Apostila 6

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As relações lexicais

A polissemia, a vagueza e a indeterminação semântica

A maior parte das palavras de uma língua não possui um único significado, mas um
significado articulado em mais acepções, ou seja, em algo que podemos definir como
famílias de sentidos. Por exemplo, banco pode significar assento estreito e comprido de
madeira, ferro ou pedra, com encosto ou sem ele; pranchão comprido onde certos
artífices se sentam ou fixam as peças em que trabalham: banco de carpinteiro; camada
ou leito de pedra numa pedreira; cardume de peixes por cima da água; empresa que
adianta e recebe fundos, desconta letras, títulos, facilita os pagamentos por meio de
empréstimos, realiza quaisquer transações de valores: Banco do Brasil; e outras

A polissemia, ou seja, a característica de uma palavra possuir um significado com várias


famílias de sentidos, é um dos fenômenos mais frequentes e típicos das linguagens
naturais. Esse fenômeno é ligado à plasticidade e ao fato de que a semântica de uma
expressão pode ser estendida com relação ao uso que fazem dela os falantes. Graças à
propriedade da vagueza e da indeterminação semântica, o significado linguístico não é
fixado uma vez para todas, mas muda e se reorganiza constantemente de maneira a
acolher novos sentido, dependendo das exigências expressivas dos falantes. A
ampliação dos significados segue percursos imprevisíveis, chegando ao limite que uma
mesma palavra pode desenvolver o que se chama de enantiossemia, ou seja,
significados contrários, como alugar, que pode significar tanto “pegar algo em aluguel”
quanto “dar algo em aluguel”.

A vagueza semântica é a propriedade dos signos linguísticos de ter um significado não


definido com precisão, mas aberto e variável, que corresponde a uma área de sentidos
não bem delimitada, assim que é impossível estabelecer através de regras formais quais
são as possíveis interpretações, os possíveis sentidos de uma palavra.

A vagueza não deve ser confundida com a genericidade, no sentido em que dissemos
por exemplos que palavras como amor e liberdade são vagas (ou seja, nestes casos,
entendendo por genéricas). A noção de vagueza é uma noção técnica, que podemos
formular como a seguir: uma expressão é vaga quando é impossível determinar em
todos os casos se ela se aplica ou não a um referente.

Em outras palavras, uma expressão é vaga se existem casos aos quais certamente ela se
aplica, casos aos quais ela certamente não se aplica e casos borderline nos quais não é
possível estabelecer com certeza se se aplica o não. São vagas, nesse sentido, palavras
como careca e punhado. Isso porque existem homens certamente carecas, homens
certamente não carecas, mas não podemos estabelecer com certeza o número mínimo de
fio de cabelo (e a sua distribuição) que uma pessoa deve ter para não ser careca.
Portanto haverá pessoas às quais não podemos estabelecer com certeza se aplicar a
palavra ou não. Do mesmo jeito, para ter um punhado de arroz, quantos grãos são
necessários?
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Mas a vagueza não é relativa somente a palavras que expressam conceitos graduáveis,
como rico ou rápido (uma pessoa pode ser mais ou menos rica e mais ou menos rápida).
A vagueza diz respeito também a conceitos não graduáveis. Por exemplo, pegamos a
palavra caneca. Sabemos que uma caneca pode ser mais ou menos alta, ter uma alça ou
não, mas qual a fronteira entre a caneca e a xícara ou entre a caneca e um vaso? Não
existe um critério para fixar a distinção entre esses objetos e o uso das palavras depende
de critérios probabilísticos. Ou seja, a probabilidade que um objeto seja chamado
caneca aumentam com relação a vários fatores: a forma, o tamanho, o uso que se faz do
objeto, o contexto.

O reconhecimento da vagueza como uma propriedade normal das línguas naturais é


fruto das pesquisas do filósofo Wittgenstein que o mostrou através da analogia entre os
componentes de uma família e as atividades às quais atribuímos o conceito de jogo.
Nós observamos que os membros de uma família se parecem em algum aspecto: alguém
mostra a mesma forma do nariz, outros a mesma forma da boca, outros a mesma voz,
etc. Assim, nós chamamos de jogos uma variedade muito grande de atividades que
fazem parte de uma família de atividades (o futebol e os jogos de cartas, os jogos de
mesa e o rugby), mas algumas vezes podemos não saber exatamente se algo é um jogo
ou não: a queda de braço, a caça à raposa e a luta são jogos?

A vagueza, e portanto a abertura e a flexibilidade dos conceitos linguísticos, faz com


que os significados possam ser constantemente mudados para acolher novos sentidos
para as exigências expressivas dos falantes. Ao mesmo tempo, a vagueza é o que torna
complexa a análise dos significados linguísticos, principalmente uma análise baseada
em instrumentos com linguagem não vaga, como a matemática. Os lógicos há séculos
tentam enfrentar o problema da vagueza. Um princípio como a vagueza não responde a
critérios baseados na lógica clássica, que é bivalente, ou seja, admite somente duas
alternativas (verdadeiro/falso). Isso determina o problema de como estabelecer as
condições de verdade de uma afirmação como Carlos é careca se o conceito de careca
foge da possibilidade de definir exatamente as condições pelas quais é verdadeiro ou
falso.

Uma outra propriedade do léxico das línguas naturais é a indeterminação. Muitas


expressões são indeterminadas e precisam de elementos contextuais para que seu
significado seja determinado. Olhem as sentenças seguintes:

1. Ontem te mostrei a minha casa


2. Você é o melhor aluno que eu tive depois do Marcelo
3. Luis entrou na casa e tirou o chapéu
Em 1 a expressão minha não diz se a casa é aquela em que eu moro, aquela que é de
minha propriedade, aquela que (como engenheiro) construí ou (como arquiteto) eu
planejei ou outros tipos de relações que podem existir entre mim e aquela casa.
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Em 2 a expressão depois pode significar duas coisas (e será o contexto extralinguístico a


decidir): depois no sentido temporal (no tempo posterior a quando Marcelo foi meu
aluno) ou depois no sentido de segundo melhor entre todos os alunos que eu tive.

Em 3 nós interpretamos provavelmente e como se fosse e depois, mas em outros


contextos discursivos e pode ser interpretado como simples adjunção (a bandeira do
Brasil é verde e amarela) ou como consequência, ou seja, e portanto (não estudei e fui
reprovado).

Sinonímia

A sinonímia é uma relação entre lexemas diferentes mas com o mesmo significado,
como começar/iniciar, por/colocar, gato/bichano, cefaleia/dor de cabeça, etc. Mais
exatamente a sinonímia se define em termos de substituibilidade entre lexemas em um
dado contexto. Duas palavras são sinônimas se possuem exatamente o mesmo sentido se
podem ser intercambiáveis em qualquer contexto. Na realidade a sinonímia perfeita é
tão rara que é considerada quase inexistente. Na quase totalidade dos casos entre os
sinônimos há umas diferenças que tornam impossível a substituibilidade absoluta e em
qualquer contexto. É preferível portanto falar em sinonímia parcial, considerando a
sinonímia como uma relação não absoluta mas graduável.

Oposição

Temos relação de oposição quando o significado de um lexema é oposto ao significado


de um outro lexema. Temos várias classificações da relação de oposição. A mais
conhecida é a classificação entre 3 tipos de oposição: antonímia, complementariedade,
inversão.

A distinção entre antonímia e complementariedade corresponde àquela entre oposição


graduável e não graduável. São antônimos os lexemas que indicam os extremos de uma
escala que prevê degraus intermediários (quente/frio, alto/baixo, bom/mau, jovem/velho,
rico/pobre). São complementares dois lexemas que são a negação um do
outro: vivo/morto, aberto/fechado, macho/fêmea, verdadeiro/falso.

De fato podemos dizer que alguém é mais ou menos alto ou rico, mas não que é mais ou
menos morto (não em seu significado literal). Os lexemas complementares dividem a
esfera semântica em duas partes que se excluem uma com a outra, de maneira que tudo
que não entra em uma parte deve necessariamente entrar na outra.

Em termos lógicos, a diferença entre antonímia e complementaridade pode ser descrita


através da implicação. Na antonímia a afirmação de um membro do par implica a
negação do outro, mas a negação de um membro do par não implica a afirmação do
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outro: o café está quente implica  o café não está frio, mas o café não está quente não
implica o café está frio, já que o café poderia estar morno, nem quente nem frio (como
se vê, em alguns casos também as possibilidades intermediárias são lexicalizadas). Ao
contrário, nos casos de complementaridade a afirmação de um dos membros implica a
negação do outro e vice versa: João está vivo  implica João não está morto e João não
está vivo implica João está morto. Essa diferença corresponde àquela que em lógica é a
diferença entre contrários e contraditórios. Uma afirmação é o contrário de uma outra
se não podem ser ambas verdadeiras mas podem ser ambas falsas. Uma afirmação é
contraditória com uma outra se necessariamente uma das duas deve ser verdadeira e a
outra falsa.

A inversão é o tipo de relação que se instaura entre dois lexemas que expressam a
mesma noção de perspectivas opostas, ou que indicam duas fases ou dois protagonistas
de um mesmo evento apresentados de pontos de vista diferentes, mas simétricos,
como marido/mulher, dar/receber, comprar/vender, em cima/embaixo, antes/depois. As
relações de inversão são especialmente frequentes em áreas do léxico como as relações
de parentesco e as relações sociais (pai/mãe, marido/mulher, doutor/paciente) e as
relações espaço-temporais (antes/depois, em cima/embaixo, em frente/atrás). Mas
entram nesse grupo uma série de fenômenos que geram sub-classificações. A oposição
direcional é constituída por pares de lexemas que indicam direções opostas
(embaixo/em cima, em frente/atrás, ir/vir, subir/descer, chegar/partir, trazer/levar,
entrar/sair).

Existem também oposições não binárias, ou seja, relativas não a pares de lexemas mas a
um número de lexemas mais alto. É o caso dos números (que são infinitos, mas se
opõem um ao outro), das estações (que são 4), dos meses (que são 12), dos dias da
semana, etc.

A relação hierárquica de hiperonímia e hiponímia

Essa relação se instaura entre um lexema de significado mais geral, chamado


hiperônimo, e um ou mais lexemas de significado mais específico, os hipônimos. Por
exemplo, animal é hiperônimo de gato, vaca, cachorro, etc, enquanto tulipa é hipônimo
de flor. Os hipônimos do mesmo hiperônimo são chamados de co-
hipônimos. Cachorro e gato são co-hipônimos de animal.

Do ponto de vista da extensão, o hiperônimo é mais inclusivo do que o hipônimo: a


classe dos animais inclui a classe dos gatos mas também muitas outras classes. Mas do
ponto de vista da intensão o hipônimo é mais inclusivo do que o hiperônimo: o
hipônimo possui todas as propriedades do hiperônimo mas também propriedades que o
hiperônimo não possui. Logicamente, a hiponímia pode ser definida como implicação
unilateral: X é hipônimo de Y se X implica Y mas não vice versa. Nesse caso dizer A é
um X implica dizer A é um Y mas dizer A é um Y não implica dizer A é um X. A
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relação de hiponímia é também uma relação transitiva: se X é hipônimo de Y e Y é


hipônimo de Z, então X é hipônimo di Z.

Não é possível organizar hierarquicamente o léxico inteiro. Contudo, a hierarquia é um


dos principais sistemas de organização do léxico, e dentro do léxico existem vários
conjuntos organizados hierarquicamente. A ordem hierárquica está na base das
taxionomias, ou seja, na ordenação das entidades (principalmente, mas não somente,
biológicas) em tipos e subtipos entre os quais existe uma relação do tipo É UM: o pastor
alemão é um cachorro é um canino é um mamífero é um vertebrado é um animal.
Existem diferenças entre as taxionomias científicas e as taxionomias populares: por
exemplo, na taxionomia científica o tomate é um tipo de fruta, enquanto na taxionomia
popular é um tipo de verdura.

A relação parte-tudo

A meronímia é a relação entre um lexema que denota uma parte e um lexema que
denota o todo correspondente, como nos pares dedo/mão, braço/corpo, teclado/piano.
Como a hiponímia, também a meronímia é uma relação hierárquica, mas não do tipo É
UM, mas sim do tipo PARTE DE. Um dedo não é uma mão ou um tipo de mão, mas
parte de uma mão. Contudo há fortes analogias entre a relação de hiponímia e de
meronímia. A diferença entre os dois tipos hierárquicos pode ser descrita com base na
propriedade da transitividade: enquanto a hiponímia é sempre transitiva, a meronímia
pode não sê-lo. Um exemplo de meronímia transitiva é unha/dedo/mão (unha é parte de
dedo, dedo é parte de mão, e unha é parte de mão). Mas no caso
de maçaneta/porta/casa dificilmente diríamos que a casa tem uma maçaneta como
diríamos que a mão tem unhas. A diferença é ligada à diferença funcional que a parte
possui com relação ao todo: uma maçaneta é uma parte essencial de uma porta porque
serve para abri-la e fechá-la, e portanto serve para que a porta funcione. Mas a maçaneta
não possui uma função específica com relação a uma casa. Assim, mesmo se porta é
certamente parte de uma casa e maçaneta certamente parte de porta, não transferimos
isso na relação de parte-todo entre maçaneta e casa. Como mostra esse caso, o papel dos
fatores extralinguísticos é essencial para a relação parte-todo.

O conceito de campo lexical e os frames

A teoria do campo lexical possui em sua base a ideia estruturalista de que o significado
de uma palavra não pode ser definido em si mas depende das relações que cada signo
possui com os outros dentro do sistema, especialmente nas relações paradigmáticas. Um
campo lexical é um conjunto de lexemas que cobre uma certa área conceitual
estabelecendo o limite dos outros lexemas da área. Cada elemento contribui a formar a
área conceitual e é ao mesmo tempo unido e diferenciado dos outros elementos da
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área.  Exemplos são os lexemas dentro da área das cores, os lexemas do campo do


parentesco, os lexemas de idade, etc.

A ideia de que o significado deva ser analisado não de maneira atomística mas olhando
para a estrutura em que os significados se inserem é considerada uma das heranças mais
importante da semântica saussuriana (estruturalismo), o que é reconhecido também pela
semântica cognitiva. A diferença é que para os estruturalistas a estrutura tem uma
natureza linguística, constituída portanto por outras palavras, enquanto para a semântica
cognitiva a natureza da estrutura é conceitual.

Para indicar esse tipo de estruturas foram elaborados, dentro da semântica cognitiva, os
conceitos de frames, de script ou de espaço mental. Esses conceitos indicam “pacotes”
de conhecimentos que constituem o background necessário para interpretar uma palavra
ou um conjunto de palavras correlacionadas.

Consideramos, por exemplo, a expressão segunda feira. Na perspectiva estruturalista o


significado dessa expressão se define com base na relação puramente intralinguística
que ela possui com outros lexemas pertencentes ao campo lexical dos dias da semana
(terça feira, quinta feira, sábado, domingo) que formam um conjunto cíclico governado
pelas relações de incompatibilidade (ou seja, se é um não é outro) e que tem como
arquilexema a palavra semana.

Na perspectiva cognitivista, ao contrário, para entender a expressão segunda feira é


necessário fazer referência a um frame, ou seja, um conjunto interpretativo, que inclui
uma série de conhecimentos extralinguísticos relativos, por exemplo, à estrutura do
nosso calendário, à distinção que existe na nossa sociedade entre dias de trabalho e
feriados, ao fato que segunda feira é o primeiro dia da semana em que se trabalha
(normalmente sem muito entusiasmo) depois de ter descansado no fim-de-semana, etc.

Do mesmo jeito, o significado de comprar, vender, pagar, custar, gastar e as relações


semânticas de sinonímia, oposição, etc. que acontecem entre essas expressões podem
ser compreendidas somente projetando esses lexemas no background conceitual ao qual
se referem, ou seja, o frame “evento comercial” que inclui como elementos de base um
vendedor, um comprador, uma mercadoria e o dinheiro ou o preço.

Ainda mais complicado o esquema atrás de um evento como “copa do mundo”,


necessário para entender corretamente a frase: O Brasil joga quarta, comércio fecha a
partir das 12,00”. As duas informações, aparentemente sem nenhuma ligação, podem
ser interpretadas somente a partir de um background de uma série de conhecimentos
sobre o que acontece no Brasil durante a copa do mundo de futebol quando joga o time
do país.

Assim, em uma perspectiva cognitivista, entender o significado pressupõe a referência a


um frame, ou seja um esquema conceitual que incorpora uma série de conhecimentos
convencionalizados dentro dos estereótipos de uma cultura específica, onde os membros
de uma comunidade organizam sua experiência de mundo de um determinado jeito.
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Com relação à abordagem estruturalista, o significado não pode ser interpretado com
base somente em relações intralinguísticas entre as expressões, mas deve remeter
também a como a experiência é conceitualizada com base em dados extralinguísticos.

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