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Sobre a obra:
Sobre nós:
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Sumário
Capa
Rosto
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Agradecimentos
Créditos
Edição: Flavia Lago
Editora-assistente: Natália Chagas Máximo
Preparação: Luciana Araújo
Revisão: Bóris Fatigati e Juliana Bormio Sousa
Diagramação: Ana Solt
Capa: Cara E. Petrus e Sammy Yeun
Arte da capa: Girl © 2014, Eva van Oosten/Trevillion Images
Texture © 2013, Noaki Okamoto/Getty Images
Photo Borders © 2013, iStockphoto
Key s © 2013, Dougal Waters/Getty Images
NIÑA © Chip Pix/ShutterStock
BIBLIOTECA © Tom Grundy /ShutterStock.com
NIÑO ENVUELTO EN NIEBLA © Faceout
Todos os direitos reservados. Proibidos, dentro dos limites estabelecidos pela lei,
a
reprodução total ou parcial desta obra, o armazenamento ou a transmissão
por meios eletrônicos ou mecânicos, fotocópias ou qualquer outra forma
de cessão da mesma, sem prévia autorização escrita das editoras.
1a edição, 2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Roux, Madeleine
Sanctum [livro eletrônico] / Madeleine Roux ; tradução Alexandre Boide]. --
São
Paulo : Vergara & Riba Editoras, 2015. -- (Coleção asy lum)
44,4 Mb ; ePUB
Título original: Sanctum.
ISBN 978-85-1512-875-3
1. Ficção juvenil 2. Suspense - Ficção I. Título. II. Série.
15-04657 CDD-028.5
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura juvenil 028.5
Era um mundo feito de luzes, sons e aromas, barracas de doces e risadas feito
estouro de
canhão, ecoando para além dos caminhos sinuosos. Curiosidades espreitavam a cada
canto. Um homem cuspindo fogo em um pequeno palco. O cheiro tentador de bolinhos
fritos e pipoca no ar, que de tão onipresente se tornava enjoativo. E na última
barraca
havia um homem de barba longa – um homem que não prometia riquezas nem
estranhezas, nem mesmo um vislumbre do futuro. Não. O homem da última barraca
prometia a única coisa que o garotinho queria acima de tudo.
Controle.
Vocês não vão acreditar nisso, digitou Dan, sacudindo a cabeça diante do monitor.
Um
“especialista em manipulação de memória”? Isso existe mesmo? Enfim, vejam o vídeo e
me digam o que acham!
O cursor do computador pairou sobre a última frase – pareciam as palavras de
alguém desesperado. Mas tudo bem, porque Dan estava começando a ficar desesperado
mesmo. Suas três últimas mensagens tinham ficado sem resposta, e ele não sabia nem
se
Abby e Jordan ainda estavam se dando ao trabalho de ler o que ele escrevia.
Dan apertou o botão de enviar.
Ele se afastou do notebook, mexendo o pescoço e ouvindo os estalos suaves de
sua
coluna entrando no lugar. Fechou o notebook – talvez com força demais – e ficou de
pé, o
enfiando na mochila junto com um monte de pastas e folhas soltas. O sinal tocou no
momento em que ele terminou de guardar as coisas e estava saindo da biblioteca para
o
corredor.
Os estudantes apareceram no corredor largo em uma massa compacta. Dan viu
alguns de seus colegas de aula de Cálculo, e acenou para eles enquanto ia até os
armários. Missy, uma morena baixinha e sardenta, havia decorado seu armário com
todo
e qualquer adesivo e cartão-postal de Doctor Who que conseguia encontrar. Um garoto
alto e magro chamado Tariq estava pegando seus livros no armário ao lado, e logo
adiante estava Beckett, o aluno mais baixinho do terceiro ano do Ensino Médio.
– Oi, Dan – Missy o cumprimentou. – A gente sentiu sua falta na hora do almoço.
Onde você se enfiou?
– Ah, eu estava na biblioteca – respondeu Dan. – Tinha que terminar um trabalho
para
a aula de Literatura Avançada.
– Cara, vocês precisam fazer coisas demais para essa aula – comentou Beckett. –
Ainda bem que eu não entrei nesse curso avançado.
– Então, Dan, a gente começou a falar sobre Macbeth assim que você saiu. Está
planejando ir?
– É, eu ouvi dizer que a montagem ficou incrível – contou Tariq, batendo a
porta do
armário com força.
– Eu nem sabia que iam encenar essa peça aqui – respondeu Dan. – É tipo um
lance
do clube de teatro?
– É, e a Annie Si está participando. Só isso já é razão suficiente para ir.
Beckett abriu um sorriso malicioso para os demais, que Dan devolveu sem nenhuma
animação, e o grupo saiu caminhando pelo corredor. Dan não lembrava quais aulas os
outros tinham em seguida, mas, apesar de não ter feito trabalho nenhum na
biblioteca na
hora do almoço, ele de fato precisava subir para o segundo andar para a aula de
Literatura Avançada. Não era a sua matéria favorita, mas Abby havia lido a maioria
dos
livros do currículo e prometeu ajudá-lo quando fosse preciso, o que tornava tudo
muito
mais agradável.
– Acho que a gente deveria ir – disse Tariq. Ele estava vestindo uma blusa que
tinha
três vezes o seu tamanho e calças apertadas. Parecia uma daquelas miniaturas
cabeçudas de jogadores de futebol. – E, Dan, isso vale para você também. De repente
consigo até uns ingressos grátis. Eu conheço o cara que cuida da parte técnica da
peça.
– Sei lá, eu nunca gostei muito de Macbeth. É uma história realista demais para
pessoas obsessivas como eu – Dan respondeu, esfregando furiosamente uma mancha
invisível na manga da blusa.
Missy e Tariq encararam Dan com uma expressão de perplexidade.
– Vocês sabem... – ele soltou uma risadinha. – “Vai-te, mancha maldita!”.
– Ah, isso é da peça? – questionou Tariq.
– É, sim... É uma das falas mais famosas – ele franziu a testa. Abby e Jordan
teriam
entendido na hora. Macbeth por acaso não era leitura obrigatória nas escolas? –
Enfim, a
gente se vê mais tarde.
Dan se afastou do grupo e subiu. Ele pegou o celular e mandou uma mensagem
rápida para Jordan e Abby : Ninguém aqui entende o meu senso de humor. Socorro!
Vinte
minutos depois, no meio do tédio da aula, Jordan ainda não tinha respondido, e Abby
havia se limitado a um simples “LOL”.
Qual era o problema? Onde estavam seus amigos? Eles não tinham muito o que
fazer... Na semana anterior, Jordan estava reclamando no chat do Facebook que suas
aulas eram um saco. Segundo ele, nada mais parecia desafiador depois de passar pelo
curso preparatório do New Hampshire College. Dan até entendia o motivo disso, mas,
sendo bem sincero, as aulas eram a última coisa de que se lembrava do último verão
em
New Hampshire. Ele não conseguia parar de pensar no que aconteceu em seu
alojamento, o Brookline – um antigo manicômio administrado por um diretor
megalomaníaco, Daniel Crawford.
Quando não estava refletindo a respeito desse pequeno detalhe, ele se via
pensando
em Jordan e Abby. Assim que voltou do campus, ele recebia e-mails e mensagens de
texto dos dois o tempo todo, mas nos últimos dias eles mal haviam se falado. Missy,
Tariq
e Beckett até que eram legais, mas Jordan e Abby eram diferentes. Jordan sabia como
provocá-lo, mas sempre de uma maneira bem-humorada que o fazia rir. E, se Jordan
pegasse pesado demais, Abby estava lá para repreendê-lo e restabelecer o
equilíbrio. Ela
era o eixo que mantinha o grupo unido – uma amizade que, pelo menos para Dan, valia
a
pena preservar.
Então por que seus amigos o estavam ignorando?
Dan olhou para o relógio, soltando um grunhido. Faltavam duas horas para
encerrar o
dia. Mais duas horas antes de ir correndo para casa e entrar na internet para falar
com
seus amigos.
Ele suspirou e se recostou na carteira, guardando o celular com um gesto
relutante.
Era estranho pensar que, enquanto um lugar perigoso como o Brookline os uniu, a
vida
cotidiana estava começando a separá-los.
Caro Daniel,
Você deve estar surpreso por eu entrar em contato, e fiz o que pude para
evitar
isso, mas agora está claro que é minha única opção.
Sei que não tenho o direito de pedir isso, mas por favor me ligue assim que
receber esta carta. Se você não entrar em contato... Bom, não posso dizer que
não
entendo.
603-555-2212
Por favor, me ligue.
Cordialmente,
Lydia Sheridan
Dan não sabia se jogava a carta no lixo ou se telefonava na mesma hora. Lá dentro,
ainda era possível ouvir sua mãe lavando e secando as louças. Ele leu a carta mais
uma
vez, batendo com o papel nos dedos e analisando suas opções.
Por um lado, ele não veria problema nenhum em esquecer Felix para sempre. Por
outro...
Por outro lado, ele estaria mentindo se dissesse que não estava curioso para
saber
como estava seu ex-colega de quarto. As coisas tinham ficado todas sem solução. O
frio
na barriga que ele sentia se recusava a ir embora.
Felix deve estar precisando da sua ajuda. Você também precisava de ajuda. É
justo
considerá-lo uma causa perdida?
Ele olhou para a janela à sua direita. Sua mãe estava cantarolando, e a música
chegava baixinho até o lugar onde ele estava sentado. Algumas folhas de bordo caíam
da
árvore que sombreava a varanda. Por mais que Paul podasse os galhos, a árvore
sempre
crescia na direção da casa. Mas nem por isso seu pai deixava de tentar.
Dan pegou o celular e digitou o número de Ly dia Sheridan antes que acabasse
arrumando uma desculpa para não fazer isso.
Ficou chamando um tempão, e por um momento ele teve certeza de que ela não
atenderia. Estava quase torcendo por isso.
– Alô?
– Alô, Ly dia? Quer dizer, sra. Sheridan?
Sua própria voz parecia estranha aos seus ouvidos.
– É ela... Quem está falando? Não conheço seu número.
Ela falava da mesma maneira tranquila e pausada de Felix, mas era uma versão
mais
feminina e menos tensa da voz que se recusava a sumir de suas lembranças.
– É Dan Crawford. Você me mandou uma carta pedindo para entrar em contato.
Então... Bom, eu estou entrando em contato.
Houve um silêncio que pareceu durar uma eternidade. Por fim, ele ouviu a
respiração
pesada da mãe de Felix do outro lado da linha.
– Obrigada – falou, como se ela estivesse à beira das lágrimas. – É que... Nós
não
sabemos mais o que fazer. Parecia que ele estava melhorando. Os médicos que estão
fazendo o tratamento achavam que sim. Mas agora parece que ele empacou. Só o que
faz é perguntar sobre você, todo dia, toda hora... Daniel Crawford. Daniel
Crawford.
Era uma notícia mais do que inquietante.
– Lamento muito por isso, mas não sei o que eu posso fazer para ajudar –
respondeu
Dan. Talvez tenha sido uma resposta seca demais, mas o que poderia falar? Ele não
era
médico. – Isso deve passar. Aposto que não vai demorar muito.
– Foi isso que aconteceu com você? – questionou Ly dia.
Dan jogou a cabeça para trás, surpreso com a repentina frieza na voz dela.
– Para você isso tudo já passou? – ela soltou um suspiro. – Desculpa. Eu... Eu
não
estou conseguindo nem dormir. Estou morrendo de preocupação com ele. Detesto ter
que
pedir isso para você...
– Mas? – complementou Dan.
Não era nem preciso fazer isso. Estava na cara que a pergunta viria mais cedo ou
mais tarde.
– Eu queria saber se você pode ir até Morthwaite. Falar com o Felix. Enfim...
não sei.
A esta altura, já estou apelando, sabe? Implorando. Só quero que meu filho melhore.
Quero que tudo isso acabe – Dan ouviu o choro embargar a voz dela mais uma vez. –
Para ele ainda não acabou Dan. Para você já?
Só rindo mesmo. Se para ele tudo tinha acabado? Não, de jeito nenhum. Os sonhos
continuavam, mais assustadores do que nunca, e muitas vezes o diretor em pessoa
marcava presença. Ainda não estava tudo acabado e, por mais doentio que isso
pudesse
parecer, Dan sentiu uma pontada de alívio por saber que não era o único que ainda
estava sofrendo.
– Isso pode não funcionar – Dan respondeu, falando bem devagar. – Ele pode até
piorar. A senhora sabe disso, não é?
Eu não quero ser responsável por mais isso. Simplesmente não posso.
Ele já se sentia culpado o suficiente por ter arrastado Abby e Jordan para
aquela
maluquice no Brookline. Pelo menos no caso de Felix, ele podia afirmar que não teve
culpa – aquela falsa da professora Rey es praticamente confessou que o atraiu até o
porão, onde ele... Bom, onde a cabeça dele se perdeu de vez, ao que tudo indicava.
– Mas você vai? – a sra. Sheridan parecia bem contente. E cheia de esperança. –
Ah,
obrigada. Por favor, eu... Obrigada.
– Aonde exatamente eu preciso ir? – Dan perguntou, ainda sentindo um frio na
barriga
de medo. – E como eu faço para chegar lá?
No sábado seguinte, Dan estava sentado no assento do passageiro do Prius preto de
Ly dia
Sheridan. Alta e magra, ela se inclinava sobre o volante enquanto dirigia. Mechas
castanhas escapavam a todo instante da presilha que tentava manter presos seus
cabelos.
Óculos de aro fino se equilibravam sobre seu nariz reto.
– Tem certeza de que seus pais deixaram? – a sra. Sheridan tinha perguntado
quando
Dan se aproximou de seu carro naquela tarde.
– Ah, sim, claro – ele respondeu, esperando que ela destravasse a porta do
passageiro.
– É que a nossa casa está em reforma. Tem caçambas e caminhões por toda parte. Não
dá nem para parar o carro na frente de casa. Mas eles ficaram contentes em saber
que
eu ia visitar o Felix.
Depois de algumas formalidades desconfortáveis – trocadas no estacionamento de
um
McDonald’s –, Dan entrou no carro, e a viagem foi feita em silêncio até aquele
momento.
Ele queria saber mais sobre a situação em que estava se metendo, claro, mas
simplesmente não conseguiu criar coragem para perguntar.
Em vez disso, ficou olhando para o celular, lendo as respostas de Abby e Jordan
para
a mensagem que mandou naquela manhã, avisando que estava indo ver Felix. Pelo
menos era uma prova de que eles ainda liam o que ele escrevia. Mas, àquela altura,
Dan
só conseguia pensar que gostaria de ter lido suas respostas antes de entrar no
carro de
uma desconhecida.
Jordan Lipcott
para mim, avaldez
Então, eu li sua mensagem e pensei: “Tem certeza?”. E isso foi antes da minha
mãe
me entregar a correspondência. Alguém me mandou uma foto, Dan. Abby também
recebeu uma. Parece ser algum tipo de piadinha sem graça. Circos, atrações
bizarras, essas coisas. Vou anexar a foto para você, mas veio sem remetente. Q
ue
diabos está acontecendo?
J.
PS: Espera só você ver o verso, blergh.
[Baixar Arquivo 2/2]
Abby Valdez
para mim, jlipcott
Estou tentando virar a página, Dan, mas recebi uma carta pelo correio também.
De verdade, não estou nem um pouco a fim de reviver o passado, mas... Sei lá.
Você recebeu uma foto também? Seria estranho se só eu e Jordan recebermos.
Isso está me assustando, Dan. Parece que tem alguém de olho em nós. Toma
cuidado, certo? Depois conta como foram as coisas com Felix para eu não ficar
tão preocupada.
Por que nós não podemos simplesmente virar a página?
Abby
[Baixar Arquivo 2/2]
Não havia problema em querer virar a página, mas para ele isso não fazia o
menor
sentido. Como esquecer que foi amarrado a uma maca e escapou por pouco da morte?
Como esquecer que, depois que se libertou, ele quase cometeu um assassinato? Como
continuar vivendo como se nada tivesse acontecido depois disso? A palavra
simplesmente
foi um toque de crueldade da parte de Abby. Simplesmente virar a página.
Simplesmente
decidir esquecer. Simplesmente deixar de ter pesadelos. Como se isso fosse simples
e
descomplicado como guardar o suco e o leite na geladeira depois de voltar do
mercado.
Dan clicou nos dois anexos e esperou as imagens carregarem. Seu pé começou a
balançar nervosamente quando ele viu as imagens em preto e branco preencherem a
tela – primeiro a de Jordan, depois a de Abby.
Ele estreitou os olhos, virando as imagens de todos os ângulos. Pareciam ter
sido
tiradas no mesmo dia e no mesmo lugar – estavam inclusive rasgadas, como se na
verdade formassem uma só fotografia. Quando examinou mais de perto o verso das
imagens, ele entendeu o que Jordan quis dizer.
Havia palavras escritas em tinta preta no verso de cada fotografia. “Para
vocês” na
de Jordan e “é o fim” na de Abby.
Para vocês é o fim.
Dan desviou o olhar da tela e se virou para a mãe de Felix. Ela não notou que
estava
sendo observada. Por que eles receberam essas fotos e eu não? Se for algum tipo de
aviso,
por que eu fui deixado de fora?
Isso na verdade é bom, Dan, ele lembrou a si mesmo, sarcástico. Ninguém ia
querer
receber um bilhete dizendo “Para vocês é o fim”.
Apesar do tom alaranjado em vez de verde, a paisagem da mata ao redor lhe
parecia
familiar. Ele quase conseguia sentir o cheiro do aromatizador barato do táxi que o
levou
até o New Hampshire College.
– Ainda falta muito? – Dan perguntou, desviando os olhos do celular.
– Mais meia hora – informou a sra. Sheridan. – Talvez quarenta minutos.
O joelho de Dan se movia sem parar. Eles já estavam na estrada fazia uma hora.
Pelo
jeito, o único meio de chegar à Clínica Morthwaite era atravessando quilômetros de
floresta em estradas secundárias.
Nesse exato momento, chegou uma mensagem de texto de sua mãe.
Espero que esteja se divertindo com Missy e Tariq. Por favor tenha juízo,
e me
avise se precisar de uma carona para voltar da festa. Amo você!
Enfim eles chegaram a uma clareira na mata, e Dan se aproximou da janela para
observar melhor enquanto subiam uma ladeira inclinada que os levou até um espaço
cercado por muros e um portão. Dan estava torcendo para que fosse uma clínica
moderna e aconchegante, mas a Morthwaite estava mais para uma irmã gêmea do
Brookline. Tinha um aspecto mais limpo, pelo menos, apesar de ninguém se dar ao
trabalho de arrancar as trepadeiras que cresciam na fachada de pedra. Cinzento e
alto, o
prédio parecia uma sentinela cansada sobre o morro, e mesmo à distância Dan
conseguiu ver que havia grades nas janelas.
A sra. Sheridan parou o Prius na frente do portão, e um segurança pediu para ver
os
documentos dos dois. O guarda atarracado e cheio de espinhas observou a carteira de
motorista de Dan com olhos desconfiados, conferindo várias vezes sua fotografia
antes
de falar pelo rádio com alguém no prédio para confirmar se ele estava cadastrado.
– Parece que está tudo certo. Aqui está seu crachá de visitante – o segurança
falou,
arremessando pela janela o documento de Dan junto com um cartão de plástico. –
Tenha
um bom dia.
Dan guardou a carteira de motorista e prendeu o crachá de visitante no casaco. O
carro seguiu lentamente pelo caminho de cascalho e parou diante de uma pedra que
bloqueava a entrada da clínica. Dan limpou o suor das mãos na calça jeans e olhou
para
a sra. Sheridan.
– Então aqui estamos – ele murmurou.
– Se precisar de um minuto para se preparar...
– Não – Dan falou. – Vamos lá, sem perder tempo.
O cascalho estalou sob os pés de Dan quando ele desceu e começou a caminhar até
a
clínica. Estremecendo, ele se viu atingido pela mesma sensação que experimentou na
primeira vez em que pisou no Brookline. Não conseguia acreditar que aquilo era um
hospital psiquiátrico de verdade, aonde as pessoas iam se tratar e, em alguns
casos, até se
internar. Talvez ele tenha chegado bem perto disso no último verão. Dan enfiou a
mão no
bolso de sua calça jeans e sentiu a forma familiar de seu potinho de comprimidos.
Era
como uma âncora, um porto seguro. Ele estava fazendo terapia e tomando os remédios
à
risca: não havia motivos para não ter uma vida normal.
Por que Felix não podia fazer o mesmo?
Até parece. Normal. Como se ter pesadelos todas as noites e desenvolver uma
obsessão
por um tio-avô desconhecido fosse normal. E, para completar, seus melhores amigos
estão
recebendo ameaças de morte.
Enquanto caminhava até a porta da frente, Dan olhou para as janelas do primeiro
andar. Um rosto o encarava, e por um segundo ele seria capaz de jurar que era o
diretor
Crawford, com seu sorrisinho presunçoso e tudo. Mas, quando se aproximou um pouco
mais, Dan percebeu que era só um velhinho com olhar bondoso.
Uma enfermeira com calça de uniforme azul e uma blusa de lã grossa os
cumprimentou assim que entraram. Havia mais uma série de portões menores a
atravessar, e a enfermeira pediu a Dan que esvaziasse os bolsos e passasse por um
detector de metal. Ele entregou sua carteira, suas chaves e sua garrafa d’água, e
em
seguida seus remédios, com um gesto apressado, torcendo para que ela não fizesse
nenhum questionamento. A enfermeira apanhou o frasco, guardou em um saco plástico e
escreveu algo em uma etiqueta.
– Você pode pegar de volta quando sair – ela falou.
Mais uma pontada de medo o invadiu, dessa vez ainda mais aguda que a anterior.
Sem
suas coisas, Dan se sentia cada vez menos um visitante e mais um paciente. A
enfermeira, porém, abriu um sorriso e o conduziu para o lado de dentro do portão de
segurança, conversando amigavelmente com ele enquanto isso.
– Vou esperar aqui no saguão – avisou a sra. Sheridan. – Você pode ir sozinho.
Dan deteve o passo.
– Tem certeza? Ele vai querer ver você.
Ela encolheu os ombros miúdos e o encarou com firmeza.
– Não. Ele já se cansou de me ver. Acho que só está interessado em você.
– Você é aquele de quem Felix vive falando? – a enfermeira franziu a testa,
olhando
mais de perto para Dan.
O crachá informava que seu nome era “Grace”.
– Ah, sim, sou eu. A gente se conheceu em um curso no último verão.
– Ele tinha melhorado tanto – ela contou com um suspiro. Eles saíram do saguão,
deixando para trás a sra. Sheridan. – Ninguém vem aqui falar com ele, a não ser os
pais
e um ou outro professor. Ele vai ficar bem feliz por poder falar com um amigo. O
quarto
é por aqui. Você é o Daniel, certo? Ele fala de você o tempo todo.
– Dan – ele corrigiu. – Mas... tudo bem. Ele fala de mim, é? Que coisa. O que
ele fala
sobre mim?
A enfermeira era um pouco mais baixa que ele, e teve que olhar para cima para
encará-lo. Ela se encostou ao batente de uma porta e deu uma risadinha.
– Só coisas boas. Que você sempre o tratou muito bem, e foi o único amigo de
verdade que ele teve na vida.
Dan ficou vermelho. Ele quase nunca pensava em Felix e, quando isso acontecia,
não
era por boas razões. Ele diminuiu o passo e escondeu as mãos nos bolsos ao sentir
que
estavam transpirando outra vez. Talvez pudesse ter vindo antes, ter mostrado alguma
consideração.
A enfermeira Grace tossiu de leve e apontou para a porta com o queixo.
– Está pronto para entrar?
– Claro...
– Existem algumas regras, obviamente – ela falou, sacando seu cartão
operacional. –
Não encoste no paciente e não leve daqui nada que ele tenha lhe dado. Vamos
monitorar
tudo, para o caso de ele ficar muito agitado ou abalado. Preciso de uma confirmação
verbal de que você entendeu as regras.
– Entendido – respondeu Dan.
Ele engoliu em seco. Da última vez em que esteve frente a frente com Felix, foi
na
sala de cirurgia, e havia um bisturi afiado entre eles. Ele ouviu um bipe quando a
enfermeira pôs o cartão na fechadura eletrônica. Com um sibilar de leve em um
clique,
a porta branca e pesada se abriu. Eles entraram em uma pequena antessala com
cadeiras de plástico e uma janelinha voltada para o quarto do paciente. E lá estava
Felix,
sentado do outro lado, vestindo um pijama de flanela branquíssimo com listras
azuis. Suas
mãos estavam cruzadas sobre o colo, descansando sobre um cobertor xadrez. Ele
estava
virado para a janela do quarto, a que era protegida por grades, e seu olhar era
distante.
Não era o Felix todo arrumado e certinho que ele conhecia. Parecia que havia
encolhido, perdido toda a musculatura que ganhou durante o último verão. Toda a
carga
de exercícios que Felix tinha feito naquelas semanas, além de uma dieta rigorosa,
pareciam estar pesando sobre ele agora, ameaçando esmagá-lo contra o chão.
A enfermeira liberou o acesso de Dan por outra porta com fechadura eletrônica
para
entrar no quarto de Felix. Ele escutou a porta ser fechada e trancada atrás de si.
Parecia
que todo o ar do recinto havia sido sugado para fora, deixando-o em uma câmara fria
e
hermeticamente fechada.
Felix não se virou quando ele entrou, mas Dan viu um esboço de sorriso se formar
em
seus lábios.
– Olá, Daniel Crawford – Felix disse calmante. – Estava esperando você.
Havia uma cadeira vazia não muito longe de Felix, perto da janela.
Não era bem uma cela acolchoada, mas também não parecia o quarto de alguém.
Havia um cheiro antisséptico pairando no ar – como o do banheiro da escola de Dan.
O
único objeto com alguma personalidade parecia ser o cobertor dobrado sobre as
pernas
de Felix. Todo o restante era branco ou azul claro.
– Oi – Dan falou, caminhando com passos inseguros até a cadeira. Ele sentou e
começou a remexer os dedos. – A sua, hã... A sua mãe me mandou uma carta. Ela falou
que você queria me ver. Não sei se essa é a palavra certa. Enfim, você estava
perguntando por mim, foi isso que ela disse.
Felix se virou para observá-lo. Não estava mais de óculos, e seu nariz era fino
e reto
como o de sua mãe. Onde estavam os olhos curiosos de Felix? Dan viu apenas o
reflexo
de si mesmo naquele olhar vazio.
Felix se remexeu de leve, como quisesse encolher os ombros.
– Não uso mais óculos, porque eles podem ser quebrados e usados para provocar
algum ferimento em mim mesmo. Estou de lentes de contato.
Dan balançou a cabeça, juntando as mãos e forçando-as a ficar paradas sobre suas
pernas.
– Pessoalmente, acho que cortar a própria carótida com pedaço de plástico
pontudo
seria uma maneira ineficiente e primitiva de se matar, mas me disseram que já
aconteceu antes, então... – Felix bateu com o dedo sob o olho direito. – Segurança
em
primeiro lugar.
– Eles devem saber o que estão fazendo, com certeza.
– Você não me parece muito bem, Daniel – observou Felix, de forma convicta. –
Está
com dificuldade para dormir?
– Pesadelos – explicou Dan. Ele não via motivos para não ser sincero. Dan estava
sofrendo com as consequências do Brookline tanto quanto Felix, por mais que
tentasse
fingir que não. – Mas aposto que disso você já sabe.
Felix balançou a cabeça, olhando de novo pela janela.
– Eu sei, eu sei... Os pesadelos são a pior parte. Eu sonho com todas as
esculturas que
ainda tinha que fazer e, mesmo quando estou no controle da minha mente, ciente de
que
aquele não era eu, esses lapsos ainda me incomodam. Mas sei que me entende. Você
também é especial, como eu. Vê coisas que não deveria. Conhece coisas que não
deveria ter como saber. Como as lembranças de outras pessoas... – ele fez uma
pausa,
ajeitando o cobertor sobre as pernas. – Os médicos daqui estão fazendo o que podem.
Os
impulsos violentos já se foram. Mas os sonhos, a queimação na minha cabeça, isso
nunca
vai passar. Como uma imensa estrela incandescente... Ela continua a queimar quando
meus olhos estão abertos e também quando estão fechados. Está queimando agora
mesmo, enquanto olho para você.
– Como é? Acho que não entendi essa última parte. Mas quer saber? Esqueça.
Sinceramente, cara, eu não sei o que dizer. Pensei que, quando a gente saísse
daquele
lugar, esse pesadelo fosse acabar.
Uma risada seca e breve quase fez Dan cair da cadeira. Ele não esperava que
Felix
fosse rir, ainda mais de forma tão repentina. Em seguida ele ficou em silêncio,
contraindo os lábios.
– Foi muita ingenuidade sua.
– Acho que foi mesmo – admitiu Dan. – Mas existem coisas piores do que ser
ingênuo.
Felix se inclinou para a frente, e com um gesto pediu para que Dan fizesse o
mesmo.
Um cheiro forte de sabonete alcançou suas narinas. Felix sorriu, e os cantos de
seus olhos
se enrugaram. Ele deu outra risada, dessa vez quase de alegria, como se estivesse
prestes
a revelar um segredo.
– Existem mesmo?
– Como assim? – murmurou Dan. Ele olhou para trás, para a janela interna do
quarto.
Felix soltou outra risadinha aguda, estreitando os olhos com força. – Acho que não
foi
uma boa ideia eu vir aqui – acrescentou Dan.
– Está... Agora tá tudo bem. Eu... A estrela ainda está queimando, mas... Sim,
aguento
por mais um tempo.
Felix chegou ainda mais perto, e seu queixo quase roçou no ombro de Dan, que
estava
tão apreensivo que mal notou o objeto caindo sobre sua perna.
– Não deixe que eles vejam – sussurrou Felix. – Cubra com a mão. Pronto. Pronto,
assim está bom. Não deixe que eles tirem isso de você. Se isso acontecer, você
nunca vai
encontrar seu caminho, o que significa problemas sérios para mim. Muito, muito
sérios.
Mais queimação.
– O que é? – Dan apalpou o objeto com a mão.
Um cartão? Uma carta?
– Vá atrás deles, Daniel. Você vai ver. Você vai ver! – Felix se recostou de
novo na
cadeira, cobrindo o rosto com as mãos. Um choro reprimido escapou de seus lábios. –
Perdão, Dan. O que nós fizemos com você... Um horror. Terrível. Não sei se isso
pode
ser desfeito.
– Quê? Você está bem? Está com alguma dor? – Dan olhou freneticamente ao redor
e,
assim como esperava, ouviu o mecanismo da fechadura eletrônica ser acionado. – Acho
que estamos precisando de ajuda aqui.
– Vá atrás deles – Felix murmurou aos prantos por entre os dedos. – Vá atrás
deles,
Daniel! – cada palavra sua parecia estar sendo arrancada sob tortura. – É normal
sentir
medo! – ele gritou. – Eu sinto medo o tempo todo.
A enfermeira Grace se aproximou de Dan por trás, puxando-o pelo ombro.
– Você precisa ir – ela falou, e em seguida se ajoelhou diante de Felix. – Por
favor –
ela pediu quando um ajudante apareceu para acompanhá-lo para fora. – Está na hora
de
você ir.
Dan se afastou com passos vacilantes, ainda observando enquanto Grace tentava
acalmar o histérico Felix, que a agarrou pelos ombros e a abraçou, olhando para Dan
novamente.
– Vá atrás deles, Daniel! Atrás deles! É, está na hora de acordar agora.
Acorde, Felix.
Acorde!
Os gritos de Felix ainda reverberavam dentro de sua cabeça no corredor. Um
enfermeiro o conduziu até o saguão, e Dan o seguiu aos tropeções, escondendo na mão
o
bilhete que Felix havia lhe passado. Ele o enfiou no bolso da blusa assim que
chegaram
ao saguão. A sra. Sheridan se levantou do sofá baixo e desgastado. Dan não disse
nada,
mas o lábio inferior dela começou a tremer.
– Você acha que ajudou? – ela perguntou baixinho.
– Não sei, talvez – respondeu Dan, ficando vermelho com a própria mentira. –
Não,
acho que não. Desculpa.
A sra. Sheridan assentiu com a cabeça, pousando uma mão trêmula em seu ombro.
– Obrigada por tentar.
Sem dizer mais nada, ela se virou e saiu andando na direção do portão de
segurança.
Dan pegou o saco plástico com seus pertences e a seguiu, ainda atordoado.
Quando chegaram ao lado de fora, a enfermeira Grace os alcançou. Ela puxou a
sra.
Sheridan de lado e começou a cochichar algo. Era a chance de Dan examinar o papel
que tinha recebido de Felix.
Ele se virou para a parede, com os nervos tinindo de adrenalina e medo ao
enfiar a
mão no bolso e retirar o bilhete.
Não era um bilhete – era uma imagem impressa em papel fotográfico. Rostos em
preto e branco o encaravam, vazios – dois meninos na frente de uma espécie de
circo.
Era a confirmação de que ele precisava: as imagens recebidas por Abby e Jordan
tinham ligação umas com as outras. A foto em suas mãos era o elo entre as duas.
– Que diabo é isso? – Dan resmungou.
Ele virou a foto e encontrou uma série de números rabiscados no verso. A voz de
Felix
ecoou em sua cabeça.
Vá atrás deles, Daniel. Você vai ver. Você vai ver!
– Ir atrás de quem? – ele questionou a si mesmo. – E onde?
Sob os números ele encontrou as palavras: ainda não. Ele imaginou a sua foto
alinhada
com as de Jordan e Abby, e se deu conta de que só depois de juntar os três pedaços
a
mensagem estava completa. Felix deve ter mandado as fotos para eles também. Ou
então estava contando com a ajuda de alguém.
Os pelos da nuca de Dan se arrepiaram quando ele completou mentalmente a frase:
Para vocês ainda não é o fim.
Dan olhou para seus amigos, que piscavam os olhos em duas janelas diferentes em seu
monitor, temporariamente mudos diante das webcams. Abby prendeu uma mecha de
cabelos pretos atrás da orelha, exibindo o pulso fino manchado de tinta.
– Coitado do Felix – murmurou ela. Havia um atraso de meio segundo entre o som
de
sua voz e o movimento de sua boca. Em uma conversa normal, Dan acharia isso
engraçado. – Pensei que ele já tivesse melhorado pelo menos um pouco.
– Ah, não – interrompeu Jordan, balançando os cabelos cacheados. Ele tirou os
óculos
de aro grosso e limpou as lentes na camiseta. – No caso daquele ali eu não esperava
muito. Ele tentou matar a gente, Abby. E agora essas fotos? Sinceramente, acho que
era
até melhor quando a mensagem dizia “Para vocês é o fim”.
– Para mim parece que ele ainda está perturbado com o que fez. Você ouviu o que
o
Dan falou... Felix quer ser perdoado. Mesmo se ainda estiver... Mesmo se ainda não
tiver
melhorado, parece que está arrependido, pelo menos em parte – ela bocejou, chegando
mais perto da câmera, revelando suas olheiras. – Pode se fazer de cínico o quanto
quiser,
Jordan, mas duvido que esteja dormindo normalmente.
– Não mesmo, minhas notas de Cálculo estão altíssimas. Quem diria que a insônia
podia ajudar tanto nos estudos? – ele soltou uma risadinha forçada. – Escute só,
Dan,
estou dando uma olhada nesses números, mas não estou entendendo muita coisa. Parece
que o Felix pirou de vez. Acho melhor esquecer que a gente conheceu o cara e virar
a
página. Vamos queimar essas fotos e nunca mais falar sobre isso de novo.
– Você não estava lá para ver – insistiu Dan. – Ele não estava só desesperado...
Parecia quase... possuído.
O que nós fizemos com você... Um horror. Terrível. Não sei se isso pode ser
desfeito.
Dan sentiu um frio na barriga. O que Felix não sabia se poderia ser desfeito?
– Não gosto nem de pensar nessa palavra associada àquele maníaco – murmurou
Jordan. A câmera capturou seus cabelos cheios quando ele olhou para baixo. Pelo
microfone, ele ouviu o som de uma caneta riscando o papel. – Minha nossa, preciso
dormir um pouco. Esses números idiotas ficam se misturando o tempo todo – ele
comentou com um suspiro. – Mas eu juro que esse padrão me parece familiar. É como
se estivesse na ponta da língua... Isso é muito frustrante.
– Você consegue, Jordan – falou Abby, se empertigando toda em sua janela de
vídeo.
– Se existe alguém capaz de fazer isso é você.
– Sei lá – respondeu.
Parecia mesmo exausto.
– Vamos recomeçar do zero – sugeriu Dan. – Você disse que deve ser uma espécie
de
código, certo? Estamos falando do Felix. Ele é louco, sem dúvida nenhuma, mas nem
por
isso deixa de ser inteligente. Um gênio. Com certeza só iria passar um código
sabendo
que a gente ia conseguir decifrar.
– Já nem sei mais se é um código – respondeu Jordan. – Tem uns agrupamentos, mas
bem poucos. A maneira como estão colocados parece intencional, mas...
Dan tinha certeza de que Jordan saberia o que fazer com aqueles números. O
garoto
conseguia resolver um sudoku nível mestre com os olhos fechados, e tirava dez nas
provas de Cálculo que deixavam Dan de cabelos em pé. Se Jordan não conseguisse
resolver o quebra-cabeça, voltariam à estaca zero.
– Mas o quê? – perguntou Abby.
Ela estreitou os olhos para a câmera. Dan havia mandado para os dois uma cópia
dos
números no verso da foto de Felix, e da imagem da frente também.
– Mas eu não sei. Às vezes essas coisas são bem complexas. Não é tipo A é igual
a
um, B é igual a dois – explicou. – Talvez nem dê para descobrir só com esses dados.
Às
vezes não dá para decifrar sem a chave...
– Vocês ouviram isso? – Abby sussurrou de repente, olhando por cima do ombro
para
o quarto escuro atrás de si.
– O quê? – questionou Jordan, distraído.
– Essa voz – os olhos dela se arregalaram, e ela se encolheu na cadeira. – Vocês
não
ouviram mesmo? – questionou.
Dan aproximou o seu rosto da tela, franzindo a testa de preocupação.
– O que você ouviu? Abby, você está bem? Eu não ouvi nada – não mesmo. – E você,
Jordan?
– Não...
Abby virou a cabeça para o lado com toda a força.
– De novo!
Dan estava começando a ficar preocupado. Ele não ouviu nada além do batucar
nervoso da caneta de Jordan na mesa.
– Não ouvi nada mesmo, Ab.
Ela piscou com força, estremecendo um pouco na janelinha na tela de Dan.
– Parecia até... Deixa pra lá.
– O quê? – insistiu Dan .
– Nada, é besteira – ela respondeu, envergonhada. – Esquece.
– Abby. Parecia até o quê?
Ela desviou os olhos da câmera.
– Minha tia Lucy.
Os três ficaram mudos por um instante. Quatro meses atrás, quando eles se
conheceram, Dan se sentiria tentado a fazer uma piadinha para preencher o silêncio.
Mas ouvir vozes não tinha nada de engraçado depois do verão que tiveram, e Abby não
era do tipo que se assustava facilmente.
– Isso já aconteceu antes? – Dan quis saber.
– Uma ou duas vezes, talvez – respondeu Abby, olhando para baixo. – Talvez
mais.
Desde que a gente veio embora... Sei lá. Eu escuto a voz dela às vezes.
Sussurrando.
– Abby – ele começou a dizer, sentindo um nó no estômago –, isso não é...
– Já sei!
Dan e Abby tiveram um sobressalto com o grito repentino de Jordan.
– Já sei – ele gritou de novo. – Quer dizer, não exatamente, mas acho que já
sei o que
precisamos fazer.
Dan ainda estava com a cabeça voltada para a possibilidade de Abby estar
sofrendo
de alucinações com vozes misteriosas. Essa provavelmente era uma ocasião em que um
namorado de verdade ofereceria um abraço, ou pelo menos ficaria ao lado dela até
que
se acalmasse. Distância idiota. Webcam idiota.
– Então conta – Dan pediu, desviando sua atenção de Abby. – O que a gente
precisa
fazer?
– Felix disse para ir atrás deles, certo? – começou Jordan, falando rápido,
todo
empolgado. Tap-tap-tap-tap. Jordan estava digitando de forma tão acelerada e
ruidosa
que Dan quase não conseguia ouvir sua voz. – Eu não vi logo de cara por causa do
que
está faltando. Olhem para as fotos de novo, para as três, a minha, depois a do Dan,
e
depois a da Abby.
Dan pegou a foto de cima da mesa e a posicionou sobre o monitor, alinhando-o
com
as imagens que seus amigos receberam. Juntas, elas formavam um panorama completo,
com uma tenda de circo e um estranho grupo de pessoas posando para a câmera. O que
um parque de diversões itinerante tinha a ver com o código?
– Estão vendo? – gritou Jordan. – Bem ali, atrás da tenda e da roda-gigante.
Viram?
– O quê? – Abby perguntou. – Um borrão na imagem e, sei lá, um telhado? Não dá
para ver direito...
Dan já havia examinado aquelas fotos dezenas de vezes desde que voltou para
casa,
mas mesmo assim tentou observar tudo com novos olhos. Abby estava certa, parecia um
telhado, bem alto e inclinado.
– Um campanário?
– Não – respondeu Jordan. – Deem uma olhada nessa imagem que estou mandando.
A janela de novas mensagens piscou, e Dan abriu a imagem enviada por Jordan.
Era
quase impossível descrever a sensação de empolgação e medo que o atingiu como um
murro na garganta. Ele mal conseguia respirar.
Ângulos retos, a cor clara emoldurada por detalhes escuros, caindo aos
pedaços...
– O Brookline – murmurou, com os olhos a poucos centímetros da tela. – É o
campus.
Esse parque de diversões... está no gramado na frente do Pavilhão Wilfurd.
– Como eu vi que o lugar parecia familiar, olhei no site da faculdade e voilà!
Não é
fácil de ver nessa resolução, mas com certeza é o Brookline – explicou Jordan.
– Bela sacada – comentou Abby.
– Obrigado, muito obrigado. Estou à disposição.
– Certo – falou Dan, se recostando na cadeira. Ele apoiou o polegar nos lábios
e
começou a pensar, com o olhar alternando entre a imagem colorida na tela e a foto
em
preto e branco sobre a mesa. – Certo, então é o Brookline. E o campus. E os
números, o
que são?
– São coordenadas – respondeu Jordan, com a voz aguda de empolgação enquanto
digitava. – Não fazem sentido sem os indicadores cardinais, mas dei uma olhada nas
coordenadas de Camford e faz sentido. É aquela região mesmo. Se colocarem cada
coisa no lugar certo, vocês vão entender o que estou dizendo.
– Vai devagar, Jordan, nem todo mundo aqui é um gênio incompreendido – provocou
Dan.
– Não, eu entendi o que ele está dizendo – falou Abby, tão empolgada quanto
Jordan.
Dan não compartilhava do entusiasmo dos dois, pelo menos não ainda.
– Tipo assim – falou Jordan, e uma nova mensagem apareceu.
43º12’24” N 71º32’17” O
– Minha nossa. Esquece a parte do incompreendido, você é um gênio mesmo.
– Ah, e isso não é tudo. Com coordenadas tão precisas assim, podemos saber
exatamente de que lugar estamos falando. Em cinco minutos no Google Maps eu consigo
uma lista de endereços.
Então pelo menos a primeira metade do mistério estava resolvida. Eram
coordenadas.
Para vocês ainda não é o fim. Estava na cara que Felix tinha entregado para eles um
mapa.
– Dan? Que foi? – perguntou Abby. Ela olhou para a imagem dele na tela,
franzindo a
testa de preocupação. – Você está tão quieto.
– Só estou pensando.
– Para variar – Abby rebateu com um sorriso. – Anda, fala logo.
– Não é um pensamento muito positivo – ele avisou.
– Pensamento positivo? Dan, com tanto estresse e falta de sono, eu nem sei mais
o que
é um pensamento positivo. Com essas cartas e os estudos ocupando minha cabeça, eu
vou acabar no manicômio – ela tossiu, estreitando os olhos. – Desculpa. Não foi o
que eu
quis dizer.
– Mas foi uma boa sugestão, na verdade.
– Ai, ai. Lá vamos nós – disse Jordan.
– É que... Quando Felix me disse para “ir atrás” deles foi... sei lá. Parecia
um pedido
de ajuda. Pensei que sair do Brookline fosse ajudar, mas pelo jeito não foi bem
assim,
certo? Ainda estamos abalados, e talvez a única forma de seguir em frente seja
voltando
para trás. “Para vocês ainda não é o fim”... era isso que estava escrito nas fotos,
né?
Então, talvez ainda não seja mesmo.
– Era bem isso que eu temia que você dissesse – respondeu Abby, comprimindo os
lábios.
Sua palidez pela privação de sono não combinava em nada com as cores vibrantes
que decoravam o quarto atrás dela.
– Mas também não ficou surpresa – acrescentou Jordan. Abby olhou feio para ele.
–
Que foi? Agora não é hora para se preocupar com sentimentos e esse tipo de bobagem.
Aliás, já decifrei as coordenadas. Segundo a minha pesquisa, o primeiro endereço é
rua
Ellis, 1020. O segundo é rua Virgil, 1311. Depois rua Blake, 920 e por último rua
Concord,
1319. Todos eles, grande surpresa, ficam pertíssimo do campus.
– E então, o que vai ser? – questionou Dan, fazendo de tudo para tentar esconder
a
empolgação na voz. – Vamos esquecer o que aconteceu hoje e torcer para que tudo
isso
acabe logo ou vamos ver o que tem atrás da porta número dois?
– A porta número dois é o lugar onde quase mataram a gente – falou Abby. – Não
sei,
não, Dan. Qual é o plano, voltar para lá com alguns endereços no bolso, bater na
porta
das pessoas e dizer: “Com licença, um conhecido meu meio psicopata me mandou vir
aqui, mas eu nem sei por quê”? – Abby respirou fundo. – Sem querer ofender, eu
simplesmente não estou entendendo.
Pela primeira vez, Jordan não tinha nenhum comentário ácido a fazer. Ele estava
apenas esperando pela resposta de Dan, que por sua vez já tinha pensado em tudo. Na
verdade, ele tinha muito a agradecer a Sandy pela sugestão de conhecer outras
universidades.
– Que tal uma turnê de fim de semana como alunos interessados em conhecer a
faculdade?
No sonho, Dan conseguiu até sentir o calor das chamas que surgiram diante de seu
rosto.
Ele começou a transpirar, e abaixou quando o jato de fogo saiu da boca do cuspidor.
Em
seguida, se virou e olhou feio para o homem – ele não tinha visto que Dan estava
lá? Mas
o homem só deu risada, limpando o combustível dos lábios e batendo na própria coxa.
O
parque inteiro começou a oscilar, e o chão se movia sob os pés de Dan. Ficar bêbado
deve ser mais ou menos assim, ele pensou, andando sem rumo por entre as barracas.
Não, sem rumo não... Havia algo guiando seus passos. Ele não sabia para onde
estava
indo, mas sabia que precisava chegar lá. Respostas. Respostas para perguntas que só
agora ele tinha coragem de fazer. E se Dan fosse capaz de obrigar sua família a
fazer
tudo o que ele quisesse? E se o controle da mente não envolvesse magia, e sim
ciência?
Ele estava chegando mais perto, porém se viu quase incapaz de se sustentar sobre
os
dois pés quando ultrapassou a última fileira de barracas e se aproximou de um palco
caindo aos pedaços. Em sua mão suada, Dan segurava um pedaço de papel cartão com a
inscrição “Um Ingresso”. O velho o esperava em cima do palco, atento, paciente. Não
parecia ser grande coisa, mas as aparências podiam ser enganadoras...
Um ruído forte fez seu campo de visão ficar borrado, e o sonho se desfez.
Dan se sentou na cama, um pouco tonto. O barulho continuou mesmo depois do fim
do sonho, e ele tateou com as mãos à procura do celular no criado-mudo. Nisso,
acabou
derrubando o frasco de remédio, que ele deixou aberto depois de tomar um comprimido
para conseguir pegar no sono.
Abrindo os olhos exaustos, ele encontrou o celular ao lado do frasco virado e
rolou na
cama, aproximando a tela do rosto.
Missy havia mandado uma mensagem.
Dan soltou um grunhido e pôs o celular de volta no móvel. Ele poderia pelo menos
ter
mandado uma mensagem de feliz aniversário, mas nem se lembrou disso. Cansado
demais para responder, Dan se cobriu outra vez e tentou voltar a dormir.
Um pensamento o manteve acordado e, pelo menos dessa vez, não era nada ruim: em
breve ele não teria mais que se preocupar com Missy e Tariq. Ele estaria com Abby e
Jordan, seus verdadeiros amigos.
A garoa fina molhava seus cabelos, e Dan os repartiu e os penteou com os dedos
outra
vez. Estava de pé na calçada, inquieto, com frio e ansioso, batucando nas coxas com
as
mãos dentro dos bolsos da calça. Os carros passavam por ele, fazendo o barulho
característico dos pneus contra o chão molhado.
Por fim, chegou outro ônibus, com os freios assobiando, e ele viu o rosto
reluzente de
Abby o encarando lá de dentro.
Ele acenou, ajeitando a mochila pesada com o notebook sobre o ombro. Mesmo
depois de ter verificado três vezes se havia levado todos os remédios, ele ainda
deu mais
uma olhada na mochila, quase como um tique nervoso.
Assim como da primeira vez em que vieram ao New Hampshire College, Jordan e
Abby pegaram o mesmo ônibus. O cheiro de diesel queimado chegou até Dan,
misturado com o aroma de terra molhada que subia do chão. Ele enfiou as mãos nos
bolsos da jaqueta e bateu com os pés no chão para se esquentar. Estava mais frio
ali do
que em sua cidade, um clima de inverno, apesar de ainda estarem em outubro.
Filamentos de chuva ainda escorriam pelas árvores geladas, pelos galhos e pelas
rachaduras na calçada. A um quarteirão do ponto de ônibus, as lojas da cidade
haviam
pendurado lanternas de abóbora e luzes roxas para comemorar o Dia das Bruxas.
Uma camada de névoa descia do campus, localizado no alto do morro, encobrindo a
cidade com uma espécie de brilho leitoso.
– Oi – cumprimentou Dan. – Finalmente vocês chegaram.
Abby foi a primeira a descer do ônibus, e ele foi ajudá--la com a bagagem. Ela
estava usando um sobretudo amarelo com um enfeite feito de penas de pavão preso na
lapela e uma touca de lã. Em algum momento depois da última vez em que se viram,
ela
havia pintado de azul uma mecha dos cabelos. Eles se abraçaram, e Dan a beijou de
leve
no rosto.
– Que bom ver você de novo – ela falou, ficando vermelha. – Vamos pegar as
coisas
do Jordan também.
Ela se virou para ajudar Jordan, que estava vestindo roupas escuras e
estilosas, como
sempre: jaqueta de couro, calça jeans apertada e meias aparecendo um pouco acima
das botas, que iam até os tornozelos.
Dan tinha se esquecido do quanto parecia convencional na presença deles. E
também
notou a presença de pedaços de papel saindo dos bolsos da jaqueta de Jordan.
– O que é isso, estavam jogando forca? – Dan perguntou.
– Isso aqui? – Jordan puxou um dos papéis pela beirada. – Foi só para passar o
tempo.
Pelo que Dan pôde ver, o que Jordan fez “só para passar o tempo” incluía
centenas de
linhas de cálculos matemáticos. Ele se perguntou como seria ter uma mente genial
como
a de Jordan. Depois de esperar a partida do ônibus, eles atravessaram a rua e
pegaram o
caminho que levava ao campus.
– Como foi a viagem? – perguntou Dan, aproximando-se o máximo possível de Abby
sem tropeçar nela. – Não para de chover desde que eu desci do avião.
– O Jordan não parou de falar sobre o cara que vai ser o monitor dele –
respondeu
Abby. – Ficou vasculhando o perfil dele no Facebook. É todo rico, atlético e
bonitão.
Dan soltou uma risadinha tensa.
– E provavelmente muito hétero, para a decepção ser maior – acrescentou Jordan.
– Duvido que teremos muito tempo para falar com ele, de qualquer forma –
apontou
Dan. – Nós temos uma missão a cumprir – ele tentou falar como se fosse uma
brincadeira, mas nem Jordan nem Abby deram risada. – Além disso, esse pessoal não
vai querer ficar dando muita atenção para um bando de alunos de colégio como nós.
– Pois é – Jordan jogou os cabelos para o lado e olhou torto para Abby. – Vamos
torcer para eles não prestarem muita atenção nos garotos intrometidos da turma do
Scooby -Doo.
– Não lembrava que esta ladeira era inclinada desse jeito – comentou Abby,
ofegante.
– Cara, no inverno deve fazer muito frio aqui.
A cada passo que eles davam na direção da faculdade, Dan sentia sua respiração
se
acelerar e seu estado de espírito se agravar. Uma coisa era falar em voltar até lá
– estar
ali de corpo presente era bem outra. Felix, possuído ou inspirado pelo Escultor,
tinha
tentado matá-
-los. Dan havia visto um cadáver de verdade. Porém, por mais apreensivo que aquele
lugar o deixasse, era como se alguém tivesse instalado um ímã em seu peito – ele se
sentia atraído pelo Brookline e seus segredos ainda não revelados.
Um zumbido em seu bolso interrompeu seus pensamentos. Ele sacou seu celular e
viu
que tinha recebido uma mensagem de Sandy.
Dan mordeu a parte interior da bochecha, batucando com o dedo na tela uma
resposta
vaga, mas tranquilizadora.
– Casa do Jordan? – o próprio Jordan perguntou, espiando o celular de Dan por
cima
de seu ombro enquanto ele respondia. – O que você falou para os seus pais sobre o
fim
de semana?
– Não exatamente a verdade, para ser bem sincero – ele não se sentia bem
mentindo
para sua mãe, mas também não era uma coisa muito difícil. – Falei que você ia
conhecer o campus de Georgetown, e disse que queria ir junto. E depois foi só mudar
o
voo usando o cartão de crédito que tenho para emergências.
– Pelo menos não sou eu que estou escondendo meu paradeiro desta vez – Jordan
falou com um sorriso malicioso. – E tenho certeza de que vamos nos divertir muito
em
Georgetown. Mas, falando sério, Dan, se precisar de ajuda para pagar a fatura do
cartão
de crédito é só me avisar.
– Você deveria ter falado a verdade – repreendeu Abby.
– Mas assim eu não estaria aqui com vocês. Meus pais não querem me ver nem
perto
deste lugar. – E talvez com razão.
Quando chegaram ao alto do morro, Dan deteve o passo de forma abrupta,
atordoado
como se tivesse levado um soco no estômago e perdido o pouco do ar que restava em
seus pulmões.
É igualzinho, ele pensou, olhando estupefato para o mar de barracas armadas no
gramado da área central do campus. É tudo igualzinho ao meu sonho. Ou melhor, ao
sonho do diretor. E, o mais alarmante: era tudo como nas fotos misteriosas que
receberam.
Ele tirou a foto do bolso do casaco e a ergueu para que todos vissem. Jordan e
Abby
fizeram o mesmo, e se alinharam para formar a imagem completa.
– Existe alguma coisa mais forte que um déjà vu? – murmurou Jordan.
– Isso que estamos vendo agora – respondeu Abby.
As barracas do parque de diversões só eram visíveis através dos espaços entre
os
prédios de tijolos. Do local onde estavam, só podiam ver as lonas listradas em tons
de
laranja, roxo e preto. Dan se preparou para sentir o cheiro do combustível queimado
e
ver o cuspidor de fogo de seu sonho, além do homem em cima do palco... Mas os
únicos
cheiros que detectou foram o da lama em seus sapatos e o de uma comida impossível
de
identificar, mas que sempre parecia pairar pelo campus.
Dan enfiou a foto de volta no bolso do casaco.
– Eu não esperava um parque de diversões – comentou Abby. – Vocês acham que é
para os candidatos que estão vindo visitar?
– No panfleto que eles mandaram não diz nada sobre isso – respondeu Jordan,
assumindo a frente enquanto eles entravam no campus. Havia árvores altas em ambos
os
lados do caminho, com folhas caídas e úmidas se espalhando pelo chão. – Eles não
iam
deixar de divulgar uma coisa dessas, né?
Dan não sabia, pois nem tinha se dado ao trabalho de ler o panfleto. Aquele
material
era para candidatos realmente interessados em ingressar na faculdade.
– Pelo menos pessoalmente é tudo vinte por cento menos assustador do que nas
fotos –
murmurou Jordan. – Alguém consegue me explicar por que toda foto antiga parece ter
sido tirada com o filtro Macabro do Instagram?
– Parece que não tem nenhum brinquedo montado – comentou Abby, estreitando os
olhos na direção das barracas.
– É mesmo. – Jordan encolheu os ombros. – Não estou vendo a roda-gigante... Que
besteira montar um parque sem brinquedos. Mas parece que vamos ter que ir de
qualquer jeito. Pode ter alguma pista importante por lá, Dan.
– Se a gente tiver tempo – Dan falou, preferindo ignorar o sarcasmo de Jordan. –
E só
depois de termos ido a todos aqueles endereços. E pode ser que nem dê tempo de
fazer
isso sem a gente se separar – nesse momento, ele se deu conta de que nenhum de seus
amigos estava respondendo ao que dizia. Estavam ambos olhando para o chão. – Não é
que eu queira ser o desmancha-prazeres – Dan justificou. – Mas nós estamos aqui por
um motivo.
– Estamos aqui para descobrir por que estamos tendo pesadelos e ouvindo vozes.
Estamos aqui para virar essa página e seguir com a nossa vida – Jordan fechou a
jaqueta
por causa do vento. – Isso pode ou não incluir a caça ao tesouro inventada pelo
Felix,
Dan. Você precisa considerar a hipótese de que o garoto é maluco, e que nessas
casas
não tenha nada muito assustador além de eleitores do Partido Republicano.
– Você acha que o Felix juntou um monte de endereços aleatórios só para tirar
uma
da nossa cara? Sem chance – retrucou Dan, cheio de convicção. – Acho que o que quer
que tenha... possuído Felix... foi quem passou essas coordenadas. Está tudo
interligado. Dá
para sentir isso.
– Ah, é? Você está entrando em contato com o diretor do além agora?
– Jordan, isso não tem graça – repreendeu Abby, dando um cutucão de leve nele
com
o cotovelo.
– É verdade. Que merda. Desculpa, é que... voltar para este lugar... Eu sabia
que ia ser
esquisito, mas não tanto assim. E essas barracas também não estão ajudando em nada.
Dan sabia bem do que Jordan estava falando. Os três ficaram em silêncio enquanto
andavam pelo caminho que ligava os prédios acadêmicos às fraternidades. Eles
deveriam encontrar seus anfitriões no prédio da admissão, que ficava do outro lado
do
campus e contava com um caminho separado para os carros dos pais que vinham trazer
seus filhos. Ao que parecia, Dan, Jordan e Abby eram os únicos estudantes que
tinham
vindo a pé.
No caminho, eles passaram por um pequeno cemitério, cujo acesso era barrado por
um portão. Dan não reparou muito naquele lugar no verão, já que se tratava apenas
de
um caminho de grama bem aparada com túmulos aleatoriamente distribuídos ao redor.
Algumas lápides eram tão antigas que pareciam apenas escombros. Mas, daquela vez,
um brilho avermelhado intenso em um dos túmulos mais novos chamou sua atenção. A
princípio ele pensou que se tratava de um buquê de flores qualquer, porém, olhando
mais
atentamente, percebeu que pareciam rosas vermelhas arranjadas de modo a parecerem
um crânio.
Uma fina camada de névoa pairava sobre o chão do cemitério.
– Que coisa mais esquisita – murmurou, mais para si mesmo do que para alguém
ouvir.
Jordan seguiu seu olhar.
– Pois é. Quanto bom gosto. Minha nossa. Por que não colocar uma seta de neon e
um
letreiro dizendo: “Ei, vejam só! Um cadáver!”?
Abby parou para olhar, e Dan esbarrou de leve em suas costas.
– Ah, desculpa – falou, distraída. – É que, olhando bem, parece até uma
oferenda.
– Hã? – Jordan e Dan perguntaram ao mesmo tempo.
– Uma coisa para o Dia dos Mortos – Abby explicou. Ela se aproximou do portão
do
cemitério e se inclinou para a frente, observando melhor o arranjo de flores. – Uma
oferenda.
– Você ficar repetindo várias vezes a mesma coisa não explica nada – reclamou
Jordan.
– Tudo bem – ela revirou os olhos de leve e apontou para as flores na lápide. –
Basicamente, a ideia é colocar flores no túmulo dos entes queridos. Em geral as
pessoas
costumam trazer calêndulas, mas as caveiras fazem parte da tradição mexicana do Dia
dos Mortos, então alguém deve ter resolvido combinar as duas coisas. Eu nunca vi um
arranjo como esse.
– Talvez tenha sido ele que deixou – comentou Jordan, apontando com o queixo
para
um universitário grandalhão deitado todo encolhido junto à grade do cemitério.
Ao lado de sua cabeça havia uma garrafa de rum vazia. Alguém havia rabiscado
seu
rosto com caneta marca-texto.
– Cara, pelo jeito esse aí acabou de ter a pior ou a melhor noite da vida –
comentou
Dan.
– Ugh. Credo. Eu não entendo esse tipo de coisa – falou Jordan. Sua mala criava
rastros estreitos e molhados no caminho quando voltaram a andar na direção do
Pavilhão
Wilfurd, deixando para trás o garoto da fraternidade e seus roncos. – Por que eu ia
pagar
para morar com um bando de atletas bombados se eles vão me deixar bêbado, escrever
na minha cara e me largar desmaiado em um cemitério? Como assim?
Eles chegaram ao Pavilhão Wilfurd bem a tempo – uma chuva leve começou a cair,
e a umidade fez as lembranças do verão ganharem força na mente de Dan. Outros
candidatos estavam espalhados pelo gramado do lado de fora, buscando a orientação
dos
alunos do NHC, que vestiam camisetas cor de laranja.
– Sei lá – respondeu Dan. – Eu meio que entendo o apelo de uma fraternidade.
Todo
mundo quer fazer parte de alguma coisa.
– Sim, mas pagar para fazer parte de uma turma? – ironizou Jordan.
– É melhor a gente se apressar – falou Abby. – Parece que a maioria do pessoal
já
deixou as coisas lá dentro.
– É verdade, a gente precisa se misturar – reforçou Dan, indo com Abby e Jordan
na
direção dos alunos de colégio que se aglomeravam para entrar no Wilfurd.
Dan sentiu um frio na barriga ao notar a quantidade de universitários
mobilizada para
recebê-los.
Ele segurou firme sua mochila, olhando com desconfiança, e até com irritação,
para
os candidatos ao seu redor, que conversavam animadamente. Durante o verão, fazer
novas amizades havia sido uma de suas prioridades. Dessa vez, ele faria tudo o que
estivesse ao seu alcance para evitar isso.
– Não precisa se preocupar com a sua amiga.
– Hã? – Dan nem percebeu que estava olhando para Abby, mas pelo jeito estava.
Ela
estava com sua monitora, e as duas estavam rindo e conversando como velhas
conhecidas. Abby tinha esse dom de deixar as pessoas à vontade. Dan se esforçou
para
ouvir do que elas estavam rindo. – Ah, eu não estou, não.
– Sério? – Micah, o seu monitor, ergueu as sobrancelhas grossas e escuras e deu
um
tapinha no ombro de Dan. – Porque está parecendo que sim.
– Nós meio que, hã, estamos tendo um lance, é isso – Dan explicou.
Ele e os outros candidatos estavam sendo conduzidos dos prédios acadêmicos do
campus para a rua onde ficavam os alojamentos. Acompanhados dos respectivos
veteranos, a maioria dos novos alunos em potencial parecia mais interessada, acima
de
tudo, em conhecer pessoas, e isso valia também para Abby.
– Oi – Dan gritou, acenando para ela.
Alguns passos à frente, ela sorriu e acenou rapidamente.
– Quem é? – ele ouviu a monitora dela perguntar.
A resposta de Abby foi baixa demais para ser ouvida.
– Acho que a sua garota está ocupada – Micah comentou delicadamente. – Não
esquenta, cara, depois você fala com ela. Vocês estudam na mesma escola?
– Não exatamente – Dan respondeu. – Na verdade não. Nos conhecemos aqui
mesmo, no curso preparatório de verão.
– Sério? Uau, isso é ótimo. Então vocês estão tão ansiosos para estudar no NHC
que
até voltaram?
Ele deu uma risadinha, e até seu riso parecia ter um sotaque sulista. Dan quase
chegou
a pensar que seu monitor estivesse exagerando no entusiasmo para fazer graça ou
coisa
do tipo, mas Micah não lhe pareceu ser do tipo irônico.
– Nós conhecemos o Jordan aqui também – explicou Dan, apontando para Jordan e
tentando fazê-lo entrar na conversa. Jordan não parecia ter gostado muito de seu
monitor,
Cal, apesar de sua boa aparência. Cal era o único que estava falando, enquanto
Jordan
permanecia em silêncio. – Nós três meio que ficamos inseparáveis – contou Dan,
incapaz de esconder uma pontada de orgulho na voz.
– Vocês estão inclinados a se candidatar? Não quero parecer intrometido, mas,
como
sou estagiário do departamento de matrículas, esse tipo de pergunta acaba saindo
naturalmente – falou Micah.
Eles estavam passando pelas fraternidades. Dan se perguntou se alguma delas
estaria
interessada em um novo membro.
Em seguida ele voltou sua atenção para Micah, ainda sem saber se seu monitor
estava
ou não zombando dele. Quem dizia coisas como “estão inclinados a se candidatar” em
uma conversa normal, aliás? Bom, talvez Micah fosse assim mesmo, com seus óculos
moderninhos e seu cavanhaque, que ele alisava toda vez que falava alguma coisa.
– Talvez. Eu gosto de História e Psicologia. Jung, sabe? Pois é, ele mesmo, mas
também tenho outros interesses. Preciso ver se o NHC é uma boa escolha para mim.
– Sugiro que você converse com a professora Rey es, do Departamento de
Psicologia.
Ela está conduzindo uma atividade com os veteranos em um manicômio desativado que
fica no campus, mas amanhã tenho aula de Psicologia II com ela. Posso perguntar se
você pode acompanhar uma sessão como visitante – ofereceu Micah.
Dan tentou pensar em algo para dizer, mas sua mente estava sem reação.
– O nome do manicômio é Brookline, mas você deve ter lido a respeito quando
veio
aqui no verão – seu monitor continuou, todo amigável.
– É – confirmou Dan. – Eu li a respeito.
– Droga – Micah estalou os dedos para o monitor ao seu lado, um garoto baixinho
de
cabelos ruivos. – Já temos gente se dispersando. Vai buscar aquela candidata antes
que os
carinhas da fraternidade ponham as mãos nela.
O ruivo reagiu sem questionamento, se afastando do grupo e correndo até uma
menina que conversava com um grupo de universitários na calçada.
– Vocês não podem andar soltos por aí – explicou Micah. – Principalmente em
festas
de fraternidade. Essas coisas saem do controle bem depressa. Nós reclamamos com o
novo reitor sobre as festas, fizemos até um abaixo-assinado. Acho que algumas casas
vão
ser proibidas de realizar eventos.
– “Nós” quem? – questionou Dan, percorrendo com os olhos os gramados de algumas
casas, em especial os que estavam cobertos de lixo.
– As pessoas de bom senso – Micah respondeu sem rodeios. – Você ia entender do
que
eu estou falando se estudasse aqui.
– Acho que sim – respondeu Dan. Ele apontou com o polegar para o lugar por onde
tinha vindo. – Vimos um cara desmaiado na frente do cemitério. Ele não parecia nada
bem.
– Esses babacas da Sig Tau não sabem beber. Desculpe o meu linguajar. É que eu
não
gosto desses caras. Estão sempre dando altas festas, e sempre alguém acaba em coma
alcoólico. É uma desgraça. Como eu disse, nós não vamos deixar isso acontecer este
ano
– Micah fez um gesto para o mesmo ruivo que foi buscar a candidata desgarrada.
Ofegante, o garoto o acompanhou enquanto atravessavam o campus. – O Dan aqui falou
que tem um candidato a membro da Sig Tau desmaiado na frente do cemitério. Manda
alguém resolver isso, certo?
– Claro – respondeu o garoto, balançando a cabeça vigorosamente. – Assim que
nós...
– Não, Jimmy. Agora. Estamos cheios de candidatos aqui, precisamos dar um bom
exemplo. Não quero que eles pensem que o campus está cheio de bêbados idiotas.
Jimmy fez que sim com a cabeça com tanta força que Dan ouviu seu pescoço
estalar.
– Uau – comentou Dan, vendo Jimmy se afastar do grupo. – Você é tipo o chefe dos
monitores?
– Quem, eu? – Micah deu risada, jogando a cabeça para trás. – Não, não... Nós
gostamos de manter as coisas em ordem, só isso.
Para Dan, não parecia só isso, mas, como sua intenção era passar despercebido, e
não
atrair atenção, ele se limitou a um aceno educado com a cabeça.
– Oi! – Abby segurou o passo para andar ao lado dele, junto com sua monitora. –
Essa
é a Lara. Lara, esse é o Dan. Ela estava me contando sobre a instalação artística
que vai
fazer neste semestre.
– Ah, que legal – Dan estendeu a mão na frente de Abby para cumprimentar a
garota. Ela era baixinha, chegava apenas ao ombro de Abby, e seus cabelos escuros e
grossos revoavam ao vento, emoldurando seu rosto. – Prazer em conhecê-la, Lara.
– Sério mesmo. Estou ansiosa para ver a instalação dela – Abby continuou. – É
uma
sala multimídia com esculturas, música e performances ao vivo. Ela vai me levar
para
ver amanhã!
– Na verdade, é uma crítica autodestrutiva sobre as máscaras que nós, de outras
etnias, usamos para apagar nossa herança cultural para nos tornarmos brancos – Lara
explicou em um tom impassível.
Ou ela era uma mestra da ironia ou então estava falando muito sério. Talvez os
universitários se comunicassem através de outro tipo de idioma, no fim das contas.
– Isso parece... complexo – Dan comentou.
– Complexo. É melhor não dar corda para ela – Micah falou com os dentes
cerrados.
– Caso contrário ela vai alugar seus ouvidos até não querer mais falando sobre
coisas
como futurismo dadaísta e sabe-se lá mais o quê.
– Ao contrário do que disseram para você lá na roça, a ignorância não está na
moda.
Muito pelo contrário, na verdade – respondeu Lara, irritada. – Muito pelo
contrário.
– Nossa, quanta tensão! – Jordan apareceu entre Abby e Dan, apoiando os
cotovelos
sobre os ombros dos dois. – O que é isso, relacionamento mal resolvido?
– Prefiro não comentar a respeito – respondeu Micah, todo tenso. – Enfim, como
eu
estava dizendo... Se você tiver um interesse em particular por alguma das aulas,
Dan, é
só me avisar.
– Obrigado, é muita gentileza sua – respondeu Dan, se livrando do cotovelo de
Jordan.
– Espero que vocês não estejam com muita fome – acrescentou Micah. – Ainda
temos alguns assuntos para tratar antes da hora de comer. Vai ser no Erickson, mas
acho
que vocês sabem onde fica, já ficaram por lá no verão.
– Na verdade, nós ficamos no Brookline.
Eles atravessaram a última rua que separava as casas das fraternidades e
irmandades
dos alojamentos principais.
Micah lançou um olhar curioso em sua direção, e Dan se deu conta de que, minutos
antes, tinha fingido que não sabia muita coisa sobre o Brookline. Ele teria que
explicar
direito essa história.
– Vou querer conversar sobre isso com você mais tarde. Já ouvi umas histórias
bem
malucas sobre esse lugar – Micah disse por fim.
E então, bem nesse momento, lá estava o Brookline.
Dan pensou que estivesse preparado para esse momento – afinal, era só um prédio,
e
ele não ia precisar nem entrar. Os endereços passados por Felix ficavam todos fora
do
campus. Mas não fazia diferença. Dan estremeceu ao ver a fachada branca e
descascada e as colunas desgastadas que sustentavam a estrutura a duras penas. E
havia
ainda o ímã em seu peito, que o atraía não apenas para a faculdade, mas para o
Brookline, e a voz de víbora no fundo da sua mente sussurrando: “Bem-vindo ao lar,
Daniel”.
Dentro do recém-reformado, e aquecido, alojamento Erickson, Dan enfim sentiu a
influência sinistra do Brookline arrefecer. Os voluntários os conduziram até o
terceiro
andar, onde sofás estofados foram colocados em forma de U junto às paredes. Alguns
universitários levaram as bagagens para outra sala, onde mais tarde seriam
separadas de
acordo com o alojamento em que cada um ficaria.
Dan sentou entre Abby e Jordan, que já estava tirando o casaco e o cachecol,
ligeiramente vermelho em virtude da diferença de temperatura. A sala comunal do
alojamento estava quente até demais, com uma superlotação de corpos e mobília.
– Meu monitor parece ser legal – Dan murmurou para os dois.
– O meu é mais ou menos – comentou Jordan, encolhendo os ombros. – Não é muito
inteligente, e parece ser meio conservador, mas tudo bem.
– Lara é demais.
Como se quisesse provar o que dizia, Abby fez um aceno para sua monitora. Os
voluntários estavam todos alinhados sob a arcada que dava acesso à sala comunal.
Havia
um elevador do lado direito, e janelas ocupavam toda a parede do lado em que os
candidatos estavam sentados. Dan sentiu uma lufada de ar frio quando um dos
monitores
abriu uma das portas.
O monitor de Jordan começou a retirar pastas cor de laranja de caixas de papelão e
distribuí-las entre os candidatos.
– Você não acha que ela é meio... fria? – questionou Jordan. – Pelo que eu
senti,
parece até um robô.
– Ela leva a arte a sério, Jordan – murmurou Abby. – Não tem nada de errado com
isso.
– Encontrem sua pasta, por favor – o monitor de Jordan instruiu. – Os nomes de
vocês
estão nas etiquetas.
– Pelo menos vocês caíram com monitores com quem têm alguma afinidade. Não
me perguntem por que me puseram com Cal, porque eu não faço a menor ideia –
sussurrou Jordan. – Ele estuda Economia.
– Economia envolve matemática – Dan arriscou dizer. – Certo?
– Para a maioria das pessoas, talvez. Eu fiquei com a impressão de que Cal só
está
interessado em aprender como administrar sua herança.
– Como você pode saber disso? – murmurou Abby. – Dá uma chance para o cara.
– Sem chance. Ele está usando docksides. Eca. Você está vendo algum barco aqui
por
perto? Me explica isso, capitã Tolerância.
– Mas o que você... Quer saber? Esquece.
Abby entregou uma pasta laranja para ele, e sem demora Dan localizou a sua e
passou a pilha adiante. Ele abriu a pasta e viu um calendário de eventos que não
pretendia seguir. Abby estava certa, aliás: o “Parque no Campus” para os candidatos
ocupava um lugar de destaque, com letras garrafais.
– Em caso de emergência – Cal falou lá da frente –, vocês têm uma lista de
telefones
nas pastas. Todos os números do campus têm acesso à central, é só discar 555...
Ele continuou falando a respeito de precauções de segurança e regras do campus,
mas Dan parou de prestar atenção. Um cotovelo afiado o atingiu repetidas vezes nas
costelas.
– Ai. Que foi?
– Aquele cara ali – murmurou Abby, apontando discretamente com o queixo para um
garoto sentado diante deles, que estava encarando Dan por baixo da franja escura. –
Ele
está olhando para você desde que a gente chegou.
– E daí? Ele deve ser esquisito, só isso – Dan sabia como era. Ele mesmo ainda
não
havia superado essa coisa de ser nerd e tímido. – Ou será que tem alguma coisa na
minha cara?
– Dan, isso não tem graça. Ele está... em outro mundo. Acho que não piscou
nenhuma
vez nos últimos cinco minutos.
– Ela tem razão – cochichou Jordan, entrando na conversa de forma tão repentina
que
Dan teve até um sobressalto. – Os olhos dele estão vidrados.
– Ele é um monitor também – apontou Abby. – Está usando uma camiseta de
voluntário.
– Já entendi tudo – falou Jordan. – O cara está chapado.
Com cautela, Dan virou a cabeça para olhar mais uma vez para o garoto – ele não
parecia estar nem respirando de tão imóvel. Dan era obrigado a admitir que aquilo o
estava deixando apreensivo. Não havia como negar – a não ser que estivesse
observando
pássaros pela janela atrás de Dan, o garoto o estava encarando diretamente, sem
piscar.
– Acho que Jordan tem razão, ele deve estar chapado ou coisa do tipo. Enfim, a
gente
não está aqui para se preocupar com esse tipo de coisa, e nem com os sapatos
idiotas do
Cal...
– Ei – interrompeu Jordan.
– Certo, vamos manter o foco – concluiu Dan.
Ele não queria mais ficar olhando para aquele garoto e, com o vento frio que
batia em
sua nuca, estava começando a considerar o local onde ficaria hospedado no fim de
semana bem sinistro.
E isso porque este é um dos melhores alojamentos...
– Espero que todos estejam dispostos a ir ao parque de diversões – continuou
Cal,
abrindo um sorriso de um milhão de dólares. – Vocês tiveram sorte de chegar aqui a
tempo para ver tudo isso. Geralmente, o Comitê Estudantil improvisa um passeio em
busca de doces no Dia das Bruxas.
– Os voluntários e o pessoal da faculdade capricharam – Micah garantiu a todos.
– Vai
ter comida, diversão, tudo a que a gente tem direito. O Departamento de Dança
recrutou
alunos para fazer espetáculos acrobáticos, e o clube de esgrima preparou uma
apresentação. Esperamos que vocês encontrem um tempinho para ir até lá com seus
monitores. Nós não temos um evento como esse no campus desde... pelo menos desde o
tempo em que estou aqui, então quem é que sabe?
– Alguma pergunta? – Cal não pareceu muito interessado no que Micah tinha a
dizer.
Jordan, que pelo jeito já estava entediado, havia sacado um pedaço de papel com
um
sudoku, que resolvia com a folha apoiada na perna.
– Ótimo. Agora já podem se juntar de novo aos seus monitores, e nós vamos
ajudá-
los com as aulas que querem ver como visitantes e também a encontrar seus quartos e
bagagens.
Cal fez um gesto para que se aproximassem e se juntassem aos monitores. Dan
ficou
de pé e se espreguiçou. Abby foi correndo falar com Lara.
Sobre a lareira à sua esquerda havia uma foto em preto e branco gigantesca de
um
homem, tirada exatamente no local onde a imagem estava pendurada. O sujeito
retratado tinha uma leve semelhança com Cal, ele pensou, o mesmo sorriso bem
cuidado
e o mesmo penteado aparentemente casual.
– Daniel Crawford?
Dan teve um sobressalto ao sentir uma baforada úmida na nuca. Ele se virou e
deu de
cara com o voluntário de cabelos escuros, tão próximo que os dois quase se tocaram.
Seu
hálito tinha cheiro de sanduíche de patê de atum.
– Hã... Po-pois não? – gaguejou Dan, dando um passo atrás e vendo o outro dar
mais
um à frente.
Seus olhos, notou Dan, além de vidrados também estavam vazios.
– Daniel Crawford – não foi uma pergunta, e sim uma afirmação.
– Hã, sim, sou eu. O que foi?
– Daniel Crawford... Daniel Crawford... – o monitor repetia seu nome sem parar,
cada vez mais alto, com um toque de histeria e depois de pânico, que fez sua voz
ficar
aguda. – Daniel Crawford. Daniel Crawford.
Dan começou a caminhar para trás, batendo no sofá e caindo sentado com tanta
força
que seus dentes até rangeram.
– Daniel Crawford... Daniel Crawford... Para você ainda não é o fim. Daniel
Crawford, para você ainda não é o fim, ainda não...
– Pare! PARE COM ISSO!
Dan esperava que seu grito fosse encobrir a voz do outro garoto. Por um
instante,
funcionou. Mas, em seguida, o garoto ficou em silêncio, abriu um sorriso triste e
estranho
para Dan e falou baixinho:
– Para você ainda não é o fim, Daniel Crawford. O tempo está passando, Daniel,
mas
ainda não é o fim. Saia, saia daqui agora, vá, vá... – ele segurou a cabeça entre
as mãos,
fazendo uma careta.
Em meio ao ruído, ele ouviu a voz de Cal reverberar pelo recinto, e o estalar
de seus
dedos...
– Ei! – Cal estava gritando. – Ei! Doug! Pare com isso! Acorda!
Então, como se tudo estivesse acontecendo em câmera lenta, Dan viu o garoto se
dirigir aos tropeções para o sofá ao lado, abrir a janela com o ombro, estourar a
tela com
a mão e se arremessar no espaço vazio e gelado mais abaixo.
Dan ficou paralisado. Em algum lugar no fundo de sua mente, ele sabia que precisava
ajudar, mas nenhum de seus membros obedeceu quando tentou movê-los.
Alguém gritou, talvez Abby, e então Dan voltou a si. O garoto de cabelos
escuros não
tinha conseguido atravessar a janela em sua primeira tentativa, e metade de um
braço e
meio tênis ainda eram visíveis do local onde ele estava. Com um grunhido, Dan deu
um
pulo para a frente, passando por cima do sofá e agarrando a primeira parte do
monitor
que conseguiu alcançar. Em seguida, se jogou para trás com toda força. Os dois
despencaram no chão e, enquanto Dan recuperava o fôlego, Cal e Lara chegaram para
ajudar a manter o outro garoto no chão.
Dan sentiu um aperto em seu braço, e o puxou de volta com violência.
– Sou eu! Sou só eu! – Abby estava ao seu lado, observando seu rosto com
preocupação. – O que aconteceu? Por que ele estava gritando com você?
– Para trás! – esbravejou Cal, ficando de pé e afastando os curiosos. – Ele
precisa de
ar! Precisamos de mais espaço aqui... Minha nossa, Doug.
Micah chegou e ajudou Lara a pôr o garoto de pé. Ele não tentou resistir.
Estava inerte
como um boneco de pano nas mãos deles, que o arrastaram porta afora. Cal afastava
os
candidatos à medida que avançavam. Os outros monitores tentavam de tudo para manter
a ordem, mas, assim que a porta se fechou, a sala explodiu em ruído.
– Que diabo foi isso? – Jordan chegou até eles, com o rosto pálido. – Ele
acabou de
tentar se jogar pela janela?
– A-acho que sim – todo trêmulo, Dan piscou algumas vezes e passou a mão no
rosto,
sentindo o suor frio na testa e no nariz. – Ele ficava repetindo meu nome. Não
entendi
nada. Nunca vi esse cara antes. Não sei como ele me conhecia...
– Você está bem? – Abby se ajoelhou, tocando sua perna de leve. – Meninos, isso
não
é nada bom. Só estamos aqui há dez minutos e...
– Não que o Dan tenha feito alguma coisa – interrompeu Jordan. – Mas você tem
razão. Talvez tenha sido um erro voltar aqui. O que acha, Dan? Vamos pegar nossas
coisas e cair fora? Eu posso ligar para os meus pais. Vou precisar explicar um
monte de
coisa, mas eles vão deixar você ficar lá em casa se a Abby também for.
– Não – mesmo naquele momento, quando sua vontade era de ir embora, Dan sabia
que isso estava fora de cogitação. Apesar de não acreditar nessa hipótese, ele
falou: – E
se tiver sido só uma brincadeira?
– Brincadeira? – Abby ficou em pé de repente, jogando as mãos para o alto. –
Dan,
cai na real.
– Que foi? Eu não sei o que dizer, Abby. Vamos... Vamos manter a calma. Nós
acabamos de chegar. Os nossos monitores estão com ele, certo? Mais tarde eu
pergunto
para Micah o que aconteceu, assim nós conseguimos algumas respostas.
Dan a encarou no fundo dos olhos, em uma súplica silenciosa. Ele não
conseguiria
fazer tudo aquilo sozinho, mesmo que quisesse. E não era essa sua vontade. Ele
queria a
ajuda de seus amigos.
– As pessoas estão olhando para nós – Dan avisou, respirando fundo. –
Precisamos
decidir agora se vamos ficar ou ir embora.
Abby mordeu com força o lábio inferior, enrolando uma mecha do cabelo com o
dedo. Ela deu uma olhada para Jordan, que ainda estava preocupado com o sudoku que
tinha começado a resolver.
– Quero pelo menos ver a Lucy – Abby falou. – Não queria ir embora sem fazer
isso.
Não sei quando vou poder voltar aqui depois que voltar para Nova York.
– Eu na verdade fiquei curioso para saber que endereços são esses – acrescentou
Jordan. – E também não estou muito ansioso para voltar para Richmond e para a
vigilância dos meus pais, então acho que vamos ficar por aqui mesmo.
Dan soltou um suspiro de alívio e se levantou, ainda trêmulo, mas conseguiu se
equilibrar. Os demais monitores tinham se juntado aos candidatos para levá-los até
o
Pavilhão Wilfurd para o almoço. Dan se perguntou quando veria Micah de novo.
– Vamos ficar sempre juntos – recomendou Dan. Ele sentiu vontade de olhar pela
janela ainda aberta, mas se segurou para não fazer isso. – Podemos discutir por
onde
começar durante o almoço.
– Vamos ter que arrumar um jeito de escapar sem ninguém ver – Abby murmurou
quando eles se misturaram aos demais candidatos. – A Lucy não mora muito longe do
campus, mas parece que os monitores vão ficar de olho em nós o tempo todo.
– De repente, se conseguirmos encontrar a casa dela, podemos descobrir alguma
coisa sobre os endereços que o Felix passou – especulou Jordan.
Era um pedido ousado, considerando o estado frágil de Lucy da última vez em que
a
viram. Entraram no corredor, seguindo a fila de candidatos e monitores até a
escadaria.
– Acho que a Abby é quem sabe – ele respondeu, olhando de relance para ela. –
Só
ela mesmo para dizer se Lucy está ou não em condições de conversar sobre esse tipo
de
coisa.
– Obrigada, Dan, eu... Acho que é uma boa ideia. Só me dá um tempinho para
pensar.
Quando saíram do alojamento, Dan levantou a gola do casaco, sentindo seu corpo
estremecer.
– O que eu quis dizer foi: ela morou aqui a vida inteira, certo? – continuou
Jordan. Ele
tentou alisar o sudoku com as palmas das mãos, mas acabou desistindo e guardando a
folha no bolso. – Ela deve ter ouvido boatos a respeito, sei lá. Pelo jeito,
ninguém sabe
mais sobre o Brookline do que ela.
– Só que ela acabou de perder o marido e de reviver momentos traumáticos da
infância, então não deve estar nem um pouco a fim de falar sobre o Brookline agora
–
Abby respondeu, exaltada. – Pelo amor, Jordan, eu quero entender tudo isso tanto
quanto
vocês, mas não à custa da sanidade da minha tia.
Apesar de estar ansioso para poder interrogar Lucy, Dan acabou ficando do lado
de
Abby – afinal, a mulher havia sido internada no Brookline quando criança contra sua
vontade, passado por uma lobotomia executada pelo diretor Crawford e fugido de lá.
Anos depois, porém, acabou perdendo Sal, seu marido, nas mãos de Felix. Ou do
Escultor. Dos dois juntos, concluiu Dan.
– Tudo bem, tudo bem – murmurou Jordan, levantando as mãos. – Não está mais aqui
quem falou.
– Jordan e eu podemos conferir os primeiros endereços enquanto você faz uma
visita
a ela – sugeriu Dan, com um tom de voz que torceu para ter sido calmo e
diplomático. –
Ou de repente podemos perguntar por aí sobre o que estão descobrindo nas expedições
ao porão do Brookline.
– Com licença.
A conversa foi interrompida por Lara, a monitora de Abby, que veio correndo até
eles, um pouco ofegante, com os cabelos desalinhados e caindo sobre o rosto. Dan
ficou
imediatamente na defensiva, mas em seguida tentou conter esse impulso – ela
provavelmente só estava querendo saber se estava tudo bem, já que um garoto havia
acabado de gritar com ele e tentado se jogar pela janela.
– Você falou que seu nome era Daniel, certo? – ela perguntou, afastando os
cabelos do
rosto.
– Não, Dan. É Dan.
Os outros monitores e candidatos seguiram em frente sem eles, caminhando pelo
campo aberto e enlameado na direção do Pavilhão Wilbur. Alguns olhares mais
curiosos
se voltaram para Dan, mas a maioria parecia querer o máximo de distância possível,
o
que para ele estava ótimo.
– Me pediram para ver se está tudo bem. Você quer ligar para os seus pais? Vai
querer
ficar?
Dan encolheu os ombros friamente.
– Está tudo bem, eu acho. Aquele estudante... Ele... Ele está bem?
– O Doug? – Lara franziu a testa, sacudindo a cabeça de leve. – Ele é calouro. É
um
sujeito solitário, não interagia muito com ninguém. O pessoal fica meio estressado
nesta
época do ano, com as provas semestrais e todo o resto. Os pais deles vão chegar
daqui a
pouco para cuidar de tudo.
– A gente nunca tinha se visto antes – Dan falou. Ele não queria parecer na
defensiva,
mas como não se sentir julgado naquela situação? – Não sei nem como ele sabia meu
nome.
Lara, no entanto, o surpreendeu.
– Isso é bem simples – ela respondeu. – Não exige nenhum conhecimento prévio,
certo? – ela apontou para a pasta cor de laranja enfiada debaixo de seu braço. A
inscrição na etiqueta branca praticamente brilhava: DANIEL CRAWFORD. – O seu
nome está aí para todo mundo ver.
– É mesmo – falou Dan, com uma risadinha nervosa.
Para Lara, isso parecia bastar como explicação, mas não para Dan. Doug estava
olhando para ele desde muito antes de receber sua pasta. Além disso, ele tinha
repetido o
recado que Dan e seus amigos encontraram no verso das fotos que receberam.
– Espero que ele se recupere logo.
– Não é o primeiro caso de estudante perdendo a cabeça na época de provas –
acrescentou Lara, tomando o caminho do Wilfurd, junto com os demais. – Lembro do
meu primeiro ano aqui como se fosse ontem... muitas horas perdidas de sono,
momentos
de pânico, e até delírios por causa da falta de descanso. Cheguei a perder tufos de
cabelos entre as provas finais. Meus pais queriam que eu fizesse Medicina, e me
pressionavam demais. Depois eu mudei de Ciências Biológicas para Arte
Contemporânea. Já dá para imaginar como foi a conversa. Mas agora chega disso... Eu
estou aqui para convencer vocês de que o NHC é o máximo, e o tempo todo! – ela
cerrou os dentes e abriu algo que parecia ser um sorriso, afastando os cabelos do
rosto
outra vez. – Enfim, hora do almoço. Vocês podem vir comer com a gente.
– A gente? – questionou Abby.
– Micah e eu. Cal talvez apareça também, mas acho que ainda está com Doug,
esperando os pais dele. Do jeito que gosta de falar, vai querer ficar
tranquilizando os dois
por pelo menos uma hora.
A garoa leve de antes começou a se transformar em chuva forte, e os quatro
aceleraram o passo. Molhado e gelado até os ossos, Dan ficou contente até demais ao
chegar à marquise branca do Pavilhão Wilfurd.
Ele se escondeu ali embaixo, esfregando as mãos nos braços. O Brookline estava
imediatamente à direita. Ele olhou para as fileiras e fileiras de janelas vazias,
que o
encaravam como dezenas de olhos ausentes. O pessoal da manutenção não parecia
muito preocupado em aparar o mato que cobria a entrada e os arredores do prédio,
dando ao Brookline uma aparência de decadência e abandono. Bela tentativa de
preservação da memória.
Nuvens instáveis atravessavam o céu, e um raio desgarrado iluminou o último
andar
do Brookline – o andar em que Dan havia enfrentado um homem com um pé-de-cabra,
com a certeza de que iria morrer. Pela maneira como a luz se refletiu nas janelas,
parecia que havia um rosto pálido de órbitas vazias o observando lá de dentro.
É só uma ilusão de óptica, Dan, você sabe disso.
– Ei – Abby o chamou, tocando em suas costas. – Vamos lá para dentro. Não fica
pensando nesse lugar. Ele não oferece mais perigo.
Ela não conseguiu nem olhá-lo nos olhos ao dizer isso. Dan sabia que ela não
acreditava no que havia acabado de falar. Ele também não.
Dan empurrou uma fatia triangular de macarrão frito com queijo para o lado do
prato.
Diante dele, Lara demolia sua pilha de salada. Entre uma mordida e outra, ela
explicava
melhor sua instalação artística para Abby.
– É dedicada aos meus pais – contou ela – e centrada na minha ascendência
coreana,
mas, como eu disse, é uma crítica também. Meus pais têm a obsessão de se tornar uma
família de classe média como qualquer outra. Eles precisam ter um carro do ano, uma
TV moderna...
– Não tem nada de errado em ter uma TV moderna – rebateu Cal.
Ele se espreguiçou, bocejou e se virou de lado no banco da mesa em que estavam
sentados. Com um movimento distraído com os dedos, ele apontou para os candidatos
que caminhavam com as bandejas na mão.
– Sete – ele falou. E apontou de novo para a próxima pessoa que passou. – Uns
seis.
Esquece, não tinha visto o nariz. Cinco. Hã, no máximo três, se eu estiver em um
bom
dia.
Abby largou o pedaço de carne de porco ainda inteiro, olhando para a torta que
tinha
pegado de sobremesa.
– Ele está dando notas para as meninas? – ela perguntou, pasmada.
– Para as meninas não – Micah falou enquanto cortava sua carne de porco.
– Talvez ainda exista uma esperança para você – comentou Dan em tom de
brincadeira, mas Jordan não pareceu gostar nem um pouco.
– Não me faça pegar nojo – ele sussurrou de volta.
Cal, ao que parecia, tinha um ouvido afiado. Ele se virou para Jordan e deu uma
risadinha.
– Relaxa. É brincadeira. Além disso, você não tem do que reclamar, porque
ganhou
um oito.
Dan estendeu o braço e segurou Jordan pelo cotovelo.
– Não caia nessa. Ele só está provocando você.
– Ah, é? – ironizou Jordan. – Bom, isso está na cara. Um oito? Ha!
– Se eles vão ser chatos assim, é melhor nem irem à festa de hoje à noite – Cal
falou,
olhando para as próprias unhas.
Mais adiante, sentado no mesmo banco, um voluntário baixinho que Dan não
conhecia
se empertigou todo, acenando para Cal.
– Vai ter festa hoje à noite?
O garoto praticamente grunhiu de empolgação. Ele era o oposto perfeito de Cal,
baixo
e atarracado, com cabelos loiros enrolados e óculos fundo de garrafa.
– Vai, Henderson, e você não tem a menor chance de ser convidado – zombou Cal.
Dan nunca tinha visto ninguém com dentes tão brancos, e o bronzeado de Cal só
acentuava isso. Aos olhos de Dan, ele era o típico californiano.
– Vamos parar, Cal? – esbravejou Lara, pegando sua tigela de salada e caminhando
na direção do balcão.
– Pensei que os universitários fossem legais – Jordan comentou com Dan em um tom
de descontentamento. – É isso que querem que a gente seja?
Micah estava falando com Cal, tentando convencê-lo pelo menos a parar de dar
notas
para os estudantes que passavam.
– Vejam pelo lado bom – falou Abby, chegando mais perto de Dan para que os dois
pudessem ouvi-la. – Eles são só nossos monitores. Logo vão se esquecer de nós, e
vamos
poder sair daqui.
– Eu pensei que você tivesse gostando de estar com a Lara – argumentou Dan.
– Eu gostei, mas isso não significa que sou obrigada a aturar esse Cal. Vocês
acham
que eles vão perceber se a gente não for à festa?
– Claro que não – murmurou Jordan. Os três estavam sentados juntos, depois de
Lara
abandonar temporariamente seu lugar no banco comprido da mesa branca. – Não
estamos em uma excursão de colégio. É para a gente experimentar como vai ser a vida
na faculdade, certo? Com certeza vamos poder sair e fazer o que quisermos.
– Jordan tem razão – concordou Dan –, mas precisamos tomar cuidado para não
chamar muita atenção. Acho que podemos pelo menos aparecer na festa, e então dar
um jeito de sair de fininho.
– E sobre o que vocês estão cochichando?
Em um gesto ridículo, os três tiveram um sobressalto, transmitindo uma imagem
exatamente oposta à da inocência que queriam transmitir. Dan abriu um sorriso
forçado
quando Micah apoiou os cotovelos na mesa, alisando com os dedos o cavanhaque
escuro.
– Eu não queria interromper – Micah acrescentou, todo educado. – É que vocês
parecem estar sempre tramando alguma.
O que não deixa de ser verdade.
– A gente estava conversando sobre essa festa que Cal falou – entregou Abby. –
Parece interessante.
– Argh – Micah tirou os óculos e passou as mãos no rosto. – Sinto muito sobre
isso
tudo. Não é muito, hã, acadêmico. Nós nem íamos dizer nada... Não é exatamente...
bom, um evento para candidatos. Pode haver bebidas impróprias para menores sendo
servidas, se é que vocês me entendem.
– Claro que entendemos – Jordan respondeu sem nenhuma empolgação.
Dan lembrou que Jordan escondeu bebida em seu quarto durante todo o verão, e
teve
que se segurar para não rir.
Lara voltou, e ela e Micah trocaram olhares estranhos enquanto se acomodava.
Talvez
Jordan tivesse razão... De repente havia alguma história que não terminou bem entre
os
dois. Sendo assim, por que se sentar à mesma mesa?
– Bom, só estou dizendo. Se não quiserem ir à festa, temos outras coisas
planejadas
também – Micah falou. – E amanhã vai ter o parque de diversões funcionando. Vocês
vão ter um fim de semana bem agitado.
– Qual é a desse parque? – Dan perguntou sem pensar, e seu questionamento acabou
soando meio hostil. Ele tentou de novo, em um tom mais leve: – Quer dizer, não
parece
ser uma coisa muito comum, ainda mais em uma faculdade. A ideia é comemorar o Dia
das Bruxas ou receber os candidatos?
– Bom, todas essas coisas, eu acho – respondeu Micah, limpando os óculos na
camisa
social. – É uma velha tradição da faculdade, mas que foi abandonada desde...
desde...
putz, na verdade nem sei. Acho que desde os anos vinte, parece. Tinha videntes,
atrações
bizarras, essas coisas. Vejam só...
Micah se agachou debaixo da mesa para remexer em sua mochila. Quando
reapareceu, estava com duas fotografias na mão, que posicionou na mesa diante
deles.
Uma era de um homem a cavalo, cujo rabo estava sendo puxado por um palhaço. A
outra mostrava um homem, que podia ser o mestre do picadeiro, sentado alegremente
no
colo de uma mulher que tinha o dobro de seu tamanho.
– Passamos um dia inteiro pesquisando esse tipo de velharia na biblioteca
enquanto
estávamos planejando a coisa toda. O pessoal de Camford tentou colocá-los para
correr,
mas a faculdade permitiu que montassem o parque de diversões aqui, então eles
continuaram vindo para o campus todo ano. Acho que o Comitê Estudantil considerou
que ia ser divertido reviver essa tradição.
– Anos vinte? – questionou Dan. – Tipo 1920?
Ele lançou um olhar para Abby e Jordan, para que eles entendessem aonde queria
chegar.
– Isso mesmo – respondeu Micah, estreitando os olhos. – No século passado. Por
quê?
Você curte parques de diversões antigos ou coisas do tipo?
– É que... eu tenho interesse pela história daqui, só isso. – Dan sentiu o
cotovelo de
Abby cutucando suas costelas. Ele já estava quase acostumado com isso, a essa
altura. –
Nós vamos querer ir ver, com certeza.
– Ah, não, obrigado. Eu ligo para eles mais tarde – era Cal. Do outro lado da
mesa,
em frente a Jordan, ele pegou o celular que vibrava e olhou para a tela. Com a mão
livre,
ele afastou os cabelos castanhos dos olhos e guardou o aparelho. – É o pessoal da
coordenação. Deve ser para falar sobre o Doug. Coitadinho.
– Como ele está? – Abby perguntou, por educação.
Depois de engolir o espinafre, Cal limpou a boca com um guardanapo, dobrou-o com
precisão em um quadrado perfeito, pôs de volta no colo e falou:
– Ele é um bom garoto. Só está sentindo a pressão, eu acho. Essas notas deixam
qualquer um maluco. Mas ele vai ficar bem depois de ver os pais. E a faculdade leva
esse tipo de coisa bem a sério. Vão ficar de olho nele até voltar para casa.
Cal gesticulava bastante quando falava, e um anel de formatura reluzia em seu
dedo
médio.
– Ele... – Abby limpou a garganta e elevou o tom de voz, para ser ouvida mais
claramente. – Você descobriu por que ele cismou com o Dan daquele jeito?
– Não faço ideia – Cal respondeu de forma casual, voltando a se concentrar em
sua
salada. – Foi meio assustador, né? Daniel Crawford! Daniel Craaaawford... – ele
estendeu os braços como um zumbi. Em seguida sacudiu a cabeça e deu uma risadinha,
divertindo-se com a própria piada. Depois fez uma pausa, franziu a testa e elevou
os
olhos da comida. – Olha só... Crawford? Dan Crawford? Como Daniel Crawford, o
antigo
diretor do Brookline?
Dan sentiu suas entranhas congelarem.
– Não temos nenhum parentesco – ele conseguiu dizer.
– Isso é bom, isso é bom. O sujeito era bizarro.
Cal deu uma risadinha, comendo mais uma garfada de espinafre.
– Quem é esse? – perguntou Lara, distraída.
– Pois é – incentivou Jordan, irônico. – Quem é esse?
– Era um cara genial que dirigia o Brookline nos velhos tempos de glória. Ele
tinha
umas ideias meio radicais, mas trabalhava com os criminosos mais loucos do país,
então
merece algum crédito por tentar – dessa vez, quando Cal deu mais uma risadinha, Dan
sentiu vontade de bater nele. – Eu aprendi tudo sobre ele em um trabalho que fiz
neste
semestre. A professora Rey es mandou escrever uns dez relatórios sobre o cara. Uma
chatice, mas é melhor que um trabalho braçal, eu acho.
– Você não deveria dar crédito nenhum para esse sujeito.
Inacreditável. A professora Rey es estava ensinando a seus alunos que o antigo
diretor
era uma espécie de gênio incompreendido. Dan sentiu seu rosto ficar vermelho, e o
suor
brotar em suas têmporas. Ao seu lado, ele viu que Abby estava rígida de medo.
– Como é? – Cal enfim baixou o garfo com a comida.
Dan sentiu sua perna começar a tremer.
– Você sabia que ele baseava seus experimentos em ideias como eugenia e
supremacia étnica? Ele não merece desconto nenhum por trabalhar com criminosos
insanos. Isso não justifica nada.
– Acho que você precisa entender que as coisas não são tão simples assim... –
Cal
começou, mas não pôde terminar.
– O que você sabe sobre isso? – Dan interrompeu, batendo a mão na mesa.
– Hã, provavelmente mais que você, cara. E, sem querer ofender, eu não vou
ficar
sentado aqui discutindo isso com um garoto de colégio.
– Quem quer sair para tomar um ar? – Micah disse de repente, ficando de pé e
esbarrando em sua bandeja sobre a mesa. Ele conseguiu apanhá-la antes que caísse. –
Eu vou mostrar para o Dan onde ele vai ficar hospedado no fim de semana. Vocês dois
poderiam fazer o mesmo.
– Certo – Cal falou, encolhendo os ombros. – Beleza, tanto faz. Até mais.
Dan ficou de pé, mas não sem antes se virar para seus amigos. Depois que Cal
voltou
a se concentrar em sua comida, Jordan fez com a boca as palavras “economia” e
“docksides”.
– Escrevo para vocês dois daqui a pouco – Dan se apressou em dizer.
– Eu não queria que a gente se separasse – Abby murmurou, meio tensa.
– A gente volta a se encontrar logo em seguida – ele respondeu. – Prometo.
Do lado de fora, a mesma chuva leve continuava a cair, e Micah abriu um guarda-
chuva grande o suficiente para os dois – na verdade, poderia até substituir uma das
barracas do parque de diversões em caso de necessidade. Dan não olhou para o
Brookline quando saíram do Wilfurd, temeroso de que aquela discussão sobre o
diretor
tivesse evocado sua presença, como se ele fosse uma espécie de lenda urbana. Quem
ele
estava enganando? Tomando por base seus pesadelos, estava na cara que o diretor
nunca
havia deixado de se fazer presente.
– Ignora o Cal – Micah falou, caminhando com passos firmes ao seu lado. – Ele
estava só querendo se exibir. Provavelmente para impressionar o seu amigo.
– O meu...? – Dan franziu a testa. – Ah, o Jordan? Minha nossa, então espero
que ele
não consiga. Jordan merece coisa melhor.
– Ah – Micah deu risada, como se tivesse se dado conta de algo. – Então com
certeza
o seu amigo vai saber como sair dessa.
– Se o Cal é tão babaca assim, por que vocês dois são amigos?
Micah encolheu os ombros.
– Boa pergunta.
Eles andaram lado a lado pelo caminho pavimentado e serpenteante que
atravessava
a parte principal do campus. Tinham deixado o Brookline para trás, e Micah resolveu
cortar caminho pela grama até o Erickson. Micah posicionou seu crachá diante do
sensor
ao lado da porta e a abriu, permitindo o acesso dos dois.
– Tem um crachá temporário na sua pasta – explicou Micah. – Só vai funcionar em
alguns prédios, mas se quiser conhecer a academia ou coisa do tipo é só me avisar.
Dan foi com Micah até os elevadores do saguão. Micah se virou para encará-lo,
como
se tivesse algo importante a dizer.
– Então, Dan, o Cal não é tão ruim assim o tempo todo – ele explicou. – Foi uma
das
primeiras pessoas que conheci aqui. Ficamos muito amigos no primeiro ano, e
dividimos
um quarto no segundo, mas, sabe como é, as pessoas mudam... – ele encolheu os
ombros, cruzando os braços e se encostando na parede do elevador que os conduzia ao
terceiro andar. – E se um dos seus amigos mudasse? Você ia se afastar e pronto?
Dan ficou sem saber o que responder. Ele jamais esperaria que Jordan e Abby se
tornassem irritantemente passivos como Cal, que saía repetindo o que a professora
Rey es
dizia como um papagaio, sem maiores questionamentos. Dan fez uma careta. A
professora Rey es. Dan sabia que precisaria confrontá-la mais cedo ou mais tarde.
– E, sem querer me intrometer – Micah continuou, sem esperar pela resposta para
o
que Dan imaginou ser mesmo uma pergunta retórica –, mas como é que você sabe tanta
coisa sobre o Brookline só de ficar um tempo aqui? A maioria dos candidatos chega
ao
campus sem saber nada sobre o lugar, mas você parece um especialista falando.
A porta do elevador se abriu, proporcionando a Dan um momento para pensar em
uma boa resposta. Depois de aquele garoto esquisito gritar com ele e tentar pular
pela
janela, Dan não estava se sentindo inclinado a confiar em ninguém naquele campus.
– Eu não sou como a maioria dos outros candidatos – Dan respondeu. Ele seguiu
Micah por uma sala comunal, não a mesma de antes, ainda bem, e entrou em um
corredor. Eles viraram à direita e pararam diante da porta 312. – Quer dizer, além
de ter
ficado no Brookline no verão, eu venho me preparando para a faculdade a vida toda.
Sempre levei esse tipo de pesquisa bem a sério.
– Você é como eu, então? – Micah deu um sorriso torto para ele e abriu a porta,
revelando um quarto minúsculo, mas muito bem arrumado. Havia um colchão inflável
perto da janela, e Micah foi caminhando nessa direção. – Eu mal podia esperar para
terminar o colégio. Cidade pequena. Mentes pequenas. Família nada unida. Todo mundo
boa gente, claro, mas eu precisava de uma mudança.
– Eu sei como é – respondeu Dan, distraído.
Ele ouviu uma batida de leve na porta. Micah foi atender, e Dan viu que era
outro
estudante, trazendo sua bagagem. Ele aproveitou para dar uma olhada no quarto, e
notou
dois violões em um canto, uma escrivaninha com o maior computador que já tinha
visto
na vida e paredes cobertas de pôsteres de filmes de ficção científica. Na cômoda,
uma
fileira de troféus de torneios de Artes Marciais e um mapa da Louisiana pendurado
mais
acima. Dan se inclinou para observar melhor o mapa, lendo o nome de uma cidade
circulada de vermelho.
– Cata... Cata...
Ele não conseguia fazer sua boca pronunciar aquele nome.
– Catahoula?
– Gesundheit – Dan falou com um sorriso. – É a sua cidade?
Micah pôs a mala de Dan ao lado do colchão inflável, se espreguiçou e confirmou
com um aceno de cabeça.
– Sim, por um tempo, depois Shreveport, e depois Baton Rouge.
Dan deu uma volta pelo quarto, reparando em outros detalhes enquanto isso – o
certificado de honra ao mérito por seu desempenho acadêmico colado ao lado do
computador, cartas de recomendação dos departamentos de Ciências Biológicas e de
Filosofia, algumas fotos que ele imaginou ser da família dele, e uma fileira de
miniaturas
de personagens de Star Wars sob o monitor. Ao lado das distinções acadêmicas havia
uma
foto em preto e branco emoldurada de uma velha casa de fazenda com um carvalho alto
à direita e o que parecia ser um riacho logo atrás. Um retrato formal em família
ocupava a moldura ao lado, no qual uma mulher com um vestido com babados estava
sentada entre várias crianças, todas olhando para a câmera com o olhar vazio
característico das fotos antigas.
– Sua família? – Dan perguntou, examinando as imagens mais de perto.
Ele derrubou um dos bonequinhos de Star Wars e se apressou em colocá-lo outra
vez
em pé.
– Da parte da minha mãe. Essa é a sede da velha Fazenda Arnaud. Só minha avó
mora lá hoje em dia, mas ela nunca gostou muito de mim. O lugar está caindo aos
pedaços... e é mal-assombrado também. A minha avó fala isso toda orgulhosa – Micah
deu risada e chegou mais perto de Dan. – Você falou que queria estudar
Psicologia... está
querendo me analisar, é isso?
– Desculpa aí, acho que estou sendo curioso demais – Dan respondeu, meio
envergonhado. – Eu não sou muito bom nessa coisa de convenções sociais.
– Não esquenta, Dan, eu estava brincando. E você parece ser bem sociável,
aliás. Na
minha primeira semana aqui, acho que não falei com ninguém – Micah se sentou à
escrivaninha, e ficou vendo Dan andar de um lado para o outro no quarto. – Eu
passei um
tempo no reformatório por roubo, e me endireitei depois disso. Um tio meu estudou
aqui
no NHC, e foi ideia dele me fazer estudar e me candidatar para cá. Não teve nenhuma
despedida emocionada da família. Ninguém estava nem aí para onde eu estava indo, só
o
meu tio. Cal foi uma das primeiras pessoas a me tirar da concha. Acho que é por
isso que
ainda somos amigos, apesar de ele ser bem babaca às vezes.
Reformatório? Isso fez Dan parar para pensar, não porque o estava julgando, mas
para encarar Micah com outros olhos depois de descobrir que ele havia sido capaz de
mudar de vida depois de uma experiência como essa.
Dan foi olhar pela janela. Em meio à névoa que se erguia entre as construções,
ele
conseguiu ver a janela do prédio em frente, onde a silhueta de uma pessoa parecia
observá--lo. Estreitando os olhos, Dan se aproximou do vidro para ver melhor, e
sentiu
um frio na espinha. Doug, o coitadinho do Doug, era quem o encarava.
– Como assim...? – ele murmurou. – Esse é... que prédio é esse aí na frente?
Micah chegou à janela em dois passos.
– Ah, droga. É a enfermaria. Pensei que a esta altura esse garoto já fosse
estar longe
daqui.
Dan não conseguia desviar o olhar, não depois de reparar que, mesmo à
distância,
Doug continuava gritando “DANIEL CRAWFORD”. Alguém apareceu e tentou afastar
Doug da janela. A última coisa que Dan viu foram os dedos pálidos do garoto,
dobrados
em forma de garras, tentando se agarrar ao vidro embaçado.
– Você está bem?
Dan fez que sim com a cabeça. Ele se inclinou sobre a cômoda sob a janela,
endireitou o corpo e ficou de pé. Um pouco desorientado, ele cambaleou, se
segurando
na cômoda de novo e derrubando uma vela, que ele pôs de novo no lugar, virando-a
com
a mão. Era vermelha e estava queimada pela metade, mas ainda dava para ver que a
base era uma caveira vermelha.
Quando conseguiu recuperar totalmente a visão, viu seu reflexo assustado no
vidro.
– Estou bem. É... estou bem.
– Você já pensou nas aulas que quer ver como visitante? Alguns professores
estão
fazendo seminários especiais no fim de semana, para vocês verem que tipo de
discussões
e trabalhos vão encontrar por aqui.
Quase totalmente alheio, Dan sentiu sua cabeça balançar para cima e para baixo.
Acenando... Acenando... O medo dentro dele ia se transformando lentamente, mas de
forma inexorável.
– Sim – ele respondeu, cerrando os dentes. – Você falou que a professora Rey es
estava coordenando uma atividade, certo? É isso que eu quero ver.
“Estou atrasado”, dizia a mensagem de Jordan, “chego para o jantar às cinco.”
Dan estava sentado em uma das compridas e reluzentes mesas do refeitório, com a
foto mandada por Felix escondida sob a bandeja. Com o canto do olho, ele espiava
Abby,
que estava rodeando o balcão de cereais, batendo com o dedo no lábio inferior
enquanto
se decidia entre um de sabor de canela e outro de milho. Ele achou legal que ela
não se
importasse em comer coisas de café da manhã no jantar inclusive naquela noite,
quando
a maioria dos outros alunos de colégio parecia estar bem preocupada em impressionar
os
universitários.
Dan ouviu uma voz suave atrás de si, que poderia até ser de Abby, caso não
estivesse
olhando para ela. Mas, pensando bem, não poderia ser a voz dela. Era baixa,
sussurrada e
monótona demais.
– Daniel, Daniel, vamos brincar... – parecia uma música, uma cantiga de roda. –
Vamos brincar, você não quer brincar? Daniel, Daniel...
Ele se virou apressado na direção de onde vinha a voz, segurando um grito de
raiva no
fundo da garganta. Sozinho em um canto, escondido das vistas pelo balcão de
sobremesas, estava um garotinho, aparentemente abandonado. Alarmado, Dan olhou em
todas as direções. Ninguém mais parecia vê-lo – um menino magro, de nove ou dez
anos, vestido com uma blusa listrada e uma calça curta e rasgada. Sua cabeça
parecia
ferida, quase deformada, e sangrava.
O garotinho segurava alguma coisa com força entre as mãos, abrigadas junto ao
peito. Seus olhos eram arregalados e vazios como os de Doug, como...
– Dan? – Abby se sentou diante dele à mesa, franzindo a testa. – Parece até que
você
viu um fantasma – ela deu risada, mas Dan mal conseguia respirar, muito menos
responder.
– Você... Tem um menino ali no canto? – ele murmurou. – Tem um menino atrás de
mim ali no canto? Um garoto pequeno... de blusa listrada. E uma calça engraçada.
– Hã, não, acho que não – em seguida, sem muito interesse, ela falou: – Me deixa
dar
uma olhada – Abby se levantou, olhando por cima do ombro de Dan por um longo e
tenso momento. Ela voltou a se sentar no banco e limpou a garganta antes de dizer:
– Não
tem nada ali, Dan. Quer dizer, só um ou outro papel no chão, mas um menino não.
Você
anda vendo coisas agora também?
Sim.
– Não – o suor começou a brotar em profusão na testa de Dan. – Sei lá, é que
estou
morrendo de fome! Você não? Eu estou morrendo de fome.
Ele olhou para a foto sob a bandeja. Aquele menino era igualzinho ao da foto.
– Eu não estou em condições de julgar ninguém – ela garantiu, dando uma
colherada
no cereal. – Estou ouvindo vozes, esqueceu? Nenhum de nós está muito bem da cabeça
no momento. Se você estiver vendo coisas, é melhor contar.
– Tudo bem, você venceu. Eu estou, sim. Tem um menino bem atrás de mim, e ele
cantou uma espécie de cantiga de roda, mas com o meu nome nela – só que na verdade
não era seu nome, não exatamente. Ninguém o chamava de Daniel. – Minha nossa... –
ele sacudiu a cabeça, tentando organizar as dezenas de pensamentos que passavam ao
mesmo tempo por sua cabeça (Não devia ter contado para ela; claro que precisava
contar para ela etc.) – Este lugar parece um Triângulo das Bermudas universitário.
– Ei – ela falou. A mão quente de Abby apareceu do outro lado da mesa e
envolveu a
sua. O leve aperto em seu pulso quase o fez se esquecer de onde estava. Por um
segundo,
eles voltaram a ser adolescentes normais. Um casal de namorados jantando juntos. –
Mesmo se for, nós vamos dar um jeito de sair.
– Obrigado, Abby, eu... Isso ajuda bastante. Você me ajuda muito.
– Ei, crianças, se preparem... trouxe lição de casa! – Jordan chegou como um
furacão, se jogando no banco ao lado de Dan e largando uma pilha enorme de jornais,
almanaques e livros sobre a mesa. – Ufa. Cara, como isso pesa.
– O que são essas coisas? – Abby perguntou, recolhendo a mão para voltar a
comer
seus cereais.
– Não consegui tirar aquela droga de fotografia da cabeça – Jordan explicou
rapidamente, dividindo as coisas que trouxe em três pilhas. A chuva havia deixado
seus
óculos molhados e embaçados. – E eu também precisava de uma desculpa para me
livrar do Cal, então pensei: por que não pesquisar mais a respeito do tal parque de
diversões? Fui até a biblioteca e convenci o pessoal a me deixar dar uma olhada nos
arquivos. Alguém deve ter escrito algo a respeito do parque nos anos vinte, certo?
Mordendo uma maçã, Jordan posicionou sua cópia dos endereços sobre a mesa, ao
lado de um mapa da cidade, com as coordenadas circuladas em vermelho.
– Aqui tem uma porrada de informações sobre o que aconteceu em Camford da
última vez em que o parque de diversões foi montado por aqui, além de um monte de
coisas sobre o parque em si.
– Uau – comentou Dan. – Bom trabalho.
– Ei, não foi nada – ele deu de ombros. – Se ocupar com alguma coisa é a melhor
opção. Se eu ficasse sem fazer nada, minha mente ia acabar implodindo, sei lá. É
melhor
se manter ocupado.
A primeira pasta na pilha de Jordan estava abarrotada de fotografias e recortes
de
jornal – tanto que até ameaçava rasgar. Com cuidado, Dan apanhou o arquivo e abriu,
e
uma cachoeira de fotos antigas despencou sobre a mesa. Ele observou uma após a
outra... Mulheres barbadas, homens musculosos, um malabarista na corda bamba, um
carrossel. Lembranças espectrais de um tempo mais feliz em Camford, antes que a
reputação do lugar fosse manchada pelo legado do diretor do manicômio.
– Hã, aconteceu outra coisa também – Abby falou.
Ela apontou com o queixo para Dan, o que o fez se sentir ao mesmo tempo
envergonhado e protegido. Aqueles eram seus amigos. Era preciso confiar neles.
– Ela tem razão. É... É uma coisa estranha de admitir, mas estou começando a
ver
coisas. Quer dizer, até agora foi uma coisa só, talvez não seja nada. Talvez pare
por aqui.
– Uau. – Jordan largou a maçã mordida sobre a mesa. – Que tipo de coisas? Hã,
coisa?
– Um garotinho – respondeu Dan. Nesse instante, ele se lembrou da imagem do
menino, o que o fez estremecer. – Mas ele parecia... antigo, como se fosse de outra
época. E o mais estranho é que parece com o menino da foto que Felix me deu. Não
sei
se isso é coincidência.
– Argh. Parece uma daquelas merdas dos filmes do M. Night Shamalamadingdong. –
Jordan deu outra mordida na maçã, com movimentos mais lentos desta vez. Com a boca
cheia, ele acrescentou: – Você acha que pode ser estresse? Ou falta de sono? Tem
certeza
de que ele... Tem certeza mesmo de que não estava alucinando?
– Bom, eu acho que não – murmurou Dan. – Ele estava cantando uma música com
meu nome, e me fez lembrar do tal Doug, o que ficou falando meu nome sem parar.
Será que na minha cabeça eu associei isso com o menino da foto?
– Eu ainda não parei de ouvir a Lucy – Abby confessou, mordendo o lábio. Seu
cabelo ainda estava molhado de chuva. – Está ficando pior. Como se estar aqui
pudesse...
acelerar as coisas. Estou ouvindo a voz dela o tempo todo agora – ela segurou o
pulso de
Dan mais uma vez. – Não sei se voltar aqui foi uma boa ideia. De repente era melhor
ter
deixado essa história para lá.
– A gente ainda pode ir embora – falou Jordan, deixando de lado a maçã. – Se
vocês
acham melhor não ficar aqui...
– Não – respondeu Dan. Seus olhos estavam voltados para a foto, concentrados no
menino estranho exibido na imagem. – Precisamos começar a pesquisar esses
endereços. E ainda hoje.
– Então tá – concordou Jordan. Ele pegou um jornal da pilha e o abriu, dando
início
aos trabalhos. – Ainda hoje. Antes que a gente perca a cabeça de vez.
Dan não conseguia ouvir nem seus pensamentos por causa do TUMP-VUB-TUMP
incessante do baixo. Se era isso que as pessoas faziam para se divertir na
faculdade, ele
preferia pegar um livro, um chá indiano e arrumar um cantinho silencioso na
biblioteca.
– Parece que esse som está tocando dentro da minha cabeça! – ele gritou para
Jordan
na sala lotada e suarenta.
– Pois é! – Jordan gritou de volta. – Não é o máximo?
Bom, discutir gosto não valia a pena. A polícia provavelmente apareceria a
qualquer
momento para acabar com a festa. Que tipo de vizinho não reclamaria de um barulho
como esse?
Dan olhou ao redor, tentando localizar Abby em meio às cabeças que balançavam
ao
ritmo da música. O fato de ele não se lembrar de como ela estava vestida não
ajudava
em nada. Ele não havia trocado de roupa, mas quando reencontrou o pessoal viu que
todos no grupo – Abby, Jordan, Micah, Lara e Cal – tinham feito alguma alteração em
seu visual.
Lara estava usando um short jeans de cintura alta por cima de uma meia-calça
roxa.
A estampa do short o fazia parecer um arco-íris, algo que ele tentou comentar com
ela,
mas recebeu uma resposta seca informando que era uma estampa “ombré, não de arco-
íris”. Para não morrer de frio lá fora, ela usava um sobretudo grosso e enorme. À
primeira vista, parecia não estar vestindo nada por baixo.
Andando lado a lado, Abby e Lara saíram cochichando pelo campus. Ambas tinham
cabelos pretos, e Abby havia feito tranças nos seus cabelos em vários formatos
diferentes e prendido todas elas no alto da cabeça. Estava linda, e Dan desejou
poder vê-
la toda arrumada daquele jeito em circunstâncias em que pudessem de fato se
divertir
juntos. Em vez disso, eles passariam a noite toda se esgueirando pelas sombras. Por
outro
lado, ele provavelmente não teria muita chance com ela caso tivessem se conhecido
em
um contexto mais favorável.
Jordan estava usando uma calça jeans preta e uma camiseta larga e escura com um
Transformer estampado na frente.
– Pensei que a gente só tivesse vindo para disfarçar – Dan sussurrou para ele
quando
se aproximaram do local da festa. – Por que vocês se arrumaram?
– É um despiste, Dan – Jordan falou, como se fosse a coisa mais natural do
mundo. –
Sabe como é? Um disfarce? Se a gente aparecesse todo desleixado, eles iam
desconfiar.
– Desleixado? – Dan olhou para sua blusa e sua calça cáqui. – É assim que eu
estou?
– Não, você está bem. Sempre consegue o visual que quer sem nenhum esforço.
– E que visual é esse?
– Tenta só aceitar o elogio, Dan – Jordan falou com uma risadinha, com o ar se
condensando em vapor imediatamente ao sair de sua boca. – Você está sendo você
mesmo, e isso é ótimo.
Agora que estava na festa, em uma casa fora do campus, com gente por toda
parte,
luzes piscando e música no último volume, Dan entendeu por que Lara estava usando
trajes tão sumários sob o casaco: estava um calor infernal ali dentro.
Ele puxou a gola da blusa e continuou procurando Abby. Onde ela estava? Não
sabia
que eles precisavam sair de fininho? Talvez algum carinha mais velho metido a galã
a
tivesse chamado para dançar.
Ele não queria nem pensar nisso.
– Está perdido? – gritou Micah, atravessando o mar de corpos em movimento. –
Toma
aqui! Trouxe uma coisa para você, mas isso fica sendo nosso segredinho.
Um copo vermelho apareceu, e seu conteúdo cheirava a álcool e fuligem. Dan
enfiou
o nariz lá dentro e sentiu sua garganta se fechar.
– O que é isso? – berrou.
– Uísque com coca! Não sabia o que você queria, então peguei uma coisa que todo
mundo gosta.
– Obrigado – falou Dan, dando um gole pequeno e forçando o líquido goela
abaixo,
apesar dos protestos de suas papilas gustativas. O escapamento de um caminhão velho
provavelmente tinha um gosto melhor. Ele percorreu a festa com os olhos, à procura
de
algo para dizer. – Não estou vendo muitos candidatos aqui.
Nenhum, na verdade.
– O público aqui é mais selecionado – respondeu Micah, virando sua bebida como
se
fosse água. Com o copo vermelho entre o polegar e o indicador, ele apontou para as
pessoas que dançavam. – Parece que seus amigos estão se divertindo.
Ele tinha razão. Abby e Lara giravam em torno uma da outra, rindo às
gargalhadas de
alguma coisa que Dan não podia nem imaginar. Enquanto isso, Jordan parecia querer
gritar com Cal e dançar com ele ao mesmo tempo. A mão de Cal pousou no quadril de
Jordan, e nesse momento Dan ficou sem saber se bebia mais um gole ou se ia correndo
arrancar seu amigo dali.
– Não esquenta – falou Micah, como se estivesse lendo sua mente. – Como eu
falei, o
Cal nem sempre é um babaca.
– Ele não deixou uma boa primeira impressão – Dan murmurou, mas Micah
conseguiu ouvi-lo, e encolheu os ombros.
– Sinceramente, ele teve uns anos bem difíceis. Perdeu o pai. Foi um golpe e
tanto.
Eles eram bem próximos. Esse é o tipo de coisa que tira a pessoa dos eixos, sabe?
Espero
que ele consiga se reerguer. Estou sentindo falta do meu amigo – ele contou.
A garganta de Dan ainda estava ardendo por causa do único gole que deu no
álcool.
– Eu não sabia que o pai dele tinha falecido... Que pena.
– Pois é, aconteceu quando a gente ainda era colega de quarto – Micah sacudiu a
cabeça, vendo Jordan e Cal se afastarem das pessoas que dançavam para ir conversar
em um canto, perto da escada. – Ele era uma figura importante da faculdade. Foi
enterrado no cemitério do campus.
Antes que Dan pudesse responder, um garoto bêbado e desorientado usando uma
camisa de futebol americano esbarrou em Abby e Lara, que o empurraram para longe.
Os três ainda trocaram alguns gritos antes que as meninas conseguissem afastá-lo de
vez
das pessoas que dançavam.
– Ela é durona – Micah comentou com uma risada. – A sua garota.
– Pois é – ele ficou desolado ao ver que ela se virou de novo para Lara e voltou
a
dançar. Por que ela não queria ficar com ele? – A minha garota.
– Tem alguma coisa estranha rolando? Quer dizer... Não precisa falar nada se não
quiser.
Dan deu mais um gole em seu copo, sentindo o uísque descer queimando por sua
garganta. Minha nossa, seus pais o matariam se o vissem ali. Me desculpe, mãe,
desculpe, pai. Ele deu as costas para as pessoas que dançavam, como se Abby fosse
capaz de perceber à distância que estavam falando dela.
– É que nós nunca definimos exatamente o que somos. Às vezes parece que está
tudo
bem, mas às vezes nem parece que somos um casal. E tenho medo de que, se perguntar,
o encanto pode acabar se quebrando e a gente pode se dar conta de que não está
rolando
nada.
– Pode perguntar, cara – incentivou Micah. – Não é ser um enigma nem nada do
tipo.
Quando tiverem um tempo a sós, aproveitem para conversar. Confie em mim, é melhor
saber exatamente o que está rolando.
– Talvez, mas eu...
– Estão trocando segredinhos?
Dan se virou às pressas, quase derramando sua bebida na roupa ao ver Abby logo
atrás dele, com o rosto vermelho e a testa brilhando de suor. Seu bolso vibrou.
Assustado,
Dan quase derrubou o celular ao tirá-lo do bolso.
Era sua mãe. Os pais têm o poder de se manifestar sempre nos piores momentos.
Ele
decidiu que responderia mais tarde, quando não estivesse sendo observado por Abby e
Micah.
– Dan só estava me contando o quanto você é especial – Micah respondeu, rasgando
seda. – Certo, amigão?
– Hã, sim. Era isso mesmo – gaguejou Dan.
Ele tentou abrir um sorriso de gratidão para Micah, mas seu monitor não notou.
– Ah, é? – ela abriu um sorrisão e se segurou no braço dele, apoiando o rosto em
seu
ombro. – Isso é... Que gracinha, Dan – em seguida, ela fez uma careta, apontando
para o
garoto com a camisa de futebol americano que esbarrou nela e em Lara. – Já aquele
babaca é o oposto disso. Acredita que ele me chamou de princesa? Princesa! Ele nem
me conhece. Como se isso fosse algum elogio... – ele nunca havia visto Abby falar
tão
depressa, e fazendo tantos gestos. Abby se virou para ele, batendo com o dedo em
seu
peito. – Me diz que você nunca vai me chamar assim.
– Hã – Dan hesitou, contente por não ter bebido muito. – Khaleesi?
– Melhor assim – ela sorriu, e pôs as mãos na cintura. – É, isso eu aceito.
– Quantos copos você bebeu? – ele perguntou com toda a gentileza.
Micah estava indo na direção das pessoas que dançavam, em especial do garoto com
a camisa de futebol americano.
– Sei lá... dois? Dois ou três?
Não era exatamente engraçado, ainda mais considerando que precisavam sair dali o
quanto antes, mas ela ficava pondo a língua para fora e fazendo uma cara de boba...
– Pessoal! – quando ele e Abby se viraram, deram de cara com Jordan, que
segurava
três copos plásticos na mão. – Aqui! Bebam!
Dan cheirou a bebida, cheio de curiosidade.
– Rum? Vodca?
– Não, seu tonto, é refrigerante. Não podemos beber mais, para não chamar
atenção.
Daqui a pouco os outros vão estar bêbados, e podemos cair fora. Termina o que está
bebendo, Dan, e depois toma isto aqui.
Jordan tinha razão. Estavam todos com um copo vermelho na mão. Algumas pessoas
até com dois. Dan viu Cal virando sua bebida como se estivesse morrendo de sede.
– Bela escolha, Jordan – falou Abby, olhando por cima do copo. – Bem discreto.
– Ei, vocês não podem entrar aqui...
Um tumulto parecia estar se formando na porta, quando duas garotas com o moletom
de uma irmandade tentaram entrar na festa. Elas foram obrigadas a dar meia-volta
por
Micah e Cal, que barraram sua entrada.
– Podem sair – Cal esbravejou, apontado para a noite fria e escura. – Eu mandei
sair.
E sem escândalo, ou eu chamo a polícia.
Aquilo só podia ser blefe. Se a polícia realmente aparecesse, ia encontrar
menores de
idade bebendo e uma música tão alta que fazia as janelas do quarteirão inteiro
tremerem.
– Uau, eu não sabia que era uma festa VIP – murmurou Jordan.
– É melhor a gente ir embora – sugeriu Abby. – Enquanto eles estão distraídos.
Dan a seguiu até o canto da sala, contornando as pessoas que dançavam, tomando
o
cuidado de evitar Lara, que conversava com alguém não muito longe dali. Os pés de
Dan
grudaram no chão quando eles passaram pela cozinha na direção da porta dos fundos,
onde duas garotas estavam praticamente emboladas uma na outra junto ao batente.
– Isso é o que eu chamo de “dar uns amassos” – comentou Jordan com uma
risadinha.
– Para de ser tonto, Jordan – repreendeu Abby.
– Que foi? É verdade.
– Para de olhar.
– Estou só admirando – ele respondeu, todo solene, e em seguida limpou lágrimas
invisíveis sob os olhos. – É que... Isso é lindo. Ha. Eu deveria tirar uma foto e
mandar
para os meus pais. Surpresa!
– Nada disso – gritou Abby.
– Pessoal, que tal a gente se concentrar?
Dan os conduziu até o meio de umas árvores atrás da casa. Eles se reuniram na
escuridão sob os galhos. Ele sacou o celular e abriu o programa do GPS. As
coordenadas
que localizaram na internet estavam gravadas nos favoritos, e apareceram como
triângulos vermelhos na tela. Ao lado dos triângulos, números marcavam a distância
deles até cada um dos destinos.
– Este aqui parece ser o mais próximo – Dan falou, apontando para um local na
mesma rua da festa. – Com sorte, nós conseguimos ir e voltar sem que ninguém
perceba
nossa ausência.
– Eu tenho o celular da Lara – Abby contou. – Se demorar demais, posso mandar
uma mensagem dizendo que alguém passou mal e precisamos voltar para o campus.
– Tudo certo, mas a verdadeira questão é: tem alguém morando nesses endereços?
A
gente não pode chegar dizendo: “Oi! Nós achamos que a sua casa pode ter alguma
coisa
a ver com um cara que morreu e com os planos malucos dele, podemos dar uma olhada
na sua cozinha?” – Jordan abriu um sorrisão bem falso. – Qual é o plano?
– Se o lugar for habitado, vamos ter que voltar de dia – sugeriu Abby. – Ou
passar
para o próximo endereço.
Dan desviou o olhar do celular, refletindo a respeito. Ele ficou olhando para a
escuridão, com os olhos perdidos por um momento, até encontrarem uma luz prateada e
quase reluzente. Ele estreitou os olhos e viu a silhueta se transformar na imagem
de um
garotinho. Era o mesmo de olhos arregalados da hora do jantar, com a cabeça ainda
ferida e sangrando, mas dessa vez estava com as mãos estendidas para a frente,
segurando algo.
O que é isso? O que você está querendo me mostrar?
– Daniel, vamos brincar, vamos brincar...
Ele não conseguia ver o que estava escondido em sua mãozinha, e em seguida o
garoto desapareceu, e Jordan o estava sacudindo pelo ombro.
– Ei! Dan! Acorda! Dan? Terra para Dan!
– Aconteceu de novo? – perguntou Abby, interpretando com precisão sua palidez e
o
leve tremor em suas mãos.
Ele segurou com força o celular.
– Eu estou bem – murmurou. – Já passou. A gente precisa... A gente precisa ir.
Mas abandonar a sensação de segurança proporcionada pelas árvores e a luz vinda
da
casa se mostrou mais difícil do que Dan imaginava. Cada passo na direção da
escuridão
representava uma ameaça de ver aquele brilho prateado novamente, e depois o menino,
e da próxima vez havia o risco de ele não desaparecer mais.
Abby chegou mais perto dele para ver o mapa do GPS, e juntos eles atravessaram o
gramado dos fundos da casa até a rua de trás. Depois de caminhar meio quarteirão,
chegaram a uma esquina. Um único poste de luz iluminava a placa.
– Rua Ellis – ela anunciou. – E aquela casa é a 1014. Devemos estar perto.
– Não sei se estou empolgado ou prestes a vomitar – murmurou Jordan quando
atravessaram a rua.
A chuva tinha parado horas antes, deixando o chão escorregadio e reluzente. Eles
saíram debaixo da luz do poste e mergulharam de novo na escuridão. Já era tarde da
noite, e as casas estavam em silêncio, com as luzes apagadas.
Sem se dar conta do que estava fazendo, Dan começou a caminhar bem depressa,
quase correndo. Precisamente na metade do quarteirão, ele parou, e o celular de
Abby
iluminou a caixa de correio em frente ao gramado.
– É aqui – ela anunciou. – Nenhum carro na garagem. Nenhuma luz acesa. O que
vocês acham?
– O que vocês estavam pensando em fazer? Tocar a campainha? – murmurou Jordan.
– Vamos logo encontrar uma janela que dê para abrir e torcer para que não tenha um
cão de guarda.
– Parece uma casa abandonada – comentou Dan.
– E assustadora. Argh.
Jordan tinha razão. A casa em estilo vitoriano já tinha visto melhores dias. A
pintura
estava toda descascando, pendurada às tábuas de madeira pelo efeito da umidade. Com
seus três andares, a construção era grande demais para o terreno. Algum dia devia
ter
sido verde escura, ou talvez azul.
Dan se recusou a olhar para as janelas, convencido de que veria o menino pálido
e
ensanguentado o encarando lá de dentro.
Assim que puseram os pés na varanda lateral da casa, as tábuas começaram a
ranger.
O trio seguiu com passos cautelosos, tentando minimizar o ruído que produziam
enquanto
se encaminhavam para os fundos da construção. Jordan espichou a cabeça para espiar.
– Parece que a barra está limpa – ele falou –, e não estou ouvindo nada nem
ninguém.
Acho que consigo pôr a gente para dentro.
Ele sacou uma pequena ferramenta do bolso, e não um grampo para abrir
fechaduras, mas uma espécie de pá de pedreiro em miniatura.
– Por que eu não fiquei surpreso com isso? – murmurou Dan, com um sorrisinho.
– Isso é bom para janelas – murmurou Jordan. – Já precisei usar algumas vezes lá
em
casa.
Ele enfiou a ponta do instrumento no caixilho, forçando a madeira apodrecida.
Com
alguns empurrões, a janela cedeu, e Dan ouviu um clique bem fraco.
– Não tem alarme. Ainda não estou ouvindo nada... – Jordan levantou a janela
alguns
centímetros, esperou um pouco e em seguida a ergueu até o alto. – Depois de vocês.
– Quanta gentileza – falou Abby com uma risadinha sarcástica.
Pelo menos ela parecia ter ficado sóbria de novo. Dan se ajoelhou e fez
escadinha
com as duas mãos para que ela pulasse com segurança. Ele ajudou dando um impulso
extra e entrou logo em seguida. Quando Jordan aterrissou ao seu lado, eles baixaram
e
travaram a janela. Dan sacou seu celular para iluminar o caminho.
– Não acendam as luzes – ele alertou. – Os vizinhos podem perceber.
Ele esquadrinhou o ambiente com a tela do celular, revelando uma cozinha que
parecia ser um memorial dedicado a uma era perdida. Dan estremeceu, sentindo o
mesmo frio úmido e intocado dos porões do Brookline, como se o ar ali não fosse
respirado fazia décadas. Parecia que nada havia sido tocado durante anos, mas,
estranhamente, as coisas ali tinham uma aparência limpa, ou no mínimo organizada.
– Alguém está tomando conta deste lugar – ele comentou, caminhando até a pia à
sua
esquerda. Ele abriu a torneira de água quente, e os canos rangeram e tremeram antes
de
expelir um fino jato de gosma alaranjada, que se transformou em água limpa poucos
segundos depois. – Ainda tem água na torneira, o que significa que tem alguém
pagando
as contas da casa.
As luzes das telas dos celulares de Jordan e Abby dançaram pela cozinha. Havia
pratos empilhados ao lado da pia, e a xícara deixada sobre o balcão ainda tinha
restos de
chá ressecados.
– Vejam só isso! – era Abby, exclamando em voz baixa do cômodo ao lado, uma sala
de jantar espaçosa com lustre de cristal e um relógio de pedestal parado. – Um
monte de
jornais, e pilhas de cartas. O que são todas essas coisas?
Dan seguiu o som de sua voz e se juntou aos dois na sala de jantar.
– Malotes de correspondência – respondeu Jordan, chutando um com a ponta da
bota.
– Parece que não são abertos nem tocados há anos. Olha só quanta poeira.
Abby já estava começando a mexer em algumas cartas soltas, caídas no chão. Com
as mãos trêmulas, ela abriu um dos envelopes sem selo.
– Esta é de 1968. Esta também. E esta. E estas são do ano seguinte – ela começou
a
remexer mais rapidamente nos envelopes, um pouco ofegante. – Os endereços parecem
ser daqui da cidade, mas tem dezenas de destinatários diferentes.
– Quem ia se dar ao trabalho de recolher tanta tralha? – questionou Jordan,
espiando
por cima do ombro de Abby.
– Tem malotes aqui também – anunciou Dan, depois de se afastar deles e ir até o
hall.
Ele se agachou e apanhou algumas cartas, soprando uma fina camada de poeira que se
acumulava sobre os papéis. – São da mesma época, de 1968 e 1969 – examinando as
cartas, ele começou a notar um padrão, ainda que não muito evidente, e guardou
aquelas
destinadas a endereços que reconhecia. – Estão todas endereçadas para mulheres. E
todas daqui, ao que parece. Ah, e deem uma olhada nisso...
Dan havia encontrado uma pilha de fotografias presas com um clipe em um envelope
pardo sem nome nem endereço. Eram imagens de mulheres (de jovens, na verdade, que
pareciam ter idade para ser universitárias) e, apesar de nenhuma delas ser muito
comprometedora, transmitiam uma impressão de intimidade – de voy eurismo até – que
fez o sangue de Dan gelar.
– Elas parecem tão tristes – comentou Abby. – O que vocês acham que...
Ela se interrompeu, alarmada por um ruído no lado de fora. Mais exatamente, na
varanda por onde tinham entrado.
Dan se agachou por um instinto, e os outros fizeram o mesmo instantes depois.
Rastejando pelo hall, eles foram se esconder atrás de uma cristaleira perto da sala
de
jantar. Apesar da escuridão, dava para sentir uma diferença na luminosidade do
ambiente, e um vulto passou pela janela bem acima deles.
– Tem alguém aqui – Jordan sussurrou, batendo com a mão na boca em seguida.
O vulto se moveu outra vez, e então parou. Dan prendeu a respiração, fechando os
olhos com força. Ele não teve coragem de olhar.
Pela janela, ele ouviu alguém respirar fundo, e uma voz de menina começou a
cantar
com uma voz aguda:
– Daniel... Daniel... Vamos brincar, Daniel...
Pareceu uma eternidade, o tempo que se passou depois que a voz cessou e o barulho
do
lado de fora voltou, dessa vez se afastando. Nenhum deles se moveu, permaneciam
paralisados e em silêncio. Os minutos seguintes se arrastaram, e Dan continuou
prendendo a respiração até sentir seus pulmões em chamas.
– M-me digam que também ouviram isso – sussurrou Dan, erguendo um pouco a
cabeça.
– Ah, sim – respondeu Jordan, todo pálido. – Com certeza.
– Dan... – Abby o sacudiu ao seu lado, segurando-o pelo joelho. – Você disse que
tinha
visto um garotinho. Essa foi uma voz de menina. Tem mais de um fantasma?
– Minha nossa – Jordan se apoiou pesadamente à cristaleira. – Vocês só estão
piorando
as coisas. Fiquem quietos, fiquem quietos!
– Precisamos sair daqui – falou Abby. – A última coisa que queremos agora é ir
para
a cadeia por arrombamento e invasão.
– Me deixem olhar... – Dan ficou de joelhos, olhando ao redor e erguendo a
cabeça
para espiar pela janela.
Sem nenhum poste de luz perto da casa, era difícil determinar se a barra estava
limpa.
Mas não havia ninguém à espera na janela nem nos arredores, pelo que Dan conseguia
ver.
– Acho que está tudo certo – ele os conduziu até a cozinha e a janela por onde
tinham
entrado. – Preciso fazer alguma coisa especial com a janela ou é só abrir?
Jordan se inclinou para a frente e puxou a janela para cima. Ela rangeu e por um
instante pareceu prestes a se soltar. Com um empurrão mais forte, a janela enfim se
abriu.
– Eu até diria “depois de vocês”, mas dane-se, quero sair logo daqui.
Jordan tomou impulso no balcão da cozinha saltou para a escuridão da noite. Abby
foi
logo atrás. Ela se virou para Dan antes de pular para fora.
– Que foi?
– Sabe aquela sensação esquisita de estar sendo observada?
– Pois é, eu também estou sentindo – ele falou. – Precisamos ir logo.
Assim que as palavras saíram de sua boca, ele ouviu um único e solitário passo
acima
de sua cabeça, que pareceu reverberar pela casa toda.
– Vamos – ele disse em tom de urgência, fazendo sinal para que ela pulasse.
Dan pulou depois dela e se jogou pela janela, ignorando um pedaço de madeira
pontudo que arranhou seu braço. De volta ao frio do lado de fora, Dan fechou a
janela e
seguiu seus amigos pela varanda.
Ninguém precisou dizer nada. Jordan saiu correndo em disparada. Dan fez o mesmo,
olhando por cima do ombro para a casa da qual tinham saído. Sentindo o contato do
papel
contra sua pele, pôs a mão na barriga, onde tinha guardado algumas cartas dos
malotes,
enfiadas na cintura da calça. Seu braço latejava no local do arranhão. Ele pôs a
mão
sobre o ponto dolorido, e sentiu a palma se encharcar de sangue.
Quando chegaram à esquina, Dan diminuiu o passo e sacou as cartas.
– Não foi um fracasso total – ele falou por entre os dentes cerrados. – Pelo
menos
consegui pegar isto.
– Eu trouxe algumas também – acrescentou Abby. – Será que alguém vai perceber?
Dan encolheu os ombros, olhando para as cartas em sua mão com a testa franzida.
– Sem querer dar uma de desmancha-prazeres – começou Jordan –, mas que diabos
aconteceu lá dentro? Só eu fiquei com a impressão de que o Felix armou uma cilada
para
nós?
– Essas cartas devem ser importantes – falou Abby, sem responder à pergunta. –
Podemos ler as que pegamos e procurar alguma menção ao Brookline. Se não tiver...
Bom, podemos sempre voltar outro dia.
Dan se lembrou do passo que ouviu na casa, e que fez a estrutura toda
estremecer.
– Vamos torcer para que não seja preciso – ele murmurou. – Enfim, esse foi só o
primeiro endereço. Talvez aquilo que o Felix quer que a gente encontre esteja em
uma
dessas coordenadas, mas ele não sabia qual.
– Cara, todas essas possibilidades estão começando a me deixar com medo – falou
Jordan.
Ele se virou e saiu andando com um andar confiante na direção do poste de luz
sob o
qual pararam no caminho de ida, e Dan foi atrás, com a mão no braço machucado.
– Ei!
– Cuidado aí!
Dan sentiu a mão de Abby o segurando pela blusa e o puxando para trás enquanto
Jordan se agachava sob o poste de luz, com a mão no peito, ofegante.
– Cara! Você quase me mata de susto! – ele gritou.
– Desculpe, desculpe – era Micah, que apareceu sob a luz com as mãos erguidas em
sinal de rendição. Dan soltou um suspiro de alívio. – Não queria assustar ninguém,
mas
vocês sumiram da festa. Estou procurando há um tempão...
Ele olhou para Dan, que segurava com força o braço machucado na altura do
bíceps.
– Está tudo bem?
– Sim, a gente só estava... – o que eles estavam fazendo? E por que não bolaram
uma
boa desculpa de antemão para o caso de isso acontecer? Ele engoliu em seco e
encarou
Micah nos olhos. – A gente só estava dando uma volta. A festa estava meio lotada, a
gente
saiu para tomar um ar – Dan sorriu, e fez seus ombros relaxarem. Relaxe. Se você
ficar
tranquilo, ele não tem como saber que é mentira. – Acho que a gente se distraiu e
acabou
se perdendo. Foi difícil achar o caminho de volta.
Ele olhou para Jordan e Abby, esperando uma confirmação de sua história. Os dois
assentiram com a cabeça em uma sincronia bem suspeita.
– Pois é! – Abby enfim resolveu dizer. – A gente se perdeu. A festa estava...
estava
muito quente lá dentro, sabe? Tinha gente demais na casa!
– É verdade, eu também achei meio incômodo lá dentro – Micah falou, ajeitando os
óculos. – Quer que eu mostre o caminho de volta para vocês? Acho melhor. Não sei se
vocês têm permissão para ficar perambulando pela cidade no meio da noite.
– Permissão?
Jordan acabaria complicando tudo se continuasse com aquela atitude.
– Ah – Micah deu uma risadinha nervosa. – Não é bem isso... O que eu quis dizer
foi
que a gente tem obrigação de garantir a segurança de vocês.
– Obrigado por ter encontrado a gente – Dan se apressou em dizer. Ele saiu
andando
na direção que esperava ser a do campus. Micah não fez nenhuma objeção, então ele
supôs que estava certo. – Andar por essas ruas escuras à noite é uma loucura.
Aposto que
de dia deve dar para ver a capela do campus de qualquer lugar.
– Eu acho que sim.
– Mas você deve conhecer tudo por aqui de olhos fechados a esta altura. É
estranho
ter outro lugar em que você se sinta em casa? Quer dizer, quando você chegou devia
estar tão perdido quanto a gente, mas agora deve ser tudo muito natural.
Dan percebeu que sua fala estava ficando acelerada demais, mas não fez nada para
impedir isso.
– Ah, com certeza.
Dan se sentia obrigado a continuar falando, não só porque queria provar sua
inocência, mas também porque não suportaria o silêncio àquela altura. O silêncio
era
algo que dava poder às sombras e à escuridão. O silêncio significava poder ouvir
seu
nome ser chamado a qualquer momento. O falatório incessante e enlouquecido parecia
agir como uma proteção contra essa possibilidade, e até o fez relaxar um pouco.
Foi só quando se aproximaram da casa em que estava sendo realizada a festa que
Abby o puxou pela manga e Dan se deu conta do quanto estava falando.
– Ei, tagarela – Jordan falou quando Dan diminuiu o passo para ficar ao lado
deles. –
O seu comportamento está mais do que suspeito.
– Ah, é? – perguntou Dan. – Droga, acho que está mesmo.
– Ninguém fica tagarelando desse jeito por aí, a não ser que esteja escondendo
alguma coisa – acrescentou Abby. – Ou você está tentando fazer novos amigos? Isso
seria muito irônico, já que você mesmo disse que não estamos aqui para isso.
– Pois é, verdade. Eu só pensei que...
Eles estavam quase na porta dos fundos da casa. Micah não parecia muito
preocupado
em perdê-los de vista de novo. Abby passou por ele abrindo um sorriso amarelo. A
cozinha estava bem menos lotada a essa altura.
– Uau – murmurou Jordan. – Quem quer uma bebida?
Ele foi até a tigela de ponche no balcão e pegou um copo para si. Cal se juntou
a
Micah na porta e, enquanto eles conversavam, Cal ficou os olhando o tempo todo por
cima do ombro.
– Você pensou o quê? – questionou Abby.
Eles estavam ao lado de um pacote vazio de batatinhas e tigelas de molho.
Mais atrás no balcão havia uma fileira de velas acesas. Dan ficou observando a
da
ponta direita, redonda e vermelha, queimada quase por inteiro. Só o que restava era
a
forma de um maxilar e um queixo.
– Eu só pensei que qualquer coisa seria melhor que o silêncio – ele deu risada,
ironizando a própria explicação. – Se todo mundo ficasse quieto, eu poderia ver
aquele
garoto de novo. Ou então ouvir vozes. Mas com certeza deve parecer uma explicação
bem idiota.
– Nada disso, Dan – Jordan falou baixinho. – Eu entendi o que você quis dizer.
Abby abriu a boca para responder e, a julgar pela testa franzida, não parecia
muito
inclinada a concordar. No entanto, ela não teve a chance de se manifestar. Micah
tinha
terminado de conversar com Cal e estava se aproximando por trás de Jordan.
– Ei, pessoal, posso roubar o Dan um minutinho?
– Ele é todo seu – respondeu Jordan, sorrindo com os dentes cerrados.
– Obrigado.
Ele não deu a Dan a oportunidade de se despedir, simplesmente o pegou pelo
braço e
o arrastou para longe. Um bando de estudantes bêbados apareceu vindo da sala, e
Abby
e Jordan sumiram na multidão.
Micah o levou para o outro lado da cozinha, até uma abertura debaixo da escada
que
parecia não ser capaz de esconder nem ao menos uma pessoa. Isso não estava
cheirando
nada bem – e se Micah resolvesse delatá-los por sua escapada? Talvez ele não fosse
tão
simpático e tolerante quanto parecia.
– O que foi? – perguntou Dan em um tom neutro.
– Eu não ia falar nada – começou Micah, limpando um suor invisível da testa. –
Mas
você precisa avisar para o seu amigo Jordan tomar cuidado com o Cal. Estava
conversando com ele agora, e o cara estava todo aceso.
– Todo aceso? – murmurou Dan, levantando uma de suas sobrancelhas.
– Bêbado – explicou Micah. – Enfim, o comportamento dele anda, hã, meio
inconstante ultimamente. Com a morte do pai... Ele anda imprevisível, e às vezes
perde a
linha quando bebe. Se o Cal já é sacana quando está sóbrio, bêbado então... Se eu
disser,
ele pode não levar a sério, mas com certeza vai ouvir você. Não é nada de mais, só
acho
que vale a pena a gente ficar de olho.
– Ele anda bebendo mais do que antes? – perguntou Dan, sem entender muito bem o
que estava acontecendo.
Micah fez que sim com a cabeça.
– Está bebendo demais, tirando notas baixas e andando com as pessoas erradas.
Ainda
é cedo para dizer que é uma “espiral descendente”, mas a coisa está chegando nesse
ponto, sabe?
Foi a vez de Dan assentir com a cabeça.
– Acontece bastante – continuou Micah, alisando o cavanhaque. – Mais do que você
imagina. A pressão para a pessoa se sair bem, tirar boas notas, muitas vezes acaba
sendo
exagerada. E depois o pai dele... Foi muita coisa ao mesmo tempo. Quando vi seu
amigo
dançando com ele, achei melhor avisar.
– Mas, se o Cal está em uma espiral descendente, como conseguiu virar monitor de
um candidato?
Micah deu risada, quase uma gargalhada, e ficou olhando para Dan por um tempo
antes de voltar a falar.
– Então, lembra que eu falei que o pai dele era uma figura importante no campus?
– Lembro...
– Ele era o reitor. A direção da faculdade está pisando em ovos com o Cal desde
que
isso aconteceu. Ele pode aprontar qualquer coisa aqui que provavelmente não vai
acontecer nada.
– Há – Dan soltou uma risada nervosa e forçada. – Bom... Eu, hã... Vou falar
para o
Jordan ficar esperto.
– É só isso que estou pedindo – Micah respondeu, dando um tapinha no ombro de
Dan.
– Valeu. Eu já achava que você era um cara de confiança, e fico feliz em saber que
estava certo.
Naquela noite, depois de chamar Jordan para uma conversa particular sobre Cal, Dan
voltou para o quarto de Micah e dormiu sem nem olhar para as pistas que tinham
coletado. Ele caiu em um sono profundo, e mesmo inconsciente sabia que os sonhos
viriam, conseguiu sentir quando se formaram em sua mente como nuvens de
tempestade.
O sonho o engoliu por inteiro.
Ele estava de pé na entrada de uma casa caindo aos pedaços, batendo a lama da
sola
das botas. Havia um guarda-chuva em sua mão, e ele o sacudiu para se livrar da
água.
Consultou o relógio de bolso, antigo e bem polido, e se sentiu dominado pelo
aborrecimento por ter de fazer aquela visita. Ele tinha muita coisa a fazer. Seu
tempo era
precioso. Por que desperdiçá-lo com cretinos e imbecis?
Então apareceu Harry, cambaleando na sala de jantar. Fileiras e fileiras de
malotes
postais preenchiam a sala, cinzentos e inchados como porcos de abate. Ele foi até
um
deles e o chutou com a ponta do pé, o que fez Harry se encolher visivelmente. Não
importava. Como todos os demais, Harry era um homenzinho insignificante. Mas as
miudezas algum dia poderiam levar a coisas grandes, essas sim sua vocação.
– Cartas e mais cartas, nenhuma para mim – Harry falou, todo preocupado com os
malotes, cuidando deles como um pai atencioso. – Nunca tem nenhuma para mim.
– Elas são todas para vocês, Harry. É você quem cuida dessas coisas. É o
guardião.
Isso lhe dá poder. Você leva as cartas para onde precisam ir. Por um momento, pelo
menos, todas as cartas são para você – isso pareceu acalmar o homem. Ele parou por
um
tempo de prender compulsivamente os cabelos embaraçados atrás da orelha. – Mas você
se comportou mal de novo, não foi, Harry? Andou xeretando, lendo o que não devia.
– Sim. Muito mal. Sim, eu não deveria...
Harry prendeu o cabelo atrás da orelha de novo, e de novo, e de novo.
Não havia nada a fazer a não ser suspirar e assentir com a cabeça.
– Quem foi desta vez?
– As meninas. As meninas escrevem umas para as outras, mas nunca para mim.
Cartas
e mais cartas, nenhuma para mim.
– Eu já falei, Harry, elas são para você, mas só por um tempo. Como isso faz
você se
sentir?
– Bem. Eu me sinto bem.
Grunhindo e se contorcendo, Harry endireitou um pouco o corpo.
– Eu não estou aqui para curar você – ele consultou outra vez o relógio, e
segurou com
força sua estrutura de metal. – Então trate de se acalmar. Eu não estou aqui para
curar
você, Harry... – então ele sorriu e pediu para Harry se aproximar. – Estou aqui
para
libertar você.
Dan acordou suando frio. Era só sua imaginação, claro. Ele havia entrado
naquela
casa com Abby e Jordan, e agora sua mente estava inventando histórias. Micah tinha
deixado uma fresta da janela aberta, permitindo a entrada da brisa constante e
incomodamente úmida. Com as mãos trêmulas, Dan se enfiou debaixo do cobertor, e o
tremor ficou ainda pior quando pensou na voz estranha e confiante de Felix.
Você vê coisas que não deveria. Conhece coisas que não deveria ter como saber.
Como
as lembranças de outras pessoas.
Não era esse seu problema, certo? Transtorno dissociativo era seu problema – e
já era
uma coisa bem difícil de lidar. E talvez fosse esse o problema de Felix também, de
repente um caso mais grave ou coisa do tipo. Mas os sonhos e as visões de Dan
pareciam
ser bem reais, e sobre coisas que ele não teria mesmo como saber. A não ser que
fosse
tudo sua imaginação, havia algo acontecendo ali, e algo muito errado.
Dan não sabia o que era pior – a ideia de estar sendo assombrado, possuído ou
coisa
parecida ou a ideia de que tudo aquilo era coisa de sua cabeça.
– Micah nem precisava dizer nada – explicou Dan, tentando parecer indiferente, mas
parecendo quase petulante. – Ainda bem que o Jordan estava esperto. E que história
foi
aquela de os dois dançarem juntos, aliás? Pensei que o Jordan nem gostasse do cara.
– Ah, qual é. Você acha que o Jordan tem muitas chances de ser ele mesmo? Dá
para
entender que queira se soltar um pouco. Duvido que ele tenha chance de dançar com
garotos nas festinhas da escola – Abby segurava um copo de café fumegante entre as
mãos enluvadas.
Eles tinham se encontrado no centro acadêmico assim que o lugar abriu. Dan mal
conseguia se manter acordado tão cedo assim, mas a cafeína ajudava.
– Eu não tinha pensado nisso – admitiu Dan.
– Jordan não é idiota, ele sabe que não pode se deixar levar. Só vamos ficar
aqui por
três dias – comentou ela.
– Mas os monitores parecem bem interessados em conhecer a gente, não? –
respondeu ele. – Não sei se isso é uma coisa boa, não.
– Pois é, né? Em circunstâncias normais, eu acharia ótimo, mas não é o caso
aqui.
Ela havia pedido um cappuccino com baunilha e, sem saber o que queria, Dan pediu
o
mesmo.
O cheiro de baunilha fervida saía pela pequena abertura na tampa do copo. Ele
respirou fundo, usando o calor da bebida como um escudo contra o frio de outubro. A
neblina pairava sobre a grama, espalhando-se ao redor como um tapete de brumas.
Abby os conduzia pelos caminhos que atravessavam o campus, pegando a rota mais
curta possível para a rua a que se dirigiam, que se estendia na direção leste.
– Bom, eu pelo menos estou contente por me livrar de Micah por um tempo –
comentou Dan. – Quer dizer, fico feliz por poder passar um tempinho com você.
Ela parou e inclinou a cabeça um pouco para o lado. Por fim, respondeu:
– Eu também. Acho que não ia conseguir fazer essa viagem sozinha.
– E o lance de arte da Lara, como é?
– A instalação? Ah, é uma beleza, Dan, uma coisa assustadora. Ela tem tanto
talento,
me dá até inveja.
Quando Abby mandou uma mensagem naquela manhã perguntando se ele queria
acompanhá-la em sua visita à tia Lucy, ela avisou que antes passaria na instalação
de
Lara. Ao que parecia, Lara trabalhava melhor nas primeiras horas da manhã. Dan não
imaginava que fosse acordar tão cedo depois da noite que tiveram, mas pelo jeito
não
era o único – Micah já estava vestido e pronto para sair assim que Dan acordou. Ele
fez
questão de marcar um encontro com Dan na hora do almoço, quando saberia se Dan
poderia ou não acompanhar as atividades coordenadas pela professora Rey es, e
também
mencionou que o parque de diversões estaria em funcionamento naquela noite. Quando
se viu a sós, Dan ligou para sua mãe e contou que Georgetown era bem legal.
– Você e a Lara parecem estar se dando bem. Acha que vão manter o contato depois
que a gente for embora?
Eles estavam na extremidade do campus, onde os caminhos pavimentados em meio à
grama davam lugar a calçadas. A capela se erguia à sua esquerda, e mais adiante
ficava
a biblioteca.
– Ainda não pensei sobre isso – respondeu Abby, dando um gole no café. – Às
vezes
acho melhor simplesmente esquecer este lugar.
Mais uma vez aquela palavra horrorosa, simplesmente.
– Não sei como você conseguiria fazer isso – Dan falou, sem saber se ainda
estavam
falando da mesma coisa, e incapaz de esconder a mágoa na voz. – Eu penso no que
aconteceu no verão o tempo todo.
Abby balançou a cabeça e levantou o café para mais perto do rosto, tocando a
superfície quente do copo na pele de ambas as bochechas rosadas.
– Mas, se desse para virar a página, tipo em um passe de mágica que o fizesse
esquecer de tudo e seguir em frente, você faria isso?
Ele não soube como responder.
Com um sorriso, ela encostou o cotovelo na manga de sua jaqueta.
– Foi o que eu pensei. A obsessão não é uma coisa saudável, Dan, você sabe
disso.
Quando a gente for embora daqui, mesmo sem conseguir uma explicação para o que
está acontecendo, você precisa dar um jeito de se distanciar disso tudo. Já
conversou
sobre isso na terapia? Sei que não é da minha conta, mas...
– Já falei, mas ela nunca comenta quase nada, só me deixa falar. Isso é bom, eu
acho...
Dan deteve o passo, sentindo seu bolso vibrar. Ele sacou o celular e leu a
mensagem
de Jordan.
– Ele quer que a gente espere. Parece urgente. Tudo bem para você? – Dan guardou
o
celular e deu um passo à frente, para se aquecer no sol.
Menos de dez minutos depois, Jordan apareceu no meio da neblina, correndo na
direção deles. Quando chegou, estava ofegante, com os botões do casaco presos nas
casas erradas.
– Que foi? – quis saber Abby, tocando seu ombro.
– É... O Cal... – Jordan se curvou para a frente, com a respiração acelerada.
Quando
ergueu a cabeça, cravou os olhos arregalados em Dan. – Seu amigo não estava
mentindo. Tem alguma coisa errada com aquele cara.
– O que aconteceu? – Abby começou a acariciar as costas de Jordan com
movimentos circulares.
Jordan ficou de pé e sacudiu a cabeça, ainda com a respiração acelerada.
– Ele estava bebaço quando voltou para o quarto ontem à noite. Pensei que
estivesse
dormindo, para amenizar a ressaca, mas quando abri os olhos dei de cara com ele.
Tipo,
de pé ao lado do futon, olhando para mim.
Isso deixou Dan alarmado.
– Ele falou alguma coisa?
– Não! Só ficou lá me olhando enquanto eu dormia. Foi a coisa mais bizarra que
já vi,
e olha que ultimamente ando vendo umas coisas bem estranhas.
– Ele parou depois que você acordou? – indagou Abby, ainda acariciando suas
costas.
– Não. Eu comecei a gritar, bater palmas. Nada funcionou. Fiquei sem saber o que
fazer. Entrei em pânico, pensando que talvez estivesse dormindo, sabe? Imaginando
aquilo. Fechei os olhos de novo e, quando abri, ele estava na cama outra vez.
Roncando.
Simplesmente... roncando.
Jordan apertou o nariz entre os olhos e se inclinou para trás, na direção da mão
de
Abby.
– Talvez ele seja sonâmbulo – sugeriu Dan. – Não é uma coisa incomum.
No entanto, ele já estava pensando no verão que passou com Felix, quando
aconteceu
exatamente a mesma coisa. Dan sentiu o suor se acumulando na palma de suas mãos,
apesar do frio. Talvez fosse um grande erro ficar ali. Jordan podia estar em
perigo... Cal
podia ser uma versão 2.0 de Felix.
– Não era sonambulismo – Jordan rebateu com convicção. – O Micah até avisou para
você. Enfim... Eu não vou voltar para aquele quarto agora. Não quero ficar sozinho
com
ele. Posso ir com vocês?
– Claro – respondeu Abby. Ela ofereceu seu café a ele, que deu um gole. –
Estamos
indo ver a Lucy. Vocês podem esperar lá fora se não quiserem entrar.
Eles atravessaram a rua, deixando para trás a capela, e seguiram Abby pela
calçada.
A rua virava uma descida depois de uma fileira de casas usadas para escritórios e
abrigo
para hóspedes.
– Tem certeza de que está tudo bem? – perguntou Abby.
Dan ficou um passo para trás.
– Vai ficar – garantiu Jordan. – Vamos falar sobre outra coisa. E a sua tia? Ela
sabe
que a gente está indo?
– Sinceramente? – ela suspirou e encolheu os ombros estreitos. – Não faço
ideia... Ela
não me atende pelo telefone e não responde minhas cartas. Duvido que ela saiba usar
computador, então um e-mail está fora de cogitação. Só espero que ela esteja bem.
Depois de perder o marido, ser confrontada com o passado... É muita coisa ao mesmo
tempo, e depois do que fizeram com ela no manicômio...
– Então como você sabe que ela está em casa? – perguntou Jordan, dando mais um
gole no café.
– Na verdade não sei. Ela se mudou para outra casa no fim do verão e me mandou o
endereço. Foi a última notícia que tive dela. Mas a minha intuição me diz que ela
não iria
embora de Camford. Acho que é isso que vamos descobrir, não?
A caminhada era mais longa do que Dan esperava, e quando chegaram ao pequeno
chalé de Lucy estava desconfortavelmente suado e com frio ao mesmo tempo. O corpo
coberto com a jaqueta estava todo úmido e grudento, mas seu rosto e suas mãos
estavam
vermelhos por causa do vento gelado de outono.
Jordan limpou o nariz escorrendo quando eles chegaram à beirada do gramado.
– Ela não é adepta de manter a casa em ordem, então – resmungou.
Ninguém tinha cortado a grama nem feito nenhum preparativo para o inverno. A
maioria das pessoas cobria o gramado de folhas secas, para proporcionar uma camada
de proteção contra a neve. Ali, porém, a grama crescia à vontade, junto com ervas
daninhas e trepadeiras nas paredes externas. Algumas das placas de madeira do
telhado
estavam soltas.
Apesar disso, uma lufada de fumaça rosada escapava pela chaminé.
– Parece que ela está em casa – comentou Dan, apontando para a fumaça.
– Certo... – Abby bateu as luvas uma na outra, retinindo de energia nervosa. –
Esperem aqui. Me deixem ver primeiro como ela reage, depois vejo se podemos entrar.
– Fique à vontade – respondeu Jordan, que não parecia nem um pouco empolgado
com a ideia de entrar naquela casa dilapidada.
As janelas estavam fechadas. A soleira da porta estava quase escondida sob uma
pilha
de jornais não recolhidos. Tudo ali sugeria o abandono, a não ser a chaminé. Dan se
lembrou da maneira como Lucy o encarava... Um olhar de acusação. De medo. Como
se houvesse um monstro dentro dele, e ela pudesse vê-lo. Mas ele precisava estar
ali, por
Abby.
– Lá vamos nós.
Abby respirou fundo e foi andando até a porta, tocando a campainha com a mão
enluvada.
Dan escutou o eco da campainha lá dentro, e eles esperaram por quase um minuto
antes de ouvir passos ressoando do outro lado da porta.
– Está vindo alguém – falou Dan.
Parecia que a pessoa do lado de dentro precisava desarmar uma dúzia de trancas e
correntes antes de abrir a porta.
Lucy, pálida e descabelada, mas com olhos atentos e lúcidos, os recebeu com um
suspiro de susto e em seguida um sorriso.
– É você – disse ela, com os olhos fixos em Abby. Estava usando um cardigã por
cima
do vestido, meia-calça de lã e pantufas. – Veio fazer uma visita?
– Hã, sim – respondeu Abby, remexendo os pés. – Pois é. Eu, hã, queria saber se
está
tudo bem. Não conversamos quase nada desde o fim do verão e...
– Entra – Lucy deu um passo atrás e a chamou para dentro. Abby olhou para onde
estavam Jordan e Dan. – Podem entrar, todos vocês.
Abby começou a andar na direção da porta, mas Jordan e Dan hesitaram até receber
um olhar impaciente da parte dela. Estremecendo, Dan foi o último a entrar. Atrás
dele,
Lucy fechou a porta e suas dezenas de trancas.
– Podem ficar à vontade – falou Lucy, passando apressada por eles na direção da
cozinha no fim do corredor. – Vou pegar algo na cozinha para comer.
– Alguém liga para o A&E – Jordan falou com o canto da boca. – Acho que temos
uma acumuladora aqui.
Abby soltou o ar com força.
– Que desastre – ela comentou, desbravando as pilhas de jornais e tralhas na
sala de
estar à esquerda.
Ela conduziu o grupo até um sofá, de onde teve que tirar diversas cestas de
frutas
artificiais para que pudessem sentar.
– Pensei que ela tivesse acabado de mudar para cá – murmurou Dan.
Eles se sentaram um ao lado do outro, com as mãos no colo.
– Foi isso mesmo – respondeu Abby. – Como alguém consegue juntar tanta tralha em
dois meses?
– Você não achou que ela estava meio esquisita? – perguntou Jordan, afastando
cuidadosamente uma maçã de cera que rolou sobre sua perna. – Tipo... empolgada?
Como se tivesse ficado feliz de ver a gente?
– Isso me pareceu meio... inesperado. Talvez ela esteja melhor do que eu pensei.
Ou pior, Dan pensou, mas não disse.
Lucy voltou com uma bandeja com biscoitos recheados e bolinhos, que deixou na
mesa de centro diante deles antes de se sentar em uma poltrona na frente do sofá.
Havia
algumas fotos de família em molduras rachadas nas paredes, a maioria retratos em
preto
e branco de pessoas que pareciam ser os pais ou os avós de Lucy. As imagens estavam
tão desbotadas e vincadas que as pessoas retratadas mais pareciam fantasmas.
Uma das fotos em particular chamou a atenção de Dan. Era de um homem de pé em
um gramado, com a cabeça virada para cima, equilibrando – de forma inacreditável –
um carrinho de mão no queixo. Ele não teria como saber com certeza sem perguntar
para Lucy, mas ficou com a impressão de que aquele era seu falecido marido, Sal
Weathers, na juventude. Três meses antes, Dan encontrou o corpo de Sal na mata. Na
época, Lucy pareceu culpar Dan pela morte do marido.
Lucy se inclinou para frente e sorriu para Abby do outro lado da mesa.
– Está contente com a formatura? Está se candidatando para as faculdades? Muita
coisa vai mudar na sua vida agora!
Aquela não era a mulher tímida e frágil de que Dan se lembrava. Não que ele
tivesse
muita experiência com pacientes de lobotomia, mas a Lucy silenciosa e ligeiramente
aérea que conheceu no verão era muito mais a imagem de uma sobrevivente do que a
atual. No entanto, quando ouviu o interrogatório que ela lançou para Abby, ele
tentou
encarar isso como um desdobramento positivo, e não algo assustador – principalmente
por Abby. Ele se recostou no sofá e mordeu um biscoito, que estava murcho e sem
gosto.
Ouviu Jordan tossir, e um guardanapo amassado foi jogado na mesinha.
– O que trouxe você de volta a Camford? – indagou Lucy.
Dan não deixou de reparar que, apesar de dirigir suas perguntas a Abby, o olhar
dela
estava voltado para ele. Seu joelho começou a balançar nervosamente.
– Decidimos fazer uma visita ao campus. Passar o fim de semana – explicou Abby.
– Vocês escolheram uma época boa, com o parque de diversões e tudo mais... tem
bastante coisa para ver.
– Você vai? Vai querer ver o parque? – questionou Abby.
– Não, não... Lembro que o Sal dizia que o pai dele ia quando criança... Não
lembro
de tudo o que ele falou, só umas partes... Bom, lembro de algumas coisas. Mas o pai
dele
ia quando criança. Disso eu lembro.
Dan se ajeitou no assento quando ela começou a relembrar. Como parecia lúcida e
coerente, talvez fosse capaz de fornecer algumas respostas no fim das contas. Abby
pareceu ter pensado a mesma coisa.
– Então a sua memória... – questionou ela, falando devagar – ...já está melhor?
Você
está conseguindo lidar com isso tudo?
Lucy fez um gesto afirmativo, inclinando a cabeça para o lado e lançando um
olhar
afetuoso para Abby.
– Sim. Estou, sim. A faculdade manda uns estudantes de vez em quando para ficar
comigo, trazer mantimentos, esse tipo de coisa. Está tudo bem melhor desde que eu
descobri a estrela incandescente.
Jordan tossiu outra vez, e deu para sentir que foi de propósito. Dan tinha
percebido
também. Ele já havia repassado mentalmente sua visita a Felix umas setenta vezes.
Conseguia se lembrar da entonação exata... Estrela incandescente.
Não podia ser uma coincidência.
– Descobriu o quê? – perguntou Dan, se ajeitando no sofá.
– A estrela incandescente – Lucy respondeu sem hesitar. Ela estendeu a mão para
trás
e pegou uma fotografia emoldurada da mesa atrás da poltrona, uma que Dan não havia
notado a princípio. Com um sorriso, ela a entregou a Dan. Era uma imagem desbotada
e
antiga de uma pedra vermelha em formato oblongo, como um geodo. Estava pendurada
em uma delicada corrente. – É linda – ela murmurou, observando-o com atenção. – Não
é?
– Onde... de onde veio essa foto?
Abby deve ter percebido também. Ela ficou olhando para sua tia, ofegante.
– Pois é, o mais engraçado é que... Na verdade não lembro. Parece que ela está
comigo desde sempre.
– É linda mesmo – Abby comentou, se virando de lado para tirar o celular do
bolso da
calça. – Posso tirar uma foto?
Lucy pegou a moldura da mão de Dan e a exibiu orgulhosamente para que Abby a
fotografasse com o celular. Que ideia brilhante, Abby.
– E por que esse nome? – questionou Dan, talvez de forma repentina demais. –
“Estrela incandescente.” Essa é uma descrição bem específica, não?
– É, acho que sim... – ela olhou para a foto outra vez. – Não tem nem a forma
de uma
estrela, né? – aos risos, ela virou a moldura de um lado para o outro, como se
quisesse
que a pedra na fotografia refletisse a luz. – Eu simplesmente... sempre usei esse
nome.
Estava com tanto medo... – depois de pôr a foto de volta na mesa, ela se virou
outra vez
para Dan. Ele se encolheu todo diante da intensidade de seu olhar. – Estava com
medo de
você, Daniel Crawford. Estava com medo de tudo... E então veio a estrela
incandescente
e tudo ficou melhor. Mais tranquilo.
– Ah – Dan falou, olhando desesperadamente para Abby, que o encarou de volta,
tão
perplexa quanto.
Ele não conseguia fazer contato visual com Lucy. Ela o perturbava com seu olhar
vazio e inabalável... Por cima do ombro, ele olhou para a janela e teve um
sobressalto ao
notar um rosto que o observava do lado de fora.
Não era o rosto de uma pessoa, na verdade, e sim uma máscara. Vermelha e preta,
com a forma de um crânio, mas derretendo, com a boca se abrindo em um sorriso
exagerado de palhaço.
– Mas o que...
Dan ficou de pé, apontando para a janela.
– Estou vendo também – avisou Jordan.
Mas, em seguida, a figura desapareceu no mato, sem deixar nenhum rastro além de
um farfalhar.
– Ei!
Dan saiu correndo na direção da porta, com Jordan logo atrás. Ele abriu as
trancas e
saiu a tempo de ver alguém correndo pelo gramado e pela calçada, desaparecendo mais
adiante na rua.
– Não vai dar para alcançar – falou Jordan –, mas você não estava imaginando
coisas,
não.
– Uma máscara – ele tentou recobrar o fôlego. – E um manto vermelho.
– Que diabos está acontecendo aqui? – questionou Jordan, em voz alta.
Atrás deles, Dan ouviu a porta de Lucy se abrindo e Abby vindo até eles,
enfiando as
luvas. Ela se virou e deu um abraço na tia.
– Vamos tentar fazer mais uma visita antes de ir embora – ela falou.
– Se comporte – recomendou Lucy, com os olhos voltados para Dan, como se fosse
um conselho para ele.
– Obrigado por receber a gente – ele murmurou nervosamente. – Desculpa por ter
saído correndo desse jeito.
Lucy se despediu com um aceno, semiescondida atrás da porta aberta. Ela a fechou
com um suspiro, e Dan ouviu uma tranca após a outra sendo acionada.
– Queria ter perguntado mais coisas – falou Dan. – Sobre os endereços, sobre
aquela
foto... Ela falou alguma coisa quando saímos correndo?
– Não, ela ficou paralisada – respondeu Abby, com tristeza. – Não sei se ficou
assustada com vocês ou com a máscara.
– Aliás, o que foi aquilo? – perguntou Jordan depois de eles virarem à esquerda
na
calçada. – Tipo, aquela não era ela. Ou talvez fosse, mas antes de passar pelo que
passou
quando era criança.
– Estou preocupada – com o olhar distante, Abby esfregou os braços com as mãos
enluvadas. – Como Felix poderia saber sobre aquele colar na foto? Isso não faz
sentido.
– Acho que temos um assunto mais urgente aqui, que é estarmos sendo seguidos por
uns malucos mascarados – argumentou Jordan.
– Precisamos definir um ponto de partida – respondeu Abby. – De repente procurar
naquelas cartas alguma referência a essa tal estrela incandescente. Precisamos
examinar tudo o que recolhemos e procurar por qualquer coisa que seja semelhante. É
a
única pista que temos até agora.
Dan concordou balançando a cabeça, sem saber se mencionava seu sonho. Ele sabia,
obviamente, que havia se transformado no diretor de novo, e que foi até a rua
Ellis, 1020.
Só não sabia se a transformação tinha sido real ou apenas fruto de sua imaginação.
Parecia verdade, mas o que havia de útil naquelas informações? Que o diretor sabia
que
alguém vivia naquela casa, alguém chamado Harry ? Que Harry se tratava com o
diretor? Nenhuma das duas coisas parecia relevante.
Se, em algum momento se tornassem relevantes, ele abriria o jogo. Até lá,
preferia
não chamar atenção para o fato de que, em seus sonhos, ele era o diretor Crawford.
– Quero saber quem está seguindo a gente – falou.
Jordan e Abby detiveram o passo.
– É Dia das Bruxas – respondeu Abby. – Podia ser só alguma criança da vizinhança
xeretando.
– Espera aí – Dan falou quando seu olho detectou a presença de um objeto
cinzento na
grama. – Acho que quem estava vigiando a gente derrubou uma coisa.
Ele foi correndo até a beirada do gramado, se agachou e encontrou um cartão-
postal
com uma fotografia, parecida com a que Felix lhe deu em Morthwaite.
– O que é isso? – murmurou Abby, aparecendo bem ao seu lado.
– Acho que é o parque de diversões – falou Dan, se levantando devagar.
Ele mostrou a foto enquanto a observava também. Jordan a arrancou de sua mão
para
ver o verso.
– Não tem nada escrito desta vez – ele comentou.
– É só uma barraca – falou Abby. – Espera, tem uma placa aqui. Estão vendo? No
poste ali do lado...
Dan estreitou os olhos para ler a inscrição desbotada. “A Prisão da Mente do
Velho
Maudire – Hipnólogo Extraordinário.” Havia uma gaiola vazia ao lado da abertura
alta e
estreita da barraca, por onde era possível ver a silhueta de um homem, com dois
buracos
escuros no lugar onde deviam estar seus olhos.
– Vocês acham que isso pode ter caído aqui por acidente? – perguntou Abby.
– E alguma coisa aqui acontece por acidente? – rebateu Dan. – Alguém queria
entregar aquelas fotos para nós, e acho que o mesmo vale para isto aqui.
– Nessa eu estou com o Dan. Nós ouvimos passos na casa ontem à noite, e alguém
lá
fora chamando o nome dele... Tem alguém seguindo a gente. Atormentando a gente.
Jordan olhou ao redor, prestando atenção especial a um dos arbustos.
– Vamos torcer para que seja só uma pessoa – falou Dan, sinistro.
Ele enfiou a foto da barraca no bolso e bateu os dedos no tecido.
Eles continuaram caminhando pela calçada em silêncio, pelo menos até Jordan
tossir
e sacudir a cabeça como um cachorro molhado.
– Minha nossa, aqueles biscoitos eram pré-históricos – ele comentou, arrancando
o
café da mão de Dan e virando a bebida. – Ah. Bem melhor assim.
O bolso de Dan vibrou. Ele procurou seu celular, deixando Jordan ficar com o
café.
– Acho que as cartas vão ter que esperar, pessoal. É o Micah – ele falou,
sentindo um
frio na barriga. – A professora Rey es cancelou a atividade de hoje à tarde, e ele
quer que
a gente vá até lá agora.
Apesar de estar acompanhado de Abby e Jordan, Dan sentiu todos os seus cabelos se
arrepiarem ao ver a professora Rey es.
– Que bom ver você de volta ao campus – ela falou, entusiasmada até demais, na
opinião de Dan.
Micah estava ali ao lado, olhando para um papel que ela havia entregado na aula.
O
restante da classe saía aos poucos pelas portas duplas atrás deles. Mas, apesar de
estar
cercada por seus alunos, a professora Rey es só tinha olhos para Dan, observando-o
com
atenção enquanto ele lutava para fazer contato visual e disfarçar seu desconforto.
À esquerda, o gramado da área central do campus estava tomado por estudantes que
conversavam em pequenos grupos, e por trabalhadores que varriam as folhas secas.
Pelo
vão entre dois prédios, Dan conseguia ver a lona listrada de algumas barracas do
parque
de diversões.
– Depois do que aconteceu no verão – ela continuou baixinho –, fiquei me
perguntando... Enfim, fico feliz em ver você de novo. Você foi um ótimo aluno, que
aprende tudo muito facilmente. Estava mesmo esperando uma visita sua depois que o
curso de verão terminasse.
Ela usava as mesmas roupas escuras e dramáticas, e as mesmas joias exageradas,
que incluíam seis ou oito colares diferentes e um punhado de pulseiras nos braços.
Dan
observou atentamente os colares, à espera de que um deles fosse o da foto de Lucy.
Alguns deles, porém, estavam escondidos sob a blusa, e Dan não achou muito
apropriado
pedir para ver.
– Não consegui ficar longe daqui, eu acho.
– Isso não é nem um pouco surpreendente – respondeu ela, aos risos.
Dan ergueu as sobrancelhas, curioso.
– Temos um corpo estudantil muito ativo e promissor – esclareceu a professora
Rey es. – Então não é surpresa que queira vir para cá. Este lugar atrai pessoas
como
você. Só espero que o pequeno incidente de ontem não tenha causado má impressão.
– Incidente?
– Sim... Aquele menino, coitado...
– Doug – Micah falou, um tanto distraído, olhando por cima do papel.
– Sim! Era esse o nome dele. Doug. Uma pena.
A professora Rey es baixou a cabeça e estalou a língua. Seu perfume picante e
amadeirado era tão forte que fazia o nariz de Dan coçar.
“Pequeno incidente” não parecia ser a melhor forma descrever alguém tentando se
jogar pela janela, mas Dan resolveu moderar a língua. Estava desconfiado de que,
por
algum motivo, a professora Rey es estava querendo mexer com sua cabeça, e não
queria
dar a ela a satisfação de mostrar que estava conseguindo.
– No próximo semestre, o foco do meu seminário inicial para o primeiro ano vai
ser a
vida universitária e o estresse. Estou tentando organizar um congresso sobre saúde
mental
também, mas as verbas para esse tipo de evento são sempre muito curtas. Vou cruzar
os
dedos para que o parque de diversões hoje à noite tenha uma boa arrecadação – ela
continuou. – Se você escolher o New Hampshire College, quem sabe não aparece no
meu seminário? Está dentro da sua área, pelo que eu me lembro... História da
Psicologia,
certo?
– Sim – confirmou Dan. – É... é isso que eu quero estudar.
– Sem querer pressionar, claro – a professora Rey es disse, dando uma risada
antes de
se inclinar para a frente e sussurrar em um tom conspiratório: – Mas com certeza
você
deveria se matricular aqui.
Dan ficou todo sem graça, remexendo os pés.
– É, hã, com certeza está na minha lista – ele disse por fim.
– Ótimo! – ela se afastou um pouco. – Era essa a resposta que eu esperava.
Um professor que Dan não reconheceu – um homem alto e magro com óculos fundo
de garrafa – passou pelos dois. Ele abriu um sorriso cauteloso para a professora
Rey es e
fez um aceno de cabeça, que ela não retribuiu.
– Bom, é uma pena que Doug não possa ver o parque de diversões funcionando...
ele
foi uma das pessoas que mais ajudaram. Você vai participar das festividades,
espero. Foi
um tremendo esforço organizar tudo.
– Não sabia que você estava tão envolvida assim – respondeu Dan, todo tenso.
Ela fez um sinal com a mão, direcionando seu olhar para as barracas na
extremidade
do gramado do setor acadêmico. Caminhões de fornecedores locais estavam
descarregando suas mercadorias. Dan reconheceu o nome de uma lanchonete da cidade,
do serviço de limpeza local e de uma floricultura de Camford.
– Todo mundo fez sua parte para reviver um pouco da rica história da cidade.
– Professora – Micah ergueu a mão como se ainda estivesse na sala de aula. –
Você
pode me explicar que anotações são essas? Aqui tem uma observação sobre a minha
citação, mas não estou conseguindo ler.
– Podemos falar sobre isso lá na minha sala – respondeu a professora Rey es,
sem dar
muita atenção.
– Ah! Ei, Dan, só uma coisa, amigão – Micah o chamou para mais perto com um
breve aceno. – Eu só queria saber se está tudo bem depois de ontem à noite.
Dan fez que sim com a cabeça, entendendo que o questionamento vago se devia à
presença da professora Rey es.
– Ah, sim – respondeu. Não era a hora certa para mencionar o comportamento
estranho de Cal naquela manhã. – Estamos bem, obrigado.
– Que alívio – respondeu Micah, fingindo limpar o suor da testa.
– Noitada agitada? – perguntou a professora Rey es.
Ela olhou rapidamente para os dois.
– Noitada responsável – rebateu Micah. – Você me conhece.
– Para a minha sala, então? – disse a professora Rey es, se virando para Micah.
Dan aproveitou a oportunidade para se afastar, levando Abby e Jordan consigo.
– Eca – Jordan comentou quando chegaram a uma mesa de piquenique sob uma
árvore alta e seca. O sol havia aparecido, tornando mais agradável a caminhada ao
ar
livre. – É impressão minha ou ela é meio Dolores Umbridge? A sala dela não é toda
cor-
de-rosa e cheia de gatos, né?
– Não faço ideia – respondeu Dan enquanto se sentava. – As aulas dela durante o
verão foram legais, eu acho, mas ela me falou uma coisa quando eu estava indo
embora
que... – ele observou a professora entrar no prédio de Psicologia e sociologia
junto com
Micah. – Enfim, eu não confio nela. Não consigo acreditar que ela está fuçando no
porão
do Brookline.
– Eu acredito – disse Jordan com uma risadinha. – Algumas pessoas não sabem
deixar
as coisas como estão. Como nós, por exemplo.
– Não é a mesma coisa – rebateu Dan.
– Aqui – disse Abby, pondo a mochila pesada sobre a mesa. – Estou com nosso
mapa,
os arquivos que o Jordan juntou e as cartas que pegamos ontem à noite. Precisamos
começar a procurar as ligações entre isso e qualquer coisa que faça menção à
estrela –
ela se virou para Jordan, com a testa franzida. – Vocês viram alguma coisa que
também
pode ter a ver com isso? Pôsteres? Livros? Alguma coisa com estrelas?
– Da minha parte não. O quarto do Cal é cheio de camisas de rúgbi e catálogos
J.Crew
– Jordan respondeu, encolhendo os ombros. – Mas posso dar mais uma olhada quando
voltar lá... Apesar de não gostar dessa ideia.
– O que nós vamos fazer a respeito, aliás? – Dan perguntou enquanto Abby
passava
uma pilha de papéis para os dois examinarem. – Sobre o lance de Cal ficar olhando
enquanto você dorme.
– Eu não posso dizer nada – respondeu Jordan. – Se ele estiver possuído ou
coisa do
tipo, não quero despertar nenhum instinto assassino.
– Eu também peguei algumas cartas ontem à noite – Dan contou, tirando uma pilha
do
bolso.
As duas primeiras não eram nada de especial, apenas contas, mas o terceiro
envelope
o fez hesitar. Seus olhos pousaram no selo amarelado e o carimbo no canto.
– Vejam só essa data – ele falou, estreitando os olhos, examinando a tinta
envelhecida.
– É do último ano do diretor no Brookline, tenho certeza.
– Abre aí – pediu Abby, ansiosa. – Ou melhor, será que é crime abrir uma
correspondência que foi roubada ou que nunca foi entregue?
– Que diferença faz? – perguntou Jordan. – O lacre já foi rompido, e duvido que
tenha
alguém procurando isso. Vá em frente, Dan.
Cada um começou a examinar sua respectiva pilha. Dan deu uma lida na carta. Era
endereçada a Anna Surridge, e a remetente se chamava Caroline Martin.
– Esta carta nunca saiu da cidade – observou ele. – Deem uma olhada no endereço
da
remetente... acho que passamos por uma rua Tamlen quando fomos para a festa ontem à
noite.
O conteúdo da carta a princípio parecia bem inofensivo – uma data, um “querida
Anna”, votos para que estivesse tudo bem etc. Mas o tom casual logo mudou.
– Uau – murmurou Dan –, escutem isso: “Minha queridíssima Anna, eu prometi que
não revelaria isso para ninguém, mas não consigo mais viver em silêncio. Acho que
cometi um grande erro, apesar de ter agido de boa-fé, na esperança de garantir um
futuro melhor para mim e para minha família. Um homem me procurou em setembro,
vestindo um manto vermelho. Como você pode imaginar, fiquei assustada e confusa a
princípio, mas quando ele me entregou um envelope com um lacre de cera também
escarlate, com a imagem estampada de um crânio...”.
– Espera aí – interrompeu Jordan, largando o jornal que estava lendo. – Manto
vermelho? Crânio vermelho? Isso lembra o nosso espião de hoje de manhã.
– E tem mais – Dan continuou, começando a ler mais depressa: – “Minhas
suspeitas
tinham razão de ser. Jamais deveria ter começado a escrever aquele artigo idiota!
Mas a
minha pesquisa não chegou nem perto de revelar toda a verdade. O que eu imaginei
ser
apenas uma sociedade acadêmica de pessoas com interesses em comum perseguindo o
conhecimento e o sucesso acabou se revelando um mar de segredos obscuros demais
para relatar aqui. Para me juntar a eles, fui obrigada a revelar todos os
esqueletos
escondidos no armário, relatar todas as coisas de que me arrependi ou tenho
vergonha de
ter feito. A destruição mútua garantida é o segredo do poder deles. Mas isso,
queridíssima
Anna, foi só o começo. A cada semana eu via coisas piores, via meus companheiros
Scarlets serem levados para salas escondidas e voltando com os olhos vazios e
boquiabertos. Eu sabia que era só questão de tempo até chegar a minha vez. E
aconteceu... Gostaria de dizer que me lembro de tudo com terror, mas não me lembro
de
nada. Vou escrever mais se conseguir, e isso é o que eu mais quero. Quero contar
tudo
para você, cada detalhe, inclusive nomes, mas já me arrisquei demais. Estou em
contato
com um homem chamado Harry, que diz saber tudo sobre os Scarlets e seus segredos.
Ele garante que quer me ajudar, e eu quero poder confiar nele. Seria bom ter um
aliado.
Quero publicar um artigo expondo essas pessoas, mas Harry acha que isso só vai
fazer
com que eu corra ainda mais perigo. Torço para que esta carta chegue a você em
segurança, e que minha traição, por mais insignificante que seja, nunca seja
descoberta.
Com amor, Caroline”.
Dan continuou olhando para o papel, e as letras começaram a ficar borradas e a
se
transformar em meras linhas pretas na página. Por um tempo, ficaram todos em
silêncio, e Dan piscou algumas vezes, dobrou a carta e a colocou sobre a mesa para
que
Abby pudesse dar uma olhada.
– Acho que acabamos encontrando outra coisa que não tem nada a ver – ela falou,
examinando o papel –, mas não podemos descartar nada.
– Eu também acho – concordou Jordan. – Não parece ser só uma coincidência... o
último ano do diretor no Brookline, Felix ter passado o endereço daquela casa, e
agora
essa carta. Que nunca saiu da cidade. Alguém a leu também. O envelope foi aberto.
– Eu tive um sonho sobre isso – revelou Dan. Ele se encolheu todo diante dos
olhares
curiosos dos dois. – Tipo, isso não prova nada, mas eu vi o diretor falando com um
cara
chamado Harry, meio que... passando uma tarefa para ele. Alguém estava seguindo
essa
mulher – murmurou Dan, mas então lhe ocorreu um pensamento ainda pior. – Talvez até
roubando a correspondência dela... Ela diz que queria escrever um artigo. Se ela
estava
na cidade, de repente o que escreveu esteja na biblioteca.
– Você tem razão, isso não prova nada, mas acho melhor mesmo não descartar –
Abby fez uma pausa. – Será que esse artigo ia ser publicado no jornal da cidade ou
no da
faculdade? – ela perguntou. – Seja como for, dá para encontrar números antigos dos
dois.
Deve dar até para fazer uma pesquisa com o nome dela como palavra-chave.
– Parece que ela descobriu uma espécie de seita – respondeu Dan.
Algumas folhas alaranjadas caíram dos galhos mais acima, se misturando aos
papéis
na mesa. Jordan as descartou com um gesto impaciente.
– Você acha que a pessoa que vimos na casa da tia Lucy faz parte desse culto?
Essas
cartas são antigas, Dan – argumentou Abby. – Quais são as chances de uma coisa como
esses Scarlets ainda existir?
– A descrição se encaixa – respondeu Jordan, coçando o queixo. – O crânio, a
túnica
vermelha... Pode não ser uma seita. Ela falou que era para ser um lance acadêmico,
certo? E se for tipo uma sociedade secreta como Skull and Bones e os Sevens?
– Se for – Dan falou bem devagar –, duvido que alguém queira falar a respeito.
A
ideia por trás de uma sociedade secreta não é ser secreta?
Ele olhou para seus amigos, que pareciam estar hesitantes. Jordan coçou o rosto
com
a borracha do lápis, e Abby começou a mexer no zíper da mochila.
– Por enquanto é melhor não sair fazendo perguntas suspeitas por aí. Acho que a
melhor opção é pesquisar nos arquivos – ela disse por fim. – Podemos passar a tarde
na
biblioteca, e ir ao parque de diversões à noite. Vai ser uma boa chance pra escapar
de
fininho para ir até os outros endereços. Não é aconselhável arrombar casas em plena
luz
do dia.
– Será que a estrela incandescente é o tipo de coisa que podemos pesquisar no
LexisNexis ou sei lá o quê? – ironizou Jordan, se levantando da mesa. – Eu nunca
ouvi
falar nisso antes.
– Se ela tiver algum tipo de ligação com uma seita secreta, duvido que vamos
encontrar alguma informação – respondeu Abby.
Eles saíram de baixo da árvore ressecada e atravessaram o gramado para chegar a
um dos caminhos que atravessavam o campus. A biblioteca não ficava muito longe, a
mais ou menos meia quadra da capela.
Dan tentou repassar mentalmente o sonho mais uma vez, antes que os detalhes se
perdessem para sempre. O diretor tinha ido à casa daquele homem, e revirado os
malotes postais roubados. Aquele sujeito poderia mesmo ter feito parte de uma
sociedade secreta? Ele não se encaixava no tipo que vinha à mente de Dan ao ouvir
falar
em organizações como a “Skull and Bones”. Por outro lado... e o diretor Crawford?
Dan estremeceu ao pensar na ideia do diretor se juntando a uma sociedade secreta
–
ou pior, formando uma –, ampliando seus tentáculos para além das paredes do
Brookline.
Como Caroline mencionou em sua carta, sociedades como aquela tinham como objetivo
poder e influência. Eram duas coisas que o diretor não poderia ter de jeito nenhum.
– Certo, Dan?
Com um sobressalto, Dan notou que seus dois amigos estavam olhando para ele, mas
não tinha ouvido nada do que disseram.
– Desculpa, qual era a pergunta?
– Estava perdido nos seus pensamentos, né? – Abby abriu um sorrisinho quando
chegaram às portas grandiosas da biblioteca. Havia alguns estudantes parados do
lado de
fora, conversando e bebendo café. – O que foi?
– Só estava pensando... – seus sonhos tinham se tornado mais vívidos, mas
serviam
como evidência de algo ou eram só sua imaginação? – Nós sabemos que o diretor usava
o Brookline como seu brinquedinho particular, mas e se não fosse só ele? E se ele
tivesse
envolvido com esses Scarlets?
– Ele tinha mesmo uma atração pelos melhores e mais inteligentes – concordou
Jordan.
– Isso... é uma ideia assustadora – admitiu Abby.
Apesar das pessoas paradas do lado de fora, o interior da biblioteca estava
quase
vazio. Um atendente com olhar de enfado no balcão conferiu seus crachás de
candidatos
e os fez passar pelos detectores de metais instalados nos dois lados da porta.
Como já tinha ido até lá antes, Jordan guiou Dan e Abby até um local perto das
escadas, onde ficava o setor de audiovisual. Eles se sentaram diante de uma fileira
de
computadores depois de deixarem os papéis e as mochilas em uma mesinha redonda.
– Isso explicaria por que ele conseguiu fazer tanta coisa... Com pessoas
influentes
protegendo suas atividades, encobrindo seus experimentos no manicômio...
– Ah! – Jordan se acomodou diante de um computador, todo empolgado. – Isso é uma
coisa que podemos pesquisar também. Os manicômios eram submetidos a inspeções e
coisas do tipo, não?
– Eram, sim – essa área era a especialidade de Dan, e ele contribuiu de bom
grado
com a discussão. – Em geral, as enfermeiras faziam denúncias anônimas para as
instâncias superiores, dando dicas sobre o que procurar nas inspeções dos
hospitais.
Mesmo assim, os diretores faziam de tudo para minimizar os horrores que aconteciam
nesses lugares, e geralmente conseguiam se safar.
– Minha nossa, e eu pensando que o Brookline fosse um caso isolado – murmurou
Jordan.
– Não sei se em outros lugares a coisa era tão feia como no Brookline –
respondeu
Dan. – Só estou dizendo que, se em todo lugar muita coisa era acobertada, o que
dizer
daqui, se o diretor tivesse influência sobre o reitor da faculdade? Não é à toa que
ele
passou impune por tanto tempo.
– Isso é bom – falou Jordan, digitando furiosamente. – Quer dizer... bom não é,
mas é
mais uma coisa para investigar. Podemos descobrir facilmente quem administrava a
faculdade quando o diretor estava no Brookline, e a partir daí podemos começar a
investigar a tal sociedade secreta.
Ele apertou a tecla enter e ouviu um apito antes de a tela se apagar
completamente.
– Mas o que... – Jordan deu um tapa na lateral do monitor. – Desligou!
– Essas coisas são antigas – falou Abby, virando-se para o teclado e começando
a
digitar. – Deve ter sido só uma sobrecarga de memória. Vou pesquisar para...
você...
Ela franziu a testa, apertando a tecla enter mais uma porção de vezes.
– Como assim? – questionou Jordan falou, batendo no monitor outra vez. – Não
foi
sobrecarga nenhuma. Está travado. Control-alt-del, idiota. Acorda!
Ele falou a última palavra meio alto demais, e três alunos se viraram na
cadeira para
olhar feio. Jordan se encolheu no assento, todo envergonhado.
Dan se virou para a tela do seu computador, já com a certeza do que iria
acontecer.
Diretor Daniel Crawford e Scarlets. Quando apertou a tecla enter, o cursor parou de
piscar, e ao seu lado Jordan começou a xingar furiosamente, conforme o previsto.
– Daria muito trabalho fazer isso acontecer de propósito? – quis saber Dan,
franzindo a
testa.
– Bastante – Jordan deu uma olhada ao redor. – Seria preciso instalar um
programa
em cada computador com as palavras-chave e combinações exatas para provocar o
travamento. Acho que nem eu mesmo conseguiria fazer uma coisa dessas.
– Bom, isso vai atrasar a gente, mas não é o fim da linha – Abby se virou na
cadeira
antes de continuar: – Nós podemos usar nossos notebooks, certo? Eles não têm essa
restrição.
– Sim, mas nós não temos acesso aos arquivos digitais da faculdade pelos nossos
computadores – rebateu Jordan. – A gente ia precisar de um login de estudante para
isso.
– Eu posso usar meu celular para acessar a internet – Dan falou. – Todos nós
podemos.
– E, quanto aos arquivos, vamos ter que fazer as coisas à moda antiga. – Abby
se
levantou da cadeira e foi pegar sua mochila na mesa. – Jordan, me mostra onde
encontrou aqueles jornais. Podemos começar por lá e depois tentar encontrar o texto
da
Caroline. Ela escreveu a carta em 1968. Se tiver mesmo publicado o artigo, deve ter
sido
pouco tempo depois.
Dan balançou a cabeça e seguiu Jordan até o andar de cima, que estava ainda
mais
deserto, silencioso e escuro, com apenas algumas lâmpadas acesas, para economizar
energia. As pilhas de livros formavam corredores estreitos, interrompidos em certas
partes por prateleiras com pequenas áreas reservadas para leitura. Os cubículos com
computadores ficavam junto à parede, de onde era possível ver o primeiro andar.
No alto da escada, Jordan virou à esquerda e os conduziu por um labirinto de
pilhas de
livros. Ele e Abby cochichavam baixinho mais à frente, e Dan ficou um pouco para
trás,
deixando seus olhos passearem por prateleiras e livros que pareciam se misturar uns
com
os outros. Prateleira, corredor, prateleira, corredor, um atrás do outro, todos
abandonados. Prateleira, corredor, prateleira, menino, prateleira, corredor... Dan
se
deteve de repente, e em seguida deu dois passos para trás a fim de ver melhor a
sombra
escura formada por duas prateleiras altas.
O menino de blusa listrada e calças curtas. A boca de Dan secou, sua língua
ficou
inchada e dormente na boca. Seus lábios começaram a latejar, e a adrenalina invadiu
seu organismo, fazendo seu corpo todo tremer. O menino nas sombras era
absolutamente
pálido, como uma imagem em preto e branco, apesar de seus olhos parecerem exibir
um brilho fraco. O sangue escorria de seus cabelos para a testa, para dentro dos
olhos...
Os murmúrios de Abby e Jordan desapareceram...
Dan piscou algumas vezes, esperando que o menino desaparecesse, mas ele
continuava lá, observando. Em seguida, se virou e foi andando pelo corredor na
direção
oposta à de Dan, mas ainda permanecia visível entre as pilhas de livros. Sem pensar
duas
vezes, Dan foi atrás.
Corredor após corredor, Dan foi seguindo a pequena aparição. Ele apertou o
passo,
mas depois se arrependeu e decidiu manter distância. Nesse momento, o menino entrou
em outro corredor, e Dan precisou correr para não perdê-lo de vista. Seu coração
estava
disparado dentro do peito, e a adrenalina fez seus membros ficarem dormentes. Dan
entrou no corredor às pressas, e deu um grito ao esbarrar de peito aberto em
Jordan, o
que o fez cambalear para trás, expulsando o ar de seus pulmões.
– Dan! De onde foi que você surgiu? – Jordan se virou, levando a mão ao ombro.
–
Pensei que você estivesse atrás de nós.
– Eu estava... – ele tentou arrumar uma explicação que não envolvesse as
palavras eu
segui uma criança fantasma. – Só peguei um atalho.
– Quase me matou de susto, isso sim!
– Está tudo bem? Vocês trombaram com bastante força.
Abby estendeu a mão para tocar o peito de Dan.
– Eu estou bem... – estou nada. Estou enlouquecendo. – Na verdade não estou,
não... É
aquele menino de novo. Acabou de aparecer.
Dan olhou para todas as direções, mas o garoto tinha sumido. Ele se virou para
ver o
local onde estavam parados, diante de uma parede de prateleiras que chegavam até o
teto, com fichários e fichários enfileirados, com etiquetas com datas nas lombadas.
Inverno 1961 – Inverno 1963, Primavera 1963 – Primavera 1964 e assim por diante.
Imediatamente, Dan notou um espaço vazio e limpo no lugar onde deveria haver um
fichário.
E o garoto me trouxe justamente para cá.
“Você vê coisas que não deveria. Conhece coisas que não deveria ter como
saber.”
Droga, Felix, por que você precisava estar certo ao meu respeito?
– Os anos em que o diretor comandou o Brookline – ele murmurou, enfiando a mão
no espaço vazio. – Eles estão faltando. Aquele garotinho me trouxe para cá.
– Que sinistro, Dan – sussurrou Jordan de forma quase inaudível.
– Mas nem tudo está faltando – Abby falou, toda empolgada.
Ela enfiou a mão no vão entre os fichários. Ele ouviu suas unhas arranharem a
superfície da prateleira, em seguida ela grunhiu baixinho e retirou um fichário
estreito e
empoeirado de lá do fundo. O último puxão foi um pouco forte demais, e a pasta caiu
da
prateleira. Dan conseguiu apanhá-la no ar antes que despencasse no carpete.
– Esqueceram de uma. Outono de 1968 – falou Abby, se inclinando para ler a
lombada. – Já é alguma coisa. Vamos torcer para que Caroline tenha publicado o
artigo
logo depois de mandar a carta.
– E tem isto também... – Jordan tirou mais uma coisa da prateleira empoeirada e
entregou para Dan.
Ele pressentiu o que era antes mesmo de pegar o papel nas mãos.
Uma fotografia, uma composição mais simples que as outras. Dan reconheceu a
gaiola da outra foto, a que seu seguidor deixou no chão do gramado de Lucy. A
gaiola,
porém, não estava mais vazia. Naquela imagem havia uma ave lá dentro, ferida
mortalmente e ensanguentada, com os olhos vidrados, e penas brancas e vermelhas
quebradas preenchendo o chão sob suas garras.
O celular de Dan vibrou dentro do bolso, causando um susto tão grande que ele até
derrubou o garfo, que atingiu ruidosamente a bandeja. Isso, porém, não foi
suficiente
para interromper a monitora de Abby, que estava no meio de um monólogo sobre sua
instalação e a epifania que teve naquela tarde.
– Meu irmão estudou Medicina aqui – Lara estava dizendo –, mas nem isso foi
suficiente para satisfazer os meus pais. Eles achavam que ele tinha que estudar em
Berkeley, Princeton... Mas a bolsa de estudos era um fator que não podia ser
descartado.
Integral.
Ele tateou cegamente em busca do garfo enquanto olhava para o telefone para ler
a
nova mensagem. Era de Jordan, que aparentemente sentiu a necessidade de mandar
uma mensagem de texto apesar de estar a menos de um metro de distância.
Ela nunca cala a boca?
Dan deu uma risadinha para Jordan, que manteve uma fachada inabalável, sentado
no
banco do refeitório.
O sorriso de Dan não durou muito. Dava para sentir o peso das fotografias em
seu
bolso. Quem seria mórbido o suficiente para tirar uma foto do pássaro morto? Ele
conseguia ver o corpo arrebentado do papagaio sempre que fechava os olhos por
alguns
segundos.
– Acho que vou conseguir passar em Psicologia II neste semestre – Micah falou,
interrompendo a fala de Lara. Ele esperou que Dan o olhasse para dizer: – Está tudo
bem? Mal vi vocês por aqui hoje. Não sei se estão aproveitando tudo o que o campus
tem
para oferecer aos candidatos...
– Nós conhecemos a biblioteca – Dan se defendeu, mexendo no purê de batata. A
conversa no refeitório estava bem alta ao redor, um ruído constante de talheres
batendo e
risadas. – E outros prédios... Conhecemos um bom pedaço do campus hoje, na verdade.
– E a Lara me levou para ver sua instalação de manhã – complementou Abby. – É
um trabalho fascinante.
– Vocês vão ao parque de diversões hoje à noite? – perguntou Cal. Para Dan, ele
parecia exausto, com olheiras pesadas e uma coloração estranha na pele. Jordan
olhava
para todos os lugares do refeitório menos na direção de Cal, que parecia fazer o
mesmo,
falando diretamente com Dan. – Eu provavelmente vou estar ocupado vigiando a
molecada bêbada. Nunca se sabe o que eles vão aprontar.
– Adolescentes bêbados aprontando por aí não é exatamente um incentivo, Cal –
Micah disse, aos risos. – Mas vocês vão, né?
– A gente não ia perder – resmungou Jordan, distraído entre o celular, o sudoku
e a
conversa na mesa.
– Hã, dessa vez vocês vão ficar por perto, certo? – questionou Micah.
Dan notou uma ligeira mudança de tom, e se encolheu um pouco diante do olhar
que
ele lhes lançou.
– Do que você está falando? – Lara pediu a pimenta para Micah e temperou um
pouco mais sua comida.
– É que eles... saíram para uma pequena aventura no meio da festa, só isso.
– Dá para entender – comentou Cal, encolhendo os ombros. – Aquela festa estava
lotada demais. O parque de diversões também vai estar, eu acho, mas pelo menos é ao
ar livre. Se precisarem de alguma coisa para espantar o frio, me avisem.
Ele fez um gesto com o dedão como se estivesse bebendo de uma garrafa.
Dan viu o rosto de Micah ficar mais vermelho a cada segundo.
– Muitos estudantes trabalharam duro para organizar tudo isso, Cal – ele falou,
bem
sério. – O mínimo que você pode fazer é ficar sóbrio. Enfim, vai ter um monte de
coisas
para fazer. Comidas, brincadeiras, um labirinto... O pessoal que estuda Dança e
Arte
Dramática preparou umas apresentações.
– Os idiotas do Comitê Estudantil me fizeram repintar as placas – Lara lançou
um
olhar sarcástico para Abby. – Disseram que minhas ideias eram macabras demais.
Bando de filisteus.
– Vai ter crianças aqui – respondeu Micah. – Dá para entender o motivo do
pedido.
Os olhos de Dan pousaram no sudoku de Jordan, semiescondido sob a bandeja. Ele
não estava nem tentando resolver o quebra-cabeça, mas apenas pintando os
quadradinhos.
Quando terminaram de comer, eles foram com Micah e Lara para a fila das
lixeiras.
Cal já tinha ido embora, resmungando alguma coisa sobre dar um gole em alguma coisa
para tomar coragem.
– Bom, nós voluntários temos coisas para fazer no parque de diversões – Micah
falou
quando saíram do refeitório. – Mas vocês podem circular à vontade. É melhor chegar
cedo, antes que as filas comecem a ficar grandes.
– Nós vamos, sim – garantiu Dan.
Eles voltaram para o frio, cada um sacando sua combinação de gorros, cachecóis
e
luvas.
– Até mais tarde – Lara se despediu, se dirigindo principalmente a Abby.
– O pessoal não está para brincadeira mesmo – observou Jordan, apontando com o
queixo para o lado de fora do refeitório.
Os caminhos que cortavam o campus estavam ladeados por sacos de papel cor de
laranja com velas no fundo, produzindo sombras compridas e bruxuleantes pelo chão.
Serpentinas pretas e roxas decoravam os alojamentos, e havia morcegos de plástico
pendurados nos pilares e parapeitos.
Cada prédio tinha seu toque especial para o Dia das Bruxas, menos o Brookline.
Dan
bateu os pés no chão, tentando se aquecer. Atrás dele, a presença do Brookline era
incontornável. Ele precisava dar pelo menos uma olhada por cima do ombro para o
manicômio. Isso foi suficiente para fazer suas pernas ficarem bambas.
– Será que é uma boa perguntar para o Micah e a Lara sobre essa coisa dos
Scarlets?
Se for uma espécie de boato ou lenda urbana daqui, eles devem saber – os três
seguiam
pela lateral do caminho, na contramão do fluxo de estudantes que se dirigia ao
refeitório.
– O artigo da Caroline era bem vago...
Dan havia tirado cópias do fichário do outono de 1968, mas provavelmente não
leria
nada de novo. Caroline Martin devia ter editado seu artigo depois de escrever a
carta – ou
então alguém fez isso por ela. Tudo era possível.
Abby enfiou as mãos nos bolsos do casaco e olhou para as luzes bruxuleantes ao
longo
do caminho.
– Se os Scarlets se deram ao trabalho de vasculhar a correspondência da cidade,
com
certeza devem encobrir bem seus rastros.
– Precisamos descobrir onde foram parar os arquivos com informações sobre o
diretor – falou Dan. Ele estremeceu, pensando no garotinho que o guiou pela
biblioteca. –
Nem tanto pelo que tem lá, mas para descobrir quem pegou.
E quem deixou o pássaro morto para trás.
– Talvez tenha a ver com programador de computador misterioso – sugeriu Jordan.
–
Se as pesquisas sobre o diretor estão bloqueadas, faz sentido que os arquivos não
estejam
lá.
– Detesto ter que cortar o barato de vocês – Abby disse baixinho, fungando por
causa
do frio –, mas a professora Rey es está conduzindo uma atividade sobre o Brookline.
Os
arquivos podem ter sido retirados para isso. Está quase na época das provas
semestrais, o
pessoal pode estar em busca de material extra de estudo, ou então a própria
professora
pode estar fazendo cópias para usar na aula.
– Pois é – respondeu Dan. – Não temos muitas pistas para ir atrás. Quase nada,
na
verdade. Precisamos continuar investigando o mapa do Felix, caso contrário vamos
continuar na estaca zero.
Dan sentiu um frio na espinha ao atravessar o campus na direção dos prédios
acadêmicos. O gramado do Pavilhão Wilfurd tinha sido todo transformado em roxo e
preto. Mais barracas tinham sido armadas, preenchendo os espaços entre os prédios.
Estudantes fantasiados, cheirando a bebida barata, passaram por eles, cambaleando e
dando risada. As famílias da cidade se mantinham todas juntas, afastando suas
crianças
fantasiadas dos universitários barulhentos.
– Uau, o que é isso, uma mistura de filmes do Tim Burton com balas Laffy Taffy
e
vômito por todos os lados? – murmurou Jordan.
– É tudo bastante... peculiar – falou Abby. – Não pensei que fosse ter tanta
gente
assim.
– Vamos tentar agir normalmente – sugeriu Dan, o que na verdade era mais
difícil do
que parecia.
As únicas pessoas não fantasiadas eram os outros candidatos, que caminhavam no
meio daquele pesadelo em tecnicolor de boca aberta e queixo caído, maravilhados com
as barracas, os malabaristas e até mesmo com os vendedores de algodão-doce.
As brincadeiras e os carrinhos de pipoca ficavam nas extremidades do parque de
diversões, que parecia ter o formato aproximado de um círculo. Lara tinha repintado
as
placas que apontavam o caminho do labirinto, de um tour mal-assombrado pelo campus
e para o palco dos malabaristas. Dan olhou para o caminho à sua direita e viu um
palco
baixo e simples onde alguns estudantes de collant se equilibravam uns sobre os
outros
para fazer uma pirâmide.
O som de um megafone cortou o ar, e os três se viraram para ver uma loira
grandalhona gritando a plenos pulmões na caçamba de uma picape estacionada. Havia
serpentinas vermelhas penduradas na traseira do veículo, e um cartaz branco entre
elas
com os dizeres “KELLY LANG PARA O SENADO ESTADUAL!”.
– A gente podia ir conhecer o labirinto – sugeriu Abby, tomando a frente. – Não
parece ser muito grande, vai ser rapidinho.
– Precisa comprar ingresso ou coisa do tipo? – perguntou Jordan, olhando para
uma
barraquinha de algodão-doce.
– Parece que aqui tudo é de graça, menos a comida – falou Dan.
Ele reconheceu alguns candidatos ao redor de uma barraca onde tinha sido armado
um jogo em que os professores eram derrubados em um tanque de água caso o jogador
acertasse o alvo. Para sorte do trêmulo professor, a maioria dos estudantes que
tentava
derrubá-lo não estava com a pontaria muito boa, o que Dan desconfiava ter a ver com
o
conteúdo das garrafas plásticas que carregavam.
– Certo, eu topo o labirinto, mas nada de se separar... essas coisas sempre me
deixam
desorientado – falou Jordan, segurando Dan e Abby pelo braço.
Eles entraram na fila da maior tenda do parque de diversões. Estudantes
mascarados
– nenhum de caveira, Dan percebeu – andavam pela fila fazendo barulhos de zumbis
não
muito convincentes.
– Já é para ficar com medo? – perguntou Dan com uma risadinha.
– Pelo menos lá dentro deve estar mais quente – comentou Abby.
Quando chegou a vez deles, uma menina com uma fantasia bastante realista de
mulher barbada liberou seu acesso à tenda, onde, infelizmente, a temperatura estava
tão
baixa quanto do lado de fora. O labirinto era delimitado por pilhas de feno, e com
uma
altura suficiente para que nem a pessoa mais alta do mundo pudesse espiar por cima
das
paredes e trapacear.
– Boa sorte – disse a mulher barbada, fechando a cortina atrás deles.
Estava escuro lá dentro, mais do que Dan esperava. Abby deu alguns passos
hesitantes
para a frente, arrastando consigo os outros dois.
– Eu já estou desorientado – murmurou Jordan na primeira curva que fizeram.
A única fonte de luz vinha de cima, de algumas lamparinas penduradas nos fardos
de
feno. Um cheiro de grama molhada se espalhava pelos caminhos estreitos, e havia
serragem espalhada pelo chão.
Alguma coisa passou à direita de Dan, roçando em seu ombro antes de desaparecer
no fim do corredor. Dan não conseguiu ver muita coisa, mas o pouco que conseguiu
enxergar o fez cerrar os dentes.
Um manto vermelho.
– O que foi aquilo? – murmurou Abby.
– Eu vou na frente – falou Dan, desvencilhando-se dos outros dois.
– Não, Dan... não!
A voz de Jordan foi se distanciando à medida que ele corria. Quando saiu do
corredor
onde estava, deu de cara com uma encruzilhada, e não fazia ideia de onde tinha ido
parar
a figura de túnica vermelha. Na passagem escura à sua direita ele ouviu um riso
grave.
Sua pele se arrepiou, mas ele seguiu na direção do som mesmo assim, caminhando na
ponta dos pés enquanto fazia curva após curva. Olhando para cima, ele tentou se
orientar
pelo formato do teto da tenda, mas um tecido escuro estendido como forro estava lá
para
impedir isso.
– Está perdido?
Com um suspiro de susto, Dan se virou e deu de cara com a mesma máscara de
caveira vermelha e preta que estava observando os três de manhã. Ele deu um passo
para trás, surpreso com a proximidade entre a máscara e seu rosto. Em um momento de
pânico, Dan tentou arrancar a máscara, mas acabou perdendo o equilíbrio quando a
figura mascarada lhe deu um empurrão no ombro e o derrubou no chão.
Atordoado, Dan conseguiu se levantar.
Outra figura de túnica vermelha apareceu ao seu lado, e depois mais outra, e
mais
outras. Eles o cercaram, aos risos, e Dan conseguia até ouvir o farfalhar de suas
roupas
roçando umas nas outras. Ele se encolheu de lado, todo trêmulo, mas então viu de
relance um objeto de borracha branco e azul. Ele conseguiu enxergar o calçado por
inteiro pouco antes de levar um chute nas costelas.
Dan fez uma careta. Ele conhecia aqueles sapatos.
– Cal? – murmurou, reunindo forças para se ajoelhar.
Assim que disse isso, as túnicas vermelhas desapareceram, saindo correndo para
longe das vistas.
Ele percebeu que alguém o estava segurando pelo braço e olhou para baixo,
estranhamente alheio à sensação de estar sendo comprimido por aqueles dedos. Era a
mão de Jordan. Dan olhou para cima, desconcertado, sentindo como se tudo estivesse
se
movendo em câmera lenta. Quando Jordan o puxou com mais força, Dan caiu para o
lado, de volta para o chão. O mundo começou a girar, e de repente a mão de Jordan
não
o apertava mais.
O parque de diversões ficou escuro, não apenas em termos de luminosidade, mas de
cores também. Tudo parecia pálido. Ele não precisava olhar para cima apenas para
ver o
homem na perna-de-pau, precisava olhar para cima para ver todo mundo. Os adultos ao
redor o faziam se sentir pequeno.
Bolos de funil e pipoca. Seu estômago roncou, mas ele só tinha algumas moedas, e
sabia onde queria gastá-las.
Ele sabia o caminho agora, e ignorou as vozes que o chamavam das entradas
escuras
entre as barracas e os carrinhos.
– Daniel, vamos brincar... Vamos brincar...
Em breve seus irmãos não o provocariam mais dessa maneira. Em breve seriam eles
que ficariam com medo. Seriam eles que se encolheriam todos e se esconderiam
debaixo
das cobertas. Ele foi abrindo caminho em meio à multidão, em meio à floresta de
pernas
de adultos, de calças e saias. A barraca ficava lá no fim do parque, como se fosse
uma
coisa secreta, vergonhosa.
O homem esperava do lado de fora da barraca com sua cartola gasta. Tinha uma
barba
longa e espessa que fez o queixo do menino coçar só de olhar. Seu cheiro era de
avô, uma
mistura de couro e tabaco. Quando sorriu, sua expressão não pareceu nada gentil,
mas
também não era maligna.
– Ora, veja só o que temos aqui – falou o homem, se levantando do banquinho de
metal.
– Você tem ingressos, garoto?
– Sim, senhor.
– E, o mais importante, tem curiosidade suficiente?
– Tenho, sim, senhor.
– Então tenho isto para você... – o homem abriu seu velho fraque e sacou uma
pedra
pendurada em uma longa corrente de prata. A pedra era oblonga e vermelha, e
brilhava
como uma estrela em chamas. – Siga a estrela com seus olhos, menino, de um lado
para o
outro. Escute o som da minha voz, o único barulho no mundo...
Dan sentiu o frio invadir seu corpo. Ele estava no chão, com as pernas
estendidas, e a
grama úmida molhava sua calça.
Pelo menos os Scarlets não estavam mais lá. Não havia mais ninguém o chutando.
Scarlets. No plural. Era ainda pior do que ele imaginava.
– Ele acordou.
Dan piscou algumas vezes, olhando para Jordan, que estava inclinado sobre ele.
Quando esticou as mãos, Jordan e Abby se ofereceram para ajudá-lo.
– Os Scarlets – murmurou Dan. – Eu acabei de... Eles estavam no labirinto, e os
sapatos... Eu vi os sapatos do Cal. Não é só uma pessoa seguindo a gente, eles... É
um
bando! Eles me atacaram – ele esfregou a testa, ainda um pouco tonto. – Mas essa
não
foi a pior parte. Os pesadelos? Bom, não estão acontecendo apenas quando eu durmo.
Esse último veio do nada. Não sei o que provocou isso agora.
– Está acontecendo com frequência? – indagou Abby, segurando-o com força pelo
braço.
– Sinceramente, não sei. Estou começando a me perguntar se aquele garotinho não
era uma parte disso... de um sonho acordado. Só que, dessa vez, eu estava em um
lugar
diferente. E não era mais eu mesmo.
– Como assim, você viu os sapatos do Cal? Era ele que estava usando? Ele estava
no
labirinto? – Jordan o ajudou a se levantar.
Eles estavam bem ao lado da saída. Dan não se lembrava de ter sido carregado
para
fora.
– Quatro Scarlets... Eles estavam usando manto e máscara, mas as roupas não eram
muito compridas. Eu vi aqueles docksides que você tanto detesta.
– Tem certeza? – questionou Abby, que o segurava pelo outro braço. – Mais de uma
pessoa pode ter sapatos como aqueles.
– Não, eram os dele mesmo. Eu vi.
– Fica aqui, eu vou buscar uma coisa para você beber – falou Jordan. – Parece
que
você está precisando.
Jordan abriu caminho entre os estudantes que aguardavam na fila das atrações e
das
comidas, e seus cabelos escuros e ondulados desapareceram atrás de uma parede de
casacos e gorros. Abby tentou confortá-lo acariciando seu braço.
– Eu estou bem – ele garantiu, sorrindo para ela. – De verdade.
Abby teve um sobressalto, e em seguida sacou o celular do bolso.
– É o Jordan. Ele não trouxe dinheiro. Você vai ficar bem? Só vou até a fila dar
uns
trocados para ele.
– Pode ir – falou Dan. – Eu já estou bem.
O sorrisinho que ela abriu não pareceu muito convincente, e seus lábios logo se
voltaram para baixo. Ele ficou parado em seu lugar cada vez menos vazio, pois mais
e
mais estudantes, professores e habitantes da cidade iam chegando ao parque de
diversões. À sua direita havia uma fileira de barracas de comida, todas elas do
pessoal de
Camford, com placas anunciando que seus ganhos seriam revertidos em doações para o
seminário sobre saúde mental que a professora Rey es mencionou. Ele tentou
localizar
Abby e Jordan na fila da cidra e do chocolate quente, mas não conseguiu encontrá-
los.
No entanto, viu uma estranha barraca atrás das demais. Estava isolada sob a sombra
de
uma árvore enorme e desfolhada.
Dan não ia mais a lugar nenhum sem as fotos que juntou, e remexeu no bolso à
procura delas, em especial a da barraca com a gaiola que encontrou no gramado de
Lucy.
É a mesma barraca.
Bobagem, ele pensou. Porém, aquela barraca parecia mesmo um tanto deslocada ali.
Uma anomalia. Seus pés o conduziram automaticamente por entre as filas de
frequentadores, para além dos vendedores de alimentos. Ele se esgueirou pela fila
do
cachorro-quente e da pipoca, e mergulhou em um bolsão de silêncio.
Uma sombra surgiu à sua esquerda, passando mais perto do que Dan gostaria. Ele
se
encolheu e, ao olhar para o lado, viu um rosto pintado de branco o encarando. Um
palhaço. Sua maquiagem estava amarelada e desbotada perto dos olhos, e a pintura em
sua boca produzia a impressão de um sorriso macabro e ensanguentado.
– Ei – murmurou Dan quando o palhaço esbarrou nele.
– Está indo ver aquele hipnólogo bizarro, garoto? – grasnou o palhaço.
Ele cheirava a cigarro. Antes que Dan pudesse responder, uma luva branca
encardida
bateu em seu peito, deixando para ele uma fileira de ingressos enrolados. Dan os
pegou
sem pensar, sentindo que não tinha outra escolha.
– Seis por dez centavos, um preço imbatível – o palhaço jogou a cabeça para trás
e
caiu na risada, quase derrubando a peruca cor de laranja. – Isso se você gostar
desse tipo
de coisa. Já eu não quero saber de ninguém bagunçando meu crânio.
O palhaço deu um tapinha na própria cabeça e saiu do caminho de Dan, tossindo na
luva encardida.
Dan abriu a mão em que estavam os ingressos, desenrolando-os enquanto caminhava
na grama úmida como se estivesse deixando para trás uma trilha de farelos. Os
ingressos
antiquados pareciam ter ficado nas mãos suadas do palhaço durante anos. O papel
estava
rachado nas extremidades, e estampava em letras garrafais: “DR. MAUDIRE, O
MAGNÍFICO – HIPNÓLOGO EXTRAORDINÁRIO”. A lista de qualificações e feitos
do doutor estava no verso. Pelo jeito ele era capaz de curar insônia, fobias e até
apetites
carnais desmedidos.
Nada disso interessava muito a Dan. O que o atraiu até lá foi a placa ao lado da
barraca, junto com a gaiola e tudo o mais que viu na foto. Ele olhou para a imagem
que
trazia consigo e franziu a testa. Era tudo idêntico, a não ser a gaiola do lado de
fora, que
estava vazia. Devia ser algum tipo de brincadeira.
Ou alguém quer você aqui.
Eles já sabiam que o mascarado não havia derrubado a foto por acidente. E Dan
estava disposto a entrar naquela barraca de qualquer maneira. Havia um magnetismo
inexplicável o chamando para lá, o mesmo impulso que o levou até o porão do
Brookline
no verão, onde ficavam a sala de operações e os quartos dos pacientes...
Dan enfiou a foto de novo no bolso da calça e respirou fundo. O vento abriu a
barraca
do hipnólogo. Dois olhos escuros se espicharam lá para fora e desapareceram em
seguida. Havia alguém à sua espera.
Seis por dez centavos, um preço imbatível.
Por cima do ombro, Dan olhou para o parque de diversões, que parecia estar a
quilômetros de distância. Depois se virou e entrou com seus ingressos na mão.
O interior da barraca cheirava a fumaça e especiarias. Havia outra gaiola em um
canto,
também vazia. Pedaços de tecido pendurados ocupavam o centro da tenda, presos a
postes e cordas para formar corredores estreitos e esconderijos. As velas
espalhavam
sua cera arroxeada enquanto queimavam em candelabros que chegavam à altura da
cintura de Dan.
– Hã, oi?
Dan espiou atrás de algumas das paredes de tecido, afastando-as com as mãos.
Ele
moveu uma cortina de tecido preto e grosso e deu um pulo para trás ao dar de cara
com
um homem idoso com um pássaro no ombro. A ave era vermelha e branca, e tinha
apenas um olho.
Eu conheço esse bicho, como ele ainda está vivo?
– Imaginei que você apareceria aqui – falou o homem, ajustando sua cartola
velha e
mal ajambrada.
Ele sorriu e mostrou dentes que de tão desgastados pareciam quase translúcidos
e
quase soltos das gengivas. O cheiro de especiarias era sufocante, e o nariz de Dan
coçava
furiosamente. Ele deu um passo atrás e ergueu seus ingressos para o homem, quase em
um gesto de defesa.
– O que você quer que eu faça com isso? – o homem deu risada, e o pássaro o
imitou.
– Não posso refazer o que já foi feito, filho.
– Não entendi – respondeu Dan, dando mais um passo atrás. – Como você sabia que
eu ia vir aqui?
Os olhos do hipnólogo brilharam sob a luz das velas. Ele deu risada.
– Você não é tão esperto, filho, mas a semelhança é clara. É só observar bem.
Ele estreitou os olhos, medindo Dan de cima a baixo e ajeitando as lapelas do
fraque.
– Você está falando de Daniel Crawford – não adiantava tentar se resguardar. Se
o
velho estava desconfiado, talvez se fosse direto ao assunto ele conseguisse
encorajá-lo a
fazer o mesmo. – Mas isso é impossível. Você não pode ter falado com Daniel
Crawford
e agora estar aqui comigo. Não envelheceu nada desde o sonho...
O hipnólogo arreganhou as gengivas em um sorriso ainda mais escancarado antes
de
tirar do bolso uma velha charuteira e uma caixa de fósforos. Ele prendeu um charuto
entre os lábios e estalou os dedos, fazendo um palito se acender.
– Você costuma olhar para o céu? Para as nuvens?
– Claro – respondeu Dan.
– Você pode ver uma nuvem passando e pensar: “Ora, é a imagem perfeita de um
coelho”. Eu posso olhar para essa nuvem e ver um morcego ou um urso. Outros podem
olhar para a mesma nuvem e não ver nada.
Maudire, caso aquele fosse mesmo ele, soltou uma lufada de fumaça e pôs o
pássaro
de volta na gaiola. A ave saltou de seu ombro, gritando “Turco, turco!”.
– Você olha para esta barraca velha no meio das sombras e vê o velho Maudire.
Isso o
torna muito especial, certo? Rá! Isso o torna uma pessoa única.
Dan afastou a fumaça com a mão e franziu a testa.
– Então está me dizendo que isso é alucinação? Mas estou vendo você. Sentindo
seu
cheiro...
– Se você diz que está vendo, então está vendo, filho – respondeu o hipnólogo,
encolhendo os ombros. – Quem sou eu para julgar? – ele pegou a fileira de ingressos
que
Dan entregou. Ele não se lembrava de quando exatamente tinha feito isso. – Você
pagou
um bom dinheiro, então precisa ganhar alguma coisa em troca. Mas não posso refazer
o
que já foi feito, por isso você vai ganhar algo novo em folha – ele sorriu com o
charuto
na boca e olhou para o pássaro. – Você não pode refazer o que já foi feito, mas
pode
desfazer. Não é fácil, mas você pode desfazer.
– Desfazer o quê? – Dan ouviu sua voz se exaltar. – Do que você está falando?
– Tudo vai fazer sentido quando chegar a hora... Toda fechadura tem sua chave,
não?
E toda prisão também. Você está preso dentro da sua cabecinha, mas existe uma forma
de escapar. Algumas pessoas chamam isso de chave, outras de senha, outras de salvo-
conduto. O nome não faz diferença, o importante é que você encontre.
– Você foi assim com Daniel Crawford também? – murmurou Dan, incapaz de levar
aquelas palavras a sério. – Ficou só enrolando quando ele veio falar com você?
– Não, com certeza não – respondeu Maudire, bem sério. Ele jogou o charuto no
chão
e apagou com a sola da bota. Em seguida se sentou em um banquinho alto, apoiou as
mãos nos joelhos e soltou um suspiro longo e profundo. – Não, eu fui bem direto e
certeiro com aquele pestinha. Como uma flecha. O maior erro da minha vida.
Seu olhar distante e atormentado se ergueu do chão para Dan, e por um segundo
ele
teve certeza de que os olhos do hipnólogo estavam se enchendo de sangue.
– Isso é tudo que sua moeda pode comprar, filho – disse o hipnólogo. – O melhor
dinheiro que você já gastou.
– Eu não paguei pelos ingressos – respondeu Dan, caminhando para trás e saindo
lentamente da barraca.
O hipnólogo deu uma risadinha, mostrando seus dentes amarelados outra vez.
– Ah, pagou, sim. Você pagou, não? Você sabe que sim.
Dan cambaleou para fora da barraca de volta para o frio, ainda com o cheiro de
fumaça
e especiarias nas narinas.
Merda, Abby e Jordan devem estar preocupados.
Ele passou correndo pelos carrinhos de comida, e encontrou o parque de
diversões
ainda mais lotado do que antes. Em meio à multidão de pessoas indo e vindo, ele
localizou seus amigos em uma pequena clareira perto do carrinho de pipoca.
– Ei! – ele gritou, correndo na direção deles. – Desculpa... Eu, hã, vi uma
barraca e
quis saber o que era. Não queria sumir desse jeito – o palhaço que lhe deu os
ingressos
passou ali por perto, sorrindo para eles. – Minha nossa, eles podiam ter feito
outro tipo de
maquiagem nesses caras... Isso está um horror.
– Dan, você precisa parar de sumir desse jeito, a gente estava morrendo de
preocupação – falou Abby, sacudindo a cabeça. – Eu mandei cinco mensagens para
você!
Ele não tinha pensado em verificar o celular, nem sentido o aparelho vibrar em
seu
bolso. Quando viu as cinco mensagens não lidas, enfiou de volta o celular no
casaco.
– É sério, eu não queria deixar ninguém preocupado. É que tem uma barraca,
aquela
ali, igualzinha à da foto.
Abby ia entregar para ele uma garrafa de água, mas interrompeu o gesto quando
ele
sacou a foto do bolso e a ergueu para que seus amigos vissem por si mesmos.
– Dan... – Jordan limpou a garganta, impaciente. – Aquilo é uma árvore.
Dan piscou algumas vezes, olhando outra vez para a foto e para a barraca. A...
barraca? A árvore. Jordan tinha razão. Não havia nada lá, apenas o espaço vazio no
gramado onde deveria estar a barraca de Maudire.
– Não é possível – insistiu Dan. – Eu estava lá. Estava dentro da barraca.
Conversei
com o hipnólogo, o dr. Maudire! Juro para vocês que não é invenção minha. Ele me
falou
sobre uma senha, ou salvo-conduto, sei lá. Não entendi quase nada.
– Beba um pouco, Dan – falou Abby, entregando a água para ele. – Você está
desorientado, pode estar desidratado.
– Ele disse mesmo que estava tendo alucinações – lembrou Jordan. – Parece que
está
piorando.
– Eu não disse alucinações... – mas a inexistência da barraca de Maudire era bem
evidente. Nem todas as negações do mundo seriam capazes de mudar o fato de que a
verdade estava diante de seus olhos. – Eu nunca ia inventar uma coisa dessas.
– Eu sei que não – respondeu Abby, bem séria. – Acredito em você, Dan, mas isso
só
torna tudo ainda mais assustador.
– Sem querer interromper – Jordan disse baixinho, cutucando os dois com o
cotovelo
–, mas estamos sendo observados. É melhor a gente fingir que está se divertindo
antes
que seu amigo Micah tenha um ataque.
Dan seguiu o olhar de Jordan e viu Micah no meio da multidão, acenando para
eles.
– Não vamos perder muito tempo falando com ele. Precisamos sair de fininho e
verificar os endereços que faltam.
– Se você não estiver bem...
– Eu estou, sim, Abby, juro. E quero perguntar para ele por onde anda o Cal –
acrescentou Dan. – Por enquanto vamos fingir que não sabemos de nada. Quero ver a
reação dele.
Abby foi abrindo caminho até a mesa dos voluntários, onde os estudantes
distribuíam
mapas do parque de diversões e esclareciam as dúvidas dos frequentadores. Muitos
deles
estavam servindo como guias do tour mal-assombrado pelo campus e arredores. Micah
fez um sinal para que fossem até seu lado da mesa, um pequeno posto de comando
montado não muito longe dos carrinhos de comida. Cal se esgueirava pela massa de
gente na direção deles, não mais de túnica e máscara, mas isso não fazia muita
diferença. Lara estava com ele, e traziam copos de cidra.
Dan demorou um tempo para conseguir abrir um sorriso fingido. Ele evitou encarar
Cal, ficou olhando apenas para os sapatos que tinha visto momentos antes.
– Valeu – falou Abby, abrindo um sorriso radiante para Lara. – Está um frio de
rachar.
– A última coisa que a gente precisa é de um candidato morrendo de gangrena por
causa do frio – resmungou Cal.
Dan torceu para que sua raiva não ficasse muito evidente em seu rosto.
– Cal está rabugento porque eu pedi para ele vir junto comigo – explicou Lara.
Ela estava usando uma camiseta laranja de voluntário por cima de uma camisa
xadrez de manga comprida. Seus cabelos pretos estavam escondidos pelo gorro de lã
cor-de-rosa com orelhas de gatinha que usava na cabeça.
– E esse tour mal-assombrado, como é? – quis saber Abby, puxando assunto com
Lara.
Cal se virou para falar com uns candidatos que também estavam esperando pelo
tour,
e bateu em Jordan com a mochila enorme e lotada que carregava nas costas. Estava
tão
cheia que o zíper parecia prestes a estourar. Dan deu um gole em sua cidra. Estava
aguada, e deixou um gosto estranho em sua boca.
– Ah, é bem legal, na verdade...
Mas Dan não estava mais ouvindo.
– Vamos brincar, você não quer vir brincar, Daniel, Daniel...
Ele deu uma volta inteira em torno de si, bem devagar, mas não conseguiu
localizar
de onde vinha a voz. Era o sussurro suave da menina outra vez.
– Daniel... Daniel...
Agora estava vindo de outra direção. Ele se virou de novo, só que rápido demais,
e
acabou esbarrando em Abby. O copo de cidra saiu voando da mão dela e caiu em cima
da mochila de Cal.
– Ai, desculpa! – ela gritou, correndo até ele.
Lara foi até a mesa dos voluntários e voltou com alguns guardanapos. Cal já
estava
ajoelhado ao lado da mochila, mas não parecia disposto a limpar a cidra com suas
luvas
de couro caríssimas.
– Pode deixar – disse Abby, pegando os guardanapos e começando a limpar a
mochila. – Foi um acidente.
Ela bateu a mão no zíper estufado, e a mochila enfim cedeu e se abriu. A ponta
de um
fichário apareceu lá dentro. Dan conseguiu ver apenas o número 19 na lombada pouco
antes de os papéis começarem a se espalhar por toda parte, caindo do fichário para
o
chão como folhas de árvore secas. Abby soltou um grito de surpresa e começou a
recolher os papéis, que estavam começando a ser espalhados pelo vento. Ela e Cal
pegaram todos de volta. Dan viu a expressão de vergonha no rosto dela ao devolvê-
los
para ele.
– Desculpe, foi sem querer.
Cal apanhou a mochila de volta com um gesto protetor, escondendo-a entre os
braços.
– Tudo bem – ele murmurou. – Deixa que eu limpo.
Quando Cal se afastou, carregando a mochila molhada no colo como um bebê, Dan
puxou os dois amigos de lado.
– Vocês viram, né? Aquele fichário... Era um dos que estavam faltando. Estão com
ele.
– E ele ainda fez aquilo com você no labirinto? – Jordan soltou uma risada
sinistra. – O
que vocês acham que ele está tramando?
– Se ele estiver possuído como Felix, pode estar fazendo isso para alguém, sem
nenhum motivo pessoal – comentou Abby, aflita.
– Seja como for, todos os indícios parecem apontar para ele – afirmou Dan. –
Precisamos ver o que tem dentro daqueles fichários.
– Isso pode ser mais fácil do que você imagina – ela falou com um sorriso
malicioso
antes de abrir o casaco e mostrar no mínimo uma dúzia de folhas guardadas lá
dentro.
– Estou gostando dessa sua tendência cleptomaníaca – comentou Jordan, aos risos.
– Vocês acham mesmo que eu fiz tudo aquilo por acidente? – acrescentou ela. –
Esperava ver um manto dentro da mochila, mas não rolou.
– Ei! Vocês querem ir com a gente no próximo grupo? Tem vaga sobrando! – era
Lara, que tinha voltado com outro copo de cidra para Abby. – Que tal?
– Perfeito! – Abby deu um passo à frente e em seguida se virou para eles. Ela
entregou os papéis roubados para Jordan. – Vamos ficar sempre uns passos atrás do
grupo – ela murmurou. – Assim que surgir uma brecha, a gente se manda.
– Alguém mais está achando estranho não terem falado do Brookline? Tipo nada? –
questionou Jordan.
A guia do passeio, seguindo o caminho iluminado pelas lamparinas, fez o grupo
parar
diante de uma casa a uma quadra da capela. Todo mundo, inclusive Dan, aproveitou
para
dar um gole de cidra e se esquentar.
– O passeio acabou de começar – argumentou Abby, sussurrando. – Dá um tempo.
– Mesmo assim...
– Eles não podem falar nada de negativo sobre a faculdade – lembrou Dan. – Se
começarem a falar do Brookline, o pessoal vai procurar no Google e um monte de
coisas
vai vir à tona. Aposto que esse assunto é tabu por aqui.
– Fiquem na minha frente – pediu Jordan. Ele estava com os papéis roubados por
Abby em uma das mãos e o celular na outra, servindo como lanterna. – Quero
verificar
o que é tão importante assim para não poder ficar na biblioteca. Por favor, me
acordem
se por acaso esse tal tour ficar interessante.
Dan e Abby o esconderam do restante do grupo. Micah e Lara estavam ao lado da
guia do passeio, mas cochichando o tempo inteiro, aparentemente brigando, a julgar
pela
expressão em seus rostos.
– Essa casa era de um antigo reitor da faculdade – explicou a guia. Era
baixinha e
atarracada, com pinta de atleta e cabelos loiros compridos e encaracolados. Atrás
dela,
uma casa antiga em estilo vitoriano praticamente reluzia por causa de todas as
velas
acesas lá dentro. – O reitor Amos Van der Holt. Ele era adorado pelos estudantes,
mas
morreu bem jovem, em circunstâncias misteriosas. Dizem que ainda dá para ver a
silhueta dele nas janelas todo 22 de novembro, o dia em que ele morreu. O vulto
está
sempre com um cachimbo na boca, assim como era costume do reitor Van der Holt.
Abby deu uma risadinha. Em comparação com as coisas que vinha vendo naqueles
meses, um fantasma de cachimbo seria uma visão quase divertida.
O grupo foi seguindo pela quadra, virou à direita, caminhou mais um quarteirão
e
depois virou à direita de novo. As casas por ali estavam começando a parecer
familiares.
De tempos em tempos, os tênis de Jordan esbarravam nos de Dan enquanto ele
caminhava e examinava os papéis ao mesmo tempo.
– Pessoal, estamos na rua Ellis – anunciou Dan. – A casa de ontem à noite é logo
ali.
– Certo, agora estou assustado – murmurou Jordan, baixando os papéis. – Muito
bem,
tour mal-assombrado, você tem minha atenção. E se eles pararem naquela casa?
– Aí a gente escuta o que ela vai falar – respondeu Abby, erguendo a cidra na
altura
do queixo. Dan sentiu o cheiro de canela subir junto com a fumaça sobre o rosto
dela. –
E depois arrumar uma brecha para ir ver as outras casas. O tempo está passando.
E, como previsto, o grupo parou bem na frente da entrada para carro asfaltada da
casa.
A guia do passeio apontou com o polegar para a casa e deu uma olhada nos papéis
que
levava na outra mão.
– Essa casa está vazia faz uns vinte anos, mas pertencia aos Cartwright e seu
filho
Harry, que foi o responsável pela correspondência de Camford durante seis anos, até
1971, quando foi forçado a se demitir. Ele foi considerado suspeito pelo
desaparecimento
de várias mulheres da cidade...
Dan apertou seu copo de cidra um pouco forte demais, e o isopor rachou. Ele
conhecia aquele nome de seus sonhos – tinha até conversado com Harry Cartwright.
Não, foi o diretor quem falou com Harry Cartwright, não eu.
– Encontramos a carta da Caroline naquela casa, e ela mencionou explicitamente
um
homem chamado Harry – murmurou Abby. A palidez em seu rosto era visível, apesar da
pouca iluminação no local. – Vocês acham que ela pode ser uma das mulheres
desaparecidas?
– Eu acho – respondeu Jordan. – Se a sociedade secreta ficou sabendo do artigo e
das
cartas que ela andava escrevendo, ia querer que ela sumisse. Escutem só... – ele
segurou
discretamente os papéis tirados da mochila de Cal na altura da cintura, iluminando
a
primeira página com a tela do celular. Ele apontou para uma fotografia desbotada e
quase indecifrável de uma casa de fazenda. – O jornal da faculdade publicou
matérias
sobre essas pessoas desaparecidas.
– Então, vendo pelo lado bom, esses papéis podiam estar na mochila do Cal porque
ele
ia precisar desse material para o tour – argumentou Abby. – Tipo, ele foi um dos
organizadores do evento.
– Eu não acredito nisso, não – murmurou Dan.
Vários candidatos chegaram mais perto da guia do passeio para ouvi-la melhor.
– E encontraram essas mulheres? – perguntou um deles.
A guia até tentou encarar questionamentos com um sorriso, mas sua tensão era
visível.
Micah e Lara estavam ocupados demais discutindo para ajudá-la.
– Vamos – falou Abby, se afastando do grupo. – É a nossa chance... Enquanto eles
estão ocupados.
Com os olhos voltados para a guia do passeio e a casa dos Cartwright, Dan foi
seguindo de perto os passos de Abby. Eles continuaram se afastando até se separarem
do
grupo, e Abby foi correndo para trás de uns arbustos no jardim do vizinho. Dan
soltou um
suspiro de alívio, com a certeza de que tinham conseguido escapar de fininho.
– Fugindo de novo?
– Merda – murmurou Jordan, fazendo uma careta ao ver Micah do outro lado dos
arbustos e enfiando os papéis dentro da jaqueta. – Como a gente faz para se livrar
dele?
– Não tem jeito – respondeu Dan, e se virou para Micah. – E aí? O que está
rolando?
– Nada de interessante. Acho que a Lara não gostou do jeito como eu estava
olhando
para Melissa, a guia do passeio, então rolou, hã, um desentendimento. Achei melhor
a
gente se afastar e tomar um ar, sabe?
– Então você e a Lara... são um casal? – indagou Dan.
– Nós fomos, no primeiro ano de faculdade. Mas ela faz o tipo ciumento, se é que
você me entende.
Jordan puxou a manga de Dan, tentando dar a deixa para ele inventar uma desculpa
qualquer para Micah e sair logo dali. Dan, porém, estava com a impressão de que não
ia
conseguir se desvencilhar de Micah tão facilmente. Eles tinham levantado suspeitas
várias vezes, e agora precisavam lidar com isso.
– A gente encontrou umas notícias bem assustadoras sobre a cidade hoje na
biblioteca
– improvisou Dan. – Como a guia do passeio estava totalmente perdida, sem ofensas,
a
gente resolveu ir atrás de umas casas assombradas de verdade.
Abby lançou um olhar incrédulo para Dan. Ela claramente não concordava com o
que ele estava fazendo.
– Acho que é a época certa para isso... Que casa você tem em mente?
– Tem uma não muito longe daqui – respondeu Dan, tirando o celular do casaco e
abrindo o GPS. – Eu vou pegar o endereço.
– E como você sabe qual casa é mal-assombrada? – questionou Micah.
– A gente... tinha uma notícia sobre mulheres desaparecidas nos anos sessenta, e
uma
delas morava aqui perto – dessa vez era Abby quem estava improvisando. Sua voz saiu
meio trêmula, mas Micah assentiu com a cabeça, aparentemente acreditando. –
Assustador, não?
– A casa pode não estar vazia – respondeu Micah. – Mas podemos ir dar uma
olhada.
Só que nada de gritar, certo? Se a Lara perceber que a gente saiu de fininho, ela
acaba
comigo.
– Aqui – apontou Dan, mostrando o mapa para ele. – Estamos tentando chegar aqui.
Você conhece essa rua?
– A Virgil? Sim. A Casa das Artes fica nessa rua – Micah coçou o queixo, olhando
para
o mapa. – Eu já fui a algumas festas por lá. Podemos cortar pelo beco na Butler,
para
economizar alguns minutos de caminhada.
– Ótimo! – falou Dan, com um entusiasmo fingido. – Vamos lá.
O vento ficou mais forte quando eles saíram da rua Ellis e entraram em uma
ruazinha
estreita ladeada de casas.
Uma árvore havia conseguido espaço para crescer bem no meio do beco, com seus
galhos quase roçando as fachadas das casas. Dan olhou para trás para ver se ninguém
do
grupo havia percebido sua escapada, e imediatamente se arrependeu. O garotinho
pálido
de blusa listrada estava de olho neles e, apesar de não ter espiado por muito
tempo, Dan
podia jurar que estava sorrindo.
O beco terminava em uma calçada em péssimo estado de conservação. As árvores
eram maiores e mais numerosas nessa rua, bloqueando a luz fraca do poste. Micah
virou
à esquerda, atravessando com passos firmes um cruzamento vazio. A maioria das
crianças que saíram para pedir doces já tinha voltado para casa, e os últimos
grupos que
restavam não pareciam muito interessados neles, ocupados que estavam com os sacos
cheios de guloseimas e os pais resmungões. Havia algumas abóboras ainda nas
varandas,
com velas acesas dentro.
– Estamos quase lá – disse Micah enquanto atravessavam a rua. Ele subiu a gola
do
casaco para se proteger do frio. – Ainda estão a fim de fazer isso?
– A ideia foi minha, lembra? – Dan apertou o passo e se colocou ao lado dele.
Ele viu
uma casa verde do outro lado da rua, com uma escultura de cobre enorme no jardim da
frente. – Aquela é a Casa das Artes?
– Como você adivinhou? – Micah deu uma risadinha. – Parece que não tem nenhum
carro na garagem. Vamos atravessar aqui.
Dan esperou alguns segundos antes de atravessar, para falar com Abby e Jordan.
Ele
não ficou surpreso com a expressão emburrada de Abby.
– E então, o que você vai fazer se a gente encontrar alguma coisa? – ela
sussurrou,
sem tirar os olhos de Micah.
– Sei lá – admitiu Dan. Infelizmente, era verdade. – Eu nem pensei nisso.
– A gente não sabe nem se Micah não é um deles! Ele podia estar junto com Cal no
labirinto!
– Não, ele não. Acho que a gente pode confiar nele. Foi ele quem avisou sobre o
Cal,
lembram? – além disso, Micah tinha limpado a barra de Dan na festa, fazendo aquele
elogio para Abby. Ele não era um riquinho como Cal, nem do tipo que se deixaria
enredar por uma sociedade secreta. – Às vezes é preciso mudar de planos. É isso que
estamos fazendo.
– E eu estou deixando bem claro que isso não é uma boa ideia – rebateu Abby.
– Anotado...
– Além disso, acho que você está sendo ingênuo por acreditar em alguém desta
faculdade.
– Ele já tinha visto a gente – resmungou Dan. – É só não deixar que ele perceba
o que
estamos procurando.
– Vocês vêm ou não vêm?
Micah fez um gesto para eles na calçada. Logo atrás, havia um sobrado caindo aos
pedaços à espera deles nas sombras. Escura e úmida, a casa parecia estar inteira
mofada, até o telhado, que estava todo empenado. Os números ao lado da porta da
frente
estavam tortos. Um deles estava inclusive de cabeça para baixo, preso por apenas um
dos parafusos.
– Parece mal-assombrada mesmo – comentou Jordan, fazendo uma careta. – Nós
vamos mesmo entrar aí?
– Sim – respondeu Dan.
– Não dá mais para voltar atrás?
– Não mesmo.
– E agora? – questionou Micah, se virando para eles. – Vocês trouxeram um
tabuleiro
de ouija ou coisa do tipo?
É o momento da verdade, pensou Dan, e em mais de um sentido. Ele respirou fundo,
tentando organizar seus pensamentos. Se Micah se recusasse a colaborar – se
voltasse
para o campus e contasse que eles estavam invadindo propriedades, ou pior, se
chamasse
a polícia – a viagem dos três teria um fim abrupto e nada feliz.
– Agora a gente entra e dá uma olhada lá dentro.
Micah estreitou os olhos, e por um minuto Dan teve a certeza de que eles estavam
ferrados. Ele alisou o cavanhaque no queixo, olhou para Jordan e depois para Abby.
– Como falei para você... Já me meti em encrenca uma vez, e não quero que
aconteça de novo, Dan.
– Mas parece que ninguém entra aí há anos – ele rebateu. – Não tem nenhum carro
na garagem. Nenhuma luz acesa. O lugar está caindo aos pedaços. A gente só quer dar
uma olhada lá dentro.
– Ah, sim, e se alguém perceber que estamos lá dentro e chamar a polícia, no
mínimo
eu perco meu emprego na faculdade – Micah franziu a testa, virando-se para a casa.
–
Por outro lado, acho que não trouxe vocês aqui só para admirar a vista, né?
– É esse o espírito – falou Jordan, sarcástico. – E será que agora podemos sair
do meio
da rua? Não estamos sendo muito sutis aqui.
Jordan não esperou por uma resposta. Ele foi andando pela entrada para carros,
mantendo-se na beirada do gramado alto. O quarteirão como um todo parecia menos
bem conservado que o anterior, com poucas casas decoradas para o Dia das Bruxas e
muitos sobrados em estilo vitoriano sem nenhuma luz acesa. Nada ali parecia muito
acolhedor. Mesmo com a cidra aquecendo seu organismo e o cheiro reconfortante das
folhas queimadas no ar, Dan não conseguia afastar a sensação de que a atmosfera
tóxica
daquela casa tinha apodrecido muito mais do que apenas as tábuas da fachada.
Eles chegaram à garagem e ao portãozinho com cerca que dava acesso à casa. O
mecanismo de fechamento era um trinco simples, que podia ser aberto facilmente,
pois
tinha como objetivo ser um obstáculo apenas para crianças pequenas e cachorros.
Jordan
puxou o trinco, e o portão se abriu com um rangido agudo.
– A porta de correr não parece ser das mais seguras – murmurou ele, segurando o
portão para os outros entrarem. – Vou tentar abrir... caso contrário vamos ter que
usar
uma janela.
Micah hesitou a passar pelo portão, olhando para Jordan com um sorrisinho no
rosto.
– Vocês costumam fazer isso sempre?
– Meus pais não me deixam sair de casa sem permissão – respondeu Jordan
secamente. – Tive que aprender a burlar as regras.
– Ei, cara – Micah disse com uma risadinha que Dan não conseguiu identificar se
era
de divertimento ou de alguém na defensiva. – Pode burlar à vontade. Eu só não sabia
que
você era um seguidor do Houdini.
– Não precisa ser nenhum Houdini para fazer isso – com um simples puxão na
maçaneta, a porta de correr se abriu. Com um sorriso, Jordan fez um gesto para que
eles
entrassem. – Abracadabra?
– Vamos falar baixo – Abby pediu. – Os vizinhos ainda podem estar acordados.
Dan foi o primeiro a entrar, aliviado por constatar que suas suspeitas estavam
corretas: não havia ninguém na casa, que parecia estar vazia fazia um bom tempo.
Mais
ou menos uns trinta anos, a julgar pelo carpete marrom e a mobília antiga. Jordan
fechou
a porta atrás deles, e os quatro se viram em uma sala de jantar com uma cozinha
americana.
– Todas as fotos foram tiradas – comentou Abby, indo até uma mesinha baixa. Ela
pegou um porta-retratos vazio e empoeirado. – E vejam só... – ela largou o porta-
retratos
e passou para a sala de estar logo adiante. – Está tudo encaixotado. Parecem caixas
de
mudança.
Dan foi atrás dela. A poeira subia pelo ar. Lençóis brancos haviam sido
estendidos
sobre os sofás e as poltronas. Mesmo sem os sinais de abandono, Dan era capaz de
sentir
a solidão daquele lugar. Casas deveriam ser confortáveis e aconchegantes. Mas
aquela...
– Que lugar frio – ele murmurou, vendo o ar se condensar em vapor ao sair de
sua
boca. – Está um gelo aqui dentro.
– Vou dar uma olhada nos quartos – falou Jordan, se afastando e desaparecendo
em
um corredor escuro.
Dan viu apenas o brilho da tela do celular dele iluminando o caminho.
– Vou olhar lá em cima – falou Dan, ansioso para fazer uma vistoria rápida no
local e
ir embora.
Ele não sabia se podia confiar em seus instintos, mas, caso pudesse, era
aconselhável
dar o fora dali o quanto antes.
– O que estamos procurando? – ele ouviu Micah perguntar enquanto se dirigia até
a
escada.
– Fotos, álbuns de recortes – Abby falou. Sua voz ia ficando mais distante à
medida
que Dan avançava. – Sabe como é, coisas assustadoras para guardar de lembrança
desta
noite.
As vozes dos dois desapareceram por completo, substituídas pelo som de sua
respiração e o som de seus passos nos degraus. Dava para ver que os anos de uso
tinham
deixado a madeira da escada bem gasta. Lá no alto, o corredor era apertado, e o
teto era
baixo. Havia um banheiro imediatamente à sua frente, vazio, a não ser por uma
banheira
com pés enferrujados com forma de garra. Ele ligou o celular e usou o brilho da
tela
para iluminar os azulejos brancos e azuis e o revestimento de porcelana que
adornava
torneiras e maçanetas. Dan seguiu pelo corredor. À sua esquerda, viu uma abertura
que
dava acesso a um quarto, ou o que restava de um – uma cama velha e um colchão em
estado de decomposição. Assim como no andar de baixo, havia algumas molduras
penduradas nas paredes em ângulos bizarros, mas sem nenhuma fotografia.
Dan voltou para o corredor, virando à esquerda para ver o último cômodo. O chão
rangeu sob seu peso. A última porta era pequena, mal dava para um adulto passar.
Ele
teve que se agachar para entrar. A luz fraca da tela saltitou como um inseto pelo
quarto,
revelando dois beliches velhos e uma mesinha de criança pintada com desenhos de
caminhões de bombeiros e bolas de beisebol. Dan permanecia imóvel no centro do
quarto improvisado no sótão. O telhado era inclinado naquele ponto da casa, como em
um celeiro. Os baús, as camas e as tranqueiras deixadas ali tornavam o ambiente
claustrofóbico.
Ele foi até a janela empoeirada entre os dois beliches e olhou para a casa ao
lado. As
construções ali eram tão próximas umas das outras que só dava para ver uma parede.
Com um suspiro, ele se virou para sair. Aquela casa era um mato sem cachorro. A não
ser que os outros tivessem encontrado algo lá embaixo, era apenas uma cápsula do
tempo abandonada e esvaziada, sem fotos, cartas, nem qualquer tipo de pista.
Soltando um palavrão, Dan tropeçou na beirada de um tapete. Depois de recuperar
o
equilíbrio, ele constatou que, no local onde tinha chutado o tapete, havia um
desenho nas
tábuas do piso. Ele se ajoelhou, e seu pulso se acelerou ao passar a mão por uma
superfície de madeira mais conservada e reluzente. O tapete preservou bem o local,
e a
imagem também. Mãos pequenas e meticulosas tinham pintado o contorno de um
menino, que Dan reconheceu pelas listras da blusa. Seus dedos tocaram uma
superfície
fria, e ele estreitou os olhos sob a luz fraca para ver um pequeno alçapão.
Ele puxou o gancho, revelando uma pequena abertura retangular. A poeira se
elevou
na escuridão e se acumulou em sua garganta. Quando direcionou a luz do telefone lá
para dentro, encontrou um pequeno esconderijo, com tamanho suficiente apenas para
abrigar uma caixa metálica embrulhada em um pano. Uma velha lata de doces, talvez,
mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos, com uma pintura ainda intacta e
de
cores vivas. Dan abriu a tampa com cuidado, revelando um diário de criança, um
saquinho de bolas de gudes, algumas cartas de baralho, embalagens de chiclete...
Havia também uma coleção de fotografias antigas, amarradas com um barbante. A
julgar pela imagem do alto da pilha, a de um menininho engolindo uma espada, Dan
não
sabia ao certo se queria ver as demais. Sua curiosidade, porém, falou mais alto, e
ele
desamarrou o barbante com dedos trêmulos.
O dono daquela coleção devia ter uma inclinação para o macabro. As imagens
mostravam uma mulher que havia atirado machados e facas em seu parceiro de
apresentação, outra que fazia malabarismo com uma série de tochas acesas junto ao
corpo e, perto do final, a dupla mais bizarra de palhaço e cigana que Dan já tinha
visto.
Com o corpo todo tremendo, Dan guardou as fotos de volta na caixa e pegou o
diário.
Fazia todo o sentido ele ter sido a pessoa a encontrá-lo, como se tivesse sido
atraído até
ali, como se aquilo estivesse à sua espera.
Dan soprou o caderno de leve, vendo um pequeno véu de poeira se erguer no ar. A
capa interna do diário estava gasta, mas era possível ler claramente em letras
vermelhas
garrafais:
VIRE 180°
Ontem choveu o dia todo, e hoje de manhã também. Erroneamente, acreditei que
na primavera o tempo aqui seria mais quente, mas os dias estão frios e
nublados, e a
chuva parece nunca parar. O dr. Forester acredita que isso pode atrapalhar a
concentração dos objetos de pesquisa, e expressou seu desejo pela continuidade
dos
dias de calor mais ameno. Tentei compartilhar minha teoria a respeito de uma
abordagem tríplice – física, sensorial e espiritual –, mas Forester insiste em
explorar
apenas o aspecto físico. Sua falta de visão será sua ruína. Tenho certeza
disso.
Talvez eu não deva me exasperar com Forester e sua abordagem científica. Não
se trata de um experimento financiado com recursos próprios. Precisamos cortar
todos os Ts e colocar todos os pingos nos Is. Mesmo assim, acho que todas as
possibilidades devem ser exploradas se quisermos desvendar os segredos da
mente, e
isso pode não ser possível usando apenas substâncias químicas e
sugestionamento.
Dan passou para a página seguinte. Metade do que estava vendo era ilegível,
fichas
com anotações que só um médico conseguiria decifrar. Não havia nenhuma menção ao
nome dos pacientes, apenas números, provavelmente para manter algum tipo de
anonimato. Ele se perguntou se haveria uma lista em que a identidade dos pacientes
fosse
revelada.
O relato do diretor voltava na página seguinte.
Por um longo momento, Dan ficou olhando para a página em seu colo. Aquilo tudo
envolvia muito mais do que ele esperava. Caso a data no bilhete estivesse correta,
o
diretor vinha criando as bases para os experimentos que executaria no Brookline
desde
muito antes de se tornar o diretor da instituição. Qualquer que fosse a pesquisa
iniciada
em Kentucky, ela teve continuidade de formas muito mais angustiantes no manicômio.
Abby começou a falar de repente, virando o pescoço para olhar para Jordan do
lugar
onde estava sentada no chão.
– O que é dia... tila... mida... do ácido lisérgico? – ela ergueu uma folha de
papel e
mostrou para ele. – Essa coisa. O que é?
– No que eu estou lendo também tem isso – falou Dan.
Jordan pegou o papel e abriu outra aba no navegador, digitando rápida e
ruidosamente.
– Hã. Que estranho. É LSD.
– Ácido? – perguntou Abby, fazendo uma careta. – Não pode ser.
– Clica ali na primeira entrada – falou Dan. Por cima do ombro de Jordan, ele
estava
vendo o artigo da Wikipédia a respeito. – Dá uma lida.
– Ei... – Jordan falou baixinho enquanto lia, e depois mais alto. – Uau. Ei –
ele
apontava freneticamente para a tela, virando o corpo para voltar os olhos
arregalados
para Dan. – A CIA fez experimentos com essa coisa. Eles achavam que podiam usar a
droga para o controle da mente, e jogar bombas com essa coisa na Rússia. Guerra
química, um negócio sinistro. Meu professor de História falava sem parar sobre
isso. Eu
pensei que fosse só conversa fiada – ele se virou de novo para a tela e se sentou
direito. –
MKUltra. Era isso. Era sobre isso que ele ficava falando sem parar na quinta série.
– Parece que o diretor não ficou muito feliz com a maneira como os experimentos
estavam sendo feitos – comentou Dan. Ele fez as contas mentalmente. – Mil
novecentos
e cinquenta e três... Eisenhower era o presidente nessa época.
– Isso explica a foto – Abby pegou a imagem do chão.
– Então o diretor foi escolhido para fazer parte dos experimentos da CIA, foi
para
Kentucky, ficou insatisfeito com o que estava rolando, mas e daí? Ele veio para cá
e
começou a conduzir seus próprios experimentos com doentes mentais?
Era mais informação do que tinham antes, mas para Dan ainda faltava alguma
coisa.
Havia a menção ao dr. Maudire e à joia. E, no seu diário de infância, o diretor se
referia
a sua pedra especial como “estrela incandescente”. Poderia ser a mesma joia que
estava
no colar de Lucy ? O que tudo isso tinha a ver com Felix?
Seus dedos estavam coçando para pegar o outro volume, o que ainda estava
escondido
sob seu casaco. Em vez disso, olhou para a página seguinte entre as que tinha no
colo. Era
uma anotação curta, de apenas algumas linhas. Ele não imaginava que a letra de
alguém
pudesse parecer furiosa, mas era isso que estava vendo.
Forester é um tolo sem nenhuma visão. Continua a se opor a mim, e chegou até
a
me repreender por contestar os parâmetros do experimento. Eu! Sendo
repreendido!
Quando ele é o elo mais fraco da corrente! Talvez, se fosse meu paciente, eu
pudesse
revelar seu verdadeiro potencial e ele não fosse mais tão tedioso e limitado.
Quando Dan chegou às anotações seguintes, o papel parecia bem mais novo, e não
estava manchado nem amassado. Mais uma vez, havia um bilhete preso com um clipe, e
a data chamou sua atenção – 1960. Sete anos mais tarde. Era um lapso e tanto. Ele
estremeceu ao pensar no que o diretor poderia ter feito durante todos esses anos.
Então Maudire estava mesmo morto. Dan não havia se encontrado com o homem, e
sim com uma aparição. Como isso funcionava? O velho mágico teria deixado para trás
alguma espécie de rastro? Ver as memórias de outras pessoas era uma coisa, ter uma
conversa com um morto era outra completamente diferente. Estremecendo, Dan voltou
os olhos para a página.
– Escutem só isso...
Ele leu essas últimas anotações para os amigos, sentindo o ambiente ficar ainda
mais
gelado à medida que prosseguia. Pesando bem as palavras que diria a seguir, ele
enfiou a
mão dentro do casaco e sacou o diário da infância do diretor. Não era certo
escondê-lo.
Era um tanto perturbador, na verdade, que seu primeiro impulso tenha sido esse.
– O que é isso? – perguntou Abby, um tanto boquiaberta.
– Encontrei hoje à noite. Naquela primeira casa... Não queria contar na frente
do
Micah.
– Acho que o cara é confiável – disse Jordan. – Sei que a gente ficou meio
assim no
começo, mas ele não precisava fazer aquilo para facilitar a fuga.
– Será que ele está bem? – Abby olhou bem para os dois. – Estou quase achando
que é
melhor chamar a polícia.
– Sei lá – respondeu Dan. – Mas o cara é durão. Aposto que conseguiu fugir. Só
o que
eu quero agora é entender tudo isso – ele entregou o diário para Abby, que o pegou
usando apenas dois dedos, como se fosse uma coisa nojenta e fedida. – Acho que o
diretor foi criado naquela casa. Encontrei um alçapão escondido debaixo do tapete
com
uma latinha antiga e esse diário. Ele escrevia bastante quando era criança. É...
uma coisa
meio triste, na verdade.
– “Hoje Patrick subiu no telhado. Acorda, Patrick, eu falei, acorda e levante
voo!” –
leu Abby, abrindo em uma página aleatória. – “Quando chegou lá embaixo ele estava
todo arrebentado, com a cabeça deformada.”
– Acho que Patrick é um dos irmãos dele – explicou Dan. – Ele diz que quer
assumir o
controle sobre os irmãos. Era muito maltratado por eles. O que é estranho, porque
parece
que Daniel era o mais velho. Foi isso que o pastor Bittle me contou no verão. Mas
pelo
jeito havia um quarto irmão.
– Espere, vamos esclarecer um pouco as coisas – interrompeu Jordan. – Ele
estava
puto com o irmão e empurrou o moleque do telhado?
Dan sacudiu a cabeça.
– Empurrou não. Hipnotizou.
Do lugar onde estava no chão, Abby soltou um suspiro abafado de susto.
– Ai, meu Deus, ele fez até um desenho.
Ela ergueu o caderno para que os outros dois pudessem ver. Abaixo da rápida
descrição da queda de Patrick, havia um desenho infantil feito com giz de cera de
um
menino caído de costas, com os membros contorcidos em posições antinaturais. O
menino ferido usava blusa listrada e calça curta. Os olhos de Dan se arregalaram –
não
era o pequeno Daniel que ele andava vendo em suas alucinações. Havia uma única
linha
escrita depois do desenho.
O celular voltou a vibrar na mão de Dan. Mais uma mensagem chegou, dessa vez de
um número desconhecido.
Esgueirando-se pelas sombras das árvores que encontravam pelo caminho, eles
seguiram as seis figuras de manto para o norte e depois para oeste do campus. Dan
nunca tinha se afastado tanto assim da faculdade a pé e, quando olhou por cima do
ombro, notou que a capela no alto do campus não estava mais visível. As casas
modestas
que cercavam a faculdade deram lugares a residências mais espaçosas e luxuosas em
um bairro de ruas bem conservadas.
Havia cada vez menos lugares para se esconder, com moitas e arbustos podados em
ângulos retos. Casa após casa, Dan tentou correr de esconderijo em esconderijo
sempre
no momento exato, quando não estivesse passando nenhum carro e nenhum dos Scarlets
estivesse olhando.
Uma parte dele ainda se recusava a acreditar no que Cal falou sobre Micah, mas
por
que outro motivo alguém como ele entraria em uma seita? Até mesmo Dan conseguia
entender a tentação – juntando-se aos Scarlets, uma mancha em seu passado poderia
ser
apagada. Micah não havia dito que era um bolsista da faculdade?
Por fim Cal e seus comparsas saíram da calçada e entraram em uma mansão de três
andares. A casa parecia ter sido esculpida em um bloco gigantesco de pedra
cinzenta. Ao
contrário de todas as outras ao redor, que estavam com as luzes apagadas, a não ser
por
uma ou outra varanda acesa, aquela estava totalmente iluminada. Em todas as janelas
dava para ver uma vela vermelha no parapeito. Mesmo à distância, Dan conseguiu
reconhecer sua forma. Eram caveiras.
Ele tinha visto uma vela como aquelas no quarto de Micah, e outra na festa.
– Aqui é um centro acadêmico ou coisa do tipo? – Abby perguntou em voz alta,
chegando mais perto de Dan.
Eles se esconderam atrás de arbustos podados em formas arredondadas e
simétricas.
Algumas frutinhas do arbusto tinham caído de maduras, manchando a grama aos seus
pés.
– Não estou vendo nenhum carro – respondeu Dan. – E é bem longe do campus...
– Como a gente provavelmente não vai sair vivo dessa, quero aproveitar para
dizer
que eu estava certo sobre os docksides – murmurou Jordan.
– Certo. Tudo bem. Estava certo sobre os docksides – falou Dan. – Estamos
orgulhosos
de você.
– Qual é o plano agora? – perguntou Abby, aflita. – A gente não pode
simplesmente
aparecer e bater na porta.
– Não tem plano nenhum. Precisamos ver mais de perto o que tem lá dentro. Assim
vamos saber quem mais está com eles.
– E se ainda estiverem todos de máscara? – Abby espiou pela lateral de um dos
arbustos, mordendo o lábio.
– Então vamos ter que pensar em alguma outra coisa – falou Jordan. – Precisamos
ter
pelo menos ideia do número de malucos com que estamos lidando.
– Vamos tentar a porta dos fundos – sugeriu Dan com um sussurro, se inclinando
para
a frente. – Podemos seguir pela entrada da garagem e ficar longe das janelas.
– Não sei, não... – Abby ficou remexendo nas luvas, se sacudindo sobre os
calcanhares. – Nós estamos em um número muito menor. Pode ser melhor esperar até
amanhã cedo. Não vai ter ninguém aí de dia, e podemos ver se a casa tem alguma
fechadura que o Jordan consiga abrir.
Eles não tinham tempo para discutir, não depois de chegar tão perto.
– Eu não posso voltar atrás agora, Abby – Dan disse por fim. – Felix falou para
eu ir
atrás deles, e é isso que vou fazer.
– Mas se existirem outros jeitos de...
– Não, Abby, tem que ser assim. Você pode ficar aqui se quiser, mas eu quero dar
uma olhada mais de perto. Preciso saber quem está atrás da gente. E quero saber
quem
estamos enfrentando.
Ele estava assustado e morrendo de frio, com a paciência se esgotando. Por que
ela
não conseguia entender? Ele também não estava gostando nada daquilo, mas
simplesmente não era uma questão de gostar.
O legado do diretor, e quem quer que estivesse por trás daquilo, jamais deixaria
de
atormentá-los enquanto o que quer que ele tenha criado ainda estivesse em
funcionamento.
– Mas, Dan, se a gente esperar...
– Eu só quero acabar logo com isso, Abby. Só quero descobrir um jeito de
resolver
tudo de uma vez por todas.
Dan não estava disposto a esperar mais. Eles podiam ir junto ou ficar
escondidos, mas
ele não esperaria nem mais um segundo.
Dan saiu em disparada de trás dos arbustos, correndo pela entrada da garagem na
direção da casa. De perto, parecia ainda mais alta. Era uma construção fria e sem
vida,
um retângulo de pedra com janelas simetricamente distribuídas e um telhado discreto
e
ligeiramente inclinado.
Quando chegou ao fim do caminho de cimento, conseguiu ver a porta da frente,
com
a garagem para três carros vazia à sua direita. Havia um vão entre a garagem e a
casa, e
ele correu para lá. Na lateral da construção, ele se encostou à parede e ficou um
pouco
ali parado, recuperando o fôlego.
Assim que Jordan e Abby apareceram, escondendo-se ao seu lado, uma onda de
culpa invadiu seu corpo. O estresse e o medo o deixavam impaciente e irritadiço, e
seus
amigos não mereciam isso. Foi ideia dele voltar para aquele lugar. Era dele que os
Scarlets estavam atrás. Mas, mesmo assim, seus amigos estavam ao seu lado.
– Desculpe – ele murmurou quando eles se reuniram do lado de fora da casa. – Eu
só
queria...
– Eu entendo. Não dá para voltar atrás depois de tudo isso – respondeu Abby. –
Principalmente agora.
– Bom, seja lá qual for seu plano, que tal acelerar as coisas? Meus dedos do pé
estão
ficando dormentes, e esse lugar me dá arrepios.
Jordan tinha razão. Eles estavam perdendo tempo. Dan os conduziu até perto de
uma
das janelas. Não era muito alta e, caso não se abaixasse, sua cabeça se tornaria
visível lá
de dentro. Os três foram agachados até debaixo da janela, onde Dan, todo tenso e
com as
mãos quase congeladas, ergueu o corpo com cuidado, só o suficiente para espiar lá
dentro.
Por sorte ninguém o viu, mas ele prendeu a respiração mesmo assim, fazendo um
sinal para que os outros espiassem também.
Do outro lado da janela havia uma sala comprida e de pé--direito alto, com um
piso
de madeira reluzente. Um lustre com velas vermelhas estava pendurado bem no centro
do cômodo, e a cera vermelha derretida que pingava nos aparadores parecia
cachoeiras
de sangue. Figuras usando mantos vermelhos, mais de uma dezena, formavam um
semicírculo em torno de uma cadeira com espaldar alto. Dan se agarrou com força ao
parapeito. Ele conhecia aquela cadeira. Era quase idêntica à que viu no porão da
fraternidade.
– O que os Scarlets estão dizendo? – Abby cochichou em seu ouvido.
Eles estavam entoando algo em um tom grave que foi ficando cada vez mais
audível
até que Dan conseguisse entender o que estavam dizendo.
– Era construído de pedra... Era construído de pedra...
Por que isso parecia tão familiar?
Do lado direito do semicírculo ele viu os docksides de Cal, mas ainda estavam
todos
encapuzados. Quando o coro ficou alto o bastante para sacudir a janela diante de
seus
olhos, as palavras foram interrompidas subitamente. Uma sombra se projetou de uma
porta aberta, e então outra figura de manto vermelho apareceu, seguida de outras
três.
– Essa não é...? – murmurou Jordan.
Ela não estava de máscara nem de capuz.
– Isso mesmo – Dan a reconheceu de imediato, os cabelos escuros e curtos, a
falha
entre os dentes. – É a professora Rey es. E eu já vi aquele altão lá no campus.
Acho que
também é professor. A loira estava lá no parque de diversões, Kelly não--sei-o-quê.
Minha nossa, é a candidata ao Senado estadual.
– Não acredito nisso... – Abby sacudiu a cabeça e desviou os olhos.
Dan abriu um sorriso preocupado.
– Eu acredito.
Ela se dirigiu solenemente à cadeira e se pôs de pé logo atrás do móvel. Em
torno de
seu pescoço, um pedaço de pedra vermelha reluziu sob a luz bruxuleante das velas.
– Vejam só – murmurou Dan. – Essa é a joia sobre a qual ele tanto escrevia a
respeito. É a pedra do diretor.
– Como foi que ela conseguiu isso? – questionou Abby.
– Sei lá. Vai ver ela era uma seguidora dele.
– Ou uma vítima – Jordan sugeriu baixinho.
A professora Rey es pôs as mãos sobre o espaldar da cadeira, olhando para as
pessoas
reunidas ao seu redor por um longo momento. Eles estavam correndo o risco de ser
vistos na janela imediatamente diante dela. Dan estava torcendo para que as luzes
do
lado de dentro dificultassem a visão do lado de fora, que estava escuro, mas se
agachou
um pouco, só por precaução.
Mesmo de trás do vidro, Dan conseguiu ouvir muito bem quando a professora Rey
es
ergueu a cabeça e falou:
– Onde está ele?
– Nós... Nós perdemos a pista dele, e dos outros dois também.
Foi Cal quem respondeu, remexendo nervosamente os pés calçados com os
docksides.
– Não ele, o outro. O traidor.
Se Dan já se sentia culpado por ter feito Jordan e Abby voltar ali, esse
sentimento só
aumentou quando viu outras três figuras arrastando Micah para dentro da sala. Uma
mão
enluvada cobria sua boca. Dan trocou um olhar com Abby, sentindo seu estômago se
embrulhar.
Micah parecia dopado e machucado, com marcas escuras no queixo e no lado
direito
do rosto. Era mesmo uma boa ideia enfrentar aquele pessoal? Micah não era um cara
pequeno, de forma nenhuma, e Dan havia visto troféus de Artes Marciais em seu
quarto.
Mesmo assim, ele estava largado sobre os ombros das pessoas que os carregavam. Uma
lente de seus óculos estava quebrada, e a outra faltando.
– Precisamos fazer alguma coisa – murmurou Dan.
– Tipo o quê?
Ao ouvir as palavras de Jordan, Abby apertou com ainda mais força os dedos de
Dan.
– Sei lá... Mas ele ajudou a gente a fugir. Precisamos fazer alguma coisa para
ajudar.
O nó em seu estômago se tornou ainda maior quando Abby murmurou:
– Jordan tem razão.
Os Scarlets fizeram Micah se sentar na cadeira de espaldar alto diante da
professora e
prenderam suas mãos com as amarras. Os grilhões de ferro prenderam seus tornozelos
também. Dan ficou só observando, sentindo sua garganta se fechar de pânico quando
um
deles tirou uma correia de dentro da túnica e passou pela testa de Micah, mantendo
sua
cabeça presa à cadeira.
– Minhas ferramentas? – a professora Rey es falou secamente, como quem pede um
café.
Uma das figuras de manto fez uma mesura e saiu da sala, voltando momentos
depois
com uma bandeja prateada com apenas três objetos – um pedaço de gaze, um martelo e
um instrumento de ponta afiada.
– Ai, não. Não, não, não – Jordan falou com um suspiro de susto.
Micah começou a se debater, de repente se dando conta de sua situação e
tentando
começar a resistir.
– Quieto aí – rugiu a professora Rey es. Seus olhos pretos brilhavam. – Não vai
querer
que eu erre a mão. Não temos tempo para conversa, mas nem mesmo sua linhagem
familiar é capaz de resguardar você de soluções mais permanentes.
As mãos de Abby começaram a suar junto às de Dan.
– Que isso seja um lembrete do que acontece quando você desobedece. Quando se
intromete. Você poderia ter dado um susto nele, principalmente agora, quando estou
tão
perto da resposta... – ela caminhou até a lateral da cadeira, pegou o instrumento
pontudo
e o martelo, se inclinou sobre Micah e posicionou a ponta com cuidado acima da
pálpebra direita dele. – Segurem firme. Está na hora de acordar...
Duas figuras obedeceram a suas ordens.
Os olhos de Micah percorreram desesperadamente a sala antes de se cravarem nos
de Dan, do outro lado da janela. Dan respirou fundo, mordendo a língua para não
gritar.
O martelo atravessou o ar, ganhando impulso para o impacto. Dan sentiu Abby se
encolher toda, escondendo os olhos. Ele se recusou a desviar o olhar.
Quando o martelo atingiu o instrumento cirúrgico, ele foi capaz de jurar ter
visto
Micah dizer a palavra “corram”.
O som chegou até ele imediatamente, um baque surdo como o de um pedaço de carne
sendo jogado no chão. Dan se arrependeu de ter olhado. E desejou que alguém pudesse
ter impedido aquilo.
– Vocês não podem ficar aqui.
Dan se virou, desviando o olhar da lobotomia de Micah para ver um Scarlet
parado
bem diante deles. Ninguém abriu a boca. Dan sentiu o frio ao redor roubar suas
palavras
e até seu fôlego.
A figura ergueu os braços e arrancou a máscara, revelando um rosto bonito,
apesar de
contorcido em uma careta. Dan demorou um instante para reconhecê-la.
– Lara! – Abby praticamente gritou de alívio. – Espere! Você está com esses
monstros?
– Estava. Não estou mais. Não que exista um jeito de sair, mas... nunca pensei
que
eles fariam isso com um de nós. Com Micah – seus lábios tremiam, e seus olhos
estavam
cheios de lágrimas. Em seguida ela piscou algumas vezes, e a expressão assustada
sumiu
de seu rosto, dando lugar à determinação. – Vocês não podem ficar aqui. Se eles
encontram vocês... É melhor nem pensar. Venham comigo, certo? Este lado da casa
está
praticamente vazio. Ninguém vai ver a gente.
– Que lugar é este? – perguntou Dan, já perdendo o ímpeto de entrar ali.
Ele já havia visto o bastante.
– A professora Rey es mora aqui. Ela herdou a casa do diretor Crawford, e se
refere a
ele como pai, mas duvido que sejam parentes. Ele deixou a propriedade para ela em
testamento – Lara os conduziu para os fundos da casa, agachando-se sempre que
passavam por uma janela. – Agora vão embora, certo? Vocês não podem ser vistos
aqui.
– Para onde a gente pode ir? – murmurou Jordan. – Você está aqui, Cal é um
psicopata, Micah está... A gente não tem para onde ir.
– Encontrem um lugar para se esconder. O centro acadêmico nunca fecha... Peguem
uma salinha lá e tentem não ser vistos por ninguém. Deixem os celulares ligados. Se
eles
descobrirem onde vocês estão, mando uma mensagem.
– Lara... – Abby foi até ela e o segurou pelo pulso. – Por que está fazendo
isso? Se eles
descobrirem, vão machucar você também.
– Não posso me preocupar com isso agora. Não é assim que... Não é isso que eu
quero ser... – Lara não diminuiu o passo, continuou correndo pela escuridão até
chegarem a uma fileira de árvores que separava a mansão da propriedade localizada
nos
fundos. – Pensei que fosse uma organização acadêmica, para conseguir bons contatos!
Eles disseram que iriam pôr minha arte na galeria que eu quisesse em Nova York. Ou
então me arrumar uma vaga na faculdade de Medicina se eu mudasse de ideia. Rá – ela
parou, olhando ao redor para garantir que não estavam sendo seguidos. – Tentem se
manter em segurança. Eu vou entrar em contato quando puder. Arrumem um jeito de
sair do campus. Peguem um ônibus, um avião... Sumam daqui.
– Espere aí – falou Dan, bem sério. – Eu tenho mais algumas perguntas...
– Não agora. Logo eles vão me procurar – ela soltou um suspiro e pôs de volta o
capuz. – Me ligue amanhã. Depois eu respondo às suas perguntas.
– Dan, ela precisa ir. A gente não pode criar problemas para ela – Abby o
segurou
pelo braço e o puxou para o meio das árvores. – Se cuida, Lara.
– Vocês também.
Em seguida, ela atravessou de volta o quintal, e em pouco tempo se transformou
apenas em um vulto escarlate.
Eles tomaram o caminho do campus, percorrendo cuidadosamente as ruas ao redor,
parando nas sombras das construções e das árvores e correndo para não ser vistos.
Não
era muito difícil, pois já era bem tarde.
Quando enfim chegaram ao Pavilhão Wilfurd, estavam exaustos, e foram se
esgueirando pelos corredores mal iluminados até encontrarem um corredor escondido
usado para descarregar os caminhões de comidas e bebidas. Eles despencaram com as
costas apoiadas à parede, e ficaram em silêncio por um bom tempo.
Uma lâmpada quase queimada piscava de leve mais acima, zumbindo de forma
intermitente. As máquinas de doces e salgadinhos no corredor à esquerda faziam um
barulho parecido.
– Eu quero rever tudo isso que descobrimos – murmurou Dan, tirando os diários e
as
anotações de dentro do casaco.
– A gente não pode ficar em paz por pelo menos dez minutos? – resmungou Jordan.
–
Eu só preciso... Sei lá. Digerir as coisas? O que a gente acabou de ver... Todas
aquelas
pessoas lá. Que diabos está acontecendo aqui?
– Dan estava certo – falou Abby, tirando as luvas e deixando os braços caírem
sobre
as coxas. – Isso tudo vai muito além do que a gente imaginava.
– Tipo, por que as pessoas iriam querer fazer parte de um grupo como esse? –
questionou Jordan.
Ele apoiou a cabeça na parede e fechou os olhos.
– Você ouviu o que a Lara falou... contatos, prestígio. Micah contou que o tio
dele
estudou aqui, e aposto que era um Scarlet também. E, não que isso faça muita
diferença
agora, mas Micah ainda poderia estar no reformatório se eles não tivessem mexido
seus
pauzinhos – Dan esfregou os olhos. Ele não podia dormir. Ainda não. – O pai do Cal
era o
reitor, então no caso dele devia ser uma lance de família.
– E o irmão da Lara é um ex-aluno – comentou Abby. – Provavelmente fazia parte
também.
– Meu palpite é que se tratava de uma sociedade secreta como outra qualquer até
o
diretor entrar em cena. Aposto que as pessoas nem deviam saber que tudo o que
estavam
fazendo era em benefício dele. E, o que quer que fosse que ele estivesse tentando,
parece
que a professora Rey es está levando adiante. Queria saber o que ela quis dizer
quando
falou que estava perto de uma resposta. Que resposta será essa?
– O que eu quero saber é se essa sociedade secreta tem alguém infiltrado na
polícia
de Camford – murmurou Jordan.
Dan nem tinha parado para pensar nisso ainda.
– Você conseguiu alguma coisa cruzando os nomes do quadro-negro com os dos ex-
alunos antes de o computador dar pau?
– Não.
– Eu ainda estou com isto aqui – falou Abby, mostrando alguns jornais dobrados.
–
Lembram? Estavam na mochila do Cal lá no parque de diversões.
Uma faísca de esperança surgiu no peito de Dan pela primeira vez em um bom
tempo, mas não o suficiente para despertá-lo de vez.
– Vamos dar uma olhada.
– Fiquem à vontade – murmurou Jordan. – Eu vou tirar um cochilo.
– A gente pode se revezar – Abby alisou as fotocópias dos jornais e as
posicionou
entre suas pernas e as de Dan. – Eu vou programar o alarme do celular...
– Que foi? – perguntou Dan.
Abby parecia preocupada, e Dan deu uma olhada no celular dela.
– Minha bateria está fraca. Muito fraca. E a sua?
Dan tirou o telefone do bolso e fez uma careta.
– A mesma coisa. Droga. Meu carregador está no quarto do Micah, e eu não tenho
como entrar lá. A não ser que... que o Jordan consiga arrombar a fechadura.
Esse comentário tirou Jordan de seu momento de descanso.
– Não. Sem chance, Dan, você só pode estar de brincadeira. Eu não ponho mais os
pés naquele alojamento. Se fizer isso, vou acabar servindo de inspiração para um
novo
episódio “totalmente fictício” de Law and Order.
– E como vamos fazer contato com a Lara? A sua bateria ainda tem carga?
Jordan olhou para o iPhone largado sobre sua barriga.
– Está pela metade. Vou deixar desligado até amanhecer, para economizar.
– Vou mandar uma mensagem com o número dele para Lara – falou Abby. – Pelo
menos assim ela ainda vai ter como falar com a gente.
– Beleza. Me acordem quando for a minha vez de ficar de vigília – falou Jordan,
já
quase pegando no sono outra vez.
Dan se inclinou sobre os papéis, passando os dedos por títulos de reportagens e
editoriais. A maioria era trivialidade pura, notícias sobre esportes e espetáculos.
Sua vista
ficou borrada, e ele não conseguiu mais ler, dominado pela tristeza a ponto de não
conseguir fazer sua mão parar de tremer. A mão de Abby pousou sobre a sua,
transmitindo um calor reconfortante.
Enquanto cochilava, Jordan repetia baixinho sequências de números, misturando as
palavras umas com as outras.
– Eu lamento muito, Dan. Sei que você gostava dele.
– Ele deve ter virado um vegetal a esta altura – ele comentou, amargurado. –
Tipo...
uma página em branco. Isso se tiver sobrevivido. Ele era um bom sujeito... eu acho.
Quer dizer, pelo menos tentou ajudar a gente, apesar de ter feito o que fez no
passado.
– Vai ver ele estava tentando melhorar, sabe? Deve ter percebido que os Scarlets
não
estavam no caminho certo – sugeriu Abby. – E se a gente ainda estivesse com ele? A
gente ia ser pego também, e ia acontecer o quê? O mesmo que aconteceu com ele. Sei
que é uma situação difícil, mas precisamos ser bem frios e racionais agora.
– Ha. Que engraçado.
– O quê?
– Uma artista me pedindo para ser frio e racional. Mas você tem razão... Eu sei.
Não
é isso. O problema é não termos feito nada para ajudar – Dan soltou um suspiro,
forçando seus olhos a se concentrar no papel. – Parece que é isso que está
acontecendo
desde o verão que passamos no Brookline... as coisas não param de acontecer ao
nosso
redor, mas não fazemos nada a respeito.
– Mas nós podemos, e vamos conseguir – garantiu Abby. – Essa história ainda não
chegou ao fim.
Dan balançou a cabeça positivamente, engolindo em seco por cima do nó na
garganta. Ele detestava aquela sensação, como se estivesse prestes a chorar ou a
vomitar, ou então as duas coisas. Ele virou a página e encontrou uma reportagem
sobre
uma irmandade que estava organizando um evento beneficente para ajudar com as
despesas médicas de um professor. Dan estava prestes a passar para a folha seguinte
quando a mão de Abby bateu na página e a pôs de volta no chão.
– Essa menina – ela falou, apontando para a foto das garotas sorridentes da
irmandade. – Ela não lembra alguém?
Estreitando os olhos, Dan viu uma garota de pernas e braços cruzados que não
parecia
nada contente em posar para a foto. Isolada no canto esquerdo da fila, estava
fazendo
cara feia, na verdade. Estava mais magra, e o corte de cabelo era diferente, mas as
feições eram as mesmas.
– A professora Rey es – ele falou. Dan encolheu os ombros, sem entender a
importância que poderia ter aquela foto. – Então ela fazia parte de uma irmandade.
E
daí?
Abby mordeu o lábio e franziu a testa, olhando fixamente para o papel,
pensativa.
– Quê? – questionou Dan. – O que foi?
– É só um palpite, eu acho. Quer dizer... A gente já sabe que o diretor
controlava
Harry Cartwright, que estava envolvido no desaparecimento de mulheres na cidade.
Lembra da carta que a gente encontrou na casa dele? A da Caroline? Ela fazia parte
dos
Scarlets, e detestava, queria sair...
– Caroline – Dan arregalou os olhos de curiosidade. – Você acha que Caroline
Martin
e a professora são a mesma pessoa?
Ele leu a pequena legenda sob a foto. E lá estava, em letras pequenas em preto e
branco, o primeiro nome à esquerda: C. Martin.
– Rey es deve ser o nome de casada dela – especulou Abby. – Ou então ela
escolheu
usar outro nome depois de passar pela lavagem cerebral do diretor. Talvez ele tenha
escolhido. Faz sentido, não? Se ela tivesse descoberto o que o diretor andava
tramando
com os Scarlets e quisesse sair, ele faria o que fosse preciso para impedir que a
história
se espalhasse.
– Então ele silenciou Caroline fazendo um de seus experimentos nela, que agora
faz
isso com seus próprios seguidores – falou Dan, balançando a cabeça. – E as outras
mulheres, as outras desaparecidas... Deve ter acontecido a mesma coisa. Elas
estavam
prestes a revelar tudo.
– Assim como Micah... – constatou Abby, com tristeza. – E Lara também, se eles
descobrirem que ela está ajudando a gente.
– É um ciclo. A professora Rey es só está fazendo o que foi programada pelo
diretor
para fazer.
– Isso é deprimente – ela passou o dedo pelo nome da professora na legenda da
foto. –
Você acha mesmo que ela foi hipnotizada? Uma coisa como essa pode durar tanto tempo
assim? Como será que a pessoa sai da hipnose? O diretor deve ter feito isso com ela
há
uns trinta anos.
– O que significa que talvez os Scarlets sejam todos escravos dela e nem saibam
disso
– comentou Dan. Com as informações que conseguiram sobre os experimentos do
diretor, mais e mais peças começavam a se encaixar, por mais terrível que fosse o
cenário que revelavam. – Talvez Cal tenha sofrido uma lavagem cerebral completa. Ou
a sua tia Lucy. Tipo, ela estava totalmente diferente da última vez. E o Felix...
Vai ver foi
isso que aconteceu com ele também!
Ao ouvir isso, Abby corrigiu sua postura.
– Felix? Mas foi ele que deu os endereços para a gente descobrir tudo...
– O que mostra que ele está tentando resistir. No verão, às vezes Felix parecia
ser ele
mesmo, e em outros momentos estava sendo o Escultor. Então talvez a lavagem
cerebral
não tenha funcionado totalmente no caso dele. A professora Rey es pode não ter a
mesma
capacidade do diretor. Ela tem a pedra e provavelmente a receita de um coquetel de
drogas, mas as anotações dele ficaram na fraternidade. Talvez ela nunca tenha
lido...
A faísca de esperança brilhou de novo dentro dele, ainda que mais fraca.
– Então talvez dê para reverter o processo – falou Abby, otimista.
Dan pensou em seu encontro com Maudire, ou seu fantasma, ou a visão do diretor
Crawford, o que quer que tenha sido aquilo.
Você não pode refazer o que já foi feito, mas pode desfazer. Não é fácil, mas
você pode
desfazer.
Caso a lavagem cerebral do diretor pudesse mesmo ser desfeita, talvez o salvo-
conduto mencionado por Maudire estivesse escondido naqueles diários. Dan balançou a
cabeça, dobrando as páginas do jornal, parecendo determinado.
– Espero que dê para reverter, porque, assim que tivermos ajudado todo mundo,
vamos precisar fazer isso comigo também.
– Espera, você acha que...
– Acho, sim. E já estou pronto para ter minha mente de novo só para mim.
O velho hipnólogo tinha dentes afiados como punhais escondidos sob a barba
emaranhada.
À distância parecia limpo, porém chegando mais perto era possível ver a sujeira
acumulada nas rugas profundas de seu rosto.
Velhice significava fragilidade. Velhice significava poder ser subjugado até
por um
garotinho.
Dentro da barraca, o cheiro era de frutas silvestres misturado com um perfume
elegante de mulher. Ele sabia que aquele cheiro ficaria impregnado em sua roupa
durante
dias, e que sua mãe o repreenderia por isso. Por onde você andou? Que cheiro é
esse?
Vai incomodar o bebê! Ele teria que inventar uma mentira quando voltasse para casa
com
Patrick e Bernard.
Mas naquele momento ele precisava mesmo da pedra e da corrente. Se quisesse que
Patrick subisse no telhado, teria que estar com a pedra. Dentro da barraca havia
todos os
tipos de coisas estranhas – um pássaro de penas vermelhas e um olho só que pulava
de um
lado para o outro no poleiro gritando “Turco! Turco!”, e candelabros pesados com
cera
roxa borbulhante.
Ele era o favorito do velho, o que significa que o encontraria de guarda baixa.
– Sabe onde consegui essa pedra? – o hipnólogo ria o tempo todo. Ria depois de
cada
frase, às vezes cada palavra. – O velho Maudire a tirou de um túmulo, menino, o que
acha
disso? Ha, ha!
– Turco! Turco!
Daniel olhou feio para o pássaro. Ele se perguntou se a ave o denunciaria, já
que sabia
falar. Não importava. Ele precisava da pedra se quisesse fazer Patrick se calar.
– Era uma viúva amarga, que só queria que os filhos fizessem o que ela mandava,
garoto, enlouqueceu todos eles, ha, ha! Orgulhosa. Dramática. Tem gente que me
chama
de dramático, mas não é nada disso. Peguei a pedra no túmulo da viúva, em sua
fazenda, a
Fazenda Arnaud, uma casa branca, bonita, com árvores ao redor e um riozinho. Um dos
filhos dela se afogou nesse rio. A menina rachou o crânio na árvore. Ha, ha! Eu
sussurrei
quando a desenterrei, eu sussurrei: “Acorde, chérie, acorde!”. A maldita viúva foi
enterrada em segredo, garoto, e ninguém além de mim teve coragem de pegar suas
joias!
Eu, o velho Maudire...
– Turco!
– Posso ver de novo? – pediu Daniel.
Ele não deu ouvidos à história. Não estava interessado. Talvez a pedra fosse
mágica,
mas talvez fosse uma joia qualquer. Fosse o que fosse, era capaz de hipnotizar as
pessoas
de uma forma muito especial. Havia funcionado com ele, não? E esse tipo de truque
nunca
funcionava com ele.
– Mais uma vez, menino, só mais uma vez, e depois você precisa ir para casa!
O hipnólogo sacou a pedra vermelha e reluzente do bolso do colete e sacudiu
diante
dos olhos de Daniel. Parecia o sangue da terra, algo cruel e primitivo saído das
profundezas do mundo.
Estava quente em sua mão, apesar da aparência fria.
– Turco! Turco!
Daniel olhou para a pedra por um longo tempo, e esperou até que o hipnólogo se
virasse para se servir de uma xícara de chá no fogãozinho fumegante no canto. Então
pôs
a pedra no bolso, apanhou um dos candelabros pesados e golpeou com a maior força de
que era capaz. A cera roxa escorreu sobre sua mão, mas ele mal sentiu. Saiu mais
sangue
do que ele esperava, e escorria daquela cabeça arrebentada tão rápido, tão
grosso...
O candelabro era pesado demais para suas mãozinhas. Ele o largou no chão, montou
sobre Maudire e fechou as mãos em torno do pescoço do hipnólogo. O fato de ele ser
velho e frágil veio a calhar. Seu pescoço parecia apenas um tubo morno e pulsante
entre
as mãos de Daniel, da largura de uma garrafa de leite, no máximo.
A cera roxa em seu pulso esfriou e rachou, e sob suas mãos Maudire parou de se
mexer.
– Turco!
Daniel detestava aquele pássaro. Ele pegou outro candelabro e o virou,
derramando a
cera quente sobre a ave. Suas asas eram cortadas, e ele não podia voar, mas gritou
bem
alto ao ser escaldado e queimado pela cera. Em seguida ele golpeou o pássaro
também,
porque o odiava, porque não queria ouvir de novo aquela palavra.
Que história era aquela de turco afinal?
Daniel limpou as mãos no tapete listrado e manchado e saiu da barraca.
Quando atravessou de volta o parque de diversões, estava sorrindo. Ele estava
com a
pedra, e no dia seguinte Patrick se calaria de vez.
Nos últimos tempos, Dan nunca acordava tranquilamente. Ele se sentou às pressas,
sentindo uma mão segurando seu braço. Por um instante teve certeza de que eram os
Scarlets, ou então o velho barbado de seus sonhos, mas era só Abby.
Ela o sacudiu de leve, com o celular vibrando na outra mão.
– Que horas são? – ele perguntou, ainda grogue.
– Oito da manhã – murmurou Abby. – Eu... hã, peguei no sono também. Mas parece
que ninguém encontrou a gente. Então... eba?
Jordan não estava lá, mas apareceu logo depois no corredor, com os braços
carregados de junk food. O estômago de Dan roncou de expectativa.
– A sopinha está pronta – falou Jordan, todo sorridente apesar das olheiras. Ele
entregou para Dan uma garrafa de suco de laranja e um rocambole de canela em uma
embalagem plástica. – Você parece estar meio mal. Teve sonhos desagradáveis?
– E os sonhos não são sempre desagradáveis? – rebateu Dan, abrindo a garrafa de
suco e dando um gole.
– Os meus também foram – Abby disse baixinho. Ela se inclinou para a frente e
prendeu os cabelos em um rabo de cavalo. – Lucy e Lara estavam me perseguindo, só
que não tinham rosto. Eu só sabia que eram elas por causa das risadas – ela
estremeceu.
– Foi horrível.
– E então, o que vamos fazer agora? – Jordan se apoiou na parede oposta à que
eles
estavam e ligou o celular. Ele olhou desanimado para o aparelho enquanto mastigava
um
donut que esfarelava a cada mordida. – Vamos ficar esperando pela ligação da Lara?
E
se ela não ligar?
– Ela vai. Ela precisa ligar.
Dan não estava tão convicto assim. Torcia para que Abby estivesse certa, mas,
depois
de ver o que aconteceu com Micah, não iria mais subestimar a professora Rey es e o
que
ela era capaz de fazer para manter seus seguidores sob controle – e o que ela faria
para
encontrá-lo.
Ele suspirou e engoliu um pedaço de rocambole. Não seria uma boa ideia tomar
seus
remédios de estômago vazio. Dan ficou contente por carregá-los sempre consigo, caso
contrário arrombar a fechadura do quarto de Micah se tornaria uma necessidade
incontornável. Como ele faria para pegar suas coisas de volta, aliás? E se eles
nunca mais
vissem Micah?
– Talvez a Lara possa dizer em quem podemos confiar por aqui. Ela é uma
Scarlet,
então deve saber quem não é. Ainda pode ter uma chance de a polícia não estar
envolvida.
– O que eu quero saber é por que ninguém caiu fora quando a coisa começou a
ficar
bizarra – falou Jordan, brincando com o telefone nas mãos. – Seria de se esperar
que,
depois da primeira lobotomia, alguém resolvesse abrir a boca.
– Ah, sim, do mesmo jeito que a gente foi embora assim que o clima azedou por
aqui
no verão – Abby rebateu, irônica.
– Touché.
Abby chegou mais perto, pegando as anotações de Dan e dando uma olhada nelas
enquanto Jordan se sentava e examinava as notícias de jornais tiradas dos arquivos.
– É estranho olhar para ela assim – comentou Jordan ao abrir a foto com as
meninas
da irmandade. – Ela parece... normal. Vocês acham que nessa época ela já estava
envolvida com o diretor?
– Eu acho que sim – respondeu Daniel. Seus dentes estavam ásperos. Ele não se
lavava nem escovava os dentes desde a manhã anterior. – A época foi bem essa.
– Então mesmo aqui ela estava... – Jordan se interrompeu, cruzando os dedos
diante
dos olhos. – Enfeitiçada ou coisa do tipo.
– O que é isso? – leitora voraz, Abby já tinha visto a maior parte das folhas.
–
“Sanctum, um lugar sagrado ou santificado” – ela leu. – “O que pode ser mais
sagrado
do que ter poder sobre seus verdadeiros pensamentos? Sanctum. É ao mesmo tempo a
fechadura e a chave.” – com um resmungo intrigado, ela desviou os olhos da página.
–
Vocês acham que aquela casa que encontramos podia ser esse santuário? Como era a
casa dele, acho que faz sentido.
– Provavelmente – respondeu Dan –, ou então podia ser o Brookline. Na verdade
podia ser até aquela pedra idiota dele.
Ele pensou em seu sonho, no jovem Daniel Crawford estrangulando o hipnólogo
como
se não estivesse fazendo nada de mais. Mandando seu irmão mais velho pular do
telhado
porque o maltratava. A única coisa sagrada para uma pessoa assim só poderia ser
seus
próprios pensamentos.
– Que frase mais esquisita – continuou Abby. – Logo ele, que parecia tão
obcecado
por lógica, ciência e conhecimento. Esse monte de bobagens sobre coisas sagradas
parece não ter nenhuma relação com o resto.
– A esta altura, eu não descartaria nenhuma possibilidade – falou Jordan e
então se
interrompeu, tendo um sobressalto ao ver seu celular vibrar sobre o carpete. – Eu
atendo?
– Pode deixar comigo – falou Abby, pegando o aparelho.
Ela prendeu os cabelos atrás da orelha três vezes, apesar de eles não terem
saído do
lugar na primeira.
O rocambole de canela se revirou dentro do estômago de Dan. Seu medo era que a
professora Rey es estivesse do outro lado da linha.
– Alô? Lara? Ai, graças a Deus que você está bem. Claro... Está tudo... Sim, a
gente
pode ir até aí. Ah... Só eu? Humm... não sei. Quer dizer, sim, claro, eu posso ir
sozinha –
Dan sacudiu a cabeça negativamente, mas Abby o ignorou. – Não tem problema. Vou
até aí assim que puder – Abby desligou e respirou fundo, segurando o celular com
força.
– Ela parecia assustada.
– E você também não estaria? – murmurou Jordan.
– Ela quer que eu vá sozinha... Vocês vão ter que esperar um pouco. De repente
conversando ela se acalma.
– Você deveria ter perguntado se ela estava sozinha – falou Dan. Principalmente
porque estava assustada. – Onde vocês vão se encontrar?
– No ateliê dela no prédio de Artes – respondeu Abby, pegando as luvas, o casaco
e
ficando de pé. – Lá onde eu fui ver a instalação dela. Fica meio fora de mão, então
acho
que não vai ter ninguém por lá em um domingo de manhã... Só um ou outro funcionário
da manutenção, no máximo.
– Você sabe que isso é uma armadilha, né? – perguntou Jordan, ajudando Abby a
vestir o capuz do casaco, que tinha se enroscado.
– Claro que sim – ela respondeu com uma risada de cansaço. – Mas quais são as
nossas opções no momento?
– A gente não vai deixar você ir até lá sozinha – falou Dan, vestindo o casaco e
recolhendo os papéis. – Preciso esconder essas coisas – ele continuou. – Se vamos
entrar
nessa armadilha, a última coisa que eu quero é que a professora Rey es ponha as
mãos
nas nossas anotações. Toma aqui – ele arrumou os papéis em uma pilha e entregou
para
Abby. – Põe no banheiro das meninas, em uma saída de ventilação ou coisa do tipo.
Ela desapareceu no corredor por um instante, e voltou com o casaco fechado e o
gorro enterrado até as orelhas.
– Armadilha ou não – Abby falou –, acho que eu tenho uma ideia.
Enquanto esperavam do lado de fora do prédio de Artes, tremendo de frio sob o sol
fraco, Dan se perguntou se conseguiria se aquecer de novo em algum momento da vida.
Ele não esperava sentir falta do corredor desconfortável onde tinham passado a
noite,
mas qualquer coisa era melhor que ouvir seus próprios dentes batendo e sentir seus
pés
começarem a ficar dormentes.
O prédio de Artes era baixo e comprido, com duas colunas ao lado da entrada. O
perfil robusto e o formato incomum as faziam parecer um par de buldogues guardando
a
porta.
– Quando você disse que tinha uma “ideia”, pensei que fosse algum tipo de
plano, não
apenas ir entrando com armas invisíveis em punho – comentou Jordan, batendo os pés
no
chão e baforando nos próprios dedos.
Abby fez um gesto para que ele se calasse. Jordan e Dan estavam escondidos um
de
cada lado da porta, longe das vistas de quem estivesse lá dentro.
– É um plano, e você entenderia se ficasse quieto e me ouvisse – ela pegou o
telefone
de Jordan e tirou a luva para digitar o número. Antes de fazer isso, ela explicou.
– Vou
ligar para a Lara e dizer que a porta está trancada, que não estou conseguindo
entrar. Ela
vai ter que vir até aqui. Quando abrir a porta, a gente pode puxá-la para fora e
fugir.
Assim, se tiver alguém esperando lá dentro, vai perder viagem.
– Isso... Na verdade, é um bom plano – admitiu Jordan, encolhendo os ombros.
– Shhh, está chamando. Se preparem, porque a gente não vai ter muito tempo para
fugir.
Silêncio. Dan esfregou os braços furiosamente, tentando voltar a senti-los.
Parecia que
eles estavam esperando o carrasco chegar. Mesmo se Lara conseguisse ajudá-los,
primeiro teria que estar disposta a cooperar e se voltar contra os Scarlets. Por um
momento, ele fechou os olhos e se imaginou em casa, quentinho, com um chocolate
quente nas mãos e um cobertor no colo.
– Caiu na caixa-postal – falou Abby, e em seguida tentou ligar de novo. – Ela
não
atende... Droga. Última tentativa.
– Espere aí – Jordan chegou mais perto dela, o máximo que podia sem ser visto
pelas
janelas de vidro que cercavam a porta. – Você está ouvindo isso?
Abby colou a orelha à porta.
Dan não estava ouvindo nada além de alguns pássaros piando uns para os outros no
alto do prédio ao lado.
– Está tocando “Monster Mash”?
– É o toque do celular dela – falou Abby, desligando o telefone. – Talvez seja
melhor a
gente entrar.
– Ligue de novo, só para ter certeza – sugeriu Dan.
Ele chegou mais perto para ouvir o toque do celular, e logo depois que Abby
apertou o
botão de rediscagem começou a escutar um ruído distante, que foi crescendo até se
transformar em melodia. O fato de ela não atender ao celular depois de três
chamadas
era preocupante. E não fazia nenhum sentido. Caso houvesse alguém à espera deles lá
dentro, já teria silenciado o celular, ou interrompido as chamadas, ou talvez até
atendido.
– A gente precisa entrar – falou Abby, entregando o celular para Jordan. – Ela
já
deveria ter atendido.
– Nessa eu estou com você – concordou Dan. – Tem alguma coisa errada – ele
estendeu o braço e pôs a mão na maçaneta, impedindo que os outros entrassem por um
momento. – E, se tiver mesmo alguém lá dentro, é só a gente correr e se separar.
Assim
fica mais difícil para eles. Se conseguirem escapar, liguem os celulares de novo e
marcamos um lugar para a gente se encontrar.
– Certo – falou Jordan.
– Tentem fazer silêncio – acrescentou Abby, afastando a mão de Dan e abrindo a
porta. – Podemos dar uma olhada rápida e cair fora.
Dan logo percebeu que só uma “olhada rápida” estava fora de cogitação. Eles
encontraram algo caído no chão assim que puseram os pés no hall de entrada. Ele
deteve
o passo, mas Abby saiu correndo até lá e se agachou para pegar.
– Hã, o que é isso? – sussurrou Jordan, apontando freneticamente.
– Uma mão – respondeu Abby, falando baixinho. – Uma mão de manequim – ela
franziu a testa, desviando os olhos dos dedos de plástico para encarar Dan. – Faz
parte do
projeto dela.
Dan foi andando cautelosamente até o corredor que atravessava o hall de entrada.
Do
lado esquerdo estava vazio, com várias portas que davam acesso ao que ele imaginou
serem salas de ensaio. Já à direita...
– Tem mais uma ali – Abby falou, já correndo para recolher. Dessa vez era um pé.
–
Meninos... Eu não estou gostando nada disso. Lara jamais faria isso com o próprio
trabalho. Essa instalação é importante demais para ela.
– Onde fica o ateliê dela? – Dan perguntou, apesar de isso na verdade não ser
necessário.
Dava para ver outro pedaço de manequim largado mais adiante. As partes de corpos
formavam uma trilha pelo corredor. Abby assumiu a frente, parando para ver cada
pedaço deixado no caminho. Uma coxa... um antebraço... uma cabeça.
Quando chegaram ao tronco, Dan percebeu que eles estavam diante de uma porta
semiaberta. Abby foi logo querendo entrar, mas Dan a deteve. A mão dela tremia
descontroladamente quando ele a segurou.
– Seja o que for que tenha aí dentro – ele murmurou, olhando para os dois –, a
gente
não pode gritar.
Abby pôs a mão espalmada na superfície de madeira e empurrou. As dobradiças
rangeram e a porta se abriu, revelando mais uma trilha de pedaços de manequins.
Havia
cordas e arames arrebentados no teto, ainda balançando, como se tivessem acabado de
ser cortados, com pregos e parafusos nas pontas. Os manequins deviam estar
pendurados, ele pensou, desejando ter visto como a instalação era originalmente.
Ao seu lado, Abby soltou um suspiro de susto, percorrendo com os olhos a
mórbida
trilha de pedaços de plástico até chegar a um corpo de carne e osso caído no centro
do
ateliê.
Ele quase ignorou sua própria recomendação, sentindo um grito subir com força
por
sua garganta.
Era Lara, caída no chão com a cabeça inclinada para o lado. Estava quase
sorrindo,
como alguém que havia pensado em alguma coisa engraçada e mal poderia esperar
para dizer em voz alta. Suas mãos estavam escondidas sob o corpo. O sangue ainda
escorria, e Abby precisou dar um passo para o lado para não pisar nele com seus
tênis.
– Ai, meu Deus – Abby falou, levando sua mão toda trêmula à boca.
Com cuidado, Dan e Jordan atravessaram o ateliê até onde ela estava. Abby seguia
alguns passos atrás. Cal, ou a professora, Dan pensou consigo mesmo, poderiam
aparecer a qualquer momento e agarrar Abby enquanto ela ainda limpava as lágrimas
do rosto.
– Eu sei que isso é uma tragédia, Abby, mas a gente precisa sair daqui –
sussurrou
Dan.
– Não... Ela não pode ficar aqui desse jeito...
Ele começou a puxá-la para longe do corpo. Um dos pedaços de manequim escapou
das mãos de Abby, caindo ruidosamente no chão.
– Nós não podemos ser vistos aqui – rebateu Dan. Jordan se ajoelhou e limpou com
a
jaqueta as partes dos manequins que Abby tinha tocado. – Se não formos embora agora
mesmo, vamos ser pegos. É isso que a professora Rey es quer, que detenham a gente e
que eu seja encontrado.
Abby se livrou de seu toque e se virou para Dan.
– Dá para esquecer essa conversa do diretor por um minuto? Estamos falando de
uma
pessoa! Uma pessoa de carne e osso! Ela não pode ficar aqui. Precisamos chamar a
polícia, precisamos fazer alguma coisa.
– Ab, ela está morta – Jordan disse baixinho. – Não podemos fazer nada – ele se
virou
para Dan e apontou para a porta. – De repente a gente pode ligar para a polícia e
desligar. Pelo menos alguém viria até aqui.
– Precisamos sair daqui – rebateu Dan, tomando o caminho da porta. Ele não
estava
nem um pouco disposto a levar a culpa por uma morte com a qual não tinha nenhum
envolvimento. Talvez se ela estivesse viva eles pudessem fazer algo, mas não era o
caso.
– Se for mesmo uma arapuca, a polícia pode já estar a caminho, vocês não entendem?
Dan olhou para o teto, à procura de câmeras. Eles não deveriam ter ido até lá.
– Ela não pode ficar aqui abandonada – Abby disse por fim, cruzando os braços.
– Então faz companhia para ela – grunhiu Dan. – Mas eu é que não vou ficar nem
mais um minuto aqui.
Jordan hesitou, mas foi atrás de Dan. Alguns segundos depois, eles ouviram Abby
correndo atrás deles pelo corredor.
– Dan...
– Venham comigo – ele falou bruscamente. – Eu já sei o que fazer.
– Dan, espere...
Abby o segurou pelo braço, mas ele não deteve o passo até chegar ao fim do
corredor, à saída de emergência. Logo ao lado na parede havia uma caixinha vermelha
com uma alavanca.
– Espere – ela falou de novo, implorando.
– Eu não posso fazer nada, Abby, nem você – ele apontou para o alarme de
incêndio.
– Quando estiver pronta, pode puxar. Escute só, sei que você ficou abalada. Eu
também
fiquei. Mas também estou com medo, sabia? Era para você ter vindo sozinha. Já
esqueceu? Sozinha. Era uma tremenda armadilha.
– Mais um motivo para ela merecer nossa solidariedade! – rebateu Abby. – E
não...
isso que estamos fazendo! Ela foi assassinada!
– A gente não pode ficar aqui e esperar a polícia. Isso não é uma opção, então
toca o
alarme se quiser, e se não quiser não toca. Eu estou caindo fora.
O frio do lado de fora o atingiu como um tapa na cara. Ele correu, enfiando as mãos
nos
bolsos e batendo com os pés no chão com mais força do que o necessário. Pelo menos
assim ele poderia se esquentar. Não muito, mas qualquer coisa era melhor do que
deixar
a imagem de Lara caída e sem vida voltar à sua mente.
Aquilo não era coisa da professora Rey es. Era coisa do diretor. Mas ele não
poderia
fazer nada contra o diretor, então a professora teria que levar a culpa. Ela havia
atacado
Micah, e depois Lara. Não era preciso pensar muito para concluir que eles eram os
próximos. Soltando um palavrão, ele piscou várias vezes, tentando conter o pânico
que
parecia prestes a tomar conta de seus nervos.
Atrás deles, o ruído agudo do alarme de incêndio ressoava e, com Abby e Jordan
ao
seu lado, ele se sentia mais culpado do que nunca.
Dan sabia que era a coisa certa a fazer, caso contrário seriam pegos pela
polícia ou
pelos Scarlets, e nenhuma das duas opções significava que sairiam de Camford em
segurança.
Abby seguia bem ao seu lado. Quando pararam para descansar um pouco, ela parou
alguns metros à frente. Em seguida se virou e voltou até ele.
– Eu não gostei nem um pouco do que a gente acabou de fazer – falou Abby,
resoluta.
– E não me interessa se é perigoso ou não, vou procurar a polícia.
– Quê? Abby, você sabe que isso não é uma boa ideia.
– Nós temos informações – ela rebateu, quase gritando.
Jordan apareceu ao lado dela, segurando-a pelo braço e afastando-a um pouco mais
do prédio.
– A gente não pode ter essa conversa aqui – ele alertou.
Jordan conduziu Abby a um local mais distante do prédio de Artes, um
estacionamento pavimentado de formato circular. A essa altura, já havia alguns
prédios
acadêmicos entre eles e a cena do crime.
– Você não concorda comigo, Dan, já entendi, mas a gente sabe quem foi que matou
a Lara! E eu sei que acha que a cidade inteira está metida nessa conspiração, mas
isso...
Isso é ridículo! – ela recobrou o fôlego, juntando as mãos. – Não temos nenhuma
prova
de que o caso vai além dos limites da faculdade.
– E o Harry Cartwright? E a candidata ao Senado? E a cidade inteira aparecendo
naquele parque de diversões idiota? – Dan rebateu, exaltado. – Ele trabalhava no
correio.
O diretor parecia ter livre acesso à correspondência da cidade. E aquela mulher, a
política, nem piscou quando eles... quando eles machucaram o Micah.
– Mas, quando a gente estava invadindo aquelas casas, o próprio Micah ficou com
medo de ser pego pela polícia, e ele é um Scarlet.
Dan batia com os pés no chão, ansioso, ouvindo o barulho da sirene dos
bombeiros
cada vez mais próximo.
– Devia ser só uma encenação dele para enganar a gente.
– Mas era você quem dizia que a gente podia confiar nele – argumentou Jordan,
sem
se exaltar, com as sobrancelhas erguidas. – Parece que a gente só conhece metade da
história aqui, e... E, por mais que eu pense que você pode estar certo, Dan, não me
parece certo fugir quando a gente pode pelo menos tentar falar com a polícia.
– Ah, sim, porque eles fizeram um ótimo trabalho no verão! – Dan teve que se
segurar para não gritar.
Os Scarlets podiam estar de olho neles naquele exato momento. Provavelmente
estavam. Quem matou Lara ainda devia estar por perto, acompanhando sua discussão e
se deliciando com tudo aquilo.
– Incompetência não é a mesma coisa que envolvimento em corrupção – rebateu
Abby. – Eu não sei mais o que fazer. Lara estava tentando sair.
Ela pegou o celular, e Dan viu o aplicativo de mapas surgir na tela.
– Eu posso ir sozinha, não tem problema. Vocês dois podem ficar aqui e ir atrás
de
uma solução milagrosa.
Dan precisou suprimir o impulso violento de arrancar o celular das mãos dela,
que
estava pegando o endereço da delegacia.
– Eu vou com você, Ab. Não quero que vá sozinha – falou Jordan, pondo a mão no
ombro dela.
– Sei que o que estamos fazendo pode dar certo – insistiu Dan, em tom de
súplica. –
Estamos bem perto de uma resposta. O que Felix quis que a gente visse, quis que os
seguíssemos. E tem a minha visão! O Maudire disse que existe um jeito de desfazer
tudo!
Ele saberia, não? Estamos bem perto.
– Pode até ser – Abby se virou, seguindo o caminho apontado pelo mapa no
telefone.
– E ainda podemos continuar o que estamos fazendo depois de falar com a polícia.
Nós
dois podemos estar certos, Dan, e prefiro basear minhas decisões em coisas mais
concretas do que uma visão.
– Por favor, não vá – ele disse baixinho, mas os dois já estavam tomando o
caminho
da cidade.
Abby olhou para trás e abriu um sorriso tristonho. Apesar de querer ir atrás
deles, Dan
não conseguiu desgrudar os pés do chão.
Uma dor de cabeça persistente começou a se instalar na base da nuca de Dan. Era de
preocupação, ele sabia, uma preocupação que estava se manifestando como dor física.
– Não foi por orgulho – ele insistia. – Só estou seguindo minha intuição.
Mesmo que fosse orgulho, ele precisava acreditar que tinha tomado a decisão
certa.
Depois de ver Abby e Jordan sumirem morro abaixo, só restava a ele esperar e
esperar.
Eles mudariam de ideia, depois de caírem em si. A qualquer minuto apareceriam
correndo ladeira acima. Ele podia segui-los, talvez, à distância, para garantir que
não
fossem interceptados pelos Scarlets.
Estranhamente, Dan se sentia mais seguro assim, em campo aberto. Pelo menos ali
havia a chance de correr e escapar. A pele de seu rosto começou a queimar de frio,
então ele resolveu andar, a princípio sem rumo, mas depois com mais propósito, com
uma ideia surgindo em sua mente. Ele seguiu na direção onde seus amigos tinham ido,
pegando o caminho que atravessava o campus e depois mergulhava morro abaixo até a
cidade. Quando começou a descida, ele virou à esquerda, indo até o pequeno
cemitério
em que pararam no dia em que chegaram.
A garrafa vazia que serviu de travesseiro para o garoto da fraternidade ainda
estava
lá, recoberta de gelo.
Dan passou pelo portãozinho que cercava o cemitério, ouvindo a grama endurecida
pela geada estalar sob seus pés. Mesmo quando estava parado, sem se movimentar, seu
coração ainda estava disparado. Era impossível desviar seus pensamentos de Abby e
Jordan. Ele estava permitindo que fossem pegos. Ele havia deixado seus amigos na
mão.
Mesmo assim, continuava convencido do que falou: devia haver um jeito de
reverter
a hipnose. Caso contrário, eles e seus amigos tinham voltado para o campus e
arriscado a
vida de novo à toa.
Dan não conseguiu conter um sorriso, ainda que irônico, diante da lápide aos
seus pés.
Como ele esperava, as rosas que formavam o crânio dos Scarlets estavam no túmulo de
Roger L. Erickson. Alojamento Erickson. Ele olhou para as datas. Esse sr. Erickson
tinha
morrido um ano e meio antes. O que Micah havia contado? O pai de Cal era o reitor?
Quantas coisas os Scarlets não devem ter aprontado no campus contando com a
colaboração do reitor? Amado como pai, filho, mentor...
– Desgraçado.
Dan nem precisava se virar para saber quem estava atrás dele.
– Ele era mesmo. Ninguém gostava do sujeito, muito menos eu.
Um par de docksides apareceu ao lado dos pés de Dan. Cal não estava usando o
manto
vermelho dessa vez, apenas uma blusa grossa, calça de veludo e suas luvas de couro
elegantes. Ele suspirou, talvez de saudade, e estalou a língua.
A pulsação de Dan disparou de vez. Seu peito reverberava ao contemplar as
possibilidades. Ele não era nenhum atleta, e Cal parecia forte e ágil o suficiente
para
subjugá-lo.
– Vou fazer um telefonema – Cal avisou, sacando o celular do bolso. – Alô,
polícia?
Daqui a pouco dois idiotas vão aparecer aí na delegacia. Vocês podem fazer o favor
de
trazer os dois aqui pra cima para mim? Pra você também. Tchau.
– O desgraçado é você – murmurou Dan.
– Provavelmente – respondeu Cal, sem se deixar abalar.
– Ligue de novo para lá, diga para a polícia deixar meus amigos em paz.
– Ou o quê? – ele deu risada, afastando os cabelos arruivados do rosto. – Seus
amigos
precisam ficar mais dóceis, ou então vão acabar mortos, como seu querido Micah.
Dan fez uma careta. Morto?
– Esse é você mesmo falando, Cal, ou é sua versão “mais dócil”?
Isso pareceu deixar Cal meio sem jeito. Ele levou as mãos aos cabelos e
suspirou.
– Quer saber, essa foi a coisa menos tediosa que já saiu da sua boca. Quase me
fez
querer ter uma resposta para dar. Eu comecei muito cedo. Meu pai estava metido
nisso
até o pescoço. Quando se toma ácido há tanto tempo quanto eu, não dá para dizer
quais
pensamentos são seus e quais são de outra pessoa.
Com a mão já no bolso, Dan conseguia alcançar facilmente seu celular. Ele tentou
acessar o número de Abby no menu de chamadas rápidas, torcendo para que tivesse
bateria suficiente para completar a chamada. Mas e depois? Talvez já fosse tarde
demais... Mas talvez, se ela atendesse e ouvisse a conversa dos dois, talvez dessem
meia-
volta e fugissem.
Dan ouviu o som da grama e do cascalho do caminho sendo pisoteado atrás deles.
Mais Scarlets, ele imaginou.
– Você se saiu muito bem, Cal, assim como nosso Felix... – era a professora Rey
es.
Dan se virou para ela, e sentiu um frio na espinha ao notar seu sorriso sereno.
Ele saiu em disparada, tentando pular a cerca do cemitério, mas Cal foi mais
rápido.
Quando sentiu o aperto implacável de Cal em seus braços, Dan parou de resistir e
encarou com frieza a professora Rey es. Ele estava esperando por esse momento, mas
agora, diante dela, não se sentia pronto. Ela vestia calça e cardigã pretos. O
único tom
diferente era o da pedra vermelha pendurada na corrente em seu pescoço.
– Eles não fizeram tudo direitinho, Daniel?
– É Dan – ele respondeu secamente. – O Felix... ele está envolvido nisso também?
– Claro que sim – ela deu risada, um som que o deixou todo arrepiado. – Aquele
menino não dá um suspiro sem permissão.
– Por que você está fazendo isso? – murmurou Dan. Suas mãos pareciam
congeladas,
e o aperto dos braços de Cal expulsava o ar de seus pulmões. – Por que não para com
isso e não deixa a gente em paz?
– Você mais do que ninguém sabe que não posso fazer isso – ela deu risada outra
vez,
jogando a cabeça para trás. – Agora vai vir comigo para termos uma conversinha.
Felix
já fez sua parte, assim como Cal.
Com um sorriso, ela deu um passo ameaçador na direção dele. A pedra em seu
pescoço brilhou.
– Sim, minhas marionetes fizeram bem seu trabalho – ela falou, tocando
carinhosamente a pedra –, e cumpriram sua parte. Mas a sua parte, Daniel Crawford,
está só começando.
Ele tentou jogar o corpo para trás, para atingir Cal com a cabeça, mas o outro
estava
atento e antecipou seus movimentos. A professora Rey es sorriu, sacando uma seringa
comprida do bolso da calça. Ele sentiu seu perfume exagerado, viu o brilho
ambicioso
em seus olhos. A ponta da agulha entrou em seu braço antes mesmo que ele pudesse
gritar.
Ele pensou que o resultado seria melhor. O método tinha sido refinado... Como
poderia ter
falhado bem agora, quando ele se sentia tão confiante em suas técnicas? Mas o que
estava
feito estava feito. Não havia por que se apegar ao fracasso.
Ao seu lado, a jovem estava imóvel, ainda se recuperando. Um cobertor grosso
envolvia seus ombros. Ele não teria como manter seus métodos em segredo. Era o
preço a
pagar – que ele iria pagar – pela perfeição. Pelo controle.
– Olhe para elas, Caroline – ele falou.
Ela estava olhando para os próprios pés, e não para as caixas compridas de
madeira
sobre a grama. Atrás deles, a construção permanecia em silêncio, com suas pedras
parecendo ainda mais escuras e frias sob as nuvens pesadas de chuva. A névoa
circundava a base da construção, pairando sobre o jardim.
As mulheres seriam enterradas no jardim. O cemitério era arriscado demais, sua
influência sobre a faculdade e o governo local ainda não era absoluta.
– Olhe para elas – ele repetiu, em um tom mais severo.
Caroline ergueu a cabeça raspada. Os cabelos escuros estavam ameaçando
reaparecer, como plantas que começavam a brotar em uma terra recém semeada. Na
parte de trás da cabeça, porém, seus cabelos escuros continuavam lá. Os pontos em
seu
crânio ainda eram recentes e doloridos. Sua cirurgia tinha ido muito bem. As das
outras...
muito mal. Ele deveria ter realizado as operações primeiro, em vez de perder tempo
com
as drogas.
Enfim, lição aprendida. Sem errar, não era possível acertar.
– Só vamos ter que praticar mais – ele disse com um suspiro. – A técnica com o
instrumento pontiagudo é mais sutil, mas exige uma mão mais treinada do que a minha
está
no momento.
Caroline o encarou, ainda sem disposição para olhar para as caixas que seriam
enterradas.
– Tinha tanto sangue – ela murmurou. Suas mãos seguravam o cobertor, e estavam
começando a tremer. – Tanto sangue.
Ela estava certa, obviamente. Crânios abertos envolviam inevitavelmente muita
secreção.
– Ora, ora, Caroline, não seja vulgar. Se quiser discutir o procedimento nós
podemos,
mas em termos científicos, sem esse drama todo.
Ele pôs a mão no ombro dela em um gesto paternal.
– Eu vou ensiná-la. Vamos praticar juntos! Vai ser divertido, não? Tenho certeza
de que
você vai se revelar uma aluna excelente.
Dan acordou com a cabeça girando, e demorou um instante para se lembrar do
cemitério, da professora, da seringa...
Ele tentou se levantar, mas sua cabeça doeu tanto que sentiu ânsia de vômito.
Sua
boca estava seca e inchada, e sua garganta quase fechada. Aos poucos, foi
conseguindo
abrir os olhos. Apesar de grogue e ainda drogado, Dan reconheceu as prateleiras
empoeiradas e o cheiro de mofo do subterrâneo. Armários de arquivo... Uma mesa
comprida... Ele estava de volta ao escritório do diretor.
Ao Brookline.
Seria de se esperar que estivesse amarrado, mas nada restringia seus movimentos
daquela vez. Alguém o havia sentado na velha cadeira do diretor. Quando ficou de
pé,
seus músculos doíam como se tivesse levado uma surra. As velas em forma de crânio
ardiam em cada superfície, com a cera vermelha escorrendo sobre os pires e se
solidificando sobre os armários. O Brookline estava fechado para os alunos, mas a
professora Rey es ainda usava o local para atividades com estudantes de psicologia.
– Ótimo, você acordou de novo – ela entrou pela porta envidraçada do diretor e a
deixou aberta.
Suas roupas não eram mais as sóbrias de antes, e sim um manto dos Scarlets.
– De novo? – perguntou Dan com a voz rouca, levando a mão à garganta seca.
– Hum-hum. Nós acordamos você apenas pelo tempo suficiente para garantir que a
hipnose tinha funcionado – ela sorriu para ele, escancarando a falha entre os
dentes da
frente. – E tenho ótimas notícias! Funcionou.
A adrenalina invadiu suas veias, e o pânico tomou conta de seu corpo. Ele levou
a mão
ao nariz, e depois à testa.
– Você não fez isso...
– Ah, não. Ainda não – ela apontou com o queixo para uma bandeja com
instrumentos médicos diante dele. Dan reconheceu o de ponta afiada da noite
anterior. –
Só mais tarde.
– Por que mais tarde? – Dan precisava distraí-la. Talvez por tempo suficiente
para
pegar o instrumento afiado da bandeja. Ela não era muito grande. Poderia ser mais
fraca
que ele. – Por que esperar?
– Porque o processo pode ser... imprevisível, e você tem informações que eu
preciso
conseguir antes de seu cérebro ser transformado em gelatina – ela abriu um
sorrisinho e
apontou para a cadeira da qual ele tinha levantado. – Sente-se, Daniel, para
podermos
conversar como dois adultos civilizados.
– Nada disso – ele respondeu, juntando todas as forças que lhe restaram para
pegar o
instrumento afiado e partir para cima dela.
Suas mãos estavam quase se fechando quando ela falou:
– Você não vai encostar nisso, Daniel.
Foi como se ela tivesse cravado um prego na cabeça de Dan, e uma dor lancinante
se
espalhou de seu crânio por toda sua coluna vertebral até que ele decidisse
obedecer.
Estava paralisado, incapaz de fazer seu corpo obedecer a seus próprios pensamentos
e
comandos.
– Agora que tal se sentar? – ela perguntou calmamente.
A professora Rey es se acomodou do outro lado da mesa com um suspiro
impaciente.
– O que você fez comigo?
– O mesmo que faço com todo mundo que não consegue se controlar e ser
civilizado.
Agora sente-se.
Ela tirou o capuz da cabeça, e em seguida os próprios cabelos. Era uma peruca,
e Dan
notou que os cabelos não tinham voltado a crescer ao redor das cicatrizes da
lobotomia.
Sem saber o que fazer, ele se sentou, sem tirar os olhos da bandeja com os
instrumentos.
– Saiba que você não vai conseguir me machucar – ela falou com toda a
tranquilidade. – Você está sob meu controle agora.
A mente de Dan estava a mil. Devia haver uma maneira de sair daquela armadilha.
Devia existir uma forma de reaver o controle de sua mente.
– Você não precisa fazer isso. Pode me deixar ir – ela ouvia sem muita atenção.
Dan
se apressou em continuar. – Não é culpa sua, Caroline. Ele tomou o controle de
tudo... de
uma fraternidade, dos Scarlets, de você e depois da faculdade. Você não teve a
menor
chance. Foi sequestrada por ele e transformada em uma de suas marionetes. Você é
uma
vítima, não uma vilã.
Caroline hesitou, e seu lábio inferior tremeu. Em seguida ela deu risada, uma
gargalhada tão forte que um pouco de baba caiu sobre o manto.
– Boa tentativa. Um discurso bem comovente. Mas acho que você está enganado,
Daniel. Eu não sou uma vítima, sem dúvida nenhuma sou a vilã. Não tive muita
escolha
na vida, mas isso fui eu que decidi: sou, sim, a vilã – ela se virou na cadeira e
chamou
pela porta aberta. – Já pode trazê-los.
Era uma visão tristemente familiar. Abby e Jordan foram trazidos para dentro,
mais
uma vez amarrados a macas. Quem as empurrava era Cal, uma de cada vez. Quando
estavam todos dentro da sala, Cal se recolheu a um canto, sorrindo presunçosamente
para Dan.
– Seus amigos ficam bem melhor quando estão amarrados, né? Ficam mais dóceis.
Abby e Jordan estavam acordados, ambos se debatendo para se livrar das correias
que os prendiam. Dan ficou observando, amargurado, enquanto Cal dobrava as pernas e
as rodas das macas e os punha em posição vertical contra a parede. Seus amigos
gritavam, de frente para ele, amarrados como múmias.
– Por que não hipnotizou os dois também? – murmurou Dan.
– Quem disse que eu não fiz isso? – a professora Rey es ficou de pé e foi até
Jordan,
olhando-o de cima a baixo com um desdém visível. – Na verdade, não eu, mas nosso
amigo Escultor. Ou era Felix? Ou Felix era o Escultor? – ela gargalhou, e Dan
levantou da
cadeira num pulo, mas em seguida sentiu uma queimação terrível se espalhar dentro
de
sua cabeça.
– Os pesadelos... as vozes... Você nem imaginou? – a professora Rey es estalou
a
língua de forma brincalhona. – Ele levou vocês lá embaixo, até a sala de operações.
Munido do meu conhecimento, era natural que quisesse se divertir um pouco. Mas ele
não é dos mais capazes. Não conseguiu controlar você. Mas eu sim.
– Deixe os dois fora disso – falou Dan, agarrado à mesa do diretor. O calor das
velas
dentro da sala era incômodo. Sentindo-se fraco e todo suado, ele despencou de volta
na
cadeira. – Você disse que queria informações, tudo bem. Isso eu posso dar.
A professora Rey es fez um gesto de cabeça para Cal, que obedientemente foi até
a
bandeja e pegou o martelo e o instrumento de ponta afiada. Quando ele voltou a
ficar do
lado de Jordan, Dan sentiu sua pele se arrepiar de medo.
– Acho que você quer as anotações – falou Dan, tentando desviar os olhos de
Jordan. –
Mas eu não sei onde estão.
– Mas você leu tudo – ela respondeu, escancarando os dentes.
Não dava para chamar aquilo de sorriso.
– Sim, eu li.
– Era isso que eu queria. Aposto que você estava se achando muito esperto,
decifrando as coordenadas, recolhendo todas as migalhas que deixei. As anotações
estavam lá à sua espera, e como vocês são parentes... Eu sabia que ia entender tudo
melhor que ninguém. Havia sempre uma peça faltando. Você consegue vê-lo, né? Nos
sonhos, na vida real... Consegue ver o diretor. Consegue ver coisas que as outras
pessoas
não enxergam, Daniel. Por isso tinha que ser você. Não dava para eu desenterrar
Maudire e interrogá-lo pessoalmente, certo?
Seus lábios se contorceram quando ela disse isso. Caroline tirou a corrente do
pescoço,
inclinou-se para a frente balançou a pedra de um lado para o outro diante de Dan.
Ele
não conseguiu desviar o olhar, sentindo-se estranhamente fascinado.
– Felix guiou você direitinho. Eu guiei você direitinho. O parque de diversões,
as
fotos... Se eu conseguisse despertar as lembranças certas, sabia que você ia me dar
uma
resposta. Foi Maudire quem falou para você sobre a senha. Tão simples. Tão
incrivelmente simples. Como foi que não pensei nisso antes? Você descobriu, né?
Conhece a palavra que desfaz toda a programação, toda a obra dele...
Ela ergueu uma das mãos e a bateu contra a mesa. Dan se inclinou para trás, todo
trêmulo.
– Eu não sei do que você está falando...
E era verdade. Ela estava certa sobre Maudire afirmar que havia uma palavra de
segurança, mas ele nunca disse exatamente qual era...
– Vá em frente – ela grunhiu e, paralisado, Dan observou enquanto Cal erguia o
instrumento pontiagudo e o posicionava acima de um dos olhos de Jordan.
– Ei! – Jordan fez uma careta, mas em seguida ficou totalmente imóvel. – Não...
não
faça isso. O Dan vai dizer qual é a palavra. Claro que vai! Não vai, Dan? Você vai
falar,
né?
O suor escorria pela testa de Jordan. Sua voz estava esganiçada por causa do
pânico.
Dan sacudiu a cabeça lentamente. Ele não sabia. E por que não sabia?
Pensa... Pensa...
– Para! Eu vou falar! – disse Dan, mas só para ganhar mais tempo.
Ele não conseguia se concentrar, não conseguia pensar. Não sabia o que ela
queria
ouvir. Tentou visualizar mentalmente os papéis e as anotações, mas, por mais que
tentasse, as palavras pareciam todas borradas.
– Me diga qual é – gritou Caroline, movendo a pedra cada vez mais depressa
diante de
seus olhos. Parecia uma estrela, vermelha, incandescente, abrindo seu crânio para
que as
palavras dela entrassem em contato direto com seu cérebro. – Me diga a senha,
Daniel
Crawford, para eu poder ter controle sobre mim mesma outra vez. Eu vou ser
libertada.
O resto de vocês pode apodrecer até a morte, mas eu vou ficar livre. Me diga.
Com o canto do olho, Dan viu Cal puxar o martelo para trás. Ele iria atacar.
– Eu sei qual é! – gritou Dan. – Não faça nada com ele, eu sei a senha!
Abby estava berrando e se debatendo contra as amarras.
Por que ele não sabia? Por que ele não conseguia ajudar seus amigos?
– Sabe mesmo? – a professora Rey es sorriu para ele atrás da pedra. – Talvez eu
esteja
usando o incentivo errado. Talvez seja mais parecido com ele do que eu imaginava –
os
olhos dela se voltaram para a bandeja com os instrumentos. – Pegue o bisturi,
Daniel, e
encoste contra seu pescoço.
Era como se sua mente e seus braços fizessem parte de corpos distintos. Ele não
conseguia mais controlar a mão que segurava o instrumento cortante.
– Bom menino.
Dan viu a lâmina se aproximar cada vez mais, até a ponta fria do instrumento
tocar
seu pescoço. Sua boca se abriu em um grito silencioso e indefeso de pavor.
– Não está preocupado com seus amigos, ameaçá-los não significa nada. Você só se
preocupa consigo mesmo... Como ele – ela baixou o tom de voz e começou a falar em
um sussurro impassível e sem nenhuma emoção. – Agora diga a palavra que vai me
libertar ou vai ter que começar a cortar.
Os olhos dele se desviaram para Abby, e depois para Jordan. Os dois ficaram
olhando
para ele, sem piscar, e Abby murmurava palavras que ele não conseguia entender. As
lágrimas desciam pelo rosto dela. Dan visualizou os papéis mentalmente de novo, mas
não havia nada lá.
– Ele não anotou a palavra – balbuciou Dan, tropeçando nas próprias palavras. –
Ele
não anotou... Sei que não. Eu me lembraria. Ele não anotou, eu juro! Juro que não.
Ai,
meu Deus, não me obrigue a fazer isso...
Quando ela abrisse a boca de novo, Dan seria obrigado a obedecer. O
condicionamento da professora era poderoso demais, e Dan não tinha como se
defender.
– Acorde, Daniel, e corte.
A princípio ele sentiu apenas uma picada de leve na pele, quando a lâmina
começou a
passear lentamente por seu pescoço. Em seguida sentiu algo úmido e quente nos
dedos, e
a sala começou a girar. Não havia mais como julgar Micah, nem Lara, nem mesmo Cal
– ele faria o que Caroline ordenasse sob o efeito daquela combinação de hipnose e
drogas. Ele tentou resistir, mas sua mente estava adormecida, e seu corpo parecia
pertencer a outra pessoa.
– Vamos ver se o medo ativa sua memória – Caroline murmurou, implacável. – E se
não conseguir se lembrar... Bem...
O sangue estava escorrendo mais depressa, mas ele não conseguia parar e, como
não
sabia a resposta, a tendência era sangrar cada vez mais.
Foi então que ele ouviu algo atravessar o pano preto que cobria sua mente. Foi
uma
explosão de cor, de inspiração, e assim que ouviu aquilo ele conseguiu pensar de
novo.
Dan estava livre.
– Sanctum! – gritou Abby, e depois de novo, mais alto e com mais convicção. –
Sanctum! A senha é sanctum!
Caroline piscou algumas vezes antes de se voltar para Dan. Então do vazio de
sua
expressão surgiu um sorriso maligno, e ela começou a avançar em sua direção.
– É isso! É essa a senha! E é tão simples! Estou até me sentindo meio burra.
Mas era
só para isso que precisava de você – ela falou. – Você não é mais necessário. Agora
eu
posso encerrar o último resquício da linhagem daquele monstro!
Ele viu e ouviu o instrumento de ponta afiada cair no chão. Cal o tinha
derrubado.
Caroline saltou para trás da mesa, agarrando Dan pela garganta. Ele começou a ver
estrelas. Ele ergueu o bisturi e usou seu último fôlego para cravá-lo nas costas da
professora.
Ela o largou e desabou sobre a mesa, tentando arrancar a lâmina das costas. A
pedra
caiu de sua mão, quicando sobre os papéis espalhados na mesa do diretor. Dan a
apanhou
e saltou sobre o móvel, ignorando o tremor em suas mãos e o sangue que as cobria
enquanto tentava soltar Abby. Cal já tinha começado a desamarrar Jordan.
Com a respiração acelerada, Dan deu uma olhada para Cal, que estava dobrado
sobre
si mesmo, sacudindo a cabeça como se tivesse levado um soco na cara e não
conseguisse se recuperar.
– Eu vou matar você! – Caroline gritava, ainda se debatendo na mesa, tentando
arrancar o bisturi das costas. As velas caíram e saíram rolando pelo chão e, apesar
de
algumas terem se apagado, outras espalharam suas chamas pelos arquivos e livros
espalhados pelo piso. – Vou matar todos vocês!
As chamas atingiram o manto de Caroline, que não parecia se decidir entre lidar
com
o fogo ou com a lâmina nas costas.
Dan soltou uma última fivela, a que prendia a cabeça de Abby à maca. Ela caiu
nos
braços dele.
– Precisamos cair fora daqui – gritou Jordan, puxando Dan pela manga do casaco.
–
Agora!
Jordan se encaminhou para a porta, com Dan e Abby logo atrás, mas de repente
viu
seu caminho obstruído. Cal entrou em sua frente, com seu belo rosto franzido e
castigado
pela exaustão. O brilho que existia em seus olhos quando Dan o viu pela primeira
vez não
estava mais lá. Dan não queria ter que brigar, mas não ficaria parado ali, não
quando as
chamas já estavam devorando o escritório e começando a transformar o recinto em
uma fornalha.
– Podem ir – falou Cal, empurrando Jordan na direção da porta. – Fora daqui!
Os outros dois saíram correndo, mas Dan parou logo depois de cruzar a porta.
– Você pode vir com a gente – ele disse, ofegante, virando--se para Cal.
Atrás dele, o fogo rugia, com os velhos livros e papéis servindo como
combustível,
inflamando-se imediatamente. Não demoraria muito até as chamas alcançarem a porta.
– Não – respondeu Cal com um sorriso triste. – Ela não pode sair. Precisa
desaparecer
junto com este lugar. Leve os seus amigos daqui. Me deixe fazer pelo menos uma
coisa
decente na vida – ele deu as costas para Dan, e por cima do ombro acrescentou. –
Agradeça a sua namorada por mim.
– Dan! Vamos embora! – Abby o puxou pela gola do casaco, obrigando-o a segui-la
pelo corredor.
Ele se lembrava muito bem do caminho da saída, como se até o dia anterior ainda
circulasse pelas entranhas do Brookline. O cheiro de queimado e de fumaça preenchia
o
ar, e ele ainda conseguia sentir o calor do fogo enquanto corria para longe do
escritório.
Quando estavam quase chegando ao saguão do velho manicômio, Dan olhou para trás
para ver as chamas que saíam pela porta do antigo escritório do diretor.
A porta de acesso do porão estava trancada. Jordan não perdeu tempo tentando
abrir a
fechadura – golpeou a estrutura de metal e madeira até que ela cedesse, abrindo
caminho para o ar mais fresco do alojamento desativado.
– Pelos fundos – falou Jordan, já começando a correr. Dan conseguia ouvir o
crepitar
das chamas se espalhando nos subterrâneos. – Não podemos ser vistos saindo daqui.
Enquanto se dirigiam para a porta dos fundos do Brookline, Dan viu a alavanca
vermelha do alarme de incêndio. O ar frio da tarde o atingiu quando Abby e Jordan
abriram as portas e Dan acionou o alarme. A sirene começou a tocar, ecoando em um
volume ensurdecedor pelos corredores vazios.
Do lado de fora o sol já se punha, pintando o céu de laranja e roxo sobre as
copas das
árvores. Dan se afastou alguns passos da porta e se virou, tentando recuperar o
fôlego
enquanto ouvia um rugido distante e gutural.
Em seguida houve um estalo de estourar os tímpanos, e o prédio inteiro se
abalou. As
fundações estavam se desintegrando. O Brookline estava prestes a desabar.
As chamas se espalharam mais rapidamente do que Dan esperava. Quando ele, Abby e
Jordan chegaram à frente do edifício, já havia uma multidão aglomerada por lá.
– A polícia ficou com os nossos celulares – murmurou Jordan, desolado. – Espero
que
alguém chame os bombeiros, e que eles resgatem Cal.
Dan e Abby o encararam com um silêncio de perplexidade.
– Que foi? – ele resmungou. – Cal devia ser um cara legal antes da lavagem
cerebral.
Se bobear, os docksides não foram nem ideia dele.
Abby bateu de leve no ombro dele.
– Espero que consigam tirá-lo de lá.
Um caminhão de bombeiros parou ruidosamente no gramado, espalhando a multidão
de espectadores. Dan tentou ajeitar suas roupas desalinhadas, com medo de parecer
que
havia acabado de escapar do cenário de destruição do Brookline. A última coisa que
ele
queria era ter que explicar o que aconteceu lá dentro.
– Dan! Seu pescoço! – Abby apareceu diante dele, tirando um punhado de lenços
umedecidos do bolso. Ela abriu uma das embalagens com os dentes e pressionou o
lenço
com firmeza contra o corte em seu pescoço. O ferimento começou a doer ainda mais. –
Por sorte acho que não é muito profundo.
– Pois é – ele falou com uma risadinha sarcástica. – Por sorte.
Os bombeiros desceram às pressas do caminhão, organizando rapidamente sua
estratégia e localizando o hidrante mais próximo. Dan reconheceu alguns dos
candidatos
a alunos da faculdade no grupo que se aglomerava no gramado.
Ele sentiu os dedos de Abby se entrelaçando com os seus e se virou para ela,
conseguindo abrir um sorriso, apesar da exaustão. Ela trocou a bandagem do corte,
comprimindo-o para o sangue parar de escorrer.
– Como foi que descobriu? – ele perguntou baixinho. – A senha... Quer dizer, eu
sei
que você também leu as anotações dele, mas o que fez lá embaixo foi incrível.
– Foi uma coisa que me ocorreu – ela respondeu com modéstia, encolhendo os
ombros. – Aquilo não combinava muito bem com o restante das bobagens dele, então
imaginei que fosse uma coisa importante. Para ser bem sincera, foi mais um palpite.
Eu
ia começar a gritar palavras aleatórias se aquela não funcionasse.
– Ainda bem que nós escondemos aqueles papéis idiotas – ele murmurou.
– Será que não é melhor pegar de volta? – ela perguntou.
– Mais tarde. Cal me pediu para agradecer você – acrescentou Dan. Ele viu os
bombeiros gritando uns com os outros, e o fogo agora era visível no andar térreo,
as
janelas brilhavam como lamparinas de Dia das Bruxas. – Talvez ele ainda consiga
agradecer pessoalmente.
– Puxa, espero que sim. Ele não deveria ter ficado lá – Abby apertou uma última
vez
a mão dele antes de soltá-la. – Vou ver como está o Jordan. Você vai ficar bem?
Ele fez que sim com a cabeça.
– Sim, eu só estou... só estou ansioso para voltar logo para casa.
Enquanto Abby caminhava na direção de Jordan, Dan se perguntou o que diria a
Paul
e Sandy sobre seu pescoço. Talvez esteja na hora de contar a verdade sobre tudo.
Alguns bombeiros saíram do Brookline carregando uma maca. Mesmo do local onde
eles estavam, dava para ver que Cal tinha escapado de lá com vida. A alguns metros
de
distância no gramado, Dan viu Abby e Jordan conversando lado a lado. Os ombros de
Jordan desabaram de alívio. Dan foi andando até seus amigos, sentindo-se finalmente
entregue ao cansaço.
– E agora? – questionou Dan, mas sem dirigir sua pergunta a ninguém em
particular.
Era mais uma pergunta retórica. Ele enfiou a mão no bolso e passou os dedos pela
superfície lisa da pedra. – A gente sai por aí gritando “sanctum” para as pessoas
para ver
o que acontece?
– Não sei – respondeu Abby, encolhendo os ombros. – Mas estou feliz por poder
ir
para casa.
Dan segurou a mão de Abby e cerrou os dentes, vendo o Brookline queimar. As
chamas escapavam pela janela, dançando ao sabor da brisa. Dan não disse nada, mas
torceu para que nenhuma outra maca saísse do Brookline, que o monstro em que
Caroline Rey es havia se transformado desaparecesse para sempre, sepultada no local
mais apropriado que ele poderia imaginar.
Duas horas depois, enquanto esperavam o transporte para ir embora da cidade, uma
chuva leve começou a cair. Abby pôs o capuz do casaco e enfiou as mãos enluvadas no
bolso.
– Só vou ficar mais um dia – ela falou –, só para visitar a tia Lucy e ver se
está tudo
bem com ela. Não precisam se preocupar. Vou mandar mensagem a cada cinco
minutos.
– Isso não me consola em nada, Ab. Estou odiando a ideia de você ficar mais um
minuto que seja aqui – Jordan respondeu, amargurado.
Dan balançou a cabeça em concordância, mas sua mente estava longe. Ele não
conseguia parar de pensar na pedra em seu bolso. Estava esfregando sua superfície
lisa e
polida com o polegar, olhando para um ponto distante da rua por cima do ombro de
Abby.
A chuva se acumulava em poças d’água, e ele sentia cada gota cair sobre sua
cabeça,
movimentando o dedo sobre a pedra naquele mesmo ritmo.
– Dan? – Abby sorriu para ele, ficou na ponta dos pés e deu um beijo em seu
rosto. –
Está tudo bem? Você parece meio chateado.
– Estou só... pensando. Tipo, para todos os efeitos, a gente “resolveu o
mistério” ou o
que quer que seja, mas e daí? E se a gente voltar para casa e perceber que isso
tudo não
aconteceu por causa de algum tipo de hipnose ou lavagem cerebral, e sim por causa
do
trauma do verão?
– Se for assim, a gente vai ter que virar a página e seguir em frente – falou
Abby. –
Como todo mundo.
Ela apontou para trás de si, onde os outros candidatos garantiam aos seus
preocupados
pais que o prédio que pegou fogo estava vazio.
– Além disso, a gente não foi hipnotizado. Foi tudo culpa das drogas, lembra? –
provocou Jordan.
– Muito engraçado, Jordan – resmungou Dan.
– Enfim, agora você tem esse monte de anotações e papéis para tentar descobrir
alguma coisa sobre a sua família – acrescentou Jordan. – Mas, enquanto isso, tente
se
animar, certo? Estamos indo para casa.
– Você tem razão – concordou Dan. Ele olhou para Abby e sorriu. – Virar a
página... é
isso aí.
Em pouco tempo ele estaria de novo com Paul e Sandy, em segurança e com a
distração proporcionada pela escola, pela escolha da faculdade, todas as coisas que
deveriam ser as mais importantes de sua vida.
– O seu ônibus chegou, Jordan – falou Abby, apontando para a rua. Em meio à
chuva
insistente e à névoa, um par de luzes alaranjadas apareceu. – Vamos manter o
contato.
Vocês dois se cuidem, certo?
Ela deu outro beijo apressado no rosto de Dan e um abraço em Jordan. Logo em
seguida atravessou a rua, antes que o ônibus estacionasse. Dan ficou observando
enquanto ela desaparecia no mesmo caminho que usaram para subir até o campus dois
dias antes. O ônibus parou junto ao meio-fio, obstruindo a visão de Dan. Jordan se
preparou para embarcar, e Dan ficou esperando logo atrás.
– Boa viagem, Dan. Foi legal encontrar você de novo, apesar de toda a sua
chatice. –
Jordan o abraçou, e Dan deu uma risadinha, vendo seu amigo entrar no ônibus.
Quando chegou sua vez de ir embora, Dan pegou sua mala abarrotada com os
diários
e papéis de sua pesquisa e enfiou no porta-malas do táxi. O motorista mal olhou
para sua
cara quando ele entrou no carro.
Dan tirou a pedra vermelha do bolso e ficou olhando para ela. O taxista
esperava uma
brecha no tráfego para arrancar com o carro. Era estranho pensar que o Brookline
provavelmente não existia mais àquela altura, que era apenas uma carcaça
carbonizada
e fumegante à espera da demolição.
A maior parte da história sórdida do lugar estava com ele agora, enfiada em sua
mala
e aninhada na palma de sua mão.
Dan olhou pela janela e sentiu seu coração disparar dentro do peito. Seus dedos
ficaram dormentes, e ele não conseguia mais sentir o peso da pedra na mão.
Do outro lado da rua, no caminho que Abby percorrera poucos momentos antes, ele
viu um rosto familiar. Não era o fantasma de Patrick, mas era quase certeza se
tratar de
um fantasma. Era alto e forte, com óculos com armação fina e cavanhaque, e acenou
para o táxi quando o motorista arrancou. Seus olhos eram bem pretos, e um sangue
grosso e coagulado escorria por uma das narinas.
Micah.
– Sanctum – murmurou Dan, embaçando o vidro. – Sanctum.
Não importava quantas vezes ele dissesse aquilo. Pálido como um espectro, Micah
continuava lá, observando sua partida.
Dan estreitou os olhos, pressionando o nariz contra o vidro, sem acreditar no
que
estava vendo. Micah acenava sem parar, com as duas mãos, e um carro se aproximou.
Dan fez uma careta e fechou os olhos. Quando os abriu de novo, Micah havia sumido,
como se nunca tivesse estado lá.
As imagens reproduzidas neste livro são fotomontagens
criadas pelo Faceout Studio com base em imagens reais de
antigos parques de diversões itinerantes.
TÍTULO DO A
Fundo texturizado Naok
Menina assustadora na
Toma
escuridão
Perfil borrado da
Eva v
menina
Papel rasgado 1 e 2 STIL
Acrobata/contorcionista
©Wa
1e2
Mágico 1 e 2 Imag
Corvo 1 e 2 Mari
Roda-gigante 1 e 2 Neil
Topo da tenda 1 e 2 Lars
Bibli
Brookline 1, 2 e 3 de Fo
CA-2
Duas crianças fresc
Roda-gigante de gaiola Evok
Dr. A
Túmulo
Singh
Inscrição kornp
Buquê de rosas suvij
Homem no cavalo com
Acer
anão
Trupe de circo diante
Acer
da tenda
Acrobatas na corda-
Acer
bamba
Mulher barbada chipp
Dois homens de collant Bran
Artista com o guarda-
Acer
chuva
Carrossel Sean
Mansão vitoriana antiga Wood
Malotes postais mcpi
Fantasma no canto Eric
Porta-retratos antigo Eric
Elefantes e palhaços de
Acer
circo
Homem equilibrando
chipp
carrinho de mão
Colar (corrente) Sund
Photo
Geodo Dana
Cera derretida Leigh
Máscara de caveira Jupit
Cartão-postal e
LiliG
envelopes
val la
Jornal antigo
Biblioteca (prateleiras) Tom
Menino na névoa Face
Arquivos antigos na Fiore
prateleira Mass
Letra de mão Face
Placa de madeira Picsf
Circo Crea
Homem sem olhos Bren
Sobrado antigo lunat
Nuvens escuras Serg6
Desenho do menino de Cara
blusa listrada
Parede descascada com Anan
moldura Kaew
Criança engolindo
chipp
espada
Casal com facas e
Acer
machados
Homem com espadas
chipp
em chamas
Palhaço e mulher chipp
Anotação no caderno de Face
Danny
Livro antigo aberto spaxi
Porta e janela com
tábua Andr
Cadeira antiga de
Dani
dentista
nuwa
Lousa antiga
Envelopes antigos DrOb
Três crianças
chipp
enfileiradas
marc
Portão e casa antigos
rodho
Gurg
Galhos
Bakh
Cadeira antiga de Peter
dentista Dede
Mulheres diante da
Alfre
porta
Escultura de madeira de
Rico
figura masculina
Partes de manequim
Cabeça de manequim
Pinky
antiga de porcelana
redef
Cabeça de manequim
Dina
feminina
Mesa de escritório
carl b
abandonada
Óculos
Peter
Gancho
igor g
6, 8, 18, 23, 34, 42, 55, 67, 76, 83, 92, 110, 121, 140, 153, 174, 195, 212, 218,
225,
247, 253, 267, 274, 286, 296, 311, 324, 328, 334, 343, 348, 354, 357, 371, 375,
380.
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