Principioinsignificancia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 12

O Princípio da insignificância e o Direito Penal Militar1

Ronaldo João Roth


Juiz de Direito da Justiça Militar do Estado de São Paulo e Membro da Academia Mineira de Direito Militar

1.0 - Introdução. A atividade legislativa do Estado tem na seara penal, dentre outras, a
função de definir os tipos penais (tatbestand para os alemães ou fattispecie para os
italianos), de acordo com o princípio da legalidade, e esta criação se faz no plano abstrato,
não podendo prever o legislador situações que serão inadequadamente abrangidas pela
descrição legal ou normativa do tipo no plano concreto.

É neste momento que o princípio da insignificância vai atuar, desconsiderando as


condutas inofensivas, muito embora possam estar previstas normativamente, pois a
incidência da Lei Maior, que ao mesmo tempo é fonte e limitadora do Direito Penal
moderno, irá dar guarida apenas à incriminação das condutas que vão ferir os bens
jurídicos previstos como direitos fundamentais.

O Direito Penal internacional tem se inclinado para a intervenção mínima na realidade


social e os postulados que inspiram as Constituições que embasam os Estados
Democráticos de Direito, de forma tal que pequenos ilícitos são cuidados por outros ramos
do Direito (o administrativo, o civil etc) que não o Direito Penal.

No Brasil, com base na Constituição Federal de 1988, três tendências são visíveis no
Direito Penal: a criação de delitos gravíssimos que merecem tratamento inafiançável e
imprescritível e com pena de reclusão, como é o caso da prática do racismo e da ação de
grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;
a criação dos delitos graves tidos como inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia,
como a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos; e a criação dos Juizados Especiais para apreciação dos
delitos de pequeno potencial ofensivo, que são realizados mediante os procedimentos oral e
sumaríssimo e resolvidos, nas hipóteses legais, pela transação.

No âmbito do Direito Penal Militar, a classificação das infrações penais pode se dar em
quatro níveis: a) infrações de lesividade insignificante (aquelas que não causam dano de
monta, são ínfimas lesões ao ordenamento jurídico e, portanto, atípicas); b) as infrações
leves (aquelas em que o indiciado se livra solto); c) as infrações médias (que comportam a
liberdade provisória); e d) as infrações graves (não comportam a liberdade provisória).

1
O presente assunto ocupou temário do V Encontro dos Magistrados da Justiça Militar da União, promovido
pelo Superior Tribunal Militar, de 11 a 15.06.07, em que tivemos a honra de ser palestrante.
Aqui, é de se esclarecer, que, por opção legislativa e infraconstitucional, os crimes militares
não sofrem a incidência do tratamento das infrações de pequeno potencial ofensivo e a dos
crimes hediondos.

Insta, assim, diante do princípio da insignificância aferir-se não somente a sua existência,
mas também o seu alcance no Direito Penal Militar.

2.0 - Desenvolvimento. 2.1 – A doutrina do princípio da insignificância. No Brasil o


primeiro autor a invocar o princípio da insignificância foi Francisco de Assis Toledo,
socorrendo-se da obra de Claux Roxin, de 1964, assim se posicionando: “onde a proteção
de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão
ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve
estender-se o manto de proteção penal, como ultima ratio regum”. E complementa o autor
nacional: “O Direito Penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário
para a proteção do bem jurídico. Não se deve preocupar-se com bagatelas.

O operador do Direito deve ser sensível à existência de situações que, muito embora
caracterizem um aparente fato típico, antijurídico e culpável, não constituem infração
penal, pelo fato de ocorrer uma causa de exclusão do tipo ou da antijuridicidade, pois tais
condutas não ofendem a bem jurídico tutelado na lei penal.

Consoante nos ensina Ivan Luiz da Silva, dois critérios existem para o reconhecimento do
referido princípio: o desvalor da ação e o desvalor do resultado da conduta, que busca
aferir o grau de lesividade da conduta contra o bem jurídico atacado.2

Essa sólida doutrina encontra eco na jurisprudência do TACRIM/SP: “O reconhecimento


do crime de bagatela exige, em cada caso, análise aprofundada do desvalor da conduta e do
desvalor do dano, para apurar-se, em concreto, a irrelevância penal de cada fato” (AC –
Rel. Haroldo Luz, RJD 24/101).

Observa-se que, se ocorrer o desvalor da ação, há a probabilidade de o comportamento


materialmente concretizar o tipo penal insignificante. Se ocorrer o desvalor do resultado,
isso indica que o evento é juridicamente irrelevante para o Direito Penal.

A contrário senso, para que uma ação seja considerada crime deve ela corresponder a
significativo desvalor da ação e desvalor do resultado exigidos pelo tipo penal.

A classificação do fato insignificante é feita de acordo com a preponderância de um


daqueles índices, de forma que se a irrelevância do desvalor da ação for preponderante,
então a conduta será considerada como de insignificância absoluta (excludente de

2
Ivan Luiz da Silva, “Teoria da Insignificância do Direito Penal Brasileiro”, RT, 2005, 841-429.
tipicidade); se o desvalor mais intenso for o do resultado, o comportamento será
classificado como de insignificância relativa (excludente de antijuridicidade)3.

2.2 - As origens do princípio da insignificância. O instituto já tem existência há vários


séculos e vem permeando o Direito Penal desde o Direito Romano antigo, onde o pretor,
regra geral, não se ocupava das causas ou delitos de bagatela, aplicando o brocardo:
mínima non curat praetor, como aparece na lição de vários autores desde o século XIX que
o invocam e reclamam sua restauração, como Carrara, Von Liszt, Quintiliano Sadaña,
Claus Roxin, Buamann, Zaffaroni, dentre outros.4
Como diz Celso Celidonio, a origem do princípio no pós-guerra foi de ordem econômica:
“Com o pós-primeira grande guerra, surgiu na Europa, mais especificamente na Alemanha,
a criminalidade de bagatela – BAGATELLEDELIKTE -, e naquela época e, com maior
ênfase após a segunda guerra mundial, o número de delitos patrimoniais cresceu, face a
miséria latente oriunda da destruição quase total do continente. Tais delitos, sempre de
característica famélica, beiravam o nada ou o quase nada, sem qualquer significância
jurídica, daí serem chamados de criminalidade de bagatela”.5

Como pode se ver, o princípio da insignificância de há muito era o instituto adequado e


justo para a resolução de fatos de pequena monta e que não deveriam tomar o tempo do
juiz, a ponto de Von Liszt, em sua obra de 1903, criticar a legislação de seu tempo que
fazia uso excessivo da pena e, ao final, indaga se não seria oportuno restaurar a antiga
máxima latina mínima non curat praetor.6

2.3 – Significado e fundamento do princípio da insignificância. O princípio da


insignificância constitui-se de instrumento importante na solução, interpretação e
aplicação do Direito Penal no nosso ordenamento jurídico, vinculado que é aos princípios
constitucionais.

Com muito acerto já antevia Edgard de Moura Bitencourt, “nas grandes cidades
estrangeiras, as minúsculas questões criminais e civis não desgastam o Poder Público, o que
não ocorre no Brasil, onde casos triviais e insignificantes ainda são levados a sério. E diz:
“Mas, enquanto a lei não cura, vamos remediar o mal. Simplifiquemos as coisas simples,
para que tenhamos tempo de apurar e meditar sobre as coisas graves”.7

A idéia do princípio da insignificância ou da bagatela decorre, pois da divergência entre o


conceito material e o conceito formal de crime, albergando o primeiro somente as condutas
efetivamente lesivas ao bem jurídico tutelado, enquanto o segundo abstratamente

3
Ivan Luiz da Silva, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, Juruá, 2004, p. 176.
4
Ivan Luiz da Silva, Op. cit. p. 87.
5
Celso Celidonio, “O princípio da insignificância”, Revista “Direito Militar”, AMAJME, n. 16, 1999, p. 7/10.
6
Ivan Luiz da Silva, Op. cit. p. 87
7
Edgard de Moura Bitencourt, o Juiz, 1966, p. 276.
albergando todas as condutas que se subsumem ao tipo penal. Como o legislador apenas se
preocupou com as condutas relevantes que ofendem valores sociais selecionados pelo
Direito Penal, as ações insignificantes pelo desvalor da ação ou pelo desvalor do resultado
devem ser tidas como inexpressivas e inofensivas.8

O princípio da insignificância funciona ainda como hermenêutica penal diante da


incidência do princípio da razoabilidade, vez que este opera um limite de redução da
normatividade jurídica do Direito através de interpretação sobre a ofensa à objetividade
jurídica tutelada. Encontra igualmente fundamento na fragmentariedade, subsidiariedade, e
proporcionalidade do Direito Penal.

Nesse ambiente, portanto, é que o princípio da insignificância surge, exigindo do legislador


(na criação dos delitos) e do intérprete (na correta aplicação da lei) a observância dos
princípios constitucionais explícitos e implícitos.
A Constituição Federal alberga expressamente os princípios implícitos na cláusula
constitucional de reserva em seu art. 5o, § 2o: “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados
ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Consoante o magistério de Canotilho: “os princípios podem ‘revelar normas que não são
expressas por qualquer enunciado legislativo, normas que possibilitam aos juristas,
sobretudo aos juízes, desenvolvimento, integração e complementação do direito’”.

E, no mesmo sentido, leciona Fernando Capez, afirmando que da dignidade humana


nascem os demais princípios orientadores e limitadores do Direito Penal, dentre os quais
merecem destaque: a) insignificância ou bagatela; b) alteridade ou transcendentalidade; c)
confiança; d) adequação social; e) intervenção mínima; f) proporcionalidade; h)
necessidade e idoneidade; i) ofensividade, princípio do fato e da exclusiva proteção do bem
jurídico; j) princípio da auto-responsabilidade”.9

No tocante ao princípio da insignificância ou bagatela diz o renomado autor que “o Direito


Penal não deve preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo que não podem ser admitidos
tipos incriminadores que descrevam condutas incapazes de lesar o bem jurídico. A
tipicidade penal exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido, pois é
inconcebível que o legislador tenha imaginado inserir em um tipo penal condutas
totalmente inofensivas ou incapazes de lesar o interesse protegido”.10

E finaliza Ivan Luiz da Silva que “o Princípio da Insignificância pode ser revelado pela
complementariedade entre o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da
8
Damásio E. de Jesus, “Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Saraiva, 1985, p. 132.
9
Fernando Capez, “Curso de Direito Penal”, Saraiva, 2002, Vol. 1, p. 13/25.
10
Fernando Capez, Op. cit. p. 14/15.
Legalidade Penal, quando na interpretação deste último busca-se uma justificação e
proporcionalidade para a intervenção mínima estatal”.11

2.4 – O princípio da insignificância sob a ótica do bem jurídico tutelado. Como diz
Carlos Ismar Baraldi, “o Direito Penal, ‘para ser visto com olhos de jurista’, não deve ser
confundido com a ‘Tábua dos Dez Mandamentos’, a orientar a conduta ética das pessoas;
ao contrário, como ciência de caráter fragmentário, que atua na proteção de bens jurídicos,
seletiva e rigorosamente determinados e previamente definidos em lei. Assim, como nem
tudo que é imoral é ilegal a ponto de merecer sua proteção, ainda que se entenda ter havido
lesão à ordem moral, um fato não merecerá sua tutela se não houve lesão a um bem
jurídico protegido. Inocorreu ilicitude penal. Vejam-se os caso – tormentosos casos – das
mães de aluguel, da união familiar de homossexuais e das operações para ‘mudança de
sexo’ destes últimos, onde há flagrante lesão da ordem moral sem, contudo, haver crime.”12

Fernando Capez assevera que “é imperativo do Estado Democrático de Direito a


investigação ontológica do tipo incriminador. Crime não é apenas aquilo que o legislador
diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser
considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da
sociedade”.13

Desse modo, surge o bem jurídico tutelado pela lei, que serve de inspiração ao legislador na
criação do tipo penal e na previsão de sua pena. Logo, só se pode pensar o princípio da
insignificância se não restar lesão àquele valor maior da Lei Penal.

Segundo a lição de Everardo da Cunha Luna, “o princípio do bem jurídico é a segunda


construção dogmática penal inspirada pelas idéias liberais no Estado de Direito. Uma ação
humana só é criminosa quando viola um bem protegido pela norma jurídica. Todos os
elementos materiais do crime podem estar presentes numa determinada ação, mas se o bem
jurídico, protegido pela lei, não foi lesado pela ação, o crime não se configura. Assim, no
exemplo de Giuseppe Biettiol, uma falsificação grosseira não é uma falsificação criminosa.
Como não é furto a subtração de coisa alheia de valor ínfimo. Como a diminuta lesão
corporal não é crime de lesão corporal. Os bens jurídicos são objetivos, limitados, e estão
contidos na lei, expressa ou implicitamente. A vida, a integridade corporal, a saúde, a
honra, a liberdade pessoal, o patrimônio, o sentimento religioso, a administração pública
etc., são bens jurídicos, bens indispensáveis ao homem e a à sociedade.”14

Portanto, dois são os objetivos dos bens jurídicos resguardados pelo Direito Penal, pois de
um lado protege o interesse do ofendido e, de outro lado, estende a proteção do direito

11
Ivan Luiz da Silva, “Principio da Insignificância no Direito Penal Brasilieiro”, Juruá, 2004, p. 105.
12
Carlos Ismar Baraldi, Revista da Escola Superior da Magistratura, Mato Grosso do Sul, nº 6, 1994. p.33
13
Fernando Capez, Op. cit. vol. 1, p. 13.
14
Everardo da Cunha Luna, “Capítulos de Direito Penal”, Saraiva, 1985, p. 14.
sobre toda a sociedade. Ricardo de Britto A. B. Freitas, citando Aníbal Bruno, afirma
que: “o fim do Direito Penal é, portanto, a defesa da sociedade pela proteção dos bens
jurídicos fundamentais como a vida humana, a integridade corporal do homem, a honra, o
patrimônio, a segurança da família, a paz pública, etc., entendendo-se por bem jurídico,
conforme conceito de Von Liszt, tudo o que pode satisfazer uma necessidade humana e,
nesse sentido, é tutelado pelo Direito. São interesses fundamentais do indivíduo e da
sociedade, que, pelo seu valor social, a consciência comum do grupo ou das camadas
sociais nele dominantes elevam à categoria de bens jurídicos, julgando-os merecedores da
tutela do Direito, ou, em particular, da tutela mais severa do Direito Penal. Interesses de
valor permanente, como a vida, a liberdade, a honra; ou variável, segundo a estrutura da
sociedade ou as concepções de vida em determinado momento.”15 E diz o referido autor
ainda que “é justamente porque o Direito Penal não protege todos os bens jurídicos, mas,
apenas os essenciais que a doutrina afirma ter ele um caráter fragmentário”.16

Segundo Diomar Ackel Filho, o princípio da insignificância é “aquele que permite


infirmar a tipicidade dos fatos que, por sua inexpressividade, constituem ações de bagatela,
despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal,
exsurgindo, pois, como irrelevantes. A tais ações, falta o juízo de censura penal”.17

Assim, “o simples fato da norma penal proteger determinado bem jurídico torna-o, em
princípio, relevante. Porém, graças ao princípio da insignificância, permite-se ao Judiciário
e ao Ministério Público renunciar ao jus accusationis e ao jus persequendi in judicio, desde
que a lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico protegido pela lei penal não tenha ocorrido,
ou, mesmo na hipótese de ter ocorrido, revele-se muito pequena.”

Nesse mesmo sentido, Julio Fabbrini Mirabete exemplifica, elencando situações em que
estaria excluída a tipicidade da conduta em face do princípio da insignificância: “Não há
crime de dano ou furto quando a coisa não tem qualquer significação para o proprietário da
coisa; não há peculato quando o servidor público se apropria de ninharias do Estado (folhas
de papel, caneta esferográfica etc.); não há crime contra a honra quando não se afeta
significativamente a dignidade, a reputação, a honra de outrem; não há lesão corporal em
pequenos danos à integridade física; não há corrupção passiva quando o funcionário aceita
um ‘mimo’ de pequena expressão econômica, etc. É preciso, porém, que estejam
comprovados o desvalor do dano, o da ação e o da culpabilidade. (...) É indispensável que o
fato tenha acarretado uma ofensa de certa magnitude ao bem jurídico tutelado para que se
possa concluir por um juízo positivo de tipicidade”.18

15
Ricardo de Britto A. P. Freitas, “O Direito Penal Miltar e a utilização do princípio da insignificância pelo
Ministério Público”, Revista da Esmape – 1996, g. 165/166.
16
Ricardo de Britto A. P. Freitas, Op. cit., p. 166.
17
Diomar Ackel Filho, “O princípio da insignificância no Direito Penal”, Lex-94, JTACrSP, p. 73.
18
Julio Fabbrini Mirabete, “Manual de Direito Penal”, Vol. I, Atlas, 2004, p. 118.
O Código Penal Militar, assim como o Código Penal Comum, estrutura os delitos
agrupados pelo bem jurídico tutelado e bem definido na Lei. Assim, é de se afastar desde
logo a firmação de que a aplicação do princípio da insignificância nos delitos que o
comportam possa ser maléfica ou até evitada visto que os crimes militares visam proteger
ainda que indiretamente a hierarquia e disciplina militares, os quais ficariam abalados com
aquela incidência.19

Desta forma, não são todos os crimes militares que vão atingir a regularidade dos serviços
militares, mas somente aqueles previamente definidos pelo legislador.

Veja por exemplo o delito de porte de entorpecente (art. 290 do CPM), cujos bens jurídicos
protegidos são a saúde e a incolumidade pública. No caso, não se pode negar a incidência
do princípio da insignificância quando a quantidade de entorpecente seja ínfima, sob a
alegação de que secundariamente tal conduta atinge também os princípios de hierarquia e
disciplina militares, sob pena de desvirtuamento do bem jurídico tutelado pelo Codex Penal
Castrense.

Em caso concreto, o STM, na Apelação n. 2001.01.048853-7/RJ, expressou no voto


vencido do Min. Dr. Flávio Flores Cunha Bierrembach, o qual se socorre do também voto
vencido do Min. Dr. Carlos Alberto Marques Soares, na Apelação n. 2002.01.049169-4/RJ,
assim consignando: “(...) Na Justiça Militar, contudo, encontra-se hoje o único foco de
resistência ao abrandamento judicial concedido às condutas de portar e usar substância
entorpecente. Analisando julgados desta Corte, em especial, o que se nota é a utilização
de um argumento bastante forte, porém ainda insuficiente, a meu ver, para ensejar uma
condenação penal. Ainda que os bens jurídicos protegidos primariamente sejam a saúde e
a incolumidade pública, a disciplina e a hierarquia também são bens jurídicos tutelados
secundariamente pela norma do artigo 290 do CPM (...) Ressalto, contudo, a lição já
transcrita de Eugênio Raul Zaffaroni, afastando qualquer possibilidade de interpretação
teleológica extensiva da lei penal. O que vale dizer que, da forma em que se encontra
disposto o Código Penal Militar, não existe possibilidade para o intérprete de ampliar o
bem jurídico que a norma pretende proteger. Isso porque a hierarquia, a disciplina, o
serviço e o dever militares, enquanto bens jurídicos, encontram proteção específica
naquele estatuto, em especial no Título II (Dos crimes contra a autoridade ou disciplina
militar) e Título III (Dos crimes contra o serviço militar e o dever militar). Então, se esses
bens já contam com proteção específica e detalhada em diversos artigos do CPM, não se
pode pretender estender a todos os delitos essa mesma proteção e tutela, sob pena de se
ferir a própria exigência constitucional de taxatividade da norma penal (grifos nossos).

O delito, qualquer delito, é ato antijurídico que ofende a sociedade pela transgressão de
uma norma de conduta, mandamento cogente e abrangente, cuja inobservância atinge toda
19
Nesse sentido, Jorge Cesar de Assis, “O STF e o Principio da Insignificância no crime militar de furto:
significância de suas decisões”, Revista “Direito Militar”, AMAJME, n. 64, 2007, p. 6/9.
a sociedade pela subversão de valores considerados fundamentais. O delito que não
alcança toda a sociedade, mas apenas um estamento, não pode merecer do Estado, a
mesma resposta punitiva dada a outro, que a todos atinge. Por mais relevantes que sejam
– e são – os princípios de hierarquia e disciplina, não constituem valores que alcancem a
toda a sociedade, mas apenas ao estamento específico – as Forças Armadas – cuja missão
constitucional deles depende. Sendo assim, a ofensa a hierarquia e à disciplina, embora
subjacente ao conjunto da lei penal substantiva, encontra tratamento específico no Código
Penal Militar.

Se o fato é insignificante sob o aspecto penal, mas ainda assim arranha os princípios
gerais de hierarquia e disciplina, deve merecer outro tratamento, ou seja, aquele que a lei
prescreve para as infrações disciplinares.

Assim, o ato de portar, ou trazer consigo quantidade ínfima de substância entorpecente,


não tem significado penal e, por conseguinte, é insuscetível de condenação criminal,
justificando apenas a punição disciplinar acompanhada de apreensão e confisco da erva,
como permite a lei.

Afastada a possibilidade de incriminação do usuário de entorpecente pela exigência de


proteção à hierarquia e à disciplina, resta a desproprorcionalidade do tipo penal do art.
290, no tocante à modalidade ‘trazer consigo’, que afronta os dispositivos constitucionais
invocados.

Tal princípio vem sendo aos poucos explorado e explicado pela doutrina nos seguintes
termos: “o bem jurídico protegido pela norma penal deve sofrer um processo de avaliação
diante dos valores constitucionais de âmbito e relevância maiores, sendo certo que o
Direito Penal, como parte do sistema global tutelado pela norma maior, dela não poderá
afastar-se. Expressão do princípio da proporcionalidade é também o da individualização
da pena. A graduação da sanção penal se faz tendo como parâmetro a relevância do bem
jurídico tutelado e a gravidade da ofensa contra ele dirigida, e deve ser fixada, pois, tanto
na espécie quanto no quantitativo que lhe sejam proporcionais. De acordo com o princípio
da proporcionalidade (poena deer commensurari delicto), deve existir sempre uma medida
de justo equilíbrio – abstrata (legislador) e concreta (juiz) – entre a gravidade o fato
praticado e a sanção imposta. Em suma, a pena deve estar proporcionada ou adequada à
magnitude da lesão ao bem jurídico representada pelo delito e a medida de segurança à
perigosidade criminal do agente” (Maurício Antonio Ribeiro Lopes, op. ant. cit. p. 91).
(...)”.

2.5 – Reconhecimento jurídico do princípio da insignificância. Neste ponto, insta


verificar que o ordenamento positivo é constituído de normas e estas podem ser princípios
ou regras.
O princípio jurídico como ensina Celso Antonio Bandeira de Melo, é: “mandamento
nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia
sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido”.20

A regra jurídica é a norma que resolve uma situação em concreto descrita pelo legislador.
O princípio se irradia para todo o sistema jurídico, ao passo que a regra tem aplicação
específica.

Essa distinção entre princípios e regras é fundamental para o Direito Penal Militar, pois a
insignificância, a nosso ver, funciona como princípio e não como regra, de tal sorte que se
irradia para todo o sistema penal, ao passo que a regra tem aplicação específica na norma
escolhida pelo legislador. Assim, no caso de lesões corporais dolosas e levíssimas teremos
aí um exemplo de regra. Agora, como princípio, devemos reconhecer a aplicação da
insignificância também nas lesões corporais culposas e em outros delitos ainda que
expressamente não o prevejam, como ocorre nos delitos contra a Administração Pública
(peculato, falsificação etc.), nos delitos contra a honra, etc.

O Código Penal Militar estabelece no item 17 da Exposição de Motivos que: “Entre os


delitos de lesão corporal está a ‘levíssima’, a qual, segundo o ensinamento da vivência
militar, pode ser desclassificada pelo Juiz para uma infração meramente disciplinar,
evitando-se nesse caso o pesado encargo de um processo penal para um fato de tão
pequena monta”.

Revela a mens legis do Codex Penal castrense que fatos de pequena monta não devem,
portanto, ocupar o Judiciário, podendo este remeter a apreciação do fato à Administração
Militar, com maior adequação e vigor, pois a infração disciplinar não possui a possibilidade
da suspensão condicional da pena e é menos suscetível à prescrição.

Note-se que a possibilidade de o Juiz desclassificar o fato para infração disciplinar também
pode ocorrer nos crimes patrimoniais, quando a coisa for de pequeno valor (art. 240, § 1o e
art. 250) de tal sorte que se o CPM prevê expressamente em alguns tipos penais a
insignificância, nada impede a sua aplicação em outros delitos.

Ora, se na legislação comum, inexistente qualquer previsão expressa, o princípio da


insignificância é adotado na maioria dos crimes, pois é reconhecidamente um princípio que
se extrai de outros princípios constitucionais, e não uma norma, não há qualquer dúvida de
que no Codex Penal Castrense o seu status de princípio não deixou de existir somente pelo
fato de ser em alguns casos expressamente fixado na Lei.

20
Celso Antonio Bandeira de Melo, “Curso de Direito Administrativo”, Malheiros, 1994, p. 450.
Nesse sentido diz Odone Sanguiné: “o princípio da insignificância não incide apenas nos
delitos materiais ou de resultado, mas também nos delitos formais ou de mera atividade.
Portanto, com os critérios enunciados, não há qualquer obstáculo dogmático para
reconhecê-lo em relação aos crimes de perigo”.21

2.6 – Dos requisitos para o reconhecimento da incidência do princípio da


insignificância no caso concreto. A par do que a doutrina defende, é certo que a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido o princípio da
insignificância, inclusive nos crimes militares, tendo como base o caráter subsidiário do
sistema penal e o princípio da intervenção mínima do Poder Público, aliado a aferição do
relevo material da tipicidade penal na presença de quatro vetores: 1 – a mínima
ofensividade da conduta do agente; 2 – nenhuma periculosidade social da ação; 3 – o
reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; 4 – a inexpressividade da lesão
jurídica provocada. (HC n. 89.104 MC/RS – Rel. Min. Celso de Mello).

Nesse sentido também o julgado do STJ: Recurso Especial. Furto Tentado. Princípio da
Insignificância. Atipicidade Material. Inocorrência. Periculosidade social da ação e
reprovabilidade do comportamento do agente. Recurso Provido. 1. O poder de resposta
penal, positivado na Constituição da República e nas leis, por força do princípio da
intervenção mínima do Estado, de que deve ser expressão, “(...) só vai até onde seja
necessário para a proteção do bem jurídico. Não se deve ocupar de bagatelas” (Francisco de
Assis Toledo, in Princípios Básicos de Direito Penal). (...) 2. Recurso provido. (Resp
835723/RS – Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Sexta Turma, J. 18.12.2006, DJ 19.04.2007,
pág. 293).

Outro ponto importante vem expresso no aresto do Superior Tribunal de Justiça, que assim
já decidiu: I – Para efeito da aplicação do princípio da insignificância é imprescindível a
distinção entre ínfimo (ninharia) e pequeno valor. Aquele implica na atipia conglobante
(dada a mínima gravidade). II – A interpretação deve considerar o bem jurídico tutelado e o
tipo de injusto. III – Ainda que se considere o delito como de pouca gravidade, tal não se
identifica com o indiferente penal se, como um todo, observado o binômio tipo de
injusto/bem jurídico, deixou de se caracterizar a sua insignificância (Resp. 861288/RS
2006/0127067-1 – Rel. Min. Felix Fischer – Quinta Turma – J. 19.10.2006 – DJ
18.12.2006, p. 510).

2. 7 – Das conseqüências do reconhecimento da insignificância do crime militar. A


infração insignificante enseja dois momentos para o seu reconhecimento pelo Juiz: a) na
decisão de arquivamento do inquérito policial militar (IPM), quando ocorre a
desclassificação para infração disciplinar; e b) quando do julgamento da causa, onde o Juiz
ou o Conselho de Justiça poderão reconhecer que o fato é mera infração disciplinar, o que
21
Apud Ronaldo João Roth, in “O Princípio da insignificância e a Polícia Judiciária Militar”, Revista “Direito
Militar”, n. 5, 1997, p. 31/34.
implica na absolvição do acusado, remetendo-se cópia dos autos ao Comandante para as
providências repressivas do fato.22

3.0 – Das conclusões. A aplicação do princípio da insignificância no Brasil evidencia a


adequada interpretação do Direito Penal diante dos cânones constitucionais do Estado
Democrático de Direito, restringindo o que seja crime às condutas típicas que ofendem os
bens jurídicos tutelados.

O princípio da insignificância decorre dos princípios constitucionais expressos, como o da


Dignidade da Pessoa Humana, e dos princípios implícitos da Constituição Federal, dando-
lhe legitimidade para aplicação no caso concreto e tornando o Direito Penal mais
humanitário.

O tema é latente na legislação comum e, em especial, na legislação penal e processual penal


militar, visto que o princípio da insignificância é genuína e expressamente previsto no
Brasil no Codex Penal castrense, marcando a grandeza deste Estatuto Penal.

O princípio da fragmentariedade, da subsidiariedade e da intervenção mínima do Direito


Penal englobam o princípio da insignificância, deixando as questões de pequena monta,
insignificantes, inexpressivas penalmente para serem resolvidas no âmbito da
Administração Militar pelo Direito Administrativo Disciplinar, e assim não deixando
impune o autor militar da bagatela.

O princípio da insignificância, seja pelo desvalor da ação, seja pela desvalor do resultado,
implica na exclusão da tipicidade ou na exclusão da antijuridicidade, dependendo a
prevalência de um ou outro desvalor, pois não ofendem o bem jurídico tutelado.

O bem jurídico tutelado pelo tipo penal não pode ser estendido para abrigar outros bens
jurídicos, nem mesmo a hierarquia e a disciplina militares, estruturas mestras das
Instituições Militares, mas que encontram guarida específica no Codex Penal castrense,
assim como também o encontram a regularidade do serviço e os deveres militares.

O bem jurídico tutelado é o norte para a construção do tipo penal (atividade legislativa) e
para a aplicação no caso concreto (atividade judicial), sempre observando os princípios
constitucionais expressos e implícitos.

A insignificância é um princípio no nosso ordenamento jurídico e não uma regra, daí então
ser ela aplicada na maioria dos crimes que a comportam e desde que obedecidos os
requisitos doutrinários e jurisprudenciais examinados.

22
Ronaldo João Roth, “O Reconhecimento pela Justiça Militar da Infração Disciplinar”, in “Temas de Direito
Militar”, Suprema Cultura, São Paulo, 2004, p. 215/226.
O reconhecimento do princípio da insignificância para solucionar a questão de fato ocorre
em dois momentos e em ambos a decisão judicial é declarativa de que não houve infração
penal, mas sim infração disciplinar no fato examinado.

A aplicação do princípio da insignificância não deve ser vista nos crimes militares como
uma liberalidade, nem como uma forma de impunidade, mas sim como o instrumento legal
para tornar a decisão do Comandante a justiça adequada e justa no caso de pequenas
infrações, inexpressivas penalmente, solidificando perante seus subordinados a crença no
cumprimento dos deveres e no respeito ao Regulamento Disciplinar da Força.

Você também pode gostar