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Recebido: 12-12-2019
Aprovado: 28-03-2020

A Construção da Nação no Brasil Imperial: uma análise sob


a luz dos estudos decolonias

Renata Guimarães Vieira1


Paulo Roberto de Oliveira2

Introdução

Para José Murilo de Carvalho (2002) a cidadania pode se desdobrar em três


dimensões: direitos civis (direito à liberdade, à propriedade e à igualdade perante
a lei); direitos políticos (direito à participação do cidadão no governo da
sociedade – voto) e direitos sociais (direito à educação, ao trabalho, ao salário
justo, à saúde e à aposentadoria). No Brasil do século XIX, cenário deste texto, os
escravos estavam totalmente excluídos de cada uma destas dimensões. Mesmo os
brancos pobres, os homens livres da ordem escravocrata, se pudermos recorrer ao
título de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), não eram contemplados por
estes direitos (Martins, 2010). No momento da Independência e passagem para o
Estado Nacional, os direitos, civis, sociais e políticos, que poderiam compor a
cidadania, praticamente inexistiam.
Assim, o processo de formação do Estado brasileiro deu-se em conjunto
com a criação de uma classe dirigente e a expansão de uma civilização. Ao
mesmo tempo em que se atraía o grande fazendeiro escravocrata para o espaço
político, buscava-se colocar o Brasil no rol das nações civilizadas. Houve uma
expansão para dentro, buscando consolidar o poder central sobre as regiões, as
quais guardavam identidades específicas construídas ao longo de três séculos de
domínio colonial.

1
Renata Guimarães Vieira, brasileira, doutora em economia pela UFMG. Email –
[email protected].
2
Paulo Roberto de Oliveira, brasileiro, doutor em Historia pela USP, professor no Departamento
de Ciencias Econômicas da UFOP. Email – [email protected]

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Grande parte da população foi excluída deste processo, tendo acesso


parcial à cidadania, como os arraia miúdas do final do Império, os negros
escravizados e ex-escravizados do século XIX, e os trabalhadores no cenário
urbano da Belle Époque. Neste texto, buscamos discutir como a noção moderna
de cidadão remete, em um primeiro momento, à nacionalidade (brasileira) e ao
papel de “súdito”, ressaltando também o contraste da horizontalidade proposta
pelo ideal da composição de um Estado moderno com a verticalidade proposta
pela hierarquização racial, que é um dos pilares da modernidade colonial. Por
fim, ressaltamos que a população não foi inerte a tal processo. Agiu no sentido de
se ver representada e de possuir acesso ao espaço público.

Colonialidade e Racismo: elementos fundamentais da construção da nação


brasileira

É sabido que o Brasil foi colônia de Portugal até 1822, quando se declarou
independente. Até então, não havia ainda uma intenção oficial de pensar o Brasil
enquanto nação, nem os brasileiros como cidadãos. Tais reflexões, porém,
marcaram todo o período imperial, sendo permeadas por acaloradas discussões
não só nos espaços institucionais, mas também na imprensa e, ao que tudo
indica, nas ruas das cidades e províncias do interior.
Ainda que as ideias próprias do liberalismo político – cuja matriz é a
modernidade europeia - tenham tido grande influência na época, as estruturas
coloniais, como a escravidão, ainda estavam presentes na constituição do que
seria a nação brasileira. Para compreender como se deu esse processo,
recorremos à noção de colonialidade, que segundo os que se dedicam aos
estudos decoloniais, é a face da modernidade europeia que cabe aos
colonizados. A partir destas reflexões, argumentamos que a colonização europeia
no Brasil, mesmo após a Independência, culmina em uma noção muito restrita de
cidadania.
Para os autores do projeto decolonial, as Américas coloniais são fundadas
a partir do paradigma moderno, sendo não somente formadas por esse
paradigma, mas também formadoras dele. O discurso da modernidade esteve e
está muito presente na conformação do que hoje entendemos como América

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Latina, uma vez que a ideia de hierarquização de lugares e povos operada desde
o período colonial é permeada pelo paradigma da modernidade. Mas, se a
relação colonial produz e é produzida pela modernidade, outro aspecto dessa
mesma relação não pode ser ignorado: a colonialidade.
Maldonado Torres (2007) destaca a diferença entre colonialidade e
colonialismo. O colonialismo precede a colonialidade e refere-se ao contexto
sócio-histórico de dominação colonial nas Américas, tendo as formas econômicas
de dominação e de subjugação do capitalismo como um ponto essencial para
justificar e manter o controle sobre os povos e as pessoas subjugadas. A
colonialidade não se restringe a esse contexto – e não é superada pelos processos
de independência - uma vez que não se refere a uma dada relação político-
econômica, mas a um padrão de poder que emerge dessa relação.
A colonialidade se refere, portanto, especialmente a dois eixos de poder
definidores da matriz espaço-temporal das ex-colônias em geral: a ideia de raça e
a naturalização de uma relação de inferioridade; e a constituição de uma
estrutura de trabalho baseada na servidão e na escravidão a serviço do comércio
internacional. Neste texto, buscamos refletir sobre as consequências de tais eixos
sobre a construção institucional da nação brasileira, e a noção de cidadania
associada a ela, que durante todo o período imperial se utilizou de argumentos
racistas para excluir indígenas, negros e mestiços, ou seja, a maioria da
população brasileira.
Para compreender de que se trata a colonialidade, é importante refletir
também sobre o que seria sua outra face – a modernidade. Nesse sentido, Dussel
(1994) argumenta que a ideia de modernidade se origina na Europa, mas só nasce
de fato enquanto geradora de realidades, no encontro com a América colonial,
em que o europeu se confronta com o Outro e busca violar, dominar e vencer
esse Outro. Nesse sentido, a modernidade está relacionada à origem de uma
noção de violência operada pelo ego europeu, que se materializa em um
processo de encobrimento deste Outro não-europeu.
A perspectiva de violência que permeia a modernidade europeia no
contexto colonial - em que o debate sobre liberdades individuais convive com a
defesa da escravidão - tem impactos que vão muito além do contexto das

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Américas e da Europa, criando um modelo de poder sobre o qual se baseia a


identidade moderna, a partir do racismo e do capitalismo. Esse padrão de poder
extrapola as relações formais e institucionais entre colônia e metrópole e atinge
“a forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações
intersubjetivas se articulam entre si por meio do mercado capitalista mundial e da
ideia de raça” (Maldonado Torres, 2007, p.131). Em suma, pode-se dizer que a
modernidade como um discurso e uma prática não seria possível sem a
colonialidade.
A manifestação da colonialidade se dá de maneiras distintas e
complementares. Enquanto a colonialidade do poder se refere às formas
modernas de exploração e dominação (muitas vezes tendo o Estado como
mobilizador), a colonialidade do saber se refere à produção e à reprodução de
regimes de pensamentos coloniais, e a colonialidade do ser se refere à
experiência vivida pelos sujeitos oprimidos na colonização. Todas elas
contribuem para que o ser colonizado seja convertido em um não-ser, um ente
invisível, especialmente no que se refere às “novas” legislações pós-
independência. O conceito de colonialidade do ser está, portanto, relacionado
aos aspectos epistemológico e ontológico da diferença colonial.

A diferença subontológica ou diferença ontológica colonial permite uma


diferenciação clara entre a subjetividade humana e a condição de sujeitos sem
resistência ontológica. A diferença sub-ontológica se relaciona com o que Walter
Mignolo chamou de “diferença colonial”. Porém, embora sua noção de diferença
colonial seja fundamentalmente epistêmica, a diferença sub ontológica se refere
mais centralmente ao ser. Então, podemos distinguir uma diferença epistêmica
colonial que nos permite observar com distinção o funcionamento da
colonialidade do conhecimento, e uma diferença ontológica colonial que revela a
presença da colonialidade do ser. Ou, bem, pode-se dizer que existem dois
aspectos da diferença colonial (epistêmico e ontológico) e que ambos estão
relacionados com o poder (exploração, dominação e controle) (Maldonado
Torres, 2007, p.147 - tradução livre).

A diferença sub-ontológica, que produz o “não-ser” (sujeito sem resistência


ontológica), é legitimada e formalizada pela ideia de raça que, aliada à
colonialidade do saber e do poder, constitui a colonialidade do ser. Se antes as
pessoas – no caso do Brasil, os indígenas - eram definidas como bárbaras ou não
(o que evidencia sua condição de Outro, que não é negado mas reconhecido em
sua diferença), a partir da experiência colonial americana o Outro passa a ser

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caracterizado de acordo com ideia de raça3, que vai se consolidando


gradativamente. Pouco a pouco, o status de Outro, bárbaro, não-europeu, é
substituído por status nenhum: ou, pela dúvida sobre a condição humana deste
Outro, e, por fim, pela negação de sua existência mesma enquanto sujeito,
enquanto pessoa.
Nesse sentido, Maldonado Torres (2007) argumenta que há uma
diversidade de formas de desumanização baseadas na ideia de raça (que permite
substituir a noção de Outro pela noção de não-ser). Para além das ideias
europeias de racismo biológico há algo mais sutil que permanece fundado na
hierarquização das pessoas em graus de humanidade4. O autor explica que a
classificação das pessoas entre negros, brancos e índios retira do sujeito sua
dimensão horizontal, conferindo-lhe uma dimensão vertical, hierarquizada, na
qual quanto mais branca a pele, mais próximo o sujeito estaria de representar
uma humanidade completa – e, consequentemente, estar apto à cidadania.
No Brasil, por exemplo, embora a humanidade dos povos indígenas não
fosse oficialmente contestada, até mesmo para justificar a construção de uma
unidade populacional, no cotidiano, e até mesmo nas esferas “oficiais” mais
distantes do poder central, essa questão nunca foi unanimidade. A noção do
indígena selvagem, bestial e feroz, corroborada pelas histórias contadas sobre as
etnias antropofágicas povoava o imaginário popular e justificava toda sorte de
violências. Nesse sentido, Carneiro da Cunha (2012, p.59) destaca a fala do então
presidente da província de Minas Gerais, ao ser indagado sobre a índole dos
Aymorés e Botocudos, em 1827: “Permita-me v. exa. refletir que os tigres só
nascem tigres; de leões, leões se geram; e dos cruéis Botocudos (que devoram, e
bebem o sangue humano) só pode resultar prole semelhante.” (Francisco Pereira

3 É certo que classificar as pessoas de acordo com sua origem não é uma discussão que se inicia
com a colonização das Américas. O dogma cristão da unidade fundamental da espécie humana,
discutido, por exemplo, na obra de Santo Agostinho, já dividia a humanidade em três partes,
relacionadas à passagem bíblica em que os três filhos de Noé se separam após o dilúvio, gerando
três povos diferentes. Segundo a interpretação europeia, filhos de Sem povoaram a Ásia, os filhos
de Cam (que deveria ser castigado por ter zombado de seu pai) povoaram a África e os filhos de
Jafé povoaram a Europa (Castro-Gómez, 2005), divisão essa que também já sugere certa noção de
hierarquização.
4 Carneiro da Cunha (2012 p.58) destaca que havia um amplo debate na comunidade científica
européia sobre os critérios adotados para diferenciar os humanos dos outros animais. Como
exemplo, cita os experimentos de um dos fundadores da antropologia física, Johann Friedrich
Blumenbach, que ao analisar o crânio de um índio Botocudo, o coloca entre o homem e o
orangotango.

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de Santa Apolonia ao visconde de São Leopoldo, 31 de março de 1827, in Naud


1971: 319).
Para compreender melhor a questão dos graus de humanidade, Maldonado
Torres (2007) revisita a teoria filosófica europeia acerca da constituição do eu, ou,
em outros termos, sobre a ontologia do ser. O autor argumenta que a filosofia
europeia moderna se baseia na premissa de Descartes, “penso, logo existo”, ao
atribuir humanidade aos seres. Porém, a partir de uma perspectiva racializada,
“penso, logo existo” significa também penso (outros não pensam), logo existo
(outros não existem, ou sua existência é dispensável). Sendo os povos americanos
inferiores em termos de racionalidade, incapazes de produzir ciência e refletir,
não seriam, portanto, sujeitos adequados aos requisitos da filosofia moderna (da
qual Descartes foi um dos expoentes). Quanto menos racionais, menos humanos
serão esses povos.
Ao constatar que no pensamento europeu está implícita a negação do
outro, descobre-se a base da colonialidade, que nega ao outro as capacidades de
pensar, poder, ser e saber. E os Estados latino-americanos se organizaram a partir
da reprodução desta invenção do Outro, que precisa ser essencialmente diferente
– não-europeu - para que seja excluído. Para Goldberg (2011),

Classificação, valoração e ordenamento são processos centrais para a criação e


construção racial. O ordenamento em questão não precisa ser hierárquico, mas
deve ao menos identificar diferenças; e a valoração não precisa atribuir
superioridade, para todos ela deve se sustentar minimamente como um critério de
inclusão e exclusão. Segue que raça é irredutivelmente uma categoria política.
(...) Nesse sentido, raça serve basicamente – algumas vezes explicitamente e
assertivamente, em outras silenciosamente e subitamente – para definir
capacidade de auto-propriedade e auto-direção (GOLDBERG, 2011, p.87 –
tradução livre).

Não só na América Latina, mas em quase todo o mundo (ou a parcela dele
organizada a partir do encontro colonial), o Estado funcionará a partir da
perpetuação de uma hierarquia racializada, num contexto em que “raça” assume
sentidos que vão muito além da cor da pele, abrangendo de alguma forma todos
que estão alheios aos parâmetros do projeto modernizante. Assim, as políticas de
cidadania desses Estados que, inicialmente, excluem grande parte da população
não-branca, assumem posteriormente um caráter civilizatório – compatível com o
projeto de formação de uma nação moderna - e assumem o objetivo de incluir a

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totalidade da população neste projeto, forjando nesse processo um discurso


ficcional de identidades homogêneas – negando, mas não desconstruindo, o
racismo como pilar de sua estrutura social - da qual falaremos mais adiante.
Neste texto, demos destaque ao processo que ocorre durante o século XIX
no Brasil, que começa ainda na Colônia, passa pelo Império e termina na
República Velha. É um período permeado por disputas entre grupos locais e
tentativas de centralização do poder em que o Brasil se moderniza, mantendo,
porém, a estrutura de privilégios já estabelecida. Por fim, ressaltamos que a
manutenção dessa estrutura não acontece de forma tranquila. Já há lutas contra-
colonizadoras que ocorrem ao longo deste processo, buscando a construção de
uma cidadania inclusiva e que respeite e valorize as diferenças.

Independência: emergência dos elementos básicos da formação do Estado-nação


brasileiro

Em 1808, a Corte Portuguesa, após a resistência em aderir ao bloqueio


continental imposto por Napoleão, mudou-se para o Brasil, abrindo os seus
portos às nações amigas e tornando-o Reino Unido a Portugal e Algarve. A partir
da transferência da Corte, foi reforçada uma estrutura administrativa voltada para
o Rio de Janeiro, a qual, ao mesmo tempo que aumentava a cobrança de
impostos sobre diferentes regiões, transformava a capital, e criava um espaço
oficial para discussões que estariam adiantando assuntos caros ao posterior
processo de constituição da nação. Este episódio, portanto, foi determinante para
que o Brasil deixasse de ser colônia posteriormente, em 1822, e passasse a refletir
sobre si mesmo como uma nação.
A transferência da Corte estimulou também tentativas de sanar questões
mal resolvidas nos períodos anteriores. No que tange à tarefa do Estado em dar
diretrizes para a organização social, destaca-se, por exemplo, o debate sobre a
questão indígena, que será permeado pela noção de hierarquização racial
destacada na seção anterior. Até então, vigoravam as diretrizes lançadas pelo
marquês de Pombal, que visavam à assimilação dos indígenas à população
brasileira através da transformação das aldeias em vilas com diretores nomeados
pelo poder central (que substituíram os jesuítas, expulsos por nem sempre se

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subordinarem às ordens da Coroa) e da proibição de quaisquer línguas diferentes


do português, dentre outras medidas. Mas, com a revogação do chamado
Diretório Pombalino em 1789, a questão estava, por assim dizer,
desregulamentada.
Com a vinda de D. João VI para o Brasil, mantém-se a intenção pombalina
de assimilação do indígena na população geral, e o debate passa a girar em torno
da questão da distribuição de suas terras. Na Carta Régia de 1808, são
consideradas devolutas as terras dos índios a quem a Coroa havia declarado
“guerra justa”. Para Carneiro da Cunha (2012, p.72) o fato demonstra que o
reconhecimento dos direitos anteriores dos índios sobre as suas terras seria
exclusivo para os povos aldeados que se submetiam às ordens da Coroa. Para
justificar a tomada de território, foi declarado um conflito aberto contra as nações
indígenas insubmissas, consideradas bravias, selvagens e inaptas ao processo
civilizatório. Como exemplo, temos a guerra declarada contra os Botocudos para
liberar a colonização no Vale do Rio Doce. Nesse sentido, a autora explica que,
ao invocar a guerra justa, instituição própria das Cruzadas do século XVI, em
pleno século XIX, D. João VI

Faz ressurgir a escravidão indígena, abolida pelo Diretório Pombalino meio


século antes: os índios conquistados ficarão escravos por certo tempo. Mas
introduz também, sub-repticiamente, um novo título sobre as terras dos índios,
algo que não era tratado nos séculos anteriores. Nunca se haviam declarado
devolutas as terras de índios conquistados: a novidade é significativa. Nessas
terras, favorecia-se o estabelecimento de colonos (Carneiro da Cunha, 2010,
p.73)

Para autorizar a expropriação das terras indígenas a favor dos colonos


(entre os quais se incluem os diretores das aldeias), além do argumento da
insubmissão destes povos, será também considerada sua característica nômade e
a ausência da noção de propriedade, grosseiramente traduzida em desapego pela
terra. Perdura o debate entre o extermínio dos povos insubmissos ou a sua
assimilação através da utilização compulsória de sua força de trabalho 5. Além do
tratamento brutal dado aos povos indígenas, D. João VI manteve o tráfico de
pessoas escravizadas vindas da África, apesar da pressão inglesa para a abolição

5
É importante destacar que a escravização indígena foi abolida e retomada várias vezes ao longo
da história, e que até meados de 1850 ainda havia relatos de indígenas escravizados na Corte do
Rio de Janeiro (Carneiro da Cunha, 2012, p.83)

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do mesmo. O monarca alegava que a escravidão era essencial para o


desenvolvimento econômico da colônia, e que por isso o tráfico deveria ser
proibido gradativamente, mas, na prática, não tomou nenhuma medida
expressiva nesse sentido (Carneiro da Cunha, 2012).
Com a resolução do conflito europeu, o então rei de Portugal manteve-se
no Brasil até que, em 1820, em consequência da Revolução do Porto6, foi
chamado à Portugal para jurar a nova constituição. Forçado a retornar, deixou
aqui como regente o Príncipe D. Pedro, o qual articulou-se às elites locais e
proclamou a independência em 1822. O processo de Independência abriu
novamente espaço para as questões inconclusas da nação que se formava, uma
vez que trazia a necessidade de um debate em torno da formulação de uma
Constituição.
Um dos principais temas a serem definidos para esta nova legislação era o
critério a ser utilizado para definir quem, de fato, seria considerado brasileiro
perante a lei. Neste primeiro momento, foi considerado brasileiro todo aquele
que, tendo aderido à causa da independência nas antigas províncias do antigo
reino do Brasil, tivesse contribuído para a sua expansão por todo o território que
pertencia ao novo corpo político. Em outras palavras, aqueles que se dispusessem
a sustentar a expansão para dentro já que uma expansão imperial para fora estava
vedada pelos interesses ingleses (Mattos, 2009).
Contudo, a primeira constituição brasileira, a Carta de 1824, ao
estabelecer quem era brasileiro (e que teria acesso à cidadania) não incorporava
todos aqueles que estavam em território nacional. Dois grandes grupos, os
escravos e os portugueses, estavam alijados do processo, e ex-escravos eram
reiteradamente colocados de lado. A escravidão se impunha às leis; a liberdade
era experiência perigosa para os negros. Era constante entre os alforriados o medo
de recair na escravidão, mantida pelo Estado que, apesar de ter se comprometido
já em sua independência a erradicá-la, seguia mantendo-a contra as leis
nacionais7 e da própria humanidade (Chalhoub, 1999).

6
Movimento feito pela burguesia portuguesa para pressionar a volta do monarca à Europa sob a
ameaça de perder o trono caso não retornasse.
7
Apesar de não ter sido abolida a escravidão, em 1831 decidiu-se que, por lei, qualquer pessoa
que desembarcasse no Brasil seria automaticamente considerada livre. Por conta dos interesses da
elite escravista brasileira e do Estado em formação, tal legislação quedou-se esquecida.

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A cidadania, neste primeiro momento, estava vinculada à ideia de


nacionalidade. Segundo Dal Ri (2010) tal vínculo se deve à associação entre as
noções de cidadão e de súdito, ou seja, aquele que deve ser protegido pelo
soberano e deve obedecê-lo, uma vez que é considerado politicamente incapaz.
O critério para ser súdito, por sua vez, é o critério da nacionalidade.
A nacionalidade, portanto, coloca o “súdito-cidadão” como sujeito de
direitos, mas não de direitos políticos, uma vez que este segue sendo considerado
politicamente inapto. O voto e a candidatura a cargos públicos eram exclusivos
para aqueles que comprovassem sua condição econômica de proprietários.
Adotou-se, assim, o que Dal Ri (2010) chama cidadania ativa - reservada aos
cidadãos-proprietários – e cidadania passiva, reservada àqueles que eram
brasileiros, mas pobres. Reforçava-se, assim, as hierarquias coloniais que
privilegiavam a “boa sociedade” e as relações que se estabelecia com esta; em
outras palavras, reforçava a exclusão de grande parte da sociedade. A “boa
sociedade”, ativa, possuía os atributos necessários para o governo. Aos escravos
cabia o mundo do trabalho, enquanto o povo mais ou menos graúdo representava
a desordem, que ocupava o espaço da rua (Carvalho, 2002).
Paralelamente aos mecanismos de manutenção das hierarquias coloniais,
as ideias liberais circulavam alimentando tanto os conflitos na câmara dos
deputados quanto as páginas dos jornais da imprensa recém-criada, que
propagava ideias de autonomia e liberdade. Nessa esfera de novidades,
emergiram também práticas políticas respaldadas na noção de direitos dos
cidadãos, tal como a apresentação de petições à Câmara dos Deputados (Pereira,
2008). Mesmo após o fechamento da Assembleia Geral, a Constituição de 1824
(que institucionalizava o Poder Moderador dando amplos poderes ao Imperador)
garantia também o direito de petição, queixa e representação dos cidadãos. Para
Pereira (2008) as petições eram tidas como uma ponte entre o código e cotidiano.
As petições ajudaram a construir a imagem da Câmara dos deputados
como uma instituição de garantia de direitos, defensora, portanto, do cidadão.
Colocava o parlamento como um espaço de soberania nacional e popular, em
contraposição à política colonial estrangeira, opressora e inacessível.

No Brasil, o movimento peticionário possibilitou o amadurecimento e o


dasabrochar da “sociedade civil”. Foi responsável pelo florescimento de

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movimentos mais próximos ao que conhecemos como “populares”,


exemplificadas nas inúmeras manifestações de rua ocorridas no período que
antecedeu a Abdicação do Imperador D. Pedro I e nas revoltas regenciais, bom
como no período posterior ao Ato Adicional de 1834. Todos esses movimentos
que contaram com a forte marca do liberalismo político e com ideário de
liberdade (Pereira, 2008, p.104)

Para Pereira (2008, p.112), o processo de independência teve um grande


impacto, especialmente, para a tomada de consciência dos homens livres pobres,
que, se encaixando nos requisitos básicos da cidadania – ter a nacionalidade
brasileira e a não ser escravo – poderiam usufruir do horizonte de autonomia e
ampliação de direitos criado pela propagação das ideias liberais. Assim, o
passado era caracterizado como “despótico”, “arbitrário”, e de “privilégios”, ao
passo que o presente era visto como o da “liberdade”, da “Constituição”, da
“Lei”, da “Justiça” e de “Direitos”.
Porém, muitos parlamentares temiam que as ideias liberais incentivassem
escravizados e libertos a reivindicarem seus direitos de cidadania. Argumentavam
que a população era ignorante e não estava preparada para as responsabilidades
da vida política liberal. Além disso, temiam que uma transição de poder abrupta
pudesse favorecer uma grande revolta dos escravizados. A verdade é que as elites
políticas traziam consigo as marcas da colonialidade, considerando-se muitas
vezes superiores não só em termos de renda, como também sentindo-se no direito
de desempenhar um papel que oscilava entre a tutela e a opressão.
A oscilação entre tutela e opressão se torna ainda mais nítida com a
retomada dos debates sobre a questão indígena. Após a abdicação de D. Pedro,
com o ato adicional de 1834, os poderes locais (provinciais) ficam responsáveis
por legislar sobre a catequese e civilização de indígenas, o que abre espaço para
a oficialização de diversas medidas anti-indígenas, incluindo violentos ataques do
poder público registrados no Ceará e em Goiás, não só às aldeias, mas também
aos quilombos (Carneiro da Cunha, 2012, p.65). Em 1845 foi publicado o
Regulamento da Missões, um documento administrativo que reiterava o sistema
de aldeamentos indígenas como um passo para a assimilação dos índios pela
sociedade. Neste documento, aos missionários católicos foi atribuída a função de
assistentes religiosos e educacionais. Porém, na realidade, a carência de diretores

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passíveis de nomeação fez com que muitos missionários acumulassem também


estes cargos.
Além do complexo debate sobre como tornar uma população
historicamente marginalizada – e cuja humanidade, no caso de indígenas e
negros, havia sido por vezes questionada – em cidadãos não era o único
obstáculo para a criação de uma nação plena. No caso do Brasil, seria necessário
trabalhar também a consolidação da unidade territorial, e de um sentimento geral
de pertencimento. Havia, por exemplo, regiões que se ligavam de maneira mais
estreita a Portugal ao mesmo tempo em que outras ligavam-se com mais força ao
continente Africano (Florentino, 1995; Alencastro, 2000).
Até mesmo na corte carioca, a inserção de diversas localidades não se deu
de forma idêntica ou na mesma proporção. Deputados da Bahia, Pernambuco,
Pará e Maranhão buscavam diminuir a drenagem de recursos para o Rio de
Janeiro. Os deputados do sudeste, por sua vez, rebatiam os do nordeste e norte
dizendo que seu pertencimento ao Império pressupunha contribuições. Fato é
que, ao tratar da centralização da receita, o governo atingia diretamente os
interesses locais e aumentava as insatisfações (Pereira 2008).
Outro exemplo desta falta de unidade é caracterizado pela situação do
Estado de Pernambuco. Como colocado por Evaldo Cabral de Melo (2004), a
província não se submetia a uma ideia de unidade construída a partir do sul e
resistiu buscando manter a sua autonomia e sua hiterland. A realidade física da
região se sobrepunha às tentativas centralizadoras vindas do Rio de Janeiro; havia
um circuito comercial e político que de Pernambuco se estendia até o interior e
se reproduzia independentemente do Rio de Janeiro.
Assim, conforme afirma Jancsó (2003), é um equívoco reduzir a formação
do Estado Brasileiro à ruptura com Portugal em 1822. A diferenciação e a
convivência entre diferentes identidades não seria prontamente superada. Um
pernambucano, por exemplo, tinha como pátria o Pernambuco, como país, o
Brasil e, como nação, a portuguesa. O termo Brasil era utilizado para definir o
todo da América Portuguesa. Contudo, naturais da terra não se identificavam
como brasileiros, sendo a escravidão, em grande medida, ordenadora do
processo. Além disso, existiam diferentes sociabilidades políticas em diferentes

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regiões, antes e depois da Independência. Tal situação fez com que diferentes
regiões em um primeiro momento se insurgissem contra o projeto de nação
baseado nas elites do sudeste e feito a partir do Rio de Janeiro.
Esta expansão para dentro ligada à ideia de Império e de civilização, como
já se nota, prescindia da construção de uma unidade, que teria como um de seus
elementos a fundação de um mito nacional. Esta construção de um espaço de
identificação que buscava abranger a todo novo corpo político foi feito, além de
outras ações, pelo estabelecimento das datas comemorativas que marcassem a
fundação do Império do Brasil. Assim, o 7 de abril, data de abdicação de D.
Pedro I, passou a ter grande peso simbólico. Era o ponto de ruptura que se
construía, quando um imperador estrangeiro sedia lugar ao filho, este sim
considerado capaz de representar os novos tempos. Era inevitável a comparação
do 7 de abril com o 7 de setembro.
Além disso, era preciso reorganizar as estruturas do estado para que elas
pudessem ser capazes de implementar, no cotidiano da nação, as mudanças
pretendidas após a independência. As primeiras medidas para a construção do
Estado imperial foram tomadas ainda no Primeiro Reinado:

No âmbito da justiça, a criação do cargo de juiz de paz (1827) e do Supremo


Tribunal (1828); o novo regimento para as Camaras municipais (1828) que as
transformou em instancias administrativas vinculadas aos governos de províncias;
o estabelecimento de Tesourarias Provinciais (1831) para resolução do candente
problema de escoamento de recursos para a Corte; a aprovação da primeira Lei
de Orçamento (em 1832), que instituía uma divisão entre rendas provinciais e
nacionais e fomentaria, pelo seu teor, uma séria de críticas e conflitos; a
formação da Guarda Nacional (1831), na tentativa de dar conta da falta de força
militarizada; e mesmo a criação das Faculdades de Direito em São Paulo e em
Olinda (1827), com o intuito de promover uma cultura jurídica nacional, além de
formar quadros políticos para o império em, construção. Isso sem contar a
aprovação dos dois primeiros códigos: o Criminal e do Processo Penal (Slemian,
2008, p. 182-3).

Destaca-se também a recunhagem da moeda colonial, como colocado por


Mattos (1987). Na cara da moeda, onde antes havia a metrópole portuguesa,
colocou-se as nações civilizadas. Na outra face, a coroa se impôs à região. Tal
processo de recunhagem se completou com a maioridade de D. Pedro II e o

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estabelecimento da hegemonia saquarema8, a partir da qual se construía um


consenso entre as diferentes elites sociais e regionais lideradas pelo grupo
conservador que tinha nos saquaremas do Rio de Janeiro os seus mais expressivos
quadros.
A construção da nação também passava pela imposição de uma língua
nacional. Como afirma Lima (2009), em 1822, o número de indivíduos que
falavam a língua portuguesa não era maior do que os que falavam as línguas de
origem africana. A tentativa de imposição da língua portuguesa já era feita desde
o período colonial, quando a metrópole portuguesa, em 1757, buscou impor a
mesma à língua geral, falada na maior parte do território, misto de línguas
indígenas que cumpria a função de comunicação muito melhor que a língua mãe
dos colonizadores. Além da língua geral, as línguas de origem africana também
resistiram à imposição do português; além de sua conotação cultural, de
preservação do mundo dos desterrados, possuía o sentido de resistência, a partir
da qual muitos escravos se comunicavam sem serem percebidos pelos senhores e
autoridades coloniais.
A imprensa teve um amplo papel na difusão da língua nacional. Ponto
fundamental foi a instauração da Imprensa Régia no Brasil em 1808. A partir daí
houve a expansão de escritos em português que difundiam a língua em leituras
individuais ou coletivas, em serões familiares ou em manifestações políticas nas
praças e ruas. Muitos jornais produzidos no Rio de Janeiro eram distribuídos e
lidos nas demais regiões. No norte e nordeste chegavam principalmente por meio
da navegação entre as províncias do litoral, incrementada a partir de 1827. Junta-
se a isso o papel da educação escolar, instituída na Constituição de 1824 (Lima,
2009).
Africanos eram em alguns casos excluídos da escola (Lima, 2009,p. 485) e,
portanto, excluídos do espaço de cidadania. Ao mesmo tempo em que uma lei
de 1837 excluía os africanos e escravos do espaço escolar, havia
estabelecimentos que buscavam atender a meninos pretos e pardos. Havia, como
se vê, uma parte da população na fronteira entre os livres pobres e os escravos

8
Os membros do Partido Conservador eram conhecidos por saquaremas pelo fato de vários de
seus membros residirem no município fluminense de Saquarema, que passou a ser também local
de reuniões do partido.

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que buscavam caminhos para a incorporação social, para a inclusão no mundo


da cidadania, também por via da inclusão linguística via educação formal.
Na criação de um espaço compartilhado, de uma cultura que permeasse as
diferentes regiões e forjasse uma identificação, a ação intelectual teve um grande
papel. É neste contexto que se enquadra o IHGB - Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. A produção histórica do IHGB era profundamente marcada por uma
visão elitista, herdeira da tradição iluminista (Guimarães, 1988). No bojo de
construção de um processo de consolidação de um Estado Nacional se viabilizou
o projeto de pensar a história do Brasil de maneira sistematizada. Criado em 1838
sob proteção direta do Imperador, o IHGB cumpria esse papel. Como detectou
Guimarães (1988), no IHGB Nação, Estado e Coroa aparecem como uma unidade
no interior da discussão historiográfica ligada à questão nacional.
O conceito de nação operado pelo IHGB é concernente com a construção
do estado brasileiro que excluía grande parte da população. A revista do IHGB
munida de uma concepção de História como exemplo, dedicou-se em grande
parte às biografias, supostamente capazes de fornecer modelos às próximas
gerações. Além disso, em suas páginas, o negro não era incorporado como
integrante da nacionalidade, mas como impedimento ao processo civilizador. O
índio foi contemplado por trabalhos que receberam premiações, fazendo parte
dos temas fundamentais tratados na Revista: a citada problemática indígena, as
viagens pelo interior, de exploração científica e os debates da história regional.
Apesar do esforço governamental em forjar uma nação, em diversos
aspectos, ter sido expressivo, a orientação de tal processo político não pode ser
exclusivamente atribuída às elites. O 7 de Abril, data de abdicação de D. Pedro I,
foi resultado não só de tramas urdidas na imprensa e no parlamento, nas
sociedades secretas e nos quartéis, mas também da forte pressão popular. Durante
a regência, diversos grupos sociais ocuparam o espaço público, lutando para
serem soberanos, concretizando o exercício informal da cidadania, um
movimento de construção do Estado de baixo para cima.

Lutas por Direitos, Inclusão, Respeito e Reconhecimento

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Lilia Scwarcz e André Botelho (2013) afirmam que os conceitos de


cidadania não são estáveis. Vivem e disputam significados e sentidos práticos e
simbólicos e variam de acordo com a experiência histórica. De qualquer forma, a
cidadania se constrói no cotidiano, e a população que estava excluída deste
processo não assistia passivamente. A construção da cidadania passava pelo
levante e pela resistência. Maria Gohn (2012) destaca a participação do que
chama de sociedade civil por meio de lutas, movimentos, associações, etc. em
conflitos que abrangiam áreas rurais e urbanas.
Para Basile (2008), vários aspectos contribuíram para levantes de variadas
proporções, no campo e nas cidades. Destaca-se a divulgação na imprensa das
ideias lançadas pelos grupos políticos de oposição ao governo imperial, quais
sejam, os liberais moderados e exaltados, com destaque para o último. Nas
palavras do autor, há neste período “uma politização das ruas, assinalada pela
revitalização e multiplicação dos espaços de sociabilidade política (...), pela
mobilização de uma embrionária opinião pública e por intensa participação
popular (Basile, 2008, p.207). O próprio movimento abolicionista, entendido
como movimento social, foi um dos maiores ao final do século XIX, que
articulava diferentes grupos sociais em torno do direito à liberdade (Alonso, 2015)
Além das revoltas mais conhecidas, houve também manifestações na
cidade e no campo. Vale lembrar que, na primeira metade do século XIX, o Rio
de Janeiro era a maior cidade escravista das Américas, com a principal
concentração de africanos. Segundo Moreira (2006), em 1799, havia nas
freguesias urbanas 8.812 libertos e 14.986 escravizados, chegando estes últimos
quase aos quarenta mil em 1872. Havia um receio geral entre as elites de que as
insurreições que ocorriam ao redor das cidades, somadas ao clima de tensão do
ambiente urbano, potencializassem uma grande rebelião de escravizados. Este
temor se agravava diante do exemplo histórico dado pelo levante de São
Domingos (posteriormente conhecido como Haiti) e pela própria Revolta dos
Malês9 de 1835. Em seu trabalho, Marcelo Basile (2017), narra um episódio de
confronto urbano ocorrido em 1831, que nos dá condições de visualizar a tensão
da época:

9
A Revolta dos Malês foi um grande levante de escravos de maioria muçulmana que ocorreu em
Salvador em 1835.

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Mas, na noite de 25 de setembro, por volta das dez e meia, desceram do morro
do Nheco (Santa Teresa) mais de trinta amotinadores, “a mor parte muito mal
vestidos e alguns descalços” (decerto, cativos), que arrombaram a casa de um
comandante de esquadra da Guarda Municipal, pegaram as armas e atacaram
duas rondas na Cidade Nova. No caminho, pararam em frente à casa do major
Miguel de Frias e Vasconcellos, “dando-lhe vivas, e intitulando-o o General”.
Reforçados por várias adesões, chegaram em grupo de cinqüenta a sessenta
pessoas aos quartéis do campo da Honra (praça da República), onde, dos portões,
exortaram os soldados a acompanhá-los. Sendo estes contidos pelos oficiais, o
bando decidiu ir embora, após dar “vivas à Constituinte, à República, morras aos
chumbos, ao ministro da Justiça e soltado gritos de – abaixo a Regência, fora os
Deputados, & c.” (Basile, 2017, p. 38).

Segundo o autor, três dias depois houve uma grande confusão no teatro
São Pedro de Alcantara (ponto habitual de reunião dos exaltados), que teria sido o
segundo de uma série de oito apenas durante a Regência. Na ocasião,
manifestantes iniciaram um tumultuo que atraiu mais de duzentos guardas
municipais, que ao invés de intimidar o movimento, tornou-o ainda mais
agressivo e numeroso, culminando, por fim em três indivíduos mortos.
Alguns aspectos do referido evento devem ser ressaltados. Segundo Basile
(2017, p.52), os manifestantes deveriam ser de baixa condição social, inclusive
escravos, descritos à época como “anarquistas”, “agitadores”, “amotinadores”,
“malfeitores”, a “ralé mais cívil da nossa população”, “Grupos de negros, e
pardos da ínfima classe, rotos, e meios descalços”, “pretos descalços”, “ímpios
bebedores de sangue”.
Acreditava-se que, além dos motivos óbvios que tal classe tinha para
rebelar-se, estariam também sendo influenciados pelos liberais exaltados, em sua
maioria provenientes das camadas médias urbanas, ressentidos da
desconsideração de suas pautas pelo atual governo. Além disso, contribuía para
os levantes a insatisfação dos militares, especialmente das mais baixas patentes,
muitas vezes recrutados à força, que sofriam maus-tratos e castigos corporais.
Outro fato era o antilusitanismo, alimentado especialmente pela consideração dos
portugueses como uma ameaça à independência, estando associados, ao menos
no imaginário popular, ao colonialismo e ao absolutismo.

Esta politização das ruas era a forma viabilizada de dar vazão a um potencial
participativo que não encontravam espaço dentro dos canais institucionais
desenvolvia-se uma prática informal de cidadania, construída de baixo para cima,
mediante a participação ativa das mais diversas camadas sociais nas instâncias de
ação política do espaço público. Ao se definirem como um lugar de exercício da
cidadania, agindo em nome de direitos que julgavam legítimos, os movimentos

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de protesto da Capital imperial, embora não tivessem cunho nacionalista,


constituíam um dos eixos de formação política de uma incipiente nacionalidade
(Basile, 2017, p. 56).

Além disso, existiam as resistências que vinham de outra matriz, que


representavam outra concepção de mundo. Eram os escravos que se rebelavam
em grupo ou individualmente contra o cativeiro, por condições que
consideravam mais justas. Para tanto, utilizavam diferentes estratégias, como a
revolta, a fuga, ou a justiça para tentar fazer cumprir as leis que lhes poderiam
favorecer (Chalhoub, 2012). O exemplo mais contundente é a formação de
diversos quilombos em todo o território nacional, que não deixaram de ser
considerados agrupamentos criminosos até a Constituição de 1988.
No que diz respeito aos indígenas, ainda que a escravização não fosse
regra geral, a consideração destes como incapazes e consequente atitude do
governo em exercer a tutela10 sobre os mesmos criava situações de opressão que
também não foram aceitas passivamente. Além dos inúmeros conflitos locais
violentos, há também tentativas de recorrer aos abusos pelas vias oficiais. Nesse
sentido, Carneiro da Cunha (2012, p 93) relata que, em 1815, os índígenas
Aramaris da Bahia encaminharam ao governo um documento protestando contra
a espoliação de terras de sua aldeia. Outro exemplo são as denúncias feitas em
1825 pelo povo Xucuru de Pernambuco relatando abusos do diretor da aldeia,
resultando em decisão favorável do Imperador11.
Ao final do império alguns dos grupos que se encontravam alijados,
apartados da política e relegados a um lugar periférico na sociedade, uniram-se
em torno da busca da cidadania sob o guarda-chuva abolicionista (Machado,
2010). Com o afrouxamento da hegemonia saquarema, tais grupos identificavam-
se entre si tendo como cimento que os unia a sua experiência social:
trabalhadores de diferentes profissões, intelectuais, comerciantes, ex-escravos e

10
Em 1755 Pombal concede aos índios autonomia total no que ele entende como sua
emancipação dos jesuítas. Mas já em 1757 é instituído o regime de tutela que julga que os índios
são incapazes de governar suas povoações e por isso devem ser subordinados a um diretor. Na
Carta Régia de 1798, a emancipação dos índios aldeados de seus diretores. Quanto aos não
aldeados, os índios “bravos”, são comparados às crianças órfãs, que precisam de um tutor que os
introduza à vida em sociedade. O mesmo se aplicava aos africanos e afrodescendentes livres.
11
Coincidência ou não, o fato é que não se conhecem processo de defesa dos direitos indígenas
após 1845, quando os diretores das aldeias passam a exercer a função de procuradores dos índios.
carneiro da cunha P.94

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escravos compreendiam que colocados à parte, poderiam unir-se para ter da


nação a cidadania que lhes era negada. Se para a população em geral a cidadania
no século XIX era assunto complexo, para a população negra era ainda mais
delicado. Se o Estado agia contra a lei mantendo escravos chegados após a
década de 1830, o que o impediria de escravizar aqueles que não eram
considerados brancos?
Como coloca Maria Helena Machado (2010), a experiência das lutas
abolicionistas formou uma identidade e uma experiência utilizada em lutas
posteriores. Contudo, após a abolição, as diferentes pautas que se mobilizaram
sob o guarda-chuvas abolicionista se separaram, o que mostra que a insatisfação
ultrapassava o cativeiro e agregava questões mais complexas, as quais chegaram
a ser taxadas pelos conservadores como socialistas e anarquistas.

Considerações Finais

As últimas décadas do século XIX foram marcadas pelas grandes disputas


abolicionistas e pela expectativa de aumento da aquisição de direitos por parte
dos até então excluídos. Contudo, como afirma José Murilo de Carvalho (2002),
com a República pouco mudou. A Constituição de 1891 continuaria a excluir do
direito ao voto uma grande parcela da população: os analfabetos, as mulheres, os
sem teto, os soldados, os membros das ordens religiosas. Era o tempo do
liberalismo excludente. Novos símbolos surgiram, colocados no lugar dos
símbolos imperiais. Os heróis seriam aqueles recuperados pela nova ordem,
como Tiradentes. O IHGB passaria a produzir no novo contexto, adaptado à nova
realidade (Gomes, 2009).
Nas cidades e no campo, os excluídos continuariam a se levantar: os
trabalhadores lutando pelo espaço público nas cidades e, no campo, os
excluídos, a exemplo de Canudos e Contestado, se insurgiriam contra a ordem. A
cidadania não se tornaria completa. O longo caminho, ao início da República e
mesmo nos dias atuais, não foi percorrido em sua totalidade.
Conforme ressalta Antonio Bispo dos Santos (2019), quilombola piauiense,
o Estado brasileiro, desde de sua fundação até hoje, segue atuando como inimigo
dos povos e comunidade tradicionais, tais como quilombolas e indígenas, atitude
que se estende, de modo geral, à população mais pobre e vulnerável. Porém, tais

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comunidades seguem reivindicando seus direitos através dos meios legais e de


outras formas de resistência.
Percebe-se que, sob o argumento da modernização e do
“desenvolvimento”, o Estado buscou produzir uma noção cidadania
supostamente homogênea, negando as diferenças e hierarquias (muitas vezes
raciais) que ele mesmo cria. Porém, tal horizontalidade demorou muito a ser
alcançada institucionalmente, e não é possível afirmar que já esteja consolidada
na prática.

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A Construção da Nação no Brasil Imperial: uma análise sob a luz dos estudos
decolonias

Resumo
Em 1822, o Brasil deixa de ser colônia portuguesa ao declarar sua Independência. A partir de
então, inicia-se um esforço para construir a nação brasileira, identificar seus fundamentos político-
ideológicos, formar um aparato estatal capaz de administrar o território, criar uma legislação e
definir critérios de cidadania para sua população. Todo este processo se deu sem que os preceitos
colonialistas, como o racismo, fossem abandonados, por isso este trabalho busca acrescentar a
leitura decolonial à análise deste período.
Palavras-chave: cidadania, nação, Império, colonialidade.

La Construcción de la Nación en el Brasil imperial: un análisis a la luz de los


estudios decoloniales

Resumem
En 1822, Brasil deja de ser colonia portuguesa al declarar su independencia. A partir de entonces,
comenzó un esfuerzo por construir la nación brasileña, identificar sus fundamentos político-
ideológicos, formar un aparato estatal capaz de administrar el territorio, crear legislación y definir
criterios de ciudadanía para su población. Todo este proceso se llevó a cabo sin que se
abandonaran los preceptos colonialistas, como el racismo, por lo que este trabajo busca agregar la
lectura decolonial al análisis de este período.
Palabras clave: ciudadanía, nación, imperio, colonialidad.

The Construction of the Nation in Imperial Brazil: An Analysis using Decolonial


Studies

Abstract
In 1822, Brazil ceases to be a Portuguese colony when declaring its Independence. From then on,
an effort began to build the Brazilian nation, identify its political-ideological foundations, form a
state apparatus capable of managing the territory, create legislation and define citizenship criteria
for its population. This whole process took place with the colonialist precepts, such as racism, so
this work seeks to add the decolonial reading to the analysis of this period.
Keywords: citizenship, nation, Empire, coloniality.

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