estudantes


cotistas que ingressaram na UFRB em de 2011.1. Os dados são
provenientes de questionário sociocultural da UFRB, aplicados no
período de matrícula dos estudantes. A ideia central foi mostrar o perfil
do estudante ingressante, considerando o perfil racial predominante
negro e sua origem de classe social baixa. O estudo conclui ressaltando
a efetividade da política afirmativa na admissão ao ensino superior de
estudantes negros e pobres na UFRB.
É notório no início do século XXI no Brasil um processo de
expansão do ensino superior gratuito e federal, principalmente, com a
expansão promovida pelo Programa de Expansão das Universidades
Federais (Reuni) – para além de problemas internos desse processo2.
Percebe-se como houve um acréscimo na quantidade de vagas/

1  Este texto é uma versão um pouco modificada do texto apresentado em 2012 no


Fórum Internacional 20 de novembro da UFRB.
2  Conforme Daflon et. al. (2011, p.09), 68% das universidades federais contempladas
com o Reuni possuem algum tipo de política de ação afirmativa.
108 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

matrículas, de professores concursados e na própria criação de novas


universidades e cursos, muitas vezes, levando o ensino público superior
para regiões que não possuíam o acesso à educação desse nível3.
Também é conhecido o aumento da acessibilidade das universidades
federais, sobretudo, com a criação de políticas de inclusão ou políticas
afirmativas4. Conforme Daflon (et. al., 2011, p.07), o perfil das políticas
afirmativas mudou, diversificou-se, não ficando restrito no entorno da
questão das “cotas”. Hoje, segundo os autores, pode-se falar em um
perfil diverso, dizem:

[...] as políticas de ação afirmativa hoje em adoção no


ensino superior têm um perfil muito mais diverso: elas
abrangem instituições de ensino públicas e privadas
(com o Prouni e o FIES), estendem-se por todo o
território nacional, são realizadas via procedimentos
variados como bolsas de estudo, financiamentos,
cotas, bonificação de pontos no vestibular, formas de
apoio à permanência na universidade e acréscimo de
vagas para os beneficiários, além de contemplarem
uma gama de grupos muito diversificada – pretos e
pardos, indígenas, alunos egressos de escolas públicas,
pessoas de baixa renda, professores da rede pública,
deficientes físicos, mulheres, quilombolas, nativos de
estados com baixo índice de desenvolvimento, para
mencionar apenas alguns.

3  Com o Reuni o número de cidades atendidas passou de 114 (em 2003) para 230
(em 2011), conforme Pesquisa “Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de
Graduação das Universidades Federais Brasileiras” (ANDIFES-FONAPRACE, 2011,
p.11). Ainda de acordo com essa pesquisa, o quantitativo de estudantes presenciais
das Universidades Federais era de 469.378, em 2003/4, passou para 656.167, em
2010 (Id., ibid., p.23).
4  Não é nossa intenção, por ora, polemizar a respeito desse termo e de outros
similares, para este texto, iremos nos valer da seguinte definição: “[...] as ações
afirmativas são definidas como medidas redistributivas que visam a alocar bens para
grupos específicos, isto é, discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica
e/ou cultural passada ou presente” (FERES JR. E ZONINSEIN, apud DAFLON et.
al., 2011, p.04).
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 109

Em 2012, estima-se que cerca de 71% das universidades


federais e estaduais possuem algum sistema de cotas (Id., ibid., p.08),
portanto, é uma realidade diversa, que precisa ser compreendida.
Saber o perfil dos estudantes universitários é bastante relevante,
sobretudo, porque é através da condensação de dados amplos que se
torna possível a construção de políticas específicas para o seguimento
estudantil e para própria universidade, permitindo a construção de
uma universidade pública mais aberta, diversa e democrática, onde
se consiga, pelo menos, reduzir significativamente às iniquidades na
admissão à universidade, tornando-a mais acessível.

Perfil dos Estudantes Cotistas5 2011.1

Entraram na UFRB, em 2011.1, cerca de 1.548 estudantes


(que fizeram matrícula e responderam questionário sociocultural),
dos quais quase metade (cerca de 46,6%) foi pelo sistema de inclusão
(cotas) da própria Universidade, representando cerca de 721 estudantes
cotistas (DURÃES, 2012). Dos estudantes cotistas, que responderam
5  Usaremos esse termo apenas para fazer referência aos estudantes que entraram na
Universidade pelo sistema de políticas afirmativas da UFRB, sabemos do debate em
torno desse termo e de similares, os quais, em si, já podem rotular negativamente os
estudantes. Por sinal, agradecemos aqui a observação feita pelo Prof. Mário Resende
(da UFS, feita no VI Fórum 20 de Novembro na UFRB, 2012). Todavia, em nenhum
momento este deverá ser compreendido como algo pejorativo, mas apenas para
facilitar a apresentação dos dados. A UFRB, nesse período, reservava 45% das vagas
para estudantes cotistas, que são oriundos majoritariamente do ensino médio público.
Usa-se, dessa forma, o critério social e racial para entrada. Destas vagas reservadas,
2% são apenas para índios e dos 43% restantes, 85% são para estudantes de ensino
público que se declararam negros ou pardos, conforme resolução do Consuni/UFRB
n.º 005/2009. Atualmente, em 2014, a UFRB adotou 50% das vagas reservadas para
estudantes oriundos da Escola Pública, conforme Lei 12.711/2012, destes, cerca de
76,67% serão negros, sendo que 25% dos 50% são oriundos também de baixa renda,
conforme distribuição racial da população do Estado da Bahia e terá um percentual
de indígenas desse 50% reservado (UFRB, 2012).
110 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

simultaneamente a questão, ter entrado por cotas e sexo/gênero (cerca de


7186, conforme tabela 01 abaixo), pode-se observar uma predominância
de mulheres, cerca de 54,6% (ou 392). Contudo, as estudantes cotistas
não são maioria entre o total de mulheres que entraram no período e
responderam a pergunta sobre Cotas. Ingressaram na UFRB, em 2011.1,
839 mulheres, das quais, aproximadamente, 46,7% são mulheres
cotistas (ou 392). Com relação aos homens, ocorre algo similar, do
total que ingressaram e responderam a questão sobre Cotas, 666, a
maioria é de não cotistas (51,1% ou 340 homens), ver tabela 01 abaixo:

Tabela 01: Cruzamento de dados: Estudantes Cotistas e Gênero

Sexo Total
Masculino Feminino
Cotas Sim 326 392 718
% em relação aos cotistas 45,4% 54,6% 100,0%
% em relação ao Gênero 48,9% 46,7% 47,7%
Não 340 447 787
% em relação aos cotistas 43,2% 56,8% 100,0%
% em relação ao Gênero 51,1% 53,3% 52,3%
Total 666 839 1505
% em relação aos cotistas 44,3% 55,7% 100,0%
% em relação ao Gênero 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: NEPAAE/CPA/PROPAE/UFRB, 2012.


* O total reduziu para 1505, pois 43 estudantes não responderam, ao menos, uma das
duas questões.

6  Na maioria das tabelas que serão apresentadas no texto ocorrerá redução do total de
respondentes (que foi de 1548 estudantes em geral) em relação ao total de estudantes
pesquisados que responderam a determinada questão. Isso ocorreu, pois alguns
estudantes não responderam uma das duas questões apresentadas em determinada
tabela. Dessa maneira, o total fica automaticamente reduzido, incluindo apenas o
estudante que respondeu as duas questões ao mesmo tempo. Essa alteração será
informada em cada caso em particular, na própria tabela.
Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 111

Vale afirmar ainda que entre os estudantes (em geral)


entraram mais mulheres do que homens, foram respectivamente
cerca de 55,7% contra 44,3% (DURÃES, 2012, p.06). Portanto,
mais mulheres entraram na UFRB no período e essa predominância
apareceu também nas informações sobre cotistas.
No tocante à cor/etnia dos estudantes cotistas, temos o seguinte:
a grande maioria deles se autodeclararam pardos ou pretos (negros),
cerca de 94%, respectivamente, 48,5% e 45,5%, ver tabela 02 abaixo.

Tabela 02: Cruzamento de dados: Estudantes Cotistas por Cor/etnia


Cor/etnia
Amarela Branca Indígena Parda Preta Total
(Asiática)
Cotas 6 28 9 348 326 717
Sim
% de cotistas 0,8% 3,9% 1,3% 48,5% 45,5% 100,0%
% em relação à cor 20,0% 12,5% 81,8% 46,6% 66,8% 47,8%
24 196 2 399 162 783
Não % de cotistas 3,1% 25,0% 0,3% 51,0% 20,7% 100,0%
% em relação à cor 80,0% 87,5% 18,2% 53,4% 33,2% 52,2%
Total 30 224 11 747 488 1500

% de cotistas 2,0% 14,9% 0,7% 49,8% 32,5% 100,0%


% em relação à cor 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: NEPAAE/CPA/PROPAE/UFRB, 2012.


* O total reduziu para 1500, pois 48 estudantes não responderam, ao menos, uma
das duas questões.

Ainda sobre a tabela 02 acima, o percentual de estudantes que se


definiram como brancos e entraram pelo sistema de cotas é muito baixo,
apenas cerca de 3,9%, e podem ter vindo do ensino público7. Já com
7  Alguns estudantes brancos entraram pelo sistema de cotas por serem de escolas
públicas, como era previsto no sistema de inclusão da UFRB (Resolução 005/2009,
Consuni/UFRB), todavia como o percentual é bastante diminuto, assim, não afetará
em nada nossa análise. Tal reflexão serve também para alguns casos de estudantes
112 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

relação ao total de estudantes que se definiram como pardos e/ou pretos


(negros) que entraram na UFRB nesse período, observa-se o seguinte:
entre os pardos, a maioria entrou fora do sistema de cotas, cerca de
53,4%; já com relação aos estudantes que se classificaram como pretos,
ocorre uma diferença, a maioria entrou pelas cotas, cerca de 66,8%. Isso
evidencia que o sistema de políticas afirmativas contribuiu, sobretudo,
para entrada de estudantes negros que se autodefiniram como pretos.
Isso mostra que o sistema de inclusão adotado pela UFRB cumpre um
de seus objetivos, qual seja, inserir os estudantes negros.
Isso também ocorre com os estudantes indígenas. Entraram
muito mais indígenas pelas cotas do que sem, cerca de quatro vezes e
meia a mais tiveram acesso pelas cotas, foram 9 estudantes contra 2 –
ou cerca de 81,8% dos estudantes indígenas entraram via cotas. Claro
que a cota reservada para os indígenas terminou não sendo alcançada
completamente, eram de 2% das vagas em geral, mas isso se deve, em
alguns casos, a própria quantidade reduzida de estudantes indígenas
que disputam vagas.
Na distribuição dos cotistas por unidades de ensino, em relação
ao total de ingressantes em determinada unidade, temos: o único centro
onde os cotistas foram maioria foi no CFP (Centro de Formação de
Professores, em Amargosa-BA), ficando com cerca de 54,6% em
relação ao total de ingressantes. Nos outros, a divisão ficou mais ou
menos por volta do percentual de cotas reservadas, em torno de 45%,
com exceção do Centro de Ciência e Tecnologia (CETEC, em Cruz das
Almas-BA), onde estes estudantes ficaram um pouco mais abaixo do
percentual de reserva, com aproximadamente 38,4%. Contudo, pode-
se dizer que a distribuição percentual dos estudantes cotistas pelos
centros ficou equilibrada em relação ao total de estudantes internos de
cada centro, ver tabela 03 abaixo.

que se classificaram como de cor amarela.


Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 113

Tabela 03: Cruzamento de dados: Estudantes Cotistas por Campus/UFRB

CAMPUS
CAHL CETEC CCAAB CFP CCS Total
Cotas 185 66 216 214 40 721
% em relação aos cotistas 25,7% 9,2% 30,0% 29,7% 5,5% 100,0%
Sim % em relação ao Campus 47,6% 38,4% 46,2% 54,6% 44,4% 47,7%
204 106 252 178 50 790
Não % em relação aos cotistas 25,8% 13,4% 31,9% 22,5% 6,3% 100,0%
% em relação ao Campus 52,4% 61,6% 53,8% 45,4% 55,6% 52,3%
Total 389 172 468 392 90 1511
% em relação aos cotistas 25,7% 11,4% 31,0% 25,9% 6,0% 100,0%
% em relação ao Campus
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: NEPAAE/CPA/PROPAE/UFRB, 2012.


* O total reduziu para 1511, pois 37 estudantes não responderam, ao menos, uma das duas
questões.

Já com relação à inserção quantitativa (em números absolutos)


dos estudantes cotistas da UFRB de 2011.1 entre os centros,
sequencialmente, em ordem decrescente, a inclusão mais concentrada
ocorreu no CCAAB (Centro de Ciências Agrárias, Ambientais e
Biológicas, Cruz das Almas-BA), como pode ser visto na tabela 04
acima, com cerca de 30% (ou 216 estudantes) do total de cotistas da
UFRB, seguida pelo CFP, com cerca de 29,7% (ou 214), o CAHL
(Centro de Artes, Humanidades e Letras, Cachoeira-BA), com cerca de
25,7% (ou 185), o CETEC, com cerca de 9,2% (ou 66) e, por fim, com
a menor quantidade, o CCS (Centro de Ciências da Saúde, em Santo
Antônio de Jesus-BA), com cerca de 5,5% (ou 40 estudantes).
Portanto, apesar do percentual de estudantes cotistas entre os
centros de ensino da UFRB ser mais ou menos equilibrado, quando
visto em comparação com o total dos estudantes ingressantes de cada
unidade, todavia, quando observa-se sob o aspecto quantitativo, nota-
se uma discrepância, mas que não chega a causar maiores problemas,
haja vista que essa diferenciação tem relação com a própria quantidade
114 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

maior ou menor de estudantes ingressantes totais. O que chamou


atenção, e é o que verdadeiramente importa do ponto de vista da
equidade, no geral, é o seguinte: primeiro, que está ocorrendo uma
inserção percentualmente equilibrada em cada centro; e, segundo,
que a entrada de estudantes cotistas está ocorrendo de acordo com
o regulamentado pelas regras internas da Universidade. Ademais,
essa entrada com percentuais quantitativos relevantes em cada
centro deve evitar, hipoteticamente, a formação de segregações
entre os cotistas e não cotistas.
Vejamos ainda essa distribuição de estudantes cotistas por
curso da UFRB no Gráfico 01 abaixo, o que nos permite perceber
um equilíbrio na maioria dos cursos e algumas surpresas, como a
menor quantidade de cotistas no curso de comunicação, com menos
de 30%, e os maiores percentuais que aparecem em Educação
Física, Química, Cinema e Física.

Gráfico 01 - Perfil de estudantes cotistas e por livre concorrência - 2011.1

Fonte: NEPAAE/CPA/PROPAE/UFRB, 2012, com colaboração do prof. Leonardo Nascimento.


Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro 115

A maioria dos estudantes cotistas veio do sistema público de


ensino, quando observados o ensino médio, cerca de 98,2%, conforme
tabela 04 abaixo – de acordo com as regras de inclusão adotadas pela
Universidade. Poderíamos também ter relacionado como estudante de
escola pública ou de condição social baixa os seguintes grupos: escola
comunitária (0,3%), maior parte em escola pública (0,4%) e escola
privada com bolsa (0,4%), assim, teríamos um percentual ainda maior,
aproximadamente 99,3%. Ademais, aparecem apenas 04 estudantes
cotistas que vieram do ensino privado, aproximadamente 0,7% do total
de cotistas, os quais, provavelmente, devem ser estudantes negros que
podem também preencher vagas reservadas na época, desde que não
tenham sido preenchidas antes por estudantes negros de escola pública,
conforme Resolução Consuni/UFRB n.º 005/2009.

Tabela 04: Cruzamento de dados: Estudantes Cotistas por


Ensino Médio

Ensino Médio
Esc. Esc. E s c . Maior parte E s c .
pública privada comunitária esc. pública p r i v a d a
c/ bolsa Total
Cotas 707 5 2 3 3 720
% de cotistas 98,2% 0,7% 0,3% 0,4% 0,4% 100,0%
Sim % em relação
71,8% 1,2% 50,0% 8,8% 5,7% 47,7%
ao ens. médio
277 428 2 31 50 788
Não % de cotistas 35,2% 54,3% 0,3%
% em relação
3,9% 6,3% 100,0%
28,2% 98,8% 50,0% 91,2% 94,3% 52,3%
ao ens. médio
Total 984 433 4 34 53 1508
% de cotistas 65,3% 28,7% 0,3% 2,3% 3,5% 100,0%
% em relação
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
ao ens. médio
Fonte: NEPAAE/CPA/PROPAE/UFRB, 2012.
* O total reduziu para 1508, pois 40 estudantes não responderam, ao menos, uma
das duas questões.
116 Descolonização do conhecimento no contexto Afro-brasileiro

Renda Familiar

A maioria das famílias dos estudantes cotistas possui renda


mensal maior do que 1 até 3 salários mínimos, cerca de 53,9%,
enquanto a família dos não cotistas, nessa mesma faixa, são cerca de
38%. Já quando se observa a renda familiar mensal ainda mais baixa,
até 1 salário mínimo, tem-se mais famílias de cotistas, com cerca de
27,4%, contra cerca de 13,2% dos não cotistas. Assim, a grande maioria
das famílias dos estudantes cotistas recebe até 3 salários mínimos
mensais, são aproximadamente 81,3%, enquanto representam cerca de
51,2% entre os não cotistas nessa mesma faixa de renda, ver tabela 05
abaixo. Portanto, tem-se uma proporção maior de estudantes cotistas
de famílias com renda mais baixa do que a dos estudantes não cotistas.
Basta observar a distribuição de renda por faixa, percebe-se que à
medida que vai aumentando a renda nas colunas da tabela 05, vê-se que
aumenta, em percentual, a renda das famílias dos não cotistas até zerar
a frequência de famílias de cotistas com rendas mais altas.

Tabela 05: Cruzamento de dados: Estudantes Cotistas por Renda Familiar

Renda Familiar Mensal


> > > > > > Maior
Até 1 que 1 que 3 que 5 que que do
S.M até 3 até 5 até 10 10até 20 que Total
S.M S.M S.M 20 até 40 40
S.M S.M S.M
Cotas 194 382 110 22 1 0 0 709
% de cotistas 27,4% 53,9% 15,5% 3,1% 0,1% 0% 0% 100,0%
Sim % em relação
65,5% 56,6% 34,3% 15,7% 2,4% 0% 0% 47,9%
à renda
Não 102 293 211 118 41 5 1 771
% de cotistas 13,2% 38,0% 27,4% 15,3% 5,3% 0,6% 0,1% 100,0%
% em relação
34,5% 43,4% 65,7% 84,3% 97,6% 100,0% 100,0% 52,1%
à renda
Total 296 675 321 140 42 5 1 1480
% de cotistas 20,0% 45,6% 21,7% 9,5% 2,8% 0,3% 0,1% 100,0%
% em relação
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
à renda
Fonte: NEPAAE/CPA/PROPAE/UFRB, 2012.
* O total reduziu para 1480, pois 68 estudantes não responderam, ao menos, uma das duas questões

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