Homossexualidade e Afins
Homossexualidade e Afins
Homossexualidade e Afins
APOSTILA
HOMOSSEXUALIDADE, TRAVESTISMO,
INTERSEXUALIDADE E
TRANSEXUALIDADE.
ESPÍRITO SANTO
HOMOSSEXUALIDADE
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Apesar de haver avanços nesse sentido, como demonstra a maior visibilidade que
têm alcançado os homossexuais – haja vista manifestações como a Parada do Orgulho Gay,
de São Francisco, e a Parada do Orgulho GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e
Transexuais), 21ª Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro - 2016, já fazendo parte do
calendário oficial de eventos da cidade – o preconceito ainda é grande. Na verdade, a
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sociedade tolera a relação homossexual, com a condição de que não haja expressão dessa
prática ou, no máximo, de que a manifestação de tal prática seja discreta.
É neste cenário que surge a ideia de realizar este trabalho, visando a melhor
compreender a etiologia da homossexualidade, entendendo está, não como doença ou
opção sexual, já que ninguém escolhe ser discriminado e marginalizado, mas como uma
variante da sexualidade humana, como a heterossexualidade, que permita ao sujeito viver
uma vida saudável em todos os aspectos.
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psicológico mais baixos que os da população em geral (EPSTEIN, 2006), manifestando
problemas emocionais específicos que não são compartilhados pelos heterossexuais. Desta
forma, um estudo mais aprofundado sobre o tema pode contribuir para uma prática clínica
mais contextualizada e, consequentemente, para a melhoria da qualidade de vida desta
parcela da sociedade.
É oportuno salientar que o termo homossexual será aqui utilizado como significativo
de homens ou mulheres cuja orientação sexual e afetiva principal é para com pessoas de
seu mesmo sexo anatômico. E entre os termos empregados para fazer referência à prática
de relação homossexual estão o de homo erotismo, homo afetividade e homossexualidade,
cabendo em relação a este último alguns esclarecimentos. Até 1985, este termo era utilizado
pela Classificação Internacional de Doenças (CID), em que aparecia na categoria de
distúrbios mentais.
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Em seguida, é estudada a representação da homossexualidade na Renascença,
quando há o retorno das ideias greco-romanas, e na Modernidade, quando a prática
homossexual começa a ser descriminalizada. Já na Contemporaneidade, surge uma nova
forma de compreender a homossexualidade, com a sua patologização, assim como,
posteriormente, a tentativa de descriminalização e despatologização das relações
homossexuais. Por fim, é abordada a representação da homossexualidade no Brasil, onde,
na década de 1970, surgem os primeiros grupos homossexuais para lutar o contra
preconceito, encoberto e sutil, que se espalhava por toda a sociedade.
A REPRESENTAÇÃO DA HOMOSSEXUALIADE
ATRAVÉS DA HISTÓRIA
Seth matara Osíris, seu irmão, e passa a disputar o trono do Egito com o sobrinho
Hórus, seu legítimo herdeiro. Segundo uma das versões dessa lenda, Seth procura desonrar
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Hórus, tentando violentá-lo. Assim, vai à Enéade, o tribunal de nove deuses, anunciar que
desempenhou o papel de homem com Hórus, tendo este, portanto, tomado a posição
feminina na relação sexual. Esta condição o desmoralizaria perante a Enéade. Como afirma
Spencer (1996), esta lenda é sujeita a muitas interpretações e não deixa claro se os egípcios
tinham uma visão positiva ou negativa do amor homossexual.
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A ligação amorosa que se estabelece entre o rei de Uruc e Enkidu somente tem fim
com a morte deste último, o que acaba levando Gilgamesh ao suicídio. A epopéia de
Gilgamesh, embora seja uma obra de ficção, mostra que nessa época as relações entre
pessoas do mesmo sexo eram vistas como exemplo de virilidade, sendo "uma relação
honrada até mesmo pelos grandes heróis e deuses" (TORRÃO FILHO, 2000, p.21).
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Na China, a obra literária mais antiga é um conjunto de poemas chamado Shi Jing,
Odes Clássicas, que eram memorizados e recitados, como os épicos de Homero, mas que
só foram registrados por escrito no Séc. VII. Essas obras relatavam amores homossexuais,
apesar de na época não existir uma palavra para descrever a homossexualidade. Elas
falavam de beleza e erotismo, não fazendo referência a um gênero específico. A expressão
mei rein significava “pessoa linda” de ambos os sexos.
Os homens sentiam-se atraídos tanto por outros homens quanto por mulheres, e o
amor romântico podia envolver tanto dois homens como um homem e uma mulher. No Shi
Jing, havia histórias de relações amorosas entre nobres e guerreiros, as quais, no entanto,
não excluíam as ligações com mulheres. Os homens casavam-se e tinham filhos, mas o
casamento era uma união entre famílias para combinar riqueza e posição; o amor romântico
era uma experiência vivida fora do casamento, tanto entre homens como entre homens e
mulheres.
Essa ambiguidade de afetos era característica das culturas chinesas mais antigas. A
sociedade dava grande importância à classe social e ao apadrinhamento, o que era
manifestado em palavras como chong, que significava “favor” ou “proteção constante”,
referindo-se a uma relação que ultrapassava as barreiras de classe (NAPHY, 2004).
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Durante a Dinastia Zhou (1122-256 a.C.), a relação homossexual mais comum era a
que ocorria entre um homem de classe social baixa no papel passivo e outro homem, de
classe superior, no papel ativo. A literatura daquela época enaltecia as relações de amor
homossexuais, como a do duque Ling de Wei (534-493 a.C.) e de seu favorito Mizi Xia. Há
histórias de cortesãos que expressam seu amor a seus senhores, como a do duque Jing de
Qi, que promoveu seu funcionário a um dos assistentes de seu banho.
Verifica-se que o mundo antigo parecia ter aceitado a sexualidade com tranquilidade.
Não havia uma expressão que diferenciasse uma orientação sexual da outra, não havendo,
assim, um conceito do que é natural ou antinatural. Como afirma Naphy (2004), o estudo
das leis e dos costumes do Oriente Próximo levou os historiadores a concluir:
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Segundo Dover (1994 apud TORRÃO FILHO, 2000), a mais antiga representação da
homossexualidade masculina na Grécia antiga encontra-se numa placa de bronze,
encontrada entre 650 e 625 a.C., na qual um homem com um arco está diante de um jovem,
este com um cabrito nos ombros e os genitais expostos, e agarra o braço deste, de forma
sensual. Para Oliveira (2002), as primeiras referências à atividade homossexual aparecem
no Século VI a.C., na pintura de vasos ou jarras gregas, que representavam homens mais
velhos com adolescentes masculinos, numa sequência crescente de intimidade, desde a
conversa até a cópula. Provavelmente, tal indicação referia-se à pederastia ritualizada, uma
convenção social no período clássico da Grécia antiga, questão que abordaremos em
seguida.
Zeus é responsável por um mito que ilustra bem o amor pederástico. Impressionado
com a beleza do príncipe troiano Ganimedes, Zeus, transformado em águia, sequestrou-o e
o carregou consigo para o Olimpo para ser copeiro dos deuses. Lembra Torrão Filho (2000)
que era costume cretense o rapto do jovem amado pelo amante mais velho, que presenteava
o pai do jovem raptado. Assim, Zeus presenteou Tros, pai de Ganimedes, para amenizar a
dor causada pela perda de seu filho.
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que deu origem ao termo lesbianismo para designar o amor homossexual entre duas
pessoas do sexo feminino –, Safo tinha o amor como assunto principal em suas poesias,
que foram muito apreciadas na Antiguidade:
Disse-me: “Esta separação deve ser suportada, Safo. Vou contra minha vontade”
(SPENCER,1996, p.43)
Sólon, grande legislador, considerado um dos sete sábios da Grécia, não resistia ao
charme dos rapazes. Em muitos versos enalteceu-os, demonstrando que o amor
homossexual não era apenas aprovado, como já integrava toda a estrutura social. Criador
de importantes leis, como a que estimulava maior participação dos cidadãos pobres na vida
política e lhes proporcionava mais acesso à justiça, proibiu, no entanto, que escravos
tivessem amantes.
Sobre a atividade sexual entre homens livres e escravos, escreve Torrão Filho (2000):
Esta proibição nos faz pensar que não eram incomuns as relações entre escravos e
homens livres como amantes, não apenas como o uso de um ser subalterno, o
escravo, pelo seu dono e senhor, que podia fazer dele o que bem quisesse. (p. 34)
Anacreonte escrevia também versos para rapazes, que dizia serem seus deuses.
Outros poetas, como Alceu e Píndaro, exaltavam a beleza juvenil, que incluía a beleza da
mente, do intelecto e do espírito (SPENCER, 1996).
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considerava “tradicional e idealista”. No final de sua peça Os Cavaleiros, o herói é
recompensado com uma mulher e um adolescente (NAPHY, 2004).
Segundo aponta Naphy (2004), enquanto os tebanos eram conhecidos por suas
façanhas militares, os eleatas eram famosos por suas proezas atléticas (eles é que
organizavam os Jogos Olímpicos) e pela sua paixão pela beleza masculina. Eram malvistos
por apreciarem a figura masculina e por se entregarem às atividades homossexuais
masculinas. Embora muitos gregos reprovassem os amores homossexuais dos eleatas,
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Fídias (500 a.C.), o maior escultor grego, escolheu como amante um eleata, que foi por ele
representado na base de sua mais admirável obra: a escultura de Zeus sentado no Olimpo.
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Como afirma Torrão Filho (2000), essa relação “erótico-pedagógica” teve uma
contrapartida feminina em Lesbos, com as discípulas de Safo, e em Esparta, com a
educação militar. Em Atenas e Alexandria havia clubes femininos de instrução, e o Jardim
de Epicuro aceitava mulheres e escravos como seus alunos.
Cabe aqui abrir um parêntese e voltar a atenção para a sociedade ateniense, onde
as mulheres estavam destinadas apenas a uma função cívica: a reprodução. Após gerar o
filho, estava findo o seu papel na sociedade, pois não possuía paideia para transmitir
qualquer tipo de conhecimento. Essa tarefa cabia ao pai, que estava mais preocupado com
a política. Assim, o menino era primeiro educado pelo Estado e depois pelo erastes. Na
relação pederástica, só o homem mais velho buscava a satisfação; o adolescente não podia
demonstrar qualquer tipo de prazer, devendo mostrar-se sempre passivo.
Ele recebia presentes de caráter simbólico e pedagógico: o galo era símbolo de força
e virilidade, ensinando aos jovens o espírito de combate e agressividade; a lebre era
entregue ao jovem para que, saindo em sua perseguição, descobrisse o prazer na caçada –
também um símbolo de virilidade. As tabuletas para escrever, os instrumentos musicais e os
discos de arremesso eram os presentes pedagógicos que recebiam. Outros presentes
constituíam prova de admiração, como um vaso com o nome do eromenos nele inscrito,
seguido da palavra kalós (belo). Os primeiros encontros aconteciam sempre nos ginásios e
casas de banho, onde o erastes procurava exercitar-se com o eromenos até a exaustão,
para mostrar sua força física, e não somente sua capacidade intelectual (ULLMANN, 2005).
Não se pode deixar de mencionar que tanto o erastes como o eromenos pertencia a
famílias com a mesma posição social; portanto, os eromenos seriam os erastes na vida
adulta e participariam ativamente da vida pública da cidade. Esse relacionamento terminava
quando o jovem se tornava adulto, ocasião em que a relação amante-pupilo se transformava
em amizade, e o jovem deveria buscar seu próprio eromenos e, no devido tempo, encontrar
uma mulher, casar e ter filhos. Segundo informa Spencer (1996), o homem deveria casar-se
assim que completasse 25 anos, enquanto as mulheres, muitas vezes, se casavam com
apenas 12 anos.
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Dessa forma, pode-se afirmar que a sociedade ateniense era bissexual, mas dentro
de certos limites. Ela aceitava a prostituição, mas proibia seus participantes de ocupar
cargos públicos; admitia o relacionamento entre um homem mais velho e um jovem, mas
nunca entre homens da mesma idade, não aceitando também o homem afeminado. Pode-
se, então, concluir que tudo estava relacionado com a masculinidade. Em momento algum
o homem grego podia perder a sua qualidade viril, para não ser comparado à mulher e sua
consequente imagem frágil, aos escravos ou jovens, elementos submissos dentro de uma
sociedade extremamente machista.
O menino romano era educado para governar o mundo, tendo de se impor sobre as
pessoas de classe social inferior e os escravos domésticos desde a infância. Naturalmente,
tais ensinamentos se estendiam ao desejo sexual. A pederastia não era exaltada, como
ocorria na Grécia, mas era muito praticada. A proibição se relacionava aos adolescentes
livres, fossem estes meninos ou meninas, com ou sem consentimento dos mesmos. Sexo
com eles era considerado estupro, ao passo que com escravos, atrizes, dançarinos e
libertos, com ou sem seu consentimento, não era assim julgado, pois, naquela sociedade,
“essas categorias de pessoas deveriam satisfazer aos desejos dos homens livres, assim
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como suas esposas deveriam gerar filhos saudáveis e legítimos” (TORRÃO FILHO, 2000, p.
65).
As posições da cultura romana sobre o sexo podem ser avaliadas pela vida dos
governantes e imperadores do fim da República e do início do Império. Suetônio, em sua
obra As Vidas dos Doze Césares, escrita durante o reinado de Adriano (117-138 d.C.),
mostra as preferências sexuais dos imperadores, apontando o que era e o que não era
aceitável. Em relação a Júlio César (100-44 a.C.), por exemplo, o autor faz referência ao
comportamento do imperador como penetrado e penetrador, citando discurso de um
senador, que afirmou que César era o “marido de todas as mulheres e esposa de todos os
homens” (NAPHY, 2004, p. 60).
César era motivo de piada para os romanos porque, quando assumiu seu cargo,
encontrava-se no limite da idade em que ainda era aceitável comportar-se como puer
(adolescente) e ser penetrado e já na época de se tornar vir (adulto) e penetrar. Isto porque
qualquer jovem menor podia permitir que outro homem, mais velho e de posição social
idêntica ou superior, o penetrasse, assim como o homem acima dessa idade deveria apenas
penetrar outros homens ou mulheres (NAPHY, 2004).
Suetônio cita ainda a impudicitia da juventude, termo utilizado para se referir aos
homens que assumiam o papel passivo, e o adultério da fase adulta, quando escreve sobre
Augusto (63 a.C.-14 d.C.), que, assim como Otávio, havia sido puer para o vir Júlio César.
Tibério (42 a.C.-37 d.C.) e Calígula (12-41 d.C.) são lembrados com descrições
escandalosas das suas atividades sexuais, tendo este último conseguido superar Tibério em
tais atividades. No que se refere a Cláudio (10-54 d.C.), Suetônio afirma ser “da mais
excessiva e abundante luxúria em relação às mulheres, mas sem qualquer interesse por
homens”. Ao comentar que Cláudio foi o único imperador a não trair a mulher, seja com outra
mulher, seja com um jovem, Gibbon (1957-62, apud NAPHY, 2000) aponta para a
singularidade do imperador na história romana. Nero (37-68 d.C), além de ter relações
sexuais com homens e mulheres, assumia os papéis passivo e ativo nas relações
homossexuais, o que foi apresentado como demonstração de sua depravação moral
(TORRÃO FILHO, 2000).
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Verifica-se que a prática homossexual em Roma era considerada exatamente como
a heterossexual, desde que se tivesse uma posição ativa. A homossexualidade passiva era
rejeitada, do mesmo modo que a posição passiva nas relações sexuais com as mulheres.
Tal posição deveria ficar reservada às mulheres e aos escravos, para os quais, aliás,
constituía um dever. As mulheres romanas, embora aparentemente fossem mais livres que
as gregas, precisavam manter-se castas para garantirem uma descendência legítima a seus
maridos. Outras mulheres, como as dançarinas, atrizes, escravas, libertas e cortesãs,
podiam ter uma vida sexual livre, o que incluía o lesbianismo, apesar da opinião masculina
geral de que “uma mulher que se toma por um homem é um mundo às avessas”, como
afirmou o filósofo Sêneca (TORRÃO FILHO, 2000).
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3f/Bandeira_LGBT_no_Congresso_Nacional.jpg
Vale ressaltar que o lesbianismo, para os romanos, representava uma questão difícil,
já que implicava uma mulher desempenhando o papel de um homem ativo sexualmente. Na
verdade, representava uma afronta à masculinidade romana, tendo em vista que roubava do
homem o direito de dar prazer. Era vista, portanto, como uma tentativa de a mulher usurpar
o papel do homem. Como afirma Naphy (2004), dificilmente os romanos iriam aceitar que
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uma mulher, considerada um ser inferior, pudesse amar outra mulher como um homem, ser
uma guerreira, participar da política ou governar.
Segundo Naphy (2004), essa combinação de fatores iria afetar as regras imperiais no
que se refere ao sexo.
Com o fim do Império Romano, a Europa não possuía mais uma autoridade
centralizada, não existindo um controle maior sobre as pessoas, o que explica a repressão
à homossexualidade não ter surtido muito efeito nesse primeiro momento. Era difícil acabar
completamente com uma atitude social e cultural que havia perdurado no mundo greco-
romano por mil anos. No entanto, quando os imperadores decidiram converter-se ao
Cristianismo, a situação modificou-se. Em 342, os filhos do primeiro imperador cristão de
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Roma, Constantino I, o Grande, realizaram diversas alterações que forjaram a cristianização
da lei imperial e a abolição do paganismo. Apesar das novas determinações, as relações
homoeróticas permaneceram ambíguas na época dos imperadores cristãos (NAPHY, 2004).
Como salienta Torrão Filho (2000), não é fácil estabelecer quando a moral antiga e a
cristã se distanciam nos primórdios do Cristianismo. É difícil definir a ruptura entre a
tolerância quase ilimitada dos romanos no que se refere à homossexualidade e as fogueiras
dos cristãos. Mas, segundo Naphy (2004), é na época em que paganismo e Cristianismo
coexistiram que as ideias sobre o sexo, o corpo e a natureza se formaram e, depois,
moldaram o pensamento cristão, desde a Idade Média até os nossos dias. Faz-se necessário
ressaltar que o Cristianismo forjou suas ideias sobre o sexo no contexto do mundo pagão
greco-romano, partindo de uma tradição judaica, que considerava a procriação a razão
suprema para o sexo e via a relação sexual que não tivesse esse objetivo como “antinatural,
imoral, ímpia e sodomítica” (p.74).
Médicos como Galeno, Oribásio e Rufo de Éfeso, entre os séculos. III e IV, pregavam
a castidade, a vida monástica, longe das fulminantes paixões. A energia sexual, defendiam,
deveria ser poupada para a geração de filhos fortes, pois acreditavam que o sêmen era finito
e que, por isso, não deveria ser desperdiçado. Também se recomendava uma relação sem
violência, pois esta desgastava o corpo, diminuía a quantidade e interferia na qualidade do
esperma. Acreditava-se que a abstinência sexual contribuía para o desenvolvimento da
mente e do corpo. Passou-se, então, a privilegiar a relação heterossexual, já que a
homossexual masculina, normalmente, era mais violenta. Às mulheres não se fazia
referência.
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Como afirma Carvalho (2003), foi a partir da Idade Média que a Igreja se manifestou
contra a homossexualidade, com base no capítulo XIX do Gênese, que narra a história de
Sodoma – da qual surgiu o termo sodomia – e cuja interpretação relacionava o pecado dos
sodomitas à homossexualidade.
Para Chauí (1991 apud CARVALHO, 2003), a Igreja estaria sentindo-se ameaçada,
tendo em vista que tais relações não geravam filhos, o que diminuiria a população e,
consequentemente, o número de fiéis para contribuir financeiramente com a instituição.
Desse modo, era conveniente que o sexo fosse meramente reprodutivo e, assim, o amor
sensual foi marcado com a pecha de pecado.
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Com a decadência dos meios urbanos, foram ganhando espaço as ideias repressoras
contra as minorias, como os homossexuais e os judeus. O Código Teodósio previa a pena
de morte para quem praticasse relações homossexuais e realizasse outras atividades pagãs,
embora não haja prova de que tais penas tenham sido efetivadas. Data de 390 a primeira
condenação a castigos corporais de homem acusado de prostituição, a qual ocorreu
paralelamente à diminuição da tolerância a todas as formas de sexualidade não procriativas
e à prostituição masculina. É de 533 a primeira lei que proíbe a homossexualidade,
promulgada pelo imperador Justiniano (TORRÃO FILHO, 2000).
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Oportuno se faz salientar que até o século XII o homossexualismo não foi objeto de
condenações violentas. O monge que se deixasse levar a cometer atos como o homicídio
ou a sodomia jejuaria por dez anos. Aquele que tivesse um filho jejuaria por sete anos a pão
e água. O laico que praticasse a sodomia jejuaria por sete anos, dos quais os três primeiros
a pão e água, com sal e legumes secos apenas e nos quatro últimos seria privado de pão e
carne. A partir do século XIII é que a tolerância para com os homossexuais torna-se cada
vez menor. Com a consolidação do poder civil e eclesiástico na Europa, propiciado pelo
surgimento dos Estados Absolutistas, houve um crescimento da repressão. Sobre o assunto
afirma Torrão Filho (2002):
Ainda no século XIII, sob influência, entre outros, de Tomás de Aquino, foi publicado
por Gregório IX o código penal válido para todo o império cristão, com forte apelo ao direito
natural, sob a ótica conveniente do que se considerava natural, pelo menos no que dizia
respeito aos homossexuais – havia pouca reflexão sobre a moralidade do homossexualismo
até a discussão dos “pecados contra a natureza”, feita por Tomás de Aquino, na Suma
Teológica (1265-1273). De fato, a moral sexual e o direito propagados pela Igreja foram cada
vez mais marcados pelo conceito central de Natureza (SPENCER, 1996). Tal conceito era
ligado à ideia de Justiniano de que existia um direito natural comum à raça humana e aos
animais, acarretando numa teoria da sexualidade fundamentada na união natural do macho
e da fêmea. Na verdade, essa referência à Natureza era muito mais moral do que física,
tornando-se, assim, fonte de uma moral que discriminava e excluía a homossexualidade
(OLIVEIRA, 2002).
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de investigar e, inclusive, aplicar penas preventivamente. Particularmente a partir do século
XIV, os homossexuais passam a ser cruelmente perseguidos, até porque nessa época era
necessário procriar nos países despovoados por epidemias e guerras, e a
homossexualidade passa a ser associada à feitiçaria e ao demonismo. Quem infringisse a
norma heterossexual era condenado a castigos duríssimos, à prisão e à fogueira, pois a
Inquisição estava vigilante.
A grande variedade de culturas ocidentais não contribuía para uma estabilidade dos
costumes no que se refere ao matrimônio e ao sexo. Embora a literatura clerical
demonstrasse uma uniformidade de normas e interdições, o ethos popular demonstrava
haver um quadro bem mais complexo e variado de tabus e tolerâncias sociais. No entanto,
por todo esse período, transparece uma atitude negativa estável frente às atividades
homossexuais, como consequência mais da resistência e aversão por parte de uma
sociedade preponderantemente heterossexual, em que os comportamentos considerados
certos ou errados, lícitos ou imorais ficam em torno do relacionamento heterossexual, pois
o anormal causava insegurança e medo (LEERS; TRASFERETII, 2002).
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devastação provocada pela Peste Negra. Na Itália, houve um retorno à tolerância da
homossexualidade, paralelamente à ascensão do capitalismo e da democracia e às
tentativas de juntar os escritos clássicos com os ensinamentos da Igreja, visando a um novo
humanismo filosófico (BAILEY, 1955 apud OLIVEIRA, 2002).
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1570. Melzi foi herdeiro dos livros e instrumentos de pintura de Leonardo da Vinci (TORRÃO
FILHO, 2000).
Em Portugal, ser italiano ou ter passado pela Itália já levantava suspeitas de sodomia.
Daí se originou o termo pelo qual ficou conhecida: o vício italiano. A homossexualidade,
como aponta Rocke (1987, p.701 apud TORRÃO FILHO, 2000), era vista como a causadora
de uma série de desgraças, “da guerra à peste, do ódio dos inimigos à rebelião e às
desordens civis”.
Outro nobre importante implicado em sodomia foi o filósofo, literato e político Francis
Bacon (1561-1626), cuja mãe se desesperava com a relação pública que ele mantinha com
seu serviçal, o que prejudicava sua reputação e sua saúde.
A Inglaterra do século XVII, apesar do seu puritanismo, também viu florescer a prática
homossexual, que se tornou intensa, com clubes e tavernas onde os homossexuais se
encontravam, alguns inclusive travestidos, chamados popularmente de molly houses (casas
de veados). Assim como ocorria em Portugal, alguns desses estabelecimentos eram
administrados por mulheres. Era comum naquele período que alguns aristocratas ou
burgueses tivessem jovens criados solteiros que lhes serviam como amantes, sendo a
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condição de empregado um disfarce para que pudessem viver na mesma casa (NAPHY,
2004).
No século XVII, o mais notório homossexual da corte francesa foi Felipe de Orleans
(1643-1715), regente do reino e irmão de Luís XIV, o Rei Sol. Diz-se que Felipe, embora
casado com Henriqueta, da Inglaterra, preferia os pajens e jovens da corte a sua esposa ou
a qualquer outra mulher. Não escondia suas preferências: pintava-se e vestia-se de mulher
e chegou a dançar um minueto no palácio real com um de seus amantes. Foi também um
dos fundadores da Ordem dos Templários (SPENCER, 1996).
No século XVIII, a rainha da França, Maria Antonieta, parece não ter sido indiferente
ao safismo. Seu casamento com Luís XVI só foi consumado sete anos depois da cerimônia,
período em que se comentavam suas relações com as jovens da corte. Mesmo depois de
consumado o casamento, a rainha mostrou-se ligada às princesas de Lamballe e de
Polignac, que se diziam ser suas amantes (TORRÃO FILHO, 2000).
As lésbicas menos importantes não tinham a mesma sorte: não lhes era perdoada a
atividade homossexual, principalmente aquelas que se vestiam de homem. No início do
século XVII, a alemã Catarina Margarida Lincken foi acusada de ter-se vestido de homem e
desposado outra mulher, chamada Margarete. Também na Inglaterra as lésbicas travestidas
foram perseguidas: em 1746, Mary Hamilton foi processada por ter-se casado com uma
mulher e com ela viver como se fosse homem (SPENCER, 1996).
Muitos dos homossexuais eram identificados por uma vestimenta específica com que
podiam reconhecer seus possíveis parceiros, mas que servia também para se fazerem notar
pela polícia. Tal vestimenta, constituída de casaco, gravatas grandes, chapéu-coco e laços
nos sapatos, era chamada de uniforme pederástico. A maior parte desses acusados era
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composta de operários e artesãos, sendo poucos os burgueses ou nobres que eram
incomodados pela polícia. Os clérigos também constavam do “livro dos pederastas” da
polícia: um clérigo de 30 anos foi preso com um curtidor de couro de 20 anos, em seu próprio
apartamento (NAPHY, 2004).
Pelo que se pôde verificar, a homossexualidade não era coisa apenas de nobres, pois
muitos operários e homens do povo faziam parte dessa subcultura, que incluía locais para o
encontro de pederastas, gestos, uma forma de falar e nomes para usar que os diferenciava
e em que podiam identificar-se uns aos outros. Os princípios da Revolução acabaram por
descriminalizar a sodomia: o código criminal de 1791 deixa de mencioná-la. Embora não
tenham mais sido mortos nas fogueiras da Inquisição, os homossexuais não deixaram de
ser reprimidos pelo preconceito e pelas chamadas polícias de costumes, “que procuravam
controlar e impedir a desordem, a depravação de jovens por adultos predadores” (TORRÃO
FILHO, 2000, p. 158).
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27
A HOMOSSEXUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
A partir dos séculos XVIII e XIX, a maneira como as autoridades legislativas, religiosas
e científicas abordavam a homossexualidade e as práticas que empregavam sofreu
modificações. Os homossexuais passaram a ser vistos como delinquentes em potencial, o
que fez aumentar o rigor das leis, dos castigos e da vigilância contra as práticas
homossexuais.
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e tratamentos sobre o comportamento que passou, em 1869, a ser conhecido por
homossexualidade.
Então, diversas formas de tratamento foram utilizadas a fim de “curar” (aspas minhas)
a homossexualidade, entre elas a hipnose, a castração, a terapia de choques convulsivos,
lobotomia, terapia hormonal, terapia por aversão e as psicoterapias. Todas foram, e ainda
são – pois ainda existem relatos de sua existência – ineficazes. Mas, contrariando um século
de patologização, em 1973, a homossexualidade foi excluída do DSM – Manual Diagnóstico
e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana.
29
fundação, em 1958, da Sociedade pela Reforma da Lei Homossexual, cuja reforma só foi
efetivada em 1966 (SPENCER, 1996).
30
reconhecimento da união civil entre homossexuais e o estabelecimento de idade mínima
para a orientação sexual, seja hetero ou homossexual.
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31
A HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL
Nas tribos indígenas brasileiras, afirma Torrão Filho (2000), não era incomum os
jovens adolescentes passarem a fazer parte das “casas-dos-homens”, chamadas baito –
encontradas entre os índios Bororo –, onde era comum a relação entre eles e homens mais
velhos, como forma de iniciação à vida adulta, o que, segundo Gilberto Freyre (1987, apud
TORRÃO FILHO, 2000) favorecia a prática da homossexualidade.
Ainda segundo aquele autor, a homossexualidade não era vista como uma prática
vergonhosa: os tivira ou tibira, como eram chamados os homens efeminados, chegavam a
enaltecer suas relações homossexuais, por considerá-las sinal de valor e valentia. Ainda
hoje, no Estado de Tocantins, os índios Kraô, praticam o cunin, nome utilizado para designar
as relações sexuais entre jovens do sexo masculino. Tal comportamento não suscitava
qualquer tipo de restrição ou proibição (DAVI; RODRIGUES, 2003).
32
As punições aos praticantes do “pecado nefando”, segundo informa Trevisan (2002),
foram as mais diversas, entre as quais se incluíam, como penas mais brandas, jejuns,
orações especiais, retiros, multas e açoites e, nos casos mais graves, confisco de bens e
degredo para outras cidades, estados ou países da África, além do trabalho forçado nas
galés.
A partir do século do século XVIII, houve progressiva perda de poder dos tribunais da
Inquisição em Portugal, o que redundou na sua extinção, em 1821. Em função disso,
sodomia no Brasil passou cada vez mais para a alçada da justiça comum. Os ideais
revolucionários de 1789 também haviam atingido o Brasil, e do Código Napoleônico, de
1813, já não constava a homossexualidade como crime. A primeira Constituição brasileira,
de 1823, que em linhas gerais atualizava as Ordenações Filipinas – leis portuguesas do
século XVI, que determinavam a pena de morte para a sodomia – também não a incluía
entre os crimes civis. Portanto, a sodomia continuava a ser pecado, embora não fosse mais
passível de condenação pela fogueira (TORRÃO FILHO, 2000).
33
necessidades eróticas naturais dos homens, embora fosse considerada por outros como um
incentivo ao lesbianismo entre as meretrizes. Em 1906, afirmava o médico Pires de Almeida
que a referida prática ajudava a diminuir tanto a pederastia quanto a prostituição masculina,
por ele considerada muito pior que a feminina (TORRÃO FILHO, 2000).
34
Conforme acentua o Dr. Viveiros de Castro, a origem da homossexualidade estaria
na “loucura erótica”, resultante de psicopatias sexuais em pessoas mentalmente alienadas,
assim como poderia ser consequência de falhas hereditárias no desenvolvimento glandular;
vida insalubre, alcoolismo e circunstâncias favoráveis à aquisição do “vício”, como prisões,
velhice e impotência, entre ouros. Segundo ele, os homossexuais sofriam de uma alteração
psíquica chamada “efeminização” (TORRÃO FILHO, 2000).
35
ainda o caráter sagrado dos homossexuais através da personagem de um ex-escravo que
tinha em sua comunidade o prestígio de um sacerdote, sendo respeitado por todos. Segundo
Torrão Filho (2000), assim como o referido personagem, muitos homossexuais tinham
importantes funções nas religiões indígenas americanas e nos cultos afro-brasileiros, como
a umbanda e o candomblé. Estudos antropológicos realizados em terreiros brasileiros
mostraram que gays e lésbicas costumavam ocupar as principais funções sacerdotais
nessas religiões.
A década de 1960, aqui como no mundo, foi palco de liberação sexual, de movimentos
em defesa de direitos civis e de luta contra a ditadura militar vigente no País entre l964 e
1985. Nos anos 70, surgem os primeiros grupos homossexuais. Enquanto nos países
europeus e nos Estados Unidos os primeiros movimentos tiveram como finalidade a
descriminalização da homossexualidade, no Brasil o objetivo maior era a luta contra um
preconceito, encoberto e sutil, que se espalhava por toda a sociedade, escondendo-se por
trás de uma suposta democracia sexual, assim como o racismo esconde-se sob suposta
democracia racial (FRY, 1982 apud TORRÃO FILHO, 2000).
36
O primeiro jornal gay do Brasil, Lampião, lançado em abril de 1978, tratava, entre
outras coisas, do preconceito e da autoestima do homossexual e dele faziam parte o artista
plástico Darcy Penteado, o antropólogo Peter Fry, assim como os escritores João Silvério
Trevisan e Aguinaldo Silva. O periódico era considerado esquerdista e pornográfico, e seus
responsáveis foram processados e fichados como criminosos, tendo o processo sido
arquivado em função de, pelo menos teoricamente, a homossexualidade não ser
considerada crime (TORRÃO FILHO, 2000).
Nesse mesmo período, surgiu em São Paulo o grupo Somos, que teve vida breve, ao
contrário do Grupo Gay da Bahia, que, tendo surgido na década de 1980, é até hoje o grupo
mais consistente e de maior visibilidade. Liderado pelo historiador e antropólogo Luiz Mott,
o grupo tem como foco questões políticas, raciais e culturais ligadas à homossexualidade
(TREVISAN, 1986).
37
pobres e nas pequenas cidades. Relata Torrão Filho (2000) que em diversas capitais do
Brasil esquadrões da morte fuzilam travestis e prostitutos, e tais crimes não são elucidados.
Não obstante essa intolerância, com a evolução dos costumes e mudança de valores,
a questão da homossexualidade passou a ser tratada com mais naturalidade e
transparência. Apesar de toda a discriminação existente, os movimentos gays ajudaram a
enfraquecer os preconceitos. A homossexualidade ganhou visibilidade, e muitos
homossexuais passaram a assumir sua condição sem qualquer constrangimento. Mas o fato
é que no Brasil e na grande maioria dos países, apesar de todos esses avanços, o
preconceito ainda faz com que muitos homossexuais continuem excluídos da plena
cidadania.
38
De acordo com Torrão Filho (2000), foi Carl Westphal, um psiquiatra alemão, o
primeiro cientista a dar ao estudo da homossexualidade um status científico, ao publicar o
caso clínico de uma mulher homossexual, em 1869. Definindo a condição de sua paciente
como tendo “sentimentos sexuais contrários”, ele concluiu que a anormalidade era
congênita, em vez de adquirida. Westphal passa, então, a estudar mais de 200 casos desse
tipo, desenvolvendo uma classificação da variedade de comportamentos associados à
homossexualidade.
César Lombroso, o criminologista italiano, argumentava, por sua vez, que, como
representavam um estágio de desenvolvimento mais baixo do que o dos heterossexuais, os
homossexuais não podiam ser responsabilizados pelo seu fracasso, não se justificando sua
punição. No entanto, ainda segundo o criminologista, deveriam ficar restritos a asilos, devido
ao perigo que representavam para a sociedade. Em 1860, Karl Heinrich Ulrichs, o médico
alemão inventor do termo uranismo, propôs uma interpretação congênita da
homossexualidade, sendo um dos maiores defensores dos homossexuais. Para Ulrichs, os
genitais dos homossexuais se desenvolviam apropriadamente, mas o mesmo não ocorria
com seu cérebro, o que fazia com que uma alma feminina pudesse habitar o corpo de um
homem (TORRÃO FILHO, 2000).
39
homossexualidade era inata, o que o levou a defender a tolerância, razão pela qual foi
proibido na Inglaterra (NAPHY, 2004).
40
Ainda em meados do século XX, a homossexualidade era pensada como doença
mental e uma inversão anormal de papéis. A este respeito, afirma Oliveira (2002):
[...] para o discurso psiquiátrico do século XX, a homossexualidade sempre foi tida
como uma inversão sexual isto é, uma anomalia psíquica, mental ou de natureza
constitucional, um distúrbio da identidade ou da personalidade que podia chegar à
psicose e que, não raro, conduzia ao suicídio. Mas, sobretudo, a inversão foi tida
como uma inversão dos papéis e funções sexuais, do masculino para o feminino e
vice-versa. (p. 42)
41
proponham tratamento e cura das homossexualidades”, já que a homossexualidade não
constitui doença, distúrbio nem perversão.
http://revpsi.org/wp-content/uploads/2014/12/homossexualidade.png
Oliveira (2002) aponta que, desde a década de 1990, os avanços teóricos e práticos
da psicologia e da psiquiatria contribuíram para que o interesse sobre a homossexualidade
mudasse de foco. Segundo o autor, a preocupação com a origem da homossexualidade
teria cedido lugar à busca de uma compreensão maior da experiência complexa e
diversificada da homossexualidade. No entanto, não se pode deixar de registrar que as
questões que envolvem a origem da homossexualidade estão na base de todos os discursos
sobre essa prática amorosa, que ainda hoje inflige bastante sofrimento aos indivíduos que
se relacionam com pessoas do mesmo sexo, tendo em vista as discriminações e
preconceitos que enfrentam.
42
Silva (2007) ressalta que cada vez mais chama a atenção da comunidade científica a
concepção de que a homossexualidade é uma condição relativamente estável,
possivelmente inata e característica de uma minoria com gostos sexuais excludentes. Para
a autora, apesar da ênfase dos estudos sobre os componentes biológicos da orientação
sexual, grande parte dos pesquisadores postula que fatores ambientais também são
fundamentais no desenvolvimento de uma orientação sexual específica, o que nos leva a
abordar agora os aspectos socioculturais da gênese da sexualidade e, consequentemente,
da homossexualidade.
Como afirma Arruda (2002), é através da Psicologia Social que a representação social
ganha espaço para uma teorização, que primeiramente foi desenvolvida por Serge Moscovici
e aprofundada por Denise Jodelet. Assim, abordando as representações sociais através de
seu objeto de estudo – a relação indivíduo-sociedade –, a Psicologia Social traz à reflexão
a maneira pela qual o sujeito social constrói seu conhecimento a partir de sua inserção na
sociedade, e como esta também se constrói a partir das influências recebidas do sujeito
social (p.128).
43
De acordo com Moscovici (1978), o agrupamento das partes que formam o todo não
se dá de forma repentina; surgem novos fenômenos que não são fruto direto da associação
dos elementos, existindo uma série de fatores intermediários para que o agrupamento
aconteça. Sentimentos privados são unificados e transformados, e, nesta associação, a
síntese é a obra do todo. A resultante ultrapassa o indivíduo e o todo ultrapassa a parte.
Assim, a representação coletiva não pode ser reduzida a um conjunto de representações
individuais.
Laqueur (2001), em seu livro intitulado Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos
a Freud, aponta para o fato de que somente a partir do século XVIII passa a ser considerada
a existência de um modelo de dois sexos, contrariamente à percepção herdada dos gregos
44
de que haveria apenas um sexo biológico, enquanto o gênero se apresentaria pelo menos
em duas possibilidades. No modelo antigo de um sexo, homem e mulher não seriam
definidos por uma diferença intrínseca em termos de natureza, de biologia, de dois corpos
distintos, mas, apenas por um grau de perfeição. As diferenças seriam de grau, compondo
uma hierarquia vertical entre os gêneros. Os órgãos reprodutivos seriam vistos como iguais
em essência e reduzidos ao padrão masculino. Ou seja, ambos, homens e mulheres, seriam
dotados de pênis e testículos; a única diferença é que na mulher esses órgãos não teriam
sido externalizados. Haveria, então, um só corpo, para o qual se atribuem distintas marcas
sociais.
Surge, então, o novo modelo, que enfatiza a existência de dois sexos distintos,
instituindo uma diferença radical entre homens e mulheres. As diferenças biológicas passam
a oferecer a base para que cientistas sociais pensassem sobre as supostas diferenças inatas
entre homens e mulheres e a consequente necessidade de diferenciações sociais. Assim, a
partir do final do século XVIII, passa a predominar o modelo da diferença sexual. A visão
dominante, embora não universal, era a de haver dois sexos opostos biologicamente e que
a vida política, social, econômica e cultural dos homens e das mulheres, seus papéis de
gênero, seriam baseados nessa diferença (LAQUEUR, 2001).
Para Joan Scott (1990), uma das mais importantes teóricas sobre o uso da categoria
gênero em História, a definição do termo possui duas vertentes principais: a primeira diz que
“o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças que
distinguem os sexos”; a segunda, que “o gênero é uma forma primária de relações
significantes de poder” (p.14). A autora traz em seus estudos o gênero não apenas como a
única articulação de poder, mas a primeira instância dentro da qual o poder se articula.
45
Segundo Louro (1996), o conceito de gênero começou a ser utilizado na década de
80, disputando espaço com os estudos sobre a mulher, à época tema de difícil aceitação no
campo universitário. Na gênese do conceito está, portanto, o caráter militante do movimento
feminista, mas ele sofre modificações a partir do momento em que a História, a Sociologia,
a Antropologia e a Literatura entram no debate, suscitando discussões teóricas sobre o tema
e também dando visibilidade ao feminino e, posteriormente, às especificidades da
construção das masculinidades.
Dessa forma, o conceito de gênero veio contrapor-se ao de sexo, este último ligado
às diferenças biológicas entre homem e mulher e o primeiro, à construção social e histórica
das características e atitudes atribuídas a cada um deles em diferentes sociedades. Isto quer
dizer que agir e sentir-se como homem e como mulher depende de cada contexto
sociocultural. A abordagem de gênero possibilitou a discussão das relações de poder entre
homens e mulheres e explicitou a construção da desigualdade entre eles na história das
sociedades ocidentais.
Segundo Scott (1990 apud ARRUDA, 2002), a partir do gênero, pode-se perceber a
organização concreta e simbólica da vida social e as conexões de poder nas relações entre
os sexos, sendo o estudo de gênero, portanto, um meio de decodificar e compreender as
relações complexas entre diversas formas de interação humana, assim como de dar um
significado para os conceitos de homem e mulher. O conceito de gênero foi criado, assim,
para opor-se a um determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um
caráter basicamente social.
Conforme afirma Amussen (1985 apud TORRÃO FILHO, 2005, p. 138) o gênero dá
significado às distinções entre os sexos, transformando “seres biologicamente machos e
fêmeas em homens e mulheres, em seres sociais".
Torrão Filho (2005) apresenta o pensamento de Woolf (1972, p. 291) a este respeito:
“as mulheres não são obedientes, castas, perfumosas e caprichosamente enfeitadas já por
natureza. Só podem conseguir essas graças, sem as quais não lhes é dado desfrutar
nenhuma das delícias da vida, mediante a mais enfadonha disciplina”.
46
Para Nolasco (1993), alguns comportamentos são definidos pela cultura como
pertencentes a um ou outro sexo, os quais deveriam ser recalcados por homens e mulheres
para estes serem reconhecidos como tais. Assim, a sociedade percebe o homem e a mulher
sob uma visão estereotipada de representação social, culturalmente construída. Dessa
forma, tempos atrás, características como prestígio, poder, atitude, determinação e sucesso
profissional estavam associados ao masculino, assim como a identificação de necessidades
afetivas estava relacionada ao feminino. Nesse sentido, não são das características sexuais
em si, mas das ideias e valores que se têm sobre elas, ou seja, da maneira pela qual são
representadas que surgem as representações sociais do masculino e do feminino, variando
de acordo com o tempo e a sociedade em que estão inseridos. Portanto, não se pode ligar
de forma uniforme sexo, práticas sexuais (e desejos) e identidades sexuais, pois existem
várias culturas sexuais em que diversas práticas são relacionadas a sistemas significativos
diferentes.
Corroborando essa tese, Heilborn (1996) considera que nenhum dos termos
aplicados ao sujeito ou à sexualidade corresponde a realidades permanentes fora do
contexto histórico em que são definidos. Assim sendo, a homossexualidade não é uma
essência que possa ser apreendida através de métodos científicos, filosóficos ou analíticos.
A ideia de homossexualidade é historicamente datada, pois depende da noção de
sexualidade, que é igualmente moderna (FOUCAULT, 1999 apud SILVA, 2007).
Segundo Naphy (2004), no debate sobre a sexualidade existe uma dicotomia entre o
essencialismo e o construtivismo. Para os construtivistas, expressões como homossexuais,
bissexuais ou heterossexuais são apenas categorias criadas por culturas e sociedades.
Seguindo esse pensamento, gay não é uma característica essencial da pessoa, mas um
modo de definir e categorizar o indivíduo pelo seu comportamento. Assim, o homossexual
se entende como tal porque vive numa sociedade que o classifica dessa maneira. O
construtivismo sugere ainda que todo comportamento sexual segue uma linha de
continuidade, podendo-se dizer apenas que a atração pelo sexo oposto tem sido mais
comum ao longo da História.
47
1996). O que há de comum nas diversas formas da abordagem essencialista é a convicção
de que haveria algo inerente à natureza humana inscrita nos corpos – como instinto ou
pulsão – que definiria os comportamentos e as práticas sexuais, mas as sociedades
utilizariam vários rótulos e reagiriam de diversas maneiras aos indivíduos homossexuais,
bissexuais ou heterossexuais. Segundo Naphy (2004), o essencialismo sugere que, no que
se refere à homossexualidade, não se trata somente de uma predisposição genética, mas
de “algo fundamental para a identidade de um indivíduo, como a condição de judeu, que tem
conotações étnicas/genéticas e religiosas/culturais” (p. 14).
Parker (2001) afirma que, em países da América Latina, os homens que praticam
sexo passivo são identificados como homossexuais e os que praticam sexo ativo com outros
homens não se auto identificam como tal. Portanto, as noções de atividade e de passividade,
segundo o autor, teriam maior vigência na cultura sexual latino-americana do que a escolha
do sexo do parceiro como definidores da identidade sexual. Para ele, existem várias culturas
sexuais nas sociedades ocidentais, definidas a partir de redes sexuais e sistemas
significativos com possibilidades de interações desiguais, pois produzem relações de poder
e de gênero.
Para Torrão Filho (2000), a diferenciação entre os sexos pressupõe a definição das
características que formam a identidade do masculino e do feminino, o que aprisiona homens
e mulheres em limites culturalmente formulados. É possível concluir, portanto, que o termo
gênero está direcionado à questão de diferenças pretensamente naturais, em que os
indivíduos deveriam simplesmente aceitar e internalizar padrões consolidados antes mesmo
de fazerem quaisquer comparações reais.
Neste ponto, é oportuno mencionar a distinção que faz Stoller (1973) entre identidade
de gênero e papel de gênero. Segundo o autor, papel de gênero inclui tudo o que uma
pessoa diz ou faz para revelar-se a si própria como possuidora da condição de moça/rapaz,
homem/mulher, o que inclui a sexualidade, mas não se restringe a ela. O papel de gênero
48
não se estabelece no nascimento; é construído ao longo das experiências vividas. Já a
identidade de gênero é dada à criança ao nascer, quando normalmente surge a exclamação
“é uma menina”, “é um menino”, em concordância com a manifestação externa dos órgãos
genitais do bebê. Esta é fundamentalmente a primeira visão das pessoas, atribuindo à
criança uma identidade sexual, ou seja, a forma como o veem os demais – família, amigos,
colegas, vizinhos, enfim, a sociedade. Assim, ainda segundo Stoller (1973), a identidade de
gênero é “constituída por todos os tipos de identificações, boas e más, começando com a
mãe e acabando por incorporar grande parte dos objetos disponíveis numa cultura” (p. 168).
Zimerman (1999) lembra a importância dos trabalhos de Stoller para a atenção que
hoje se dá não apenas ao sexo biológico, mas também ao gênero sexual que será formado
a partir dos desejos inconscientes dos pais que vão alimentar suas expectativas em relação
ao comportamento de seus filhos. A influência dos pais na determinação do gênero sexual
das crianças, segundo Graña (1995 apud ZIMERMAN, 1999), é produto de alguns fatores,
como nomes próprios ambíguos, roupas que provocam indefinição no contexto social da
criança, tipos de brincadeiras e brinquedos, forma como são designados os genitais, tipos
de esporte estimulados, idealização ou desvalorização de atributos masculinos ou femininos.
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49
Freud, em seu texto A moral sexual cultural e o nervosismo moderno (1908), sustenta
que a sexualidade normal é aquela exigida pela cultura, não havendo, portanto, normalidade
sexual que não seja relativa a algum critério social, admitindo a influência da cultura na
representação da sexualidade (BARBERO, 2005).
O autor chama ainda a atenção para a importância das identificações dos filhos com
os pais diante dos discursos destes sobre a sexualidade, já que os padrões da sexualidade
são criados e, não, inatos. É esse caráter transgeracional que possibilitará também a
repetição dos conflitos dos pais em seus filhos, processo que pode perpetuar-se numa
mesma família.
50
polimorfa, por se apresentar de distintas formas, é polideterminada, tendo em vista que
diversas causas concorrem para uma mesma manifestação clínica. Tendo já sido abordados
os dois primeiros, neste último capítulo serão tratados os aspectos psíquicos, com ênfase
na abordagem psicanalítica, sendo particularmente focalizada a teoria freudiana da
sexualidade.
A HOMOSSEXUALIDADE EM FREUD
Freud (1905b), nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, elabora sua teoria
sobre a inversão a partir do objeto sexual. Assim, classifica a diversidade do comportamento
dos invertidos em três categorias: os invertidos absolutos, os invertidos anfígenos e os
invertidos ocasionais.
Os invertidos absolutos têm como objeto sexual apenas pessoas do mesmo sexo e
demonstram frieza ou aversão sexual pelo sexo oposto. Segundo Freud (1905b), “essa
aversão os incapacita de praticarem o ato sexual normal, ou então não extraem dessa prática
nenhum gozo” (p. 128). Os invertidos anfígenos, os hermafroditas sexuais, têm como objeto
sexual tanto pessoas do mesmo sexo quanto pessoas do outro sexo. E os invertidos
ocasionais são aqueles que deslocam a determinação de seu comportamento invertido para
as condições externas, como a inacessibilidade do objeto sexual e a imitação, podendo
51
tomar como objeto sexual uma pessoa do mesmo sexo e encontrando com ela satisfação
no ato sexual.
Para Freud (1905b), os invertidos não são degenerados, pois tais pessoas não
apresentam nenhum outro desvio grave da norma, além de se destacarem por um
desenvolvimento intelectual, cultural e ético particularmente elevado. Além disso, ressalta
que a inversão também é encontrada como uma característica cultural bem integrada em
diferentes civilizações antigas e atuais, afastando dessa maneira a inversão do campo
puramente médico.
52
Mas a aparente certeza assim adquirida chega ao fim através da observação
contrária de que muitas pessoas ficam sujeitas às mesmas influências sexuais
(inclusive na meninice: sedução, masturbação mútua), sem por isso se tornarem
invertidas ou assim continuarem permanentemente. Somos, portanto, impelidos à
suposição de que a alternativa inato/adquirido é incompleta ou, então, não abarca
todas as situações presentes na inversão. (p. 131-2)
Tendo demonstrado que tanto a suposição da inversão como inata quanto como
adquirida não consegue explicar a questão, Freud, influenciado por Wilhelm Fliess, lança
mão da noção de bissexualidade original, segundo a qual todo ser humano teria uma
disposição física originalmente bissexual, que, ao longo do seu desenvolvimento, vai-se
transformando em monossexual. Freud (1905b) fundamentou a teoria da bissexualidade em
dados da anatomia e da embriologia, tendo afirmado: “Um certo grau de hermafroditismo
anatômico é normal. Em todo indivíduo, macho ou fêmea, encontram-se vestígios do
aparelho genital do sexo oposto[...]” (p. 141).
Como afirma Oliveira (2002), Freud não caiu na conclusão simplista da relação direta
entre o psíquico e o físico, tendo, inclusive, criticado a correspondência direta entre o
hermafroditismo somático e o hermafroditismo psíquico, assim como entre os caracteres
sexuais secundários e terciários com a inversão. Mas, a partir dessas explicações,
apresentou duas ideias para explicar a homossexualidade: a disposição bissexual e a
ocorrência de perturbações no desenvolvimento da pulsão sexual, que incluiriam uma
“impressão sexual prematura vivida na primeira infância, que tem a força de desviar a pulsão
sexual do que seria sua evolução natural” (OLIVEIRA, 2002, p. 116).
Em relação ao objeto sexual dos invertidos, Freud (1905b) diz que a teoria do
hermafroditismo psíquico teria como pressuposto que o objeto sexual do homossexual é o
oposto do de uma pessoa normal, que implica sentir-se o invertido, no caso de um homem,
uma mulher à procura de um homem, mas que tal teoria não englobaria a totalidade dos
casos de inversão. Isto porque grande número de invertidos conserva o caráter anímico da
masculinidade, buscando por isso no seu parceiro traços psíquicos femininos. Neste caso,
o objeto sexual seria um parceiro que tivesse as características dos dois sexos, “uma espécie
de reflexo da própria natureza bissexual do indivíduo” (p. 136). O autor afirma ainda que é
menos ambígua a posição das mulheres, posto que as invertidas buscam em seus objetos
sexuais a feminilidade, já que com frequência apresentam características masculinas físicas
e psíquicas.
53
Neste ponto faz-se necessário ressaltar a posição secundária em que Freud colocou
a sexualidade feminina – e, consequentemente, a homossexualidade feminina – frente a
uma suposta posição masculina originária, que determinaria o masculino como paradigma
da construção do psiquismo humano. Dessa forma, diante da primazia do falo, era reservado
ao sexo feminino um papel sexual secundário. Talvez por isso Freud só tenha estudado mais
detidamente a homossexualidade feminina com o atendimento de uma jovem, que ficou
conhecido com a publicação do texto intitulado A psicogênese de um caso de
homossexualismo numa mulher. Nele, Freud (1920) sustenta que a moça possuía, desde o
nascimento, uma atitude mental masculina mais forte do que a feminina, o que era fruto da
bissexualidade biológica.
54
Em 1915, Freud amplia a explicação da inversão, chegando a todas as manifestações
da sexualidade no que se refere à escolha de objeto. Universaliza a escolha inconsciente de
objeto homossexual, assim como os elementos constitucionais e acidentais da sexualidade,
apontando como determinante da diversidade das expressões sexuais nos seres humanos
a relação de força que se estabelece entre os elementos constitutivos da sexualidade.
Atribui o autor a escolha do objeto homossexual às experiências infantis, à história de vida
do indivíduo e a comparações com a história da humanidade, saindo, portanto, da
argumentação de natureza anatômica. Assim, a explicação da origem da homossexualidade
vai progressivamente deixando o campo de argumentação biológica para o de uma
argumentação psicológica (OLIVEIRA, 2002).
Como salienta Oliveira (2002), verifica-se que Freud oscila entre enfatizar os aspectos
psíquicos e os aspectos físicos da questão, ora pendendo para uns, ora pendendo para
outros.
55
E, acompanhando a evolução do pensamento de Freud no que se refere à inversão,
verifica-se que há uma mudança de concepção do invertido, passando este de um homem
com objeto de satisfação sexual invertido, para um indivíduo com características sexuais e
anímicas de ambos os sexos. O objeto de satisfação sexual também sofre uma
transformação, deixando de ser concreto, imediato, preso à pulsão, para ser um objeto
subjetivo, mediado pela subjetividade, pelos anseios e desejos do sujeito. Como geradores
de tais mudanças, e como explicação da inversão, são apontados três elementos: o
biológico, o psíquico e o aspecto quantitativo. O primeiro refere-se à disposição bissexual
inicial dos indivíduos, que seria a base dos caracteres sexuais do sujeito. O aspecto
quantitativo relaciona-se à intensidade com que cada elemento psíquico entra na
configuração da sexualidade. E entre os aspectos psíquicos que fundamentam a inversão
estariam a fixação inicial na mãe e posterior identificação com a mesma, a escolha narcísica
do objeto, a importância erótica da zona anal, a frustração (intimidação sexual precoce) e a
ausência de um pai forte na infância.
56
Verifica-se, pois, que para Freud a saúde pode conviver com a perversão, ficando
para a psicopatologia os casos em que há adoecimento psíquico associado à perversão. A
demanda para tratamento seria, assim, apenas adaptativa, estando ela ligada a motivos
externos, como as desvantagens e perigos sociais suscitados pela escolha de objeto
homossexual.
TRAVESTILIDADE
Kulick (2008) descreve uma parte desse processo em uma passagem de seu livro,
Travesti, prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil, que retrata a vida das travestis da
cidade de Salvador, Bahia.
No momento, Tina tem quatro agulhas cravadas na nádega esquerda. Ha duas horas
e meia ela está sendo "bombada", isto e, recebendo injeções de silicone aplicadas por uma
outra travesti vinda de Recife. Agora, quase 2h30 da madrugada, as partes interna e externa
das coxas de Tina, o quadril e a nádega direita estão prontos. Os furos deixados pelas
agulhas rombudas vão sendo preenchidos com gotas de cola Super Bonder e cobertos com
pequenas bolas de algodão. (KULICK, 2008, p.63)
Mesmo com todas essas transformações elas não se consideram mulheres, não se
identificam com esse gênero em sua forma biológica. Mesmo estando vestidas o tempo toda
com as roupas femininas, se referindo umas às outras com pronomes femininos e aceitando
qualquer recurso que as façam mais femininas, elas não sentem o desejo de fazer mudança
57
de sexo, como as transexuais, pois não sentirem rejeição aos seus órgãos sexuais. Assim
relata uma das travestis entrevistadas por Kulick: “Eu não tiro nada que Ele (Deus) me deu.
Eu só melhorou as coisas. Ele me deu peito, eu aumento. Ele me deu bunda, eu aumento.
Ele me deu coxas, eu aumento. Eu só estou fazendo o que Ele me deu ficar mais bonito”.
(KULICK, 2008, p.100)
As travestis de cidades pequenas sofrem ainda mais preconceito, por conta disso e
devido à falta de oportunidades, o êxodo para grandes centros é praticamente inevitável.
Quando as travestis saem de casa e vão para as capitais, muitas vezes encontram nos
programas sexuais a única forma de se manterem financeiramente longe da família.
Inseridas na prostituição, as meninas se submetem a diversos tipos de experiências sexuais,
mas, geralmente, são ativas com seus clientes. Por isso o pênis é por muitas vezes critério
de seleção para quem procura e dessa forma “cultuado” pelas travestis. Todas as travestis,
garotas de programa, entrevistadas por Kulick, confirmaram essa tendência passiva em seus
clientes: "No começo da putaria da minha vida, tinham mais homens do que mariconas. No
começo da minha ... carreira artística, certo? tinham mais homens. Hoje em dia é o contrário,
todos querem dar. Mesmo os boyzinhos. Hoje em dia todos querem chupar, dar - antes não
era assim”. (KULICK, 2008, p.175).
http://wp.production.patheos.com/blogs/adrianwarnock/files/2015/05/couples-306851_640.png
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Essa combinação de feminilidade de vivência, identidade sexual homossexual e culto
ao órgão genital, faz das travestis um grupo que não se identifica com os gêneros pré-
estipulados pela sociedade, elas se consideram pertencentes a um terceiro e particular
grupo. Mesmo com todas as mudanças corporais pelas quais as travestis submetem-se,
grande parte delas não conseguem entender os indivíduos que realizam as mudanças de
sexo e, por muitas vezes, reproduzem pensamentos preconceituosos em relação a
transexualidade. Kulick (2008) confirma em seu livro que existe um consenso entre as
travestis baianas: “Qualquer indivíduo biologicamente masculino que pretenda ser uma
mulher sofre um desequilíbrio psicológico e portanto, precisa de ajuda profissional”.
(KULICK, 2008, p.184)
INTERSEXUALIDADE
INTERSEXUAIS
Dessa forma, intersexuais são pessoas que nascem com genitália e/ou características
sexuais secundárias que fogem aos padrões socialmente determinados para os sexos
masculino ou feminino. No campo da Medicina, existe uma diferenciação entre intersexual
falso e verdadeiro. Na verdadeira intersexualidade, que é uma condição muito rara, os dois
órgãos sexuais são igualmente bem desenvolvidos e produzem hormônios sexuais
masculinos e femininos; já na falsa intersexualidade, um dos órgãos apresenta maior grau
de desenvolvimento sobre o outro, sendo predominante.
AS CAUSAS DA INTERSEXUALIDADE
HERMAFRODITAS E ANDRÓGENOS
HERMAFRODITAS
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O termo “hermafrodita” (originário do nome do deus grego Hermafrodito, filho de
Hermes e de Afrodite, respectivamente representantes dos gêneros masculino e feminino)
refere-se a um ser ou animal que possui órgãos sexuais dos dois sexos.
ANDRÓGENOS
A androginia não é uma doença e não tem relação com a orientação sexual. O termo
“andrógeno” refere-se àquele ou àquela que tem características físicas e comportamentais
de ambos os sexos, sejam elas masculinas (andro) ou femininas (gyne). Dessa forma, pode
ser difícil definir o gênero apenas pela sua aparência física.
TRANSEXUALISMO
Existe uma grande discussão com relação a considerar transexualismo como uma
doença ou não. Mesmo assim, de acordo com a classificação internacional de doenças,
versão 10 (ICD-10), o diagnóstico de transexualismo (F64.0) em um adulto requer que 3
critérios sejam satisfeitos:
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Desejo de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, normalmente
acompanhado pelo desejo de fazer com que o corpo seja o mais congruente possível com
o sexo preferido, através de cirurgia e tratamento hormonal.
Portanto, uma pessoa transexual não tem como deixar de ser transexual através de
tratamentos psicológicos. O que existe é a possibilidade de os transexuais passarem por
tratamentos hormonais e cirurgias que os ajudem a se sentir melhor e a viver melhor de
acordo com o seu gênero.
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Algumas pessoas definem transexual como uma pessoa que passou por cirurgia de
redesignação sexual. Eu, particularmente, não gosto desta definição, já que não
necessariamente uma pessoa cujo sexo psicológico é o oposto do sexo biológico irá passar
por todas as cirurgias de redesignação sexual. Na realidade, muitas pessoas, por diversas
razões, nem mesmo irão optar pelo tratamento hormonal. Então, esta definição é muito
restrita.
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